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V. 4, N. 1, jan./jun. 2003
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Reitor
Paulo Speller
Vice-Reitor
José Eduardo Aguilar S. do Nascimento
Pró-Reitor de Pesquisa
Paulo Teixeira de Sousa Júnior
Diretora do ICHS
Tereza Cristina Cardoso de Souza Higa
Comissão Editorial
João Carlos Barrozo
Maria Adenir Peraro
Luiza Rios Ricci Volpato
Secretaria Executiva
Matildes Dias Koike
Conselho Consultivo
Artur César Isaia – UFSC
Carlos Alberto Rosa – UFMT
Fernando A. Novais – UNICAMP
Hilda Pívaro Standniky – UEM
Ivan Aparecido Manuel – UNESP
Janaína Amado – UnB
Otávio Canavarros – UFMT
Kátia Abud – USP
Margarida de Souza Neves – PUC/Rio
Antônio Torres Montenegro – UFPE
Nanci Leonzo – UFMS
Paulo Miceli – UNICAMP
Regina Beatriz Guimarães Neto – UFMT
3
ISSN 1519-4183
V. 4, N. 1, jan./jun. 2003
REVISTA DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
UFMT
4
Semestral
158 p.
ISSN 1519-4183
Revisão Ortográfica
Aquiles Lazzarotto (português)
Sumário
Apresentação .......................................................................................................... 7
ARTIGOS
O episódio das invasões holandesas no Brasil:
história, memória, mistérios
Ronaldo Vainfas .......................................................................................... 11
NOTÍCIAS DO PROGRAMA:
Resumos de dissertações de mestrado .......................................................... 151
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Apresentação
A Comissão Editorial
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11
Resumo Abstract
O artigo traça um panorama geral sobre as inva- This article offers a general view on the Dutch
sões holandesas no Brasil no século XVII e anali- invasion in Brazil during the seventeenth century
sa, com mais especificidade, alguns processos, a and analyses, particullarly, certains processes, like
exemplo da comunidade luso-sefardita do Recife e the Recife’s luso-sephardic community and the
o conflito entre os índios potiguares, bem como o conflict amidst the Potiguares Indians, and also
papel de alguns personagens históricos, como Hen- the role of certains historical personages, like
rique Dias e o jesuíta Manuel de Moraes. Henrique Dias and he Jesuit Manuel de Morais.
Palavras-chave: Keywords:
invasões holandesas – comunidade luso-sefardita Dutch Invasion – Recife’s luso-sephardic commu-
do Recife – Índios Potiguares nity – Potiguares Indians.
* Professor Titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense. O presente artigo é, com
ligeiras modificações, o texto apresentado na conferência de abertura da II Semana de História, Cuiabá,
organizada pela ANPUH-MT em parceria com o Programa de Pós-Graduação, Mestrado em História da
Universidade Federal de Mato Grosso, em novembro de 2002.
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
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1 Abreu, Capistrano de. Capítulos de história colonial. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 96.
13
2 O documento foi traduzido por P. Souto Maior e publicado na Revista do Instituto do Ceará, v. XXVI, p.
72-82, 1912.
18
nesta guerra, como nos conta Gonsalves de Mello em seu Henrique Dias:
governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil (1988). Celebrizado no
século XIX, acabaria execrado pela historiografia do século XX, inspirada no
movimento negro, como traidor da raça: uma espécie de anti-Zumbi.
Neste vai-e-vem de lealdades e infidelidades – históricas, imaginárias
ou mitológicas –, um caso fantástico é o do jesuíta Manuel de Morais. Nascido
em São Paulo, por volta de 1596, falava fluentemente o tupi, estudou no
Colégio dos Jesuítas na Bahia e fez todos os votos da Companhia. No final da
década de 1620 atuou como superior da aldeia inaciana de São Miguel, em
Pernambuco, ao que parece com máxima eficiência. Após a invasão holan-
desa, em 1630, permeneceu firme no seu posto e chegou a pegar em armas
com destaque. Foi capitão geral dos índios e comandante de Felipe Camarão
até ser destituído do posto por tramas de eclesiásticos e outros capitães.
Continuou, porém, na luta de resistência na Paraíba, até cair prisioneiro dos
holandeses, em 1635, fato que mudou radicalmente o curso de sua vida.
Abandonou, então, o catolicismo, aderiu ao calvinismo e prestou inú-
meros serviços aos holandeses, trajando-se como leigo, escarnecendo dos
prisioneiros portugueses. Não fez nenhuma questão, vale dizer, de seguir o
voto de castidade e teve vida dissoluta, segundo diziam. Foi por isso expulso
da Companhia e processado pela Inquisição, à revelia, que o condenou à
fogueira, sendo queimado simbolicamente em efígie, em auto-de-fé realiza-
do em Lisboa, em 1642. Era tido pelos católicos como “o maior herege e
apóstata que a Igreja de Deus” possuía naqueles dias.
Condenado pela Inquisição de Lisboa, Manuel de Morais viveu algum
tempo no Recife holandês, sendo depois enviado para a Holanda. Casou-se
ali duas vezes, em ambas com esposa calvinista, tendo ao todo três filhos.
Enviuvou da primeira e abandonou a segunda esposa – “uma das mais lindas
do país”–, regressando a Pernambuco. Dedicou-se, então, ao comércio do
pau-brasil com os holandeses, levando a madeira do interior para o Recife à
custa do trabalho indígena. Estourando a Insurreição Pernambucana, em 1645,
caiu prisioneiro dos portugueses e aí mudou novamente de lado e serviu
como capelão dos portugueses em várias batalhas. Mas acabou preso e envi-
ado a Lisboa para ser outra vez julgado no Santo Ofício por suas heresias
passadas. Abjurou de todas as culpas, mas foi sentenciado ao cárcere. Doen-
te, teve a pena suspensa, em 1648, falecendo em 16513.
3 O processo do Padre Manuel de Morais encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição
de Lisboa, Apartados, processo 4847. Foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, 1908.
20
5 Lipiner, Elias. Isaque de Castro: o mancebo que veio preso do Brasil. Recife: Massangana, 1992.
22
No pólo oposto ao de Isaac de Castro temos Jacob Rabi. Judeu como Isaac,
mas que não era português, nem, portanto, sefardita. Era alemão, judeu ashke-
nazi, desses que migraram da Europa centro-oriental para Amsterdam nos anos
1630 e eram muito discriminados pelos judeus sefarditas de origem ibérica. De
todo modo, passando a Pernambuco, Jacob Rabi não queria nada com os judeus
portugueses do Recife. Funcionário da Companhia holandesa, casou-se com uma
índia tapuia da tribo dos janduís. Foi valioso intérprete e conseguiu o importante
apoio de diversas nações tapuias para a causa holandesa no nordeste. Consta
que foi ele, Jacob Rabi, quem liderou os famosos massacres do Rio Grande do
Norte, em Cunhaú e Uruaçu, cujas vítimas foram beatificadas pelo Papa João
Paulo II, como mártires, no ano de 2000. Em 1646 foi assassinado por soldados
holandeses, mas o inquérito sobre o homicídio não foi adiante6.
Queima de arquivo, ao que tudo indica, como foi queima de arquivo a
punição que Matias de Albuquerque havia dado ao nosso Calabar anos atrás.
Jacob Rabi traíra os judeus ao lutar pelos holandeses, casar-se com uma índia
e viver como índio? Traiu ou trairia de algum modo os holandeses, e por isso
acabaria assassinado pelos seus aliados? E Calabar? Traíra os portugueses ou
sabia de inúmeras traições, como a de vários senhores de engenho que ser-
viram aos holandeses, ou como a do padre Manuel de Morais, que abraçou o
calvinismo? Sabia de algum fato suspeito do próprio Matias de Albuquerque?
Nas múltiplas teias do fato e dos acontecimentos, o episódio holandês dá-
nos exemplo de como a história do acontecimento pode ser rica, sobretudo se
combinarmos, como ensina Braudel, a história frenética do tempo curto com a
do tempo médio das conjunturas e o tempo longo das estruturas. Estruturas que
podem ser pensadas no vasto campo que inclui desde a economia às mentalida-
des. De maneira que não quero encerrar aqui fazendo a apologia da história
factual ou ao retorno do fato histórico como objeto primordial da história.
Mas não tenho dúvida em realçar a sua importância no texto historio-
gráfico, de preferência ao ensaio generalizante e teoricista onde a teoria é
utilizada não para explicar a história, mas para escondê-la. O fato, portanto,
pode abrir caminho para interpretações de conjunto, servir como ponto de
partida de interpretações gerais. E, neste sentido, há que combinar os fatos
realmente gerais – outrora chamados de fatos históricos – com os fatos
miúdos, com a biografia de personagens quase anônimos ou estigmatizados,
coisa que somente a micro-análise é capaz de oferecer. É isto o que nos
ensinam os enredos do episódio holandês com sua plêiade de Calabares.
6 Cf., por exemplo, Boxer, Charles. Os holandeses no Brasil. São Paulo: Nacional, 1961 (original de 1957).
23
The turn from traditional political history to the new social history and
then to the new cultural history has allowed us to rethink many questions,
including the question of what is regional and what is national, an especially
pressing issue for historians of Brazil. At the outset of my academic career
(ca. 1975) the literature on Brazilian regionalism was heavily influenced by
North American historians working within a positivist/empiricist framework
that privileged political structures and associated regional identity entirely
with the elite politics of the First Republic. Works by Joseph Love on Rio
Grande do Sul and São Paulo, John Wirth on Minas Gerais, Robert Levine on
Pernambuco and Eul-soo Pang on Bahia explored regionalism and regional
history as a function of the decentralization of politics under the Old Republic1.
Though these historians usefully called attention to the significance of
regionalism and decentralization during that political era, their works, for the
most part, left undisturbed the hegemonic metanarrative of the nation that
emphasized the gradual decline of regional identity in favor of a strong,
centralizing state2.
As one might expect, when Brazilian historians of Brazil became
interested in the question of regionalism and regional history in the mid-
1980s, they tended to explore this issue within a neo-Marxian framework,
and particularly from a Gramscian perspective that privileged material interests
and the hegemonic discourses of socioeconomic elites. These new studies –
3 Amado, Janaína et al. República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/
CNPq, 1990.
4 Weinstein, Barbara. Brazilian regionalism. Latin America Research Review, v. 17, n. 2, p. 262-276,
Summer 1982.
5 See especially Silveira, Rosa Maria Godoy. Região e história: questão de método. In: Amado, Janaína et
al. República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 17-42.
6 Amado, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In:: Amado, Janaína et al.
República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 8.
7 Ibidem, p. 7, 11.
25
social history of the 1970s and ‘80s also provided a favorable context for the
inclusion of the histories of previously excluded groups (whether socially or
spatially defined), and thus so-called regional historians could utilize arguments
similar to those expressed by historians of women, indigenous peoples, Afro-
Brazilians and other marginalized groups8.
As I have argued elsewhere, this strategy of inclusion as a remedy for
marginality, though crucial, perhaps even essential, at a particular historical
moment, has severe limitations when it comes to challenging dominant historical
narratives9. And this same limitation is apparent when we consider the effort
by those doing so-called “regional history” to have their work valued by the
larger intellectual community, and to have an impact upon historical debates.
Though the contributors to República em migalhas historicized the concept of
region, rejecting the positivist notion of a region “como um dado, já aceito e
acabado”10, and inserted regional history into a larger totality or historical narrative,
they still accepted a certain fixity of categories, a certain stability of boundaries,
between the region and the nation. It is at this juncture that the new cultural
history, with its emphasis on the nation and, by extension, the region as imagined
communities, allows us to reconsider regionalism, and regional history, as a
discursive effect inseparable from the construction of national historical narratives,
and enables us to destabilize the very boundaries between region and nation11.
Furthermore, I would argue that it is only through this process of destabilization
that so-called “regional history” can transcend its marginal status within the
academic community and participate fully in the ongoing process of historical
debate and revision.
Before continuing with this argument, I’d like to note the two different
sources of inspiration for this essay. One was the preface written by José Luiz
Werneck da Silva to Geraldo Mártires Coelho’s monograph on the death of
8 Ibidem, p. 14. This has been particularly the case in the historiography of the Nordeste and Amazônia.
For the former, see Martins, Paulo Henrique. O Nordeste e a questão regional. In: Amado, Janaína et al.
República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, p. 51-66. For the
latter, see Souza, Márcio. Depoimento: Amazônia, modernidade e atraso ou o Brasil e seus paradoxos
regionais. Manguinhos, História, Ciências, Saúde, VI, p. 1061-1071, set. 2000.
9 Weinstein, Barbara. A pesquisa sobre identidade e cidadania nos EUA: da Nova História Social à Nova
História Cultural. Revista Brasileira de História, XVIII, 35, p. 227-246, 1998.
10 Silveira, 1990, p. 17.
11 Of course the crucial inspiration for this argument is Benedict Anderson’s classic study, Imagined
communities: reflections on the origin and spread of nationalism. New York: Verso, 1983. For a critique
of Anderson’s association of the nation with (western) modernity, see Duara, Prasenjit. Historicizing
national identity, or who imagines what and when. In: Eley, Geoff; Suny, Ronald Grigor (Eds.).
Becoming national. New York and Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 151-177.
26
12 Silva, José Luiz Werneck da. Prefácio. In: Coelho, Geraldo Mártires. O brilho da Supernova: A Morte Bela
de Carlos Gomes. Rio de Janeiro: Agir / UFPA, 1995, p. 13.
27
13 See Waldstreicher, David. In the midst of perpetual fetes: the making of American nationalism, 1776-1820.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1997; and Jacobson, Matthew Frye. Whiteness of a different
color: European immigrants and the alchemy of race. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
14 See Foner, Eric. Reconstruction: America’s unfinished revolution, 1863-1877. New York: Harper &
Row, 1988.
15 White, Richard. The middle ground: Indians, empires, and republics in the Great Lakes Region, 1650-
1815. Cambridge: Cambridge University Press, 1991; Limerick, Patricia Nelson. The legacy of conquest:
the unbroken past of the American West. New York: Norton, 1987.
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who entered from the West and the South, and labored under explicitly
racialized forms of exclusion. In her introduction to República em Migalhas,
Janaína Amado described national history as “the general” and regional history
as “the particular”, but such categories would be utterly inadequate to describe
the intellectual enterprises of southern and western historians in the United
States, who typically envision their work as a challenge to or a reinterpretation
of “the general”16.
Closing that extended parenthesis, I want to return to the point raised
earlier about the need to destabilize the categories of region and nation.
Again, an earlier neo-Marxist/social history approach to regional history
(including my own) argued persuasively that the region could not be
understood or analyzed apart from the nation, providing a welcome antidote
to the positivist view of regional history, or the descriptive/antiquarian aspects
of local history. But the social history approach still accepted conventional
categories of region and nation, and therefore could not mount a compelling
argument for the converse—that the “nation” could not and should not be
understood or imagined apart from the “region”. We have to move beyond
material processes and relations of production, to the ongoing process of
identity formation, of imagining the “self” and the “other” in order, not only
to make regional history ‘national”, but also (and perhaps more challenging)
to make national history ‘regional’. From this vantage point, the national
does not exist without the regional, just as the imperial does not exist without
the colonial, and the lines between the two categories, so sharp and clear
from the perspective of social and economic history, start to blur and,
sometimes, even dissolve17.
My final point, then, is that the division between the regional and the
national is itself problematic and misleading. It’s not simply that multiple
histories and identities can co-exist, but that regional history is only meaningful
with reference to the national, and national histories are always informed by
a regional perspective, or competing regional perspectives. In his provocative
critique of theories of the nation, Rescuing history from the Nation, Prasenjit
Duara argues that the consolidation of a modern nation form in China during
the late 19th/early 20th century, far from suppressing regional identities and
discourses, actually activated a revival of regional history and culture as
different segments of the elite jockeyed for position on the national stage. In
contrast to the standard narrative of modernity that positions national identities
as normative and hegemonic, and regional identities as deviant and secondary,
and imagines regional identities as fading with time (symbolized in Brazil by
Vargas’ burning of the state flags in the opening days of the Estado Novo),
Duara claims that nationalism typically revivifies regionalism, though now
often articulated or performed as the true “essence” of the nation. “Traditions”
are resurrected, suppressed, invented or discarded according to their ability
to construct an identity that is both regionally distinctive and coherent with a
national vision18. In effect, regional history becomes the template for national
history, or at least for one version of it.
This interplay between the regional and the national seems especially
clear to me in the case of São Paulo’s rebellion against Getúlio Vargas in the
early 1930s, which culminated in the so-called “Constitutionalist Revolution”
of 1932. The standard (getulista) narrative of that uprising depicts it as a last-
ditch restorationist effort by a powerful regional elite incapable of suppressing
its regional interests in favor of the genuinely national project represented
by the Vargas regime. This depiction has some merit, but it has the defect of
reifying the regional and the national. In contrast, I would argue that the
paulistas’ project, far from being a backward-looking defense of regional
interests, reflected a particular construction of modernity and the modern
nation-state19. Tânia de Luca, in her recently published book on the Revista
do Brasil, notes the paulistas’ continuous conflation of region and nation in
the pages of that journal:
Contudo, uma representação em particular transparece com força: a
que atrelava as possibilidades de futuro à condição de se impor o exemplo
paulista ao conjunto do país. Cada vez mais a nação foi sendo identificada ao
Estado de São Paulo que, com suas fazendas, indústrias, ferrovias e grandes
cidades, desfrutava de uma prosperidade econômica sem similar no país.
18 Duara, Prasenjit. Rescuing history from the Nation. Chicago: University of Chicago Press, 1995, chap. 6;
see also Confino, Alon. The Nation as a local metaphor: Wurttemberg, Imperial Germany, and national
memory, 1871-1918. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1997. On the flag-burning
ceremony, see Williams, Daryle. Culture wars in Brazil: the first Vargas Regime, 1930-1945. Durham:
Duke University Press, 2001.
19 For further discussion of paulista regionalism, see Weinstein, Barbara. Racializing regional difference:
São Paulo vs. Brazil, 1932. In: Appelbaum, N.; Macpherson, A.; Rosemblatt, K. (Eds.). Race and nation
in Latin America. Chapel Hill: University of North Carolina Press, forthcoming 2002.
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20 Luca, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: diagnóstico para n(ação). São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 78.
21 Bak, Joan L. Cartels, cooperatives, and corporatism: Getúlio Vargas in Rio Grande do Sul on the eve of
Brazil’s 1930 Revolution. The Hispanic American Historical Review, LXIII, p. 255-275, may 1983.
22 On the Freyre’s regionalism, see Oliven, Ruben George. O nacional e o regional na construção da
identidade brasileira. In: Oliven, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-Nação.
Petrópolis: Vozes, 1992, p. 31-45.
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and Uruguay and Cristina Scheibe Wolff’s study of rubber tappers in Acre –
areas about as distant from a mythical national “center” as one can imagine –
demonstrate the extent to which national identity, and the struggle to define
what it means to be “Brazilian”, informs everyday life even (or especially?) in
these remote regions23. It is in this spirit that I urge us, not to valorize regional
(or national) history, but to deconstruct the very categories of region and
nation, and to re-think how they are deployed in the construction of historical
narratives, and in the configuration of the academic community.
23 Chasteen, John C. Heroes on horseback: the life and times of the last gaucho caudillos. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 1995; Wolff, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história – Alto
Juruá, Acre, 1890-1945. São Paulo: Hucitec, 1999.
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Resumo Abstract
Nas imensas áreas das bacias dos rios Paraguai, In the huge areas of the basing of the Paraguai,
Paraná e Uruguai, os missionários da Companhia Paraná and Uruguai rivers, the missionaires of Com-
de Jesus destacaram-se como fundadores de po- panhia de Jesus gave a very important contribution
voados entre os indígenas Guaranis Chiquitos e as settlement founders, among the Guarani, the
Moyos. Nesta nova realidade histórica colonial que Chiquito and the Moyo natives. In this new colonial
surgia, processos de continuidade e de oposição historical reality which was developing, continuity
caracterizaram as fronteiras culturais e inter-étni- and opposition processes characterized the cultural
cas. Características sociais oriundas das tradições and inter-ethnic frontiers. Social characteristics co-
ameríndias e européias começaram a se mesclar ming from the Amerindian and European traditions
numa síntese nova, em contínua transformação ao started to mix in a new synthesis, in a continued
longo dos séculos XVII e XVIII. As pesquisas em change during the 17th and 18th centuries. The
andamento nos permitem perceber a complexida- various ongoing research allow us to understand the
de sócio-cultural existente nestes povoados colo- socio cultural complexity existent in these colonial
niais. Guerreiros indígenas e missionários jesuítas settlements. While discussing, indigenous warriors
tiveram encontros e desencontros enquanto dis- and jesuit missionaries had agreements and disagre-
cutiam, a partir da tradição cultural das práticas ements, based on the cultural tradition of the indige-
sociais indígenas e da cultura européia cristã, as nous socio practices and of the Christian European
novas formas que assumiriam as complexas reali- culture, the new features that would assume the
dades sociais que emergiam. complex socio realities that were appearing.
Palavras-chave: Keywords:
fronteira – missões – jesuitas – indígenas guarani frontiers – missions – jesuits – guarani natives
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
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2 Algumas destas idéias, relacionadas ao processo histórico ocorrido em toda a América, foram publicadas
em Kern, Arno A. Descoberta e colonização da América: impactos e contatos entre sociedades indígenas
e européias. Encontro de Cultura Ameríndia, 1, Santo Ângelo - RS, 1992. Anais (I Encontro de Cultura
Ameríndia), Santo Ângelo -RS: URI 1, 1992, p. 9-14.
3 Ver igualmente os trabalhos publicados em Azevedo, Francisca L. N;.Monteiro, John M. Confronto de culturas:
conquista, resistência, transformação. São Paulo: EDUSP, 1997. Para o estudo mais detalhado deste processo de
aculturação no Brasil colonial como um todo, ver Couto, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1995. p.
311-330. Para o Brasil meridional e zonas vizinhas do rio da Prata, ver Monteiro, John. Os Guarani e a história do
Brasil meridional: séculos 16-17. In: Cunha, Manuela Carneiro (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo:
Schwarcz, 1992. Kern, Arno A. Ações evangelizadoras e culturais de missionários portugueses e espanhóis no rio
da Prata, nos séculos 16, 17 e 18, em territórios do sul do Brasil. Congresso Internacional de História –
“Missionação portuguesa e encontro de culturas”. Braga, 1993. Actas (Congresso internacional de História. ), v 2.,
Braga, 1993, p. 469-490. Kern, Arno A. Escravidão e Missões no Brasil Meridional: impactos e contatos entre as
sociedades indígenas e ibéricas no período colonial. In: Flores, M. (Org.). Escravidão, história e literatura. (Anais
do II Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão Negra e de Índios). Porto Alegre: Ed. PUCRS, 1994. p. 31-51.
37
Etnocídio ou transculturação:
oposições e continuidades fronteiriças
4 A bibliografia sobre o tema das relações interculturais nestas missões jesuíticas platinas é vasta, mas
algumas obras básicas podem ser consultadas: Meliá, B. El guarani conquistado e reducido. Assunción:
Universidad Católica, 1986. Haubert, Maxime. Des indiens et des jésuites du Paraguay au temps des missions.
Paris: Hachette, 1967. Lacombe, Robert. Guaranis et jésuites. Un combat pour la liberté. Paris: Société
d’Ethnographie, 1993. Ganson, Barbara A. Better not take my manioc: guarani religion, society, and
politics in the jesuit missions of Paraguay, 1500-1800. Austin, Texas, 1994, 421 f Tese (Doutorado) –
University of Texas. Kern, Arno A. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
5 Armani faz referências ao fato de terem os jesuítas recebido as instruções normativas do Padre Geral
Acquaviva (com data de 1º de maio de 1609): “Instrución de cómo se an de aver los nuestros en tomar
y regir doctrinas de indios, que es la misma que se envió a la provincia de Filipinas por abril de 1604 y
al Nuevo Reino por junio 1608”. Armani, A. Ciudad de dios y ciudad del sol. El “estado” jesuita de los
guaranies. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
38
7 Kern, Arno Alvarez. Sociedade barroca e Missões Guaranis: do confronto à complementaridade. Con-
gresso Internacional do Barroco, 1, Porto, Portugal, 1991. Actas (I Congresso Internacional do Barroco),
Porto: Universidade do Porto, 1991, p. 445-465.
8 As interpretações que se seguem foram em grande parte já elaboradas nos quadros da pesquisa
histórica publicada em Kern, 1982, p. 97 e ss. Foram acrescidas algumas novas abordagens, tendo em
vista a continuidade das investigações arqueológicas e históricas que ainda atualmente se desenvol-
vem. Ver, igualmente, Kern, Arno A. O processo histórico platino do Século XVII: da aldeia guarani ao
povoado missioneiro. Estudos Iberoamericanos, v. 11, n. 1, p. 23-41, 1985.
9 Lacombe, Robert. Problème et mystère des jesuites du Paraguay. Sciences Écclésiastiques, Paris, v. 17,
n. 1, p. 91; v. 17, n. 2, p. 238-295, 1965. Saguier, Ruben; Clastres, Hélène. Aculturación y mestizaje en
las Missiones Jesuiticas del Paraguay. Aportes, Paris, n. 14, p. 26, 1969.
40
10 Haubert, Maxime. L’église et la défense des ‘sauvages’; le Pére Antoine Vieira au Brésil. Bruxelles: Koninkli-
jke Academie, 1964, p. 243.
41
11 Lapierre, Jean-William. L’analyse des systèmes politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1973. p. 37.
12 Meliá, Bartomeu. Las reducciones jesuíticas del Paraguay: un espacio para una utopia colonial. Estudios
Paraguaios, Assunción, v. 6, n. 1, p. 157-167, 1978.
42
14 Saguier e Clastres. Aculturación y mestizaje en las Missiones Jesuiticas del Paraguay, 1969, p. 25.
15 Métraux, Alfred. Religions et magies indiennes d’Amérique du Sud. Paris: Gallimard, 1967. p. 23.
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ciais à sua sobrevivência. É para este lugar privilegiado que vão alguns caci-
ques, guerreiros e pajés excepcionais. É para lá também que irão todos os
que “tiverem a coragem e a constância de cumprir todos os ritos necessários,
sob a liderança do poder sobrenatural de um xamã”. Único refúgio que resta-
va aos homens no momento do fim do mundo, a crença na “terra sem mal”
parece indicar uma concepção pessimista de futuro. Os pajés viam sinais
precursores em cada fato insólito e indicavam aos indígenas as mais negras
profecias sobre o futuro, pois seriam comidos pelos jaguares ou onças, exter-
minados durante a noite pelo temível raio de Tupã, ou aniquilados pelo
grande fogo do incêndio da floresta ou pela grande inundação16.
Os missionários portugueses e espanhóis com certeza deram-se conta
da significação messiânica do fenômeno religioso tupi-guarani? Eles estigma-
tizaram os pajés e os “karaí”, considerando-os emissários do demônio, por
serem eles os defensores do modo de vida antigo e, portanto, os grandes
inimigos da implantação da redução e do processo de transformações cultu-
rais. Entretanto, os Guaranis parecem ter tido uma visão clara no momento
de abandonar suas antigas lideranças xamânicas pelos novos líderes religio-
sos que chegavam.
Eram (os jesuítas) xamãs muito melhor dotados do que os seus própri-
os e que não podiam decepcioná-los pois o paraíso (“terra sem mal”)
que prometiam não era deste mundo, enquanto que todas as buscas
anteriores, lideradas pelos xamãs, sempre terminavam em fracasso.17
16 Schaden, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1962, p. 161-163. Segundo este autor, no litoral, os índios que chegavam ao mar em busca da
“Terra sem mal” dançavam noites e dias seguidos para ficarem mais leves e voar para o paraíso.
Métraux, 1967, p. 15-16.
17 Saguier e Clastres, 1969, p. 25.
45
Considerações finais
Resumo Abstract
Este artigo pretende reconstituir imagens dos ín- This article aims at reconstructing images of the
dios da nação Paresi, elaboradas entre 1719 e Indians from the Paresi nation, elaborated betwe-
1757, quando se efetiva a colonização portuguesa en 1719 and 1757, when the Portuguese settle-
na parte mais oeste das terras da conquista em ment is accomplished in the most western lands
Mato Grosso. Com base em estudos etnográficos of Mato Grosso. Based on ethnographic studies
e em um conjunto de fontes que inclui crônicas e and on a set of sources that include backland
memórias sertanistas da administração portugue- chronicles and memories of the Portuguese admi-
sa, busca-se apresentar as representações cons- nistration, it intends to present the representati-
truídas sobre os índios da dita nação e algumas das ons constituted about the Paresi Indians and some
práticas sociais que elas impulsionam. of the social practices that they estimulate.
Palavras-chave: Keywords:
índios Paresi – representações – Paresi Indians – representations –
Mato Grosso colonial Colonial Mato Grosso
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
50
... quando abriram as terra dos índios, índio Paresi olhava, ficava
olhando não era brabo, os outro, os Nambiquara era brabo, mais
brabo, nós só olhava, eles atacava, brigava...
(João Ezumae, chefe dos chefes Paresi, abril de 2003)
1 Estas são as várias grafias encontradas no conjunto documental pesquisado em referência ao etnômino
dos índios em estudo. Para este artigo, foi escolhida a grafia Paresi.
2 Segundo Carlos Alberto Rosa, ”Quando [...] teve início o topônimo Mato Grosso para referir as margens
orientais do Guaporé, o topônimo Cuiabá já estava consolidado – inclusive no título da única vila do
centro do continente: a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, fundada no primeiro de janeiro de
1727. Topônimo urbano, que unia uma categoria de aglomerado normatizado (vila), uma determinação
régia (Real) e uma invocação do Filho cristão de Deus (Bom Jesus), – ao nome ameríndio Cuiabá. Ver
Rosa, Carlos Alberto. A Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá (vida urbana em mato Grosso no século
XVIII:1722-1808). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 65 e ss.
3 A união das palavras mato e grosso como topônimo aplicado a esta parte mais central da América do Sul
pode ser datada de fins dos anos 1720 e início dos anos 1730. Cf. Rosa, op. cit.
51
4 Machado, Maria de Fátima Roberto. Identificação e delimitação da área indígena “Estação Rondon” (Estação
“Paresis”) Diamantino – MT. Cuiabá: Departamento de Antropologia/UFMT, 1993. p. 1. (Relatório)
5 Cf. Canavarros, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá e seus objetivos geopolíticos no extremo oeste
(1727-1752). São Paulo, 1998. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, p. 70 e ss.; e Sá, José Barbosa de. Relação das povoações de
Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios até os presentes tempos. Cuiabá: Ed. UFMT / Secretaria de
Educação e Cultura, 1975.
52
6 Nas palavras de Rita Heloísa de Almeida, o Diretório significa “um documento jurídico que regulamentou
as ações colonizadoras dirigidas aos índios, entre os anos de 1757 e 1798 [...] um instrumento jurídico
criado para viabilizar a implantação de um projeto de civilização dos índios na Amazônia”. Ver Almeida,
Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios. Um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed.
UnB, 1997, p. 14; e Domingues, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Come-
morações e Descobrimentos Portugueses, 2000.
7 Almeida, op.cit, p. 15. Esta autora acrescenta, ainda, que “Aparentemente, este regimento suscita
rupturas, mas [...] continua e consolida as ações colonizadoras anteriores”.
8 Chartier, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio
de Janeiro: Bertand Brasil, 1990, p. 9 a 27.
53
arquitetada por um grupo dominante, capaz de fazer dos seus discursos prá-
ticas sociais, e de, com elas, transformar a realidade histórica.
A sociedade que ia se constituindo a partir das descobertas do ouro na
espacialidade em que se fundou a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, e,
posteriormente, na região que veio a se denominar Mato Grosso, também
fruto de descobertas auríferas, exigiu da Coroa Portuguesa um projeto coloni-
zador sofisticado, capaz de justificar suas escolhas e definir estratégias de con-
corrência e de dominação sobre os indígenas e seus territórios. A implementa-
ção deste projeto, no que respeita aos indígenas, exigia a formação de uma
nova identidade histórica, nela moldando um sistema econômico, político e
cultural de relações, uma identidade social que previa a relação de poder vinda
de um soberano, padronizando religião, língua e conceitos sócio-culturais. Com
esses instrumentos históricos e historiográficos, vemos, a seguir, a idéia do
conjunto de representações escritas sobre os índios em questão.
9 Segundo uma descrição contemporânea, o “Chapadão dos Paresi é a maior área de terras planas do
planeta próprias para a agricultura, com 2,1 milhões de hectares. Este espaço do solo em Mato Grosso,
eqüivale ao território do Estado do Sergipe. Nestas áreas vastas e férteis [...] predominam as grandes
lavouras de soja, milho, algodão [...].” (Jornal A Gazeta, Cuiabá, 10 de fevereiro de 2002).
10 Cf. Fonseca, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil (1875-1829). São Paulo: Ed. USP / Cultrix,
1977; e Machado, 1993.
54
Os achados nas minas do Cuiabá, nos anos 20 dos setecentos, foi notícia
estimuladora para a vinda de muitos homens para o interior sertanejo. Mas o
ouro desse lugar escasseou em menos de uma década e as minas tão famo-
sas tornaram-se pouco atrativas. As dificuldades daí advindas subtraíram as
possibilidades de permanência dos mineradores no local e suscitaram o an-
seio por novos achados. Por esse motivo, houve o deslocamento para o
oeste da Vila Real de Cuiabá, em direção aos sertões dos Paresi, que foram
sendo palmilhados por diversos signos de ocupação ao longo do percurso
entre esta Vila e os novos achados auríferos nos ribeirões Sararé e Galera,
afluentes do rio Guaporé. Estes achados foram pontuados como mais um
espaço de conquista, levando a administração colonial à inclusão de posições
políticas renovadas em relação a nação Paresi11.
Sua história está marcada pelo des-encontro com essa outra cultura: a
ocidental cristã. E, com maior relevância, e desdobramentos extremamente
significativos, a partir do século XVIII, é também a partir daí que os índios
dessa nação passam a figurar na história oficial do projeto colonizador, com
inúmeros registros na documentação gerada pelos administradores coloniais.
Neste contexto em que destacamos os conflitos interétnicos que mar-
caram os primeiros tempos da colonização a oeste das terras portuguesas é
que são elaboradas e ganham sentido as representações construídas sobre os
índios Paresi na primeira metade do século XIX. Tais representações encon-
tram-se em fontes diversas, desde documentos oficiais da administração co-
lonial, até relatos de sertanistas. Dentre eles, privilegiamos o de Antônio
Pires de Campos12, que se pode considerar como uma espécie de discurso
inaugural sobre os Paresi, constituindo-se de um núcleo de idéias que acaba-
riam por se tornar recorrentes nas representações sobre estes índios, como
se verá mais à frente. Esta recorrência pode ser observada não só pela repe-
tição, nos séculos seguintes, dos elementos que identificam os Paresi no
relato de Pires de Campos, mas, igualmente, entre os seus contemporâneos,
com destaque para o comerciante João Antônio Cabral Camello13 e José Bar-
bosa de Sá14, por algum tempo escrivão responsável pela crônica oficial da
Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
11 Canavarros, 1998, p. 3.
12 Campos, Antônio Pires de. Breve notícia que dá do gentio que há na derrota das minas do Cuiabá e seus
recôncavos. In: Taunay, Afonso de Escragnole. Relatos sertanistas. São Paulo: Ed. USP / Belo Horizonte:
Itatiaia, 1981.
13 Camello, João Antônio Cabral. Notícias práticas das minas do Cuiabá. Cuiabá: Ed. UFMT / Secretaria de
Educação e Cultura, 1975.
14 Sá, 1975.
55
15 Badariotti, Nicolaó.. Exploração no norte de Mato Grosso, região do Alto Paraguay e Planalto dos
Parecis. São Paulo: Escola Typ. Salesiana, 1898.
16 Rondon, Cândido Mariano da Silva. História natural: etnografhia. Comissão das Linhas Telegráficas de
Mato Grosso ao Amazonas. Publicação n. 2, anexo 5. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1910.
17 Relatório feito pelo Frei José Maria Macerata. Descrição das nações indígenas que residem na
província de Mato Grosso. Cuiabá, 1843. Caixa 119-Rolo 81. NDHIR / UFMT.
18 Rego, Maria do Carmo de Mello. Artefactos indígenas de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1899.
19 Schmidt, Max. Los Paressis. Revista de la Socied Cientifíca del Paraguay. Assunción, t. VI, n. 1, 1943.
20 Taunay, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. t. III. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 1924/1950.
21 Cf. Ferreira Neto, Edgar. História e etnia. In: Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas, Ronaldo (Orgs).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 315.
56
O que estes homens registraram a respeito dos Paresi tem por base o
relato de Antônio Pires de Campos, capitão paulista e um dos primeiros
sertanistas a elaborar notícias sobre as sociedades indígenas na parte oeste
22 Galetti, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas represen-
tações sobre o Mato Grosso. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 51.
57
das terras em conquista. Seus escritos, segundo Jaime Cortesão, “foram en-
tregues ao padre Diogo Soares, naturalista e cartógrafo, um dos padres mate-
máticos (astrônomos) contratados por João V a partir de 1722 para refinar a
cartografia na América Portuguesa”. Esse texto era confidencial, pois apre-
sentava elementos para negociações sobre os limites dos domínios ibéricos
na América do Sul23.
Desde os primeiros tempos da colonização, os agentes nestas terras
enviavam notícias ao rei de Portugal. Os mapas eram feitos, as informações
eram passadas, e para um melhor cumprimento desses objetivos o rei de
Portugal proveu de especialistas suas Academias, no intuito de aparelhar os
conhecimentos sobre a terra em conquista. Antônio Pires de Campos muito
incentivou, através de seus escritos, as expedições no exercício da explora-
ção geográfica pelo interior do Brasil. Assim, também Antônio Rolim de Mou-
ra Tavares escreve ao rei de Portugal informando sobre as sociedades indíge-
nas nesta área, chamada de parte mais central da América do sul24, manten-
do-o informado sobre as especificidades da natureza e da sociedade que se
formava nesta parte oeste da conquista. Sobre relatos como o de Antônio
Pires de Campos, Galetti considerou que eram
23 Cortesão, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Parte I, t. I (1695-1735). Rio de Janeiro,
Instituto Rio Branco, 1952, p. 299; e Siqueira, Elizabeth Madureira. Roças Paresi. Os Aliti (Paresi): uma
tentativa de recuperação histórica. Cuiabá: UFMT, 1993. (Mímeo). Na perspectiva historiográfica, a
produção de Siqueira inicia a temática dos estudos sobre os índios Paresi na UFMT.
24 Cf. Rosa, 1996.
25 Galetti, 2000, p. 52.
58
(...) este gentio feminino é o mais parecido que se tem visto porque
são muito claras e bem feitas de pé e perna, e com todas as feições
perfeitas, e tão ágeis e habilidosas que nada se lhes mostra que não
imitem com a melhor perfeição, e o mesmo se acha nos homens.28
O trabalho destas mulheres também foi notado por sua beleza e perfei-
ção. As índias Paresi, segundo Pires de Campos, tecem panos
Com respeito à caça, que também usavam para o seu sustento, Cam-
pos descreve os Paresi como muito habilidosos, e donos de técnicas singula-
28 Ibidem, p. 188.
60
res: “usam [...] cercar de rio a rio o campo, entre esta cerca fazem muitos
fogos, em que caçam muitos veados, emas, e outras muitas mais castas […]”.
Habilidade também não lhes faltava na confecção de apetrechos de guerra:
“as suas armas são os arcos e flechas e usam também de uma madeira muito
rija, e dela fazem uma folhas largas que lhes servem de espadas, e também
têm suas lanças mas pequenas, que com elas defendem [...]”29.
Os Paresi tinham suas crenças, e como idólatras de algumas imagens foram
percebidos pelos sertanistas no exercício da superioridade cultural-religiosa:
(...) estes tais têm uma casa separada com muitas figuras de vários
feitios, em que só é permitido entrarem os homens, as tais figuras são
mui medonhas, e cada uma tem sua buzina de cabaça que dizem os
ditos gentios, serem das figuras, e o mulherio observa tal lei, que nem
olhar para essas casa usam, e só os homens se acham naqueles dias
de galhofas, e determinados por eles em que fazem suas danças e se
vestem ricamente.30
A alusão às vestes deixa claro o uso de roupas, ainda que poucas: “[…]
os trajes ordinários deste gentio é trazerem os homens uma palhinha nas
partes verendas, e as mulheres com suas tipóinhas a meia perna”30.
A respeito dos ornamentos usados pelos chefes Paresi e do fabrico de
alguns instrumentos de uso cotidiano, relata Pires de Campos:
Tantas qualidades, e grande parte delas assim identificadas por sua se-
melhança com a cultura do colonizador, culminam na conclusão de que os
Paresi apresentavam melhores condições do que outros “gentios” de se con-
verterem ao catolicismo, e por isso, apesar de reconhecer a sua natureza
indígena, Pires de Campos depositava esperança neles:
(...) são os que me parece se acharem mais hábeis entre todos os mais
para se instruirem na fé católica, havendo pregadores evangélicos,
que lha vão ensinar, e suposto que estes gentios de sua natureza são
bandoleiros e pouco constantes, como a experiência tem mostrado
que preservaram na idolatria se deve esperar que a misericórdia divi-
na há de permitir que algum abraçe tanta multidão de peões nossa
santa fé católica romana, como se espera em Deus o permita assim
para maior glória sua, honra e crédito da nação portuguesa, e exten-
são dos domínios de S. Majestade.31
Este rio Paraguay ainda me parece maior que o Rio Grande: é cerca-
do todo de matos, tem muitas ilhas, sangradouros, e bahias dilata-
das. Quasi no meio que o navegamos se divide em dois caminhos; o
do lado direito, que é um dos sangradouros, e se chama Xiunés, e do
lado esquerdo, que é o Madre; ambos se seguem, mas por estes só
navegam bastantes dias os que sahem do Cuyabá à conquista do
gentio Parassis e Mayborés, até encontrar o rio Cepotuba, que entra
no Paraguai pela parte esquerda: navegam por este acima, e depois
d’alguns dias de viagem, dá nos alojamentos dos sobreditos gentios, e
tyrannica e barbaramente os captyvam.32
É gentio que não faz a alguem; vivem quietos nas suas roças que
plantam e cultivam como os brancos; são fracos e inhabeis para a
guerra, mas nem por isso deixam de ser engenhosos, e de rara habi-
lidade para o mais (...).32
31 Ibidem, p. 189.
32 Camello, 1975, p. 12.
62
35 Ibidem, p. 24.
36 Ferreira Neto, 1997, p. 318.
37 Almeida, 1997, p. 35.
64
(...) Os índios Paresi são uma tribo de índio mais... bom do que
outros. Não fazem mal uma ao outro, tem o coração bom, essa coi-
sas. Agora: os Kabixi são diferentes, Kabixi faz mal, mata os outros,
como têm matado diversa vezes, mataram muito a nossa gente (...).43
43 Machado, Maria de Fátima Roberto. Índios de Rondon . Rondon e as Linhas telegráficas na visão os
sobreviventes Waimare Kaxinite, grupos Paresi. Rio de Janeiro, 1994. Tese (Doutorado em Antropolo-
gia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 90.
44 Badariotti, 1898, p. 81.
45 Rondon, 1910, p. 39.
46 Relatório feito pelo Frei José Maria Macerata. Descrição das nações indígenas que residem na província
de Mato Grosso. Cuiabá, 1843. Caixa 119-Rolo 81. NDHIR / UFMT.
67
50 Costa, Romana Maria Ramos. Cultura e contato: estudo da sociedade Paresi no contexto das relações
interétnicas. Rio de Janeiro, 1985. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 65.
69
Rio Sepotuba:
ambiente de poaia e de terra fértil*
Carlos Edinei de Oliveira**
Resumo Abstract
Este artigo procura destacar parte da história cons- This article searches to call attention for a built his-
truída no ambiente do rio Sepotuba, um dos prin- tory in the Sepotuba’s riverside, on of the most
cipais afluentes do rio Paraguai, mostrando aspec- important tributary of Paraguay river, it will show
tos como a mata da poaia, a fertilidade do solo e de aspects as poaia’s jungle, soil fertility and its jungle,
suas matas ciliares, a abundância de madeiras no- the abundance of the wood, the coffee’s production
bres, a produção do café e de outros produtos, and the others agricultural cultures, cause of this is a
bem como a festa da fertilidade realizada pelos party to celebrate the fertility realized by the agricul-
lavradores do município de Tangará da Serra, de- tural workers in the municipal district by Tangará da
nominada de Feira de Amostras. Serra, called Feira de Amostras (Sample’s Market).
Palavras-chave: Keywords:
rio Sepotuba – poaia – Tangará da Serra Sepotuba river – poaia – Tangará da Serra
* Partes deste texto estão em Oliveira, Carlos Edinei de. Famílias e natureza: as relações entre famílias
e ambiente na construção da colonização de Tangará da Serra-MT. Cuiabá, 2002. Dissertação (Mestra-
do em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso.
** Mestre em História pela UFMT, professor da Faculdade de Educação de Tangará da Serra – ITEC e da
Faculdade de Direito de Tangará da Serra – UNICEN.
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
74
1 Volpato, Luiza Rios Ricci. Cativos dos sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888. São
Paulo: Marco Zero / Cuiabá: EdUFMT, 1993, p.191-192.
75
2 Daniel Mantenho Cabixi. Entrevista concedida pelo administrador Executivo Regional da FUNAI de
Tangará da Serra, em 21 de setembro de 2001.
3 José Soares da Silva. Entrevista concedida ao programa Bastidores da História, edição especial em
homenagem a Tangará da Serra, apresentado por Sílvio José Sommavilla. Tangará da Serra, 12 de
maio de 2001.
76
4 Roquette Pinto, E. Rondônia. 6 ed. São Paulo: Nacional / Brasília: INL, 1975. p. 66.
5 O Album Gráphico do Estado de Mato Grosso foi impresso em Hamburgo, com 532 páginas, organizado
por comerciantes de Corumbá (cidade do atual Estado do Mato Grosso do Sul) no ano de 1914 e
publicado com o objetivo de fazer propaganda das riquezas existentes em Mato Grosso na tentativa de
eliminar os preconceitos de isolamento do Estado.
77
6 Álbum Gráfico do Estado de Mato Grosso (EEUU do Brasil). Corumbá / Hamburgo: Ayala & Simon
Editores, 1914, p. 259.
7 Estas informações podem ser conferidas e ampliadas através do site Esalq/USP-Plantas Medicinais.
Disponível pela internet em http://www.ciagri.usp.br/planmedi/planger,htm. Acesso em 15 dez. 2001.
Quanto aos aspectos demográficos da poaia, ver Silva, Valdethe Prado da. Aspectos demográficos da
cephaelis ipecacuanha em Mato Grosso. Cuiabá, 1993. Monografia (Conclusão de Curso em Engenharia
Florestal) – Faculdade de Engenharia Florestal, Universidade Federal de Mato Grosso.
78
8 Thieblot, Marcel Jules. Poaia, ipeca ipecacuanha: a mata da poaia e os poaieiros do Mato Grosso. São
Paulo: Escola de Folclore/Livramento, 1980. p. 16.
9 Ibidem, p. 15.
79
10 Segundo Jovino S. Ramos, (Barra do Bugres: história, folclore, curiosidades. Cuiabá: s.ed., 1992), a
concentração de alcalóides da poaia de Barra do Bugres alcançava 2,0%, enquanto as de outras regiões
do Brasil tinham uma concentração de 0,02% a 0,8% em seus teores, daí a preferência pela poaia desta
região no comércio de exportação (p. 16). A importância da poaia e da seringa para Barra do Bugres
pode ser observada no brasão do município, exposto em sua bandeira. Um pé de poaia está entre duas
seringueiras.
11 Miranda, Graci Ourives de. A poaia: um estudo em Barra do Bugres. Cuiabá, 1983. Monografia (Especi-
alização em História e Historiografia de Mato Grosso) – Universidade Federal de Mato Grosso, p. 20.
12 Ibidem, p. 21.
13 É referência para este estudo o texto Jesus, Antônio João. Os Umutina. In: Dossiê Índios de Mato
Grosso – OPAN/CIMI-MT. Cuiabá, 1987.
80
14 Costa, Romana Maria Ramos. Cultura e contato: um estudo da sociedade Paresí, no contexto das relações
interétnicas. Rio de Janeiro, 1985. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, v. 2. p. 219.
81
15 Siqueira, Elizabeth M. et al. O processo histórico de Mato Grosso. Cuiabá: Guaicurus, 1990. p. 6.
16 Cunha, Adolpho Jorge da. O poaieiro de Mato Grosso. São Paulo: Resenha Tributária, 1981.
82
O convívio com uma fauna imensa e por poaiar nas matas ciliares de
grandes rios como Sepotuba, Cabaçal, Branco, Vermelho, Paraguai e Galera, a
carne de animais, o mel e o peixe faziam parte da alimentação dos poaieiros,
sendo comidos com os alimentos básicos, arroz, feijão, carne seca e farinha.
O poaieiro realizava duas refeições, uma pela madrugada, chamada de “que-
bra torto” e a segunda no início da noite, com os mesmos alimentos. Não
18 Para Deleuze e Guattari, “O espaço liso é o espaço nômade, onde se desenvolve a máquina de guerra
e o espaço estriado é o espaço sedentário, espaço instituído pelo aparelho de Estado” (Deleuze, Gilles;
Guattari, Félix. Mil platôs. v. 5. Capitalismo e esquisofrenia. São Paulo: Ed. 34,1996, p. 179).
19 Miranda, 1983, p. 36.
20 Santos, Vivaldino Gomes. Entrevista com Armindo Barbosa da Costa poaieiro morador de Nova Olím-
pia. Tangará da Serra-MT, 2001. Monografia (Metodologia do Ensino de Ciências Humanas) – Curso de
Pedagogia, Faculdade de Educação, Instituição Tangaraense de Ensino e Cultura.
84
Foi muito difícil porque nós não tínhamos o costume de andar na mata,
o medo era maior que o interesse de arrancar poaia, mas nós não que-
ríamos ficar sozinha em casa, então entravamos na mata junto com
marido, pai, irmãos, primos a família toda. No primeiro dia que nós
entramos na mata, nós tínhamos medo de se perder, mas algumas pesso-
as indicaram para nós a bússola, tipo de um reloginho, você coloca no
21 Santos, Vivaldino Gomes. Entrevista com Antônio Chamameu Espírito Santo poaieiro de Nova Olím-
pia. Tangará da Serra, 2001. Monografia (Metodologia do Ensino de Ciências Humanas) – Curso de
Pedagogia, Faculdade de Educação, Instituição Tangaraense de Ensino e Cultura.
85
cabo do saraquá que ele está enterrado no chão ela aponta certinho e
você vai entrando pro nascente ou pro poente ela indica o certinho
aquele ponteirinho. O que levou a gente a explorar a poaia foi porque
aqui na nossa região era só o ramo que dava pra ganhar dinheiro, e se
plantasse arroz e feijão não tinha saída para vender. E se você não
arrancasse a poaia você não tinha como comprar outra alimentação.22
22 Santos, Vivaldino Gomes. Entrevista com Maria Benoilza Alves – Poaieira de Nova Olímpia. Tangará da
Serra, 2001. Monografia (Metodologia do Ensino de Ciências Humanas) – Curso de Pedagogia, Faculda-
de de Educação, Instituição Tangaraense de Ensino e Cultura.
23 O patrão da poaia quase sempre fazia o jogo político local, tornando-se prefeito, comerciante e
exportador. A relação de compadrio se realizava quando o patrão tornava-se padrinho de batismo ou de
casamento dos filhos ou filhas de poaieiros.
24 Miranda, 1983, p. 32.
86
26 Precária a situação da indústria extrativa da ipecacuanha no Estado de Mato Grosso. Revista Brasil-Oeste,
São Paulo, n. 13, maio 1957.
88
A fertilidade do solo
27 SITA - Sociedade Comercial Imobiliária de Tupã para a Agricultura, colonizadora privada responsável pela
colonização de Tangará da Serra-MT.
28 Costa, Maria Luiza Fregadolli et al. Iniciação política de Tangará da Serra-MT. Monografia (curso de Metodo-
logia do Trabalho Didático nas áreas do Conhecimento). Tangará da Serra: SEE-MT, agosto 1999, p. 16.
29 Badariotti, Nicolao. Exploração no norte de Matto Grosso: região do Alto Paraguay e planalto dos Parecis.
Apontamentos de História Natural, Etnographia, Geographia e impressões. Cuiabá: Biblioteca Katuku-
losu - Missão Anchieta, 1898, p. 53.
89
35 Couto, Osmair. As relações trabalhistas durante o ciclo cafeeiro na região de Tangará da Serra, nas
décadas de 70 e 80. Cuiabá, 1999. Monografia. (Especialização em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Mato Grosso, p. 17.
36 Kunraht, José Aleixo. Recenseamento. Prelazia de Diamantino. Diamantino, 1966. Arquivo da Missão da
Prelazia de Diamantino.
37 Máquina manual usada para plantar arroz e milho.
38 As qualidades de arroz usualmente plantadas em Tangará da Serra eram: bico-preto, bico-ganga, iac, iac2,
amarelinho, amarelão, cana-verde e arroz-preto.
93
39 A lavoura branca para os lavradores tangaraenses é aquela em que o processo de planta e colheita é
anual, como o arroz, feijão e milho, diferenciando-se da produção perene como a do café.
40 Leão, Regina Machado. A floresta e o homem. São Paulo: Edusp / IPEF, 2000, p. 175-176.
95
dos migrantes de São Paulo e Paraná. Este contrato entre meeiro e proprietá-
rio incluía desde o trabalho da limpeza do terreno até a colheita do produto:
ário e vendia o produto para Cuiabá ou para outros Estados. Muitas pessoas
se tornaram comerciantes de café, pois o produto era muito rentável, espe-
cialmente para quem comercializava.
O café, que atraiu um grande fluxo populacional para Tangará da Serra a
partir da década de 1980, começou a produzir refluxos. A falta de política do
governo que atendesse aos interesses dos pequenos proprietários fez com
que os pequenos proprietários e meeiros abandonassem a lavoura de café; os
sitiantes venderam suas propriedades ou transformaram-nas em pastagens.
Vários são os depoimentos de lavradores que destacam o desestímulo
com a produção de café, por falta de incentivo do Instituto Brasileiro do
Café – IBC; segundo eles, o IBC dizia que o café devia ser plantado em
locais de altitudes acima de 500 metros, quando em Tangará da Serra a
altitude média é de 452 metros.
Os lavradores afirmam que Tangará da Serra era um ambiente bom
para o café, pois deu boas safras na década de 1980; o regime de chuvas era
bastante regular, facilitando o cultivo do grão. Outros lavradores que acredita-
ram na propaganda da “capital do café” relatam que Tangará da Serra não é
uma boa região para o café, pois existem apenas manchas de terras boas
para o plantio no vale do Sepotuba, mas a grande maioria tem um subsolo
muito pedregoso, dificultando o crescimento da raiz do café, que é muito
comprida e não pára de crescer. Este problema físico da planta não foi a
grande causa da decadência da cafeicultura; a ausência de uma política eco-
nômica no Brasil que beneficiasse o pequeno produtor rural e os sem-terras
foi mais rápida na eliminação das esperanças daqueles que retiravam da sua
terra ou de terras alheias a sobrevivência de suas famílias.
A festa da fertilidade
42 Gabriel Constâncio Ramos, em entrevista para o autor. Tangará da Serra, 30 de maio de 2001.
98
43 Deve ser destacado que em 1970 o governo federal cria o Plano de Integração Nacional – PIN, com o
objetivo de “povoar” a Amazônia, tentando “resolver” parte do problema do Nordeste para fortalecer a
política econômica do “milagre” brasileiro. Outras questões podem ser observadas em Skidmore,
Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Trad. Mário Saviano Silva. São Paulo: Paz e Terra, 1988. E também
em Silva, Joana Aparecida Fernandes. Política indigenista oficial e ocupação de Mato Grosso – 1970-
1986. In: Índios em Mato Grosso. OPAN / CIMI-MT. Cuiabá, 1987.
44 Festa em Tangará da Serra terá participação de pecuaristas goianos. Folha Matogrossense, Cuiabá, 27
maio 1970, p. 1.
45 Maria Beazóli Rodrigues, em entrevista ao autor. Tangará da Serra, 11 de maio de 1991.
99
Resumo Abstract
O presente estudo apresenta de forma genérica os This study presents in a general way the geogra-
aspectos geográficos e históricos de sítios arqueo- phic and historical aspects of the arqueological
lógicos do Mato Grosso e de suas manifestações sites of Mato Grosso and of its stone manifestati-
rupestres, constituindo uma das etapas que antece- ons, constituting one of the phases that precede
dem a análise semiótica das manifestações do sítio the semiotic analysis of the manifestations of the
arqueológico Veado Perdido, localizado na cidade arqueological site Veado Perdido, located in the
de Juscimeira, próximo ao Centro Geodésico da town of Juscimeira, next to the Geodesic Center
América do Sul. Dado a premência de reconheci- of South America. The urgency of the recognition
mento da identidade do objeto que impõe um con- of the identity of the object imposes a direct
tato direto com as manifestações em estado bruto e contact with the manifestations as found in its
com o seu meio, fez-se necessária uma exploração environment, an exploration in loco was necessa-
in loco, realizada em outubro de 1998. Nessa opor- ry, carried out in October of 1998. In this oppor-
tunidade, foram reavaliadas nos diversos sítios visi- tunity, the previous analysis were reassessed in
tados as análises anteriores, e, ainda, realizados novos the various locations visited, and also, new recor-
registros através de fotos e filmagens, incorpora- ds were carried out through photos and filming,
dos posteriormente na dissertação de mestrado in- later incorporated, in the Master’s Dissertation with
titulada Sítio arqueológico Veado Perdido, Mato the title “Sítio Arqueológico Veado Perdido, Mato
Grosso: engendramentos do plano de expressão, Grosso: Engendramentos do plano de Expressão”,
defendida na PUC/SP em novembro de 1999. presented at PUC/SP, in November of 1999.
Palavras-chave: Keywords:
manifestações rupestres – sítios arqueológicos – stone manifestations – arqueological sites –
Mato Grosso Mato Grosso
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
100
1 “[...] Si l’on veut se faire une idée de ce qu’est la préhistoire, il faut imaginer la terre comme un livre dont
les objets forment le texte. Ce texte a un sens pour celui qui peut comprendre tout: la position des
objets, les débris d’animaux ,la nature du sol, les mille petits traces dont chaque jour nous découvrons
la signification nouvelle. Or, comme l’a dit un grand préhistorien, “ce livre présente a particularité de ne
pouvoir étre lu qu’á condition de le détruire”, et le préhistorien qui pioche pour enrichir sa collection
est comme un homme qui découperait dans un manuscrit précieux les lettres qui lui plairaient, les O ou
les Z, et qui prétendrait ensuite, en les collant sur des feuilles de papier, avoir fait oeuvre scientifique
[...]” (apud Pallestrini, Luciana; Morais, José Luiz de. Arqueologia pré-histórica brasileira. São Paulo: USP,
Fundo de Pesquisa, 1982, p. 8).
101
4 Vialou, D.; Vilhena-Vialou, A. Préhistoire au ceour du Brésil. Archeologia, n. 213, 1986, p. 48.
5 Baldus, H. As pinturas rupestres de Sant’Anna da Chapada (Mato Grosso). Revista do Arquivo Municipal,
São Paulo, Departamento de Cultura, n. XL, 1937, p. 5-6.
6 Dicionário Prático Ilustrado. Porto: Lello & Editores, 1974, p. 31.
104
7 Jundi, A. C. A. La problematique de l’apport ethnographique pour l’etude de l’art rupestre au Brésil, Paris:
Museé National d’ Histoire Naturelle, 1992, p. 5.
105
Penso que tem nostalgia de mar estas garças pantaneiras. São viúvas
de Xaraés? Algumas coisas em azul e profundidade lhes foi arrancada.
Há uma sombra de dor em seus vôos. Assim, quando vão de regresso
aos seus ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma versão que eu sei. É a de não ser ela
uma ave canora. Pois que só grasna – como quem rasga uma pala-
vra. (Manoel de Barros)11
11 Barros, Manoel de. O livro de pré-coisas. Roteiro para uma excursão poética no Pantanal. 2. ed. Rio de
Janeiro / São Paulo: Record, 1997, p. 93.
108
nal é formada pela floresta equatorial, que integra a floresta amazônica. So-
bre a parte superior dos chapadões, estendendo-se para o norte, predomina,
contudo, o cerrado.
A oeste da cidade de Rondonópolis, distribuídos por uma área acidenta-
da e de densa vegetação de mais ou menos 500 quilômetros quadrados, faz-
se presente um conjunto de aproximadamente 600 sítios rupestres, a maio-
ria dos quais já inventariados pela Missão Franco-Brasileira formada por pes-
quisadores do Muséum National d’Histoire Naturelle, de Paris, e do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Distribuem-se esses
sítios ao longo das duas margens do rio Vermelho, na micro-bacia de Ferraz
Egreja, no local conhecido como Cidade de Pedra, Fazenda Verde, na micro-
bacia dos abrigos Vermelhos e, rumando para o sudoeste, nas proximidades
do Pantanal. Outras localidades arqueologicamente relevantes são Jaciara,
Juscimeira e Rosário Oeste.
A datação, feita por seqüência estratigráfica, no abrigo Ferraz Egreja, indi-
ca que a ocupação humana e as manifestações parietais remontam a mais ou
menos 4.600 anos atrás; as séries líticas dos abrigos Vermelhos e do abrigo
Ferraz Egreja, bem como a cerâmica neles encontrada, sendo essas últimas de
mais ou menos 1.250 anos antes do presente, apresentam convergências que
podem, ao ver dos arqueólogos12, constituir “testemunhos de relações entre os
ocupantes ou mesmo de um extenso povoamento na região”.
O relatório de Vialou13 descreve a temática da região do ponto de vista
morfológico, como manifestações cujas representações de seres do mundo
natural buscam a reprodução pictórica destes e manifestações cujas repre-
sentações de seres do mundo natural são abstratas, mas que, a julgar pelas
práticas dos índios de hoje, podem igualmente simbolizar animais e seres
humanos. O primeiro tipo de manifestações aproxima-se, assim, do figurati-
vo, sendo o segundo composto primordialmente por figuras geométricas.
Do ponto de vista da técnica, denominam-se “pinturas”, em conformi-
dade com a prática arqueológica, representações que se caracterizam por
recobrir a superfície rochosa com pigmentos. O termo “gravuras” recobre
inúmeras expressões da arte rupestre que tomam a forma, no nosso caso, de
14 Ibidem, p. 208.
110
tos, duas figuras quadrangulares formadas por barras e duas cruzes associ-
adas em pares, uma delas visível apenas sob luz ultravioleta – que são
únicas em todo o sítio. As pinturas e gravuras cobrem três quartos do
abrigo, formando um conjunto que vai do solo a, em certos pontos das
paredes verticais, quatro metros de altura, o que faz pensar terem os
“autores” das inscrições precisado contar com alguma protoforma de es-
cada para alcançar os pontos mais altos das paredes.
As paredes rochosas apresentam modificações superficiais de ori-
gem físico-química e biológica (insetos e vegetais). As paredes, um tanto
rugosas e granulosas, mostram, dado o seu estado, que a conservação
dessas manifestações está correndo risco. Os temas dessas manifestações
são basicamente estruturas geométricas cuja interpretação em termos de
objetos, zoomorfos, fitomorfos ou de antropomorfos, talvez resulte da
imposição ao objeto daquilo que o analista quer ver. Há contudo uns
poucos desenhos reconhecíveis nesses termos, como o de uma mão, que
apresentam figuras que sugerem objetos do mundo. Há um certo número
de gravuras sobrepostas de modo parcial às pinturas, apresentando estas
uma tendência mais figurativa: trata-se de pegadas de três dedos de aves,
de objetos semelhantes a máscaras e de formas livres de representação
de figuras antropomorfas.
É imensa a diversidade de manifestações, muito embora predomine a
repetição de determinadas formas, como figuras circulares encaixadas que
lembram círculos simples, que podem tanto conter raios como apêndices;
retângulos verticais vazios, retângulos de fechamento mais ou menos de-
senvolvido, em alguns casos horizontais; figuras formadas por pontos e
figuras lineares. As manifestações do sítio acham-se pintadas ou gravadas
em grandes superfícies mais ou menos planas, de modo geral inclinadas no
sentido descendente.
A disposição das quase 300 figuras ali existentes parece indicar uma
seleção por parte dos seus “autores”: trata-se de painéis compostos de
modo a tornar discerníveis seus limites, havendo do mesmo modo inúme-
ras ligações entre tipos distintos de figuras, ligações cuja identificação
mais precisa é prejudicada pela má conservação do suporte. A distribui-
ção das gravuras e das pinturas ocorre da seguinte maneira: enquanto as
pinturas se fazem presentes em toda a superfície em que há manifesta-
ções, as gravuras estão principalmente na parte sudoeste ou oeste do
morro, em que se localiza o painel central, sobrepondo-se às pinturas e
chegando mesmo a destruí-las.
112
Foto: Andrade Júnior, 1998.
Os abrigos Vermelhos
O abrigo dos Selos, com pouco mais de 2,5 metros de altura acima do
solo, situa-se num bloco isolado de arenito numa região da Fazenda Verde que
fica a oeste da sua sede e acima da Cidade de Pedra. Ele se torna visível já nas
proximidades da trilha por meio da qual se tem acesso aos abrigos Vermelhos,
os quais se encontram a mais ou menos 200 metros de distância dele.
O abrigo Alvorada
16 Badu, H. G. G. Étude de representations rupestres de l’Abri Alvorada: Mato Grosso. Paris: Museum
National d’Histoire Naturelle, 1992.
114
Foto: Andrade Júnior, 1998.
Mato Grosso. O ambiente que forma o seu entorno é uma zona de transição
na qual a vegetação do cerrado cede lugar à vegetação típica das planícies
inundáveis do Pantanal. O conjunto parietal deste sítio apresenta um rico
repertório de figuras pintadas, apresentando uma variedade de manifesta-
ções que vão de formas geométricas simples a zoomorfos e antropomorfos,
passando por elementos arcadeiformes e cruciformes, dentre outros. O sítio
– cuja primeira prospecção se deve ao senhor Adão Ferreira da Silva, que
dele fez registros fotográficos e no gênero de relevê – foi inventariado pelos
técnicos do IPHAN no ano de 1990, tendo sido estudado, em termos arque-
ológicos, pelos senhores Jum Okamura e Tomio Mizobe, mas não tivemos
acesso a documentos relativos a esse estudo.
Considerações Finais
Resumo Abstract
Este artigo aborda o discurso autonomista do nor- This theme intends to discuss Tocantins’ autono-
te de Goiás a partir do viés da identidade regional, mous speech from the regional identity, having as
tomando como referência as experiências políticas reference some testimony, that attest the shared
partilhadas por aqueles que habitaram o sertão de experiences by those who lived in the drylands of
Goiás, hoje Tocantins. Considera que a identidade Tocantins. It considers that the regional identity of
regional na fala das lideranças da região foi sendo Tocantins in the speech of the political leadership of
construída nos antecedentes históricos, a partir do the regions, is supported by the history of the
século XVIII, pela oposição econômica ao centro- settlement and economic occupation of Goiás
sul de Goiás. drylands, since the eighteenth century by the
economic opposition to the Center–south of Goiás.
Palavras-chave: Keywords:
identidade – sertão – Tocantins regional identity – Tocantins – autonomous speech
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
120
2 Azevedo, apud Lima, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan / IUPERJ, UCAM,
1992, p. 50.
122
3 Miranda, Orlando. A dialética da identidade em Ferdinand Tonnies. São Paulo: IEA-USP, 1992, p. 6.
123
4 Melo, Edmar Gomes. Não temos nenhuma identidade com vocês goianos. Revista Presença, Goiânia, 10
de set./1986, p.6.
5 Pollak, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, n. 10, 1992, p. 204.
124
6 Miranda, 1992, p. 6.
125
7 Lima, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM,1999, p. 60.
127
Resumo Abstract
Uma nova definição do timbre – enquanto pro- A new definition of timbre – while a sonorous
fundidade perspética sonora – como um percurso perspective depth – as a trajectory that has wide-
que ampliou as possibilidades dimensionais da ned the dimensional possibilities of music from a
música a partir da releitura dos parâmetros sono- rereading of the sonorous-musical parameters of
ro-musicais na música de concerto, onde o pro- concert music, where the process of (de)perception,
cesso (des)perceptivo, resultante deste novo resulting from this new focus and the utilization of
enfoque e da utilização do timbre na estrutura timbre in the structure of musical pieces, has beco-
das músicas, tornou-se o viés para o adentramen- me the sidewise doorway through which to pene-
to em uma realidade espaço-temporal multidimen- trate a multidimensional space-temporal reality that
sional que ultrapassa as fronteiras da tridimensio- goes beyond the borders of tridimensionality.
nalidade. A visão do semioticista Eero Tarasti a The vision of the semioticist Eero Tarasti concer-
respeito do tempo (espaço) musical e a leitura da ning musical time (space), and the reading of ritual
música ritual da etnia Bororo de Mato Grosso a music in the Bororo ethnicity in Mato Grosso from
partir destes preceitos espaço-temporais que these space-temporal precepts that open up new
abrem novos patamares no desvendamento do thresholds in unveiling the ceremonial-sonorous
devir cerimonial-sonoro. transformations is presented.
Palavras-chave: Keywords:
timbre – espaço-tempo – música – timbre – space-time – music – Bororo
semiose – Bororo
* Doutor em Estrutura Musical pela UNI-RIO, professor Adjunto de Composição, Música do Século XX e
Estética da Música da UFMT.
REV. TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS – PROG. DE PÓS-GRAD. EM HISTÓRIA – UFMT – V.4 – N.1 – JAN./JUN. 2003
128
Timbre e espacialização
1 Lévi-Strauss, Claude: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 76.
129
ação(sonora)/notação(musical) gesto(forma)/transmissão(ritual)
4 Povo indígena que habita, hoje, a região leste do Estado de Mato Grosso em cinco aldeias distintas
e que tem na complexa rede de encenações do ciclo funerário – que dura aproximadamente dois
meses – a maior expressão de sua cultura e o momento em que os ensinamentos são transmitidos aos
iniciados em uma egrégora que elimina a fronteira entre o mundo real (aldeístico) e o mundo virtual
(dos espíritos).
132
Tempo e espacialização
6 Dorfles, Gillo. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.134.
134
7 Einstein, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, c1916.
8 Na Teoria da Relatividade, a gravidade, que é a atração mútua de corpos dotados de massa, ou os
campos gravitacionais, quando da relação entre corpos maciços e de grandes proporções, é fator
determinante no processo de curvatura do espaço tridimensional e do espaço-tempo quadridimensio-
nal. Einstein diz que quanto mais massa maior será a curvatura, e que um espaço-tempo hiper curvo (e
igualmente hiper denso) aprisionaria a luz em seu interior, gerando o que posteriormente seria um dos
maiores mistérios da astrofísica: os buracos negros, ou os corpos infinitamente densos que interrom-
pem o movimento da luz e do próprio tempo.
9 Representação simbólica do espaço (tempo?!) gerador do mundo dos fenômenos, em consonância com
o “vácuo vivo” da física quântica, inundado de partículas subatômicas, ou entidades virtuais, em um
processo inexplicável de criação e destruição. O vácuo (tridimensionalmente destituído de vida) se
mostra pleno de ocorrências e absolutamente orgânico em um mundo regido pelo continuum espaço-
tempo, que nunca cessa.
10 Langer, 1989, p. 125.
135
Não-Ser
Âmbito da Multidimensionalidade
Tempo Experimentado/Amorfo
Ser Figura 1
cores
Harmonia Timbre atmosferas
CONTINUUM
Linhas Pulsado
Esta nova percepção triádica é apontada por Adorno como uma ampli-
ação da espacialidade musical14. O timbre definindo colorísticamente as so-
noridades e instaurando uma nova profundidade ao tecido musical, com a
utilização consciente desta possibilidade que ampliou o espectro tridimensi-
onal das obras, aliado à horizontalidade e verticalidade na formação da tríade
dimensional/musical.
Sobre a importância do timbre como uma “nova” possibilidade de am-
pliação dos horizontes sonoros no início do século XX, Gerhard Nestler afir-
ma que “da mesma maneira, após um preâmbulo romântico, deve-se ao
nosso século [XX] a redescoberta do timbre. A inclusão do ruído pela primeira
vez torna o timbre universal. Ao mesmo tempo, o espaço sonoro anímico
abre-se numa escala até então inimaginável”15.
Nas obras de Anton Webern, como um marco desta nova ocupação,
começa-se a perceber o germe da expansão temporal devido à distribuição
16 Haja visto o novo posicionamento do arsenal percussivo nas obras deste século e da própria importân-
cia da percussão, como naipe, nas orquestras de hoje. O posicionamento do timbre como material
gerador conferiu à percussão um status de naipe de ponta. Uma verdadeira reversão hierárquico-
instrumental, não só na concepção das obras, mas no corpo orquestral, como organismo.
17 Wisnik, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
140
partir da escrita), onde cada vez mais a noção de tempo, como indicadora de
pulso, quase deixa de existir. As indicações, ainda quando em notação con-
vencional ou com resquícios da mesma, tendem a uma performance que
permite uma flexibilidade tal que o resultado sonoro gira sempre em torno
das possibilidades individuais de cada receptor, seja ele intérprete ou ouvin-
te, onde as variantes visuais impostas à escrita mostram-se em estreita sinto-
nia com os resultados sonoros cada vez mais distanciados da noção de tempo
cronométrico.
Rosen18 detecta uma variante na noção de tempo (que automaticamen-
te se reflete nas performances), no que concerne a uma aceleração progres-
siva que vai imantando as obras no decorrer dos séculos, onde cada período
imprime uma nova leitura para os códigos estabelecidos pela notação.
Na verdade, um tempo (pulsado) que se distende e se torna cada vez
mais distante dos referenciais cronométricos, em função do estabelecimento
de padrões de escrita, onde a rigorosa adição, multiplicação e divisão de
intervalos temporais deixa de exercer um papel de fundamental importân-
cia na criação e manutenção do fluxo das obras, onde, na maioria dos casos,
acaba sendo totalmente abolida.
Percebemos que na performance, pela via da semiótica da música,
sujeito e objeto exercem um papel central, onde a obra musical (micro-
universo), como uma partícula atomizada, tem seu tempo próprio situado no
interior de uma subjetiva e individual consciência musical (macro-universo),
como percepção individual que se expande, ambas imantadas pelo conti-
nuum, em constante mudança (Fig. 4).
CONTINUUM
Concepção Audição
Performance
OBRA INDIVÍDUO
micro-universo macro-universo
Figura 4
Desta forma fica estabelecida a relação ternária (ou três pólos da triparti-
ção) sobre dois eixos de diferentes temporalidades e um de conexão, ou eixo
perceptivo, permeando-os. Sobre isso, Tarasti comenta o seguinte: “Tempo
nunca pode ser tomado como um objeto estacionado a nossa frente; tempo,
implica no mais íntimo mecanismo de nosso pensamento, e não pode mesmo
ser pensado como guardião da temporalidade”19. Ou seja, uma definição bem
clara – e em total consonância com a noção de tempo em Heidegger – da
distinção entre tempo, como um conceito amplo, imensurável; e temporal,
como um afluente transitório que passa no decurso do tempo.
Ouspensky estabelece uma fronteira entre a temporalidade e o sentido
espacial, independente da noção de tempo absoluto, quando diz que
(...) o sentido temporal é a sensação dos momentos que mudam (...) o
sentido temporal é, em substância, o limite ou a superfície do nosso
sentido espacial (...) através da nossa sensação temporal percebemos,
obscuramente, as novas características do espaço que se estende para
fora da esfera das três dimensões.20
que tem o devir como ápice deste corpo conceptivo e o continuum como
resultante destas conexões, da seguinte forma:
CONTINUUM
sobremodalização I sobremodalização II
que, nas duas leituras do Kare e Paru e dos cantos utilizados como alicerce
da Trilogia, o grau de improvisação e criação de novos percursos musicais e
estróficos são de uma importância crucial, confirmando o terceiro afluente
temporal, ligado à memória. A memória não somente repetitiva, mas tam-
bém criativa.
A partir de eventos que se repetem, cria-se um estado interno de orde-
nação, partindo de novas informações que chegam ao ouvido e são armaze-
nadas na memória, com referenciais absorvidos anteriormente. Desta forma,
duas expectativas passam a gerar subsídios perceptivos. Primeiro, uma sen-
sação de fluxo no ouvinte, mas sem a noção de direcionamento, de continui-
dade; e, segundo, um estado de (pre)sentimento do fluxo, como uma reto-
mada do viés imprimido pela memória.
Nas performances realizadas durante o ciclo funerário Bororo, nós, como
forasteiros, percebemos o imenso leque desperceptivo temporal, através de
informações sonoras que nos remetem a outras paragens similares, pelas
atmosferas criadas durante o percurso musical/ritual – em seis ou oito planos
distintos – e com um referencial visual – a partir das representações visuais –
que muito se assemelham às escritas de obras deste século.
Ao passarmos de uma audição do ritual para a outra, ou seja, após o
translado do código sonoro ao visual e a criação dos gráficos planimétricos
– para a percepção dos planos que ocorrem nas diferentes performances –
automaticamente criamos uma expectativa com relação ao desenrolar so-
noro, pelos referenciais anteriores arquivados na memória; como no caso
dos cantos cíclicos (Marenaruie e Roia Kurireu) que são executados em
vários momentos do ciclo com variantes sutilíssimas, e as diferentes execu-
ções de um mesmo canto em duas aldeias distintas – no caso do Kare e
Paru (canto da pesca) – onde a sensação de continuidade é alterada, ape-
sar do mesmo pulso imprimido nas duas execuções. Esta variante percep-
tiva se dá não só pelas conexões estróficas que diferem durante o translado
ritual/musical, pelas diferentes atuações planimétricas, pelas nuances tím-
bricas imprimidas, mas principalmente pela expectativa projetada pelo
convívio com a primeira audição.
O segundo patamar estabelecido por Tarasti, o da macro-temporalida-
de, diz respeito à noção de tempo, conectada não mais à música como vari-
ante perceptiva, intersticial, e sim à egrégora musical enquanto confluência
de poéticas. A música através da história e os modelos que são construídos
na formação da estrutura desta história. Como mostra o quadro a seguir:
146
TEMPO
macro-temporalidade egrégora musical
Figura 6
23 Hassan Hama; Damisani Ki-Zerbo. Metodologia e pré-história da África. Porto Alegre: Movimento, 1988.
148
Figura 8
(Processo integrado - intercâmbio do eixos)
- real e virtual simbiotizados -
cal, mas do tempo que (pré) existe na memória perdida dos homens.
Após constatarmos a enorme luta humana em desvendar os mistérios do
tempo e suas ramificações – enquanto fenômeno multidimensional que tem o
poder de transportar as realidades tridimensionais a uma outra esfera de existên-
cia como um continuum irretornável – e adentrarmos em suas conseqüências
no âmbito musical, como manifestação e percepção geradora, concluímos que,
apesar de todos os caminhos apontarem para o viés da “noção de tempo” como
uma nova abordagem do modelo perceptivo (e todos os seus afluentes), o
vislumbre deste estado temporal, ou fluxo imanente que perpassa a tudo e a
todos, e que, inegavelmente, causa impressões distintas em nós, seres tridimen-
sionais, resume-se a uma pré-percepção do espaço-tempo quadridimensional.
As teorias apontam para um vislumbre que se descortinará com a mate-
rialização destas possibilidades, enquanto atualidades, e os esboços destas
tentativas em todas as áreas – inclusive a musical, com as inúmeras obras que
tentam transpor os limites da tridimensionalidade – “soam” como um estado
de preparação para a percepção deste campo de tempo.
Entre os Bororo, e a partir da leitura do ritual funerário, perceberemos
não só a complexidade da estrutura interna (musical/ritual) como um proces-
so desperceptivo, ou seja, que vai gradativamente se tornando não percep-
tível aos referenciais sensoriais tridimensionais, como também a nova reali-
dade espaço-temporal que se instaura durante todo o ciclo funerário para os
nativos, totalmente desvinculada das amarras da previsibilidade. Uma busca
inconsciente de um tempo não-presente, materializado através do ritual, como
uma força onipresente que mantém a estrutura mítica da etnia e os laços
internos hierárquicos, em um novo espaço que surge durante este período,
em função do contato com o mundo dos seres imemoriais.
Cassirer24 define bastante bem esta incognoscibilidade espaço-temporal –
sintetizando a idéia inicial da Teoria da Relatividade, que passou a conceber o
espaço e o tempo como um conceito único e como um novo vetor, que conduz
o mundo da tridimensionalidade (perceptível e palpável), e que abre as portas
para a detecção de mundos absolutamente virtuais (quadridimensionais), que
habitam regiões infinitamente grandes e impensavelmente pequenas – quando
diz que: “o espaço e o tempo nunca como formas puras ou vazias, mas como
grandes forças misteriosas, que governam todas as coisas, que dirigem e deter-
minam não só nossa vida mortal mas também dos deuses”.
Notícias do Programa
O tempo do grilo:
posseiros na Gleba São Domingos 1979-1983.
A história da luta pela terra no
Vale do Guaporé-MT – 1970-1990.
* Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso.
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