Você está na página 1de 75

Stélio Augusto Mucavel

Gestão dos conflitos de terra: “caso Milhulamete” no bairro Cumbeza, distrito de Marracuene
(2014-2019)

História Política e Gestão Pública

Universidade Pedagógica de Maputo


Maputo
2022
Stélio Augusto Mucavel

Gestão dos conflitos de terra: “caso Milhulamete” no bairro Cumbeza, distrito de Marracuene
(2014-2019).

Monografia a ser apresentada no Departamento de


Ciências Sociais, Faculdade de Ciências Sociais e
Filosofia, para obtenção do grau académico de
Licenciatura em História Política e Gestão Pública.
Supervisor:
Mestre Ângelo Pelembe Bunguele

Universidade Pedagógica de Maputo


Maputo
2022
Índice
Acrónimos...................................................................................................................................................v
Índice de mapas, figuras e gráficos.............................................................................................................vi
Declaração.................................................................................................................................................vii
Dedicatória................................................................................................................................................viii
Agradecimentos..........................................................................................................................................ix
Resumo........................................................................................................................................................x
0. Introdução..........................................................................................................................................11
0.1. Problematização.........................................................................................................................11
0.1.1. Contexto do Problema........................................................................................................11
0.1.2. Situação problemática........................................................................................................14
0.1.3. Pergunta de Partida............................................................................................................15
0.2. Hipótese.....................................................................................................................................15
0.3. Objectivos..................................................................................................................................15
0.4. Metodologia...............................................................................................................................15
0.4.1. Métodos.............................................................................................................................15
0.5. Justificativa................................................................................................................................17
0.5.1. Justificativa Subjectiva......................................................................................................17
0.5.2. Justificativa Objectiva........................................................................................................17
0.6. Justificação das Balizas cronológicas........................................................................................18
0.7. Referencial teórico.....................................................................................................................18
0.8. Relevância.................................................................................................................................18
0.9. Enquadramento da pesquisa.......................................................................................................19
0.9.1. Enquadramento Geográfico...............................................................................................19
0.9.2. Enquadramento Teórico.....................................................................................................21
0.10. Discussão dos conceitos Básicos...........................................................................................27
0.11. Revisão bibliográfica.............................................................................................................29
0.12. Estrutura do trabalho..............................................................................................................32
CAPÍTULO I: PROCEDIMENTOS DE ACESSO, POSSE E GESTÃO DA TERRA EM
MOÇAMBIQUE (até 2019)......................................................................................................................33
1.1. Posse de terra no período pré-colonial (até 1884/1920).............................................................33
1.2. Posse de Terra no Período Colonial (1884/1920 - 1975)...........................................................33
1.3. Posse de terra no período pós-independência (1975 - 2019)......................................................36
1.3.1. Posse de terra na Primeira República (1975-1990)............................................................37
1.3.2. Posse de terra Segunda República (1990-2019).................................................................41
CAPÍTULO II: TIPOS DE CONFLITOS DE TERRA E SUAS CAUSAS NO BAIRRO CUMBEZA
(2014-2019)...............................................................................................................................................48
2.1. Tipos de conflitos de terra..............................................................................................................48
2.1.1. Conflitos Intra-familiares.........................................................................................................48
2.1.2. Invasões de propriedades.........................................................................................................48
2.1.3. Conflitos entre compradores....................................................................................................52
2.1.4. Conflitos entre vendedores e compradores..............................................................................53
2.2. Causas dos conflitos de terra no bairro Cumbeza...........................................................................54
2.2.1. Conflitos de origem Geográfico...............................................................................................54
2.2.2. Causas de origem Político........................................................................................................54
2.2.3. Causa de origem económica....................................................................................................55
2.2.4. Causas de origem jurídica........................................................................................................55
2.2.5. Causas de origem Institucional................................................................................................55
CAPÍTULO III: MECANISMOS DE MITIGAÇÃO DOS CONFLITOS DE TERRAS NO BAIRRO
CUMBEZA (2014-2019)...........................................................................................................................59
3.1. Arbitragem, Mediação e Conciliação..............................................................................................59
3.1.1. Arbitragem...............................................................................................................................59
3.1.2. Mediação.................................................................................................................................59
3.1.3. Conciliação..............................................................................................................................59
3.2. Instâncias de mitigação dos conflitos de terra no bairro em Marracuene, bairro Cumbeza (2014-
2019).....................................................................................................................................................59
3.2.1. Autoridade Comunitárias.........................................................................................................60
3.2.2. Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estrutura...................................................................61
3.2.3. Tribunal Judicial......................................................................................................................62
4. CONCLUSÃO.......................................................................................................................................64
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................................66
6. APÊNDICES E ANEXOS.....................................................................................................................69
v

Acrónimos

ACs------------------------Autoridades Comunitárias
DUAT --------------------Direito de Uso e Aproveitamento de Terra
FAO -----------------------Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
FO -------------------------Projecto Florestal
FO2------------------------Projecto Florestal implementado em Marracuene (Maputo)
FO4------------------------Projecto Florestal implementado em Dondo (Sofala)
FO3----------------------- Projecto Florestal implementado em Nampula
FRELIMO---------------Frente de Libertação Nacional
GDM ----------------------Governo do Distrito de Marracuene
HIPOGEP----------------História Política e Gestão Pública
IFLOMA -----------------Projecto Florestal de Manica
MINAG ------------------Ministério de Agricultura e Desenvolvimento Rural
MONAP ------------------Mozambique Nordic Agricultural Programam
OMR----------------------Observatório do Meio Rural
SDPI ----------------------Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estruturas
vi

Índice de mapas, figuras e gráficos

Mapa 1: Localização Geográfica do distrito de Marracuene......................................................................19


Mapa 2: localização geográfica do bairro Cumbeza..................................................................................20

Figura 1: Secretariado do bairro Cumbeza................................................................................................21


Figura 2: Casas construídas pelos invasores na propriedade milhulamete.................................................50

Gráfico 1: Formas de acesso à terra em Cumbeza.....................................................................................46


Gráfico 2: Tipos de conflitos no bairro Cumbeza......................................................................................52
Gráfico 3: Causas dos conflitos de terra em Cunbeza................................................................................57
vii

Declaração

Declaro que esta Monografia é resultado da minha investigação pessoal e das orientações
do meu supervisor. O seu conteúdo é original e todas fontes consultadas estão devidamente
mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia final.
Declaro ainda que este trabalho não foi apresentado em nenhuma outra instituição para
obtenção de qualquer grau académico.

Maputo, de _______________ de ____________


(Assinatura do candidato)

______________________________________
viii

Dedicatória
Dedico este trabalho à minha mãe.
ix

Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço a Deus pela saúde e protecção.


Em segunda instância, agradeço meu mentor, meu modelo de excelência profissional e
académica, meu supervisor mestre Ângelo Pelembe Bunguele pelos ensinamentos e
acompanhamento observados desde as aulas até a elaboração desta monografia. Agradeço
igualmente aos docentes incríveis do curso HPOGEP.
Agradeço à minha família, minha mãe Atália Safira Chamo pela vida, pelos ensinamentos
imensuráveis, e por sempre acreditar no meu potencial. Agradeço à minha tia Rufina José
Mucavele pela educação e direccionamento que me deu.
Agradeço ainda aos meus irmãos, Cremilda Augusto Mucavel e Clésio Augusto Mucavel
pela força e apoio emocional e financeiro.
Meus agradecimentos especiais vão à minha companheira, namorada e professora de
todos os tempos, Albertina Fernando Govene. Obrigado pelo apoio emocional, financeiro e
acompanhamento.
Estendo os meus agradecimentos aos meus amigos/irmãos, Abner Machanguana, Lucas
Tembe, Alberto Macombo, Alfredo Matecane, Milton Hua, Filimone Xirindza, Adérito Tamele,
Baltromeu Macarringue, Francisco Mondlane, Doramos, Victória Chiboleca, Líndia Sênvano
Mariza Pelembe, pelo apoio durante estes quatro anos na academia e pela amizade criada.
Agradeço aos meus colegas “HIPOGEP-2016” em especial ao meu grupo, Ana Camila,
Sinódia Celeste, Filomena Machoe e Jamila Magengo. Obrigado pelo suporte.
Agradeço ao pessoal da biblioteca Brazão Mazula da Universidade Eduardo Mondlane e
a Imprensa Nacional por me facultar instrumentos elaboração desta monografia. Agradeço ainda
ao Chefe de Repatriação de Obras Públicas, Infra-estrutura e Equipamento em representação do
Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estruturas, Aníbal Bechel. Agradeço ainda ao Juiz Zito
Felisberto Nhatave, ao vice-secretário do bairro Cumbeza, e a população do bairro Cumbeza,
obrigado pela recepção e cooperação ao me facultarem informações de grande relevo para minha
pesquisa. Agradeço finalmente, à todos aqueles que me apoiaram directa ou indirectamente, mas
que não foram aqui mencionados.
x

Resumo

A presente monografia analisa os mecanismos que as Autoridades Comunitárias, o Serviço


Distrital de Planeamento e Infra-estruturas e o Tribunal Judicial de Marracuene tomam como
forma de mitigação dos conflitos de terras em Marracuene: caso milhulamete, bairro Cumbeza
(2014-2019). Tem como base metodológica o método hipotético dedutivo e histórico. Para a
efectivação desse método, recorreu-se as seguintes técnicas: pesquisa bibliográfica, pesquisa
documental e trabalho no campo, baseado na observação, nos inquéritos, nas entrevistas semi-
estruturadas e nas conversas informais. Os resultados deste estudo mostram que o acesso de terra
no distrito de Marracuene, bairro de Cumbeza, ocorre obedecendo dois processos: formal e
informal, em que o último é o mais corrente. Verificou-se a ocorrência de conflitos intra-
familiares, conflitos entre compradores e vendedores, conflitos entre compradores e invasões de
propriedades. Os dois últimos tipos de conflitos são os mais frequentem. Esses conflitos são de
origem geográfica (falta de terra na cidade de Maputo e Matola, que desencadeia na procura
desenfreada de terras em Marracuene) e institucional (fraca capacidade institucional na
titularização de terra, que culmina na dupla atribuição de terra aliada a venda de terra). Para a
mitigação dos conflitos de terra, as autoridades intervêm como terceiro elemento, imparcial e
negociador (usando a técnica de ganha-perde), arbitrando, buscando a conciliação das partes,
recorrendo aos instrumentos legais (Constituição da República e Lei de terra) e baseando-se em
testemunhas.

Palavras-chave: Acesso à terra, Posse de terra, conflitos de terra, mitigação dos conflitos de
terra.
11

0. Introdução
A presente monografia é intitulada Gestão dos conflitos de terras: caso Milhulamete, no
bairro Cumbeza, distrito de Marracuene (2014-2019). Partindo da experiência de convivência da
população local (nativos) com a empresa Milhulamete, esta é uma pesquisa impulsionada pela
necessidade de analisar o poder interventivo das autoridades governamentais do distrito de
Marracuene (Autoridades Comunitárias, Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estruturas e
Tribunal Judicial) na gestão dos conflitos de terra. Este estudo enquadra-se na temática Gestão
Terra da linha de pesquisa de Gestão Pública em Moçambique e na África Austral, tendo como
aspecto em estudo a invasão de terras na propriedade da empresa Milhulamete no bairro
Cumbeza no período 2014-2019.

0.1. Problematização

0.1.1. Contexto do Problema


Segundo Rodrigues et al., (2009) apud Uate (2017, p.13), no Brasil, os conflitos de terra têm a
sua origem desde a chegada do colonizador português com a implantação de propriedades
latifundiárias. Após a chegada do colonizador no Brasil foi se desenvolvendo um sistema de
consolidação da grande propriedade concentrada nas mãos de poucos, colonizadores, e excluindo
a terra para grande parte da sociedade (indígena e negro) e isto foi provocando ao longo do
tempo disputas pela posse e o uso da terra. A partir da independência do Brasil, em 1822, as
terras passam a ser geridas por aqueles que tinham maior poder económico e político. A nobreza
e a alta burguesia continuaram detentoras da maior parte das terras, o que resultou num sistema
desigual baseado no latifúndio e existente até os dias actuais. Após 1850, foi implantada a Lei de
Terras que resultou em práticas de apropriação e anexação de terras por grandes proprietários via
falsificação de documentos de escrituração imobiliária (Jereissati, 2020, p.14).
No México, aponta-se que, o problema, teve origem com a chegada dos colonizadores
espanhóis, ao estabelecer o seu contacto com a população nativa, implantou-se um modelo de
organização social e económica, baseado no sistema de grandes propriedades, os latifundiários e
na utilização da mão-de-obra indígena, sendo que depois da independência do país em 1821 o
modelo de organização não sofreu nenhuma alteração, continuando, a existir diferenças entre
brancos e índios que representam a população local, na sua maioria rural encontravam-se numa
12

situação de miséria e dependiam dos grandes proprietários de terra. Este quadro todo gerou o
aumento de insatisfação da população local que se revoltou contra os latifundiários e a elite
política, reivindicando uma justa distribuição de terras através da reforma agrária (Rodrigues et
al., 2009 apud Uate, 2017, p.13).
Em África, os conflitos de terra nascem no período da agressão imperialista, com a
instalação das artificiais fronteiras impostas pela Conferência de Berlim na partilha de África em
1884-1885.Como explica Negrão (s/d, p.3):

“As terras dos africanos foram confiscadas sob o pretexto de um eminente direito adquirido pela
conquista, e entre os vários Poderes estas, injustamente conseguidas, terras foram concedidas e
subarrendadas às plantações onde os trabalhadores nativos sofreram todas as espécies de
desumanidades”.

A maioria dos países africanos e com destaque para os da África Austral, antes das suas
independências do domínio colonial e pós-independência, o sistema de posse da terra continua
dual, isto é, sistema legal e consuetudinário ou costumeiro (Vicente, 2014, p.1).
De acordo com Mwesigye e Tomaya (2016) apud (Uate, 2017, p.14-15), os conflitos de
terra estão a aumentar em muitos países da África Subsaariana, pelo facto da terra constituir um
recurso fundamental dado que, a maior parte da população é empregada na agricultura e
largamente depende da terra para a sua sobrevivência. Alguns factores tais como: a pressão
populacional, comercialização da terra e a urbanização, têm contribuído para o aumento do
número de conflitos de terra.
Grande parte da população da África Subsaariana, está totalmente dependente da terra,
que constitui a base da sua existência. Alguns autores como Berry (1989) apud Uate (2017,
p.10), reconhecem que a posse de terra não é um sério constrangimento da produção agrícola e
nem o causador da crise alimentar que afecta esta parte do continente, porque estes autores, a
terra existe em abundância em África, faltando somente à aplicação de tecnologia apropriada
para a sua utilização eficiente, existem outros que defendem que o problema reside nos factores
que influenciam a crise alimentar das populações e o seu bem-estar social (Vicente, 2014, p.3).
Birgergard (1993) e Hesseling (1995) apud Uate (2017, p.10) argumentam que para se
por sua vez, argumentam que para promover um desenvolvimento sustentável nestas sociedades
predominantemente agrícolas, será preciso encontrar a cada realidade uma forma adequada de
segurar a terra, eliminando as desigualdades, a estagnação social e a diferença de oportunidades
13

de acesso, uso e controlo da terra e dos seus recursos. Desta forma, alocar a terra aos camponeses
seria o inicio ao combate pelas desigualdades (Vicente, 2014, p.3).
O problema de uso, aproveitamento da terra e de gestão de recursos tem sido a causa de
grandes conflitos entre o Estado, entidades privadas e a população. Em Moçambique, o sistema
de posse de terra esteve dividido em dois, nomeadamente: legal e costumeiro. Significa que
durante o período colonial os direitos das populações eram legalmente reconhecidos pelo
governo colonial português, mas de uma forma mais ou menos controlada, reflectindo os
interesses prevalecentes da época. Após a independência, as normas e práticas consuetudinárias
continuaram a ser reconhecidos pela Lei (capítulo I), prevalecendo assim, o sistema dual de
acesso de terra (Vicente, 2014, p.4).
No distrito de Marracuene, os conflitos de terra são uma realidade, constituem um
fenómeno social que ocorre sempre, acima de tudo, constituem um problema social. Nos órgãos
de informação, são reportados problemas de conflitos de terra que têm vindo aumentar devido ao
aumento de número de pessoas que procuram a terra no distrito (Uate, 2017, p.21).
As obras de construção da estrada circular de Maputo, a ponte sobre o Rio Incomati
vulgarmente conhecida por ponte de Macaneta que dá acesso à famosa zona de praias de águas
limpas de Macaneta, o estabelecimento da empresa 2M, incrementaram os interesses pela terra
nos bairros do distrito de Marracuene, com a finalidade de habitação e investimentos em
diversas, comércio, agricultura, turismo e outras (Uate, 2017, p.21).
Esses interesses na maior parte das vezes, desaguam em problemas de conflitos de terra.
Assim, o Governo do Distrito de Marracuene (GDM) ciente do problema, criou uma comissão de
resolução de conflitos de terra no distrito, que funciona na vila ao lado dos Serviços Distritais de
Planeamento e Infra-estruturas (SDPI). A comissão, normalmente resolve problemas de conflitos
de terra entre camponeses e empresas privadas, mas também resolve conflitos que não são
conseguidos a nível dos bairros (Uate, 2017, p.22).
A terra é o recurso básico de qualquer país e em particular na África Subsaariana. É um
elemento fundamental para a estabilidade social e para a soberania do país. Como explica
Negrão (s/d, p.3), a terra é um bem da família, da linhagem e da comunidade, cuja habilidade
para suster as intervenções exógenas reside a sustentabilidade do seu uso na luta contra a pobreza
e pelo aumento da riqueza. Como meio universal de criação de riqueza e do bem-estar social, o
uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano” (Lei n.º 19/97 de 1 de
14

Outubro: Aprova a Lei de Terras, BR, serie I, n.º 40, de 7 de Outubro de 1997). Antes da
independência a população também se encontrava nas zonas rurais, porém, após independência,
as guerras que assolaram o País e a falta de oportunidades e perspectivas de futuro no campo,
provocaram um enorme êxodo das populações para as grandes cidades, em particular para as de
Maputo, Beira e Nampula, facto que, aliado a outros factores, originou um aumento na procura
de madeiras (para venda de lenha e produção de carvão vegetal), contribuindo para a rápida
devastação das florestas nativas existentes nas áreas circundantes das cidades (Serra e Cunha,
2008, p.363).
O Programa Nacional de Gestão Ambiental de 1996, entretanto, referiu que à volta das
cidades verificou-se já um acentuado desflorestamento. As causas principais consistiam na
abertura das machambas, recolha de lenha, limpeza de terrenos para construção e outras
actividades económicas. As iniciativas tomadas pelo Governo para travar o problema do
deflorestamento nas cidades de Maputo, Beira, e Nampula, foram através dos projectos de
reflorestamento FO-2, FO-4 e FO-5 (Micoa, 1996 apud Serra e Cunha, 2008, p.363).

0.1.2. Situação problemática


Foram implementados os projectos FO-2 em Marracuene (Maputo), FO-4 em Dondo
(Sofala) e FO-5 na cidade de Nampula. Com a introdução das reformas de reajustamento
económico em 1987, as transformações políticas em vigor, o término do programa Mozambique
Nordic Agricultural Program (MONAP), e a exiguidade de recursos humanos e financeiros, em
1990 iniciou-se o processo de reestruturação dos projectos de reflorestamento, tendo alguns sido
privatizados os Projecto FO-2 e IFLOMA e outros transferidos para a gestão provincial através
das Direcções Provinciais de Agricultura (MINAG, 2009 apud OMR, 2016, p.1).
Neste contexto, em 2000, a empresa Milhulamete, Lda., obteve um DUAT para uma área
correspondente a 775,5 hectares onde, anteriormente, se desenvolveu o projecto FO-2 no distrito
de Marracuene. Actualmente, do total da área incluída neste DUAT, cerca de 202 hectares foram
reocupados pelos nativos e seus descendentes que haviam sido reassentados para dar lugar ao
projecto FO-2. Com o estabelecimento da empresa Milhulamete no lugar do FO-2, os nativos
reassentados em Agostinho e Mahlazine regressaram reclamando dos seus direitos, desde já,
houve uma série de tentativas de ocuparem a propriedade milhulamete. Desta forma, este litígio
envolvendo a empresa Milhulamete e nativos no Cumbeza, posto Administrativo Michafutene
constitui um exemplo não isolado do que acontece um pouco por todo o país, chamando à
15

necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre a questão da titularidade dos DUATs
(OMR, 2016, p.1).

0.1.3. Pergunta de Partida


Que mecanismos as autoridades (Comunitárias, Serviço Distrital de Planeamento e Infra-
estruturas) implementam para mitigar os conflitos de terra entre a empresa milhulamete e nativos
do bairro Cumbeza?

0.2. Hipótese
As autoridades (Comunitárias, Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estruturas)
intervêm como terceiro elemento, imparcial, negociador e mediador, usando a técnica “ganha-
perde”, buscando contudo, a conciliação entre as partes, recorrendo a Constituição da República,
à Lei de terras e os demais instrumentos legais sobre a terra e às testemunhas.

0.3. Objectivos

0.3.1. Objectivo Geral


 Analisar os mecanismos que as autoridades comunitárias, administrativas (Serviço
Distrital de Planeamento e Infra-estruturas) e judiciais (Tribunal Judicial)
implementam para mitigar os conflitos de terra entre o capital e as populações

0.3.2. Objectivos específicos


 Descrever os procedimentos de acesso, posse e gestão de terra;
 Analisar os tipos e causas dos conflitos de terra;
 Explicar os mecanismos de mitigação dos conflitos de terras.

0.4. Metodologia

0.4.1. Métodos
Esta pesquisa descritiva e analítica. Tem como método de abordagem, o método
hipotético dedutivo. O uso do método hipotético-dedutivo tem início com um problema ou
uma lacuna no conhecimento científico, passando pela formulação de hipótese e por um
processo de inferência dedutiva, o qual testa a predição da ocorrência de fenómeno
abrangidos pela referida hipótese (Lundin, 2016, p.133). Neste caso, esta pesquisa iniciou
com a identificação do problema: que mecanismos as autoridades usam para mitigar os
16

conflitos de terra entre empresa milhulamete e nativos do bairro Cumbeza. A fim de


solucionar este problema, fez-se um estudo preparatório, consistindo na formulação de
hipótese e na análise de diversos instrumentos de carácter científico e das observações feitas
no campo.
Como método de procedimento, usou-se o método histórico. Este método consiste
em pesquisar acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar a sua
influência no mundo social do presente. A premissa básica deste método é que as instituições
alcançaram sua forma actual através de alterações de suas partes componentes, o que teve
lugar ao longo do tempo; e que foram influenciadas pelo contexto sócio cultural, económico,
político, etc., particular de cada época. Desta forma, para melhor compreensão do seu papel
na actualidade, deve-se remontar os períodos de sua formação no passado e dos processos
que conduziram às suas modificações até ao presente (Lundin, 2016, p.139). Esta pesquisa
apresenta a sua abordagem de forma evolutiva, partindo das experiências do passado sobre
posse de terra até ao presente.

0.4.2. Técnicas de recolha de dados


Para a concretização do método, recorreu-se às seguintes técnicas:
Pesquisa bibliográfica consistiu na análise descritiva e exploratória de livros, artigos
físicos e electrónicos. Primeiro para a elaboração do projecto de pesquisa e depois para
desenvolver os três capítulos que compõem o trabalho;
A pesquisa documental, consistiu na consulta Constituição da República de 2004; Lei nº
19/97 de 1 de Outubro: aprova a Lei de Terras (BR, I Série, n.º 40, de 7 de Outubro de 1997); a
Política Nacional de Terra, e Lei n.º 24/2007 de 20 de Agosto: Aprova a lei de Organização
Judiciária;
Trabalho no campo, foi conduzido por meio do contacto directo com o objecto de estudo
através de entrevistas semi-estruturadas. As entrevistas decorreram por meio de uma lista de
perguntas prévias, porém, a sua exploração adequou-se à dinâmica da conversa. Foram aplicados
inquéritos e fez-se a observação directa. A população alvo dessa pesquisa é a do bairro Cumbeza,
distrito de Marracuene. Para a amostragem, recorreu-se a teoria probabilista e a não-probabilista.
A teoria probabilista consiste na recolha dados qualitativos e a teoria não-probabilista consiste na
recolha de percepções e opiniões de pessoas representativas de grupos sociais consideradas
chaves para analisar o assunto em questão (Lundin, 2016, p.40). Neste caso, serve de amostra
17

populacional, 8 participantes nomeadamente: chefe da Repartição da Repatriação de Obras


Públicas Infra-estrutura e Equipamento em representação do Serviço Distrital de Planeamento e
Infra-estruturas, um Juiz, vice-secretário do bairro Cumbeza e mais cinco moradores do bairro
Cumbeza. A amostra populacional entrevistada e inquerida é maior de idade e reside a mais de
10 anos no bairro, tendo assim, uma experiência sólida sobre as formas de acesso de terras no
distrito e dos conflitos de terra entre a empresa Milhulamete e a população nativa.
Constrangimentos: dificuldades para fotografar o local onde os (nativos) construíram suas
“casas”, visto que, segundo os moradores circunvizinhos, os líderes eram perigosos com essas
barreiras, de forma mais subtil e cuidadosa, foi possível fazer algumas fotografias com ajuda de
um dos vizinhos dos nativos, que lá estava presente.

0.5. Justificativa

0.5.1. Justificativa Subjectiva


A motivação pessoal para analisar o tema em estudo, está no facto de ser residente no
distrito de Marracuene e por assistir de perto litígios de compra e venda de terras. Ademais,
nos últimos anos, o distrito tem sido alvo de conflitos de terra, entre membros da mesma
comunidade, família, governo e a população e empresários e nativos (empresas e nativos),
para habitação e investimento, relacionados ao desenvolvimento do distrito de Marracuene
com construção da ponte que liga Macaneta e a Vila de Marracuene e o estabelecimento da
empresa da 2M.

0.5.2. Justificativa Objectiva


Quanto à perspectiva objectiva, os conflitos de terra são uma temática de interesse
académico na actualidade, como se referiu mundial, continental e nacionalmente.
Esta pesquisa enquadra-se em uma das linhas de pesquisa do HIPOGEP, que é Gestão
Pública em Moçambique e na África Austral, tendo como aspecto os conflitos de gestão de
recursos naturais (terra, água, etc.)., Desta forma, vai analisar estratégias, mecanismos e
políticas públicas aplicadas pelos gestores territoriais, de modo a garantir e manter uma boa
gestão do espaço público e seus intervenientes.
No âmbito social e económico, as invasões de propriedade, os conflitos de terra,
criam anarquia, desequilíbrio na ordem social, enfraquecendo as relações sociais.
18

É de relevante pertinência a compreensão dos fundamentos teóricos que sustentam as


opções sobre a economia da terra, uma vez que cerca de 75% da população em Moçambique
vive da proposição e recursos que obtêm a partir da terra, como a água, alimentos, plantas
medicinais, material de construção e combustível lenhoso (Manhicane, 2014, p.2).

0.6. Justificação das Balizas cronológicas


Entre os anos 2014-2019 os conflitos se atiçaram. Em 2014, os nativos iniciaram a
construção das suas residências e demais obras na parcela de terra na propriedade da empresa
Milhulamete, facto testemunhado pelos Membros da Estrutura Local do bairro Cumbeza e dos
Bairros circunvizinhos (Agostinho neto, Ricatla, Mateque e Guava). Ademais, a 26 de Novembro
de 2014, a Administradora do Distrito de Marracuene, na época - Maria Vicente, informou à
Empresa Milhulamete, do início de obras de construção na referida parcela por cidadãos que
reclamavam o DUAT sobre a parcela em questão, intitulando-se nativos da mesma. Contudo, a
empresa Milhulamete só veio interpor a providência cautelar de embargo de obra nova em 19 de
Julho de 2016, volvidos cerca de um ano e sete meses (OMR, 2016, p.4). Em 2019, houve uma
tentativa de invasão sem sucesso dessa propriedade, pois, o SDPI prontamente interveio com
providencia acautelar de embargo das obras.

0.7. Referencial teórico


São vários os estudos sobre conflitos de terras, ora analisando as causas dos conflitos de
terras, outros o impacto e tipos de conflitos. Este estudo aborda do conflito de terra envolvendo o
capital e comunidade. Estudo similar foi desenvolvido por Uate (2017), no seu estudo dos
mecanismos e papel das autoridades comunitárias na resolução dos conflitos de terra, entre os
membros da comunidade (conflitos intra-comunitários). Outro estudo é de Mandamule (2016) na
sua análise dos tipos conflitos intra-familiar, intracomunitária, intracomunitário e as invasões de
comunidades à propriedade alheia.

0.8. Relevância
Com esta monografia espera-se contribuir no debate académico na de reflexão sobre
conflitos de gestão de recursos naturais (terra). Os mecanismos de mitigação implementados
pelas autoridades face aos conflitos de terra entre empresa e comunidade podem servir de
estratégias de mitigação de conflitos entre empresas e comunidade, numa dimensão maior e em
19

diferentes cantos do país. Os conflitos de terra constituem um fenómeno corrente na sociedade


moçambicana, desta forma, este estudo dos conflitos de terras entre empresa milhulamete, Lda. e
a comunidade não pretende ser completo, mas uma singela contribuição neste debate.

0.9. Enquadramento da pesquisa

0.9.1. Enquadramento Geográfico


Marracuene é um distrito situado na parte meridional de Moçambique, a 30 km da cidade
de Maputo. Seus limites são: a norte, o distrito de Manhiça; a Sul, a cidade de Maputo; a Este o
Oceano Índico e a Oeste o distrito da Moamba e a cidade da Matola. O distrito está dividido em
dois postos administrativos: o posto administrativo de Marracuene-sede, que engloba a
localidade, as localidades de Michafutene e Nhongonhane; e o posto administrativo de Machubo,
com as localidades de Thaula e Macandza. Localiza-se entre a latitude de 25 o 41’ 20’’ Sul e
Longitude de 32o 40’ 30’’ (INE, 2013, p.9).
Mapa 1: Localização Geográfica do distrito de Marracuene

Fonte: INE (2013, p.9).


20

O Bairro de Cumbeza localiza-se no Distrito de Marracuene na Província de Maputo e é


limitado à Nordeste pelo bairro Agostinho Neto, a Este pelo bairro Guava e a sul pelo Município
de Maputo (Bairros Magoanine e Zimpeto) e a Oeste pelo bairro Intaka. O Bairro situa-se entre
os paralelos 25˚ 46’ 58 e 45˚ 49’ 59’’ de Latitude sul e meridianos 32˚ 34’ 00’’ e 32˚ 37’ 00’’ de
Longitude Este e leva20’22’ 64’’hactares (INE, 2013, p.17).
Mapa 2: localização geográfica do bairro Cumbeza

Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2021) com recurso à CENACARTA


21

Figura 1: Secretariado do bairro Cumbeza

Fonte: fotografia captada pelo autor (2021).

0.9.2. Enquadramento Teórico


0.9.2.1. Teorias sociológicas do conflito
Na sociologia do conflito, as teorias sobre o conflito dividem-se entre as que consideram
o conflito como: i) anormalidade social ou patologia dentro de uma visão determinista
estrutural, e ii) um fenómeno sociativo dentro de uma perspectiva interacionista. A visão
determinista tende a olhar o conflito como um aspecto negativo e a interacionista como aspecto
positivo (Uate, 2017, p.15).

Visão determinista estrutural do conflito


Segundo Birnbaum (1995) apud Passos (2010, p.5), Durkheim, Marx e Comte, a
existência do conflito tem base em certo determinismo estrutural.

“A estruturação conflituosa da sociedade humana resultara das alterações nas relações económicas
que originaram a propriedade privada e as classes antagónicas nos estertores das comunidades
primitivas; e que o próprio desenvolvimento contraditório entre as relações de produção e as
22

forças produtivas, na sociedade moderna levaria inelutavelmente à instauração do comunismo”


(Marx apud Silva, 2011, p.5).

Segundo Uate (2017, p.15) e Birnbaum (1995) apud Cibele et al., (2019, p.4), a
perspectiva marxista do conflito, está mais próxima do “patológico” que do “normal”. Na
formulação teórica de Marx, o comunismo é a solução dos antagonismos e desta forma o conflito
é para ele uma anormalidade histórica ocasionada pela propriedade privada e as classes
antagónicas, caracterizando uma fase intermediária da história humana a ser superada pelo
comunismo. Desta forma Durkheim apud Silva (2001, p.6), afirma que:

“…a coesão é a base social. O conflito surge como uma anormalidade no momento em que se
rompe essa coesão baseada na solidariedade mecânica das sociedades simples ou primitivas, em
direcção à divisão do trabalho”.

“Tais mecanismos são desenvolvidos no decurso da estabilização da sociedade, e são cruciais para
o desenvolvimento harmónico das funções sociais. Na ausência de regras, ou seja, na anomia, a
solidariedade se desfaz e a sociedade se desmantela” (Cibele et al., 2019, p.5).

Em linhas gerais, a divisão do trabalho é propulsora de conflitos com potencial destrutivo


para a estrutura social, cujo antídoto é a regulamentação (Silva, 2001, p.7). Preocupado com as
transformações sociais e conscientes do estado da sociedade na qual viviam e inquietos com a
ameaça à coesão social produzida pelas desigualdades promovidas pela industrialização e com os
seus efeitos futuros, Auguste Comte apud Passos (2010, p.3), entende que de forma análoga ao
que ocorre com o mundo físico, a sociologia deveria ser vista sob a óptica do positivismo, uma
vez que, em sua crença, a sociedade se submete a leis invariáveis. Explica ainda Passos (2010,
p.3):
“Comte pensa em uma sociedade autoritária, organizada com uma estrutura de castas, o que
evitaria o temível conflito. Neste caso, o progresso é factor favorável à formação de uma
comunidade pacificada, cuja ordem não presume a existência da coação externa de Spencer, que
por sua vez, em relação ao conflito, apenas o reconheceu no militarismo (conflito bélico) e o
descartou por relegá-lo ao passado, acreditando no bem-estar decorrente do desenvolvimento
industrial”

A perspectiva determinista estrutural olha a sociedade ideal àquela representada pelo


conceito de harmonia, pelo qual todos os elementos se associam em perfeita conjunção. Já a
presença de conflito confere natureza antagónica à sociedade, dissociativa e desestruturante
(Cilebe et al., 2019., p.3).
23

0.9.2.1.1. Visão interacionista do conflito


Segundo Passos (2010, p.5), para Max Weber, Georg Simmel, e Ralf Dahrendorf, a
existência do conflito tem como base interacionismo social, onde o conflito é uma contingência
básica da vida social. Todas as sociedades, em suas estruturas, e cada relação social, em suas
interacções, apresentam conflitos potenciais na medida em que envolvem pessoas cujos
interesses, manifestos ou latentes podem divergir. De fato, o mundo social é pleno de tensões e
contradições, exteriorizadas em diversas formas de conflitos. Esse palco é espaço em que actuam
múltiplos atores: heterogéneos, plurais, diferentes e divergentes (Berman, 1986 apud Cilebe et
al., 2019, p.4).
Max Weber observa as acções, relações e interacções dos agentes sociais carregadas de
intenções, munidas de maior ou menor grau de racionalidade. Nesse marco, o conflito ocorre
quando as acções que se orientam pelo propósito de impor a própria vontade contra a resistência
do ou dos parceiros caracterizam relações sociais de luta (Weber, 1999 apud Cibele et al, 2019,
p.6).
“Não se trata de um estágio anómalo ou de um período negativo da história, mas de uma acção
quotidiana, verificável em toda a história da humanidade. Essa acção é resultado da concorrência
por recursos escassos variados (materiais e simbólicos), que podem levar a diferentes formas de
interacção, inclusive à violência, à obediência, à dominação ou à resistência. Ou seja, trata o
conflito como uma dimensão normal da vida social” (Cibele et al., 2019, p.6).

“ [...] a luta é uma relação social na medida em que a actividade é orientada pela intenção de fazer
triunfar sua própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros. Esta luta pelo poder implica
uma concorrência quando é conduzida no sentido de uma procura formalmente pacífica de um
poder próprio para dispor de oportunidades que outros também solicitam” (Weber apud
Passos, 2010, p.5).

Segundo Simmel (1983) apud Uate (2017, p. 16) toda interacção entre homens é um
fenómeno social e o conflito é uma das mais vividas interacções, e além disso não pode ser
exercida por um indivíduo apenas, deve certamente ser considerada como uma sociação e as suas
causas são: ódio, inveja, necessidade e desejo. O conflito está destinado a resolver dualismos
divergentes e é uma forma de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação
de uma das partes conflituantes. Ele vê o conflito não apenas a unidade entre os adversários, mas
o mérito de introduzir no jogo o papel do terceiro que em geral é um mediador (Uate, 2017,
p.17).
24

Em outro trabalho “conflito como uma sociação”, Simmel situa os conflitos enquanto
factores de progresso e desenvolvimento, na medida em que obrigam a sociedade à superação de
situações de contingência, produzindo realizações consideráveis, não verificáveis em
circunstâncias de aparente harmonia colectiva. Nesse prisma, o autor afirma:

“Assim como o universo precisa de amor e ódio, isto é, de forças atractivas e repulsivas a fim de
dispor de qualquer forma, do mesmo modo a sociedade também, para atingir uma forma
determinada, precisa de alguma razão quantitativa de harmonia e desarmonia, de associação e de
concorrência, de tendências favoráveis e desfavoráveis. Mas estas discórdias não são meros
instrumentos sociológicos passivos, ou instâncias negativas. Definitivamente, a sociedade não
resulta apenas de forças sociais que lhe são positivas e apenas na medida em que factores
negativos não as impeçam. Esta concepção comum é bastante superficial: a sociedade, tal como a
conhecemos, é o resultado de ambas as categorias de interacção, que assim se manifestam como
inteiramente positivas” (Simmel, 2011, p.570-571).

Simmel retoma o conceito tradicional de Weber sobre o conflito, para elaborar uma
tipologia de resolução dos conflitos, em que afirma: sempre que uma crise eclode em uma
empresa, um terceiro “mediador” pode ser instado para auxiliar a resolvê-la. Com esse auxílio
às partes envolvidas na situação conflituosa pode-se chegar a um acordo ou um compromisso
que preserve os interesses de cada um (Passos, 2010, p.6).
Segundo Binrbaum (2005) apud Passos (2010, p.8), Dahrendorf propõe uma perspectiva
de mitigação dos conflitos depois de constatar, que há emergência de instituições de regulação
dos conflitos, em que os parceiros se acertam cada vez mais sobre as regras do jogo e aceitam
recorrer às mediações, arbitragens ou ainda a múltiplas formas de conciliação, que limitam sua
expressão concreta para o acentuado declínio da intensidade dos conflitos. Para sustentar,
Dahrendorf (1981) apud Uate (2017, p. 18) explica que:

“a mediação é a forma mais suave da instância e ocorre quando há acordo das partes litigantes
em escutar em cada caso concreto, a opinião de um terceiro e estudar suas propostas de solução .
Na arbitragem, a intervenção de um terceiro deve ser cumprida a sua decisão, é obrigatória a
aceitação da sua decisão pelas partes litigantes. Isto quer dizer que a decisão do terceiro deve ser
cumprida independentemente da vontade das partes litigantes”.

Desenvolvidas as teorias de conflitos em duas perspectivas: i)visão determinista


estrutural do conflito, que considera o conflito um fenómeno anormal e patológico, isto é, desvio
a ordem social e ii) visão interacionista do conflito considera o conflito resultado da diferença
endógena do homem. Por um lado, a visão determinista olha o conflito como um aspecto
25

negativo, isto é, como um fenómeno que cria anarquia na ordem social, porém, esta visão tem a
fraqueza de não reconhecer o conflito como um fenómeno que resulta da interacção humana.
Por outro lado, a perspectiva interacionista, olha o conflito como resultante da interacção
humana e das diferenças que existem entre eles, entretanto, tem a fraqueza de olhar o conflito
como um fenómeno positivo, como se fosse impulsionadora do desenvolvimento. Neste caso, a
minha abordagem é determinista estrutural-interacionista, que consiste na mistura das duas
perspectivas teóricas. Esta é a linha orientadora desta monografia, desenvolvendo o conflito
como um fenómeno negativo resultante da interacção humana, que constitui na diferenciação de
realidades económicas, culturais, étnicas, religiosas que começam ao conviver nos mesmos
espaços. Neste caso, temos como partes deste conflito, a empresa Milhulamete, Lda e a
comunidade, que são grupos completamente heterogéneos com valores e princípios diferentes.
Desta forma, Geoge Simmel e Ralp Dahrendorf invocam o envolvimento do terceiro elemento
“mediador - neutro” (AC’s, SDPI e o Tribunal Judicial) para auxiliar na mitigação deste conflito.
O trabalho do mediador é lembrar às partes sobre as leis pertinentes, ajudar as partes a se
comunicarem, encontrar num acordo e identificar soluções desejadas. O objectivo do mediador é
de ajudar ambas as partes a chegar a uma resolução ou acordo que beneficie ambos os lados, e
não apenas um.

0.9.2.2. Modelos teóricos de negociação


A negociação é uma sequência de acções onde duas, ou mais, partes apresentam
exigências, argumentos e propostas recíprocas com o objectivo de alcançarem um acordo (Iklé,
1964; Odell, 2000 apud Mendes, 2020, p.3). Mendes (2020, p.12), considera dois modelos
teóricos de negociação, nomeadamente: i) a negociação distributiva ganha-perde/soma nula/
transaccional e ii) a negociação integrativa/ win-win/relacional.

0.9.2.2.1. A negociação distributiva


Este modelo de negociação é também chamado de “ganha-perde”, soma nula ou
transaccional Estas conceptualizações dizem respeito às negociações caracterizadas pela
consciência de que a questão a negociar envolve um “bolo fixo” a distribuir de forma
competitiva, em que uma parte ganha, a outra perde. Logo, a negociação de tipo distributiva
envolve uma competição entre as partes relativamente a quem fica com a parte maior, e ganha,
26

face a quem fica a perder e com a parte menor do “bolo” (Raiffa et al., 2002 apud Mendes, 2020,
p.12).
Como o estudo de Walton e McKersie (1965) apud Mendes (2020, p.12) demonstra em
situações negociais puramente distributivas, os interesses das partes correlacionam-se
negativamente. Isto é, o aumento de utilidade e benefícios dos resultados de uma das partes está
ligado à diminuição da utilidade e de benefícios do resultado da outra parte. Aqui, as partes
jogam um jogo competitivo de percepções individuais sobre os outputs ideais a atingir e os
resultados mínimos aceitáveis face à divisão do “bolo”.

0.9.2.2.2. A negociação integrativa


É habitualmente descrito como negociação cooperativa, integrativa, “ganha-ganha”,
positive - sum game ou relacional. Como referido, diferentes terminologias podem ser usadas,
mas existe uma ideia básica que percorre a negociação de tipo integrativa: as partes têm a
percepção que o assunto a negociar não é de soma fixa e que ambas partes podem ganhar se
conseguirem negociar conjuntamente uma solução que acomode positivamente os interesses das
partes e as opções disponíveis. Neste quadro, a negociação de dominante cooperativa não se
baseia na competição, mas antes no desenvolvimento de uma relação colaborativa entre as partes
e na integração de esforços conjuntos relativamente à gestão cooperativa dos recursos e
interesses presentes, com o objectivo final de ambas as partes saírem a ganhar (Raiffa et al.,
2002 apud Mendes, 2020, p.12). Num outro desenvolvimento, Mendes (2020, p.14) explica que:

“A negociação do tipo integrativa caracteriza-se por ambas as partes assumirem que existe um
problema comum, no qual as partes se concentram colaborativamente para tentar encontrar uma
solução conjunta. Na negociação integrativa, existem importantes elementos cooperativos na
relação negocial uma vez que se assume que ambas as partes podem ganhar se conseguirem
alcançar uma boa decisão conjunta sobre o problema”.

A negociação integrativa requer um comportamento exploratório das possibilidades de


resolução de problemas e faz apelo à criatividade e inovação de soluções por parte dos
negociadores (Berman, 1982 apud Mendes, 2020, p.14). Deste modo, Raiffa et al., (2002) apud
Mendes (2020, p.14) sublinham sinteticamente três aspectos essenciais a desenvolver pelas
partes para se conseguir alcançar acordos integrativos, nomeadamente:
 A incorporação de elementos novos ao conflito (recursos económicos, sociais, temporais
e normativos);
27

 A redução de custos e aumento dos benefícios mútuos;


 O desenvolvimento de outras alternativas que, mesmo, não coincidindo com os interesses
iniciais satisfaçam as necessidades subjacentes a ambas as partes.

Idealmente, a negociação integrativa traduz o princípio basilar da negociação: a busca de


uma solução partilhada em que todas as partes ganham mais benefícios com o acordo do que se
estivessem fora do acordo. É precisamente devido à constatação de que o acordo permite ganhos,
win-win que as partes desenvolvem negociações. Contudo, importa referir, que embora nos
acordos integrativos os ganhos conjuntos sejam, em regra, sempre superiores a qualquer acordo
distributivo, isto não significa que ambas partes envolvidas beneficiem exactamente o mesmo
(Mendes, 2020, p.14).
O modelo teórico de negociação distributiva associada à perspectiva determinista
estrutural-interacionista é a linha orientadora desta monografia para a mitigação dos conflitos de
terra entre o capital e a comunidade, em que estas partes envolvidas competem preservando os
interesses individuais.

0.10. Discussão dos conceitos Básicos


Comunidade Local é agrupamento de famílias e indivíduos vivendo numa circunscrição
territorial de nível de localidade ou inferior, que visa a salvaguarda de interesses comuns através
da protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou em pousio, florestas,
sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de expansão (n.º 1 do artigo 1, da
Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: aprova a Lei de Terras publicada no BR, I Série, n o. 40, de 7 de
Outubro de 1997). No caso Milhulamete, os invasores não constituem membros activos da
população de Cumbeza, e os seus interesses é de destruir as espécies florestais que se encontram
no terreno pertencente à empresa Milhulamete.
Propriedade da terra é o direito exclusivo do Estado, consagrado na Constituição da
República de Moçambique de 2004 no artigo 109, n.º 1 e 2, integrando para além de todos os
direitos do proprietário, a faculdade de determinar as condições do uso e aproveitamento por
pessoas singulares ou colectivas (artigo 1, n.º 15 da Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: Aprova a Lei
de Terras. BR, I Série, n.º 40, de 7 de Outubro de 1997). Apesar da terra ser propriedade do
Estado, localmente alguns titulares se declaram proprietários da terra, podendo assim, ingressar
no mercado informal da terra.
28

Direito de Uso Aproveitamento da Terra (DUAT), é o direito que as pessoas singulares


ou colectivas e as comunidades locais adquirem sobre a terra, com as exigências e limitações da
Lei de Terras (artigo 1, n.º 2 da Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: Aprova a Lei de Terras. BR: I
Série, n.º 40, de 7 de Outubro de 1997). A maior parte da população do bairro Cumbeza não
possui DUAT, mas tem o direito de uso e aproveitamento da terra através de normas e práticas
consuetudinárias.
Titular é pessoa singular ou colectiva que solicita, por escrito, autorização para o uso e
aproveitamento da terra, ao abrigo duma autorização ou através de ocupação (artigo 1, n.º 17 da
Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: Aprova a Lei de Terras. BR: I Série, n.º 40, de 7 de Outubro de
1997). Neste estudo, o titular da propriedade é a empresa Milhulamete por este possuir DUAT.
Milhulamete é o único com direito de uso e aproveitamento desta propriedade, fazendo assim
dos “nativos” usurpadores da propriedade alheia.
Título é documento emitido pelos Serviços Públicos de Cadastro, gerais ou urbanos,
comprovativo do direito de uso e aproveitamento da terra (artigo 1, n.º18 da Lei nº 19/97 de 1 de
Outubro: Aprova a Lei de Terras. BR: I Série, n.º 40, de 7 de Outubro de 1997). O DUAT é o
título que legitima o direito de direito do uso da terra. Neste caso, a empresa possui o título de
propriedade, tornando-se assim o único com direito de uso da terra. Não obstante a isso, possui
também o direito de uso e aproveitamento de terra por meio de normas e práticas
consuetudinárias.
Acesso a Terra refere-se a possibilidade de utiliza-la como um recurso, aberta ou
restritamente. Quando o acesso é aberto o seu uso e controlo é feito sem quaisquer limitações
e/ou restrições. No acesso restrito, o seu uso e controlo é pertença única e exclusivamente a uma
pessoa singular, associação, corporação ou comunidade (Negrão, 1996 apud Magalhães, 2014, p.
31). Localmente, o acesso a terra ocorre de duas formas nomeadamente: via formal, por meio de
um pedido ao SDPI e via informal, por meio de normas consuetudinárias e por meio de compra e
venda de terra, apesar de lei preconizar que a terra é propriedade do Estado, não pode ser
vendida, hipotecada ou alienada.
Posse de Terra significa os termos e condições sobre os quais se ocupa a terra, os direitos
e obrigações do seu detentor (Negrão, 1996 apud Magalhães, 2014, p. 30).
A segurança de posse de terras é uma forma da sociedade reconhecer os direitos de uso
da terra do utilizador, existindo ainda mecanismos legais e outros institucionais para defender a
29

sua reivindicação sem correr a custos indirectos. A existência ou a combinação destes


mecanismos pode levar a diferentes tipos de “segurança” que podem ter impactos diferentes na
produção agrícola da população rural (Norton, 2004 apud Manhicane, 2014, p. 23).
Conflitos de terra referem-se a uma manifestação da contraposição de interesses, opondo
duas ou mais pessoas que alegam ser possuidoras do direito sobre a terra ou de ser titulares do
DUAT, cuja solução de tal conflito carece de intervenção de uma autoridade com poderes para
tal. Por isso, o conflito há-de ser entendido como uma situação de tensão e disputa claramente
manifestadas pelas partes que reivindicam um direito sobre a terra (Alfredo, 2009 apud
Zandamela, 2015, p. 35). O capital e a comunidade são as partes conflituantes.
Resolução de conflitos, significa fazer intervenções necessárias com vista a alcançar
acordos entre as partes em conflito, particularmente por aqueles que têm o poder e os recursos
para exercer pressão sobre as partes em conflito a fim de induzi-los à solução (Andrade, 2014
apud Uate, 2017, p.20). A resolução dos conflitos de terra é entendida como a interferência das
autoridades comunitárias, o SDPI e o Tribunal Judicial como terceiro elemento, imparcial,
recorrendo neste caso ao modelo de negociação “ganha-perde”, visto que as partes lutam por
interesses diferentes.

0.11. Revisão bibliográfica


O presente “relatório de estado de arte" preconiza o critério de apresentação piramidal,
em que consiste na apresentação dos conteúdos da visão mundial para particular. Desenvolve-se
primeiro obras de posse de terra e dos pressupostos agudizadores dos conflitos de terra a nível
mundial. De seguida apresenta os tipos de conflitos de terra em Moçambique e suas causas e em
particular Marracuene.
Ludermir e Alvarado (2017) na sua obra intitulada “Conflitos por terra urbanos na
América Latina e Caribe” explicam as causas e impactos decorrentes dos diferentes tipos de
conflitos fundiários encontrados na região, destacando experiências e boas práticas para enfrentar
o problema, tais como ferramentas de mapeamento participativo, políticas de terra inovadoras,
assim como articulação e incidência institucional, capacitação de actores sociais e outras
iniciativas inovadoras. Exploram também passos para prevenção e mediação de conflitos e para
acção e incidência por mudanças em políticas, práticas e sistemas para uma governação
responsável da terra urbana.
30

Negrão (s/d) no seu artigo “A indispensável terra africana para o aumento da riqueza
dos pobres”explica que a pobreza não só os níveis de rendimento por dia por pessoa, mas
também a pobreza como ausência de poder nas relações intra-familiares, entre estas e os demais
actores e entre a sociedade no seu todo e os recursos naturais de que se dispõe no Continente
Africano. Ademais, a redução da pobreza não deve constituir-se num objectivo em si, mas sim
consequência do aumento sustentável dos rendimentos e na melhoria progressiva das condições
de vida do cidadão, em suma a produção e a distribuição da riqueza. É de revelo importância
analisar em Negrão o uso e aproveitamento da terra para à redução da pobreza em África.
Vicente (2014) na sua obra “Direitos de Propriedade, Terra e Território nos Impérios
Ultramarinos Europeus”, explica que em Moçambique, os conflitos decorrentes da legislação e
das práticas no acesso e no uso da terra pelas comunidades rurais no período colonial e
actualmente, resultam de factores que datam do período dos impérios europeus, à semelhança de
factores também vividos nalguns países da África Austral, com realce para a África do Sul e
Zimbabué.
Eusébio (2019) na sua obra intitulada “os direitos sobre os territórios: ‘comunidades
locais’ e os projectos de desenvolvimento em Moçambique” estabelece um recuo histórico para
compreender os direitos territoriais das comunidades locais vem sendo tratado no ordenamento
jurídico moçambicano desde o tempo colonial e analisa as implicações as mudanças jurídicas
implementadas em diferentes fases do período pós-colonial têm na segurança jurídica do
território das comunidades locais directamente afectadas actualmente pelos projectos
desenvolvimentistas em Moçambique.
Valá (2003) na sua obra intitulada “A problemática da posse de terra na região agrária
de Chokwé (1954-1995) ”argumenta que os conflitos de terra podem ser agudos, generalizados e
notórios se: (i) organismo (ou organismos) que distribui terras não foi legítimo; (ii) forem usados
critérios parciais e discriminatórios, beneficiando ou prejudicando certas categorias de
produtores; (iii) não houver um espaço de contemplar, na distribuição, todos os grupos que
necessitam de terra; e (iv) quantidade da terra for menor que o número de indivíduos que
necessitam de terra, ou ainda se houver na zona muita terra não propícia ao desenvolvimento da
agricultura (qualidade das terras). Esta obra é de interesse neste trabalho na medida em que fala
da posse da terra e dos possíveis pressupostos ou fenómenos causadores dos conflitos de terra,
31

ajudando dessa forma a entender as formas acesso e posse de terra em Marracuene, bairro
Cumbeza.
Manhicane (2007), no seu estudo intitulado “economia da Terra e redução da pobreza”,
procura destacar os principais aspectos que marcam o percurso socioeconómico que teve em
relação ao capital fundiário (Terra). Analisa também as simulações e projecções da interacção
entre cinco macro-variáveis definidas a luz da política de Lei de terras 19/97. Interessa neste
estudo analisar o valor de mercado da para diferentes fins, como habitação, investimentos.
Zandamela (2015), no seu trabalho intitulado “Análise das Causas dos Conflitos de Terra
nas Zonas de Tchumene I e II e a Intervenção do Conselho Municipal da Matola (2010-2014) ”,
analisa as causas que estão por detrás dos conflitos de terra nas zonas de Tchumene I e II e a
eficácia dos mecanismos levados a cabo pelo Conselho Municipal da Matola com vista a resolve-
los. Além da análise das causas e os mecanismos para resolução dos conflitos de terra, interessa
no estudo de Zandamela o processo evolutivo (fases) da posse de terra em Moçambique, que é o
fenómeno desenvolvido no segundo capítulo.
Mandamule (2016) no seu artigo “os conflitos sobre a ocupação da Terra em
Moçambique”, descreve de forma explicita os tipos de conflitos existentes em Moçambique,
onde concluiu que os conflitos extracomunitários são os mais comuns e preocupantes, pois
envolvem, actores com diferentes posições sociais e/ou económicas. Importa neste artigo a
análise dos tipos de conflitos existentes em Moçambique, servindo no concreto na questão das
invasões de propriedade perpetuadas pela comunidade nativa (grupos invisíveis) no bairro
Cumbeza.
Uate (2017) em seu trabalho “Mecanismos e Papel das Autoridades Comunitárias na
Resolução de Conflitos de Terra: Uma análise a partir do Bairro Mali, distrito de Marracuene”,
analisa como autoridades comunitárias contribuem na resolução dos conflitos. Ademais, os
conflitos estão relacionados com as formas de acesso à terra, que são mediados pelo dinheiro e
pelos efeitos da guerra civil. O trabalho de Uate é de estremo relevo para esta pesquisa na
medida que faz uma análise dos mecanismos e o papel das autoridades locais na resolução dos
conflitos de terra, em particular nuns dos bairros do distrito de Marracuene (Mali).
Os autores supracitados, bem como os que não foram citados como Magalhães (2014),
Furniel (2017) por exemplo, empreenderam estudos e análises com diversos objectivos,
analisaram factores determinantes dos conflitos de terras, tipos e suas causas. Nesse processo,
32

analisaram o processo evolutivo do acesso e posse de terra em Moçambique. Ademais, uns citam
autoridades tradicionais, outras autoridades distritais para a resolução dos conflitos de terra.
Porém, não estudaram os mecanismos de mitigação dos conflitos entre empresas e membros das
comunidades, muito menos em Marracuene. É portanto, esta lacuna que o presente trabalho tem
a pretensão de preencher.

0.12. Estrutura do trabalho


Esta monografia apresenta três capítulos nomeadamente: primeiro capítulo, segundo
capítulo e terceiro capítulo.
O primeiro capítulo descreve os procedimentos de acesso, posse e gestão de terra, tendo
em conta a evolução da posse de terra em Moçambique, do período colonial até a implementação
da lei de terra da Lei19/97 de 1 Outubro de 1997.
O segundo capítulo analisa os factores que influenciam a existência dos conflitos de terra
e descreve os tipos de conflitos. Destaca ainda, neste capítulo, factores geográficos, económicos,
políticos, jurídicos e institucionais que determinam a existência de conflitos. Ademais, descreve
os tipos de conflitos de terras.
O terceiro capítulo explica os mecanismos de mitigação dos conflitos de terras. Explica
os mecanismos de arbitragem, conciliação e mitigação dos conflitos de terra implementados
pelas autoridades comunitárias, administrativas e tribunais.
33

CAPÍTULO I: PROCEDIMENTOS DE ACESSO, POSSE E GESTÃO DA TERRA EM


MOÇAMBIQUE (até 2019).
Este capítulo descreve o processo de acesso, posse e gestão de terras em Moçambique,
olhando a sua evolução história do período pré-colonial à actualidade, em que se constata
conflitos de terras entre capital e comunidade.

1.1. Posse de terra no período pré-colonial (até 1884/1920)


A história económica, etnográfica, social e política de Moçambique no período pré-
colonial foi constituída por uma interacção complexa, mas coerente, de diversos factores
intrínsecos e extrínsecos: as condições climáticas e agrícolas, o comércio e as influências sociais,
religiosas e culturais recebidas além-mar, os conflitos armados entre as estruturas políticas
tradicionais características da (s) sociedade (s) moçambicana (s), o banditismo endémico, as
migrações, as invasões, e a dominação política de invasores «nacionais» e «estrangeiros»
(Corvo, 1884, p.40).
As condições climáticas ao longo da costa e em toda a savana das terras baixas
determinavam que a economia básica da população naquelas áreas geográficas se baseasse na
agricultura e não na criação de gado. A Norte do Zambeze, no século XIX, a comunidade
«agrícola de aldeia» era dominada politicamente por clãs que seguiam sistemas sociais de
descendência matrilinear. No século XIX, os rituais de iniciação, os santuários da chuva e os
cultos dos espíritos da terra, eram também dominados pelos clãs matrilineares. Em geral, as
chefaturas, ou regulados, eram pequenos e relativamente fracos (Corvo, 1884, p.40). No pré-
colonial o acesso e posse à terra era definida por meio de linhagem de descendência e segundo
normas localmente definidas. Ao sul de Zambézia predomina (va) a sociedade patrilinear e a
norte sociedade matrilinear. No pré-colonial predomina uma única forma de acesso à terra, o
sistema costumeiro.

1.2. Posse de Terra no Período Colonial (1884/1920 - 1975)


O ponto de partida para o surgimento dos sistemas dual de posse de terra em
Moçambique foi o período a seguir a Conferência de Berlim (1884-1885), com a partilha de
África. A maioria das terras férteis e de fácil acesso era ocupada por brancos colonizadores e
grandes latifundiários estrangeiros. Os negros e os outros da colonização, os mestiços,
34

afrochineses ou sino-africanos etc, ocupavam as terras mais pobres e de difícil acesso, com
dimensões pequenas onde geralmente praticavam a agricultura familiar e de
sequeiro. Essa dicotomia é corolário de um longo processo de espoliação das melhores terras,
que reflecte a violência e o dualismo que caracterizou a situação colonial em África. Esse
dualismo esse, que colocou as diversas populações negras africanas numa posição de “resíduos
de homens”, ou ainda como representantes de uma forma “mórbida e degenerada do homem”,
“corpos obscuros, inferiores, bárbaros e selvagens” à espera do auxílio de “homens derradeiros”,
brancos europeus detentores da lei, do direito e da civilização (Eusébio, 2019, p. 157).
Assim, as diferenciações de regimes fundiários, a distribuição étnica e apropriação racial
da terra e dos recursos naturais constituíram as marcas características da organização de espaços
rurais dos países africanos no tempo colonial. Seguindo essa lógica, em vários países africanos se
observou a expropriação de terras mais favoráveis a agricultura para benefício dos brancos. Esse

facto pode ser comprovado com as palavras de Valdemir Zamparon citadas pelo Eusébio (2019,
p.157) ao dizer que “paulatinamente expulsando a população rural das áreas mais férteis e
superpopulando as áreas circundantes, práticas que, associadas as crises ecológicas
acabaram por contribuir para uma crescente desestruturação da produção camponesa e, por
acelerar a criação e expansão de uma força de trabalho para mercado”. Em 1901 houve uma
tentativa de organizar a legislação relativa à propriedade da terra em todo no então território
português do ultramar numa carta-lei, que declarava:

“nulos todos os contratos e acordos feitos com chefes “indígenas” (negros africanos) por
particulares sem conhecimento ou confirmação da autoridade administrativa [...]. Havia também
um capítulo dedicado a propriedade indígena, pelo que o estado reconhecia o direito indígena de
propriedade dos terrenos habitualmente cultivados ou ocupados como residência” (Albert Farre
apud Eusébio, 2019, 157).

Nesta carta, torna-se claro e evidente que o governo Português reconhecia o direito de
uso e aproveitamento de terra ao indígena através das normas e praticas consuetudinários,
confirmando assim o sistema dual de acesso de terra.
Para a atribuição do título de propriedade era imperioso a comprovação de 20 anos de
cultivo e residência. As imensas dificuldades técnicas de provar 20 anos de ocupação e cultivo
continuado, tornavam a obtenção de título de propriedade, uma pretensão impossível, ou seja, a
lei dissimulava uma preocupação com os indígenas, porém a cultura cartorial foi montada para
35

seguir os interesses coloniais que passavam por criar condições de possibilidade de expropriação
das terras das populações negras africanas. Entretanto, a implantação da República Portuguesa
(revolução de 05 de Outubro de 1910) acabou com a ambiguidade em relação à condição do
indígena e seus direitos de propriedades (Eusébio, 2019, p.158). Em outro pronunciamento
Albert Farre apud Eusébio (2019, p.158) explica que:

“A terra era dada a possibilidade de ocupação somente dentro de territórios classificados como de
uso exclusivo das populações indígenas e em nenhum caso lhe poderiam ser conferidos direitos
individuais de propriedade da parcela da terra que ocupar. As relações entre indígenas passaram a
estar reguladas por um direito comunitário denominado pela administração portuguesa de “uso e
costume [...]. Ao contrário dos direitos de qualquer cidadão, que se sustentavam na igualdade
perante a lei, os direitos do indivíduo indígena derivavam sempre do seu enquadramento na
hierarquia do parentesco ou dos usos e costumes”

Como explica Alfredo (2009) apud Zandamela (2015, p.23), durante o período colonial
os direitos das populações eram legalmente reconhecidos pelo Governo Colonial Português, mas
de uma forma mais ou menos controlada, reflectindo os interesses da época A exclusão das
famílias rurais das melhores áreas de cultivo reflectia-se, contudo, no seu modo de vida. O
mesmo acontece no Moçambique actual, em que as melhores parcelas de terra são atribuídas as
elites empresariais e familiares (nepotismo), o que mostra em parte a fragilidade das instituições
que superintende à gestão de terra (SDPI).
A partir de 1920 além da expropriação das terras férteis e trabalho forçado, as populações
negras camponesas moçambicanas passaram a conviver com a imposição do cultivo de culturas
forçadas com destaque para a produção de algodão (Eusébio, 2019, p.158). O projecto de
colonatos priorizava a migração de populações camponesas portuguesas para as colónias. O
processo passava pela expulsão das famílias negras africanas que eventualmente ocupassem as
áreas para dar lugar à ocupação de famílias brancas portuguesas. Embora os colonatos não
tenham dado certo eles são o reflexo que justificava a expropriação das populações negras
camponesas das terras férteis no tempo colonial. Expropriação essa que tinha também a função
de criar condições para a constituição de força de trabalho para o trabalho forçado (Eusébio,
2019, p.159).
Segundo Negrão apud Vicente (2014, p. 293) a diminuição das áreas de cultivo pelas
famílias contribuía para o aumento da dependência do mercado de trabalho como forma de obter
rendimento em numerário indispensável para a sobrevivência e reprodução da família rural.
36

Desta forma, ocorre uma dispersão das famílias rurais atraídas pela oferta de empregos e
obrigadas a vender a sua oferta de força de trabalho a unidades de agricultura empresarial. Essas
famílias foram obrigadas a instalar as suas residências e os seus campos de cultivo familiares no
espaço circundante das grandes unidades agrícolas, no entanto, segundo uma organização
territorial dispersa e irregular (Muanamoha, 1995 apud Vicente, 2014, p. 294-296).
Neste contexto, o período compreendido entre 1885 e 1930 foi considerado como o da
mudança de estruturação do espaço em Moçambique, dado que a emergência da economia
colonial durante esse período, permitiu a introdução da agricultura comercial no espaço rural,
ocasionando uma redistribuição da população (Muanamoha, 1995 apud Vicente, 2014, p.297).
As zonas urbanas e as zonas destinadas a ser trabalhadas por colonos europeus, os
regimes coloniais introduziram os tipos de direitos à terra que existiam na Europa: propriedade,
arrendamento, hipoteca, etc. Às vezes, o governo colonial atribuía aos colonos a propriedade
privada de terra mas, em vez disso, era frequente mantê-la como propriedade do Estado e dar aos
colonos apenas concessões ou arrendamentos a longo prazo. Foi este o caso de Moçambique
(Bruce, 1992 apud Zandamela, 2015, p.24). A visão colonial da posse de terra no período era
baseada em dois sistemas, nomeadamente consuetudinário e legal, o que se verifica no
Moçambique actual, em que a terra é propriedade do Estado, não pode ser vendida, hipotecada
ou alienada, porém, reconhece o direito de uso e aproveitamento de terra à todo cidadão
moçambicano. Obviamente, a situação da dualidade dos sistemas de posse de terra introduzida
no período colonial manteve-se até a proclamação da independência de Moçambique, em 1975.

1.3. Posse de terra no período pós-independência (1975 - 2019)


O período pós-colonial divide em dois grandes períodos, a Primeira República e a
segunda República. A Primeira República analisa a viragem ideológica do Estado colonial à
Moçambique independente (1975-1990), olhando a conjuntura política (regime socialista) e a sua
implicação na Lei de terra. É nesta Primeira República que introduz a primeira Constituição da
República e a primeira lei de terra. A Segunda República (1990-2019) analisa o sistema de posse
de terra em Moçambique baseado na nova realidade (neo-liberal) com a implementação da
Constituição da República de 1990 e na Lei de terra de 1997.
A maioria dos países africanos, incluindo Moçambique, acedeu à independência com
um sistema de posse dual (consuetudinário e convencional ou formal) que teve a sua origem
durante o período colonial. No período pós-independência da maior parte dos países africanos,
37

nos 1960, os governos africanos tentaram fazer alterações básicas aos seus sistemas de posse de
terra. Os sistemas consuetudinários de posse de terra foram frequentemente considerados
demasiado “tradicionais” no Estado moderno para poderem fornecer uma base adequada para o
desenvolvimento agrícola (Brunce, 1992 apud Zandamela, 2015, p.24). A explicação para tal
atitude é a de que as novas elites governamentais (FRELIMO) não estavam inclinadas para estas
formas, porque constituíam uma importante base de poder das autoridades tradicionais, que
elas procuravam substituir. Por outro lado, havia também o desejo de ter um único sistema de
posse da terra, eliminando-se a dualidade que havia sido introduzida durante o período colonial
(Bruce 1992, Zandamela, 2015, p.25), como se pode verificar na Lei n.º 6/97 sobre a Lei terra de
3 Julho de 1979 que durante o processo de edificação da nova sociedade nas zonas libertadas,
tornou-se claro que a independência política não teria um sentido real para o Povo, não seria
uma verdadeira independência, se a terra continuasse nas mãos de um punhado de
latifundiários estrangeiros ou nacionais (…)”. É evidente neste trecho da lei de terra de 1979 a
tendência de nacionalização da terra, tirando-a das mãos privadas à uma gestão estatal, a
tendente às necessidades gerais.

1.3.1. Posse de terra na Primeira República (1975-1990)


A independência nacional em 1975 e o aparecimento da 1ª república no mesmo ano a
Constituição da República Popular de Moçambique, trazem consigo a nacionalização de todos os
recursos naturais, incluindo a terra, transformando-se em propriedade unicamente Estatal
(Mandamule, 2017, p.47). Segundo n.º 1 do artigo 1, da Lei n.º 6/97 sobre a Lei terra de 3 Julho:
aprova a lei de terra (BR, I serie, n.º 76 de 3 de Julho de 1979), nos termos da Constituição a
terra na Republica Popular de Moçambique é propriedade do Estado e o Estado determina as
condições do seu uso e aproveitamento.
Em 24 de Julho de 1975, o governo declarou a nacionalização da terra, da saúde, da
Educação e Justiça. Em 1976, das casas de rendimento que qualquer moçambicano ou
estrangeiro residente encontra-se, passou a ter direito a ser proprietário de uma habitação
permanente. O governo assumiu a gestão das casas que estavam arrendadas nessa altura,
formando para isso uma empresa denominada Administração do Parque Imobiliário do Estado
(Vicente, 2014, p.43). Concordando com Vicente (2014), invoco os n.º 1 e 2 do Artigo 3 do
Decreto-lei nº 5/76 de 5 de Fevereiro que regulamenta a nacionalização de prédios, afirma que:
38

os estrangeiros que mantiveram o seu domicílio no país, puderam continuar titulares dos
imóveis que habitavam.
Nem todos os prédios de rendimento reverteram a favor do Estado, aqueles que se
mantiveram ocupados pelos respectivos proprietários, continuaram sob a sua titularidade. Como
se pode verificar no n.º 2 do artigo 6 do Decreto-lei nº 5/76 de 5 de Fevereiro que todos os
edifícios que destinados à habitação ou outros fins, designadamente comércio, industria ou
agricultura, não sejam ocupados pelos proprietários ou usufrutuários. Também não reverteram
a favor do Estado os prédios de rendimento, ou parte deles, pertencentes a pessoas colectivas ou
sociedades estrangeiros tendo em consideração o seu objecto social e as suas necessidades (n.º 2
do artigo 6 do Decreto-lei nº 5/76 de 5 de Fevereiro).
A nacionalização não significou a redistribuição da terra, mas a transformação da
propriedade privada para estatal e a perda efectiva dos seus direitos costumeiros e históricos de
uma vez pela população rural (Tanner, 1993 apud Manhicane, 2014, p.53).
Negrão (1992) apud Zandamela (2015, p.25) defende que apesar da nacionalização, não
houve uma redistribuição de terras, mas apenas a transformação das propriedades agrícolas
privadas em Machambas Estatais. As famílias rurais continuaram a trabalhar as terras onde se
encontravam. Apesar de legalmente não se assumir, a posse de terra obedeceu o sistema de dupla
acesso, isto é, o sistema consuetudinário e legal em paralelo. Zandamela (2015, p.26) sustenta
este argumento citando o discurso de Samora Machel em 1975:

“Nas zonas libertadas, nós lutamos para libertar a terra, lutamos para libertar o povo
moçambicano, não faz sentido que a terra continue nas mãos de um pequeno grupo de pessoas.
Morreu-se a favor de um punhado de pessoas? Onde está a libertação da terra? Não faz sentido a
nossa independência enquanto a nossa terra continuar nas mãos de um punhado de gente. Significa
que não estamos independentes, que o povo ainda não está liberto. É o povo que trabalha a terra,
portanto, a terra pertence ao povo”.

O discurso de Machel reflecte o que até hoje acontece, em que o povo (nativo) é
instrumentalizado para aquisição da terra em troca de responsabilidade social de uma minoria
elitista. A terra é propriedade do Estado, mas em contrapartida, são os representantes do Estado
que a negoceiam em benefícios individuais. A terra pertence ao povo na letra, mas não no
espírito. Concordando com Mosca (2011) apud Bunguele (2015, p.92), os camponeses, apesar de
terem sido o principal suporte sociológico da luta de libertação, onde se revelaram como um
sector não conservador e muito menos individualista e reaccionário, o discurso pós
39

independência passou por cima e as políticas económicas marginalizaram os camponeses em


benefício da socialização rural. Como corolário, os camponeses não realizaram a esperança de
maior acesso à terra (Bunguele, 2015, p.92). Na mesma linha de abordagem Mosca (2011) apud
Bunguele (2015, p.92), explica que:

“…a marginalização dos camponeses, cognominados reaccionários, não era consensual na Frelimo
e Samora… Esta constatação alinha-se à tese samoriana de desenvolvimento descrita no início do
capítulo, favorável à elevação dos camponeses a produtores comerciais, mas como as aldeias e
outros projectos que entusiasmaram a ala populista de guerrilheiros, não receberam apoio do
plano, gerido pela ala crioula de marxistas ortodoxos”.

A edificação do aparelho do Estado no III Congresso (1977) culminou na implementação


do Plano Prospectivo Indicativo. Esse plano era a principal concretização dos objectivos da
socialização do meio rural, direcção e controlo da economia. No cálculo dos factores e meios de
produção, considerava-se o cumprimento de metas de produção definidas centralmente pela
Comissão Nacional do Plano e Ministério da Agricultura; as empresas estatais procuravam
cumprir, sem margem para decisão doméstica, porque qualquer venda à margem do orientado era
considerada candonga (mercado paralelo ou negro) e energicamente sancionada, no âmbito da lei
5/83 (Mosca, 2011 apud Bunguele, 2015, 81).
Diferente se verificou no IV Congresso, que considerou desnecessário a manutenção,
pelo Estado da gestão de grandes, médias e pequenas empresas de produção e serviços em todos
os ramos económicos (Frelimo, 1983 apud Bunguele, 2015, p.82). As intervenções dos
delegados ao IV Congresso, revelam sérias lacunas operacionais, como as motobombas
avariadas por falta de falta aprovisionamento para revisão dos motores segundo recomendações
do fabricante. Assim se evidencia, que faltava sustentabilidade à economia centralmente
planificada, empenhada em eliminar as resistentes formas de produção familiar e privada
(Bunguele, 2015, p.83).
Assim como explica (Mosca, 2011) apud Bunguele (2015, p.84), as empresas estatais
foram concebidas como forma superior de produção, propriedade do povo e geridas por um
Estado de operários e camponeses. No campo, as machambas estatais representavam o poder
perante outros agentes económicos da sua área de influência, prestando serviços (venda de
insumos, aluguer de alfaias, comercialização e assistência técnica), na perspectiva de estabelecer
relações monetário-mercantis com os sectores familiar, cooperativo e privado, que permitissem a
40

racional divisão do trabalho, não obstante os cooperativistas conservaram suas machambas


individuais (Frelimo,1883-A, Bunguele, 2015, p.84). Houve uma série de nacionalizações de
empresas, como LAM, a EDM, mas também, existiam algumas privadas, as machambas
familiares, a empresa TEXTÁFRICA, MABOR por exemplo.
Após a independência as estruturas de comercialização foram muito abaladas pela
sabotagem e fuga de comerciantes, assistindo-se assim movimentações em massa. Por isso até
1978 muitas regiões do país ficaram sem rede comercial, dificultando a venda dos excedentes da
população e a aquisição pelos camponeses de bens manufacturados, para além de que, com as
nacionalizações, muitos pequenos agricultores e cantineiros que não emigraram, transferiram-se
para as cidades abandonando suas actividades (Mosca, 2011 apud Bunguele, 2015, p.87).
A aprovação da Lei n.º 6/97 sobre a Lei terra de 3 Julho: aprova a lei de terra (BR, I serie,
n.º 76 de 3 de Julho de 1979) visava disciplinar e organizar o uso e aproveitamento da terra,
criando instituições cujo funcionamento torna possível a planificação socialista das actividades a
ela ligadas (nacionalização/administração centralizada). Entretanto, de uma forma ambígua, a lei
reconhecia a existência da utilização da terra no âmbito do direito consuetudinário uma vez que a
terra era do povo (Manhicane, 2007, p.3), mas não estava bem explicito na lei, pese embora
consentisse o uso e aproveitamento de terra gratuitamente à explorações familiares para fins
agrários e habitacionais.
Quando se pretendia avançar com a implementação da referida lei e numa altura em que
moçambicanos criavam bases do Plano Prospectivo Indicativo e para lutar contra o
subdesenvolvimento, começou a guerra entre o Governo da FRELMO e a RENAMO. Esta
guerra provocou a fuga massiva de milhões de camponeses das suas terras, o colapso de grandes
empresas, como a Empresa Chazeira em Gurué de produção da Chá, impossibilitou a
implantação eficaz de qualquer política de desenvolvimento rural (Magalhães, 2014, p.54).
Ao mesmo tempo tornou-se evidente que a abordagem socialista não estava dando os
resultados desejados e o Estado iniciou nos anos 80 um processo gradual de privatização de
alguns sectores de economia agrária ao converter algumas empresas estatais em empresas
privadas, como a conversão da FAO para empresa MIlhulamete. Porém, o sistema
consuetudinário se manteve clandestinamente e mesmo nas áreas das empresas estatais os
régulos e outros chefes mantiveram um papel forte na gestão de terras (Hermele, 1988 apud
Magalhães, 2014, p.54).
41

A transição socialista para capitalista é acompanhada por uma série de reformas que
Mosca (2011) apud Bunguele (2015, p. 102) chama de Pré-Pré é caracterizada por ocorrência de
guerras, instabilidade política e económica, a crise internacional (crise do petróleo e deterioração
dos termos de troca), grave fome, devido a queda sistemática da produção aliada à seca
prolongada (1982/3), a crise dos países socialistas, o avanço da guerra e negociações não oficiais
com a África do sul.

1.3.2. Posse de terra Segunda República (1990-2019)


A Segunda Republica nasce no contexto da crise económica internacional, com ênfase
para seu impacto sobre as relações de produção socialistas, levaram o país a uma crise profunda
que favoreceu o reequacionamento do desenvolvimento socioeconómico, no Congresso de1983
com a descentralização, a abertura para o privado e o redimensionamento do papel do Estado na
economia (Bunguele, 2015, 105) e revisão constitucional em 1989.
Actual política da lei de terras e acesso e posse de terra em Moçambique
A passagem ao multipartidarismo (Constituição de 1990) e a adopção da economia de
mercado, ditaram a necessidade de rever a forma como seriam alocados os recursos naturais que
até então eram da responsabilidade exclusiva do Estado. É nesse âmbito que foi aprovada a
Política Nacional de Terras da lei n.º 10/95 de 17 de Outubro e a nova Lei de Terras-Lei n.º
19/97 de 1 Outubro (Manhicane, 2007, p.3).
Introduziram-se alterações que incorporavam dispositivos legais que reconheciam a
existência de outros actores nos processos de alocação da terra de “boa fé” pelo cidadão comum.
Com a nova de terras, reconhecia o direito ao acesso e posse de terra pelas normas e práticas
costumeiras (Manhicane, 2007, p.3).
Podem ser sujeitos do direito de uso e aproveitamento da terra as pessoas nacionais,
colectivas e singulares, homens e mulheres, bem como as comunidades locais (artigo10 da Lei nº
19/97 de 1 de Outubro: aprova a Lei de terras, BR: I Série, no. 40, de 7 de Outubro de 1997).
Com a nova lei de terra, a mulher passou reconhecida como pessoa que tem o mesmo direito de
uso e aproveitamento de terra que o homem, pese embora, a sociedade moçambicana continue
discriminando-as.
Segundo artigo 12 da Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: aprova a Lei de terras (BR: I Série,
no. 40, de 7 de Outubro de 1997) o direito de uso e aproveitamento da terra é adquirido por:
42

“Ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo as normas e


práticas costumeiras no que não contrariem a constituição (alínea a); e ocupação por
pessoas singulares nacionais que, de boa fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos dez
anos (alínea b).”

Ausência de título não prejudica o direito do uso e aproveitamento da terra adquirida por
ocupação nos termos das alíneas a) e b) do artigo 12. O processo de titulação do direito do uso e
aproveitamento da terra inclui o parecer das autoridades administrativas locais, precedido de
consulta às comunidades, para efeitos de confirmação de que a área está livre e não tem
ocupantes (n.º 2 do artigo 13 e n.º 2 do artigo 14 da Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: aprova a Lei
de terras, BR: I Série, no. 40, de 7 de Outubro de 1997).
Comparado às primeiras políticas pós-independência, estas mudanças tinham como
objectivo reconhecer e assegurar direitos existentes e não abordar a equidade por mecanismos
redistributivos. A terra era e ainda é um recurso relativamente abundante e tornou-se importante
assegurar, se mantendo assim a posse de terra, enquanto se procurava novos investimentos para
tornar a terra mais produtiva. Após a aprovação da lei de terras, muitos estudiosos empenharam-
se na produção de várias brochuras e manuais explicando com detalhes os contornos da nova lei.
Apesar de não haver grandes divergências, importa analisar algumas das interpretações
efectuadas e sua implicações no acesso, segurança e posse de terra para os camponeses e
comunidades rurais (Magalhães, 2014, p.56).
Calengo (2005) apud Magalhães (2014, p.56) resume as formas de acesso a terra
legalmente reconhecida em duas. A aquisição do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra por
ocupação e por concessão do direito de uso e aproveitamento da terra por uma autoridade
competente do Estado. Considera ainda que a consagração destas duas vias na nova lei de terras
representa, finalmente, o reconhecimento de uma realidade social que com respeito a Terra,
sempre foi dominada por dois processos de acesso a Terra.

1.3.2.1. Acesso e posse de Terra no Distrito de Marracuene, bairro de Cumbeza (2014-


2019)
No distrito de Marracuene ocorrem duas formas de acesso e posse da terra,
nomeadamente o acesso restrito ou formal e o acesso aberto ou informal.
43

1.3.2.1.1. Acesso restrito ou formal


O acesso restrito ou formal a terra ocorre mediante ao cumprimento do protocolado
estabelecido pela Lei de terras. Os cidadãos ou entidades, nacionais ou estrangeiras interessadas
no acesso a terra, seguem todas as formalidades que constam na lei, submetendo um pedido ao
Governo Distrital, tal como afirma Aníbal Bechel (40 anos)1 que com o crescimento
populacional, o distrito tem tido pedidos de terrenos para construção de habitação, implantação
de infra-estruturas sociais, nomeadamente: educação, saúde e actividades comerciais. Estes
pedidos são feitos para um espaço muito pequeno porque o distrito não tem mais espaço na
localidade sede, desta forma, recorre-se a zonas de expansão, como Dhithxi2. Os pedidos mais
correntes são para fins habitacionais. Em média, os serviços têm feito 500 parcelamentos por
ano, e por vezes excede para 1500.
Dando procedimento, Aníbal Bechel (40 anos), explicou que para adquirir espaço é
preciso efectuar em primeiro lugar o pedido, que inicia com um requerimento dirigido ao
administrador do distrito de Marracuene, em anexo a fotocópia do bilhete de entidade e Imposto
Autárquico Pessoal. De seguida, faz-se a submissão aos serviços distritais. Feita a submissão do
pedido, o SDPI procede com a selecção, dividida por cotas. Nessas cotas, há uma cota que deve
ir as instituições, uma aos jovens e a outra para nativos. Feita a selecção, elabora-se as listas e a
publicação dos apurados, sendo esta é a forma segura de ter acesso e posse de terra, e não se
paga nada.
Após a publicação, o cidadão ou requerente vai pagar uma taxa para o pagamento do
emolumento, dependendo da localização da parcela. O valor inicial é quinze mil meticais. Este
valor é usado para a demarcação da parcela, pagamento de sazonais e o combustível que o
Governo vai gastar na implementação do próprio plano de pormenor. Depois ocorre atribuição da
parcela junto da Certidão de ocupação, que é um documento primário que equivale a um DUAT,
porém, tem o período de vigência de dois anos. Essa Certidão de ocupação atribui-se a quem se
encontra nas zonas em via de expansão com plano de pormenor (Aníbal Bechel de 40 anos).

1
Chefe de Repatriação de Obras Publicas Infra-estrutura e Equipamento em representação do Serviço Distrital de
Planeamento e Infra-estruturas. Entrevista feita no dia 20 de Setembro de 2021 no SDPI pelas 12:24:02.

2
Um dos bairros da localidade de Matalane
44

Esta política de alocação de terras, de acesso e posse de terra legal, tem recebido várias
críticas pelos cidadãos de marracuene, tal como lamenta Joana Mabjaia3 de 36 anos dizendo que
a forma de atribuição de terrenos adaptada pelo Governo visa atribuir mais parcelas de terras as
suas famílias e seus amigos. Repudiando o sistema, deixou claro que os apurados são muito
poucos cidadãos nativos e jovens do distrito de Marracuene, entretanto, são apuradas pessoas
acima de 45 anos de idade, com muitas parcelas em outros lugares, e os jovens, não têm
privilégio. Esta atribuição é uma farsa, e beneficia seus conhecidos. Os critérios de selecção e
atribuição de terrenos não são justos. Já submetemos documentos mais três vezes, mas nenhum
de nós foi seleccionado, é por isso que as pessoas preferem comprar terrenos por aí, porque
estes do Estado, não ajudam em nada.
Para aquisição do DUAT, o requerente faz o pedido obedecendo os seguintes requisitos:
 Requerimento ou formulário
 Fotocópia do Bilhete de Identidade
 Declaração do bairro;
 Impostos Autárquicos e
 Plano de exploração

Aníbal Bechel de 40 anos, explicou ainda que quando o cidadão tiver os requisitos
supracitados submete o processo do pedido do terreno ao SDPI. Por sua vez, o SDPI vai
cadastrar, formar e atribuir um número a esse processo. De seguida é solicitado o proprietário
desse processo, de seguida o Técnico do SDPI vai ao terreno, procede com o reconhecimento do
terreno e o processo é levado à Matola. Na Matola faz-se o cadastro do terreno, de seguida, o
processo regressa ao distrito de Marracuene para realização da consulta comunitária. Feita a
consulta comunitária, o processo é fixado no período de 30 a 45 dias para se averiguar a
existência ou não de alguém a reclamar do espaço, depois disso, o processo recebe o parecer do
administrador. Recebido o despacho e parecer do administrador, o processo é reenviando para
Geografia e Cadastro, por sua vez, a Geografia e Cadastro faz um parecer ao Governador da
província para emitir o DUAT. Por isso que esse processo acaba levando este tempo de 1 ano a 2
anos

3
Cidadã residente no distrito Marracuene, bairro Cumbeza, professora de profissão. Entrevista feita no dia 21 de
Setembro de 2021 na sua residência pelas 14:42:39.
45

Além de reclamarem e criticarem a política de alocação de terras em Marracuene, o


DUAT também foi objecto de duras críticas, como expressou Paulino Nhomone de 30 anos 4: nós
estamos a viver a nossa maneira, não sabemos quando e como teremos DUAT. Alguns dessa
zona já tiveram, mas nós sem nomes, não! Houve distribuição de DUAT’s no ano 2018 mas
depois não se ouviu falar da distribuição para as restantes casas até hoje. Tratar DUAT mano, é
muito difícil e complicado, leva-se muito tempo a espera do DUAT, mas no fim, nada. Só para
ver a ironia das coisas, na casa ao lado, nessa residência apetrechada, não vai acreditar mas
têm dois proprietários e os dois têm DUAT’s daquele espaço, resultado, luta que não acaba.
Todos esses dirigentes são ladrões, não fazem as coisas como deviam ser. Faz sentido isso? Eu
não tenho DUAT, mas há pessoas que estão em sarilho por possuírem DUAT’s do mesmo espaço
mas de forma diferente. Mas tens como me dizer como conseguiram esses DUAT’s? São esses
que têm padrinhos! Só da para lamentar o que acontece nesse país, com dinheiro, tudo anda.

1.3.2.1.2. Acesso aberto ou informal


O acesso aberto ou informa a terra ocorre mediante as normas e práticas consuetudinários
(herança e boa fé), oferta, compra e troca. Os cidadãos de forma independente adquirem o espaço
sua maioria para fins de habitação.
O Estado reconhece e protege a aquisição e a titularização da terra por meio de direito
consuetudinário, este que coexiste com o acesso à terra por meio da legislação do Estado. Este
processo pode ser confirmado nas declarações da Ana Nhabanga, 28 anos 5: o terreno em que nós
vivemos era dos meus avós. A muito tempo, um pouco antes da guerra da Frelimo e a Renamo,
aqui só se encontravam família Cumba, família Mabjaia e Magaia. Não existiam limites de
divisão de espaço, tudo isso, não havia diferença de Mateque, Guava, Ricatla, Cumbeza e
Agostinho Neto. Meus avós eram da família Magaia, tinham um espaço muito grande, mas
quando faleceram, a minha mãe e seus irmãos herdaram os terrenos.
Ernesto Jaime de 44 anos6 explicou por sua vez, que o processo mais frequente de acesso
de terra em Cumbeza é por via informal (compra e venda da terra). Cientes da posição legal

4
Cidadão residente no distrito Marracuene, bairro de Cumbeza desde a sua nascença, Estudante. Entrevista feita no
dia 22 de Setembro de 2021 na sua residência pelas 12:01:23.
5
Cidadã residente no distrito de Marracuene, bairro de Cumbeza desde a sua nascença, Estudante. Entrevista feita
no dia 23 de Setembro de 2021 na sua residência pelas 14:12:47.

6
Entrevista feita no 21 de Setembro de 2021 com o Vice-secretário do bairro Cumbeza, no circulo de Cumbeza
pelas 11:52:12.
46

sobre a terra como propriedade do Estado, ela não pode ser vendida, hipotecada ou alienada, as
pessoas dizem que estão a vender uma casa ou estão a ceder aos seus amigos, e sendo assim, as
autoridades locais (secretariado doo bairro Cumbeza) não têm muito a fazer além de tratar a
declaração do pedido do DUAT.
Em seu torno, Zito Felisberto Nhatave de 42 anos 7, com uma visão mais crítica explicou
que o Estado reconhece além da aquisição de terra através do direito do uso e aproveitamento via
direito legal ou político, o direito consuetudinário. Sendo que o direito legal ou político é muito
burocrático, as pessoas optam pela aquisição da terra informalmente. As pessoas, como sabem
que a terra não pode ser vendida, hipotecada ou alienada, procuram estratégias para contornar
esse processo burocrático, procurando terrenos nos nativos. Os nativos, construem uma casinha
com materiais precárias, assim vão justificar que estão a vender benfeitoria e não a terra, depois
disso, lobola-se8 o espaço na presença dos líderes locais.
Reconhece-se o acesso de terra a nível local por meio de ocupação por boa fé e oferta,
como explicou dona Rosália Cuna de 75 anos 9 vinda de Chibuto que quando chegou em
Cumbeza, a zona era mata e estavam lá poucas famílias. Entretanto, o espaço em que se encontra
a residir pediu na época para pôr a cabeça e praticar agricultura, mas com o passar do tempo o
dono lhe atribui definitivamente o espaço por ser uma pessoa idónea.
Verificou-se também a aquisição por meio de compra, apesar da Lei de terra e a
Constituição da República repudiarem esta prática. Entretanto, a negociação é feita directamente
entre o proprietário e o comprador. Os critérios de venda são discutidos entre as partes
evolventes, havendo assim, uma espécie de troca, como explica Paulino Nhomone de 30 anos:
Adquiri o meu terreno na altura, a dois mil meticais, numa velhinha que possuía terrenos por
aqui. Esse valor era de agradecimento por ter cedido o terreno e para realizarem as cerimónias
de Kuphahla, informando aos antepassados sobre o novo proprietário do terreno. O
proprietário sugeriu que aumentasse quinhentos meticais para aumentar as dimensões do
espaço, mas achava o meu espaço muito grande.
7
Entrevista feita no dia 14 de Setembro de 2021 com Juiz de Direito B, no Tribunal Judicial de Marracuene pelas
12: 45:12.

8
É uma prática local que consiste no pagamento dum valor simbólico, bebida tradicional, galinhas, farinha, rapé para
“phalhar”- serve de linha intermédia de comunicação com os antepassados da existência de um novo proprietário o
espaço, para que o mesmo não tenha problemas no local (falta de sono...).

9
Cidadã residente no distrito de Marracuene, bairro de Cumbeza a mais de 35 anos. É uma camponesa. Entrevista
feita no dia 24 de Setembro de 2021 na sua residência pelas 13:54:22.
47

Esta prática de compra e venda de terra foi sustentada por Ana Nhabanga de 28 anos,
quando explicou que com a morte dos seus avós, os terrenos ficaram na gestão dos filhos, em
particular os filhos homens, seus tios. No princípio, vendiam terrenos a preços muito razoáveis e
simbólicos, cinco mil meticais há dez mil meticais, isso até por aí os anos 2010 a 2015, mas com
a procura desenfreada de terrenos para habitação e para negócios, os seus tios começaram a olhar
a venda de terrenos como um negócio. Agora não é qualquer um que pode comprar terreno aqui
porque os preços são “gordos”. As pessoas que querem terrenos negoceiam directamente com
eles, discutem os preços e entram em consenso.
Neste estudo foram consideradas duas categorias de acesso a terra, sendo a primeira
formal e a segunda informal. A segunda categoria de acesso a terra no distrito de Marracuene,
bairro de Cumbeza engloba as práticas e normas consuetudinárias, boa fé, oferta, venda e
compra, como mostra o gráfico resumo de acesso a terra em Marracuene, bairro Cumbeza
abaixo:
Gráfico 1: Formas de acesso à terra em Cumbeza

Acess
Formas de acesso à terra o
for-
mal
17%

Acesso Informal
83%

Fonte: gráfico elaborado pelo autor no Excel (2021).

Como se verificar no gráfico supracitado, as formas de acesso a terra em Marracuene,


bairro Cumbeza, ocorrem de duas formas, nomeadamente: formal e informal. O acesso informal
da terra é a forma mais predominante naquela circunscrição, correspondendo 83.3 %. Com isso,
pode-se considerar que mais da metade da população de Cumbeza tem como forma de aceso à
terra as normas e práticas consuetudinárias e a compra e venda de terra. Com esses dados,
48

conclui-se que o acesso formal é menos usado, em relação ao informal, tendo o registo 16.7 %.
Em suma, a população desse distrito sente-se mais aconchegada ter acesso o a terra
informalmente, devido as nuances burocráticas e viciadas do acesso formal da terra.
49

CAPÍTULO II: TIPOS DE CONFLITOS DE TERRA E SUAS CAUSAS NO BAIRRO


CUMBEZA (2014-2019)
Este capítulo em estudo, analisa os factores que influenciam os conflitos de terra e os
tipos de conflitos de terra.

2.1. Tipos de conflitos de terra


Os conflitos de terra que ocorrem em Moçambique, são de natureza “i) Intrafamiliar; ii)
Intracomunitário; iii) Intercomunitário e iv) Extracomunitários (invasões comunitárias) ”
(Mandamule, 2016, p.6).
Durante o estudo no campo, notou-se que o bairro é assolado por diversos conflitos de
terra, nomeadamente: intra-familiares; invasões de propriedades; conflitos entre compradores e
conflitos entre vendedores e compradores.

2.1.1. Conflitos Intra-familiares


O conflito intra-familiar é aquele que acontece no seio da família nuclear ou alargada,
envolvendo os binómios pais-filhos, maridos-esposas, sogros-noras/genros, etc., sempre que haja
divergência de objectivos e interesses entre os mesmos (Mandamule, 2016, p.8).
Os conflitos incorrem no seio da família, por herança, afectando principalmente
mulheres. Verifica-se neste tipo de conflito o crescimento e desmembramento da família e
divisão das terras familiares, como argumentou Ana Nhabanga de 28 anos que com a gestão de
terras nas mãos dos seus tios, começou a venda de terrenos que a sua avó havia dividido aos
filhos. Venderam seus terrenos herdados e um dos seus tios vendeu o espaço da sua mãe.
Entretanto, como forma de resolver essa situação, sua mãe foi submeter a queixa no secretariado
do bairro. De forma pacífica ambos foram intimados no círculo do bairro e numa sentada
resolveram o conflito, em que seu tio procurou outro espaço para atribuí-la.
Ernesto Jaime de 44 anos em seu torno explicou que os conflitos de terras entre membros
da família são pouco recorrentes. Os conflitos que mais registamos são entre os compradores e
as invasões de propriedades e essas invasões não são de agora, já perdemos uma parte do nosso
espaço para Mali e Agostinho Neto.
50

2.1.2. Invasões de propriedades


As invasões de propriedade no bairro de Cumbeza ocorrem com a ocupação do território
de Milhulamete por grupo de indivíduos de origem desconhecida, como explicou Aníbal Bechel
de 40 anos, que o caso milhulamente é um dos casos mais sonantes no distrito de Marracuene.
Data dos anos 2012, vem ganhar a sua magnitude nos anos 2014 a 2016 com as primeiras
vandalizações e invasões daquele espaço. Os invasores são populares que classificamos de
invasores ou crime organizado para invasão de terras.
Segundo Bechel (40 anos), o espaço pertence a empresa Milhulamete, foi abdicada à
empresa pelo Estado, numa área de 756 hectares. Esta empresa possui DUAT das dimensões do
seu espaço, e foi criada com o objectivo de plantio de eucaliptos. Nos anos 1973 a 1980 aquando
da implantação dessa empresa, os que lá existiam foram reassentados nos bairros de actual
Agostinho Neto e Malhazine, entretanto, são essas pessoas que querem retornar à Marracuene e
olham para aquele espaço como se ainda lhes pertencesse.
Explicou ainda Bechel (40 anos) que o caso foi ao tribunal no ano 2016. Nesse caso, não
houve sentença. Dizia-se que a terra pertencia aos nativos, mas o que aconteceu é que o caso foi
levantado ao tribunal dando-se espaço a resolução desse conflito, mas esse processo foi mal
interpretado por algumas pessoas que apareceram dizendo que os nativos haviam ganho o caso,
mas não foi. Nesse processo, Milhulamete perdeu 204 hectares.
Sustentou ainda Bechel (40 anos), dizendo que surgiram outros grupos que diziam-se
também ser nativos de Xivunguanine e precisavam de espaço. Mas para quem passa dali, vai
perceber que só tem eucaliptos e ninguém esteve ali a muito tempo. Atacaram mais uma área,
mas o Governo toma uma acção administrativa, embargar e demolir. As casas construídas são de
material precária, se for a notar, ninguém constrói com material convencional, porque sabem que
o espaço não lhes pertencem e assim facilmente reconstroem ao serem demolidas.
Insistente Bechel (40 anos), explicou que houve um posicionamento do Tribunal, razão
pela qual esses nativos tiveram que reclamar, recorrendo ao Tribunal Judicial de Recurso. Este
caso se encontra lá e não existe uma sentença tomada mas sim uma medida acautelar. Entretanto,
o Governo Distrital de Marracuene está espera o desfecho. Ademais, a população nunca foi
beneficiada e não ganhou nada, porque se assim fosse, o tribunal teria dado a ordem para
parcelamento e emissão do DUAT, mas não existe, mostrando desta forma o poder da mídia em
influenciar na formação de opiniões.
51

Concordando com Bechel (40 anos), Zito Felisberto Nhatave (42 anos) explicou que o
caso milhulamete é cabeludo e a mídia está ser um instrumento da desinformação. Nesse caso
ainda não tem nenhuma sentença por isso legalmente não podia falar dele, mas que podia fazer
algum comentário como um cidadão simples e não Juiz. Explicou que aquele espaço pertence à
empresa Milhulamete, mas o que acontece é que há pessoas que têm interesses obscuros e olham
aquele espaço como oportunidade de negócio, aliciado à essa procura massiva de terrenos. Essas
pessoas que não se conhece ao certo a sua origem, invadem aquele recinto e fazem das suas.
Graças a desonestidade de algumas pessoas que não citaria nomes, esse fenómeno frequente.
Segundo a colocação do Zito Nhatave, percebe-se que as invasões à propriedade de Milhulamete
são seguradas por algumas entidades estatais ou empresarias mas que se camuflagem nos ditos
nativos.
Concordando com Nhatave e Bechel, Ernesto Jaime (44 anos) explicou que as pessoas
que invadiram mulhulamete, a antiga FAO, são pessoas de Agostinho Neto, Guava, Ricatla,
Mateque, e os de Cumbeza são poucas se existirem. Existem histórias que até agora não se
percebe o que está acontecer. Os invasores construíram suas residências até onde termina o
murro de novo cemitério até a torre de FIPAG. De outro lado, fazendo fronteira com Guava, são
limitados pela cova da areia vermelha. Esses têm um líder que fez o mapeamento da zona e fez
demarcações. Dizem que são nativos, mas não são, são malfeitores esses, e vêem de Mateque,
Agostinho Neto, Ricatla, Guava, Magoanine C…
Ernesto (44 anos) explicou ainda que nos anos 80, todos esses que se chamam de nativos
foram reassentados para dar espaço ao projecto FAO, uns para Agostinho Neto e outros para
Malhazine. Quando a FO2 caiu, apareceu a empresa Milhulamete. É nesta contexto que voltaram
e muitos deles eram trabalhadores da FAO. Foram reassentados de novo. Nos anos 2010
voltaram a ocupar mas nesse período as casas foram queimadas. No ano 2014, voltam a ocupar
aquela zona, construindo casinhas com material precário (caniço) que até hoje estão ali. Como
mostra a figura:
52

Figura 2: Casas construídas pelos invasores na propriedade milhulamete

Fonte: Imagem captada pelo Autor (2021).

Os entrevistados concordam servindo de suporto um ao outro. Não foi diferente com Ana
Nhabanga de 28 anos ao explicar que as pessoas daquele bairro, venderam terrenos que nem lhes
pertenciam. Invadiram o espaço do Seminário, na escola de padres e tentaram vender uma parte
do instituto agrónomo, mas sem sucesso e depois atacaram a FAO (Milhulamete), por não terem
mais espaços pessoais para vender.
Segundo Ana Nhanga (28 anos), os invasores são protegidos pelas autoridades locais. O
falecido secretário (Carlos Zacarias Zavala) do bairro Ricatla estava envolvido nesse assunto,
mas com a morte deste, o seu tio ocupou o cargo, mas porque também pautava pelas mesmas
práticas, foi substituído. São várias pessoas que estão envolvidas na venda de terras de
Seminário, do instituto e da empresa milhuamete. Outros são donos de grandes barres com
dinheiro de terrenos de dono.
Paulino Nhomone de 30 anos, explicou que esse assunto de terrenos é como um filme, e
ele não entendia como as pessoas são enganadas e pagam por um espaço que é notável que tem
dono. Explicou ainda que as pessoas que compraram no FAO não são daquela zona, porque é
53

espaço da empresa Milhuamete e é notável porque as casas estão em volta dos eucaliptos e o
Governo sempre destrói as casas que lá constroem.
Dona Rosália Cuna de 75 anos critica a acção dos autores dessas invasões dizendo: meu
filho, o mundo está acabar, as pessoas não são mais as mesmas. Este espaço em que me
encontro, me cederam por ser boa pessoa, mas agora, hi, é complicado, há um grupo de pessoas
que vende terrenos de dono, agora estão atacar a empresa milhulamete. Naquele espaço nós
íamos tirar lenha, mas agora, por causa desses ladrões aqui, não nos deixam tirar mais lenha…

2.1.3. Conflitos entre compradores


Compra de um terreno por mais de um indivíduo. É uma prática notória e corrente no
campo, aliada a procura de terrenos para habitação, o que faz com que em algum momento não
se preste os devidos cuidados, como disse Paulino Nhomone de 30 anos que as pessoas são
burladas na aflição de ter espaço para habitação. E os burladores conhecem muito bem o bairro,
procuram um espaço que não é mexido há anos, tratam a documentação do lugar e os
representantes do secretariado não vão verificar se o espaço é deles ou não, apenas atribuem a
documentação em troca de dinheiro. Explicou ainda dando exemplo duma casa ao lado sua, que
tinha dois proprietários e que ambos já estavam no processo de construção e os vendedores
desapareceram deixando a responsabilidade para os compradores. Nesta colocação do Nhomone,
percebe a fragilidade institucional por uma atribuição do título que se recorra à consulta
comunitária preconizada na Lei de terras.
Zito Felisberto Nhatave (42 anos) explicou que o tribunal recebeu muitos casos do género
e sempre sensibilizou a população a não optar pela via de acesso informal à terra porque os
nativos, os “donos da terra” e seus líderes comunitários e não são honestos. Depois de ouvir os
indiciados desse litígio, intima-se o vendedor, mas esse geralmente não existe é “fantasma”,
neste caso, as vítimas entram num consenso. Ernesto Jaime (44 anos), explicou que o que
aumenta esses problemas entre os compradores é o facto de o proprietário ceder o terreno à um
individuo e essa pessoa desaparece por período muito longo, desta, quando aparece outro
interessado, cede-o o terreno com intuito de reembolsar o valor do primeiro. Mas quando esse
caso é julgado, o primeiro a ser cedido o espaço é quem sai beneficiado e as conversações
acontecem na sua maioria no secretariado do bairro.
54

2.1.4. Conflitos entre vendedores e compradores


Na tentativa de fuga à fiscalização e das questões burocráticas das autoridades legais na
aquisição da terra, a população pauta aquisição informal, destacando a compra e venda de terra,
provocando conflitos entre os autores, como explicou Ana Nhabanga de 28 anos que os que
vendem terrenos naquele bairro, vendem para duas, três pessoas, e as vezes vendem terrenos que
não lhes pertencem. A título de exemplo, citou seu tio que terá vendido um terreno há duas
pessoas. Neste caso, recebeu uma parte do valor do primeiro a espera que pagasse a outra parte,
assim veio outro comprador, mas já não tinha mais o dinheiro para devolver o primeiro, pois o
segundo trazia uma boa proposta em relação ao primeiro. Levou o dinheiro do segundo e não
devolveu o dinheiro do primeiro. O segundo que já havia pago todo dinheiro, começou a
descarrega o material para começar com a obra, mas na semana seguinte, o primeiro que não
havia pago todo valor, mas já tinha pago a metade, veio com a parte que faltava e com material
para dar inicio à obra, mas o terreno já estava ocupado. Os dois compradores discutiram no local
e chamaram a pessoa que havia cedido o espaço aos dois. Porque não tinha mais dinheiro para
devolver, acordaram que devia ceder outro espaço ou que “cortariam” uma parte do terreno da
sua residência.
Neste estudo foram considerados cinco tipos de conflitos no bairro Cumbeza, os conflitos
intra-familiares, invasões de propriedades, conflitos entre compradores e conflitos entre
vendedores e compradores, como ilustra a tabela abaixo:

Gráfico 2: Tipos de conflitos no bairro Cumbeza

Tipos de conflitos de terra

11% 11%
Conflitos intra-familiares
22% Invasões de propriedades
Conflitos entre compradores
Conflitos entre vendedores e
compradores

56%

Fonte: gráfico elaborado pelo autor com recurso ao Excel (2021).


55

Com o estudo feito revela que no bairro Cumbeza ocorrem com maior frequência os de
conflitos terra que tem como origem as invasões de propriedades numa percentagem de 55.6. A
seguir das invasões de propriedade, ocorrem os conflitos de terra entre os compradores com uma
percentagem 22.2. Por último, são classificados os conflitos entre vendedores e compradores e os
intra-familiares com uma percentagem de 11.1.

2.2. Causas dos conflitos de terra no bairro Cumbeza


Segundo Alfredo (2009) apud Zandamela (2015, p.42) destacam-se algumas causas dos
conflitos de terra em Moçambique, nomeadamente: Geográficos, Políticos, Económicos,
Jurídicos e Institucionais.

2.2.1. Conflitos de origem Geográfico


Em regra, as zonas urbanas das grandes cidades capitais de Moçambique têm uma
densidade populacional bastante elevada quando comparada com a maioria dos distritos do país.
(Alfredo, 2009 apud Zandamela, 2015, p.42). Daí que a pressão é exercida noutros territórios
considerados ainda com um território maior, podem influenciar no surgimento de conflitos de
terra, como explicou Aníbal Bechel de 40 anos, que os conflitos de terra resultam de maior
procura de espaço, para habitação, para infra-estruturas sociais e para investimento económico.
A cidade de Maputo já não tem mais espaço, igualmente a cidade de Matola, então, toda pressão
passa para Marracuene, por isso Marracuene tem sido o palco dos conflitos de terras, porque as
pessoas estão a procura de espaço para habitação.
Sustenta Paulino Nhomone de 30 anos dizendo que os jovens andam bem preparados
para construir, assim que apanham “bolada” (oportunidade única de se fazer um negócio que lhe
favoreça) de comprar um terreno, “não falha nada”, vai pagar. Esses jovens são da cidade e vão
ao bairro porque têm amigos e conhecidos.

2.2.2. Causas de origem Político


A guerra civil de 16 anos obrigou a que muitas famílias procurassem abrigo perto das
regiões urbanizadas e próximas das principais vias de acesso. Com o fim da guerra em 1992,
parte dessas famílias preferiram continuar a viver no local em que se instalaram, procurando
encontrar terras para cultivo nas proximidades do local, o que fez surgir no seio dos camponeses
um certo descontentamento, pois estes não estavam interessados em compartilhar com estranhos,
nas terras legadas pelos seus antepassados. Este processo de deslocação dos camponeses de uma
56

região para outra fez surgir um outro problema que ocorre principalmente no momento de
regresso e reassentamento da população deslocada, o que também provocou a eclosão dos
conflitos de terra (Alfredo, 2009 apud Zandamela, 2015, p.42). Esta causa não foi verificada no
bairro Cumbeza.

2.2.3. Causa de origem económica


Muitas vezes a grande procura de terra por agentes económicos de várias origens e com
objectivos de realizar os seus investimentos constitui também factor de conflitos de terra, pois, a
falta de um cadastro organizado de terras disponíveis, obriga a que sempre a sua procura se faça
em condições tais que conflituam com as terras dos camponeses ou de outros agentes
económicos que já possuem o DUAT sobre as referidas terras (Alfredo, 2009 apud Zandamela,
2015, p.43), como explicou Paulino Nhomone de 30 anos que no bairro Cumbeza nunca houve
conflitos entre pessoas que procurassem fazer seus negócios com os moradores ou qualquer um
relacionado a terra. Mas esses casos podem ser verificados em Zintava, Guava ou Ricatla.
Pessoas entram em conflitos por causa do espaço para fazer negócio, algumas pessoas viram suas
barracas, estaleiros a serem demolidas por terem construído em terrenos alheios.

2.2.4. Causas de origem jurídica


Segundo Alfredo (2009) apud (Zandamela, 2015, p.43), relativamente a este ponto,
destaca-se o facto de grande parte dos conflitos de terra terem ocorrido na vigência da Lei n.º
6/79, de 3 de Julho e do respectivo Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto n.º
16/87, de 15 de Julho. Entretanto, alguns aspectos da lei n.º 6/79 propiciaram o surgimento dos
conflitos de terra face a uma lacuna e distorção na interpretação da referida lei e o seu
regulamento. Ao nível local não foram verificados casos de conflitos de terra relacionados à
problemas de interpretação de normas.

2.2.5. Causas de origem Institucional


Dentre vários obstáculos que o aparelho administrativo moçambicano enfrenta, destacam-
se as dificuldades financeiras, humanas e logísticas para levar a cabo as suas actividades. Não só
o orçamento que lhes é atribuído é insuficiente para levar a cabo um trabalho de qualidade
aceitável, como também enfrentam problemas de falta de técnicos devidamente formados,
equipamento adequado às exigências do trabalho. Não obstante, a excessiva burocratização típica
das instituições públicas, o desconhecimento por parte de alguns funcionários dos procedimentos
57

legais inerentes à aplicação da legislação sobre a terra, criam principalmente no seio dos
camponeses, a camada social desprovida de meios financeiros e de conhecimentos, condições
para que estas se sintam cada vez mais desmotivadas a legalizar a titulação das áreas ocupadas.
(Zandamela, 2015, p.44).
As instituições que superintendem a atribuição e titularização de terras demonstram
muitas fragilidades na gestão de terras a nível distrital, como explicou Zito Felisberto Nhatave,
42 anos10 que a principal causa dos conflitos de terra em Marracuene e em qualquer outro canto
do país é a desonestidade. Os líderes locais e os técnicos do SDPI não são honestos. As
declarações de confirmação de residência são assinadas pelas mesmas entidades, os líderes
locais, confirmando que a residência pertence ao “senhor X”. Em troca de algum valor, assinam
uma outra declaração confirmando a titularização da residência ao “senhor y”. O nível da
desonestidade resulta na dupla atribuição, em que se cede ou se vende o mesmo terreno a mais de
uma pessoa, apesar da Constituição da República, Política Nacional de Terras e Lei de Terras
assegurarem que a terra não se vende.
Neste caso, a titularização falha no cadastro da terra na administração por falta de
mecanismos de controlo. O chefe do quarteirão emite uma declaração que confirma que a
residência é do “senhor X”, e a localidade confiando nessa declaração do chefe do quarteirão não
faz a verificação, dá o Parecer passando assim para o posto administrativo, por sua vez, submete
ao SDPI. O SDPI indica técnicos para a consulta comunitária, mas estes nem chegam ao terreno
em troca de algum valor, dá-se o parecer, assina-se e manda-se para província, assim se emite o
DUAT. O “senhor Y” segue o mesmo processo, e emite DUAT do mesmo terreno e no final, os
dois passam a ter DUAT do mesmo lugar. Isso acontece devido a falta de honestidade dos
gestores de terra (Zito Nhatave de 42 anos).
Por outro lado, existem algumas irregularidades denunciadas pelos camponeses, como
por exemplo, procedimentos pouco claros em matéria de atribuição de terrenos, o que leva em
alguns casos a classificarem-se de corrupção (Zandamela, 2015, p.44), como explicou Pedro
Chilaule, 31 anos11: se a distribuição de terrenos fosse imparcial e justa, a maior parte dos
jovens deste distrito teria terreno para habitação no mínimo. Que distrito é esse que não ajuda
10
Entrevista feita no dia 14 de Setembro de 2021 com Juiz de Direito B, no Tribunal Judicial de Marracuene pelas
12: 45:12.

11
Cidadão residente no Distrito de Marracuene, bairro de Agostinho Neto desde a nascença. Entrevista feita no dia
27 de Setembro de 2021 na sua residência, pelas 12:03:51.
58

pelo menos os funcionários públicos a terem terrenos para erguerem uma casinha? Esses
pedidos de terrenos são uma fantochada, você deve molhar a mão das pessoas que trabalham no
SDPI, ou ser amigo ou familiar.
Segundo Valá (2003, p.5), os conflitos de terra podem ser agudos, generalizados e
notórios se:
i) O organismo (ou organismos) que distribui terras não foi legítimo;
ii) Forem usados critérios parciais e discriminatórios, beneficiando ou prejudicando
certas categorias de produtores;
iii) Não houver um espaço de contemplar, na distribuição, todos os grupos que
necessitam de terra; e
iv) A quantidade da terra for menor que o número de indivíduos que necessitam de
terra, ou ainda se houver na zona muita terra não propícia ao desenvolvimento da
agricultura (qualidade das terras).
Para Mandamule (2016, p.4), são as causas dos conflitos de terra as seguintes:
 Crescimento demográfico;
 Expansão das cidades e à procura de terra para habitação que a acompanham;
 Questões culturais ligadas à herança e à tradição;
 Fraco conhecimento da legislação de terras;
 Deficiências na implementação da Lei de Terras e outros instrumentos legais.

Neste estudo foram consideradas cinco factores que causam os conflitos de terra em
Moçambique, mas só dois verificados no local. O primeiro factor geográfico, este condicionado
pela falta de espaço em diferentes cantos da província, principalmente pessoas vindas da cidade
de Maputo e Matola. O segundo, terceiro e quarto não foram observados no campo, apesar de
serem mencionados noutros bairros. O quinto factor, o institucional resume-se fraca capacidade
institucional na titularização da terra, que culmina na dupla atribuição da terra, como mostra o
gráfico resumo das causas dos conflitos de terra em Marracuene, bairro Cumbeza abaixo:
59

Gráfico 3: Causas dos conflitos de terra em Cunbeza

Causas dos conflitos de terra

Causas de Causas de
origem insti- origem
tucional geográfica
50% 50%

Fonte: gráfico elaborado pelo autor com recurso ao Excel (2021).

Segundo a discussão dos dados acima mencionados, os factores geográficos e


institucionais são os mais frequentes e ocorrem de forma igualitária, correspondendo a 50%.
Segundo os dados recolhidos, por um lado, o que causa os conflitos de terra no bairro é a falta de
espaço para fins habitacionais e investimento em diversos cantos, o que leva a maior procura no
distrito e no bairro. Por outro lado, existem fragilidades nas instituições administrativas da terra,
o que resulta na dupla atribuição da terra e esse fenómeno é impulsionado pela compra e venda
de terra. As causas políticas, económicas e políticas de terra não foram identificados no bairro
Cumbeza.
60

CAPÍTULO III: MECANISMOS DE MITIGAÇÃO DOS CONFLITOS DE TERRAS NO


BAIRRO CUMBEZA (2014-2019)
Este capítulo analisa e explica os mecanismos que autoridades comunitárias, autoridades
administrativas e o tribunal judicial tomam como forma de mitigação dos conflitos de terras em
Marracuene, bairro Cumbeza.

3.1. Arbitragem, Mediação e Conciliação

3.1.1. Arbitragem
A palavra “arbitragem” tem origem do latim “arbiter”, e é recorrente sua utilização na
linguagem jurídica para significar procedimento na solução de litígios. Tem como definição o
instituto pelo qual as partes confiam em árbitros para solucionarem seus litígios. Portanto, a
arbitragem é uma solução alternativa de conflitos mais simples e objectiva, por vezes acordados
entre as partes e outra imposta obrigatoriamente pela lei, visa uma resolução das controvérsias
mais célere e eficaz do que o processo judicial, e tem como requisitos a escolha de um árbitro
pelas partes, sem interferência do Estado, sendo que sua sentença assumiria a mesma eficácia de
uma sentença judicial (Furniel, 2017, p.3).

3.1.2. Mediação
A mediação, além de integrar parte do processo também pode ser definida como uma arte
e técnica de resolução de conflitos intermediária, consequentemente, tal instituto é um método de
pacificação social, em que pode ser utilizado nas relações humanas que estão em conflitos, no
qual actuam um terceiro mediador, um agente público ou privado (Furniel, 2017, p.3).

3.1.3. Conciliação
A Conciliação é um processo técnico em que terceiro imparcial actua de forma a auxiliar
as partes a encontrar soluções que atendem seus interesses, dessa forma extinguindo o conflito
que ali existia (Furniel, 2017, p.4).
61

3.2. Instâncias de mitigação dos conflitos de terra no bairro em Marracuene, bairro


Cumbeza (2014-2019)
O estudo feito mostra a existência de três instâncias de arbitragem, mitigação e
conciliação dos conflitos de terras no bairro de Cumbeza: autoridade local, SDPI e Tribunal
Judicial de Marracuene.

3.2.1. Autoridade Comunitárias


As autoridades comunitárias são instâncias institucionalizadas não judiciais de resolução
de conflitos, independentes, que julgam de acordo com o bom senso e a equidade, de modo
informal, desprofíssionalizado, privilegiando a oralidade e atendendo aos valores sociais e
culturais existentes na sociedade moçambicana, com respeito pela Constituição (Lei n.º 24/2007
de 20 de Agosto, aprova a lei de organização judiciária. BR: série I, n.º 33, 2007).
As autoridades comunitárias são as estruturas que, preferencialmente, assumem a função
de articulação entre as justiças comunitárias e a justiça judicial. Estas autoridades comunitárias
exercem um papel proactivo devido ao seu enorme contributo na gestão e na monitoria da
terra e sobretudo na resolução de conflitos de terra que surgem na comunidade. De realçar
que as autoridades locais gozam de uma enorme credibilidade por parte da comunidade por
estas conhecerem melhor as delimitações das terras dos seus respectivos residentes (Chotai,
2017, p.30).
As autoridades locais são reconhecidas pela lei como organismo que devem participar na
resolução e mitigação dos conflitos de terra. Como explicou Ernesto Jaime (44 anos), notificam e
falam com as pessoas, buscando o entendimento entre elas, se não se entenderem vão para o
tribunal comunitário em Michafutene, caso não se entendam, são transferidos para tribunal
judicial. Sempre que há conflitos, conseguem resolver internamente, recorrendo a lei de terra, as
testemunhas de familiares ou vizinhos. Segundo Jaime, é muito importante fazer as pessoas
entenderem que não são suas palavras que dizem que a terra não se vende, mas sim, é a lei, visto
que as pessoas são teimosas. Divulgam a lei de terra, sensibilizam a população para não optar na
venda da terra, porque ela não pode ser vendida e nem servir para pagamento de dívidas, mas as
pessoas dizem que não vendem a terra, mas sim a casa e a casa deles.
Concordando com Ernesto Jaime de 44 anos, Mandamule (2016, p.10), explicou que os
conflitos de terra intra-familiares, por exemplo são resolvidos a nível das comunidades pelos
líderes comunitários (régulos e secretários de bairro), com o envolvimento dos residentes mais
62

antigos da comunidade e as pessoas mais velhas da família. Nestes encontros de concertação, em


que as partes em conflito apresentam as suas reclamações e são ouvidos os membros mais velhos
da família, chega-se a uma conclusão sobre como será feita a partilha do espaço. Caso não se
consiga resolver o problema a nível familiar, o caso é transferido para o tribunal comunitário que
se encarrega de ouvir os envolvidos, avaliar o espaço em disputa, e, com recurso aos
instrumentos legais, proceder à identificação dos verdadeiros beneficiários da terra.
Os conflitos começam no seio da família, na sociedade e são mitigados na sociedade. Não
havendo consenso entre as partes, recorre-se ao terceiro elemento (autoridades comunitárias)
para reivindicar seus direitos. O terceiro elemento é invocado para arbitrar, mitigar e conciliar as
partes, recorrendo ao instrumento legal, a lei de terras. Na perspectiva Dahrendorf e Uate,
quando num conflito, as partes conflituantes não chegam a nenhum consenso, sempre é
recomendável chamar “terceiras pessoas, isto é, instâncias ou pessoas não implicadas no
conflito”, que terão uma transparente e imparcial.

3.2.2. Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estrutura


O SDPI é por excelência, a instituição máxima, responsável pela gestão de terra no
distrito. Exerce um papel proactivo na política de alocação de terra, que exprime dessa forma o
acesso formal à terra, como explicou Aníbal Bechel de 40 anos que os conflitos de terra
constituíam o prato forte dos conflitos no distrito, como resultado da compra e venda de terra,
dupla atribuição, invasões de propriedades e limites entre duas comunidades. O SDPI na
qualidade institucional de gestão da terra no distrito, elabora Plano de Pormenor pegando todos
os pedidos que o distrito recebeu num determinado período. Depois faz a selecção por meio do
sorteio, de seguida são alistados e por fim ocorre a atribuição. Este rastreamento permite reduzir
de forma significativa a dupla atribuição. O Plano de Pormenor é eficaz para reduz a dupla
atribuição.
Ainda Aníbal Bechel de 40 anos, explicou que para a resolução dos conflitos de terra, o
SDPI opta pela divulgação dos instrumentos que regulam a terra, nomeadamente: a Constituição
da Republica, o regulamento territorial e a lei de terra. Nesses instrumentos existem as
proibições. Eles têm divulgado às estruturas do bairro para estarem informadas e sensibilizamos
a população a não pautar por essas vias de troca e de venda porque têm sanções muito pesadas, e
isso, tem surtido efeito, razão pela qual os casos estão reduzindo.
63

Continuou a explicar Bechel (40 anos) que a resolução dos conflitos de terra, o caso
milhulamete por exemplo, o tribunal é que era o responsável pela sua resolução, recorrendo a Lei
de terra, Constituição da República e outros instrumentos legais. Esses, são os instrumentos que
mais usam para resolução dos conflitos desse género.
Como se pode observar, o SDPI na qualidade de ser a instituição mãe da gestão de terra
em Marracuene, actua como instrumento de mitigação dos conflitos de terra localmente,
difundindo os instrumentos legais às autoridades locais e sensibilizando à população a não pautar
em formas consideradas informais na aquisição da terra, de modo que evite os conflitos de terra
futuramente. O SDPI apesar de não intervir directamente na arbitragem dos conflitos de terra
(com os conflituantes), exerce um papel muito importante na elaboração e execução de políticas
de alocação da terra, evitando por exemplo a dupla atribuição.

3.2.3. Tribunal Judicial


Este sector é por excelência uma instituição cuja missão visa dirimir os diversos conflitos
reportados pela comunidade, dado ao seu grande contributo no processo de gestão da terra e
sobretudo pelo seu carácter formal, na gestão e divulgação das normas (Chotai, 2017, p.31). O
tribunal na resolução dos conflitos de terra tem como instrumentos principais: a Constituição da
Republica, a Lei de terras e Lei de Organização Judiciária.
Segundo Zito Felisberto Nhatave de 42 anos os conflitos de terra em princípio são
resolvidos à nível local, dependendo da dimensão do conflito, o tribunal distrital é o último
recurso a se recorrer, isso quando os conflituantes se sintam injustiçados.
Zito Felisberto Nhatave de 42 anos citando a Lei n.º 24/2007de 20 de Agosto sobre Lei
de Organização Judiciária e o artigo 212, número 1 da Constituição da Republica (2004)
explicou que os tribunais têm como atribuições garantir e reforçar a legalidade como factor da
estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos
cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência
legal. Educam os cidadãos no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma
justa e harmoniosa convivência social. Penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de
acordo com o estabelecido na lei.
Zito Felisberto Nhatave Recorreu ainda ao artigo 212, número 2 da Constituição da
República (2004) para explicar que os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem
pleitos de acordo com o estabelecido na lei”. Ademais, “podem ser definidos por lei mecanismos
64

institucionais e processuais de articulação entre os tribunais e demais instâncias de composição


de interesses e de resolução de conflitos. O tribunal judicial actua também como terceiro
elemento, mediando, arbitrando buscando estratégias de mitigar o conflito entre as partes.
Desenvolvido o terceiro capítulo, ficou claro que as autoridades comunitárias, o SDPI e o
tribunal Judicial actuam como mediadores/ negociadores na mitigação dos conflitos de terra
recorrendo a Lei. Neste, as autoridades actuam como terceiro elemento, sendo os negociadores,
sugerem soluções, no entanto não poderão intimidar as partes para que aceitem tais condições.
Na mediação, o terceiro auxiliará os interessados a compreenderem os interesses da outra parte,
para que possam chegar a uma solução consensual por si próprios, dessa forma é vedado aos
mediadores indicar soluções para a resolução do conflito.
65

4. CONCLUSÃO

Em Marracuene e no bairro Cumbeza, predominam duas políticas de acesso a terra, o


acesso formal e o acesso informal. O acesso formal, ocorre por meio de um pedido escrito e
submetido no SDPI. Segundo o estudo feito no campo, percebeu-se que o acesso formal é menos
recorrido para o acesso de terra localmente, correspondendo à 16.7 %. O acesso informal,
engloba as normas e práticas consuetudinárias, boa fé, e venda-compra de terra. Essas práticas de
acesso informal de terra, são as mais predominantes no Bairro de Cumbeza e no distrito,
correspondendo 83%.
Constatou-se ainda a ocorrência de quatro tipos de conflitos, nomeadamente, as invasões
de propriedades, os conflitos intra-familiares, conflitos entre os compradores e conflitos entre os
vendedores e os compradores. As invasões de propriedades são os conflitos com mais
ocorrência, com 55,6 %, destacando desta forma, as invasões à empresa milhulamete pela auto
intitulada população nativa. De seguida, ocorrem os conflitos entre os compradores, com uma
percentagem 22.2. Por último, ocorrem igualmente os conflitos intra-familiares e os conflitos
entre vendedores e compradores com uma percentagem de 11,1. Dois últimos casos são pouco
recorrentes, no bairro Cumbeza. Esses conflitos de terra são de origem geográfico e institucional.
É considerado neste trabalho conflitos de origem geográfico, a falta de terrenos na cidade de
Maputo e cidade da Matola, desencadeando assim, na procura desenfreada de terrenos para
habitação e investimentos no distrito de Marracuene e bairro Cumbeza e os conflitos de origem
institucional resume-se na fraca capacidade institucional na titularização da terra, que culmina na
dupla atribuição da terra e na compra e venda de terra.
Na ocorrência dos conflitos de terra supracitados no Distrito de Marracuene e bairro
Cumbeza, as autoridades locais (tribunais comunitárias), o SDPI e o Tribunal Judicial de
Marracuene actuam como terceiro elemento, como conciliadores, mediadores, ficando na
superfície do conflito. Para a mediação desses conflitos, as autoridades recorrem à Constituição
da República, a lei de terra e testemunhas sendo imparciais, porém são parciais na política de
66

acesso à terra. O trabalho do mediador é de lembrar às partes sobre as leis pertinentes, ajudar as
partes a se comunicarem, encontrando num consenso e identificar soluções desejadas.
As autoridades locais, o SDPI e o Tribunal Judicial de Marracuene são enunciados por
Geoge Semmil e Ralp Dahrendorf como terceiro elemento “mediador - neutro”, para auxiliar na
mitigação de conflitos, baseado no modelo teórico de negociação distributiva ganha-perde
associado à perspectiva determinista estrutural-interaccionista resultado da simbiótica da
perspectiva sociativa de Semmil, Dahrendorf e Uate e determinista de Durkheim, Max e Comte.
Esta perspectiva vê o conflito em estudo como um fenómeno negativo, retardando o
desenvolvimento e criando anarquia na ordem social.
Este estudo constitui um “rito de iniciação”. O caso Milhulamete constitui um
“paradoxo”, isto é, um labirinto que carece de mais investigação. As estruturas que superintende
à área da gestão de terra, parecem ter “uma mão invisível” como mediadores ou facilitadores
nesse processo. Contudo, será que a “população nativa” está reivindicando o direito de uso e
aproveitamento de Terra ou é uma manifestação camuflada sobre o desvio na implementação do
projecto de reflorescimento do cinturão verde para dar lugar à minas de extracção de areia ilegal?
A sua manifestação é legítima?
67

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CIBELE, Cheron et alli. Ética, Alteridade e Autonomia: um referencial de Manejo dos conflitos
em prol da emancipação dos indivíduos. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle
Social: Brasil, 2019.
CORVO, J. Estados e Autoridades Tradicionais em Moçambique nos contextos pré-colonial e
colonial: para uma visão crítica global. Maputo, 1884
EUSÉBIO, Albino José. Os direitos sobre os territórios: ‘comunidades locais’ e os projectos de
desenvolvimento em Moçambique. Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos,
v.03, Outubro de 2019
FURNIEL, Kairon Bruno. Arbitragem, mediação e conciliação: métodos alternativos de solução
de conflitos.ISSN-2675-0104 -v.2, n.2, dez. 2017.
JEREISSATI, Lucas Campos.  Lei de Terras: do contexto histórico às consequências. Revista
Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina: Brasil, 2020.
LUDERMIR, R ; ALVARADO M, L. Conflitos por terra urbana na América Latina e Caribe.
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de
Pernambuco, Brasil, 2017
LUNDIN, Iraê Baptista. Metodologia de Pesquisa em Ciências Sociais. Escolar Editora: Maputo,
Moçambique, 2016.
MAGALHÃES, Félix Augusto. Delimitação de Terras Comunitárias (DTC). Sua contribuição
na segurança de posse de Terras e no rendimento agrícola “por capita” das famílias rurais
em Nicoadala – Zambézia, Maputo, 2014.
MANDAMULE, Uacitissa António. Os conflitos sobre a ocupação da Terra em Moçambique.
In: Observatório do Meio Rural (OMR): Maputo, Moçambique, 2016.
MANHICANE, Tomas Jr. Economia da terra e Redução da pobreza. In: Desafios para a
Investigação social e económica em Moçambique, IESE: Maputo, 2007.
68

MENDES, Pedro Emanuel. Teoria e prática da Negociação Internacional: uma visão


Sociocultural construtivista. População e Sociedade, CEPESE, vol. 34 Porto, dez. 2020.
NEGRÃO, José. A indispensável terra africana para o aumento da riqueza dos pobres. Maputo,
s/d.
OMR. Conflito de terra entre a empresa mulhulamete lda e um grupo de particulares no distrito
de Marracuene. Destaque Rural n.º 15, 2016.
PASSOS, Célia. Mediação, Arbitragem e Composição dos Conflitos Regulatórios,
Relacionamento com outras Agências de Controle. 1. ed. v. 37, Brasília: Inatel, 2010.
SIMMEL, George. O conflito como sociação. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. 2011
SERRA, C.M e CUNHA, F. Manual de Direito do Ambiente. 2ª.ed. Maputo, 2008.
SILVA, Marcos. O Conflito Social e Suas Mutações na Teoria Sociológica: in Qualitas· Revista
Electrónica. Vol. 1. N°. 2. Brasília. 2011.
VALÁ, Salim Cripton. A Problemática da posse de terra na região agrária de Chokwe (1954-
1995), Maputo, 2003
VICENTE, José. Direitos de Propriedade, Terra e Território nos Impérios Ultramarinos
Europeus. Lisboa, Portugal: Graça Almeida Borges, 2014
Monografias, dissertações e teses
BUNGUELE, A.P. Desenvolvimento endógeno em Moçambique: Desafios da política tributária
no orçamento local (1990-2010): ISAP, Maputo, 2015
CHOTAI, Maria Helena de Jesus. Dinâmicas de Acesso, Posse e Conflitos de Terra no Distrito
Municipal KaTembe. Maputo: Faculdade de letras e ciências sociais, UEM, Maputo, 2017
UATE, A, João. Mecanismos e Papel das Autoridades Comunitárias na Resolução de Conflitos
De Terra: Uma análise a partir do Bairro Mali, distrito de Marracuene. Maputo: Faculdade
De Letras e Ciências Sociais, UEM, 2017.
ZANDAMELA, A, Filiciano. Análise das Causas dos Conflitos de Terra nas Zonas de
Tchumene I e II e a Intervenção do Conselho Municipal da Matola (2010 -2014): Maputo,
2015.
Legislações
ASSEMBLEIA POPULAR. Lei n.º 6/79 de 3 de Julho. Aprova a lei de terras. BR, Serie I, n.º 76,
1979.
69

ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA. Lei nº 19/97 de 1 de Outubro. Aprova a Lei de Terras. BR, I


Série, no. 40, de 7 de Outubro de 1997, 1997.
ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA. Lei n.º 24/2007 de 20 de Agosto. Aprova a Lei de
organização Judiciária. BR, série I, n.º 33, 2007.
CONSELHO DE MINISTROS. Decreto-lei nº 5/76 de 5 de Fevereiro, Aprova o Regulamento da
nacionalização de prédios. BR. Serie I, n.º 3, 1976
CONSELHO DE MINISTROS. Decreto nº 66/98 de 8 de Dezembro. Aprova o Regulamento da
lei de terras. BR. Serie I, n.º 48, 1998.
REPÚBLICA DE MOCAMBIQUE. Constituição da República. Imprensa Nacional de
Moçambique. E.P: Maputo, 2004.
70

6. APÊNDICES E ANEXOS

Inquérito sobre os conflitos de terra entre a Empresa MilhulameteLda e a comunidade local –


distrito de Marracuene (Moradores do bairro Cumbeza)
O “X” representa as respostas mais adequadas ao questionário
Identificação do respondente
Local de Na Na Outros
Nome Sexo M F Idade Quarteirão entrevista Casa Rua

5 Anos
P1 A quanto tempo mora no bairro? 5 – 10 Anos
Mais de 10 anos
Desde o tempo colonial vivo aqui
Casa dos meus pais
P2 Como obteve este terreno onde vive? Herança
Comprei
Outros
Especifique:

Não
P3 Você tem algum documento de propriedade do Sim
terreno onde mora? Não sei
Especifique:

Habitação
P4 Como tem gerenciado a terra? Prática da agricultura
Prática das actividades económicas
Conservação das espécies florestais
Especifique:

Sim
P5 Tem havido conflitos de terras neste bairro? Não
Não sei
Especifique:

Fraco conhecimento da legislação de terras


P6 Quais as causas desses conflitos? Deficiências na implementação da Lei de
71

Terras e outros instrumentos legais


“Compra e venda” de terra
Outras

Especifique:

Intrafamiliar
Intracomunitário
P7 Que tipos de conflitos de terra ocorrem neste Intercomunitário
bairro?
Extracomunitários
Invasões comunitárias
Outros
Especifique:

R8:
P8 Quem são os autores desses conflitos

P9 Como as autoridades resolvem os conflitos R9:


de terra?

Assinatura do inquiridor Assinatura do inquerido

___________________________ ___________________________

Inquérito sobre os conflitos de terra entre a Empresa MilhulameteLda e a comunidade local –


distrito de Marracuene, adaptado para autoridades locais, SDPI e Tribunal Judicial

O “X” representa as respostas mais adequadas ao questionário


Identificação do respondente
Cargo/categoria
Nom Sexo M F Idade
e

5 anos
P1 A quanto tempo trabalha nesta instituição? 5 – 10 Anos
Mais de 10 anos
Existe uma política distrital de alocação de Sim
P2 terras? Não
72

Especifique:

Além da política supracitada, existem Sim


P3 outras formas de aquisição de terras no Não
distrito?
Especifique:

Não
P4 O distrito tem recebido pedidos de terra/
terreno? Sim

Habitação
P5 Os pedidos de terra/terreno, são destinados Prática da agricultura
para fins? Prática das actividades económicas
Conservação das espécies florestais
Especifique:

Sim
P6 O distrito tem vivenciado situações de Não
conflitos de terras? Não sei
Especifique:

Fraco conhecimento da legislação de terras


P7 O que causa os conflitos de terra? Deficiências na implementação da Lei de
Terras e outros instrumentos legais
“Compra e venda” de terra
Outras
Especifique:

Intrafamiliar
Intracomunitário
P8 Que tipos de conflitos de terra ocorrem Intercomunitário
com frequência? Extracomunitários
Invasões comunitárias
Outros
Especifique:

Assinatura do inquiridor Assinatura do inquerido


___________________________ __________________________
73

Guião de entrevistas

I. Dados pessoais:
Nome:
Sexo:
Idade:

II. Conteúdos para entrevistas


II.1. Como funciona é o processo de acesso à em Marracuene e no bairro Cumbeza em
particular?
II.1.1. Como acontece esse processo de acesso e posse de terra, isto é, que procedimentos
devemos ter em conta para ter o acesso à terra?

II.2. Existem conflitos relacionados à gestão da terra?


II.2.1. Que tipo de conflitos de terra ocorrem neste bairro? Como se manifestam esses
conflitos? Quem são os autores desses conflitos?
II.2.2. Quais são as causas desses conflitos?

II.3. Que mecanismos as autoridades implementam para mitigar esses conflitos?


II.3.1. Que fazem as autoridades locais aquando resolução dos conflitos?
II.3.2. Que tem feito o Tribunal Judicial de Marracuene nesse processo de mitigação dos
conflitos de terra?
II.3.3. O SDPI na qualidade de órgão máximo que superintende a área de gestão de terra no
Distrito, que têm feito para mitigar esses conflitos?
74
75

Você também pode gostar