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a pesquisa histórica e suas

múltiplas abordagens
lorena maria de frança ferreira
marlzonni marrelli matos mauricio
paulo henrique matos de jesus
(organizadores)

a pesquisa histórica e suas


múltiplas abordagens
Copyright © 2023 By Lorena Maria de França Ferreira, Marlzonni Marrelli Matos Mauri-
cio, Paulo Henrique Matos de Jesus (Organizadores)

Todos os direitos reservados.

Editoração, projeto gráfico e diagramação


Ronyere Ferreira / Talyta Marjorie Lira Sousa

Capa
Mário Sérgio Olivindo

Cancioneiro

Editora chefe
Eva P. Bueno (St. Mary’s University, Texas - EUA)

Conselho editorial
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Diego Buffa - (Universidad Nacional de La Plata, Argentina)
Evaristo Falcão (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
Francisca Verônica Cavalcante (Universidade Federal do Piauí, Brasil)
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Sandra Melo (Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil)
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Silvia Glocer (Universidade de Buenos Aires, Argentina)
Vincent Spina (Clarion University of Pennsylvania, EUA)

Lorena Maria de França Ferreira, Marlzonni Marrelli Matos Mauricio, Paulo


Henrique Matos de Jesus (Organizadores).
A pesquisa histórica e suas múltiplas abordagens. Teresina: Cancioneiro,
2023.
212 f.

isbn: 978-65-5380-125-7 (digital)

cdd 900
editora cancioneiro
Teresina - Piauí
www.editoracancioneiro.com.br
contato@editoracancioneiro.com.br
sumário

apresentação................................................................................ 7

linguagens, religiosidades e culturas

a concubinagem como tática feminina indígena


no contexto do empreendimento da frança
equinocial (1612-1615)................................................................ 15
Karen Cristina Costa da Conceição

história e cinema no maranhão: perspectivas narrativas.... 31


Leide Ana Oliveira Caldas

mulheres na educação na memória de


antônio sampaio pereira – piauí (1900-1930)........................... 47
Lorena Maria de França Ferreira

traços de produções históricas piauienses:


o uso do gênero na história local........................................... 59
Lorena Maria de França Ferreira

história do tempo presente:


um diálogo com as comunidades de terreiro
acerca da covid-19 em são luís – ma......................................... 77
Maria da Graça Reis Cardoso

raça e racismo no brasil: problemas teóricos e históricos... 93


Marlzonni Marrelli Matos Mauricio
poderes, políticas e sociabilidades

as contribuições da perspectiva global para


o estudo da escravização africana.......................................... 107
Ábdon Eres da Silva Neto

expressividades da morte: rituais fúnebres e práticas


mortuárias nos óbitos dos negros escravizados na
freguesia de nossa senhora da vitória (1868-1869)............... 125
Carlos Victor de Sousa Ferreira

convocação e recrutamento de indígenas


das colônias e diretorias na província do maranhão
para a guerra do paraguai (1865-1870)..................................... 143
Marcos Ferreira Silva

reunir para organizar o império:


“cidadãos” do maranhão na câmara dos deputados............... 165
Mário Augusto Carvalho Bezerra

“não podemos mais tolerar uma polícia


feita no improviso”: história da historiografia da polícia
e uma conexão entre europa e brasil durante a primeira
república (1889-1930).................................................................. 183
Paulo Henrique Matos de Jesus

o(s) lugar(es) do crime na urbe do século xix:


um itinerário de pesquisa........................................................... 197
Paulo Henrique Matos de Jesus
apresentação

É com enorme satisfação que apresentamos a coletânea de artigos in-


titulada “A pesquisa histórica e suas múltiplas abordagens”, pensada e pro-
duzida pelos doutorandos e doutorandas da turma de 2021 do Programa de
Pós-graduação em História e Conexões Atlânticas da Universidade Federal
do Maranhão (PPGHis-UFMA). Esta obra reúne um conjunto de estudos
que abordam diferentes temáticas e períodos históricos, com o objetivo de
promover reflexões e debates acerca da pesquisa histórica em suas variadas
formas de abordagem.
A coletânea está organizada em duas seções temáticas, que exploram
áreas fundamentais da pesquisa histórica: “Linguagens, Religiosidades e
Culturas” e “Poderes, Políticas e Sociabilidades”. Essas seções representam
a diversidade de abordagens e temas estudados na História, além de refleti-
rem a amplitude do campo histórico e seu impacto nas sociedades.
Na seção “Linguagens, Religiosidades e Culturas”, os artigos mergu-
lham nas complexidades das interações culturais, religiosas e linguísticas.
Por meio de uma variedade de perspectivas teóricas e metodológicas, esses
estudos exploram como as expressões culturais, as práticas religiosas e as
dinâmicas linguísticas moldaram e foram moldadas ao longo do tempo. As
pesquisas incluem estudos sobre a formação e transformação das identida-
des culturais, a circulação de ideias e práticas religiosas no contexto atlânti-
co e os impactos da diversidade linguística nas relações sociais.
Karen Cristina Costa da Conceição contribui para a coletânea com
o artigo “A concubinagem como tática feminina indígena no contexto do
empreendimento da França equinocial (1612-1615)”, que é uma produção
a partir das análises produzidas na dissertação de mestrado com o título:
“De feiticeiras diabólicas a auxiliares na empresa missionária: as atuações
das mulheres Tupinambá no Maranhão franco-ameríndio (1594-1615)”,
e analisam a prática de concubinato entre mercadores franceses e mulheres
indígenas, vista aqui como tradição política de resistência feminina, a partir
de dois relatos com os títulos, História da Missão dos Padres Capuchinhos
na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas e Continuação da História
das cousas mais memoráveis ocorridas no Maranhão nos de 1613 e 1613,
sendo que, o primeiro foi escrito pelo padre Claude D’Abbeville, e o segun-
do pelo padre Yves D’Évreux, ambos missionários da Ordem Capuchinha
de Paris. Esses relatos foram elaborados nos primeiros anos do século XVII
com uma retórica que reunia elementos da teologia cristã católica e política
que anunciavam aos destinatários na Europa os avanços e vantagens da
empresa colonial francesa.
Leide Ana Oliveira Caldas apresenta o artigo “História e cinema no
Maranhão: perspectivas narrativas”, em que aborda a relação entre história,
cinema e cultura, com foco nas práticas de cinema amador no Maranhão
durante as décadas de 1970 e 1980. Essa autora tem como objetivo analisar
as práticas que contribuíram para a construção de um espaço fílmico como
forma de resistência e memória em meio à ditadura civil-militar-empresa-
rial no país e, especificamente no Maranhão. Cerca de 100 a 140 filmes fo-
ram produzidos nesse período no estado, principalmente em formato Super
8mm, criando espaços de liberdade e resistência através da câmera amadora.
Esses registros representam fragmentos materializados de memória tanto
na esfera subterrânea do cotidiano quanto nos festivais independentes, que
se configuraram como espaços de exibição fora do circuito comercial.
Lorena Maria de França Ferreira contribui para a publicação desta co-
letânea com dois artigos que tratam sobre a temática das mulheres no Piauí.
O primeiro artigo intitulado “Mulheres na educação piauiense através da
memória de Antônio Sampaio Pereira (1900-1930) traz aos nossos olhares
as informações e análises sobre a educação das mulheres no Piauí nos anos
de 1900 a 1930 através das memórias de Antônio Sampaio Pereira pressen-
tes em Velhas Escolas, Grandes Mestres. Mostra que a mulheres foram in-
seridas na educação como meio de substituição da mão de obra masculina,
com o objetivo de exercerem a função de educadoras juntamente com suas
funções maternas as quais eram tidas como naturalmente feminina.

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O segundo artigo intitulado “Traços de produções históricas piauien-
ses: o uso do gênero na história local” aponta que a produção histórica se
transformou com a mudança do tempo, modificando o seu fazer histórico
e seus objetos de estudo, ampliando e dando nova visibilidade ao que era
impensado. Com isso, o artigo proporciona conhecer as modificações na
produção histórica a partir do estudo da História das mulheres e de gênero
no Brasil, em especial na produção piauiense no âmbito universitário sobre
o gênero na educação.
Maria da Graça Reis Cardoso contribui com o artigo “História do
tempo presente: um diálogo com as Comunidades de Terreiro acerca da
covid-19 em São Luís – MA”, no qual traz reflexões acerca da pandemia
e suas consequências para as Comunidades de Terreiro, como a morte de
seus membros e, ainda, as desigualdades sociais. Em vista disso, o artigo se
debruça sobre as religiões de Matriz Africana e busca compreender como as
Comunidades de Terreiro, com destaque para o Terreiro Ilê Ashe Yemowa
Abê, ressignificaram suas práticas culturais durante a pandemia, sobretudo
no que diz respeito aos rituais religiosos de desligamentos da vida terrena.
Marlzonni Marrelli Matos Mauricio contribui com o artigo “Raça e ra-
cismo no Brasil: problemas teóricos e históricos”, no qual discorre acerca do
conceito de raça no pensamento social brasileiro e de suas implicações. Por
conseguinte, o artigo trata do uso político-ideológico do conceito de raça
pelas elites brasileiras oitocentistas, assim como do caráter discriminatório
do próprio conceito. Ademais disso, dentre os assuntos levantados, o artigo
trata também desde o enleio entre as ideias de raça e de cidadania, no século
XIX, até o conceito de racismo estrutural de Silvio Almeida. Nesse sentido,
o artigo busca promover uma leitura concisa, mas ampla, sobre raça como
matéria e como construção ideológica.
Já na seção “Poderes, Políticas e Sociabilidades”, os artigos se debru-
çam sobre as dinâmicas de poder, os processos políticos e as formas de
sociabilidade em diferentes períodos históricos. Os artigos apresentam in-
vestigações aprofundadas sobre a atuação de atores políticos, as estruturas
de poder e os movimentos sociais, evidenciando as relações de poder, os
embates políticos e as formas de organização e resistência presentes na his-
tória. Além disso, são abordadas temáticas como a construção do Estado, a
representação política e a interação entre diferentes grupos sociais.
Ábdon Eres da Silva Neto, em seu artigo “As contribuições da pers-
pectiva global para o estudo da escravização africana”, baseia-se em textos

9
de Rafael Marquese e Pepijn Brandon para analisar as perspectivas histo-
riográficas sobre a escravização africana e sua relação com o capitalismo.
A partir da análise de outros cinco textos, o autor busca compreender as
conexões entre o aumento da escravização de africanos nos séculos XVIII
e XIX e as condições que possibilitaram a formação do capitalismo indus-
trial global.
Carlos Victor de Sousa Ferreira, no artigo intitulado “Expressividades
da morte: rituais fúnebres e práticas mortuárias nos óbitos dos negros escra-
vizados na Freguesia de Nossa Senhora da Vitória (1868-1869)”, analisa os
registros de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória em São Luís
para compreender as causas de morte e os ritos fúnebres que envolveram os
escravizados. O estudo examina os aspectos simbólicos das práticas mor-
tuárias no século XIX, focalizando especialmente os ritos fúnebres ligados
aos escravizados, sejam eles crioulos ou africanos.
Marcos Ferreira Silva, em “Convocação e recrutamento de indígenas
das colônias e diretorias na Província do Maranhão para a Guerra do
Paraguai (1865-1870)”, propõe uma reavaliação da participação das po-
pulações indígenas no processo de recrutamento militar durante a Guerra
do Paraguai. O autor investiga como essas populações indígenas foram
envolvidas no conflito e busca compreender os interesses e motivações
por trás desse envolvimento, além de explorar o significado da guerra para
essas comunidades.
Mário Augusto Carvalho Bezerra, em Reunir para organizar o Impé-
rio: ‘cidadãos’ do Maranhão na Câmara dos Deputados”, investiga a insta-
lação, funcionamento e dinamismo da Câmara dos Deputados na primei-
ra legislatura do Império brasileiro. O estudo concentra-se na análise dos
parlamentares eleitos em São Luís no ano de 1825, destacando as relações
políticas estabelecidas em âmbito nacional.
Em seu artigo intitulado “O(s) lugar(es) do crime na urbe do século
XIX: um itinerário de pesquisa”, Paulo Henrique Matos de Jesus aborda
a escolha da cidade como objeto de estudo, destacando sua complexida-
de e a dificuldade de estabelecer um conceito definido. Examina o papel
da multidão na evolução da cidade, seja como trabalhadores adaptados à
rotina, delinquentes noturnos ou ameaças políticas ligadas à Revolução
Francesa e ao comunismo. O objetivo é investigar como a cidade de Paris
é percebida pelos escritores, enfatizando os espaços específicos propícios
para a ocorrência de eventos criminosos. Antes da haussmanização, esses

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ambientes se concentravam no centro da cidade medieval, expandindo-se
em direção ao oeste noroeste. Com o processo de haussmanização, obser-
va-se a migração do crime para os novos bairros da cidade e sua dissemi-
nação pelo ambiente urbano.
Por fim, Paulo Henrique Matos de Jesus, em seu artigo “Não pode-
mos mais tolerar uma polícia feita no improviso: História da Historio-
grafia da Polícia e uma conexão entre Europa e Brasil durante a Primeira
República (1889-1930)”, apresenta um roteiro inicial de pesquisa que tem
como objetivo investigar a circulação transnacional de saberes, práticas e
técnicas de policiamento entre a Europa e o Brasil nesse período. O autor
analisa as relações entre a produção de técnicas policiais europeias cientí-
ficas e seu intercâmbio com o estado do Maranhão, com foco na estrutura
do policiamento militar e civil em São Luís durante a Primeira República.
Além disso, o estudo examina a adoção de abordagens científicas no po-
liciamento e as demandas pela substituição do policiamento empírico por
um policiamento científico.
Ao reunir esses artigos, a coletânea busca demonstrar a diversidade
de abordagens que a pesquisa histórica pode assumir, tanto em termos de
temas investigados quanto de metodologias adotadas. Cada artigo traz con-
tribuições significativas para a compreensão da história, explorando dife-
rentes perspectivas e enriquecendo o campo historiográfico.
Cada um dos artigos apresentados nesta coletânea reflete a qualidade
e a originalidade da pesquisa desenvolvida pelos doutorandos e doutoran-
das do PPGHis-UFMA. O rigor metodológico, a análise crítica e a con-
tribuição para o campo historiográfico são características que se destacam
nesses trabalhos.
Acreditamos que esta coletânea será uma importante contribuição
para os estudos históricos, especialmente no contexto do Programa de
Pós-graduação em História e Conexões Atlânticas da Universidade Fe-
deral do Maranhão. Esperamos que os leitores encontrem nessas páginas
novos questionamentos, reflexões e diálogos que possam ampliar o conhe-
cimento sobre as múltiplas abordagens da pesquisa histórica.
Agradecemos a todos envolvidos na produção desta coletânea, bem
como ao quadro docente do Programa de Pós-graduação em História e
Conexões Atlânticas da UFMA pelo apoio e incentivo. Agradecemos tam-
bém à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) e, especialmente, ao vereador da Câmara Municipal de São Luís,

11
Nato Jr. Que este trabalho inspire futuras pesquisas e promova o desenvol-
vimento acadêmico no campo da História.

Boa leitura!

Lorena Maria de França Ferreira


Marlzonni Marrelli Matos Mauricio
Paulo Henrique Matos de Jesus
São Luís, 2023

12
linguagens, religiosidades e culturas
a concubinagem como tática feminina
indígena no contexto do empreendimento
da frança equinocial (1612-1615)1

Karen Cristina Costa da Conceição2

Introdução

O objetivo do texto apresentado é tecer uma análise acerca da prática


de concubinato entre mercadores franceses e mulheres indígenas, vista
aqui como tradição política de resistência feminina, a partir de dois re-
latos com os títulos, História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha
do Maranhão e Terras Circunvizinhas e Continuação da História das cousas
mais memoráveis ocorridas no Maranhão nos de 1613 e 1613, sendo que, o
primeiro foi escrito pelo padre Claude D’Abbeville, e o segundo pelo pa-
dre Yves D’Évreux, ambos missionários da Ordem Capuchinha de Paris.
Esses relatos foram elaborados nos primeiros anos do século XVII com
uma retórica que reunia elementos da teologia cristã católica e política que
anunciava aos destinatários na Europa os avanços e recuos da evangeliza-
ção da empresa colonial francesa.

1. Ressalta-se que as conclusões apresentadas neste artigo são oriundas da dissertação “De
feiticeiras diabólicas a auxiliares na empresa missionaria: as atuações das mulheres Tupi-
nambá no Maranhão franco-ameríndio (1594-1615)”, sob a orientação do professor Ale-
xandre Guida Navarro.
2. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlân-
ticas: Cultura e Poderes da Universidade Federal do Maranhão. São Luís, MA, Brasil.
E-mail: karencristinacosta@outlook.com. Atualmente doutoranda pela mesma instituição e
bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
A chegada das naus francesas ao Maranhão que traziam militares e
religiosos, no início do século XVII, estava inserida em um contexto de
disputas por espaços de atuação naquela parte do atlântico (CARDOSO,
2011). A França tentava pela segunda vez assegurar uma fatia do bolo, mes-
mo não tendo sido contemplada pela divisão estabelecida pelo Tratado de
Tordesilhas que entendia Portugal como detentora daquele domínio. An-
tes de se tornar uma cede administrativa em 1621, podemos encontrar nas
narrativas dos padres capuchinhos designações como Terra dos Tupinambá,
Ilha Grande do Maranhão ou Ilha de Upaon-Açu para se referir a costa mara-
nhense que naquele contexto indicava abranger a Capitania do Maranhão e
a sua área adjacente de influência, que incluía o Ceará (Serra de Ibiapaba),
bem como o (Pará, Amazonas e Tocantins), o que corresponde em boa
parte aos arredores atuais da Amazônia (CHAMBOULEYRON, 2016).
Neste vasto território, os militares e religiosos franceses instalaram-se
na Ilha de São Luís, atual capital do Maranhão, por onde começaram as
suas ações. Os padres nos seus escritos, descreveram o processo de evange-
lização, uma vez que as práticas de catequização foram uma das estratégias
utilizadas para alcançar a efetivação das políticas de dominação. Práticas
que visaram operar transformações no modo de vida nativo e para isso, seria
necessário desmanchar costumes considerados pecaminosos, como o casa-
mento nativo, entendido pelos missionários como concubinato.
O concubinato foi uma prática bastante presente no período colonial
brasileiro, considerada pelos missionários, a partir do prisma cristão, como
um dos pecados inaceitáveis, por isso, os religiosos empenharam-se em
muitos momentos de fiscalizar os indígenas e os seus hábitos culturais, a
fim de combater, por exemplo, a mancebia nas aldeias. No cotidiano das
aldeias, os padres não conseguiram impor suas vontades e desejos, na prá-
tica, as interações entre eles, os militares, comerciantes e indígenas foram
complexas e dinâmicas do que comumente se pensa.
O Maranhão do século XVI e boa parte do XVII, na condição de fron-
teira dos Impérios ibéricos na América foi disputada entre portugueses,
espanhóis, franceses e holandeses. Hal Langfur definiu fronteira como uma
área distante da sociedade já estabelecida: “[ou em vias de se estabelecer],
mas central para os povos indígenas, onde uma consolidação ainda não foi
assegurada e onde ainda paira uma dúvida sobre o desfecho dos encontros
culturais multiétnicos” (LANGFUR, 2006: 05).
Nesse contexto fronteiriço, a evangelização dos padres capuchinhos

16
no contexto da França Equinocial, configurou-se de maneira complexa e
instável, caracterizada por tensões, avanços e recuos, uma vez que vivencia-
ram as disputas atlânticas, o que colocava-os na condição de dependentes
de algumas famílias indígenas para sobreviverem e manterem a sua missão
naquelas terras. Tal situação de interdependência entre franceses e indíge-
nas, forneceu oportunidades para a atuação política de algumas mulheres
indígenas, atuação que se deu por meio dos casamentos nos moldes nativos,
longe da visão de progenitoras ou objetos sexuais.

Táticas femininas no cotidiano das aldeias coloniais

A situação colonial vivenciada pelos grupos indígenas marcada pela


violência simbólica e física, a imposição do trabalho forcado, a expropria-
ção das suas terras, gerou, entre estes povos, o manejo de mecanismos
de sobrevivência que se manifestaria por meio da negociação, da fuga,
da guerra, a depender do momento histórico e do contexto em questão
(MONTEIRO, 2000). A ideia defendida por esta pesquisa é de que a
presença de relações matrimoniais entre adventícios europeus e as mu-
lheres nativas, conforme a lógica indígena, representa às táticas, ou seja,
tradições políticas de resistência que foram acionadas diante da ameaça
que se colocava para esses grupos que permitiram a sua sobrevivência com
vistas a proporcionar a reprodução de elementos identitários que se con-
trapõe às investidas contra territórios e modos de vida.
Aprofundar as considerações acerca dos estudos sobre o cotidiano se
mostra de grande importância para a reflexão em torno das formas de
resistências femininas. Uma vez que a noção de resistência foi estendida a
outros meios de atuação, não necessariamente violentos. Atuações de re-
sistências relacionadas à cultura e a política dos povos estudados. Alguns
estudos têm evidenciado, entre eles, o de Anna Laura Stoler, intitulado
Tense and Tender Ties: The Politics of Comparison, publicado em 2021,
que demonstra, por exemplo, que havia indícios de resistência na esfera
da intimidade, por vezes, campo da subversão do gênero e de sexualidade
impostos pelos europeus aos indígenas e também aos africanos que foram
escravizados no Brasil (STOLER, 2021).
Muitas vezes, é na vida de todo o dia, que os historiadores encontram
o caminho de entendimento do conhecimento histórico produzido pelos
indivíduos nas relações sociais. Sobretudo, num ramo da História onde as

17
experiências de vida são fundamentais para compreensão da mesma. Acerca
destas considerações, as ponderações feitas por Michel de Certeau (1994, p.
41) no livro A invenção do cotidiano são essenciais. O autor argumenta que
os mecanismos de poder, regulamentação da sociedade que tentam contro-
lar a vida dos homens e mulheres, podem ser burlados através de práticas,
táticas e estratégias de sobrevivência que os indivíduos criam na dinâmica
cotidiana. A vida social torna-se espaço de negociação dentro de um coti-
diano improvisado, sempre possível de ser reinventado.
As mulheres indígenas, por exemplo, vendo os seus espaços de poder
limitados pelas normas implantadas pelos colonizadores àquela sociedade,
precisaram agir de forma a identificar as fragilidades na lógica social na qual
estavam inseridas. Por consequência, a experiência adquirida nestes espaços
possibilitava a criação de outras lógicas que, na maioria das vezes, divergiam
daquelas colocadas pelos colonizadores, ou seja, os sujeitos em interação as-
similam o espaço e atribuem-lhes novos significados a partir das suas ações
cotidianas (CONCEIÇÃO; NAVARRO, 2020; GARCIA, 2015).
As ações elaboradas pelas mulheres indígenas no cotidiano colonial,
refletem aquilo que Certeau denominou de táticas. Acerca do conceito de
tática, o autor explica:

[...] chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de


um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de
autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve
jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma
força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância,
numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é mo-
vimento “dentro do campo de visão do inimigo” [...] e no espaço por ele
controlado (1994, p. 41).

As mulheres indígenas possivelmente desenvolveram várias estratégias,


bem como diversas táticas para melhor sobreviver ao panorama colonial. Ao
usufruírem dos espaços de atuação política disponibilizados, defendiam os
seus interesses e do grupo que elas faziam parte. As frequentes passagens
nos relatos dos padres acerca da prática do concubinato num cenário de
imposição do cristianismo, sugere subversão. Nas palavras de Certeau:

[...] subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transforman-


do-as (isto acontecia também) – mas por cem maneiras de empregá-las

18
a serviço de regras, costumes ou convicções estranhas à colonização [...].
Eles metaforizaram a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro
registro. Permaneciam outros no sistema que assimilavam e que os as-
similava exteriormente. Modificando-o sem deixá-lo. Procedimentos de
consumo conservavam a sua diferença no próprio espaço organizado pelo
ocupante (1994, p. 41).

Era por meio da lógica de interação com o poder dominante, na qual


elas estavam inseridas, que resistiram e conseguiram subverter e posicio-
nar-se de forma criativa. Sobre essa questão, a historiadora Maria Regina
Celestino de Almeida em Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro, ao dialogar com a Antropologia ob-
servou as respostas ativas e criativas dos indígenas diante da colonização,
e destacou que as sociedades nativas participaram ativamente das relações
com os europeus, aproveitaram da oportunidade de fazer alianças, o que
permitia a certos grupos indígenas destacarem-se de modo singular.

Contratos de hospitalidade:
táticas femininas de sobrevivência física e cultural

Com a chegada da expedição que trazia além dos missionários, os mi-


litares, Daniel de La Touche e François Razilly, em 1612, tem-se o início
do empreendimento denominado pela historiografia de França Equinocial.
Na empresa colonial francesa, os indígenas eram peças fundamentais para
a funcionalidade do projeto, sem a existência de relações de reciprocida-
des, favores e alianças, teria acabado muito antes de 1615. O trecho abaixo
escrito pelo padre Claude D’Abbeville, destaca os momentos iniciais do
projeto colonial, o sacerdote tenta convencer os indígenas a se juntarem aos
franceses em troca de proteção contra os outros grupos indígenas inimigos
e os portugueses, uma vez que os lusitanos estavam avançando pelo litoral
da América portuguesa, naquele momento:

Este facto tão triste de tal sorte commoveo a coragem do meo Rei, que
elle me mandou em companhia de outros para vos auxiliar, tanto com o
meo procedimento como por minha coragem e pelo valor dos bravos f’ran-
cezes que eu trouxe [...] Quanto ao auxilio, que tu e os teos nos prestam
para dificar nossa fortalezas, receberemos para tua e nossa segurança, e o
nosso estabelecimento será o benefício e a riqueza do vosso paiz de vossos

19
vindouros, iguaes d’ora em diante á nós saberão o que nós soubermos (AB-
BEVILLE, 1975, p. 76-77).

Para que a aliança pudesse ser firmada entre as partes, o francês Charles
Des-Vaux que habitava há alguns anos a costa maranhense depois de um
naufrágio, discursou às lideranças indígenas, informando-as da necessidade
de conversão ao cristianismo:

Conforme seos desejos tinha patenteado ao nosso muito grande e muito


poderoso Rei o desejo que tinham, de serem seos súbditos, de reconhece-
-lo por seu soberano Monarcha, e de receberem d’elle um Capitão, grande
guerreiro e valente, para sustenta-los e defende-los contra seos inimigos,
sendo sempre amigos e aliados dos francezes, como o tinham sido há mui-
to tempo, negociando com elles, e vindo sempre de França todos os gêne-
ros, de que necessitassem, e como nada d’isto se podia fazer sem abraçar-se
a nossa Religião, e conhecer-se o Deos, que adoramos, tinha prometido
e asseverado á sua Majestade, em nome d’elles, que estavam dispostos a
se baptisarem, e muito satisfeitos de se fazerem christãos, segundo suas
palavras, pelo que o nosso poderoso Rei, muito alegre mandou-o assegu-
rar-lhes de sua parte, que sempre o consideraria seos amigos fieis, e sempre
os defenderia de seos inimigos, se quisessem abraçar a nossa Religião, e re-
ceberem o baptismo, e para isto lhes mandava quatro Payeté, isto é, quatro
grandes profethas, com o fim de instruí-los e catequizá-los, em companhia
de um grande Buruvichave (assim chamam elles o Rei e os loco-tenentes),
e muitos soldados para defende-los, sustenta-los, e protege-los, os quaes
já estão na Ilha-pequena com seos navios carregados de muitos gêneros,
não querendo vir antes d’elle preveni-los e saber se ainda persistiam nas
mesmas intenções. Si pensaes como d’antes continuou elle, irei husca-los
e trazei-os immediatamente aqui, e no caso contrário não ha necessidade
que tenham tal trabalho, pois temos resolvido eu e elles regressar a França
(ABBEVILLE, 1975, p. 58).

Nesse cenário, o casamento monogâmico cristão, funcionou como me-


cânico de estabelecer hierarquia entre os gêneros e principalmente de vigi-
lância para restringir a circulação das mulheres nativas. O destaque dado ao
casamento monogâmico cristão, pretendia varrer das aldeias o “concubina-
to”, a “poligamia” e “sodomia”. Uma vez que a concubinagem esteve no rol
das transgressões morais mais presentes no cotidiano da Ilha do Maranhão
e em outras realidades coloniais, o que dificultava as tentativas de difusão

20
do modelo matrimonial católico nestes espaços. Os padres enviados para
enfrentar a tarefa de catequizar os indígenas, evidenciaram em diferentes
passagens dos relatos a prática do concubinato que persistia diante das ten-
tativas de cristianização.
Numa proferição do padre Yves D’Évreux, aparecia a preocupação com
as formas de arranjos matrimoniais indígenas:

Quanto aos outros cristãos, que são seos Filhos pelo baptismo, Deos lhe
concede liberdade de se cazarem, se lhes apraz, porem com uma mulher só
e unicamente, e as mulheres consentem tambem que tenham um só e úni-
co marido sem nunca poder deixa-lo: si por ventura se separam marido e
mulher, não podem buscar outra união, por que os homens, que tem muita
mulheres e as mulheres muitos homens não são verdadeiros filhos do gran-
de Tupan, porém servos de Jeropary, que é o diabo [...]. É deshonra para
vó a prostituição de vossa filhas, e o entregarem-se ellas a quem quer que
seja, como fazem, bem mostrais que sois filhos de Jeropary si desejais evitar
os tormentos, que elle vos prepara, convem deixar todos este’ mau costume
e serdes verdadeiros fillos de Tupam (ABBEVILLE, 1975, p. 80).

Nem sempre os planos catequéticos ocorreram de acordo ao esperado


pelos padres, pois no cotidiano colonial havia a presença de outras lógicas
matrimoniais e de arranjos familiares. Os vários casos de concubinato que
apareceram nos relatos, possibilitaram o entendimento da manutenção do
costume matrimonial nativo. O que permite especular as interligações en-
tre o concubinato e os arranjos familiares indígenas, assim como possíveis
sobrevivências de práticas de parentesco ou de modos de fazer alianças dos
respetivos grupos étnicos.
Entre os Tupinambá existiram os casamentos consanguíneos, em que
o casal era formado por parentes próximos, geralmente a preferência era
o matrimônio avuncular, que nada mais é o nome que se dá ao casamento
entre tio materno e sobrinha, ou seja, entre parentes colaterais em terceiro
grau. Além deste, existiam mais duas por meio de alianças: uma quando
a família entregava a jovem a alguém, geralmente uma liderança indígena
ou quando se recebe uma moça para casar com o seu filho. No entanto,
com a presença de mercadores tanto oriundos da Normandia quanto de
Dieppe que frequentaram aquelas terras a comercializar com os indígenas,
os padres observaram a existência do matrimônio por “contrato de hospi-
talidade” (ÉVREUX, 2007: 87).

21
O contrato de hospitalidade iniciava-se quando uma família indígena
se dispunha a acolher na sua residência algum francês, o padre Évreux men-
cionou que os indígenas recebiam e eram excelentes hospedeiros:

Se há nação no mundo que goste de fazer bom acolhimento aos seus ami-
gos recém-chegados, e que os receba em suas casas, sem dúvida alguma os
tupinambás ocupam o primeiro lugar à vista de como procederam com os
franceses”. Logo que avistam um navio que trazia os franceses, anunciavam
alguns índios a notícia da chegada dos franceses por todas as aldeias: “Aurt
Navire suay” “aí vêm os grandes navios de França”. Imediatamente tomam
suas roupas, e principiam a falar uns aos outros por esta forma: Aí vêm
navios da França, e eu vou ter um bom compadre, ele me dará machados,
foices, facas, espadas e roupa; eu lhe darei minha filha, irei pescar e caçar
para ele, plantarei muito algodão, dar-lhe-ei gaviões e âmbar, e ficarei rico,
porque hei de escolher um bom compadre que tenha muitas mercadorias.
[...] os mais impacientes vão em suas canoas a bordo do navio, ancorado
na enseada, indagar se vieram seus velhos Chetuassaps, e avaliar qual é o
francês que traz mais gêneros para lhes oferecer seu compadrio, sua casa e
sua filha. (ÉVREUX, 2007, p. 216).

O trecho do relato do padre Évreux indica que havia interesse por parte
da mãe e da própria indígena nos contratos com os franceses:

As mulheres e filhas o lamentam e depois dão-lhes bons-dias e responde-


-lhe o francês Pá, “sim”, resposta que quer dizer “sim, de todo o coração:
eu te escolhi para morar contigo, e para ser meu compadre, e do número
de tua família. Te dei preferência porque te estimo e por me pareceres bom
homem”. (ÉVREUX, 2007, p. 217).

Não podemos falar com total segurança quais seriam os interesses das
mulheres indígenas com os casamentos por contrato de hospitalidade, po-
rém as narrativas dão algumas pistas, uma delas tem relação com o acesso
às mercadorias, principalmente objetos feitos de metal advindos da Europa,
e a outra estaria na busca por aliados que pudessem protegê-los contra os
seus inimigos. O missionário ressaltou o empenho em atrair a aliança de
hospitalidade logo quando o francês desembarcava:

Apenas salta o francês, é logo rodeado por eles: homens e mulheres mos-
tram-se prazenteiros, presenteiam-no com víveres, convidam-no para
compadre, oferecem-se para levar-lhe sua bagagem, enfim fazem o que

22
podem para contenta-lo e ganhar sua boa graça. Não tem inveja um do
outro por estar um francês em casa de outro; o que primeiro se apresenta
é que leva o hospede, sem o menor problema, e nem por isso se insultam
(ÉVREUX, 2007, p. 216).

O adventício que aceitava a aliança, passava a viver com a nativa e


era chamado pelo pai e mãe da esposa de Taiuuen, “genro”, Chéraiuuen,
“meu genro”, Tuassap, “compadre”, ou Ché-tuassap, “meu-compadre”, e às
vezes Chéaire, “meu filho”, ou ainda Chereiuuen, “meu filho”, quando um
indígena tinha a sua filha concubina do francês (ÉVREUX, 2007, p. 88).
Quando os indígenas estimavam os viajantes, em assembleia decidiam por
qual nome iriam chamá-los, como uma forma de batismo geralmente a de-
signação era a mais apropriada a fisionomia, o gênio, ou a maneira de viver:

Por exemplo: entre os franceses, um foi chamado Beiço de Sargo, porque


tinha o beiço inferior puxado para diante como os peixes chamados pargos.
Um outro foi chamado Garganta grande porque nada o saciava; um outro
de Sapo-boi, por estar sempre intumescido; um outro de Cão pirento pela
sua cor ruim, um outro de Periquito porque vivia a falar; um outro de Lança
grande por ser alto e esguio, e assim por diante (ÉVREUX, 2007, p. 217).

As mulheres indígenas que possuía a aliança de hospitalidade com um


francês eram chamadas de Maria, tendo por sobrenome o do francês, para
sinalizar a união:

Esta hospitalidade, ou compadrio, é entre eles muito intima, porque esti-


mam seus hospedes como se fossem seus próprios filhos; enquanto lá esti-
verem morando vão caçar e pescar para eles, e segundo seu costume, entre-
gam as filhas aos compadres, ao qual passam logo a ser chamada de Maria,
tendo por sobrenome o do francês, para tornar clara a ligação, de sorte que,
dizendo-se Maria de Tal, sabe-se logo de quem é concubina. Não sei com
certeza o porquê que davam este nome às concubinas. Mostrei um certo
dia a um selvagem a imagem da Mãe de Deus, e lhe disse: Koai Tupan
Marie, eis a Mãe de Deus, e ele respondeu: Ché aí Tupan Arobiar Marie,
creio e conheço, que Maria é a Mãe de Deus, e Maria chamamos nossas
filhas que damos aos caraíbas (ÉVREUX, 2007, p.18).

Outro ponto a ser discutido é acerca do perfil dos cônjuges, visto que
em muitos momentos, os interesses de ambos os lados se mostraram con-

23
vergentes, porém cada grupo possuía a sua própria motivação. É plausível
de se especular que os primeiros a terem as alianças de hospitalidade com os
indígenas, ou seja, a união matrimonial com as nativas, foram os franceses,
chamados de truchements, que possivelmente se estabeleceram na passa-
gem do século XVI para o XVII, e eram os encarregados de estabelecer
relações amistosas com os indígenas para o funcionamento do regime de
feitorias (economia de escambo) (DAHER, 2002: 74).
Uma prática comum dentre os franceses, na época, consistia em enviar
meninos e jovens, provavelmente das regiões próximas aos portos da Nor-
mandia, para que integrassem às sociedades indígenas, isso provavelmente
ocorreu ainda na primeira metade do século XVI. Quando os navios apor-
tavam na costa maranhense, vindo da França, eram os truchements que
operacionalizaram o comércio com os indígenas e serviram de intérpretes
aos marinheiros franceses (DAHER, 2002: 74).
Por intermédio das mulheres indígenas, os mercadores puderam entrar
na tessitura social Tupinambá, o que garantia aos adventícios a garantia
das relações comerciais. Com o tempo, essas relações acabaram por ge-
rar uma alastrada mestiçagem (DAHER, 2002: 74). Quando o padre Yves
D’Évreux chegou à região em 1612, as alianças de hospitalidade já estavam
ocorrendo aproximadamente há uns cinquenta anos, havia muitos mestiços
que eram filhos de uma mãe Tupinambá e um pai francês:

Os bastardos de um francês e de uma índia Tupinambá são muito que-


rido, tanto pela mãe quanto por seus parentes, e se devemos falar esta
palavra, é a honra da família, e a esperança, e a espera de mercadorias
que o francês, pai da criança deve lhes dar. Além do mais, eles têm por
opinião que todos os franceses os devem amar, por esta razão, e os têm
como meio aliado deles por meio deste bastardo. Pois eles equiparam
seus costumes ao dos franceses, porque as diversas famílias entre os Tu-
pinambá recebem de algum modo uma meia aliança por intermédio de
um bastardo (ÉVREUX, 2007, p. 90).

Os padres empenharam-se para dissolver a prática do contrato por


hospitalidade, os casos podem ter ocorrido às ocultas:

Este costume de receber as filhas dos selvagens foi proibido aos franceses,
e não é mais praticado, a não ser às ocultas, e os próprios selvagens, que no
princípio desta proibição do costume de darem suas filhas desconfiaram,

24
logo que ficaram sabendo que Deus só permitia a posse da mulher por
meio do casamento, e que os padres, mensageiros de Deus, assim o prega-
vam e proibiam por ondem do Maioral, mostraram-se escandalizados por
verem os franceses fazer o contrário (ÉVREUX, 2007, p.18).

Por mais que houvesse uma proibição dessa prática, os padres tiveram
que se habituar e passaram a não insistir no desmonte desses enlaces, pos-
sivelmente esses acordos garantiam a perpetuação e manutenção do proje-
to de colonização, fortalecendo a povoação francesa. Possivelmente, esses
homens tinham interesses nos enlaces matrimoniais afim de fortalecer a
sua influência sobre a população nativa e garantir o seu acesso ao uso da
força de trabalho que era majoritariamente feminina entre os Tupinam-
bá. O que conferira aos adventícios prestígios nas estruturas indígenas
(MONTEIRO, 2000).
A respeito do interesse dos adventícios pelo trabalho desenvolvido
por elas, o padre Claude D’Abbeville mencionou que os afazeres agrícolas
eram tarefas femininas, assim como o preparo dos alimentos e o trans-
porte desses, nas expedições guerreiras, a produção dos diferentes tipos
de farinha, o fabrico dos utensílios de cerâmica para o armazenamento de
gêneros e bebidas. Todas essas tarefas eram realizadas pelas mulheres após
o casamento, tal como os Tupinambá, os franceses dependiam totalmente
do trabalho feminino.
Nesse sentido, muitas mulheres indígenas foram exploradas, através do
árduo trabalho que gradativamente se encaminhava para o sistema agroex-
portador, possivelmente gerou-se uma forte dependência do trabalho delas.
Visto que, durante os séculos XVI e XVII, as atividades econômicas que
poderiam prover de algum ganho o projeto colonial francês e mais tarde o
português naquela região, eram dependentes da força de trabalho indígena,
principalmente a feminina (BELOTTO, 1982).
Além da exploração do trabalho feminino, as relações matrimoniais
entre adventícios e nativas, trouxeram consigo consequências não conve-
nientes com os costumes indígenas, entre elas, a subordinação das mulheres
indígenas devido à sociedade patriarcal colonial. Mesmo que não houvesse
simetria entre os gêneros, muitas funções femininas e a maneira como pas-
saram a ser tratadas, sofreu profundas alterações com a estrutura patriarcal.
Sobre essa questão, a antropóloga Debra Picchi (2003), observou que entre
os indígenas Bakairi do Brasil central, a presença europeia levou a margi-

25
nalização e sublinhou o decréscimo da intervenção feminina nas decisões
nas aldeias, onde anteriormente elas pareciam deter mais o poder do que os
“líderes tradicionais”, do sexo masculino.
Por outro lado, os contratos matrimoniais de hospitalidade podem ser
entendidos como ações femininas no processo de colonização. Pode-se in-
ferir que a mulher nativa teve papel importante na subversão da lógica colo-
nial, uma vez que, apesar de todos os esforços dos padres para implantar o
casamento monogâmico cristão, houve uma permanência de outras práticas
de casamento baseado na visão nativa. Outra questão é que mulher indígena
parecia se constituir no nem de prestígio para os acordos, o estabelecimento
da reciprocidade entre as partes, isso se explica pelo seu poder econômico e
ritual entre os Tupinambá.
Conforme a historiadora Elisa Garcia (2015) o matrimônio entre os
muitos grupos indígenas de base Tupi, esteve relacionado à circulação de
mulheres, que entre outras coisas, servia para a ampliação da área de in-
fluência delas e das suas famílias. Esse sentido de reciprocidade não foi
compreendido pelos missionários que reconheciam a prática apenas como
ausência de moral.
Nessa mesma linha de interpretação, o estudo produzido pelo historia-
dor e antropólogo João Azevedo Fernandes (2003), intitulado De Cunha a
Mameluca, evidenciou que a forma de aliança entre alguns grupos indíge-
nas, entre eles, os Tupinambá, se dava por meio do casamento, era deste
modo que os dois grupos se solidarizavam, se aliavam. Ao invés de “ofertar”
a mulher, a família da esposa conquistava um aliado que passava a servi à
parentela (FERNANDES, 2003; CONCEIÇÃO, 2019; CONCEIÇÃO;
NAVARRO, 2020).
Nessa sociedade colonial, em que as hierarquias sociais organizavam o
cotidiano, os chamados contratos de hospitalidade poderiam representar as
suas táticas de subversão? É imaginável sugerir que a aliança de hospitali-
dade pareceu ter sido a janela de oportunidade para que as índias pudessem
sobreviver dentro de uma sociedade que se transformava e afetava os seus
espaços e práticas culturais. A questão que se coloca é: quem são essas mu-
lheres e os seus familiares? Apesar do papel de mediadoras que exerciam,
não necessariamente essas pessoas tinham posições de prestígio no grupo,
como as filhas e esposas de lideranças. O que chama atenção, apesar da
posição, essas mulheres e os seus familiares (não vinculados a uma liderança
indígena) parecem ter manejado os enlaces de concubinato enquanto tática,

26
principalmente uma tática feminina, em virtude dos relatos evidenciarem
que as mulheres, incentivadas por suas mães, queriam esse tipo de aliança
para garantia de sobrevivência ao processo de colonização.
Não é possível afirmar ao certo quais as motivações que levaram muitas
indígenas a optarem por pelos enlaces com os franceses. Reitero que essas
mulheres vivenciaram genocídios e escravização, além da perseguição das
suas práticas culturais, bem como, não estavam numa posição de destaque
no grupo, tais situações demonstram que elas decidiram tirar proveito da
presença francesa naquelas terras, seja para facilitar o acesso da sua paren-
tela as mercadorias vindas dos portos da França, mas também enquanto
garantias de proteção contra grupos inimigos, de sobrevivências das suas
práticas culturais e sociais, ou ainda, medida para colocá-las em melhores
condições nas negociações com as autoridades coloniais.

Considerações finais: alianças circunstâncias

Não teríamos fôlego para reconstituir a trajetória histórica desses gru-


pos denominados pelos colonos de Tupinambá, identificando os momentos
de resistência por eles vivenciados, visto que não é este o objetivo central
deste texto. Mas, gostaríamos de rememorar alguns pontos. Um deles é
que as alianças indígenas eram circunstâncias, e como trabalhado ao longo
do artigo, estabelecer alianças com os diversos grupos de estrangeiros tor-
nava-se essencial para a criação de possibilidades de autonomia frente aos
poderosos estrangeiros. Outra questão, claro que não se pode perder de vis-
ta, que muitas delas passaram a viver num regime de trabalho compulsório.
Mas, iteramos que elas manejaram as alianças por meio do casamento para
resistirem contra a imposição de práticas cristãs que poderiam representar
um distanciamento com os referenciais da cultura tradicional. O que de-
monstra que foram capazes de compreender o ambiente no qual elas esta-
vam inseridas e a partir daí avaliaram as suas possibilidades de negociação,
mesmo em posição adversa.
E por fim, o manejo dessas relações, associadas à cultura nativa, pos-
sivelmente operou a favor da garantia da sobrevivência física e cultural da-
quelas mulheres indígenas e seus arranjos familiares. Sem querer aqui apa-
gar as violências as quais as mulheres foram submetidas, mas evidenciar o
enfrentamos delas diante da dominação dos europeus.

27
REFERÊNCIAS

Fontes

D’ÉVREUX, Y. Continuação da História das coisas mais memoráveis aconte-


cidas no Maranhão nos anos 1612 e 1614. Tradução de Cézar Augusto Mar-
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28
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in North American History and (Post) Colonial Studies. The Journal of
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29
história e cinema no maranhão:
perspectivas narrativas

Leide Ana Oliveira Caldas1

História e Cinema: um breve olhar

Uma das perguntas mais comuns que fazemos ao iniciar pesquisas no


campo do cinema é a interpelação: “o que é cinema?” Diante da multi-
plicidade das práticas de cinema ficamos aqui com a fala de Jean-Claude
Bernardet que tenta observar na complexa prática cultural de cinema como
“arte do real”, como mercadoria, como indústria etc. No final do seu texto
conclui: “No final do livro, vocês não sabem. Eu também não. Com cer-
teza, não é possível responder a tão pretensiosa pergunta. O texto não se
pretende mais que um passeio em torno de alguns eventuais problemas que
se colocam pessoas que estudam cinema” (BERNADET, 2017, p. 187).
A palavra cinema é o termo reduzido de Cinematógrafo – o aparelho
que possibilitou ver a imagem em movimento, nesse contexto a cinemáti-
ca. O Cinematógrafo era a máquina ambulante que surgiu no contexto das
invenções científicas no final do século XIX, muito utilizada como comple-
mento de atrações em feiras em locais públicos fazendo, tornando-se parte
de uma prática diletante em circuitos de exibições na Europa e, depois,
deslocando-se para outras partes do mundo.2

1. Doutoranda do Programa Acadêmico de Pós-Graduação em História da Universidade Fe-


deral do Maranhão (PPGHIS-UFMA) - História e Conexões Atlânticas: culturas e poderes
da Linha de Pesquisa: Linguagens, Religiosidades e Culturas. Mestra em História Social.
Pesquisa no campo História e Cinema com ênfase no Maranhão. Professora E.B.T.T de
História do Instituto Federal do Maranhão-IFMA Campus Barreirinhas. Sócia da Sociedade
Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual- SOCINE. E-mail: leide.caldas@ifma.edu.br.
2. No Brasil o cinema se iniciou como prática de lazer fazendo parte do circuito de exibição
O cinema e a história como disciplina do conhecimento nascem no
contexto do século XIX. O primeiro, no contexto dos espetáculos de de-
monstrações científicas na safra do cinematógrafo como caleidoscópio de
imagem. A segunda no momento da necessidade de construir as ciências
humanas e sociais. “Que utilidade poderia ter para a História essa pon-
tinha inicial do filme que mostra um trem entrando na estação de La
Ciotat?”, questiona Marc Ferro a respeito da prática do cinematógrafo em
relação à negação dessas práticas pelos letrados e cultos que entre o fim do
século XIX e início do XX não legitimavam as práticas do cinema como
arte entre a elite em sociedades europeias. Uma relação se estabeleceu
desde então entre cinema e história, pois o caráter de registro do cotidiano
foi a característica inicial do filme produzido pelos irmãos Lumière que
registra a chegada de um trem na estação e a saída de operários de uma
fábrica. Marc Ferro destaca que, no seu início, o cinema era ignorado por
sociedades europeias letradas. A partir de década de 1950, verifica-se uma
disputa de espaço entre os autores de cinema, pela legitimação de suas
práticas como expressão artística.
A partir da década de 1960, países que não faziam parte do circuito
comercial industrial hollywoodiano e vivenciavam situações de especifici-
dades locais, como países da América Latina, países africanos e asiáticos,
constituíram uma via conceitual denominada de Terceiro Cinema, o que
viria depois da ordem posta hierarquicamente das produções estaduniden-
ses (Hollywood) e produções europeias (Nouvelle Vague). Consequente-
mente as produções cinematográficas passaram a exercer acentuadamente
um elemento importante de identidade dentro das lógicas contextuais
desses países. No Brasil, Glauber Rocha elabora as bases da chamada es-
tética da fome.
ambulante do Cinematógrafo em julho de 1896 no Rio de Janeiro, meses após à primeira exi-
bição histórica dos irmãos Lumière na França. Locais públicos, como praças e quermesses
faziam parte do contexto de exibição, pois não havia um público formado para consumo de
cinema. Em locais fechados como teatros o ingresso se tornava mais caro e vetava a entrada de
grande parte da população. A partir de 1897 várias cidades brasileiras como Curitiba, Salvador,
São Luís (1898 a novembro de 1909) tiveram a presença de exibições importadas de estran-
geiros até começar a surgir uma prática de representantes no Brasil e a fixação de salas. Na
passagem do século XIX para XX, muitos exibidores começaram, também, a produzir filmes
curtos para serem exibidos nas respectivas cidades. Sobre o Cinematógrafo no Brasil ou em
São Luís- MA, respectivamente, ver os trabalhos: SOUZA, José Inácio de Melo. Imagens do
passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Editora SENAC
São Paulo, 2004 e MOREIRA NETO, Euclides Barbosa. Primórdios do Cinema em São
Luís. São Luís, Cineclube Uirá. 1977.

32
Podemos afirmar também que cinema é uma unidade de comunica-
ção discursiva e se constitui também como um espaço de dialogismos, de
interdiscursos, de metalinguagens, pois é um enunciado de materialidade
dialógica, imagética etc.
Desse modo, convém destacar que o cinema não ficou de fora do ofí-
cio do historiador. O cinema como objeto historiográfico foi inaugurado
por Marc Ferro, historiador da terceira geração da Escola dos Annales
(Nova História), em seu artigo intitulado “O filme: uma contra- análise
da sociedade?” publicado em 1971. Segundo Santiago Jr., “a obra pioneira
de Marc Ferro desempenhou, nesse momento, um papel fundamental,
quando um artefato, o filme, foi tirado de seu lugar funcional e transfor-
mado, pela ‘operação histórica’, em objeto fonte da disciplina histórica”.
O filme passou a ser a base de investigação da relação entre o cinema e
a história ou o cinema e a sociedade. Para Santiago Jr., Marc ferro “foi
fundamental para a delimitação do território do historiador” excluindo
aspectos de discussões já existentes entre a história do cinema e teorias do
cinema para evidenciar o campo da historiografia em relação ao que já se
exercia em outras áreas do conhecimento.
A ideia inaugurada pelo historiador Marc Ferro excluía outros aspec-
tos do filme e definia a perspectiva da película como um agente históri-
co, ou seja, “a leitura histórica do filme”, ou o filme como documento, e
uma “leitura cinematográfica da história“ através do filme como represen-
tatividade histórica, construindo coordenadas para pesquisa no Campo
Cinema e História Os trabalhos de Ferro se desdobraram ao longo de
décadas seguintes a respeito da necessidade de filmes serem considerados
documentos históricos, tendo sido reunidos no seu livro Cinema e Histó-
ria (compilação de seus artigos) através de suas pesquisas acerca do filme
como propaganda do governo soviético e do governo nazista na Europa.
Como compreender as práticas de realização de cinema no Maranhão
na construção do espaço fílmico como lugar de resistência e memória nas
décadas de 1970/80 no contexto local da ditadura civil-militar? A proble-
matização de tal questão pode ser inserida na perspectiva de ‘Linguagens
e Culturas” no campo emergente da História e Conexões Atlânticas mais
precisamente no contexto da história “cis-atlântica”, pois: “estuda lugares
particulares como localidades singulares dentro de um mundo Atlântico e
busca definir essa singularidade como o resultado da interação entre par-
ticularidades locais e uma rede mais ampla de conexões-e comparações”

33
(ARMITAGE, 2014, p. 212).
Logo é importante evidenciar as práticas de realização de cinema ama-
dor superoitistas do Maranhão interpelando com as práticas contexto eixo
sul-sudeste quanto no Nordeste do Brasil, assim como investigar outras
práticas transnacionais e acionar um pluralismo metodológico.
Na interface desta (cinema) com outras linguagens quanto à forma de
olhar, tratar e falar acerca da vida cotidiana, dialogaremos como um campo
específico denominado História e Cinema, onde se problematiza no sen-
tido amplo as relações entre cinema e historiografia que vão para além da
discussão de pensar “o filme como um documento de discussão de uma
época e seu estatuto como objeto de cultura que encena o passado e expres-
sa o presente” (CAPELATO et al, 2011, p. 10) diante da amplitude das
práticas culturais de cinema.

O Cinema como espaço de construção narrativa no Maranhão

O tema-problema proposto aqui se refere aos discursos produzidos


acerca da dinâmica sócio-histórica da cidade (São Luís- Maranhão, por
exemplo) através das maneiras de fazer e dizer desses realizadores e realiza-
doras no período da ditadura civil-militar-empresarial no país.
No Maranhão nesse recorte temporal, foram realizados em torno
de 100 a 140 filmes dentre os gêneros documentários e ficção de curta-
-metragem e sua maioria expressos em bitola Super 8mm. Esses regis-
tros construíram espaços de micro liberdades, portanto micro resistências
construídas na materialidade do espaço fílmico condicionado pela câmera
amadora de Super 8 mm e pela câmera em 16mm nos dando pistas de
fragmentos materializados de memória tanto na forma subterrânea coti-
diana quanto na forma emergente nos Festivais fabricados como espaços
de exibição fora do contexto das práticas do circuito comercial do “cine-
mão” na ação de um cinema guerrilha.
A partir do evento da greve pela meia passagem dos estudantes secun-
daristas e universitários de São Luís do Maranhão em 1979 várias tem-
poralidades podem ser evidenciadas como a própria disputa nos espaços
da cidade em forma de reivindicação pelo direito à meia passagem através
da tensão entre a polícia militar e estudantes, assim como a realização do
filme maranhense A ILHA REBELDE OU A LUTA PELA MEIA
PASSAGEM (1980) do coletivo “Virilha Filmes”.

34
A existência do filme passou a ser um apêndice episódico na memória
a respeito da greve na posteridade. Contudo temos registros de que as
práticas de realização de cinema no Maranhão já vinham sendo materiali-
zadas desde 1973 com o documentário (realizado na cidade de Alcântara-
MA) A Festa do Divino (1973) realizado por Murilo Santos, membro do
LABORARTE
Diante do fenômeno das tecnologias digitais e popularização de pla-
taformas como o YouTube o filme A ILHA REBELDE OU A LUTA
PELA MEIA PASSAGEM (1980) emerge no ano de 2010 e finalmente
o filme realizado com a câmera filmadora amadora de bitola Super 8mm
do cineclube da Universidade Federal do Maranhão (Uirá) pôde ser visto
(ou revisto) e ganhou materialidade diante dos olhos ao passo que a di-
gitalização dá aura ao “original” (HUYSSEN, 2000) pois se para Walter
Benjamin a fotografia se constituiu como o meio primeiro de produção
no sentido genuinamente revolucionário, a digitalização e recuperação de
filmes constitui uma aura singular:

[...] com a mudança da fotografia para a sua reciclagem digital, a arte de repro-
dução mecânica de Benjamin (fotografia) recuperou a aura da originalidade. O
que mostra que o famoso argumento de Benjamin sobre a perda ou o declínio
da aura na modernidade era apenas uma parte da história; esqueceu-se que a
modernização, para começar, criou ela mesma a sua aura. Hoje é a digitalização
que dá aura à fotografia (HUYSSEN, 2000, p. 23).

Podemos dizer que o citado filme constrói um ponto de partida sobre


a problematização das práticas de realização de cinema no Maranhão. Ele é
um objeto para se desvendar outras falas, filmes e outros produtores cons-
tituintes da dinâmica do jogo de tensões, de silenciamento, esquecimento e
memória das práticas culturais relativas ao cinema como fala política de seus
protagonistas acerca de diversos temas que lhes chamaram atenção.
A partir dessa experiência fílmica CALDAS (2012) compreende que a
década de 1970 foi o espaço temporal no qual se verificam as iniciativas para
a produção de cinema no Maranhão, antes dessa geração não temos pistas
de realização de filmes com câmeras domésticas com intencionalidades de
narrativas cinematográficas tampouco em 35mm.
Importante ressaltar aqui a afirmação de UBALDO3 (2016): “...havia

3. João Ubaldo. Jornalista, documentarista e superoitista. Entrevista concedida dia 02/08/16.

35
muita câmera 8mm contrabandeada aqui. Muitas vezes as pessoas tinham
em casa uma câmera doméstica 8mm, mas nem usavam, ficavam guarda-
das”, apesar da caracterização de um artefato doméstico esses utensílios exi-
giam habilidades técnicas e eram utilizadas por classes médias e altas, como
será também a Super 8mm.
Desse modo, este filme sobre a greve de estudantes em São Luís- MA
é utilizado como ponto de partida para o percurso de investigação e pro-
blematização do fazer fílmico local, evidenciando a especificidade das prá-
ticas de realização de cinema no Maranhão sob a perspectiva da historio-
grafia. Trata-se de um período pontual (1970 à primeira metade dos anos
1980) onde os usos de uma câmera denominada Super 8 nos leva a chegar
a uma ideia de construção de espaços de fala ou ao que podemos chamar
de cinema superoitista ou cinema amador possibilitado por essa bitola, esse
dispositivo tecnológico/cultural que dialeticamente construiu uma prática
também estética, cultural e política.
A cinemática, ou seja, a imagem em movimento passou a exercer uma
relação democratizante através da produção dos usos de imagens no co-
tidiano doméstico, é um desdobramento do consumo principalmente de
câmeras Super 8, que se estabeleceu na década de 1970 como uma ferra-
menta na confecção de filmes caseiros possibilitando o exercício da lingua-
gem fílmica por meio do uso da câmera Super 8 - uma prática altamente
tecnológica recente na época.
Posteriormente, essa prática foi apropriada por indivíduos e grupos
com o propósito de registrar imagens em movimento, invertendo a ideia
inicial para qual o produto foi criado, para uso doméstico, pois inicialmen-
te o consumo das câmeras Super 8mm foram idealizadas para atender ao
mercado consumidor doméstico, o qual, segundo Roger Odin e a sua pro-
blematização sobre os modos de ver , se tratava de um modo privado de
produção de memória, porque o público do filme familiar é um público
privado pois, como sublinhou:

As imagens do filme de família funcionam não com representações, porém


como índices, permitindo que cada membro da família volte à sua própria
vivência e à de sua família. Isso explica por que um filme familiar é muito
entediante para aqueles que não são membros da família: eles não têm o
contexto e não entendem nada da sequência lógica de imagens às quais
estão assistindo (ODIN, 2005, p. 41).

36
Portanto, os usos da Super 8 foram ressignificados, saltando (literal-
mente) do seu uso inicial direcionado. Em outras palavras, o uso privado
“narcisista” da classe média ganhou um caráter coletivo de “câmera andan-
te” com intencionalidades sociais, políticas e artísticas em todo o mundo.
Diante do campo de pesquisa “Cinema e História” (ou “História e
Cinema”), na historiografia, surgem novas perspectivas e abordagens en-
tre historiadores e historiadoras profissionais. Propõe-se um projeto teó-
rico-metodológico para problematizar a imagem em movimento (imagem
audiovisual), ou seja, uma abordagem “sócio-histórica cinematográfica”. A
partir dos anos 1970, o cinema é elevado à categoria de “novo objeto” e in-
corporado definitivamente à operação historiográfica, dentro dos domínios
da História Nova. Isso traz a problematização do produto fílmico como um
“documento fílmico” em relação à cultura da imagem. Sobre essa determi-
nada teoria na operação histórica, Rüsen afirma:

Uma “teoria da história” consiste justamente na análise da pretensão de ra-


cionalidade da ciência da história. Ela é uma “teoria” da ciência da história
no sentido do conceito clássico de teoria, que nada mais significa do que
a análise de um determinado conteúdo em busca de suas determinações
racionais manifestas. Ela se volta para os fundamentos da ciência história,
sempre presentes e pressupostos quando se faz pesquisa histórica e quando
se escreve história com base em pesquisa; ela mostra ainda que e como
está presente nesses fundamentos a pretensão de racionalidade com que o
conhecimento histórico científico opera (RÜSEN, 2010, p. 13)

Apesar de o cinema ocupar um lugar de destaque na preocupação de


outros campos do conhecimento, no início da década de 1970, analisando
filmes soviéticos e nazistas produzidos em sociedades aparelhadas ideolo-
gicamente sob vigilância repressiva do estado como evidenciou Marc Ferro
referiu-se ao uso anônimo da câmera amadora 8 mm e 16 mm, nesse con-
texto, nos seguintes termos “... o filme se liberta mais e mais da instituição
que o governa: hoje, quando a câmera Super 8 e 16mm estão nas mãos de
qualquer pessoa, não há mais censura possível, a menos que se proíba a
venda de câmeras” (FERRO, 2010, p. 116).
Assim, a imagem em movimento saltou da moldura das telas de salas
de cinema e de TV’s dissolvendo as fronteiras entre os espectadores e os
produtores de cinema de forma anônima e resistente à ordem vigente.

37
Do ponto de vista de Pola Ribeiro, havia uma hierarquia no cinema
brasileiro ao considerar a tecnologia utilizada (bitola) e a lógica dos discur-
sos de seus idealizadores, pois para ele “os filmes em 35 mm dedicam-se a
construir monumentos; os 16mm propõem-se lhes colocar questionamen-
tos; e os Super-8 vêm para jogar merda nos monumentos”.4
Não é demais lembrar que nas produções da indústria do cinema usa-
vam a câmera com rolos de películas de 35mm (padrão desde filme tempo-
rão) de largura. Na televisão, em sua prática de gravação e de transmissão
(antes do vídeo tape) usavam filmes de 16mm (câmera utilizada pelos an-
tropólogos desde a década de 1920), assim como, nas práticas de gêneros
documentais (profissionais).
A partir dessa interpretação de Pola Ribeiro sobre o superoitismo e seu
caráter subversivo e “desmonumentalizante” das imagens, podemos dialo-
gar com a ideia do artista e poeta piauiense Torquato Neto quando percebe
o poder democrático da câmera super 8 (em dizer/registrar) sobre as locali-
dades de cada um quando convoca as pessoas a pegarem uma super 8 e sair
por aí filmando o que se achava importante: “uma câmera na mão e o Brasil
no Olho ”, ideia que transcendia sua “opinião de que a realidade seria mais
educativa do que qualquer história” .
Diante da constatação que o superoitismo caracterizou as práticas de
realização de cinema no Maranhão a partir da década de 1970, CALDAS
(2016) problematizou a experiência de realização de cinema e amadora lo-
cal ao se apropriar do conceito de ‘bricolagem” de Michel de Certeau para
pensar essa práxis de ocupação do não-lugar de cineastas e construção de
espaços fílmicos a partir de filmes localizados que até então ainda não ha-
viam sido analisados e problematizados a partir de sua materialidade (recu-
perados e digitalizados).
Consequentemente analisou a emergência subterrânea das realiza-
ções superoitistas às telas de cinema com seus “modos de fazer” e “de falar”
do superoitismo no (do) Maranhão através da fabricação do espaço para
o público dessas realizações, ao ser criado o festival de cinema I Jornada
Maranhense de Superoito em 1977 que diante de seus desdobramentos se
configura na atualidade denominado Festival Guarnicê de Cinema ( passou

4. RIBEIRO, Pola Apud. MACHADO, Rubens Jr. O Pátio e o cinema experimental no


Brasil: apontamentos para uma história das vanguardas cinematográficas. História, cinema e
outras histórias juvenis/ organizador, Edward de Alencar Castelo Branco. Teresina: EDU-
FPI, 2009, p-23.

38
a se identificar assim a partir de 2002 até o momento, a sua 46ª edição em
2023) um dos mais antigos festivais do país.
O Festival na sua inauguração sofreu censura prévia, e entre os fil-
mes que tiveram intervenção, foi o filme ZBM S/A de José da Conceição
Martins (consta em jornais da época).
A autora também compreende que o superoitismo caracteriza a cons-
trução de sentido de invenção do cinema como prática de realização na
história local através de ações subterrâneas iniciadas pelo LABORARTE
com o filme Maré Memória (1974) passando pelo exercício do cineclu-
be universitário Uirá da UFMA (participando e ganhando prêmios em
festivais) até emergir à condição de apropriação de espaço a partir da I
Jornada Maranhense de Super 8 em 1977 (monumento da geração 70),
construindo também um outro sentido, o de invenção de tradições recen-
tes de cinema local.
Dado este longo tempo, vale sublinhar que o evento carrega em si
uma dinâmica histórica decorrente de práticas de uma geração que, por
entrecruzamentos sociais e dinâmicas culturais, inventou tradições nos
campos do teatro, da música e do cinema.
Não é demais esclarecer que se compreende e se utiliza o conceito de
invenção da tradição nas práticas de realização de cinema local no Mara-
nhão, segundo os termos de Hobsbawm, para nossa problematização da
referida observação. Para ele:

O termo tradição (...) inclui tanto as tradições realmente inventadas, cons-


truídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de ma-
neira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tem-
po – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabelecem com enorme
rapidez. (...). As “tradições inventadas” são reações a situações novas que
ou assumem a forma de referências a situações anteriores, ou estabelecem
seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. É o con-
traste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a
tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns
aspectos da vida social que torna a “invenção de tradições” um assunto da
história contemporânea (HOBSBAWM, 1997, p. 10).

Para tal observação sobre a invenção de uma tradição de práticas de


cinema através do superoitismo, recorremos, dentre vários aspectos, aos de-
poimentos sobre a memória dos agentes desse contexto, dada a condição de

39
silenciamento dessas práticas cinematográficas até a emergência do primei-
ro festival de realizadores locais de cinema amador em 1977.
Dessa forma, para chegarmos a tal assertiva, compartilhamos também
da ideia de Maurice Halbwachs sobre a importância da memória coletiva
dos grupos superoitistas, pois segundo o autor:

Se colocarmos em primeiro plano os grupos e suas representações, se con-


cebermos o pensamento individual como uma série de pontos de vista
sucessivos sobre os pensamentos desses grupos, então compreenderemos
que eles possam recuar no passado e ir mais ou menos longe conforme a
extensão das perspectivas que lhe oferecem cada um desses pontos de vista
sobre o passado tal como é representado nas consciências coletivas das
quais participa. A condição necessária para que seja assim, é que em cada
uma dessas consciências, o tempo passado, uma certa imagem do tempo
subsista e se imobilize (HALBWACHS, 2004, p. 135).

Foram já localizados através de pesquisa historiográfica os filmes:


ZBM S/A (1977) de José da Conceição, Idade da Razão (1981) de We-
lington Reis e Ivanildo Ewerton, Periquito Sujo (1979) realizado por Luís
Carlos Cintra e Euclides Moreira Neto, Côco Amargo (1980) de João
Mendes, Pesadelo (1981) do Coletivo Virilha Filmes e E lá se vem o trem
(1983) de Nerine Lobão (destaque para direção e argumento da única
mulher nessa condição até então).
Filmes que discutem respectivamente a zona do baixo meretrício de
São Luís; a “loucura confinada do hospício e a loucura frenética da cida-
de”; o exílio e a trajetória do poeta maranhense Ferreira Gullar através do
seu “Poema sujo ” pra falar da cidade de São Luís; Sobre a invisibilida-
de social das Quebradeiras de Coco na mídia oficial e enfretamento de-
las com latifundiários; Filme a pedido do movimento civil em Defesa da
Ilha de São Luís conta a instalação do Consórcio Alumínio do Maranhão
-ALUMAR discutindo a invasão do alumínio (poluição) e desapropriação
de habitantes na cidade. Além de tantos outros filmes (documentos) que
podemos problematizar.
Destacamos também os trabalhos de pesquisa de COSTA (2015) que
analisa jornadas do festival maranhense e MORAES (2017) que analisa
filmes pedagógicos voltados para a educação popular na perspectiva de
“cinema engajado” também no recorte temporal de 1970/80.
Portanto sob a perspectiva de categorias como resistência e espaço de

40
memória ( tão caras na atualidade, pois “toda história é contemporânea”)
através do campo de observação da História e Cinema surgem interro-
gações sob a experiência de pesquisa no que diz respeito às práticas de
realização de cinema no Maranhão nas décadas de 1970 e 1980, levando
em consideração a construção de uma recente prática de problematização
historiográfica no Maranhão nossa investigação tem como objetivo evi-
denciar um ponto indispensável sobre esse recorte temporal da história
recente: o contexto da ditadura civil-militar e as tensões nessas relações
entre o estado e as realizações de cinema locais , assim como discutir a
amplitude de documentos, sujeitos e objetos históricos na complexidade
das relações entre construções de documentos, temporalidades e o ofício
dos historiadores e historiadoras na escrita da história.
As maneiras de fazer e dizer superoitistas contextualizaram novas for-
mas de olhar sobre determinados elementos, em determinadas situações,
de formas diferentes e sobre diversos sujeitos. O superoitismo foi segura-
mente ferramenta na tática de construção de espaço e de fala de resistência
sobre questões marginais e subterrâneas, assim como sua própria condição
de bricolagem cinematográfica na “escrita da história”, pois o cinema tam-
bém é lugar de memória.
Nessa perspectiva, dialogamos com Bill Nichols quando argumentou
que “todo filme é um documentário’. Mesmo a mais extravagante das ficções
evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que
fazem parte dela. As práticas do fazer fílmico, em suas várias experiências,
adquirem várias intencionalidades, seja no contexto político ou em casos
específicos de autoafirmação diante de situações historicamente datadas.
Portanto o superoitismo inventa o cinema como prática de produção
de discursos no Maranhão, uma outra vaga como espaço para se falar e
fazer sobre. Logo, as maneiras de fazer e dizer superoitistas contextuali-
zaram novas formas de olhar sobre determinados elementos, em deter-
minadas situações, de formas diferentes e sobre diversos sujeitos. O su-
peroitismo foi seguramente ferramenta na tática de construção de espaço
e de fala de questões subterrâneas, assim como sua própria condição de
bricolagem cinematográfica na construção da narrativa historiográfica so-
bre o Maranhão.

41
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FILMOGRAFIA

A ILHA REBELDE OU A LUTA PELA MEIA PASSAGEM. Direção/


Produção: Raimundo Medeiros/Euclides Moreira Neto/Carlos Cintra. São
Luís- MA: Virilha Filmes, 1980. Super 8mm digitalizado no YouTube (30
min.).

COCO AMARGO (1980) de João mendes e Pesadelo (1981) do Coletivo


Virilha Filmes: São Luís. Curta Metragem. Ficção. 9’.

DUELO ( 3´17). Um filme de Daniel Santiago para a Cadeira de Cine-


ma (professor Lúcio Lombardi), do Curso de Jornalismo da Universidade
Católica de Pernambuco, 1975. Original em 16mm. Direção e Roteiro de
Daniel Santiago. Câmara, Edição e Som: Lima. Atores: Daniel Santiago e
Paulo Bruscky.

E LÁ SE VEM O TREM. Direção, Roteiro e Argumento: Nerine Lobão.


Montagem: João Ubaldo. Sonorização: Wellington Reis. Narração: Murilo

44
Santos. São Luís: MA, 1983, Super 8mm.

IDADE DA RAZÃO (1980) de Ivanildo Ewerton e Welington Reis. Docu-


mentário. Curta Metragem. 6:10’.

PERIQUITO SUJO (1979) de Carlos Cintra e Euclides Moreira Neto. Ex-


perimental. Média Metragem, 27:07’. Super 8mm.

PESADELO (1981) do Coletivo Virilha Filmes. Ficção. Experimental.


Curta Metragem. Super 8mm.

ZBM S/A (1977) de José da Conceição Martins. Documentário. Curta


Metragem.6:05’. Super 8mm.

45
mulheres na educação na memória de
antônio sampaio pereira – piauí (1900-1930)

Lorena Maria de França Ferreira1

Uso da memória na história

A historiografia tem discutido a questão relacional entre a história e


a memória, baseando, no entanto, conferir maior autonomia à memória.
Assim como forma de igualar as duas a memória é aproximada demasia-
damente da noção de história. Essa aproximação entre elas nos permite
como historiador a usar a memória, ou as memórias, como fonte histórica
que aborda a vida do indivíduo, a de um grupo e também que contribui
para o entendimento de um período ou de um povo.
E a memória existe fora de nós, inscrita nos objetos, nos espaços, nas
paisagens, nos odores, nas imagens, nos monumentos e nos lugares mais
variados, sendo preciso reconhece-la em seu próprio movimento, ao mes-
mo tempo espontâneo, interessado e descontínuo, o que pode conduzir a
história a uma abertura em direção a outros lugares.
Além de perceber através da história de vida do próprio sujeito cons-
trutor da memória, que neste momento não seria o historiador, mas o
personagem da memória, assim como expõe Walter Benjamin em A mo-
dernidade e os modernos (2000) onde “ a narração não visa, como a informa-
ção, a comunicar o puro em si do acontecido, mas o incorpora na vida do
relator, para proporcioná-la, como experiência, aos que escutam. Assim,
no narrador, como a impressão da mão do oleiro sobre o pote de argila”
(BENJAMIN, 2000, p. 36-37).
1. Doutoranda (Bolsista Capes) em História pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA
no Programa de Pós-graduação em História. Perfil: http://lattes.cnpq.br/9548572381548856
Essa memória podia ser percebida de forma singular, no entanto tam-
bém pode ser pluralizada, pois “a experiência é um fato de tradição, tanto
na vida privada quanto a coletiva” (BENJAMIN, 2000, p. 34). Assim o
uso da memória de Antônio Sampaio Pereira apoia-se nos conceitos de
memória coletiva e de memória histórica de Maurice Halbwachs (1990),
ao tratar que a memória individual não está isolada da memória coletiva,
sendo que o sujeito por diversas vezes precisa recorrer a memória de um
grupo, tomando-a como ponto de referência que existe fora de si. Além
disso através do conceito de memória individual é possível delimitar a
memória de Sampaio ao ter como conhecimento que a memória do sujeito
é limitada no espaço e no tempo.
Diante do estudo de Halbwachs sobre a memória autobiográfica e
memória histórica tem-se que a memória de Antônio Sampaio se apoia
na segunda, pois ele se enquadra em um contexto/história geral, nesse
caso a inserção feminina na educação e a expansão do ensino público e
privado no Piauí nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas
do século XX.
Essa memória condiz com a posição social ocupada por Antônio
Sampaio, pois conta sua história de vida e seu contato com os professores
e os ambientes escolares onde conheceu ou não alguns mestres e atividade.
Apesar dessa possibilidade a obra avaliada não perde seu valor de estudo,
pois compreendo que

A memória se modifica e se articula conforme posição que ocupo e as rela-


ções que estabeleço nos diferentes grupos de que participo. Também está
submetida a questões inconscientes, como o afeto, a censura, entre outros.
As memórias individuais alimentam-se da memória coletiva e histórica e
incluem elementos mais amplos do que a memória construída pelo indi-
víduo e seu grupo. Um dos elementos mais importantes, que afirmam o
caráter social da memória, é a linguagem. As trocas entre os membros de
um grupo se fazem por meio da linguagem. Lembrar e narrar se consti-
tuem da linguagem. Como afirma Ecléa Bossi a linguagem é instrumento
socializador da memória pois reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço
histórico e cultural vivências tão diversas como o sonho as lembranças e as
experiências recentes (KESSEL, s.a., p 3-4).

Essa linguagem utilizada nesta memória em estudo seria a própria pro-


dução e a narração ímpar do Antônio Sampaio ao fazer narrativas detalhadas

48
sobre os espaços e as pessoas, evidenciando os detalhes de comportamentos
e físicos dos professores, como de Janoca que era tida como solteirona e de
chora fácil e também as vivências em ambiente escolar, como os castigos
físicos em qual se utilizava à palmatória e de atitudes que colocaria a criança
em condições subjugada.
Além desses momentos e características os locais de ensino e a cidade
de Esperantina seriam o local de memória do sujeito estudado, de acordo
com o entendimento proporcionado por Pierre Nora (1993). O pertenci-
mento de Antônio Sampaio é percebido a partir de sua referência de local,
principalmente do povoado em qual fez parte Retiro de Boa Esperança.
O sentimento de pertencimento a um grupo ou a um local retrata bem a
construção da memória de Sampaio Pereira, pois muitos acontecimentos
não lhe atingiram, mas ao participar daquela sociedade e ter ligações com o
ambiente local acabou por tomar as memórias do grupo para criar de forma
cronológica uma história da educação de Esperantina.
Ele toma como referências as vivências de um local e se conecta aos
acontecimentos que aconteciam pelo Estado, como é possível perceber pe-
las Mensagens Governamentais do período em que os governadores dis-
cursão sobre os seus anseios sobre a educação e sobre a atuação feminina
no cargo de professoras por todo Estado. Revelando à vontade em prol de
inserção feminina nas Escola Normal e nas escolas infantis.
Como forma de interpretar os traços culturais pode-se dialogar com
os conhecimentos sobre as memórias produzidos por Aleida Assmann em
Espaços de Recordação (2011), por perceber que os sujeitos falam de si e dos
outros nos seus escritos. Essas memórias são recordações ou rememorações
sobre o passado, em quais são dadas as suas significações de acordo com o
que se pretende construir sobre o tempo e os sujeitos. Constrói-se o que
quer dar visibilidade e silencia-se o que pretende esconder, provoca um
processo de memória montada de acordo com os desejos dos sujeitos, não
se ver a memória como algo espontânea e despretensiosa.
Essas memórias são criadas a partir dos interesses individuais ou co-
letivos em que, muitas vezes, se direcionam para a formação de repre-
sentação de si ou de algo. Isso pode ser percebido pelas seleções e frag-
mentações de informações sobre o passado que se mostra descontínuo e
elaborado através das linguagens.
Para isso trago a contribuição de José D’Assunção Barros (2009) sobre
a memória que deve ser superada como um depósito de informações que

49
estão lá disponíveis esperando pelo historiador para consultá-la, mas como
algo criativo que está em pleno movimento de construção e desconstrução
para os indivíduos e os grupos sociais. “A memória dá-se de maneira ati-
va e dinâmica, envolvendo diversos aspectos, tal como o “comportamento
narrativo” (BARROS, 2009, p. 41), sendo necessário o uso da Linguagem
para que se tenha de fato clareza a memória como uma possibilidade de
desenvolvimento do conhecimento histórico.
Por último pretende-se pensar através das representações nas práticas
culturais em que se cria as significações sobre os sujeitos de acordo com os
interesses individuais ou coletivos. As representações podem ser entendidas
como fabricações de modelos a serem seguidos pelos sujeitos, o que pode
gerar o enquadramento desses nos modelos ou um processo de exclusão
(CHARTIER, 1990). Representa-se o desejável e o indesejável com o in-
tuito de intitular os sujeitos como pertencentes em categorias culturais e
sociais de um tempo e de um espaço, assim delineia-se modelos nos corpos
existentes a fim de que eles sejam modelos a serem seguidos ou não.
Essa abordagem teórica sobre a memória contribuirá para entender
as construções presentes nas produções discursivas, em que são escolhidas
as formas em que iriam retratar a formação de um grupo de professoras
habilitadas pelo poder público estadual para atuação nas escolas primárias
como coloca Antônio Sampaio Pereira. Essas mulheres eram retratadas
como agentes do poder público que conduziriam a população, em especial
as crianças, para os desenvolvimentos sociais tão estimados na República
e como representações do que seria ser mãe, mulher e esposa ao serem co-
locadas como responsáveis pelas crianças nas escolas e em outros espaços
públicos, oportunidade de obtenção de esposas com conhecimento cientí-
fico e doméstico as quais contribuiriam para a manutenção do casamento
e da família no espaço privado.

Mulheres na Memória de Antônio Sampaio Pereira

Nos anos iniciais do século XX, no Brasil, a educação continua como


um processo de melhoramento social que vinha antes mesmo de se ins-
taurar a República. A educação desde o período imperial passa a ser um
instrumento de adequação social aos padrões de civilidade trazidos dos
países europeus ao Brasil, algo que foi bastante defendido e difundido
tanto por intelectuais quanto pelos governantes. Ansiava-se difundir o

50
ensino pelo Brasil, isso estava ligado ao modelo de política instalado, a
República, que contava com o voto como uma das formas de exercer o
direito político nas eleições.
A República se configura como um momento de jogo político que atin-
ge a esfera da educação diante da necessidade de formar uma população al-
fabetizada que pudesse votar. Dessa forma, educar uma grande quantidade
de pessoas era uma das questões da República nos anos iniciais do século
XX, mas isso requeria que o poder público investisse em um ensino que
atingisse a parte mais pobre da sociedade, assim deveria ser um momento
de educar os pobres para que o número de votantes aumentasse.
Para que houvesse o aumento de pessoas educadas a educação teve que
se expandir para vários locais do Estado do Piauí, com o intuito de alcançar
uma maior demanda da população que não se encontrava na capital. Diante
dessa expansão é possível analisar fragmentos das histórias de povoados que
aos poucos, até mesmo de forma rudimentar passaram a desenvolver um
pouco do ensino.
Para a contribuição dessa expansão educacional este artigo aborda as
memórias de Antônio Sampaio Pereira em Velhas Escolas-Grandes Mestres
(1996), o qual conta as suas memórias sobre a educação no final do século
XIX e nas primeiras décadas do século XX no Retiro da Boa Esperança, ci-
dade de Esperantina no interior do Piauí. O mesmo evidencia a atuação dos
professores, os ambientes de ensino e a relação entre o mestre e o aprendiz,
e também desses com a sociedade.
Sampaio ainda retrata o processo de modernização pelo qual estava
passando o ensino nas primeiras décadas do século XX, devido a maior
participação do Estado do Piauí no desenvolvimento e aplicação do mesmo
diante das pretensões educacionais trazidas pelas ideias de modernização da
educação no período referente ao que seria a Primeira da República Bra-
sileira. A modernização provocada pelo poder público estadual acontecia
desde a mudança quanto ao ambiente escolar, a mão de obra necessária para
as atividades de professor, até mesmo as pedagogias, como o abandono do
uso de castigos físicos.
Antônio Sampaio Pereira evidencia o papel desempenhado pelos pro-
fessores, os quais tinham com o objetivo passarem os seus ensinamentos
para uma grande quantidade de alunos, os mesmos atuaram em povoados
ou em regiões com núcleos habitacionais de maior densidade demográfica
onde poderiam se fixar por tempo indeterminado, em que sua permanên-

51
cia dependia do pagamento pelos seus serviços prestados. Dessa maneira,
quando na localidade em que se fixava o ensino fosse suficiente e não hou-
vesse mais alunos para serem educados, caberia a ele se deslocar para outro
lugar que necessitava de seus serviços. Pois “quando começava a escassear a
safra de discípulos, isto é, quando os meninos em ponto de escola já esta-
vam devidamente letrados, em vez de esperar por nova rebação, mestre Be-
larmino, à guisa de dar provimento aos encargos do lar, fazia como fazem as
aves de arribação, ruflam as asas e levantam voo” (PEREIRA, 1996, p. 18).
Também a relação dos mestres com os seus discípulos é evidenciada
por Antônio Sampaio Pereira possibilitando perceber a pedagogia que es-
tava em voga nessa. O poder do mestre sobre o aprendiz era determinado
através de sua postura e função de disciplinador intelectual e também da
formação dos corpos. No entanto, o uso da autoridade que lhe era destinada
possibilitava comportamentos de exacerbado poder os quais utilizava cas-
tigos físicos e também de exposições dos alunos, as quais os colocavam em
situações de constrangimento. Assim, aos castigos se configuravam como
extremamente duros para que fosse dada aos professores uma autoridade
superior, atribuindo-lhes a fama de serem carrascos, os quais não hesitariam
em aplicas correções aos seus aprendizes.

Entre os castigos que o famoso Bola-de-Ouro costumava aplicar, quero,


abreviando a coisa, destacar o seguinte: conforme a gravidade da falta co-
metida – quase sempre uma lição mastigada ou um translado mal feito – o
discípulo relapso era posto de joelhos em cima de montinhos de caroços
de milho, com os olhos vendados por grotescos óculos de caco de caba-
ça, ou então, caso fosse época da canícula e o sol estivesse abrasador, era
mandado para o terceiro, onde ficava descalço no da areia quente, tendo
ainda tinha cadeira na cabeça, sobre a qual Mestre Belarmino colocava
uma pedra bem crescida, ou em falta de pedra, qualquer objeto pesado.
E se o sujeito era mesmo tapado, sendo incapaz de resolver direito a lição
de leitura e escrita, Mestre Belarmino punha-o de quatro-pés no meio da
sala, a fim de ser cavalgado por um discípulo mais aberto, que o esporeava
com os calcanhares nos vazios, mostrando aos outros a quem passava, que
o pobre coitado era mesmo um burro (PEREIRA, 1996, p. 25).

A valorização dos mestres pela sociedade interiorana de Esperantina


e das localidades próximas, de acordo com Antônio Sampaio, era atribuí-
da devido ao grande valor positivo que os mesmos recebiam, pois eram

52
vistos como possibilidade de mudança do meio social ao ensinarem às
crianças as primeiras letras e a fazerem algumas contas de matemática.
Essas além dos ensinos tidos como habituais, também adquiriam conhe-
cimento sobre outras ciências, pois quando o mestre “descobria que um
discípulo era mais curioso do que os outros, passava-lhe, reservadamente,
outras ciências, tendo saído de sua casa grandes e respeitados benzedores”
(PEREIRA, 1996, p. 22).
A mudança inicial aconteceu com o abandono do uso de ambientes
escolares privados para o uso de escolas públicas através da criação de
estabelecimentos escolares do governo estadual. Nesse momento a cons-
trução da escola ou de um ambiente escolar passou a ser responsabilidade
do Estado, assim não cabia mais a população a manutenção a seus custos
de um ambiente.
Além disso, também com a mudança no ensino houve a substituição
do educador, o mestre foi retirado do ensino infantil aos poucos, dando
espaço para
as professoras que no início do século XX eram contratadas pelo Es-
tado. A atuação das mulheres no ensino estava ligada a ideia de moderni-
zação do mesmo, sendo o poder público responsável para que acontecesse
esse processo de inserção feminina na educação.

Tão logo surgiram as principais professoras mandadas pelo governo, para


ensinarem de graça – coisa que admirou todo mundo, os velhos mestres
sumiram, como por encanto, muitos deles quase morrendo traumatizados,
e, capitulando, entravam para o interior, à maneira do aborígene, que, à
proporção que a civilização vai avançando ao encontro dele, com a mes-
ma pressa ele vai se enterrando nas matas, buscando refúgio e evitando
contato.[...] Foi uma refrega extraordinária aquela luta travada com armas
desiguais entre o mestre que cobrava até dois mil reis por cabeça e a pro-
fessora que não cobrava nem um vintém dos alunos, pois recebia os santos
cobres do bolso do governo, em ordenado fixo, inclusive quando em gozo
de férias, cujo privilégio os velhos mestres contratados jamais desfrutaram,
nem tão pouco tinham ouvido falar (PEREIRA, 1996, p. 52).

A substituição da mão de obra exposta nas memórias de Antônio Sam-


paio Pereira também foi possível de compreensão através da Mensagem
Governamental, de 1909, sob a autoria do governador Anízio Auto de
Abreu à Câmara Legislativa. O mesmo governador em sua mensagem des-

53
taca e defende a substituição dos mestres pelas professoras afirmando que
isso não causaria resultados negativos ao Piauí.

Não encontro grandes dificuldades em tentarmos a substituição do nosso


professorado por outro mais idôneo, competente e capaz. Pouco do que
exercem o magistério primário, são nomeados vitaliciamente, de modo que
a reforma não empacará com dificuldade dos direitos adquiridos (ESTA-
DO DO PIAUÍ, 1909, p. 28).

No governo de Antonino Freire, no referido ano, houve a defesa do


uso da mão de obra feminina, evidenciando não somente as vantagens para
o ensino como a sua aptidão com o público infantil, como também para o
poder público do Estado, com a possibilidade de pagar um valor menor por
sua atuação no ensino.

O regulamento estabeleceu ainda a preferência do elemento feminino


para o professorado primário.
Duas razões principais atuaram no meu espírito para semelhante pre-
ferência. A primeira e a mais poderosa foi a natural aptidão da mulher
para o desempenho daquelas funções. Mais afetiva do que o homem, ela
está, por isso, muito mais apta para ensinar crianças e acompanhar-lhe os
primeiros albores da inteligência.
A segunda razão foi a exiguidade dos vencimentos que o Estado oferece
aos professores. Com a carestia atual da vida, é absurdo pensar em obter
preceptores dedicados ao magistério, pagando os minguados ordenados
do orçamento. A mulher, porém, mais fácil de contentar e mais resigna-
da, e quase sempre assistida pelo marido, pai ou irmão, poderá aceitar o
professorado e desempenha-lo com assiduidade e dedicação, não obstan-
te a parcimônia da retribuição dos seus serviços (ESTADO DO PIAUÍ,
1910. p. 27).

Com as novidades vindas da modernização do ensino, Antônio Sam-


paio Pereira evidencia a forma de relacionamento do professor com o aluno
passou por mudanças diante da nova pedagogia sob a qual como forma de
educação o “castigo físico é proibitivo” (PEREIRA, 1996, p. 52), sendo
mais um atrativo quanto a atuação das professoras nas escolas do interior.
Assim, a população e os alunos se sentiam mais atraídos pela atuação des-
sas, diante dos novos métodos de ensino.

54
Quando o governo havia mandando a professora, foi logo recomendado
que na escola dele não havia palmatória, nem tão pouco era para se bater
em filho alheio. Em vez de maltratos e duros castigos, a meninada devia
ser mandada para o meio da rua, para os folguedos do recreio, onde fica-
vam soltinhos da silva, pulando e metendo de cabeça, como porco brincan-
do com palha, adivinhando chuva (PEREIRA, 1996, p. 53).

Dessa maneira, a atuação feminina na educação além de contar com os


discursos do poder público diante dela, também teve apoio da população,
dos pais e filhos, que as identificavam como uma oportunidade de ensinar
com base gratuidade, mas também com as suas formas de se relacionar com
a criança, desempenhando o papel que ia muito além do ensino das primei-
ras letras, chegando a educação com afeto ao aprendiz.
Além disso a memória de Antônio Sampaio expõe uma característica
que era defendida pelo poder público do Estado para a atuação feminina no
ensino infantil, que neste caso era a característica do estado civil das novas
professoras que deveriam se manter solteiras ou “solteirona” como o próprio
coloca a partir da atuação de Janoca no interior de Esperantina:

Só entre a segunda e a terceira década do século andante podemos apon-


tar uma porção deles, dentre os quais ocupam lugar de destaque as figuras
impolutas de Mestre João Paulo, Mestre Levi Saavedra, Mestre Félix e a
exótica mestra Joaninha Pinheiro – a Janoca – que a despeito de ser brasi-
leiríssima da gema, embolava a língua, num sotaque puramente saxônico,
podendo ser tomada como uma mestra importada das terras de além-mar
[...] Solteirona, como aliás não poderia deixar de ser, tinha parentes cá por
estas bandas, mas andava sempre de déu em déu, desobrigando-se dos
compromissos que assumia com sua grande e certa clientela. Muito pren-
dada que era, mal pensava em deixar uma casa, há muito que estava de maca
arrumada, para instalar-se em outra. Sempre que apresentava as despedidas
havia choro e lamentações, tão dócil era a mestra, e, com sua saída, vinha
desolação para todos da casa que ela deixava (PEREIRA, 1996, p. 32).

Com essa passagem que põe em evidencia a professora como soltei-


rona, é possível indagar sobre o modelo desejado de professora no Piauí, a
qual deveria ter o papel de mãe em sala de aula e para isso deveria se manter
solteira, no intuito de se manter de acordo com suas funções no ensino. A
educação seria um sacerdócio, onde a maternidade seria aflorada a partir da
educação das crianças.

55
Conclusão

A educação no Piauí durante os primeiros anos do século XX foi idea-


lizada. Seu desenvolvimento pelo poder público estadual de acompanhar,
as novidades vindas com a modernização. No entanto, mesmo com as pre-
tensões e percepção diante da adoção do moderno para que acontecesse
esse desenvolvimento, os caminhos seguidos para isso pelo Estado foram
tortuosos, cheios de dificuldades. O Estado aliou-se as mulheres na busca
de produzir uma educação moderna.
O Piauí não tinha condições financeiras e nem estruturais para pôr em
prática as ações que lhe enquadrariam enquanto Estado sob os moldes mo-
dernos da educação. As condições financeiras enfrentadas eram as piores,
devido ao pouco desenvolvimento econômico piauiense no período, caben-
do ao Estado criar medidas que o possibilitasse em manter o que já havia
sido conquistado, e aos poucos avançar em direção ao desenvolvimento.
Assim o ensino no Piauí se desenvolveu de forma lenta, de acordo
com as possibilidades que lhe eram impostas, muitas vezes só acontecendo
reformas de cunho estrutural. Para tanto foram destinadas ações baseadas
nas novas ideias médicas e higienistas vindas com a modernização que
ganharam aos poucos importância tanto no desenvolvimento das cidades
como também do ensino.
Essas novas ideias possibilitaram mudanças no meio urbano, ao de-
fenderem a existência de um espaço higienizado no qual as práticas tra-
dicionais do mundo rural deveriam ser extintas para a predominação das
práticas modernas. Para isso, o poder público local criou discursos e me-
didas sobre a necessidade de mudança e adaptação social diante dos mo-
delos europeus de civilidade. Estes incidem sobre o corpo da população,
especialmente das professoras e dos alunos.
Juntamente com a necessidade de mudança do meio urbano veio tam-
bém a de mudar a educação. Essa contou principalmente com a mudança
de sua pedagogia que nesse momento passou substituir a tradicional pela
moderna. A educação piauiense não contemplaria apenas o ensino das
primeiras letras, mas também as percepções o corpo moral e o cívico, bem
como corpo, através das novas disciplinas escolares impostas pelo desejo
de modernizar-se.
As mudanças na formação dos professores acontecerem desde a mu-

56
dança da concepção de atuação feminina diante do ensino, a qual ocupou o
lugar antes de presença apenas masculina. Além disso, a criação da Escola
Normal foi determinante para que a nova pedagogia fosse inserida no en-
sino piauiense, pois era através do ensino normal que acontecia a formação
das futuras professoras sob as novas metodologias e práticas.
Dessa maneira, nas três primeiras décadas do século XX, a educação
destinada não apenas à infância, mais também ao ensino das normalistas
trouxe mudanças, novidades do mundo moderno no campo pedagógico,
educação essa foi perpassada pelos conhecimentos intelectual, moral e cí-
vico e também sobre o corpo. Os quais se destinavam para o desenvolvi-
mento social, nacional e estadual.
Essas mudanças de sujeitos, de condições e também da expansão
da educação no Piauí nas primeiras décadas do século XX passam a ser
perceptível na memória de Antônio Sampaio Pereira e também por do-
cumentos oficiais produzidos pelo poder público do Estado do Piauí. A
comparação desses dois tipos de fontes históricas, que sendo de natureza
diferente nos mostra que a história pode ser produzida a partir de fontes
de memória e literária não sendo entendidas como fontes que não devem
ser questionadas, assim como as fontes ditas primárias que também devem
ser trabalhadas como fontes de produções históricas, as quais passam por
ações de subjetividades.
A subjetividade aqui que mais interessa é a de Antônio Sampaio por
representar de forma rica a mudança de uma velha forma de educar em prol
e uma nova, que adotou modelos de civilidades, novas pedagogias e novos
sujeitos: o feminino e o infantil. Essa subjetividade, no entanto, não é per-
cebida como uma escrita que trata de forma real o que aconteceu, mas que
através dos objetos e sujeitos participantes ou não da história de vida, mes-
mo que de maneira fragmentada, dele possibilitaram a formação de uma
fonte para a produção historiográfica.

REFERÊNCIAS

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cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas, São Paulo: Editora Unicamp,
2011.

BARROS, J. D’A. “História e memória – uma relação na confluência entre

57
tempo e espaço”. MOUSEION, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009.

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CHARTIER, R. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de


Janeiro/Lisboa: Bertrand/Difel, 1990.

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ra Legislativa pelo Governador Dr. Anízio Auto de Abreu. Teresina: Tipogra-
fia do Piauí, 1909.

ESTADO DO PIAUÍ. Presidente da Câmara, 1910. Mensagem apresenta-


da à Câmara Legislativa Estadual pelo Presidente da mesma, Manoel Raymun-
do da Paz. Teresina: Tipografia do Piauí, 1910.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

KESSEL, Z. MEMÓRIA E MEMÓRIA COLETIVA. Museu da Pessoa,


[sem data].

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo:


Projeto História, 1993.

PEREIRA, A. S. Velhas Escolas – Grandes Mestres. Teresina: COMEPI,


1996.

58
traços de produções históricas piauienses:
o uso do gênero na história local

Lorena Maria de França Ferreira1

Introdução

Os questionamentos sobre a história e suas funcionalidades são an-


tigos, desde antes de sua constituição no campo das ciências humanas e
sociais. No entanto, apesar da longa data desses ainda há indagações feitas,
como expõe Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Para que serve a
história? (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001), onde coloca que por muito
tempo se utilizou a história para se formar o sentimento de pertencimento
a pátria, o cidadão burguês e o soldado da nação. E também com a história
tentou se construir o revolucionário que agiria para emancipar a sociedade.
No entanto o autor coloca que esses modelos de história foram caindo
em descredito, assim surgindo novos questionamentos sobre sua real fun-
ção, provocando mudanças em historiadores e em outros pesquisadores e
teóricos como Hayden White que ao escrever o Fardo da História (WHI-
TE, 1994) coloca que “a história tem a finalidade de nos ensinar exatamen-
te a conviver com a diferença e com o descontínuo” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2001: p. 1). Sendo sua função nos mostrar a historicidade da
produção do que somos e pôr em questão o que realmente somos, provo-
cando a desnaturalização do sujeito criado.
Assim a história quebra com a percepção de natural sobre os sujeitos
provocando rupturas e continuidades a partir de outras perspectivas, pois de
acordo com Albuquerque Júnior:
1. Doutoranda (Bolsista Capes) em História pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA
no Programa de Pós-graduação em História. Perfil: http://lattes.cnpq.br/9548572381548856
A história é introduzir o descontínuo em nós mesmos, pensando a possibilidade
de recriar o tempo para nós mesmos, construindo uma nova temporalidade para
nós mesmos, que não tenha obrigação de ser a continuidade desse tempo an-
terior, desse tempo que nos fez, que nos produziu, que nos fez chegar até onde
somos. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001: p. 1)

Produzindo a reflexão sobre como chegamos ao que somos, realizando


e desconstruindo o que nos é apresentado como identidade (ler-se história)
desfazendo ou criando novas representações, sendo essa história auxiliadora
na reflexão do próprio ser e dele com os outros e também com o mundo.
Ainda sobre a construção da história nacional podemos apontar Edgar
Salvadori Decca o qual no texto História, acontecimento e narrativa (DEC-
CA, 2004) que foi produzido para a conferência do Encontro Regional da
ANPUH – Piauí em 2004 expõe sobre sua trajetória de vida e suas escolhas
pelos estudos da história. Neste texto ele expõe que a história é narração
dos acontecimentos históricos, lhes atribuindo sentido ocorrendo assim a
diferenciação ente história e memória.
Para o autor “o conhecimento histórico é um conhecimento que se
opera na perspectiva da distância, o historiador conta aquilo que ele não vi-
veu, não experimentou, portanto, ele conta de fora daquilo que aconteceu”
(DECCA, 2004: p. 22), sendo assim o historiador se apropria do conhe-
cimento ou memória do outro para criar uma narrativa que tenha sentido,
julgando e tendo mais conhecimento do passado por se viver em outros
tempos. Além disso a história narrada, muitas vezes, ganha voz através da
perspectiva do vencedor pois essa narrativa é sempre contada do presente
em perspectiva do passado, no qual o presente se impõe e monta sua verda-
de sobre o que já passou.
Já a memória apesar de ser também um ato de se voltar ao passado,
assim como a história, ela se dispõe a recuperar ou reviver o que ficou no
passado, assim ela tem pode “repor a intensidade do passado no presen-
te” (DECCA, 2004: p. 21) sem colocar qualquer distanciamento dos fatos
ocorridos, misturando passado e presente em um só.
Assim a história e os questionamentos sobre o passado seriam cons-
truídos a partir da rememoração e da criação de uma narrativa dos fatos,
possibilitando transformar o passado e dar-lhe novas percepções, sendo as-
sim Decca nos possibilita pensar na história como construtora de um pas-

60
sado e as ações dos historiadores para isso, mostrando que os objetos de
estudo ganham destaque a partir de sujeitos que selecionam fatos e sujeitos
que desejam evidenciar e silenciam outros, assim como ocorreu com a cons-
trução da história do Brasil que por muito tempo elegeu se conhecer apenas
os sujeitos e discursos dos vencedores.
Para isso pensarmos nas produções e nas pesquisas sobre a história do
Brasil podemos abordar o texto de José Honório Rodrigues intitulado A
pesquisa histórica no Brasil (RODRIGUES, 1978). De acordo com o autor
a pesquisa é a descoberta de novos fatos históricos e também de críticas
documentais que tem com função além de dar as informações, e também
comprovar que eles existiram, possibilitando que eles possam ser usados
na produção histórica. Além disso Rodrigues também coloca que “cabe à
história reunir os acontecimentos de tal modo que o sucedido fique repre-
sentado diretamente aos nossos olhos, depois devemos estabelecer os laços
dos acontecimentos” (RODRIGUES, 1978: p. 24).
Dessa maneira cabe ao historiador criar ligações entre os fatos através
da narrativa que ele cria, não existindo nenhum fato histórico isolado,
havendo a necessidade de haver um conjunto de acontecimentos ou fatos
históricos. Pois o papel do historiador é selecionar e dar luz a alguns des-
ses, já que não é possível criação de uma história que consiga comportar
todos eles, assim ele os julga e os determina quais serão mais úteis diante
da produção que pretende criar.
Além disso, é possível se pensar na construção da história do Brasil
diante das vontades e determinações desde a criação do Instituto Históri-
co e Geográfico Brasileiro no dia 21 de outubro de 1838 até as produções
atuais. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro asso-
ciou-se ao nacionalismo que era presente no Brasil após a independência
e também pelas produções do romantismo, sendo norteado pela elite po-
lítica “moderada” que tinha pensamento político e histórico nitidamente
historicista. “A principal finalidade do IHGB era o desenvolvimento dos
conhecimentos geográficos e históricos no Brasil, pelo estimulo a pesqui-
sa com o reconhecimento, nas províncias e no exterior, de documentos
relativos à formação brasileira, pelo estimulo à produção de trabalhos”
(RODRIGUES, 1978: p. 10-11).
As produções após a criação do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro ampliou-se as temáticas de estudo sobre a história do Brasil, pos-
sibilitando o aparecimento de outros sujeitos (negros, pobres, imigran-

61
tes, mulheres e crianças) como também de outras formas de se escrever
história (cultural, social e mentalidades) em especial nos anos de 1960
até hoje. Assim o presente trabalho tem como objetivo delinear através
da produção historiográfica nacional e piauiense sobre as representações
do feminino, partindo da perspectiva das novas produções históricas pelo
estudo do gênero e da história das mulheres. Para isso este trabalho de
forma inicial as questões sobre a história e sua consolidação através da
historiografia brasileira.

Produção historiográfica sobre as mulheres

O universo de possibilidades dos estudos históricos se tornou mais


amplo a partir da contribuição da Nova História nas últimas décadas do
século XX. A expansão do conceito que se tinha sobre o que era história
se fez de forma mais acelerada a partir de novas concepções sobre o papel
do historiador e do uso de fontes.
A expansão do conceito de história se deu, principalmente, pela par-
ticipação e importante contribuição da Escola dos Annales no início do
século XX com publicações de seus integrantes na revista historiográfica
Annales: économies, societés, civilisations, na qual se dedicava papeis de des-
taque para o estudo da sociedade e também da economia, trazendo sempre
o homem e as relações sociais para o foco principal. As contribuições são
feitas em particular por Marc Bloch e Fernand Febvre os quais assumem os
primeiros anos dessas publicações, ambos dão um novo olhar sobre o que é
fazer história e como o historiador deve ser diante do seu objeto de estudo
e daquilo que ele cria (as suas obras).
Fazer história passa a ir além de uma narrativa dos acontecimentos e da
objetividade que a antiga escola dita positivista acreditava ser. O historiador
passa a ter uma relação direta com aquilo que ele cria, sendo assim subjetivo
ao fazer história, deixando sua marca, contrariando as antigas metodologias
e teorias e evidenciando o papel do homem e de suas relações sociais na
construção do saber.
Juntamente com o uso do subjetivismo e uma nova escrita da história
veio à expansão do que se pode considerar como fonte. A concepção de fon-
te historiográfica mudou de forma intensa nas décadas do século XX, pois
o historiador não limitou as suas pesquisas apenas as fontes documentais
oficiais, mas também fez uso de suas experiências do cotidiano, temos como

62
exemplo o pioneiro Jules Michelet que além de usar documentos oficiais do
Estado também utilizou a sua subjetividade.
Questionamentos foram levantados diante da novidade do uso da va-
riedade de fontes. A ampliação da concepção do que se entendia não se
deu de maneira fácil e simples, pois já havia se institucionalizado que a
produção historiográfica estava atrelada ao uso de documentações oficiais
e que através destas é que se poderia alcançar àquilo que se achava que era
a verdade sobre os acontecimentos, a história de fato/real. No entanto,
com a contribuição de uma grande produção de ensaios, obras e publica-
ções nas revistas historiográficas o embate a este conceito de fonte se fez
de maneira forte e eficaz, possibilitando cada vez mais o alargamento de
possibilidades de fontes.
Na contemporaneidade, entretanto, os modelos que mais atraíram
os historiadores “são aqueles que enfatizam a liberdade de escolha das
pessoas comuns, suas estratégias, sua capacidade de explorar as incon-
sistências ou incoerências dos sistemas sociais e políticos, para encontrar
brechas através das quais possam se introduzir ou frestas em que consigam
sobreviver” (BURKE, 1992: p. 32).
A expansão não se deu apenas o campo metodológico e na teoria, mas
também no âmbito espacial. O alargamento das fronteiras foi bem maior,
pois a França deixou de ser o lugar de concentração de historiadores dessa
nova maneira de se fazer história, abrindo caminho e lugar para novos
historiadores de diversos países da Europa ou de outras regiões, como o
Estado Unidos da América o qual teve Joan Scott como uma representan-
te de grande destaque na área de estudos sobre gênero nas últimas décadas
do século XX.
Com Nova História essas formas de alargamento de possibilidades de
inserção de novos objetos de estudos, fontes, metodologias e também o
surgimento de novos historiadores tornou possível que se estudasse de for-
ma mais eficaz a história das mulheres assim como é evidenciada na obra
A escrita da história (BURKE, 1992), onde tem um espaço destinado para a
exposição referente a essa história desenvolvida pela autora Joan Scott.
A autora evidencia a participação da mulher nas questões referentes
à construção do saber historiográfico, em especial nas décadas da segunda
metade do século XX, quando ocorre uma conexão direta entre a história
das mulheres e a política (algo que é ao mesmo tempo lógico e complexo),
se destaca a década de 1960 quando é forte a ligação entre estas.

63
No entanto, mais tarde, nos anos 1970 e 1980, a história das mulheres
se afastou progressivamente da política, ampliando o seu campo de ques-
tionamentos, documentando todos os aspectos da vida das mulheres que
ocorreram no passado, e dessa maneira se adquiriu a sua própria maneira de
tratar sobre as relações sociais, em especial aquilo que se chamou de gênero
(visto como uma divisão natural dos sexos). A emergência da história das
mulheres como um campo de estudo consolidado envolve a evolução do
feminismo para as mulheres e daí então para o gênero.
Segundo a autora Joan Scott a história dessa área de estudo não requer
somente uma narrativa linear, mas algo mais complexo, que não deixe para
trás a posição variável da mulher na história, o movimento feminista e a
disciplina da história. Com isso, se deve levar em consideração todas as
conquistas e derrotas sofridas pelas mulheres, e não tentar formar heroínas
como se tinha como objetivo antigamente.
A construção desta história está atrelada ao que entende por produção
historiográfica. As concepções sobre o fazer histórico mudaram e criaram
maneiras para que surgissem novos campos de pesquisas e também novos
objetos de estudos, no caso trazendo as mulheres para a discussão sobre os
seus papeis desempenhados ao longo dos anos e mostrando o lugar que lhes
eram de direito na história e na produção desta.
A dificuldade na produção historiográfica de gênero é evidenciada pela
autora, pois segundo essa existe uma pequena quantidade de fontes (prin-
cipalmente a escrita) referentes às mulheres já que a sociedade era em suma
patriarcal e destinava a mulher uma posição de inferioridade, submissão as
regras que lhes eram impostas. Então o historiador que se destina a estu-
dá-las deve usar as novas fontes que se legitimaram, como as orais, icono-
gráficas e também as literárias que contém um grande acervo a respeito das
vivencias as mulheres.
Assim como expõe Michelle Perrot na obra Minha História das mulhe-
res (PERROT, 2012) que houve o rompimento do silêncio pois as mulheres
ficaram durante muito tempo fora da história, “destinadas a obscuridade de
uma inenarrável reprodução” (PERROT, 2012: p. 16). As razões por esse
silêncio se deram por as mulheres serem pouco vistas no espaço público, o
que por muito tempo era o mais relatado e ambiente de interesse, sendo a
essas destinado o ambiente privado fazendo com que fossem pouco visíveis
e por consequência pouco faladas.
Outra razão desse silêncio é o “silêncio das fontes”, pois os registros

64
sobre as mulheres são poucos devido a destruição de documentos que era
praticada pelas próprias mulheres por si desvalorizarem. E por essas fontes
terem sido escritas pelos os homens que deram pouco destaque as mulheres,
sendo muitas vezes reduzidas a estereótipos, pois essas mulheres eram re-
presentadas e imaginadas mais do que descritas de forma real, dificultando
o conhecimento de fato sobre elas.
No entanto a inserção da mulher na academia é percebida como uma
das causas principais que levaram as mulheres a serem estudadas, apesar de
que antigamente existissem homens que de forma aleatória estudavam algo
que se referia a essas, pois a luta para a construção de um saber da história
das mulheres ganhava força a partir da legitimidade que essas adquiriam,
em especial, no meio acadêmico histórico. Isso contribuiu de maneira ím-
par, pois com a participação da mulher na produção do conhecimento his-
toriográfico fez com que essas lutassem e conquistassem um espaço cada
vez mais amplo.
Logo, a Nova História teve grande importância para o desenvolvimento
da história das mulheres, na verdade para o desenvolvimento de algo muito
mais amplo e complexo que é a área de gênero que não se limita em estudar
apenas as mulheres, mas toda forma de sociabilidades diante do que cabe
tanto o homem como a mulher, fazendo com que eles tenham uma relação
de complementação. Pois a expansão aconteceu devido à nova concepção
de história, que fez com que os historiadores criassem novas formas de fazer
história e reinventassem aquilo que eles tinham como fonte historiográfica
fazendo com que eles observassem campos de estudos nunca antes pensados
pelos estudiosos, aumentando o entendimento sobre o humano.
Essas novas formas de se fazer história foram bastante criticadas no
Brasil, pois já se tinha a consolidação de estudo marxistas sobre a sociedade
que iam aos poucos sendo conquistado por estudos sobre a história social
e cultural sob perspectiva das Escolas dos Annales. No entanto essas novas
formas também foram vistas por alguns como uma possibilidade de amplia-
ção do conhecimento e de pesquisa, proporcionando a renovação da histó-
ria política brasileira e também de outras temáticas como a utilização do
cotidiano, micro-história, cultura e de outros personagens na historiografia.
Ainda assim no Brasil as produções sobre as mulheres ou as relações de
gênero se mostram pouco desenvolvidas em comparação com as produções
da escola francesa, algo que só ganha maior densidade a partir dos anos de
1970 e 1980 período onde ocorre a expansão do estudo do social e também

65
da história da família (QUEIROZ, 2005). Essas produções ganham força
na Universidade de São Paulo (USP) nesse período cujo principal foco era
a família e de forma tangencial se mostravam as mulheres. Disso também
se destacou o Centro de Estudos de Demografia da América Latina (CE-
DHAL) que deu luz as produções sobre família e mulheres que contou com
Maria Luiza Marcílio à frente. Além dela outros pesquisadores se destaca-
ram nesta temática de pesquisa como Eni Mesquita Samara que foco no es-
tudo das famílias e Maria Beatriz Nizza da Silva que desenvolveu trabalho
em torno da família, das mulheres e da educação.
Além dessas produções na Universidade de São Paulo (USP) também
houve no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná
(UFPr) onde ocorreu o avanço de não destinar mais a mulher e a família o
lugar secundário da pesquisa, mas sim o primeiro onde ocorreu produções
de Altiva Pilatti Balhana, Sérgio Odilon Nadalin e Etelvina Maria de Cas-
tro Trindade, entre outros mais. E também além dessas produções existiam
outras em outros grupos de pesquisas pelo Brasil como de Iraci Del Nero
da Costa, Ângela Mendes de Almeida, Ronaldo Vainfas, dentre outros que
não se destinaram mais a produzir apenas sobre família e mulher, mas sobre
casamentos, prostituições, maternidade e sexualidade.
Já no final da década de 1970 outras temáticas que se assemelhavam
a família e a mulheres passaram a ser exploradas sobretudo aquelas que se
destinavam a estudar em primeiro plano os sujeitos e as suas ações que eram
postas as margens, como no caso do estudo da escravidão no Brasil que deu
visibilidade as mulheres escravas e forras, as práticas sexuais e a organização
familiar. Isso possibilitou a entrada pelo mundo da pobreza e das mulheres
pobres como foi o caso da produção de Maria Odila Leite da Silva Dias.
No Brasil as produções sobre as mulheres tiveram Maria Odila Leite
da Silva Dias que é considerada como uma das percussoras e também uma
das maiores influenciadoras da História das Mulheres no Brasil com o livro
Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX (DIAS, 1984) onde desen-
volve o conceito de mulheres como categoria contribuiu para formação de
uma geração de historiadoras que desenvolvem trabalhos sobre a história
das mulheres e também sobre as relações de gênero. Onde neste livro Ma-
ria Odila Dias se refere a mulheres que vivem nas margens da sociedade e
do trabalho, sendo lavadeiras de beiras de rios e chafarizes, que fazem pe-
quenos trabalhos para o seu sustento, demonstrando que há outras leituras
sobre o cotidiano. No mesmo ano Miriam Moreira Leite organizou A con-

66
dição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes
estrangeiros. No ano de 1985 houve a contribuição de Margareth Rago
publicou Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930.
Neste mesmo período também houve a produção da Revista Brasileira
de História (1989) ondem continha as produções de outras autoras sobre
a história das mulheres como de Marta de Abreu Esteves com Meninas
perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque; Rachel Soihet publicou Condição feminina e formas de violência:
mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920; Eni de Mesquita Samara
com As mulheres, o poder e a família: São Paulo século XIX; Magali Engel
com Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro.
“Em meados da década de 1990, as histórias da família e da mulher
já estão relativamente mais difundidas em todo o Brasil, entretanto, os
núcleos citados são pioneiros e fundamentais em relação à constituição do
campo” (QUEIROZ, 2005: p. 20). Além disso, neste mesmo ano houve a
publicação da tradução do texto Gênero: uma categoria útil na análise his-
tórica (SCOTT,1995) pela Revista Educação e Realidade (UFRGS). No
entanto é possível e também necessário se considerar que esse texto de
Joan Scott não foi o único que exerceu influência nas produções sobre as
mulheres ou sobre gênero no Brasil, pois além de se utilizar a categoria de
gênero para análise histórica também se utilizou as categorias de mulher
e mulheres, teorias essas que são presentes em outras produções como de
Judith Butler e Linda Nicholson. Ainda neste período houve a consolida-
ção desse campo de conhecimento historiográfico com a constituição do
Grupo de Trabalho de Estudos de Gênero que tinha como pretensão a
criação de uma rede ou grupo de pesquisadoras para o estudo do gênero
no país. A articulação desse grupo junto com a Associação Nacional de
História em 2001 permitiu a criação durante o XXI Simpósio Nacional
de História que ocorreu no Rio de Janeiro, onde Rachel Soihet foi eleita
a coordenadora nacional do grupo de trabalho Estudos de Gênero, sendo
em 2007 substituída por Joana Maria Pedro.
Além desse grupo de estudo o gênero também se fez presente nas reu-
niões da Associação Nacional de História Oral onde se criou um grupo des-
tinado as discussões de gênero em 2002 ou ainda outras reuniões cientificas
como da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (Anpocs) que acontece todos os anos na cidade de Caxambu no
Estado de Minas Gerais e o Fazendo Gênero que acontece a cada dois anos

67
em Santa Catarina. Ainda ocorre produções de muitos trabalhos apresenta-
dos em eventos científicos e também publicados em revistas especializadas
ou não em gênero e história das mulheres como Revistas Estudos Feministas,
Espaço Feminino e Gênero, Revista Esboços e Revista Brasileira de História
(PEDRO; SOIHET, 2007: p. 283-284).
Além dessas produções sobre gênero também é necessário exemplifi-
car a contribuição sobre o objeto de pesquisa masculino com bases relacio-
nais, apontando a produção de Durval de Albuquerque Júnior que coloca
as masculinidades nordestinas em destaque nas produções historiográficas
brasileiras, como na sua obra Nordestino: invenção do ‘falo’: uma história do
gênero masculino (1920-1940) que é consagrada e referência nas pesquisas
sobre o masculino.
Dessa maneira ocorre a ampliação do objeto de pesquisa da família e
das mulheres para a multiplicidade do gênero pois

A abordagem recente de gênero está igualmente associada à procura e à


conformação das identidades, vistas hoje como identidades plurais. Ao se
pôr em questão o masculino e o feminino e ao correlacioná-los às condi-
ções de classe, etnia, idade, opções sexuais e outras associações, afloram
potencialidades e diferenças que realçam com nitidez identidades e opo-
sições, portanto a complexidade inerente ao campo. A historiografia já
toma como básicos, ao mesmo tempo em que reforça, a compreensão e
o reconhecimento das diferenças no interior do gênero, reconhecimento
que ultrapassa os contornos da etnia e da sexualidade. Em outros termos, a
multiplicidade de olhares, ancorada em práticas e em representações opos-
tas e díspares, consolida cada vez mais fortemente a passagem do singu-
lar ao plural, ou seja, da história da mulher para a história das mulheres
(QUEIROZ, 2005: p. 21-22).

Produção local: gênero e produções


sobre as mulheres na educação piauiense

As produções locais sobre as mulheres se tornaram múltiplas com a


contribuição acadêmica, em especial a produzida no âmbito da Universi-
dade Federal do Piauí nas duas últimas décadas. Essas produções são a
partir da perspectiva de gênero, mostrando a correlação existente entre os
dois sexos e que eles são complementares, para exemplificar isso tomaremos
como bases produções de Pedro Vilarinho Castelo Branco o qual contem-

68
pla a análise tanto do masculino e do feminino durante as primeiras décadas
do século XX e também de Elizangela Barbosa Cardoso que ao analisar as
mulheres neste mesmo período adota a categoria de gênero, mostrando que
as mulheres viviam em correlação com os homens.
As produções de Pedro Vilarinho Castelo Branco sobre as mulheres
se deu na década de 1990 com a sua inserção ao mestrado em História em
Recife, no qual se destinou a conhecer a condição feminina em Teresina
no início do século XX face as modernizações e modificações ocorridas na
cidade e como elas poderiam ter influenciado os comportamentos femini-
nos, produzindo sua dissertação a qual deu origem a obra Mulheres plurais:
a condição feminina na Primeira República (2005).
Neste período a educação feminina apesar da criação da formação das
mulheres pela Escola Normal em Teresina que tinha como base o conheci-
mento científico, ainda se mostra voltada para o aprendizado das atividades
domésticas, sendo a casa a primeira célula familiar e também o local onde
se iniciava a o aprendizado feminino, pois as mulheres o ambiente privado
era destinado. Essa educação se dava ao aprendizado de costura, de cozi-
nhar, de cuidar dos filhos, dos membros familiares e do próprio ambiente
da casa e outros ensinos de cunho doméstico que eram repassados, em gran-
de maioria, pelas mães para as filhas.
A educação feminina das primeiras letras era mantida com dificuldades
diante da falta de uma política de Estado voltado para a educação formal
feminina, sendo difundida apenas a ideia de generalização da educação pelo
território estadual. No entanto na primeira década do século XX foi funda-
da a Escola Normal Livre sem a atuação do Estado e que tinha como carac-
terística o ensino laico, se distanciando do modelo de ensino religioso das
escolas confessionais, dando ênfase ao ensino das ciências, o cuidado com
o corpo pela higiene e também a formação de uma mulher sob o modelo
culto, com aprendizado de línguas estrangeiras e de música.
Além desse livro o autor Pedro Vilarinho Castelo Branco também tem
História e Masculinidade: práticas escriturísticas dos literatos e as vivências
masculinas no início do século XX (2008) no qual trata sobre as fases da
vida masculina no Piauí, desde a infância até a velhice. As divisões feitas
pelo autor nos permitem perceber as vivências e as práticas de que fazem
parte de cada fase através das memórias de piauienses, como de Raimundo
de Moura Rêgo em 1923 que saiu enquanto do campo para Teresina no
contexto de modernização do meio urbano, onde estudou na escola Ateneu

69
Teresinense, do Padre Cirilo Chaves. Evidenciando a preocupação familiar
com a formação escolar das crianças e dos adolescentes, mostrando o caráter
que a educação foi vista como indispensável para o sucesso na vida adulta.
Dessa maneira, assim como no outro livro o autor também contem-
pla a temática de família que eram estudadas em outros grupos de estudos
pelo Brasil, mas agora mostrando os seus integrantes como as mulheres e a
criança. No entanto, não deixa de lado a temática masculina em prol da fe-
minina, nos possibilitando perceber a complementariedade das temáticas e
dos sexos nas relações sociais e históricas, assim como propunha a utilização
da categoria gênero por Joan Scott.
As produções de Elizangela Barbosa Cardoso de dão nos anos 2000
tendo como base de análise a figura feminina, no entanto não a deslocando
e isolando do masculino, pois adota a perspectiva da categoria gênero para
análise do feminino do século XX, seja as primeiras décadas ou de 1930 a
1970. Em sua produção de 2003 de Múltiplas e singulares: História e me-
mória das estudantes universitárias em Teresina (1930-1970) a autora trata
sobre a presença feminina em instituições de ensino do terceiro grau que
ainda era pequena, dando luz ao ensino superior em Teresina com Facul-
dade Católica de Filosofia (FAFI) em 1958, Faculdade de Odontologia
(FOPI) em 1960, Faculdade de Medicina (FAMEPI) em 1968 e depois
com a Universidade Federal do Piauí (UFPI) em 1968 a 1971, tanto em
Teresina como também em Parnaíba.
Esta produção nos lança o olhar sobre a formação feminina no ensino
superior através das histórias de vidas das personagens que foram utilizadas
no livro, seja por seus ingressos ao ensino, as relações de gênero e as con-
dições históricas vivenciadas por elas e apreendidas pela autora. Assim os
sujeitos analisados não são isolados em categoria de mulher, mas são múl-
tiplos mostrando que as mulheres não têm um modelo e todas as seguem e
também colocou que essas mulheres estavam relacionadas com o masculino.
Em Identidade de gênero, amor e casamento em Teresina (1920-1960)
(CARDOSO, 2010) que foi produção da tese de doutorado em 2010 a au-
tora trata das mulheres e as relações de gênero, como as condições históricas
do período estudado, através percepções tanto sobre casamento, família e
maternidade. A autora também mostra as construções sobre o gênero que
influenciou a significação feminina pelo casamento e maternidade, como
também as hierarquias de gênero na educação formal, na sexualidade e no
campo do trabalho. Dessa maneira, apesar de o feminino ser uma das cha-

70
ves de leituras propostas por Elizangela Barbosa Cardoso ela não se limita,
não isola ele das outras relações sociais, o tendo como complementaridade
do outro sexo.
Dessa maneira o trabalho sobre as mulheres na educação piauiense
das três primeiras décadas do século XX que é desenvolvido visa responder
questionamentos e preencher lacunas ainda existentes sobre a educação na
historiografia piauiense produzida nas últimas décadas. As mulheres traba-
lhadas neste contexto são vistas também diante da categoria gênero, pois as
fontes documentais e as produções bibliográficas sobre essa temática apon-
tam para as relações entre os dois sexos.
As mulheres trabalhadas são primeiramente vistas por olhares mas-
culinos que produzem o saber e as informações sobre elas e também sobre
outros sujeitos aos quais estavam ligadas, seja através de memórias como a
de Antônio Sampaio Pereira em relatórios ou mensagens governamentais
do Estado do Piauí. Antônio Sampaio Pereira em Velhas Escolas-Grandes
Mestres (1996) conta as suas memórias sobre a educação no final do século
XIX e nas primeiras décadas do século XX no Retiro da Boa Esperança,
cidade de Esperantina no interior do Piauí.
O autor retrata o processo de modernização pelo qual estava passando
o ensino nas primeiras décadas do século XX, devido a maior participação
do Estado do Piauí no desenvolvimento e aplicação do mesmo. A moder-
nização provocada pelo poder público estadual acontecia desde a mudança
quanto ao ambiente escolar, a mão de obra necessária para as atividades de
professor, até mesmo as pedagogias, como o abandono do uso de castigos
físicos.
A mudança inicial aconteceu com o abandono do uso de ambientes es-
colares privados para o uso de escolas públicas através da criação de estabe-
lecimentos escolares do governo estadual. Nesse momento a construção da
escola ou de um ambiente escolar passou a ser responsabilidade do Estado,
assim não cabia mais a população a manutenção a seus custos de um am-
biente. Além disso, também com a mudança no ensino houve a substituição
do educador, o mestre foi retirado do ensino infantil aos poucos, dando es-
paço para as professoras que no início do século XX eram contratadas pelo
Estado. A atuação das mulheres no ensino estava ligada a ideia de moder-
nização do mesmo, sendo o poder público responsável para que acontecesse
esse processo de inserção feminina na educação.

71
Tão logo surgiram as principais professoras mandadas pelo governo, para
ensinarem de graça – coisa que admirou todo mundo, os velhos mestres
sumiram, como por encanto, muitos deles quase morrendo traumatizados,
e, capitulando, entravam para o interior, à maneira do aborígene, que, à
proporção que a civilização vai avançando ao encontro dele, com a mes-
ma pressa ele vai se enterrando nas matas, buscando refúgio e evitando
contato.[...] Foi uma refrega extraordinária aquela luta travada com armas
desiguais entre o mestre que cobrava até dois mil reis por cabeça e a pro-
fessora que não cobrava nem um vintém dos alunos, pois recebia os santos
cobres do bolso do governo, em ordenado fixo, inclusive quando em gozo
de férias, cujo privilégio os velhos mestres contratados jamais desfrutaram,
nem tão pouco tinham ouvido falar (PERREIRA, 1996: p. 52).

A substituição da mão de obra exposta nas memórias de Antônio


Sampaio Pereira foi possível de compreensão através da Mensagem Go-
vernamental, de 1909, sob a autoria do governador Anízio Auto de Abreu
à Câmara Legislativa. O mesmo governador em sua mensagem destaca e
defende a substituição dos mestres pelas professoras afirmando que isso não
causaria resultados negativos ao Piauí.

Não encontro grandes dificuldades em tentarmos a substituição do nosso


professorado por outro mais idôneo, competente e capaz. Pouco do que
exercem o magistério primário, são nomeados vitaliciamente, de modo que
a reforma não empacará com dificuldade dos direitos adquiridos (ESTA-
DO DO PIAUÍ, 1909: p. 28).

No governo de Antonino Freire, no referido ano, houve a defesa do


uso da mão de obra feminina, evidenciando não somente as vantagens para
o ensino como a sua aptidão com o público infantil, como também para o
poder público do Estado, com a possibilidade de pagar um valor menor por
sua atuação no ensino.

O regulamento estabeleceu ainda a preferência do elemento feminino


para o professorado primário.
Duas razões principais atuaram no meu espírito para semelhante pre-
ferência. A primeira e a mais poderosa foi a natural aptidão da mulher
para o desempenho daquelas funções. Mais afetiva do que o homem, ela
está, por isso, muito mais apta para ensinar crianças e acompanhar-lhe os
primeiros albores da inteligência.
A segunda razão foi a exiguidade dos vencimentos que o Estado oferece

72
aos professores. Com a carestia atual da vida, é absurdo pensar em obter
preceptores dedicados ao magistério, pagando os minguados ordenados
do orçamento. A mulher, porém, mais fácil de contentar e mais resigna-
da, e quase sempre assistida pelo marido, pai ou irmão, poderá aceitar o
professorado e desempenha-lo com assiduidade e dedicação, não obstan-
te a parcimônia da retribuição dos seus serviços (ESTADO DO PIAUÍ,
1910: p. 27).

Com as novidades vindas da modernização do ensino, Antônio Sam-


paio Pereira evidencia a forma de relacionamento do professor com o aluno
passou por mudanças diante da nova pedagogia sob a qual como forma de
educação o “castigo físico é proibitivo” (PEREIRA, 1996: p. 52), sendo
mais um atrativo quanto a atuação das professoras nas escolas do interior.
Assim, a população e os alunos se sentiam mais atraídos pela atuação des-
sas, diante dos novos métodos de ensino.

Quando o governo havia mandando a professora, foi logo recomendado


que na escola dele não havia palmatória, nem tão pouco era para se bater
em filho alheio. Em vez de mal tratos e duros castigos, a meninada devia
ser mandada para o meio da rua, para os folguedos do recreio, onde fica-
vam soltinhos da silva, pulando e metendo de cabeça, como porco brincan-
do com palha, adivinhando chuva (ESTADO DO PIAUÍ, 1910: p. 27).

Dessa maneira, a atuação feminina na educação além de contar com os


discursos do poder público diante dela, também teve apoio da população,
dos pais e filhos, que as identificavam como oportunidade de ensinar com
base gratuidade, mas também com as suas formas de se relacionar com a
criança, desempenhando o papel que ia muito além do ensino das primeiras
letras, chegando a educação com afeto ao aprendiz.

Breves considerações

Assim diante da expansão de pesquisas e produções na história sobre


a temática das mulheres e gênero no exterior e especialmente no Brasil, os
estudos locais dão também suas contribuições sem muito atraso em questão
de tempo ou de metodologias, se mostrando em relação com as demais pro-
duções. Dessa maneira a produção sobre a educação no Piauí nos possibilita
conhecer o feminino juntamente com o masculino e através das relações
entre os dois sexos, seja por meio dos poderes exercidos ou pelas demais

73
relações sociais através da educação. Esse feminino é percebido através de
discursos e práticas como também pelas memórias que revelam as ações
das mulheres, não sendo elas uma categoria estável como se remetiam os
primeiros estudos no exterior, mas sim como múltiplas que são ativas nas
produções de si sendo mães, professoras, irmãs, alunas e filhas.

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76
história do tempo presente: um diálogo
com as comunidades de terreiro acerca da
covid-19 em são luís – ma

Maria da Graça Reis Cardoso1

Introdução

Apesar da diminuição diária do número de mortes atribuída ao efeito


da vacinação, durante a construção deste artigo, o Brasil já ultrapassava a
marca de mais de 600.000 (seiscentas mil) mortes em decorrência da pan-
demia da covid-19. Não é demais sublinhar, que a pandemia da covid-19
foi um evento que atingiu a todo o planeta, por isso, tal fato o torna um
objeto importante a ser estudado. Isto se constitui um dilema desafiador
para a História do Tempo Presente, pois parafraseando Hobsbawm (1997),
trata-se de um evento que coincide com o nosso tempo de vida.
O interesse por esta temática se acentuou pela realização e participação
em pesquisa anterior, que objetivava compreender o papel do Comitê Afro
Religioso, criado pelas religiões de matriz africana no Maranhão, como fer-
ramenta de enfrentamento à pandemia nas Comunidades de Terreiro. As-
sim, como toda a população que sofreu e ainda continua sofrendo os efei-
tos da pandemia, ainda que numa proporção menor, as Comunidades de
Terreiro foram duramente impactadas por conta das situações de “vulnera-
bilidades sociais, sanitárias, como dificuldade de isolamento, subemprego,
desemprego. Seus ritos de fé também foram sendo cerceados no dia a dia,
sem poder tocar seus tambores, saudar suas divindades impedindo assim, a
1. Professora do Departamento de Turismo e Hotelaria da UFMA; doutoranda do Programa
de Pós-graduação em História e Conexões Atlânticas: Culturas e Poderes; membra do Grupo
de Pesquisa História, Religião e Cultura Material – REHCULT/UFMA. E-mail: gracaban-
to34@gmail.com
circulação do axé, energia vital nas Comunidades de Terreiro. (SANTOS
et al, 2021, p. 33)
Durante a pesquisa mencionada foi possível perceber as restrições im-
postas pela covid-19, referentes a realização do rito funerário ou o desliga-
mento da vida terrena. Desde o início da pandemia, a morte já se configu-
rava como uma realidade para muitas Comunidades de Terreiro. Dentre
as Comunidades de Terreiro situadas na cidade de São Luís que tiveram
perdas de vida para a covid-19, destaque para o Terreiro de Yemanjá, fato
que justifica o lócus desta pesquisa.
O Terreiro Ilê Ashe Yemowa Abê, conhecido como Terreiro de Ye-
manjá, está localizado no bairro da Fé em Deus, bairro que integra o Qui-
lombo urbano Liberdade,2 situado na área periférica da cidade. Este terreiro
é um dos mais representativos do Tambor de Mina no Maranhão, fundado
na década de 50 do século XX, pelo Babalorixá Jorge Itacy de Oliveira.3
A questão que norteou esta pesquisa, foi compreender como as Comu-
nidades de Terreiro ressignificaram suas práticas, principalmente no que
diz respeito aos rituais de desligamentos desses religiosos da vida terrena. A
busca por respostas a esta inquietação deu-se por meio de pesquisa biblio-
gráfica e de relatos orais dos investigados. O presente artigo problematiza
a abordagem acerca da pandemia a partir da História do Tempo Presente,
seguido dos diversos olhares para o evento da Morte e as restrições impostas
pela covid-19 nas Comunidades de Terreiro quanto ao rito funerário, e, por
fim as considerações finais.

Uma abordagem a partir da História do Tempo Presente

Nossa abordagem histórica acerca da pandemia da covid-19, se apoia


na História do Tempo Presente, pois este campo da História se ocupa de
temas no contexto da contemporaneidade. Nessa perspectiva, Lohn nos
fala que “de qualquer modo a História do Tempo presente demarca tem-
poralidades em construção, as quais correspondem ao vivido e aos vivos.
[...]” (2019, p. 11). O evento da pandemia pode ser entendido como uma
2. Quilombo Urbano Liberdade é constituído pelos bairros denominados, Camboa, Liberda-
de, Fé em Deus e Diamante. Em novembro de 2019, a fundação Cultural Palmares certificou
o conjunto de bairros como Quilombo Urbano Liberdade, sob a justificativa de grande parte
de seus fundadores no início do século XX serem oriundos de Comunidades Quilombolas do
interior do estado do Maranhão. (https://www.agenciatambor.net.br)
3. Documentário Tambor de Mina do Maranhão., disponível no YouTube.

78
temporalidade em construção, trata-se de uma experiência globalizada, na
qual a humanidade ainda está imersa, vivenciando seu luto diante de tantas
perdas de vidas.
Provavelmente, quando Henry Rousso (2016, p. 186) afirmou que “os
historiadores do Tempo Presente, tem trabalhado sobre questões terrivel-
mente sensíveis,” e estes “tiveram de inventar, senão métodos, pelo menos
uma maneira de se colocar na paisagem”, o autor nem imaginava que os
historiadores seriam desfiados por questões bem mais sensíveis, a exemplo
da pandemia e seus impactos.
Por se tratar ainda de uma temporalidade em curso, a pandemia pode
gerar desconforto para a historiografia, um dilema que exige do historiador
o distanciamento necessário para a interpretação histórica do evento estu-
dado, no entanto, ele encontra-se imerso nos acontecimentos. Dentre as
dificuldades que podem ser vivenciadas pelo historiador do Tempo Presen-
te, destacam-se as subjetividades, pois há situações que se configuram como
uma disputa entre as percepções do historiador quando este está envolvido
pelo contexto estudado, que é o caso da pandemia da covid-19, um evento
que persiste ainda que, minimamente na sociedade.
A despeito do papel do historiador e da testemunha, François Hartog
(2013, p. 202), sinaliza que do ponto de vista prático e etimológico, esta é
uma questão superada há muito tempo. “A testemunha não é um historia-
dor, e o historiador – se ele pode ser, em caso de necessidade uma testemu-
nha – não deve assumir tal função”. Para o autor, o historiador é desafia-
do ao afastamento da testemunha, “ele só é capaz de começar a tornar-se
historiador ao manter-se à distância da testemunha qualquer testemunha,
incluindo ele mesmo.”
A despeito dessa situação, Bébarida (2001 apud Zulato et al, 2015, p.
1831), nos alerta que: “mesmo no caso de o historiador ter o dever de man-
ter um distanciamento crítico em relação ao seu objeto, [..], nem por isso
ele consegue ser neutro. É mais que uma esquiva: uma renúncia.” Se por
um lado o historiador de Tempo Presente pode incorrer no risco da parcia-
lidade dos fatos, por outro lado, a possibilidade de vivenciá-los possibilita
uma interpretação mais próxima da realidade estudada. “Todo historiador
tem seu próprio tempo de vida, um poleiro particular a partir do qual sonda
o mundo.” (HOBSBAWM,1997, p. 209). Em se tratando da pandemia e
das restrições impostas às Comunidades de Terreiro, em especial ao rito
funerário, o tempo de vida do historiador é o presente do qual ele faz parte

79
e ao mesmo tempo está diante do desafio de interpretá-lo.
A interpretação do Tempo Presente ainda no calor dos acontecimen-
tos possibilita também ao historiador o papel de testemunho dos eventos
no qual ele também está envolvido, pois o relato testemunhal “pode tomar
a forma de uma análise hierarquizando uma primeira vez as questões, os
fatos, fornece conjuntamente arquivos, depoimentos, pistas de pesquisa e
esboço de interpretação.” Logo, “trata-se, portanto, de considerar o teste-
munho como um objeto histórico, vez que o historiador tanto é testemu-
nha enquanto escreve a história imediata, quanto também é ator/espectador
[...].” (ELIBÍO JÚNIOR, 2021, p. 19).
Uma das singularidades da História do Tempo Presente é justamente
a existência de testemunhas dos eventos históricos de um passado recente
ou do próprio tempo presente. Pois, “[...] pelo fato de ainda existirem
testemunhas vivas dos fatos relatados, a transmissão de testemunhos tem
um valor matricial.” Nesse sentido, não é demais salientar, que “a própria
definição da história do Tempo Presente, é ser a história de um passado
que não está morto, de um passado que ainda se serve das palavras dos
vivos”. (DOSSE, 2012, p. 19).
A História do Tempo além de contar com a prerrogativa dos relatos
testemunhais dos vivos, e dentre estes, o próprio historiador, conta ainda
com uma riqueza de fontes documentais que podem ser utilizadas nas
construções das narrativas. “Diferentemente de outros domínios da His-
tória, a História do Tempo Presente apresenta uma profusão de fontes
documentais, escritas, orais e visuais que podem nortear as produções das
narrativas [...].” (ELÍBIO JÚNIOR, 2021, p. 15).
Estima-se que a pandemia da covid-19, tenha sido o evento mais no-
ticiado pelas mídias, e ainda continua sendo noticiado diariamente, tanto
na mídia televisiva, quanto nas redes sociais em geral. Trata-se de um
evento ainda em curso e de dimensão planetária, isto nos leva a crer na
existência de uma gama de fontes produzidas nas mais diversas áreas do
conhecimento, fato que possibilita diversas abordagens e dilemas para a
História do Tempo Presente.

Diversos olhares sobre a morte

A humanidade foi surpreendida com a realidade da morte em gran-


des proporções, jamais imaginadas. A pandemia da covid-19, colocou toda

80
a população mundial em uma condição de vulnerabilidade nunca vivida.
Apesar da experiência com a pandemia de influenza, em 2009, é inviável
qualquer possibilidade comparativa. Não houve refúgio seguro, era como
se a morte estivesse em todo lugar. É possível que o medo da morte tenha
atingido a maior parte da população. A estatística dos mortos cresceu de
forma assustadora, no Brasil ultrapassou o número de 600.000 (seiscentas
mil) mortes. (GOLDIM et al, 2021, p. 95).
Cada sociedade possui experiências diversas ao lidar com o evento da
morte. Para uns, a morte pode significar o fim da vida, no entanto para
outros, apenas uma passagem para outra dimensão, e até mesmo a conti-
nuidade da vida. O que é comum à todas as culturas é que a morte de fato
é um problema para os que estão vivos e não para os mortos. “A morte
é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre muitas
criaturas que morrem na terra a morte constitui um problema só para os
seres humanos. [...].” (NORBERT ELIAS, 2001, p. 6).
Nesse contexto, a discussão acerca das restrições impostas pela co-
vid-19 para as Comunidades de Terreiro, dentre elas, a impossibilidade
de execução do rito funerário, demanda por uma abordagem acerca do
evento da morte. Não é nosso intensão fazer uma densa abordagem histo-
riográfica e antropológica deste evento, mas apontar formas diferentes de
compreender o significado da morte. Sob o olhar de Ariès (2012, p. 98),
“a morte é para cada um, o reconhecimento de um Destino em que sua
própria personalidade não é aniquilada, por certo, mas adormecida [...]
supõe uma vida além da morte. [...].”
Mircea Eliade, (apud Rodrigues, 1997, p. 149), também insinua a
relação imbricada entre a vida e a morte. “As sociedades, em geral, per-
cebem a existência cósmica como estando predeterminada a passagens: o
homem passa da pré-vida, à vida, finalmente, com a morte, inicia a nova
existência post-mortem.” De maneira que os ritos relacionados a morte
não se restringem apenas ao fenômeno biológico em que a ‘vida’ abandona
o corpo.’ Mas vislumbra a possibilidade de uma vida após a morte. Este
é um aspecto que caracteriza diversos pensamentos a respeito da morte.
Já a atitude diante da morte para as culturas africanas difere não so-
mente da cultura ocidental cristã ou outras culturas, mas entre si mesmas,
dada a pluralidade cultural do continente africano. Entretanto, o aspecto da
continuidade da vida está presente em grande parte das culturas africanas.
Nestas culturas há uma crença de que após a morte física o espírito é condu-

81
zido ritualmente para juntar-se aos seus ancestrais. “Os Zulus por exemplo
julgam que na morte, a alma – sombra (tunzi) de um homem, de algum
modo deixa o cadáver para torná-se um espírito ancestral.” (RIBEIRO,
2010, p. 65).
A autora acima fala da morte para a cultura moçambicana, em especial
para o os povos Tsongas: “Acredita-se que todo Tsua que falece transfor-
ma-se num antepassado, Neguluve ou Tinguluve, continuando em relações
íntimas com seus parentes vivos, mas revestidos de poderes sobrenaturais
– exceto o espírito de crianças e dos falecidos sem descendência [..].” (RI-
BEIRO, 2010, p. 65).
A continuidade da vida para essas culturas africanas, significa a não
existência da morte. Este evento só é compreendido como morte quando se
dá de forma prematura a exemplo da morte de crianças, como acima men-
cionado por Ribeiro, e pessoas sem descendência. Nessas circunstâncias,
os espíritos demandam certos cuidados dos vivos. A eles são endereçadas
as práticas religiosas de preces e sacrifícios. Além de serem informados de
tudo quanto importante acontece aos seus parentes vivos; não havendo dú-
vidas, assim, de que constituem verdadeiros objetos ocultos. Sendo força
ancestral, ninguém deve aproximar-se deles sem ser portador de uma ofe-
renda ou de um sacrifício (RIBEIRO, 2010, 68).
A ideia de continuidade e integração perpassa grande parte das cultu-
ras africanas, “os egípcios tinham uma visão integrada do corpo. Em ou-
tras palavras, a mumificação só era possível graças não apenas à crença na
continuidade da vida após a morte, mas no conhecimento de que o corpo
forma um organismo, conjunto de partes integradas.” (SOUSA JÚNIOR,
2011, p. 30).
No que diz respeito a ideia de morte construída no Brasil, de acordo
com Reis (1991) está diretamente relacionada tanto à cultura portuguesa
como africana, pois estas partilhavam do pensamento de que o indiví-
duo deveria estar preparado para enfrentar o momento da morte, o que
demandava cuidados ainda em vida com seus santos de devoção ou na
realização de sacrifícios aos deuses e à ancestralidade.
Tanto africanos como portugueses eram minuciosos no cuidado com
os mortos, banhando-os, cortando o cabelo, a barba e as unhas, vestindo-os
em suas mortalhas. [...]. Em ambas as tradições aconteciam cerimônias de
despedida, vigílias durante as quais se comia e bebia com a presença de sa-
cerdotes, familiares e membros da comunidade. [...]. (REIS, 1991, p. 90).

82
Apesar das convergências apresentadas pelo autor acima mencionado,
não é demais salientar, que o culto dos mortos se apresentava com maior
complexidade na tradição africana, diante da preocupação que perpassa vá-
rios povos africanos quanto a importância da continuidade como expressão
da ancestralidade, como nos mostra Rodrigues (1997, p. 149):

Entre os povos de origem banto, a vida religiosa tinha como base o culto
aos antepassados, para quem se acendia o fogo sagrado no altar - Okumo
-preparado em uma choça especial. Os angolanos, por exemplo, acredita-
vam na transformação das almas e sua metamorfose até em animais, pro-
vindo daí seus ritos funerários e outros de caráter totêmico; suas práticas
religiosas e mágicas também eram ligadas ao culto dos mortos e dos an-
tepassados. Em um fragmento de canção africana, que faz parte do axexe
- ritual fúnebre nagô, significando recomeço, renascimento, é representa-
tivo da passagem para a nova vida, no Além: “Oh! Morte, /Morte o levou
consigo/Ele partiu, levantem-se e dancem/ Nós o saudamos!

Nesse sentido, para a maior parte do continente africano, a morte não


existe. A morte biológica é apenas parte do ciclo da vida. Esta só existe nas
condições adversas aqui já mencionadas, para os chamados desnascidos. A
morte é uma etapa para outro nascimento. É como uma semente que carre-
ga em si a vida de uma nova planta.

Rituais fúnebres nas comunidades de terreiros

As Comunidades de Terreiro em todo Brasil, se configuraram como


produto de trocas culturais numa perspectiva transatlântica. A diáspora
africana foi imperativa para a formação da cultura afro-brasileira conside-
rando as experiências culturais dominantes, mas também pela pluralidade
das experiências africanas, sobretudo no campo das experiências religiosas.
Cláudia Rodrigues, ao estudar os ritos funerários no Rio de Janeiro no
século XIX, nos mostra a diversidade de povos africanos escravizados e suas
diversas formas de realização de seus ritos funerários, convergindo para o
caráter festivo dos ritos. “Entre os jejes do Daomé, por exemplo, as famílias
e os amigos dos mortos cantavam, dançavam, comiam e bebiam nas ceri-
mônias fúnebres”. Os malês parecem apresentar um rito mais elaborado
no que diz respeito aos trajes usados no ritual, estes “eram marcados pelos
banquetes funerários onde os dançarinos, em trajes característicos, dança-

83
vam e cantavam ao som de tambores, pandeiros e outros instrumentos.”
Tal semelhança “se fazia presente entre os angolanos, com seus batuques,
comes e bebes que duravam vários dias.” (RODRIGUES, 1997, 162).
É importante sublinhar que os rituais fúnebres suntuosos, de elementos
africanos, agrupando muitos cativos, acompanhados de instrumentos musi-
cais e danças não se aplicavam de forma geral a qualquer escravizado, mesmo
entre os escravizados havia distinção. Pois, tais eventos ocorriam principal-
mente quando se tratava de mortes de “reis africanos e seus descendentes,
que, embora vivesse em situação de cativeiro, não deixavam de ser assim
reconhecidos e reverenciados por seus súditos.” (IDEM, 2018, p. 345).
Este caráter festivo dos ritos funerários de outrora foram se ressignifi-
cando ao longo do tempo. As Comunidades de Terreiro se constituíram a
partir dessas experiências dos povos africanos escravizados, trazidos dos mais
diversos lugares do continente africano. Essas experiências religiosas deram
lugar a diferentes fundamentos4. É comum se ouvir, que cada casa tem seus
próprios fundamentos, no entanto, estes são mais convergentes que divergen-
tes quando se trata de Comunidades de Terreiro de matriz africana.
Dentre as convergências, destaca-se a ancestralidade, pois a mesma está
para além da vida, “manifesta-se na morte entendida não como aniquila-
mento, mas como continuidade no mundo dos antepassados que sempre
estarão presentes através da noção de família, reinventados pelas comuni-
dades – terreiros.” (SOUSA, 2011, p. 11). O presente autor ressalta que a
ancestralidade é um valor civilizatório de vital importância para as religiões
de matriz africana, reorganizadas em terras brasileiras com base nas “dife-
rentes visões de mundo, trazidas por reis, rainhas, sacerdotes, sacerdotisas,
artistas, africanos e africanas”, de forma compulsória para as Américas e,
consequentemente ao Brasil.
Nas Comunidades de Terreiro, a ancestralidade faz parte de toda a
vivência dos iniciados. “Na iniciação tomamos consciência de nossa an-
cestralidade, do sagrado que está em nós, nos apropriando da nossa huma-
nidade.” A ancestralidade também faz parte da morte, como princípio de
continuidade “[...], no mundo dos antepassados que sempre estarão presen-
tes através da noção de família, reinventados pelas comunidades-terreiros.
[...].” (SOUSA, 2011, p. 49)

4. Para as Comunidades de Terreiro, o termo fundamento pode expressar vários sentidos,


como tradição, normas estabelecidas dentro de cada casa de axé, tipos de indumentárias, for-
mas de cultuar determinadas divindades etc.

84
Na cidade de São Luís, as Comunidades de Terreiro se declaram de
matriz jeje-nagô. Nestas comunidades, a morte é compreendida a partir de
dois Orixás/Voduns5. Omolu ou Obaluaiê e Oyá, chamada também como
Yansã. O primeiro “teria nascido doente e tornou-se um grande médico.
Omolu/Obaluaiê é o dono da terra. Segundo seus mitos, este princípio an-
cestral preside a germinação [...] como uma semente que carrega as infor-
mações da nova planta.” (Sousa, 2011, p. 77). Embora não esteja relaciona-
do diretamente com o ritual fúnebre, é uma divindade que está relacionada,
com as doenças e a cura, bem como a vida e a morte.
No que diz respeito a Oyá/Yansã, esta é cultuada como ancestral da
imortalidade, ela é responsável pela continuidade da vida. “[...]. Oyá leva
como vento o último suspiro de cada um de nós, entregando a Olodumare.
Além disso ela espalha as sementes como a borboleta que distribui o pó-
len entre as flores misturando as cores, mantendo a vida [...].” (SÀLÁMÌ,
1990, p. 115). Na cosmogonia desses povos africanos, acredita-se que Oyá
tenha recebido de Obaluaiê o reino dos mortos, se tornando a rainha dos
espíritos dos mortos.

Certa vez uma festa com todas as divindades presentes. Omolu – Obaluaê
chegou vestindo seu capucho de palha. Ninguém o podia reconhecer sob o
disfarce e nenhuma mulher quis dançar com ele. Só Oyá, corajosa atirou-
-se na dança com o senhor da terra. Tanto girava Oyá na sua dança que
provocou o vento. E o vento de Oyá levantou as palhas e descobriu o corpo
de Obaluaiê. Para surpresa geral era um belo homem. O povo o aclamou
por sua beleza. Obaluaiê ficou mais que contente com a festa, ficou grato.
E como recompensa, dividiu com ela o seu reino. Fez de Oyá a rainha dos
espíritos dos mortos. Rainha que é Oyá Igbalê, a condutora dos eguns.
[...]. (PRANDI, 2001, p. 308).

Nas Comunidades de Terreiro, se compreende várias etapas do proces-


so de desligamento do espírito do morto para com sua comunidade. Esse
ritual é conhecido como Axexê ou Tambor de Choro; no Tambor de Mina,
é seguido por outro rito denominado Tambor de Alegria. De acordo com a
crença Yorubá ou Nagô, o axexê foi inventado por Oyá por conta da morte
de seu pai, o caçador Odulecê que a tinha como filha predileta.
5. Orixás – divindades secundárias que governam o mundo em nome de Deus (Olorum) na
cultura Iorubá. Cada um dos orixás, representa um elemento da natureza. (LÉPINE, 2011).
Voduns – representam ancestrais divinizados ou forças da natureza, intermediários entre os
homens e Deus (Avievodum) na cultura Jeje. (FERRETTi, 2011)

85
[..]. mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oyá muito triste. A jo-
vem pensou numa forma de homenagear seu pai adotivo. Reunião todos os
instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano. Também pre-
parou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear. Dançou e cantou
por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto, fa-
zendo com que se reunisse no local todos os caçadores da terra. Na sétima
noite, acompanhada dos caçadores, Oyá embrenhou-se mata adentro e
depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê. Olorum
que tudo via, emocionou-se com o gesto de Oyá e deu-lhe o poder de ser
a guia dos mortos no caminho do Orum. [...]. (PRANDI, 2001, p. 311)

Assim, nas Comunidades de Terreiro, a morte tem sua simbologia


particular, é um evento que demanda um rito. Todo iniciado que morre
no Aiyê/Terra, tem seu espírito conduzido por Oyá/Iansã ao Orum/Céu.
Contudo, o morto deve receber todas as homenagens da sua família es-
piritual.
A pandemia da covid-19, impôs a necessidade do isolamento social,
silenciando as comunidades, calando seus tambores, trazendo para dentro
das comunidades, a morte. Este fato impôs restrições para a execução dos
ritos funerários nas comunidades de terreiro em todo o país.

3.2 Ritos funerários nas Comunidades de Terreiro


no contexto da covid 19

A pretensão inicial era estender a pesquisa às Comunidades de Terrei-


ro em São Luís que foram vitimadas com perdas de seus membros para a
pandemia, porém, houve limitações na realização da pesquisa, em vista da
pandemia, acredita-se que as pessoas tiveram dificuldades para se expressar
acerca de um tema ainda muito presente em suas vidas. Nesse contexto de
silêncio, optou-se por investigar apenas o Terreiro de Yemanjá, como já
mencionado no início deste artigo, este terreiro foi o que mais teve perdas,
sendo duas pessoas diretamente vitimadas pela covid-19 e três pessoas, em
consequência de outras doenças. Outro ponto relevante, é o fato de per-
tencer a este terreiro, o que certamente tornou esta pesquisa menos difícil.
Para obtenção dos resultados, optei por relatos orais, que foram apli-
cados a cinco membros do terreiro. Para apreensão dos relatos dos inves-
tigados, direcionaram-se duas questões ao representante da Federação de

86
Umbanda e Culto Afro-brasileiro do Maranhão, também filho do Terreiro
de Yemanjá. Questão 1: Quais os terreiros que tiveram perdas humanas em
São Luís? Questão 02: Quantas pessoas foram perdidas para a covid-19 nesses
terreiros? A questão 03 foi estendida a três Filhos de Santo do Terreiro de
Yemanjá: A covid-19 impôs restrições para o ritual funerário nesses Terreiros?
Quais restrições? Optou-se por não identificar nominalmente os investiga-
dos, tendo em vista a sensibilidade do tema abordado.
Diante da realidade de isolamento social, as questões foram enviadas
pelo aplicativo WhatsApp, e foram respondidas em forma de áudio. As
transcrições de suas falas foram realizadas literalmente no sentido de ex-
pressar seus testemunhos como sobreviventes da pandemia da covid-19,
fato que os legitima com testemunhas importantes, portadoras de memórias
recentes. Pois, “as testemunhas estão assim, do lado dos fatos e do passado;
do lado do que não se viu ou não se pode ver.” (HARTOG, 2013, p. 214).
Durante a fala do entrevistado nº 1, quanto as questões 1 e 2, percebe-
se a dificuldade das pessoas em falar sobre a morte:

Eu vou tentar falar pra você, assim ... Eu sei que alguns terreiros [...], mas,
as pessoas não quiseram nunca falar, mesmo a gente sabendo que teve
perdas no terreiro, as pessoas nunca falaram. E sabe aquele assunto que as
pessoas – como tudo - que se quer esquecer, eles nunca falam [...] A gente
sabe que o Terreiro de Yemanjá teve perdas, o Terreiro Obá Yzoo de Pai
Wender, o Terreiro de Mãe Graça de Joãozinho lá do Araçagi, o Terreiro
de Pai Claudio. [...].

A necessidade de esquecer o evento da morte pode justificar o silêncio


em torno desse evento vivenciado por esses espaços mencionados. Vale res-
saltar, que historicamente as Comunidades de Terreiro tiveram suas práti-
cas religiosas no âmbito do privado.
Nicolau Parés, ao pesquisar sobre o culto jeje no Brasil, estendeu-se até
a Casa das Minas em São Luís, onde destacou a dificuldade de pesquisar es-
paços sagrados. Segundo o autor, parece que os jejes se orgulham por man-
ter seus segredos. “Na Mina, olho aberto, ouvido atento e boca fechada”.
Essa fala é comum no espaço dos terreiros em São Luís, cujo aprendizado
se dá pela vivência sempre atenta, sem fazer muitas perguntas. (PARÈS,
2007, p. 313). Apesar do silêncio, no entanto, é significativo o número de
Comunidades que foram vitimadas com perdas, totalizando quatro casas,
demonstrando a face mortal da pandemia.

87
No que tange às questões 3, o entrevistado 1, fez referência às restrições
impostas pela covid-19 ao rito funerário:

Realmente a COVID-19 impôs essas restrições dos rituais até o fúnebre,


porque quando a pessoa faz sua passagem [...] você faz os procedimentos
da preparação do corpo para os rituais que é o tambor de choro e todo o
acompanhamento com o povo de santo, então não foi possível fazer isso
desde o início da covid, por conta da contaminação, mesmo com o pro-
tocolo sanitário. Teve uma grande discussão do povo de terreiro com o
poder público, para que o Pai ou a Mãe de Santo pudesse fazer o ritual do
último momento. Somente antes do início da vacinação, foi que o poder
público acordou que, quando partisse uma pessoa de terreiro, poderia
ir uma ou duas pessoas, mas tinha um critério: não poderia ser pessoas
acima de 60 anos.

A preparação do último ritual do corpo presente, foi percebido nas fa-


las de três entrevistados como o momento mais crucial para o rito funerário.

Uma das restrições que eu percebo é o tambor de corpo presente, a própria


questão dos rituais internos que não foram realizados por não poder se
ter contato com as pessoas que fizeram a passagem, por exemplo [...]. É a
configuração do desligamento da pessoa com o mundo terreno. (ENTRE-
VISTADO 2)

O rito funerário foi prejudicado pela covid porque não vimos nossos pa-
rentes, nossos irmãos serem sepultados, não fizemos nossos procedimentos
que são feitos no ato do falecimento, que é cortar o vínculo do filho de san-
to com o terreiro. Isso foi um dos piores momentos já existente para nós.
Eu sei que existiram muitos outros momentos difíceis, mas como o que eu
presenciei, é sem comentários, sem palavras, foi muito triste, muito difícil
e continua sendo. Não velamos nossos mortos, não fizemos o ritual que é
feito no axexê para poder a pessoa desencarnar, e levar toda a sua bagagem
na sua passagem desse mundo para o outro. (ENTREVISTADO 3)

Convém mencionar que a entrevistada, foi a última a enviar a devolu-


tiva, tivemos um momento presencial, porém ela não conseguiu falar, so-
licitou mais um tempo e enviou sua resposta em forma de áudio. Esse fato
revela não somente a tristeza pelas perdas dos entes queridos da família es-
piritual, como a quebra de um rito que interfere na continuidade da vida. A
não execução do rito funerário na prática significa a não separação do morto

88
da via terrena, impedindo assim sua trajetória para o retorno da vida. Para
os vivos fica a compreensão de que o morto se torna um egum6 mal despa-
chado, vagando entre os vivos, fato que gera energia negativa impedindo a
circulação do axé, energia vital para a ancestralidade.
A entrevistada 4, também manifestou dificuldades em responder. “Eu
senti uma dor muito grande de não poder me despedir das minhas irmãs e
até hoje eu sinto e choro”. O relato foi interrompido pelo choro. Nos dois
últimos relatos percebe-se a dificuldade que essas pessoas apresentaram em
opinar em um tema tão difícil. O que deveria ser uma boa lembrança, tende
a ser infinitamente uma grande dor. Pois, os rituais de ancestralização são
rituais de negação da morte. O axexê para a comunidade de terreiro quer
dizer nós não te esqueceremos, é um ritual de lembrança.

Considerações finais

As restrições impostas pela covid-19 para as Comunidades de Terreiro,


em geral é um tema caro, sobretudo, em se tratando do rito funerário. A
não realização dos rituais funerários, significou a aceitação da morte. Ao
logo do trabalho, mencionou-se várias vezes que a morte não existe para as
Comunidades de Terreiro, ela se configura como um retorno ao orum. Esse
retorno é compreendido como o fechamento do ciclo da vida, pois trata-se
de um encontro com seus antepassados e o retorno para uma nova vida.
Deve-se considerar também que as mortes provocadas pela covid-19,
poderiam ter sido evitadas. Para as Comunidades de Terreiro trata-se de
pessoas que tiveram suas vidas abreviadas. As restrições na execução do rito
funerário impediram e/ou limitaram esse momento da passagem. Como
consequência, as pessoas ainda estão bastante abaladas mentalmente pela
forma prematura como essas partidas aconteceram, o que se percebe é a
extensão do luto, a dor no lugar da memória, das boas lembranças.
Historicamente, a ressignificação da morte está diretamente ligada aos
rituais de passagem por parte dos povos, dos grupos sociais e das civiliza-
ções. No período da pandemia, a temporalização em curso por parte das
Comunidades de Terreiro em São Luís, desde a relação dinâmica entre a
vida e a morte, implicou na interrupção da presença de entes queridos, no
impedimento do rito de desligamento e na incompletude de um ciclo que

6. Refere-se às almas dos mortos, os antepassados LÉPINE, 2011)

89
precisaria ser cumprido. Para a História do Tempo Presente, importa per-
ceber estes sentidos que foram partidos, as crenças que foram suspensas, os
sentimentos que ficaram sem as despedidas e as linguagens que procuram
reinterpretar o evento da morte.

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https://www.agenciatambor.net.br

92
raça e racismo no brasil:
problemas teóricos e históricos1

Marlzonni Marrelli Matos Mauricio2

Considerações iniciais

Minha pesquisa de doutorado investiga a existência de discursos an-


tirracistas nos romances de Aluísio Azevedo por meio das representações
raciais de seus personagens, e busca responder ao seguinte problema: é pos-
sível que, em face do influxo das teorias raciais, Aluísio Azevedo tenha pro-
duzido algum discurso antirracista nas duas últimas décadas do século XIX?
Deste problema, decorre-se a um outro (ao qual se busca também respon-
der): é possível produzir discursos antirracistas em uma sociedade racialista?
O objetivo de minha pesquisa é compreender como Aluísio Azevedo
se apropriou das teorias raciais nas duas últimas décadas do século XIX,
e analisar os significados e as práticas presentes nas representações raciais
de seus personagens. Para tanto, procura-se examinar a ideia de raça como
matéria ideológica, e discutir a alteridade racial “branco e negro” como
construção ideológica.
Dito isso, pretendo discutir a partir daqui sobre raça e racismo no Bra-
sil, apresentando algumas leituras que suscitam problemas teóricos e his-
tóricos, as quais avalio como oportunas para o desenvolvimento de minha
pesquisa, bem como para o próprio debate sobre raça e racismo no Brasil.

1. Trabalho originalmente apresentado ao Programa de Pós-graduação em História, da Uni-


versidade Federal do Maranhão, como pré-requisito para obtenção de nota na disciplina
“Raça e racismo no Brasil”, sob supervisão da Prof.ª Dr.ª Régia Agostinho da Silva.
2. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Fede-
ral do Maranhão (PPGHis-UFMA). Licenciado em História pela Universidade Federal do
Tocantins (UFT). Bolsista Capes.
Racismo como pensamento e ideologia

O racismo não é em si nenhuma novidade às sociedades ocidentais.


Como forma de pensamento, ele já era presente, por exemplo, em Hipócra-
tes. Francisco Bethencourt (2018) explica que o racismo na forma de pre-
conceito étnico associado à ação discriminatória sempre existiu em diversos
períodos da história, sendo motivado por projetos políticos que alocavam
grupos específicos em hierarquias contextualizadas de acordo com objetivos
concretos.
Contudo, o racismo, ainda que de maneira complexa, conformava-se
unicamente como forma de pensamento. De acordo com Hannah Arendt
(2012), até o século XIX, o pensamento racista competia com muitas ideias
livremente expressas que disputavam entre si a aceitação da opinião pública.
O pensamento racista somente começou a se conformar em uma ideo-
logia quando a história da humanidade se tornou uma história da luta na-
tural entre raças. Hannah Arendt (2012) esclarece que a ideologia se difere
do simples pensamento, porquanto se pretende detentora de toda a história,
oferecendo uma resposta aos segredos do universo a partir de leis universais;
as quais conduziriam supostamente a natureza e a própria humanidade.3
Entender o racismo como ideologia se faz importante à minha pes-
quisa na medida em que sua força de convencimento não é acidental. Para
Hannah Arendt (2012), o poder de convencimento de uma ideologia só
é possível, pois seu apelo corresponde às experiencias e às expectativas de
um grupo de pessoas, ou seja, às suas necessidades imediatas. Assim sendo,
toda ideologia necessita de argumentos aparentemente coesos, com carac-
terísticas reais, que ensejem novas interpretações sobre a vida e o mundo.
Nada obstante, à minha pesquisa, a ideologia tem uma outra impor-
tância para além de seu poder de convencimento, que é o seu enleio com as
representações (e, mais à frente, com a construção do Brasil como nação).
A ideologia é, segundo José D’Assunção Barros (2005), uma interação de
subconjuntos coerentes de representações e práticas que passam a reger o
comportamento das pessoas em suas interrelações sociais e políticas.
As representações podem ser apropriadas para um objetivo social e po-
liticamente motivado. À vista disso, uma ideologia pode se apropriar de

3. A ideologia é um sistema suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas,


e bastante amplo para orientá-las nas experiências e nas expectativas para com a vida moderna
(ARENDT, 2012).

94
determinado conjunto de representações com a intenção de produzir deter-
minados resultados sociais (BARROS, 2005). No tocante ao racismo como
ideologia, mormente no Brasil do século XIX, observa-se um conjunto de
representações raciais aparelhado à manutenção de uma hierarquia social.4
No século XIX, esse conjunto de representações raciais, conformado
em ideologia racista, encontrou na ciência os argumentos dos quais ca-
recia e se aparelhou aos interesses imediatos das elites brasileiras, que, a
partir da década de 1880, procuravam novas formas de reiterar a inferio-
ridade dos libertos. Como efeito, os libertos viraram negros aos olhos da
sociedade brasileira.
Durante séculos, a hierarquia social no Brasil foi marcada pela verticali-
dade entre senhores e escravizados. No entanto, com o advento da ideologia
racista no século XIX, em face de uma sociedade de libertos, essa hierarquia
social foi reestruturada e assinalada por uma profunda desigualdade racial.
Cabe enfatizar que a ideologia racista a qual estou me referindo é
precisamente o racismo moderno, criado sob a égide da ciência moderna.
Portanto, a ideia de raça no século XIX implica uma natureza imanente,
da qual se emana determinada biologia e determinada psicologia. Confor-
me Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2003), a ideia de raça é anterior
ao racismo moderno, contudo, nas sociedades ocidentais, trata-se de uma
ideia de ordem teológica.5

No meio do caminho tinha uma raça

Como já se observou, a ideologia racista se aparelhou aos interesses


imediatos das elites brasileiras, reiterando a inferioridade dos libertos. En-
tretanto, essa mesma ideologia resultou em um outro problema: o futuro do
Brasil diante de uma população mestiça.
A miscigenação era encarada como um entrave aos projetos nacionais
pensados com base no modelo europeu de sociedade. De acordo com Lília
Moritz Schwarcz (1995), a constatação de que o Brasil possuía uma po-
pulação composta em sua maioria de mestiços suscitava inúmeros dilemas
para as elites, sobretudo para os intelectuais, pois era admitir a inexistência

4. A ideologia corresponde a uma determinada forma de aparelhar representações já existentes


a determinados objetivos e a determinados interesses (BARROS, 2005).
5. Segundo Francisco Bethencourt (2018), o racismo moderno resulta de um esforço científico
para justificar e reiterar as hierarquias de raças, que supostamente seriam inatas e imutáveis.

95
de um futuro, visto que a mistura de raças heterogêneas era considerada um
erro, e levava à degeneração não só do indivíduo como de toda a sociedade.
Tais ideias eram promovidas pelo modelo determinista poligenista,
em que se defendia uma hierarquia natural de tipos humanos. Outrossim,
o poligenismo presumia que as diferentes raças humanas constituíam es-
pécies distintas, tipos específicos, não redutíveis pela mistura a uma única
humanidade (SCHWARCZ, 1993). O conde francês Arthur de Gobi-
neau, um dos precursores do modelo poligenista, proferiu duras palavras
ao descrever a situação racial da população brasileira, a qual, para ele,
era degenerada no sangue e no espírito, e “assustadoramente feia” (apud
SCHWARCZ, 1995).
O racismo moderno chegou ao Brasil por meio de um conjunto de
teorias raciais, as quais, a princípio, foram acolhidas com entusiasmo pelos
intelectuais. Apesar de inicialmente bem recebidas, essas teorias, criadas a
partir de modelos deterministas, embatiam-se com a realidade brasileira,
há tempo já mestiça. Em consequência, formava-se um impasse: condenar
a miscigenação e aceitar o negro como elemento degenerativo incontorná-
vel ou adaptar as teorias raciais à realidade do Brasil.
Como a realidade do país destoava dos modelos deterministas pre-
conizados pelas teorias raciais, o que restou foi então aceitar a ideia da
diferença ontológica entre as raças, mas sem condenar a miscigenação,
pelo menos como processo (SCHWARCZ, 1995). Do contrário, seria
condenar o Brasil ao fracasso enquanto nação.
Os projetos de cunho nacional se vinculavam ao racismo moderno, e
em um país como o Brasil, cuja realidade apontava para a existência emi-
nente de uma população mestiça (e, ademais, negra), pensar em raça parecia
oportuno (SCHWARCZ, 1995). Em vista disso, à medida que a realidade
do país impossibilitava o pleno aproveitamento dos modelos deterministas,
fazia-se apropriado, ao menos, o uso político-ideológico das teorias raciais,
ainda que isso significasse abrir mão de alguns preceitos teóricos.6
Os intelectuais brasileiros procuraram descartar as conclusões pessi-
mistas das teorias raciais, adaptando-as a soluções mais pertinentes à rea-
lidade do país; e, como exemplo, tem-se a tese do branqueamento, que

6. Em meados do século XIX, o racismo moderno, fundamentado, às vezes, no modelo poli-


genista, assumiria outro interesse para além do científico. Conforme Francisco Bethencourt
(2018), o interesse científico sobre a heterogeneidade dos seres humanos se tornaria ideologi-
camente agressivo e politicamente empenhado.

96
concluía com otimismo que a miscigenação não produzia degenerados, mas
sim uma população mestiça saudável apta ao embranquecimento contínuo
(SKIDMORE, 1976). Tal apropriação decerto se elucida à luz de Hannah
Arendt (2012), ao ilustrar que toda ideologia é criada e aprimorada como
arma política, e não como doutrina teórica.7

Cidadania postergada

A constatação de que o Brasil possuía uma população de maioria mes-


tiça, somada ainda a um contingente populacional negro, suscitava outros
dilemas aos intelectuais brasileiros, como o direito à cidadania.
A elite intelectual brasileira era constituída dos mais diversos campos
intelectuais. No entanto, no cerne da questão racial, destacavam-se os
intelectuais do Direito e da Medicina, que disputavam entre si a hege-
monia intelectual. Conforme Lília Moritz Schwarcz (1995), os juristas
acreditavam que a responsabilidade de conduzir a nação estava vinculada
à elaboração de um código compatível à realidade brasileira, enquanto os
médicos acreditavam que somente eles seriam capazes de diagnosticar os
males que assolavam a nação; ou seja, de um lado, esperava-se do Direito
uma resposta às diferenças raciais já apontadas, e do outro, confiava-se à
Medicina uma cura para a heterogeneidade das raças.
Observa-se, nisso, que as teorias raciais continuavam a ter uma fun-
ção importante, porquanto, quando descartadas as conclusões pessimistas,
elas permitiam justificar desde projetos nacionais até a existência de hie-
rarquias inatas e imutáveis. Assim, os intelectuais encontravam respaldo
para redimensionar o debate sobre a igualdade entre as raças e, por con-
seguinte, sobre os critérios de cidadania, procurando nas teorias raciais
os meios para transformar as diferenças sociais em barreiras biológicas
naturais (SCHWARCZ, 1995).
A exemplo disso, tem-se o médico Nina Rodrigues (1894). Para ele, os
negros não deveriam ser julgados pelo mesmo código que os brancos, por-
7. De acordo com Thomas Elliot Skidmore (1976), a tese do branqueamento se baseava na
ideia de superioridade branca, por vezes, pelo uso dos eufemismos raças “mais adiantadas” e
“menos adiantadas” e pelo fato de permanecer em aberto a dúvida de ser a inferioridade ina-
ta. Além disso, defendiam-se duas hipóteses: a diminuição da população negra por motivos
que incluíam suposta taxa de natalidade mais baixa, maior incidência de doenças e desordem
social; assim como a miscigenação resultava “naturalmente” em uma população mais clara,
em parte porque o sangue branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem
parceiros mais claros do que elas.

97
que pertenciam a uma “outra fase do desenvolvimento intelectual e moral”,
sendo desprovidos de “mentalidade adiantada”. Cabe destacar que Nina
Rodrigues foi um dos médicos mais prestigiados do período, e um dos prin-
cipais críticos do Direito Penal brasileiro, contrapondo-se veementemente
ao jusnaturalismo e à ideia de igualdade jurídica entre as raças.
Na Gazeta Médica da Bahia (1906), mesmo após a virada do século,
nota-se como as teses de Nina Rodrigues continuavam a promover ener-
gicamente a defesa da ontologia das diferenças humanas e a crítica à igual-
dade racial:

Não se pode ser admissível em absoluto a igualdade de direitos sem que


haja ao mesmo tempo, pelo menos, igualdade na evolução... No homem
alguma coisa mais existe além do indivíduo... Fazer-se do indivíduo o
princípio e o fim da sociedade, como sendo o espírito da democracia, é um
exagero da democracia, é um exagero da demagogia... As ideias da Revo-
lução Francesa até hoje não se puderam conciliar pois abherrant inter se...
(apud SCHWARCZ, 1995: 186; ortografia atualizada).

No entanto, por causa do caráter poligenista de suas teses, Nina Rodri-


gues encontrou resistência para além dos círculos acadêmicos da Medicina,
uma vez que, para outros intelectuais, a tese do branqueamento se fazia
mais pertinente ao problema racial do Brasil, no tocante aos mestiços e,
sobretudo, aos negros.
Flávio dos Santos Gomes (1991) elucida que, para as elites brasileiras,
os negros deveriam aguardar passivamente seu direito à cidadania. Outros-
sim, para serem inseridos no mercado de trabalho livre, eles precisavam
estar preparados para exercer sua cidadania, e tal preparação deveria ocorrer
dentro da ordem, para o bem do progresso da nação. Além disso, para uma
parcela das elites, esse processo indispensável deveria ser revestido do pró-
prio branqueamento da população negra.
O direito à cidadania, decerto, não existia para além do discurso (nota-
damente retórico); até porque, antes mesmo da abolição, as elites brasileiras
já demonstravam interesse de substituir a mão de obra escravizada pela mão
de obra livre europeia, não somente em razão de uma suposta maior produ-
tividade, mas pela ideia de superioridade racial dos brancos.
De acordo com Iray Carone (2016), as políticas de imigração eviden-
ciavam a preocupação de impedir a “decadência dos brancos” mediante a
miscigenação, favorecendo-se a entrada de imigrantes europeus, considera-

98
dos superiores aos africanos e aos asiáticos. A imigração aumentaria consi-
deravelmente o número de brancos no país e, como efeito, a miscigenação
acabaria por branquear o Brasil num futuro próximo.
A cidadania não era considerada um direito natural, mas sim um direi-
to concedido, e cabia à sociedade julgar quem era merecedor desse direito
(GOMES, 1991). Nesse caso, julgados como inaptos à vida social em vir-
tude da experiencia com o cativeiro e por efeito da inferioridade racial, o di-
reito à cidadania seria negado aos negros, assim como o direito de constituir
uma parte da sociedade brasileira.

O negro como fator de civilização

Falar em intelectuais de uma maneira generalizada pode suscitar, por


vezes, a falsa ideia de que todos eles se encontravam de acordo com as teo-
rias raciais e, assim, atuavam em prol da manutenção do status quo das elites.
Nada obstante, existiam, sim, intelectuais que questionavam a ideia de raças
heterogêneas e que colocavam em xeque as hierarquias raciais supostamen-
te inatas e imutáveis. Um exemplo adequado disso, é o médico Manuel
Bomfim. Para ele, as hierarquias raciais entre seres humanos era um erro,
uma vez que as diferenças em níveis de desenvolvimento cultural e material
correspondiam às necessidades dos grupos humanos para com o seu meio.
Por mais notável que seja Manuel Bomfim, porém, cabe agora discutir
sobre outro intelectual, que, igualmente notável, posicionou-se em favor do
reconhecimento do negro como parte fundamental da formação da socie-
dade brasileira.
Nascido na cidade de Santo Amaro no Recôncavo baiano, no ano de
1851, Manuel Querino foi um intelectual brasileiro que atuou no reconhe-
cimento do negro e da cultura africana enquanto fatores positivos à socie-
dade brasileira e, ademais, à história do Brasil.
Manuel Querino (1980) defendia o negro como fator importante para
a construção do país, em antítese aos discursos que o resumiam a um objeto
étnico da ciência racial ou a um problema à formação social do Brasil, uma
vez que, “tratando-se da riqueza econômica, fonte da organização nacio-
nal”, era ainda “o colono preto o fator máximo”.
Para Manuel Querino, o Brasil só se fez uma “nação independente,
culta, poderosa entre os povos civilizados”, às custas do trabalho dos negros
escravizados, que permitiram o desenvolvimento da vida cultural do país.

99
Para ele (1980: 156), era, então, o negro:

[...] o braço propulsor do desenvolvimento manifestado no estado social


do país, na cultura intelectual e nas grandes obras materiais, pois que,
sem o dinheiro que tudo move, não haveria educadores nem educandos:
feneceriam as aspirações mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas
mais valiosas.

Aliás, em antítese também às teses poligenistas de Nina Rodrigues


(e aos modelos deterministas da ideologia racista), que consideravam o
negro um elemento degenerativo, e que condenavam a mistura de raças
heterogêneas, Manuel Querino (1980: 156-157), em um elogio aos mes-
tiços, sublinhava que:

Do convívio e colaboração das raças na feitura deste País, procede [o]


elemento mestiço de todos os matizes, donde [uma] plêiade ilustre de
homens de talento que, no geral, representaram o que há de mais seleto
nas afirmações do saber, verdadeiras glórias da nação. Sem nenhum es-
forço [cita-se] o Visconde de Jequitinhonha, Caetano Lopes de Moura,
Eunápio Deiró, a privilegiada família dos Rebouças, Gonçalves Dias,
Machado de Assis, Cruz e Souza, José Agostinho, Visconde de Inho-
mirim, Saldanha Marinho, Padre José Maurício, Tobias Barreto, Lino
Coutinho, Francisco Glicério, Natividade Saldanha, José do Patrocínio,
José Teófilo de Jesus, Damião Barbosa, Chagas, o Cabra, João da Veiga
Murici e muitos outros, só para falar dos mortos. Circunstância essa que
[...] permite asseverar que o Brasil possui duas grandezas reais: a uberda-
de do solo e o talento do mestiço.

O mestiço não era, para Manuel Querino, um meio para um proces-


so, mas sim seu último produto, que muito já havia contribuído para pros-
peridade cultural do Brasil; assim como o negro não era um problema,
porque “as instituições, as letras, as artes, o comércio, a indústria, etc.”,
resultavam do fruto de seu trabalho, competindo-lhe, portanto, um lugar
de destaque, como “fator da civilização brasileira”.

Racismo como estrutura

Apesar de a ciência contemporânea já ter resilido a ideia de raças he-


terogêneas por meio do sequenciamento do genoma humano, o racismo
ainda existe enquanto prática político-ideológica. Para discorrer a respeito,

100
neste último momento, buscarei me orientar conforme as análises do inte-
lectual brasileiro Silvio Luiz de Almeida.
Assim sendo, como conceito moderno, tem-se que a raça é um ele-
mento essencialmente político, utilizada para naturalizar desigualdades
e para justificar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamen-
te considerados minoritários, tal como se observou na Alemanha nazista
(ALMEIDA, 2018).
Para Silvio Luiz de Almeida (2018), o racismo se concretiza por meio
de práticas discriminatórias, que consistem na atribuição de tratamen-
to diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Desse
modo, a discriminação racial tem como premissa o poder, ou melhor, o
exercício de poder de um grupo sobre outro.
Por conseguinte, o racismo é:

[...] uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fun-
damento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou incons-
cientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a
depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2018: 25).

Como citado, o racismo é, então, um processo em que condições desi-


guais que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem cotidianamente
nos campos da política, da economia e das relações sociais.
O conceito de racismo é, por vezes, difuso. Em vista disso, Silvio Luiz
de Almeida procura elucidar didaticamente o conceito a partir de três con-
cepções: racismo individual, racismo institucional e racismo estrutural.
A concepção individual é entendida como uma forma de patologia do
indivíduo. Portanto, seria um fenômeno ético ou psicológico de caráter in-
dividual (ou coletivo), atribuído de modo isolado. Sob esse aspecto, não
haveria sociedades ou instituições racistas, mas sim indivíduos racistas, que
agem isoladamente (ou em grupos). Por esse motivo, a concepção indivi-
dualista não admite a existência de racismo, mas somente de preconceito
racial, pois busca considerar só a natureza psicológica do fenômeno em de-
trimento de sua natureza política (ALMEIDA, 2018).8
Sob o aspecto institucional, o racismo resulta do funcionamento das
instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, direta ou
8. Preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a
um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias
(ALMEIDA, 2018).

101
indiretamente, desvantagens ou privilégios a partir da raça. Para Silvio
Luiz de Almeida (2018), é no interior das instituições, que as práticas
individuais passam a ser inseridas em um conjunto de significados es-
tabelecidos, de antemão, pela estrutura social. As instituições moldam,
ou procuram moldar comportamentos, conformando modos de pensar e
preferências. Nesse sentido, as instituições são conformações das deter-
minações formais da vida social, e resultam das lutas pela hegemonia do
poder social e pelo controle das instituições.
Observa-se que a concepção institucional do racismo trata o poder
como elemento central da relação racial. Decerto, como elucida Silvio
Luiz de Almeida (2018), o racismo é dominação. Exerce o poder os gru-
pos que têm o domínio sobre a organização política e econômica da so-
ciedade; mas a manutenção de tal poder depende da capacidade do grupo
hegemônico de institucionalizar os seus interesses, impondo à sociedade
regras e referências que tornem “normal e natural” o seu domínio.
Já a concepção estrutural do racismo decorre da própria estrutura
social, em que se constituem as relações políticas, econômicas, etc., não
sendo o racismo, portanto, uma patologia social e, menos ainda, uma de-
sordem institucional. Comportamentos individuais e processos institu-
cionais decorrem de uma sociedade cujo racismo “é regra e não exceção”.
De acordo com Silvio Luiz de Almeida (2018), o racismo é parte de um
processo histórico e político que cria condições sociais para que, direta ou
indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de
forma sistemática.
Nada obstante, o aspecto estrutural do racismo não exclui os sujeitos
racializados, mas os considera como parte constitutiva e ativa, bem como
não retira a responsabilidade do indivíduo sobre suas práticas racistas.
Raça é um conceito cujo significado apenas pode ser entendido como
exercício de poder (de um grupo sobre outro) e sob o olhar relacional. Por
conseguinte, racismo não é uma patologia de indivíduos mal intenciona-
dos, e sim resultado de uma relação social. O que significa dizer que o ra-
cismo se manifesta em atos concretos ocorridos no interior de uma estru-
tura social assinalada por disputas e antagonismos (ALMEIDA, 2018).

Considerações finais

O presente trabalho resulta do esforço de se discutir sobre raça e racis-

102
mo no Brasil sob múltiplos olhares e em diversos contextos, a partir de pro-
blemas teóricos e históricos que, não acidentalmente, enleiam-se. Para isso,
fez-se importante uma releitura de Lília Moritz Schwarcz (1993), chegan-
do-se à seguinte conclusão: o desafio de se compreender a apropriação da
ideia de raça no Brasil (em face das teorias raciais) não está na busca pelos
usos ingênuos e como tais considerá-los. Mais importante é pensar sobre a
originalidade dessa apropriação, que procurou adaptar o que combinava e
descartar o que era inviável ou problemático.
Ademais disso, sobre a questão do racismo em Silvio Luiz de Almeida
(2018), compreende-se a importância de se entender o racismo sob o olhar
estrutural. Nada obstante, acrescenta-se que para combater o racismo é ne-
cessário antes se combater a racialização de pessoas, suprimir a ideia de raça,
pois, quando imposta e legitimada em uma sociedade, seus indivíduos ten-
dem a se dividir em grupos considerados racialmente distintos. Assim, pe-
rigosamente, raça pode significar grupos de pessoas socialmente divididos
em virtude de marcadores físicos como a pigmentação da pele, a textura de
cabelo, os traços faciais, a estatura e coisas do gênero (CASHMORE et al.,
2000). Emprega-se a palavra “perigosamente”, porquanto essas sociedades:

São invariavelmente racistas, no sentido de que as pessoas, em especial


os membros dos grupos dominantes, acreditam que os fenótipos físicos
estão ligados a características intelectuais, morais e comportamentais.
Raça e racismo, portanto, andam de mãos dadas (CASHMORE et al.,
2000: 455-456).

Antes de qualquer uso, raça é um discurso político construído, apro-


priado e ressignificado das mais variadas formas. Ainda que apresente a
ideia de diversidade, de pluralidades humanas (ou até mesmo de formas
exequíveis de resistência), traz consigo marcas históricas que convieram (e
ainda muito convêm) para enaltecer determinados grupos em detrimento
de outros.

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104
poderes, políticas e sociabilidades
as contribuições da perspectiva global
para o estudo da escravização africana

Ábdon Eres da Silva Neto1

Introdução

A perspectiva global tem oferecido para a historiografia importantes


contribuições. Tal conclusão pode ser observada ao analisarmos os textos
de Rafael Marquese (2019) e Pepijn Brandon (2017): o primeiro sobre as
perspectivas historiográficas acerca da escravização e o segundo sobre as
relações entre a escravização e o capitalismo. Ambos os autores discutem
como a historiografia tem abordado o assunto, apontando os limites e as
possibilidades que poderiam expandir a compreensão a respeito da escravi-
zação no mundo. Desse modo, apresentaremos esses dois textos, que serão
parâmetro para analisarmos os textos de outros autores que também traba-
lharam a questão do tráfico de escravizados nas Américas.
O presente texto é fruto das discussões realizadas na disciplina Escra-
vização de Africano-Americanos na perspectiva global ministrada pelo pro-
fessor doutor Luís Alberto Couceiro no período de 2021.2. A organização
de tais discussões neste artigo teve o objetivo de perceber como os autores
– que serão apresentados ao longo dessas páginas - dialogaram com a
perspectiva global (mesmo que não se identifiquem como historiadores
globais) e assim identificar as contribuições dessa abordagem para o estu-
do da escravização africana.
1. Doutorando em História na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestre em
História do Brasil - UFPI (2019) e graduado em História – UFPI (2016). Pesquisador em
História Política e Partidos Políticos no recorte de 1945 – 1964. Contato: abdon_eres@hot-
mail.com
Historiografia sobre a escravização atlântica a partir de
Rafael Marquese e Pepijn Brandon

Rafael de Bivar Marquese, em seu artigo intitulado A história global da


escravidão atlântica: balanço e perspectivas faz um balanço historiográfico so-
bre os trabalhos que trataram sobre a escravidão atlântica, mostrando como
os autores abordaram a temática. Com isso, Marquese ressalta como o na-
cionalismo metodológico tem sido um fantasma recorrente nas obras de
boa parte dos pesquisadores. Para ele, uma das saídas para essa insistência
do nacionalismo tem vindo da utilização da perspectiva global. Assim, elen-
cou três eixos gerais em torno dessa caminhada rumo ao global: o primeiro
se encontra na análise de Patterson que propões um estudo geral que seja
independente do tempo e do espaço; o segundo faz referência à chamada
história geral do trabalho, que leva em conta as variadas formas de trabalho,
compulsórias, assalariadas, livres, rural e urbanas; o terceiro eixo tem por
alvo central o exame das múltiplas temporalidades da escravidão atlântica
em suas relações com o capitalismo histórico.
Marquese avalia a pertinência da história global para o tratamento de
determinadas temáticas. A seu ver, o contexto de reordenação geopolítica,
de revolução dos meios de comunicação, por exemplo, tem exigido uma
abordagem historiográfica mais abrangente. Nesse sentido, o autor coloca
alguns desafios existentes quando se refere à construção de uma história sob
a perspectiva global, como por exemplo, o risco da história global ser o que
ele chama de “apenas um rótulo novo para um perfume velho”.
Diante dessas problemáticas, Marquese sugere que seja conferido à
história global mais coesão teórica e metodológica. Em seu ponto de vista,
a promessa de história global consiste em estudar fragmentos do globo in-
tegrados por meio de laços diversos, sejam econômicos, sociais, políticos ou
culturais, e que assumem uma dada configuração dinâmica e sistêmica. É o
que chama de totalidades abertas, já que tais estudos agregam as contradi-
ções e movimentos.
Na seção que trata especificamente sobre a relação entre escravidão
atlântica, capitalismo e história global, Marquese tece comentários sobre
uma mudança ocorrida na virada do século XX para o século XXI na forma
como o capitalismo e as relações de trabalho passaram a ser tratadas nos
estudos sobre o tema: por muito tempo considerou-se o capitalismo como

108
um sistema que não admitia o trabalho escravo, sendo a evolução desse
sistema um elemento que levaria a uma generalização do uso do trabalho
assalariado. Com as modificações na forma de ver essa questão, passou-se a
considerar a existência de outras formas de controle do trabalho.
Nessa linha ressaltou-se Immanuel Walerstein que pondera que o tra-
balho livre era crucial nas áreas centrais, onde havia mais possibilidade de
organização dos trabalhadores. Já nas regiões periféricas prevaleceu formas
de trabalho compulsório ou semiproletários. Tal perspectiva é, para Mar-
quese, algo muito sugestivo para a escrita da História Global, pois vê o
capitalismo como uma combinação de várias formas de exploração.
Esse é um dos cernes da argumentação de Marquese. Para ele, a te-
mática da escravidão deve ser vista como uma totalidade aberta, no sentido
de que se deve considerar a sua diversidade, a sua historicidade, os modos
como aconteceu em vários tempos e espaços. O autor ressalta isso ao anali-
sar os trabalhos produzidos sobre o tema, especialmente, os que relacionam
escravidão e capitalismo. A principal crítica que Marquese faz a esses escri-
tos é que tratam esses dois elementos como fenômenos exteriores entre si e
que estão presos em bases nacionalistas. Para ele, o capitalismo precisa ser
visto em sua globalidade, nas diferentes articulações que possui no mundo,
do ponto de vista do espaço, do tempo, dos aparatos institucionais e das
variadas formas de exploração do trabalho. Da mesma forma, Marquese vê
a escravidão: “uma instituição atravessada por múltiplos estratos de tempo
e, portanto, prenhe de história” (2019, p. 29).
Brandon Pepijn (2017) em Capitalismo y esclavitud: nuevas perspectivas
a partir de debates norte-americanos destaca que os trabalhos tratando sobre
as relações entre a escravização e capitalismo voltaram ao centro das aten-
ções com a publicação de Capitalism & Slavery de Eric Williams, em 1944.
Para isso contribuíram uma série de crises agudas. A primeira delas foi a
crise da memória. Uma sucessão de acontecimentos históricos relacionados
com a história da escravidão e da abolição em um curto espaço de tempo
gerou um grande interesse pelo tema, mas que, conforme o autor, apre-
sentou deficiências quanto ao modo como a escravidão estava integrada ou
separada das histórias nacionais existentes.
A segunda crise foi a do capitalismo em 2008, que trouxe novas his-
tórias do capitalismo com temas como o Estado, política internacional,
consumo, história vista de baixo; temas que vão além das preocupações
econômicas tradicionais. A terceira crise, por sua vez, foi na política racial

109
norte-americana e se relaciona com a eleição de Barack Obama e o movi-
mento “vidas negras importam.”
Essas inquietações fizeram ressurgir o debate sobre escravidão e capi-
talismo. De acordo com Brandon, esse novo giro da historiografia norte-
-americana sobre o assunto questiona os limites cronológicos, geográficos
e disciplinares. Entra em cena propostas de uma “nova história” da escra-
vidão e, assim, o referido autor propõe-se a examinar o que há de novo
nesses estudos.
Na seção intitulada Das teses de Williams ao debate atual, Brandon
apresenta duas perspectivas sobre a relação entre a escravidão e o sistema
capitalista. A primeira delas é representada por Williams, no seu livro
Capitalism & Slavery, que trata sobre a Grã-Bretanha e que conclui que o
capitalismo não era compatível com a escravização, sendo o seu desenvol-
vimento o responsável pela abolição deste sistema político naquele país. A
segunda refere-se aos cinco autores objeto de estudo de Brandon. Segun-
do ele, esses tratam sobre o Sul dos Estados Unidos no século XIX e de
suas relações com o restante do mundo. E, diferentemente de Williams,
esses trabalhos consideram a escravidão como parte integrante do capi-
talismo industrial e da globalização, ou seja, não há essa linha divisória
marcante entre um e outro.
Entendemos a comparação feita por Brandon entre Williams e os
autores que constituem o objeto de investigação do seu artigo como apon-
tamentos sobre os limites de pesquisas que dissociam o sistema escravista
da globalização. Nesse sentido, o autor considera como importante que
pesquisas sobre a escravidão num dado espaço leve em conta conexões
com outros espaços, não se fechando a um país em específico.
Na seção seguinte, intitulada Esclavitud expansionista: Johnson, Baptist
y Schermerhorn, Brandon se propõe a destacar alguns erros e acertos sobre os
historiadores comprometidos com essa “nova história” sobre a escravidão.
O primeiro deles, Walter Johnson, relaciona um lugar (o vale do Mississipi)
e um setor econômico (transporte a vapor) com as tendências expansionis-
tas do capitalismo do Sul e, assim, diferente das abordagens tradicionais
que priorizam um espaço específico, modelos de produção fechados em
plantações e a história econômica e quantitativa, ele teve como prioridades
o movimento, as conexões e a história política e cultural.
O segundo, Edward Baptist, utilizou narrativas escritas pelos próprios
escravos do século XIX, permitindo a escrita de uma história baseada na

110
visão dos próprios escravizados: “esto fuerza al lector a observar diferentes
tipos de conexiones entre la expansión económica y el sufrimiento humano”
(BRANDON, 2017, p: 184). Por último, Schermerhorn. Em sua história
do capitalismo escravista examinou as cadeias empresariais que conectavam
os traficantes de escravos com a rede de comércio e serviços que a cercavam.
Nas palavras do autor, escreve uma história “acerca de la integración de la
‘empresa de la esclavitud’ en el conjunto más amplio de la historia empresa-
rial del siglo XIX” (BRANDON, 2017, p:185).
Julgamos, a partir das observações de Brandon, que ultrapassar os limi-
tes geográficos, considerar diferentes atores sociais envolvidos na empresa
escravista bem como as conexões desta com o comércio mundial são ele-
mentos importantes para a escrita de uma história sob a perspectiva global.
Na seção Capitalismo (s) en gran escala: Grandin y Beckert, esses dois au-
tores são destacados por Brandon como os que mais se destacaram em rela-
ção aos demais. Grandin escreve sobre o capitalismo numa perspectiva mais
cultural e não apenas como um sistema econômico, falando das conexões
entre a escravidão e a modernidade cultural. E Becker, por sua vez, relacio-
na em seu trabalho escravidão e desenvolvimento do capitalismo. A produ-
ção de algodão seria, na concepção de Becker, uma recombinação constante
entre diferentes sistemas de trabalhos, de violência e de mercados.
Com isso podemos estabelecer conexões entre os textos de Marquese e
Brandon. Ambos os autores trazem reflexões sobre a escrita da história da
escravidão, do tráfico e das suas relações com o sistema econômico vigente.
Tais reflexões cruzam-se nos apontamentos para uma historiografia mais
abrangente, que abarque novas possibilidades e mais perspectivas, não se
prendendo de forma fechada à questão econômica ou a visão dos proprietá-
rios de escravos, mas que possa dar vazão a outras discussões.
Brandon menciona as múltiplas formas pelas quais a escravidão pode
se relacionar com o capitalismo moderno, quebrando a ideia de que os dois
são indissociáveis. Mesmo tratando dos Estados Unidos, Brandon ressalta
que seus questionamentos podem ser feitos para outros lugares defendendo,
desse modo, estudos mais integrados. Indo na mesma direção, Marquese
aponta que um caminho promissor para a escrita da história da escravidão
é considerá-la como elemento independente, que possui história, isto é,
que se constituiu sob contradições, em vários tempos e localidades. E da
mesma forma, o capitalismo deve ser visto. Assim, “ao observador interes-
sado na história global desse objeto cabe observar, descrever e explicar como

111
os múltiplos estratos de tempo da escravidão atlântica se relacionaram aos
múltiplos estratos de tempo do capitalismo” (MARQUESE, 2019, p: 29).

Como a perspectiva global contribui para os estudos de escravização


negra nas Américas?

As observações de Marquese e Brandon são um convite para nos de-


bruçarmos sobre outras pesquisas que trataram da escravidão e observar-
mos até que ponto trouxeram em suas abordagens o que foi discutido pelos
autores citados. Definimos como questão norteadora: como a perspectiva
global contribui para os estudos de escravidão negra nas Américas? Para
respondê-la escolhemos cinco textos - publicados anos antes dos artigos de
Marquese e Brandon - que trataram da escravidão sob diferentes óticas e
cuja argumentação converge para uma perspectiva integrada do tema, ele-
mento valioso para história global e defendido pelos dois primeiros artigos
que apresentamos.
O primeiro é o de Ada Ferrer (2007) A sociedade escravista cubana e
a Revolução Haitiana. O objetivo de Ada Ferrer nesse texto é analisar as
repercussões da Revolução Haitiana em Cuba. A autora cita duas abor-
dagens a respeito da Revolução: a primeira tende a subestimar a ação dos
escravos, culpando fatores externos como as ideias da Revolução Francesa
e a incompetência dos proprietários dos escravos ao invés de considerar a
atuação dos próprios escravos. A segunda diz respeito ao fato de o Haiti ter
se tornado uma referência constante nas sociedades escravistas. As notícias
sobre o que lá aconteceu circularam pelo Novo Mundo e gerou diferentes
ações e formas de interpretações.
A historiografia sobre o assunto foi impactada por essas formas de ver a
Revolução Haitiana e o medo, gerado nas sociedades escravistas, usado, se-
gundo a autora, como forma de não analisar os fatos que ocorreram. Assim,
a proposta da autora vai além desse medo, ao considerar que a Revolução
no Haiti também envolveu violência, liberdade, vingança e extermínio e
questionar como ela foi apreendida pelos escravos e seus senhores e os altos
funcionários coloniais.
O texto de Ada Ferrer nos ajuda a pensar o tema da escravidão pela
perspectiva da apreensão da revolta por grupos sociais variados. A autora
não se prendeu apenas à visão dos proprietários de escravos que ressaltam o
medo de um levante, mas explorou múltiplos caminhos pelos quais a revo-

112
lução do Haiti ressoou. Com isso podemos fazer um diálogo com as “no-
vas perspectivas” historiográficas que Brandon apresenta em seu texto: Ada
Ferrer não prioriza um espaço específico, no entanto conecta dois lugares
(Cuba e Haiti), não por um viés unicamente econômico, mas também cul-
tural e social.
Brandon, fala a respeito do livro de Eward Baptista como uma contri-
buição para a escrita de uma história da escravidão que conta o lado oculto
do capitalismo escravista do século XIX, retratando a experiência de sofri-
mento e dor dos escravizados por meio de relatos dos próprios escravos.
Podemos assim, afirmar que o texto desta autora não foge a esse sentido.
Na seção Cuba: o medo, a escravidão e Estado Colonial, Ada Ferrer es-
creve que em Cuba sabia-se o que tinha acontecido no Haiti tanto pela
proximidade geográfica como pelo fato da ilha ter se tornado o destino
para os que fugiam do Haiti procurando refúgio. E apesar das descrições
dos acontecimentos serem embebidas por medo, a autora reforça que não
foi somente esse sentimento que a Revolução suscitou nos diferentes ato-
res sociais.
O Estado Colonial e os fazendeiros cubanos, por exemplo, buscavam
imitar a sociedade escravista haitiana. É importante mencionar que como
o Haiti era um dos principais produtores de açúcar e agora estava em crise
era a oportunidade de Cuba superá-lo. “Temendo que os eventos em Sain-
t-Domingue encorajassem o rei a restringir o tráfico de negros, fazendeiros
e autoridades insistiram no fato de que não haveria nenhum risco a temer”
(FERRER, 2012, p: 41). Os argumentos para sustentar essa situação di-
ziam que os homens livres de cor eram leais à Coroa Espanhola, diferente
daqueles que viviam no Haiti e que eram vistos como os causadores da
rebelião. Além disso, insistiam na ideia de que os escravos cubanos eram
maltratados pelos seus senhores e isso os tornava mais dóceis.
Por isso, dentre os efeitos da Revolução em Cuba destaca-se o au-
mento das importações de escravos, o que gerou uma preocupação com a
demografia da população da ilha: era necessário trazer mais escravizados
para trabalhar e ampliar a produção, mas o seu número jamais poderia
ultrapassar o número de brancos. Na seção intitulada Escravos, Escravi-
dão e Terror Haitiano, a autora menciona que o Estado Colonial passou a
preocupar-se com as relações entre senhores e escravos. As notícias sobre
a Revolução no Haiti davam conta de que a culpa era dos senhores que
maltratavam seus servos. Assim, em Cuba, os donos de escravos passaram

113
a ser observados para que nem fossem muito brandos e nem muito violen-
tos com os escravizados.
As repercussões do Haiti em Cuba também contribuíram para que, em
território cubano, qualquer tentativa de revolta ou resistência tivesse como
culpado os eventos haitianos. A autora menciona que essa era, mais uma
vez, a forma de negar a capacidade dos escravizados de se rebelarem por
si só. Em outras palavras, é como se a condição escravista a qual estavam
submetidos os trabalhadores não fosse o bastante para insuflar revoltas. E
cabe mencionar: a revolução haitiana atraia a atenção dos escravizados, pois
podia ser uma forma de mudar o direcionamento de suas vidas.
Quando Brandon cita o novo giro historiográfico norte-americano so-
bre a escravidão ele coloca em evidência fatores que o constituíram - como
a luta por direitos civis e a eleição do primeiro presidente negro dos Estados
Unidos – e que refletiam “novos olhares”. Nesse entendimento, a pesquisa
de Alda Ferrer desvia a atenção do ângulo do proprietário de escravos e
lança também olhares para a forma como os escravizados apreenderam os
acontecimentos revolucionários do Haiti.
Por fim, Ada Ferrer (2012, p: 52) diz que “os acontecimentos no Haiti
modelaram a forma como escravos e senhores passaram a ver uns aos outros
e a considerar sua situação e seu futuro.” Em outras palavras, a revolução
haitiana repercutiu em Cuba não apenas pelo medo que gerou, mas que se
espalhou no imaginário dos diferentes atores sociais, servindo para direcio-
nar ações e atingir os objetivos de cada um deles.
Para discutirmos o segundo texto, consideremos a seguinte indagação:
que fatores levaram à abolição da escravidão no século XIX? Para Dale W.
Tomich (2011), no capítulo A segunda escravidão - do livro Pelo Prisma da
Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial-, o debate dos estudio-
sos para responder a essa questão girou, de modo geral, em torno de duas
explicações. Na primeira, a Grã-Bretanha seria a precursora de um mundo
moderno e que, ao abolir a escravidão, gerou um efeito dominó que desar-
ticulou formas de trabalho escravo ao redor do mundo. Nessa narrativa,
a Revolução de São Domingos e a fundação do Haiti são ignoradas. Na
segunda, são realçadas as características nacionais da escravização de cada
lugar, destacando-se as suas características internas.
A primeira explicação apontada por Tomich negligencia a Revolução
do Haiti como fator que contribuiu para a extinção da escravidão e confabu-
la com as observações de Ada Ferrer, quando esta relata em seu texto que os

114
contemporâneos da Revolução de São Domingos foram incapazes de reco-
nhecer a ação dos escravos em liderar uma revolução. Eles preferiram culpar
a Revolução Francesa e os próprios proprietários, ao invés de reconhecerem
a força dos homens e mulheres escravizados. Para a autora essa concepção
fez com que houvesse um silêncio sobre essa revolução na história, gerando
muito desconhecimento e incompreensões. A segunda explicação associa o
fim da escravidão ao processo natural de desenvolvimento do capitalismo.
Em ambas as explicações a escravidão é vista como um fenômeno
único em todos as partes do globo. Distinguindo-se apenas por contextos
econômicos, culturais e políticos, é realçada uma suposta singularidade
que se estende ao processo de abolição, tomando-a como um caminho
único de transição de uma economia arcaica para uma economia moder-
na. Examinando essas formulações apresentadas, o objetivo do autor é
mostrar o caráter variável da escravidão na economia mundial do século
XIX, ou seja, enfatizar como a escravidão está imbricada nos processos
econômicos mundiais e ao mesmo tempo junta à irredutível desigualdade
do sistema capitalista.
A concepção de Tomich sobre a escravidão está imbricada na dinâmica
capitalista no que remete à ideia do capitalismo como constituído por di-
versas formas de trabalho. Elemento que, para Marquese, é indispensável
para a escrita da História Global. Assim, no diálogo entre esses dois autores
percebe-se o propósito de considerar que o capitalismo não excluiu o traba-
lho escravo da sua pauta.
Tomich atesta isso nas duas seções seguintes do seu texto quando tra-
ta da hegemonia britânica e da nova divisão internacional do trabalho. A
hegemonia britânica no comércio mundial inicia-se entre 1780 e 1815 e o
mercado que antes era preso nas relações entre colônia e metrópole passou
por um processo de mudanças que envolveram o aumento da produção de
produtos tropicais, da população, melhorias nos sistemas de transportes,
reestruturação das relações sociais e também das organizações do mercado
mundial, cujos preços passaram a dominar em detrimentos dos locais.
A Grã-Bretanha, ponto central do comércio internacional, passou a
ditar as regras do comércio mundial. Este país possuía um grande aparato
tecnológico e industrial. Dependia do comércio com a América Latina e
com a Índia, importando matérias-primas industriais e gêneros alimentí-
cios. Depois começou a penetrar o mercado das demais potências coloni-
zadoras, estabelecendo relações de trocas globais e é, nesses termos, que as

115
condições de trabalho escravo na economia mundial se alteram.
Com a hegemonia britânica e a Revolução Industrial na Grã-Bretanha
as relações sociais e de trabalhos arcaicas continuaram a existir, só que ago-
ra fundidas nesses novos processos de produção: “esses desenvolvimentos
não apenas criaram as condições para a extinção da escravidão dentro do
Império britânico, mas também encorajaram a expansão e a intensificação
da escravidão fora dele” (TOMICH, 2011, p: 87). Como foi o caso de
Cuba, cuja produção de açúcar se intensificou e junto com ela a quantidade
de escravos que entravam na ilha; dos Estados Unidos, com a produção de
algodão, que aumentou as terras destinadas à agricultura comercial e ao uso
lucrativo de escravos; e da produção de café no Brasil, que era baseada na
utilização intensiva de escravos.
O autor conclui falando a respeito da adaptabilidade da escravidão
às novas formas de produção mundial. De acordo com ele, as condições
impostas pela divisão internacional do trabalho geraram respostas varia-
das ao longo do globo, como por exemplo, o antiescravismo e a busca por
emancipação. No Brasil e em Cuba, a supressão do tráfico de escravos le-
vou os fazendeiros a buscar formas de trabalho para complementar o tra-
balho forçado, como por exemplo, por contrato, assalariado e camponês,
mas o trabalho escravo continuou sendo o principal sustentáculo dessa
forma de produção.
Seguindo essa linha de raciocínio Robin Blackburn (2003) na Intro-
dução do livro A construção do escravismo no Novo Mundo intitulada Es-
cravidão e Modernidade relata como os sistemas europeus de escravização
colonial nas Américas se constituíram e que papel tiveram no advento da
modernidade. Eram novos em relação a formas anteriores de escravidão,
mesmo com aspectos tradicionais; tornaram-se intensamente comerciais;
contribuíram para a incorporação de formas avançadas de organização
técnica e econômica.
A escravidão na América se associou a vários processos que tem sido
usado para definir a modernidade como o nascimento do sentimento na-
cional e do estado-nação, a disseminação das relações de mercado e do
trabalho assalariado e a crescente sofisticação do comércio e das comu-
nicações, para citar apenas alguns dos exemplos mencionados pela auto-
ra. Utilizando Anthony Giddens que afirma que umas características da
modernidade é efetuar um “desinserção” dos indivíduos do seu contexto,
Blackburn argumenta que na África a escravidão já existia e, com o co-

116
mércio atlântico, tanto a instituição escravista quanto os escravos foram
“desinseridos” do seu contexto (a escravidão na África era diferente) e
inseridos em novas relações sociais.
Se voltarmos ao texto de Marquese podemos ver que essa relação
entre modernidade e escravidão aparece na relação que o autor estabelece
entre o sistema escravista e o capitalismo histórico. Para ele,

[...] a construção da economia-mundo capitalista a partir do longo século


XVI teve como um de seus elementos basilares a escravização dos africa-
nos. Desse momento em diante, a escravidão atlântica assumiu arranjos
específicos em temos plurais, mantendo-se até o final do século XIX como
força indissociável do capitalismo histórico (MARQUESE, 2019, p: 29)

Muitos autores defenderam que o capitalismo e os valores modernos


advindo das novas experiências sociais e econômicas seriam incompatíveis
com a escravidão africana, porém, o que Marquese e Blackburn ressal-
tam é que os dois andaram juntos. É desse modo que Marquese reforça
o quanto ver as relações entre capitalismo e escravidão é essencial para
história global, na medida em que permite analisar esses dois elementos
considerando os seus movimentos em variados tempos e espaços.
Na seção Escravidão civil e estado colonial a autora chama a atenção para
o fato de que escravidão não foi sustentada apenas pelas ações do Estado
Colonial. Os estados modernos tiveram a sua parcela de responsabilidade,
mas a dinâmica da sociedade civil também foi fundamental para que milha-
res de africanos entrassem como escravos na América. Segundo Blackburn,
“foi a iniciativa privada dos mercadores e grandes fazendeiros que levou
ao emprego de escravos em escala cada vez maior nas plantations das ilhas
atlânticas, do Brasil e do Caribe” (BLACKBURN, 2003, p: 24).
Na seção Identidade em transição e escravidão racial, a autora fala a res-
peito dos elementos que identificavam o escravo no Novo Mundo: a escra-
vização associava-se à pigmentação escura da pele. Ter a cor mais escura
era um critério decisivo de raça, um termo que, segundo a autora, era mais
abrangente que família ou cultura. É interessante mencionar que a autora
afirma também que o fazendeiro americano tratava seus escravos de forma
subumana, como membros de uma espécie inferior. Nessa forma de ver
os negros residia um grande medo de perderem para eles seus bens e suas
mulheres. Ou nas palavras de Blackburn (BLACKBURN, 2003, p: 30): “na

117
verdade, a identidade do escravo tinha de ser domesticada, normalizada ou
naturalizada. Sua redução à condição de gado era elemento decisivo deste
processo”. Os escravos africanos não eram considerados membros de um
estado, e assim, mesmo quando se tornavam livres, direitos básicos eram-
-lhes negados.
Retomando Brandon quando este fala que os debates sobre escravidão
e capitalismo vieram à tona nas últimas décadas como resultado de deba-
tes públicos envolvendo a luta por direitos civis, podemos perceber que,
nessas duas seções trabalhadas por Blackburn, a questão da escravidão não
fica apenas no contexto das relações produtivas, mas permeiam o espaço de
construção de representações sobre a figura do negro, baseada em grande
parte em pensamentos eurocêntricos. As inquietações atuais sobre as ques-
tões raciais fortaleceram o debate historiográfico sobre a escravidão e trou-
xeram contribuições essenciais para o combate de práticas racistas.
A proposta de Joseph C. Miller (1997) em O Atlântico escravista: açú-
car, escravos e engenhos foi desconstruir a imagem generalizada e fixa do
sistema escravista, para dar mais atenção ao aspecto processual e histórico.
O autor fala que há uma maneira convencional de entender a África em
sua conexão com o Atlântico que é pensá-la como um complexo de escra-
vos trabalhando em plantações de cana-de-açúcar nas colônias americanas
e nas ilhas atlânticas. Isso se torna problemático porque esse sistema co-
meça a ser visto como uma “instituição” e, como tal, de natureza estável
e não histórica. Para ele, não ver o sistema escravista como um processo
contínuo é perder de vista as contingências, as eventualidades, os dramas
e as tensões envolvidas.
Para isso, o autor destaca os fatores econômicos como essenciais para
se entender a origem da venda de escravos já que, para ele, “o tráfico e a
escravidão eram, afinal, emprego e negócio para as pessoas envolvidas, e
algumas delas tinham recursos econômicos significativos em jogo” (MIL-
LER, 1997, p: 12). Os interessados nesse comércio precisavam fazer vulto-
sos investimentos, cujo dinheiro para tal veio de metais preciosos da África,
inicialmente, e depois das colônias americanas.
Miller explica o que originou o sistema escravista, mas não de forma
engessada. Pondera que suas considerações são, digamos assim, um dos
caminhos possíveis. Apesar do cultivo de cana ser antigo, a utilização de es-
cravos como mão de obra só aconteceu aos poucos. E um dos motivos foi a
falta de capital. As colônias estrearam no comércio atlântico com a extração

118
de matérias-primas exóticas do seu território já que exigia pouco capital. Só
depois de muito tempo é que se teve dinheiro para sustentar os engenhos
em locais que não eram os mais ricos da Europa, pois até o século XVI o
capitalismo e a venda de escravos não estavam desenvolvidos o bastante
para sustentar a produção de açúcar no Novo Mundo.
Nas últimas décadas desse século, a utilização de escravos africanos
nas Américas se tornará viável pela redução do preço dessa mão de obra
na África, eventualidade causada por motivos aleatórios como uma revolta
escrava em São Tomé, uma situação instável na região africana causada por
guerras e estiagem e terceiro pelo capital holandês, que financiou Bahia e
Pernambuco com escravos e com a construção de engenhos.
Dessa forma, o modo de produção agrícola da América baseado no
cultivo da cana e na utilização intensiva de mão de obra escrava africana
não teria acontecido de forma imediata, mas ocorreu de forma processual ao
longo do tempo. O parágrafo a seguir resume bem o argumento de Miller
(1997, p: 35):

O desenvolvimento de uma economia capitalista agrícola totalmente ba-


seada na mão-de-obra escrava, apoiada por um volumoso comércio ne-
greiro, foi, por isso, um processo moroso e gradual, que progrediu neste
contexto de escassez de capital exclusivamente através do benefício de
uma série de “subsídios” diretos e indiretos: através de uma economia
política de transportes, através do baixo custo de mão-de-obra na África
devido à violência e à miséria, através de condições tropicais de cultivo
que estenderam a atividade dos escravos ao longo do ano inteiro, atra-
vés das terras gratuitas nas Américas e estratégias de baixo investimento
empregadas para assegurá-las, através da proteção legal dos proprietários
de engenhos e escravos, e, por fim, através de progressos tecnológicos na
área de processamento.

Com isso o autor buscou ressaltar a importância de se trabalhar a his-


tória, e de modo mais específico, a escravidão, de forma gradual, dando
vistas aos processos, ao tempo e à mudança. O autor critica a concepção
histórica que ao tratar da escravidão ignora as conjecturas nas quais o siste-
ma escravista foi se constituindo. Essa visão de Miller pode ser associada ao
que Marquese chama de “totalidade abertas”: fragmentos de várias partes
do global ligados por laços de natureza diversa – culturais, econômicos e
sociais. A utilização do trabalho escravo nas Américas não foi um aconte-

119
cimento único e acabado, mas foi resultado de um processo histórico que
contou com contradições, adversidades e acasos.
O artigo O envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlântico
de escravos para o Brasil (1840 – 1858) de Dale T. Graden (2007) traz
alguns episódios que abordam a importância que navios construídos nos
Estados Unidos tiveram para o transporte de africanos para o Caribe e o
Brasil, atividade que se tornou altamente lucrativa. Nesse período, a alta
demanda de mão de obra escrava para o Brasil se deveu a fatores inter-
nos, como a expansão da agricultura de café e de cana, e externos, como
rebeliões escravas e desastres naturais em lugares que antes dominavam a
produção de insumos agrícolas.
Os navios norte-americanos davam apoio ao transporte de escravos
para a costa brasileira. Era uma atividade rentável e que fazia os nor-
te-americanos melhorarem seus navios, inclusive, para competir com os
europeus: “em meados do século XIX, a capacidade média de um navio
negreiro norte-americano aumentou para mais de 200 toneladas. Este
incremento foi um reflexo da determinação dos comerciantes e dos ar-
madores norte-americanos de competirem com os europeus por lucros e
supremacia” (GRADEN, 2007: p. 11).
De acordo com o autor, o comércio de escravos era uma atividade co-
mercial de muitos tentáculos, de modo que os entrepostos escravistas po-
diam ser considerados empresas, por ter uma demanda de pessoas respon-
sáveis por gerenciar a venda de seres humanos. Eram construídos barracões
sob condições precárias para colocar os negros escravizados e armazéns para
guardar mercadorias. Havia comerciantes dos Estados Unidos nesses en-
trepostos que vendiam produtos variados como alimentos secos e louças; e
os agentes comerciais que, além de escravos, vendiam ouro e especiarias.
Utilizar navios norte-americanos era ainda uma forma de burlar as leis
britânicas que revistavam os navios visando acabar com o tráfico, já que até
1862 era proibido que britânicos revistassem navios dos Estados Unidos.
Nesse sentido, Dale Graden fala que os cônsules dos Estados Unidos no
Brasil, muitas vezes, tinham ações voltadas para acabar com o tráfico de
escravos. Às vezes, eles impediram que compradores recebessem a docu-
mentação que comprovasse que os navios eram oriundos dos Estados Uni-
dos: uma estratégia para burlar a inspeção britânica de combate ao tráfico.
Gordon foi “um dos mais tenazes e eficientes cônsules americanos no mun-
do Atlântico. Durante sua estada no Rio de Janeiro, conseguiu a prisão de

120
quatro comandantes de navios norte-americanos, junto com outras trinta
pessoas (oficiais e tripulantes), acusando-os de envolvimento no comércio
negreiro” (GRADEN, 2007, p: 23). Essas intervenções podiam gerar in-
conformismo com indivíduos ligados ao tráfico negreiro.
Dale Graden conclui considerando o envolvimento dos Estados Uni-
dos no comércio de escravizados como o exemplo de uma economia que
beneficiava a muitos: “foi um negócio multinacional de primeira ordem’’
(GRADEN, 2007, p: 34). Além de ajudar a enriquecer milhares de co-
merciantes norte-americanos, teve o apoio de pessoas comuns. A constru-
ção dos navios demandava a atuação de lenhadores, carpinteiros e comer-
ciantes de produtos em geral.
Esse raciocínio do autor nos remete a Brandon que, ao tratar do livro
de Calvin Schermerhorn, ressalta o fato de este autor examinar as cadeias
empresariais que conectavam os traficantes de escravos aos transporta-
dores e a outras formas de comércios. Desse modo, a proposta de Dale
Graden sobre os navios norte-americanos também nos permite pensar
sobre essa integração entre a empresa escravista e o conjunto de atividades
comerciais do mundo.
Do texto de Dale Graden podemos fazer algumas considerações. Olhar
a questão do tráfico de escravos pelo prisma dos transportes que os levavam
até seu destino nos permite perceber a diversas tramas que permeavam o
sistema escravista. Vemos as péssimas condições de transporte dos escravi-
zados, os arranjos de logística para transportá-los da forma mais lucrativa,
as estratégias dos donos de escravos e tripulantes para burlar a legislação
antiescravista e até o embate de alguns cônsules para proibir o tráfico.
É possível ver a escravidão enquanto empresa, pela gerência de toda
uma estrutura para atender as suas demandas, envolvendo trabalhadores di-
versos. E ainda, a empresa escravista funcionou dando prioridade aos lucros
e não aos valores mais humanitários. Dale Graden (2007, p: 34) ressalta que
“como em outros momentos na história dos Estados Unidos, eles tiraram
vantagens das oportunidades econômicas pouco importando seus custos
sociais”. Essa colocação não foi única desse texto, mas pode ser percebida
quando nos lembramos do texto de Ada Ferrer. Se por um lado a Revo-
lução do Haiti gerou medo, em Cuba foi o momento oportuno para fazer
progredir a lavoura de açúcar. A ânsia por crescimento econômico superou
a sensibilização pela situação dos negros escravizados.

121
Considerações finais

Para finalizar, ressaltamos que os cincos textos foram escolhidos por


terem uma abordagem que se parecia com o da história global, essa en-
tendida, para os fins deste trabalho, de acordo com as colocações de Mar-
quese e Brandon. Dentre as características que podemos entender dos seus
argumentos, destacamos o combate ao nacionalismo - representado pela
ultrapassagem dos limites geográficos, ou seja, estudar a escravidão levando
em conta suas características em várias partes do globo; a consideração de
múltiplas temporalidades para, assim, conseguirmos ver o sistema escra-
vista como algo construído mediante contradições e mudanças ao longo
da história; a relação do capitalismo/modernidade com a escravidão como
dois elementos cheios de histórias, que existem por si só e que só podem ser
entendidos pelas relações dinâmicas que estabelecem um com outro, isto é,
o desenvolvimento do sistema capitalista não necessariamente significou o
fim do trabalho escravo; e observação do sistema escravista por pontos de
vistas variados (o viés econômico, social, cultural, político; o ponto de vista
dos escravizados, dos donos de escravos e do Estado, por exemplo).
A partir dos textos escolhidos pudemos perceber que a história da es-
cravidão sob uma perspectiva global possui encaminhamentos interessantes
que discutem o sistema escravista sob diversos vieses, contornando limita-
ções de outras abordagens. As possibilidades que essa perspectiva oferece
tem no seu cerne a escrita de uma história integrada, que envolve vários
territórios, em diversos períodos de tempo e sob diferentes ângulos.

REFERÊNCIAS

BLACKBURN, R. Introdução. Escravidão e modernidade, p. 13-44. In:


A Construção do escravismo no Novo Mundo: do Barroco ao Moderno (1492-
1800). Rio de Janeiro: Record. 2003.

BRANDON, P. Capitalismo y esclavitud: nuevas perspectivas a partir de


debates norteamericanos. Rey Desnudo, Año V, Nº10, Otoño, p. 172-191,
2017.

FERRER, A. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Alma-


nack, n.3, 28 maio, p. 37-53. 2007.

122
GRADEN, D. T. O envolvimento dos Estados Unidos no comércio Tran-
satlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858. Afro-Ásia, 35, p. 9-35.
2007.

MARQUESE, R. B. A história global da escravidão atlântica: balanços e


perspectivas. Esboços: história em contextos globais, v. 26, n. 41, p. 14-41,
jan/abr. 2019.

MILLER, J. C. O. Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos. Afro-


-Ásia, 19-20, p. 9-36. 1997.

TOMICH, D. W. A. “segunda escravidão”. In: Pelo prisma da escravidão:


trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: EDUSP, p. 81-97, 2011.

123
expressividades da morte: rituais fúnebres
e práticas mortuárias nos óbitos dos
negros escravizados na freguesia de nossa
senhora da vitória (1868-1869)

Carlos Victor de Sousa Ferreira1

Introdução

A morte é um fenômeno que conduz grande parte das crenças e os


comportamentos dos grupos sociais em suas vidas terrenas. É conhecida
pelo ocidente-cristão como o fim deste plano e a passagem para o pós-vi-
da, a iminente “vida eterna”. No entanto, essa configuração não se ajusta
a todas cosmovisões e vivências humanas, tendo em vista que esse vínculo
que une a natureza humana – a morte – é experimentado através das idios-
sincrasias dos grupos sociais. Apesar de analisarmos sujeitos históricos
pouco afeitos com a escrita, buscamos através dos atestados de óbitos da
Freguesia de Nossa Senhora da Vitória em São Luís averiguar as imbrica-
ções das causas-mortes aos ritos fúnebres que envolveram a hora da morte
destes escravizados. Observando os aspectos sagrados, práticas mortuárias
e as “formas do morrer”.
Os historiadores e pesquisadores das humanidades tem buscado obser-
var os aspectos simbólicos e o imaginário dos agentes sociais nas diversas
temporalidades. Fato instaurado após a criação da História das Mentalida-

1. Mestre em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal


do Maranhão (PPGHis/UFMA). Doutorando em História pelo mesmo programa, bolsista
CAPES. E-mail: victhorcarlos5@gmail.com.
des, precisamente na terceira geração da Escola dos Annales entre as déca-
das de 1960 e 1970. Esse campo histórico, na qual os historiadores munidos
de novos documentos e fontes, procurou estudar “as formas coletivas de
pensar e sentir”, permitindo que os pesquisadores se aproximassem dos as-
pectos humanos do dia-a-dia, do cotidiano social e até mesmo no âmbito
do privado (BARROS, 2012, p. 329).
Entre os principais objetos de estudos desse campo histórico estão a
religião, a religiosidade e suas imbricações no meio social. Objetos his-
tóricos já amplamente desbravados, e relevantes no tocante à compreen-
são das formações das mentalidades, uma vez que as religiões, enquanto
relação entre o plano concreto e o metafisico, tentam explicar diversos
comportamentos humanos e extra-humanos através de suas cosmovisões
religiosas. Além de moldar os comportamentos dos agentes históricos ba-
seados em preceitos religiosos.
E por isso a História das Religiões tem buscado compreender as diver-
sas formas de manifestações religiosas, objetivando evidenciar a importân-
cia que a religião/religiosidade tem para as relações humanas. Como afirma
Prado e Silva Júnior:

O que distingue a história dos outros sabres é a sua capacidade de ancorar-


-se no tempo, de lidar com os fatos, de tratar o homem no tempo e reve-
lar suas singularidades. A exegese das escrituras sagradas, o saber contido
nos documentos, dizem das instituições, dos costumes, do que pensam e
sentem os homens religiosos em seu contexto social (PRADO; SILVA
JÚNIOR, 2014, p. 5).

Desta forma, o historiador que utiliza a ótica da religião e das religio-


sidades também busca compreender as suas imbricações nas teias sociais.
Quando lançamos olhares sobre a morte no século XIX, não estamos bus-
cando o seu aspecto essencializante, mas tentando analisar o seu lado sin-
gular e específico, pois, por mais que a morte seja comum a todos os seres
humanos, a compreensão e os olhares sobre o ato são modificados através
dos contextos históricos, culturais e, sobretudo, religiosos.
Um exemplo disso, até meados do século XIX os cristãos brasileiros
exigia serem enterrados dentro das igrejas próximos ao altar-mor, para isso
pagavam preços altíssimos, porque acreditavam que estar enterrado em solo
sagrado lhe dariam uma vaga na morada dos céus. Outro exemplo são as

126
missas que eram rezadas antes e após a morte dos moribundos, pois era um
meio fundamental de facilitar as suas passagens para o segundo plano.
São essas intenções e comportamentos sociais que se entrelaçam com
o mundo religioso que buscamos apresentar nesta pesquisa. Por isso con-
cordamos com Silva (2011) ao acenar a necessidade de desenvolver uma
perspectiva que seja capaz de refletir sobre a capacidade simbólica religiosa
dos diversos grupos sociais. E devido a isso, o objetivo proposto a este arti-
go é refletirmos sobre as simbologias religiosas das práticas mortuárias dos
negros escravizados no Maranhão na década de 1860. Utilizamos como
arcabouço documental o Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora
da Vitória, atualmente acondicionado no Arquivo Público do Maranhão
(APEM), essa que era uma das principais freguesias do século XIX, loca-
lizada na região central da capital da província, São Luís. A documentação
utilizada clarifica algumas informações, como o nome dos mortos, local,
causa da morte, os proprietários dos escravizados, se esses receberam os
devidos sacramentos antes de partirem e de que forma foram enterrados:
amortalhados, com hábitos de santos, lenços ou sem nada.
Tendo em vista que esses sujeitos históricos eram pouco afeitos com a
escrita, a documentação analisada trata-se da versão de alguém que lavrou
os óbitos dos escravizados no livro da freguesia, ou seja, um discurso so-
bre os seus atos e comportamentos. Entretanto, através das entrelinhas e
analisando no âmbito do provável, observaremos as possíveis imbricações
que essas formas de morrer e os ritos fúnebres tiveram para os respectivos
mortos.
Ademais, reduzimos a escala da nossa análise através da micro his-
tória, para compreendermos as especificidades de cada caso. Para tanto,
concordamos com Giovanni Levi (In: BURKER, 1992, p. 136) em “So-
bre a Micro História” que afirma:

O historiador não está simplesmente preocupado com a interpretação dos


significados, mas antes em definir ambiguidades do mundo simbólico, a
pluralidade das possíveis interpretações desse mundo e a luta que ocorre
em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos materiais.

O autor assevera sobre o que se busca o micro historiador, muito mais


do que apenas detalhar ou analisar qualitativamente as experiências espe-
cíficas: “a micro-história como uma prática é essencialmente baseada na

127
redução da escala da observação, em uma análise microscópica e em um
estudo intensivo do material” (LEVI, 1992, p. 136).
Não está em jogo um demérito as estruturas maiores e as formas de
pensar da sociedade no geral. Na verdade, objetivamos fazer um jogo de
escalas entre as estâncias e estruturas maiores e menores, por exemplo,
compreendendo a forma do “bem morrer” no século XIX estabelecido pela
Igreja Católica e comparando as especificidades que se atribuíam aos mor-
tos nesse mesmo período. Tal qual propôs Bensa no seu artigo “Da micro-
-história a uma antropologia crítica” (In: REVEL, 1998, p. 43):

“Entender uma realidade mais profunda, impossível de atingir de outra


maneira”. Alcançar esse objetivo implica fornecer-se os meios documen-
tais e metodológicos de vincular um acontecimento histórico singular a
sistemas mais abrangentes de dados e de significações.

Destarte, estruturamos este artigo para melhor compreensão, na pri-


meira parte analisaremos aspectos do simbólico das práticas mortuárias no
século XIX. No segundo momento observaremos a morte e os ritos fúne-
bres ligados especificamente aos escravizados, sejam crioulos ou africanos,
assim analisaremos os documentos encontrados no livro de óbitos da refe-
rida Freguesia de Nossa Senhora da Vitória (1868-1869).

Pela hora da morte: as mentalidades e as práticas


mortuárias no século XIX

No dia 27 do mês de fevereiro de 1868, a efervescente freguesia de


Nossa Senhora da Vitória assiste a mais uma morte de um escravizado.
Com 18 anos de idade, João Domingues, escravo de Raimundo Ferrei-
ra Barbosa, foi vítima de um aneurisma e partiu fisicamente deste plano.
Morreu tendo recebido os “devidos sacramentos”: a penitência e a extrema
unção e foi amortalhado com a cruz da fábrica da irmandade de Nossa
Senhora da Vitória e, por fim, foi enterrado no cemitério da Santa Casa da
Misericórdia (MARANHÃO, 27/02/1968).
Esse é apenas mais um dos casos encontrados no Livro de Óbitos da
Freguesia de Nossa Senhora da Vitória. Descanso da vida tirana de um
homem escravizado na terra? Talvez. Contudo, analisar os documentos das
práticas mortuárias nos traz átona alguns aspectos da vida cotidiana e reli-

128
giosa de alguns escravizados no Maranhão.
Como afirma Coe (2005), para muitas sociedades a morte terá signifi-
cado importante, seja pelo fim desta vida e para a passagem de outra ou para
facilitação do encontro com ancestrais. Assevera:

Muitas são as sociedades nas quais prevalece a noção de que a realização


de rituais funerários adequados é fundamental para a segurança de mortos
e vivos. A morte é vista não como destruição, mas como uma transição.
Tanto na tradição africana quanto na tradição dos colonizadores portu-
gueses, os vivos muito podiam fazer pelos mortos, tornando sua passagem
para o além mais segura, definitiva, e até alegre, defendendo-se de serem
atormentados por suas almas penadas (COE, 2005, p. 19).

Desse modo, os ritos fúnebres eram quase sempre muito comuns


ocorrerem em diversas sociedades e temporalidades, apesar de abstraírem
e se comportarem de formas diferentes, no entanto, o aspecto de lhe dar
com o morrer estiveram presentes. No caso do Brasil, um exemplo muito
comum de lidar com a morte no século XIX eram as pessoas procurarem
diversas formas de “melhor morrer” e de alcançarem o reino dos céus. O
catolicismo deu cabedal para práticas como essa ser muito comum, prin-
cipalmente por ser a religião do Império (REIS, 1991).
Outra prova da importância da igreja na hora da morte no século XIX
está relacionado aos sacramentos a serem realizados para os sujeitos que
se encontravam em casos de iminente morte. Tais sacramentos eram a
comunhão, se tivessem condições físicas, a penitência e a extrema-unção.
No caso dos escravizados, Reis (1991) afirma que estes deveriam reafirmar
a fé católica, caso contrário seria negado o enterro em solo sagrado, pelo
menos até a primeira metade do século XIX.
Mas essa questão do enterro em solo sagrado foi sendo modificado
pelo que foi apontado por Ariès (2003), trata-se de um movimento maior
que perpassou pela solidificação da sociedade capitalista, que aos poucos
foi modificando as atitudes diante da morte e dos mortos. Até o século
XVIII não havia uma separação clara entre a vida e a morte, mas no século
seguinte, com a expansão do capitalismo, o desenvolvimento do indivi-
dualismo e a secularização da vida cotidiana, a separação entre vida e mor-
te se acentua. E isso refletia diretamente nos enterros que eram realizados
nas igrejas, que aos poucos ia perdendo o caráter de sagrado. Nesse ponto,
Coe (2005) afirma que surgia a separação entre a sociedade dos vivos da

129
sociedade dos mortos, já que os enterros deveriam ser em cemitérios longe
dos espaços urbanos.
Por isso que no século XIX os cemitérios estavam sendo laicizados, não
eram mais geridos pelas irmandades religiosas como perdurou até meados
da década de 1830 (COE, 2005). Período também que discutiram os “de-
vidos” espaços para enterrarem os mortos a fim de protegerem os vivos das
insalubridades, miasmas e outras doenças que podiam se proliferar com a
proximidade das covas, o que levou, por exemplo, a proibição dos enterros
dentro das igrejas. E é na década de 1850 que se criaram os primeiros cemi-
térios públicos em São Luís, um deles é o Cemitério dos Gaviões.
As irmandades religiosas também tiveram papel fundamental nos pro-
cessos mortuários do século XIX, no momento de acolher o irmão morto
e dar-lhes o devido destino e a passagem tranquila, uma nova morte movi-
mentava toda a associação (COE, 2005). A maioria dos casos de escraviza-
dos encontrados nessa pesquisa foi amortalhada com o hábito de irmanda-
des e santos, mesmo sem receber os devidos sacramentos. Isso demonstra
uma evidente aproximação dos escravizados com a fé católica. É o caso de
Vicencia que morreu no dia 8 de maio de 1868, aos 30 anos de idade, a cau-
sa da sua morte é “phtysica”, estado de tuberculose avançada. Como consta
em seu atestado de óbito: “não recebeu os sacramentos, e foi amortalhada
em habito de Nossa Senhora do Carmo, encomendada e acompanhada por
mim e cruz de fábrica, até o cemitério da Santa Casa da Misericórdia, onde
sepultou-se” (MARANHÃO, 08/05/1868).
Mesmo sem ter recebido os devidos sacramentos, ela foi sepultada com
o hábito de uma santa e com a cruz da fábrica. Provavelmente, ela era par-
ticipante e praticante da fé cristã na freguesia citada para ter sido contem-
plada com tais quesitos na hora de sua morte.
O uso das mortalhas e dos hábitos dos santos e santas é conhecido, tal-
vez, por facilitar a passagem destes mortos, principalmente para que fossem
“tranquilas e sem atropelos” (COE, 2005, p. 20). É muito comum encon-
trarmos em grande parte dos atestados de óbitos essa relação direta com os
mortos envoltos em lenços, mortalhas e hábitos próximos a manifestação
do aspecto religioso da igreja católica. Desta forma, algumas questões para
o uso destes atributos eram:

A escolha dessas mortalhas dependia do gênero do morto. Geralmente, os


homens se vestiam de santos e as mulheres de santas. A mortalha falava

130
pelo morto, protegendo-o na viagem para o além, e falava do morto como
fonte de poder mágico, mas também enquanto sujeito social. Dizia de sua
idade e sexo, além de sua posição na sociedade (COE, 2005, p. 20-21).

Observamos através dessa asserção que até a hora da morte não era o
momento de igualar os humanos, pois os ritos fúnebres das pessoas per-
tencentes às famílias abastadas eram pomposos, seguidas por um grande
número de pessoas e conhecidos, o cortejo por si era festivo com cânticos e
coros. Além de suas covas e cemitérios serem escolhidos pelos seus atributos
em vida, quanto mais próximo ao altar-mor, mais próximo de sua salvação.
Ademais, os escravizados não dispunham de tantas preponderâncias,
tinham o mínimo de reconhecimento no funeral, e os espaços que eram
enterrados não eram atrativos para ninguém. Tal assertiva condiz com a
afirmação de Rodrigues (In: SCHWARCZ, 2018, p. 322): “Os diferentes
tipos de cerimônia – inclusive sua ausência – expressavam a diversidade de
posições, origens e vínculos sociais daquele que deixava o mundo”. Coe
(2005, p. 103) também aponta esse fato entre os mortos no Maranhão: “O
tipo de enterro dependia dos recursos financeiros do falecido. Os que não
tinham condições de comprar uma bela roupa mortuária eram envoltos em
panos fornecidos pela irmandade para os funerais de caridade”.
Nesse sentido, ainda que pese as diferenciações entre as diversas for-
mas de morrer e de enterrar, a prática da inumação e dos ritos fúnebres
para a passagem do morto foi fundamental, o “descansar em paz” era a
principal meta dos que ficavam vivos para com o morto. Principalmente
os católicos que rezavam um número grande de missas para ajudar os que
partiram dessa vida.
Apesar desse tipo de comportamento ser mais incidente na fé católica,
é preciso considerar que estamos falando da década de 1860, onde o nú-
mero de africanos que entravam no Maranhão através do tráfico negreiro
está completamente acabado, após a sua proibição em 1850, e os africanos
e seus descendentes estão mais aculturados pelo período que estão convi-
vendo no novo mundo. Contudo, é preciso afirmar que estes não deixaram
de lado as práticas mortuárias africanas ou que esqueceram suas raízes em
África. Mas, consideramos essas evidencias, que foram postas nos atestados
de óbitos, como essencial para compreensão das práticas de morrer e de se
enterrar dos escravizados no século XIX. Mesmo que jamais saberemos a
real forma que estes desejavam morrer e se enterrar, visto que não deixaram

131
evidências escritas.

“A morte ficava a meio caminho entre a escravidão e a liberdade”:2


morte e Rituais Fúnebres dos escravizados na Freguesia de Nossa
Senhora da Vitória (1868-1869)

O Maranhão foi um dos estados do Brasil que recebeu um dos maiores


números de escravizados, fato importante que é demonstrável através de
sua demografia, uma vez que pelo menos 51% da população era escrava em
meados do século XIX, portanto o número de habitantes escravizados era
superior à população de livres (PEREIRA, 2001, p. 21).
Os homens escravizados trabalhavam nas cidades e fazendas, através
de suas mãos de obra fizeram do Maranhão um dos maiores exportadores
de algodão, arroz e açúcar entre os séculos XVIII e XIX. Em seu cotidiano
laboral e social, eles também influenciavam as relações com os seus senho-
res e a sociedade, embargando, concedendo ou conflitando através de seus
comportamentos sociais. Nesse sentido, não ficaram atônitos aos espaços os
quais estavam inseridos, ficaram distantes da adjetivação de meras “coisas”,
como foi proposto por linhas historiográficas precedentes à década de 1980
(PALERMO, 2017).
Desse modo, as nuances que englobam o morrer dos escravizados di-
zem muito sobre suas atitudes em vida terrena, desde os que preferiam
morrer sem os sacramentos católicos, bem como aos que eram envoltos
com mantos de santos e que recebiam os sacramentos antes da morte, e até
mesmo os escravizados que preferiram o suicídio ao revés do “bem morrer”
pela visão católica.
O nosso espaço analisado é a Freguesia de Nossa Senhora da Vitó-
ria em São Luís, uma das mais importantes no século XIX. Localizada no
bairro da Praia Grande, o mais antigo bairro da capital maranhense, era
a freguesia mais populosa, pelo menos 30 mil habitantes da cidade esta-
vam estabelecidos nessa freguesia. Segundo Pereira (2001, p. 58), nele se
encontrava diversos edifícios públicos, tais como: “Palácio do Governo, a
Contadoria da Fazenda, a Cadeia Pública, a Câmara Municipal e a Casa

2. Titulo utilizado de uma frase de Cláudia Rodrigues no seu artigo Morte e Ritos Fúnebres
que se encontra no livro “Dicionário da Escravidão e Liberdade” organizado por Lilia M.
Schwarcz e Flávio Gomes (2018), acreditamos que este se encaixava com a pretensão da nossa
análise. (p. 324)

132
do Bispo, que foi antigo Colégio dos Jesuítas, contígua à catedral”. Apesar
de ser a freguesia mais populosa, era a menor em extensão, um pouco mais
de dez ruas compunham este núcleo. Além dos grandes casarões coloniais
erguidos em sua área, as ruas, becos e praças foi palco para diversas atitudes
dos escravizados.
Entender a formação social e cultural do Maranhão e suas interseções
culturais ocorridas entre indígenas, europeus e africanos é fundamental para
compreendermos as diversas formas de morrer e os ritos fúnebres estabele-
cidos no Maranhão. Notoriamente, cada grupo social tem questões e for-
mas específicas de vivenciar a morte, o luto, a inumação do corpo, findar a
matéria corporal do ser humano e o pós-morte.
Como afirmado anteriormente, no Brasil, a classe social do morto e a
sua condição jurídica na maioria das vezes dava os direcionamentos quanto
aos procedimentos que deveriam ser realizados para o momento em que os
homens findavam sua experiência terrena. De acordo com Rodrigues (In:
SCHWARCZ, 2018, p. 324), a maioria dos escravizados que morriam ti-
nha como destino os cemitérios pouco afeitos ou o enterro na casa de seus
próprios senhores. No entanto, alguns conseguiram outras formas de “mor-
rer”, através da formação de pecúlio com o trabalho de ganho, há também
os que obtiveram a liberdade pela pia batismal e os que se filiaram a uma
irmandade religiosa conseguiram “ter destino fúnebre diferente devido às
estratégias criadas em vida”.
Ou seja, a condição social não era um fator determinante quanto ao
tratamento dado ao morto, no entanto, nos casos em que os escravizados
tinham melhores condições no ato fúnebre eram exceções. Nesta pesqui-
sa, por exemplo, a maioria dos escravizados foram enterrados no cemi-
tério da Santa Casa de Misericórdia, a época, o mais popular que tinha
e o mais próximo da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória. Rodrigues
(2018) afirma que era mais comum que os crioulos pudessem ser enter-
rados nas paróquias das igrejas e os africanos nas igrejas ou cemitérios de
suas irmandades. E alguns escravizados ultrapassaram os espaços à época
considerados para os brancos, a autora indica que possivelmente foi con-
seguido através das relações que esses mantinham: compadrio, alianças e
vantagens sobre o restante da escravaria.
Não dispomos de documentos que comprovem esta afirmação para o
caso da província do Maranhão, visto que estamos analisando uma fregue-
sia específica e num espaço de dois anos apenas. Mas se ampliarmos nossos

133
olhares para outras singularidades, acreditamos que encontraremos outros
casos que demonstrem distintas vivências com a morte e os rituais fúnebres.
Em nossa documentação encontramos africanos que não foram envol-
tos de nada que represente a fé cristã. É o caso da escravizada Maria, que
morreu aos 60 de idade no terceiro dia do mês de junho de 1968, vítima
de “anazarca”, um sintoma de inchaço, e como consta em seu atestado de
óbito: “sem receber os sacramentos, Maria, preta, solteira, Africana escrava
de Joaquim Pedro de Jesus, a qual envolta num lençol, foi encomendada e
acompanhada por mim ao cemitério da Santa Casa de Misericórdia” (MA-
RANHÃO, 03/06/1868).
Analisando a partir do âmbito do provável, Maria, possivelmente, não
tinha nenhuma ligação com nenhuma irmandade religiosa ou preferia mor-
rer sem ser pelo viés cristão. Visto que não se constaram atributos da forma
que grande parte dos cristãos ou cristianizados morria. Pelo menos a maio-
ria dos atestados de óbitos catalogados nessa pesquisa afirma quando os
mortos recebiam sacramentos ou eram envoltos de hábitos de santos.
Diferentemente de Maria, a africana de 80 anos de idade, de nome
Felicidade, morreu também de anazarca três meses depois. Essa por sua
vez, apesar não ter recebido os sacramentos, foi envolta do hábito de Nossa
Senhora das Mercês (MARANHÃO, 04/09/1968).
Já o africano João, falecido em 15 de maio de 1869, além de ter recebi-
do o hábito de Nossa Senhora do Carmo, recebeu os devidos sacramentos
para realizar o seu findar no plano físico. Como consta no atestado de óbito:

[...] faleceu de inflamação dos intestinos, com sessenta e cinco anos de


idade, tendo recebido os sacramentos da Penitência, Eucharestia por
viático, e Extrema unção, João, preto, Africano, escravo de Domingos
João Maya, o qual envolto no habito de Nossa Senhora do Carmo, foi
encomendado e acompanhado por mim e capelães cantores da Catedral
(MARANHÃO, 15/05/1869).

Esses são três escravizados de procedência africana, que tiveram com-


portamentos diferentes em vida até o momento de partir do plano terreno.
Apesar de não confirmarmos se os africanos que receberam os sacramentos
se tratam de africanos cristianizados, ou que se alinharam a cristandade em
vida, no entanto, a evidência de serem envoltos por aspectos religiosos do
catolicismo podem dizer muito sobre suas práticas religiosas enquanto vive-
ram, principalmente a de ter estabelecido algum tipo de fé no novo mundo.

134
Essa questão também não anula a possibilidade de que a prática de
morrer com os símbolos católicos pode ter sido requerida pelos próprios
proprietários dos escravizados, uma vez que grande parte deles eram ca-
tólicos ou pelo menos diziam professar essa fé. Portanto, a forma de lidar
com os corpos dos mortos também advém muito dos que ficaram vivos, que
queriam ou pretendiam que esses tivessem uma passagem tranquila. Assim,
além das vontades do que se foram, a morte e as práticas fúnebres também
são definidas pelos que ficaram vivos.
Se olharmos as homo moritur (causas morte) observamos uma miríade
de causas. Dos 20 casos que analisamos entre 1868 a 1869, a maioria de-
les tem como causa as complicações na saúde, é comum nesse período as
doenças como: aneurisma, thydropesia, protomites, convulsões, tuberculo-
se, anazarca, moléstia interior, inflamação interior e até suicídio.
Algumas doenças são justificadas pela pouca atenção que a saúde básica
destes escravizados recebia, muitos pereciam em locais totalmente insalu-
bres e sob condições que lhe permitiam viver com saúde fragilizada. Ainda
mais em São Luís que tinha pouquíssimos locais com saneamentos básicos.
Certamente que naquele contexto os escravos eram um bem valioso, além
de ser caro para os padrões de vida da época, mas nem todos os senhores
tinham cuidado com suas “propriedades”. E a prova desse descuido são as
crianças que morriam antes de chegarem aos 10 anos, pelo menos 8 dos 20
casos analisados são de escravizados pequenos. E mesmo os que não sabiam
falar, que não conheciam a fé cristã, eles também foram envoltos por ela. É
o caso da escrava Cassiana que morreu aos 03 anos de idade no dia 24 de
junho de 1868, como consta em seu atestado de óbito:

[..] falleceu da vida presente, de febre, com trez annos de idades Cassiana,
natural desta cidade e filha natural da mulata Victoria ambas escravas de
Raymundo Lamagner Muniz, a qual envolta no habito de nossa Senhora
do Bom Parto, foi encomendada e acompanhada por mim e capellães can-
tores da Cathedral, ao cemitério da Santa Casa da Misericórdia (MARA-
NHÃO, 24/06/1868, p. 9).

Cassiana além de ter sido envolta pelo hábito de uma santa muito co-
nhecida pelos católicos, também teve a oportunidade de ser acompanhada
por capelães cantores. Outro caso é o do menino João, que também morreu
aos três anos de idade no dia 26 de março de 1868, de typho e era escravo
de Andre de Castro Reis, o mais interessante em seu enterro é que o mesmo

135
foi envolto do “habito do menino Deus, foi encomendado e acompanhado
pelo Reverendo Coadjutor deste curado e cruz da fabrica” (MARANHÃO,
26/03/1868).
João era apenas mais um dos pequeninos que foram envoltos pelo ha-
bito do “menino Deus”, provavelmente, era uma associação por parte dos
pais para que seus filhos pudessem se aproximar da figura do Deus menino,
neste caso de Jesus Cristo. Havia na figura representada no hábito uma
associação entre a infância morta e um Deus pequeno.
Os óbitos avaliados nesse texto demonstram que a morte dos escraviza-
dos também foi envolta de simbologias e esperanças de uma passagem mais
concreta. E isso é comprovado através dos atestados de óbitos através da
utilização dos hábitos de santos, são encontradas expressões como: “hábito
de Nossa Senhora de Nazaré”, “amortalhada no hábito de Nossa Senhora
do Carmo”, “envolva do habito de Nossa Senhora da Conceição”, “hábito
de Santa Teresa”, essas e tantas outras santas e santos também são registra-
dos na documentação.
Ademais, apareciam outras expressões como “envolto em hábito de
seda cor da rosa” ou “envolto com pano azul”, não conseguimos definir
por via da documentação as definições destas cores e por que serem essas
e não outras. Todavia, provavelmente elas tinham alguma simbologia para
o morto ou para as irmandades, ligadas aos santos ou santas e suas cores e
mantos sagrados.
Um dado curioso e que nos conduz a reflexões, é que os escravizados
do sexo masculino estão em menor número dos sujeitos que foram envoltos
em hábitos de santos nesse período. Talvez isso demonstre que as mulheres
eram mais participativas nas festividades religiosas? Talvez sim.
Outros casos também são bem peculiares, um deles é do escravizado
Narciso que deu cabo da própria vida aos 30 anos de idade, no dia 27 do
mês de maio de 1868:

[...] faleceu da vida presente, suicidado, com trinta anos de idade, Narciso,
natural desta cidade, escravo de Moyses Benedicto, solteiro o qual envolto
no habito de Nossa Senhora das Mercês, e foi encomendado e acompa-
nhado por mim e capelães cantores da Catedral, ao cemitério da Santa
Casa da Misericórdia para ser inhumado (MARANHÃO, 27/05/1868).

Suicidar-se não era considero crime pelas Leis Criminais do Impé-


rio, segundo Sousa (2014), o crime só era constado para quem auxiliasse

136
ou ajudasse o pretensioso a cometer o ato. No entanto, no século XIX a
Igreja Católica, como religião oficial do Império brasileiro, estabelecia di-
retrizes a partir dos seus preceitos de religiosidade, a fim de moldar e definir
as relações sociais cotidianas. Assim, através das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia3 criaram-se diretrizes da Igreja Católica Apostólica
Romana em que estabelecia as pessoas que não tinham direito a sepultura
eclesiástica, dentre elas, os suicidas:

Constituições Primeiras, em seu título LVII- Das pessoas que se deve negar
a sepultura eclesiástica – havia a determinação de proibir o enterro em solo
sagrado aos judeus, hereges, cismáticos, apóstatas, blasfemos, suicidas,
duelistas, usuários, ladrões de bens da Igreja, excomungados, professores
religiosos enriquecidos (que não renunciavam os bens na hora da morte),
os que não se confessaram antes da morte e que foram contrários a ex-
trema-unção, infiéis, crianças que não fossem batizadas e adultos pagãos.
[grifo nosso] (VIDE, Sebastião, 2007, p. 299-301).

Nas primeiras décadas do século XIX os cemitérios eram adminis-


trados por entidades e irmandades religiosas que impediam veemente-
mente o enterro dos suicidas em solo sagrado. A única forma de evitar
a proibição do enterro em solo sagrado seria a justificação por “sinais de
contradição”, dentre elas a falta de juízo ou arrependimento antes da hora
da morte, e para isto, precisaria ter tido pelo menos uma testemunha para
comprovação do ato (MINOIS, 1988). Entretanto, a partir da década de
30 e 40 do século XIX os cemitérios foram aos poucos sendo laicizados,
onde houve uma abertura maior para o enterro dos suicidas.
Nossa análise se situa na década de 1860, os olhares sobre o suicídio
já alcançavam outros tipos de compreensão, e não mais o condenatório
e punitivo como se pode observar na História do Suicídio no Ociden-
te, conforme apontou Minois (1988). Soma-se a isso, o surgimento das
ciências como a Psiquiatria e a Psicologia, em meados do século XIX,
que permitiram que o suicídio pudesse ser visto por um viés patológico
(LOPES, 2003).
E ainda se tratando do caso de Narciso, embora tenha retirado sua
própria vida e quebrado a lógica natural da vida, ou seja, a morte natural
aos olhos dos cristãos, este ainda foi envolto do “habito de Nossa Senhora
3. Compêndio publicado em 1707, que procurava adequar os preceitos culturais do Concílio
de Trento (1545-1563) as práticas singulares do catolicismo no Brasil.

137
das Mercês”. Podemos inferir que o ato de utilizar o hábito da santa, pos-
sivelmente, era uma forma de proteção dos que ficaram vivos para guiar a
passagem do suicida para outro plano, como assinalou Reis (1991) sobre
o uso comum das mortalhas e hábitos.

Considerações finais

O aspecto religioso dos escravizados é campo ainda envolto de estor-


vo para historiadores, uma vez que sempre analisamos as atitudes destes
agentes sociais a partir de alguém, e pouco temos evidências sobre suas
atitudes e vontades. No entanto, podemos considerar, a partir das docu-
mentações analisadas, alguns aspectos que envolvem o momento de mor-
rer destes escravizados.
A primeira é que estes sujeitos estavam imersos sob uma cultura que os
queria cristãos, mesmo que sua procedência fosse africana. Assim, criou-
los e africanos convivam com as diversas manifestações de fé, sobretudo a
cristã, pois eram comumente impelidos a se converterem ao cristianismo.
Notamos a partir da nossa documentação que havia certo alinhamen-
to aos preceitos cristãos de alguns escravizados, sobretudo os crioulos, que
já eram frutos dessa hibridização das duas culturas e já vivam há bastante
tempo no Brasil. Além disso, os escravizados que já nasciam aqui também
tinham mais contato e propensão a vivenciarem o cristianismo. O que
pode de ter sido por sua espontânea vontade ou mesmo de seus senhores
ou dos seus pares que ficaram vivos
Analisar as práticas da morte e os ritos fúnebres é fundamental para
nos aproximarmos da vida destes sujeitos, observando suas possíveis vi-
sões de mundo e seus comportamentos nas relações sociais. Os aspectos
religiosos e as relações mantidas com o extra-humano dos sujeitos em so-
ciedade são relevantes para observarmos como grande parte dos processos
históricos também foram construídos a partir deste viés, e ainda que se
analise realidades estritamente especificas não podemos excluir ou ignorar
o todo e sua força sobre o particular.

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138
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139
REVEL, J. (org) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. trad. de
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Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 1 – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da


Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 2 – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da


Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 9 – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da Vi-


tória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 13 – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da Vi-


tória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886) – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da


Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 9 – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da

140
Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 3 – APEMA.

MARANHÃO, Livro de Registro de Óbitos da Freguesia de N. S. da


Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 8 – APEMA.

141
convocação e recrutamento de
indígenas das colônias e diretorias na
província do maranhão para a guerra
do paraguai (1865-1870)

Marcos Ferreira Silva1

Introdução

O presente artigo é parte integrante da pesquisa que se encontra ainda


em fase de elaboração para a Tese de Doutorado que está sendo desenvol-
vida no Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlânticas:
culturas e poderes, na Universidade Federal do Maranhão, onde a priori
analiso as populações indígenas das Diretorias e Colônias na província do
Maranhão no século XIX, alvos de uma Política Indigenista Imperial e Ci-
vilizatória. Política essa que visava à assimilação e a integração do índio à
sociedade mediante a apropriação das espacialidades e territórios indígenas
no Maranhão provincial e concomitantemente o aproveitamento dos braços
indígenas para o trabalho.
Com efeito, tenho tentado refletir, teórica e historiograficamente a ex-
periência dessas populações indígenas, além de outros sujeitos envolvidos
na vivência temporal e cotidiana das Diretorias parciais e Colônias indí-
genas controladas pelas Governo Imperial e provincial do Maranhão de
(1840-1889), além de sociabilidades e o modo pelo qual se desenvolveu e

1. Doutorando em História (PPGHis-UFMA), Mestre em Cultura e Sociedade (PGCult-U-


FMA), Graduação em História e Especialização em Teoria da História (CESCC-UEMA),
Bacharel em Direito (UEMA- Bacabal) E-mail:cienciashumanasemfoco@gmail.com
se configurou as táticas e astúcias anônimas dessas agências indígenas em
confronto com as estratégias políticas e discursivas imperiais.
Nesse contexto, buscando conexões com a macro história do Brasil, a
documentação até aqui analisada vem lançando luz, sobre processos histó-
ricos que envolve às populações indígenas, como sujeitos históricos, prota-
gonistas desses processos, com atuações e escolhas com significados pró-
prios, capazes de dar respostas criativas a tais processos. Desse modo, como
parte da pesquisa, busco investigar a participação das populações indígenas
das Diretorias e Colônias do Maranhão Provincial, assim como, identificar
como essas populações indígenas foram envolvidas e tiveram presença na
Guerra com o Paraguai.
Por mais que tenha emergido nos últimos anos uma vasta produção
historiográfica sobre a Guerra do Paraguai, considerada como um marco
fundante na construção dos Estados Nacionais na América do Sul, cuja
narrativa sobre a mesma foi sendo cristalizada ao longo dos anos, não obs-
tante, hoje podemos repensar tal acontecimento sobre perspectivas diver-
sas2. Sendo uma dessas possibilidades, repensar a Guerra com o Paraguai
a partir da perspectiva indígena. Todavia é oportuno lembrar que, a pers-
pectiva indígena aparece de modo sutil na documentação, cabendo a nós
pesquisadores estarmos atentos a cada momento, cada fragmento discursivo
de memória e valorizarmos na urdidura da nossa narrativa histórica. Com
efeito, se constata uma considerável lacuna na historiografia brasileira sobre
a presença indígena na Guerra com o Paraguai e poucos estudiosos com
estudos direcionados à temática indígena nesse contexto.
Como bem apontou Rosely Batista Miranda de Almeida (2006) em
seu texto Bravos Guerreiros:

Injustamente esquecidos, soldados indígenas tiveram participação impor-


tante na Guerra do Paraguai. Não foram só as forças armadas do Império
que deram ao Brasil a vitória no maior conflito bélico jamais ocorrido na

2. Há pelo menos três perspectivas de compreensão sobre a guerra:(i) uma historiografia ofi-
cial, surgida no pós-guerra e cristalizada por trabalhos de memorialistas, cuja grande rele-
vância se constitui na própria originalidade documental;(ii) uma historiografia revisionista,
que surge no final da década de 1960 do século XX, encastelada nas universidades, defensora
da ideia de intervenção inglesa e do projeto de destruição total do Paraguai pelos países sig-
natários do Tratado da Tríplice Aliança; e, finalmente, (iii)uma historiografia mais recente,
surgida em fins dos anos 90,que trata o tema sob a perspectiva de uma nova história política,
militar e das relações internacionais, que valoriza a ideia da formação dos estados nacionais
na América do Sul. Sobre a historiografia da Guerra do Paraguai, ver: (MAESTRI, 2009).

144
América do Sul. Pesquisas já mostraram que gente do povo, mulheres, es-
cravos e ex-escravos também tiveram atuação marcante na Guerra do Pa-
raguai (1864-1870). De todas essas minorias combatentes, a participação
dos índios era menos conhecida. Hoje se sabe que eles atuaram no conflito
como verdadeiros soldados, e foram considerados “bravos auxiliares” por
oficiais do nosso exército. Existem muitos relatos sobre os gestos heroicos
de soldados indígenas que fazem jus aos elogios, como, por exemplo, o de
grupos avançando de peito nu, numa demonstração de extrema coragem,
para desalojar soldados paraguaios escondidos nas matas que eles tão bem
conheciam. Ou de pelotões indígenas realizando com êxito a missão de
observar os movimentos do inimigo ou de trazerem de volta aos seus des-
tacamentos soldados desertores e escravos fugidos. Nessas ações, não eram
movidos propriamente por patriotismo ou sentimento semelhante, mas
sobretudo pelos interesses dos grupos a que pertenciam. Os índios que ha-
bitavam as terras da Província de Mato Grosso, ao se tornarem soldados,
queriam, antes de mais nada, ver pelas costas, fora de seu território e longe
de sua vista, o soldado inimigo, que traria para o seu povo morte e des-
truição. Ao defenderem o exército imperial, acreditavam estar defendendo
também sua gente e resguardando seu espaço.3

Na tentativa de fortalecer as exemplificações de referências historio-


gráficas que trazem como tema central a participação e atuação indígena na
Guerra com o Paraguai, destaco o texto de Soraia Sales Dornelles4, onde a
historiadora repensa a história da Guerra do Paraguai, a partir da trajetória
do capitão terena José Pedro de Souza e sua reivindicação perante o Esta-
do Brasileiro, cuja petição foi publicada no Diário de São Paulo em 1865.
Ainda seguindo às considerações de Dornelles, a mesma aponta que o go-
verno incentivou os índios a participarem da guerra de distintas maneiras
(2021, p. 14). Sendo que, “por todo o império indígenas se engajaram nos
batalhões para a luta. Para além do reconhecido recrutamento compulsório,
um considerável contingente dispôs-se a partir de forma voluntária para os
campos de batalha” (2021, p. 15).
Convém pontuar ainda, segundo Dornelles (2021), levando em conta
o contexto narrado que a expressiva adesão indígena ao conflito revela uma
visão estratégica das lideranças indígenas frente aos contextos locais e sua
3. ALMEIDA, Rosely Batista Miranda de. Bravos Guerreiros. Disponível em: http://goo.
gl/0xKMa9 acesso em 28 de setembro 2022. Revista de História.com.br (2008).
4. DORNELLES, Soraia Sales. O capitão terena José Pedro de Souza e sua reivin-
dicação perante o Estado Brasileiro: A participação voluntária indígena na Guerra do
Paraguai. Dossiê temático, acervo, Rio de Janeiro, v.34, n.2, p.1-18, maio/ago. 2021.

145
posição diante do Estado Nacional. Como bem apontou Maria Regina Ce-
lestino de Almeida (2010, p. 148), “Os índios que colaboraram na Guerra
do Paraguai, por exemplo, forçados ou não, souberam valer-se disso para
reivindicar ganhos ao Estado, sobretudo territoriais”.
Além do mais, Dornelles afirma que, “Na medida em que se ampliam
os estudos brasileiros sobre a participação indígena na Guerra do Para-
guai, da Tríplice Aliança ou Guerra Grande, verifica-se a pequena valori-
zação historiográfica sobre as dimensões indígenas do conflito” (2021, p.
03). Cabendo-se ponderar que, em significativos trabalhos sobre a Guerra
do Paraguai, percebe-se a obliteração5, diga-se de passagem, o esqueci-
mento da participação dessas populações indígenas nas respectivas narra-
tivas históricas.
Assim, é perceptível em tempos recentes que a perspectiva de estudar
os efeitos da Guerra com o Paraguai pelas notícias em nível regional tem se
tornado uma prática de maior regularidade, contudo, vários estudos sobre
o impacto das notícias da Guerra do Paraguai nas províncias começaram
a surgir. E ao identificar essa lacuna historiográfica quanto a história da
Guerra com o Paraguai, com foco na presença das populações indígenas no
processo de recrutamento militar na Província do Maranhão na segunda
metade do século XIX, procuro investigar e compreender como essas po-
pulações indígenas foram envolvidos na Guerra com o Paraguai? Como se
deu tal envolvimento? Como as populações indígenas da província do Ma-
ranhão foram convocadas para os campos de batalha? Sob quais interesses
e motivações as populações indígenas do Maranhão foram envolvidas na
Guerra com o Paraguai? Quais as razões estratégicas e atrativos utilizados
pelo governo? Quais sujeitos faziam os agenciamentos indígenas? Qual o
significado da guerra para essas populações indígenas? Quais retribuições
foram dadas com o fim da guerra a esses voluntários e combatentes soldados
indígenas na província do Maranhão?

A eclosão da Guerra e o recrutamento na província do Maranhão

Para efeito de narrativa e contextualização histórica acerca dos aspectos


motivadores e emergenciais da Guerra do Paraguai, pode-se dizer de forma

5. Tomei, tal enunciado de Giovani José da Silva (2018) como aforismo. SILVA, Giovani
José. Protagonismos indígenas em Mato Grosso (do Sul): memórias, narrativas e ritual ka-
diwéu sobre a Guerra (sem fim) do Paraguai.

146
breve que “Em dezembro de 1864, o navio brasileiro Marquês de Olinda
foi capturado pelo Exército paraguaio, quando navegava no rio Paraguai;
esse foi o episódio que deflagrou o início do conflito que ficou marcado na
história e memória dos países envolvidos.
A Guerra do Paraguai para os brasileiros, La Guerra Grande ou Guerra
de La Triple Alianza, para os países de língua espanhola viria a ser o maior
conflito armado da América do Sul. A guerra estava se desenhando há mui-
to tempo: quando o império brasileiro ocupou militarmente o Uruguai em
1864 o governo paraguaio protestou formalmente contra a ingerência bra-
sileira nos países da região platina. Contudo, os enviados diplomáticos do
império ao país platino duvidavam que o Paraguai fosse realmente atacar,
coisa que acabou acontecendo, a partir, da prisão do navio brasileiro6.
Consequentemente, pode-se constatar que “O Império brasileiro pela
primeira vez viu-se obrigado a organizar um exército rapidamente e em
larga escala. Neste período, tanto o Exército quanto a Armada (Marinha)
sofriam um forte desprestígio popular, motivado em grande parte pela
precariedade e violência do tratamento destinado aos soldados. Com o
soldo estagnado desde 1825, o soldado em serviço alimentava-se apenas
uma vez ao dia, o armamento era extremamente obsoleto, o tempo de
serviço prestado era muito longo7.
Tentando validar os aspectos já mencionados quanto aos episódios da
prisão do navio Marquês de Olinda e a invasão do território nacional por
um inimigo estrangeiro, acontecimentos estes que deflagraram a guerra, e
que impressionou demasiadamente a nação. Com efeito, é oportuno des-
tacar que, tais fatos desencadearam uma grande comoção e o patriotismo
tomou conta da sociedade. Por sua vez, Vitor Izecksohn, descreveu essa
primeira onda, de dezembro de 1864 a maio de 1865, como uma “corrente
de fogo elétrico”8
Como sublinhou Johny Santana de Araújo (2021), na província do
Maranhão a ideia do conflito surgira como um eixo de expansão de ideias
em prol da participação da Província na Guerra. De fato, quando do início

6. DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. Op.


cit., p. 60.
7. Idem, p.111.
8. IZECKSOHN, Vitor. Resistência ao recrutamento para o exército durante as guerras Civil
e do Paraguai: Brasil e Estados Unidos durante a década de 1860. Estudos Históricos (Rio de
Janeiro) v. 27, 2001, 84-109.

147
da guerra, alguns jornais maranhense e consequentemente seus editores,
também iniciaram uma construção discursiva da guerra nas páginas de seus
respectivos jornais9.
Os jornais , de modo panorâmico procuram exaltar as ações do Império
na região do Prata, nas províncias, segundo Araújo (2021,p. 284) havia um
clima favorável à política brasileira no Prata, estabelecendo uma ideia de
que o público brasileiro estava apoiando a política externa do Império, e que
a guerra gerava um sentimento de euforia coletivo10.
Nesse contexto, destacamos o jornal Publicador Maranhense, de 20 de ja-
neiro de 1865, o qual vem corroborando com a referida ideia informando que:

Como brasileiros, enchemo-nos de orgulho e sentimos (...) prazer no


contemplar o enthusiasmo que pela guerra se vae desenvolvendo nas pro-
víncias do sul d’esta (...) toda a população parece animada por um só
pensamento (...) apprescata-se a fazer o serviço militar –a marchar para
o campo da guerra11

A imprensa apela ao patriotismo da população, clamando para que to-


dos se unissem para defender o país do inimigo. Como afirmou Araújo “A
imprensa trabalhou paralelamente com o governo imperial e provincial, no
sentido de criar uma ideia de unidade nacional em torno de um inimigo
internacional, o Paraguai” (2021, p. 286).
Não somente os jornais contribuíram na criação de um imaginário so-
bre a Guerra, na Província do Maranhão, é digno de nota, que também na
Literatura Maranhense, foi possível se constatar posteriormente a intensi-
9. Quero destacar dentre alguns jornais oficiais da Província do Maranhão na época, tais como
“ A situação”, “ A Fé”, dar um maior destaque ao “Publicador Maranhense”, um dos jornais
mais importante na segunda metade do século XIX no MA, cujo o compromisso com o go-
verno o caracterizou como um dos mais ativos órgãos de apoio a causa da guerra.
10. Conforme Johny Santana de Araújo (2021, p. 286), Os jornais, de todo modo, trabalha-
ram de forma a criar no imaginário dos moradores da província, uma ideia de patriotismo de
três formas: em primeiro lugar, por alimentar semanalmente a província com informações so-
bre conflitos em outros países, bem como sobre as intervenções que o governo brasileiro pre-
parava para fazer em nome da sua segurança, o que de certa forma acabou criando o ambiente
para uma possível guerra; em segundo lugar, com a guerra já declarada, procurou sempre
mostrar o Brasil como uma nação que havia sido agredida e invadida e que precisava recuperar
a honra e os territórios conquistados pelo inimigo; e, finalmente, por mostrar que em outras
províncias havia sempre voluntários dispostos a se oferecerem para a guerra, demonstrando
dessa maneira que tal atitude era uma contribuição de coragem.
11. Publicador Maranhense, n. 16, 20 jan. 1865. p. 1. Biblioteca Pública Benedito Leite. São
Luís, Maranhão. Seção de Periódicos, rolo 94.

148
dade do imaginário da guerra, a exemplo da obra O Mulato12, de Aluísio
de Azevedo.

Na Ponta d’Areia travara uma nova amizade — D. Eufrasinha. Viúva de


um oficial do quinto de infantaria, batalhão que morreu todo na Guerra
do Paraguai. Muito romântica: falava do marido requebrando-se, e poe-
tizava-lhe a curta história: “Dez dias depois de casados, seguira ele para o
campo de batalha e, no denodo da sua coragem, fora atravessado por uma
bala de artilharia, morrendo logo a balbuciar com o lábio ensangüentado o
nome da esposa estremecida.” (p.06-07)

Com a deflagração da Guerra, as primeiras medidas tomadas pelo go-


verno imperial foi mobilizar a população, principalmente homens aptos a
pegar em armas para defender a nação13. Para atrair a população indignada
e com rompantes de patriotismo promulgou-se no dia 07 de janeiro de
1865 o decreto 3.371 criando os Corpos de Voluntários da Pátria. Nele
previa-se um aumento substancial no soldo dos voluntários, um plano de
acesso a terras, juntamente com uma pensão vitalícia após seu retorno, a ga-
rantia de baixa tão logo o voluntário retornasse ao país, ou uma indenização
para a família caso o voluntário fosse morto em combate14.
Na Província do Maranhão o estabelecimento do referido decreto, foi
noticiado por toda a imprensa e o Publicador Maranhense, de 28 de janeiro
de 1865, divulgou o edital da Secretaria Militar, informando sobre o decre-
to dos Voluntários da Pátria, dando conhecimento que:

Por ordem de S. Exe. o Sr. presidente da província fica aberta a inscrição


de voluntários a quem serão concedidas todas as vantagens de que trata o
decreto n° 3.371 de 7 do corrente ano, sem outra formalidade alem da sim-
ples apresentação do voluntário nesta repartição e lançamento de seu nome
em livro próprio depois de averiguações acercadas condições exigidas no
predicto decreto15
12. AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Martins, 1964.
13. BRITO, Edilson Pereira. A serviço da pátria: o recrutamento militar na província do
Paraná durante a Guerra do Paraguai (1865-1870). 2011. Dissertação (Mestrado em His-
tória) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2011.
14. Decreto 3371 de, 07 de janeiro de 1865. Cria o corpo de voluntários da pátria, estabelece
as condições e fixa as vantagens. BRASIL, Colleção das Leis do Império (Doravante CLIP)
de 1865. Rio de Janeiro: Thypographia Nacional, 1865, p. 336.
15. Publicador Maranhense, n. 23, 28 jan. 1865. p. 1. Biblioteca Pública Benedito Leite. São
Luís, Maranhão. Seção de Periódicos,rolo 94

149
Ainda seguindo o caminho de Johny Santana de Araújo (2021, p. 288),
o mesmo afirmou que:

A campanha de alistamento no Maranhão teve diferentes repercussões e


manifestações, desde o alistamento no exército de linha a alistamentos
no Corpo de Voluntários da Pátria que se ia formar, passando ainda por
contribuições pecuniárias ou por prestação de serviços no lugar dos que
se alistavam.

Para Doratioto: “as condições vantajosas oferecidas aos Voluntários


da Pátria demonstravam a gravidade da carência de soldados no Brasil,
onde os cidadãos, no geral, relutavam em ir para o Exército”16.
Estatísticas do Ministério da Guerra calculam o alistamento de apro-
ximadamente 10 mil voluntários no primeiro ano. Muitos eram levados
pela “corrente de fogo elétrico” reinante na sociedade. Ou quem sabe estes
voluntários também fossem levados por uma possibilidade de melhorar
sua própria condição de vida, além do seu status na sociedade, devido às
vantagens ofertadas pelo governo17.
O presidente da Província do Maranhão, na época, da eclosão da
Guerra era o Doutor Ambrósio Leitão da Cunha, o qual respondeu, ao
aviso imperial de 26 de dezembro de 1864, que solicitava, o aumento do
número de praças do exército e da armada e, inclusive, criar os corpos
de voluntários, garantindo que empregaria todos os esforços possíveis. O
mesmo Presidente em ofício datado de 25 de fevereiro de 1865, diz: “(...)
vendo as tendências que se têm manifestado para apresentação de volun-
tários, nas comarcas da capital, do Rosário e do Itapecuru-Mirim, mandei
sustar nelas o recrutamento”18.
Mediante a afirmação do governo, entende-se segundo Johny Araújo
(2008, p.315) que outrora, “a forma comum de se conseguir homens era
por meio do recrutamento forçado, mas que, dado à quantidade de vo-

16. DORATIOTO, op.cit, p. 116


17. Idem, p. 116.
18. Ofícios trocados entre os Presidentes de Províncias e os Ministros das Pastas da Guer-
ra e da Justiça e vice-versa. Ofício n° 48, 2a Seção do Palácio do Governo do Maranhão,
25.02.1865; Coleção de Manuscritos do Arquivo Nacional, Apud: DUARTE, Paulo de
Queiroz. Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército v. 2, t IV, p. 166.

150
luntários que se apresentaram, a prática de recrutamento foi abandonada
naquele momento.
Por sua vez, o primeiro batalhão de Voluntários formado na província
do Maranhão, o qual recebera a numeração de 22º Corpo de Voluntários
da Pátria, uma vez que o número necessário de homens para se formar a
referida força, que era de 354, fora atingida a contento, restava treiná-los
e embarcá-los. De acordo com o relatório do Presidente Ambrósio, no
dia do embarque um batalhão constituído por um efetivo de 382 homens,
entre voluntários civis, membros do corpo de polícia da guarda nacional
seguiu viagem, “ (...) com o maior luzimento e garbo militar19. Do mais,
o referido evento ganhou notoriedade em quase todos os jornais da Pro-
víncia do Maranhão.
Convém destacar que o governo imperial também ordenou a con-
centração da tropa de primeira linha existente na província do Maranhão
para o treinamento de guerra e prestes a embarcar para o Sul, o governo
provincial manda destacar e aquartelar um contingente da Guarda Na-
cional da capital para substituir a referida força de linha no serviço da
guarnição20.

O contingente de primeira linha que embarcou, atingiu uma expressiva


quantidade de 790 militares. Eram tropas compostas pelo 5° batalhão
de fuzileiros e pelo 18° corpo de guarnição da Província. Havia nessa
força voluntários, como foi visto anteriormente, mas a maior parte do
seu contingente era formada por soldados profissionais, que haviam sido
alistados há algum tempo e cumpriam o longo período de serviço militar
de nove anos (ARAUJO,2008, p.334)

Consequentemente, a formação dos batalhões como deixou registra-


do Araújo (2001), não foi algo tão fácil, visto que os cofres da província
do Maranhão não comportavam despesas relativas a destacamentos da
Guarda Nacional para o serviço da guerra, além de demonstrar uma rela-

19. MARANHÃO. Relatório com que o Exm°. Senhor presidente da província, Dr. Am-
brósio Leitão da Cunha, passou a administração da mesma província ao Exm°. Senhor 4.o
vice-presidente, tenente-coronel José Caetano Vaz Júnior, no dia 23 de abril de 1865. São
Luís, Typ. de B. de Mattos, 1865, p. 6.
20. MARANHÃO. Relatório com que o Exm°. Sr. presidente da província, Dr. Ambrósio
Leitão da Cunha, passou a administração da mesma província ao Exm°. Senhor 4° vice-presi-
dente, Tenente-Coronel José Caetano Vaz Junior, no dia 23 de abril de 1865. São Luís, Typ.
de B. de Mattos, 1865, p. 19.

151
tiva preocupação com a segurança interna da província.
Como deixou registrado Johny Araújo (2008, p.334), O presidente
comunicou à corte que tinha problemas financeiros para bancar o aquar-
telamento da unidade da Guarda Nacional destacada, e em ofício de 3 de
fevereiro de 1865, dirigido ao Ministro da Justiça, informou que:

(...) com a retirada do 5º batalhão de linha, e com a autorização de alguns


destacamentos da Guarda Nacional, em número de 439 praças, teve que
ordenar que as despesas ficassem por conta do Ministério da Guerra, por-
que os cofres provinciais não comportavam tamanhas despesas21.

Dado a partida do 22º Batalhão, o Maranhão foi incumbido de for-


necer mais homens, num total de 1.060 (um mil e sessenta), organizado
em dois batalhões, o 36º e o 37º22. Além do mais, com a mudança de
Presidente da Província, em 14 de junho de 1865, assumiu o Sr. Lafayete
Rodrigues Pereira. Em 3 de agosto de 1865, o então presidente da Pro-
víncia do Maranhão, mandou avisar ao ministro dos negócios da justiça
que seguia para a Corte a Brigada Expedicionária da Guarda Nacional do
Maranhão, e que continuaria os esforços no sentido de enviar o número
total de guardas nacionais que cabia à província do Maranhão, pois so-
mente 586 praças foram embarcadas (DUARTE, 1981, p. 149)
É digno de descrição que o jornal Publicador Maranhense do dia 4 de
agosto detalhou todos os pormenores da festa em honra ao embarque da
brigada maranhense. Segundo o seu editor:

Desde as 6 horas da manhã começou a afluir ao quartel do Campo do


Ourique um grande concurso de povo, ansioso de victoriar os cidadãos
que vão verter o sangue em prol da honra nacional.As 8 1,2 horas, por
entre vivas acclamações, poz-se em marcha a brigada, acompanhada de
uma imensa multidão de pessoas de todas as classes, entre as quaes nota-
va-se a câmara municipal incorporada.Desfilou pela rua do Sol, drigin-
do-se-á Igreja Cathedral, onde foi assistir ao santo sacrifício da missa e
implorar a graçado Deus dos exércitos.A rua do Sol desde o canto de São

21. Ofícios trocados entre os Presidentes de Províncias e os Ministros das Pastas da Guer-
ra e da Justiça e vice-versa. Ofício n.o 63, 3a Seção do Palácio do Governo do Maranhão,
03.02.1865; Coleção de Manuscritos do Arquivo Nacional. Apud: DUARTE, Paulo de
Queiroz. op. cit., v. 2, t. IV, p. 165.
22. FERNANDES, Claudia Moraes. Guerra do Paraguai: o discurso oficial e a participação
do Maranhão (1864-1870). São Luís, 2006. (Monografia)

152
João, e a de Nazareth, até pouco antes de desembarcar no largo da As-
sembléia, achavam-se vistóriosamente decoradas. Em toda a sua exten-
são, viam-se, separados por curtas distancias, arcos de murta, embandei-
rados, e alguns entresachados de flores. Ao longo dos passeios estavam
collocados pequenos mastros, pintados de verde, ornados de bandeiras, e
unidos uma aos outros por festões de rama. O chão achava-se alastrado
de folhas.Essa bella decoração, devida aos nobres sentimentos dos mo-
radores dessas ruas, nacionaes e estrangeiros, foi dirigida pelos Snrs. Ca-
pitão João Marcelino Romeu, Oséias, Frederico Guilherme de Araújo, o
empresário da companhia dramática Vicente Pontes d’Oliveira e alguns
de seus irmãos d’Arte.Ao largo do Palácio havia um arco triumphal, le-
vantado por ordem da Câmara Municipal. O Snr. José Joaquim Gomes
Palmeira, encarregado desse trabalho, fel-o gratuitamente.A rampa [de
embarque do porto] foi também embandeirada pelo Snr Guarda mor in-
terino Raymundo Ferreira Barbosa. As janelas regorgitavam de senhoras
que derramavam flores sobre esses bravos e os saudavam com lenços(...)23

Pode-se salientar que o Império visando a necessidade do País, decre-


tou, no dia 4 de agosto de 1865, a equiparação dos corpos de voluntários
da Pátria aos corpos de Voluntários da Guarda Nacional. Este Decreto nº
3505 determinava que:

Artigo Único. Os corpos da Guarda Nacional, que com sua organização


atual, com os seus oficiais e praças voluntariamente se prestarem para o
serviço da guerra, serão equiparados aos corpos de Voluntários da Pátria e
gozarão de todas as vantagens que a estes são concedidas24

Tendo em vista os vários aspectos atinentes a legislação acerca do im-


bricamento dos voluntários, pode-se dizer que a supracitada legislação in-
centivava a participação do povo na guerra, e muitos indivíduos atenderam
a conclamação do governo com entusiasmo. Portanto, surgiram soldados de
todos os cantos do país, dispostos a defenderem sua pátria e obterem uma
melhor condição econômica.

23. Publicador Maranhense, n. 175, 4 ago. 1865. p. 2. Biblioteca Pública Benedito Leite. São
Luís, Maranhão. Seção de Periódicos, rolo 94.
24. Decreto nº 3505, de 4 de agosto de 1865. In: BRASIL. Leis do Brasil, 1865, p. 329.

153
Convocação de Indígenas na Província do Maranhão
como Voluntários da nação

O Decreto 3.371 dos voluntários da pátria, de 7 de janeiro de 1865, me


conduz a percepção de que, o governo imperial tinha como objetivo maior,
fazer do Exército uma instituição que abarcasse todos os brasileiros, indepen-
dente de grupo social que provinha. Desse modo, abre-se um precedente e
possibilidades para as populações indígenas serem convocadas como voluntá-
rios da pátria, incorporados ao Exército nacional.

Os pobres livres que aceitavam ingressar no Corpo de Voluntários, além


das gratificações previstas pelo decreto, também recebiam as gratificações
que eram prometidas por quem os apresentava, muitos dos quais repre-
sentantes dos partidos políticos que estavam no poder, como o que acon-
teceu com trinta homens da Vila de Rosário a quem foram prometidos
30$000rs, para cada um que se apresentasse como voluntário da pátria.
(A Situação, p. 1, número 88, 09/03/1865, rolo 143, seção periódicos,
BPBL, São Luís.)

No mesmo ano, o vice-presidente da província do Maranhão, Tenente


Coronel José Caetano Vaz Junior, em discurso dirigido à Assembleia le-
gislativa provincial, por ocasião de sua instalação em 21 de maio de 1865,
acompanhado do relatório com que lhe passou a administração, o Exm. Sr.
Dr. Ambrózio Leitão da Cunha, no dia 23 de abril do mesmo ano, infor-
mava que:

O governo imperial, empenhado na guerra a que o levarão os actos selva-


gens do governo da república do Paraguay, tem promovido todos os meios
para desaffontar a dignidade nacional, atrozmente offendida. Como vereis
do relatório, com que me foi entregue a administração, esta província não
tem sido indifferente ao apelo feito pelo nosso governo em prol de tão
sancta quão justa causa. Além de muitos offerecimentos patrióticos, um
corpo de voluntários da pátria foi aqui organizado, o qual ja marchou
para o theatro da guerra. Depois de sua marcha me forão apresentados
mais 115 voluntários, que fiz seguir para a côrte, afim de se irem reunir
ao mesmo corpo. Continuando na tarefa espinhosa de organisar os dois
corpos destacados da guarda nacional, com que tem de contribuir esta
província para o serviço de nossas fronteiras e praças e para auxiliar o exér-
cito em operações, tenho empregado todos os esforços para completal-os.

154
Quando tomei conta da presidencia, contavão os corpos 326 praças, das
quaes forão, inclusive os officiaes, cerca de 62 desalistados por incapazes
do serviço e por outros motivos justos. Hoje contão 55125. (Grifo nosso)

Com o desenrolar da Guerra, esses voluntários passaram a se tornar


cada vez mais escassos, levando o governo a buscar escravos (libertos), ho-
mens pobres/livres, às populações indígenas, ou seja, parte da sociedade que
se encontrava à margem da estrutura socioeconômica do Brasil, para man-
ter o front abastecido de combatentes.
No já citado jornal Publicador Maranhense, é possível se pode identi-
ficar a preocupação de divulgar sobre o alistamento de libertos. Assim, em
agosto de 1868, o referido jornal informava sobre a situação dos libertos que
assentavam praça na armada ou no exército:

... desde que chegou a esta Província ordem para serem libertados por
conta da Fazenda e terem praça no Exército e na Armada, escravos que
tivessem aptidão para aquelle serviço tiveram liberdade, foram alistados
e seguiram daqui a Corte 422 libertos sendo 140 para o Exército e 282
para a Armada

Nesse contexto, convém destacar que em meados da Guerra, mais


precisamente nos meses de fevereiro a abril do ano de 1868, embora não
sendo mencionado também no jornal Publicador Maranhense, como foi
divulgado o alistamento de escravos libertos, mas fica evidente que as bai-
xas na guerra, e a escassez de voluntários, possibilitou a abertura para a
convocação de escravos libertos e das “populações indígenas”, para serem in-
corporados como voluntários no exército nacional. Tais acontecimentos,
encontram-se registrados em alguns ofícios remetidos ao Presidente da
província do Maranhão, pelo Diretor geral dos índios, em 1868, os quais
tangenciam tais fatos.
Nos cabe relembrar ainda, que o Maranhão havia sido incumbido de
fornecer mais homens, num total de 1.060 (um mil e sessenta), desse quan-
titativo estipulado, o Presidente da província do Maranhão Lafayete Rodri-
gues Pereira, só havia conseguido juntar 586 (quinhentos e oitenta e seis)
praças, faltando ainda 474 (quatrocentos e setenta e quatro) homens para o

25. MARANHÃO, Relatório que o Exm. Sr. Dr. José Caetano Vaz Junior, Vice-Presidente
da Província do Maranhão, apresentou à Assembleia legislativa provincial, em 21 de maio de
1865. Maranhão: Typografia de B.de Matos, rua da Paz, 3,1865.

155
Maranhão atingir a sua cota. (ARAUJO, 2001, p.43-440)
Consideravelmente essa escassez de voluntários, fez com que o governo
voltasse sua atenção para a convocação das populações indígenas das Colônias
e Diretorias Parciais de índios, almejando assim o preenchimento do quan-
titativo estipulado.
Refletindo historiograficamente sobre essas experiências indígenas e
suas vivências temporais nas Colônias e Diretorias parciais de índios no
Maranhão provincial, as quais passaram a ser vistos pelo governo não só
como espaços que reservam braços úteis a lavoura, mas locais onde se arre-
gimentariam soldados voluntários capazes de serem integrados como pra-
ças ao Exército nacional, assim como é possível perceber, indígenas dessas
diretorias e colônias, negociando com as autoridades provinciais na capital,
em diversas ocasiões e situações bem como índios agenciadores de outros
índios para a Guerra, através de táticas e meios suasórios, recebendo vanta-
gens por parte do Estado. Tal perspectiva pode ser evidenciada no oficio do
Diretor Geral Interino do índio Fernando Luís Ferreira, ao presidente da
província do Maranhão, onde se registrou que:

Segundo autorização verbal de V. Excia. foram recolhidos a casa dos Edu-


candos Artífices, para em quanto estiverem nesta capital, os três índios
guajajaras Manoel André Fernando, Prudência e Manoel que vieram de
sua aldeia com o fim de fazerem pedidos a V. Excia. Não tendo eles apre-
sentado ofício ou guia do seu diretor parcial (que é o da 16ª Diretoria), nem
de autoridade alguma dos lugares por onde passaram, tratei de obter deles
mesmos algumas informações a seu respeito, a fim de saber que espécie de
favor devia pedir a V. Excia, para eles. Falam corretamente o português,
porque foram criados entre gente civilizada, e agora projetam formar uma
povoação com gente que esperam tirar dos matos, fazendo-se capitão o de
nome Manoel André, e Tenente o Prudêncio. O terceiro de nome Manoel
diz ser capitão de uma aldeia situada a Barra do Corda, donde são todos
Disse-lhes eu que V. Excia, não lhes dava nada porque não havia certeza
de que eles fossem trabalhadores, mas que se eles se comprometiam a
trazer alguns moços para servires no exército, V. Excia os auxiliaria para
fazerem a sua viagem para lá e para cá, e mandaria dar lá mesmo dois
pares de calças e duas camisas a cada voluntário. Prometeram trazer
muitos e parece-me que será bom tentar a ver se cumprem a palavra. No
caso contrário só se perderá a passagem destes para a Vitória, sem levarem
“brinde” algum. Uma autorização a mim para lhes dar a passagem para a
Vitória no Mearim, e uma ordem ao delegado da polícia da mesma Vitó-

156
ria, para lhes dar transporte para cá, com os voluntários que trouxerem, e a
estes as calças e camisas de que falo, parece-me ser as medias bastantes. V.
Excia .porém ordenará o que julgar conveniente26. (Grifo nosso)

O oficio, também faz menção a respeito dos brindes utilizados para


atrair os índios ao alistamento enquanto voluntários, como bem descre-
veu Márcio Couto Henrique (2013, p. 12), são inúmeros os exemplos
que demonstram a perspectiva indígena diante dos brindes que lhes eram
oferecidos. Sendo possível perceber a perspectiva indígena na documenta-
ção. Para Henrique (2013, p. 13) os “brindes” dados aos índios exigem do
historiador leitura que vá além de seu valor meramente comercial. E as-
sim prossegue sua análise discorrendo que John Monteiro27 observou que
“tanto a aquisição quanto a oferta de ‘mercadorias’ devem ser compreen-
didas mais em termos de sua carga simbólica do que por seu significado
comercial” (1995, p. 32).
Ato contínuo, em ofício posterior, datado de 23 de março de 1868,
o Diretor Geral Interino dos índios Fernando Luís Ferreira, informa ao
presidente da província quanto aos referidos indígenas incumbidos de tra-
zer os voluntários que:

Achei-os trabalhando na praia grande para ganharem algum dinheiro com


que pagassem a sua passagem. Fiz-lhes saber que V. Excia se tinham dig-
nado aprovar a minha proposta a seu respeito, e eles mostrando-se muito
satisfeitos, reiteraram a promessa de trazerem alguns voluntários, mas
declararam-me que a recomendação de V. Excia ao delegado de polícia da
Vila de Vitória devia ser feita ao Coroatá, porquanto na sua volta preten-
dem vir pelo Itapecuru que lhes mais cômodo. (Grifo nosso)28

Vale ressaltar, a partir do referido ofício, como descreveu Marta Amo-


roso (2006, p. 121), que as populações aldeadas “passam a frequentar os
espaços públicos em viagens que buscam a negociação direta com as auto-
ridades das províncias e do Governo do Império, sem os constrangimen-
tos impostos pelos intermediários, sejam eles a Diretoria dos Índios ou os
26. FERREIRA, Fernando Luíz. Ofício do Diretor Geral dos índios, em 20 de março de
1868.
27. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
28. FERREIRA, Fernando Luíz. Ofício do Diretor Geral dos índios, em 23 de março de
1868.

157
missionários” 29
Diante de tais configurações, fica evidenciado o protagonismo indí-
gena, como descreveu, Maria Regina Celestino de Almeida (2012, p. 21),
bem como o lugar dos mesmos na história, enquanto sujeitos históricos
antes ignorado ou pouco lembrados pela historiografia tradicional.
Na Província do Maranhão na segunda metade do século XIX, como
já assinalado, Diretores Parciais de índios, capitães, maiorais das aldeias e
índios letrados, foram incumbidos de convidarem, demais indígenas das
respectivas diretorias e colônias, capazes de pegar em armas para se alista-
rem como voluntários no exército em operação. Pode-se identificar que sete
diretores receberam os ofícios e circulares, assim como o impresso publica-
do pela comissão encarregada de obter voluntários30.
Havia, a necessidade de organizar um grande efetivo para defender o
País. O próprio imperador deu o exemplo, libertando todos os escravos das
fazendas nacionais para lutarem na guerra. Em dezembro de 1866, o Im-
perador escrevia ao seu ministro da guerra: “Forças e mais forças a Caxias,
apresse a medida de compra de escravos e todos31 os que possam aumentar
o nosso Exército”32
Então, o governo lançou mão de alguns artifícios para realizar a con-
vocação do maior número de força humana. Em 7 de janeiro de 1865, o
Imperador decretou a Lei nº 3.371, que criava o Corpo de Voluntários da
Pátria, oferecendo vantagens aos homens de 18 a 50 anos que se apresen-
tassem voluntariamente para combater nessa campanha militar. Assim, o
Imperador, atendendo as graves e extraordinárias circunstâncias em que se
achava o País e a urgente e indeclinável necessidade de tomar, na ausência
do Corpo Legislativo, todas as providências para a sustentação, no exterior,
da honra e integridade do Império, tomou por bem decretar:

Art. 1º- São criados, extraordinariamente, Corpos para o serviço de guer-


ra, compostos de todos os cidadãos maiores de 18 anos e menores de 50
anos, que voluntariamente se quiserem alistar, sob as condições e vanta-

29. AMOROSO, Marta. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposições no século XIX.
In: Revista de História 154 (1º 2006), p. 119-150
30. Decreto 3.371 dos voluntários da pátria, de 7 de janeiro de 1865.
31. A presente discursividade, me faz perceber que esse “todos”, passa a incluir a coletividade
indígena.
32. TORAL, André Amaral de. A participação dos negros escravos na Guerra do Paraguai.
Estudos avançados. 1995. p. 292.

158
gens declaradas.
Art. 2º- Os voluntários que não forem Guardas Nacionais então, além
do soldo que recebem os voluntários do exército, mais 300 réis diários e a
gratificação de 300$000, quando derem baixa e prazo de terra de 22 500
braças quadradas nas colônias militares ou agrícolas, além de outras hon-
rarias militares e pensão por invalidez ou morte. [...]
Art. 9º- Os voluntários terão direito aos empregos públicos, de preferên-
cia, em igualdade de habilitações, a quaisquer outros indivíduos.

Nas intensas correspondências oficiais entre as autoridades do governo


provincial do Maranhão e o Governo imperial é revelado a preocupação
mais acentuada do Diretor Geral interino dos índios em receber autoriza-
ção do Presidente da Província Dr. Antônio Epaminondas de Melo para
emissão das circulares de convocação dos voluntários indígenas, ainda em 8
de fevereiro de 1868.

Em virtude da autorização que se dignou V. Excia conceder-me em ofí-


cio datado de ontem, para dirigir uma circular aos diretores parciais dos
índios, incumbindo-os de convidarem os índios de suas respectivas di-
retorias, capazes de pegar em armas para se alistarem no exército em
operações, passei imediatamente a oficiar a 7 diretores que me ter mãos
probabilidade de conseguir alguma coisa, e ao diretor interino da colônia
Leopoldina. A cada um deles remeti um exemplar do impresso publica-
do pela comissão encarregado de obter voluntários, em que se faz saber
as vantagens que oferece o Governo aos ditos voluntários, e transmiti-
-lhes as recomendações de V. Excia. para que esta diligencia fosse feita
sem o menor constrangimento dos índios. Remeti hoje todos esses ofícios
com outro, ao digno administrador do correio, pedindo-lhe que a bem do
serviço público deles fizesse tão pronta e segura remessa, quanto lhe fosse
possível.33 (Grifo nosso)

A Colônia indígena Leopoldina, do Alto Mearim, a qual dentre as de-


mais colônias indígenas, era a que mostrava melhores resultados em termos
de produção, receita própria e saldo no tesouro provincial, congregando
nesse período, mais de 500 índios aldeados, por intermédio do seu diretor
parcial, Antônio Lourenço da Silva, recebeu semelhante convocação, reme-
tida pela Diretoria Geral dos índios.

33. FERREIRA, Fernando Luíz. Ofício do Diretor Geral dos índios, em 1 de março de 1868.

159
Incluso achará V. Excia um ofício datado de 1º de março último, de Dire-
tor interino da colônia Leopoldina, em que este faz considerações, que me
parecem atendíveis, sobre o intento de mandar índios daquela colônia
para o Exército. V. Excia. se dignará dizer-me o que julga conveniente
responder aquele diretor. Rogo a V. Excia a devolução desse ofício para ser
arquivado nessa diretoria34. (Grifo nosso)

Contudo, os documentos relatam situações de descontentamento dos


Diretores parciais dos indígenas, quanto ao alistamento dos índios de sua
parcial direção, ao corpo de voluntários, em situações onde os trabalhos
agrícolas das colônias e diretorias indígenas do Maranhão provincial, se-
gundo eles, ficariam comprometidos e interrompidos com o envio dos sol-
dados indígenas aos campos de batalha. A exemplo, observa-se, então, as
ponderações feitas pelo Diretor Interino da Colônia Leopoldina, Lourenço
Antônio da Silva, ao Diretor Geral interino de índios da Província do Ma-
ranhão, acerca do envio de índios, da referida colônia, para reforçar o exér-
cito, o conteúdo do documento evidencia, a discordância do diretor quanto
ao recrutamento dos indígenas de sua parcial direção, visto que para ele, tal
alistamento traria prejuízos a colônia em termos de produção.

Illmo. Exmo. Snr. De posse de seu ofício sob data de 7 de fevereiro úl-
timo, vou responde-lo. Certa da necessidade que ocorre para reforçar o
nosso exército no Campo de Guerra com o Paraguai, e sobre que nutro
ardentes desejos nem só em angarias os índios de que trata V. Excia, como
mesmo em outra matéria relatei-o ao mesmo sentido; e então quanto aos
índios tenho de ponderar a V. Excia. que poderia conseguir remeter al-
gum número dali, porém ocorre que todos que seguir em para a guerra
que afinal não volte um só deles, e que por lá se acabem, visto que além
de irem para um país diferente deste vão também mandar de modo em
que estão acostumado em suas comidas e criação selvagem, e que assim
ocorrendo, como é provável, a não voltar dos que seguirem vem isso sacri-
ficar (para com a colônia em peso) os habitantes desta localidade, e com
especialidade, e autor de reduzi-los, para isso V. Excia. desculpará dizer-
-lhe que intina conveniente desistir-se de uma tal empresa, que pode ser
funesta para o futuro, e que muito pouco ou nada poderão estes índios
influir na guerra, visto que não há entre eles civilização alguma, no en-
tretanto se V. Senhoria entender pelo contrário (com suas novas ordens)
eu recorrerei aos meios será suasivos (sic), afim de conseguir angariar o

34. FERREIRA, Fernando Luíz. Ofício do Diretor Geral dos índios, em 16 de abril de 1868.

160
número que for possível por suas espontâneas vontades, e faze-los remeter
de conformidade com as ordens de V. Excia. reflexionando novamente
que se conseguir a remessa de alguns índios verá isso ser perniciosos a esta
localidade35. (Grifo nosso)

Nesse contexto, vejamos também, o que disse Dr. Francisco Maria


Correia de Sá e Benevides, Presidente da Província do Maranhão, a respei-
to da retirada de muitos braços válidos a lavoura, dentre eles braços indígenas
no período da Guerra do Paraguai.

Ao passo que a guerra, que teve o nosso governo de sustentar por longo
tempo contra o governo da república do Paraguay retirava d’aqui, com
destino ao exército, grande número de braços válidos, ia também a ex-
portação de escravos, que de há muito é feita em larga escala, privando os
estabelecimentos agrícolas desse elemento de vida , único, forçoso é con-
fessa-lo, que até hoje tem tido a grande lavoura entre nós36. (Grifo nosso)

Dado o exposto, pode-se, considerar que os documentos e os conteú-


dos dos mesmos até aqui analisados evidenciem a perspectiva indígena na
guerra com o Paraguai, tendo como conexão e imbricamento o contexto do
Maranhão Oitocentista, os quais apontam estratégias utilizadas pelo gover-
no no agenciamento indígena e nas vantagens que poderiam ser dadas pelo
Estado a esses soldados indígenas voluntários. A resistência por parte dos
diretores parciais de índios, tendo em vista os prejuízos que ocasionariam
as lavouras, pela diminuição dos braços úteis e sobretudo, pela incerteza do
retorno desses indígenas combatentes.

Considerações finais

Portanto, a documentação até aqui analisada, ainda não nos permite


conhecer precisamente e representativamente os resultados desse recruta-
mento e convocação de voluntários atinentes as populações indígenas do
Maranhão provincial. Os documentos até aqui analisados, não apontam
os resultados de tais convocações, o quantitativo de indígenas recrutados?
35. SILVA, Lourenço Antônio da. Ofício do Diretor Interino da Colônia Leopoldina, em 1
de março de 1868.
36. MARANHÃO, Relatório que o Exm. Sr. Dr. Francisco Maria Correia de Sá e Benevi-
des, Presidente da Província do Maranhão, apresentou à Assembleia legislativa provincial, em
12 de outubro de 1877. Maranhão: Typografia do Paiz de M.F.V Pires. 1877.

161
As retribuições dadas ao fim da guerra a esses voluntários e combatentes
soldados indígenas na província do Maranhão? E dado a resistência dos
diretores parciais dos indígenas, se teria ocorrido efetivamente tal envio,
ou por sua vez, o Governo provincial no Maranhão, teria recuado em
tais decisões? Do mais, se faz necessário a continuidade da pesquisa e
investigação, uma vez que, a busca de novas evidencias a partir de novos
documentos e referências, nos permite lançar novas luzes sobre o contexto
histórico delimitado para a análise.
Logo, ao buscar compreender de modo mais específico a participação
das populações indígenas das Colônias e Diretorias parciais de índios no
Maranhão Provincial e concomitantemente identificar como essas popu-
lações indígenas foram envolvidas na Guerra com o Paraguai, além dos
significados, impressões e representações produzidas por eles sobre o refe-
rido acontecimento, se faz pertinente, discorrer que depois de muito tem-
po de invisibilidade historiográfica, as populações indígenas na história do
Brasil do século XIX passaram a ser estudadas a partir de novos enfoques,
mostrando-se partícipes e protagonistas em diferentes momentos e movi-
mentos sociais e políticos (ALMEIDA, 2021). Visto que, Guerras, terra e
trabalho, são temas que associavam-se à questão indígena tão amplamente
debatida no século XIX.
Como bem afirmou Maria Regina Celestino de Almeida (2012, p.
22), no Brasil oitocentista, povos e indivíduos indígenas agiam e reagiam
diferentemente às múltiplas formas de aplicação da política para eles tra-
çada37. Do mais, é possível se perceber que estando as populações indí-
genas sujeitas a todo momento às estruturas formas de controle e domi-
nação, foram capazes de dar respostas criativas e desenvolverem táticas e
estratégias em seu cotidiano para driblá-las.

FONTE

MARANHÃO. Relatórios do Presidente da Província do Maranhão apre-


sentados à Assembleia Legislativa Provincial. Arquivo Público do Estado do
Maranhão (APEM).

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164
reunir para organizar o império:
“cidadãos” do maranhão na câmara
dos deputados

Mário Augusto Carvalho Bezerra1

Introdução

Em 1826 as relações políticas de Francisco Gonçalves Martins, João


Bráulio Muniz, Manoel Odorico Mendes e Manoel Telles da Silva Lobo
passaram do campo provincial para nível nacional, ocupando assento no
Parlamento em torno da defesa de interesses provinciais e nacionais do Bra-
sil autônomo. Eis a relação entre “centro e província” (DOLHNIKOFF,
2005, p. 80), elegendo a Constituição um elemento regulador das relações
internas e externas aos órgãos públicos.
Em São Luís, finalizadas as eleições provinciais em junho de 1825,
seguiram os deputados eleitos para o Rio de Janeiro com o propósito de
compor a bancada maranhense nos debates da Assembleia Geral de 1826.
Centro político misto – Câmara e Senado – na consolidação da organização
política-administrativa da nação, regido pelo Artigo 15, incisos 8º e 9º, de
“fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revoga-las” e, “promover o bem
geral da Nação”, instituídos pela Constituição de 1824. Exercício que cabe-
1. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Maranhão – PPGHIS/UFMA. Mestre em História pela Universidade Federal do Mara-
nhão (PPGHIS/UFMA). Especialista em Ensino de História do Brasil e Maranhão pelo
Instituto de Ensino Superior Franciscano (IESF). Graduado em História - Licenciatura pela
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Integrante do Núcleo de Estudos do Mara-
nhão Oitocentista (NEMO), da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Contato:
marioaugusto769@gmail.com
ria aos “novos” oficiais representantes políticos: o Imperador, os Deputados
e Senadores do Império.
Nessa perspectiva, Marcelo Galves e Yuri Costa destacam que após a
Independência “a produção legislativa foi tida como elemento que viabili-
zava o surgimento da própria nação” (GALVES; COSTA, 2011, p. 64),
transformando hábitos e costumes absolutistas na formação da cultura po-
lítica brasileira constitucional. Destacar os consensos e dissensos ao longo
das sessões possibilitam identificar o processo institucional de organização
do Estado quanto a participação ou ausência dos deputados do Maranhão.
Na discussão que segue, o foco de análise incide sobre o Poder Le-
gislativo, verificando o processo de instalação e execução das atividades
da Câmara dos Deputados com seus respectivos membros reunidos no
prédio da Cadeia Velha (Rio de Janeiro) – sede das deliberações dos par-
lamentares do Brasil, entre os quais estavam a bancada do Maranhão com
quatro representantes.
Enquanto órgão de reunião dos representantes das elites políticas das
províncias brasileiras, a Câmara dos Deputados foi composta em 1826
por Francisco Martins, Telles Lobo, Bráulio Muniz e Odorico Mendes
em diferentes níveis de frequência, articulação e desempenho político2.
Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar os des-
dobramentos de instalação, funcionamento e a dinamização da Câmara
dos Deputados como órgão expressivo da organização, administração e
conservação da unidade política do Império do Brasil. Sobre o Maranhão,
concentra-se em destacar pontos sobre a bancada de deputados eleitos em
São Luís no ano de 1825.
A discussão permeia o processo de instalação da Assembleia Geral
como órgão na nação brasileira, espaço de consolidação da unidade nacional
e responsável pela “guarda dos direitos dos cidadãos” (SLEMIAN, 2006,
p. 200), aspecto importante para compreender o papel e função da Câmara,
enquanto espaço de redes de sociabilidades políticas.
Mais do que governar, o Parlamento buscou a interação entre as elites
dirigentes com objetivo de pactuar uma unidade política entre as próximas
e longínquas províncias com o centro administrativo de poder concentrado
no Rio de Janeiro, possibilitando o aumento das redes de sociabilidades. De
acordo com a historiadora Miriam Dolhnikoff:
2. Os deputados eleitos na província do Maranhão passaram pela Universidade de Coimbra
em diferentes períodos, possuindo em comum a formação em Direito.

166
A construção do Estado nacional na primeira metade do século XIX foi
marcada pelo debate entre diferentes projetos que refletiam a diversidade
de interesses e de concepções da elite dirigente. A América lusitana emer-
gia do período colonial como um conjunto de regiões distintas, cuja uni-
dade não estava dada e foi construída ao longo do século XIX. Não seria
fácil acomodar em uma mesma nação territórios tão distintos, com poucos
laços de interação e cujas elites apresentavam demandas muitas vezes con-
traditórias entre si (DOLHNIKOFF, 2005, p. 23-24).

Portanto, para a construção do Estado brasileiro a partir da represen-


tação política da bancada maranhense na Assembleia Geral, é necessário
analisar os debates políticos na relação centro-província, desde a organiza-
ção e composição dos órgãos oficiais de governo, as sessões preparatórias da
Câmara legislativa, seguidas das ordinárias e extraordinárias.
Quanto a atuação dos deputados, é necessário um trabalho minucioso
destacando seus pontos de vistas durante o exercício parlamentar tanto para
a nação, quanto a província que representava. Em geral, os debates legisla-
tivos da Câmara “possibilitaram a grupos minoritários ou provenientes de
províncias distantes que vocalizassem institucionalmente suas demandas e
descontentamentos, estimulando a ratificação de sua adesão ao Império”
(NUNES, 2010, p. 11).

Os Anais e as sessões parlamentares

Espaço da representação nacional do Império, o funcionamento do


Parlamento brasileiro deixou registros importantes referentes ao controle e
administração das elites na nova “nação”. Nesse sentido, nos Anais, o proje-
to de Estado nacional do Brasil, em elaboração desde a Assembleia Consti-
tuinte de 1823, ganhava bases sólidas durante o estabelecimento da ordem
e disciplina na criação das leis regulamentares na Câmara dos Deputados.
A essência dos Anais é a intensa movimentação da presença, participação e
atuação política dos deputados.
O historiador Carlos Bacellar chama atenção para essa tipologia de
fonte histórica nas abordagens sociais, onde “os arquivos do Poder Legis-
lativo são importantes, mas a ausência de instituições arquivísticas organi-
zadas e preparadas para abri-los à consulta pública não tem inspirado os
historiadores a melhor explorá-los” (BACELLAR, 2010, p. 34).

167
A digitalização e disponibilidade de fontes históricas é crescente nos
dias atuais. Os Anais, Diários e outras documentações da Câmara dos De-
putados fazem parte do processo de virtualização. No site da Câmara é
possível abrir, ler e fazer download de arquivos para análise. Na página da
Hemeroteca Digital Brasileira é disponibilizado com a denominação Anais
do Parlamento Brasileiro, por Tomos, reunidos em legislaturas, com melhor
qualidade na digitalização, estado de conservação, sequência cronológica e
filtros de pesquisa por nomes ou termos.
Os registros sobre o Parlamento brasileiro iniciam com as sessões pre-
paratórias, período das apresentações de demandas internas, análise de di-
plomas dos deputados eleitos, composição de comissões da Câmara, além
de emissão e leitura pareceres das eleições realizadas nas províncias, re-
cepção de deputados para tomada de assento e medidas necessárias para a
instalação e abertura das sessões legislativas com a presença do Imperador.
Datas e horários de início e término das sessões, relação nominal dos
presidentes de mesa, secretários e membros de comissão, quantidade de
deputados presentes, ausentes e daqueles que apresentaram justificativa de
falta, são elementos que contribuem no acompanhamento dos debates.
Quanto aos discursos parlamentares da casa – fundamentais para ana-
lisar as defesas de pontos de vista – são destacados pareceres, projetos de lei,
ofícios, resoluções, emendas, indicações, propostas, aditamentos, relatórios
de comissões, artigos e declarações de votos. Além de querelas enviadas ao
Parlamento por distintos “cidadãos”, direito estabelecido pelo Artigo 179º,
inciso 30 da Constituição de 1824, em que “todo o cidadão poderá apresen-
tar por escrito ao Poder Legislativo e ao Executivo reclamações, queixas ou
petições”. Nessa perspectiva,

O processo desencadeado a partir da instalação da Assembleia Constituin-


te e o que se seguiria na abertura do Parlamento, em 1826, além de repre-
sentar um período singular devido à criação e funcionamento do sistema
parlamentar, trouxe consigo um movimento de participação de setores so-
ciais junto àquela instituição (PEREIRA, 2008, p. 228).

As sessões diárias eram divididas em “partes do dia”, podendo chegar


até quatro partes em único dia, ou seja, dependendo da quantidade de
leituras de projetos, emendas, artigos que eram apresentados, discutidos,
aprovados ou reprovados por votação de cada deputado. Cabe ressaltar

168
que o acúmulo de leituras e discussão de projetos contribuíam para o atra-
so das sessões.
O insuficiente número de deputados para a abertura das sessões pre-
paratórias e deliberativas do Parlamento, acarretava a prorrogação das
pendências. No encerramento de cada sessão, o presidente da casa decla-
rava a “ordem do dia”, isto é, dos debates que seguiam na próxima sessão.
As sessões parlamentares ocorriam no período de seis a oito meses
por ano, com quantidades mensais em diferentes porcentagens, desde a
abertura dos trabalhos legislativos em 1826 a 1829, com o encerramento
da primeira legislatura. Com 4.387 páginas de Anais, as referências rela-
cionadas ao Maranhão são relativamente “poucas”, quando exploradas nos
pronunciamentos dos deputados e alusões gerais à província, apresentan-
do volume maior nas participações discursivas de Manoel Odorico Men-
des. Os dois anos iniciais da primeira legislatura apresentam expressivas
participações de Telles Lobo, Francisco Martins e Bráulio Muniz.
Os pronunciamentos dos deputados do Maranhão variavam conforme
a quantidade de sessões por ano. Com a disponibilidade virtual do Índice
Onomásticos da Câmara dos Deputados (1826-1889), é possível localizar
as diferentes ações da bancada maranhense, acompanhadas na cronologia
dos Anais identificando as resoluções, aprovação e reprovação dos projetos
encaminhados à leitura e deliberações dos demais deputados3. As demandas
legislativas, as participações em Comissões Permanentes, Internas e em de-
putações possibilitam traçar a trajetória de atuação dentro do Parlamento.
Além de destacar atuações políticas de parlamentares no processo de
consolidação do Estado nacional brasileiro, os Anais possibilitam perceber
os hábitos, comportamentos e crenças adotadas nos regimentos internos
existentes ou que foram criados com o objetivo de organizar, disciplinar e
estruturar a unidade política do Império e das elites regionais que desdobra-
vam-se na manutenção da autoridade política residente no Rio de Janeiro.
A negação a formulas regimentais de nações estrangeiras, a formação
de leis próprias, a defesa dos interesses da pátria e das localidades de ori-
gens, a manutenção de redes de sociabilidades dentro e fora do “Soberano
Congresso”, e a legitimação do Poder Legislativo como soberano da nação

3. O Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados contém exemplar físico no Arquivo.


Tendo em vista a grande demanda de pesquisadores, o Arquivo decidiu digitalizar os 15
volumes disponibilizando-os na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados (http://bd.
camara.leg.br/bd/).

169
são pontos presentes nos Anais que estão diretamente relacionados com a
cultura política do período.

Assembleia Geral Legislativa do Império do Brasil:


“promover o bem da Nação”

Após a Independência, a província do Rio de Janeiro concentrou o


centro de autoridade política do Brasil, com a instalação de importantes
órgãos administrativos do Império, reunindo em seus recintos as elites po-
líticas das provinciais sob o pacto imperial com o Imperador na construção
e consolidação da unidade nacional em bases jurídicas legais. A pedagogia
liberal e constitucional do período atrelada a ideia de ordem, disciplina,
unidade e organização jurídica compreendiam a premissa central da cons-
trução do Estado a partir do Parlamento.
Instalada na efervescência da emancipação, a Assembleia Constituinte
de 1823 não obteve saldo positivo quanto a criação de uma Constituição
brasileira e organização institucional do Estado pelos deputados gerais,
“que representavam o que de mais expressivo havia na elite local e que, no
período de agravamento da crise política com Portugal, tinha se organizado
em torno da figura de D. Pedro” (CABRAL, 2015, p. 36). Mais tarde, a
quebra do equilíbrio político entre súditos e o monarca favoreceram as di-
vergências quanto a organização institucional do Brasil.
Em geral, resultou em dissensos políticos, limitação dos poderes de
D. Pedro e definição das atribuições do Executivo, culminando na dissolu-
ção da Assembleia e convocação do Conselho de Estado, que tinha como
função elaborar a Constituição com base nos debates das 148 sessões parla-
mentares4. Concluído em 11 de dezembro de 1823, o projeto constitucional
seguiu para as câmaras provinciais para aprovação, sendo jurada pelo mo-
narca em março de 1824. O conhecimento por parte das câmaras contribuía
4. Andrea Slemian destaca que dez homens de confiança de D. Pedro compuseram o Conse-
lho: João Severino Maciel da Costa, Luiz José de Carvalho e Mello, José Egídio Álvares de
Almeida (Barão de Santo Amaro), Antônio Luiz Pereira da Cunha, Manoel Jacinto Noguei-
ra da Gama, José Joaquim Carneiro de Campos, Clemente Ferreira França, Marianno José
Pereira da Fonseca, João Gomes da Silveira Mendonça e Francisco Villela Barboza (SLE-
MIAN, 2006, p. 121). Na Constituinte de 1823 foram apresentados 38 projetos de lei, 147
propostas; 238 pareceres dos deputados e comissões; dez comissões: Constituição, Leis Regu-
lamentares, Petições, Legislação, Justiça Civil e Criminal, Comércio, Agricultura, Indústria e
Artes, Marinha e Guerra, Instalação Pública, Eclesiástica, Estatística e Diplomática, e Saúde
Pública (CABRAL; ALVES, 2015, p. 56).

170
para acompanhar a fidelidade dos súditos do Império, principalmente das
províncias em que a resistência à adesão provocou intensa movimentação
política entre “portugueses” e “brasileiros”.
Resultado do processo de elaboração do constitucionalismo brasileiro
desde 1823, o nascimento do Parlamento brasileiro com a presença dos
membros das elites políticas e administrativas do Império, determinou o
início de novas estratégias políticas na consolidação da unidade nacional
(principalmente com as regiões mais longínquas do eixo Centro-Sul), da
soberania do Imperador e do “povo”.
A soberania popular ou do “povo”, exercia força nos rumos da cultura
política brasílica pós-independência e estava condicionada ao pacto exerci-
do entre os súditos e o Imperador, pois na visão de Odorico Mendes “S. M.
I. C. não padece dúvida que é legitimo soberano, porque, quanto cabe em
suas forças, busca aditar os Brasileiros, e governa por unanime aclamação
dos povos e por geral consentimento” (Argos da Lei, nº 17, 4/3/1825).
Para compreender a estruturação do Brasil imperial mediante o pro-
cesso de organização político-institucional, é necessário destacar as leis da
Constituição de 1824 e sua influência na composição da Assembleia Geral
Legislativa como centro de autoridade administrativa e política da nação,
ampliando o quadro institucional do Estado, com a representatividade das
províncias no arranjo político nacional, construindo um grupo político coe-
so com a unidade do Império.
Se por um lado o Parlamento brasileiro, em seus primeiros passos, re-
unia um conjunto de cidadãos para pensar a estrutura administrativa do
Império, por outro envolveu a defesa de interesses particulares, em razão
das diferentes potencialidades que continha cada região naquele período
e da manutenção das relações de sociabilidades criadas em benefício das
futuras eleições para o Congresso. Portanto, desde a província até a cadeira
parlamentar, a força e o poder político estavam relacionados com as redes
de sociabilidades tecidas entre as elites do centro – autoridade política no
Rio de Janeiro – e as províncias.
Na Câmara, o exercício parlamentar no quadriênio de 1826 a 1829,
configurou a consolidação da promulgação da Constituição; a operaciona-
lização das medidas expressas no texto constitucional; a reunião de alguns
cidadãos com experiências parlamentares desde as Cortes portuguesas e
Constituinte brasileira; e, atuação de cidadãos eleitos por grupos políticos
províncias para a primeira experiência de representação política. Tal como

171
havia sido estabelecido em 1821 nas Cortes Extraordinárias portuguesas e
no Brasil pós-independência desde 1823,

O papel do Parlamento como lugar dos “representantes da nação”, era, à


época, um dos pilares de uma verdadeira crença liberal de que a raciona-
lização das formas de funcionamento dos governos poderia atender aos
interesses dos indivíduos na composição de uma sociedade que igualasse
os homens perante a lei (SLEMIAN, 2006, p. 14-15).

O momento de instalação da Assembleia como espaço representativo


e de participação política constituía a fixação institucional da nação, pau-
tada na liturgia política liberal propagada no Brasil com ecos da Revolução
do Porto (1820). Para isso, quatro poderes políticos foram estabelecidos
pela Constituição brasileira de 1824 – o Poder Legislativo, formado pela
composição e instalação da Assembleia Geral em duas casas: Câmara ele-
tiva e Senado vitalício; o Executivo (com amplos poderes, exercido pelos
ministros de Estado chefiado pelo Imperador); Moderador (concentrado
na figura do Imperador) e o Judiciário – poder independente, composto de
juízes e jurados.
Por ela foram também definidos os princípios básicos que nortearam
o exercício de cada um. Ao Poder Legislativo foi atribuído à composição e
instalação da Assembleia Geral, havendo a sanção do Imperador para seu
devido funcionamento durante as legislaturas com duração de quatro anos.
Nesse sentido, cabia ao Poder Moderador, por meio do Imperador,
exercer influências ou revogação de resoluções deliberadas na Câmara dos
Deputados, “para que incessantemente vele sobre a manutenção da Inde-
pendência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos” (BRASIL,
Constituição, 1824, art. 98). Tal discussão evidenciou a questão da sobera-
nia do Parlamento, pois a sanção real “não apenas conferia ao imperador o
controle sobre as decisões do Legislativo, mas limitava a soberania popular”
(CABRAL, 2015, p. 50).
Subordinada, a “liberdade” deliberativa e resolutiva da Câmara depen-
dia dos interesses entre o Senado e o Imperador. Desse modo, cabia ao
Senado “frear os abusos e radicalismos que poderiam estar presentes entre
os deputados” (SLEMIAN, 2006, p. 123).
Ao Poder Legislativo, o Capítulo 1º do Título 4ª da Constituição, regia
que à Assembleia Geral competia tomar o juramento ao Imperador, assim

172
como determinado aos súditos provinciais natos ou àqueles naturalizados
no pós-independência; eleger o Regente e marcar os limites do exercício
da autoridade na nação, submetendo a atuação do monarca às observações
e avaliação da Câmara e do Senado, instituindo o exame da administração
quanto aos abusos cometidos; fazer leis, ponto maior para a consolidação
da unidade nacional no processo de organização social; conceder ou negar
a entrada de forças estrangeiras de terra e mar dentro do Império ou dos
portos, com intuito de limitar, principalmente o “elemento português” no
Brasil; e regulamentar a administração dos bens nacionais, atentando para
as riquezas produzidas por cada província e as advindas dos impostos con-
centrados no Rio de Janeiro.
Eletiva, temporária e renovada a cada quatro anos, podendo ser reeleito
os parlamentares por meio de novas eleições provinciais, cabia à Câmara
dos Deputados legislar sobre regras e procedimentos dos impostos; recru-
tamentos e escola de nova dinastia para compor a esfera do poder real do
sistema monárquico vigente pela Constituição.
Além disso, exercia o exame da administração passada com o objeti-
vo de verificar suas violações – atividade realizada com a criação de uma
comissão que entre os membros estava o deputado do Maranhão Manoel
Odorico Mendes; a discussão das propostas oriundas do Poder Executivo;
e, a realização de acusações – a partir de apuração e comprovações – dos
ministros e conselheiros de Estado.
Após a convocação dos deputados eleitos para compor a Assembleia
Geral Legislativa, ocorreu em 29 de abril de 1826, às nove horas da manhã,
a primeira das sete sessões preparatórias da Câmara que definiram os regi-
mentos iniciais dos trabalhos legislativos da casa. As sessões preparatórias
antecediam a abertura das legislaturas, onde discutiam dentre várias temáti-
cas básicas de organização da casa, a composição do Regimento Interno da
Câmara dos Deputados – estabelecido durante o funcionamento da antiga
Assembleia que vigorou até a legislatura de 1830.
Oficialmente, a abertura da Assembleia Geral ocorreu em 6 de maio
de 1826 com presença conjunta de alguns deputados, senadores e o Impe-
rador, reunidos ao meio-dia na casa do Senado. No discurso do Imperador,
legitimou o projeto constitucional do Brasil, pois “a harmonia que se pode
desejar entre os poderes políticos, transluz nesta Constituição do melhor
modo possível”, e alertou para o dever da Assembleia em:

173
Merecer-vos sumo cuidado a educação da mocidade de ambos os sexos, a
fazenda pública, todos os mais estabelecimentos públicos, e primeiramente
a fartura de leis regulamentares, assim como a abolição de outras direta-
mente opostas à Constituição; para por esta nos podermos guiar e regular
exatamente (ANAIS, Tomo I, 8/5/1826).

O pronunciamento oficial evidenciava a importância da Constituição


como instrumento de consolidação e unificação do Império em que os há-
bitos e comportamentos políticos constituíam aspecto singular da cultura
política brasílica. Além do mais, deixa claro que o exercício dos deputados e
senadores era a criação de leis nacionais, ponto chave do processo de orga-
nização institucional do Estado brasileiro com o funcionamento de ambas
as casas parlamentares.

A dinâmica de funcionamento da Câmara dos Deputados

Reunidas as câmaras, tanto na abertura quanto no encerramento dos


trabalhos legislativos, o Presidente do Senado possuía a função de dirigir
as atividades do cerimonial, com a presença dos demais senadores e de-
putados. As atividades iniciais dos parlamentares pautavam-se no estabe-
lecimento da ordem interna, ou seja, na determinação do regimento que
nortearia o exercício e funcionamento do Parlamento durante as sessões
ordinárias e extraordinárias.
A instalação da Assembleia Geral sofreu alteração em relação à data
instituída no Artigo 18º da Constituição, determinando que a “Sessão Im-
perial de abertura será todos os anos, no dia três de maio”. O adiamento foi
motivado pelo não preenchimento da Câmara por seus membros, demora
na comunicação com o Senado – ambas as casas parlamentares determi-
navam os preparativos e ritos do cerimonial –, e número insuficiente de
parlamentares previsto na Constituição.
O episódio levou a participação de Odorico Mendes destacando as re-
lações íntimas que deveriam tecer a Câmara dos Deputados e o Senado, po-
rém dirigiu seu ponto de vista para que ambas as casas tomassem medidas
próprias para a abertura oficial da Assembleia.

Sr. Odorico Mendes: que se aproveita ao Senado o ter já o número mar-


cado pela Constituição. Para que ele se possa dizer completo, é mister que
o esteja também a Câmara dos Deputados: são intimas as relações destes

174
dois corpos. Quer o Senado tenha a metade, e mais um dos seus membros,
quer não tenha, é sempre incompetente para deliberar, enquanto esta Câ-
mara permanecer sem o número legal. Quanto, porém aos trabalhos pre-
paratórios, creio que ambas as Câmaras podem tomar medidas necessárias
para a abertura da Assembleia Geral, sem embargo de não estarem ainda
com metade e mais um de seus membros respectivos (Apoiados) (ANAIS,
1/5/1826, p. 12, grifo do autor).

Por meio de ofício enviado ao Imperador, o pedido de prorrogação


foi realizado pelo primeiro secretário da Câmara, José Feliciano Fernandes
Pinheiro em 1 de maio, sendo consentido pelo monarca, devendo a Câmara
dos Deputados continuar com os seus trabalhos preparatórios, até que haja
o número de deputados determinado pela Constituição.
Na sessão preparatória datada de 5 de maio, véspera da sanção Im-
perial, os debates da Câmara concentravam-se nos procedimentos quanto
o cerimonial que seria adotado. O deputado da província de Minas Ge-
rais, Cezário de Miranda, procurando reduzir as discussões destacou que
“falta-nos tempo para longas discussões, a Assembleia deve instalar-se no
sábado. Meu parecer é que não gastemos mais tempo em disputas acerca
do cerimonial de que se trata: adotemo-lo”. Conclui o pronunciamento so-
licitando aos parlamentares presentes que “não proceda de nós, senhores,
que se prorrogue esta instalação tão desejada pela nação em geral” (ANAIS,
5/5/1826, p. 22). De 1827 a 1829, as aberturas oficiais das sessões ordiná-
rias anuais seguiram a determinação da Constituição.
As sessões preparatórias ordinárias ocorreram anualmente, com alguns
períodos iguais. Em 1829, as reuniões preparatórias foram realizadas so-
mente durante as sessões extraordinárias, que precederam a instalação da
Assembleia em 3 de maio. Em 1826, foram realizadas sete sessões, com
início das sessões ordinárias em 8 de maio – data da primeira eleição da Câ-
mara em que saíram eleitos os deputados do Rio de Janeiro Luís Pereira da
Nóbrega de Souza Coutinho para presidente com total de 35 votos; e, José
de Souza Azevedo Pizarro e Araújo para vice-presidente em segundo es-
crutínio com 34 votos, seguindo na presidência da mesa até 6 de setembro,
data de encerramento dos trabalhos legislativos em 1826. Em 1827 e 1828,
houveram seis e cinco encontros preparatórios, respectivamente.
Após a realização da chamada nominal dos parlamentares, cabia ao
presidente da mesa contabilizar o número de membros presentes para de-
clarar aberta, adiada ou cancelada a sessão. Quando aberta, iniciava às 10

175
horas da manhã com duração de quatro horas “sucessivas em todos os dias,
que não forem domingos, dias santos e de festas nacionais”. Na maioria das
sessões ordinárias, seguiam até às 15 horas – levando em consideração o
teor, ânimos das discussões, prolongamentos dos pronunciamentos, vota-
ções e resoluções.
O tempo diário de cada sessão era instável, necessitando em algumas
vezes, da interrupção do presidente para o “levantamento/suspensão” da
sessão. Com a ampliação do conceito de cidadão instituído pela Consti-
tuição, o Regimento determinava que as sessões poderiam ser assistidas
por “cidadãos” e estrangeiros desarmados, permanecendo-os em silêncio
“sem dar o mais pequeno sinal de aplauso ou reprovação do que se passar
na Câmara”.
O Regimento Interno da Câmara estabelecia que a abertura das ses-
sões deveria conter cinquenta e um deputados presentes, em consonância
com o Artigo 23º da Constituição em que “não se poderá celebrar sessão
em cada uma das câmaras sem que esteja reunida a metade e mais um dos
seus respectivos membros”. Nesse sentido, vale lembrar que o decreto de
26 de março de 1824 determinou a quantidade de 102 parlamentares para
a Câmara dos Deputados.
O presidente e vice-presidente de mesa possuíam a função de organi-
zar, dirigir e comandar as sessões preparatórias, ordinárias e extraordinárias;
declaração de abertura, autorizar e barrar pronunciamentos, votações e re-
soluções da casa. Na ausência do presidente, assumia a mesa o vice para as
mesmas ocupações. Além desses, eram eleitos os secretários encarregados
de reunir ofícios, pareceres, indicações, emendas e documentações enca-
minhadas ao Parlamento para leitura e conhecimento dos deputados para
deliberações. Pelas regras do regimento, o presidente era vetado a “oferecer
projeto, ou indicação, nem discutir, e votar, estando na presidência” (PA-
CHECO; RICCI, 2017, p. 130).
As eleições eram realizadas separadamente por escrutínios à pluralida-
de absoluta de votos, elegendo primeiro o presidente, depois o vice, quatro
secretários efetivos e dois suplentes, pois “para suprir a falta dos Secretá-
rios haverá dois Secretários Suplentes”, conforme o Regimento Interno de
1826. Em caso de empate ou proximidade da quantidade de votos entre
dois parlamentares, realizava-se um novo escrutínio. Os membros eleitos
ocupavam o cargo com duração de um mês, “mas poderão ser reeleitos”
como determinava o Regimento Interno.

176
As sucessivas eleições da mesa ocorriam a cada início dos meses. Ao
longo da primeira legislatura, a presidência da mesa da Câmara não foi
ocupada pelos deputados da bancada do Maranhão. Em 3 de julho de 1828,
saiu eleito para secretário suplente da Câmara o deputado pelo Maranhão
Francisco Gonçalves Martins com total de 17 votos, juntamente com Mi-
guel Calmon Du Pin e Almeida, deputado da Bahia, com 8 votos.
Reeleito em 4 de maio de 1829, Miguel Calmon ficou como segundo
suplente (18 votos) e João Bráulio Muniz – deputado do Maranhão – em
primeiro (19 votos), durante as sessões extraordinárias da Câmara. Em
geral, foi a única participação de Francisco Martins e Bráulio Muniz em
eleições internas. Quanto a Telles Lobo e Odorico Mendes, ambos não ti-
veram participação nas composições da mesa durante a primeira legislatura.
Diante da estrutura de poder criada na Câmara, dois fatores contri-
buíram para a ausência da bancada do Maranhão nas presidências da mesa:
1- por se tratar de membros eleitos em província geograficamente distante
da Corte imperial e recém incorporada no Império; 2- restrição, determi-
nada no Regimento Interno, a criação e apresentação de projetos e medidas
pontuais para o Maranhão enquanto eleito presidente ou vice da mesa.
Telles Lobo sequer foi membro das Comissões Permanentes criadas
pelo Regimento Interno de 1826, que eram: da Guarda da Constituição;
de Legislação, Justiça Civil e Criminal; da Estatística e Diplomática; da
Maranha e Guerra; de Fazenda; do Comércio, Agricultura, Indústria e Ar-
tes; da Instrução Pública; da Saúde Pública; da Colonização, Catequese
e Civilização dos Índios; das Minas e Bosques; da Redação das Leis; de
Petições; da Polícia e Inspeção da Casa. Todas deveriam conter de três até
sete membros, sendo vetada a participação dos deputados em mais de duas
comissões citadas, conforme o Regimento.
Outras comissões eram criadas mediante a necessidade interna da
Câmara, podendo ser a composição de deputação junto ao Imperador ou
Senado; Comissão para redigir e organizar e publicar os Diários da Câ-
mara, que contou com expressiva atuação de Odorico Mendes – eram as
chamadas Comissões Interiores5.
Na primeira legislatura foram realizadas 19 eleições para compor as
mesas dirigentes da Câmara dos Deputados. Entre as bancadas presentes,

5. Quanto a falta ou impedimento de algum parlamentar na composição de uma Comissão,


cabia ao Presidente da sessão nomear outro parlamentar, sucessivamente, como instruía o
Regimento Interno de 1826.

177
ocuparam com maior frequência o assento da presidência os parlamen-
tares do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
Com maiores quantidades de deputados eleitos em comparação com as
outras províncias, as bancadas citadas possuíram alta participação quanto
a apresentação de projetos, indicações e emendas durantes as resoluções
da Câmara6.
Em 1827, ocuparam continuamente o assento presidencial da casa
o deputado pernambucano Pedro Araújo Lima, com vice-presidência do
deputado da Bahia, José da Costa Carvalho. De acordo com André Ma-
chado os “representantes eleitos pelas províncias mais integradas à Corte,
como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas e Bahia, tentaram impor aos de-
mais a ideia de que deveriam ser propostas leis gerais, que pensassem a
nação como um todo” (MACHADO, 2009, p. 82), e não a particularida-
de provincial, presente na atuação de Francisco Martins, Bráulio Muniz,
Odorico Mendes e Telles Lobo ao propor projetos e indicações incluindo
benefícios ao Maranhão, durante a primeira legislatura7.
Quando não encaminhavam propostas à mesa, procuravam ampliar os
pedidos solicitados por parlamentares de outras bancadas. A aprovação de
resoluções da Câmara para “âmbito nacional” pelas bancadas ligadas ao Rio
de Janeiro, contribuía no processo de unidade do Império, principalmente
entre as elites políticas, que por meio da oralidade e capacidade discursiva,
argumentavam seus pontos de vistas com o objetivo de obter apoio dos
parlamentares presentes.
Apenas o Arcebispo da Bahia e deputado pelo Pará, Romualdo Antô-
nio de Seixas, atuou brevemente na presidência de 3 de julho a 2 de agosto
de 1828 – eleição marcada por protesto dos demais membros em razão da
elevada falta de votos dos deputados presentes no salão deliberativo da Câ-
mara. Machado destaca que “manobras regimentais foram realizadas para
tentar invalidar sua nomeação” (MACHADO, 2009, p. 89). Provavelmen-
te, a entrada de Seixas na presidência expressaria a “união” das bancadas
distantes da Corte, como o Pará e Maranhão, que mantinha intensa ligação
quanto aos benefícios locais.

6. A província de Minas Gerais elegeu 20 deputados; em Pernambuco foram eleitos 15; Rio
de Janeiro e São Paulo elegeram, cada uma, 10 parlamentares.
7. Diversas propostas de leis e projetos atravessaram as legislaturas da Câmara, pois não eram
discutidas durante as sessões por esgotamento de tempo, suspensão/levantamento ou cancela-
mento da sessão, adiamento da leitura, discussão e votação.

178
Durante todas as sessões extraordinárias e ordinárias de 1829, o depu-
tado Pedro de Araújo Lima dirigiu a casa, tendo como vice-presidente o
deputado José Carlos Pereira de Almeida Torres, representante de Minas
Gerais. Conduzindo o último ano da primeira legislatura, as deliberações
seguiram com baixa participação dos deputados do Maranhão, como desta-
cadas entre as 118 sessões daquele ano.

Considerações finais

Compondo a unidade imperial Império do Brasil, o Maranhão partici-


pou das sessões agitadas do Parlamento com quatro personalidades influen-
tes e pertencentes, direta ou indiretamente, aos grupos de elites da provín-
cia. Eram “cidadãos” que possuíam características em comum aos outros
parlamentares, a saber: a trajetória de formação intelectual em Coimbra;
atuação em cargos públicos; participação nos consensos e divergências po-
líticas entre as elites provinciais; influência e apoio do poder econômico de
famílias tradicionais para escolha de cidadãos ao Parlamento.
A Constituição de 1824 constituiu naquele período o elemento central
do estabelecimento da ordem, disciplina e garantia da liberdade social pe-
rante a lei. A Assembleia Geral Legislativa do Império do Brasil, formada
pelo Senado e Câmara dos Deputados e por diferentes cidadãos das mais
longínquas províncias funcionou como um dos órgãos da nação para a re-
solução de problemas, principalmente da manutenção da unidade nacional
e resistência à Constituição.
Mais do que reunir “representantes da nação”, a Assembleia Geral em
sua primeira legislatura operou com soberania, expressou fundamentais de-
bates sobre a organização institucional do Estado, colocou em prática a
integração real de territórios brasileiros aderentes ao pacto imperial, ou seja,
pôs em funcionamento o projeto de “nação constitucional”, deliberando re-
gras e normas para o funcionamento das casas legislativas.
Os primeiros quatro anos da Câmara serviram para estruturar e esten-
der as redes de relações políticas entre elites distantes do centro de poder do
Império. Em geral, campo de disputa política onde o bom discurso instituía
resistência ou apoio parlamentar.

179
REFERÊNCIAS

Documentos

a) Manuscritos
- Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados (Brasil):
Anais da Assembleia Geral Legislativa do Império do Brasil (1826-1829);
Constituição Política do Império de 1824;
Decreto imperial de 26 de março de 1824;
Índice Onomástico dos Anais da Câmara dos Deputados (1826-1889) –
(1978));

b) Periódicos (impressos)
(O) Argos da Lei (MA) – 1825.

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formação do Brasil (1822-1834). 339f. Tese de Doutorado – Programa de
Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. 2006.

181
“não podemos mais tolerar uma polícia feita
no improviso”: história da historiografia da
polícia e uma conexão entre europa e brasil
durante a primeira república (1889-1930)

Paulo Henrique Matos de Jesus1

Trazendo o objeto à luz

São Luís havia mudado e àquela altura já contava com uma vida boêmia
que avançava pela madrugada, alertava em 1914, Alcides Pereira, chefe da
Polícia do estado do Maranhão, cobrando do governo estadual providências
no sentido de modernizar os aparatos de policiamento locais, substituin-
do as velhas práticas empíricas por modernas técnicas científicas, a fim de
melhor combater pessoas que poderiam possivelmente representar amea-
ça à ordem pública (PEREIRA, 1914 apud BARROS FILHO, 2013). O
delegado Gabriel Rebelo, em 1918, elenca que as atribuições da polícia
civil “moderna” eram a investigação, o estudo e averiguação dos compor-
tamentos suspeitos, sempre dentro de critérios jurídicos e cientificamente
embasados (REBELO 1918 apud BARROS FILHO, 2013). Os saberes,
práticas e técnicas modernos acima mencionados começaram a ser adotados
em diversos países da Europa desde meados do século XIX, atravessando o
oceano e alcançando o Brasil – não apenas como parte do discurso civiliza-

1. Graduado, mestre e Doutorando em História pelo Programa de pós graduação em História


da Universidade Federal do Maranhão (PPGHis-UFMA); Bolsista CAPES Pesquisador do
Grupo de Pesquisa CNPq em Poderes e Instituições, Mundos do Trabalho e Ideias Políticas
(POLIMT), ligado ao PPGHis-UFMA; Dedica-se à pesquisa em História Social do Crime,
Aparatos de Policiamento e Segurança Pública.
tório e modernizador que ganhou reforço com as ideias positivistas – com
a chegada em grandes levas de imigrantes oriundos dos mais diversos paí-
ses da Europa e América Latina, entre eles alguns com considerável ficha
criminal em seus países de origem. O Maranhão, embora não tenha sido
o destino da maioria esmagadora de tais imigrantes, também aderiu a essa
sanha modernizadora.
Assim, o presente artigo é parte de um roteiro inicial de pesquisa de
doutorado e se divide em duas partes. Primeiramente, se propõe a apresentar
o tema e o objeto de pesquisa, bem como seus argumentos iniciais, objeti-
vos, hipóteses, fontes e metodologia de análise, trazendo como possibilida-
de mais abrangente a busca pelo esquadrinhamento da circulação transna-
cional de saberes, práticas e técnicas de policiamento em uma conexão entre
a Europa e o Brasil na Primeira República (1889-1930), analisando mais
especificamente as relações existentes entre a produção de técnicas policiais
europeias científicas e seu intercâmbio com o estado do Maranhão. Tendo
como objeto de pesquisa ainda mais específico a forma como se estrutura-
va o policiamento militar (preventivo e ostensivo) e civil (investigativo ou
administrativo) na urbe ludovicense durante a Primeira República (1889-
1930) no que concerne ao recrutamento, treinamento, comportamento dos
policiais, imposição da disciplina e hierarquia e rotina de trabalho. Faz-se
necessário o exame do posicionamento do Maranhão frente ao avanço dos
saberes e práticas de policiamento mais técnicos e dotados de cientificidade
oriundos da Europa e dos demais estados brasileiros e as demandas pela
substituição do policiamento empírico por um policiamento científico. Em
seguida será realizado um balanço daquilo que pode ser convencionalmente
chamado de “História da Historiografia sobre a Polícia” em breve intersec-
ção teórica com alguns autores lidos e discutidos na disciplina obrigatória
do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do
Maranhão (PPGHis-UFMA). Entre eles: Carlo Ginzburg (1991), Roger
Chartier (2010), E. P. Thompson (1981), Michel Foucault (1996), Lynn
Hunt (1992) e Michel Certeau (1994).
Partindo da perspectiva da História Transnacional desenvolveu-se
uma primeira hipótese norteadora e muito cara a este trabalho a ideia de
que novos saberes e práticas foram assimilados por membros da cúpula da
polícia maranhense que frequentaram a Faculdade de Direito do Recife
que, por sua vez foram fortemente influenciados pelo pensamento crimino-
lógico positivista Europeu. Entre os anos 1914 e 1917 quatro entre cinco

184
integrantes da cúpula policial maranhense eram oriundos da “Academia de
Recife”. Eram eles: Alcides Jansen Serra Lima Pereira, Chefe de Polícia em
1914; Raimundo Leôncio Rodrigues, Secretário de Justiça e Segurança en-
tre os anos de 1915 e 1917; Gabriel Antônio Rebelo; 1º Delegado Auxiliar
da Capital entre os anos de 1915 e 1917; Joaquim Mariano Nogueira Coe-
lho, Delegado-Geral da Capital entre os anos de 1915 e 1917. (BARROS
FILHO, 2013). Isso leva a crer que ao atuarem em cargos da segurança
pública estadual de forma mais ou menos simultânea teriam compartilha-
do dos mesmos princípios criminológicos e também de saberes, práticas e
técnicas de policiamento. Estes indivíduos, devido sua posição de destaque,
acabaram por consolidar a tese de que era urgente ao estado do Maranhão
e, em especial, à capital maranhense imediatamente se enquadrassem nos
moldes de uma polícia dita moderna.
Assim, na junção entre a busca por um saber policial técnico e a es-
trutura burocrática do Estado, a circulação transnacional de padrões de
policiamento possibilita levantar outra hipótese essencial e igualmente
norteadora da presente pesquisa que pode se desdobrar em duas possibi-
lidades analíticas.
Primeiramente, a de que o fluxo global de técnicas investigativas,
métodos de identificação de criminosos, procedimentos policiais preven-
tivos e ostensivos, não se encaixa como uma mera transferência de mo-
delos de um centro produtor para uma periferia receptora. Desta forma
esses deslocamentos, ao serem analisados pela interpretação da História
transnacional, apresentam indícios de que não se limitam a motivações
entusiasmadas modernizantes de uma elite burocrática policial do Mara-
nhão que se restringe a copiar modelos de outros países ou estados, mas
representam a intenção em elaborar estratégias de colaboração mútua e
solidificar estruturas de transferência de dados e conhecimentos entre os
aparatos de policiamento, seja em uma dimensão internacional, nacional
ou, de forma mais reduzida, regional.
As fontes utilizadas neste trabalho foram classificadas e organizadas da
seguinte maneira: fontes documentais produzidas tanto pelo Poder Execu-
tivo (ofícios, requerimentos, documentos produzidos pela polícia) quanto
pelo Poder Legislativo (Atas das sessões parlamentares) e fontes documen-
tais jornalísticas, buscadas em artigos que circularam na imprensa local em
torno da temática dos usos e costumes da cidade de São Luís e da seguran-
ça pública durante a Primeira República (1889-1930). Tal documentação

185
produzida pelos Poderes Executivo e Legislativo está disponível, sobretudo,
no Arquivo Público do Estado do Maranhão, mas também no Arquivo
Geral da Polícia Militar do Maranhão, Arquivo Judiciário do Estado do
Maranhão, Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão e
Arquivo de Jornais da Biblioteca Pública Benedito Leite.

Por uma história e historiografia da polícia: debate teórico preliminar

Dado que é pouco usual entre os historiadores observar o percurso teó-


rico de sua prática epistemológica (GINZBURG, [1989]). e que é fun-
damental distingui-la da narrativa literária ficcional (CHARTIER, 2010)
considera-se necessária, ainda que breve, a apresentação de uma espécie
de balanço do que pode ser convencionalmente chamado de “História da
Historiografia da Polícia”. Nesse sentido as atribuições das instituições po-
liciais estimularam pesquisas acadêmicas em diversos campos das ciências
humanas e sociais, primeiramente na Europa e Estados Unidos, a partir da
década de 1960.
Entretanto, esse novo objeto historiográfico tomava forma ainda de
maneira muito lenta e pautada em dois grandes esquemas explicativos. Essa
dualidade explicativa não implica necessariamente na inexistência de um
sentido ou “lógica”. Como escreveu E. P. Thompsom, a História possui
uma “lógica” que é sua e não havendo um processo experimental tal qual
existe nas Ciências Naturais, das quais a Física é o melhor exemplo, tam-
pouco analítico- demonstrativa, como é própria da Filosofia. O sentido ou a
“lógica” da História é mutável e varia conforme a dinâmica epistemológica,
o objeto e as perguntas feitas ao objeto. (THOMPSON, 1981, p. 48).
Por um lado, havia a perspectiva liberal que incluía a polícia como parte
das instituições do progresso moderno, sendo parte menor de um Estado
que se tornava cada vez melhor, mais racional e democrático. (REINER,
2004). Por outro lado, a partir de uma abordagem althusseriana, a polícia
era tratada como parte do aparelho repressivo do Estado ou da burguesia
opressora. Nessa perspectiva temos o estudo de David Bayley que, em sua
análise sobre a formação e os modos de operação das polícias contemporâ-
neas da França, Noruega, Estados Unidos e Grã-Bretanha, percebe nelas
uma ação muito mais voltada para atender as necessidades de segurança das
elites que da sociedade em geral. Além de sua função como instrumento de
controle social. (BAYLEY, 2006).

186
Na passagem da década de 1960 para a de 1970 emergem duas críti-
cas ao modelo interpretativo althusseriano que incluía a polícia como braço
armado do Estado e com funções naturais de repressão e imposição da lei
predominante até então. Eram elas as perspectivas thompsoniana e foucaul-
tiana. Em relação a Thompson, pode-se dizer que pertence a uma linhagem
de historiadores que passou a observar a “história vinda de baixo”, deixando
de lado os corriqueiros métodos da tradicional História Política, adotando
estratégias analíticas voltadas para o campo social e das experiencias indi-
viduais e coletivas das chamadas classes subalternas. (HUNT, 1992). Além
de suas análises sobre motins e de seu questionamento mais abrangente
às simplificações do estruturalismo marxista, também merecem destaque
seus estudos a respeito da lei como lugar da luta de classes e de ressaltar
a importância das experiências históricas coletivas ou individuais. A obra
de Thompson influenciou diversas pesquisas referentes a crime e práticas
ilegais populares, polícia e legislação criminal na Inglaterra setecentista e
oitocentista, bem como às mudanças nas relações entre o Estado os “des-
viantes” durante o século XIX. (THOMPSON, 1997).
Pode-se afirmar que, para Thompson, a compreensão da dinâmica his-
tórica se dá através dos indicadores históricos, ou seja, é necessário assimilar
como as pessoas se comportam e concebem o mundo nas circunstâncias
mais diversas, sobretudo em sua vida material condicionada por suas expe-
riências. (THOMPSON, 1981). A perspectiva thompsoniana, ao romper
com o engessamento do estruturalismo althusseriano e tomar a experiência
como categoria de análise, rompe com as práticas e modelos teóricos mais
fechados que negam o protagonismo dos indivíduos e condicionam de for-
ma reducionista os fenômenos sociais a um mero reflexo do campo econô-
mico e assume uma postura que tem por fundamento a compreensão dos
indivíduos como protagonistas, ou seja, como sujeitos que se apropriam de
outras experiências que são somadas às suas próprias experiências e adap-
tadas à sua realidade. (THOMPSON, 1981). Ao mesmo tempo é possível
fazer, na perspectiva thompsoniana, uma crítica ao pensamento althusse-
riano de negação da teoricidade da História, pensando que essa desordem
inocente ou abatimento possa vir a ser efetivamente um ato de rebeldia
consciente contra perspectivas teóricas totalizantes e imutáveis. (THOMP-
SON, 1981).
Por sua vez, Foucault, que passou a década de 1960 praticamente es-
quecido pelos historiadores (HUNT, 1992), foge das concepções tradicio-

187
nais que centram o poder no Estado e seu estabelecimento se dá por meio
de contratos políticos ou jurídicos; na análise de Foucault, percebe-se a pre-
sença de um tipo de teia de microfísica do poder articulado ao Estado, ou
seja, a ideia de poder como algo circulante. Assim, a realidade social traceja
campos de conhecimento que permitem a busca e a elaboração de novas
indagações sobre “antigos” objetos e o deslocamento do olhar sobre tais
objetos, fazendo-os de espectadores a protagonistas; de invisíveis, sombrios
e infames, para aqueles cuja voz se faz ouvir ao longe. Alterando, inclusive,
a própria noção de verdade. (FOUCAULT, 1996). Percebe-se que, apesar
das perspectivas thompsoniana e foucaultiana serem extremamente diferen-
tes entre si, elas se encontram na medida em que ambas formulam, segundo
Marcos Bretas e André Rosemberg:

Problemas sobre a história do poder não apenas no nível do Estado, mas


no exercício de uma dominação cotidiana, onde a ação policial se torna-
va, ao mesmo tempo, visível e invisível. Visível por se apresentar como o
fio condutor de uma circulação de poder — um dos mottos foucaultianos
era a afirmação de que o poder circula — ou como o agente da repressão
nas lutas de trabalhadores. Invisível porque esse exercício de dominação
se realizava de forma não problemática. (BRETAS; ROSEMBERG,
2013, p. 165).

No Brasil, é só a partir dos anos 80 que a polícia se tornou tema inte-


grante tanto de discussões em História Social quanto de tradição althusse-
riana, produzindo, genericamente, dois campos de análises ainda hoje pre-
dominantes. Por um lado, estão aqueles que estudam as práticas policiais
tomadas como homogêneas (fundamentadas em indagações como: O que
é a polícia? O que ela faz?). Por outro lado, há aqueles que compreendem a
necessidade de investigá-la a partir das ações dos seus agentes (promovendo
as seguintes indagações: Quem são os policiais? E como eles agem no co-
tidiano?). Portanto, é possível fazer novas indagações aos indícios apresen-
tados pela história, ou até mesmo fazer emergir novos indícios. Isto acaba
levando à análise dos objetos históricos (assim definidos arbitrariamente)
conforme interesses pré-estabelecidos pelas mais díspares razões, não sig-
nificando uma mudança da história ao passo que mudam os sujeitos que a
investigam. Nesse sentido, em tom crítico, é possível que se modifiquem
as abordagens, gerando pontos de contradição entre os investigadores, mas
tais modificações serão meramente decorrentes da postura investigativa ou

188
ideológica caso os sujeitos que investigam a história não compreendam sua
disciplina como dotada de critérios científicos comuns que buscam uma
compreensão objetiva dos fatos históricos. (THOMPSON, 1981).
Partindo da perspectiva segundo a qual as variadas abordagens das
Ciências Humanas são resultantes de processos dedutivos aleatórios em sua
localização histórica. (HUNT, 1992) serão produzidos, então, diversos ar-
tigos, dissertações, teses e livros com os mais variados direcionamentos e
aproximações. Baseado nesse recorte opta-se pelo registro de uma pequena
bibliografia como exemplo dessa variedade. Tais obras foram selecionadas
conforme sua relevância para a Historiografia Brasileira sobre a polícia; se-
melhança em relação ao recorte temporal definido para este trabalho; pro-
dução historiográfica maranhense; adequação à área de concentração do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ma-
ranhão (PPGHis-UFMA).
Thomas H. Holloway analisa a evolução da polícia enquanto compo-
nente do aparelho estatal e destaca as características do controle social im-
posto pelo aparato de policiamento na cidade do Rio de Janeiro no século
XIX à medida em que o Estado vai se tornando cada vez mais presente nos
espaços públicos. (HOLLOWAY, 1997). Elizabeth Cancelli, no início da
década de 1990, apresenta uma obra que segue basicamente na mesma linha
de Thomas Holloway. Ou seja, ela analisa o aparato de policiamento e o
controle social imposto pelo Estado brasileiro. A diferença na abordagem
está no corte cronológico escolhido por Cancelli: a Era Vargas (1930-1945),
detalhando seu estudo em relação ao Estado Novo. (CANCELLI, 1993).
O trabalho de Marcos Bretas é de suma importância para a construção
de uma Historiografia Brasileira sobre a polícia por seu rigor teórico de
linhagem thompsoniana e metodologia aplicada a partir da análise dos livros
de registro de ocorrência de sete delegacias de polícia da Cidade do Rio de
Janeiro, após a reforma urbana, no início do século XX. Ele investiga as
estratégias usadas pelo governo municipal para promover a modernização
da cidade, bem como o controle das massas populares. Além disso, nota-se
nesse trabalho que os policiais são colocados no centro da narrativa e há a
preocupação do autor em entender como pensam, agem, veem o mundo e
seu lugar na sociedade. (BRETAS, 1997).
Cláudia Mauch, em sua tese de doutorado, investiga os mecanismos
de policiamento adotados na cidade de Porto Alegre, capital riograndense,
durante o período entre 1896 e 1929. Ela realiza a intersecção entre o tipo

189
de policiamento planejado pelas autoridades e o praticado pelos policiais
no seu cotidiano. Para a realização desse estudo Mauch faz uso de vas-
ta documentação disponível produzida pelas próprias instituições policiais
gaúchas. (MAUCH, 2011).
No começo da década de 1990 a terminologia globalização passou a
fazer parte também do universo lexical das Ciências Humanas e Sociais.
Logo, passou a ser utilizado para designar uma inovação historiográfica de-
nominada História Global que se distingue em vários aspectos da já clás-
sica História mundial que por décadas foi predominante. Nesse sentido,
embora o desenvolvimento dos procedimentos historiográficos da História
Global tenha sido influenciado pelos movimentos da globalização, eles não
estão necessariamente restritos a ele, mas por meio da globalização a His-
tória Global se propõe a analisar as relações de reciprocidade em dimensão
mundial ao longo das várias etapas do desenvolvimento histórico. (BRES-
CIANO, 2015).
Recentemente o tratamento dos movimentos que ultrapassam as de-
marcações tradicionais do Estado-Nação tem estimulado indagações que
utilizam perspectivas analíticas que igualmente ultrapassam os limites do
Estado-Nação. (BRESCIANO, 2015). Assim, desenvolveram-se propo-
sições metodológicas bastante profusas: “Histórias conectadas, histórias
globais, histórias cruzadas. O chamado ‘giro transnacional’ acolhe aborda-
gens diversas como a comparação histórica, a análise das relações interna-
cionais, as transferências e circulações culturais”. (FERRARI; GALEA-
NO, 2016, p. 175).
Por conta disso, os recursos teóricos da História Global e transnacional
vêm estimulando a produção de estudos históricos sobre a polícia com foco
em novas perspectivas de análise menos preocupadas com o papel repressor
das instituições policiais, sua ligação com o Estado, formação e rotina do
trabalho policial ou, além disso, a pensar as instituições policiais como sen-
do constituídas apenas na dimensão formadora do Estado-Nação.
Em 2012, Diego Galeano defendeu sua tese de doutorado, cuja in-
vestigação centrou-se na análise de vasta documentação técnica produzida
pelos órgãos de policiamento das cidades do Rio de Janeiro e Buenos
Aires, na passagem do século XIX para o XX. Galeano observa que tal
documentação, através de grande circulação transnacional cooperativa
entre os organismos de policiamento de Brasil e Argentina, visava cons-
truir, além de imagens e conceitos sobre o crime, o criminoso e a própria

190
polícia, saberes e práticas comuns em torno do combate à criminalidade.
(GALEANO, 2012).
A grande contribuição do trabalho de Galeano consiste em inserir na
análise das transposições fronteiriças realizadas por organismos do próprio
Estado as possibilidades de colaboração institucional com intuito de formar
uma teia de relações regionais mais especificamente voltadas ao campo da
segurança pública.
Em relação a dimensão da produção historiográfica local destacam-se
alguns trabalhos. Encabeça a lista tese de doutorado de Regina Helena Fa-
ria que investigou a formação do aparato policial luso-brasileiro, em meados
do século XVIII, como consequência da ampliação do aparelho burocrático
dos Estados Nacionais modernos, à medida em que expandem seu contro-
le sobre a sociedade, bem como a configuração deste aparato ao longo da
constituição da Monarquia brasileira, no século XIX. (FARIA, 2007).
Em sua dissertação de mestrado, Paulo Henrique Matos de Jesus,
analisa as experiências coletivas dos militares estaduais do Maranhão du-
rante a ocorrência do movimento reivindicador realizado por eles no ano
de 2011. Seu trabalho possui um escopo analítico- descritivo das me-
mórias dos militares no contexto do movimento, examinando a possibi-
lidade de conexão com as dimensões institucionais, jurídicas e políticas
historicamente estabelecidas no contexto nacional e estadual, em especial
como as experiências desses sujeitos se manifestaram nessa dinâmica e na
construção de uma memória individual e coletiva a seu respeito. (JESUS,
2020). Ao mesmo tempo este trabalho apresenta algo ainda inédito na
historiografia local que é investigar as estratégias de dominação, contro-
le e imposição da disciplina impostas pela Polícia Militar do Maranhão
(PMMA) e as táticas de subversão dessa ordem (CERTEAU, 1994) apli-
cadas pelos soldados, cabos, sargentos e subtenentes, reunidos no movi-
mento reivindicatório, não com intenção de alterar a ordem hierárquica,
mas de obterem conquistas trabalhistas.
A dissertação de Mestrado de Marize Helena de Campos analisa o
processo de urbanização, as medidas higienizadoras crescimento das casas
de prostituição e repressão policial em São Luís, capital maranhense, na
passagem do século XIX para o XX. (CAMPOS, 2001). A coletânea de
textos organizada por Mundicarmo Ferretti ressalta as práticas repressivas
impostas pela polícia contra a população negra da capital maranhense e suas
manifestações festivas e religiosas. (FERRETTI, 2015).

191
Note-se que entre os trabalhos selecionados apenas o de Regina He-
lena Faria (2007) e o de Paulo Henrique Matos de Jesus (2020) colocam
os policiais, e as instituições policiais como o centro da análise. Em uma
abordagem já considerada clássica, Regina Helena Faria observa que a in-
clusão dos aparatos de policiamento montados no Brasil, no século XVIII, é
extensão dos aparatos de policiamento portugueses. E após a Independên-
cia, as estruturas policiais adquiriam suas feições conforme as instituições
do Estado-Nação brasileiro iam se constituindo e as disputas em torno do
poder nas dimensões local e nacional se desenvolviam. Nesse sentido, os
aparatos de policiamento refletiam um dos pilares básicos na construção –
dentro desta já mencionada perspectiva clássica – de uma ideia de soberania
nacional. (FARIA, 2007).
Por sua vez, os trabalhos de Marize Helena de Campos (2001) e
Mundicarmo Ferretti (2015) colocam a polícia apenas como um pano
de fundo de suas respectivas análises e partindo da perspectiva que sua
grande atribuição é reprimir e controlar as massas pobres urbanas, sua or-
ganização e mobilizações coletivas, mas também de suas festas e manifes-
tações religiosas e estilo de vida, colocando as forças policiais como parte
de uma política modernizadora e higienizadora autoritária. (CAMPOS,
2001; FERRETTI, 2015).
Com base nos trabalhos acima mencionados e no sentido mais estrito
não se pode dizer que haja uma Historiografia maranhense voltada para
a polícia. O que se tem são alguns trabalhos eventuais que, por vezes, in-
cluem a polícia em suas análises. Todavia para além do trabalho historio-
gráfico, o mérito destes estudos é mostrar os caminhos possíveis para uma
temática que só bem recentemente passou a despertar o interesse da His-
toriografia e que ajudam a construir uma História na qual os sujeitos não
sejam apenas dados quantitativos, vítimas da exclusão social, ou meros
depositários de um único discurso homogeneizador. Além de permitir a
elaboração de trabalhos cuja perspectiva possa trazer novos enfoques para
a análise dos aparatos de policiamento e segurança pública mais articula-
dos a um entendimento de circulação transnacional de saberes policiais e
práticas de policiamento que possibilitem a estruturação de procedimen-
tos mundiais conectados entre si.

192
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195
o(s) lugar(es) do crime na urbe do século
xix: um itinerário de pesquisa

Paulo Henrique Matos de Jesus1

A cidade como objeto de pesquisa

Não é de hoje que as cidades enquanto espaços de experiências e vi-


vências vêm se constituindo cativante objeto de pesquisa para estudiosos
dos mais diversos segmentos das Ciências Humanas/Sociais (historiadores,
geógrafos, antropólogos, sociólogos) e de outros campos do conhecimento
cientifico (médicos, engenheiros, arquitetos, sanitaristas) exatamente por
sua capacidade de possibilitar a estes estudiosos a elaboração das mais varia-
das rotas analítico-interpretativas pensadas a partir dos pressupostos teóri-
cos e metodológicos próprios de cada um dos ramos que se debruçam sobre
a análise do espaço urbano. Nesse sentido, a cidade se disseca aos olhos
do pesquisador cuja preocupação essencial deverá ser buscar meios eficazes
de apreensão dos sentidos e representações que os habitantes possuem do
espaço urbano em que vivem para, partindo desse ponto, compreenderem
toda a complexidade desse objeto multifacetado.
Conforme Sandra Jatahy Pesavento (1995, p. 280) sobre as representa-
ções enquanto campo teórico e próprio da Nova História Cultural:

O primeiro campo a ser definido seria o da representação. A utilização


deste conceito, que implica o retorno a Durkheim e Mauss (Mauss, 1969),
1. Graduado, mestre e Doutorando em História pelo Programa de pós graduação em História
da Universidade Federal do Maranhão (PPGHis-UFMA); Bolsista CAPES Pesquisador do
Grupo de Pesquisa CNPq em Poderes e Instituições, Mundos do Trabalho e Ideias Políticas
(POLIMT), ligado ao PPGHis-UFMA; Dedica-se à pesquisa em História Social do Crime,
Aparatos de Policiamento e Segurança Pública.
tornou-se uma categoria central para as análises da nova história cultural.
O conceito, em si envolve uma série de considerações, a começar pelo
pressuposto de que a representação implica uma relação ambígua entre
ausência e presença. No caso, a representação é a presentificação de um
ausente, que é dado a ver segundo uma imagem, mental ou material, que
se distancia do mimetismo puro e simples e trabalha com uma atribuição
de sentido.

A cidade enquanto conceito e categoria de análise é objeto de observa-


ção desde seu surgimento, durante a Antiguidade. Segundo Charles Mon-
teiro (2012, p. 102):

O surgimento das primeiras cidades na Antiguidade Oriental marca um


novo patamar de organização política, econômica, social e cultural. Na
Grécia Antiga, a cidadela ou polis tornou-se o lugar da comunidade polí-
tica por excelência. A República Romana organizouse a partir de Roma,
Cidade-Estado e, posteriormente, capital de um imenso Império. Na Ida-
de Média, as cidades tiveram um papel de centros de difusão do saber
com a fundação das universidades de Bolonha, Paris e Oxford, entre ou-
tras, de capitais religiosas (como Roma e Avignon) e lugares de mercado
(Londres, Paris, Lyon, Barcelona, Veneza, Genova, Florença). Na Idade
Moderna surgem as cidades-capitais, centros burocráticos (Madri, Lisboa)
que exploram os campos e os camponeses ao seu redor.

Todavia, torna-se premente problematizar e relativizar o uso da cida-


de, tanto enquanto conceito quanto categoria de análise, visto que permite
vasta compreensão que se estende desde os “[...] primeiros aglomerados hu-
manos” (BRESCIANI, 1992, p. 11), passando pela “[...] ideia de uma vida
urbana diferenciada da vida no campo” (BRESCIANI, 1992, p. 11) até sua
completude no século XX como parte de uma longa jornada de evolução da
sociedade. (BRESCIANI, 1992).
Por outro lado, a própria Bresciani complementa:

Existe, contudo, uma outra posição teórica que rompe com a concepção
de continuidade no tempo como pressuposto de conhecimento das cidades
contemporâneas. Esta opção [...] volta-se para as cidades associadas à idéia
de modernidade, para o momento em que, na primeira metade do século
XIX, são problematizadas em questão urbana, concebidas como espaço de
tensões empíricas e conceituais, concepção que perdura na formulação do
paradigma que orienta o conhecimento e a vivência nas cidades contem-

198
porâneas. (BRESCIANI, 1992, p. 12, grifo do autor).

É importante notar também que as aglomerações urbanas possuem im-


portância diferente conforme a legislação, formas de distribuição de privilé-
gios e tradições próprios de cada país, variando conforme a época.
Segundo Charles Monteiro (2012, p. 102):

Por exemplo: na Inglaterra, a denominação town correspondia não apenas


a certa dimensão física da aglomeração, mas aos privilégios concedidos
aos seus habitantes pelo Parlamento. No fim do século XVIII, na França,
as distinções entre village, ville e cité que caracterizavam diferentes privi-
légios políticos, jurídicos e financeiros dos habitantes (burgueses, merca-
dores) foram abolidas pelo governo revolucionário, que concedeu a todas
as aglomerações o título de ‘comuna’ igualando os seus direitos políticos.

Nesse sentido é possível pensar o processo urbanizador como um fe-


nômeno que possui sua própria cadência, estando por vezes atrelado ao de-
sejo de suprir o crescimento populacional e econômico, por vezes tentando
prevê-lo ou conduzi-lo. Desta forma, é possível descartar a relação direta
e determinante entre o avanço do processo de urbanização e as etapas do
desenvolvimento econômico. Inclusive Charles Monteiro (2012, p. 103)
propõe que esse mesmo esforço de raciocínio seja aplicado aos trabalhos que
se dedicam a analisar o processo de urbanização do Brasil. Todavia, não é
objeto deste artigo o fenômeno da urbanização.
Avançando um pouco mais na discussão sobre cidade enquanto catego-
ria de análise pode-se dizer que ela guarda em si aspectos de uma sucessão
de temporalidades e sociabilidades que se constituem no amálgama que dá
sentido à própria cidade. (ROLNIK apud Monteiro, 2012, p. 104). Mon-
teiro prossegue em sua reflexão:

A cidade é uma realidade plural e polifônica, trama, rede de relações so-


ciais, econômicas, políticas, culturais e simbólicas. Os diferentes sujeitos
e grupos sociais se apropriam desse espaço, o experienciam e produzem
representações (memórias e um imaginário) sobre ele, que visam a expli-
car a dinâmica própria desses grupos sociais se constituírem na cidade.
Os grupos tanto constroem a cidade enquanto um tecido de relações
sociais e representações, quanto são constituídos por ela. (MONTEIRO,
2012, p. 104).

199
Desta maneira, qual seria o balizamento para se pensar as pesquisas em
torno da História da Cidade? Em que medida ela se diferencia de outros
campos da pesquisa historiográfica? Como é possível o enquadramento des-
se campo de pesquisa?
Nem de longe é proposta deste artigo pensar todas essas questões.
Todavia, são indagações pertinentes a todo aquele que deseja se aventurar
nesse campo historiográfico tão multidisciplinar que permite ao historiador
abordagens igualmente variadas. Entretanto, é importante ponderar que a
preocupação dos historiadores com os estudos sobre a cidade iniciou-se so-
mente a partir do século XIX em um cenário profundamente marcado pelo
intenso fluxo migratório de pessoas do campo para a cidade e do acelerado
processo de industrialização. Não apenas os historiadores despertaram suas
atenções para os estudos sobre as cidades, mas, também pesquisadores de
outros ramos das Ciências Humanas e Sociais, como por exemplo geógra-
fos e sociólogos.
Pondera-se que:

Os geógrafos com seus trabalhos sobre demografia e populações urbanas.


Os cientistas sociais com suas pesquisas sobre os efeitos da urbanização e
sobre o crescimento da criminalidade entre as classes populares, como os
estudos da chamada Escola de Chicago nos EUA dos anos 1920. Noutra
direção, George Simmel refletia sobre a vida mental da metrópole, na qual
um conjunto enorme de novos estímulos produzia os seus efeitos sobre o
homem moderno. (VELHO apud MONTEIRO, 2012, p. 105).

Os historiadores, por sua vez, preocupavam-se essencialmente em


ver a cidade como componente explicativo do processo histórico. Em es-
pecial ligados ao avanço dos eventos capitalistas. Entretanto, ainda em
bases muito dispersas e sem homogeneidade entre si. É somente a partir
de meados do século XX, originando-se dos Estados Unidos e do Rei-
no Unido, que os historiadores passaram a produzir estudos mais densos
sobre o fenômeno urbano com seus problemas econômicos, sociais e de
ocupação espacial. Tudo isso partindo de inúmeros centros de pesqui-
sa que reuniam historiadores com as mais variadas perspectivas teóricas,
mas, que tinham em comum o desejo de formalizar metodologias e divul-
gar a História Urbana como um novo campo da pesquisa historiográfica
(MONTEIRO, 2012, p. 106).
Destacam-se, então, duas grandes perspectivas, segundo Charles Mon-

200
teiro (SILVA apud MONTEIRO, 2012, p.106):

A História Urbana que se preocupava com pesquisas monográficas sobre


as particularidades da formação urbana e social de uma cidade, e, por
outro lado, a ‘urban as a site’ estudava a cidade e a explicava a partir de
processos econômicos e sociais que se expressavam nela, mas também a
ultrapassavam.

E continua: “Ou seja, buscava explicar dinâmicas sociais e econômicas


que tinham seu locus privilegiado na cidade mais eram parte de dinâmicas
muito maiores dentro do capitalismo. (MONTEIRO, 2012, p. 106).
Ainda hoje em dia permanece o debate sobre o papel da História Ur-
bana e os vários caminhos ou “portas de entrada conceituais que se apresen-
tam como problemas a serem solucionados pontualmente” (BRESCIANI,
1992, p. 12) e que se constituem em maneiras investigação da cidade por
parte dos historiadores brasileiros entre desde a última década do século
XX. Tais maneiras de investigação da cidade seriam: do ponto de vista da
questão técnica; da questão social; da formação das identidades sociais; da
formação da sensibilidade burguesa; do lugar e o sujeito da História.

Cidade enquanto espaço de vivência:


multidão, pobres, vagabundos, classes perigosas

Para fins deste artigo, destaca-se a maneira investigativa que percebe a


cidade enquanto espaço de vivência com normas e produção cultural urbana
que naturalizam comportamentos. A expansão industrial e a consolidação
do capitalismo atrelado ao aumento do público leitor e a expansão do mer-
cado editorial gera novas formas da multidão anônima se relacionar com o
espaço urbano e viverem suas experiências nas metrópoles do século XIX.
Nesse cenário recorre-se aos romances e novelas como nova perspectiva de
análise desta nova dinâmica urbana (BRESCIANI, 1992, p. 21).
Sobre o papel desempenhado pelos romances e outras produções literá-
rias busca-se a reflexão de Charles Monteiro (2012, p. 108):

Baudelaire nos narra as imagens captadas pelo flâneur em suas andanças


pela cidade em Pequenos Poemas em Prosa: a perda do halo do poeta em
meio à lama do bulevard, o brinquedo da criança pobre e o olhar dos po-
bres diante no novo café. Uma experiência de perda, de fragmentação e de

201
crise de identidade numa sociedade divida e segregada socialmente. Nesse
sentido, talvez um bom exemplo seja o livro Os sete pecados da capital de
Sandra Pesavento.

Desta maneira, nota-se o quanto era desafiador para os literatos do sé-


culo XIX apresentar representações da cidade em suas obras. Neste cenário
destaca-se um novo personagem: a multidão.
De acordo com Maria Stella Bresciani:

Nenhuma questão se apresenta mais carregada de compromissos para os


literatos do século XIX do que a multidão. Num momento em que o há-
bito de leitura se espalhava por todas as classes sociais, esse público em
formação fazia uma exigência: encontrar sua imagem nos romances que
lia. Entre outros, Victor Hugo, Baudelaire, Zola e Eugène Sue, na Fran-
ça, e Charles Dickens e Edgar Alan Poe, na Inglaterra, preencheram essa
expectativa oferecendo à sociedade o espetáculo da sua própria vida. Ultra-
passando os limites dos ambientes privados, da casa familiar, esses autores
se colocaram na posição de observadores das cenas de rua. E, nas ruas, a
multidão é uma presença. Seja na sua dimensão anônima, mecânica de
massa amorfa, seja na apreensão de detalhes seus exploráveis até certo pon-
to, o movimento de milhares de pessoas deslocando-se por entre o ema-
ranhado de edifícios da grande cidade compõe uma representação estética
da sociedade. As populações de Londres e de Paris encontram-se com sua
própria modernidade através dessa exteriorização: admiração e temor diante
de algo extremamente novo. O ímpeto para esquadrinhar e tornar legível
esse fluir constante tem muito a ver co’m uma intenção de conhecimento
que implica a prévia experiência do olhar que divide e agrupa, que localiza e
designa a identidade das pessoas por seus sinais aparentes. (BRESCIANI,
2008, p. 7 grifo do autor).

A viagem pela cidade e a observação da multidão na obra de Bresciani


(2008) começa pelo olhar de Baudelaire que vê nas ruas parisienses um sem
número de sujeitos em trânsito com destino às suas obrigações especificas
de suas próprias realidades. Nesse cenário, o deslocamento da se apresenta
como um comportamento mecânico e as pessoas são engolidas e anuladas
em suas individualidades pelo grande centro - personagem principal desse
olhar – se tornando uma massa amorfa e apenas parte minúscula e insig-
nificante da multidão. O olhar de Baudelaire percebe a cidade enquanto
cenário que se apresenta como aprazível mesmo quando horrendo.

202
Entretanto, deve-se notar que Paris acaba se dividindo em dois uni-
versos compostos por multidões díspares, mas, inda assim deslumbrante e
encantadora: a Paris diurna e a Paris noturna, conforme Bresciani (2008,
p. 12):

Paris da metade do século configura um espetáculo diurno, por completo


diverso daquele que a noite encena. De manhã cedo, ainda de madrugada,
‘o Sena se encontra deserto e Paris, como os velhos trabalhadores, esfrega
os olhos enquanto empurra suas ferramentas: é a hora em que o trabalho
desperta’. A cena urbana se vê ocupada pela multidão dos trabalhadores.
Os personagens da noite são outros. ‘A noite encantadora’ é amiga do
criminoso; até no momento lento e silencioso do passo do lobo se faz sua
cúmplice. É bem verdade que a chegada da noite, da ‘amável noite’, tam-
bém se faz desejada pelos que trabalharam; nessa hora o operário curvado
pelo cansaço retorna ao leito. Esse configura, porém, um movimento de
recolhimento, da intimidade circunscrita ao interior das casas. Os com-
batentes do dia se interrompem, os soldados do trabalho repousam, os
demônios despertam e preenchem o espaço urbano. A multidão é outra. O
formigar das prostitutas, os escroques atentos junto às mesas de jogo, os la-
drões na sua labuta silenciosa: tais são seus componentes. Também o baru-
lho da noite se faz cem outros sons: o assobio das cozinhas, a algazarra dos
teatros, o troar das orquestras, o ruído áspero e tenso das mesas de jogo.

Para alguns a noite não chega a ser tão encantadora. Ao contrário. Ela
é vista como amedrontadora e perigosa e a multidão noturna se assemelha
a uma chaga que se espalha e contamina as ruas parisienses. Entretanto, há
também aqueles que veem a noite a partir das impressões. O universo que
constitui a noite é composto por uma multidão sem nome.
Indo mais adiante, acrescenta-se o fato de que a multidão ao se aglo-
merar passa a ser tratada tanto como elemento responsável pelo desenvol-
vimento quanto pelo aviltamento da humanidade, como, por exemplo, no
caso específico de Londres que, em 1840, vive este contrassenso. Ao mes-
mo tempo a cidade se descobre vivendo, por um lado, o avanço do pro-
cesso de industrialização e por outro os desdobramentos desse fenômeno
manifestados pela proliferação de bairros operários insalubres, longe do
centro nervoso da cidade e contrastando com os princípios civilizatórios
apregoados então.
Nesse sentido, a multidão aglomerada passa a ser tratada como um
problema social o que leva as autoridades a desenvolverem diversos me-

203
canismos de controle social dessa população pobre, visto que ela se torna
ameaçadora aos olhos da burguesia e das próprias autoridades. Tudo isso
ocorre em um cenário marcado pelo aumento acelerado dos índices de po-
breza e da degradação cada vez maior dos bairros operários considerados
o local de origem dos novos ladrões. De pronto, na França em especial, as
péssimas condições de vida, instabilidade econômica e a possibilidade de
amotinamento leva a população pobre a ser vista também como uma amea-
ça política, ainda como memória viva da Revolução de 1789.
Sobre o temor político ligado à Revolução de 1789 representado pelos
pobres, Bresciani (2008, p. 109, grifo do autor) reitera:

A questão da multidão amotinada se coloca de maneira bastante diversa na


França do século XIX. Aqui, os parisienses, orgulhosos de sua civilização,
temem as depredações e o constrangimento do espetáculo das multidões
famintas, mas temem, sobretudo, as jornadas revolucionárias. Seu temor se
fixa numa imagem de grandeza assustadora: aquela de homens fazendo
valer, suas exigências através do controle das instituições políticas; pondo,
portanto, na ordem do dia, o assédio e a ocupação das praças e dos edifícios
públicos. O espectro das multidões incontroláveis dos anos revolucionários
faz-se presente a cada momento da vida cotidiana, como força em repouso
de uma sociedade que se autoconcebe constituída sobre o marco do aco-
lhimento da pobreza no campo da política.

Todavia, progressivamente, com os avanços dos ideais da Revolução


de 1789 no sentido de: “Confrontar formas políticas de governo capazes de
assegurar a liberdade, mas de tornar realizável a política da felicidade e da
abundância geral” (BRESCIANI, 2008, p. 116, grifo do autor) a multidão
passa a ser associada ao comunismo.
Como destaca Bresciani (2008, p. 118):

O pensamento socialista na França incorpora a noção de necessidade his-


tórica e se dedica à tarefa de imprimir-lhe formas de realização visíveis em
vários projetos utópicos. Marx, como nenhum outro, desde Robespierre,
visualiza nas revoluções no século XIX a realização da felicidade geral, a
fundação da sociedade plenamente humanizada. Com ele, a imagem de
1789 não se encerra no próprio acontecimento, mas se projeta nas ruas de
Paris no decorrer de todo o século, como uma revolução permanente em
busca dos seus próprios desígnios.

204
Fato digno de nota é que o Estado e a burguesia lançavam mão de
vasta legislação e de práticas repressivas de cunho físico e psicológico com o
propósito de frear seu ímpeto supostamente revolucionário e extremamente
perigoso. Nesse sentido, tais ações se manifestam através da constante vi-
gilância que as autoridades exercem sobre a multidão, como se constata na
afirmação de Bresciani (2008, p. 120, grifo do autor):

À ação repressiva explícita nos momentos de agitação sobrepõe-se toda


uma política insidiosa de um olhar constante que detalha, esquadrinha,
classifica a vida cotidiana dessa colmeia popular. Do recôndito do lar do
homem ao seu lugar de trabalho, todo o percurso pelos espaços públicos
torna-se objeto permanente de investigações. Desde chefes de polícia
até prefeitos de Paris, um imenso exército de funcionários sai às ruas
diariamente perscrutando os sinais menos visíveis dessas classes perigosas.
A tarefa de demolir uma revolução, na Paris do século XIX, foi entregue
a equipes de técnicos que formularam soluções pontuais permitindo de-
vassar toda a vida das classes pobres. As portas de suas casas foram aber-
tas, seus interiores vasculhados, sua conduta avaliada, seus valores morais
aquilatados.

Ainda nesse cenário da multidão como ameaça à ordem estabelecida


nota-se a que, tanto em Londres quanto em Paris o número de mendigos
era muito maior que o de policiais. Daí a necessidade de elaborar estratégias
coloquem definitivamente os miseráveis como um “paradigma para todos
os franceses” (BRESCIANI, 2008, p. 116).
Portanto, a positivação do trabalho, tampouco a frágil diferenciação
entre pobres e vagabundos – a partir da perspectiva de diversos intelectuais
como Adam Smith que via o trabalho como verdadeira fonte geradora de
toda riqueza e aquele que o desempenha, ou seja, o trabalhador, como fator
essencial para o progresso e desenvolvimento da nação – foi suficiente para
dirimir do imaginário social, imprensa e literatos a estreita relação existente
entre pobres, bairros de trabalhadores e demais espaços frequentados com
a criminalidade.

Cidade de Paris e o crime no século XIX

Nesse momento do artigo a preocupação será com a relevância que os


lugares do crime ocupam na construção do imaginário social. Os espaços

205
públicos urbanos têm o poder de concentrar em si o temor ou a fixação
pelo crime.
Segundo Dominique Kalifa (2014, p. 288):

Como sinalizou Balzac em Ferragus (1833), existem as ruas ‘assassinas’,


e a identidade dos lugares e dos não lugares do crime possui um lugar
decisivo na expressão de insegurança. Mas esses lugares não se contentam
apenas em causar medo; eles contribuem também para tornar o crime in-
teligível. A posição do cadáver, a localização de indícios e traços diversos
ocupam uma função crescente nos procedimentos de investigação criminal
do início do século XIX. Observamos então a multiplicação de esboços, de
planos, de placas e de cortes; fontes de uma nova atenção topográfica que
acelera a passagem para uma racionalidade judiciária. Ligando cada crime
a seu ambiente e cada cadáver a seu cenário, as fotografias de identificação
forense acentuam ainda mais esse processo no fim do século.

Nesse sentido, Paris se apresenta como local perfeito para a investiga-


ção dos motivos que levaram essa metrópole a ter, no século XIX, tamanha
obsessão e fascínio pelo crime. É certo que a reforma urbana realizada por
Eugené Haussmann modificou significativamente a vida social na cidade,
repercutindo, inclusive no crime e sua distribuição espacial. Portanto, dis-
cutem-se como os espaços públicos, na dimensão memorial, adaptaram-se
a essas profundas transformações a partir de diversos textos literários que
destacaram o crime e que foram essenciais para a propagação de uma visão
específica a respeito de determinados lugares da cidade.
Parte significativa dos literatos franceses destacava a presença marcante
das atividades criminosas na parte antiga da cidade de Paris e no seu entor-
no, como destaca detalhadamente Kalifa (2014, p. 289):

O crime, principalmente na Île de la Cité, está ‘num emaranhado de ruas


obscuras, estreitas, tortuosas que se estendem desde o Palais-de-Justice
até a Notre-Dame’. A convergência de representações é absoluta e apre-
sentam as antigas vielas da ilha, a rua des Cargaisons ou a rua du Marché
Neuf, a rua de la Calandre, a rua aux Fèves ou o beco Saint-Martial como
um ‘vasto Tribunal dos milagres’, onde não faltam ladrões, prostitutas e
vagabundos. Esta reputação transborda da Cité propriamente dita até a
margem direita do Sena, no perímetro dos Halles, entre o Palais-Royal e
o Temple e, na margem esquerda, no bairro Montagne Sainte-Genevière,
na praça Maubert, na rua Galandre e na rua Muffetard; lugares sinistros
e perigosos, sempre retratados como antros de pilantras e trapaceiros. A

206
estreiteza desse espaço permitia a paradoxal proximidade entre os lugares
do crime e os da repressão. ‘Não é estranho, ou melhor, fatal que haja
uma irreversível atração que faça sempre que estes criminosos gravitem em
torno do formidável tribunal que os condena à prisão, ao trabalho força-
do e ao cadafalso!’, nota maliciosamente Eugène Sue, que sabia, é claro,
explorar o potencial romanesco dessas histórias. De um lado, antros, ca-
barés e redutos de malfeitores, cujas descrições tornaram-se rapidamente
um dos virtuosismos de toda uma literatura criminal (o Lapin Blanc e o
Paul Niquet, situados na rua aux Fèves; o Chat-noir, na rua de la Vieille
Draperie; o Bordier, na rua Aubry-le-boucher; o Hôtel d’Anglaterre, na
rua Saint-Honoré; o Épice-scié no bulevar du Temple; o Château-Rouge
e o Pére-les-lunettes na rua Galande). Do outro lado, os principais órgãos
da ordem: o Palais-de-Justice, a Conciergerie, a delegacia de polícia, cujo
sórdido depósito se abria para a rua de Jérusalem, um ‘beco estreito, escuro
e barrento onde o sol nunca penetra a não ser de forma dissimulada’; a
sede da segurança pública, na rua Sainte-Anne; a praça de Grève, lugar de
todas as execuções do Consulado em 1832, sem esquecer o necrotério, no
cais do Marché-Neuf, assiduamente visitado pelos parisienses. Não muito
longe dali, a prisão ‘de la Force’, na rua do Roi-de-Sicile e a prisão de
Sainte-Pélagie, acessível somente pela sinistra rua de la Clef e que acolhia
a maioria dos detentos, com exceção das mulheres, enviadas ao convento
das Madelonnettes, perto do Temple, antes da abertura de Saint-Lazare
em 1834, na rua de faubourg Saint-Denis. Preciosa vizinhança em um
tempo onde a estratégia policial consistia principalmente em se infiltrar no
mundo do crime para neutralizá-lo.

Diversas razões justificam essa distribuição espacial dos eventos crimi-


nosos. O centro da cidade de Paris de 1840 ainda não havia rompido com a
velha estrutura profundamente marcada pela superpopulação, insalubrida-
de; misto de prédios residenciais e ambientes de trabalho e lazer; prostitui-
ção e violência. Elementos típicos da realidade da população mais pobre. É
em meio a esse ambiente que as práticas criminosas se proliferam, aguçando
ainda mais o interesse daqueles que pretendiam debruçar-se sobre sua nar-
rativa e promover uma representação sobre o crime. Desta forma, nota-se
a presença cada vez mais constante do crime nas narrativas literárias que
circulavam por toda França, mas em especial por Paris, fazendo do centro
da cidade e seu entorno cenário quase natural das práticas criminosas.
Não obstante, é ainda na primeira metade do século XIX que o lugar
do crime vai sendo, ainda que tímida e embrionariamente deslocado do
centro para outras regiões localizadas ao norte e ao sul da cidade.

207
Esse processo lento e longo é descrito por Kalifa (2014, p. 291) da
seguinte maneira:

Presente no transcorrer de um longo período, a transferência para além


das bordas dos espaços da periculosidade urbana tornou-se mais intensa
durante a Monarquia de Julho. Em direção norte, onde os bairros de
Porcherons e de la Courtille são percebidos como lugares inseguros des-
de o século XVIII, são relatados inúmeros bolsões de violência: o canal
Saint-Martin e os terrenos baldios que o circundam, onde bandos de de-
sordeiros jogam suas vítimas nas águas do mesmo; Belleville, Ménilmon-
tant e a barreira du Combat, covil de inúmeros malfeitores. ‘Era lá seu
quartel general, onde eles estavam constantemente em massa e onde a
desgraça os viria encontrar’, escreveu Vidocq em suas Mémoires. Antigo
local de enforcamento, um vasto espaço espremido entre o bulevar e a la
Butte Chaumot, o Montfaucon, que servia às vezes de local de despejo e
de esgoto, era ainda percebido como um lugar de grande periculosidade.
Mas é sobretudo para além das bordas periféricas do sul que as repre-
sentações, especialmente as literárias, se movem. Altamente simbólica,
a decisão tomada em 1832 de deslocar a guilhotina da praça de Grève
para a barrière Saint-Jacques acompanha esse movimento. Os bairros
que formavam o então décimo segundo distrito (Saint-Marcel, Saint-Ja-
cques, L’Observatoire) estavam entre os mais pobres da capital. Covis de
trapaceiros, verdadeiros ‘antros de infecção’, de acordo com Alexandre
Parent-Duchâtelet, eles formavam sinistros bolsões de violência. Foi lá,
na rua Croulebarbe, no lugar conhecido como campo de l’Alouette, que
o jovem Ulbach assassinou a pastora de Ivry, em maio de 1827, gerando
um célebre fait diver. Também considerada perigosa era a barrière d’Ita-
lie, de onde se seguia para os subúrbios do sul, bem como Bicêtre, situada
uma milha no caminho para Fontainebleau, onde os condenados a morte
esperavam o dia de sua execução; e também o cemitério de Ivry, no qual
se enterravam os sentenciados a morte.

Entretanto, além desse deslocamento topográfico nota-se outro que se


aprofunda mais nas vísceras da cidade de Paris e que passa pelos locais mais
inusitados como descreve Kalifa (2014, p. 292):

Os fornos de gesso de Clichy, as pedreiras de Montmartre ou d’Amérique


na margem direita do Sena; a imensa escavação que se estende, na margem
esquerda, de Grenelle e Montrouge até os Jardin des Plantes, formam, de
acordo com alguns, um verdadeiro país subterrâneo, criminoso por na-
tureza, que qualquer um acessa por uma das numerosas escadas situadas

208
em Val-de-Grâce, na borda do Maine, na Puits-qui-parle ou ainda na
praça d’Enfer. Recusada na temática tradicional do submundo ou naquela
metáfora hugoliana das ‘partes inferiores’ e da caverna social, a existência
de uma imensa Paris subterrânea e criminal constitui, portanto, um clichê
generalizado que romancistas populares como Élie Berchet ou Pierre Za-
conne encarregaram-se de espalhar.

A reforma urbana realizada por Eugené Haussmann, embora seu pro-


pósito principal não seja este, busca conter a tensão social provocada pela
criminalidade e muda de maneira mais radical a cidade do que vinha acon-
tecendo antes. Não obstante, apesar dos esforços a reforma provocou um
acirramento do deslocamento e a constituição de uma nova topografia do
crime em Paris.
Conforme Kalifa (2014, p. 293):

A destruição dos cortiços que margeavam a Notre-Dame, os novos avanços


e a anexação dos distritos suburbanos são entendidos imediatamente pelos
contemporâneos como eventos de uma importância capital para percepção
da localização do risco criminal. Uma nova cartografia da delinquência
emana daí e recebe rapidamente o suporte das representações literárias.
As inflexões da topografia criminal que registram então os romancistas
e cronistas constituem uma série de movimentos desordenados, às vezes
contraditórios, mas cuja evolução desenha, ao longo de meio século, uma
trajetória finalmente coerente que podemos resumir nas três figuras entre-
laçadas do deslocamento, do recuo e, então, do retrocesso.

Assim, o processo de haussmannização dificulta a ação criminosa no


centro antigo da cidade de Paris e promovendo seu deslocamento para duas
novas áreas da cidade: os novos bairros que se deslocam em direção ao oeste
e noroeste. A literatura que evolui a partir de 1870 faz parte dessa nova
geografia do crime na cidade de Paris que será descrita desta maneira por
Kalifa (2014, p. 294):

Émile Gaboriau nos fornece alguns exemplos. M. Lecoq, seu detetive,


mora na ‘rua Montmartre, n....’, e suas investigações o levam à Saint-La-
zare, no décimo terceiro distrito, ou até Batignolles, onde foi assassinado
o aposentado Pigaureau. Do Drame de la rue de la paix (Adolphe Belot,
1875) ao Crime de l’opéra (Fortuné du Boisgobery, 1879) e também ao
Mystère d’Auteuil (Jules de Gastyne, 1904), praticamente não resta ne-
nhum bairro desta nova Paris que escape da atenção dos romancistas.

209
É evidente, até mesmo na literatura, o deslocamento dos locais de
ocorrência das ações criminosas. Toda a área localizada entre La Concor-
de e Le Bois se apresenta como espaço de cenas criminosas narradas pela
literatura. Percebe-se, também que os equipamentos urbanos2 de cidade
hausmanniana passaram a ser locais vivos e autônomos de ações criminais,
ou seja, “Estações de trem e hipódromos, onde atuam desenfreadamente os
batedores de carteira; os bosques de Boulogne e de Vincennes, abarrotada
de assediadores e, é claro, o metrô, rapidamente transformado em teatro de
novas violências.” (KALIFA, 2014, p. 294).
Portanto, nota-se que todo o universo que envolve as ações criminosas
na Cidade de Paris, seja no período anterior quanto posterior a haussman-
nização, é apropriado pela literatura que constrói representações sociais e
memórias sobre a topografia do crime e seu deslocamento em meio a essas
transformações.

Considerações finais

Portanto, percebe-se neste artigo que a escolha da cidade como ob-


jeto de estudo por parte de pesquisadores dos mais diversos ramos do co-
nhecimento e como espaço de ocorrência de sem número de experiências
individuais e coletivas é bastante frutífera, mas, também complexa. É essa
complexidade se deve, entre outras coisas, a dificuldade de estabelecer um
conceito de cidade, tanto como espaço de experiências quanto de vivências.
Complexo, também, em seu processo de evolução. Também se destaca, em
meio ao crescimento das cidades e ao desenvolvimento industrial, a preocu-
pação com a multidão enquanto autômatos adaptados à rotina do trabalho
e fundamentais ao desenvolvimento; frequentadores sombrios da noite e,
portanto, delinquentes; ameaça política atrelada às memórias da Revolução
Francesa de 1789 ou, posteriormente, ao comunismo.
Por fim, a cidade de Paris se apresenta aos olhos dos literatos como
espaço composto por ambientes específicos e próprios para a ocorrência
de eventos criminosos. Antes da haussmanização esses ambientes estavam
situados no centro da cidade medieval se estendendo em direção ao oeste
noroeste. E, posteriormente ao processo de haussmanização fica evidente o
2. Opta-se por esta denominação com o intuito de enfatizar toda intencionalidade de Eugené
Haussmann de dar ares modernos – com sentido de futuro – para Paris.

210
deslocamento do crime para os novos bairros da cidade e se espalhando pelo
equipamento urbano.

REFERÊNCIAS

BRESCIANI, M. S. Permanência e Ruptura no Estudo das Cidades. Ci-


dade e história. Salvador: UFBA/Faculdade de Arquitetura, p.11-25, 1992.

______. Coleção Tudo é História. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008. v.


52.

KALIFA, D. Os lugares do crime: topografia criminal e imaginário social


em Paris no século XIX. Topoi, Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, p. 287-307,
jan./jun. 2014.

MONTEIRO, C. Entre história urbana e história da cidade: questões e


debates. Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 5, n.1, p.
10,1-112, jan./jun. 2012.

PESAVENTO, S. J. Muito além do Espaço Urbano: por uma História


Cultural do Urbano. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, p. 279-
290, 1995.

211
essa obra foi composta em adobe caslon pro em
junho de 2023.

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