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V. 4, N. 1, jan./jun. 2003
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Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT

Reitor
Paulo Speller

Vice-Reitor
José Eduardo Aguilar S. do Nascimento

Pró-Reitora de Programas de Pós-Graduação


Marinêz Isaac Marques

Pró-Reitor de Pesquisa
Paulo Teixeira de Sousa Júnior

Diretora do ICHS
Tereza Cristina Cardoso de Souza Higa

Chefe do Departamento de História


Tereza Marta Presotti Guimarães

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História


Maria Adenir Peraro

Comissão Editorial
João Carlos Barrozo
Maria Adenir Peraro
Luiza Rios Ricci Volpato

Secretaria Executiva
Matildes Dias Koike

Conselho Consultivo
Artur César Isaia – UFSC
Carlos Alberto Rosa – UFMT
Fernando A. Novais – UNICAMP
Hilda Pívaro Standniky – UEM
Ivan Aparecido Manuel – UNESP
Janaína Amado – UnB
Otávio Canavarros – UFMT
Kátia Abud – USP
Margarida de Souza Neves – PUC/Rio
Antônio Torres Montenegro – UFPE
Nanci Leonzo – UFMS
Paulo Miceli – UNICAMP
Regina Beatriz Guimarães Neto – UFMT
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ISSN 1519-4183

V. 4, N. 1, jan./jun. 2003

REVISTA DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

UFMT
4

© Copyright by Programa de Pós-graduação em História da UFMT, 2003.

Reservados todos os direitos.


Os artigos são de inteira responsabilidade de seus autores.

Territórios e Fronteiras – Revista do Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal de Mato Grosso, vol. 4 n.
1 jan-jun/2003 – Cuiabá-MT.

Semestral
158 p.

ISSN 1519-4183

Projeto Gráfico, Capa e Editoração Eletrônica


Carlini & Caniato

Revisão Ortográfica
Aquiles Lazzarotto (português)

Programa de Pós-Graduação em História – ICHS


Universidade Federal de Mato Grosso
Avenida Fernando Corrêa da Costa, s/n – Campus Universitário
Coxipó da Ponte – CEP: 78060.900 – Cuiabá – MT
Telefax: (65) 615 8493
e-mail: pghist@cpd.ufmt.br
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Sumário

Apresentação .......................................................................................................... 7

ARTIGOS
O episódio das invasões holandesas no Brasil:
história, memória, mistérios
Ronaldo Vainfas .......................................................................................... 11

Regional vs. national history:


rethinking categories from a comparative perspective
Barbara Weinstein ...................................................................................... 23

Fronteiras e Missões coloniais: continuidades e oposições culturais


Arno Alvarez Kern ....................................................................................... 33

Imagens dos índios Paresi no espelho do colonizador (1719-1757)


Loiva Canova .............................................................................................. 49

Rio Sepotuba: ambiente de poaia e de terra fértil


Carlos Edinei de Oliveira ............................................................................ 73

Manifestações rupestres do Mato Grosso:


elementos contextuais dos abrigos
Tereza Ramalho de Azevedo Cunha ........................................................... 99

Identidade regional no Sertão do Tocantins


Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante ................................................. 119

Timbre e espaço-tempo musical


Roberto Victorio ......................................................................................... 127

NOTÍCIAS DO PROGRAMA:
Resumos de dissertações de mestrado .......................................................... 151
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Apresentação

Territórios e Fronteiras vai gradativamente conquistando seu espaço


como veículo de divulgação dos trabalhos de pesquisa de estudiosos da His-
tória. No presente número, além de textos de professores e alunos do Pro-
grama de Mestrado da Universidade Federal de Mato Grosso, são publicados
artigos originários de outras universidades do Brasil e um da Universidade de
Maryland (Estados Unidos).
Preservando o eixo de análise da Revista, o número 1 de seu volume 4
mantém o foco em discussões que enfatizam a análise sobre territórios e fron-
teiras, porém aglutina textos ou recortes diversos, indo do estudo da presença
dos holandeses no Nordeste do Brasil Colonial à interpretação sobre o tempo
musical, permitindo a aplicação das reflexões sobre espaço e limites.
Em O episódio das invasões holandesas no Brasil: história, memória,
mistérios, Ronaldo Vainfas revisita a historiografia clássica que versa sobre a
presença holandesa no Brasil no século XVI, constatando que a mesma privi-
legia a análise da insurreição e expulsão dos neerlandeses em detrimento do
estudo da invasão em Pernambuco Colonial. Ao refletir sobre os vários signi-
ficados do referido episódio, Vainfas levanta importantes considerações me-
todológicas ao longo do texto, com destaque às propostas de análise acerca
do tema numa perspectiva da micro-história.
Bárbara Weinstein, em Regional vs. National history: rethinking cate-
gories from a comparative perspective, promove discussão a respeito da
história regional, enfatizando a premência dos estudiosos em rever, elucidar,
as categorias regional x nacional, ressaltando como tais categorias foram
construídas historicamente na perspectiva positivista e neo-marxista. Para a
autora seria importante que historiadores atentassem para esta oposição,
buscando descobrir as suposições políticas e culturais que designam uma
narrativa histórica como regional e uma outra como nacional.
Arno Alvares Kern, por sua vez, em Fronteiras e missões coloniais:
continuidades e oposições, analisa a complexidade das fronteiras culturais
nos amplos espaços fronteiriços da América do Sul durante o período coloni-
al do século XVI ao XVIII. Em tais espaços, tidos pelo autor como novas
realidades, se mesclaram características sociais oriundas das tradições amerín-
dias e européias, numa síntese nova em contínua transformação. Cooptação,
aculturação, dominação e dizimação foram algumas das formas diferenciadas
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de relações sócio-culturais estabelecidas pelas sociedades européias ibéricas


com as variadas populações indígenas. Neste universo, o autor dá destaque
às experiências históricas dos jesuítas na inserção dos indígenas Guarani.
Demonstra o autor como o modus vivendi e os rituais foram sendo substitu-
ídos por novas práticas trazidas pelos missionários, assim como foram reinter-
pretados e reacomodados os novos traços culturais importados.
Na busca de entender o sistema de classificação adotado pelos coloni-
zadores sobre os índios Paresi e, inclusive, avaliar de que modo essa classifi-
cação serviu às práticas colonizadoras, Loiva Canova, em Imagens dos índios
Paresi no espelho do colonizador (1719-1757), buscou analisar, a partir de
um conjunto de fontes, tais como crônicas, memórias de sertanistas e de
representantes da administração portuguesa do século XVIII, a significação
histórica da construção das imagens dos índios. Tidos como “gentios de as-
sento”, “asseados”, “belos”, “habilidosos na caça” e na confecção de apetre-
chos de guerra, os Paresi, foram valorizados pelo colonizador, segundo a
autora, em razão das muitas semelhanças culturais com o homem branco, o
que teria propiciado o seu apresamento.
Em Rio Sepotuba: ambiente da poaia e de terra fértil, Carlos Edinei de
Oliveira adentra no universo da poaia povoado de relações com a natureza e
de histórias registradas na memória coletiva dos poaeiros para observar as
representações construídas acerca do Vale do Sepotuba. Relatos orais, recen-
seamento e registros do expedicionário Nicolau Badariotti permitem ao au-
tor construir uma nova leitura sobre o Vale e o município de Tangará da
Serra, espaço de fronteira em que o hibridismo cultural se faz presente.
Tereza Ramalho de Azevedo Cunha, em instigante artigo denominado
Manifestações rupestres do Mato Grosso: elementos contextuais dos abri-
gos, apresenta características geográficas e históricas de manifestações ru-
pestres observadas nos abrigos Ferraz Egreja, Vermelhos, Alvorada, comple-
xo dos abrigos Perdida, Santa Elina e Veado Perdido. Tais manifestações en-
contram-se numa correlação visual com aquelas situadas no painel do sítio
arqueológico Veado Perdido, na cidade de Juscimeira, MT, em cuja posterior
análise semiótica foram levadas em conta as categorias eidéticas, cromáticas
e topológicas propostas por A. J. Greimas, por serem estas advindas do obje-
to de cunho relacional.
Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, em Identidade Regional no
sertão de Tocantins, analisa as trajetórias políticas do norte de Goiás na cons-
trução de sua autonomia política e administrativa em Estado do Tocantins, a
partir de 1988, e já identificadas em 1821, no governo independencista do
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norte de Goiás. A construção do discurso autonomista foi associada às denún-


cias do passado de abandono tanto administrativo quanto de segurança pú-
blica e a referências às peculiaridades da região norte, diferenciadas das do
centro-sul de Goiás. Na análise, a autora indaga a respeito dos valores que
foram resgatados na memória do norte goiano para a defesa do discurso
autonomista.
Por fim, em Timbre e espaço-tempo musical, Roberto Victorio aborda a
mudança ocorrida na escrita musical a partir do início do século XX, momento
em que o processo criativo teria, segundo o autor, passado a concentrar-se nas
inúmeras possibilidades tímbricas, provocando um salto da escrita musical e da
notação como um todo. Para o autor, a busca das possibilidades tímbricas teria
sido o fator delimitante da escrita musical no universo sonoro que se abriu
sobre o mundo da criação musical, possibilitando-nos uma aproximação da
verdadeira intenção da obra de arte. Neste aspecto, Roberto Victorio nos brin-
da com a análise do desvendamento da música ritual Bororo, observando que
as representações ocorridas durante o ciclo funerário Bororo acabam por diluir
a fronteira entre os planos material e imaterial, percebendo-se que a notação
atinge o que o autor denomina de “notação ritualística”. Denota, ainda, que a
música Bororo é não somente a música do tempo que transita na esfera trifá-
sica de concepção, ou do tempo que se (des)materializa em devir musical,
mas do tempo que (pré)existe na memória perdida dos homens.
Para finalizar, na seção “Notícias do Programa”, são apresentados resumos
de dissertações defendidas no decorrer dos últimos três anos, a exemplo de
Misturando Sabores: alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cui-
abá (1727-1808), de autoria de Luzinéia Guimarães Alencar; Entre caminhos e
memórias: narrativas e cotidianos de itinerantes rumo a Poxoréu-MT (pri-
meira metade do século XX), de Nileide Souza Dourado; e, por fim, de João
Ivo Puhl, O tempo do grilo: posseiros na gleba São Domingos, 1979-1983. A
história da luta pela terra no Vale do Guaporé- MT, 1970-1990.
Em seu próximo número, a Territórios e Fronteiras abordará a temáti-
ca urbana, estando aberta aos estudiosos para a divulgação de suas pesqui-
sas. Esperamos contar com a contribuição de pesquisadores das demais áreas
para que possamos continuar estabelecendo o interessante diálogo interdis-
ciplinar presente nas revistas anteriores e no Programa como um todo.

A Comissão Editorial
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O episódio das invasões


holandesas no Brasil:
história, memória, mistérios
Ronaldo Vainfas*

Resumo Abstract
O artigo traça um panorama geral sobre as inva- This article offers a general view on the Dutch
sões holandesas no Brasil no século XVII e anali- invasion in Brazil during the seventeenth century
sa, com mais especificidade, alguns processos, a and analyses, particullarly, certains processes, like
exemplo da comunidade luso-sefardita do Recife e the Recife’s luso-sephardic community and the
o conflito entre os índios potiguares, bem como o conflict amidst the Potiguares Indians, and also
papel de alguns personagens históricos, como Hen- the role of certains historical personages, like
rique Dias e o jesuíta Manuel de Moraes. Henrique Dias and he Jesuit Manuel de Morais.

Palavras-chave: Keywords:
invasões holandesas – comunidade luso-sefardita Dutch Invasion – Recife’s luso-sephardic commu-
do Recife – Índios Potiguares nity – Potiguares Indians.

* Professor Titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense. O presente artigo é, com
ligeiras modificações, o texto apresentado na conferência de abertura da II Semana de História, Cuiabá,
organizada pela ANPUH-MT em parceria com o Programa de Pós-Graduação, Mestrado em História da
Universidade Federal de Mato Grosso, em novembro de 2002.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
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As chamadas invasões holandesas no Brasil constituem tema clássico de


nossa história e foram durante muito tempo episódio que mereceu enorme
atenção de nossos historiadores. Atualmente, pelas lacunas e mistérios que
envolve e pelos sentidos que na própria época a presença holandesa deixou
na memória social, o tempo dos flamengos tem sido cada vez mais revistado
pela historiografia.
Se formos buscar a monumentalização deste episódio em nossa histori-
ografia clássica, ninguém menos de que Francisco Adolfo de Varnhagen dedi-
cou um livro inteiro ao assunto, publicado em 1871, a História das lutas com
os holandeses no Brasil desde 1624 a 1654. Foi neste livro que Varnhagen
ao menos uma vez rendeu tributo ao plano de Von Martius, quem, na década
de 1840, no seu Como se deve escrever a História do Brasil, disse que a
chave da nossa história residia na fusão das raças branca, índia e negra, nesta
ordem de importância. Pois Varnhagen, que já tinha rascunhado suas idéias a
respeito na História Geral do Brasil, viu exatamente esta prova da brasilida-
de miscigenada na aliança entre o branco André Vidal de Negreiros, o negro
Henrique Dias e o índio Felipe Camarão contra o que chamava de invasor
holandês.
O vulgarizador desta mitologia foi, porém, Joaquim Manoel de Macedo,
autor das Lições de história do Brasil para uso dos alunos do Imperial Colé-
gio de Pedro II, livro publicado em 1861. A luta contra os holandeses, entre
1645 e 1654, seria, na verdade, o primeiro episódio de uma história verda-
deiramente brasileira, pois foram brasileiros de todas as raças os que lutaram
pelo Brasil contra os estrangeiros. Quantos de nós não leram isto ou algo
semelhante em manuais didáticos de história do Brasil, antigos e modernos?
Em nossa historiografia antiga, nem mesmo mestre Capistrano de Abreu, tão
crítico de Varnhagen, escapou desta mitologia, ao dizer, nos seus Capítulos
de História Colonial, que “Holanda e Olinda representavam o mercantilismo
e o nacionalismo. Venceu o espírito nacional. Vencedores dos flamengos,
que tinham vencido os espanhóis, os combatentes de Pernambuco sentiam-
se um povo, e um povo de heróis”1.
Nossa historiografia clássica sempre enfatizou e celebrou, portanto, nem
tanto a invasão de Pernambuco em 1630, mas a insurreição pernambucana e
a expulsão dos flamengos entre 1645 e 1654. O episódio da invasão andou
sempre por ali, lastimado, como fasto constrangedor. Só o fato de se conside-
rar o episódio holandês como invasão mostra bem o sentido oficial da inter-

1 Abreu, Capistrano de. Capítulos de história colonial. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 96.
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pretação predominante. Um sentido que atribuía aos portugueses o direito


legítimo de possuir o Brasil e, mais ainda, uma visão da história brasileira
como seguidora fiel da portuguesa. Os holandeses eram, pois, estrangeiros, e
os que os ajudaram nesta empresa não poderiam ser senão traidores. Embora
muitos, na verdade, tivessem se passado para o lado holandês nas guerras
pernambucanas, o emblema da traição foi o célebre Calabar – Domingos
Fernandes Calabar – desertor das tropas portuguesas, em 1632, que se ban-
deou para o lado flamengo até ser recapturado, garroteado e esquartejado
por ordens de Matias de Albuquerque. Traidor dos portugueses, viraria uma
espécie de anti-herói na belíssima peça de Chico Buarque e Ruy Guerra,
intitulada com este mesmo nome sonoro: Calabar.
Se abandonarmos, porém, o espírito nacionalista que a história oficial
emprestou ao episódio holandês, eivada das mitologias construídas na me-
mória pernambucana seiscentista, veremos que a teia do fato é aí muito
complexa. O episódio da conquista de Pernambuco pelos holandeses pos-
suiu vários significados, na própria época, segundo os atores envolvidos, suas
perspectivas e interesses.
A invasão holandesa do Brasil foi, em primeiro lugar, um capítulo da
história das Províncias Unidas dos Países Baixos, o que dele faz um capítulo
da história moderna da Europa. De maneira muito geral, podemos dizer que
a guerra pernambucana é um capítulo menor das Guerra dos Trinta Anos na
Europa (1618-1648), na qual holandeses e espanhóis obviamente combate-
ram em lados opostos. Mas foi também, mais particularmente, um desdobra-
mento da própria independência dos Países Baixos calvinistas contra a domi-
nação dos Habsburgo, que reinavam na Espanha e no Santo Império. Neste
caso, os conflitos se deram contra a Espanha de Felipe II, que herdara os
domínios flamengos de seu pai, Carlos V. Zeloso em defender o catolicismo
contra o calvinismo, bem como em manter o controle econômico da região,
Felipe II enviou o Duque de Alba à frente de poderoso exército, em 1565,
responsável pela dura repressão dos calvinistas. Milhares deles foram conde-
nados à morte, 60 mil ao desterro. Isto provocou, não um recuo, mas o
acirramento da resistência flamenga nas províncias do norte, que proclama-
ram sua independência, ao derrotarem os espanhóis na década de 1580. No
início do século XVII, sob a liderança do Príncipe Guilherme de Orange,
fundaram a República das Províncias Unidas dos Países Baixos, da qual a
Holanda era a mais poderosa e mais rica.
Foram estas províncias calvinistas, lideradas pela holandesa, que urdi-
ram o plano de conquistar o Brasil. Mas por que o Brasil dos portugueses? Isto
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nos leva ao segundo significado do episódio da invasão, que dele faz um


capítulo também da chamada União Ibérica. Morto D. Sebastião em Alcácer-
Quibir, em 1578, Felipe II assumiria o trono português em 1580, após o inter-
regno do Cardeal D. Henrique, dando início ao longo período de dominação
espanhola em Portugal e nos seus domínios ultramarinos. Entre eles, o Brasil,
mas não só o Brasil, pois os holandeses se lançaram contra diversos domínios
hispano-portugueses do planeta. Piratearam no Caribe as frotas das Índias car-
regadas de ouro e prata, quando estas se preparavam para regressar a Sevilha
ou Cádiz. Conquistaram diversas praças no Oriente: Ormuz foi conquistada
pelos persas com apoio holandês, em 1622; em 1630, os próprios holandeses
tomaram pela primeira vez o Ceilão. Mesmo depois da restauração portuguesa
a ofensiva holandesa prosseguiu: Malaca, em 1641; outra vez o Ceilão, em
1656; Malabar, em 1663, que era o nó do comércio dos tecidos do Guazarate.
No caso do Brasil, a ofensiva partiu de uma companhia comercial, que
na época era também militar: a Companhia das Índias Ocidentais, fundada
em 1621. Sua ambição maior: conquistar a Bahia, capitania rica na produção
de açúcar e ainda por cima sede do governo hispano-português no Brasil.
Tentaram, mas não conseguiram, em 1624, conquistar a Bahia, o que os fez
mudar de planos e tentar a invasão de Pernambuco, seis anos depois. Deixa-
ram de lado o aspecto político da invasão, mas não abriram mão do açúcar.
O terceiro grande significado da conquista holandesa de 1630 reside,
assim, no que disse Evaldo Cabral de Mello, no seu Olinda restaurada (1975):
foram guerras do açúcar, guerras pelo controle das regiões produtoras de açú-
car e sua distribuição na Europa. Neste sentido, a disputa pelo açúcar, também
ela, integra um quadro geral de disputas pelos monopólios e possessões colo-
niais que marcaram as relações européias no século XVII: disputa pelo açúcar
do Brasil, pelos tecidos do Guazarate, no Malabar, pelas sedas e especiarias da
Índia, pelo ouro e prata da América. Disputas na terra e no mar, entre o ribom-
bar de canhões, cercos a fortalezas, assalto a frotas e galeões. Os grandes
oponentes desta primeira metade do século XVII: os holandeses calvinistas, de
um lado, os espanhóis católicos, de outro. No fundo do quadro, os portugue-
ses, aliados e, ao mesmo tempo, submetidos aos espanhóis até 1640.
Temos aí um quadro muito geral sobre as diversas faces do episódio da
conquista de Pernambuco pelos holandeses. Um episódio cuja inteligibilida-
de se encontra no cenário europeu: nas guerras de religião entre católicos e
calvinistas; nas guerras econômicas de tipo mercantilista entre as potências
européias; na guerra particular das Províncias calvinistas pela independência
contra a Espanha dos Habsburgo, da qual o Brasil então fazia parte como
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domínio ultramarino. Tais conflitos envolveriam a Europa, a Ásia e a América,


e dizer isto significa tentar retirar o episódio das mitologias proto-nacionalis-
tas que o monumentalizaram entre nossos historiadores oitocentistas.
O único tipo de nacionalismo presente na invasão holandesa de Per-
nambuco foi o que confrontou a Holanda e a Espanha. Mesmo aí, com muitas
reservas. Do lado espanhol, antes de se tratar de um moderno nacionalismo
empunhado por alguma espécie de Estado Nacional, o que sobressaía eram
os intereses da Coroa Habsburgo em Espanha, sua identidade católica, suas
perspectivas imperiais. Do lado holandês, antes de uma nação moderna,
pontificava a união da nobreza e da burguesia flamengas, unidas pelo calvi-
nismo e pelos interesses comerciais. Afinal, foi a Companhia das Índias Oci-
dentais que arquitetou, financiou e decidiu todas as operações – obra de
grandes acionistas, portanto, e não apenas de estadistas no sentido mais
estrito. Muitas decisões militares foram tomadas, na realidade, na assembléia
de acionistas flamengos, sediada em Amsterdam.
A guerra pernambucana, que era filha das guerras européias e prima
das guerras asiáticas, seria irmã gêmea das guerras africanas. Melhor dizendo,
das guerras angolanas, pois em 1641 Luanda seria conquistada pelos holan-
deses. A Companhia das Índias Ocidentais, após muito relutar, chegou à con-
clusão de que não seria possível manter a lucratividade dos negócios açuca-
reiros em Pernambuco sem conquistar a fonte principal de abastecimento de
escravos negros – e assim Angola passou a integrar o império comercial
holandês no Atlântico Sul.
Fato muito importante foi esta conquista de Angola, à qual poucos
prestaram atenção ao tratar do período holandês. Sem Angola, a dominação
holandesa em Pernambuco estaria condenada. Conquistada em 1641, Angola
seria o esteio dos holandeses em Pernambuco; reconquistada pelos portu-
gueses, depois da própria Restauração portuguesa, em 1648, sua perda sina-
lizaria a derrota de 1654. A razão é óbvia: sem Angola os escravos ficaram
mais caros, aumentando o endividamento dos senhores escravistas que per-
maneceram em Pernambuco, daí sua insatisfação crescente, prelúdio da in-
surreição. De modo que o episódio holandês no Brasil também constituiu um
importante capítulo da história da África, e disso trataram o grande Charles
Boxer em vários livros, e mais recentemente Luis Felipe Alencastro em seu
O trato dos viventes (2000).
Até aqui a macro-história, o jogo das potências européias, os grandes
conflitos religiosos, um cenário envolvendo quatro continentes e muitos in-
teresses econômicos. Mas o episódio holandês tem muito a nos ensinar no
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miúdo, numa perspectiva que, reduzindo a escala de observação, resvala


para a micro-análise. Uma micro-análise que, no entanto, oferece excelentes
possibilidades para se compreender a história geral.
E assim, vale dizer que o episódio holandês foi, em vários sentidos, um
capítulo da história dos índios no Brasil. E falar de índios é falar muito pouco
ou quase nada, pois foi grande a complexidade das alianças e cisões ali
envolvidas. Cisões entre potiguares, de um lado, e os ditos tapuias, de outro,
a maior parte dos quais auxiliou os holandeses desde 1630 até 1654. Cisões
no próprio interior dos potiguares. Vale contar em breves palavras a história
de três índios potiguares que protagonizaram esses eventos.
Em primeiro lugar, Pedro Poti, guerreiro potiguar, parente de Felipe
Camarão, líder indígena que chefiaria parte dos índios desta “nação” contra
os holandeses na Insurreição Pernambucana. Mas Pedro Poti seguiu caminho
oposto: converteu-se ao calvinismo e lutou ao lado dos holandeses. Ainda
em 1625, parte dos potiguares havia se aproximado dos holandeses na Para-
íba, onde estes desembarcaram fugidos da Bahia, após o fracasso da conquis-
ta da Bahia, tentada um ano antes.
Pedro Poti seguiu para a Holanda junto a um grupo de seis índios de sua
“nação”. Passou anos em Amsterdam, onde aprendeu holandês e foi instruído na
fé calvinista. Ainda na Holanda, redigiria uma Declaração, em 1628, exortando
Felipe Camarão para que aderisse aos holandeses contra os “perversos portu-
gueses”, que escravizavam e matavam os de sua “nação”. É documento raríssi-
mo que figura entre os primeiros registros etno-históricos dos índios do nordeste,
publicado nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1907.
Com o sucesso da invasão holandesa em Pernambuco, em 1630, Pedro
Poti tornou-se regedor dos índios potiguares na Paraíba e foi mobilizado em
campanhas militares contra os portugueses e seus aliados indígenas. Na se-
gunda batalha dos Guararapes, em 19 de fevereiro de 1649, foi aprisionado
e posto a ferros pelos portugueses numa enxovia localizada no Cabo de
Santo Agostinho, onde permaneceu meses a pão e água. Consta que sofreu
torturas alternadas com promessas de honrarias caso passasse para o lado
português, abjurando do calvinismo. Mas Pero Poti resistiu e morreu a bordo
do navio que o conduzia preso para Lisboa, em 1652.
O segundo, Antônio Paraupaba, também potiguar, companheiro de Pedro
Poti no exílio holandês, também se converteu ao calvinismo e lutou com
bravura pelos holandeses contra os portugueses. Com o sucesso da invasão
holandesa em Pernambuco, em 1630, Antônio Paraupaba adquiriu posto de
comando, sendo também elevado a regedor dos índios potiguares, no Rio
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Grande do Norte, e mobilizado em campanhas militares.


A derrota dos holandeses, em 1654, deixou Paraupaba e seus liderados
em situação dificílima. Refugiou-se na serra do Ibiapaba, no Ceará, e conse-
guiu fugir para a Holanda num navio corsário. Ali redigiu suas curtas “memó-
rias” em holandês, solicitando auxílio para os potiguares do Brasil que havia
liderado, ou seja, os “súditos bons e firmes” do “Estado e Religião Reformada
de Cristo”. É um dos raríssimos documentos escritos por um índio do Brasil
Colonial, ora depositado na Biblioteca de Haia2.
Em terceiro lugar, o herói oficial, Felipe Camarão.
Antônio Felipe Camarão era índio potiguar nascido no Rio Grande do
Norte, em 1601. Foi elevado por Varnhagen à categoria de “herói nacional”
por ter lutado bravamente ao lado dos portugueses contra os holandeses, e
por isso transformado em mito pelo papel desempenhado na guerra que
teria esboçado a nacionalidade brasileira.
A história real é, porém, mais complexa. Felipe Camarão era uma das
principais lideranças potiguares do nordeste. Havia estudado com os jesuítas,
conhecia um pouco de latim e também aprendeu o holandês. Felipe Camarão
manteve-se fiel aos portugueses desde o início. Lutou nas guerras de resistên-
cia após a vitória holandesa em 1630, prestando valioso auxílio às tropas de
Matias de Albuquerque. Em 1636 salvou as tropas portuguesas de completa
derrota em batalha. Em 1637 participou da famosa batalha de Porto Calvo ao
lado dos terços de Henrique Dias, enfrentando tropas comandadas pelo pró-
prio Maurício de Nassau. Nesta fase da guerra teve reconhecida sua lealdade
pelo rei Felipe III, que lhe concedeu o hábito de Cavaleiro da Ordem de
Cristo, o direito de usar o título de Dom e brasão de armas, com soldo de
capitão-mor dos índios e tença de 40 mil réis. Com o início da Insurreição
Pernambucana sua atuação atingiu o apogeu, sobretudo pelo auxílio prestado
a André Vidal de Negreiros na primeira batalha dos Guararapes, em 1648.
A longa guerra seria vencida pelos portugueses, em 1654, e os potigua-
res do “partido holandês” sucumbiriam, como disse, junto com os flamengos.
Pedro Poti, apriosionado e morto, em 1652. Antônio Paraupeba, exilado na
Holanda, morreria em 1656. Mas o próprio Felipe Camarão, chefe da facção
“brasiliana” dos índios, morreria antes deles, não chegando a ver a vitória final
portuguesa. Acometido de febre maligna, faleceria em Arraial Novo, Pernam-
buco, em 1648.

2 O documento foi traduzido por P. Souto Maior e publicado na Revista do Instituto do Ceará, v. XXVI, p.
72-82, 1912.
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Morto, porém herói e enobrecido, além de celebrizado na historiografia


brasileira tradicional. Quantos estudantes de história pelo menos não ouvi-
ram falar de Felipe Camarão? Desafio qualquer um a abrir a página de qual-
quer livro didático de qualquer época, no capítulo das guerras pernambuca-
nas, e ali verão o nome de Felipe Camarão. E de Pedro Poti ou de Antônio
Paraupaba, quantos terão ouvido falar? Episódios celebrizados, episódios es-
quecidos, assim se contrói uma certa memória que a história deve enfrentar.
Passando dos índios aos negros, entra em cena Henrique Dias. Durante a
guerra contra os holandeses, no meado do século XVII, Henrique Dias, negro
forro, ofereceu auxílio a Matias de Albuquerque para combater os inimigos.
Comandando um exército de negros libertos, participou de forma decisiva de
várias frentes, contribuindo para libertar Pernambuco, em 1654. Era natural de
Pernambuco, nascido em data incerta, possivelmente entre 1575 e início do
século XVII, não se sabe se escravo ou livre. Depois de 1635, tendo os holan-
deses ocupado o território, Henrique Dias permaneceu em Pernambuco, sen-
do nomeado, por Carta Régia de 21 de junho de 1636, governador dos negros
com a missão de queimar canaviais e fustigar os holandeses. Reconvocado em
1645, Henrique Dias e Felipe Camarão, o chefe potiguar, retornaram ao cam-
po de batalha. Na oportunidade, Dias prometeu não ostentar o Hábito de
Cristo oferecido pelo rei antes de ver a restauração de Pernambuco. No mes-
mo ano, tomou a casa de um flamengo que possuía uma torre alta, próxima à
cidade Maurícia. O “arraial dos pretos”, como ficou conhecido, tornou-se um
baluarte que repelia, diariamente, as ofensivas holandesas.
Depois da vitória final dos luso-brasileiros, em 1654, recebeu comenda
de D. João IV, o hábito da Ordem de Cristo, além da repartição de algumas
fazendas e propriedades em Pernambuco e dois mil cruzados em dinheiro
para serem repartidos entre seus soldados. Em março de 1656 viajou a Por-
tugal para requerer satisfação por serviços prestados, visto que o prêmio era
muito inferior ao recebido pelos demais restauradores. Pediu foros de fidalgo
para si e seus genros, além da alforria para os soldados e oficiais escravos que
haviam lutado sob o seu comando. A questão foi resolvida pelo Conselho
Ultramarino que, alforriando os negros combatentes, indenizou, modesta-
mente, os proprietários menores e obteve a manumissão dos senhores ricos.
Um negro, portanto, conseguiu, por serviços prestados, a alforria de
seus parentes e companheiros de luta, e ainda alcançou a nobilitação, num
tempo em que vigiam os férreos estatutos de pureza de sangue. Tornou-se
um dos mitos da restauração pernambucana, celebrizado por historiadores
antigos como símbolo da presença da “raça negra” na brasilidade irrompida
19

nesta guerra, como nos conta Gonsalves de Mello em seu Henrique Dias:
governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil (1988). Celebrizado no
século XIX, acabaria execrado pela historiografia do século XX, inspirada no
movimento negro, como traidor da raça: uma espécie de anti-Zumbi.
Neste vai-e-vem de lealdades e infidelidades – históricas, imaginárias
ou mitológicas –, um caso fantástico é o do jesuíta Manuel de Morais. Nascido
em São Paulo, por volta de 1596, falava fluentemente o tupi, estudou no
Colégio dos Jesuítas na Bahia e fez todos os votos da Companhia. No final da
década de 1620 atuou como superior da aldeia inaciana de São Miguel, em
Pernambuco, ao que parece com máxima eficiência. Após a invasão holan-
desa, em 1630, permeneceu firme no seu posto e chegou a pegar em armas
com destaque. Foi capitão geral dos índios e comandante de Felipe Camarão
até ser destituído do posto por tramas de eclesiásticos e outros capitães.
Continuou, porém, na luta de resistência na Paraíba, até cair prisioneiro dos
holandeses, em 1635, fato que mudou radicalmente o curso de sua vida.
Abandonou, então, o catolicismo, aderiu ao calvinismo e prestou inú-
meros serviços aos holandeses, trajando-se como leigo, escarnecendo dos
prisioneiros portugueses. Não fez nenhuma questão, vale dizer, de seguir o
voto de castidade e teve vida dissoluta, segundo diziam. Foi por isso expulso
da Companhia e processado pela Inquisição, à revelia, que o condenou à
fogueira, sendo queimado simbolicamente em efígie, em auto-de-fé realiza-
do em Lisboa, em 1642. Era tido pelos católicos como “o maior herege e
apóstata que a Igreja de Deus” possuía naqueles dias.
Condenado pela Inquisição de Lisboa, Manuel de Morais viveu algum
tempo no Recife holandês, sendo depois enviado para a Holanda. Casou-se
ali duas vezes, em ambas com esposa calvinista, tendo ao todo três filhos.
Enviuvou da primeira e abandonou a segunda esposa – “uma das mais lindas
do país”–, regressando a Pernambuco. Dedicou-se, então, ao comércio do
pau-brasil com os holandeses, levando a madeira do interior para o Recife à
custa do trabalho indígena. Estourando a Insurreição Pernambucana, em 1645,
caiu prisioneiro dos portugueses e aí mudou novamente de lado e serviu
como capelão dos portugueses em várias batalhas. Mas acabou preso e envi-
ado a Lisboa para ser outra vez julgado no Santo Ofício por suas heresias
passadas. Abjurou de todas as culpas, mas foi sentenciado ao cárcere. Doen-
te, teve a pena suspensa, em 1648, falecendo em 16513.

3 O processo do Padre Manuel de Morais encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição
de Lisboa, Apartados, processo 4847. Foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, 1908.
20

O caso de Manuel de Morais, que passou de jesuíta a calvinista, sinaliza


a tremenda complexidade do episódio holandês em matéria de religião. As-
sim como o padre largou o catolicismo em favor do calvinismo, como, aliás,
o fizeram alguns índios, houve holandeses que se converteram ao catolicis-
mo para casar com mulheres católicas, mulheres bem dotadas da nobreza da
terra, filhas dos senhores do açúcar, inclusive muitos oportunistas que haviam
comprado em leilão as terras dos que fugiram para a Bahia depois de 1630.
Mas nada ilustra melhor a verdadeira Babel religiosa do Pernambuco
holandês do que a trajetória dos cristãos-novos e dos judeus do Recife; quer
dizer, o renascimento do judaísmo que havia sido erradicado do mundo ibé-
rico desde o final do século XV. Vale dizer que cristãos-novos portugueses
que se haviam refugiado em Amsterdam no início do século XVII retornaram
ao judaísmo ali e não só ajudaram a financiar a invasão de Pernambuco como
atuaram decisivamente no domínio holandês. Possuíam cerca de 10% do
capital inicial da Companhia flamenga e muitos deles migraram para Per-
nambuco depois de 1630. Afinal, não custa lembrar, eles eram portugueses
ou filhos de portugueses. Foram ativos comerciantes no Recife, a ponto de
uma das principais ruas da cidade ficar conhecida como “rua dos judeus”
(Jodenstraat), depois rebatizada ironicamente como Rua do Bom Jesus. Fa-
lantes de português e holandês, foram importantíssimos para o governo fla-
mengo e ainda mais no tráfico de escravos, sobretudo depois da conquista
de Luanda, em 1641, alcançando o número de 1450 pessoas em 1644.
No campo religioso, transferiram para o Recife duas congregações judaico-
portuguesas de Amsterdam, a Kabal Kadosh Zur Israel e a Kabal Kadosh Ma-
ghen Abraham, sendo que a primeira, conhecida como Sagrada Congregação
Arrecife de Israel fundou a primeira sinagoga das Américas, em 1636. O primeiro
rabino do Novo Mundo foi um judeu português, Isac Aboab da Fonseca, que
chegou ao Recife em 1642. Foi o primeiro escritor judeu nas Américas, autor de
Levantei um monumento aos milagres de Deus, e foi um dos maiores responsá-
veis pelas conversões de inúmeros cristãos-novos do Brasil ao judaísmo.
Inúmeros cristãos-novos, que antes da dominação holandesa eram sus-
peitos de judaizar, porém mal conheciam o judaísmo, de repente viram de
perto os autênticos judeus. Judeus que falavam português como eles, eram
também de origem sefardita, mas conheciam hebraico, liam o Talmud, fre-
qüentavam sinagogas públicas. Se tem razão Anita Novinsky ao dizer que o
cristão-novo era um homem dividido em sua identidade4, nunca isto foi mais

4 Novinsky, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 162.


21

dramático como no episódio holandês. Muitos cristãos-novos nascidos no Brasil


mantiveram enorme distância dos judeus e tornaram-se mais católicos do
que antes. Mas houve muitos que se lançaram ao judaísmo, chegando mes-
mo a se circuncidarem já adultos. Os judeus, por sua vez, viam os cristãos-
novos com desconfiança. Se houve os que, como o rabino Isaac da Fonseca,
abriram-lhes o caminho da “lei de Moisés”, outros os achavam renegados que
não mereciam comiseração. Eis a sina dos cristãos-novos: para a maioria dos
católicos, eram judeus; para a maioria dos judeus, eram católicos.
Mas a experiência do ir-e-vir religioso da comunidade sefardita no Reci-
fe é desses mistérios que precisam ser esclarecidos. Foi, de todo modo, uma
experiência única na história colonial ibero-americana, facilitada em grande
parte pelo Príncipe Maurício de Nassau, estadista especialmente notável pelo
seu espirito de tolerância religiosa combinada à habilidade política. Era en-
deusado pelos judeus por ter enfrentado os calvinistas radicais que se opuse-
ram à criação da sinagoga do Recife. Mas era igualmente idolatrado pelos
católicos, inclusive a fradaria, que o chamavam de “nosso Santo Antônio” ou
“Santo Antoninho”, por sua tolerância com as festas e procissões tradicionais.
Uma das histórias mais fascinantes desses “judeus novos” de Amster-
dam no Brasil foi a de Isaac de Castro, biografado por Elias Lipiner5. Nascido
em Portugal, muito jovem se passou ao Brasil, no tempo dos holandeses,
após viver em Amsterdam. Era muito talentoso, pois estudara medicina, filo-
sofia e falava diversas línguas. Isaac de Castro nascera português e católico,
mas era desses que apostasiara, retornando ao catolicismo. Em 1644 come-
teu a imprudência de deixar Pernambuco e ir à Bahia. Uns dizem que fugira
de dívidas, outros que fora à Bahia para pregar o judaísmo entre os cristãos-
novos baianos. Acabou preso por ordens do Governador sob suspeita de
espionagem, mas foi logo processado pela Inquisição como judaizante. Isaac
tentou escapar das acusações dizendo que não era herege, por ser judeu, e
não católico que se desviara da Igreja. De nada adiantou seu esforço. Foi
processado pelo Santo Ofício e resolveu assumir de vez o judaísmo, insultan-
do os inquisidores e a Igreja, defendendo a excelência da lei de Moisés. No
limite, chegou a dizer que a superioridade holandesa sobre os católicos se
devia a que a Holanda abrigara os judeus expulsos de Portugal – atitude que
lhe valeu a pena máxima, como impenitente. Foi queimado em Lisboa, em
1648, sendo dos poucos queimados vivos pela Inquisição Portuguesa, sem a
“misericórdia do garrote”, nos quase três séculos de sua existência.

5 Lipiner, Elias. Isaque de Castro: o mancebo que veio preso do Brasil. Recife: Massangana, 1992.
22

No pólo oposto ao de Isaac de Castro temos Jacob Rabi. Judeu como Isaac,
mas que não era português, nem, portanto, sefardita. Era alemão, judeu ashke-
nazi, desses que migraram da Europa centro-oriental para Amsterdam nos anos
1630 e eram muito discriminados pelos judeus sefarditas de origem ibérica. De
todo modo, passando a Pernambuco, Jacob Rabi não queria nada com os judeus
portugueses do Recife. Funcionário da Companhia holandesa, casou-se com uma
índia tapuia da tribo dos janduís. Foi valioso intérprete e conseguiu o importante
apoio de diversas nações tapuias para a causa holandesa no nordeste. Consta
que foi ele, Jacob Rabi, quem liderou os famosos massacres do Rio Grande do
Norte, em Cunhaú e Uruaçu, cujas vítimas foram beatificadas pelo Papa João
Paulo II, como mártires, no ano de 2000. Em 1646 foi assassinado por soldados
holandeses, mas o inquérito sobre o homicídio não foi adiante6.
Queima de arquivo, ao que tudo indica, como foi queima de arquivo a
punição que Matias de Albuquerque havia dado ao nosso Calabar anos atrás.
Jacob Rabi traíra os judeus ao lutar pelos holandeses, casar-se com uma índia
e viver como índio? Traiu ou trairia de algum modo os holandeses, e por isso
acabaria assassinado pelos seus aliados? E Calabar? Traíra os portugueses ou
sabia de inúmeras traições, como a de vários senhores de engenho que ser-
viram aos holandeses, ou como a do padre Manuel de Morais, que abraçou o
calvinismo? Sabia de algum fato suspeito do próprio Matias de Albuquerque?
Nas múltiplas teias do fato e dos acontecimentos, o episódio holandês dá-
nos exemplo de como a história do acontecimento pode ser rica, sobretudo se
combinarmos, como ensina Braudel, a história frenética do tempo curto com a
do tempo médio das conjunturas e o tempo longo das estruturas. Estruturas que
podem ser pensadas no vasto campo que inclui desde a economia às mentalida-
des. De maneira que não quero encerrar aqui fazendo a apologia da história
factual ou ao retorno do fato histórico como objeto primordial da história.
Mas não tenho dúvida em realçar a sua importância no texto historio-
gráfico, de preferência ao ensaio generalizante e teoricista onde a teoria é
utilizada não para explicar a história, mas para escondê-la. O fato, portanto,
pode abrir caminho para interpretações de conjunto, servir como ponto de
partida de interpretações gerais. E, neste sentido, há que combinar os fatos
realmente gerais – outrora chamados de fatos históricos – com os fatos
miúdos, com a biografia de personagens quase anônimos ou estigmatizados,
coisa que somente a micro-análise é capaz de oferecer. É isto o que nos
ensinam os enredos do episódio holandês com sua plêiade de Calabares.

6 Cf., por exemplo, Boxer, Charles. Os holandeses no Brasil. São Paulo: Nacional, 1961 (original de 1957).
23

Regional vs. national history: rethinking


categories from a comparative perspective
Barbara Weinstein*

The turn from traditional political history to the new social history and
then to the new cultural history has allowed us to rethink many questions,
including the question of what is regional and what is national, an especially
pressing issue for historians of Brazil. At the outset of my academic career
(ca. 1975) the literature on Brazilian regionalism was heavily influenced by
North American historians working within a positivist/empiricist framework
that privileged political structures and associated regional identity entirely
with the elite politics of the First Republic. Works by Joseph Love on Rio
Grande do Sul and São Paulo, John Wirth on Minas Gerais, Robert Levine on
Pernambuco and Eul-soo Pang on Bahia explored regionalism and regional
history as a function of the decentralization of politics under the Old Republic1.
Though these historians usefully called attention to the significance of
regionalism and decentralization during that political era, their works, for the
most part, left undisturbed the hegemonic metanarrative of the nation that
emphasized the gradual decline of regional identity in favor of a strong,
centralizing state2.
As one might expect, when Brazilian historians of Brazil became
interested in the question of regionalism and regional history in the mid-
1980s, they tended to explore this issue within a neo-Marxian framework,
and particularly from a Gramscian perspective that privileged material interests
and the hegemonic discourses of socioeconomic elites. These new studies –

* Department of History, University of Maryland.


1 The most important of these studies were Love, Joseph L. Rio Grande do Sul and Brazilian regiona-
lism, 1882-1930. Stanford: Stanford University Press, 1971; and São Paulo in the Brazilian Federation,
1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1980. The latter was part of a series that included
Wirth, John D. Minas Gerais and the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University
Press, 1977; and Levine, Robert. Pernambuco in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stan-
ford University Press, 1978. See also Pang, Eul-Soo. Bahia in the First Brazilian Republic: coronelismo
and oligarchies, 1889-1934. Gainesville: University of Florida Press, 1979.
2 On the discourse of the “strong state,” which pervaded both left and right-wing positions on state and
nation, see Chauí, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1989.
24

exemplified by the volume República em migalhas (published in 1990 but


derived from a 1985 ANPUH session) – criticized the earlier tendency to
naturalize regional divisions and identities, and argued that regions had to be
historicized with reference to the process of capitalist development3. From
this perspective (which I myself adopted in a 1982 review essay), regional
history, in the last instance, had to be understood in terms of the articulation
of different modes of production or the uneven nature of capitalist
development, and the role of the Nation-State in mediating the interests of
hegemonic and subordinate elites4.
The neo-Marxist turn had several salutary effects on the discussion of
regionalism and regional history. First of all, it emphasized the idea that a
region was the product of historical processes, not of geographic features or
even geopolitical conventions, and that the definition of a region was inherently
unstable, and could shift from one era to another. And perhaps more important,
it insisted that regional history could not be understood outside the context of
national, and even global, history. Regional history was not only a way to
understand the particularities and peculiarities of a specific region, but a
manifestation of broader national currents and tendencies5. Thus, in her
introductory essay to República em migalhas, Janaína Amado observed that
several contributors to that volume defined “region” as a “categoria espacial
que expressa uma especifidade, uma singularidade, dentro de uma totalidade;
assim, a região configura um espaço particular dentro de uma determinada
organização social mais ampla, com a qual se articula”6.
In this same introductory essay, the author considered not only the new
theoretical trends in the field of regional history, but also the institutional bases
for the surge in interest in regional studies, citing the proliferation of masters and
doctoral programs beyond the Rio-São Paulo axis (as well as the increasing number
of doctoral students from areas other than Rio and São Paulo). These theoretical
and institutional trends combined to create a context in which there was an
increasing preoccupation with valorizing regional history7. In a sense, the new

3 Amado, Janaína et al. República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/
CNPq, 1990.
4 Weinstein, Barbara. Brazilian regionalism. Latin America Research Review, v. 17, n. 2, p. 262-276,
Summer 1982.
5 See especially Silveira, Rosa Maria Godoy. Região e história: questão de método. In: Amado, Janaína et
al. República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 17-42.
6 Amado, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In:: Amado, Janaína et al.
República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 8.
7 Ibidem, p. 7, 11.
25

social history of the 1970s and ‘80s also provided a favorable context for the
inclusion of the histories of previously excluded groups (whether socially or
spatially defined), and thus so-called regional historians could utilize arguments
similar to those expressed by historians of women, indigenous peoples, Afro-
Brazilians and other marginalized groups8.
As I have argued elsewhere, this strategy of inclusion as a remedy for
marginality, though crucial, perhaps even essential, at a particular historical
moment, has severe limitations when it comes to challenging dominant historical
narratives9. And this same limitation is apparent when we consider the effort
by those doing so-called “regional history” to have their work valued by the
larger intellectual community, and to have an impact upon historical debates.
Though the contributors to República em migalhas historicized the concept of
region, rejecting the positivist notion of a region “como um dado, já aceito e
acabado”10, and inserted regional history into a larger totality or historical narrative,
they still accepted a certain fixity of categories, a certain stability of boundaries,
between the region and the nation. It is at this juncture that the new cultural
history, with its emphasis on the nation and, by extension, the region as imagined
communities, allows us to reconsider regionalism, and regional history, as a
discursive effect inseparable from the construction of national historical narratives,
and enables us to destabilize the very boundaries between region and nation11.
Furthermore, I would argue that it is only through this process of destabilization
that so-called “regional history” can transcend its marginal status within the
academic community and participate fully in the ongoing process of historical
debate and revision.
Before continuing with this argument, I’d like to note the two different
sources of inspiration for this essay. One was the preface written by José Luiz
Werneck da Silva to Geraldo Mártires Coelho’s monograph on the death of

8 Ibidem, p. 14. This has been particularly the case in the historiography of the Nordeste and Amazônia.
For the former, see Martins, Paulo Henrique. O Nordeste e a questão regional. In: Amado, Janaína et al.
República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 51-66. For the
latter, see Souza, Márcio. Depoimento: Amazônia, modernidade e atraso ou o Brasil e seus paradoxos
regionais. Manguinhos, História, Ciências, Saúde, VI, p. 1061-1071, set. 2000.
9 Weinstein, Barbara. A pesquisa sobre identidade e cidadania nos EUA: da Nova História Social à Nova
História Cultural. Revista Brasileira de História, XVIII, 35, p. 227-246, 1998.
10 Silveira, 1990, p. 17.
11 Of course the crucial inspiration for this argument is Benedict Anderson’s classic study, Imagined
communities: reflections on the origin and spread of nationalism. New York: Verso, 1983. For a critique
of Anderson’s association of the nation with (western) modernity, see Duara, Prasenjit. Historicizing
national identity, or who imagines what and when. In: Eley, Geoff; Suny, Ronald Grigor (Eds.).
Becoming national. New York and Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 151-177.
26

Carlos Gomes in Belém do Pará, O brilho da Supernova. According to Werneck


da Silva, “a obra [de Coelho] vem ganhando tal dimensão nacional que nos
estimula a ponderar, mais uma vez, sobre as limitações e falácias contidas na
expressão ‘historiografia regional,’ tantas vezes carregada de ideologia em
seu uso editorial”12. Aside from its obvious homage to the author’s work, this
comment simultaneously reproduced the hierarchical relationship between
the regional and the national, and questioned the very division that established
that hierarchy.
The other source of inspiration was a concurso in my department for a
historian of the early national period in US history. Three candidates came to
campus and presented their doctoral research. One was working on marital
arrangements and race mixture (between French and Anglo settlers and
indigenous women) on the Wisconsin frontier in the early 19th century; not
surprisingly, this candidate was getting her Ph.D. from the University of
Wisconsin. The next candidate, a Ph.D. student at UCLA, was studying gender
and family relations along the Texas/Mexico border in the period of transition
from Spanish, to Mexican, to US rule. And the final candidate was studying
the process of gradual emancipation in late 19th century Rhode Island (and,
not surprisingly, had earned her Ph.D. from Brown University, located in that
tiny New England state). All three of them were doing research on a
geographic region close to the location of their graduate work, and all three
were studying areas that could be considered outside the mainstream of US
historical experience. Yet none of my colleagues ever referred to any of
them as doing regional history. Moreover, had they done so, it would surely
have been perceived as a pejorative comment that would prejudice that
scholar’s candidacy since, no matter how much scholars call for the valorization
of regional history, the very language used to designate it marks it as inferior
to so-called “national” history in a world where the nation is still the primary
“imagined community”.
Yet my colleagues were not just being tactful by eschewing the “regional
history” label. Rather, they (both my colleagues and the candidates) genuinely
did not conceptualize these research projects as “regional history”. And they
did not conceptualize them this way even though the primary research in
each case focused exclusively on a specific, spatially-defined region or sub-
region not normally regarded as lying at the “center” of the nation during

12 Silva, José Luiz Werneck da. Prefácio. In: Coelho, Geraldo Mártires. O brilho da Supernova: A Morte Bela
de Carlos Gomes. Rio de Janeiro: Agir / UFPA, 1995, p. 13.
27

those years, and despite the existence of well-established disciplinary subfields


in US history – especially southern history and western history – that are
defined, prima facie, by regional boundaries. So the obvious question to ask
is why such studies are not “stigmatized” or “marginalized” as regional history,
and why people doing such studies in the US context do not have to argue
(in vain, I think) for the valorization of regional history. I would speculate
that the answer lies in two separate but related suppositions. One has to do
with the assumption that the national state had, even in that “early national”
period, a much more powerful presence throughout US territory (and even
beyond the presumptive national borders). Related to that is the widespread
assumption that elites (even keeping in mind the growing North/South split)
shared certain discourses about race and civilization that informed all
interactions among the state, settlers and local or subaltern populations13. It is
precisely with reference to this triumphalist historical narrative that scholars
have taken up the study of certain regions, not simply to expand the
parameters of US history, or to promote the “inclusion” of previously ignored
groups, but to challenge the narrative itself. Thus, the history of the South
flourished in the late 1960s and ‘70s in response to the political and social
impact of the civil rights movement and the rethinking of the central roles of
race and slavery in North American life14. More recently, there has been an
enormous surge of interest in the History of the West, in part driven by
scholars in “ethnic studies” who focus specifically on the experiences of
Native Americans, Mexican-Americans and Asian-Americans. Here again,
however, the emphasis is less on incorporation or inclusion, and more on the
need to challenge dominant historical narratives and triumphalist chronicles
of progress, with historians of the West arguing that we need to rethink US
history from West to East, rather than the traditional trajectory from East to
West 15. Their work has been especially effective in challenging the
foundationalist narrative of “America as the land of opportunity” by shifting
our focus away from the relatively white and “successful” immigrants (the
Irish, Italians, and Jews) who entered through the Atlantic ports, to those

13 See Waldstreicher, David. In the midst of perpetual fetes: the making of American nationalism, 1776-1820.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1997; and Jacobson, Matthew Frye. Whiteness of a different
color: European immigrants and the alchemy of race. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
14 See Foner, Eric. Reconstruction: America’s unfinished revolution, 1863-1877. New York: Harper &
Row, 1988.
15 White, Richard. The middle ground: Indians, empires, and republics in the Great Lakes Region, 1650-
1815. Cambridge: Cambridge University Press, 1991; Limerick, Patricia Nelson. The legacy of conquest:
the unbroken past of the American West. New York: Norton, 1987.
28

who entered from the West and the South, and labored under explicitly
racialized forms of exclusion. In her introduction to República em Migalhas,
Janaína Amado described national history as “the general” and regional history
as “the particular”, but such categories would be utterly inadequate to describe
the intellectual enterprises of southern and western historians in the United
States, who typically envision their work as a challenge to or a reinterpretation
of “the general”16.
Closing that extended parenthesis, I want to return to the point raised
earlier about the need to destabilize the categories of region and nation.
Again, an earlier neo-Marxist/social history approach to regional history
(including my own) argued persuasively that the region could not be
understood or analyzed apart from the nation, providing a welcome antidote
to the positivist view of regional history, or the descriptive/antiquarian aspects
of local history. But the social history approach still accepted conventional
categories of region and nation, and therefore could not mount a compelling
argument for the converse—that the “nation” could not and should not be
understood or imagined apart from the “region”. We have to move beyond
material processes and relations of production, to the ongoing process of
identity formation, of imagining the “self” and the “other” in order, not only
to make regional history ‘national”, but also (and perhaps more challenging)
to make national history ‘regional’. From this vantage point, the national
does not exist without the regional, just as the imperial does not exist without
the colonial, and the lines between the two categories, so sharp and clear
from the perspective of social and economic history, start to blur and,
sometimes, even dissolve17.
My final point, then, is that the division between the regional and the
national is itself problematic and misleading. It’s not simply that multiple
histories and identities can co-exist, but that regional history is only meaningful
with reference to the national, and national histories are always informed by
a regional perspective, or competing regional perspectives. In his provocative
critique of theories of the nation, Rescuing history from the Nation, Prasenjit
Duara argues that the consolidation of a modern nation form in China during
the late 19th/early 20th century, far from suppressing regional identities and
discourses, actually activated a revival of regional history and culture as

16 Amado, 1990, p. 12-13.


17 On the fixity of categories and the blurring of lines between the imperial and the colonial, see Bhabha,
Homi K. The Other question: stereotype, discrimination and the discourse of colonialism. In: Bhabha,
Homi K. The location of culture. New York: Routledge, 1994, p. 66-84.
29

different segments of the elite jockeyed for position on the national stage. In
contrast to the standard narrative of modernity that positions national identities
as normative and hegemonic, and regional identities as deviant and secondary,
and imagines regional identities as fading with time (symbolized in Brazil by
Vargas’ burning of the state flags in the opening days of the Estado Novo),
Duara claims that nationalism typically revivifies regionalism, though now
often articulated or performed as the true “essence” of the nation. “Traditions”
are resurrected, suppressed, invented or discarded according to their ability
to construct an identity that is both regionally distinctive and coherent with a
national vision18. In effect, regional history becomes the template for national
history, or at least for one version of it.
This interplay between the regional and the national seems especially
clear to me in the case of São Paulo’s rebellion against Getúlio Vargas in the
early 1930s, which culminated in the so-called “Constitutionalist Revolution”
of 1932. The standard (getulista) narrative of that uprising depicts it as a last-
ditch restorationist effort by a powerful regional elite incapable of suppressing
its regional interests in favor of the genuinely national project represented
by the Vargas regime. This depiction has some merit, but it has the defect of
reifying the regional and the national. In contrast, I would argue that the
paulistas’ project, far from being a backward-looking defense of regional
interests, reflected a particular construction of modernity and the modern
nation-state19. Tânia de Luca, in her recently published book on the Revista
do Brasil, notes the paulistas’ continuous conflation of region and nation in
the pages of that journal:
Contudo, uma representação em particular transparece com força: a
que atrelava as possibilidades de futuro à condição de se impor o exemplo
paulista ao conjunto do país. Cada vez mais a nação foi sendo identificada ao
Estado de São Paulo que, com suas fazendas, indústrias, ferrovias e grandes
cidades, desfrutava de uma prosperidade econômica sem similar no país.

Os atributos da nacionalidade – fronteiras definidas, conquista da

18 Duara, Prasenjit. Rescuing history from the Nation. Chicago: University of Chicago Press, 1995, chap. 6;
see also Confino, Alon. The Nation as a local metaphor: Wurttemberg, Imperial Germany, and national
memory, 1871-1918. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1997. On the flag-burning
ceremony, see Williams, Daryle. Culture wars in Brazil: the first Vargas Regime, 1930-1945. Durham:
Duke University Press, 2001.
19 For further discussion of paulista regionalism, see Weinstein, Barbara. Racializing regional difference:
São Paulo vs. Brazil, 1932. In: Appelbaum, N.; Macpherson, A.; Rosemblatt, K. (Eds.). Race and nation
in Latin America. Chapel Hill: University of North Carolina Press, forthcoming 2002.
30

soberania política, feitos históricos gloriosos, habitantes dotados de


traços étnicos specíficos, posse de uma lingua e de uma cultura pró-
pria – acabaram sendo creditados exclusivamente aos paulistas. Nas
páginas da Revista do Brasil é possível acompanhar os passos dessa
construção mitológica que atribuía ao Estado toda e qualquer positi-
vidade contida na idéia do Brasil.20

To be sure, this project relegated much of the Brazilian population to a


subordinate or inferior status on the basis of regional/racial origin, but this
does not signify that the paulistas lacked a “national” project – unless by
national we automatically mean democratic and inclusive, a historically
untenable premise. Conversely, it would be impossible to understand Vargas’
political project without attention to his regional origins, and his political
experiences in Rio Grande do Sul, which clearly informed his policies for a
Brazil that looked very different, in most ways, from his home state21. And
Gilberto Freyre’s particular construction of Brazilian national identity could
hardly be separated from his roots in Northeastern regionalism, and its implicit
or explicit rejection of the paulista construction of national identity22.
What political projects, and what histories, get defined as regional or
national is not entirely arbitrary, of course. By historicizing these categories,
as well as considering issues of power and position with the academy, we
can uncover the specific political and cultural assumptions that designate
one historical narrative as national and another as regional. Needless to say,
as historians we have no obligation to accept these designations; on the
contrary, I would argue that our obligation is to question and critique all such
“received” categories. Yet, many of us still write the history of Brazil as if
there were an identifiable national “center” (i.e., Rio and São Paulo), and an
objectively defined regional “periphery”. However, all we have to do is look
at some recent studies of borderlands, north and south, to appreciate how
problematic it is to dichotomize region and nation, or to use either levels of
economic development or geographic location to measure “nationness”. Both
John Chasteen’s monograph on the borderlands between Rio Grande do Sul

20 Luca, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: diagnóstico para n(ação). São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 78.
21 Bak, Joan L. Cartels, cooperatives, and corporatism: Getúlio Vargas in Rio Grande do Sul on the eve of
Brazil’s 1930 Revolution. The Hispanic American Historical Review, LXIII, p. 255-275, may 1983.
22 On the Freyre’s regionalism, see Oliven, Ruben George. O nacional e o regional na construção da
identidade brasileira. In: Oliven, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-Nação.
Petrópolis: Vozes, 1992, p. 31-45.
31

and Uruguay and Cristina Scheibe Wolff’s study of rubber tappers in Acre –
areas about as distant from a mythical national “center” as one can imagine –
demonstrate the extent to which national identity, and the struggle to define
what it means to be “Brazilian”, informs everyday life even (or especially?) in
these remote regions23. It is in this spirit that I urge us, not to valorize regional
(or national) history, but to deconstruct the very categories of region and
nation, and to re-think how they are deployed in the construction of historical
narratives, and in the configuration of the academic community.

23 Chasteen, John C. Heroes on horseback: the life and times of the last gaucho caudillos. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 1995; Wolff, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história – Alto
Juruá, Acre, 1890-1945. São Paulo: Hucitec, 1999.
32
33

Fronteiras e Missões coloniais:


continuidades e oposições culturais*
Arno Alvarez Kern**

Resumo Abstract
Nas imensas áreas das bacias dos rios Paraguai, In the huge areas of the basing of the Paraguai,
Paraná e Uruguai, os missionários da Companhia Paraná and Uruguai rivers, the missionaires of Com-
de Jesus destacaram-se como fundadores de po- panhia de Jesus gave a very important contribution
voados entre os indígenas Guaranis Chiquitos e as settlement founders, among the Guarani, the
Moyos. Nesta nova realidade histórica colonial que Chiquito and the Moyo natives. In this new colonial
surgia, processos de continuidade e de oposição historical reality which was developing, continuity
caracterizaram as fronteiras culturais e inter-étni- and opposition processes characterized the cultural
cas. Características sociais oriundas das tradições and inter-ethnic frontiers. Social characteristics co-
ameríndias e européias começaram a se mesclar ming from the Amerindian and European traditions
numa síntese nova, em contínua transformação ao started to mix in a new synthesis, in a continued
longo dos séculos XVII e XVIII. As pesquisas em change during the 17th and 18th centuries. The
andamento nos permitem perceber a complexida- various ongoing research allow us to understand the
de sócio-cultural existente nestes povoados colo- socio cultural complexity existent in these colonial
niais. Guerreiros indígenas e missionários jesuítas settlements. While discussing, indigenous warriors
tiveram encontros e desencontros enquanto dis- and jesuit missionaries had agreements and disagre-
cutiam, a partir da tradição cultural das práticas ements, based on the cultural tradition of the indige-
sociais indígenas e da cultura européia cristã, as nous socio practices and of the Christian European
novas formas que assumiriam as complexas reali- culture, the new features that would assume the
dades sociais que emergiam. complex socio realities that were appearing.

Palavras-chave: Keywords:
fronteira – missões – jesuitas – indígenas guarani frontiers – missions – jesuits – guarani natives

* Palestra proferida no Programa de Pós-Graduação em História do ICHS – UFMT. em 28 de maio de 2003


** Historiador e arqueólogo. Professor Titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História
(Doutorado e Mestrado) na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto
Alegre, Brasil. Pesquisador nível 1A do CNPq.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
34

Imigrantes e conquistadores: impactos e contatos

A ocupação gradual dos territórios da América do Sul atlântica no perí-


odo colonial foi feita muito tempo depois da passagem dos “conquistadores”
em busca do Eldorado, pois o povoamento somente se efetivou com a fun-
dação de aldeias e de cidades. Na imensa área ocupada pelas bacias dos rios
Paraguai, Paraná e Uruguai, onde estes amplos espaços fronteiriços pouco a
pouco se estabeleceram, os impactos e os contatos não ocorreram apenas
entre as populações de origem ibérica nos limites dos territórios espanhóis e
portugueses. Importantes fronteiras culturais se delinearam também entre os
mundos dos indígenas e dos europeus. Nestas imensas áreas, os missionários
da Companhia de Jesus destacaram-se como fundadores de povoados entre
os indígenas Guaranis, os Chiquitos e os Moyos. Nesta nova realidade históri-
ca colonial mesclaram-se características sociais oriundas das tradições amerín-
dias e européias, numa síntese nova, em contínua transformação. As pesqui-
sas em andamento1 permitem-nos perceber a complexidade sócio-cultural
existente nestes povoados coloniais. Guerreiros indígenas e missionários je-
suítas tiveram encontros e desencontros enquanto discutiam, a partir da tra-
dição cultural das práticas sociais indígenas e da cultura européia cristã, as
novas formas que assumiriam as complexas realidades sociais que emergi-
am. Estas complexas relações ocorreram em uma série de oposições e con-
tinuidades, nestas fronteiras culturais entre as sociedades em presença.
A conquista e a colonização luso-espanholas destes vastos territórios
deram origem a um processo extremamente complexo de relações, de
impactos e contatos entre as sociedades indígenas aqui existentes e os
grupos de portugueses e de espanhóis que chegavam como descobridores
deste novo mundo tropical e subtropical, nas vertentes atlânticas da Amé-
rica do Sul. As sociedades européias ibéricas que invadiram e colonizaram
estes territórios ainda indígenas ao longo do período colonial estabelece-
ram formas diferenciadas de relações sócio-culturais com estas variadas
populações indígenas. Algumas foram cooptadas e aculturadas, como é o
caso dos Guaranis e dos Chiquitos, ora como aliadas ora como fornecedoras
de mão-de-obra servil ou escrava. Outras viram seus guerreiros serem dizi-
mados através das guerras de conquista e de resistência, enquanto suas
mulheres e crianças eram assimiladas. Finalmente, muitos grupos perma-

1 O autor coordena o Projeto Integrado Internacional de Pesquisas Interdisciplinares da Região Platina


Oriental (PROPRATA).
35

neceram simplesmente ignorados em seus refúgios florestais do planalto


brasileiro, durante muito tempo.
Os primeiros migrantes a chegar nestas terras de imigrantes foram os
grupos indígenas. Provenientes da Ásia, provavelmente em migrações su-
cessivas, no decorrer da última glaciação, foram pouco a pouco ocupando o
imenso território sul-americano procurando formas mais eficientes de adap-
tação às paleo-paisagens frias e secas da época glacial. Ao longo dos milêni-
os, terminaram por ocupar também as regiões central e sul do Brasil. Estes
grupos nativos americanos, no limiar da Idade Moderna, não poderiam ter
idéia de que seus destinos históricos estavam relacionados com os de duas
longínquas nações ibéricas, Portugal e Espanha. Quando os portugueses e os
espanhóis desembarcaram nas costas do sul do Brasil, a partir dos inícios do
século XVI, encontraram paisagens diversificadas e sociedades indígenas adap-
tadas a estes ambientes específicos. Nas alturas do planalto brasileiro, nas
imensas extensões da floresta tropical litorânea ou nas vastas paisagens co-
bertas de gramíneas dos campos, estes ambientes tão distintos exigiam dos
grupos indígenas adaptações culturais muito específicas. Nas imensas planí-
cies pampeanas do sul alguns grupos permaneceram nômades, caçando,
pescando e fazendo coleta. Mas outras etnias, em meio às florestas, nos vales
dos rios ou nas encostas e das alturas do planalto, deram origem a socieda-
des, muito diferenciadas das anteriores, de horticultores e aldeãos. Alguns,
como os Tupi-guaranis eram oriundos do Amazonas e se estabeleceram em
aldeias em vales quentes e úmidos cobertos por florestas.
Importantes processos de colonização e de integração cultural já havi-
am ocorrido anteriormente à chegada dos europeus. As margens tropicais e
subtropicais do Oceano Atlântico foram o palco no qual se desenrolaram as
extensas migrações colonizadoras dos grupos Tupis e Guaranis, que termina-
ram ocupando áreas imensas, impondo alguns aspectos de sua cultura e sua
língua extraordinária. Na imensa bacia do Paraguai e Paraná, onde diversas
etnias estavam instaladas, uma importante colonização foi realizada pelos
indígenas guaranis, ocupando grandes áreas florestais. Somente após o pro-
cesso de guaranização da região platina oriental, ao longo de mil e quinhen-
tos anos, segundo as datações de rádio-carbono, teve início a colonização e o
povoamento encetado pelos portugueses e pelos espanhóis.
Nos momentos posteriores à descoberta da América, os grupos indíge-
nas começaram a sofrer alterações sociais e culturais profundas e muitas
vezes traumáticas, como conseqüência dos impactos e dos contatos decor-
rentes, nos territórios fronteiriços. Jamais uma empresa de conquista tão ex-
36

tensa e uma exploração econômica tão intensa haviam sido realizadas no


passado desta América Indígena2. Nem a guaranização do Brasil meridional
ou a tupinização do Brasil tropical atlântico tiveram tal porte. As especificida-
des dos contatos e dos impactos nos permitem desvelar, entretanto, histori-
cidades e temporalidades muito diferentes.
Visavam os novos conquistadores atingir objetivos tão diferenciados como
a riqueza de Eldorado ou a salvação das almas indígenas “para a maior glória de
Deus”, pois imediatamente atrás dos colonizadores, ou mesmo com eles, che-
garam os missionários. Todos agiram como os enviados dos reis e dos papas, e
em nome destes personagens históricos justificaram as suas ações3. Todos
pretendiam a conquista das riquezas e das almas dos índios, mas na realidade
terminaram exercendo o seu poder sobre seus corpos, sua força de trabalho e
sua sexualidade. A miscigenação étnica e as sínteses culturais resultantes ter-
minaram mudando significativamente a face social do Brasil colônia.
Os que realizaram as suas atividades de cristianização do indígena na
América pertenceram basicamente a quatro ordens religiosas: franciscanos,
carmelitas, mercedários, e, os últimos a chegar, jesuítas. E foram exatamente
estes últimos que deram origem a uma das mais extraordinárias experiências
históricas de gradual inserção dos indígenas Guaranis instalados no Atlântico
meridional através da experiência das aldeias indígenas do litoral de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, assim como nos Trinta Povos das Missões
Jesuíticas espanholas platinas. Bem de acordo com as idéias de cruzada con-
tra os infiéis, foi a “conquista espiritual” o que os jesuítas realizaram nas
aldeias dos Guaranis, segundo as palavras de um dos primeiros missionários
a penetrar nesta vasta região, Antonio Ruiz de Montoya.
A área ocupada pelas missões jesuíticas, aldeias lusas ou pelos “pue-
blos” espanhóis estendia-se pelos indefinidos limites dos impérios coloniais

2 Algumas destas idéias, relacionadas ao processo histórico ocorrido em toda a América, foram publicadas
em Kern, Arno A. Descoberta e colonização da América: impactos e contatos entre sociedades indígenas
e européias. Encontro de Cultura Ameríndia, 1, Santo Ângelo - RS, 1992. Anais (I Encontro de Cultura
Ameríndia), Santo Ângelo -RS: URI 1, 1992, p. 9-14.
3 Ver igualmente os trabalhos publicados em Azevedo, Francisca L. N;.Monteiro, John M. Confronto de culturas:
conquista, resistência, transformação. São Paulo: EDUSP, 1997. Para o estudo mais detalhado deste processo de
aculturação no Brasil colonial como um todo, ver Couto, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1995. p.
311-330. Para o Brasil meridional e zonas vizinhas do rio da Prata, ver Monteiro, John. Os Guarani e a história do
Brasil meridional: séculos 16-17. In: Cunha, Manuela Carneiro (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo:
Schwarcz, 1992. Kern, Arno A. Ações evangelizadoras e culturais de missionários portugueses e espanhóis no rio
da Prata, nos séculos 16, 17 e 18, em territórios do sul do Brasil. Congresso Internacional de História –
“Missionação portuguesa e encontro de culturas”. Braga, 1993. Actas (Congresso internacional de História. ), v 2.,
Braga, 1993, p. 469-490. Kern, Arno A. Escravidão e Missões no Brasil Meridional: impactos e contatos entre as
sociedades indígenas e ibéricas no período colonial. In: Flores, M. (Org.). Escravidão, história e literatura. (Anais
do II Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão Negra e de Índios). Porto Alegre: Ed. PUCRS, 1994. p. 31-51.
37

espanhol e português. Estes povoados missioneiros ocuparam uma fronteira


viva, de contínuos choques armados, na qual havia uma permanente oposi-
ção de interesses entre a sociedade espanhola local e a frente de expansão
luso-brasileira. Era igualmente uma importante fronteira cultural na qual os
horticultores guaranis neolíticos e os homens da Contra-Reforma e do barroco
se encontraram. É necessário reconhecer que nestes povoados missioneiros os
jesuítas e seus convertidos buscaram sempre uma situação de equilíbrio entre
o trono espanhol e o altar cristão, entre a sociedade espanhola e a sociedade
indígena, entre os interesses das frentes de colonização luso-espanhola e os
objetivos evangelizadores da ação dos missionários, entre os interesses mer-
cantilistas dos brancos e o desejo de sobrevivência dos índios4.
Quando os jesuítas penetraram na região do rio da Prata, os portugue-
ses provenientes do Rio de Janeiro e os espanhóis provenientes do Peru já
possuíam uma certa experiência comprovada nas missões que haviam esta-
belecido. Longe de buscar um modelo em alguma obra utópica da época, foi
em determinações gerais do Padre Geral em Roma que os jesuítas encontra-
ram as normas a serem seguidas para a sua ação5. Mesmo com as missões
entre o “gentio” ou entre os “índios infiéis” já sendo comuns na prática da
Igreja Católica e de suas ordens religiosas, as Ordenações lusas e as “Leyes
de Indias” espanholas especificavam em detalhes como esta prática deveria
ser desenvolvida. Uma sistemática de administração das aldeias ou povoados
foi, assim, se corporificando ao longo dos séculos XVII e XVIII.

Etnocídio ou transculturação:
oposições e continuidades fronteiriças

As ações dos missionários portugueses e espanhóis na região do Rio da


Prata oriental apresentam idênticas características, tanto nas atividades volta-

4 A bibliografia sobre o tema das relações interculturais nestas missões jesuíticas platinas é vasta, mas
algumas obras básicas podem ser consultadas: Meliá, B. El guarani conquistado e reducido. Assunción:
Universidad Católica, 1986. Haubert, Maxime. Des indiens et des jésuites du Paraguay au temps des missions.
Paris: Hachette, 1967. Lacombe, Robert. Guaranis et jésuites. Un combat pour la liberté. Paris: Société
d’Ethnographie, 1993. Ganson, Barbara A. Better not take my manioc: guarani religion, society, and
politics in the jesuit missions of Paraguay, 1500-1800. Austin, Texas, 1994, 421 f Tese (Doutorado) –
University of Texas. Kern, Arno A. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
5 Armani faz referências ao fato de terem os jesuítas recebido as instruções normativas do Padre Geral
Acquaviva (com data de 1º de maio de 1609): “Instrución de cómo se an de aver los nuestros en tomar
y regir doctrinas de indios, que es la misma que se envió a la provincia de Filipinas por abril de 1604 y
al Nuevo Reino por junio 1608”. Armani, A. Ciudad de dios y ciudad del sol. El “estado” jesuita de los
guaranies. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
38

das para a evangelização como para a civilização do indígena. Nesta medida,


reproduzem as determinações e a estratégia já estabelecidas desde o século
XVI e definidas nas legislações coloniais, e que se estruturam na dupla fun-
ção ordenadora da vida política (na polis) e cristã (na paróquia), única possi-
bilidade para a época de se obter um modus vivendi com os indígenas. No
Segundo Concílio de Lima (1567-1568) chegou-se mesmo a afirmar que “la
fe no puede mantenerse sin las costumbres políticas”, enquanto que o jesu-
íta Acosta dizia que “primero hay que cuidar que los bárbaros aprendan a ser
hombres y después a ser cristianos”. Em outras palavras, acreditava-se que o
indígena, para abandonar a sua situação de “infiel” e ser convertido ao cristi-
anismo, deveria ser antes de tudo um “homem”, ou seja, abandonar os seus
hábitos e padrões culturais tradicionais considerados selvagens e praticar os
costumes considerados civilizados pelos europeus6. Substituindo os antigos
“pajés” (médicos-feiticeiros) e tornando-se líderes carismáticos nas aldeias
indígenas, os missionários iniciaram um processo de transculturação de extra-
ordinária importância na vida dos Guaranis, ao introduzir uma série de pa-
drões culturais europeus modernizadores.
Os rituais das bebedeiras cerimoniais, do canibalismo e do enterramen-
to em urnas de cerâmica são substituídos pelos padrões cristãos do batismo,
da missa e do enterramento em cemitérios. As atividades tradicionais de
caça, coleta, pesca e horticultura passam a constituir apenas uma parte das
atividades cotidianas, ao lado de diversos trabalhos artesanais, aos quais se
somam a pecuária extensiva, com o uso do cavalo, e a agricultura em campo
aberto, com a utilização do arado. As técnicas tradicionais indígenas de elabo-
ração de seu artesanato persistem, mas a elas são acrescidas as dos artesãos
europeus: cerâmica no torno, metalurgia do ferro, talha barroca, trabalhos em
cantaria. Assim, os grupos de Guaranis e os seus novos “médicos-feiticeiros”
jesuítas animaram a vida destas novas comunidades, dando-lhes certas carac-
terísticas próprias. As pesquisas arqueológicas e históricas mostram-nos como
se organizaram os povoados missioneiros jesuíticos a meio caminho entre a
aldeia indígena e a cidade européia. Podemos perceber, na confrontação da
documentação histórica e arqueológica, o jogo complexo das influências
européias e indígenas, através do estudo do processo de urbanização e da
organização da vida cotidiana. Os complexos processos de transculturação
ocorreram em todos os níveis da organização social, na economia, na política,

6 Citado em Borges, Pedro. Misión y civilización en América. Madri: Alhambra, 1987. p. 7.


39

na cultura, de maneira a fazer com que os indígenas guaranis abandonassem


os seus padrões tribais neolíticos. Talvez seja impossível descrevermos, em
toda a sua complexidade, o processo de mudança ocorrido7, pois não possu-
ímos ainda todos os dados e evidências. Entretanto, podemos compreender
como foram assimiladas as novas práticas trazidas pelos missionários, assim
como reinterpretados e reacomodados os novos traços culturais importados.
Evidencia-se um processo histórico de transculturação, no decorrer do qual
grupos de indígenas horticultores das florestas subtropicais e tropicais se
inseriram de maneira limitada na cultura da sociedade luso-espanhola-ameri-
cana, num prolongamento colonial da cultura européia da época.
Evangelizar e civilizar os indígenas “pagãos” foram os principais objeti-
vos das missões religiosas na América Luso-Espanhola, dentro do espírito de
cruzadismo que ainda imperava tanto em Portugal como na Espanha e trans-
posto agora para as novas terras que se descobriam e povoavam8. Como
vimos anteriormente, a expansão ibérica em direção à região platina deveria
precipitar o fim do mundo Guarani, por meio da colonização e da escravidão.
A Missão religiosa, entretanto, através da expansão do Cristianismo, repre-
sentou um esforço para a minimização ou interrupção deste processo de
desagregação sócio-cultural. Dentre as diversas parcialidades de horticultores
Tupi-guarani apenas sobreviveram culturalmente – e portanto também fisi-
camente – aqueles que se submeteram às Reduções ou que conseguiram se
afastar das frentes de expansão, escondendo-se em territórios não atingidos
pelos “encomenderos” ou pelos bandeirantes. Em plena crise intelectual e
religiosa – a Renascença e a Reforma – o mundo cristão recebia um conti-
nente inteiro “povoado por uma humanidade não primitiva, mas em estado
de civilização adolescente, ao mesmo tempo violenta, ingênua e incapaz de
uma verdadeira defesa”. Os missionários tentaram, com honra, evitar a cria-
ção de uma nova escravidão e através do fermento religioso elevar este
amálgama de povos indígenas da barbárie à civilização9. Las Casas, Francisco

7 Kern, Arno Alvarez. Sociedade barroca e Missões Guaranis: do confronto à complementaridade. Con-
gresso Internacional do Barroco, 1, Porto, Portugal, 1991. Actas (I Congresso Internacional do Barroco),
Porto: Universidade do Porto, 1991, p. 445-465.
8 As interpretações que se seguem foram em grande parte já elaboradas nos quadros da pesquisa
histórica publicada em Kern, 1982, p. 97 e ss. Foram acrescidas algumas novas abordagens, tendo em
vista a continuidade das investigações arqueológicas e históricas que ainda atualmente se desenvol-
vem. Ver, igualmente, Kern, Arno A. O processo histórico platino do Século XVII: da aldeia guarani ao
povoado missioneiro. Estudos Iberoamericanos, v. 11, n. 1, p. 23-41, 1985.
9 Lacombe, Robert. Problème et mystère des jesuites du Paraguay. Sciences Écclésiastiques, Paris, v. 17,
n. 1, p. 91; v. 17, n. 2, p. 238-295, 1965. Saguier, Ruben; Clastres, Hélène. Aculturación y mestizaje en
las Missiones Jesuiticas del Paraguay. Aportes, Paris, n. 14, p. 26, 1969.
40

de Vitória, José de Acosta, Antonio Vieira e os missionários franciscanos e jesu-


ítas, portugueses e espanhóis, das Reduções da região platina alinharam-se,
todos, no sentido de proclamar com energia que os “selvagens” eram homens,
diferentes talvez do branco europeu, mas não menos capazes do que este de
atingir a salvação eterna. Deveriam, assim, gozar da dignidade de “filhos de
Deus” e, portanto, de todos os direitos correspondentes, na medida em que
todos os homens eram iguais pelo batismo e pela natureza10.
São inúmeros os trabalhos escritos por sociólogos e economistas que se
limitam à descrição do estabelecimento das missões e à análise de suas insti-
tuições, sem se referir às motivações religiosas que incentivaram a ação mis-
sionária. Há uma tendência a se imaginar a aplicação prática de alguma uto-
pia, mesmo quando a documentação dos primeiros missionários é muito cla-
ra a este respeito. O objetivo era a ação evangélica de transformação do
indígena em um “homem completo” através de sua europeização, da evan-
gelização e de sua subtração à escravidão. Aos olhos dos missionários euro-
peus, o indígena só seria um homem completo e feliz em função da conver-
são, objetivo último das missões, em relação ao qual os meios temporais
exerceram um mero papel auxiliar. É evidente que se analisarmos as causas
do sucesso das primeiras reduções, do ponto de vista do indígena, o caráter
de refúgio que estas representavam contra os encomenderos ou os bandei-
rantes, o tratamento justo e caridoso oportunizado pelos padres, bem como
os seus conhecimentos científicos e a tecnologia nova que aportavam, todos
estes fatores de ordem material agiram de maneira decisiva.
A ação desenvolvida pelos missionários foi igualmente civilizadora, pois
nas reduções foram implantados valores e padrões culturais não indígenas. O
comportamento das pessoas e dos grupos da sociedade tribal guarani estava
orientado para valores muito diferentes daqueles introduzidos na região pe-
las sociedades ibéricas, ou mesmo pelos da Companhia de Jesus. Os indíge-
nas não optaram livremente por todos os valores da sociedade ocidental
européia que os jesuítas representavam. Para alguns traços culturais, como a
tecnologia do ferro, por exemplo, houve uma transmissão desejada pelos
índios. Mas outros valores foram transmitidos de maneira autoritária, por de-
cisões que se transformaram em obrigações, como é o caso da aceitação da
vassalagem aos monarcas de Portugal e da Espanha, do pagamento de tribu-
tos ou da prestação de serviços e trabalhos. Instituía-se, pois, nas reduções,

10 Haubert, Maxime. L’église et la défense des ‘sauvages’; le Pére Antoine Vieira au Brésil. Bruxelles: Koninkli-
jke Academie, 1964, p. 243.
41

uma cultura nova, caracterizada pela coexistência do sistema tribal com as


formas de organização política ibéricas. Este autoritarismo, exercido em to-
dos os setores da sociedade, não se efetuou através do emprego da força por
parte do missionário, da mesma maneira que o autoritarismo se desenvolve
na família, nos grupos de amigos, nas organizações econômicas, educativas e
mesmo religiosas11. Durante o processo de evangelização, e paralelo a ele,
os missionários realizaram uma obra de vulgarização dos padrões culturais
europeus, procurando convencer os caciques e os demais guerreiros guara-
nis de suas convicções, inclinações e valores. Foi igualmente com a implan-
tação dos povoados missioneiros que os jesuítas puderam agir sobre as crian-
ças índias, inculcando-lhes as novas atitudes e valores. E sobre os adultos,
também, na medida em que eram recrutados para assumir os papéis sociais
da nova organização, num processo de cooptação no qual os caciques foram
atores sociais importantes.
Ao enquadrar a sociedade dos Guaranis dentro dos marcos formais jurí-
dicos das sociedades ibéricas, visavam os jesuítas portugueses e espanhóis
transformar os indígenas em seres “políticos” e “humanos”, pois a única ma-
neira de fazê-los levar uma “vida política e humana” era através da Redução
e de uma certa concentração urbana12. É exatamente nesta organização urba-
na das reduções que encontramos um dos elementos mais importantes des-
te processo de inserção do indígena. Algumas vezes estes povoados não
passam de uma simples capela em meio às casas dos índios. Entretanto, em
outras oportunidades, como é o caso das missões jesuítico-guaranis, e entre os
Chiquitos, os levantamentos topográficos dos sítios arqueológicos até agora
encontrados e as gravuras da época nos evidenciam inicialmente uma rede de
ruas largas que se cortam em ângulos retos, como nos planos ortogonais ou em
grade do Renascimento. Face à praça central (plaza mayor) ergue-se um con-
junto monumental que se assemelha a um cenário teatral. Percebemos aí uma
herança do plano básico da abadia beneditina medieval (igreja, claustro, ofici-
nas dos artífices, quinta, cemitério) mesclado aos volumes e ao movimento do
discreto fachadismo barroco da Contra-Reforma. Em lugar dos conjuntos de
casas e seus jardins, interiores ou exteriores, como nas quadras das cidades
européias, podemos ver grandes casas isoladas (como a “oca” ou “oga” amazô-
nica) que abrigavam as famílias extensas e nucleares dos Guaranis.

11 Lapierre, Jean-William. L’analyse des systèmes politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1973. p. 37.
12 Meliá, Bartomeu. Las reducciones jesuíticas del Paraguay: un espacio para una utopia colonial. Estudios
Paraguaios, Assunción, v. 6, n. 1, p. 157-167, 1978.
42

Diariamente, neste povoado reducional, ouve-se o som metálico do


sino, chamando os indígenas para a catequese, a missa ou para o trabalho
comunitário. Nesta fronteira cultural podemos observar as múltiplas influên-
cias culturais ocorridas entre as duas sociedades, ou seja, as concessões que
cada uma fez para a elaboração de um novo modelo colonial americano. Por
outro lado, é neste espaço criado especialmente para as circunstâncias ame-
ricanas que percebemos o esforço realizado para levar o indígena a adquirir
um comportamento racional e analítico, bem como uma experiência política
que lhe possibilitasse ultrapassar o estágio de “costumes bárbaros e selva-
gens” e de “infidelidade”, rumo à vida política como a concebiam os euro-
peus e os luso-espanhóis da época, ou seja, nos quadros do absolutismo real
ou do municipalismo luso e do Cabildo espanhol. É neste espaço urbano que
poderiam ser abandonadas as atitudes e os padrões culturais julgados impró-
prios, e substituídos pelas normas comportamentais julgadas como ideais na
organização política, econômica ou cultural. Para atingir estes objetivos era
necessária a Redução, ou seja, que os indígenas fossem reduzidos à igreja e
à vida civil (“ad ecclesiam et vitam civilem esset reducti”). Para uma perfeita
cristianização era necessário inicialmente reduzir os indígenas ao novo espa-
ço urbano, pois só ali seriam levados a viver “políticamente” como na antiga
cidade-estado (polis), remediando assim a “irracionalidade” de andarem dis-
persos pelos montes e matas, vivendo como “feras” e adorando “falsos ído-
los”13. Nesta ação transformadora, os missionários encontraram uma forte
oposição por parte dos médicos-feiticeiros (pajés). Criticavam eles o aban-
dono das virtudes antigas do modo-de-ser guarani que consistia em andarem
livres pelas selvas, sem limitações de nenhuma espécie. Por outro lado, ao
contrário dos pajés, foi decisivo o apoio dos caciques. Para estes, bastava um
século de derrotas para os brancos escravagistas armados de arcabuzes mor-
tais, bem como a drástica diminuição dos espaços existentes para os deslo-
camentos semi-nômades em meio à floresta. Restringidas estas possibilida-
des de permanência das tradições indígenas, pelas razias das bandeiras pau-
listas e vicentinas, e dos encomenderos de Assunção e das demais cidades
espanholas, as Reduções passavam a representar não tanto o fim do modo
de ser dos Guarani, para o qual não havia mais um lugar na história, mas a
possibilidade de sobrevivência em um espaço limitado e consentido.
Os missionários entraram em contato com os indígenas Guaranis em

13 Mélia, 1978, p. 158.


43

um momento de intensa crise sócio-cultural e de etnocídio devido aos conta-


tos e conflitos com as frentes de expansão colonizadora luso-espanholas.
Estes guerreiros guaranis nunca haviam sido oprimidos ou conquistados an-
tes da expansão ibérica em terras do rio da Prata. Ao contrário, eram povos
conquistadores que se expandiram sobre uma enorme área geográfica de
verdes matas tropicais e subtropicais, várzeas férteis e vales quentes e úmi-
dos. Entretanto, os contatos com a expansão colonizadora luso-espanhola
deram origem a uma evidente e dolorosa ameaça de desintegração étnico-
cultural, provocada pelas derrotas bélicas, pelas crises demográficas e pela
redução à escravidão, tanto por parte dos bandeirantes como dos escravagis-
tas do Paraguai. Foi nesta situação de crise-limite que surgiram fenômenos
de messianismo entre os Guaranis. Partiam em busca da “Terra sem males”,
liderados por seus pajés, como que em resposta às condições de opressão.
Podemos inclusive considerar estes movimentos messiânicos como um “ín-
dice de contradição interna desta sociedade, de uma profunda inquietação
desta cultura e talvez o sinal precursor de sua morte próxima”14. Como foi
muito bem salientado por Métraux, as áreas habitadas pelos Tupi-guaranis, e
em especial o Paraguai atacado pelos bandeirantes luso-brasileiros e pelos
espanhóis escravocratas, conheceram durante este período inúmeros messi-
as e profetas indígenas (“karaí”). “Nenhuma região conta com tantos movi-
mentos de liberação mística, e é ainda mais espantoso constatar que os Tupi-
nambás e os Guaranis que participam de uma mesma tradição cultural, te-
nham sido mais sujeitos a crises político-religiosas do que outros grupos”15. E
porque seguiam os Guaranis os seus “xamãs” nestes movimentos messiâni-
cos? Porque aceitavam caminhar em marchas forçadas milhares de quilôme-
tros em busca da “Terra sem mal”, em direção ao oriente, até fracassarem
irremediavelmente na busca, face ao intransponível obstáculo do Oceano
Atlântico? Como muitas tribos americanas, eles deveriam buscar a “terra sem
mal” porque a terra em que viviam estava destinada a ser destruída em
futuro muito próximo, assim como no passado já haviam ocorrido o Incêndio
e o Dilúvio universais. Esta crença já existia desde os tempos das primeiras
missões jesuíticas. A crença neste paraíso denominado de “terra sem mal”
terminou se mesclando aos elementos aportados pelo cristianismo. Foi para
este lugar de bem-aventurança que se retirou o Ancestral ou Herói Civiliza-
dor, após ter criado o mundo e dado aos indígenas os conhecimentos essen-

14 Saguier e Clastres. Aculturación y mestizaje en las Missiones Jesuiticas del Paraguay, 1969, p. 25.
15 Métraux, Alfred. Religions et magies indiennes d’Amérique du Sud. Paris: Gallimard, 1967. p. 23.
44

ciais à sua sobrevivência. É para este lugar privilegiado que vão alguns caci-
ques, guerreiros e pajés excepcionais. É para lá também que irão todos os
que “tiverem a coragem e a constância de cumprir todos os ritos necessários,
sob a liderança do poder sobrenatural de um xamã”. Único refúgio que resta-
va aos homens no momento do fim do mundo, a crença na “terra sem mal”
parece indicar uma concepção pessimista de futuro. Os pajés viam sinais
precursores em cada fato insólito e indicavam aos indígenas as mais negras
profecias sobre o futuro, pois seriam comidos pelos jaguares ou onças, exter-
minados durante a noite pelo temível raio de Tupã, ou aniquilados pelo
grande fogo do incêndio da floresta ou pela grande inundação16.
Os missionários portugueses e espanhóis com certeza deram-se conta
da significação messiânica do fenômeno religioso tupi-guarani? Eles estigma-
tizaram os pajés e os “karaí”, considerando-os emissários do demônio, por
serem eles os defensores do modo de vida antigo e, portanto, os grandes
inimigos da implantação da redução e do processo de transformações cultu-
rais. Entretanto, os Guaranis parecem ter tido uma visão clara no momento
de abandonar suas antigas lideranças xamânicas pelos novos líderes religio-
sos que chegavam.

Eram (os jesuítas) xamãs muito melhor dotados do que os seus própri-
os e que não podiam decepcioná-los pois o paraíso (“terra sem mal”)
que prometiam não era deste mundo, enquanto que todas as buscas
anteriores, lideradas pelos xamãs, sempre terminavam em fracasso.17

A obra capital da atividade missionária foi a conversão dos índios. Para


isto, a ação civilizatória foi um elemento convergente. Entretanto, assim como
nos primeiros tempos os indígenas não atingiram mais do que um cristianismo
sumário, igualmente a europeização foi parcial. Os jesuítas tiveram êxito em
criar centros de solidariedade para os Guaranis ao transformarem as aldeias em
povoados missioneiros. A missão permaneceu como núcleo central no seio da
qual se realizou um complexo processo de oposições e sínteses culturais, desde
os primeiros contatos, pois os elementos culturais tradicionais guaranis passaram
a coexistir com alguns dos novos elementos cristãos e europeus ocidentais.

16 Schaden, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1962, p. 161-163. Segundo este autor, no litoral, os índios que chegavam ao mar em busca da
“Terra sem mal” dançavam noites e dias seguidos para ficarem mais leves e voar para o paraíso.
Métraux, 1967, p. 15-16.
17 Saguier e Clastres, 1969, p. 25.
45

Transformou-se em processo de transculturação, pois gradualmente os jesuítas


foram introduzindo novas formas artísticas, novos rituais, uma economia mais
produtiva, uma nova organização política e provocaram uma importante trans-
formação tecnológica, em um extraordinário e raro processo de modernização
com comunidades indígenas agora livres do fantasma do etnocídio18. A América
indígena pouco a pouco se transformava em uma América latina.
Múltiplos foram os fatores importantes agindo no sentido de provocar
estas diversas transformações culturais. Quando estudamos os documentos his-
tóricos escritos do período ou os vestígios da cultura material remanescentes
obtidos nas escavações realizadas nos sítios arqueológicos da região, temos
condições de perceber como é complexa e variada esta transculturação em
meio às iniciativas missionais, nas fronteiras coloniais ibéricas. Talvez o maior
impacto tenha sido provocado pelas tecnologias introduzidas pouco a pouco
na sociedade indígena. A elaboração de um artesanato rico e variado foi sem-
pre uma característica dos indígenas Chiquitos e Guaranis, principalmente na
confecção de recipientes cerâmicos com decoração plástica e pinturas, ou
mesmo no trabalho com fibras vegetais. São exemplos desta atividade os teci-
dos em algodão e a produção de cestaria. Os indígenas continuavam a elaborar
artefatos em madeira e em osso, ou a lascar a pedra para fazer pontas de
flechas ou polir as suas lâminas de machados. Ao lado destas atividades, passa-
ram a fazer uso de artefatos de ferro e, posteriormente, mesmo à elaboração
da metalurgia. A utilização do arado e a implantação da agricultura de campo
aberto modificaram substancialmente a produção alimentar. Ao lado da caça e
da pesca, a pecuária dos bovinos passou a ser importante fonte de proteínas
de origem animal. Introduziu-se o emprego rigoroso do tempo e a planificação
das atividades diárias. Passou-se a se fazer a produção de recipientes cerâmi-
cos no torno e a sua queima no forno de oleiro. Ao mesmo tempo, os índios
auxiliavam os jesuítas a erguer as suas capelas e igrejas, dominando as técnicas
de construção européias. Às danças, às músicas e aos cantos tradicionais dos
indígenas, sempre presentes em suas festas, foram acrescidos os corais e as
missas cantadas, as músicas e as cenografias do teatro barroco. De grande
importância foram igualmente as modificações baseadas nas normas de condu-
ta européias e cristãs, e que terminaram alterando a visão de mundo dos indí-
genas. Podemos citar em primeiro lugar as regras do casamento monogâmico,
pois terminava pouco a pouco com a poligamia dos caciques guaranis. Em

18 Kern, 1985, p. 111.


46

seguida, as novas relações políticas de autoridade e poder, de coerção e liber-


dade, reinterpretadas em função da inserção dos indígenas na organização do
estado absolutista. Mudanças importantes foram também a introdução dos ritu-
ais e crenças do cristianismo desenvolvidos no espaço cênico e sagrado das
capelas e das igrejas. Sincretismos religiosos terminaram ocorrendo, inevitavel-
mente, tais como a associação do deus guarani do trovão Tupã com a concep-
ção judaico-cristã da divindade, do profetismo e da crença na “terra sem mal”
com as idéias messiânicas e o paraíso dos cristãos. É talvez impossível descre-
ver a totalidade deste complexo processo histórico de mudanças culturais,
pois ainda não dispomos de todos os dados. Podemos, entretanto, tentar com-
preender como a ação missional terminou provocando este processo de gra-
dual transculturação, no qual milhares de horticultores das florestas tropicais e
subtropicais sul-brasileiras se inseriram pouco a pouco e de maneira limitada
na cultura da sociedade ibérica colonial, ultrapassando os espaços fronteiriços
existentes entre estas culturas.
Os missionários foram xamãs poderosos, portanto, mas igualmente “he-
róis civilizadores” capazes de atrair os seus neófitos pelo fantástico e pelo
maravilhoso, tanto ao nível da tecnologia como do ritual.

Os pajés tradicionais tinham sido ultrapassados pelas tremendas mu-


danças por que passava a sociedade dos Guaranis, após os primeiros e
fatídicos contatos com o mundo dos poderosos brancos invasores. Os
missionários se destacaram por saber orientar esta mudança cataclís-
mica e transformá-la num processo objetivo e realista. Num momento
de messianismo e de liderança carismática, a fé e a razão dos jesuítas
desempenharam papel de relevância ante os indígenas. (...) Submergi-
dos num momento histórico apocalíptico, no momento da evangeliza-
ção missionária, os Guarani viram nos jesuítas os seus salvadores. 19

Teriam os Guarani se convertido, menos ao Catolicismo, mas antes de


tudo aos seus novos xamãs missionários, como o sugere Maxime Haubert20 ?
O papel desempenhado pelos missionários nestas ações evangelizadoras e
civilizadoras só pode ser compreendido levando-se em conta o contexto e
as circunstâncias históricas.

19 Kern, 1985, p. 113.


20 Haubert, Maxime. L’oeuvre missionaire des jésuites du Paraguay.1587-1768. Paris, 1966. Tese (Douto-
rado), p. 349.
47

Considerações finais

Este complexo processo de transformações, ocorrido em uma fronteira


cultural onde ocorreram continuidades e oposições, não chegou a transfor-
mar em europeus os indígenas Chiquitos ou Guaranis. Talvez nunca tivesse
sido este o objetivo dos missionários. Entretanto, deu origem a uma das mais
extraordinárias tentativas de gradual inserção dos indígenas na sociedade
luso-espanhola, sem o genocídio, a miscigenação ou a completa descaracte-
rização sócio-econômica das comunidades indígenas, tão características da
história colonial americana. As iniciativas e as ações decorrentes da descober-
ta, da conquista e da colonização no Novo Mundo terminaram por despojar
os indígenas da posse de seus territórios tribais, mudaram de maneira radical
e violenta o ritmo e o sentido de sua própria história, colocando-os face a
face com a morte étnica e a miscigenação nos contatos inexoráveis com as
populações ibéricas adventícias. Entretanto, as ações missionais tentaram
sempre minorar esta situação extrema, garantindo a sobrevivência física dos
indígenas ameaçados de genocídio e sustando os conflitos intratribais provo-
cados pelas fricções interétnicas das frentes de colonização. A coesão e o
solidarismo que se tentaram implantar através do cristianismo, entretanto,
não impediram os impactos da transculturação nestes territórios fronteiriços.
Tiveram ainda o efeito de acelerar intensamente o processo. A difícil conci-
liação de seus valores tradicionais com os da cultura ibérica, bem como as
modificações surgidas no modo-de-ser indígena, com a introdução de novos
padrões culturais, criaram problemas para este último, ao nível de sua cons-
ciência. Como continuar a manter os “ethos” específicos e os modos-de-ser
dos Chiquitos ou Guaranis, se estas etnias se transformavam a cada momen-
to, inexoravelmente?
Os missionários utilizaram sua capacidade de liderança para pôr em
prática medidas que, se não salvaram a totalidade da cultura tradicional gua-
rani, pelo menos evitaram o aniquilamento físico dos indígenas e a perda
total de suas personalidade e consciência étnicas. Agindo de maneira objeti-
va, tentaram, dentro das circunstâncias do processo de colonização das fren-
tes de expansão ibéricas, salvar o que fosse possível das parcialidades tribais.
Terminaram, desta maneira, preservando muito de sua cultura. Em nenhum
momento, entretanto, esta ação humanitária deixou de estar a serviço da
difusão da religião cristã, e este objetivo suplantou todos os demais. Coloni-
zadores espanhóis e portugueses viam no indígena antes de tudo uma mão-
de-obra útil para o processo colonizador. Os missionários pretendiam, no
48

entanto, pôr em prática uma progressiva integração das populações indíge-


nas à sociedade colonial e à comunidade cristã dos fiéis. Não eram muitos os
que, nas colônias sul-americanas, pensavam ser possível propiciar aos indí-
genas a participação das vantagens da civilização européia em pé de igual-
dade, como cristãos que eram. Os missionários, e entre eles os jesuítas, esta-
vam entre estes poucos.
49

Imagens dos índios Paresi no


espelho do colonizador (1719-1757)
Loiva Canova*

Resumo Abstract
Este artigo pretende reconstituir imagens dos ín- This article aims at reconstructing images of the
dios da nação Paresi, elaboradas entre 1719 e Indians from the Paresi nation, elaborated betwe-
1757, quando se efetiva a colonização portuguesa en 1719 and 1757, when the Portuguese settle-
na parte mais oeste das terras da conquista em ment is accomplished in the most western lands
Mato Grosso. Com base em estudos etnográficos of Mato Grosso. Based on ethnographic studies
e em um conjunto de fontes que inclui crônicas e and on a set of sources that include backland
memórias sertanistas da administração portugue- chronicles and memories of the Portuguese admi-
sa, busca-se apresentar as representações cons- nistration, it intends to present the representati-
truídas sobre os índios da dita nação e algumas das ons constituted about the Paresi Indians and some
práticas sociais que elas impulsionam. of the social practices that they estimulate.

Palavras-chave: Keywords:
índios Paresi – representações – Paresi Indians – representations –
Mato Grosso colonial Colonial Mato Grosso

* Professora do Departamento de História da UFMT e mestre em História pelo Programa de Pós-


Graduação em História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
50

... quando abriram as terra dos índios, índio Paresi olhava, ficava
olhando não era brabo, os outro, os Nambiquara era brabo, mais
brabo, nós só olhava, eles atacava, brigava...
(João Ezumae, chefe dos chefes Paresi, abril de 2003)

A análise insere-se na perspectiva da história cultural, refletindo sobre


as relações e conflitos interétnicos constitutivos da história colonial brasileira,
e, em especial, de Mato Grosso, no contexto das ações colonizadoras portu-
guesas, na primeira metade do século XVIII.
Paracy, Paracisses Perecises, Paracyzes, Pereci, Pareci, Paresi1. Foram
assim adormecidos na escrita do século XVIII os habitantes do vasto espaço
geográfico onde penetraram luso-brasileiros e portugueses para explorar
cobiçadas minas, que nomearam do Cuiabá2 e Mato Grosso3. Ao contrário
de outros “gentios”, tidos como “bravios”, “infiéis”, quase impossível de se
tornarem cristãos, os índios da nação Paresi eram vistos pelos “brancos”
como os mais predispostos à inclusão aos fundamentos dos valores concei-
tuados como civilizados, inclusive por serem os de maior inclinação aos
ensinamentos da fé católica.
Esta é a representação mais recorrente sobre os índios Paresi nos dis-
cursos que circularam entre 1719 e 1757, compondo imagens que, repetidas
e reforçadas nos séculos XIX e XX, e mesmo nos dias atuais, foram incorpo-
radas à própria identidade desses índios.
Os Paresi se auto-denominam Halíti (gente, povo), e fazem parte de
uma nação de língua Aruak que, desde tempos imemoriais, habita as terras
ao sudoeste do que hoje é o Estado de Mato Grosso. Os escritos do período
mencionado respondem a um conjunto de representações, sempre reitera-
das, nas quais eles são mostrados como mansos, dóceis, afetivos, fiéis, aves-
sos à guerra, grandes agricultores e artesãos, de feições físicas bonitas e atri-

1 Estas são as várias grafias encontradas no conjunto documental pesquisado em referência ao etnômino
dos índios em estudo. Para este artigo, foi escolhida a grafia Paresi.
2 Segundo Carlos Alberto Rosa, ”Quando [...] teve início o topônimo Mato Grosso para referir as margens
orientais do Guaporé, o topônimo Cuiabá já estava consolidado – inclusive no título da única vila do
centro do continente: a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, fundada no primeiro de janeiro de
1727. Topônimo urbano, que unia uma categoria de aglomerado normatizado (vila), uma determinação
régia (Real) e uma invocação do Filho cristão de Deus (Bom Jesus), – ao nome ameríndio Cuiabá. Ver
Rosa, Carlos Alberto. A Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá (vida urbana em mato Grosso no século
XVIII:1722-1808). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 65 e ss.
3 A união das palavras mato e grosso como topônimo aplicado a esta parte mais central da América do Sul
pode ser datada de fins dos anos 1720 e início dos anos 1730. Cf. Rosa, op. cit.
51

butos morais dignos de um não índio, e, entre os demais indígenas, como os


mais sensíveis aos ensinamentos cristãos.
Buscando uma primeira caracterização, pode-se identificar os Paresi como

Habitantes do extenso planalto que vai desde as cabeceiras do Arinos


do Paraguai até as cabeceiras do rio Guaporé e do Juruena, os Paresi
compõem uma unidade socialmente diferenciada, compartilham uma
identidade étnica formada tradicionalmente por grupos independen-
tes econômica e politicamente, endogâmicos (os casamentos são dentro
dos grupos), ocupando territórios diferenciados e contíguos.4

Os objetivos centrais, aqui, são: entender o sistema de classificações


dos colonizadores sobre os índios e como os Paresi foram aí enquadrados;
avaliar de que modo essa classificação serviu às práticas colonizadoras; e
entender a significação histórica da construção da imagem destes índios.
O referencial administrativo e cronológico tem como fatos marcantes a
descoberta, por Pascoal Moreira Cabral e seus homens, dos veios auríferos no
rio Coxipó, em 1719, a fundação da Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá, em
1727, e o topônimo Mato Grosso, que surgirá em 1734. Ainda, a criação, em
1748, da Capitania do Mato Grosso, que compreendia as duas repartições, o
Cuiabá e o Mato Grosso.
A passagem da segunda década dos anos 20 dos setecentos correspon-
de ao momento em que se verifica a retração do ouro nas minas da Vila Real
do Bom Jesus de Cuiabá e em seus arredores, intensificando a penetração
dos habitantes da Vila de Piratininga cada vez mais para oeste, rumo às terras
habitadas pelos Paresi, que passam a ser mais e mais perseguidos por serta-
nistas especializados no apresamento de indígenas para serem vendidos como
escravos, comércio que se constituía, naquele período, em uma fonte segura
de lucros5. O ano de 1757 baliza o final do período a que se dedica este
exercício historiográfico. Neste ano passa a vigorar a lei do Diretório dos
Índios do Brasil, instruindo e legitimando o comportamento do colonizador
em relação às populações indígenas envolvidas nos empreendimentos da

4 Machado, Maria de Fátima Roberto. Identificação e delimitação da área indígena “Estação Rondon” (Estação
“Paresis”) Diamantino – MT. Cuiabá: Departamento de Antropologia/UFMT, 1993. p. 1. (Relatório)
5 Cf. Canavarros, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá e seus objetivos geopolíticos no extremo oeste
(1727-1752). São Paulo, 1998. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, p. 70 e ss.; e Sá, José Barbosa de. Relação das povoações de
Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios até os presentes tempos. Cuiabá: Ed. UFMT / Secretaria de
Educação e Cultura, 1975.
52

definição da fronteira norte do Brasil6. Dentre outras recomendações, essa lei


determinava atitudes mais incisivas de proteção aos índios visando a integra-
ção do gentio ao projeto civilizador. Embora não se constituísse em “uma
novidade, em termos de instrumento jurídico de políticas coloniais”, o Dire-
tório materializou uma conduta política relativa às populações indígenas, le-
galizando um discurso precedente de proteção e liberdade aos índios, de
forma geral, e especialmente aos considerados mansos.
É importante frisar, no entanto, que a política do Diretório não provo-
cou transformações radicais no que respeita ao apresamento e escravização
dos indígenas. Como afirma Rita de Almeida, embora essa política tenha
regulamentado “as condições em que se fazia legítima a liberdade dos índios,
ainda deu margem à continuidade de certas práticas de escravidão”7.
Esta escolha sinaliza para um momento em que, pode-se considerar, o
núcleo fundamental das representações sobre estes índios, orientador das
práticas sociais de colonos e dos representantes da administração colonial
portuguesa em relação a essa etnia, já havia se constituído.
Através das palavras, o grupo dominante apropriou-se do poder de
coagir, estabelecendo domínio sobre os povos indígenas, e promoveu a ade-
quação do modo de viver dos índios, inserido-os numa nova relação político-
social. Nesta perspectiva é ainda importante frisar que as imagens sobre os
Paresi se cristalizaram num modo expressivo de construção de informações,
por meio da circularidade via poder de comunicação. Os homens no desem-
penho do poder político tratavam de escrever os acontecimentos de seus
espaços administrativos, com evidências das estratégias de atuação do poder
aflorando em suas ordens e decisões.
O quadro teórico metodológico tenta acompanhar os ensinamentos de
Roger Chartier na obra A história cultural: entre práticas e representações8.
Tendo como referência as contribuições deste autor, explicito a construção
da categorização dada aos índios Paresi e faço entender a dinâmica do real

6 Nas palavras de Rita Heloísa de Almeida, o Diretório significa “um documento jurídico que regulamentou
as ações colonizadoras dirigidas aos índios, entre os anos de 1757 e 1798 [...] um instrumento jurídico
criado para viabilizar a implantação de um projeto de civilização dos índios na Amazônia”. Ver Almeida,
Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios. Um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed.
UnB, 1997, p. 14; e Domingues, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Come-
morações e Descobrimentos Portugueses, 2000.
7 Almeida, op.cit, p. 15. Esta autora acrescenta, ainda, que “Aparentemente, este regimento suscita
rupturas, mas [...] continua e consolida as ações colonizadoras anteriores”.
8 Chartier, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio
de Janeiro: Bertand Brasil, 1990, p. 9 a 27.
53

arquitetada por um grupo dominante, capaz de fazer dos seus discursos prá-
ticas sociais, e de, com elas, transformar a realidade histórica.
A sociedade que ia se constituindo a partir das descobertas do ouro na
espacialidade em que se fundou a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, e,
posteriormente, na região que veio a se denominar Mato Grosso, também
fruto de descobertas auríferas, exigiu da Coroa Portuguesa um projeto coloni-
zador sofisticado, capaz de justificar suas escolhas e definir estratégias de con-
corrência e de dominação sobre os indígenas e seus territórios. A implementa-
ção deste projeto, no que respeita aos indígenas, exigia a formação de uma
nova identidade histórica, nela moldando um sistema econômico, político e
cultural de relações, uma identidade social que previa a relação de poder vinda
de um soberano, padronizando religião, língua e conceitos sócio-culturais. Com
esses instrumentos históricos e historiográficos, vemos, a seguir, a idéia do
conjunto de representações escritas sobre os índios em questão.

Imagens dos Paresi no espelho do colonizador

As terras altas a sudoeste da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá


chamaram a atenção de portugueses e luso-brasileiros desde as suas primei-
ras incursões aos sertões do oeste da Colônia, no final da década de 1720.
Nestas vastas terras, que hoje fazem parte do território de Mato Grosso, ainda
vive a etnia Paresi, em reservas que já não correspondem ao “dilatado reino”
que os cronistas do século XVIII registraram e que atualmente estão cercadas
por grandes propriedades agropecuárias, trazidas pela expansão da fronteira
capitalista, a partir dos anos 19709.
Todavia, desde as primeiras décadas daquele século até os dias atuais,
as extensas terras originalmente habitadas pelos Paresi foram nominadas em
razão da sua numerosa presença: Chapada, Chapadão ou Serra dos Parecis,
um nome que se tornou significativa referência geográfica na história de
Mato Grosso. Mesmo antes de surgir o termo Mato Grosso, o lugar já era
conhecido pelos preadores de índios como “sertão dos Parecis”10.

9 Segundo uma descrição contemporânea, o “Chapadão dos Paresi é a maior área de terras planas do
planeta próprias para a agricultura, com 2,1 milhões de hectares. Este espaço do solo em Mato Grosso,
eqüivale ao território do Estado do Sergipe. Nestas áreas vastas e férteis [...] predominam as grandes
lavouras de soja, milho, algodão [...].” (Jornal A Gazeta, Cuiabá, 10 de fevereiro de 2002).
10 Cf. Fonseca, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil (1875-1829). São Paulo: Ed. USP / Cultrix,
1977; e Machado, 1993.
54

Os achados nas minas do Cuiabá, nos anos 20 dos setecentos, foi notícia
estimuladora para a vinda de muitos homens para o interior sertanejo. Mas o
ouro desse lugar escasseou em menos de uma década e as minas tão famo-
sas tornaram-se pouco atrativas. As dificuldades daí advindas subtraíram as
possibilidades de permanência dos mineradores no local e suscitaram o an-
seio por novos achados. Por esse motivo, houve o deslocamento para o
oeste da Vila Real de Cuiabá, em direção aos sertões dos Paresi, que foram
sendo palmilhados por diversos signos de ocupação ao longo do percurso
entre esta Vila e os novos achados auríferos nos ribeirões Sararé e Galera,
afluentes do rio Guaporé. Estes achados foram pontuados como mais um
espaço de conquista, levando a administração colonial à inclusão de posições
políticas renovadas em relação a nação Paresi11.
Sua história está marcada pelo des-encontro com essa outra cultura: a
ocidental cristã. E, com maior relevância, e desdobramentos extremamente
significativos, a partir do século XVIII, é também a partir daí que os índios
dessa nação passam a figurar na história oficial do projeto colonizador, com
inúmeros registros na documentação gerada pelos administradores coloniais.
Neste contexto em que destacamos os conflitos interétnicos que mar-
caram os primeiros tempos da colonização a oeste das terras portuguesas é
que são elaboradas e ganham sentido as representações construídas sobre os
índios Paresi na primeira metade do século XIX. Tais representações encon-
tram-se em fontes diversas, desde documentos oficiais da administração co-
lonial, até relatos de sertanistas. Dentre eles, privilegiamos o de Antônio
Pires de Campos12, que se pode considerar como uma espécie de discurso
inaugural sobre os Paresi, constituindo-se de um núcleo de idéias que acaba-
riam por se tornar recorrentes nas representações sobre estes índios, como
se verá mais à frente. Esta recorrência pode ser observada não só pela repe-
tição, nos séculos seguintes, dos elementos que identificam os Paresi no
relato de Pires de Campos, mas, igualmente, entre os seus contemporâneos,
com destaque para o comerciante João Antônio Cabral Camello13 e José Bar-
bosa de Sá14, por algum tempo escrivão responsável pela crônica oficial da
Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.

11 Canavarros, 1998, p. 3.
12 Campos, Antônio Pires de. Breve notícia que dá do gentio que há na derrota das minas do Cuiabá e seus
recôncavos. In: Taunay, Afonso de Escragnole. Relatos sertanistas. São Paulo: Ed. USP / Belo Horizonte:
Itatiaia, 1981.
13 Camello, João Antônio Cabral. Notícias práticas das minas do Cuiabá. Cuiabá: Ed. UFMT / Secretaria de
Educação e Cultura, 1975.
14 Sá, 1975.
55

Narrativas do séculos XIX e XX também foram incorporadas, de modo a


reforçar o argumento sobre a recorrência das representações elaboradas na
primeira metade do século XVIII. Nesta perspectiva, utilizamo-nos da narra-
tiva do padre naturalista Nicoláo Badariotti, missionário salesiano, que esteve
durante cinco meses entre os Paresi, quando participou de uma viagem de
exploração ao norte de Mato Grosso, em 1898. Sua obra caracteriza-se pelo
naturalismo, pela apologia ao cristianismo e pela imprudência na descrição
de algumas características culturais da nação Paresi15.
Outra narrativa importante, esta do início do século XX, é a do então
coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, que percorreu as terras Paresi
como chefe da Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Gros-
so ao Amazonas e estreitou contatos com esses índios Paresi16.
Além destes autores, para os séculos XIX e XX, também foram utilizadas
informações constantes de outras obras, entre as quais se destacam as de Frei
José Macerata17, Maria do Carmo Melo Rego18, Max Schmidt19 e Taunay20.
As oposições racional/irracional, selvagem/bom selvagem e bárbaro/
civilizado tomaram grandes dimensões, permitindo um sistema de classifica-
ções e exclusões21. Com grande investimento nos discursos está o assunto
sobre a irracionalidade, justificativa pronunciada pelos colonizadores em Mato
Grosso que trouxe as práticas da escravidão, dominação e extermínio, e a
política de aldeamento.
Os relatos destes homens revelam os diversos estereótipos, opiniões,
visões, classificações, exclusões, comparações e conclusões, quase sempre
negativas, atribuídas às diversas populações indígenas encontradas no terri-
tório que aos poucos vinha sendo definido como fronteira de expansão luso-
brasileira. São homens que compartilharam experiências em Mato Grosso, no
contexto histórico da primeira metade do século XVIII. Homens do período

15 Badariotti, Nicolaó.. Exploração no norte de Mato Grosso, região do Alto Paraguay e Planalto dos
Parecis. São Paulo: Escola Typ. Salesiana, 1898.
16 Rondon, Cândido Mariano da Silva. História natural: etnografhia. Comissão das Linhas Telegráficas de
Mato Grosso ao Amazonas. Publicação n. 2, anexo 5. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1910.
17 Relatório feito pelo Frei José Maria Macerata. Descrição das nações indígenas que residem na
província de Mato Grosso. Cuiabá, 1843. Caixa 119-Rolo 81. NDHIR / UFMT.
18 Rego, Maria do Carmo de Mello. Artefactos indígenas de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1899.
19 Schmidt, Max. Los Paressis. Revista de la Socied Cientifíca del Paraguay. Assunción, t. VI, n. 1, 1943.
20 Taunay, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. t. III. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 1924/1950.
21 Cf. Ferreira Neto, Edgar. História e etnia. In: Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas, Ronaldo (Orgs).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 315.
56

colonial que se ocuparam, em alguns momentos de suas vidas, em deixar


para a posteridade fragmentos de memórias. Memórias de que os pesquisa-
dores se valem para estudar e recompor um passado presente em nossa
história. Memórias que trazem à luz os mais divergentes conceitos sobre as
etnias coloniais, onde predominam os depreciativos, muitos dos quais ainda
presentes entre nós.
Nos seus escritos, eles registraram a história do cotidiano do sertanejo,
tanto aquilo que foi visto por eles como o que foi contado por outros. Anota-
ram as dificuldades enfrentadas pelos sertanistas em construir uma história
de aventura. Falaram da luta com as adversidades impostas pela natureza,
que ainda muito precisava ser conhecida pelos desbravadores. Esses sertões
foram relatados num jogo/conjunto de palavras que são expressas por: mos-
quitos, doenças, aventura, ouro, índios de diferentes nações, cachoeiras, rios,
corredeiras, ataques, mortes, escravidão, guerras, lanças, flechas, munição...
E, com grande destaque e muitos detalhes, as nações indígenas que encon-
traram pelo caminho. Estes relatos, como notou Galetti, são

escritos que fundam a história da região como uma saga da conquis-


ta, e nos quais os confrontos e contatos entre indígenas e colonos são
quase sempre relatados como vitais para o sucesso ou insucesso das
ações colonizadoras. Neles, produzem, seus costumes, sua índole boa
ou má, sua natureza mansa ou brava (sempre de acordo com as
reações defensivas ou ofensivas que ofereciam ao avanço dos colo-
nos). E, não raro, é a distribuição espacial das várias sociedades
indígenas que torna compreensível para os colonizadores a própria
geografia da região. (...) Essa forma de desenhar a geografia da re-
gião, a partir do reconhecimento de territorialidades indígenas (nun-
ca respeitadas, salvo quando os interesses territoriais da Coroa esta-
vam em jogo), é um elemento chave no processo de configuração do
território colonial mato-grossense (...).22

O que estes homens registraram a respeito dos Paresi tem por base o
relato de Antônio Pires de Campos, capitão paulista e um dos primeiros
sertanistas a elaborar notícias sobre as sociedades indígenas na parte oeste

22 Galetti, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas represen-
tações sobre o Mato Grosso. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 51.
57

das terras em conquista. Seus escritos, segundo Jaime Cortesão, “foram en-
tregues ao padre Diogo Soares, naturalista e cartógrafo, um dos padres mate-
máticos (astrônomos) contratados por João V a partir de 1722 para refinar a
cartografia na América Portuguesa”. Esse texto era confidencial, pois apre-
sentava elementos para negociações sobre os limites dos domínios ibéricos
na América do Sul23.
Desde os primeiros tempos da colonização, os agentes nestas terras
enviavam notícias ao rei de Portugal. Os mapas eram feitos, as informações
eram passadas, e para um melhor cumprimento desses objetivos o rei de
Portugal proveu de especialistas suas Academias, no intuito de aparelhar os
conhecimentos sobre a terra em conquista. Antônio Pires de Campos muito
incentivou, através de seus escritos, as expedições no exercício da explora-
ção geográfica pelo interior do Brasil. Assim, também Antônio Rolim de Mou-
ra Tavares escreve ao rei de Portugal informando sobre as sociedades indíge-
nas nesta área, chamada de parte mais central da América do sul24, manten-
do-o informado sobre as especificidades da natureza e da sociedade que se
formava nesta parte oeste da conquista. Sobre relatos como o de Antônio
Pires de Campos, Galetti considerou que eram

verdadeiros mapas em prosa dos caminhos do sertão, não apenas (...)


guias repletos de informações úteis sobre a natureza topográfica dos
caminhos terrestres e fluviais, mas também, fontes de preciosas indi-
cações sobre pontos de maior concentração de populações indígenas,
destinadas a serem alvo das ações de captura ou extermínio pratica-
das por experientes sertanistas.25

Dentre as várias nações indígenas identificadas no relato de Antônio Pires


de Campos, ao longo do caminho que percorreu, por rotas fluviais, do rio Tietê
ao Cuiabá, a Paresi, pelas especificidades de sua cultura, que impressionaram
favoravelmente o sertanista, mereceu narrativa das mais detalhadas.
A nação vista por ele era muito numerosa, formada por índios que
ocupavam uma vasta região:

23 Cortesão, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Parte I, t. I (1695-1735). Rio de Janeiro,
Instituto Rio Branco, 1952, p. 299; e Siqueira, Elizabeth Madureira. Roças Paresi. Os Aliti (Paresi): uma
tentativa de recuperação histórica. Cuiabá: UFMT, 1993. (Mímeo). Na perspectiva historiográfica, a
produção de Siqueira inicia a temática dos estudos sobre os índios Paresi na UFMT.
24 Cf. Rosa, 1996.
25 Galetti, 2000, p. 52.
58

Naquelas dilatadas chapadas habitam os Paresis, reino mui dilata-


do, e todas as águas correm para o Norte. (...) Esse reino é tão
grande e dilatado que se lhe não tem dado com o fim: é bastíssimo
de gentio e muito fértil pela bondade das terras, o clima é bastante-
mente frio, a língua boa de perceber, (...) que a geral dos Parecis
quase todos entendem. 26

Um reino tão grande e populoso era difícil de numerar. Em cada aldeia


estavam construídas de dez a trinta casas, de tamanhos surpreendentes. Es-
sas são as suas impressões sobre a população e as casas:

É esta gente em tanta quantidade, que se não podem numerar as


suas povoações ou aldeias, muitas vezes em um dia de marcha se lhe
passam dez e doze aldeias, e em cada uma destas tem dez até trinta
casas, e nestas casas se acham algumas de 30 até 40 passos de largo,
e são redondas de feitio de um forno, mui altas e em cada uma destas
casas, entendemos agasalhará toda uma família (...).27

Ressalte-se que um quadro muito diferente daquele descrito por Antô-


nio Pires de Campos foi encontrado por Max Schmidt, quem, em suas avali-
ações, no princípio do século XX, aponta a existência de uma a três casas em
cada aldeia, o que caracterizaria uma franca depopulação dos Paresi nesse
intervalo de tempo.
Pires de Campos informa que muitos sertanistas vinham se servindo des-
tes indíos para o trabalho escravo, o que muito lhes favorecia pois eram muito
bons agricultores, virtude que, sem exceção, foi depois notada por tantos quantos
se ocuparam em descrever os Paresi. Relata o sertanista que cada casa era
habitada por um grupo familiar e todos tinham posse das terras e nelas traba-
lhavam incansavelmente. Plantavam mandiocas, milho, feijão, batata e anana-
ses. A ordem e o plantio desses alimentos causavam admiração:

(...) estes todos vivem de suas lavouras, no que são incansáveis, e é


gentio de assento, e as lavouras em que mais se fundam são mandio-
cas, algum milho e feijão, batatas, muitos ananazes, e singulares em
admirável ordem plantados, de que costumam fazer seu vinhos (...).27

26 Campos, 1981, p. 188-189.


27 Ibidem, p. 187.
59

Ao contrário de outros índios, os Paresi foram descritos como uma


nação que vivia do seu trabalho, da sua produção agrícola. Eram admirados
pela disposição com que plantavam os alimentos nas roças. Além da orga-
nização e da disciplina na produção destas roças, os Paresi foram referenci-
ados como sedentários, chamados gentios de “assento”. E mais, não eram
guerreiros, só se defendiam quando atacados, e eram ditos como muito
“asseados” e “perfeitos”. Diversos predicados foram atribuídos a eles, che-
gando o sertanista a dedicar apreciação elogiosa às estradas construídas
pelos Paresi: “muito asseados e perfeitos em tudo que até as suas estradas
fazem mui direitas e largas, e as conservam tão limpas e concertadas que
se não achará nem um folha”28.
As observações sobre as mulheres são, também, bastante entusiasma-
das. As Paresi apresentavam traços físicos positivamente valorizados, pois
em muito se assemelhavam aos da mulher européia. Em fragmento da narra-
tiva do sertanista, percebe-se uma classificação legitimadora do padrão esté-
tico do europeu:

(...) este gentio feminino é o mais parecido que se tem visto porque
são muito claras e bem feitas de pé e perna, e com todas as feições
perfeitas, e tão ágeis e habilidosas que nada se lhes mostra que não
imitem com a melhor perfeição, e o mesmo se acha nos homens.28

O trabalho destas mulheres também foi notado por sua beleza e perfei-
ção. As índias Paresi, segundo Pires de Campos, tecem panos

de teçume de penas, e de ricas cores, (...) costumam criar araras,


papagaios e outros pássaros em casa como quem cria galinhas, e os
depenam, e lhe dão com tintas que fazem de diversa cor como que-
rem que depois lhe saiam as penas, e em eles saindo em estando com
conta lh´as tiram para as suas obras que fazem, e lhe tornam a pôr
segundas tão vivas e singulares que parecem labirintos, sem que lhe
levem vantagens nas cores, as melhores sedas da Europa.28

Com respeito à caça, que também usavam para o seu sustento, Cam-
pos descreve os Paresi como muito habilidosos, e donos de técnicas singula-

28 Ibidem, p. 188.
60

res: “usam [...] cercar de rio a rio o campo, entre esta cerca fazem muitos
fogos, em que caçam muitos veados, emas, e outras muitas mais castas […]”.
Habilidade também não lhes faltava na confecção de apetrechos de guerra:
“as suas armas são os arcos e flechas e usam também de uma madeira muito
rija, e dela fazem uma folhas largas que lhes servem de espadas, e também
têm suas lanças mas pequenas, que com elas defendem [...]”29.
Os Paresi tinham suas crenças, e como idólatras de algumas imagens foram
percebidos pelos sertanistas no exercício da superioridade cultural-religiosa:

(...) estes tais têm uma casa separada com muitas figuras de vários
feitios, em que só é permitido entrarem os homens, as tais figuras são
mui medonhas, e cada uma tem sua buzina de cabaça que dizem os
ditos gentios, serem das figuras, e o mulherio observa tal lei, que nem
olhar para essas casa usam, e só os homens se acham naqueles dias
de galhofas, e determinados por eles em que fazem suas danças e se
vestem ricamente.30

A alusão às vestes deixa claro o uso de roupas, ainda que poucas: “[…]
os trajes ordinários deste gentio é trazerem os homens uma palhinha nas
partes verendas, e as mulheres com suas tipóinhas a meia perna”30.
A respeito dos ornamentos usados pelos chefes Paresi e do fabrico de
alguns instrumentos de uso cotidiano, relata Pires de Campos:

Faz este gentio obras de pedra como jaspe em forma de cruz de


malta, insígnia que só trazem os caciques, ou principais, dependura-
da ao pescoço, tão lisas e polidas como marfim lavrado, outras curi-
osidades, sem instrumento de ferro, nem aço, e fazem machados de
pedra, e outras coisas mais dificultosas de se acreditarem.30

Tantas qualidades, e grande parte delas assim identificadas por sua se-
melhança com a cultura do colonizador, culminam na conclusão de que os
Paresi apresentavam melhores condições do que outros “gentios” de se con-
verterem ao catolicismo, e por isso, apesar de reconhecer a sua natureza
indígena, Pires de Campos depositava esperança neles:

29 Campos, 1981, p. 187.


30 Ibidem, p. 188.
61

(...) são os que me parece se acharem mais hábeis entre todos os mais
para se instruirem na fé católica, havendo pregadores evangélicos,
que lha vão ensinar, e suposto que estes gentios de sua natureza são
bandoleiros e pouco constantes, como a experiência tem mostrado
que preservaram na idolatria se deve esperar que a misericórdia divi-
na há de permitir que algum abraçe tanta multidão de peões nossa
santa fé católica romana, como se espera em Deus o permita assim
para maior glória sua, honra e crédito da nação portuguesa, e exten-
são dos domínios de S. Majestade.31

As informações apresentadas pelo comerciante João Antônio Cabral


Camello não divergem das de Antônio Pires de Campos. Sobre a preação de
Paresi e sobre o trajeto monçoeiro percorrido pelos sertanistas, escreve:

Este rio Paraguay ainda me parece maior que o Rio Grande: é cerca-
do todo de matos, tem muitas ilhas, sangradouros, e bahias dilata-
das. Quasi no meio que o navegamos se divide em dois caminhos; o
do lado direito, que é um dos sangradouros, e se chama Xiunés, e do
lado esquerdo, que é o Madre; ambos se seguem, mas por estes só
navegam bastantes dias os que sahem do Cuyabá à conquista do
gentio Parassis e Mayborés, até encontrar o rio Cepotuba, que entra
no Paraguai pela parte esquerda: navegam por este acima, e depois
d’alguns dias de viagem, dá nos alojamentos dos sobreditos gentios, e
tyrannica e barbaramente os captyvam.32

A descrição que faz este comerciante a respeito dos Paresi reitera a de


Pires de Campos em muitos pontos. Diferentemente dos índios categoriza-
dos como “selvagens”, Camello elogia os Paresi por não representarem ame-
aça aos colonizadores:

É gentio que não faz a alguem; vivem quietos nas suas roças que
plantam e cultivam como os brancos; são fracos e inhabeis para a
guerra, mas nem por isso deixam de ser engenhosos, e de rara habi-
lidade para o mais (...).32

31 Ibidem, p. 189.
32 Camello, 1975, p. 12.
62

Além disso, eram fáceis de domesticar e suas mulheres possuíam predi-


cados da quase civilidade: “as femeas são como as nossas bastardas, e boas
para servirem uma casa com limpeza”33.
Camello também se impressiona com as atividades artesanais desen-
volvidas pelos índios da nação Paresi, e, ademais, é enobrecedora a forma
como trata de apresentar a destreza dos conhecimentos da técnica para a
confecção dos panos:

(...) estes se ocupam em tirar fios de uma casca de arvore á que


chamam Tocú, de que tecem as suas redes em que se deitam, e os
pannos com que se cobrem; tambem formam das pennas dos toca-
nos, araras e papagaios, que são vermelhos, verdes, azues e amare-
llos, uma certa casta de cintas, com que se vestem do peito até ao
joelho, tão bem lavradas que não invejam as melhores sedas da Euro-
pa; tambem fazem das mesmas pennas bandas e trunfas, e entre elles
é o mais rico aquelle que tem mais d´estes pássaros.33

Em todos estes relatos eram comuns as denúncias sobre a imposição da


escravidão aos Paresi, em que pesem os discursos e até mesmo determina-
ções das autoridades coloniais no sentido de se preservarem estes índios.
Nesse sentido, a crônica de José Barbosa de Sá informa que no ano de 1731,
semelhantemente ao que apresentam outros relatos citados, ocorreram mas-
sacres e escravização dos índios da nação Paresi:

Continuandose neste anno do Gentio Paresi de onde eraó trazidos


muitos indivíduos desta nascam que como escravos se vendiaó: che-
garaó a esta vila vindos do dito sertaó o Licenciado Pais de Barros seo
Irmaó Artur Pais, seus sobrinhos João Martins Claro e José Pinheiro
todos naturais da vila de Sorocaba e apresentaraó hum cruzado de
ouro e amostra das minas de Mato groso Lavado com hum prato de
estanho no lugar adonde se acha a capela de Santa Anna.34

O conjunto das representações aqui apresentadas revela que muitas


das características da cultura Paresi foram valorizadas pelo colonizador por-
que se assemelhavam às de sua própria cultura, ou porque acreditavam

33 Camello, 1975, p. 12.


34 Sá, 1975, p. 24.
63

que essas características apontavam para uma predisposição nata, nestes


índios, para aceitar a presença do colonizador em suas terras, e, ainda, para
se converter à fé católica e incorporar outros elementos da civilização. A
circulação dessas informações em São Paulo, ante-sala das práticas escravis-
tas, colocava numa permanente situação de risco a nação Paresi. Para os
sertanistas especializados em prear índios era mais lucrativo investir na
caça aos índios considerados “mansos”, preferencialmente os que, como os
Paresi, eram tidos como quase civilizados e se mostravam exímios produto-
res agrícolas. Certamente era mais caro e perigoso escravizar índios “bravi-
os”, pois estes não só punham em risco a empresa preadora, como, se
aprisionados, davam mais trabalho para serem escravizados e exigiam mai-
ores investimentos civilizadores.
Na concepção do europeu, esta nação necessitava de missionários para
o ensino da religião, “havendo pregadores evangélicos, que lha vão ensi-
nar”35. Está explícita a idéia de que os Paresi ocupavam escalada ascendente
em direção à civilização. A aceitação da racionalidade dos outros povos, não
cristãos, não significava o reconhecimento de sua igualdade, “pois mesmo
racionais não compartilhavam da mesma temporalidade. A viagem de uma
cultura à outra equivalia a uma viagem no tempo”36.
A mentalidade do europeu estava atada ao plano de “civilização” e
teria uma ação deliberada sobre os índios do Brasil, atuando também no
sentido da mudança de valores e comportamentos, a qual seria dirigida pelos
portugueses. O projeto da civilização trouxe um conjunto de intenções que
deveriam ser incorporadas à colonização. No anseio de adquirir forças para
tal empreendimento, a Igreja relacionava-se diretamente com os planos do
dito projeto. Esse papel estaria representado pelo pároco, pelo clérigo, den-
tre outros, fazendo com que as representações tutelares trabalhassem em
prol da civilização, da catequese, inclusive prestando assistência aos índios37.
Vê-se que esses índios da nação dos Paresi são considerados os mais
favoráveis aos investimentos civilizadores. São também representados como
“fracos” e “inábeis” nos serviços da guerra, e nessa percepção os Paresi pou-
co resistiriam ao avanço da frente colonizadora e não dificultariam a instaura-
ção do aparelho de Estado. Ou seja, os índios dessa nação incorporariam com
mais rapidez os traços culturais europeus que se queriam predominantes.

35 Ibidem, p. 24.
36 Ferreira Neto, 1997, p. 318.
37 Almeida, 1997, p. 35.
64

Os cronistas narraram em seus textos as idéias pré-concebidas à épo-


ca. Neles está inscrita a mentalidade de uma sociedade que percebia o
índio como elemento desqualificado, selvagem, rude, irracional, manso ou
cruel. Apresentam as práticas escravistas e mediam percepções que per-
mitem visualizar os Paresi como muito semelhantes aos colonizadores. Os
contatos tidos entre os agentes coloniais e as sociedades indígenas eram
“baseados em perspectivas etnocentradas tradicionais e na necessidade em
estruturar a exploração”38.
Nesta identidade historiográfica, entre os autores que escreveram sobre
os Paresi apresentando-os como laboriosos incluímos Maria do Carmo de Mello
Rego, no século XIX. Essa autora escreve sobre os índios Paresi na perspec-
tiva de considerá-los como quase civilizados, e se reconhece no outro, dei-
xando expressões marcadamente elogiosas. Também sugere ao leitor uma
visita ao Museu Nacional, onde deve averiguar a “denominada coleção do
Guido”. Sobre as impressões dos artefatos dos índios Paresi, a autora apre-
senta substanciosa atenção:

De todas as tribus indígenas da vastíssima e antiga provincia de Mato


Grosso, prenderá mais particularmente a attenção do observador que
visitar no Museu Nacional a collecção de artefactos aborigenes, deno-
minada collecção Guido, a dos Paricis pelos seus trabalhos de tecidos,
que mais pareceu provir de industria civilisada do que de silvícolas.39

Para adquirirem objetos de consumo em centros de comércio, as crian-


ças Paresi costumavam vender a poaia. Esse comportamento sócio-econômi-
co os elevava à condição de índios avaliados como estando na última etapa
de evolução. “São esses índios Parecis laboriosos, e as próprias crianças, des-
de pequenas, acostumam-se a colher poaia para irem com os pais às feitorias
fazer suas permutas”39.
Em textos de Rondon as mulheres Paresi são gabadas pela graça das
mãos e dos pés que, “especialmente nas mulheres, são notáveis pela graci-
lidade de suas proporções; os dedos das mãos são em geral fuziformes”40.
Os critérios biológicos foram definidores para os europeus no processo
de conquista, na medida em que se utilizavam de traços fenotípicos para

38 Ferreira Neto, 1997, p. 317.


39 Rego, 1899, p. 3.
40 Rondon, 1910, p. 14.
65

classificar e legitimar a compartimentalização e a exclusão de culturas. A


ascendência dos “brancos” sobre o restante das sociedades americanas pre-
servou relações etnocêntricas, tonando-as inferiores. Esses critérios biológi-
cos e físicos foram elaborados a partir de uma conjugação de características
que, comparadas aos padrões estéticos dos “civilizados, se aproximavam,
na medida, em que os traços físicos dos indígenas eram mais apreciados
pelos europeus”41.
Exemplificando essa idéia, a estética da beleza da mulher Paresi é ali-
cerçada para o reforço da concepção da quase civilidade desse índios. É
possível atentar para a construção dessa opinião quando essa faculdade é
mencionada:

Os homens que vi eram de estatura mediana; as mulheres, baixas, de


physionomia meiga e sympathica (...). Entre alguns Parecis que o
presidente mandou chamar a Cuiabá, para satisfazer o pedido da
comissão alemã e que não compreendiam portuguez, tive a ocasião
de ver uma bonita índia de 15 annos presumíveis.42

Essa citação clarifica a contribuição da autora reforçando o engendramen-


to dos positivados padrões estéticos da mulher Paresi. Foram mulheres admira-
das e elogiadas. A autora usa, em sua narrativa, palavras que representam
valores importantes à civilização. Ao referir-se a uma jovem moça, a autora diz
ser esta “gentil” e “bonita”. Além da beleza estética, possuíam essas mulheres
talentos no arranjo da produção artesanal. Esse discurso historiográfico solidifi-
ca os escritos de Antônio Pires de Campos e de João Antônio Cabral Camello.
Esses autores constroem uma versão historiográfica comum, manipulando a
identidade dos índios Paresi, e compartilham pontos de vista, mesmo que
vividos em diferentes tempos. É possível verificar a cumplicidade dos concei-
tos de “beleza”, de “mansidão”, de “civilidade”, de “laboriosos” e de “fiéis”.
Através das versões historiográficas sobre esses índios, percebe-se a incorpora-
ção dessa identidade de índios mansos à etnia. Em entrevista concedida à
antropóloga Maria Fátima Roberto Machado, Zonoizo, um índio Paresi, diz:

(...) Os índios Paresi são uma tribo de índio mais... bom do que
outros. Não fazem mal uma ao outro, tem o coração bom, essa coi-

41 Ferreira Neto, 1997, p. 318 a 319.


42 Rego, 1899, p. 4.
66

sas. Agora: os Kabixi são diferentes, Kabixi faz mal, mata os outros,
como têm matado diversa vezes, mataram muito a nossa gente (...).43

É desta forma que o padre salesiano Nicoláo Badariotti expressou, em


seus escritos, a identidade dos índios Paresi em fins do século XX. Foi no
trabalho de conversor de índios à fé cristã que entrou em contato com os
Paresi, e a partir dessa atividade escreveu sobre os seus comportamento,
língua, vestuário e adornos. Insere-se neste item a renovação dos conceitos
já assimilados pela historiografia. Sobre as mulheres diz serem “decentes”,
“circunspectas” e “pudicas”. São muito “hospitaleiros”, “amigos” e “confiá-
veis”. Desse modo, resume: “Os Parecis e o índio em geral, para não dizer
sem exceção, te acolhem como amigo offerecem-te hospitalidade pódes
descansar seguro e tranquillo (...)”44.
Nessa passagem, a validação da fidelidade do índio Paresi reforça a ima-
gem de índios diferenciados, corroborando para a construção da identidade de
mansidão. Nela há fortalecimento constitutivo das categorias positivas, sob a
responsabilidade de um missionário cristão. Os Paresi são fiéis, leais, hospitalei-
ros e monogâmicos, com exceção do “cacique que em todo caso nunca aban-
dona na penúria a mulher preterida”. Os defloradores e os adúlteros são “cas-
tigados com a pena de morte a cacetadas”. Claramente é percebido seu juízo
de valor ao observar que, apesar de muito “rudimentares” as vestes das mu-
lheres elas “denotam circunspeção e pudor ao sentar-se ou agachar-se no chão
e, prudentemente vigiam as crianças do mesmo sexo, de modo a poderem
servir nisto de modelo a certos civilizados”. As mães Paresi são muito carinho-
sas com seus filhos, nunca os castigam, e as crianças são levadas a toda parte45.
No ano de 1843, o Frei José Maria Macerata escreveu sobre várias na-
ções indígenas residentes em diversos lugares da Província de Mato Grosso.
No seu relato, os índios Paresi surgem com interesse: “Nação que reside nos
campos do mesmo nome, hé manso e tão amante da lavoura, que frequen-
temente vai a outros arraias do Pilar, Santa Ana e São Vicente para concertar,
e prover-se de ferramentas”46.

43 Machado, Maria de Fátima Roberto. Índios de Rondon . Rondon e as Linhas telegráficas na visão os
sobreviventes Waimare Kaxinite, grupos Paresi. Rio de Janeiro, 1994. Tese (Doutorado em Antropolo-
gia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 90.
44 Badariotti, 1898, p. 81.
45 Rondon, 1910, p. 39.
46 Relatório feito pelo Frei José Maria Macerata. Descrição das nações indígenas que residem na província
de Mato Grosso. Cuiabá, 1843. Caixa 119-Rolo 81. NDHIR / UFMT.
67

De maneira semelhante, Affonso de E. Taunay, fazendo referência


aos índios Paresi e amparado-se nos escritos de Antônio Pires de Campos,
caracteriza-os:

(...) gentio de brandos costumes, numerosíssimos, vivia de suas la-


vouras, mostrando as virtudes do incansável trabalhador. Nação de
grandes caçadores, nunca agressora, mantinha estradas largas e bem
conservadas. Dispunham os paresis de rudimentar indústria (...).47

Badariotti, por sua vez, considera-os “briosos”. “A qualidade que mais


distingue os Paresi é a fidelidade e lealdade”. Considera-os como exemplo
de moralidade. Para ele, “A moral dos Parecis ao contrario de outros selva-
gens, poderia servir de modelo a muitas cidades civilizadas”. Para o missio-
nário, as qualidades dos Paresi eram belas, lastimando porque, a seu ver,
começavam a “adulterar-se pelo sopro pestífero de uma civilização deca-
dente e abastardada”48.
Sobre as superstições relacionadas à morte, Nicoláo Badariotti descreve
que em sendo ela atribuída a algum inimigo, esse pagaria com a vida. “As
suspeitas sempre recahiam sobre alguém e este embora innocente era enter-
rado vivo”. Esse erro, segundo o padre, era considerado uma grave infração na
perspectiva dos índios Paresi, e a punição deveria ser feita com a morte.
Badariotti aprecia os Paresi, também, como verdadeiros comunistas:

O que é de um pertence a todos. É curioso ver como um deles faz um


longo cigarro amarrado com um fio de capim e o põe na orelha: um
outro chega (...) tira o cigarro e aspira os gazes (...) o proprietário
nem dá mostras de perceber, nem lhe importa conhecer o intruso.49

Romana Costa detectou um dos elementos formadores que contribui


para a explicação da construção da imagem de mansidão percebida pelos
colonizadores: o conhecimento da topografia de seu território.

Os Paresi são exímios conhecedores da topologia de seus territórios, o


que também pode ser um indicador da importância da territorialidade

47 Taunay, 1924/1950, p. 23.


48 Badariotti, 1898, p. 82.
49 Ibidem, p. 99.
68

no sistema de classificação dos grupos. Em geral nosso informantes


demonstraram interesse em esboçar mapas detalhadíssimos, contendo
acidentes geográficos, trilhas interligando os grupos locais, sítios de
caça de cada aldeia, rios, cabeceiras, locais de antigas aldeias etc.50

Um lugar a ser descoberto, atendendo a especificidade da mineração,


carecia de pessoas instrumentalizadas na decifração dos indícios da natureza,
o que era um saber de manuseio indígena. Nesse sentido, os Paresi desen-
volveram técnicas do conhecimento topográfico, o que os fazia mais dispo-
níveis e comparáveis à classificação de civilizados.
Outro motivo que complementa a construção de mansidão está nas
observações de Badariotti, Rondon e Roquete Pinto, que mostraram que os
Nambiquara eram inimigos dos Paresi. As disputas culturais estão incluídas
também em observações documentais. Os Nambiquara foram descritos como
bárbaros, antropófagos, especialmente comedores de Paresi, traiçoeiros e
ladrões de mulheres, enquanto que os Paresi o foram como gente facilmente
evangelizada, sedentária, agricultora e conhecedora da natureza. Daí a de-
marcação definidora no dizer sobre os Paresi como gente mais apreciada e
instrumentalizada à civilização.
Os Paresi são, diante desses exemplos, situados entre os índios mais
sujeitos a civilização, em comparação àqueles do sul mato-grossense. Os Boro-
ro, apesar dos esforços do missionário no trabalho para a extinção de certos
rituais, não deixaram de comemorar a festa do Baito. Em uma delas, denomi-
nada Bacururú, tratavam de operar o chamado Baitó, o que consistia, na visão
de Badariotti, em “verdadeiras saturnaes em que perecem cinco ou seis vícti-
mas”. Seu texto é terreno fértil em ensinamentos enfatizando a intolerância, o
descrédito a culturas ameríndias e, sobretudo, defendendo um desejo de condu-
zi-los à última escala da evolução, qual seja, submetê-los a uma rígida obediên-
cia aos ensinamentos divinos. Nessa perspectiva, classificou Cadinheus, Tere-
nas, Guatós, Chamacocos e Tobas como “corruptos”, mais do que os muçulma-
nos, os abissínios e os insulares da Oceania. Defendendo julgamentos que
legitimam a desvalorização de comportamentos culturais dos povos acima di-
tos, resume sua perspectiva ao afirmar que esses povos “já declinaram mais
abaixo da linha normal da humanidade”, numa prova incontestável de uma

50 Costa, Romana Maria Ramos. Cultura e contato: estudo da sociedade Paresi no contexto das relações
interétnicas. Rio de Janeiro, 1985. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 65.
69

posição política que afirma a decadência das sociedades americanas e asiáticas


e que defende o acirramento de posturas racistas.
A imagem de barbárie corresponde a uma prática social determinando
uma condição evolucionista na qual os padrões de conduta social estariam
prejudicados pelas “mais funestas conseqüências na ordem physica, intellec-
tal e moral”. Seus argumentos não se resumem às avaliações torpes, impe-
rando neles, também, preocupações com as tribos prestes ao “aniquilamen-
to”. Elogia os impérios Azteca, Tolzteca e Inca, acentuando que a “voragem
do tempo” não permitiu a eles terem seu legado e suas instituições, nem nas
“artes e na incontestável literatura”.
Ao dialogar sobre o sertão, Badariotti encarrega-se de provê-lo da visão
“degenerescente” e “sórdida”, vendo-o como “bruto em toda a significação
da expressão matto grossense”, compreendendo em uma de suas frações, o
cerrado, lugar “infestado de carrapatos, maribondos e mil outra immundici-
es”. Evidentemente que o padre, ao perscrutar os sertões, fazia-o em comu-
nidade, contando com sua comitiva e com o trabalho braçal e o saber dos
Paresi, que, familiarizados com a leitura dos códigos da natureza, tornavam a
marcha menos árdua. Para exemplificar, o padre conta a história do Paresi
Zozoiaça, homem de uns quarenta anos, converso ao cristianismo, batizado
com o nome de Manoel e com o sobrenome de Pinheiro, quem, com suas
muitas habilidades, facilitou a interferência do agente cristão sobre o sertão:
“É o melhor prático que se pode contratar para aquelles sertões, pois ele de
pequeno esteve nas margens do Juruena; serve de interprete e de interme-
diário entre o cacique e os negociantes do Diamantino”51.
Zozoiaça recebe elogios de Badariotti pelo talento à caça e o sábio
governo das armas:

Maneja admiravelmente a espingarda que lhe demos; arremeda a caça,


seja onça, veado, ou siry-ema até ter certeza de não falhar o tiro.
Também elle não perdeu um cartucho e quasi todos os dias na volta
do campo ou da matta nos trazia de que variar a nossa comida. E
susceptivel de affeiçção e sensível aos benefícios (...).51

Vê-se, no que está posto, que Zozoiaça trabalhou para a propagação do


cristianismo entre seu povo, alimentando e facilitando a entrada da comitiva

51 Badariotti, 1898, p. 102.


70

de Badariotti nas agruras do sertão, desempenhando o papel de intermediá-


rio para o agente cristão.
Os índios Paresi, segundo o padre, eram inimigos dos Tapanhunas, que
os atacavam de surpresa. Sobre o assunto, Badariotti escreve contando que
algumas luas antes de sua chegada à aldeia dos Paresi, em torno de 1898,
ocorreu um ataque aos índios Paresi e que os Tapanhunas, derrotados, foram
afugentados. Ao descrever os Tapanhunas, Zozoiaça dizia a Badariotti que “eram
negros, de aspecto horrível e que urram como feras”52. Rondon, em concor-
dância com Badariotti sobre a inimizade entre as duas nações, conta que “com
os Nhambiquaras travam de vez em quando combates que os primeiros pro-
vocam. Outr’ora usavam os Parecis, na guerra, colettes de couro”53.
Os índios intitulados “Tapahunas, Camarés, Cavihis, Cabixis, Cabixi-u-a-
jurury, Beiços de Paus, Maimbarês, Nenê, Orelhudo, Tamarês, Tamararé, Tag-
nani, entre tantos outros”, como estudou Costa, são etnônimos atribuídos aos
Nambiquara54. Esses índios, também relatados por Rondon, na primeira década
do século XX, viviam, e vivem, no extremo oeste do Estado de Mato Grosso,
no Chapadão dos Paresi e “não queriam a menor relação com os brasileiros”.
Seus mecanismos de defesa manifestavam-se nos ataques às embarcações
com destino ao Pará e, ainda, percebendo o perigo das armas, distanciavam-se
porque delas tinham medo. Certamente, as informações “negativas” sobre os
Nambiquara, na concepção de Rondon, acentuaram a mansidão dos Paresi
para aqueles que pretendiam uma sociedade padronizada à condição dos naci-
onais. A cultura dos Nambiquara, no olhar de Rondon, é construída em oposi-
ção à cultura dos índios Paresi. As observações do uso do fumo de “folhas secas
reduzidas a pó” e o hábito de dormirem junto ao chão, na incerteza de que
tivessem redes no aldeamento, fê-los menos civilizados, mantendo uma pers-
pectiva racista e excludente sobre as sociedades indígenas.
Antonio Pires de Campos e João Antônio Cabral Camello, homens do
século XVIII, e mais Maria do Carmo de Mello Rego, Nicoláo Badariotti e o
Frei José Maria Macerata, escritores do século XIX, expõem informações his-
tóricas e etnográficas sobre os índios Paresi que contrastam com as relativas
a outras etnias. Exibem expressões que significam o reconhecimento das
virtudes da civilidade e da mansidão. Trazem expressões positivas em quali-
dades que compõem a sua identidade particular.

52 Badariotti, 1898, p. 137.


53 Rondon, 1910, p. 38.
54 Costa, Anna Maria Ribeiro Fernandes Moreira da. Senhores da memória: uma história do Nambiquara
do cerrado. Cuiabá: UNICEN, 2002. (Coleção Tibanaré), p. 61.
71

Este conjunto de representações sobre a identidade Paresi permite con-


cluir que os Paresi ganharam um significado singular na leitura dos sertanistas
do século XVIII: ao invés de serem vistas com estranhamento, como era
comum ocorrer com outros povos, estas características foram, não raro, iden-
tificadas como positivas, por apresentarem semelhanças com a cultura do
colonizador. Ironicamente, atributos como mansidão, docilidade, afetividade,
fidelidade, e o reconhecimento de que eram avessos à guerra, grandes agri-
cultores, sensíveis aos ensinamentos cristãos, embora tenham despertado a
piedade em relação a estes índios, fizeram deles alvos fáceis para o apresa-
mento e a escravidão.
A apropriação do trabalho indígena Paresi é, portanto, mais que secular,
e a destruição de sua cultura, de suas aldeias e famílias teve início nas primei-
ras décadas do século XVIII, sendo que no período aqui estudado não há
registro de que tenham sido tratados com respeito e dignidade, apesar do
discurso protecionista da Coroa portuguesa.
Mas, ao seu modo, os Paresi resistiram e sobreviveram. E talvez fossem
hoje um entre os tantos grupos desaparecidos, não fosse a sua capacidade de
interagir com os não índios. A resistência se explicita no signo da vida e na
reprodução da memória, ritualizada na sobrevivência étnica do cotidiano. A
memória, neste caso, possibilita a sobrevivência da sociedade e/ou sua parcial
inserção na sociedade não indígena. A memória refaz a identidade do grupo e
mobiliza as técnicas de sobrevivência com a sociedade de brancos. No decor-
rer da sua história, feitos escravos e extorquidos por séculos, os Paresi ressigni-
ficam uma nova existência, afirmando a sua identidade indígena.
Em nossos dias, os grandes capitalistas agenciam formas ilícitas de apro-
priação da sua força de trabalho e de suas terras. A longa resistência desse
povo à dominação nos inúmeros cenários de opressão serve de exemplo à
história. Na especificidade, sua persistência, enquanto sociedade ameaçada
pelos vorazes e sanguinolentos sertanistas, é motivo de altivez e soberba no
enredo da história regional.
No entanto, alguns programas econômicos foram desenvolvidos nas
terras Paresi, orientados por agentes tutelares do Estado, entre os quais estão
os funcionários da OPAN e da FUNAI. Esses programas econômicos não vin-
garam, segundo avaliação de Daniel Mantenho Cabixi. A situação de precari-
edade econômica dos índios Paresi, em período recente, é explicada pela
dificuldade em assimilar os referenciais econômicos do capitalismo. Uma das
causas apontadas pelo autor é a deficiência de conhecimento da própria
comunidade sobre as noções básicas que impulsionam as práticas capitalis-
72

tas: a noção dos princípios de propriedade, individualidade, renda e poupan-


ça, dos empreendimentos no mercado, da produção e do consumo. Segundo
ele, os Paresi não conseguem enxergar suas limitações e atribuem o fracasso
de tais projetos a elementos externos. Nesse sentido, esclarece: “Haviam até
questionamentos carregados de radicalismo, que, suponho eu, eram um
mecanismo usado como meio de persuasão contrariando a original docilida-
de aos índios atribuída”55. Essa fala vem coroar o tema discutido nesta histó-
ria, qual seja, as conseqüências da atribuição de características de docilidade
aos Paresi, tanto para essa como para as demais nações indígenas do Mato
Grosso, sempre justificando os mecanismos de agressão às suas culturas e
pondo em risco a própria sobrevivência dessas nações.

55 Cabixi, Daniel Mantenho. Trabalho elaborado. Cuiabá, 1989, p. 10. (Mímeo)


73

Rio Sepotuba:
ambiente de poaia e de terra fértil*
Carlos Edinei de Oliveira**

Resumo Abstract
Este artigo procura destacar parte da história cons- This article searches to call attention for a built his-
truída no ambiente do rio Sepotuba, um dos prin- tory in the Sepotuba’s riverside, on of the most
cipais afluentes do rio Paraguai, mostrando aspec- important tributary of Paraguay river, it will show
tos como a mata da poaia, a fertilidade do solo e de aspects as poaia’s jungle, soil fertility and its jungle,
suas matas ciliares, a abundância de madeiras no- the abundance of the wood, the coffee’s production
bres, a produção do café e de outros produtos, and the others agricultural cultures, cause of this is a
bem como a festa da fertilidade realizada pelos party to celebrate the fertility realized by the agricul-
lavradores do município de Tangará da Serra, de- tural workers in the municipal district by Tangará da
nominada de Feira de Amostras. Serra, called Feira de Amostras (Sample’s Market).

Palavras-chave: Keywords:
rio Sepotuba – poaia – Tangará da Serra Sepotuba river – poaia – Tangará da Serra

* Partes deste texto estão em Oliveira, Carlos Edinei de. Famílias e natureza: as relações entre famílias
e ambiente na construção da colonização de Tangará da Serra-MT. Cuiabá, 2002. Dissertação (Mestra-
do em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso.
** Mestre em História pela UFMT, professor da Faculdade de Educação de Tangará da Serra – ITEC e da
Faculdade de Direito de Tangará da Serra – UNICEN.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
74

O Kazazorezá, como os índios Paresi chamam o rio Sepotuba, também


denominado pelos não-índios de rio Tenente Lira, é um dos maiores afluen-
tes do rio Paraguai, próximo à sua nascente.
Desde a nascente no município de Nova Marilândia até encontrar o rio
Paraguai, em Cáceres, percorre aproximadamente 396 quilômetros, sendo
navegável por embarcações de médio calado apenas na época das cheias,
que vai do mês de janeiro a março. O período das águas baixas, que corres-
ponde à seca no Centro-Oeste, é de junho a outubro, com menor vazão em
agosto e setembro.
Antes de pensarmos na paisagem das matas ciliares do Sepotuba como
uma paisagem exuberante, é importante considerá-la como um ambiente de
lutas, visto que no século XIX houve em suas margens vários quilombos,
formados por negros, mestiços e índios.
Este ambiente de luta foi intensificado durante a Guerra do Paraguai,
pois vários desertores da guerra engrossavam a população quilombola. O
crescimento populacional do Quilombo do Sepotuba, conforme destaca Lui-
za Rios Ricci Volpato, tornou-o um dos mais temidos de Mato Grosso:

O Quilombo do Sepotuba era o mais antigo e mais temido dos ajunta-


mentos de escravos existentes em Mato Grosso naquele período. As infor-
mações contidas nos documentos o tornam mais específico ainda. Entre
elas é importante destacar a presença de um oficial graduado da Guarda
Nacional entre os fugitivos – o capitão Antônio Vieira d’Asevedo. Cabe
salientar que a Guarda Nacional era um segmento paramilitar, monta-
do por proprietários com objetivo de garantir a eles próprios o poder e a
responsabilidade de promover a defesa da vida e do patrimônio dos
cidadãos. A patente de oficial da Guarda Nacional era de grande prestí-
gio social e, por isso mesmo, reservada aos proprietários. Portanto, era
de estranhar a presença de um deles entre os quilombolas.1

Estes vetores que compunham o diagrama da sociedade escravista mato-


grossense foram elementos constitutivos para a invenção da paisagem do
Sepotuba, um território tradicionalmente ocupado por índios Paresi, que plan-
tavam nas terras férteis de suas margens. Os Paresi também mantinham uma
relação mítica com o rio Sepotuba, conforme relata Daniel Mantenho Cabixi:

1 Volpato, Luiza Rios Ricci. Cativos dos sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888. São
Paulo: Marco Zero / Cuiabá: EdUFMT, 1993, p.191-192.
75

O rio Sepotuba tem uma relação mitológica, quase que milagrosa em


relação à sociedade Paresi, só para contextualizar essa relação dos índi-
os Paresi com o rio Sepotuba, uma história extravagante, havia uns
olhos d‘água que borbulha que na nossa língua chama-se Kukumaise,
aquelas bolinha d’água que sai do chão e na nossa crença dos antepas-
sados a cabeceira ela continha pedras preciosas, todo tipo rubis, esme-
raldas e ouro, para ter acesso a essas pedras tinha que fazer todo um
ritual, oferecer maxixe, a comida para Deus se não você não tinha
acesso às pedras. Essa é uma história que os Paresi guardam até hoje.2

Foi em busca de pedras preciosas que o mato-grossense José Soares da


Silva, partindo de Santo Afonso, veio, em 1958, para as margens do rio Sepo-
tuba. Não encontrou ouro, mas resolveu estabelecer moradia próxima à Serra
do Tapirapuã:

Eu cheguei aqui em 1958 com quatro companheiros viemos explorar


o rio Sepotuba de diamante e ouro, mas não encontramos forma
nenhuma, só encontramos poaieiro. Nós ficamos em quatro, um
baiano de Brejinho, outro mineiro de Araguari, outro piauiense, to-
cador de violão, tocador e cantador. Esse se apartou entrou pra Serra
Pelada nunca mais ouvimos falar dele. Agora, esses colegas, nós to-
dos, eram garimpeiros. O baiano bamburrou no Alto Paraguai e foi
embora para a Bahia, casou comprou terras e não precisou mais
voltar para Mato Grosso. E o mineiro de Araguari, também pegou
uma mancha de diamante em Alto Paraguai foi para a terra dele,
casou comprou terra e não quis mais voltar para Mato Grosso. E
agora de cuiabano, só eu, o Zé Soares, eu não pude sair, não bam-
burrei e fiquei aqui. Deus me deu onze filhos com minha véia tam-
bém, criados tudo em Tangará, desde que entrei aqui nunca sai de
Tangará, nunca mudei um ano.3

José Soares da Silva não saiu de Tangará da Serra; de garimpeiro passou


a ser agente de poaia. A mata da poaia é a mata ciliar do Sepotuba; é nela

2 Daniel Mantenho Cabixi. Entrevista concedida pelo administrador Executivo Regional da FUNAI de
Tangará da Serra, em 21 de setembro de 2001.
3 José Soares da Silva. Entrevista concedida ao programa Bastidores da História, edição especial em
homenagem a Tangará da Serra, apresentado por Sílvio José Sommavilla. Tangará da Serra, 12 de
maio de 2001.
76

que se encontra a fertilidade do solo exuberante que passou a ser cobiçado


pelas famílias que vieram requadricular o ambiente das roças Paresi. Como
escreveu Roquette Pinto, “as terras do Sepotuba são entremeadas de campos
e de cerrado. No cerrado, cajueiros em flor iluminando a tristeza da flora”4.
No solo do vale do Sepotuba as famílias construíram sua história, em
contato com a fauna e flora, e produziram representações variadas e contra-
ditórias sobre o mesmo ambiente; momentos de alegrias e de tristezas, de
vida e de morte, compuseram a sinfonia de parte da vida das famílias de
lavradores, de 1959 a 1979, no planalto do Tapirapuã.

A floresta fria, molhada, fechada e escura:


o ambiente da poaia

O Album Gráphico do Estado de Mato Grosso apresenta a poaia (Ce-


phaeles Ipecacuanha) no conjunto das plantas medicinais, como um recurso
a ser explorado, “uma grande vantagem da natureza mato-grossense”5.
O texto apresentado no Album Gráphico nomeia cinco características
de plantas medicinais: tônicas amargas, tônicas estimulantes, depurativas,
vomitivas e purgativas. A poaia, considerada como planta vomitiva, é assim
conceituada:

Ipecacuanha - Poaia (uragoga ipecacuanha) é uma planta rampante


que cresce na sombra das mattas humidas, especialmente na zona
pouco ao norte de São Luiz de Cáceres, onde o seu commercio está
centralizado; a exportação d’esta planta forma uma cifra bem eleva-
da no quadro da exportação do porto de Corumbá. Encontramos no
Nº I do “Boletim da Associação Commercial de Corumbá” (1912),
com relação à esta industria, o seguinte: “Tornando-se decadente a
mineração na então Província de Matto-Grosso, depois do decantado
apogeu à que tinham chegado as minas de ouro de Miguel Sutil e as
de diamantes do Alto Paraguay-Diamantino, era preciso encontrar
um industria extractiva succedanea aquella, pois os valentes pionei-

4 Roquette Pinto, E. Rondônia. 6 ed. São Paulo: Nacional / Brasília: INL, 1975. p. 66.
5 O Album Gráphico do Estado de Mato Grosso foi impresso em Hamburgo, com 532 páginas, organizado
por comerciantes de Corumbá (cidade do atual Estado do Mato Grosso do Sul) no ano de 1914 e
publicado com o objetivo de fazer propaganda das riquezas existentes em Mato Grosso na tentativa de
eliminar os preconceitos de isolamento do Estado.
77

ros do desbravamento das nossas pomposas florestas não podiam


ficar inactivos, acostumados como estavam a romper os obstaculos
interpostos pela natureza.
Assim foi que José Marcellino da Silva Prado nas suas explorações no
rio Areias ou Affonso, subafluente do rio Paraguay, onde descobriu
diamantes de valor, teve occasião de notar que alguns de seus garim-
peiros usavam, quando doentes, de um chá preparado com a raiz de
um arbusto muito frequente n’aquellas paragens e que tinha propri-
edades vomitivas.
Espirito investigador, tratou logo de colher uma certa quantidade
d’aquellas raízes e levou as á um negociante da então Villa Maria,
hoje cidade de São Luiz de Cáceres, pedindo-lhe para remetter a amostra
para a Europa.”
Estava iniciada a indústria extractiva da ipecacuanha.
Em poucos annos centenas de homens dedicavam-se a extrair a raiz d’esse
arbusto, encontrando até hoje um lucro compensador as fadigas.6

A poaia é da família da Rubiácea; seu nome científico é Cephaelis Ipeca-


cuanha e tem os seguintes nomes populares: cagosanga, cipó-emético, ipeca,
ipeca-cinzenta, ipeca-de-Cuiabá, ipeca-do-rio, ipeca-oficinal, ipeca-preta, ipe-
cacoanha, ipeca-amarelada, ipeca-canela-da-menor, ipeca-do-Brasil, ipeca-le-
gítima, ipeca-verdadeira, papaconha, pecacuem, picacuanha, poaia-cinzenta,
poaia-das-boticas, poaia-de-Mato-Grosso, poaia-do-Brasil, poaia-do-mato, po-
aia-legítima, poaia-preta, poaia-verdadeira, raiz-do-Brasil, raiz-preta, raiz-vomi-
tiva. Sua ação: modificadora das secreções, cardíaca, emética, expectorante,
anti-disentérica, sedativa, diaforética, hemostática, anti-hemorrágica, antipara-
sitária. Pode ser usada contra hemoptise, hematúria, hematemese, leishmanio-
se, dispnéia, difteria, envenenamento, catarro crônico intestinal, cólica, tenes-
mo, infecção intestinal, disenteria amebiana, irritação da garganta, irritação dos
brônquios, irritação dos pulmões, febre gástrica e febre biliosa7.
Marcel Jules Thieblot, ao produzir um estudo sobre a mata da poaia e
os poaieiros de Mato Grosso, caracteriza o arbusto da poaia:

6 Álbum Gráfico do Estado de Mato Grosso (EEUU do Brasil). Corumbá / Hamburgo: Ayala & Simon
Editores, 1914, p. 259.
7 Estas informações podem ser conferidas e ampliadas através do site Esalq/USP-Plantas Medicinais.
Disponível pela internet em http://www.ciagri.usp.br/planmedi/planger,htm. Acesso em 15 dez. 2001.
Quanto aos aspectos demográficos da poaia, ver Silva, Valdethe Prado da. Aspectos demográficos da
cephaelis ipecacuanha em Mato Grosso. Cuiabá, 1993. Monografia (Conclusão de Curso em Engenharia
Florestal) – Faculdade de Engenharia Florestal, Universidade Federal de Mato Grosso.
78

A planta não passa de 25 ou 30 cm de altura, mas ela sempre se


arrasta um pouco, de forma que o caule atinge uns 40 cm. As folhas
são opostas, simétricas, de um verde vivo. As flores brancas arroxea-
das, de um centímetro, dão nascença a um cartuchinho de sementes
vermelhas. Mas é a raiz que interessa ao poaieiro. É uma raiz preta
por fora e branca por dentro, formada de anéis bem juntinhos. O
trabalho consiste em descobrir e arrancar essa raiz de 20 a 30 cm de
comprimento que corre horizontalmente debaixo da terra. Extraída
a raiz o caule fica no chão e volta a brotar. Qualquer pedaço de raiz
que também fique, volta a dar um novo pé. Por ser muito mais fácil
mexer com a planta quando a terra está molhada, é costume “poaiar”
no tempo da chuva.8

O ambiente em que ocorre a frente extrativa da poaia, ou seja, a mata da


poaia, em que parcela da população, especialmente até os anos setenta do
século XX, esteve ligada à atividade de “poaiar”, é delimitada por Thieblot:

(...) podemos dizer que a região da poaia se acha delimitada pelos


paralelos 14 ao Norte e 16 ao Sul, e os meridianos 57 ao Leste e 60 a
Oeste. A mata se concentra da margem direita do rio Paraguai, que
corre do Norte ao Sul, até a margem direita do Guaporé, 300 km a
Oeste, que corre do Sul ao Norte; esses dois rios estão separados pela
chapada dos Parecis. Os rios mais famosos dessa mata são o Sepotu-
ba e o Cabaçal, que desembocam no Paraguai, acima de Cáceres.
Nas cabeceiras do Cabaçal, convém citar o rio do Bugres, o rio Bran-
co e o rio Vermelho. Depois o Jauru que também desemboca no Para-
guai, à jusante de Cáceres. Na bacia do Guaporé, está o mesmo rio
Guaporé que banha Vila Bela, a cidade das minas de ouro de outro-
ra, e o rio Galera mais ao Norte.9

Os poaieiros conheciam as matas desta região desde o século XIX,


época em que a ipeca foi responsável pelo povoamento do atual município
de Barra do Bugres, por volta de 1878. Quando chegaram, os primeiros habi-
tantes não-indígenas em Barra do Bugres iniciaram uma agricultura de subsis-

8 Thieblot, Marcel Jules. Poaia, ipeca ipecacuanha: a mata da poaia e os poaieiros do Mato Grosso. São
Paulo: Escola de Folclore/Livramento, 1980. p. 16.
9 Ibidem, p. 15.
79

tência, para que pudessem se manter no local e, ao mesmo tempo, trabalhar


na colheita da poaia10.
Por volta de 1896, Barra do Bugres foi elevada à condição de paróquia,
através da Lei 145, de 8 de abril do mesmo ano, com a denominação de
Paróquia de Barra do Rio dos Bugres, pertencente ao município de São Luís
de Cáceres. Barra do Bugres só foi elevada a município em 1943, conforme
Decreto-Lei 545, de 31 de dezembro de 1943.
Conforme Graci Ourives de Miranda, as paróquias criadas em 1896 obe-
deciam ao interesse do governo em realizar a reocupação do interior de
Mato Grosso e contribuir no processo de “pacificação” dos índios. As paróqui-
as seriam criadas juntamente com os Distritos Policiais; desta forma, em 1910,
de acordo com o Decreto n. 541, publicado na Gazeta Oficial de Mato Gros-
so, o Estado desapropriou uma área de 2.000 hectares de terras, para utiliza-
ção dos moradores de Barra do Bugres11. “Em 1940, pelo Decreto-lei 348, é
criada a coletoria de Barra do Bugres, em decorrência das arrecadações pro-
venientes do comércio da ipeca”12.
A exploração da poaia em Barra do Bugres, no século XIX, vai causar
também a quase completa extinção dos Umutina, grupo Macro-Gê, da famí-
lia lingüística Bororo. A destruição desse povo indígena foi patrocinada por
comerciantes que tinham grande interesse pela exploração da poaia, nesta
época uma mercadoria valiosa13.
Conforme Thieblot, a exploração da poaia pode ser dividida em três
épocas; a primeira, denominada por ele como “a das grandes expedições”,
vai até o início da Primeira Guerra Mundial, quando a extração era feita por
grupos de poaieiros que usavam bois de cangalha e tropas de burros; proce-
dentes da cidade de Rosário Oeste, as expedições cruzavam do rio Sepotuba
ao rio Galera. O momento das “comitivas” é cronologicamente demarcado
pelo autor, de 1914 a 1970, quando, por sua vez, aparece a figura do “pa-
trão” de poaia, geralmente o mesmo patrão da borracha. O patrão é aquele

10 Segundo Jovino S. Ramos, (Barra do Bugres: história, folclore, curiosidades. Cuiabá: s.ed., 1992), a
concentração de alcalóides da poaia de Barra do Bugres alcançava 2,0%, enquanto as de outras regiões
do Brasil tinham uma concentração de 0,02% a 0,8% em seus teores, daí a preferência pela poaia desta
região no comércio de exportação (p. 16). A importância da poaia e da seringa para Barra do Bugres
pode ser observada no brasão do município, exposto em sua bandeira. Um pé de poaia está entre duas
seringueiras.
11 Miranda, Graci Ourives de. A poaia: um estudo em Barra do Bugres. Cuiabá, 1983. Monografia (Especi-
alização em História e Historiografia de Mato Grosso) – Universidade Federal de Mato Grosso, p. 20.
12 Ibidem, p. 21.
13 É referência para este estudo o texto Jesus, Antônio João. Os Umutina. In: Dossiê Índios de Mato
Grosso – OPAN/CIMI-MT. Cuiabá, 1987.
80

que “mantém” o poaieiro e sua família no período da extração da poaia ou


fora dela. O desligamento do poaieiro do seu patrão só aconteceria quando
ele saldasse suas dívidas.
Romana Maria Ramos Costa evidencia a relação entre a extração da
poaia e da borracha, analisando o caráter complementar de ambas as ativida-
des extrativas, no momento das comitivas:

As modificações que vieram a se produzir na estrutura da frente extrati-


va da poaia deveram-se, não só, ao aumento da demanda devido às
guerras mundiais e conseqüentemente acréscimo no valor do produto,
mas também à interação desta frente com a indústria extrativa da bor-
racha. O fato de as duas atividades se caracterizarem como explorações
sazonais – a extração da borracha nos meses secos (março a outubro) e
a extração da poaia no tempo chuvoso (novembro - março) – possibili-
tou em grande parte, esta interação. Alguns relatos mencionam que
seringalistas, em épocas de chuvas, se tornavam “patrões” de poaia,
apontando o caráter complementar entre ambas as atividades.14

A terceira época destacada por Thieblot é a do “trabalho individual”, a


qual aconteceu depois que o Departamento de Terras concedeu títulos de
terras para grandes proprietários, cujo interesse pela poaia era completamente
inexistente. Com o propósito de especular a terra, ou mesmo de transformá-la
em monocultura ou fazenda de pecuária, a poaia existente não tinha nenhum
valor. Neste momento, conflitos políticos aconteceram entre os recentes mora-
dores de Tangará da Serra e os tradicionais exploradores da poaia de Barra do
Bugres. Conforme os relatos orais, a moeda corrente em Barra do Bugres era a
poaia; mesmo tendo o papel-moeda, alguns moradores foram obrigados a
poaiar para conseguir comprar alimentos e outros utensílios no armazém. Esta
extração individual ou familiar, desligada diretamente do “patrão” e executada
até a década de 1970, efetivada, inclusive, por famílias de lavradores, é que
pode ser denominada de “época do trabalho individual”.
A poaia, até meados do século XX, era fonte econômica bastante signi-
ficativa para Barra do Bugres. Alguns comerciantes de poaia daquele municí-
pio mantinham um padrão de vida superior ao da maioria da população. O

14 Costa, Romana Maria Ramos. Cultura e contato: um estudo da sociedade Paresí, no contexto das relações
interétnicas. Rio de Janeiro, 1985. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, v. 2. p. 219.
81

poaieiro, explorado, vivia de forma quase desumana durante a extração da


poaia (outubro a maio) e principalmente durante o período em que não se
fazia a extração, ou seja, a entressafra.

Ao final de abril ou maio, os trabalhos na mata se encerravam, oca-


sião em que o poaieiro saía da mata escura, onde não recebia luz do
sol e se dirigia para a beira dos rios, com destino à cidade ou distrito
mais próximo. Geralmente, o poaieiro chegava doente, muitas vezes
com malária, pálido e magro. Sem condições de se manter às própri-
as custas, pois restava-lhe pouco capital, ao final da safra, era co-
mum que ele fosse trabalhar para o patrão, junto às suas roças, a
meia. O poaieiro plantava em terras alheias e, ao final da produção,
dividia-a ao meio, com o dono das terras.15

Adolpho Jorge da Cunha faz uma narrativa que destaca a viagem de


quatro poaieiros do rio Sepotuba até o córrego dos Macacos, um afluente do
rio Vermelho. A história representa o cotidiano de poaieiros vivido durante
35 dias de 1937, em que estes sofrem as intempéries climáticas do excesso
de chuvas, o ataque de mosquitos, principalmente do “lambe-olhos”, um
amigo fiel do poaieiro, assim como os carrapatos, micuins e as pulgas, habi-
tantes de ranchos abandonados16.
O ideal para o poaieiro era encontrar espaços na mata em que a erva
ainda não tinha sido extraída, ou que tivessem há muito tempo sido esqueci-
dos pelos poaieiros, por isso as viagens de grupos de pessoas a lugares
diferentes dos habituais da mata da poaia, em que a erva pudesse estar com
a raiz mais grossa, volumosa.
A extração da poaia no período chuvoso é caracterizada pelos poaieiros
como a ideal, pois a terra está mais fofa e facilita o trabalho. As chuvas
também espantavam os carrapatos, possibilitando mais êxito na romaria em
busca da ipeca; porém, quando caíam em excesso, faziam com que os poai-
eiros adoecessem mais rapidamente. O barro, geralmente vermelho e “li-
guento”, sujava o poaieiro e ficava preso ao saraquá, principal instrumento
de trabalho, o que obrigava o trabalhador a limpá-lo constantemente nos
galhos ou troncos de árvores, atrasando a coleta da raiz.

15 Siqueira, Elizabeth M. et al. O processo histórico de Mato Grosso. Cuiabá: Guaicurus, 1990. p. 6.
16 Cunha, Adolpho Jorge da. O poaieiro de Mato Grosso. São Paulo: Resenha Tributária, 1981.
82

A extração da poaia exigia um domínio preciso da floresta, pois o poaiei-


ro geralmente se distanciava da picada principal, em busca dos “folgões” de
poaia, espaço em que se avolumava uma quantidade significativa de plantas.
Neste percurso, o encontro com animais ferozes era uma incógnita; a presença
de cobras venenosas, uma constante, fazendo-se necessário o uso de roupas
que pudessem minorar o sofrimento do poaieiro. Não tendo recursos necessá-
rios para comprar roupas adequadas, as famílias de poaieiros, ao inventar sua
forma de viver neste período, balizado pelo tempo das chuvas e da seca,
reinventaram vestimentas constituídas de um capuz ou boné amarrado por
baixo do queixo, calças compridas e camisas longas, usualmente com muitos
remendos. No início da exploração da poaia, eles usavam alpargatas de couro,
e depois passaram a usar botinas ou outros calçados fechados.
Na extração da poaia, além da vestimenta que facilitasse a vida na
mata, alguns instrumentos eram necessários para a sua exploração:

As ferramentas são o facão, o saraquá e o bornal. O bornal de lona é


levado a tiracolo e serve para carregar as raízes. O facão é usado para
abrir a picada, mas na hora de arrancar poaia, é passado no cinto, do
lado esquerdo, de forma a segurar o bornal e evitar que ele caia para
frente quando o poaieiro se inclina para pegar nas plantas. A ferra-
menta principal, o saraquá, é um ferro afunilado e pontudo de 25 cm
de comprimento, adaptado a um cabo de madeira de um metro e
cinqüenta. O homem pinica e afofa a terra por baixo das raízes com o
saraquá ao mesmo tempo em que, com a outra mão, ele puxa a planta
devagar até extrair a raiz inteira. Andando na mata, o poaieiro arras-
ta o saraquá atrás dele, mas sempre pronto a usá-lo como arma. Fa-
lando em arma, até há pouco tempo, os poaieiros andavam de revólver
na cintura. Pela mesma razão que o chapéu atrapalha, também a
espingarda é inadequada, tendo em vista o emaranhamento da mata.17

O convívio com uma fauna imensa e por poaiar nas matas ciliares de
grandes rios como Sepotuba, Cabaçal, Branco, Vermelho, Paraguai e Galera, a
carne de animais, o mel e o peixe faziam parte da alimentação dos poaieiros,
sendo comidos com os alimentos básicos, arroz, feijão, carne seca e farinha.
O poaieiro realizava duas refeições, uma pela madrugada, chamada de “que-
bra torto” e a segunda no início da noite, com os mesmos alimentos. Não

17 Thieblot, 1980, p. 36.


83

levavam nada de alimento para a mata; às vezes comiam frutos silvestres


que encontravam. O guaraná era uma bebida apreciada pelos poaieiros, as-
sim como a aguardente.
O mundo do poaieiro era também cheio de símbolos, era um espaço
liso18 nessa ordem social que imperava nas cidades, pois mergulhavam na
mata, enganando muitas vezes os comerciantes da poaia:

Geralmente o poaieiro não entregava ao patrão toda produção extra-


ída, mantendo em sigilo determinada porção do produto, ficando
indiferente, se continuasse devedor. Com esta mercadoria sigilosa o
poaieiro estabelecia comércio com os mascates que transacionavam
mercadoria na beira do Rio Paraguai com suas pequenas lanchas ou
nos armazéns de médios proprietários.19

As histórias de assombrações e as relações com a natureza registradas


na memória coletiva de alguns poaieiros ainda vivos permitem-nos buscar
elementos essenciais para compreender as representações deste solo fértil,
o vale do Sepotuba.
Nas lembranças dos poaieiros ainda vivos há uma entidade sobrenatural
guardiã da mata e de seus mistérios, o Pé-de-Garrafa. Um ex-poaieiro, natu-
ral de Jangada-MT, residente no município de Nova Olímpia, dá o seguinte
depoimento:

Agora sobre as histórias assim de feras nunca aconteceu, a não ser


cobra, que nem os poaieiros falavam de um Pé-de-Garrafa. A gente
não podia, os mais velhos ficavam bravos se déssemos um grito assim
u,u,u,u,u. tinha de dizer assim ô,ô,ô,ô,ô, porquê diziam que era o
Pé-de-Garrafa que gritava do primeiro jeito. Tem uma história que
diz que o poaieiro gritou u,u,u,u,u e ele respondeu u,u,u,u,u. Um
poaieiro desconfiado subiu num pau e o Pé-de-Garrafa passou e es-
tava com o companheiro debaixo do braço, o que gritou, de vez em
quando dava uma bocada comendo o rapaz.20

18 Para Deleuze e Guattari, “O espaço liso é o espaço nômade, onde se desenvolve a máquina de guerra
e o espaço estriado é o espaço sedentário, espaço instituído pelo aparelho de Estado” (Deleuze, Gilles;
Guattari, Félix. Mil platôs. v. 5. Capitalismo e esquisofrenia. São Paulo: Ed. 34,1996, p. 179).
19 Miranda, 1983, p. 36.
20 Santos, Vivaldino Gomes. Entrevista com Armindo Barbosa da Costa poaieiro morador de Nova Olím-
pia. Tangará da Serra-MT, 2001. Monografia (Metodologia do Ensino de Ciências Humanas) – Curso de
Pedagogia, Faculdade de Educação, Instituição Tangaraense de Ensino e Cultura.
84

Os poaieiros relatam os perigos que enfrentavam nas matas da poaia e


as práticas cotidianas que produziam para conseguir sobreviver. O depoi-
mento a seguir é de descendente de índios, nascido na Fazenda São José, nas
margens do rio Sepotuba, município de Cáceres:

O negócio é o seguinte, o patrão fornece para o mês, então vamos


para a mata, lá faz o barraco, entra na mata cedo, cedinho, passa o
dia na mata, chega no barraco já de noite, com frio, com chuva, com
sofrimento, longe de casa, na mata. Então, nos passávamos, mês,
dois meses, tirava aquela quantia de poaia levava lá no barracão
entregava a poaia e tirava fornecimento novamente para o mês. As-
sim era a vida do poaieiro, essa vida não tem hora, nem dia, é direto
arrancando aquela poaia um sofrimento, sofrendo, passando muitas
coisas, muitos perigos de bichos. O ramo que tinha naquele tempo
era a poaia, não tinha outra coisa. Nada valia, o que valia era a
poaia. Eu poaiava livre. Eu tirava o fornecimento ia para a mata da
poaia. Lá tirava aquela poaia vendia aquela poaia. Então era muito
longe a distância nesse mundo do Galera, uns trezentos quilômetros.
Faltava comida lá pra nós, o que nós fazíamos, na cabeceira tinha
aqueles palmito nós comíamos para vê se dava tempo de chegar a
tropa com recurso. E passava dez, quinze dias naquela vida, arris-
cando a vida, morrer sem nada no barracão.21

O universo da poaia não era formado apenas por homens. Principal-


mente na segunda metade do século XX, algumas mulheres também segura-
vam com firmeza no saraquá afofando a terra para retirar a raiz que pudesse
trazer alimentos para sua família. Maria Benoilza Alves da Silva foi testemu-
nha do trabalho com a extração da poaia:

Foi muito difícil porque nós não tínhamos o costume de andar na mata,
o medo era maior que o interesse de arrancar poaia, mas nós não que-
ríamos ficar sozinha em casa, então entravamos na mata junto com
marido, pai, irmãos, primos a família toda. No primeiro dia que nós
entramos na mata, nós tínhamos medo de se perder, mas algumas pesso-
as indicaram para nós a bússola, tipo de um reloginho, você coloca no

21 Santos, Vivaldino Gomes. Entrevista com Antônio Chamameu Espírito Santo poaieiro de Nova Olím-
pia. Tangará da Serra, 2001. Monografia (Metodologia do Ensino de Ciências Humanas) – Curso de
Pedagogia, Faculdade de Educação, Instituição Tangaraense de Ensino e Cultura.
85

cabo do saraquá que ele está enterrado no chão ela aponta certinho e
você vai entrando pro nascente ou pro poente ela indica o certinho
aquele ponteirinho. O que levou a gente a explorar a poaia foi porque
aqui na nossa região era só o ramo que dava pra ganhar dinheiro, e se
plantasse arroz e feijão não tinha saída para vender. E se você não
arrancasse a poaia você não tinha como comprar outra alimentação.22

O depoimento acima registra outro aspecto fundamental do que aconte-


ceu na região de Barra do Bugres, especialmente nas décadas de 40, 50 e 60
do século XX, cuja principal moeda de circulação era a poaia. Os donos das
casas comerciais eram também os exportadores de poaia. Toda a sociedade
estava presa ao domínio do comércio imposto por eles. Muitos são os relatos
orais que abordam este controle comercial, em que o sal, o açúcar, a aguarden-
te, todos os alimentos e tecidos estão condicionados à exploração da poaia.
O patrão da poaia sempre estava no comando político local. A relação
de compadrio também existia entre poaieiros e patrões. Os patrões da poaia
sempre estiveram interessados na manutenção de seus negócios com eficá-
cia, pois, além de estabelecerem os preços de mercado para a compra da
poaia, foram responsáveis pela criação de decretos-leis municipais que ga-
rantissem a “conservação” da mata da poaia23.
Graci Ourives de Miranda específica a diferença entre o patrão e o
poaieiro, no município de Barra do Bugres:

A figura do patrão apresentava-se em Barra do Bugres quase sempre


como a do cacique político, hábil e de fala fácil. Além de possuir a
terra ele detinha também em suas mãos o comércio. Assim fechava-se
o círculo vicioso. O homem simples e sem instrução estava à mercê
daquele que a qualquer momento podia ditar sua sorte. Começa aqui
a relação indissolúvel entre o poaieiro e o patrão. De um lado encon-
tramos aquele que por herança detinha o monopólio da terra, usan-
do-a como melhor lhe aprouvesse e de outro lado, o poaieiro homem
pobre, sofrido e esperançoso.24

22 Santos, Vivaldino Gomes. Entrevista com Maria Benoilza Alves – Poaieira de Nova Olímpia. Tangará da
Serra, 2001. Monografia (Metodologia do Ensino de Ciências Humanas) – Curso de Pedagogia, Faculda-
de de Educação, Instituição Tangaraense de Ensino e Cultura.
23 O patrão da poaia quase sempre fazia o jogo político local, tornando-se prefeito, comerciante e
exportador. A relação de compadrio se realizava quando o patrão tornava-se padrinho de batismo ou de
casamento dos filhos ou filhas de poaieiros.
24 Miranda, 1983, p. 32.
86

A Prefeitura Municipal de Barra do Bugres passa a ser a “protetora” da


mata da poaia a partir de 1939, com o Decreto-Lei n. 1.202, de 8 de abril,
publicado no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso no dia 18 de abril de
1939. No Decreto-Lei está explícito o controle que a prefeitura faria na mata
da poaia, impedindo sua derrubada e queima, mesmo que ela pertencesse a
particulares. O Decreto-Lei n. 01, de 5 de abril de 1939, registrado no Livro
de Decretos da Prefeitura Municipal de Barra do Bugres, estabelece o perío-
do para a extração da poaia e exige que o poaieiro faça obrigatoriamente a
replanta da rama. Estes dados reforçam o vínculo de dominação que o patrão
exercia sobre os trabalhadores da poaia.
Os patrões da poaia de Barra do Bugres, por terem considerável recur-
so econômico e querendo aumentá-lo sempre mais, vão dificultar o avanço
das famílias de lavradores, no início da década de 1960, para o planalto do
Tapirapuã. Para os comerciantes da poaia, a mata não poderia dar lugar à
lavoura, pois, desta forma, a extração desapareceria.
São vários os relatos orais em Tangará da Serra que evidenciam estes
conflitos com as elites políticas de Barra do Bugres, pois, ao chegarem em
Barra do Bugres, alguns tentavam impedir que as famílias subissem a serra,
fazendo discursos contrários àquele propalado por quem tinha a esperança
de ver o vale do Sepotuba reocupado, conforme depoimento:

Quando as mudanças que vinham para Tangará da Serra chegavam


em Barra do Bugres, o povão lá, colocava maior dificuldade em Tan-
gará da Serra. Diziam que aqui era muito perigoso, aqui matava
gente, dava maleita, mas isso é que eles não queriam que Tangará da
Serra não crescesse, porque se Tangará da Serra crescesse derrubava
as matas, derrubando as matas, acabava a poaia, quando acabasse a
poaia, acabava o comércio deles.25

Estas dificuldades estavam também em conseguir os gêneros alimentí-


cios, obrigando as primeiras famílias de lavradores que vieram para Tangará
da Serra a realizar a extração da poaia para poderem comprar sal, açúcar,
banha e outros, pois a moeda de troca no comércio de Barra do Bugres era a
raiz da ipeca. Homens e mulheres eram obrigados a conhecer o funciona-
mento da bússola e entrar mata adentro em busca da raiz, a qual poderia ser
vendida em Nova Olímpia ou até mesmo em Tangará da Serra.

25 Manoel Torres, em entrevista para o autor, em 13 de maio de 1991.


87

As famílias que chegavam em Tangará da Serra percebiam a presença


de poaieiros no mesmo espaço, pois estes passavam pelo perímetro urbano
ou por propriedades rurais em seus carroções de bois, com os instrumentos
e mantimentos para montar acampamento nas matas ciliares; estes eram
geralmente mato-grossenses e foi com eles que mineiros, paulistas, parana-
enses e nordestinos aprenderam a “poaiar”.
A poaia foi também o atrativo para que pessoas comprassem glebas,
pois “lugar de poaia é lugar de terra boa”. Esta representação ajudou a con-
figurar o vale do Sepotuba como espaço fértil. A poaia atraía compradores
não mais interessados na erva, mas especialmente nas terras, pois elas deve-
riam se transformar em grandes lavouras ou grandes pastagens.
No final da década de 1950, mesmo com o controle imposto pela Pre-
feitura de Barra do Bugres, a extração da poaia entra em decadência, confor-
me destaca a Revista Brasil-Oeste:

A poaia nativa das florestas dos vales do Paraguai, Cabaçal, Jauru e


Sepotuba e seus afluentes era abundante no município de Cáceres,
mostrando-se, mesmo nas proximidades da cidade, mas que já se
distanciou por dezenas de léguas do centro inicial de extração, afun-
dando-se nas selvas.
São apontadas como causas determinantes do desaparecimento da
poaia, a falta de sistematização na sua exploração, a inobservância do
replantio e o fogo ateado anualmente nas matas de poaia.
Queremos destacar, como o maior responsável pelo aniquilamento da
poaia e, talvez, o próprio desaparecimento da espécie, o fogo, ou seja,
a queimada.26

A extração da poaia posterior aos anos cinqüenta, em estudo, não era


uma preocupação do Estado, interessado na “ocupação dos espaços vazios” de
Mato Grosso, conforme já estabelecia a “Marcha para o Oeste” no governo
Vargas, desde a década de 1930. A propaganda do Estado de Mato Grosso era
justamente para incentivar as correntes migratórias sulistas, embora esbarras-
sem nos poderes locais, como ocorreu, no caso da poaia, em Barra do Bugres.
O poder local de Barra do Bugres tentou impedir até mesmo a efetiva-
ção da colonizadora SITA, dificultando a passagem de alimentos e de pesso-

26 Precária a situação da indústria extrativa da ipecacuanha no Estado de Mato Grosso. Revista Brasil-Oeste,
São Paulo, n. 13, maio 1957.
88

as, efetuando uma propaganda inversa à executada pela colonizadora27.


Uma das formas mais rápidas de se chegar até Tangará da Serra nos
anos sessenta e setenta, vindo de Cuiabá, era passar por Barra do Bugres e
atravessar de balsa o rio Paraguai, balsa controlada pelos patrões de poaia do
município. Isso dificultava o acesso a migrantes cujo destino era o planalto
do Tapirapuã. Muitas são as histórias relatadas pelos membros das famílias de
lavradores sobre a relação com Barra do Bugres; isto fez com que se criasse
uma desavença política entre pessoas de Tangará da Serra ligadas direta-
mente à venda de terras e patrões de poaia de Barra do Bugres até 1976,
quando acontece a emancipação política do primeiro. Parte da população de
Barra do Bugres denominava os habitantes tangaraenses de “macacos”, por
viverem em cima da serra, já os barra-bugrenses eram chamados de “tatus”,
por estarem embaixo da serra. No mês de maio de 1976, durante a festa da
emancipação política, uma bandeira carregada por populares ostentava uma
figura de um macaco em cima de uma árvore, segurando o rabo de um tatu;
em forma circular estava escrito: “Chegou a vez do macaco mandar no tatu”28.
A mata da poaia, quadriculada desde o século XIX por homens e mulhe-
res, continuou a oferecer, por quase um século, a sobrevivência de muitos. Os
medos e os perigos relatados pelos poaieiros do século XIX configuravam,
posteriormente, na memória dos novos poaieiros, a mata fértil, que mesmo
sem a poaia continuava a existir e a produzir muitos sonhos e esperança para
muitos. A principal esperança era ver a mata substituída por plantações e que
essas pudessem trazer um futuro melhor para os seus descendentes.

A fertilidade do solo

O rio Sepotuba, o marco divisor de glebas, foi considerado como um


grande álibi dos corretores de terras quando da abordagem do discurso da terra
fértil, fundamentado, inclusive, na presença da poaia. Segundo afirmação de
antigos poaieiros e de alguns dos primeiros migrantes que participaram desta
extração, “lugar de poaia é lugar de terra boa”. Badariotti29 aponta a abundância

27 SITA - Sociedade Comercial Imobiliária de Tupã para a Agricultura, colonizadora privada responsável pela
colonização de Tangará da Serra-MT.
28 Costa, Maria Luiza Fregadolli et al. Iniciação política de Tangará da Serra-MT. Monografia (curso de Metodo-
logia do Trabalho Didático nas áreas do Conhecimento). Tangará da Serra: SEE-MT, agosto 1999, p. 16.
29 Badariotti, Nicolao. Exploração no norte de Matto Grosso: região do Alto Paraguay e planalto dos Parecis.
Apontamentos de História Natural, Etnographia, Geographia e impressões. Cuiabá: Biblioteca Katuku-
losu - Missão Anchieta, 1898, p. 53.
89

de ferro no solo e o considera fértil para a produção do café. Esse discurso é


retomado posteriormente na década de 1950, nas propagandas de vendas de
terras feitas em Barra do Bugres, conforme a imprensa da época.
As terras férteis do planalto do Tapirapuã foram a grande atração para
os primeiros moradores que vieram continuar suas vidas em Tangará da Ser-
ra, mas quando chegavam encontravam um ambiente muito diferente da-
quele prometido pela Colonizadora.
Uma senhora paulista, mas proveniente do Paraná, em 1970, relata:

Quando estava no Paraná ouvia falar bem de Tangará que lá era um


paraíso, lugar de terra boa, falavam que lá “arroz dava em toco”.
Quando cheguei deu vontade de voltar na hora. Fomos morar num
rancho de sapé no meio do mato, só tinha mato e bicho e vaga-lume
à noite, solidão total.30

Na leitura das fontes, percebemos a relação deste ambiente com o


conceito de sertão presente em Badariotti e também no discurso do próprio
dono da colonizadora, e, ainda, na fala dos primeiros moradores não-índios.
Destacam-se, desta forma, somando-se os expedicionários já mencio-
nados anteriormente, os diferentes sertões registrados por Galetti: sertão da
peregrinação (de vários tipos de andarilhos e de marginais, espaços de liber-
dade e resistência), desertores de milícias, fugitivos, quilombolas, tropeiros,
artistas; sertão dos que buscam terras para se fixarem (vaqueiros, fazendei-
ros, agregados, posseiros, garimpeiros); sertão dos brasileiros cultos (a servi-
ço do Estado brasileiro, em comissões e expedições)31.
Pensando nestes múltiplos olhares sobre o ambiente, é importante res-
saltar o enfoque que os primeiros moradores deram à floresta, ou seja, às
matas ciliares. Na descrição, estes ambientes geralmente são caracterizados
como lugares virgens e inexplorados, desconhecendo-se seu estriamento,
principalmente realizado pelos índios e poaieiros; a memória coletiva cons-
trói a presença significativa de muitas “madeiras de lei”. Um migrante relata
que não precisava andar meio quilômetro para encontrá-las. Os compradores
de madeira, alguns deles proprietários de serrarias locais, residentes no muni-

30 Maria José da Silva, em entrevista ao autor. Tangará da Serra, 31 de agosto de 2000.


31 Galetti, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas representa-
ções sobre Mato Grosso. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
90

cípio desde 1970, só compravam as melhores madeiras; o resto era queima-


do, virava cinza, dava lugar à roça de arroz e de café: “sobre a madeira só
queriam o que era a gema, a clara jogava fora – só queriam mogno de toco”32.
A madeira, principalmente o mogno, conforme relatos orais, era muito
procurada, sendo inclusive roubada de fazendas por madeireiros de outros
lugares:

Chama, chama-se araputanga, o mogno aqui, a araputanga era ven-


dida pra fora, era cerrada e vendida pra fora, a nossa madeira, da
nossa fazenda foi toda roubada, o pessoal entrava da serraria pulava
lá e ia roubando as madeiras, não estava pra tomar conta. E o pesso-
al naquela corrida pra ganhar dinheiro.33

A existência de grande quantidade de madeira de lei deve-se ao fato de


que a vegetação de Tangará da Serra pertence à floresta amazônica, caracte-
rizada como floresta estacional semidecidual34.
Estas exuberâncias das madeiras do vale do Sepotuba são relatadas por
vários lavradores como fortes elementos que impulsionaram a aquisição de
terras. A existência de madeira de qualidade nas terras dava aos compradores
alguns privilégios, pois alguns comerciantes, em troca da exploração da ma-
deira, construíam casas na cidade e/ou nas propriedades rurais dos compra-
dores dos lotes de terras, ricos em madeiras de lei.
A madeira, em Tangará da Serra, fora utilizada de diferentes formas,
mas o destaque está na arquitetura da cidade, pois a maior parte da constru-
ção urbana e rural era feita de madeira. Uma parte considerável de madeira
fora vendida para outros Estados do Brasil.
A abundância de madeira de lei contribuiu para a instalação de algumas
serrarias. A derrubada e o comércio contribuíram para a extinção quase total
da madeira nobre em Tangará da Serra; entretanto, a técnica da coivara,
praticada em larga escala pelos tangaraenses, também foi responsável pelos

32 Manoel Mendes, em entrevista ao autor. Tangará da Serra, 31 de agosto de 2000.


33 Uraci Sakuyoshi, em entrevista para o autor. Tangará da Serra, 10 de outubro de 2001.
34 Floresta estacional semidecidual – as características gerais deste tipo de floresta relacionam-se como o
clima de duas estações, uma chuvosa e outra seca ou com acentuada variação térmica, são semicaduci-
fólias, isto é, perdem parcialmente folhas em determinadas estações do ano (inverno e outono).
Apresenta-se como um prolongamento da floresta amazônica especialmente nas áreas setentrionais do
Centro-Oeste. Na sua composição florística apresentam espécies de alto valor comercial, tais como
mogno (Swietneia macrophylla), cerejeira (Torresia acreana), cedro (Cedrela odorata e Cedrela macro-
carpa) e bálsamo (Myocaraps frondosas).
91

danos irreversíveis ao ambiente. A floresta virou cinza, homens e mulheres


araram a terra, plantaram, a lavoura surgiu, áreas de pastagem substituíram os
troncos grossos e nobres das árvores de mogno (swetenia macrophylla), do
cedro (Cedrela odorata L.) e da peroba (Aspidosperma sp.).
Era comum o fogo na mata ciliar do Sepotuba, um exercício em nome
do progresso e da prosperidade, com o objetivo de adequar o espaço aos
interesses do capital da época, em contraste especialmente com a Lei n.
4.771, Código Florestal, que acabava de ser sancionada pelo Presidente da
República, em 15 de setembro de 1965, que, em seu artigo 2º, dispõe sobre
a necessidade de se proteger as matas ciliares.
Para os depoentes, o desmatamento e o fogo eram necessários, pois a
família precisava construir o seu futuro e a mata não poderia garantir-lhe a
sobrevivência se continuasse intacta. Muitos já haviam realizado este traba-
lho de derrubada e queima em outros dois Estados, como Minas Gerais e São
Paulo, e isso era visto como sinônimo de progresso.
O contato com a mata ciliar do Sepotuba e de seus afluentes fez com
que várias famílias pudessem organizar-se neste território, aprimorando ou
construindo novas práticas de vida, representadas por elas como um tempo
de dificuldades, mas que foi bom, embora os lucros esperados não tenham
se efetivado.
Entretanto, afirmamos que a natureza não existe por ela mesma; ela
existe a partir de um olhar da sociedade, pode ser pensada de forma diferen-
te em tempos diferentes, ou então receber olhares diferentes no mesmo
tempo cronológico.

Da “roça de toco” ao café

A floresta foi dividida inicialmente em grandes propriedades denomina-


das glebas, depois requadriculadas em lotes de diferentes tamanhos. As famí-
lias, motivadas pelas representações positivas do local, começam a povoar,
individualmente ou em grupos, os lotes rurais.
Ao citar a divisão das áreas rurais de Tangará da Serra, Osmair Couto
destaca o seguinte depoimento de Wanderley Martinez, dono da coloniza-
dora SITA:

(...) a divisão territorial das glebas ao redor onde iria se localizar o


centra da cidade, foi em propriedades com áreas progressivas. Primei-
92

ro dividiu-se a área em chácaras com um alqueire aproximadamente,


depois em sítios de até 30 alqueires e por fim, em fazendas, distantes a
30 quilômetros. Note-se que o alqueire utilizado na região era o al-
queire paulista com 24.200 m2 (ou 2,42 hectares), enquanto que o
alqueire mineiro ou goiano possui o dobro da área 48.400 m2.35

As famílias que chegavam em Tangará da Serra podem ser classificadas


em proprietárias e não-proprietárias de terras. As famílias proprietárias tam-
bém eram proprietárias de área de terra na região de procedência, geral-
mente tinham uma área inferior à da que compraram em Tangará da Serra,
sendo esse um dos aspectos que motivou suas mudanças.
Pelo recenseamento de outubro de 1966, realizado pelo Padre José
Aleixo Kunraht, em três localidades rurais de Tangará da Serra, pode-se per-
ceber a situação da posse de terra das famílias que migraram para o planalto
do Tapirapuã. Em sua grande maioria, as famílias de lavradores eram sem
posse de terras e viviam como agregadas de outras famílias, com a esperan-
ça de adquirir propriedade.
Nesse recenseamento, 78 famílias foram contabilizadas, das quais ape-
nas 16 eram donas de propriedades rurais, as outras 62 eram agregadas, e
dentre estas 9 viviam em extrema miséria. Estas pessoas, para garantir sua
sobrevivência, dedicaram-se à lavoura, inicialmente a roça de toco, a planta-
ção de arroz, feijão e milho36.
O arroz, primeiro produto a ser plantado em Tangará da Serra pelos
lavradores, foi fertilizado no vale do Sepotuba. Após queima da mata, entre
tocos feitos em carvão, homens e mulheres, entre os meses de outubro e
novembro, pulavam restos queimados da mata para que, com suas matra-
cas37, pudessem plantar arroz de diversas qualidades38.
Passados quatro meses de muita chuva, o arroz deveria ser colhido,
trabalho que envolvia toda a família. Nos meses de fevereiro e março, apro-
veitando-se uma pequena estiagem, o arroz era amontoado em pilhas na
roça, aguardando um período maior de sol para ser batido. Estendendo uma

35 Couto, Osmair. As relações trabalhistas durante o ciclo cafeeiro na região de Tangará da Serra, nas
décadas de 70 e 80. Cuiabá, 1999. Monografia. (Especialização em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Mato Grosso, p. 17.
36 Kunraht, José Aleixo. Recenseamento. Prelazia de Diamantino. Diamantino, 1966. Arquivo da Missão da
Prelazia de Diamantino.
37 Máquina manual usada para plantar arroz e milho.
38 As qualidades de arroz usualmente plantadas em Tangará da Serra eram: bico-preto, bico-ganga, iac, iac2,
amarelinho, amarelão, cana-verde e arroz-preto.
93

lona no chão da roça – dependendo dos parcos recursos da família, utiliza-


vam-se sacos de algodão que, emendados, formavam uma grande “lona” – o
arroz era batido para que depois pudesse ser levado à máquina para o bene-
ficiamento e posterior venda, caso houvesse sobra da produção. Algumas
famílias mais abastadas podiam contar, na colheita, com o auxílio da trilhadei-
ra, máquina usada para bater o arroz.
Em várias propriedades a lavoura de arroz era consorciada com o feijão
e o milho. O milho era plantado primeiro que o feijão, na mesma roça. O
milho era plantado em setembro, e depois que este crescia e começava a
secar os lavradores realizavam o que chamavam de quebra do milho, e, junto
com ele, plantavam o feijão.
O feijão, depois de 60 ou 90 dias do seu plantio, dependendo da vari-
edade, deveria ser colhido do solo. Um trabalho bastante árduo para os lavra-
dores, principalmente quando este está junto com o milho. O feijão também
era amontoado para secar, levado à lona, no mesmo processo que o arroz,
depois de batido com um “cambão”, instrumento feito pelos lavradores, que
consistia em uma corrente dobrada junto com um pau, ou dois paus presos
para bater no feijão; depois deste processo, o feijão podia ser armazenado
pela família ou comercializado na zona urbana.
Para atender a produção, especialmente do arroz, no centro urbano de
Tangará da Serra foram instaladas máquinas para o beneficiamento do arroz.
Geralmente o lavrador levava o arroz para ser “limpo” e 50% do produto
beneficiado e os subprodutos do arroz, como o farelo e a quirela, ficavam
para o proprietário da máquina. O comércio do produto com outros municí-
pios era realizado pelo mesmo proprietário da máquina, funcionando como
atravessador, como diziam os lavradores. Desta maneira, os lavradores, donos
do trabalho e da produção, ficavam com a menor parte da produção do arroz
em pequena escala. Os trabalhadores sem posse, aqueles que trabalhavam
como agregados ou meeiros do médio proprietário, tinham que dividir sua
produção, como forma de pagamento. Assim, a esperança trazida junto à
mudança para a “nova terra” era frustrada.
O padre José Aleixo Kunraht, em seu recenseamento de 1966, regis-
trou em notas de observação os tipos de lavouras plantadas pelos moradores
locais, como roças de arroz, milho, feijão, amendoim e café, além de destacar
plantação de capim para o gado. Destacou a fertilidade das terras e a preocu-
pação de a lavoura virar pastagem, principalmente nas regiões onde havia a
concentração de grandes lotes de terra nas mãos de poucos.
As lavouras de café foram, pouco a pouco, disputando espaço com a
94

“lavoura branca”, embora não a tenham substituído39. Os lavradores geral-


mente reservavam espaço em suas propriedades para as lavouras de café,
arroz, feijão e milho, além de pastagem para o gado.
Desta forma, a mata também foi derrubada e queimada para a produção
do café, técnica conhecida dos lavradores cujas famílias acompanhavam a rota
do café, como destaca Regina Machado Leão, ao abordar a prática da derruba-
da e queimada no interior de São Paulo, a propósito da lavoura de café:

O manual O Café no Brasil e no Estrangeiro, escrito em 1923 por


Augusto Ramos, “engenheiro, lavrador e professor da Escola Polytech-
nica de São Paulo”, ensinava que as terras onde existiam matas vir-
gens eram as mais indicadas para o plantio do café. Nelas, o agricul-
tor deveria fazer a roçada do mato à foice e depois proceder à derru-
bada a eito das árvores com machado. Concluída a operação, espera-
vam-se as condições ideais para queimar a ramagem e a folhagem e,
então, ateava-se fogo. Para ele, “a queimada era um mal necessário,
indispensável na formação das grandes plantações que transforma-
ram São Paulo nos oceanos cafeeiros que possui”.40

O trabalho na lavoura do café era bastante árduo; do plantio à primeira


colheita, o tempo é de, no mínimo, três anos. Uma família pouco numerosa
necessitava da ajuda de outras pessoas para o trabalho. Desta forma, o dono
da propriedade necessitava do trabalho de um meeiro, que fornecia sua mão-
de-obra na lavoura do café. Cabia ao sitiante, ou seja, ao proprietário de
pequena propriedade, fornecer ao meeiro ferramentas, insumos e mudas de
café para que a produção se efetivasse.
O sitiante e o meeiro moravam, às vezes, no mesmo sítio, e em alguns
casos o proprietário residia na cidade. O meeiro, quando morava no sítio,
realizava a manutenção do cafezal. A remuneração do meeiro estava ligada à
produção do café e também, em alguns casos, à produção de arroz, feijão ou
outro cereal que pudesse produzir entre os pés de café ou em outro espaço
cedido pelo proprietário. Em alguns casos, os meeiros tinham vacas leiteiras
e suas mulheres fabricavam queijo e requeijão para o consumo familiar.
Segundo Couto, o sistema de meação ou arrendamento foi importado

39 A lavoura branca para os lavradores tangaraenses é aquela em que o processo de planta e colheita é
anual, como o arroz, feijão e milho, diferenciando-se da produção perene como a do café.
40 Leão, Regina Machado. A floresta e o homem. São Paulo: Edusp / IPEF, 2000, p. 175-176.
95

dos migrantes de São Paulo e Paraná. Este contrato entre meeiro e proprietá-
rio incluía desde o trabalho da limpeza do terreno até a colheita do produto:

Freqüentemente, na fase inicial da ocupação até meados da década de


60, o meeiro iniciava o trabalho no sítio, na condição de empreiteiro.
Na condição de meeiro, após a abertura e limpeza do terreno, era res-
ponsável inclusive pelos tratos culturais (fase entre o plantio e a primeira
colheita). Geralmente estipulava-se que a partir do plantio até o quinto
ano, toda a produção cabia ao meeiro ou porcenteiro, ex-empreiteiro.
Do quinto ano em diante, fixava-se um percentual da produção do café,
que predominantemente era de 50% para cada parte.
Entre estas duas figuras, encontrava-se também o diarista ou volante.
São aqueles trabalhadores que se deslocavam de uma fazenda para
outra, de um sítio para outro, capinando ou colhendo café por emprei-
tada, recebendo por dia de trabalho ou por saco de café colhido. Essa
mão de obra auxiliar era trazida da cidade e circulavam em todas
propriedades, colhendo café, que durava 90 (noventa) dias.41

As famílias de meeiros geralmente construíam suas casas próximas umas


das outras, formando o que os lavradores denominam de colônia, e nelas
aconteciam os ritos religiosos e as festas, bem como os casamentos e batiza-
dos; muitos lavradores tornaram-se compadres e até mesmo parentes.
O trabalho com o “ouro verde” reproduzia práticas de vida já realizadas
pelas famílias em seus lugares de naturalidade ou procedência. Esta organiza-
ção em prol do trabalho com o café vitalizava a zona rural e urbana, fazendo
com que, nas localidades rurais, surgisse o espaço da oração e do lazer, en-
quanto que a cidade era movimentada pela efervescência dos produtos, prin-
cipalmente do café produzido no campo, mobilizando as práticas comerciais.
Quase tudo em Tangará da Serra, a partir da segunda metade da década
de 1970, estava ligado à produção do café. O pagamento do serviço médico
era efetuado depois da colheita, o casamento se realizava após colheita, o
lojista preparava seu estoque para vendê-lo na colheita. A colheita do café
foi muito determinante na vida social em Tangará da Serra.
Levar para a cidade o estoque de café guardado nas tulhas ou aquele
que acabava de ser colhido e ensacado era a realização da esperança do
lavrador. O café era transportado em carroças. O comprador era o intermedi-

41 Couto, 1999, p. 19.


96

ário e vendia o produto para Cuiabá ou para outros Estados. Muitas pessoas
se tornaram comerciantes de café, pois o produto era muito rentável, espe-
cialmente para quem comercializava.
O café, que atraiu um grande fluxo populacional para Tangará da Serra a
partir da década de 1980, começou a produzir refluxos. A falta de política do
governo que atendesse aos interesses dos pequenos proprietários fez com
que os pequenos proprietários e meeiros abandonassem a lavoura de café; os
sitiantes venderam suas propriedades ou transformaram-nas em pastagens.
Vários são os depoimentos de lavradores que destacam o desestímulo
com a produção de café, por falta de incentivo do Instituto Brasileiro do
Café – IBC; segundo eles, o IBC dizia que o café devia ser plantado em
locais de altitudes acima de 500 metros, quando em Tangará da Serra a
altitude média é de 452 metros.
Os lavradores afirmam que Tangará da Serra era um ambiente bom
para o café, pois deu boas safras na década de 1980; o regime de chuvas era
bastante regular, facilitando o cultivo do grão. Outros lavradores que acredita-
ram na propaganda da “capital do café” relatam que Tangará da Serra não é
uma boa região para o café, pois existem apenas manchas de terras boas
para o plantio no vale do Sepotuba, mas a grande maioria tem um subsolo
muito pedregoso, dificultando o crescimento da raiz do café, que é muito
comprida e não pára de crescer. Este problema físico da planta não foi a
grande causa da decadência da cafeicultura; a ausência de uma política eco-
nômica no Brasil que beneficiasse o pequeno produtor rural e os sem-terras
foi mais rápida na eliminação das esperanças daqueles que retiravam da sua
terra ou de terras alheias a sobrevivência de suas famílias.

A festa da fertilidade

Dentre as lembranças das famílias de Tangará da Serra, a festa da Feira de


Amostras talvez seja a mais inesquecível dos anos 1970. Esta festa consistia em
apresentar à população e aos visitantes a diversidade de produtos colhidos pelos
produtores, especialmente alguns que se destacavam em peso e medidas.
A festa, realizada anualmente, teve durabilidade até 1972 e era divul-
gada na imprensa mato-grossense. Em 1970, o destaque foi dado pelos
jornais Estado de Mato Grosso e Folha Matogrossense. Ambos os jornais
demonstram uma propaganda efetiva da região de Barra do Bugres e de
suas riquezas agrícolas.
97

A imprensa divulgava que a Feira de Amostras era um dos aconteci-


mentos mais importantes da região leste de Mato Grosso; além da presença
de autoridades governamentais, a Feira foi animada, em 1970, por músicos
de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Os lavradores começaram a fazer esta festa no ano de 1967, em um
espaço nas proximidades da Avenida Brasil. Levantavam barracas cobertas
com folhas de coqueiro, eram ornamentadas com bandeiras coloridas dos
seus Estados de origem e faziam a exposição dos produtos, tais como cachos
de banana, inhame, mandioca, abóbora, laranja, feijão, arroz, batata-doce e
quiabo, dentre outros.
Os produtos expostos destacavam-se por apresentarem tamanhos ge-
ralmente maiores ou por terem um peso superior aos de outros produtos da
mesma espécie escolhidos pelos lavradores. A festa era um grande marke-
ting dos corretores de terras, pois aproveitavam a oportunidade para foto-
grafar os produtos, como prova da fertilidade da terra do vale do Sepotuba.
Alguns viam com assombro um exemplar de cará (Dioscorea sp) pe-
sando 80 quilos, outros se assustavam com o peso da abóbora:

As pessoas às vezes trabalhavam o ano todo criando um determinado


cacho de banana, vigiando uma abóbora pra trazer, ou determinado
pé de milho, acho que era cultura, começou a criar uma cultura da
pessoa preparar um ano antes para trazer para feira para mostrar. Lá
estava o cacho de banana colhido no sítio do senhor fulano de tal,
tinha escrito muito bonito o nome do proprietário. Eu comprei uma
abóbora de 60 quilos. Eu a arrematei lá e trouxe para pesar, fiz foto
dela e mandei para tudo quanto é lugar, quando descobri eu não
fiquei com nenhuma foto dela.42

Os produtos, depois de expostos, poderiam ser vendidos e a compra


geralmente era feita por pessoas que não residiam na região e queriam apre-
sentar uma propaganda positiva do ambiente de Tangará da Serra.
Nestas feiras de amostras havia comidas típicas das várias regiões de
procedência dos habitantes de Tangará da Serra, e, também, elas eram
animadas com bailes realizados em um espaço central coberto com pa-
lhas de coqueiro.

42 Gabriel Constâncio Ramos, em entrevista para o autor. Tangará da Serra, 30 de maio de 2001.
98

Em 1970 a Feira de Amostras foi oficializada pelo Governador do


Estado Pedro Pedrossian, cujo interesse estava em controlar a produção,
especialmente o preço do arroz, e o grande fluxo populacional que se
dirigia ao município de Barra do Bugres. O governo do Estado tinha todo
interesse na reocupação destes espaços e em que eles fossem produtivos,
em sintonia com a política econômica adotada pelo Estado ditatorial, a do
“país que vai pra frente”43.
A Feira de Amostras é parte constituinte da propaganda do pós-64. São
os lavradores tangaraenses contribuindo para o “milagre brasileiro”; é parte da
política de consolidação da perspectiva da integração nacional, especialmente
quando a Feira de Amostras estabelece o intercâmbio com outros Estados:

A imprensa de Goiânia vem dando real destaque a feira de amostras que


será realizada em Tangará da Serra, próximo ao município de Barra do
Bugres. Pecuaristas de Goiás estarão prestigiando este acontecimento,
que se destacará principalmente no aspecto da agricultura.44

Para os lavradores, a Feira de Amostras era uma oportunidade de expor


seus produtos e de incentivar a vinda de mais pessoas para o lugar, pois
acreditavam que o aumento populacional e a reocupação total das terras
lhes trariam mais benefícios.
Os lavradores também buscavam, especialmente após a criação da Paró-
quia de Nossa Senhora Aparecida, participar de ritos católicos que lhes pudes-
sem trazer ajuda divina para obter boas colheitas e que suas esperanças pudes-
sem ser concretizadas. Em dia de missa especialmente dirigida a eles, os lavra-
dores enfeitavam suas carroças com produtos da terra, para serem bentos pelo
padre, e depois da cerimônia religiosa desfilavam pelas ruas da cidade.
A busca da vida de fartura era uma esperança que não poderia acabar,
deveria renovar-se sempre, através da realização de festas ou promessas divinas,
mas “sempre a fé e a esperança nunca acabam, estou esperando até hoje”45.

43 Deve ser destacado que em 1970 o governo federal cria o Plano de Integração Nacional – PIN, com o
objetivo de “povoar” a Amazônia, tentando “resolver” parte do problema do Nordeste para fortalecer a
política econômica do “milagre” brasileiro. Outras questões podem ser observadas em Skidmore,
Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Trad. Mário Saviano Silva. São Paulo: Paz e Terra, 1988. E também
em Silva, Joana Aparecida Fernandes. Política indigenista oficial e ocupação de Mato Grosso – 1970-
1986. In: Índios em Mato Grosso. OPAN / CIMI-MT. Cuiabá, 1987.
44 Festa em Tangará da Serra terá participação de pecuaristas goianos. Folha Matogrossense, Cuiabá, 27
maio 1970, p. 1.
45 Maria Beazóli Rodrigues, em entrevista ao autor. Tangará da Serra, 11 de maio de 1991.
99

Manifestações rupestres do Mato Grosso:


elementos contextuais dos abrigos
Tereza Ramalho de Azevedo Cunha*

Resumo Abstract
O presente estudo apresenta de forma genérica os This study presents in a general way the geogra-
aspectos geográficos e históricos de sítios arqueo- phic and historical aspects of the arqueological
lógicos do Mato Grosso e de suas manifestações sites of Mato Grosso and of its stone manifestati-
rupestres, constituindo uma das etapas que antece- ons, constituting one of the phases that precede
dem a análise semiótica das manifestações do sítio the semiotic analysis of the manifestations of the
arqueológico Veado Perdido, localizado na cidade arqueological site Veado Perdido, located in the
de Juscimeira, próximo ao Centro Geodésico da town of Juscimeira, next to the Geodesic Center
América do Sul. Dado a premência de reconheci- of South America. The urgency of the recognition
mento da identidade do objeto que impõe um con- of the identity of the object imposes a direct
tato direto com as manifestações em estado bruto e contact with the manifestations as found in its
com o seu meio, fez-se necessária uma exploração environment, an exploration in loco was necessa-
in loco, realizada em outubro de 1998. Nessa opor- ry, carried out in October of 1998. In this oppor-
tunidade, foram reavaliadas nos diversos sítios visi- tunity, the previous analysis were reassessed in
tados as análises anteriores, e, ainda, realizados novos the various locations visited, and also, new recor-
registros através de fotos e filmagens, incorpora- ds were carried out through photos and filming,
dos posteriormente na dissertação de mestrado in- later incorporated, in the Master’s Dissertation with
titulada Sítio arqueológico Veado Perdido, Mato the title “Sítio Arqueológico Veado Perdido, Mato
Grosso: engendramentos do plano de expressão, Grosso: Engendramentos do plano de Expressão”,
defendida na PUC/SP em novembro de 1999. presented at PUC/SP, in November of 1999.

Palavras-chave: Keywords:
manifestações rupestres – sítios arqueológicos – stone manifestations – arqueological sites –
Mato Grosso Mato Grosso

* Mestre pela PUC/SP, professora do Depto de Artes, Instituto de Linguagens da UFMT.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
100

(...) Se se desejar ter uma idéia do que é a pré-história, deve-se imaginar


a terra como um livro cujas folhas são formadas pelos objetos. Esse texto
tem um sentido para aquele que pode compreender tudo: a posição dos
objetos, as pegadas dos animais, a natureza do solo, os milhares de
pequenos vestígios dos quais descobrimos, a cada dia, uma nova signi-
ficação. Ou, como disse um importante historiador da pré-história, “esse
livro apresenta a particularidade de só poder ser lido se for destruído”, e
o historiador da pré-história que prima por enriquecer a sua coleção é
como um homem que recortasse de um manuscrito precioso as letras
que lhe agradam, os Os ou os Zs, e que depois, colando-as numa folha de
papel, pretendesse ter feito obra científica1. (Leroi-Gourhan)

Afirmam alguns arqueólogos que as manifestações rupestres dos povos


pré-históricos ou páleo-índios foram um instrumento preponderantemente
mágico cujo fim era garantir a provisão e a subsistência da comunidade. Há
igualmente a perspectiva segundo a qual essas representações eram um ins-
trumento mediante o qual os seres humanos se comunicavam com a natureza.
Não se sabe de quando data o surgimento da arte rupestre, apesar da
suposição de que isso teria acontecido no paleolítico europeu. Especula-se
que o homem tenha de início representado nas cavernas e abrigos rochosos
figuras isoladas de alguns aspectos do meio circundante, empregando para
isso essas imagens que aparentemente admitiam apenas designações e sen-
tidos convencionais.
Cabe-nos fazer alguns esclarecimentos terminológicos do campo da
arqueologia para melhor desenvolver a nossa exposição. A arqueologia (do
grego arkhaios, antigo, e logos, discurso, ciência), ciência do antigo, ocupa-
se no sentido lato de todos os aspectos da Antigüidade, incluindo línguas,
religiões etc. Na prática, contudo, a arqueologia concentra-se no estudo dos
monumentos artísticos e dos artefatos advindos da engenhosidade humana
na Antigüidade. Sua atividade a faz recorrer a várias áreas do conhecimento:
arte, técnica, história, instituições, compreensão e crítica de textos, ao mes-

1 “[...] Si l’on veut se faire une idée de ce qu’est la préhistoire, il faut imaginer la terre comme un livre dont
les objets forment le texte. Ce texte a un sens pour celui qui peut comprendre tout: la position des
objets, les débris d’animaux ,la nature du sol, les mille petits traces dont chaque jour nous découvrons
la signification nouvelle. Or, comme l’a dit un grand préhistorien, “ce livre présente a particularité de ne
pouvoir étre lu qu’á condition de le détruire”, et le préhistorien qui pioche pour enrichir sa collection
est comme un homme qui découperait dans un manuscrit précieux les lettres qui lui plairaient, les O ou
les Z, et qui prétendrait ensuite, en les collant sur des feuilles de papier, avoir fait oeuvre scientifique
[...]” (apud Pallestrini, Luciana; Morais, José Luiz de. Arqueologia pré-histórica brasileira. São Paulo: USP,
Fundo de Pesquisa, 1982, p. 8).
101

mo tempo em que propicia a esses campos do conhecimento, no tocante às


interseções entre o objeto da arqueologia e o delas, elementos informativos
e de validação de descobertas.
A arqueologia distingue, quanto ao tipo de sítio, entre caverna – uma
cavidade profunda no interior de rochedos, de montanhas ou da terra, geralmen-
te em terrenos calcários – e abrigo – refúgios rochosos situados na parte externa
das cavernas e, portanto, superficiais, mais próximos do solo do que as cavernas.
Tanto na caverna como no abrigo, o homem primitivo deixou as marcas de sua
estadia ou passagem, visto haver tanto sítios que foram regularmente habitados
como sítios nos quais nossos antepassados pré-históricos se demoravam apenas
periódica, talvez mesmo sazonalmente. Nos termos de Leroi-Gourhan:

1- No sítio geográfico, sítio designa um jazida inserida em uma certa


paisagem considerando o que ela possui de peculiar. O uso desse
termo supõe a vontade de entender essa inserção na paisagem e de
buscar as razões que levaram o homem à escolha dessa implantação
particular. Designa igualmente a zona explorada pelo homem por
meio de trajetos curtos a partir do lugar de instalação, zona da qual
se pode tentar avaliar os recursos. No idioma inglês, o termo sítio
equivale a território. Nesse sentido, o termo território é empregado
por vezes erroneamente, por aqueles que cultivam a terra. Os sítios
podem ser classificados segundo o tipo de paisagem escolhida por
aqueles que os ocupam: sítios ao ar livre ou de caverna, de planície,
de altitude ou de planalto, sítios costeiros marítimos ou lacustres,
etc. Podem igualmente ser diferenciados pelas modalidades da insta-
lação ou pela realização de suas atividades: geralmente considera-se
de maneira abusiva que vestígios de sítios de habitação, diferente-
mente dos sítios especializados, dão uma imagem sem deformação
da atividade produtiva do grupo. 2 - A jazida arqueológica que não
apenas constitui ou constituiu objeto de escavações propriamente
dito, mas toda a área suscetível de ser escavada, bem como o conjun-
to das obras eventualmente presentes nesse lugar.2

Nos termos de L. Adam3, arte primitiva é apenas um “termo geral que

2 Leroi-Gourhan, A. Dictionaire de la préhistoire. Colab. J. Leclerc e J. Tarrête. Paris: Press Universitaires


de France, 1988, p. 978.
3 Adam, L. Arte primitivo. Trad. Eduardo Warshawer. Buenos Aires: Pingüino, Lautaro, 1947, p. 17.
102

abarca uma variedade de fenômenos históricos, produtos de diferentes ra-


ças, mentalidades, temperamentos, acontecimentos históricos e influências
do meio”, visto não haver uma linha de continuidade, em termos de valor,
na qual se pudesse enquadrar uma arte que se fosse desenvolvendo com o
passar do tempo e que tivesse as manifestações pré-históricas como seus
estágios elementares. A acentuada “desconstrução” do código artístico de
representação da realidade operada por certos setores da arte moderna na
verdade se aproxima de algumas representações que podemos qualificar
de primitivas.
Privados de evidências diretas com respeito à religião ou à ideologia do
homem primitivo, contam os estudiosos da pré-história apenas com os vestígi-
os concretos da ação dos nossos antepassados feitos por incisão e pintados nas
paredes rochosas de abrigos e cavernas. Os parcos dados que chegaram até
nós apresentam na maioria das vezes um caráter fragmentário que de modo
geral dificulta, quando não impossibilita, quaisquer incursões em termos da
definição da “superestrutura” dos agrupamentos humanos primitivos, apesar
de serem utilíssimos na investigação da vida material dos povos antigos.

A arte rupestre brasileira

O Brasil é um país afortunado em termos de manifestações rupestres


primitivas, tendo-se registrado, a par da presença destas em quase todos os
pontos do território, não somente uma enorme diversidade ecológica entre
os sítios existentes como uma gama imensa de estilos e temáticas, que vari-
am de região para região, de clima para clima etc.
Essas representações são, no entanto, mais favorecidas em determi-
nados sítios, como é o caso da Lagoa Santa e do Vale de Peruaçu, em Minas
Gerais; de São Raimundo Nonato, no Piauí, e da região da Cidade de Pedra,
Rondonópolis (Abrigo Ferraz Egreja), e de Rosário Oeste (Abrigo Santa
Elina), no Mato Grosso. Nesses locais percebe-se com mais vivacidade a
existência de duas formas gerais de representação, uma esquemática, que
distancia a representação do objeto representado e na qual predominam as
formas geométricas, e uma naturalista, isto é, marcada por uma representa-
ção mais próxima do objeto em que prevalecem as representações de
figuras animadas.
Há uma diferenciação entre os sítios de São Raimundo Nonato, no Piauí,
e os da Cidade de Pedra, no Mato Grosso, em termos da oposição dinâmico-
103

estático das manifestações: no primeiro, há a presença de cenas, dinâmicas


por definição, ao passo que os segundos têm caráter estático. Observe-se
que no primeiro caso são raras as manifestações geométricas, e que no se-
gundo predomina essa forma. Enquanto nos painéis do Piauí a presença hu-
mana prevalece, no Mato Grosso, no dizer de Vialou, uma variedade e uma
multiplicidade “de signos (geométricos)” que “se combinam para formar
painéis por vezes deveras complexos no seio de dispositivos parietais em
que os seres humanos e os animais são a tal ponto minoritários que dão a
impressão de ser intrusos”4.
Devem-se ao arqueólogo e etnólogo brasileiro Herbert Baldus os pri-
meiros contatos com as manifestações rupestres no Mato Grosso. Descober-
tas casualmente a 28 de janeiro de 1934 por um habitante local numa caça-
da, as pinturas da Vila Sant’Anna da Chapada chegaram ao conhecimento de
Baldus graças ao alemão Josef Schmack, que procurava ouro na região. O
local em que estão essas manifestações é de difícil acesso, tendo ficado
salvaguardado pelo tipo de constituição geomorfológica e de flora locais
(neste último caso, trata-se de plantas trepadeiras que aderiram à superfície
pintada e que não podem ser removidas sem a destruição destas últimas)5.
O material empregado nessas pinturas e desenhos é o óxido de ferro –
hematite ou hematita (vocábulo formado por “hema” – elemento que evolui
do grego haimato – originado de haima – atos, que significa “sangue”).
Supõe-se que o sufixo “ite”, que em língua portuguesa significa pequeno,
justifica a consistência granulada desse mineral que exibe boa resistência à
ação dos elementos6. Esse material de cor vermelha em tonalidades variadas
de solo vulcânico é de fácil extração, apresentando-se em estados que vão
do rochoso ao da consistência do tijolo ou da areia, o que neste caso identi-
fica a sua granulosidade e pode ser usado, assim, como pigmento. Verifica-se
ter sido ele misturado com freqüência à água e à gordura animal, que servia
de aglutinante, fixando o pigmento nas rochas e formando uma tinta quase
líquida que podia ser aplicada por meio de “pincéis” de pelos de animais ou
bastões de hematita.
Sabe-se que o período paleolítico é marcado preponderantemente pela
pintura naturalista, que se caracteriza pela tentativa de reproduzir o que é

4 Vialou, D.; Vilhena-Vialou, A. Préhistoire au ceour du Brésil. Archeologia, n. 213, 1986, p. 48.
5 Baldus, H. As pinturas rupestres de Sant’Anna da Chapada (Mato Grosso). Revista do Arquivo Municipal,
São Paulo, Departamento de Cultura, n. XL, 1937, p. 5-6.
6 Dicionário Prático Ilustrado. Porto: Lello & Editores, 1974, p. 31.
104

visto, e que o neolítico testemunhou o surgimento da representação abstra-


ta, em que se fazem presentes animais estilizados e passam a ser comuns as
formas geométricas. Isso torna particularmente relevante o estudo dos sítios
de Mato Grosso, que exibem características específicas. Além disso, as pintu-
ras que Baldus datou como sendo do paleolítico superior foram mais tarde
reclassificadas como sendo do período paleo-índio, análogo ao neolítico, se-
gundo os arqueólogos europeus contemporâneos.
É grande a distribuição geográfica, apresentando-se do mesmo modo a
temática e estilística das manifestações rupestres pintadas ou gravadas do
Brasil. Segundo Jundi7, em sua bem cuidada monografia sobre a arte etnográ-
fica brasileira, na qual fez profundas reflexões acerca do assunto, nos diferen-
tes contextos e regiões, o “tratamento, esquemático ou naturalista das figu-
ras, a prevalência do geométrico sobre o figurativo (ou vice-versa), a forma-
ção de cenas ou o caráter estático das representações humanas constituem
algumas diferenças entre as obras rupestres que podem ser observadas”.
Em seu levantamento, Jundi destaca que, apesar do grande número de
manifestações rupestres no país, três regiões apresentam uma notável con-
centração de manifestações: a região da Cidade de Pedra e de Rosário Oeste,
no Mato Grosso; a região adjacente a São Raimundo Nonato, no Piauí; e a
região mineira de Lagoa Santa e do Vale do Peruaçu.
A temática gráfica é dominada pelas figuras de animais, que chegam a
um nível de naturalismo que permite determinar o animal, seu sexo e sua
idade! Há também outras figuras animais geometricamente ornamentadas e
esquemáticas. Somam-se a isso formas aberrantes (monstruosas), bem como
figuras com posturas que, lidas em termos anatômicos, mostram-se inveros-
símeis, com destaque para as patas de cervídeos.
Acha-se registrado nessas manifestações rupestres o grosso da fauna
selvagem sul-americana. Se em Minas prevalecem as figurações animais, com
a predominância dos cervídeos, e se no Piauí representam-se mais outras
espécies, como micos, nandus e tatus, no Mato Grosso preponderam os cer-
vídeos (vide o grande número deles no Abrigo Santa Elina) e os pássaros,
vindo depois os porcos do mato e os felinos. Não há, ao contrário do que
ocorre na Europa, manifestações que retratem espécies animais extintas. As
formas humanas, muito variadas e de modo geral esquemáticas e estilizadas,
são apresentadas de frente para o observador. As formas geométricas, como

7 Jundi, A. C. A. La problematique de l’apport ethnographique pour l’etude de l’art rupestre au Brésil, Paris:
Museé National d’ Histoire Naturelle, 1992, p. 5.
105

ocorre no mundo inteiro, aparecem em todas as partes do Brasil, chegando a


haver, como no caso do Mato Grosso, uma grande variedade delas8.
Guidon9 e Prous10 são autores que, visando dar conta das “unidades
regionais”, propuseram uma tipologia para as manifestações rupestres bra-
sileiras. Essa tipologia, que recorre a termos como “tradição” e “estilo”,
baseia-se nas formas das manifestações presentes às macro-regiões rupes-
tres do Brasil.
A classificação de Prous em termos de tradições, que abrange mais
tipos, está apresentada a seguir. Não vamos tratar aqui das subdivisões. São
nove as tradições da arte rupestre brasileira, na direção sul-norte. Observe-se
que a tradição Nordeste foi definida por Guidon:

Tradição Meridional – Típica do Rio Grande do Sul, é marcada pela


presença de gravuras geométricas em sua maioria em blocos isola-
dos. Contém linhas retas paralelas ou cruzadas, bem como, mais
raramente, figuras compostas por linhas curvas.

Tradição do Litoral de Santa Catarina – Compõe-se dos únicos sítios


rupestres litorâneos. Contém painéis gravados, nos quais preponde-
ram manifestações geométricas. As representações de antropomor-
fos, de que há raros exemplares, são identificáveis com muita dificul-
dade.

Tradição Geométrica – Cobre boa parte do território nacional: da


chapada catarinense ao nordeste do Brasil, passando pelo Paraná,
por São Paulo, por Goiás e pelo Mato Grosso. Nessa tradição, o con-
junto heterogêneo de manifestações geométricas predomina sobre os
antropomorfos e zoomorfos. A sub-tradição “Morro do Avencal” é
típica de Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso, predominando a
sub-tradição “Itacoatiara” no Ceará, em Pernambuco e em Goiás. As
diferenças em termos dessas sub-tradições devem-se à localização:
estas últimas estão perto de cursos d’água, ao passo que aquelas se
acham distantes desses locais.

8 Vialou e Vilhena-Vialou, 1986, p. 36-48, p. 48.


9 Pessis, Anne-Marie; Guidon, Niède. Registros rupestres e caracterização das etnias pré-históricas. In:
Vidal, Lux (Org.). Grafismo indígena. São Paulo: EDUSP, 1992.
10 Prous, A. Arte rupestre brasileira: uma tentativa de classificação. Rev. Pré-Hist. USP, n. 7, p. 9-33, 1989.
106

Tradição Planalto – Típica de Minas Gerais, mostra-se igualmente


presente em São Paulo, no Paraná, alcançando a Bahia. Dominada
por figuras zoomorfas, apresenta ainda uma profusão de motivos
geométricos, sendo raros os antropomorfos. Mostram em geral cerví-
deos, podendo ainda apresentar aves, lagartos, tatus, felinos e peixes.
São raras as cenas, preponderando as linhas curtas paralelas, círcu-
los e retângulos.

Tradição Nordeste – Típica do Piauí, também está presente, em sen-


tido norte-sul, em Pernambuco, no Rio Grande do Norte, no Ceará,
na Bahia e em Minas Gerais. Composta por figuras esquemáticas,
antropomorfos e zoomorfos participam de vários tipos de cena, pre-
ponderando as cenas de caça e as do ritual da árvore. São mais
dinâmicas as manifestações que retratam zoomorfos. No Rio Grande
do Norte, predominam diminutos antropomorfos de traçado bem ela-
borado e coloridos de vermelho, predominando as cenas do ritual da
árvore. Também no Piauí há painéis extremamente dinâmicos em
que predominam figuras diminutas, humanas e outras.

Tradição Agreste – Presente no Piauí, no Ceará, no Rio Grande do


Norte, em Pernambuco e na Paraíba. Preponderam nessa tradição
manifestações geométricas e animais de grande porte, havendo ain-
da manifestações antropomorfas, igualmente de grande porte, cujo
corpo se acha preenchido por motivos geométricos. Muitas das figu-
ras humanas apresentam penas no lugar da cabeça, assemelhando-se
a forma a cocares, o que parece levar a entender esses “recheios” das
figuras humanas como máscaras usadas em certas cerimônias.

Tradição São Francisco – Comum no vale do Rio São Francisco, está


presente de Minas Gerais a Goiás e Mato Grosso, passando pela Bahia
e por Sergipe. Predominam aí motivos geométricos, bastonetes de
ponta arredondada, semi-círculos, linhas formadas por pontos e lo-
sangos alinhados. Exibe por vezes zoomorfos como mamíferos, pei-
xes, cobras e tartarugas.

Tradição Roraima – Exibe exclusivamente manifestações geométri-


cas, como retângulos preenchidos por traços paralelos ou linhas retas
paralelas. É, tal como a Amazônica, pouco estudada.
107

Tradição Amazônica – Marcada pela presença de formas humanas


simétricas e com preponderância do geométrico. Exibe ainda painéis
simples de, por exemplo, bastonetes paralelos. Comumente estes se
situam em quedas d’água, que são o único ambiente da região em
que a pedra aflora.

Descrição do aspecto físico geral dos abrigos

Penso que tem nostalgia de mar estas garças pantaneiras. São viúvas
de Xaraés? Algumas coisas em azul e profundidade lhes foi arrancada.
Há uma sombra de dor em seus vôos. Assim, quando vão de regresso
aos seus ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma versão que eu sei. É a de não ser ela
uma ave canora. Pois que só grasna – como quem rasga uma pala-
vra. (Manoel de Barros)11

O Estado do Mato Grosso, o terceiro estado brasileiro em superfície


(901.421 km2), situa-se entre o Amazonas e o Pará, ao Norte, Tocantins e
Goiás, a Leste, Mato Grosso do Sul, ao Sul, e Rondônia e a Bolívia, a Oeste.
Conta com 1.727.100 habitantes.
São três as unidades morfológicas identificadas no relevo do Mato Gros-
so: o Planalto Mato-Grossense, as depressões do Alto Xingu e do Alto Ara-
guaia e a região do Pantanal. Une-as num todo em termos de relevo o fato
de apresentarem baixas altitudes (entre 400 e 800 m) e de exibirem uma
topografia predominantemente regular na forma de planícies e planaltos de
grande extensão que compõem chapadões cujas bordas escarpadas são de-
nominadas serras.
O Planalto Mato-Grossense separa os rios que correm para o Paraguai e
os da Bacia Amazônica. Aí estão as famosas chapadas do Estado: dos Guima-
rães, dos Parecis etc., bem como serras, de que se destacam a de São Jerôni-
mo e a de São Lourenço. A nordeste, temos as depressões do Alto Xingu e do
Alto Araguaia, separadas pela serra do Roncador, região de planícies inundá-
veis no período das enchentes. A parte norte do Pantanal também se encon-
tra no Estado (ficando as demais no Mato Grosso do Sul). A vegetação origi-

11 Barros, Manoel de. O livro de pré-coisas. Roteiro para uma excursão poética no Pantanal. 2. ed. Rio de
Janeiro / São Paulo: Record, 1997, p. 93.
108

nal é formada pela floresta equatorial, que integra a floresta amazônica. So-
bre a parte superior dos chapadões, estendendo-se para o norte, predomina,
contudo, o cerrado.
A oeste da cidade de Rondonópolis, distribuídos por uma área acidenta-
da e de densa vegetação de mais ou menos 500 quilômetros quadrados, faz-
se presente um conjunto de aproximadamente 600 sítios rupestres, a maio-
ria dos quais já inventariados pela Missão Franco-Brasileira formada por pes-
quisadores do Muséum National d’Histoire Naturelle, de Paris, e do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Distribuem-se esses
sítios ao longo das duas margens do rio Vermelho, na micro-bacia de Ferraz
Egreja, no local conhecido como Cidade de Pedra, Fazenda Verde, na micro-
bacia dos abrigos Vermelhos e, rumando para o sudoeste, nas proximidades
do Pantanal. Outras localidades arqueologicamente relevantes são Jaciara,
Juscimeira e Rosário Oeste.
A datação, feita por seqüência estratigráfica, no abrigo Ferraz Egreja, indi-
ca que a ocupação humana e as manifestações parietais remontam a mais ou
menos 4.600 anos atrás; as séries líticas dos abrigos Vermelhos e do abrigo
Ferraz Egreja, bem como a cerâmica neles encontrada, sendo essas últimas de
mais ou menos 1.250 anos antes do presente, apresentam convergências que
podem, ao ver dos arqueólogos12, constituir “testemunhos de relações entre os
ocupantes ou mesmo de um extenso povoamento na região”.
O relatório de Vialou13 descreve a temática da região do ponto de vista
morfológico, como manifestações cujas representações de seres do mundo
natural buscam a reprodução pictórica destes e manifestações cujas repre-
sentações de seres do mundo natural são abstratas, mas que, a julgar pelas
práticas dos índios de hoje, podem igualmente simbolizar animais e seres
humanos. O primeiro tipo de manifestações aproxima-se, assim, do figurati-
vo, sendo o segundo composto primordialmente por figuras geométricas.
Do ponto de vista da técnica, denominam-se “pinturas”, em conformi-
dade com a prática arqueológica, representações que se caracterizam por
recobrir a superfície rochosa com pigmentos. O termo “gravuras” recobre
inúmeras expressões da arte rupestre que tomam a forma, no nosso caso, de

incisões finas, estreitas e pouco visíveis ou legíveis à luz diurna;


incisões mais largas e profundas discerníveis com bastante facilida-

12 Vialou e Vilhena-Vialou, 1986, p. 201-211, p. 204.


13 Ibidem, p. 209.
109

de; mas sobretudo grandes traços picoteados ou martelados, mais ou


menos achatados e de bordas irregulares resultantes da multiplicida-
de de micro-perfurações em estrela produzidas bem próximas umas
das outras que formam os traçados.14

Metade dos abrigos da região contém manifestações figurativas. As que


têm por tema seres humanos, animais e assemelhados chegam a 133, não
havendo aí, ao contrário de outros sítios brasileiros, representações figurati-
vas explícitas de objetos, armas, habitats, vegetais e paisagens. Cerca de ¾
dessas manifestações figurativas provêm dos abrigos mais ricos em termos
do número e da variedade de formas, destacando-se aí o de Ferraz Egreja,
com mais ou menos 113 das 612 manifestações registradas. Menos de ¼
dessas representações, distribuídas por apenas 8 sítios, têm aspecto natura-
lista, e mesmo assim, como assinala Vialou14, relativamente naturalista e sem
que sejam assinalados detalhes anatômicos.
As representações geométricas inventariadas são abundantes, alcançan-
do 480 unidades, diversificadas, incluindo mais de 100 formas dissociáveis e
repetidas ao menos uma vez. Há inúmeros desenhos geométricos de difícil
definição em termos sígnicos no âmbito da arqueologia; variando do ponto a
retângulos fechados, são eles de modo geral as representações maiores (30-
40 cm). A parede norte de Ferraz Egreja destaca-se, tal como a sul em seus
termos específicos, por apresentar os dois mais amplos desenhos desse gê-
nero; situadas a mais de 4 metros de altura, trata-se de representações que
não se repetem em nenhum outro local inventariado.
— Manifestações lineares formadas por linhas e traços – trata-se de
pares ou conjuntos horizontais de linhas e traços.
— Manifestações circulares – são as representações de distribuição mais
uniforme; trata-se de círculos concêntricos múltiplos e duplos e círculos simples.
— Manifestações quadrangulares – essas representações, que não são
cursivas como as anteriores, vão de barras isoladas a conjuntos de múltiplas
barras paralelas, havendo em poucos casos traços cruzados.
— Manifestações ovais preenchidas – estruturalmente a meio caminho
entre as representações anteriores e posteriores. Ferraz Egreja conta com
apenas uma delas.

14 Ibidem, p. 208.
110

— Manifestações com enchimentos lineares paralelos em forma de an-


cinho – as mais densas, formadas por traços paralelos, lembram as manifesta-
ções circulares, ovais e quadradas. Ferraz Egreja tem a maioria delas.

— Manifestações em forma de U, de V e de vigas – grupo heterogêneo


de que metade dos exemplares se acha em Ferraz Egreja.

— Manifestações pontuadas – são alinhamentos duplos e múltiplos,


marcas que podem estar ou não inscritas nos grandes círculos e que podem
ou não apresentar fechamento linear.

O abrigo Ferraz Egreja

O abrigo Ferraz Egreja foi o primeiro a ter descobertas suas manifesta-


ções parietais, em 1982, quando a Missão arqueológica Franco-Brasileira foi
levada até ele. Tal como os abrigos Vermelhos, ele é um sítio em que estão
presentes cerca de 18,6% das 612 representações arroladas, em decorrên-
cia das descobertas. As manifestações estudadas aqui apresentam um con-
junto de pinturas, desenhos e gravuras da parede sul do abrigo Ferraz Egre-
ja, tendo-se determinado arqueologicamente que estas últimas foram gra-
vadas depois daquelas. Trata-se de uma chaminé residual de arenito de
mais ou menos 15 metros de altura por 5 a 20 metros de diâmetro que tem
ao seu redor afloramentos e escarpas semi-destruídos de um imenso platô
de arenito. Há na base da chaminé entrecruzamentos que originam o abri-
go propriamente dito, cujas dimensões apresentam 3 metros de altura por
2 a 3 metros de profundidade.
Trata-se de um abrigo que permite subdivisões das manifestações
tanto em termos espaciais – levando em conta junções e afastamentos
dos vários dispositivos parietais: fendas, fissuras, saliências etc. – como
temáticos – considerando sobreposições e justaposições de unidades grá-
ficas. O painel central fica do lado sul, na sombra, e apresenta aquilo que
os arqueólogos denominam “dispositivos parietais estendidos que têm
autonomia temática própria”15. Seu centro traz as duas figuras semelhan-
tes a máscaras a que nos referimos, sob as quais e ao redor das quais
vêem-se manifestações em forma de raio, já desgastadas pelos elemen-

15 Vialou e Vilhena-Vialou, 1986, p. 208.


111

tos, duas figuras quadrangulares formadas por barras e duas cruzes associ-
adas em pares, uma delas visível apenas sob luz ultravioleta – que são
únicas em todo o sítio. As pinturas e gravuras cobrem três quartos do
abrigo, formando um conjunto que vai do solo a, em certos pontos das
paredes verticais, quatro metros de altura, o que faz pensar terem os
“autores” das inscrições precisado contar com alguma protoforma de es-
cada para alcançar os pontos mais altos das paredes.
As paredes rochosas apresentam modificações superficiais de ori-
gem físico-química e biológica (insetos e vegetais). As paredes, um tanto
rugosas e granulosas, mostram, dado o seu estado, que a conservação
dessas manifestações está correndo risco. Os temas dessas manifestações
são basicamente estruturas geométricas cuja interpretação em termos de
objetos, zoomorfos, fitomorfos ou de antropomorfos, talvez resulte da
imposição ao objeto daquilo que o analista quer ver. Há contudo uns
poucos desenhos reconhecíveis nesses termos, como o de uma mão, que
apresentam figuras que sugerem objetos do mundo. Há um certo número
de gravuras sobrepostas de modo parcial às pinturas, apresentando estas
uma tendência mais figurativa: trata-se de pegadas de três dedos de aves,
de objetos semelhantes a máscaras e de formas livres de representação
de figuras antropomorfas.
É imensa a diversidade de manifestações, muito embora predomine a
repetição de determinadas formas, como figuras circulares encaixadas que
lembram círculos simples, que podem tanto conter raios como apêndices;
retângulos verticais vazios, retângulos de fechamento mais ou menos de-
senvolvido, em alguns casos horizontais; figuras formadas por pontos e
figuras lineares. As manifestações do sítio acham-se pintadas ou gravadas
em grandes superfícies mais ou menos planas, de modo geral inclinadas no
sentido descendente.
A disposição das quase 300 figuras ali existentes parece indicar uma
seleção por parte dos seus “autores”: trata-se de painéis compostos de
modo a tornar discerníveis seus limites, havendo do mesmo modo inúme-
ras ligações entre tipos distintos de figuras, ligações cuja identificação
mais precisa é prejudicada pela má conservação do suporte. A distribui-
ção das gravuras e das pinturas ocorre da seguinte maneira: enquanto as
pinturas se fazem presentes em toda a superfície em que há manifesta-
ções, as gravuras estão principalmente na parte sudoeste ou oeste do
morro, em que se localiza o painel central, sobrepondo-se às pinturas e
chegando mesmo a destruí-las.
112
Foto: Andrade Júnior, 1998.

Abrigo Ferraz Egreja – parede sul.

Os abrigos Vermelhos

Os abrigos Vermelhos compõem um afloramento de arenito, de gran-


des dimensões e múltiplas paredes. Os painéis de pinturas e gravuras distri-
buem-se pelos dispositivos parietais, havendo preferência pela parte em
que estas estão protegidas por um “alpendre” de cerca de 3,5 metros de
altura. Trata-se do espaço central, que fica na sombra no decorrer do dia e
está protegido das chuvas. As manifestações do abrigo apresentam grande
número de sobreposições.
As escavações começaram em 1993 e revelaram um novo habitat
pré-histórico dentro da área arqueológica da Fazenda Verde, cidade de
Rondonópolis, em Mato Grosso. Este conjunto de abrigos foi descoberto
em 1990, quando das prospecções sistemáticas, e notabiliza-se pela gran-
de quantidade de pinturas parietais, distribuídas sobre todas as faces
rochosas. A sondagem que foi então feita mostrou que o sítio possuía
vestígios evidentes de ocupação humana, em particular implementos
líticos, mas também a cerâmica, associada à abundância de restos de
combustão.
As escavações não somente confirmaram o enorme potencial arqueoló-
gico dos abrigos Vermelhos mas mostram evidências quanto ao fato da com-
113

preensão e da ocupação na caracterização das atividades das estruturas espa-


ciais tanto dentro dos abrigos quanto em seu exterior.

O abrigo dos Selos

O abrigo dos Selos, com pouco mais de 2,5 metros de altura acima do
solo, situa-se num bloco isolado de arenito numa região da Fazenda Verde que
fica a oeste da sua sede e acima da Cidade de Pedra. Ele se torna visível já nas
proximidades da trilha por meio da qual se tem acesso aos abrigos Vermelhos,
os quais se encontram a mais ou menos 200 metros de distância dele.

O abrigo Alvorada

O abrigo Alvorada foi inventariado por Badu16, que procurou descre-


ver todos os aspectos morfológicos das pinturas, das gravuras e dos painéis
em termos de uma detalhada tipologia (com inúmeras sub-classificações)
das manifestações identificadas. Baseamo-nos em seu trabalho em nossa
descrição física das manifestações desse abrigo. Situado no Complexo Cida-
de de Pedra, o abrigo Alvorada é parte de um grupo de blocos de arenito
que em alguns casos alcançam 30 metros de altura, e cujas bordas apresen-
tam muitas vezes inclinações que formam uma espécie de “telhado” natu-
ral que serve de abrigo sub-rochoso. Essa é a natureza geomorfológica do
abrigo Alvorada. O abrigo fica a 21 quilômetros ao sudoeste de Rondonó-
polis e próximo (5 km) ao sul-sudoeste da sede da Fazenda Verde. Tem
uma altitude de 340 metros.
A região é ocupada em cerca de 2/3 por herbáceas e arbustos, vegeta-
ção do tipo “cerradão”, ficando o restante a árvores de altura média de 9
metros. A densidade da vegetação, pequena nas proximidades das forma-
ções rochosas – e composta especialmente por herbáceas, havendo bem
poucos arbustos e árvores –, é bem maior nas áreas que se acham mais
distantes dessas formações. Nas proximidades do abrigo Alvorada predomi-
nam os ipês, roxo e amarelo, bem como as embaúbas, os paus-santos e os
barbatimãos, compondo um esplêndido jardim natural.

16 Badu, H. G. G. Étude de representations rupestres de l’Abri Alvorada: Mato Grosso. Paris: Museum
National d’Histoire Naturelle, 1992.
114
Foto: Andrade Júnior, 1998.

Abrigo Alvorada, formas circulares, pontuações e cruzamento.

O complexo de abrigos Perdida


Esse complexo, em que se situam os abrigos Perdidas (A, B, C, D, E, F, G,
H), forma uma das mais importantes estações rupestres descobertas no Mato
Grosso. Situado na cidade de Jaciara, ele apresenta sete sítios cobertos de pintu-
ras que apresentam primordialmente antropomorfos, cenas de caça, cenas sexu-
ais e muitos zoomorfos. Trata-se de pinturas e de gravuras; no caso das pinturas,
preponderam manifestações figurativas com certo grau de organização e com
tendência naturalista; no caso das gravuras, prevalece o abstrato, apresentado de
maneira esquemática e com grande número de manifestações. Há nesse caso
motivos entrelaçados em função de numerosas sobreposições.

O abrigo Santa Elina


O abrigo Santa Elina localiza-se na Fazenda Paulo Lopes, na Serra das
Araras, acidente geográfico ao norte de Cuiabá que atravessa o Mato Grosso.
O abrigo ocupa o interior de uma chaminé de calcário dolomita e de arenito.
Ele conserva cerca de mil representações que pertencem a diversas fases de
execução. A escavação (que ainda está em curso) efetuada no centro do
abrigo evidenciou uma longa seqüência estratigráfica (1,80 m) de ocupações
pré-históricas, várias delas datadas entre 2.300 e 10.000 antes do presente.
O abrigo dispõe de uma enorme área protegida (70 m de comprimento por
5/6 m de profundidade). Os materiais orgânicos, excelentemente conserva-
115

dos, indicam quantidades de bases cerâmicas ainda fixados no solo, flores,


frutas, carbonos de fogueiras. As ossadas da fauna e da microfauna foram
igualmente recuperadas dentro das ocupações com indústria lítica (sobretu-
do calcário), o mesmo ocorrendo com dezenas de colorantes utilizados.
O sítio está sendo estudado desde 1984 por uma equipe do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), coorde-
nado por Levi Figuti, e do Museu Nacional de História Natural de Paris, coor-
denado por Denis Vialou e Argueda Vialou, ex-pesquisadores do MAE.
Foto: Andrade Júnior, 1998.

Abrigo Alvorada, formas circulares, quadrangulares e pectiformes.

O abrigo apresenta um número de manifestações próximo do milhar,


sendo comparável aos de Minas Gerais, do Piauí e de Goiás, que figuram como
os principais sítios de arte pré-histórica do Brasil. As manifestações distribuem-
se continuamente na parede, que é plana e ligeiramente inclinada, ocupando
uma área livre de 55 metros. A parte superior abriga cerca de 100 pinturas. As
figuras picoteadas, que chegam a 10 metros, acham-se sobrepostas às pintu-
ras. Estas têm de modo geral fundo liso e apresentam zoomorfos.

O sítio arqueológico Veado Perdido

O sítio arqueológico Veado Perdido localiza-se em São Lourenço de


Fátima, município de Juscimeira, nas terras da Fazenda Santo Antônio, pro-
priedade do senhor Antonio Alves da Costa. Situa-se a mais ou menos 5 km
da margem direita da Bacia do rio São Lourenço, em direção ao Pantanal de
116

Mato Grosso. O ambiente que forma o seu entorno é uma zona de transição
na qual a vegetação do cerrado cede lugar à vegetação típica das planícies
inundáveis do Pantanal. O conjunto parietal deste sítio apresenta um rico
repertório de figuras pintadas, apresentando uma variedade de manifesta-
ções que vão de formas geométricas simples a zoomorfos e antropomorfos,
passando por elementos arcadeiformes e cruciformes, dentre outros. O sítio
– cuja primeira prospecção se deve ao senhor Adão Ferreira da Silva, que
dele fez registros fotográficos e no gênero de relevê – foi inventariado pelos
técnicos do IPHAN no ano de 1990, tendo sido estudado, em termos arque-
ológicos, pelos senhores Jum Okamura e Tomio Mizobe, mas não tivemos
acesso a documentos relativos a esse estudo.

Conjunto Parietal do Sítio Arqueológico Veado Perdido.


Foto: Adão Ferreira da Silva, 1998.
117

Considerações Finais

O exame dessas manifestações em termos semióticos foi para nós uma


nova proposta educativa do olhar. Vimos-nos levados a ver as figuras sem
lhes impor categorias interpretativas a priori, a considerá-las em termos vi-
suais sem empregar parâmetros interpretativos que, rotulando esses objetos,
nos impedissem de vê-los em sua materialidade e em sua singularidade. Ver
essas manifestações no momento mesmo de sua metamorfose em feixes de
traços visuais, visualizar, por assim dizer, o avesso do minimalismo e do des-
pojamento (que pressupõem um auge e uma ação oposta ao despojamento
precedente) mostrou-nos todo um universo oculto sob as interpretações fi-
gurativas impositivas que costumam predominar no contato com manifesta-
ções visuais, artísticas ou não. Isso nos permitiu ver os objetos visuais antes
como relações no plano da expressão do que como representações de figu-
ras do mundo.
118
119

Identidade regional no Sertão do Tocantins


Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante*

Resumo Abstract
Este artigo aborda o discurso autonomista do nor- This theme intends to discuss Tocantins’ autono-
te de Goiás a partir do viés da identidade regional, mous speech from the regional identity, having as
tomando como referência as experiências políticas reference some testimony, that attest the shared
partilhadas por aqueles que habitaram o sertão de experiences by those who lived in the drylands of
Goiás, hoje Tocantins. Considera que a identidade Tocantins. It considers that the regional identity of
regional na fala das lideranças da região foi sendo Tocantins in the speech of the political leadership of
construída nos antecedentes históricos, a partir do the regions, is supported by the history of the
século XVIII, pela oposição econômica ao centro- settlement and economic occupation of Goiás
sul de Goiás. drylands, since the eighteenth century by the
economic opposition to the Center–south of Goiás.

Palavras-chave: Keywords:
identidade – sertão – Tocantins regional identity – Tocantins – autonomous speech

* Doutora em História Econômica pela USP/FFLCH e professora Titular no Departamento de História,


Geografia, C. Sociais e R. Internacionais (HGSR/UCG). Coordenadora do Centro de Pesquisa em
História, Geografia, C. Sociais (CPHGS).

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
120

A expressão sertão é aqui tomada como referência para a significação


histórica das trajetórias políticas do então norte de Goiás, na construção da
sua autonomia política e administrativa em Estado do Tocantins, a partir de
1988, com a promulgação da nova Constituição, em outubro daquele ano.
No Governo Independencista do Norte de Goiás, no início do século
XIX, o sentido de sertão, enquanto vazio de poder e pobreza revela-se no
discurso dos protagonistas da Proclamação de 1821:

Habitantes da comarca de palma! É tempo de sacudir o jugo de um


governo despótico; todas as províncias do Brasil nos têm dado este
exemplo; os nossos irmãos de Goiás fizeram um esforço infrutífero, ou
por ser rebatido por força superior. Eles continuam na escravidão, e
até um dos principais habitantes desta comarca ficou em ferros. Pal-
menses! Sejamos livres, e tenhamos segurança pessoal; unamo-nos e
principiemos gozar as vantagens que nos promete a constituição!
Abulam-se os tributos que nos vexam, ou por sermos os únicos que os
pagamos, ou por não serem conforme ás antigas leis adaptáveis a esta
pobre comarca. Saídas de gado, décima, banco, papel selado, entrada
de sal, ferro, aço e ferramentas ficam abolidas: todos os homens livres
têm direito aos maiores empregos; a virtude e a ciência eis o empenho
para os cargos públicos. Todas as cabeças de julgado darão um deputa-
do para o Governo Provisório; os arraiais de S. João, S. Domingos,
Chapada e Carmo ficam gozando da mesma prerrogativa. Esses Depu-
tados devem ser eleitos, e dirigirem-se imediatamente a Cavalcante,
onde reside interinamente o Governo Provisório. Depois de reunidos
todos os deputados, se decidirá qual deve ser a Capital, e nela residirá
o Governo. Os soldados que quiserem sentar praça de infantaria ven-
cerão cinco oitavas por mês, e na cavalaria seis e meia. Palmenses
ânimo e união! O Governo cuidará da vossa felicidade.
Viva a nossa santa religião, viva o Senhor D. João VI, viva o Prìncipe
Regente a toda a casa de Bragança; viva a constituição que se fez nas
Côrtes reunidas de Lisboa Cavalcante, 15 de setembro de 1821. Presi-
dente Joaquim Teotônio Segurado, Manoel Antônio de Moura Teles,
Zeferino de Azevedo, José Vìctor de Faria Pereira, Francisco Joaquim
Coelho de Mattos, Luiz Pereira Lemos e Joaquim Rodrigues Pereira.1

1 Lacerda, Regina. A independência em Goiás. Goiânia: Oriente, 1970, p. 80.


121

Naquele momento reivindica-se a ruptura política com o centro-sul de


Goiás, dada a situação de abandono político/administrativo, a exploração
econômica de altos impostos pagos e que nunca eram revertidos em bene-
fício dos nortenses. A autonomia política é dada como a condição necessária
para romper o isolamento em relação ao poder público. Convém ressaltar
em Azevedo que esta questão do isolamento “não foi apenas do Brasil em
relação a outras nações durante todo o período colonial, mas no interior da
unidade nacional, entre diferentes grupos e instituições”2.
Esclarece-se que ao identificar no governo independencista do norte
de Goiás de 1821 a primeira elaboração do discurso autonomista da região
não significa que os momentos subseqüentes sejam enumerados numa pers-
pectiva linear de tempo histórico de segundo e terceiro períodos de constru-
ção desses discursos.
Nas abordagens dos protagonistas de 1956 a 1960, a reminiscência
apropriada tem como marco a idéia de Lysias Augusto Rodrigues, que nos
anos 1940 propôs a criação do Território do Tocantins enquanto projeto
político de emancipação do norte de Goiás.
É curiosa essa revelação, pois remete a indagações como: por que a
reminiscência de 1821 não aparece nas falas dos interlocutores do projeto
autonomista de 1956/1960? E o que significou essa apropriação para as lide-
ranças que encaminharam o projeto do Estado do Tocantins em 1985/1988?
A peculiaridade do momento político nacional da segunda metade da
década de 1950 é que ele se revela bastante promissor nas falas dos norten-
ses que reelaboraram o discurso autonomista do norte de Goiás, porque a
diretriz política do governo federal estava voltada para a ocupação dos espa-
ços vazios. Era preciso interiorizar o Brasil, e o Centro-Oeste era alvo desse
propósito, tanto que a construção de Brasília foi a realização mais ousada do
projeto de expansão do capital no Brasil, a partir de Kubitschek.
Para as lideranças, não era fora de propósito reivindicar a criação de um
novo Estado, pois entendiam que, assim como Brasília, o Estado do Tocantins
respondia ao projeto de expansão do capital no Brasil. O novo Estado estaria
dentro das diretrizes políticas do governo federal e a expectativa era que a
divisão de Goiás não era só para criar Brasília, mas também para integrar o
Brasil. A articulação política das lideranças nortenses no plano do discurso
consistia em destacar as potencialidades da região para provar sua viabilida-

2 Azevedo, apud Lima, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan / IUPERJ, UCAM,
1992, p. 50.
122

de econômica auto-sustentável enquanto unidade político-administrativa. Os


artigos publicados em jornais da época destacavam as potencialidades do
norte de Goiás, chegando a atribuir à região o título de “Nova Canaã”, uma
alusão às suas riquezas minerais, fluviais e à abundância de terras férteis. Os
problemas apontados eram de natureza jurídico-social, reflexos do abandono
administrativo do governo de Goiás.
Nesse momento percebe-se que, muito mais do que evidenciar as difi-
culdades sócio-econômicas do norte de Goiás, a preocupação era mostrar
quais potencialidades poderiam ser exploradas caso fosse criado o novo Es-
tado. Embora houvesse expectativas otimistas nas falas, o encaminhamento
político desse propósito limitava essa possibilidade, pois a unanimidade dos
nortenses em torno do projeto se restringia a Porto Nacional. Faltava tam-
bém o apoio do governo do Estado, Juca Ludovico, que se manifestou como
o mais ferrenho opositor ao projeto do Estado do Tocantins, sem contar que
o deputado federal da região, João de Abreu, manifestou-se contrário à cria-
ção do novo Estado por entender que, naquele momento, era um projeto
político eleitoreiro de aventureiros que não tinham compromisso com o de-
senvolvimento do norte.
Considerando os antecedentes históricos da reivindicação autonomista
norte/centro-sul de Goiás e a sua consolidação somente no final da década de
1980, pode-se tomar o discurso autonomista regional como a síntese, no sen-
tido tönniesiano3 – “síntese como produto contraditório das contradições” –,
desse longo processo de construção da identidade do norte goiano como uni-
dade política, econômica, cultural, geográfica e histórica. Discurso eficaz na
década de 1980, que, na sua construção, apreendeu a memória dessas outras
gerações que, no seu tempo e limites, acreditaram na possibilidade de auto-
nomia do Tocantins com base nas relações econômicas de oposição ao cen-
tro-sul de Goiás, e lentamente foi gestando os elementos que viriam a ser os
fundamentos do seu discurso. Nesse sentido, associam-se à denúncia de um
passado de abandono administrativo e segurança pública as peculiaridades
da região quanto ao povoamento, o linguajar, as comidas típicas, enfim, o
jeito de ser do habitante do norte goiano, que em nada, ou quase nada, se
identificava ao centro-sul do Estado. Até mesmo o Paralelo 13o, onde come-
çava a região, era designado de Amazônia Legal, caracterização que confir-
mava uma peculiaridade também ditada pela geografia física.

3 Miranda, Orlando. A dialética da identidade em Ferdinand Tonnies. São Paulo: IEA-USP, 1992, p. 6.
123

Enquanto o sudeste goiano evidenciava uma sólida integração econô-


mica com o mercado do sudeste do Brasil, acentuava-se o descompasso
interno norte/sul. A apropriação dessa diferença foi tomada como referência
na construção do discurso autonomista do Tocantins, a partir das peculiarida-
des que identificariam as diferenças entre os nortenses e os goianos.
A evidência dessas diferenças aparece claramente na seguinte fala:

Não temos nenhuma identificação com vocês, goianos. ...aqui no


Tocantins não temos nenhuma identificação com vocês aí de Goiás.
Não temos nada em comum com as coisas aí do sul. Sua capital –
Goiânia – para nós não diz nada. Ela nos sufoca em todos os senti-
dos. A mentira está na cara de todos aqueles a quem recorremos na
esperança de obtermos alguma coisa para nós. Vocês só aparecem
por aqui por ocasião das campanhas eleitorais, pedir votos e corrom-
per nossos bravos tocantinenses. É por isso, que vocês querem conti-
nuar tendo-nos como seus currais eleitorais. Apenas isso.
E é devido a isso, que todos nós, tocantinenses sinceros, repudiamos
as suas lembranças, e queremos dirigir nossos próprios destinos. O
que vocês vêm fazer aqui? Trazer promessa, as mais vãs, as mais
impatrióticas possíveis.4

Considerando a articulação dos elementos que “naturalmente” qualifi-


caram o norte goiano, tanto os do tempo presente quanto os daqueles evo-
cados na memória, o discurso autonomista regional em questão pode ser lido
a partir da construção teórica de que

a noção de identidade é construída como um fenômeno que se pro-


duz em referência aos critérios de aceitabilidade, de credibilidade,
até de admissibilidade, e que se faz por meio da negociação direta
com outros. Memória e identidade podem perfeitamente ser negocia-
dos, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essên-
cias de uma pessoa ou de um grupo.5

Nesse sentido, a memória é apropriada para os que corroboraram com

4 Melo, Edmar Gomes. Não temos nenhuma identidade com vocês goianos. Revista Presença, Goiânia, 10
de set./1986, p.6.
5 Pollak, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, n. 10, 1992, p. 204.
124

a construção do discurso autonomista naquilo que poderia fortalecer a nego-


ciação dos interesses em jogo, ou seja, na manifestação enfática das peculia-
ridades do norte de Goiás que evidenciassem o separatismo regional como
algo geográfico e historicamente dado.
É indiscutível que as peculiaridades do norte só puderam ser evidenci-
adas em relação às desvantagens com o centro-sul de Goiás. Entretanto,
pode-se levantar a seguinte dúvida quanto à questão: porque o discurso de
abandono administrativo e desvantagem econômica só pôde ser viabilizado
politicamente no final da década de 1980?
A possibilidade de resposta parece ser reconhecer que a identidade é
esse fenômeno produzido a partir da negociação dos critérios que a validam.
Nessa via, pode-se perguntar, ainda, quais “valores” foram resgatados na
memória do norte goiano, considerando-se a contemporaneidade da causa
em questão?
A concepção da diferença regional, da discriminação e do abandono
econômico-político já havia sido assimilada pelos habitantes daquela região
e, portanto, não resultava de uma acusação forjada pela mídia, jornal local,
pois quem vivia ou vivera naquele espaço não tinha nenhuma dificuldade
em perceber o que, no discurso, os identificava como ‘o norte goiano’.
A denúncia de discriminação e a sua negação alimentaram o sentimen-
to, em grau de aceitabilidade bastante significativo, de se pertencer ao norte
goiano e não ao Estado de Goiás. E se o discurso autonomista ganhou forma
em 1988 foi porque, também, ficou clara a perspectiva de viabilidade eco-
nômica da região.
A presença do “espírito comunitário” no discurso autonomista dos
anos 80 era facilmente identificada nas falas dos protagonistas quando
elas apontavam as dificuldades partilhadas por aqueles que habitavam
além do Paralelo 13º 6.
Na aceitação dessas dificuldades como expressão depreciativa da re-
gião, assinala-se a sustentação da prática política do consenso em defesa dos
interesses do Estado do Tocantins.
O discurso autonomista, ao ser retomado em 1985/1988, não foi
apropriado como proposta política de um único partido, mas como uma
proposta de coligação suprapartidária de todas as lideranças políticas da
região. Nas falas registradas nas discussões do Congresso Nacional, na
Assembléia Legislativa Estadual e Câmara Municipal de Goiânia, o projeto

6 Miranda, 1992, p. 6.
125

do Estado do Tocantins significava consenso de todas as lideranças políti-


cas que se manifestaram a respeito. Aqueles que não concordavam prefe-
riam omitir a sua opinião, como se essa destoasse de um propósito que,
naquele momento, era encaminhado como conquista democrática, com
base no direito de autonomia e representatividade de uma reivindicação
que se buscava legitimar na consideração de que era mais que secular e,
portanto, projeto de outras gerações que haviam reivindicado essa con-
quista. Também, no reconhecimento popular de que o novo Estado aten-
dia às expectativas e esvaziava os que argumentavam ser o Tocantins
uma invenção apenas das elites envolvidas no encaminhamento do pro-
jeto junto à Assembléia Constituinte.
Legitimar a criação do novo Estado a partir da aceitabilidade dos
nortenses foi uma estratégia significativa para o encaminhamento dos
trabalhos na Constituinte, posto que efetivada no momento em que esta-
vam se redefinindo as forças que iriam compor a representação política
nacional. E a questão da participação popular através de partidos e outras
organizações, as eleições diretas e autonomia do Congresso Nacional eram
expressões de conquistas políticas que o Brasil estava recomeçando a
viver depois de duas décadas de ditadura. A credibilidade no Projeto do
Tocantins dependia do apoio popular. Foi nesse sentido que o Comitê
Pró-Tocantins propôs uma emenda popular com mais de 80 mil assinatu-
ras ao Projeto em discussão na Assembléia Nacional Constituinte. As ade-
sões de todos os partidos políticos, reconhecendo a urgência do novo
Estado, dos empresários, acreditando nas potencialidades econômicas do
Tocantins, e o apoio político do governador de Goiás, Henrique Santillo,
indicaram que o Estado do Tocantins já estava assegurado não no ato da
Promulgação da Constituição, mas um ano antes, quando, em 15 de no-
vembro de 1987, a Comissão de Constituição aprovou, quase por unani-
midade, a inclusão do Projeto do Novo Estado no texto constitucional
aprovado em 1988. Foi aquele momento decisivo para as negociações
posteriores quanto à estruturação político-burocrática do Estado, que se
definiu nas eleições de 1988.
Na prática do consenso político em torno da criação do Estado do Tocan-
tins, legitimou-se o discurso de autonomia regional, pois o perigo não eram as
rivalidades partidárias entre os representantes políticos da região, mas a possi-
bilidade de se perder o espaço da Assembléia Nacional Constituinte e continu-
ar no mapa do Brasil como “norte goiano” ou o “sertão de Goiás”. Situação que
expressava a continuidade de isolamento, atraso, um sentido depreciativo da
126

região, numa perspectiva de dualismo, “que contrapõe o atraso e o moderno,


o espaço dominado pela natureza e pela barbárie”7.
Meio século passado das vozes isoladas do discurso autonomista nas
primeiras décadas da República, o elemento novo em destaque foi a prática
do consenso político que selou e legitimou, entre tantas outras, uma reivindi-
cação que, há poucas décadas, era insustentável politicamente.

7 Lima, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM,1999, p. 60.
127

Timbre e espaço-tempo musical


Roberto Victorio*

Resumo Abstract
Uma nova definição do timbre – enquanto pro- A new definition of timbre – while a sonorous
fundidade perspética sonora – como um percurso perspective depth – as a trajectory that has wide-
que ampliou as possibilidades dimensionais da ned the dimensional possibilities of music from a
música a partir da releitura dos parâmetros sono- rereading of the sonorous-musical parameters of
ro-musicais na música de concerto, onde o pro- concert music, where the process of (de)perception,
cesso (des)perceptivo, resultante deste novo resulting from this new focus and the utilization of
enfoque e da utilização do timbre na estrutura timbre in the structure of musical pieces, has beco-
das músicas, tornou-se o viés para o adentramen- me the sidewise doorway through which to pene-
to em uma realidade espaço-temporal multidimen- trate a multidimensional space-temporal reality that
sional que ultrapassa as fronteiras da tridimensio- goes beyond the borders of tridimensionality.
nalidade. A visão do semioticista Eero Tarasti a The vision of the semioticist Eero Tarasti concer-
respeito do tempo (espaço) musical e a leitura da ning musical time (space), and the reading of ritual
música ritual da etnia Bororo de Mato Grosso a music in the Bororo ethnicity in Mato Grosso from
partir destes preceitos espaço-temporais que these space-temporal precepts that open up new
abrem novos patamares no desvendamento do thresholds in unveiling the ceremonial-sonorous
devir cerimonial-sonoro. transformations is presented.

Palavras-chave: Keywords:
timbre – espaço-tempo – música – timbre – space-time – music – Bororo
semiose – Bororo

* Doutor em Estrutura Musical pela UNI-RIO, professor Adjunto de Composição, Música do Século XX e
Estética da Música da UFMT.

REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
128

Timbre e espacialização

Quando pensamos no imenso salto da escrita musical a partir da entra-


da no século XX, como a busca de uma notação cada vez mais rebuscada e
ousada por parte dos criadores, onde cada nova investida criativa exigia mais
e mais, não só dos ouvintes (como apreciadores) e dos executantes (como
transmissores), mas deles próprios, constatamos a mudança do eixo percep-
tivo a partir do momento da transformação das realizações auditivas para os
códigos visuais.
Nesta fase da escrita musical podemos perceber o elo delimitante na
fronteira do fazer e do notar música, “como linguagem essencialmente abs-
trata, assim como o mito”1 em uma diluição progressiva do percurso linear,
enquanto intenção melódica, distanciamento da preocupação harmônica,
como veio condutor de tensões e distensões e a conseqüente focalização
em outro elemento musical que sempre existiu, porém relegado a uma “na-
tural” finalização/resultado sonoro das junções e particularidades do processo
de amálgama e distinção sonora: o timbre.
A partir do momento em que o processo criativo se concentrou nas
inúmeras possibilidades tímbricas, como intenção primeira, houve um auto-
mático salto da escrita musical e da notação como um todo. O desvínculo
com as raízes da música ocidental tradicional (enquanto trilhar tonal, forma,
desenvolvimento, acabamento, suporte harmônico etc.) e a quebra abrupta
com o “chão” horizontal (enquanto coerência e construção do arcabouço
linear no discurso musical) foram fatores decisivos na abertura e vislumbre
dos inúmeros afluentes até então não trilhados pela música de concerto como
manifestação intimamente associada ao processo criativo/artístico.
Podemos perceber que a partir deste momento de transição, de des-
vínculo, de necessidade histórica e de concentração na essência do fazer
musical, pensando-se no timbre como a alma e como delimitador e diferen-
ciador da arquitetura musical, a escrita teve que, paralelamente, acompanhar
o desenrolar das conquistas sonoras.
Com isso, colocamos que a busca consciente das possibilidades tímbri-
cas foi fator delimitante da escrita musical neste universo sonoro que, repen-
tinamente, se abriu sobre o mundo da criação musical com a virada do sécu-
lo. A “quebra” dos parâmetros musicais, enquanto percurso, construção e

1 Lévi-Strauss, Claude: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 76.
129

audição, foram fundamentais para a percepção e colocação deste marco como


anunciador das escritas que surgiram.
A instauração de novos códigos, como conseqüência do alargamento
sonoro, patenteou a nova condição da escrita musical como não somente
registradora de “sons musicais”, mas também de “ambiências sonoras”. A
notação passou da leitura propriamente dita, da fidelidade da reprodução,
para o registro de atmosferas, a percepção de texturas e o convívio com o
imprevisto.
Se pensarmos que a música do século XX, a partir da quebra da horizon-
talidade do discurso musical e o convívio com o imprevisto, passou a (co)existir
em um universo ritual, estaremos nos aproximando da verdadeira intenção
da obra de arte, ou seja, a transcendência e o adentramento (busca) na esfera
da transposição dos sentidos.
Sobre esse aspecto, concordamos com Langer2, que diz: “se a música
tem qualquer significação, é semântica, não sintomática. Seu significado é
evidentemente não o de um estímulo para provocar emoções [...] se tem um
conteúdo emocional, ela o tem no mesmo sentido que a linguagem tem seu
conteúdo conceitual – simbolicamente”.
A notação, a partir deste momento de equivalência com o ritual (trans-
plantado para o âmbito artístico) assume um grau de importância secundário,
no que se refere a precisão de escrita dos referenciais sonoros. A importância
principal é deslocada para o “fazer” e ao próprio devir, como manutenção do
fluxo, quando a transmissão passa a ter a íntima participação do executante,
enquanto co-participante do processo ritualístico/musical.
A utilização de materiais simbólicos no corpo interno do desenrolar musi-
cal (propositadamente) faz com que o produto final (sígnico) do discurso musical
passe da esfera da leitura pura e simples, como mera reprodução, para uma
ampla atuação dos códigos da música, como associações ligadas à imagem.
Neste sentido, novamente Langer nos diz que: “a música não é a causa
ou a cura de sentimentos, mas sua expressão lógica; ainda assim, nessa qua-
lidade, ela tem maneiras especiais de funcionar, que a tornam incomensurá-
vel com a linguagem, e até com os símbolos apresentativos, como imagens,
gestos e ritos”3.
A despreocupação, ou melhor, desnecessariedade de formalizar o ritual,
ou de prescrever as ações ritualísticas – até mesmo pela impossibilidade,

2 Langer, Sussane. Filosofia em nova chave. São Paulo: Perspectiva, 1989.


3 Ibidem, p. 218.
130

enquanto limitação dos cinco sentidos, em captar sua essência e recodificá-la


ao universo das ações humanas – é assimilada pelas realizações artísticas, a
partir do momento em que o trânsito na esfera (incomensurável) do ritual
passa a gerar subsídios para a gênese musical/artística.
Ritual e música, como manifestações estreitamente ligadas ao simbóli-
co, porém diferentes entre si como linguagens, estabelecem padrões defini-
dos para a conexão com as imagens. No momento da materialização em
ações, expressas por gestos que caracterizam a performance, ou pela nota-
ção, como ordenação visual do espaço sonoro, há que se notar o distancia-
mento provocado nesta empreitada quase intransponível na inter-relação:

ação(sonora)/notação(musical) gesto(forma)/transmissão(ritual)

Esta incapacidade da percepção (total) do ritual, como intenção/ação –


equiparada à escrita musical – deixa claro o imenso hiato existente entre a
mensagem e o receptor. Neste momento, o símbolo (enquanto código meta-
linguístico) passa a atuar como um canal neste percurso de transformação
em realidades visuais/audíveis.
As informações sígnicas assumem cada vez mais o papel de “canal”
neste processo de alargamento da notação (além dos meandros já estabele-
cidos até o início do século XX, em se falando de signos musicais) nesta
incessante busca da superação da condição finita humana.
Neste inter-relacionamento entre ritual e música fica patente a salutar
instabilidade no tocante à indefinição formal e à imprecisão da notação, como
fatores que possibilitam o início da transposição da tridimensionalidade.
A partir daí abrem-se espaços para leituras e interpretações em conso-
nância com a intenção ritualística, ou seja, a “não-forma” e a “não-notação”
como mecanismo de desenvolvimento da intuição e da criatividade. A “não-
notação” não como irrealização, improdutividade ou postura niilista perante
a ação, mas como (des)pre-ocupação com a precisão e com a onipotência
diante da criação, percebendo com isso as possibilidades de cada um como
criador e co-criador, dentro das limitadas condições do mundo tridimensional;
ainda que, involuntariamente, conectado com o infinito.
O fascínio disso tudo é perceber que, além desse acoplamento: ritual/
música, como manutenção da tradição e transmissão da mesma por códigos
visuais, uma enorme gama de possibilidades composicionais, e conseqüente-
mente de notação, se descortinou dentro da panorâmica musical. Cada um
131

desses afluentes ligado a uma tendência e a um modo de escrita, formando


uma egrégora artística até antes nunca vislumbrada na história da música.
A opção pela busca tímbrica como parâmetro primordial no processo
de criação, sem abrir mão do ritmo como ferramenta guia e formadora do
arcabouço deste trilhar, abriu uma janela sui generis para o contato com o
signo e o símbolo absolutamente transformador e delineador do perfil musi-
cal deste século.
A música, coadunada à notação e em estreita sintonia com o registro de
nuances, passa da esfera da simples escrita dos sons para a vivência dos
símbolos, como exploração e manipulação do lado interno e velado da obra.
O registro de ambiências sonoras, e a convivência com as mesmas, fez
com que a notação desse um salto gigantesco como registro sonoro/visual,
com um grau de flexibilidade até então não pensado, em busca da unificação
artística. A partir do momento em que o símbolo se torna elemento contun-
dente de expressão do percurso e possibilidades tímbricas infinitas, a nota-
ção musical eleva-se à categoria de obra de arte, antes mesmo da execução
do produto final a que foi destinada: a música em si.
O resultado final (visual) de uma obra musical neste nível de atuação
sígnica oferece, antes do resultado final (sonoro), subsídios para leitura e
interpretação de seus códigos internos; uma pré-apresentação, ou planilha
do material subseqüente. Além do resultado sonoro, temos igualmente um
resultado plástico quase sempre de boa qualidade pelo amálgama das duas
dimensões em uma só estrutura.
Tanto na análise de obras de concerto escritas no século XX como no
processo de escrita e desvendamento da música ritual Bororo4, percebemos
que a notação atinge um grau de complexidade tal (dentro da escrita musical
tradicional) que a coloca na fronteira do que chamamos de “notação ritualísti-
ca”. O limite da percepção auditiva de tais obras situa-as dentro do espectro
acústico, com uma densidade de informações tal que pode dificultar a trans-
missão e expressividade da obra se os níveis perceptíveis ainda forem regi-
dos por parâmetros de escrita (e sonoridades) convencionais.
Se pensarmos nesta complexidade de escrita não como uma realização
individual, imutável, de uma só fonte, e transformarmos esta complexidade

4 Povo indígena que habita, hoje, a região leste do Estado de Mato Grosso em cinco aldeias distintas
e que tem na complexa rede de encenações do ciclo funerário – que dura aproximadamente dois
meses – a maior expressão de sua cultura e o momento em que os ensinamentos são transmitidos aos
iniciados em uma egrégora que elimina a fronteira entre o mundo real (aldeístico) e o mundo virtual
(dos espíritos).
132

em informações que transitem no universo do simbólico, estaremos cada vez


mais próximos da instauração de uma obra de arte que permite sua constan-
te (re)criação a cada execução, numa instabilidade ritual (formal e conceptu-
al) tal qual a mutável realidade humana. Neste aspecto verificamos que as
representações que ocorrem durante o ciclo funerário Bororo (aliadas às so-
noridades que imantam estas representações) acabam por diluir a fronteira
entre os planos material e imaterial, durante o processo ritual, e virtualizar o
espaço que compõe o ciclo funerário em função do tempo, igualmente vir-
tual, que rege os acontecimentos durante este período.
Logo, o vínculo estabelecido entre timbre e notação – em consonância
com a alma e a prática ritual nas performances do ciclo funerário Bororo –
fica consolidado quando visualizado sob a ótica de criação e interpretação
simbólicas. Assim, como o símbolo e suas representações internas e múlti-
plas leituras, o timbre, que trata das configurações sonoras (gestalts sonoras),
incumbe ao criador a missão de desvendar e manipular as infinitas atmosfe-
ras sonoras de uma notação mutante e flexível, desvinculada das normas
estabelecidas de fixação de suportes e texturas sonoras, permitindo ao ou-
vinte a fruição nesses mesmos moldes.
Os timbres, assim como a notação, passam a ser pensados como uni-
dades formadoras do corpo musical e como elementos primordiais dentro
de poéticas, onde todo um motivo gerador de uma obra pode partir de um
dado tímbrico ou de notação. A esse respeito, Boulez5 tem a nos dizer que
“no mundo sonoro natural, os timbres se apresentam sob a forma de con-
juntos constituídos [...] ao contrário da amplitude, verifica-se a impossibili-
dade de passar de maneira contínua de um timbre a outro; no máximo,
chega-se a dar a ilusão disto com complexos de timbres, variando-os por
insensíveis modificações”.
Percebemos, com isso, a sutileza do trato tímbrico, no que concerne às
combinações e transposições, como um trabalho de ourivesaria, que, automa-
ticamente, culmina com uma notação visualmente mais complexa e necessa-
riamente mais distante dos padrões musicais tradicionais. A dificuldade no pro-
cesso de escrita da música ritual Bororo é, exatamente, a instauração de um
patamar visual além da notação convencional (sem abdicarmos dela também)
que permita o trânsito na esfera da indeterminação e da atemporalidade e, ao
mesmo tempo, nos aproxime o mais possível da sonoridade ritual.
A íntima ligação entre timbre e percurso simbólico, como impulsiona-

5 Boulez, Pierre.A música hoje. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 63.


133

dores da notação, é uma característica peculiar não só da música de concerto,


hoje, em diversas correntes da criação artística, mas da música ritual desde
tempos imemoriais.
Dorfles caracteriza o timbre como uma outra vertente formadora da
espacialidade na música, da seguinte forma:

(...) a espacialidade musical pode ser estendida não só às dimensões


vertical e horizontal, mas também a uma terceira dimensão derivada
da ampliação e especificação particulares do som através do timbre
(...) com a diversidade sonora seria possível obter uma profundidade
perspética do som (...) como também de apoderar-se de uma real
construtividade tímbrica que lhe permita desenvolver-se em uma
multidimensionalidade espacial.6

A percepção da lógica dos signos como transmissores de mensagens vela-


das dentro da obra de arte e a multiplicidade de interpretações de suas leituras
conferem ao ato criativo, hoje, um controle bem maior dos meandros internos da
obra e uma maior amplitude do espectro de atuação do intérprete na realização
das obras, onde são estimuladas a improvisação (em diversos níveis), a criativida-
de (a partir da co-participação no resultado final) e principalmente a instabilida-
de e imprevisibilidade das realizações como um todo (processo de mutação
constante) que nos alerta , assim como o ritual, para a nossa condição humana
que almeja a transcendência através do rito, através das artes.

Tempo e espacialização

Se pensarmos no tempo como mera contagem cronométrica ou sim-


ples medida de unidade, estaremos percebendo apenas um dos afluentes
desse conceito, que se projeta para além das fronteiras da percepção tridi-
mensional. A partir de uma nova abordagem, que se descortinou com a en-
trada no século XX, em todas as áreas, a noção de tempo assumiu um papel
direcionador no processo de adentramento em outros universos, até então
inimagináveis. O tempo, agora liberto do casulo da simples diferenciação
cronométrica (tempo pulsante bouleziano), é distendido à dimensão superi-
or da percepção e do pensamento (quadridimensionalidade).

6 Dorfles, Gillo. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.134.
134

Einstein7 eleva o tempo à grandeza de quarta dimensão, a partir da per-


cepção do mesmo como elemento direcionador na tríade material/dimensio-
nal/gravitacional, tendo como alicerce as proporções e ocupações espaciais,
que se distendem em um continuum espaço-tempo quadridimensional. O
tempo, como alma que conduz o processo de materialização e definitivamen-
te aliado ao espaço, reeditando uma nova realidade (des)perceptiva, quando
visto como um fluxo (des)contínuo, aos olhos da tridimensionalidade.
Espaço e tempo, como fluxos intercambiantes, são indissociáveis na
Teoria da Relatividade, onde a gravidade funciona como um elemento tri-
partide no contexto relativizador, pois é o significante que une a estrutura
espaço-temporal no processo inimaginável da curvatura da luz8; ou seja, o
tempo (e igualmente o espaço) intersticial, como uma dimensão perceptiva
intermediária, acrescida do terceiro vórtice gravitacional que forma com isso
uma pós-leitura do incognoscível, a partir de nosso posicionamento tridi-
mensional (Fig. 1). Esta relação triádica: espaço/tempo/gravidade, da mesma
forma que descortina novos horizontes, novos paradigmas – revelando ou-
tras possibilidades de leitura de códigos, levando-se em conta o acaso, a
instabilidade, o vácuo (como o vácuo primordial alquímico9) e o próprio
silêncio, não como vazio, mas como metalinguagem sonora que permite a
manutenção do fluxo e simultaneamente seu corte, como elemento funda-
mental na sustentação do devir –, obriga o receptor a galgar outros níveis
perceptivos que possibilitem a decodificação destas novas realidades; ou
pelo menos, incita outras buscas por afluentes que ainda se posicionam numa
esfera dimensional além dos sentidos.
Com relação a esta virtualidade, Langer nos diz que “toda música cria
uma ordem de tempo virtual, em que suas formas sonoras se movem umas
em relação às outras [...] o tempo virtual está tão separado da seqüência de
acontecimentos reais quanto o espaço virtual o está do espaço real”10.

7 Einstein, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, c1916.
8 Na Teoria da Relatividade, a gravidade, que é a atração mútua de corpos dotados de massa, ou os
campos gravitacionais, quando da relação entre corpos maciços e de grandes proporções, é fator
determinante no processo de curvatura do espaço tridimensional e do espaço-tempo quadridimensio-
nal. Einstein diz que quanto mais massa maior será a curvatura, e que um espaço-tempo hiper curvo (e
igualmente hiper denso) aprisionaria a luz em seu interior, gerando o que posteriormente seria um dos
maiores mistérios da astrofísica: os buracos negros, ou os corpos infinitamente densos que interrom-
pem o movimento da luz e do próprio tempo.
9 Representação simbólica do espaço (tempo?!) gerador do mundo dos fenômenos, em consonância com
o “vácuo vivo” da física quântica, inundado de partículas subatômicas, ou entidades virtuais, em um
processo inexplicável de criação e destruição. O vácuo (tridimensionalmente destituído de vida) se
mostra pleno de ocorrências e absolutamente orgânico em um mundo regido pelo continuum espaço-
tempo, que nunca cessa.
10 Langer, 1989, p. 125.
135

Não-Ser

Âmbito da Multidimensionalidade

Tempo Experimentado/Amorfo

FLUXO TEMPORAL TEMPO INTERSTICIAL


(Campo de Tempo)

Tempo Cronométrico / Objetivo

Âmbito da Tridimensionalidade Percepção Individual do Tempo

Ser Figura 1

Este tempo virtual é entendido como múltiplas leituras que ocorrem a


partir da percepção do fluxo ou eixo condutivo temporal e as possibilidades
conectivas decorrente da transformação de códigos.
O tempo intersticial, ou tempo da percepção, é a dimensão que se
coloca entre o sujeito perceptor e o objeto percebido; como um significante
temporal neste processo perceptivo.
É óbvio que o tempo, como sendo uma experiência interior, esteja
sempre vulnerável a diversas interpretações do perceptor e em um constan-
te e mutável fluxo em direção ao exterior (espaço), criando com isso a ex-
pectativa do retorno ao gene inicial e mantendo o influxo espaço-tempo
como uma corrente contínua, incessante de acontecimentos, onde a não-
repetição é a tônica.
Logo, quando Heráclito diz que “não se pode entrar duas vezes no
mesmo rio”, fica patente que o que se torna possível é a interpretação de
um momento do continuum, que desemboca em um dos afluentes tempo-
rais (quer do objeto, quer do perceptor) imantados pelo tempo intersticial,
como filamentos imbricados ao eixo espaço-temporal.
136

Tempo musical e música atemporal

Sendo a música uma manifestação unicamente humana, como organi-


zação sonora consciente, e um fenômeno que ocupa um lugar definido como
um espectro do continuum espaço-tempo e sua manifestação no mundo
tridimensional – desde sua concepção (como idéia) até sua materialização
visual/sonora (como obra acabada) – temos que entender a temporalidade
como um eixo que regula e conduz este arco conceptivo às raias do mundo
visível. O modelo humano e o modelo musical, enquanto existências atadas
ao mesmo fluxo de tempo, e afetadas em iguais proporções em suas estru-
turas primárias, criam uma relação de afinidade, como um fio condutor refe-
rencial, equiparando-se como manifestações orgânicas, através da ponte tem-
poral que as permeia. Uma relação de tempo ligada à gênese criativa (tem-
po poético) e à gênese humana (tempo existencial).
Contudo, a intenção da obra de arte enquanto gênese deve ser diferen-
ciada do modelo humano, apesar do suporte temporal (que conduz ao per-
ceptível) que as rege, enquanto manifestações. Quanto a isso, Langer diz
que “a intenção poética, que é a raison d’être da obra de arte, não é dar aos
atores auto-expressão, nem ao auditório uma orgia emocional, mas transpor,
tornar concebível uma grande introvisão da natureza passional humana”11.
O tempo na música não é um parâmetro que pode ser regulado e
medido, como altura, dinâmica e combinações intervalares e acordais po-
dem, enquanto unidades passíveis de uma percepção primária, acessorial,
exatamente por estarem situadas no âmbito da tridimensionalidade e subor-
dinadas ao tempo, que as transporta ao universo da virtualidade.
O timbre situa-se em outra esfera perceptiva, quando pensado não ape-
nas como um delimitador de cores individuais, mas como um formador de
tecidos, de atmosferas, dentro do corpo estrutural da obra, a partir das infinitas
combinações que, em verdade, conduzem as unidades musicais mensuráveis
(como uma ponte) ao universo da virtualidade, que é o próprio tempo musi-
cal; da mesma forma que o tempo cronométrico/pulsante diferencia-se do
tempo experimentado/amorfo, como dois componentes opostos na formação
da teia sonora, que vai sendo gerada a partir dos referenciais individuais de
tempo e que estabelecem um continuum, que são conglomerados de aconte-
cimentos espaciais que se materializam como obra musical.

11 Langer, 1989, p. 23.


137

Um continuum que se conecta ao âmbito da multidimensionalidade e


delimita a percepção individual que, certamente, varia de leitura para leitura,
de um instante para outro. Um campo de tempo que se mantém em cons-
tante mudança (Fig. 2).
Fritjof Capra traduz muito bem este processo de transposição de ocor-
rências que habitam o espaço-tempo – no caso da música, especificamen-
te, como materialização no mundo tridimensional, de referenciais de um
mundo virtual que nos chegam através das sonoridades – e que são trazidas
ao mundo tridimensional como projeções de um mundo tetradimensional
(virtual), como segue:

Todos esses efeitos relativísticos parecem estranhos simplesmente por-


que não podemos experimentar o mundo do espaço-tempo quadridi-
mensional com os nossos sentidos; só podemos observar suas ima-
gens tridimensionais (...) esses efeitos parecerão paradoxais se não
compreendermos que são apenas projeções de fenômenos quadridi-
mensionais, da mesma forma que as sombras são projeções de obje-
tos tridimensionais. 12

Cores Individuais Tempo Pulsado

TIMBRE CONTINUUM TEMPO PERCEPTIVO

Atmosferas Tempo Amorfo


Figura 2

Quanto a esse tempo virtual, não medido, Dorfles comenta que “O


tempo jamais é pura sucessão, sendo, ao contrário, cheio de dimensões
múltiplas e de que o tempo musical é, mais do que qualquer outro, organiza-
do e estruturado”13.
No século XX percebemos um acirramento não só nos tempos internos
das obras, mas na noção de tempo que constrói o alicerce musical. As dinâ-

12 Capra, Fritjof. O tao da física. São Paulo: Cultrix, 1983.


13 Dorfles, 1992, p. 133.
138

micas, os andamentos e as variantes de pulso, conduzindo (quase) sempre


para uma inconstância e irregularidade na retórica, jamais vista anteriormen-
te, que funciona como um desprendimento (proposital) das rédeas da bidi-
mensionalidade na música. O timbre, como um novo pilar triádico e conecti-
vo na estrutura das obras, e o convívio com a atemporalidade como novo
impulso criativo e um novo modelo desperceptivo (Fig. 3).

cores
Harmonia Timbre atmosferas

CONTINUUM

Melodia Ritmo Fluxos Tempo Perceptivo

Linhas Pulsado

Ocupações Espaciais Amorfo


Figura 3

Esta nova percepção triádica é apontada por Adorno como uma ampli-
ação da espacialidade musical14. O timbre definindo colorísticamente as so-
noridades e instaurando uma nova profundidade ao tecido musical, com a
utilização consciente desta possibilidade que ampliou o espectro tridimensi-
onal das obras, aliado à horizontalidade e verticalidade na formação da tríade
dimensional/musical.
Sobre a importância do timbre como uma “nova” possibilidade de am-
pliação dos horizontes sonoros no início do século XX, Gerhard Nestler afir-
ma que “da mesma maneira, após um preâmbulo romântico, deve-se ao
nosso século [XX] a redescoberta do timbre. A inclusão do ruído pela primeira
vez torna o timbre universal. Ao mesmo tempo, o espaço sonoro anímico
abre-se numa escala até então inimaginável”15.
Nas obras de Anton Webern, como um marco desta nova ocupação,
começa-se a perceber o germe da expansão temporal devido à distribuição

14 Adorno, Theodor W. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 1974.


15 Nestler, Gerhard. Die Form in der Musik, Freiburg / Zurique: Atlants Verlag, 1954, apud Hamel, Peter M.
Autoconhecimento através da música. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 170.
139

das ocorrências musicais em uma esfera espacializadora, cuja preocupação é


a ocupação simétrica dos territórios onde o tempo passa a gravitar em torno
das disposições e das ocorrências sonoras, percebidas como pólos isolados –
em primeira instância – na formação do tecido musical, como informação
espacial totalizadora.
A despercepção do tempo e a busca da ocupação espacial foram o
principal viés no processo de criação musical no século XX, onde o timbre foi
elevado à categoria de primeira grandeza como elemento gerativo-musical e
como ponte para um mundo sonoro virtual16.
Paradoxalmente, percebemos em duas vertentes composicionais deste
século – absolutamente opostas – a busca da despercepção do tempo em
suas engrenagens principais: o serialismo e o minimalismo.
O serialismo, como uma potencialização do trilhar da Segunda Escola
de Viena e, particularmente, do percurso atomístico weberniano, que buscou
na não-repetição e na (des)hierarquização dos parâmetros musicais, uma
materialização sonora de extrema complexidade, que resulta – a olhos e
ouvidos – em uma nova concepção de tempo ou fluxo: contínuo/descontí-
nuo. Uma busca consciente de um tempo imperceptível.
O minimalismo, em contraposição apenas sonora, tem na extrema re-
petição e sutilíssimas variantes internas, as mesmas intenções despercepti-
vas do percurso serial. Uma outra tomada de consciência (ou pelo menos
uma busca) do continuum que sustenta as ocorrências musicais. A esse res-
peito, Wisnik nos diz que “a música minimalista por sua vez se relaciona
aparentemente com um outro traço do não-tempo inconsciente: a compul-
são à repetição, cujo retorno em ostinato esvazia o tempo”17.
A partir de então, a noção de tempo na música passa a girar em torno
das possibilidades individuais de percepção sonora – seja no nível da escrita,
da performance, da análise ou da recepção –, onde a resultante final (que
nunca se completa) mostra-se absolutamente mutante em função dos dife-
rentes níveis de escuta.
Essa nova percepção do tempo, que se abriu a partir do convívio com
a imprevisibilidade e com a inconstância nos percursos das obras, permitiu
uma convergência nos resultados visuais e sonoros das obras musicais (a

16 Haja visto o novo posicionamento do arsenal percussivo nas obras deste século e da própria importân-
cia da percussão, como naipe, nas orquestras de hoje. O posicionamento do timbre como material
gerador conferiu à percussão um status de naipe de ponta. Uma verdadeira reversão hierárquico-
instrumental, não só na concepção das obras, mas no corpo orquestral, como organismo.
17 Wisnik, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
140

partir da escrita), onde cada vez mais a noção de tempo, como indicadora de
pulso, quase deixa de existir. As indicações, ainda quando em notação con-
vencional ou com resquícios da mesma, tendem a uma performance que
permite uma flexibilidade tal que o resultado sonoro gira sempre em torno
das possibilidades individuais de cada receptor, seja ele intérprete ou ouvin-
te, onde as variantes visuais impostas à escrita mostram-se em estreita sinto-
nia com os resultados sonoros cada vez mais distanciados da noção de tempo
cronométrico.
Rosen18 detecta uma variante na noção de tempo (que automaticamen-
te se reflete nas performances), no que concerne a uma aceleração progres-
siva que vai imantando as obras no decorrer dos séculos, onde cada período
imprime uma nova leitura para os códigos estabelecidos pela notação.
Na verdade, um tempo (pulsado) que se distende e se torna cada vez
mais distante dos referenciais cronométricos, em função do estabelecimento
de padrões de escrita, onde a rigorosa adição, multiplicação e divisão de
intervalos temporais deixa de exercer um papel de fundamental importân-
cia na criação e manutenção do fluxo das obras, onde, na maioria dos casos,
acaba sendo totalmente abolida.
Percebemos que na performance, pela via da semiótica da música,
sujeito e objeto exercem um papel central, onde a obra musical (micro-
universo), como uma partícula atomizada, tem seu tempo próprio situado no
interior de uma subjetiva e individual consciência musical (macro-universo),
como percepção individual que se expande, ambas imantadas pelo conti-
nuum, em constante mudança (Fig. 4).

CONTINUUM

Concepção Audição
Performance

OBRA INDIVÍDUO

micro-universo macro-universo
Figura 4

18 Rosen, Charles. Plaisir de jouer, plaisir de penser. Paris: Eshel, 1994.


141

Desta forma fica estabelecida a relação ternária (ou três pólos da triparti-
ção) sobre dois eixos de diferentes temporalidades e um de conexão, ou eixo
perceptivo, permeando-os. Sobre isso, Tarasti comenta o seguinte: “Tempo
nunca pode ser tomado como um objeto estacionado a nossa frente; tempo,
implica no mais íntimo mecanismo de nosso pensamento, e não pode mesmo
ser pensado como guardião da temporalidade”19. Ou seja, uma definição bem
clara – e em total consonância com a noção de tempo em Heidegger – da
distinção entre tempo, como um conceito amplo, imensurável; e temporal,
como um afluente transitório que passa no decurso do tempo.
Ouspensky estabelece uma fronteira entre a temporalidade e o sentido
espacial, independente da noção de tempo absoluto, quando diz que
(...) o sentido temporal é a sensação dos momentos que mudam (...) o
sentido temporal é, em substância, o limite ou a superfície do nosso
sentido espacial (...) através da nossa sensação temporal percebemos,
obscuramente, as novas características do espaço que se estende para
fora da esfera das três dimensões.20

Outro ponto importante nesta trama espaço-temporal sob a ótica do signo


é a descrição da forma musical não como uma série linear de símbolos (como
um sistema cumulativo), mas da forma como Bachelard descreve a melodia,
“não como uma continuidade, mas como uma sucessão descontínua”21.
A mera repetição de um motivo, de um módulo ou mesmo de notas
individualizadas, está muito aquém do devir que se sustenta em intenções
conectivas e que vai estabelecendo o continuum da obra. O devir, na semi-
ótica da música, segundo Tarasti, corresponde a um processo de captação de
informações sonoras que são armazenadas na memória, que, por um proces-
so de filtragem, projeta para o exterior as informações contidas, quando do
momento da transcodificação dessas impressões em moléculas sonoras, seja
no processo de criação, seja na performance musical ou mesmo na audição.
O devir musical então é percebido, a partir do sentido de cada micro-
parte e de suas conexões, como um contínuo (e intencional) processo de
transmutação, que materializa a obra integral, com seus afluentes sígnicos,
construindo um fluxo temporal, enquanto afluente de um tempo virtual/
quadridimensional.

19 Tarasti, Eero. A theory of musical semiotics. Indiana: Bloomington, 1983.


20 Ouspensky, Pietr. Tertium Organum. São Paulo: Cultrix, 1983.
21 Bachelard, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.
142

Tempo musical e semiose: Tarasti/Bororo

A partir do momento em que percebemos as sonoridades não mais


como pólos isolados e desvinculados do todo orgânico da obra musical e sim
como forças pulsantes dentro de uma engrenagem intencionalmente conec-
tada e atuante – dentro de um espaço projetado e que vai sendo moldado
gradativamente –, temos que admitir a influência do tempo e das resultantes
temporais que circundam o corpo sonoro como uma entidade organizada e
projetada para além da tridimensionalidade.
Eero Tarasti discrimina a atuação do tempo na música em dois patama-
res fundamentais de micro e macro-temporalidade, onde as relações de tem-
po situam-se entre o “ser” e o “não-ser”, como um “quase-nada”; e enfatiza a
impossibilidade do tempo ser entendido como objeto localizado à nossa frente,
por tratar-se do mais íntimo mecanismo do pensamento, em um eterno flu-
xo contínuo/descontínuo.
O patamar da micro-temporalidade divide-se em três afluentes e tem a
música como entidade individual e mensurável (até certo ponto), como or-
ganismo audível. O primeiro afluente refere-se às “modalizações” ou “estági-
os” de manifestação do devir musical, partindo das duas categorias funda-
mentais do sistema de Greimas de “ser”, como substância e “ação”, materia-
lizante. O efeito dessas modalizações manifesta-se, segundo Tarasti, como
“sobremodalizações” sobre o devir musical que se projeta na substância e na
ação, causando cesuras, e no “arbítrio” e na “necessidade”, enquanto possibi-
lidades humanas de materialização (segunda modalização).
Fica claro que, nesta projeção triádica de atuação temporal ou reflexiva
do continuum, o autor parte do devir, enquanto pré-materialização de códi-
gos, para seu desmembramento em estágios materializantes, em um proces-
so de aproximação dos modelos musicais.
Traçamos, então, uma distinção entre o devir, como formador do
arcabouço musical e intimamente atado às inúmeras possibilidades co-
nectivas da rede de tempo, e por isso mesmo mais próximo da tempora-
lidade (ou tempo real), e o continuum, como um fluxo amplo que é
gerado a partir das ocorrências musicais estabelecidas pelo devir, criando
com isso diversos afluentes perceptivos ou intersticiais, causados pelo
distanciamento dos referenciais temporais, e pelo já convívio com o tem-
po virtual, como obra concebida.
Desta forma, fica estabelecida uma manifestação quaternária, nas du-
plas sobremodalizações que formam o pilar triádico estabelecido pelo autor,
143

que tem o devir como ápice deste corpo conceptivo e o continuum como
resultante destas conexões, da seguinte forma:

CONTINUUM

sobremodalização I sobremodalização II

ser ação arbítrio necessidade


Figura 5

O tempo ritual Bororo – que é verdadeiramente o espaço-tempo (vir-


tual) que passa a existir durante o ciclo funerário – sobre esta noção de
micro-temporalidade, expressa-se sob a forma de um contínuo estado de
incorporação e contato com os antepassados, por todos os participantes e
principalmente pelo xamã, como um elo entre os seres imemoriais e a al-
deia, e o aroe maiwu como representante do morto dentro da cerimônia.
O devir musical, ligado ao fluxo imagético do ritual, conduzindo os
participantes, e por conseqüência a música, em um processo de materializa-
ção que se confirma com a ação ritualística e as leituras individuais das ocor-
rências, enquanto tempo perceptivo.
O segundo afluente do patamar da micro-temporalidade diz respeito
ao tempo musical como devir, ancorado em dois eixos de diferentes tempos;
o eixo transmissor/receptor e o eixo (ou filtro) perceptivo, não só condutor,
mas transformador da sensação de tempo nesta engrenagem.
Esta relação, que circula em um duplo eixo, pode ser transplantada ao
universo Bororo a partir do eixo xamânico de tempo – que é o tempo (ou o
espaço-tempo) instaurado com as ações rituais – estabelecido ao início de
cada canto pelo(s) chefe(s) de canto ou pelo próprio aroe et awara are
(xamã das almas) em cada performance.
O início pulsátil, imprimido pelos bapos (chocalhos globulares), que
representam, no contexto ritual, a extrema materialidade que se sacraliza, e
144

pela voz principal, a extrema imaterialidade que desce ao mundo mortal,


estabelece desde o inicio o pilar dual da sobremodalização, como o “ser”,
enquanto substância que indefine o pulso no canto principal, representando
as cesuras que interrompem o fluxo (do canto) sem comprometer o conti-
nuum, e as “ações”, enquanto variantes do pulso dos bapos.
A relação triádica Bororo sobre o segundo patamar da micro-tempora-
lidade fecha-se sob dois aspectos. O primeiro, visível, com a inserção dos
percursos conectivos instrumental/vocal: plano 2, como voz reflexo que
une os planos sagrado e humano, e plano 4, como voz pedal e fronteira
imaginária vocal/dimensional. O segundo, invisível, se dá através da simbi-
ose entre a alma Bororo, via xamã/chefe de canto, num fluxo contínuo/
descontínuo resultante do devir ritual/musical e a ação ritual em si, enquan-
to projeção do próprio devir e materialização da segunda sobremodaliza-
ção, ancorada nas ações individuais (perceptuais) e necessidades da aldeia
(materializações). Em verdade, um segundo estágio de projeção do devir,
aproximado da materialidade.
Tarasti monta um bloco genético semiótico, baseado em um quaternário
que gira e se transforma sobre o eixo reversível/irreversível ------ previsível/
imprevisível, criando um conceito de rede que rege o devir musical, como
apreensões ou leituras múltiplas dos desdobramentos que compõem esta rede.
Percebemos que as quatro categorias giram em torno do tempo in-
tersticial ou perceptivo individual e as variantes temporais que mantêm o
devir musical. O bloco gerativo semiótico – que tem nos primeiros tem-
pos, irretornáveis, a negação de toda noção de duração; na performance
de um sujeito musical; no momento de transição e na noção de passado e
futuro – sob o prisma quaternário, retoma o processo de expansão que
parte do fluxo contínuo de tempo do primeiro afluente, conectando-se
ao terceiro afluente da micro-temporalidade através da inclusão da me-
mória como um dado perceptivo. O efeito do devir na semiótica da mú-
sica, visto como um processo cumulativo, baseado no fato de que as
primeiras informações se armazenam na memória do ouvinte e são fun-
damentais na escuta subseqüente.
Com relação ao armazenamento de informações musicais por parte do
receptor, diria mesmo que o afloramento destes dados se dá não só na
(re)escuta das sonoridades, enquanto um processo reprodutivo/performáti-
co, mas também, e num grau de importância ainda maior, na transformação
destes dados, (re)organizados sob uma nova ótica criativa.
Transplantando este conceito à realidade musical Bororo, percebemos
145

que, nas duas leituras do Kare e Paru e dos cantos utilizados como alicerce
da Trilogia, o grau de improvisação e criação de novos percursos musicais e
estróficos são de uma importância crucial, confirmando o terceiro afluente
temporal, ligado à memória. A memória não somente repetitiva, mas tam-
bém criativa.
A partir de eventos que se repetem, cria-se um estado interno de orde-
nação, partindo de novas informações que chegam ao ouvido e são armaze-
nadas na memória, com referenciais absorvidos anteriormente. Desta forma,
duas expectativas passam a gerar subsídios perceptivos. Primeiro, uma sen-
sação de fluxo no ouvinte, mas sem a noção de direcionamento, de continui-
dade; e, segundo, um estado de (pre)sentimento do fluxo, como uma reto-
mada do viés imprimido pela memória.
Nas performances realizadas durante o ciclo funerário Bororo, nós, como
forasteiros, percebemos o imenso leque desperceptivo temporal, através de
informações sonoras que nos remetem a outras paragens similares, pelas
atmosferas criadas durante o percurso musical/ritual – em seis ou oito planos
distintos – e com um referencial visual – a partir das representações visuais –
que muito se assemelham às escritas de obras deste século.
Ao passarmos de uma audição do ritual para a outra, ou seja, após o
translado do código sonoro ao visual e a criação dos gráficos planimétricos
– para a percepção dos planos que ocorrem nas diferentes performances –
automaticamente criamos uma expectativa com relação ao desenrolar so-
noro, pelos referenciais anteriores arquivados na memória; como no caso
dos cantos cíclicos (Marenaruie e Roia Kurireu) que são executados em
vários momentos do ciclo com variantes sutilíssimas, e as diferentes execu-
ções de um mesmo canto em duas aldeias distintas – no caso do Kare e
Paru (canto da pesca) – onde a sensação de continuidade é alterada, ape-
sar do mesmo pulso imprimido nas duas execuções. Esta variante percep-
tiva se dá não só pelas conexões estróficas que diferem durante o translado
ritual/musical, pelas diferentes atuações planimétricas, pelas nuances tím-
bricas imprimidas, mas principalmente pela expectativa projetada pelo
convívio com a primeira audição.
O segundo patamar estabelecido por Tarasti, o da macro-temporalida-
de, diz respeito à noção de tempo, conectada não mais à música como vari-
ante perceptiva, intersticial, e sim à egrégora musical enquanto confluência
de poéticas. A música através da história e os modelos que são construídos
na formação da estrutura desta história. Como mostra o quadro a seguir:
146

micro-temporalidade unidade musical individual

TEMPO
macro-temporalidade egrégora musical
Figura 6

Com relação às poéticas no processo de entendimento dos tempos e


da música como história, Tarasti coloca que

não é possível encontrar um viés satisfatório para a história da músi-


ca através de momentos fora das relações genéticas entre diferentes
trabalhos de um mesmo compositor, ou trabalhos de diferentes com-
positores. Isto somente tem efeito através de uma nova variante no
modelo narrativo, particularmente no que concerne às relações en-
tre transmissor e receptor.22

Entendemos que a compreensão das poéticas e as transformações den-


tro dos percursos criativos nos ajudam a compreender o(s) eixo(s) da egré-
gora musical, como formadores de tendências dentro da história da música.
O tempo musical, em constante flutuação e definitivamente irreversível e
irretornável em todas as manifestações desta egrégora, é entendido como
um conceito gerativo quadridimensional que chega até nós, não através das
sonoridades, mas da percepção do fluxo dessas sonoridades que se deslo-
cam em um espaço virtual e são captadas (de diferentes formas) pelo senti-
do tridimensional da audição, como uma projeção desse mundo impalpável.
Através da leitura dos tempos individuais, em uma confluência de poéticas, é
possível chegar-se próximo de um tempo ou de um fluxo comum que rege
a essência de um período criativo da história da música.
A relação transmissor/receptor é condição primordial na leitura e for-
mação do arcabouço temporal, ainda mais se pensarmos que nesta fase pri-
mária as possibilidades de transformação do tempo, enquanto tempo indivi-
dual, são infinitas. O tempo transmitido, ou a unidade musical individual que
se propaga no tempo, nunca é o mesmo do tempo receptivo, e vice-versa.
Logo, esta etapa dual de condução do tempo situa-se no âmbito, ainda, da
micro-temporalidade, ao passo que o tempo das confluências poéticas, que

22 Tarasti, 1983, p. 69.


147

é o espaço-tempo que aglutina todas as possibilidades de deslocamento e


de interações, constitui-se no cerne da macro-temporalidade. A egrégora
que possibilita uma aproximação da leitura de um tempo histórico.
Sob essa ótica, o tempo mítico Bororo enquadra-se como eixo da macro-
temporalidade, através da transmissão oral das estrofes, dos cantos, dos gestos
e das ocupações virtuais que conduzem os rituais e, principalmente, das trans-
formações em cada um deles, a cada geração. A capacidade de improvisação e
criação dos chefes de canto, na condução do tempo interno das performances
(como tempo individual), enquadra-se no eixo da micro-temporalidade e com-
põe um dos afluentes da tradição Bororo e do tempo mítico que rege todo o
ciclo ritual. Um tempo que não é o tempo individual, por exemplo, de condu-
ção dos bapos, mas de utilização dos mesmos no contexto ritualístico, em
consonância com os ditames estabelecidos pelos antepassados imemoriais.
O tempo mítico Bororo atado à noção de macro-temporalidade, por um
fio condutor que, historicamente, une a egrégora Bororo, enquanto força
criadora e transformadora dentro do percurso ritual, ao tempo material (real)
da aldeia, fora do contexto do ciclo.
Esta noção de tempo coletivo, como um estágio para a macro-tempo-
ralidade, é colocada por Hama e Ki-Zerbo da seguinte forma: “O tempo não
é a duração capaz de dar ritmo a um destino individual; é o ritmo respiratório
da coletividade. Não se trata de um rio que corre num sentido único a partir
de uma fonte conhecida até uma foz conhecida”23
Tarasti, utilizando o modelo greimasiano trifásico de concepção, discri-
mina o processo de desenvolvimento da idéia musical sob os eixos da virtu-
alidade, atualidade e realidade, associando cada um dos eixos ao patamar da
micro-temporalidade, enquanto ramificações do devir, como segue:

REAL materialização (performance)

ATUAL pré-materialização (escrita)

VIRTUAL concepção (ideação)

(Processo desintegrado - eixos distintos) Figura 7

- do virtual para o real -

23 Hassan Hama; Damisani Ki-Zerbo. Metodologia e pré-história da África. Porto Alegre: Movimento, 1988.
148

Percebemos neste trilhar conceptivo um processo desintegrado, onde


cada eixo funciona como uma etapa distinta e desvinculada uma das outras.
O tempo que rege cada eixo atua como seccionador e delimitador de fron-
teiras, causando uma cesura a cada estágio, instaurando um patamar de ide-
ação que se transforma na atualidade da notação, materializando-se na per-
formance. Três tempos distintos e inconciliáveis, porém imantados pelo
mesmo continuum.
Transplantando este modelo trifásico ao universo Bororo, temos o seguinte
esquema que se funde em um só organismo multidimensional e sem fronteiras:

REAL materialização (preparação para a ação ritual)

ATUAL pré-materialização (performance musical/ritual)

VIRTUAL concepção (conexão interdimensional)

Figura 8
(Processo integrado - intercâmbio do eixos)
- real e virtual simbiotizados -

Fica clara nesta representação a interpolação dos eixos em um único


fluxo, que é instaurado com o início do ciclo funerário, onde as ações (ou o
modelo trifásico) ocorrem simultaneamente, com períodos de maior concen-
tração em um dos patamares, mas sempre atuando em conjunto e em fun-
ção do espaço-tempo que é gerado com as atuações.
O fio que conduz o desenrolar musical/ritual do eixo virtual/conceptivo
para o atual/performático pré-materializa a ação final ritual, sem que haja um
desvinculo do processo conceptivo em todas as fases.
O que ocorre nesta trama trifásica de concepção, e que a difere da
anterior, é um contato contínuo e intercambiante entre os três eixos, sem
que um deixe de existir – enquanto força propulsora no contexto ritual – ou
atuar, quando ocorre a mudança no eixo conceptivo.
A ação ritual, que é a meta objetiva ou que proporciona a materializa-
ção da intenção ritual, é ainda impregnada do poder criativo imprimido no
primeiro eixo. Neste sentido, podemos afirmar que – pela conexão dos três
eixos em um processo integrado, que parte das ações humanas e chega na
mais sutil manifestação do tempo mítico Bororo (pelo canal xamânico) – a
música Bororo é não somente a música do tempo que transita na esfera
trifásica de concepção, ou do tempo que se (des)materializa em devir musi-
149

cal, mas do tempo que (pré) existe na memória perdida dos homens.
Após constatarmos a enorme luta humana em desvendar os mistérios do
tempo e suas ramificações – enquanto fenômeno multidimensional que tem o
poder de transportar as realidades tridimensionais a uma outra esfera de existên-
cia como um continuum irretornável – e adentrarmos em suas conseqüências
no âmbito musical, como manifestação e percepção geradora, concluímos que,
apesar de todos os caminhos apontarem para o viés da “noção de tempo” como
uma nova abordagem do modelo perceptivo (e todos os seus afluentes), o
vislumbre deste estado temporal, ou fluxo imanente que perpassa a tudo e a
todos, e que, inegavelmente, causa impressões distintas em nós, seres tridimen-
sionais, resume-se a uma pré-percepção do espaço-tempo quadridimensional.
As teorias apontam para um vislumbre que se descortinará com a mate-
rialização destas possibilidades, enquanto atualidades, e os esboços destas
tentativas em todas as áreas – inclusive a musical, com as inúmeras obras que
tentam transpor os limites da tridimensionalidade – “soam” como um estado
de preparação para a percepção deste campo de tempo.
Entre os Bororo, e a partir da leitura do ritual funerário, perceberemos
não só a complexidade da estrutura interna (musical/ritual) como um proces-
so desperceptivo, ou seja, que vai gradativamente se tornando não percep-
tível aos referenciais sensoriais tridimensionais, como também a nova reali-
dade espaço-temporal que se instaura durante todo o ciclo funerário para os
nativos, totalmente desvinculada das amarras da previsibilidade. Uma busca
inconsciente de um tempo não-presente, materializado através do ritual, como
uma força onipresente que mantém a estrutura mítica da etnia e os laços
internos hierárquicos, em um novo espaço que surge durante este período,
em função do contato com o mundo dos seres imemoriais.
Cassirer24 define bastante bem esta incognoscibilidade espaço-temporal –
sintetizando a idéia inicial da Teoria da Relatividade, que passou a conceber o
espaço e o tempo como um conceito único e como um novo vetor, que conduz
o mundo da tridimensionalidade (perceptível e palpável), e que abre as portas
para a detecção de mundos absolutamente virtuais (quadridimensionais), que
habitam regiões infinitamente grandes e impensavelmente pequenas – quando
diz que: “o espaço e o tempo nunca como formas puras ou vazias, mas como
grandes forças misteriosas, que governam todas as coisas, que dirigem e deter-
minam não só nossa vida mortal mas também dos deuses”.

24 Cassirer, Ernest. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1972.


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151

Notícias do Programa

Resumos de Dissertações de Mestrado


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Misturando sabores: a alimentação na


Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
(1727-1808)
Luzinéia Guimarães Alencar

O estudo proposto busca reconstruir aspectos referentes á alimentação


dos moradores na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, mostrando for-
mas de abastecimento da região. É um estudo voltado para o século XVIII,
iniciando-se com as descobertas auríferas. Partimos da descoberta do metal
que trouxe para esta região um grande número de pessoas, fenômeno expli-
cativo do povoamento das Minas do Cuiabá, demonstrando que, mesmo di-
ante de deficiências econômicas, existiram correntes abastecedoras. Ao cons-
tatar a existência de núcleos produtores na Vila, bem como em seus cami-
nhos, o comércio e o consumo que se faziam, incluindo-se o transporte de
produtos de gêneros alimentícios, fica demonstrado que o homem desta
sociedade não sucumbiu ante as dificuldades apresentadas. A partir de um
suporte documental bem diversificado, foi possível recompor cenas desse
cotidiano colonial.
Neste estudo privilegiamos algumas questões como: primeiro, os espa-
ços domésticos da Vila Real não se diferenciavam dos do litoral, pois conta-
vam com a presença do escravo buscando água potável para o abastecimen-
to interno das casas; segundo, as fontes propiciavam o cuidado com a limpe-
za doméstica, não exclusivamente dependente das águas do rio Cuiabá e do
próprio córrego da Prainha, que desde a fundação da Vila não foi utilizada
para consumo devido à existência do azougue; terceiro, as fontes colabora-
vam para a criação dos animais e plantação; quarto, elas representavam a
manifestação da preocupação do poder púbico com o ordenamento urbano
da vila; quinto, circulando por esses espaços públicos e privados encontra-
mos várias pessoas, entre elas as cozinheiras. Do conjunto dessas análises
resultou a dissertação, que foi dividida em três capítulos. No primeiro capítu-
lo discorremos sobre as diferentes formas alimentares encontradas na Europa
pelos homens ao longo dos tempos. O capítulo intitulado A alimentação ao
longo dos tempos trata desde as formas de servir durante os banquetes e o
importante uso das especiarias, mostrando como as formas alimentares fo-
ram sendo modificadas ao longo dos tempos pelo mais diversos fatores que
154

vão desde o cultural aos econômicos e climáticos. O segundo capítulo, deno-


minado A cozinha da Vila Real, foi organizado e definido tratando da trajetó-
ria das populações que moravam na região das minas e em Vila Real, inclu-
indo os pequenos núcleos que faziam parte do Termo. Objetivou-se demos-
trar que cenas pitorescas, como de desafetos, acidentes e alimentação, em
muito estavam presentes para vislumbrar as formas alimentares desta popu-
lação. As espacializações das práticas alimentares, ou seja, os locais onde se
consumiam e comercializavam gêneros alimentícios – casas de repastos,
vendas, tabernas e espaços residenciais – foram privilegiadas, bem como o
foram os agentes que realizavam o comércio, como as mulheres, por esta-
rem presentes em lojas e vendas, com destaque para as negras de tabuleiros
que vendiam seus quitutes aos moradores da Vila Real. No terceiro capítulo,
Na cozinha as misturas, dedicamo-nos à análise dos principais alimentos con-
sumidos por esta população, observando a mesclagem dos saberes culinários
de europeus, africanos e ameríndios. Ainda neste capítulo procurou-se detec-
tar a existência, ou não, de um padrão de consumo alimentar por parte da
população em estudo dando destaque aos principais alimentos consumidos.
Importante foi identificar como as cozinhas e as misturas culinárias se
mesclaram no âmbito da constituição e desenvolvimento da capitania, que
se caracterizava por possuir uma população heterogênea e mestiça. A arte
do fazer – o toque, a seleção e o manuseio dos alimentos –, a caça, a pesca
e a luta pela sobrevivência perante desafios fizeram com que estes homens
e mulheres reelaborassem hábitos e costumes alimentares. Procuramos, pois,
demonstrar ao longo da pesquisa quais foram os alimentos mais comumente
consumidos, pois da farinha, da carne seca, do toucinho, dos galináceos e da
banana formaram-se hábitos e costumes alimentares que atualmente fazem
parte da cultura mato-grossense, bem como da culinária regional. Neste sen-
tido, procuramos demonstrar que dos alimentos mais consumidos ocorreu
um processo de reelaboração cultural, sendo tais alimentos reveladores de
um padrão alimentar próprio da região.
155

Entre caminhos e memórias:


narrativas e cotidiano de itinerantes rumo a
Poxoréo-MT (primeira metade do século XX)
Nileide Souza Dourado

Este trabalho de pesquisa insere-se na história dos movimentos populaci-


onais brasileiros, especialmente na história dos deslocamentos e das trajetórias
ocorridas na primeira metade do século XX rumo a Mato Grosso, tendo, neste
caso, Poxoréo como ponto de atração. O estudo procura traduzir, através da
memória dos itinerantes – homens e mulheres – suas histórias de vida, a via-
gem nas suas múltiplas dimensões, significações e experiências, produzidas
através dos permanentes desafios, das diversas paradas, dos desvios, cami-
nhos, descaminhos e de outras lembranças. A pesquisa norteou-se, sobretudo,
pela memória, documentação originada na perspectiva da história oral temáti-
ca, e define como fio condutor das investigações os contatos com moradores
do lugar, no sentido de conhecer pessoas que viveram a experiência social, e
ainda aqueles que presenciaram ou ouviram as histórias daqueles que conse-
guiram chegar em Poxoréo. Buscou-se, também, apoio nos periódicos, docu-
mentos institucionais, além de episódios já conhecidos e narrados pela historio-
grafia. O estudo aponta aspectos singulares de um mundo simbólico, onde as
memórias de viagem dos itinerantes agem como provocamento de recupera-
ção das experiências, visões de mundos, representações sobre os deslocamen-
tos, estradas e sonhos por onde trilharam centenas de nordestinos, nortistas e
pessoas oriundas de outras localidades rumo ao leste mato-grossense. O imagi-
nário construído nessa partida e nessa chegada é representado para alguns nas
informações obtidas nas cartas recebidas, nas notícias e propagandas de parti-
culares e oficiais quando registram sobre as terras de fartura e de riquezas, da
beleza que se encontram nas águas, chuvas e terras férteis e ricas de diaman-
tes nas localidades de Poxoréo-MT. Nesta perspectiva, os resultados da pesqui-
sa dão visibilidade, ou melhor, ensejam pensar novos enfoques para a história
dos deslocamentos populacionais na primeira metade do século vinte, centra-
dos nas versões de pessoas comuns, e apontam uma outra compreensão dos
caminhos, das experiências, dos trechos fragmentários, do cotidiano e dos ele-
mentos de socialização deles decorrentes. Eles possibilitam uma outra pers-
pectiva para a escrita da história do período no país.
156

O tempo do grilo:
posseiros na Gleba São Domingos 1979-1983.
A história da luta pela terra no
Vale do Guaporé-MT – 1970-1990.

João Ivo Puhl*

Analisamos na dissertação a luta pela terra em Mato Grosso, a partir da


história da Gleba São Domingos, situada no vale formado pelo rio Guaporé e
seus afluentes no noroeste do Brasil: Mato Grosso e Rondônia. Ao falarmos
em Vale do Guaporé, referimo-nos apenas à parte mato-grossense, na divisa
com a República da Bolívia e o Estado de Rondônia, abrangendo seis muni-
cípios: Vila Bela da Santíssima Trindade, Pontes e Lacerda, Comodoro, Nova
Lacerda, Nova Conquista d’Oeste e Vale do São Domingos, cuja área total é
de 60.633 km2 com uma população de 53.000 habitantes (IBGE, 1991).
Analisamos diversas fontes que registraram a memória e as represen-
tações das práticas sociais e políticas, dos diferentes grupos, nas ocupações
de terras, e a pesquisa baseou-se em relatos orais, fontes escritas, mapas,
fotografias e filmagens em vídeo, ressaltando os depoimentos. Organiza-
mos o texto em cinco capítulos que falam das experiências dos posseiros
de São Domingos, a partir das quais dialogamos com outras experiências
locais ou estaduais.
O primeiro capítulo trata da ocupação de São Domingos entre 1979-
83, dialogando a partir desta experiência, tanto com as ocupações que ocor-
reram antes e depois, no Vale do Guaporé e em Mato Grosso. No segundo
descrevemos e analisamos os vários tipos de confrontos que os ocupantes
enfrentaram no tempo do grilo, nos quais sempre havia a possibilidade da
derrota ou do sucesso e onde se constrói a luta com estratégias e táticas
cotidianamente decididas e postas em práticas. O terceiro capítulo aborda
detalhes das complexas relações de aliança construídas pelos posseiros de
São Domingos e de outras glebas, com setores sociais importantes na região,
como comerciantes, madeireiros, políticos, agentes de pastoral, sindicalistas,
advogados, jornalistas, funcionários públicos etc., constituindo uma rede de

* Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso.
157

forças sociais no entorno do campo de confrontação, como anteparo dos


choques mais violentos, mediação, canal para dar publicidade aos conflitos e
pressionar as autoridades do Estado nos momentos de negociação. No quarto
capítulo apresentamos aspectos do que acontece nas glebas onde o resulta-
do dos confrontos foi favorável aos ocupantes e o INCRA faz a regularização
fundiária do loteamento já realizado pelos posseiros no período da ocupa-
ção. Estas ações iniciam após a desapropriação e emissão da posse em domí-
nio do INCRA, que faz o cadastramento dos posseiros, fornece Autorizações
de Ocupação, Cartas de Anuência para os que pretendem captar recursos de
crédito bancário, para depois, com a área demarcada, emitir os títulos defini-
tivos. No quinto capítulo falamos sobre alguns aspectos do dia-a-dia de pos-
seiros e depois parceleiros reconhecidos pelo INCRA no processo de regula-
rização como: a vida familiar desenvolvendo a produção nos lotes, a vida
social criando infra-estrutura de estradas, transporte, escolas, igrejas, associa-
ções de produtores nos núcleos urbanos, o comércio de madeira e de produ-
tos agrícolas e o desenvolvimento das negociações políticas, sindicais, religi-
osas, culturais e esportivas para dentro e fora da gleba. É um tempo de
novos problemas, mas também de abundância, solidariedade, festas e anima-
ção, de estrangulamento e frustração dos sonhos de uma vida melhor e, para
muitos, recomeçar tudo outra vez, porque a vida e a luta continuam.
158

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1. Territórios e Fronteiras, publicação semestral, divulga produção historio-


gráfica na forma de artigos, traduções, pontos de vista, conferências, notas
de pesquisa e reproduz documentos importantes, todos inéditos. Mais
especificamente, informa sobre a atuação do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Mato Grosso.
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mente, ao pé de página, sucintas, apenas quando absolutamente necessá-
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tivo. Caso haja um parecer contrário, a Comissão Editorial enviará o traba-
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