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Hezbollah: Organização Terrorista ou Anseio de uma Nação

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Renatho Costa
Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
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HEZBOLLAH:
ORGANIZAÇÃO TERRORISTA OU ANSEIO DE UMA NAÇÃO?

Por Renatho Costa

Foco de questões de difícil solução, há muito que o Oriente


Médio vem despertando o interesse da comunidade internacional.
Alguns analistas entendem que as desavenças têm origem na religião;
outros, que se trata de um problema de cunho político-econômico; e
ainda há os que claramente defendem a idéia de um choque de
civilizações em curso. Assumir uma das argumentações é o mesmo que
rejeitar completamente a outra, tal é o grau de tensão. Entretanto, nesse
cenário complexo, e com a existência de apenas uma superpotência –
os Estados Unidos –, refutar os métodos utilizados pelo governo norte-
americano na implementação da luta contra o terrorismo proveniente
dos islamitas significa estar passível a intervenções militares e/ou
boicotes econômicos/comerciais.
Apesar da abismal disparidade entre as partes, os eventos de 11 de
setembro de 2001 mostraram que o surgimento de um novo modelo de
conflito estaria em curso, que os paradigmas anteriores deveriam ser
abandonados e que somente a aceitação imediata dessa nova realidade
possibilitaria a reformulação conceitual das relações internacionais.
Muito mais que destruir edifícios, os aviões utilizados pela organização
fundamentalista islâmica Al Qaeda abalaram os alicerces da única
potência mundial e provaram que o conflito seria travado em outros
campos, onde o poderio bélico teria apenas uma importância relativa.
Além de ressaltar a fragilidade dos EUA, tornou-se flagrante que
as organizações fundamentalistas islâmicas tinham alcançado um
patamar superior em sua luta. Anos antes a organização xiita libanesa,
Hezbollah, tinha provocado impacto semelhante com a explosão do
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quartel dos Marines, que serviam às forças de paz da onu no Líbano,
em 1983. O Hezbollah empregara pela primeira vez o homem-bomba,
e o resultado foi o pânico dos estadunidenses e a cobrança da
sociedade norte-americana por ter levado seus filhos à morte em um
conflito que não lhes dizia respeito, pelo menos não de maneira direta.
Os eua recuaram e, assim, a luta do Hezbollah recebeu seu primeiro
grande incentivo.
Retomando os acontecimentos de 11 de setembro, pode-se dizer
que já não seria possível tratar as ações dos fundamentalistas islâmicos
como fatos isolados e com repercussão apenas no panorama local. Os
países foram obrigados a se posicionar a fim de obter explicações para
eventos tão contundentes.
Não se tratava somente de um alinhamento aos EUA ou às
organizações islâmicas. Os Estados não estavam mais diante de uma
ação simplista, como a proposta pelo presidente dos EUA, George W.
Bush, na qual tudo se limitava em: quem não estivesse a favor dos
EUA seria seu inimigo.
Independente dos desdobramentos que a posição norte-americana
provocou, o intuito deste artigo é mostrar que nem sempre a visão
difundida por um ator hegemônico deve ser assumida como uma
proposta fechada e isenta de discussão. O próprio processo de
globalização mostra que há uma via de mão-dupla, independente da
supremacia de algumas potências.
Em resposta aos atentados da al-Qaeda, houve uma ação militar
incisiva contra o Afeganistão e, como conseqüência imediata, o tema
do terrorismo internacional não apenas começou a ser discutido nos
meios acadêmico e militar, como também ganhou as primeiras páginas
dos mais importantes jornais do globo. Sob certo aspecto, o grande
público, ao tomar ciência dos acontecimentos, deixou de ser um
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cúmplice passivo do Estado e passou a assumir, em conjunto, a
responsabilidade pelos atos de seus governantes. Por outro lado, a
comunidade muçulmana, devido à massificação das notícias e à
supremacia dos veículos de comunicação ocidentais, tornou-se alvo de
críticas nem sempre fundamentadas.
Em muitos lugares do mundo passou-se a utilizar como sinônimo
de terrorismo, o fato de ser muçulmano, islâmico, maometano etc.
Dificilmente encontraram-se vozes para, antes, distinguir quem era
quem no complexo mundo muçulmano e somente depois diferenciá-los
dos fundamentalistas.
Hoje, não é mais possível atribuir indistintamente a alcunha de
terrorista a um país muçulmano sem que ocorra, no mínimo, um grave
incidente internacional. Organizações fundamentalistas existem dentro
de várias comunidades, não constituindo prerrogativa dos
muçulmanos. Na verdade, foi aos radicais protestantes nos EUA que se
atribuiu pela primeira vez o termo fundamentalista — ocasião em que
ocorreu o Segundo Grande Despertar1 no final do século XVIII —, só
então é que ele passou e ser difundido internacionalmente e associado
aos islâmicos.
Apesar de inaceitáveis para a comunidade internacional as ações
terroristas comandadas pelo Al Qaeda, antes de assumir uma posição
pró ou contra as atitudes de uma organização fundamentalista, é
imprescindível conhecer a história de seus integrantes, bem como suas
motivações políticas, econômicas e religiosas. De maneira que — e
admitindo que as investidas dos fundamentalistas islâmicos são na
verdade uma resposta ao processo colonizador ocidental — torna-se
relevante a suposição de Samuel Huntington no que concerne ao
choque das civilizações, onde o cientista político norte-americano
observa que
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o problema subjacente para o Ocidente não é o
fundamentalismo islâmico. É o Islã, uma civilização
diferente, cujas pessoas estão convencidas da superioridade
de sua cultura e obcecadas com a inferioridade de seu
poderio. O problema para o Islã não é a CIA ou o
Departamento de Defesa dos Estados Unidos. É o Ocidente,
uma civilização diferente cujas pessoas estão convencidas
da universalidade de sua cultura e acreditam que seu poderio
superior, mesmo que em declínio, lhes impõe a obrigação de
estender sua cultura por todo o mundo. Esses são os
ingredientes básicos que alimentam o conflito entre o Islã e
o Ocidente. (1997, p. 273)

No intuito de analisar com mais objetividade a estrutura e as


motivações de uma organização fundamentalista islâmica, a escolha do
modelo voltou-se para o Hezbollah, que surgiu com uma proposta clara
– expulsar os israelenses de seu território –, porém vem se
transformando, e hoje tem sua legitimidade questionada, ao menos pela
comunidade internacional.
Como base para a discussão proposta, este artigo revisitará a
história do Islã, do Líbano e, particularmente, do xiismo, a fim de
encontrar seus elementos centrais e, em seguida, agregar dois conceitos
importantes nessa discussão: soberania e terrorismo. Ao final,
tentaremos encontrar uma resposta à pergunta: seria o Hezbollah uma
organização terrorista ou o anseio de uma nação?

LÍBANO, A PORTA DO ORIENTE

Para refazer de maneira breve esse panorama histórico, abordando


os principais fatos que repercutiram na estrutura atual do Líbano, é
preciso salientar que a construção do Estado libanês, nos moldes do

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que conhecemos atualmente, é algo bastante recente e data do início do
século XX.
A região que abrange o Líbano e a Síria sempre foi conhecida
como Síria, ou Grande Síria, território que, no começo, foi habitado
pelos fenícios (século XVI a.C.), mas logo foi invadido e dominado
por vários povos. A partir do século vii d.C., com difusão do Islã por
todo Oriente Médio, houve uma grande mudança cultural, que logo
ampliaria sua zona de influência.
A proposta do profeta Maomé2 encontrou eco em várias
localidades do Oriente Médio e em seguida se expandiu pelo Norte da
África, Sudoeste Asiático, Península Ibérica e também adentrou a
Europa através dos Bálcãs. A nova religião, que em muitos aspectos
utilizava dogmas dos cristãos e judeus, propunha o abandono do
politeísmo e o encontro com o Deus único e supremo, Alá. As palavras
do Corão teriam sido ditadas por Deus diretamente a Maomé para
servir de guia aos muçulmanos, independente de diferenças
socioeconômicas. A magnitude do Islã não demorou muito para fazer
frente ao cristianismo, gerando o conflito que deu origem às Cruzadas 3.
Entretanto, mesmo tendo se alastrado rapidamente, o Islã não
pode ser visto como uma religião uniforme, devido às peculiaridades
regionais que assumiu. Houve divergências e conflitos entre os
seguidores, sobretudo com a morte de Maomé, em 632 d.C. Na
verdade, o maior problema estava na sua sucessão. Dois grupos se
formaram: o dos sunitas, que queriam que o sucessor do profeta fosse
um homem respeitado e profundo conhecedor do Islã; e o dos xiitas,
que desejavam que a sucessão permanecesse dentro da família do
profeta, na tribo dos coraixitas. Não chegaram a um consenso, e isso
acabou dando origem ao cisma na religião muçulmana.

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A maioria dos muçulmanos abraçou a crença à maneira dos
sunitas, fazendo com que seus líderes, os califas, logo alcançassem a
supremacia no Islã. Ao longo dos séculos, várias dinastias se
sucederam, mas apenas em episódios isolados os xiitas estiveram no
poder. Um exemplo clássico é o dos fatímidas, no Egito — conhecidos
dessa maneira por serem descendentes de Fátima, a filha do Profeta.
Diante das várias perseguições religiosas, muitos xiitas buscaram
abrigo no Líbano, mais precisamente no que é hoje o Sul do país. E foi
nessa região que um grupo em particular de xiitas se refugiou, os
adeptos do duodécimo, assim chamados por admitirem a legitimidade
dos sucessores de Maomé apenas até o décimo segundo imã4.
Depois de muitos conflitos e alternância de dominações, os
muçulmanos foram dominados pelo Império Otomano, no século XVI,
cujo sultão era Selim I. E, dentro desse império, a região conhecida
como Monte Líbano passou a ter uma administração semi-autônoma,
conforme era permitido a algumas localidades.
O Monte Líbano já abrigava cristãos maronitas5 e drusos6. Porém,
em 1858, do atrito entre esses grupos eclodiu um conflito sangrento,
onde os drusos acabaram massacrando seus adversários. Para pôr um
fim ao conflito, tropas ocidentais se deslocaram pela primeira vez
àquela região. Os franceses, somando forças com os otomanos,
restabeleceram a ordem. E, a partir desse momento, a província passou
a ser governada por um otomano.
Vale salientar que o Monte Líbano já buscava sua autonomia no
início do século XX. Mas, devido à interferência das potências da
época, a região acabou sendo dividida mais uma vez e ganhou novos
territórios – aliás, fato gerador de ressentimentos até hoje, uma vez que
as áreas anexadas pertenciam historicamente à Síria.

126
Em 1916, durante a Primeira Grande Guerra, o Reino Unido e a
França assinaram, com a anuência da Rússia, o Tratado de Sykes-
Picot, no qual o Oriente Médio foi dividido em regiões sob sua tutela e
zonas de influência. Posteriormente houve o desmembramento do
território e a criação artificial de Estados em uma área com
características completamente diferentes das ocidentais. Os
desdobramentos dessa forma de dominação culminaram na instituição
do Mandato, que foi formalizado no Pacto de 1919 e deu origem à Liga
das Nações. O Mandato era uma forma de dominação similar ao
colonialismo na qual legitimava-se a idéia de que alguns povos
estavam em estágio superior de desenvolvimento político/cultural, o
que os autorizaria a assumir mandatos sobre outros tidos como
inferiores. De fato, as limitações eram semelhantes às impostas pelo
colonialismo, e o país que exercia a supremacia controlava setores
fundamentais da política e do exército.
No Líbano, já aconteciam intensos movimentos contra o Mandato
francês. A aversão ao Ocidente fomentava o surgimento de alianças
entre cristãos e muçulmanos. Durante o período da Segunda Guerra
Mundial, assim que a França foi dominada pelas tropas de Hitler, o
Líbano passou a sofrer intervenções dos nazistas. Mais adiante, ainda
durante o conflito, os protestos dos libaneses ficaram mais violentos,
culminando com a independência do país em 1943.
Um fato de grande importância, que acabou fortalecendo o
processo de independência, foi o firmamento do Pacto Nacional, entre
cristãos e muçulmanos. Com base no Censo Populacional de 1932, que
apresentava uma ligeira maioria cristã, foi implementada a fórmula de
governo em que haveria um presidente maronita, um primeiro-ministro
sunita e um chefe da câmara xiita.

127
A fórmula, no entanto, foi questionada pelos muçulmanos, em
especial pelos xiitas. A queixa era de que, no Parlamento, os deputados
também respeitavam a proporção de seis por cinco das cadeiras em
favor dos cristãos – diferença que excluía os muçulmanos das decisões
relativas à política interna e externa do país. Este fato agravava ainda
mais a situação de sub-representatividade política e a desigualdade
social, que já era crítica.
Paralelamente aos entreveros da política libanesa, a criação do
Estado de Israel em 1947 repercutiu de forma direta na ordem interna
do Líbano: primeiro, porque o Líbano havia aderido à Liga Árabe e,
diante dos compromissos assumidos, deveria lutar ao lado dos países
árabes contra qualquer ameaça estrangeira, o que acabou não
ocorrendo; segundo, porque, com a derrota dos países árabes diante de
Israel, o Líbano se tornou o maior receptor de refugiados palestinos em
1948, algo que lhe causaria problemas sociais e, no futuro, seria o
principal argumento à criação do Hezbollah.
Cada vez mais o poder se fragmentava no Líbano. O governo
central, na década de 1950, tinha grande dificuldade para ser
reconhecido como legítimo pela população muçulmana, já majoritária
então. Do rol de argumentos utilizados para rechaçá-lo, o principal era
calcado na crítica à política sectarista implementada. Mas, apesar dos
protestos, os maronitas não autorizavam a elaboração de outro censo, o
qual ratificaria essa mudança do perfil social dos libaneses e abriria a
possibilidade de os muçulmanos ampliarem sua participação política.
Assim, assumiam claramente que não estariam dispostos a abrir mão
da presidência.
O primeiro grande enfrentamento entre os grupos rivais ocorreu
em 1958, dando início à guerra civil no Líbano. Nessa altura dos
acontecimentos, o país já estava dividido em áreas de influência. Na
128
verdade, essa divisão sempre existiu, pois as famílias exerciam grande
influência em suas regiões para eleger seus representantes no
Legislativo.
O presidente libanês, Camille Chamoun, para pôr um fim à crise,
evocou a Doutrina Eisenhower7 e solicitou a ajuda dos Estados Unidos,
alegando que o país poderia sofrer intervenção dos soviéticos. Tal
justificativa amparava-se no fato de a Síria e o Egito terem iniciado um
processo de unificação que culminaria na República Árabe Unida
(RAU), projeto pan-arabista apoiado pela urss, notória aliada da Síria
durante o período da Guerra Fria.
Os Estados Unidos chegaram a intervir ainda em 1958, porém a
situação se manteve relativamente calma por pouco tempo. A insistente
política sectarista dos maronitas empobrecia cada vez mais os
muçulmanos, sobretudo aqueles que não viviam na capital, Beirute. De
modo que as regiões Sul e a conhecida como Vale do Bekka, na
fronteira com a Síria, foram as localidades mais afetadas pela ausência
do Estado. Em ambas o predomínio populacional era de xiitas.
O clima de tensão entre os libaneses se agravava. Tanto que um
ataque cristão a um ônibus lotado de palestinos em Beirute, em 1975,
acabou sendo estopim para a eclosão da segunda guerra civil no
Líbano.
A partir desse evento, o Estado se fragmentou em zonas sobre as
quais não exercia nenhum domínio, porém manteve suas instituições
políticas. Ainda havia um presidente, e o processo eleitoral jamais
deixou de existir. Mesmo assim, a predominância dos manoritas no
poder fez com que as organizações islâmicas suprissem a ausência do
governo nas camadas mais pobres da sociedade. O Afwaj al
Muqawamah al Lubnaniyyah (AMAL) – cuja tradução é
Destacamentos da Resistência Libanesa ou esperança, lendo-se apenas
129
a sigla –, liderado por Musa al Sadr, foi a primeira grande organização
xiita a surgir, ainda em 1975.
O Líbano acabou se transformando no foco de tensão no Oriente
Médio, bem como no local onde se travava a verdadeira luta pela
independência da Palestina. Nesse período, o Sul do Líbano já estava
tomado pelos campos de refugiados palestinos que, indiretamente,
colocavam os xiitas na linha de fogo, tendo em vista que seu território
acabava sofrendo, também, com os bombardeios israelenses.
Em 1976, quando estava relativamente equilibrada a guerra entre
os grupos pró e contra palestinos, o governo maronita implementou
uma ação estratégica ao substituir o apoio israelense pelo da Síria, que,
imediatamente, destacou seu exército para intervir no conflito. Essa
intervenção permanece até hoje.
Mesmo com a presença das tropas sírias, os conflitos não
diminuíram. Sofrendo com os ataques em sua fronteira norte, Israel
programou uma grande represália em 1978, conhecida como Operação
Litani, cuja meta principal era enfraquecer as bases da Organização
para a Libertação da Palestina (OLP), ao sul do Líbano. Atitude, aliás,
que foi rechaçada pela opinião pública internacional, a ponto de a
Organização das Nações Unidas (ONU) baixar a Resolução 425,
exigindo a retirada imediata de Israel de território libanês. Diz o
documento:
Convencido de que a situação atual impede a realização de
uma paz justa no Oriente Médio,
1. Pede que se respeitem estritamente a integridade
territorial, a soberania e a independência política do Líbano
dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas.
2. Exorta a Israel que cesse imediatamente sua ação militar
contra a integridade territorial libanesa e retire sem demora
suas forças de todo o território libanês.

130
3. Decide, à luz da solicitação do governo do Líbano,
estabelecer imediatamente, abaixo de sua autoridade, uma
força provisional das Nações Unidas para o Líbano
Meridional com a finalidade de confirmar a retirada das
forças israelenses, restaurar a paz e ajudar o governo do
Líbano a assegurar o restabelecimento de sua autoridade
efetiva na região, força que deverá ser integrada por
participantes dos Estados-membros.

Apesar da formalização do ilícito internacional, as medidas


propostas pela Resolução não alcançaram o resultado esperado. Houve
apenas um recuo estratégico por parte de Israel, que passou a financiar
uma milícia cristã — South Lebanon Army (SLA) — ao Sul do Líbano
para proteger a fronteira.
Em 1979, o contexto regional se torna ainda mais complexo com a
Revolução Islâmica no Irã. Era a primeira vez que um regime
predominantemente islâmico assumia o poder. Isso causou grande
preocupação ao Ocidente e, ao mesmo tempo, fez os xiitas
vislumbrarem a possibilidade de inverter sua situação no Líbano. E não
demorou muito para o xiismo alcançar um status jamais vivido pelos
muçulmanos no mundo moderno.
Os anos 1980 se caracterizaram pelo enrijecimento da luta entre
israelenses e palestinos. O reflexo imediato foi sentido pelo Líbano,
que abrigava a OLP e seu líder Yasser Arafat. O fato que repercutiu
diretamente na criação do Hezbollah foi a segunda invasão israelense
ao Líbano em 1982. Sob a denominação de Operação Paz para a
Galiléia, as tropas israelenses marcharam até Beirute, onde
conseguiram fazer com que Arafat e a OLP deixassem o país e se
refugiassem na Tunísia.
Mas a vitória israelense não foi completa. Ocorreu um massacre
nos campos de refugiados de Sabra e Shatila. Mais de 2 mil palestinos

131
foram assassinados pela milícia cristã sla, enquanto o exército
israelense cercava a região e impedia a entrada de qualquer ajuda às
vítimas, tampouco permitindo que fugissem. Foram três dias de
brutalidade que marcariam para sempre o conflito.
A comunidade internacional repudiou novamente a ação
israelense. No entanto, Israel se manteve firme. Apenas concordou em
retirar seus exércitos de Beirute. Suas tropas recuaram até o Sul do
Líbano para criar a zona de segurança, abrangendo aproximadamente
10% do território libanês.
A presença israelense no Líbano durante o período da guerra civil
serviu para realçar as diferenças entre os grupos em conflito e reforçar
os questionamentos acerca da existência de uma nação libanesa.
Thomas Friedman, que, na década de 1980, cobria os conflitos no
Líbano como correspondente do The New York Times, assim
apresentou suas impressões no livro De Beirute a Jerusalém, no que se
refere à heterogeneidade libanesa e da conseqüente dificuldade em
enquadrar seu povo no conceito de Estado-nação:
O indivíduo libanês deriva tradicionalmente sua identidade
social e apoio psicológico de suas filiações primordiais:
família, bairro, ou comunidade religiosa; dificilmente da
nação como um todo. Sempre fora druso, maronita ou sunita
antes de se considerar libanês; e sempre membro dos clãs
dos Arslan ou Jumblat, antes de ser druso; ou parte dos clãs
maronitas Gemayel ou Franjieh, antes de ser maronita. A
guerra civil e a invasão israelense só fizeram reforçar essa
tendência, dividindo os libaneses em microfamílias, ou
comunidades de aldeias ou religiosas muito mais unidas,
ainda que os afastasse mais uns dos outros enquanto nação.
(1991, p. 56)

Em cumprimento à Resolução 425, foi criada uma força de paz


para auxiliar na pacificação no Líbano, a United Nations Interim Force

132
in Lebanon (UNIFIL). O grupamento era tido como internacional, mas
basicamente integrado por norte-americanos. A unifil cumpriu
parcialmente sua função ao auxiliar na saída da OLP do Líbano, porém
perdeu legitimidade ao ficar do lado dos cristãos em alguns episódios
da guerra civil em curso. Com isso, o ódio dos muçulmanos aos
ocidentais se intensificou.
Para marcar definitivamente a repulsa dos muçulmanos com a
presença ocidental no Líbano, um grupo extremista planejou o
primeiro atentado da história em que seria utilizado um homem-
bomba. Era 1983. Alvo escolhido: o quartel dos Marines. Morreram
241 militares. A ação alcançou seus fins e, pouco tempo depois, o
exército norte-americano deixou o Líbano.
Dois anos mais tarde, fortemente apoiada pelo Irã e pela Síria,
uma dissidência do amal passou a assumir uma postura mais extremista
acerca da situação do Líbano. Surgia o Hezbollah, que logo divulgou
um manifesto em cujas bases ficavam claras suas intenções e
influências:

Nós, os filhos da nação do Hezbollah no Líbano, a quem a


vanguarda de Deus deu a vitória no Irã e que estabeleceu o
núcleo do Estado central islâmico do mundo, suportado
pelas ordens do único comando sábio e justo incorporado,
atualmente, no exemplar supremo do aiatolá Khomeini.
A partir dessa base, nós, no Líbano, não somos uma
estrutura organizacional fechada, nem uma estrutura política
estreita, mas uma nação interconectada com todos os
muçulmanos do mundo. Nós estamos ligados por uma forte
conexão ideológica e política — o Islã.
[...] Nós não temos uma ala militar separada e que seja
independente de nossos corpos. Todos nós somos soldados
quando se levanta o chamado pela Jihad e cada um de nós
deve cuidar de sua missão na batalha de acordo com as
bases legais de sua obrigação. Alá está atrás de nós, dando
133
suporte e proteção enquanto se instala medo no coração de
8
nossos inimigos. (JABER, 1997, p. 54-55)

Desse episódio em diante, a organização passou a lutar pela


retomada da soberania do Líbano, cujo principal empecilho era a
presença israelense. No Sul do país, onde havia o domínio da OLP, o
Hezbolah montou suas bases e campos de treinamento. Em pouco
tempo se transformou no principal grupo armado em ação no Líbano.
A guerra travada entre o Hezbollah, Israel, Síria, Líbano e Irã não
apresentava perceptivas de chegar ao fim devido à fragmentação do
Estado libanês e à presença de grande quantidade de palestinos no país.
Em 1990, começaram as negociações para pôr um fim ao conflito que
havia dizimado a população e transformado a cidade de Beirute num
monte de escombros. Foi negociado, então, o Acordo de Taif, no qual
ficou acertado o cessar-fogo a partir da saída de Israel e Síria do
território libanês. Em contrapartida, várias milícias em atividade no
país seriam desarmadas.
A guerra teve seu fim, mas não da maneira acordada. Israelenses e
sírios não deixaram o país, e o Hezbollah se recusou a depor armas
enquanto Israel não retirasse suas tropas. À parte as dificuldades
iniciais, houve a sinalização de que seria possível diminuir as
diferenças entres os grupos religiosos no tocante à política local. Os
maronitas aceitaram aumentar a participação dos muçulmanos no
Congresso, e o Hezbollah se tornou um partido político. Logo no
primeiro pleito, elegeu oito congressistas.
A situação na fronteira entre Líbano e Israel, no entanto, não se
resolveu. Pelo contrário, os seqüestros de ocidentais e os atentados
provocados por homens-bomba por parte dos xiitas fizeram com que a
direita israelense cobrasse a tomada de medidas mais incisivas contra o
Hezbollah e as organizações terroristas palestinas.

134
Em 1993 e 1996 Israel ainda empregou duas grandes incursões
militares contra o Líbano: Operação Accountability e Operação Vinhas
da Ira. Em ambas, os efeitos foram desastrosos, e o questionamento
acerca da legitimidade da estratégia implementada pelos israelenses
passou a ser o cerne do conflito.
Enquanto acontecia a luta em campo, a OLP e o governo de Israel
buscavam uma saída para a Questão Palestina. Reuniões em Madri
(1990) e Oslo (1993) entre lideranças palestinas e israelenses tentaram
negociar a paz. Infelizmente, não chegaram a um acordo definitivo. E,
em 1996, com a Operação Vinhas da Ira, tornou-se mais difícil o
panorama no Oriente Médio.
O Hezbollah tinha o respaldo da comunidade xiita, já maioria no
Líbano. De modo que as constantes ações militares da organização
libanesa, que cada vez mais ganhava terreno no Sul do Líbano, fizeram
os israelenses cogitarem sua saída do país como uma atitude
necessária. Em Israel, o gabinete do primeiro-ministro Ehud Barak
(1999-2001) estabeleceu um plano para retirar de forma gradual suas
tropas do Líbano. Contudo, o South Lebanon Army (SLA), milícia que
dava suporte ao exército israelense na zona de segurança e que
manteria a retaguarda para a implementação do plano, foi perdendo
posições para o Hezbollah, até se dissolver completamente. Israel, sem
poder contar com seus aliados, deixou o Líbano seis semanas antes do
que havia programado. Em maio de 2000, o Líbano estava livre dos
sionistas.
Apesar de ter provocado o recuo das tropas de Israel – o que não
deixava de ser uma grande vitória, pois era a primeira vez que um
grupo ou Estado muçulmano conseguia obter algum ganho num
conflito contra os sionistas, sem ter havido barganha –, o Hezbollah
não depôs suas armas. Com isso, os objetivos da organização passaram

135
a ser questionados com maior veemência por parte da opinião pública
internacional.

SOBERANIA EM QUESTÃO

Para o mundo ocidental o tema da soberania está diretamente


ligada ao conceito de Estado moderno. Quando se entende a função do
Estado e suas atribuições, automaticamente é associada à idéia de que
ele deve manter sua soberania, ou seja, seus limites territoriais e sua
capacidade de autogestão. J. R. Resek expressa a importância desse
valor ao classificá-lo como ―atributo fundamental do Estado, a
soberania o faz titular de competências que, precisamente porque
existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas; mas
nenhuma outra entidade as possui superiores‖ (2000, p. 216).
Ainda segundo o jurista, para haver um Estado é necessário que
sejam atendidos três preceitos básicos: povo, território e governo. Já
nessa questão encontramos algumas dificuldades para classificar o
Líbano como um Estado soberano, pois não há uma nação vivendo em
território libanês, e a diversidade étnico-religiosa sempre dificultou a
integração e salientou as diferenças.
No item relativo ao território, retomamos a narrativa histórica para
ressaltar que a divisão do Estado ocorreu baseada exclusivamente em
interesses externos, e a própria separação da Síria provocou
ressentimentos, o que faz a demarcação do Estado libanês ser
questionada até os dias de hoje. A última condição, que diz respeito ao
governo, é onde se encontra mais dificuldade em relacioná-lo ao
Líbano; os muçulmanos sempre se viram sub-representados em todas
as instâncias de poder dominadas pelos maronitas.

136
Contradições teóricas à parte, é inegável que o Líbano possui o
reconhecimento da comunidade internacional e atua nessa esfera de
poder como um ator soberano. As diferenças quanto ao modelo estatal
são tratadas como problemas internos. Aqui, vale ressaltar que, ao
levantarmos questionamentos relativos ao conceito de soberania,
estamos utilizando o paradigma ocidental, reconhecido por grande
parte das nações do mundo como sendo de valor universal. O próprio
modelo de Estado-nação é defendido pela Organização das Nações
Unidas, assim como outros princípios. Por outro lado, não se pode
desconsiderar novamente o fato de que a onu é uma organização criada
pelo Ocidente na tentativa de evitar a supremacia de um Estado sobre
os demais, evitando, dessa maneira, novas guerras, como as duas que
devastaram a Europa.
Abstraindo essa visão ocidental do termo soberania, é possível
encontrar dois movimentos históricos que apresentam divergências
quanto à sua aplicação. Logo no início do século xx, com o
enfraquecimento do Império Otomano, o sultão Abdul Hamid II tentou
fortalecer o sentimento pan-islâmico, no intuito de não ver seu
território fragmentando. Segundo ele, a soberania estava ligada à nação
islâmica, e não diretamente ao território. O movimento não teve
sucesso. E a forte corrente nacionalista, já presente na Turquia, Síria e
Líbano, fez com que a idéia fosse esquecida.
Após a revolução egípcia de 1952, sob a liderança de Gamal
Abdel Nasser, o Oriente Médio se viu diante do pan-arabismo, cuja
proposta criava distinções dentro do Islã, reafirmando a supremacia
dos árabes sobre os demais. Unificar o mundo árabe para restaurar o
poder que seu povo teve em séculos passados era o principal objetivo
de Nasser, que foi alcançando êxito com a vitória moral contra Israel,

137
Grã-Bretanha e França diante da questão do Canal de Suez, em 1957,
quando proclamava discursos inflamados:
O Egito nacionalizou a Companhia do Canal do Suez.
Quando o Egito cedeu a concessão a Lesseps, ficou
estabelecido, entre o governo egípcio e a companhia, que
esta era egípcia e sujeita à autoridade egípcia. O Egito
nacionalizou esta empresa egípcia e declarou que a liberdade
de navegação será preservada. Mas os imperialistas ficaram
zangados. A Grã-Bretanha e a França disseram que o Egito
se apoderou do Canal do Suez como se este fosse parte da
França ou da Grã-Bretanha. O ministro dos Negócios
Estrangeiros britânico esqueceu-se de que apenas há dois
anos assinou um acordo declarando que o Canal do Suez é
parte integral do Egito. O Egito declarou-se pronto a
negociar. Mas logo que as negociações começaram,
apareceram as ameaças e as intimidações...
[...] Defenderemos a nossa liberdade e independência até a
última gota do nosso sangue. Este é o mais profundo
sentimento de cada egípcio. Todo o mundo árabe ficará do
nosso lado nesta luta comum contra a agressão e a
dominação. Povos livres, também, povos que são realmente
livres, vão ficar conosco e apoiar-nos contra as forças da
tirania. (15 de setembro de 1956) (DOSSIER IRAQUE)

O partido Baath, na Síria e no Iraque, também simpatizava com a


idéia de unificação dos árabes. A cartada final para concretizar a
recuperação da soberania árabe se deu em 1958, quando a Síria,
fortemente influenciada por Moscou e na iminência de fazer com que o
pró-soviético Khalid Bakdash alcançasse o poder, solicitou que o Egito
implementasse urgentemente a Federação Árabe. Na ocasião o
presidente sírio, Chukri al-Quwwatli, não viu outra possibilidade para
frear a influência comunista que se alastrava na região.
Em 1º de fevereiro de 1958 foi criada a República Árabe Unida
(RAU), e a Síria adotou o sistema de partido único, levando as

138
dissidências comunistas a deixar o país. Tudo levava a crer que o
modelo ideal para a restauração do mundo árabe seria a proposta por
Nasser, mas logo os sentimentos nacionalistas regionais suplantaram o
sonho árabe de unificar a região e expurgar os invasores sionistas do
Oriente Médio.
O nasserismo, fortemente influenciado pelo ambiente político da
Guerra Fria, visava ganhar aliados junto aos países subdesenvolvidos.
O não-reconhecimento do Estado de Israel e o financiamento das
guerrilhas fedayin palestinas contra os israelenses, além da postura
estratégica de certa neutralidade política – que proporcionava a
manutenção de relações com EUA e URSS – são duas fortes razões
que contribuíram para a expansão do pan-arabismo e a supremacia do
Egito diante dos demais países árabes, não esquecendo da política de
financiamento de movimentos de resistência na África, nacionalistas
em países do Oriente Médio e da prática de intervenções em países
árabes.
Mesmo considerando a vanguarda pan-arabista, o sectarismo e o
secularismo dela acabaram desencadeando seu fracasso. A rau não
conseguiu alcançar outros países árabes, e os movimentos
nacionalistas, que se sobrepunham à unificação de um grande Estado
árabe, mostraram-se mais pragmáticos.
A ruptura com o projeto pan-arabista gerou novos ressentimentos
para a população islâmica, isto porque a situação socioeconômica dos
países do Oriente Médio, assim como do Norte da África, continuava
tendo índices bastante baixos. Apesar da pseudo-união da comunidade
muçulmana, as diferenças entre os Estados eram gritantes.
O nível de subordinação de cada país aos ditames do Islã também
era diferente. Alguns até conseguiam criar sistemas de governos
separados da religião, o que diverge dos preceitos do Corão. Este fato

139
se deve, em grande parte, aos estreitos laços criados com o pensamento
ocidental.
Em síntese, o próprio conceito de soberania dentro da comunidade
islâmica é assimétrico, o que gera enfrentamentos que visam a busca
da supremacia de um ou mais grupos sobre os demais. Como vimos, a
dificuldade em conciliar as divergências internas do Islã, acabou
provocando o cisma na comunidade muçulmana. Os reflexos desses
acontecimentos ainda reverberam nos dias atuais. Talvez seja
impossível encontrar uma autoridade dentro do Islã que possa
representá-lo de maneira absoluta, e isso foi um dos elementos que
inviabilizou a união do mundo árabe ou islâmico.
Outro fato a ser considerado é que a divisão política praticada no
Oriente Médio, no início do século xx, pelas potências ocidentais da
época, apesar de não respeitar em sua totalidade os preceitos do Islã,
acabou formando bolsões de poder para algumas facções locais. Esses
grupos assimilaram a divisão e passaram a incorporá-la como algo
intrínseco à sua história.
A cooperação de alguns novos Estados médio-orientais com as
potências do Ocidente também gerou riquezas e alguns favores. O Irã e
a Arábia Saudita por muitos anos se beneficiaram das estreitas relações
mantidas com os Estados Unidos. Ainda hoje os sauditas priorizam sua
relação com a potência ocidental, mas sem abrir mão de um rigoroso
código de conduta para os muçulmanos, conforme as diretrizes da
sharia9.
O tema da soberania é de grande importância quando o nosso foco
de análise está voltado para os desdobramentos históricos no Oriente
Médio. Se de um lado os conceitos ocidentais foram incorporados pelo
Islã; de outro, com a disseminação das idéias dos grupos

140
fundamentalistas islâmicos, também vem crescendo um forte repúdio
ao Ocidente.
Se considerarmos a hipótese de que o Hezbollah é uma
organização xiita que defende a retomada dos princípios à época do
profeta e rejeita, portando, todos os conceitos ocidentais, por que seu
principal argumento ainda está calcado na necessidade de o Líbano
reconquistar sua soberania diante de Israel? E a que tipo de soberania
estaria se referindo a organização?
Ora, se o Hezbollah estiver utilizando o mesmo conceito ocidental
de soberania, isto é, a delimitação física do Estado libanês, não estaria
a um só tempo reconhecendo a divisão política de seu Estado e dando
como um fato consumado a ação das potências ocidentais? Ou seja,
estaria deixando de contestar a arbitrariedade dos colonizadores, mas,
em contrapartida, obteria um eventual respaldo à implementação sua
luta contra Israel, inclusive diante da comunidade internacional.
Por outro lado, se o Hezbollah estiver mesmo adotando o conceito
de soberania ocidental, como entender sua proposta de retomada da
supremacia do Islã perante o mundo, já que a organização defende o
restabelecimento da ummah (nação muçulmana) sob a liderança da
autoridade religiosa e implementação do código de lei disposto na
sharia?
Enfim, a proposta do Hezbollah não deixa de ser um tanto
ambígua e, em conseqüência disso, acaba gerando muitas dúvidas e
desconfiança por parte da comunidade internacional.

O TERROR SE MANIFESTANDO

O primeiro registro do termo terrorismo data de 1798, quando


o Suplemento do Dicionário da Academia Francesa o descreveu como
141
―extermínio de pessoas de oposição promovido pela autoridade estatal‖
(SUTTI, 2003, p. 3). Naquela ocasião, o termo estava ligado
diretamente às transformações políticas que a França vinha sofrendo
com a Revolução Francesa.
Partindo desse conceito, logo temos evidenciado que se trata de
uma ação praticada pelo Estado. Porém, como vamos abordar a seguir,
não é, necessariamente, uma prerrogativa desse ator a utilização do que
passaremos a chamar de estratégia terrorista ou simplesmente
terrorismo. Há, inclusive, divergências entre especialistas no que tange
à ação do terrorismo por parte do Estado. Para Diniz, o mais correto
nesse caso seria classificar como ―empregos políticos não-terroristas
do terror‖ (2002: 13), pois as ações deixam evidente o motivo principal
da utilização do terror, isto é, emprega-se o terrorismo com o claro
intuito de manter a governabilidade e destruir qualquer foco de
resistência. Diferente, portanto, das táticas usadas pelas organizações
terroristas, onde o terror serve de instrumento para alcançar suas metas.
Quando se explode um edifício com um carro-bomba, por
exemplo, o que se almeja é que o ato repercuta dentro da população-
alvo para que o governo ceda às reivindicações do grupo em conflito
com o Estado. Seguindo essa linha de raciocínio, o ato terrorista serve
como um produto de mídia para os terroristas. Quanto mais evidências
o atentado provocar, mais conseguirá ter subsídios para negociar sua
causa.
No emprego de ações terroristas, não é necessário que o alvo
esteja diretamente ligado ao objeto de litígio, ou seja, pode-se praticar
um atentado em outro país mais influente para que esse exerça pressão
sobre aquele a quem a organização pretende impor suas reivindicações.
De modo que é possível concluir que uma ação terrorista deve
visar um fim político. Para qualquer outra finalidade não podemos,
142
assim, classificá-la. Atualmente, existe certo consenso entre os
pesquisadores desse fenômeno, apesar de, partindo desse pressuposto,
ser difícil classificar ações como a utilização do gás Sarin no metrô de
Tóquio em 1995 pela seita religiosa Aum Shinrikyo. A priori, como a
seita não almejava nenhum fim político, e sim o extermínio da
população para que pudesse nascer outra sem defeitos, não poderíamos
classificar o ato como sendo terrorista, muito embora tenha sido
difundido dessa maneira pela imprensa internacional.
Mesmo que tenhamos recorrido à Revolução Francesa para
ilustrar o que passamos a denominar terrorismo, antes, no século XI,
assassinatos já eram utilizados por um ramo do xiismo como forma de
desestabilizar o governo do califa do Egito (sunita) e restaurar o poder
do Islã perdido com a queda da dinastia Fatímida. Quem praticava os
atentados eram os ismaelitas, um ramo do xiismo; e, devido a isso,
tornaram-se conhecidos como assassinos. Posteriormente, foram
exterminados pelos cruzados e, como lenda, servem de exemplo a ser
seguido sempre que o Islã estiver sendo ameaçado.
Nos dias de hoje, muitos atentados podem encontrar respaldo no
modo de agir dos ismaelidas. A iminência de o Islã sofrer com a
intervenção de hereges – naquela época, os sunitas – fez com que fosse
implementada uma ação extremada. E esse fato encontra semelhanças
com os acontecimentos atuais, já que uma das mais enfáticas alegações
dos grupos terroristas diz respeito à interferência nefasta do Ocidente
sobre o Islã, o que, ainda nessa linha de raciocínio ismaelita, já seria
10
argumento suficiente para decretar a jihad .
O terrorismo também é uma prática que se dá do fraco para o
forte, é a arma de quem não pode combater frente a frente com o
inimigo. O Departamento de Estado dos Estados Unidos assim define

143
terrorismo: ―premeditado, politicamente motivando violência a ser
perpetrada contra alvos civis por grupos subnacionais ou agentes
clandestinos, que normalmente pretende influenciar um público‖
(TERRORISM: Q&A).
Eugênio Diniz, por meio de uma análise sociológica, porém
abstraindo o teor jurídico das ações, amplia a compreensão do
fenômeno em pauta nos apresentando a seguinte definição:
[...] podemos entender terrorismo com sendo o emprego do
terror contra um determinado público, cuja meta é induzir (e
não compelir nem dissuadir) num outro público (que pode,
mas não precisa, coincidir com o primeiro) um determinado
comportamento cujo resultado esperado é alterar a relação
de forças em favor do ator que emprega o terrorismo,
permitindo-lhe no futuro alcançar seus objetivos políticos —
qualquer que este seja. (2002, p. 13)

Tomando essa definição de Diniz como parâmetro para o estudo,


não se pretende descartar a antiga classificação de terrorismo: de
Estado (de esquerda ou direita), religioso, nacionalista, separatista e
anarquista (TERRORISM: Q&A). O importante é a motivação final de
cada grupo. Caberiam duas ressalvas ao modelo anterior: quanto ao
anarquista, tornou-se obsoleto a partir de 1900; já o de Estado muitas
vezes fica oculto sob a alegação de autodefesa. Um exemplo é o
Estado de Israel, que utiliza as mesmas armas que as organizações
terroristas, mas não é classificado como Estado terrorista.
Independente da prática do Estado ser tratada ou não como um ato
terrorista, o fato é que os grupos que recorreram a esses meios para
alcançar seus objetivos foram se aperfeiçoando e ampliando seu
âmbito de atuação. Hoje, o terrorismo é algo que preocupa todos os
países ocidentais e também do Oriente Médio — isto porque o

144
eventual vínculo de um país árabe com o Ocidente já seria motivo para
o primeiro sofrer algum tipo de represália por meio de atentados
terroristas.
Foram criadas redes de financiamento à causa das organizações, e
partidários delas também contribuem para sua manutenção. No caso do
Hezbollah, grande parte de seu capital se deve ao Irã, que tem suas
riquezas geradas com a exploração do petróleo.
Ameaçados, os governos passaram ter maior controle das
operações financeiras, a fim de identificar os patrocinadores do avanço
do terrorismo internacional. O assunto transformou-se em pauta
obrigatória nos encontros entre Estados. Várias resoluções do
Conselho de Segurança da ONU e de Convenções Internacionais
abordam o tema, isso sem falar das políticas implementadas pelo
governo norte-americano, que visam a contenção e até mesmo o fim
das ações terroristas.
Se para classificar um ato como terrorista depende-se do enfoque
da análise, elaborar critérios para uma punição em nível internacional é
ainda mais complexo. Segundo Antonio Cassese (2001), jurista e
presidente do International Criminal Tribunal for the Former
Yugoslavia – em estudo sobre a possibilidade de inserção do
terrorismo como um crime internacional –, os tribunais nacionais estão
mais capacitados para julgar um ato de terrorismo do que os
internacionais, pois a ação é percebida naquele local e necessita de
uma resposta rápida. Caso contrário, o ato terá alcançado seu objetivo
primeiro: chamar a atenção para sua causa e gerar instabilidade no
governo.
O autor ainda discute a questão da melhor maneira de o direito
internacional implementar sua luta contra o terrorismo, bem como
quais seriam os entraves e limitações. Porém, na mesma obra, que tem
145
como enfoque a posição norte-americana de combater o inimigo antes
que ele possa concretizar qualquer ato (por exemplo, a represália ao
Afeganistão por este ter acobertado o Talibã), há a discussão sobre o
conceito de autodefesa e de quando ele pode ser utilizado para atacar
determinado país.
Assim, tendo como base o estudo de Cassese, é possível fazer uma
analogia direta com a situação que o Líbano viveu após ter seu
território invadido por Israel em 1982, e concluir que não havia
respaldo legal para o ataque israelense. O resultado da violência
praticada contra o Estado libanês serviu de estímulo para se criar uma
organização que, finalmente, passou a visar a retirada do invasor de
seu território.

CONCLUSÃO

Sem dúvida, os eventos ocorridos no Líbano e em grande parte do


Oriente Médio são reflexo direto do processo de colonização que o
mundo árabe sofreu por parte do Ocidente. Por muitos séculos os
árabes assumiram a vanguarda das civilizações e ditaram os caminhos
da modernidade. Mas, a partir do Renascimento na Europa, o mundo
muçulmano se fechou e passou a repelir qualquer tipo de contato com
os povos fora das fronteiras do Islã.
O isolamento do mundo muçulmano o estagnou diante do
processo de modernização pelo qual o Ocidente estava passando,
gerando a cristalização dos ditames do Islã perante sua comunidade.
11
O fortalecimento do Islã sem mistificação e preso a recalques
que impossibilitavam seu desenvolvimento técnico-científico acabou
prostrando o povo muçulmano e o colocando em um patamar de
inferioridade diante do Ocidente. Prova disso foi o processo de

146
colonização que o Oriente Médio sofreu com a deterioração do Império
Otomano, no final do século XIX e início do XX.
As potências européias, que já exerciam o domínio diante de
várias outras civilizações na América, África e Oriente, não se
sentiram intimidadas diante dos muçulmanos, nem de seu histórico de
vitórias, sobretudo durante as Cruzadas.
Já no início do século XX, França e Inglaterra utilizavam seu
poderio político e militar para enfraquecer os muçulmanos e usufruir as
benesses da região. Foi a primeira vez que os islâmicos caíram sob o
domínio daqueles que eram e ainda são considerados hereges. A
divisão política que se criou na região, pouco ou quase nada estava
ligada a fatos históricos. Empregou-se a estratégia da fragmentação do
povo para o fortalecimento do dominador.
Da maneira como o processo histórico se desenrolou não causa
nenhum espanto que surja entre os muçulmanos um sentimento de
revanchismo. Do lado ocidental, também nunca houve preocupação em
se criar meios para diminuir os males causados pela ação estrangeira
no Oriente Médio.
É possível dizer que há um choque de civilizações provocado pelo
Ocidente, mas que se tornou crônico e não apresenta grandes
possibilidades de retração devido às posições extremadas que as partes
foram assumindo.
Envolto nesse contexto de luta entre Ocidente e Islã, o Hezbollah
acaba por assumir seu papel na luta, ou seja, repudiar os valores
ocidentais e procurar restaurar o Islã de acordo com uma visão
idealizada dos fatos. O enfrentamento ocorre devido à estagnação
político-militar dos muçulmanos, os quais acabaram dominados pela
civilização ocidental que, ao menos em tese, assimilou a modernização
iniciada com a Revolução Industrial e, assim, pôde implementar seu
147
desenvolvimento. Nesse contexto, aceitar os fatos dessa maneira, por
mais tangíveis que possam parecer, ocasionaria a resignação diante da
inferioridade do Islã enquanto instituição.
Tanto quanto as organizações fundamentalistas, o Hezbollah nega
que a supremacia ocidental tenha acontecido graças a uma suposta
imperfeição do Islã. Para eles, isso ocorreu por culpa dos próprios
muçulmanos, que foram se afastando dos ensinamentos de Alá. Por
isso, a luta é necessária para restaurar a fé perdida. Embora constituída
por xiitas – que mesmo dentro da nação muçulmana sempre foram
perseguidos e apontados como hereges –, a trajetória da organização
libanesa não deixa de comprovar que a força de luta contra as
adversidades não se configura em algo novo. A própria história do
xiismo é contada de forma a exaltar os mártires e utilizar suas ações
como modelo. Dentre as várias passagens narradas pelos xiitas, o
12
martírio do Imã Hussein é paradigmático. Sua morte em Karbala,
Iraque, tornou-se exemplo a ser seguido, e muitas vezes passou a ser a
justificativa para os homens-bomba.
Em um contexto de perseguições tanto dos sunitas quanto do
Ocidente, a chegada dos xiitas ao poder foi uma espécie de luz no fim
do túnel para o mundo muçulmano. Com a Revolução Islâmica no Irã,
foi possível vislumbrar a possibilidade de retomada do crescimento do
Islã dentro dos desígnios do Corão.
O modelo de Estado islâmico, que foi almejado por vários outros
países muçulmanos, deixou de ser apenas uma prerrogativa de
localidades com comunidades xiitas; alguns Estados
predominantemente sunitas também cogitaram a possibilidade de
instaurar o modelo iraniano.
A criação do Estado de Israel, em 1947, agravou o clima de
hostilidade entre ocidentais e islâmicos. O apoio de potências – como
148
Estados Unidos e Inglaterra – ao Estado sionista configurou-se em
mais uma interferência do Ocidente em solo árabe, fato que acabou se
transformando em uma ferida de difícil cicatrização.
A partir de 1948, a situação se agravou no Oriente Médio. Mesmo
os países aliados dos Estados Unidos, como a Arábia Saudita, não
aceitavam a presença de um Estado judeu criado sobre as cinzas do
povo palestino.
Devido às peculiaridades do Líbano, administrado por cristãos,
muitas vezes o país encontrou dificuldades de se alinhar às demais
nações árabes quando em conflito contra Israel. Por serem minorias no
Oriente Médio, cristãos e judeus chegaram a cogitar uma aliança que
lhes garantisse a sobrevivência naquele território. Entretanto, em 1976,
durante a guerra civil, o governo maronita acabou por dissolver seus
laços com o Estado sionista e buscou auxílio da Síria para instaurar a
paz no Líbano.
A violência das ações empregadas contra o Líbano entre 1978 e
1996 somente fez com que houvesse a intensificação do ódio dos
muçulmanos pelos israelenses. Em 1982, diante da supremacia militar
de Israel, de um conflito interno entre clãs e da presença de tropas
ocidentais no Líbano, para uma parcela da população pareceu não ser
mais possível manter a situação sem que fosse tomada uma atitude. A
saída: o emprego de uma nova maneira de ataque, o homem-bomba.
Surtiu efeito imediato, e essa estratégia se disseminou pelo Oriente
Médio.
O Hezbollah, aproveitando o fortalecimento islâmico, lançou seu
manifesto em 1985 e passou a difundir sua luta contra o Estado de
Israel, tido como usurpador de terras libanesas.

149
Nesse contexto, ou melhor, se levarmos em consideração que o
Estado libanês estava falido, portanto incapaz de praticar qualquer ação
contra Israel, e que a luta do Hezbollah se dá pela retomada das terras
invadidas, as ações do grupo deixam de ser ilegítimas, tanto para as
nações islâmicas quanto para a comunidade internacional. Por outro
lado, o que deve ser discutido é a maneira que o Hezbollah escolheu
para impor suas reivindicações ao inimigo.
Está lançada a dúvida: até que ponto estratégias terroristas
deslegitimizam uma batalha? Para Maquiavel, ―os fins justificam os
meios‖. Contudo, há de se pesar essa afirmação e analisá-la no
contexto atual e histórico do Oriente Médio. Sabendo-se que o poder
bélico do Estado judeu é superior ao de qualquer outro país árabe, teria
o Hezbollah alguma possibilidade de êxito, caso partisse para o
enfrentamento utilizando armas tradicionais? A própria história dos
povos islâmicos nos diria que não. E, a partir dessa negativa, será que
podemos legitimar as ações do Hezbollah? Certamente, o uso de
técnicas terroristas de combate jamais encontrará respaldo, seja da
comunidade internacional ou do direito internacional, por mais que se
torne evidente a violência empregada por Israel contra os libaneses.
Assim, deparamos com a seguinte situação: o Líbano estava
invadido, sem possibilidade de reagir de maneira convencional; a
comunidade internacional não implementava nenhuma ação contra os
israelenses para retirá-los de território libanês; a Questão Palestina não
se resolvia e o país continuava a receber refugiados de guerra, o que
gerava descontrole político-econômico-social interno; e, por fim, os
xiitas vislumbravam uma possibilidade de recuperar seu status
enquanto nação, como ocorreu no Irã.
Todos esses fatos agregados fizeram com que houvesse o
enrijecimento da luta e dificultaram a negociação. Num panorama
150
extremamente adverso às palavras e ao bom senso, as linhas de
pensamento fundamentalistas passaram a despertar maior interesse da
população.
Analisando as atividades do Hezbollah, é possível perceber que
sua legitimidade para agir contra Israel advém de um processo que foi
aglutinando cada vez mais adeptos. Num primeiro momento, a
organização agia junto à comunidade xiita, que era esquecida pelo
governo libanês, fornecendo tratamento médico, odontológico,
educação e formação religiosa. Em seguida, passou a defender a volta
do Islã aos tempos do profeta Maomé, período de grande prosperidade
dos muçulmanos.
Em oposição à promessa de progresso que o Ocidente havia
disseminado e que não passou de falácia, a revolta da comunidade
islâmica foi crescendo e passou a ser utilizada pelas organizações
fundamentalistas como forma de angariar adeptos.
Diante disso, pode-se dizer que a legitimidade atribuída ao
Hezbollah foi se consolidando junto aos islâmicos. Entretanto, para
alcançar o mesmo efeito internacionalmente, não utilizou argumentos
fundamentalistas, e sim relativos à questão da preservação da soberania
territorial, que é uma das prerrogativas do Estado, princípio inalienável
da civilização ocidental.
Em 1990, terminada a guerra civil e assinado o acordo Taif, a
etapa seguinte foi transformar a legitimização em legalização. Para
tanto, o Hezbollah assumiu o status de partido político no Líbano.
A partir dessa etapa, surgem duas possibilidades: tratar o assunto
de maneira tendenciosa ou abrir uma perspectiva ainda maior para a
discussão. Por um lado, seria temerário aceitar o terrorismo. Por outro,
ao repudiar e atrelar ações terroristas apenas a grupos fundamentalistas

151
islâmicos, não deixaria de ser uma forma de estigmatizá-los e de
desvalorizar sua causa.
Na história recente também podemos encontrar um episódio em
que uma estratégia terrorista foi utilizada. Durante a ocupação nazista,
a Resistência francesa enfraqueceu o regime alemão por meio de
explosões, seqüestros etc.; semelhante ao que o Hezbollah fez contra
Israel. No primeiro caso, a atitude foi louvada, tendo em vista a
nobreza do fim; no segundo, rechaçada.
Outro exemplo da diferença com que as potências ocidentais
tratam as questões relativas ao Oriente Médio: em 1992, quando o
Kuwait foi invadido pelo Iraque, as Nações Unidas repudiaram o fato e
logo advertiram o Iraque de que se não deixasse o território invadido
sofreria represálias militares. O Iraque não retirou suas tropas, e foi
atacado por forças internacionais, que restauraram a soberania do
Kuwait. Da mesma maneira, quando o Líbano sofreu a invasão por
parte de Israel, as Nações Unidas baixaram a Resolução nº 425 e
exigiram a saída imediata de território libanês. Os israelenses não
cumpriram a resolução, a ONU enviou suas tropas a Beirute, mas estas
nada fizeram contra os invasores.
Os israelenses só deixaram o Líbano em 2000, com a ação militar
do Hezbollah. Essas diferenças gritantes exigem que a análise
pertinente à maneira de atuar de uma organização islâmica seja feita
com muito cuidado. Por outro lado, vale lembrar que se a organização
nasceu para restabelecer a soberania de seu país – e obteve êxito –,
deveria depor as armas tão logo tivesse alcançado seu objetivo, o que
não aconteceu.
Se era legitimidade de seus atos que o Hezbollah buscava sob a
égide da restauração da soberania de seu Estado, conseguiu; mas
acabou mostrando novas facetas de sua proposta, quando passou a lutar
152
em outra frente de batalha. A Questão Palestina foi assumida pela
organização, e a estratégia terrorista até hoje continua sendo
empregada.
As questões se sobrepõem, mas o tema preponderante é que
quanto maior for a pressão diante dos islâmicos, mais intensa será a
resposta. O momento em que se vive pode ser visto como um
verdadeiro embate no qual as diferenças bélicas são indescritíveis;
entretanto, a crença na vitória faz com que os mais fracos não desistam
da luta. Somente nesse aspecto podemos relacionar o conflito entre
Ocidente e organizações fundamentalistas como um jogo de soma
zero; por mais que se tente intermediar a paz, as partes estão
demasiadamente envolvidas com suas causas que não cogitam a
possibilidade de ceder. Também aqui se encontra a marca da questão
religiosa: se a Palestina foi entregue por Deus aos muçulmanos, como
cogitar a possibilidade de que ela esteja sob a posse de infiéis? A
mesma premissa vale para os judeus.
Assumido o fato de que o Hezbollah se intitula o partido de Deus
e não admite a possibilidade de contrariar seus desígnios, e também
que o Deus dos muçulmanos não é o mesmo dos judeus, dificilmente
chegaremos à paz enquanto houver divergências teológicas. Em suma,
sem eliminar esse problema calcado em aspectos dogmáticos e ainda
acrescentando fatores políticos e econômicos ao conflito em
andamento, tudo isto acaba produzindo um paradigma da intolerância,
o qual alcançaria fim somente diante do modelo de guerra absoluta
proposto por Clausewitz, algo ainda não experimentado no transcorrer
da História, mas que seria o passo seguinte ao fim da diplomacia.

153
NOTAS:
1
―O Segundo Grande Despertar mostra o tipo de solução que muita gente acha
sedutora quando sua sociedade está passando pelo difícil processo de
modernização. Como os fundamentalistas de hoje, os profetas do Segundo Grande
Despertar lideraram uma rebelião contra o racionalismo erudito das classes
dominantes e insistiram numa identidade mais religiosa‖ (Armstrong, 2001: 112).
2
Maomé, ou Mohammad em árabe, dizia-se a pessoa escolhida por Deus para ter
sua mensagem revelada e posteriormente incorporada ao livro sagrado dos
muçulmanos, o Corão.
3
As Cruzadas foram criadas durante o Concílio de Clermont-Ferrand (1095), na
França. Objetivo principal: retomada de Jerusalém. No entanto, uma das grandes
preocupações era deter o avanço dos turcos seljúcidas, que haviam tomado grandes
áreas do Império Bizantino e já estavam se aproximando de Constantinopla.
4
Líder da comunidade muçulmana, similar ao califa para os sunitas.
5
O cristianismo no Oriente não é novo e, na região da Antióquia (Norte do atual
Líbano), os discípulos de Jesus, Paulo e Barnabé, pregaram sua fé. A própria igreja
de Antióquia foi fundada por Pedro, da qual foi bispo e, em seguida, partiu para
Roma. Juntamente com Alexandria e Constantinopla, Antióquia foi um dos mais
importantes centros espirituais do Oriente. Dois fatores, entretanto, foram capitais
para a queda da igreja de Antióquia: a posição política antagônica diante do
Império Bizantino e sua divisão eclesiástica por cismas e heresias. Um dos motivos
da divisão foi por eles divergirem com relação à natureza de Jesus. O
nestorianismo reconhecia a natureza humana e divina de Cristo, enquanto o
monofisismo defendia que havia nele uma só natureza e uma só pessoa: a divina.
Em 451, diante do Concílio de Calcedônia, estabeleceu-se a rejeição dos extremos
do nestorianismo e do monofisismo, propondo em Jesus uma só pessoa e duas
naturezas. O eremita chamado Maron, descontente com as divergências religiosas
em curso, refugiou-se nas montanhas do Líbano e passou a pregar o que, para ele,
seria o verdadeiro caminho — o mesmo reconhecido pelo Concílio. Encontrou
muitos seguidores, os quais passaram a ser conhecidos como maronitas, que
passaram a ser perseguidos pelos monofisitas. Apesar das divergências, os
maronitas nunca deixaram de reconhecer a supremacia do papa. Contudo,
mantiveram sua liturgia própria e seu patriarca.
6
Darazi, discípulo do califa Fatímida — Al Hakim —, deixou o Egito e foi
estabelecer-se a sudeste da região compreendida pelo atual Líbano, passando a
pregar sua fé e entrando em choque com a população local. Seus seguidores
tornaram-se conhecidos como drusos e, atualmente, junto com cristãos e
muçulmanos, constituem uma das maiores comunidades no Líbano moderno.
Apesar de terem suas bases fundamentadas no Islã, nos dias de hoje os drusos têm
muita dificuldade de ser reconhecidos como tal, devido ao aspecto heterodoxo e
místico que sua crença assumiu.

154
7
Durante o governo do presidente norte-americano Dwight Eisenhower (1953-61),
os Estados Unidos assumiram a postura de apoiar militarmente os países que
corressem perigo de invasão comunista representada pela grande potência
antagonista da época, URSS e seus aliados.
8
Tradução do autor (N. E.).
9
Código Legal Islâmico que estabelece todas as regras que regem os aspectos de
vida dos muçulmanos.
10
―O termo jihad, convencionalmente traduzido como guerra santa, tem o
significado literal de 'esforçar-se‘, mais especificamente na frase do Corão,
‗esforçar-se no caminho de Deus‘ (fi sabil Allah). Alguns teólogos muçulmanos,
especialmente em tempos mais modernos, interpretam o dever de ‗esforçar-se no
caminho de Deus‘ em sentido espiritual e moral. A maioria esmagadora das
primeiras autoridades, no entanto, citando as passagens relevantes do Corão e da
tradição, discutiam a jihad em termos militares‖ (Lewis, 2001b: 210).
11
Leitura fiel dos escritos sagrados, sem possibilitar interpretações místicas do
Corão.
12
No final do século VII, na cidade de Karbala, Iraque, Hussein e seus seguidores
enfrentaram mais de quatro mil soldados. O confronto ocorreu por ordem de
Yazid, o califa Omíada de Damasco, e o motivo principal se fundamentava no fato
de o Imã Hussein não reconhecer a legitimidade do califado. Hussein havia
deixado Meca, onde tinha sido ameaçado de morte por Yazid, e se dirigiu para
Karbala; lá tentou resistir aos ataques, expondo os motivos pelos quais não
reconhecia o califado de Yazid e alegando que tinha autoridade para fazer tais
considerações, uma vez que descendia diretamente do profeta. Entretanto, os
soldados omíadas, sob a liderança de Omar Ibn Saad, assassinaram Hussein, sua
família e todos seus seguidores. O martírio de Hussein passou a ser idolatrado e
celebrado na cerimônia conhecida como Ashura. A postura de morrer em nome do
Islã tornou-se algo a ser dignificado pelos xiitas, o que acabou por ser incorporado
na estratégia de organizações como um ato nobre, digno da grandeza do Imã
Hussein.

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