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múltiplas abordagens
lorena maria de frança ferreira
marlzonni marrelli matos mauricio
paulo henrique matos de jesus
(organizadores)
Capa
Mário Sérgio Olivindo
Cancioneiro
Editora chefe
Eva P. Bueno (St. Mary’s University, Texas - EUA)
Conselho editorial
Antonio Ozaí da Silva (Universidade Estadual de Maringá, Brasil)
Diego Buffa - (Universidad Nacional de La Plata, Argentina)
Evaristo Falcão (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
Francisca Verônica Cavalcante (Universidade Federal do Piauí, Brasil)
Giselle Menezes Mendes Cintado (Université Paris-Est Créteil, França)
Héctor Fernández L’Hoeste (Georgia State University, EUA)
Henrique Buarque de Gusmão (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Johny Santana de Araújo (Universidade Federal do Piauí, Brasil)
Josenildo de Jesus Pereira (Universidade Federal do Maranhão, Brasil)
Kátia Rodrigues Paranhos (Universidade Federal de Uberlândia, Brasil)
Maria Simone Euclides (Universidade Federal de Viçosa, Brasil)
Nancy Yohana Correa Serna (Universidad Nacional de Colombia, Colômbia)
Sandra Melo (Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil)
Silvia Coneglian (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
Silvia Glocer (Universidade de Buenos Aires, Argentina)
Vincent Spina (Clarion University of Pennsylvania, EUA)
cdd 900
editora cancioneiro
Teresina - Piauí
www.editoracancioneiro.com.br
contato@editoracancioneiro.com.br
sumário
apresentação................................................................................ 7
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O segundo artigo intitulado “Traços de produções históricas piauien-
ses: o uso do gênero na história local” aponta que a produção histórica se
transformou com a mudança do tempo, modificando o seu fazer histórico
e seus objetos de estudo, ampliando e dando nova visibilidade ao que era
impensado. Com isso, o artigo proporciona conhecer as modificações na
produção histórica a partir do estudo da História das mulheres e de gênero
no Brasil, em especial na produção piauiense no âmbito universitário sobre
o gênero na educação.
Maria da Graça Reis Cardoso contribui com o artigo “História do
tempo presente: um diálogo com as Comunidades de Terreiro acerca da
covid-19 em São Luís – MA”, no qual traz reflexões acerca da pandemia
e suas consequências para as Comunidades de Terreiro, como a morte de
seus membros e, ainda, as desigualdades sociais. Em vista disso, o artigo se
debruça sobre as religiões de Matriz Africana e busca compreender como as
Comunidades de Terreiro, com destaque para o Terreiro Ilê Ashe Yemowa
Abê, ressignificaram suas práticas culturais durante a pandemia, sobretudo
no que diz respeito aos rituais religiosos de desligamentos da vida terrena.
Marlzonni Marrelli Matos Mauricio contribui com o artigo “Raça e ra-
cismo no Brasil: problemas teóricos e históricos”, no qual discorre acerca do
conceito de raça no pensamento social brasileiro e de suas implicações. Por
conseguinte, o artigo trata do uso político-ideológico do conceito de raça
pelas elites brasileiras oitocentistas, assim como do caráter discriminatório
do próprio conceito. Ademais disso, dentre os assuntos levantados, o artigo
trata também desde o enleio entre as ideias de raça e de cidadania, no século
XIX, até o conceito de racismo estrutural de Silvio Almeida. Nesse sentido,
o artigo busca promover uma leitura concisa, mas ampla, sobre raça como
matéria e como construção ideológica.
Já na seção “Poderes, Políticas e Sociabilidades”, os artigos se debru-
çam sobre as dinâmicas de poder, os processos políticos e as formas de
sociabilidade em diferentes períodos históricos. Os artigos apresentam in-
vestigações aprofundadas sobre a atuação de atores políticos, as estruturas
de poder e os movimentos sociais, evidenciando as relações de poder, os
embates políticos e as formas de organização e resistência presentes na his-
tória. Além disso, são abordadas temáticas como a construção do Estado, a
representação política e a interação entre diferentes grupos sociais.
Ábdon Eres da Silva Neto, em seu artigo “As contribuições da pers-
pectiva global para o estudo da escravização africana”, baseia-se em textos
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de Rafael Marquese e Pepijn Brandon para analisar as perspectivas histo-
riográficas sobre a escravização africana e sua relação com o capitalismo.
A partir da análise de outros cinco textos, o autor busca compreender as
conexões entre o aumento da escravização de africanos nos séculos XVIII
e XIX e as condições que possibilitaram a formação do capitalismo indus-
trial global.
Carlos Victor de Sousa Ferreira, no artigo intitulado “Expressividades
da morte: rituais fúnebres e práticas mortuárias nos óbitos dos negros escra-
vizados na Freguesia de Nossa Senhora da Vitória (1868-1869)”, analisa os
registros de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória em São Luís
para compreender as causas de morte e os ritos fúnebres que envolveram os
escravizados. O estudo examina os aspectos simbólicos das práticas mor-
tuárias no século XIX, focalizando especialmente os ritos fúnebres ligados
aos escravizados, sejam eles crioulos ou africanos.
Marcos Ferreira Silva, em “Convocação e recrutamento de indígenas
das colônias e diretorias na Província do Maranhão para a Guerra do
Paraguai (1865-1870)”, propõe uma reavaliação da participação das po-
pulações indígenas no processo de recrutamento militar durante a Guerra
do Paraguai. O autor investiga como essas populações indígenas foram
envolvidas no conflito e busca compreender os interesses e motivações
por trás desse envolvimento, além de explorar o significado da guerra para
essas comunidades.
Mário Augusto Carvalho Bezerra, em Reunir para organizar o Impé-
rio: ‘cidadãos’ do Maranhão na Câmara dos Deputados”, investiga a insta-
lação, funcionamento e dinamismo da Câmara dos Deputados na primei-
ra legislatura do Império brasileiro. O estudo concentra-se na análise dos
parlamentares eleitos em São Luís no ano de 1825, destacando as relações
políticas estabelecidas em âmbito nacional.
Em seu artigo intitulado “O(s) lugar(es) do crime na urbe do século
XIX: um itinerário de pesquisa”, Paulo Henrique Matos de Jesus aborda
a escolha da cidade como objeto de estudo, destacando sua complexida-
de e a dificuldade de estabelecer um conceito definido. Examina o papel
da multidão na evolução da cidade, seja como trabalhadores adaptados à
rotina, delinquentes noturnos ou ameaças políticas ligadas à Revolução
Francesa e ao comunismo. O objetivo é investigar como a cidade de Paris
é percebida pelos escritores, enfatizando os espaços específicos propícios
para a ocorrência de eventos criminosos. Antes da haussmanização, esses
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ambientes se concentravam no centro da cidade medieval, expandindo-se
em direção ao oeste noroeste. Com o processo de haussmanização, obser-
va-se a migração do crime para os novos bairros da cidade e sua dissemi-
nação pelo ambiente urbano.
Por fim, Paulo Henrique Matos de Jesus, em seu artigo “Não pode-
mos mais tolerar uma polícia feita no improviso: História da Historio-
grafia da Polícia e uma conexão entre Europa e Brasil durante a Primeira
República (1889-1930)”, apresenta um roteiro inicial de pesquisa que tem
como objetivo investigar a circulação transnacional de saberes, práticas e
técnicas de policiamento entre a Europa e o Brasil nesse período. O autor
analisa as relações entre a produção de técnicas policiais europeias cientí-
ficas e seu intercâmbio com o estado do Maranhão, com foco na estrutura
do policiamento militar e civil em São Luís durante a Primeira República.
Além disso, o estudo examina a adoção de abordagens científicas no po-
liciamento e as demandas pela substituição do policiamento empírico por
um policiamento científico.
Ao reunir esses artigos, a coletânea busca demonstrar a diversidade
de abordagens que a pesquisa histórica pode assumir, tanto em termos de
temas investigados quanto de metodologias adotadas. Cada artigo traz con-
tribuições significativas para a compreensão da história, explorando dife-
rentes perspectivas e enriquecendo o campo historiográfico.
Cada um dos artigos apresentados nesta coletânea reflete a qualidade
e a originalidade da pesquisa desenvolvida pelos doutorandos e doutoran-
das do PPGHis-UFMA. O rigor metodológico, a análise crítica e a con-
tribuição para o campo historiográfico são características que se destacam
nesses trabalhos.
Acreditamos que esta coletânea será uma importante contribuição
para os estudos históricos, especialmente no contexto do Programa de
Pós-graduação em História e Conexões Atlânticas da Universidade Fe-
deral do Maranhão. Esperamos que os leitores encontrem nessas páginas
novos questionamentos, reflexões e diálogos que possam ampliar o conhe-
cimento sobre as múltiplas abordagens da pesquisa histórica.
Agradecemos a todos envolvidos na produção desta coletânea, bem
como ao quadro docente do Programa de Pós-graduação em História e
Conexões Atlânticas da UFMA pelo apoio e incentivo. Agradecemos tam-
bém à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) e, especialmente, ao vereador da Câmara Municipal de São Luís,
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Nato Jr. Que este trabalho inspire futuras pesquisas e promova o desenvol-
vimento acadêmico no campo da História.
Boa leitura!
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linguagens, religiosidades e culturas
a concubinagem como tática feminina
indígena no contexto do empreendimento
da frança equinocial (1612-1615)1
Introdução
1. Ressalta-se que as conclusões apresentadas neste artigo são oriundas da dissertação “De
feiticeiras diabólicas a auxiliares na empresa missionaria: as atuações das mulheres Tupi-
nambá no Maranhão franco-ameríndio (1594-1615)”, sob a orientação do professor Ale-
xandre Guida Navarro.
2. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlân-
ticas: Cultura e Poderes da Universidade Federal do Maranhão. São Luís, MA, Brasil.
E-mail: karencristinacosta@outlook.com. Atualmente doutoranda pela mesma instituição e
bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
A chegada das naus francesas ao Maranhão que traziam militares e
religiosos, no início do século XVII, estava inserida em um contexto de
disputas por espaços de atuação naquela parte do atlântico (CARDOSO,
2011). A França tentava pela segunda vez assegurar uma fatia do bolo, mes-
mo não tendo sido contemplada pela divisão estabelecida pelo Tratado de
Tordesilhas que entendia Portugal como detentora daquele domínio. An-
tes de se tornar uma cede administrativa em 1621, podemos encontrar nas
narrativas dos padres capuchinhos designações como Terra dos Tupinambá,
Ilha Grande do Maranhão ou Ilha de Upaon-Açu para se referir a costa mara-
nhense que naquele contexto indicava abranger a Capitania do Maranhão e
a sua área adjacente de influência, que incluía o Ceará (Serra de Ibiapaba),
bem como o (Pará, Amazonas e Tocantins), o que corresponde em boa
parte aos arredores atuais da Amazônia (CHAMBOULEYRON, 2016).
Neste vasto território, os militares e religiosos franceses instalaram-se
na Ilha de São Luís, atual capital do Maranhão, por onde começaram as
suas ações. Os padres nos seus escritos, descreveram o processo de evange-
lização, uma vez que as práticas de catequização foram uma das estratégias
utilizadas para alcançar a efetivação das políticas de dominação. Práticas
que visaram operar transformações no modo de vida nativo e para isso, seria
necessário desmanchar costumes considerados pecaminosos, como o casa-
mento nativo, entendido pelos missionários como concubinato.
O concubinato foi uma prática bastante presente no período colonial
brasileiro, considerada pelos missionários, a partir do prisma cristão, como
um dos pecados inaceitáveis, por isso, os religiosos empenharam-se em
muitos momentos de fiscalizar os indígenas e os seus hábitos culturais, a
fim de combater, por exemplo, a mancebia nas aldeias. No cotidiano das
aldeias, os padres não conseguiram impor suas vontades e desejos, na prá-
tica, as interações entre eles, os militares, comerciantes e indígenas foram
complexas e dinâmicas do que comumente se pensa.
O Maranhão do século XVI e boa parte do XVII, na condição de fron-
teira dos Impérios ibéricos na América foi disputada entre portugueses,
espanhóis, franceses e holandeses. Hal Langfur definiu fronteira como uma
área distante da sociedade já estabelecida: “[ou em vias de se estabelecer],
mas central para os povos indígenas, onde uma consolidação ainda não foi
assegurada e onde ainda paira uma dúvida sobre o desfecho dos encontros
culturais multiétnicos” (LANGFUR, 2006: 05).
Nesse contexto fronteiriço, a evangelização dos padres capuchinhos
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no contexto da França Equinocial, configurou-se de maneira complexa e
instável, caracterizada por tensões, avanços e recuos, uma vez que vivencia-
ram as disputas atlânticas, o que colocava-os na condição de dependentes
de algumas famílias indígenas para sobreviverem e manterem a sua missão
naquelas terras. Tal situação de interdependência entre franceses e indíge-
nas, forneceu oportunidades para a atuação política de algumas mulheres
indígenas, atuação que se deu por meio dos casamentos nos moldes nativos,
longe da visão de progenitoras ou objetos sexuais.
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experiências de vida são fundamentais para compreensão da mesma. Acerca
destas considerações, as ponderações feitas por Michel de Certeau (1994, p.
41) no livro A invenção do cotidiano são essenciais. O autor argumenta que
os mecanismos de poder, regulamentação da sociedade que tentam contro-
lar a vida dos homens e mulheres, podem ser burlados através de práticas,
táticas e estratégias de sobrevivência que os indivíduos criam na dinâmica
cotidiana. A vida social torna-se espaço de negociação dentro de um coti-
diano improvisado, sempre possível de ser reinventado.
As mulheres indígenas, por exemplo, vendo os seus espaços de poder
limitados pelas normas implantadas pelos colonizadores àquela sociedade,
precisaram agir de forma a identificar as fragilidades na lógica social na qual
estavam inseridas. Por consequência, a experiência adquirida nestes espaços
possibilitava a criação de outras lógicas que, na maioria das vezes, divergiam
daquelas colocadas pelos colonizadores, ou seja, os sujeitos em interação as-
similam o espaço e atribuem-lhes novos significados a partir das suas ações
cotidianas (CONCEIÇÃO; NAVARRO, 2020; GARCIA, 2015).
As ações elaboradas pelas mulheres indígenas no cotidiano colonial,
refletem aquilo que Certeau denominou de táticas. Acerca do conceito de
tática, o autor explica:
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a serviço de regras, costumes ou convicções estranhas à colonização [...].
Eles metaforizaram a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro
registro. Permaneciam outros no sistema que assimilavam e que os as-
similava exteriormente. Modificando-o sem deixá-lo. Procedimentos de
consumo conservavam a sua diferença no próprio espaço organizado pelo
ocupante (1994, p. 41).
Contratos de hospitalidade:
táticas femininas de sobrevivência física e cultural
Este facto tão triste de tal sorte commoveo a coragem do meo Rei, que
elle me mandou em companhia de outros para vos auxiliar, tanto com o
meo procedimento como por minha coragem e pelo valor dos bravos f’ran-
cezes que eu trouxe [...] Quanto ao auxilio, que tu e os teos nos prestam
para dificar nossa fortalezas, receberemos para tua e nossa segurança, e o
nosso estabelecimento será o benefício e a riqueza do vosso paiz de vossos
19
vindouros, iguaes d’ora em diante á nós saberão o que nós soubermos (AB-
BEVILLE, 1975, p. 76-77).
Para que a aliança pudesse ser firmada entre as partes, o francês Charles
Des-Vaux que habitava há alguns anos a costa maranhense depois de um
naufrágio, discursou às lideranças indígenas, informando-as da necessidade
de conversão ao cristianismo:
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do modelo matrimonial católico nestes espaços. Os padres enviados para
enfrentar a tarefa de catequizar os indígenas, evidenciaram em diferentes
passagens dos relatos a prática do concubinato que persistia diante das ten-
tativas de cristianização.
Numa proferição do padre Yves D’Évreux, aparecia a preocupação com
as formas de arranjos matrimoniais indígenas:
Quanto aos outros cristãos, que são seos Filhos pelo baptismo, Deos lhe
concede liberdade de se cazarem, se lhes apraz, porem com uma mulher só
e unicamente, e as mulheres consentem tambem que tenham um só e úni-
co marido sem nunca poder deixa-lo: si por ventura se separam marido e
mulher, não podem buscar outra união, por que os homens, que tem muita
mulheres e as mulheres muitos homens não são verdadeiros filhos do gran-
de Tupan, porém servos de Jeropary, que é o diabo [...]. É deshonra para
vó a prostituição de vossa filhas, e o entregarem-se ellas a quem quer que
seja, como fazem, bem mostrais que sois filhos de Jeropary si desejais evitar
os tormentos, que elle vos prepara, convem deixar todos este’ mau costume
e serdes verdadeiros fillos de Tupam (ABBEVILLE, 1975, p. 80).
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O contrato de hospitalidade iniciava-se quando uma família indígena
se dispunha a acolher na sua residência algum francês, o padre Évreux men-
cionou que os indígenas recebiam e eram excelentes hospedeiros:
Se há nação no mundo que goste de fazer bom acolhimento aos seus ami-
gos recém-chegados, e que os receba em suas casas, sem dúvida alguma os
tupinambás ocupam o primeiro lugar à vista de como procederam com os
franceses”. Logo que avistam um navio que trazia os franceses, anunciavam
alguns índios a notícia da chegada dos franceses por todas as aldeias: “Aurt
Navire suay” “aí vêm os grandes navios de França”. Imediatamente tomam
suas roupas, e principiam a falar uns aos outros por esta forma: Aí vêm
navios da França, e eu vou ter um bom compadre, ele me dará machados,
foices, facas, espadas e roupa; eu lhe darei minha filha, irei pescar e caçar
para ele, plantarei muito algodão, dar-lhe-ei gaviões e âmbar, e ficarei rico,
porque hei de escolher um bom compadre que tenha muitas mercadorias.
[...] os mais impacientes vão em suas canoas a bordo do navio, ancorado
na enseada, indagar se vieram seus velhos Chetuassaps, e avaliar qual é o
francês que traz mais gêneros para lhes oferecer seu compadrio, sua casa e
sua filha. (ÉVREUX, 2007, p. 216).
O trecho do relato do padre Évreux indica que havia interesse por parte
da mãe e da própria indígena nos contratos com os franceses:
Não podemos falar com total segurança quais seriam os interesses das
mulheres indígenas com os casamentos por contrato de hospitalidade, po-
rém as narrativas dão algumas pistas, uma delas tem relação com o acesso
às mercadorias, principalmente objetos feitos de metal advindos da Europa,
e a outra estaria na busca por aliados que pudessem protegê-los contra os
seus inimigos. O missionário ressaltou o empenho em atrair a aliança de
hospitalidade logo quando o francês desembarcava:
Apenas salta o francês, é logo rodeado por eles: homens e mulheres mos-
tram-se prazenteiros, presenteiam-no com víveres, convidam-no para
compadre, oferecem-se para levar-lhe sua bagagem, enfim fazem o que
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podem para contenta-lo e ganhar sua boa graça. Não tem inveja um do
outro por estar um francês em casa de outro; o que primeiro se apresenta
é que leva o hospede, sem o menor problema, e nem por isso se insultam
(ÉVREUX, 2007, p. 216).
Outro ponto a ser discutido é acerca do perfil dos cônjuges, visto que
em muitos momentos, os interesses de ambos os lados se mostraram con-
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vergentes, porém cada grupo possuía a sua própria motivação. É plausível
de se especular que os primeiros a terem as alianças de hospitalidade com os
indígenas, ou seja, a união matrimonial com as nativas, foram os franceses,
chamados de truchements, que possivelmente se estabeleceram na passa-
gem do século XVI para o XVII, e eram os encarregados de estabelecer
relações amistosas com os indígenas para o funcionamento do regime de
feitorias (economia de escambo) (DAHER, 2002: 74).
Uma prática comum dentre os franceses, na época, consistia em enviar
meninos e jovens, provavelmente das regiões próximas aos portos da Nor-
mandia, para que integrassem às sociedades indígenas, isso provavelmente
ocorreu ainda na primeira metade do século XVI. Quando os navios apor-
tavam na costa maranhense, vindo da França, eram os truchements que
operacionalizaram o comércio com os indígenas e serviram de intérpretes
aos marinheiros franceses (DAHER, 2002: 74).
Por intermédio das mulheres indígenas, os mercadores puderam entrar
na tessitura social Tupinambá, o que garantia aos adventícios a garantia
das relações comerciais. Com o tempo, essas relações acabaram por ge-
rar uma alastrada mestiçagem (DAHER, 2002: 74). Quando o padre Yves
D’Évreux chegou à região em 1612, as alianças de hospitalidade já estavam
ocorrendo aproximadamente há uns cinquenta anos, havia muitos mestiços
que eram filhos de uma mãe Tupinambá e um pai francês:
Este costume de receber as filhas dos selvagens foi proibido aos franceses,
e não é mais praticado, a não ser às ocultas, e os próprios selvagens, que no
princípio desta proibição do costume de darem suas filhas desconfiaram,
24
logo que ficaram sabendo que Deus só permitia a posse da mulher por
meio do casamento, e que os padres, mensageiros de Deus, assim o prega-
vam e proibiam por ondem do Maioral, mostraram-se escandalizados por
verem os franceses fazer o contrário (ÉVREUX, 2007, p.18).
Por mais que houvesse uma proibição dessa prática, os padres tiveram
que se habituar e passaram a não insistir no desmonte desses enlaces, pos-
sivelmente esses acordos garantiam a perpetuação e manutenção do proje-
to de colonização, fortalecendo a povoação francesa. Possivelmente, esses
homens tinham interesses nos enlaces matrimoniais afim de fortalecer a
sua influência sobre a população nativa e garantir o seu acesso ao uso da
força de trabalho que era majoritariamente feminina entre os Tupinam-
bá. O que conferira aos adventícios prestígios nas estruturas indígenas
(MONTEIRO, 2000).
A respeito do interesse dos adventícios pelo trabalho desenvolvido
por elas, o padre Claude D’Abbeville mencionou que os afazeres agrícolas
eram tarefas femininas, assim como o preparo dos alimentos e o trans-
porte desses, nas expedições guerreiras, a produção dos diferentes tipos
de farinha, o fabrico dos utensílios de cerâmica para o armazenamento de
gêneros e bebidas. Todas essas tarefas eram realizadas pelas mulheres após
o casamento, tal como os Tupinambá, os franceses dependiam totalmente
do trabalho feminino.
Nesse sentido, muitas mulheres indígenas foram exploradas, através do
árduo trabalho que gradativamente se encaminhava para o sistema agroex-
portador, possivelmente gerou-se uma forte dependência do trabalho delas.
Visto que, durante os séculos XVI e XVII, as atividades econômicas que
poderiam prover de algum ganho o projeto colonial francês e mais tarde o
português naquela região, eram dependentes da força de trabalho indígena,
principalmente a feminina (BELOTTO, 1982).
Além da exploração do trabalho feminino, as relações matrimoniais
entre adventícios e nativas, trouxeram consigo consequências não conve-
nientes com os costumes indígenas, entre elas, a subordinação das mulheres
indígenas devido à sociedade patriarcal colonial. Mesmo que não houvesse
simetria entre os gêneros, muitas funções femininas e a maneira como pas-
saram a ser tratadas, sofreu profundas alterações com a estrutura patriarcal.
Sobre essa questão, a antropóloga Debra Picchi (2003), observou que entre
os indígenas Bakairi do Brasil central, a presença europeia levou a margi-
25
nalização e sublinhou o decréscimo da intervenção feminina nas decisões
nas aldeias, onde anteriormente elas pareciam deter mais o poder do que os
“líderes tradicionais”, do sexo masculino.
Por outro lado, os contratos matrimoniais de hospitalidade podem ser
entendidos como ações femininas no processo de colonização. Pode-se in-
ferir que a mulher nativa teve papel importante na subversão da lógica colo-
nial, uma vez que, apesar de todos os esforços dos padres para implantar o
casamento monogâmico cristão, houve uma permanência de outras práticas
de casamento baseado na visão nativa. Outra questão é que mulher indígena
parecia se constituir no nem de prestígio para os acordos, o estabelecimento
da reciprocidade entre as partes, isso se explica pelo seu poder econômico e
ritual entre os Tupinambá.
Conforme a historiadora Elisa Garcia (2015) o matrimônio entre os
muitos grupos indígenas de base Tupi, esteve relacionado à circulação de
mulheres, que entre outras coisas, servia para a ampliação da área de in-
fluência delas e das suas famílias. Esse sentido de reciprocidade não foi
compreendido pelos missionários que reconheciam a prática apenas como
ausência de moral.
Nessa mesma linha de interpretação, o estudo produzido pelo historia-
dor e antropólogo João Azevedo Fernandes (2003), intitulado De Cunha a
Mameluca, evidenciou que a forma de aliança entre alguns grupos indíge-
nas, entre eles, os Tupinambá, se dava por meio do casamento, era deste
modo que os dois grupos se solidarizavam, se aliavam. Ao invés de “ofertar”
a mulher, a família da esposa conquistava um aliado que passava a servi à
parentela (FERNANDES, 2003; CONCEIÇÃO, 2019; CONCEIÇÃO;
NAVARRO, 2020).
Nessa sociedade colonial, em que as hierarquias sociais organizavam o
cotidiano, os chamados contratos de hospitalidade poderiam representar as
suas táticas de subversão? É imaginável sugerir que a aliança de hospitali-
dade pareceu ter sido a janela de oportunidade para que as índias pudessem
sobreviver dentro de uma sociedade que se transformava e afetava os seus
espaços e práticas culturais. A questão que se coloca é: quem são essas mu-
lheres e os seus familiares? Apesar do papel de mediadoras que exerciam,
não necessariamente essas pessoas tinham posições de prestígio no grupo,
como as filhas e esposas de lideranças. O que chama atenção, apesar da
posição, essas mulheres e os seus familiares (não vinculados a uma liderança
indígena) parecem ter manejado os enlaces de concubinato enquanto tática,
26
principalmente uma tática feminina, em virtude dos relatos evidenciarem
que as mulheres, incentivadas por suas mães, queriam esse tipo de aliança
para garantia de sobrevivência ao processo de colonização.
Não é possível afirmar ao certo quais as motivações que levaram muitas
indígenas a optarem por pelos enlaces com os franceses. Reitero que essas
mulheres vivenciaram genocídios e escravização, além da perseguição das
suas práticas culturais, bem como, não estavam numa posição de destaque
no grupo, tais situações demonstram que elas decidiram tirar proveito da
presença francesa naquelas terras, seja para facilitar o acesso da sua paren-
tela as mercadorias vindas dos portos da França, mas também enquanto
garantias de proteção contra grupos inimigos, de sobrevivências das suas
práticas culturais e sociais, ou ainda, medida para colocá-las em melhores
condições nas negociações com as autoridades coloniais.
27
REFERÊNCIAS
Fontes
Bibliografia
28
CHAMBOULEYRON, R. O zelo de um tão grande herói. Os governa-
dores e a política portuguesa para a Amazônia colonial (século XVII e prin-
cípio do século XVIII). In: CAETANO, A. F. P. (org.). Dinâmicas sociais,
políticas e judiciais na América Lusa: hierarquias, poderes e governo (Século
XVI-XIX). Recife: Editora UFPE, 2016, p. 81-102.
LANGFUR, H. The ‘Useless People’: Free Persons of Color and the Racial
Geography of the Frontier. In: The Forbidden Lands. Stanford: Stanford
University Press, 2006. p. 1-17 e 127-160.
29
história e cinema no maranhão:
perspectivas narrativas
32
Podemos afirmar também que cinema é uma unidade de comunica-
ção discursiva e se constitui também como um espaço de dialogismos, de
interdiscursos, de metalinguagens, pois é um enunciado de materialidade
dialógica, imagética etc.
Desse modo, convém destacar que o cinema não ficou de fora do ofí-
cio do historiador. O cinema como objeto historiográfico foi inaugurado
por Marc Ferro, historiador da terceira geração da Escola dos Annales
(Nova História), em seu artigo intitulado “O filme: uma contra- análise
da sociedade?” publicado em 1971. Segundo Santiago Jr., “a obra pioneira
de Marc Ferro desempenhou, nesse momento, um papel fundamental,
quando um artefato, o filme, foi tirado de seu lugar funcional e transfor-
mado, pela ‘operação histórica’, em objeto fonte da disciplina histórica”.
O filme passou a ser a base de investigação da relação entre o cinema e
a história ou o cinema e a sociedade. Para Santiago Jr., Marc ferro “foi
fundamental para a delimitação do território do historiador” excluindo
aspectos de discussões já existentes entre a história do cinema e teorias do
cinema para evidenciar o campo da historiografia em relação ao que já se
exercia em outras áreas do conhecimento.
A ideia inaugurada pelo historiador Marc Ferro excluía outros aspec-
tos do filme e definia a perspectiva da película como um agente históri-
co, ou seja, “a leitura histórica do filme”, ou o filme como documento, e
uma “leitura cinematográfica da história“ através do filme como represen-
tatividade histórica, construindo coordenadas para pesquisa no Campo
Cinema e História Os trabalhos de Ferro se desdobraram ao longo de
décadas seguintes a respeito da necessidade de filmes serem considerados
documentos históricos, tendo sido reunidos no seu livro Cinema e Histó-
ria (compilação de seus artigos) através de suas pesquisas acerca do filme
como propaganda do governo soviético e do governo nazista na Europa.
Como compreender as práticas de realização de cinema no Maranhão
na construção do espaço fílmico como lugar de resistência e memória nas
décadas de 1970/80 no contexto local da ditadura civil-militar? A proble-
matização de tal questão pode ser inserida na perspectiva de ‘Linguagens
e Culturas” no campo emergente da História e Conexões Atlânticas mais
precisamente no contexto da história “cis-atlântica”, pois: “estuda lugares
particulares como localidades singulares dentro de um mundo Atlântico e
busca definir essa singularidade como o resultado da interação entre par-
ticularidades locais e uma rede mais ampla de conexões-e comparações”
33
(ARMITAGE, 2014, p. 212).
Logo é importante evidenciar as práticas de realização de cinema ama-
dor superoitistas do Maranhão interpelando com as práticas contexto eixo
sul-sudeste quanto no Nordeste do Brasil, assim como investigar outras
práticas transnacionais e acionar um pluralismo metodológico.
Na interface desta (cinema) com outras linguagens quanto à forma de
olhar, tratar e falar acerca da vida cotidiana, dialogaremos como um campo
específico denominado História e Cinema, onde se problematiza no sen-
tido amplo as relações entre cinema e historiografia que vão para além da
discussão de pensar “o filme como um documento de discussão de uma
época e seu estatuto como objeto de cultura que encena o passado e expres-
sa o presente” (CAPELATO et al, 2011, p. 10) diante da amplitude das
práticas culturais de cinema.
34
A existência do filme passou a ser um apêndice episódico na memória
a respeito da greve na posteridade. Contudo temos registros de que as
práticas de realização de cinema no Maranhão já vinham sendo materiali-
zadas desde 1973 com o documentário (realizado na cidade de Alcântara-
MA) A Festa do Divino (1973) realizado por Murilo Santos, membro do
LABORARTE
Diante do fenômeno das tecnologias digitais e popularização de pla-
taformas como o YouTube o filme A ILHA REBELDE OU A LUTA
PELA MEIA PASSAGEM (1980) emerge no ano de 2010 e finalmente
o filme realizado com a câmera filmadora amadora de bitola Super 8mm
do cineclube da Universidade Federal do Maranhão (Uirá) pôde ser visto
(ou revisto) e ganhou materialidade diante dos olhos ao passo que a di-
gitalização dá aura ao “original” (HUYSSEN, 2000) pois se para Walter
Benjamin a fotografia se constituiu como o meio primeiro de produção
no sentido genuinamente revolucionário, a digitalização e recuperação de
filmes constitui uma aura singular:
[...] com a mudança da fotografia para a sua reciclagem digital, a arte de repro-
dução mecânica de Benjamin (fotografia) recuperou a aura da originalidade. O
que mostra que o famoso argumento de Benjamin sobre a perda ou o declínio
da aura na modernidade era apenas uma parte da história; esqueceu-se que a
modernização, para começar, criou ela mesma a sua aura. Hoje é a digitalização
que dá aura à fotografia (HUYSSEN, 2000, p. 23).
35
muita câmera 8mm contrabandeada aqui. Muitas vezes as pessoas tinham
em casa uma câmera doméstica 8mm, mas nem usavam, ficavam guarda-
das”, apesar da caracterização de um artefato doméstico esses utensílios exi-
giam habilidades técnicas e eram utilizadas por classes médias e altas, como
será também a Super 8mm.
Desse modo, este filme sobre a greve de estudantes em São Luís- MA
é utilizado como ponto de partida para o percurso de investigação e pro-
blematização do fazer fílmico local, evidenciando a especificidade das prá-
ticas de realização de cinema no Maranhão sob a perspectiva da historio-
grafia. Trata-se de um período pontual (1970 à primeira metade dos anos
1980) onde os usos de uma câmera denominada Super 8 nos leva a chegar
a uma ideia de construção de espaços de fala ou ao que podemos chamar
de cinema superoitista ou cinema amador possibilitado por essa bitola, esse
dispositivo tecnológico/cultural que dialeticamente construiu uma prática
também estética, cultural e política.
A cinemática, ou seja, a imagem em movimento passou a exercer uma
relação democratizante através da produção dos usos de imagens no co-
tidiano doméstico, é um desdobramento do consumo principalmente de
câmeras Super 8, que se estabeleceu na década de 1970 como uma ferra-
menta na confecção de filmes caseiros possibilitando o exercício da lingua-
gem fílmica por meio do uso da câmera Super 8 - uma prática altamente
tecnológica recente na época.
Posteriormente, essa prática foi apropriada por indivíduos e grupos
com o propósito de registrar imagens em movimento, invertendo a ideia
inicial para qual o produto foi criado, para uso doméstico, pois inicialmen-
te o consumo das câmeras Super 8mm foram idealizadas para atender ao
mercado consumidor doméstico, o qual, segundo Roger Odin e a sua pro-
blematização sobre os modos de ver , se tratava de um modo privado de
produção de memória, porque o público do filme familiar é um público
privado pois, como sublinhou:
36
Portanto, os usos da Super 8 foram ressignificados, saltando (literal-
mente) do seu uso inicial direcionado. Em outras palavras, o uso privado
“narcisista” da classe média ganhou um caráter coletivo de “câmera andan-
te” com intencionalidades sociais, políticas e artísticas em todo o mundo.
Diante do campo de pesquisa “Cinema e História” (ou “História e
Cinema”), na historiografia, surgem novas perspectivas e abordagens en-
tre historiadores e historiadoras profissionais. Propõe-se um projeto teó-
rico-metodológico para problematizar a imagem em movimento (imagem
audiovisual), ou seja, uma abordagem “sócio-histórica cinematográfica”. A
partir dos anos 1970, o cinema é elevado à categoria de “novo objeto” e in-
corporado definitivamente à operação historiográfica, dentro dos domínios
da História Nova. Isso traz a problematização do produto fílmico como um
“documento fílmico” em relação à cultura da imagem. Sobre essa determi-
nada teoria na operação histórica, Rüsen afirma:
37
Do ponto de vista de Pola Ribeiro, havia uma hierarquia no cinema
brasileiro ao considerar a tecnologia utilizada (bitola) e a lógica dos discur-
sos de seus idealizadores, pois para ele “os filmes em 35 mm dedicam-se a
construir monumentos; os 16mm propõem-se lhes colocar questionamen-
tos; e os Super-8 vêm para jogar merda nos monumentos”.4
Não é demais lembrar que nas produções da indústria do cinema usa-
vam a câmera com rolos de películas de 35mm (padrão desde filme tempo-
rão) de largura. Na televisão, em sua prática de gravação e de transmissão
(antes do vídeo tape) usavam filmes de 16mm (câmera utilizada pelos an-
tropólogos desde a década de 1920), assim como, nas práticas de gêneros
documentais (profissionais).
A partir dessa interpretação de Pola Ribeiro sobre o superoitismo e seu
caráter subversivo e “desmonumentalizante” das imagens, podemos dialo-
gar com a ideia do artista e poeta piauiense Torquato Neto quando percebe
o poder democrático da câmera super 8 (em dizer/registrar) sobre as locali-
dades de cada um quando convoca as pessoas a pegarem uma super 8 e sair
por aí filmando o que se achava importante: “uma câmera na mão e o Brasil
no Olho ”, ideia que transcendia sua “opinião de que a realidade seria mais
educativa do que qualquer história” .
Diante da constatação que o superoitismo caracterizou as práticas de
realização de cinema no Maranhão a partir da década de 1970, CALDAS
(2016) problematizou a experiência de realização de cinema e amadora lo-
cal ao se apropriar do conceito de ‘bricolagem” de Michel de Certeau para
pensar essa práxis de ocupação do não-lugar de cineastas e construção de
espaços fílmicos a partir de filmes localizados que até então ainda não ha-
viam sido analisados e problematizados a partir de sua materialidade (recu-
perados e digitalizados).
Consequentemente analisou a emergência subterrânea das realiza-
ções superoitistas às telas de cinema com seus “modos de fazer” e “de falar”
do superoitismo no (do) Maranhão através da fabricação do espaço para
o público dessas realizações, ao ser criado o festival de cinema I Jornada
Maranhense de Superoito em 1977 que diante de seus desdobramentos se
configura na atualidade denominado Festival Guarnicê de Cinema ( passou
38
a se identificar assim a partir de 2002 até o momento, a sua 46ª edição em
2023) um dos mais antigos festivais do país.
O Festival na sua inauguração sofreu censura prévia, e entre os fil-
mes que tiveram intervenção, foi o filme ZBM S/A de José da Conceição
Martins (consta em jornais da época).
A autora também compreende que o superoitismo caracteriza a cons-
trução de sentido de invenção do cinema como prática de realização na
história local através de ações subterrâneas iniciadas pelo LABORARTE
com o filme Maré Memória (1974) passando pelo exercício do cineclu-
be universitário Uirá da UFMA (participando e ganhando prêmios em
festivais) até emergir à condição de apropriação de espaço a partir da I
Jornada Maranhense de Super 8 em 1977 (monumento da geração 70),
construindo também um outro sentido, o de invenção de tradições recen-
tes de cinema local.
Dado este longo tempo, vale sublinhar que o evento carrega em si
uma dinâmica histórica decorrente de práticas de uma geração que, por
entrecruzamentos sociais e dinâmicas culturais, inventou tradições nos
campos do teatro, da música e do cinema.
Não é demais esclarecer que se compreende e se utiliza o conceito de
invenção da tradição nas práticas de realização de cinema local no Mara-
nhão, segundo os termos de Hobsbawm, para nossa problematização da
referida observação. Para ele:
39
silenciamento dessas práticas cinematográficas até a emergência do primei-
ro festival de realizadores locais de cinema amador em 1977.
Dessa forma, para chegarmos a tal assertiva, compartilhamos também
da ideia de Maurice Halbwachs sobre a importância da memória coletiva
dos grupos superoitistas, pois segundo o autor:
40
memória ( tão caras na atualidade, pois “toda história é contemporânea”)
através do campo de observação da História e Cinema surgem interro-
gações sob a experiência de pesquisa no que diz respeito às práticas de
realização de cinema no Maranhão nas décadas de 1970 e 1980, levando
em consideração a construção de uma recente prática de problematização
historiográfica no Maranhão nossa investigação tem como objetivo evi-
denciar um ponto indispensável sobre esse recorte temporal da história
recente: o contexto da ditadura civil-militar e as tensões nessas relações
entre o estado e as realizações de cinema locais , assim como discutir a
amplitude de documentos, sujeitos e objetos históricos na complexidade
das relações entre construções de documentos, temporalidades e o ofício
dos historiadores e historiadoras na escrita da história.
As maneiras de fazer e dizer superoitistas contextualizaram novas for-
mas de olhar sobre determinados elementos, em determinadas situações,
de formas diferentes e sobre diversos sujeitos. O superoitismo foi segura-
mente ferramenta na tática de construção de espaço e de fala de resistência
sobre questões marginais e subterrâneas, assim como sua própria condição
de bricolagem cinematográfica na “escrita da história”, pois o cinema tam-
bém é lugar de memória.
Nessa perspectiva, dialogamos com Bill Nichols quando argumentou
que “todo filme é um documentário’. Mesmo a mais extravagante das ficções
evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que
fazem parte dela. As práticas do fazer fílmico, em suas várias experiências,
adquirem várias intencionalidades, seja no contexto político ou em casos
específicos de autoafirmação diante de situações historicamente datadas.
Portanto o superoitismo inventa o cinema como prática de produção
de discursos no Maranhão, uma outra vaga como espaço para se falar e
fazer sobre. Logo, as maneiras de fazer e dizer superoitistas contextuali-
zaram novas formas de olhar sobre determinados elementos, em deter-
minadas situações, de formas diferentes e sobre diversos sujeitos. O su-
peroitismo foi seguramente ferramenta na tática de construção de espaço
e de fala de questões subterrâneas, assim como sua própria condição de
bricolagem cinematográfica na construção da narrativa historiográfica so-
bre o Maranhão.
41
REFERÊNCIAS
42
Terra, 2010.
43
ODIN, R. A questão do público: uma abordagem semiopragamática. IN:
RAMOS, F. P. (Org). Teoria Contemporânea do cinema, volume II. São
Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005.
FILMOGRAFIA
44
Santos. São Luís: MA, 1983, Super 8mm.
45
mulheres na educação na memória de
antônio sampaio pereira – piauí (1900-1930)
48
sobre os espaços e as pessoas, evidenciando os detalhes de comportamentos
e físicos dos professores, como de Janoca que era tida como solteirona e de
chora fácil e também as vivências em ambiente escolar, como os castigos
físicos em qual se utilizava à palmatória e de atitudes que colocaria a criança
em condições subjugada.
Além desses momentos e características os locais de ensino e a cidade
de Esperantina seriam o local de memória do sujeito estudado, de acordo
com o entendimento proporcionado por Pierre Nora (1993). O pertenci-
mento de Antônio Sampaio é percebido a partir de sua referência de local,
principalmente do povoado em qual fez parte Retiro de Boa Esperança.
O sentimento de pertencimento a um grupo ou a um local retrata bem a
construção da memória de Sampaio Pereira, pois muitos acontecimentos
não lhe atingiram, mas ao participar daquela sociedade e ter ligações com o
ambiente local acabou por tomar as memórias do grupo para criar de forma
cronológica uma história da educação de Esperantina.
Ele toma como referências as vivências de um local e se conecta aos
acontecimentos que aconteciam pelo Estado, como é possível perceber pe-
las Mensagens Governamentais do período em que os governadores dis-
cursão sobre os seus anseios sobre a educação e sobre a atuação feminina
no cargo de professoras por todo Estado. Revelando à vontade em prol de
inserção feminina nas Escola Normal e nas escolas infantis.
Como forma de interpretar os traços culturais pode-se dialogar com
os conhecimentos sobre as memórias produzidos por Aleida Assmann em
Espaços de Recordação (2011), por perceber que os sujeitos falam de si e dos
outros nos seus escritos. Essas memórias são recordações ou rememorações
sobre o passado, em quais são dadas as suas significações de acordo com o
que se pretende construir sobre o tempo e os sujeitos. Constrói-se o que
quer dar visibilidade e silencia-se o que pretende esconder, provoca um
processo de memória montada de acordo com os desejos dos sujeitos, não
se ver a memória como algo espontânea e despretensiosa.
Essas memórias são criadas a partir dos interesses individuais ou co-
letivos em que, muitas vezes, se direcionam para a formação de repre-
sentação de si ou de algo. Isso pode ser percebido pelas seleções e frag-
mentações de informações sobre o passado que se mostra descontínuo e
elaborado através das linguagens.
Para isso trago a contribuição de José D’Assunção Barros (2009) sobre
a memória que deve ser superada como um depósito de informações que
49
estão lá disponíveis esperando pelo historiador para consultá-la, mas como
algo criativo que está em pleno movimento de construção e desconstrução
para os indivíduos e os grupos sociais. “A memória dá-se de maneira ati-
va e dinâmica, envolvendo diversos aspectos, tal como o “comportamento
narrativo” (BARROS, 2009, p. 41), sendo necessário o uso da Linguagem
para que se tenha de fato clareza a memória como uma possibilidade de
desenvolvimento do conhecimento histórico.
Por último pretende-se pensar através das representações nas práticas
culturais em que se cria as significações sobre os sujeitos de acordo com os
interesses individuais ou coletivos. As representações podem ser entendidas
como fabricações de modelos a serem seguidos pelos sujeitos, o que pode
gerar o enquadramento desses nos modelos ou um processo de exclusão
(CHARTIER, 1990). Representa-se o desejável e o indesejável com o in-
tuito de intitular os sujeitos como pertencentes em categorias culturais e
sociais de um tempo e de um espaço, assim delineia-se modelos nos corpos
existentes a fim de que eles sejam modelos a serem seguidos ou não.
Essa abordagem teórica sobre a memória contribuirá para entender
as construções presentes nas produções discursivas, em que são escolhidas
as formas em que iriam retratar a formação de um grupo de professoras
habilitadas pelo poder público estadual para atuação nas escolas primárias
como coloca Antônio Sampaio Pereira. Essas mulheres eram retratadas
como agentes do poder público que conduziriam a população, em especial
as crianças, para os desenvolvimentos sociais tão estimados na República
e como representações do que seria ser mãe, mulher e esposa ao serem co-
locadas como responsáveis pelas crianças nas escolas e em outros espaços
públicos, oportunidade de obtenção de esposas com conhecimento cientí-
fico e doméstico as quais contribuiriam para a manutenção do casamento
e da família no espaço privado.
50
ensino pelo Brasil, isso estava ligado ao modelo de política instalado, a
República, que contava com o voto como uma das formas de exercer o
direito político nas eleições.
A República se configura como um momento de jogo político que atin-
ge a esfera da educação diante da necessidade de formar uma população al-
fabetizada que pudesse votar. Dessa forma, educar uma grande quantidade
de pessoas era uma das questões da República nos anos iniciais do século
XX, mas isso requeria que o poder público investisse em um ensino que
atingisse a parte mais pobre da sociedade, assim deveria ser um momento
de educar os pobres para que o número de votantes aumentasse.
Para que houvesse o aumento de pessoas educadas a educação teve que
se expandir para vários locais do Estado do Piauí, com o intuito de alcançar
uma maior demanda da população que não se encontrava na capital. Diante
dessa expansão é possível analisar fragmentos das histórias de povoados que
aos poucos, até mesmo de forma rudimentar passaram a desenvolver um
pouco do ensino.
Para a contribuição dessa expansão educacional este artigo aborda as
memórias de Antônio Sampaio Pereira em Velhas Escolas-Grandes Mestres
(1996), o qual conta as suas memórias sobre a educação no final do século
XIX e nas primeiras décadas do século XX no Retiro da Boa Esperança, ci-
dade de Esperantina no interior do Piauí. O mesmo evidencia a atuação dos
professores, os ambientes de ensino e a relação entre o mestre e o aprendiz,
e também desses com a sociedade.
Sampaio ainda retrata o processo de modernização pelo qual estava
passando o ensino nas primeiras décadas do século XX, devido a maior
participação do Estado do Piauí no desenvolvimento e aplicação do mesmo
diante das pretensões educacionais trazidas pelas ideias de modernização da
educação no período referente ao que seria a Primeira da República Bra-
sileira. A modernização provocada pelo poder público estadual acontecia
desde a mudança quanto ao ambiente escolar, a mão de obra necessária para
as atividades de professor, até mesmo as pedagogias, como o abandono do
uso de castigos físicos.
Antônio Sampaio Pereira evidencia o papel desempenhado pelos pro-
fessores, os quais tinham com o objetivo passarem os seus ensinamentos
para uma grande quantidade de alunos, os mesmos atuaram em povoados
ou em regiões com núcleos habitacionais de maior densidade demográfica
onde poderiam se fixar por tempo indeterminado, em que sua permanên-
51
cia dependia do pagamento pelos seus serviços prestados. Dessa maneira,
quando na localidade em que se fixava o ensino fosse suficiente e não hou-
vesse mais alunos para serem educados, caberia a ele se deslocar para outro
lugar que necessitava de seus serviços. Pois “quando começava a escassear a
safra de discípulos, isto é, quando os meninos em ponto de escola já esta-
vam devidamente letrados, em vez de esperar por nova rebação, mestre Be-
larmino, à guisa de dar provimento aos encargos do lar, fazia como fazem as
aves de arribação, ruflam as asas e levantam voo” (PEREIRA, 1996, p. 18).
Também a relação dos mestres com os seus discípulos é evidenciada
por Antônio Sampaio Pereira possibilitando perceber a pedagogia que es-
tava em voga nessa. O poder do mestre sobre o aprendiz era determinado
através de sua postura e função de disciplinador intelectual e também da
formação dos corpos. No entanto, o uso da autoridade que lhe era destinada
possibilitava comportamentos de exacerbado poder os quais utilizava cas-
tigos físicos e também de exposições dos alunos, as quais os colocavam em
situações de constrangimento. Assim, aos castigos se configuravam como
extremamente duros para que fosse dada aos professores uma autoridade
superior, atribuindo-lhes a fama de serem carrascos, os quais não hesitariam
em aplicas correções aos seus aprendizes.
52
vistos como possibilidade de mudança do meio social ao ensinarem às
crianças as primeiras letras e a fazerem algumas contas de matemática.
Essas além dos ensinos tidos como habituais, também adquiriam conhe-
cimento sobre outras ciências, pois quando o mestre “descobria que um
discípulo era mais curioso do que os outros, passava-lhe, reservadamente,
outras ciências, tendo saído de sua casa grandes e respeitados benzedores”
(PEREIRA, 1996, p. 22).
A mudança inicial aconteceu com o abandono do uso de ambientes
escolares privados para o uso de escolas públicas através da criação de
estabelecimentos escolares do governo estadual. Nesse momento a cons-
trução da escola ou de um ambiente escolar passou a ser responsabilidade
do Estado, assim não cabia mais a população a manutenção a seus custos
de um ambiente.
Além disso, também com a mudança no ensino houve a substituição
do educador, o mestre foi retirado do ensino infantil aos poucos, dando
espaço para
as professoras que no início do século XX eram contratadas pelo Es-
tado. A atuação das mulheres no ensino estava ligada a ideia de moderni-
zação do mesmo, sendo o poder público responsável para que acontecesse
esse processo de inserção feminina na educação.
53
taca e defende a substituição dos mestres pelas professoras afirmando que
isso não causaria resultados negativos ao Piauí.
54
Quando o governo havia mandando a professora, foi logo recomendado
que na escola dele não havia palmatória, nem tão pouco era para se bater
em filho alheio. Em vez de maltratos e duros castigos, a meninada devia
ser mandada para o meio da rua, para os folguedos do recreio, onde fica-
vam soltinhos da silva, pulando e metendo de cabeça, como porco brincan-
do com palha, adivinhando chuva (PEREIRA, 1996, p. 53).
55
Conclusão
56
dança da concepção de atuação feminina diante do ensino, a qual ocupou o
lugar antes de presença apenas masculina. Além disso, a criação da Escola
Normal foi determinante para que a nova pedagogia fosse inserida no en-
sino piauiense, pois era através do ensino normal que acontecia a formação
das futuras professoras sob as novas metodologias e práticas.
Dessa maneira, nas três primeiras décadas do século XX, a educação
destinada não apenas à infância, mais também ao ensino das normalistas
trouxe mudanças, novidades do mundo moderno no campo pedagógico,
educação essa foi perpassada pelos conhecimentos intelectual, moral e cí-
vico e também sobre o corpo. Os quais se destinavam para o desenvolvi-
mento social, nacional e estadual.
Essas mudanças de sujeitos, de condições e também da expansão
da educação no Piauí nas primeiras décadas do século XX passam a ser
perceptível na memória de Antônio Sampaio Pereira e também por do-
cumentos oficiais produzidos pelo poder público do Estado do Piauí. A
comparação desses dois tipos de fontes históricas, que sendo de natureza
diferente nos mostra que a história pode ser produzida a partir de fontes
de memória e literária não sendo entendidas como fontes que não devem
ser questionadas, assim como as fontes ditas primárias que também devem
ser trabalhadas como fontes de produções históricas, as quais passam por
ações de subjetividades.
A subjetividade aqui que mais interessa é a de Antônio Sampaio por
representar de forma rica a mudança de uma velha forma de educar em prol
e uma nova, que adotou modelos de civilidades, novas pedagogias e novos
sujeitos: o feminino e o infantil. Essa subjetividade, no entanto, não é per-
cebida como uma escrita que trata de forma real o que aconteceu, mas que
através dos objetos e sujeitos participantes ou não da história de vida, mes-
mo que de maneira fragmentada, dele possibilitaram a formação de uma
fonte para a produção historiográfica.
REFERÊNCIAS
57
tempo e espaço”. MOUSEION, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009.
58
traços de produções históricas piauienses:
o uso do gênero na história local
Introdução
60
sado e as ações dos historiadores para isso, mostrando que os objetos de
estudo ganham destaque a partir de sujeitos que selecionam fatos e sujeitos
que desejam evidenciar e silenciam outros, assim como ocorreu com a cons-
trução da história do Brasil que por muito tempo elegeu se conhecer apenas
os sujeitos e discursos dos vencedores.
Para isso pensarmos nas produções e nas pesquisas sobre a história do
Brasil podemos abordar o texto de José Honório Rodrigues intitulado A
pesquisa histórica no Brasil (RODRIGUES, 1978). De acordo com o autor
a pesquisa é a descoberta de novos fatos históricos e também de críticas
documentais que tem com função além de dar as informações, e também
comprovar que eles existiram, possibilitando que eles possam ser usados
na produção histórica. Além disso Rodrigues também coloca que “cabe à
história reunir os acontecimentos de tal modo que o sucedido fique repre-
sentado diretamente aos nossos olhos, depois devemos estabelecer os laços
dos acontecimentos” (RODRIGUES, 1978: p. 24).
Dessa maneira cabe ao historiador criar ligações entre os fatos através
da narrativa que ele cria, não existindo nenhum fato histórico isolado,
havendo a necessidade de haver um conjunto de acontecimentos ou fatos
históricos. Pois o papel do historiador é selecionar e dar luz a alguns des-
ses, já que não é possível criação de uma história que consiga comportar
todos eles, assim ele os julga e os determina quais serão mais úteis diante
da produção que pretende criar.
Além disso, é possível se pensar na construção da história do Brasil
diante das vontades e determinações desde a criação do Instituto Históri-
co e Geográfico Brasileiro no dia 21 de outubro de 1838 até as produções
atuais. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro asso-
ciou-se ao nacionalismo que era presente no Brasil após a independência
e também pelas produções do romantismo, sendo norteado pela elite po-
lítica “moderada” que tinha pensamento político e histórico nitidamente
historicista. “A principal finalidade do IHGB era o desenvolvimento dos
conhecimentos geográficos e históricos no Brasil, pelo estimulo a pesqui-
sa com o reconhecimento, nas províncias e no exterior, de documentos
relativos à formação brasileira, pelo estimulo à produção de trabalhos”
(RODRIGUES, 1978: p. 10-11).
As produções após a criação do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro ampliou-se as temáticas de estudo sobre a história do Brasil, pos-
sibilitando o aparecimento de outros sujeitos (negros, pobres, imigran-
61
tes, mulheres e crianças) como também de outras formas de se escrever
história (cultural, social e mentalidades) em especial nos anos de 1960
até hoje. Assim o presente trabalho tem como objetivo delinear através
da produção historiográfica nacional e piauiense sobre as representações
do feminino, partindo da perspectiva das novas produções históricas pelo
estudo do gênero e da história das mulheres. Para isso este trabalho de
forma inicial as questões sobre a história e sua consolidação através da
historiografia brasileira.
62
exemplo o pioneiro Jules Michelet que além de usar documentos oficiais do
Estado também utilizou a sua subjetividade.
Questionamentos foram levantados diante da novidade do uso da va-
riedade de fontes. A ampliação da concepção do que se entendia não se
deu de maneira fácil e simples, pois já havia se institucionalizado que a
produção historiográfica estava atrelada ao uso de documentações oficiais
e que através destas é que se poderia alcançar àquilo que se achava que era
a verdade sobre os acontecimentos, a história de fato/real. No entanto,
com a contribuição de uma grande produção de ensaios, obras e publica-
ções nas revistas historiográficas o embate a este conceito de fonte se fez
de maneira forte e eficaz, possibilitando cada vez mais o alargamento de
possibilidades de fontes.
Na contemporaneidade, entretanto, os modelos que mais atraíram
os historiadores “são aqueles que enfatizam a liberdade de escolha das
pessoas comuns, suas estratégias, sua capacidade de explorar as incon-
sistências ou incoerências dos sistemas sociais e políticos, para encontrar
brechas através das quais possam se introduzir ou frestas em que consigam
sobreviver” (BURKE, 1992: p. 32).
A expansão não se deu apenas o campo metodológico e na teoria, mas
também no âmbito espacial. O alargamento das fronteiras foi bem maior,
pois a França deixou de ser o lugar de concentração de historiadores dessa
nova maneira de se fazer história, abrindo caminho e lugar para novos
historiadores de diversos países da Europa ou de outras regiões, como o
Estado Unidos da América o qual teve Joan Scott como uma representan-
te de grande destaque na área de estudos sobre gênero nas últimas décadas
do século XX.
Com Nova História essas formas de alargamento de possibilidades de
inserção de novos objetos de estudos, fontes, metodologias e também o
surgimento de novos historiadores tornou possível que se estudasse de for-
ma mais eficaz a história das mulheres assim como é evidenciada na obra
A escrita da história (BURKE, 1992), onde tem um espaço destinado para a
exposição referente a essa história desenvolvida pela autora Joan Scott.
A autora evidencia a participação da mulher nas questões referentes
à construção do saber historiográfico, em especial nas décadas da segunda
metade do século XX, quando ocorre uma conexão direta entre a história
das mulheres e a política (algo que é ao mesmo tempo lógico e complexo),
se destaca a década de 1960 quando é forte a ligação entre estas.
63
No entanto, mais tarde, nos anos 1970 e 1980, a história das mulheres
se afastou progressivamente da política, ampliando o seu campo de ques-
tionamentos, documentando todos os aspectos da vida das mulheres que
ocorreram no passado, e dessa maneira se adquiriu a sua própria maneira de
tratar sobre as relações sociais, em especial aquilo que se chamou de gênero
(visto como uma divisão natural dos sexos). A emergência da história das
mulheres como um campo de estudo consolidado envolve a evolução do
feminismo para as mulheres e daí então para o gênero.
Segundo a autora Joan Scott a história dessa área de estudo não requer
somente uma narrativa linear, mas algo mais complexo, que não deixe para
trás a posição variável da mulher na história, o movimento feminista e a
disciplina da história. Com isso, se deve levar em consideração todas as
conquistas e derrotas sofridas pelas mulheres, e não tentar formar heroínas
como se tinha como objetivo antigamente.
A construção desta história está atrelada ao que entende por produção
historiográfica. As concepções sobre o fazer histórico mudaram e criaram
maneiras para que surgissem novos campos de pesquisas e também novos
objetos de estudos, no caso trazendo as mulheres para a discussão sobre os
seus papeis desempenhados ao longo dos anos e mostrando o lugar que lhes
eram de direito na história e na produção desta.
A dificuldade na produção historiográfica de gênero é evidenciada pela
autora, pois segundo essa existe uma pequena quantidade de fontes (prin-
cipalmente a escrita) referentes às mulheres já que a sociedade era em suma
patriarcal e destinava a mulher uma posição de inferioridade, submissão as
regras que lhes eram impostas. Então o historiador que se destina a estu-
dá-las deve usar as novas fontes que se legitimaram, como as orais, icono-
gráficas e também as literárias que contém um grande acervo a respeito das
vivencias as mulheres.
Assim como expõe Michelle Perrot na obra Minha História das mulhe-
res (PERROT, 2012) que houve o rompimento do silêncio pois as mulheres
ficaram durante muito tempo fora da história, “destinadas a obscuridade de
uma inenarrável reprodução” (PERROT, 2012: p. 16). As razões por esse
silêncio se deram por as mulheres serem pouco vistas no espaço público, o
que por muito tempo era o mais relatado e ambiente de interesse, sendo a
essas destinado o ambiente privado fazendo com que fossem pouco visíveis
e por consequência pouco faladas.
Outra razão desse silêncio é o “silêncio das fontes”, pois os registros
64
sobre as mulheres são poucos devido a destruição de documentos que era
praticada pelas próprias mulheres por si desvalorizarem. E por essas fontes
terem sido escritas pelos os homens que deram pouco destaque as mulheres,
sendo muitas vezes reduzidas a estereótipos, pois essas mulheres eram re-
presentadas e imaginadas mais do que descritas de forma real, dificultando
o conhecimento de fato sobre elas.
No entanto a inserção da mulher na academia é percebida como uma
das causas principais que levaram as mulheres a serem estudadas, apesar de
que antigamente existissem homens que de forma aleatória estudavam algo
que se referia a essas, pois a luta para a construção de um saber da história
das mulheres ganhava força a partir da legitimidade que essas adquiriam,
em especial, no meio acadêmico histórico. Isso contribuiu de maneira ím-
par, pois com a participação da mulher na produção do conhecimento his-
toriográfico fez com que essas lutassem e conquistassem um espaço cada
vez mais amplo.
Logo, a Nova História teve grande importância para o desenvolvimento
da história das mulheres, na verdade para o desenvolvimento de algo muito
mais amplo e complexo que é a área de gênero que não se limita em estudar
apenas as mulheres, mas toda forma de sociabilidades diante do que cabe
tanto o homem como a mulher, fazendo com que eles tenham uma relação
de complementação. Pois a expansão aconteceu devido à nova concepção
de história, que fez com que os historiadores criassem novas formas de fazer
história e reinventassem aquilo que eles tinham como fonte historiográfica
fazendo com que eles observassem campos de estudos nunca antes pensados
pelos estudiosos, aumentando o entendimento sobre o humano.
Essas novas formas de se fazer história foram bastante criticadas no
Brasil, pois já se tinha a consolidação de estudo marxistas sobre a sociedade
que iam aos poucos sendo conquistado por estudos sobre a história social
e cultural sob perspectiva das Escolas dos Annales. No entanto essas novas
formas também foram vistas por alguns como uma possibilidade de amplia-
ção do conhecimento e de pesquisa, proporcionando a renovação da histó-
ria política brasileira e também de outras temáticas como a utilização do
cotidiano, micro-história, cultura e de outros personagens na historiografia.
Ainda assim no Brasil as produções sobre as mulheres ou as relações de
gênero se mostram pouco desenvolvidas em comparação com as produções
da escola francesa, algo que só ganha maior densidade a partir dos anos de
1970 e 1980 período onde ocorre a expansão do estudo do social e também
65
da história da família (QUEIROZ, 2005). Essas produções ganham força
na Universidade de São Paulo (USP) nesse período cujo principal foco era
a família e de forma tangencial se mostravam as mulheres. Disso também
se destacou o Centro de Estudos de Demografia da América Latina (CE-
DHAL) que deu luz as produções sobre família e mulheres que contou com
Maria Luiza Marcílio à frente. Além dela outros pesquisadores se destaca-
ram nesta temática de pesquisa como Eni Mesquita Samara que foco no es-
tudo das famílias e Maria Beatriz Nizza da Silva que desenvolveu trabalho
em torno da família, das mulheres e da educação.
Além dessas produções na Universidade de São Paulo (USP) também
houve no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná
(UFPr) onde ocorreu o avanço de não destinar mais a mulher e a família o
lugar secundário da pesquisa, mas sim o primeiro onde ocorreu produções
de Altiva Pilatti Balhana, Sérgio Odilon Nadalin e Etelvina Maria de Cas-
tro Trindade, entre outros mais. E também além dessas produções existiam
outras em outros grupos de pesquisas pelo Brasil como de Iraci Del Nero
da Costa, Ângela Mendes de Almeida, Ronaldo Vainfas, dentre outros que
não se destinaram mais a produzir apenas sobre família e mulher, mas sobre
casamentos, prostituições, maternidade e sexualidade.
Já no final da década de 1970 outras temáticas que se assemelhavam
a família e a mulheres passaram a ser exploradas sobretudo aquelas que se
destinavam a estudar em primeiro plano os sujeitos e as suas ações que eram
postas as margens, como no caso do estudo da escravidão no Brasil que deu
visibilidade as mulheres escravas e forras, as práticas sexuais e a organização
familiar. Isso possibilitou a entrada pelo mundo da pobreza e das mulheres
pobres como foi o caso da produção de Maria Odila Leite da Silva Dias.
No Brasil as produções sobre as mulheres tiveram Maria Odila Leite
da Silva Dias que é considerada como uma das percussoras e também uma
das maiores influenciadoras da História das Mulheres no Brasil com o livro
Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX (DIAS, 1984) onde desen-
volve o conceito de mulheres como categoria contribuiu para formação de
uma geração de historiadoras que desenvolvem trabalhos sobre a história
das mulheres e também sobre as relações de gênero. Onde neste livro Ma-
ria Odila Dias se refere a mulheres que vivem nas margens da sociedade e
do trabalho, sendo lavadeiras de beiras de rios e chafarizes, que fazem pe-
quenos trabalhos para o seu sustento, demonstrando que há outras leituras
sobre o cotidiano. No mesmo ano Miriam Moreira Leite organizou A con-
66
dição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes
estrangeiros. No ano de 1985 houve a contribuição de Margareth Rago
publicou Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930.
Neste mesmo período também houve a produção da Revista Brasileira
de História (1989) ondem continha as produções de outras autoras sobre
a história das mulheres como de Marta de Abreu Esteves com Meninas
perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque; Rachel Soihet publicou Condição feminina e formas de violência:
mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920; Eni de Mesquita Samara
com As mulheres, o poder e a família: São Paulo século XIX; Magali Engel
com Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro.
“Em meados da década de 1990, as histórias da família e da mulher
já estão relativamente mais difundidas em todo o Brasil, entretanto, os
núcleos citados são pioneiros e fundamentais em relação à constituição do
campo” (QUEIROZ, 2005: p. 20). Além disso, neste mesmo ano houve a
publicação da tradução do texto Gênero: uma categoria útil na análise his-
tórica (SCOTT,1995) pela Revista Educação e Realidade (UFRGS). No
entanto é possível e também necessário se considerar que esse texto de
Joan Scott não foi o único que exerceu influência nas produções sobre as
mulheres ou sobre gênero no Brasil, pois além de se utilizar a categoria de
gênero para análise histórica também se utilizou as categorias de mulher
e mulheres, teorias essas que são presentes em outras produções como de
Judith Butler e Linda Nicholson. Ainda neste período houve a consolida-
ção desse campo de conhecimento historiográfico com a constituição do
Grupo de Trabalho de Estudos de Gênero que tinha como pretensão a
criação de uma rede ou grupo de pesquisadoras para o estudo do gênero
no país. A articulação desse grupo junto com a Associação Nacional de
História em 2001 permitiu a criação durante o XXI Simpósio Nacional
de História que ocorreu no Rio de Janeiro, onde Rachel Soihet foi eleita
a coordenadora nacional do grupo de trabalho Estudos de Gênero, sendo
em 2007 substituída por Joana Maria Pedro.
Além desse grupo de estudo o gênero também se fez presente nas reu-
niões da Associação Nacional de História Oral onde se criou um grupo des-
tinado as discussões de gênero em 2002 ou ainda outras reuniões cientificas
como da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (Anpocs) que acontece todos os anos na cidade de Caxambu no
Estado de Minas Gerais e o Fazendo Gênero que acontece a cada dois anos
67
em Santa Catarina. Ainda ocorre produções de muitos trabalhos apresenta-
dos em eventos científicos e também publicados em revistas especializadas
ou não em gênero e história das mulheres como Revistas Estudos Feministas,
Espaço Feminino e Gênero, Revista Esboços e Revista Brasileira de História
(PEDRO; SOIHET, 2007: p. 283-284).
Além dessas produções sobre gênero também é necessário exemplifi-
car a contribuição sobre o objeto de pesquisa masculino com bases relacio-
nais, apontando a produção de Durval de Albuquerque Júnior que coloca
as masculinidades nordestinas em destaque nas produções historiográficas
brasileiras, como na sua obra Nordestino: invenção do ‘falo’: uma história do
gênero masculino (1920-1940) que é consagrada e referência nas pesquisas
sobre o masculino.
Dessa maneira ocorre a ampliação do objeto de pesquisa da família e
das mulheres para a multiplicidade do gênero pois
68
pla a análise tanto do masculino e do feminino durante as primeiras décadas
do século XX e também de Elizangela Barbosa Cardoso que ao analisar as
mulheres neste mesmo período adota a categoria de gênero, mostrando que
as mulheres viviam em correlação com os homens.
As produções de Pedro Vilarinho Castelo Branco sobre as mulheres
se deu na década de 1990 com a sua inserção ao mestrado em História em
Recife, no qual se destinou a conhecer a condição feminina em Teresina
no início do século XX face as modernizações e modificações ocorridas na
cidade e como elas poderiam ter influenciado os comportamentos femini-
nos, produzindo sua dissertação a qual deu origem a obra Mulheres plurais:
a condição feminina na Primeira República (2005).
Neste período a educação feminina apesar da criação da formação das
mulheres pela Escola Normal em Teresina que tinha como base o conheci-
mento científico, ainda se mostra voltada para o aprendizado das atividades
domésticas, sendo a casa a primeira célula familiar e também o local onde
se iniciava a o aprendizado feminino, pois as mulheres o ambiente privado
era destinado. Essa educação se dava ao aprendizado de costura, de cozi-
nhar, de cuidar dos filhos, dos membros familiares e do próprio ambiente
da casa e outros ensinos de cunho doméstico que eram repassados, em gran-
de maioria, pelas mães para as filhas.
A educação feminina das primeiras letras era mantida com dificuldades
diante da falta de uma política de Estado voltado para a educação formal
feminina, sendo difundida apenas a ideia de generalização da educação pelo
território estadual. No entanto na primeira década do século XX foi funda-
da a Escola Normal Livre sem a atuação do Estado e que tinha como carac-
terística o ensino laico, se distanciando do modelo de ensino religioso das
escolas confessionais, dando ênfase ao ensino das ciências, o cuidado com
o corpo pela higiene e também a formação de uma mulher sob o modelo
culto, com aprendizado de línguas estrangeiras e de música.
Além desse livro o autor Pedro Vilarinho Castelo Branco também tem
História e Masculinidade: práticas escriturísticas dos literatos e as vivências
masculinas no início do século XX (2008) no qual trata sobre as fases da
vida masculina no Piauí, desde a infância até a velhice. As divisões feitas
pelo autor nos permitem perceber as vivências e as práticas de que fazem
parte de cada fase através das memórias de piauienses, como de Raimundo
de Moura Rêgo em 1923 que saiu enquanto do campo para Teresina no
contexto de modernização do meio urbano, onde estudou na escola Ateneu
69
Teresinense, do Padre Cirilo Chaves. Evidenciando a preocupação familiar
com a formação escolar das crianças e dos adolescentes, mostrando o caráter
que a educação foi vista como indispensável para o sucesso na vida adulta.
Dessa maneira, assim como no outro livro o autor também contem-
pla a temática de família que eram estudadas em outros grupos de estudos
pelo Brasil, mas agora mostrando os seus integrantes como as mulheres e a
criança. No entanto, não deixa de lado a temática masculina em prol da fe-
minina, nos possibilitando perceber a complementariedade das temáticas e
dos sexos nas relações sociais e históricas, assim como propunha a utilização
da categoria gênero por Joan Scott.
As produções de Elizangela Barbosa Cardoso de dão nos anos 2000
tendo como base de análise a figura feminina, no entanto não a deslocando
e isolando do masculino, pois adota a perspectiva da categoria gênero para
análise do feminino do século XX, seja as primeiras décadas ou de 1930 a
1970. Em sua produção de 2003 de Múltiplas e singulares: História e me-
mória das estudantes universitárias em Teresina (1930-1970) a autora trata
sobre a presença feminina em instituições de ensino do terceiro grau que
ainda era pequena, dando luz ao ensino superior em Teresina com Facul-
dade Católica de Filosofia (FAFI) em 1958, Faculdade de Odontologia
(FOPI) em 1960, Faculdade de Medicina (FAMEPI) em 1968 e depois
com a Universidade Federal do Piauí (UFPI) em 1968 a 1971, tanto em
Teresina como também em Parnaíba.
Esta produção nos lança o olhar sobre a formação feminina no ensino
superior através das histórias de vidas das personagens que foram utilizadas
no livro, seja por seus ingressos ao ensino, as relações de gênero e as con-
dições históricas vivenciadas por elas e apreendidas pela autora. Assim os
sujeitos analisados não são isolados em categoria de mulher, mas são múl-
tiplos mostrando que as mulheres não têm um modelo e todas as seguem e
também colocou que essas mulheres estavam relacionadas com o masculino.
Em Identidade de gênero, amor e casamento em Teresina (1920-1960)
(CARDOSO, 2010) que foi produção da tese de doutorado em 2010 a au-
tora trata das mulheres e as relações de gênero, como as condições históricas
do período estudado, através percepções tanto sobre casamento, família e
maternidade. A autora também mostra as construções sobre o gênero que
influenciou a significação feminina pelo casamento e maternidade, como
também as hierarquias de gênero na educação formal, na sexualidade e no
campo do trabalho. Dessa maneira, apesar de o feminino ser uma das cha-
70
ves de leituras propostas por Elizangela Barbosa Cardoso ela não se limita,
não isola ele das outras relações sociais, o tendo como complementaridade
do outro sexo.
Dessa maneira o trabalho sobre as mulheres na educação piauiense
das três primeiras décadas do século XX que é desenvolvido visa responder
questionamentos e preencher lacunas ainda existentes sobre a educação na
historiografia piauiense produzida nas últimas décadas. As mulheres traba-
lhadas neste contexto são vistas também diante da categoria gênero, pois as
fontes documentais e as produções bibliográficas sobre essa temática apon-
tam para as relações entre os dois sexos.
As mulheres trabalhadas são primeiramente vistas por olhares mas-
culinos que produzem o saber e as informações sobre elas e também sobre
outros sujeitos aos quais estavam ligadas, seja através de memórias como a
de Antônio Sampaio Pereira em relatórios ou mensagens governamentais
do Estado do Piauí. Antônio Sampaio Pereira em Velhas Escolas-Grandes
Mestres (1996) conta as suas memórias sobre a educação no final do século
XIX e nas primeiras décadas do século XX no Retiro da Boa Esperança,
cidade de Esperantina no interior do Piauí.
O autor retrata o processo de modernização pelo qual estava passando
o ensino nas primeiras décadas do século XX, devido a maior participação
do Estado do Piauí no desenvolvimento e aplicação do mesmo. A moder-
nização provocada pelo poder público estadual acontecia desde a mudança
quanto ao ambiente escolar, a mão de obra necessária para as atividades de
professor, até mesmo as pedagogias, como o abandono do uso de castigos
físicos.
A mudança inicial aconteceu com o abandono do uso de ambientes es-
colares privados para o uso de escolas públicas através da criação de estabe-
lecimentos escolares do governo estadual. Nesse momento a construção da
escola ou de um ambiente escolar passou a ser responsabilidade do Estado,
assim não cabia mais a população a manutenção a seus custos de um am-
biente. Além disso, também com a mudança no ensino houve a substituição
do educador, o mestre foi retirado do ensino infantil aos poucos, dando es-
paço para as professoras que no início do século XX eram contratadas pelo
Estado. A atuação das mulheres no ensino estava ligada a ideia de moder-
nização do mesmo, sendo o poder público responsável para que acontecesse
esse processo de inserção feminina na educação.
71
Tão logo surgiram as principais professoras mandadas pelo governo, para
ensinarem de graça – coisa que admirou todo mundo, os velhos mestres
sumiram, como por encanto, muitos deles quase morrendo traumatizados,
e, capitulando, entravam para o interior, à maneira do aborígene, que, à
proporção que a civilização vai avançando ao encontro dele, com a mes-
ma pressa ele vai se enterrando nas matas, buscando refúgio e evitando
contato.[...] Foi uma refrega extraordinária aquela luta travada com armas
desiguais entre o mestre que cobrava até dois mil reis por cabeça e a pro-
fessora que não cobrava nem um vintém dos alunos, pois recebia os santos
cobres do bolso do governo, em ordenado fixo, inclusive quando em gozo
de férias, cujo privilégio os velhos mestres contratados jamais desfrutaram,
nem tão pouco tinham ouvido falar (PERREIRA, 1996: p. 52).
72
aos professores. Com a carestia atual da vida, é absurdo pensar em obter
preceptores dedicados ao magistério, pagando os minguados ordenados
do orçamento. A mulher, porém, mais fácil de contentar e mais resigna-
da, e quase sempre assistida pelo marido, pai ou irmão, poderá aceitar o
professorado e desempenha-lo com assiduidade e dedicação, não obstan-
te a parcimônia da retribuição dos seus serviços (ESTADO DO PIAUÍ,
1910: p. 27).
Breves considerações
73
relações sociais através da educação. Esse feminino é percebido através de
discursos e práticas como também pelas memórias que revelam as ações
das mulheres, não sendo elas uma categoria estável como se remetiam os
primeiros estudos no exterior, mas sim como múltiplas que são ativas nas
produções de si sendo mães, professoras, irmãs, alunas e filhas.
REFERÊNCIAS
74
Brasiliense, 1984.
75
SOIHET, R; PEDRO, J. M. A emergência da pesquisa da História das
mulheres e das relações de gênero. In: História e Gênero. Revista Brasileira
de História. São Paulo: ANPUH, v.27, nº 54, jul-dez, 2007.
76
história do tempo presente: um diálogo
com as comunidades de terreiro acerca da
covid-19 em são luís – ma
Introdução
78
temporalidade em construção, trata-se de uma experiência globalizada, na
qual a humanidade ainda está imersa, vivenciando seu luto diante de tantas
perdas de vidas.
Provavelmente, quando Henry Rousso (2016, p. 186) afirmou que “os
historiadores do Tempo Presente, tem trabalhado sobre questões terrivel-
mente sensíveis,” e estes “tiveram de inventar, senão métodos, pelo menos
uma maneira de se colocar na paisagem”, o autor nem imaginava que os
historiadores seriam desfiados por questões bem mais sensíveis, a exemplo
da pandemia e seus impactos.
Por se tratar ainda de uma temporalidade em curso, a pandemia pode
gerar desconforto para a historiografia, um dilema que exige do historiador
o distanciamento necessário para a interpretação histórica do evento estu-
dado, no entanto, ele encontra-se imerso nos acontecimentos. Dentre as
dificuldades que podem ser vivenciadas pelo historiador do Tempo Presen-
te, destacam-se as subjetividades, pois há situações que se configuram como
uma disputa entre as percepções do historiador quando este está envolvido
pelo contexto estudado, que é o caso da pandemia da covid-19, um evento
que persiste ainda que, minimamente na sociedade.
A despeito do papel do historiador e da testemunha, François Hartog
(2013, p. 202), sinaliza que do ponto de vista prático e etimológico, esta é
uma questão superada há muito tempo. “A testemunha não é um historia-
dor, e o historiador – se ele pode ser, em caso de necessidade uma testemu-
nha – não deve assumir tal função”. Para o autor, o historiador é desafia-
do ao afastamento da testemunha, “ele só é capaz de começar a tornar-se
historiador ao manter-se à distância da testemunha qualquer testemunha,
incluindo ele mesmo.”
A despeito dessa situação, Bébarida (2001 apud Zulato et al, 2015, p.
1831), nos alerta que: “mesmo no caso de o historiador ter o dever de man-
ter um distanciamento crítico em relação ao seu objeto, [..], nem por isso
ele consegue ser neutro. É mais que uma esquiva: uma renúncia.” Se por
um lado o historiador de Tempo Presente pode incorrer no risco da parcia-
lidade dos fatos, por outro lado, a possibilidade de vivenciá-los possibilita
uma interpretação mais próxima da realidade estudada. “Todo historiador
tem seu próprio tempo de vida, um poleiro particular a partir do qual sonda
o mundo.” (HOBSBAWM,1997, p. 209). Em se tratando da pandemia e
das restrições impostas às Comunidades de Terreiro, em especial ao rito
funerário, o tempo de vida do historiador é o presente do qual ele faz parte
79
e ao mesmo tempo está diante do desafio de interpretá-lo.
A interpretação do Tempo Presente ainda no calor dos acontecimen-
tos possibilita também ao historiador o papel de testemunho dos eventos
no qual ele também está envolvido, pois o relato testemunhal “pode tomar
a forma de uma análise hierarquizando uma primeira vez as questões, os
fatos, fornece conjuntamente arquivos, depoimentos, pistas de pesquisa e
esboço de interpretação.” Logo, “trata-se, portanto, de considerar o teste-
munho como um objeto histórico, vez que o historiador tanto é testemu-
nha enquanto escreve a história imediata, quanto também é ator/espectador
[...].” (ELIBÍO JÚNIOR, 2021, p. 19).
Uma das singularidades da História do Tempo Presente é justamente
a existência de testemunhas dos eventos históricos de um passado recente
ou do próprio tempo presente. Pois, “[...] pelo fato de ainda existirem
testemunhas vivas dos fatos relatados, a transmissão de testemunhos tem
um valor matricial.” Nesse sentido, não é demais salientar, que “a própria
definição da história do Tempo Presente, é ser a história de um passado
que não está morto, de um passado que ainda se serve das palavras dos
vivos”. (DOSSE, 2012, p. 19).
A História do Tempo além de contar com a prerrogativa dos relatos
testemunhais dos vivos, e dentre estes, o próprio historiador, conta ainda
com uma riqueza de fontes documentais que podem ser utilizadas nas
construções das narrativas. “Diferentemente de outros domínios da His-
tória, a História do Tempo Presente apresenta uma profusão de fontes
documentais, escritas, orais e visuais que podem nortear as produções das
narrativas [...].” (ELÍBIO JÚNIOR, 2021, p. 15).
Estima-se que a pandemia da covid-19, tenha sido o evento mais no-
ticiado pelas mídias, e ainda continua sendo noticiado diariamente, tanto
na mídia televisiva, quanto nas redes sociais em geral. Trata-se de um
evento ainda em curso e de dimensão planetária, isto nos leva a crer na
existência de uma gama de fontes produzidas nas mais diversas áreas do
conhecimento, fato que possibilita diversas abordagens e dilemas para a
História do Tempo Presente.
80
a população mundial em uma condição de vulnerabilidade nunca vivida.
Apesar da experiência com a pandemia de influenza, em 2009, é inviável
qualquer possibilidade comparativa. Não houve refúgio seguro, era como
se a morte estivesse em todo lugar. É possível que o medo da morte tenha
atingido a maior parte da população. A estatística dos mortos cresceu de
forma assustadora, no Brasil ultrapassou o número de 600.000 (seiscentas
mil) mortes. (GOLDIM et al, 2021, p. 95).
Cada sociedade possui experiências diversas ao lidar com o evento da
morte. Para uns, a morte pode significar o fim da vida, no entanto para
outros, apenas uma passagem para outra dimensão, e até mesmo a conti-
nuidade da vida. O que é comum à todas as culturas é que a morte de fato
é um problema para os que estão vivos e não para os mortos. “A morte
é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre muitas
criaturas que morrem na terra a morte constitui um problema só para os
seres humanos. [...].” (NORBERT ELIAS, 2001, p. 6).
Nesse contexto, a discussão acerca das restrições impostas pela co-
vid-19 para as Comunidades de Terreiro, dentre elas, a impossibilidade
de execução do rito funerário, demanda por uma abordagem acerca do
evento da morte. Não é nosso intensão fazer uma densa abordagem histo-
riográfica e antropológica deste evento, mas apontar formas diferentes de
compreender o significado da morte. Sob o olhar de Ariès (2012, p. 98),
“a morte é para cada um, o reconhecimento de um Destino em que sua
própria personalidade não é aniquilada, por certo, mas adormecida [...]
supõe uma vida além da morte. [...].”
Mircea Eliade, (apud Rodrigues, 1997, p. 149), também insinua a
relação imbricada entre a vida e a morte. “As sociedades, em geral, per-
cebem a existência cósmica como estando predeterminada a passagens: o
homem passa da pré-vida, à vida, finalmente, com a morte, inicia a nova
existência post-mortem.” De maneira que os ritos relacionados a morte
não se restringem apenas ao fenômeno biológico em que a ‘vida’ abandona
o corpo.’ Mas vislumbra a possibilidade de uma vida após a morte. Este
é um aspecto que caracteriza diversos pensamentos a respeito da morte.
Já a atitude diante da morte para as culturas africanas difere não so-
mente da cultura ocidental cristã ou outras culturas, mas entre si mesmas,
dada a pluralidade cultural do continente africano. Entretanto, o aspecto da
continuidade da vida está presente em grande parte das culturas africanas.
Nestas culturas há uma crença de que após a morte física o espírito é condu-
81
zido ritualmente para juntar-se aos seus ancestrais. “Os Zulus por exemplo
julgam que na morte, a alma – sombra (tunzi) de um homem, de algum
modo deixa o cadáver para torná-se um espírito ancestral.” (RIBEIRO,
2010, p. 65).
A autora acima fala da morte para a cultura moçambicana, em especial
para o os povos Tsongas: “Acredita-se que todo Tsua que falece transfor-
ma-se num antepassado, Neguluve ou Tinguluve, continuando em relações
íntimas com seus parentes vivos, mas revestidos de poderes sobrenaturais
– exceto o espírito de crianças e dos falecidos sem descendência [..].” (RI-
BEIRO, 2010, p. 65).
A continuidade da vida para essas culturas africanas, significa a não
existência da morte. Este evento só é compreendido como morte quando se
dá de forma prematura a exemplo da morte de crianças, como acima men-
cionado por Ribeiro, e pessoas sem descendência. Nessas circunstâncias,
os espíritos demandam certos cuidados dos vivos. A eles são endereçadas
as práticas religiosas de preces e sacrifícios. Além de serem informados de
tudo quanto importante acontece aos seus parentes vivos; não havendo dú-
vidas, assim, de que constituem verdadeiros objetos ocultos. Sendo força
ancestral, ninguém deve aproximar-se deles sem ser portador de uma ofe-
renda ou de um sacrifício (RIBEIRO, 2010, 68).
A ideia de continuidade e integração perpassa grande parte das cultu-
ras africanas, “os egípcios tinham uma visão integrada do corpo. Em ou-
tras palavras, a mumificação só era possível graças não apenas à crença na
continuidade da vida após a morte, mas no conhecimento de que o corpo
forma um organismo, conjunto de partes integradas.” (SOUSA JÚNIOR,
2011, p. 30).
No que diz respeito a ideia de morte construída no Brasil, de acordo
com Reis (1991) está diretamente relacionada tanto à cultura portuguesa
como africana, pois estas partilhavam do pensamento de que o indiví-
duo deveria estar preparado para enfrentar o momento da morte, o que
demandava cuidados ainda em vida com seus santos de devoção ou na
realização de sacrifícios aos deuses e à ancestralidade.
Tanto africanos como portugueses eram minuciosos no cuidado com
os mortos, banhando-os, cortando o cabelo, a barba e as unhas, vestindo-os
em suas mortalhas. [...]. Em ambas as tradições aconteciam cerimônias de
despedida, vigílias durante as quais se comia e bebia com a presença de sa-
cerdotes, familiares e membros da comunidade. [...]. (REIS, 1991, p. 90).
82
Apesar das convergências apresentadas pelo autor acima mencionado,
não é demais salientar, que o culto dos mortos se apresentava com maior
complexidade na tradição africana, diante da preocupação que perpassa vá-
rios povos africanos quanto a importância da continuidade como expressão
da ancestralidade, como nos mostra Rodrigues (1997, p. 149):
Entre os povos de origem banto, a vida religiosa tinha como base o culto
aos antepassados, para quem se acendia o fogo sagrado no altar - Okumo
-preparado em uma choça especial. Os angolanos, por exemplo, acredita-
vam na transformação das almas e sua metamorfose até em animais, pro-
vindo daí seus ritos funerários e outros de caráter totêmico; suas práticas
religiosas e mágicas também eram ligadas ao culto dos mortos e dos an-
tepassados. Em um fragmento de canção africana, que faz parte do axexe
- ritual fúnebre nagô, significando recomeço, renascimento, é representa-
tivo da passagem para a nova vida, no Além: “Oh! Morte, /Morte o levou
consigo/Ele partiu, levantem-se e dancem/ Nós o saudamos!
83
vam e cantavam ao som de tambores, pandeiros e outros instrumentos.”
Tal semelhança “se fazia presente entre os angolanos, com seus batuques,
comes e bebes que duravam vários dias.” (RODRIGUES, 1997, 162).
É importante sublinhar que os rituais fúnebres suntuosos, de elementos
africanos, agrupando muitos cativos, acompanhados de instrumentos musi-
cais e danças não se aplicavam de forma geral a qualquer escravizado, mesmo
entre os escravizados havia distinção. Pois, tais eventos ocorriam principal-
mente quando se tratava de mortes de “reis africanos e seus descendentes,
que, embora vivesse em situação de cativeiro, não deixavam de ser assim
reconhecidos e reverenciados por seus súditos.” (IDEM, 2018, p. 345).
Este caráter festivo dos ritos funerários de outrora foram se ressignifi-
cando ao longo do tempo. As Comunidades de Terreiro se constituíram a
partir dessas experiências dos povos africanos escravizados, trazidos dos mais
diversos lugares do continente africano. Essas experiências religiosas deram
lugar a diferentes fundamentos4. É comum se ouvir, que cada casa tem seus
próprios fundamentos, no entanto, estes são mais convergentes que divergen-
tes quando se trata de Comunidades de Terreiro de matriz africana.
Dentre as convergências, destaca-se a ancestralidade, pois a mesma está
para além da vida, “manifesta-se na morte entendida não como aniquila-
mento, mas como continuidade no mundo dos antepassados que sempre
estarão presentes através da noção de família, reinventados pelas comuni-
dades – terreiros.” (SOUSA, 2011, p. 11). O presente autor ressalta que a
ancestralidade é um valor civilizatório de vital importância para as religiões
de matriz africana, reorganizadas em terras brasileiras com base nas “dife-
rentes visões de mundo, trazidas por reis, rainhas, sacerdotes, sacerdotisas,
artistas, africanos e africanas”, de forma compulsória para as Américas e,
consequentemente ao Brasil.
Nas Comunidades de Terreiro, a ancestralidade faz parte de toda a
vivência dos iniciados. “Na iniciação tomamos consciência de nossa an-
cestralidade, do sagrado que está em nós, nos apropriando da nossa huma-
nidade.” A ancestralidade também faz parte da morte, como princípio de
continuidade “[...], no mundo dos antepassados que sempre estarão presen-
tes através da noção de família, reinventados pelas comunidades-terreiros.
[...].” (SOUSA, 2011, p. 49)
84
Na cidade de São Luís, as Comunidades de Terreiro se declaram de
matriz jeje-nagô. Nestas comunidades, a morte é compreendida a partir de
dois Orixás/Voduns5. Omolu ou Obaluaiê e Oyá, chamada também como
Yansã. O primeiro “teria nascido doente e tornou-se um grande médico.
Omolu/Obaluaiê é o dono da terra. Segundo seus mitos, este princípio an-
cestral preside a germinação [...] como uma semente que carrega as infor-
mações da nova planta.” (Sousa, 2011, p. 77). Embora não esteja relaciona-
do diretamente com o ritual fúnebre, é uma divindade que está relacionada,
com as doenças e a cura, bem como a vida e a morte.
No que diz respeito a Oyá/Yansã, esta é cultuada como ancestral da
imortalidade, ela é responsável pela continuidade da vida. “[...]. Oyá leva
como vento o último suspiro de cada um de nós, entregando a Olodumare.
Além disso ela espalha as sementes como a borboleta que distribui o pó-
len entre as flores misturando as cores, mantendo a vida [...].” (SÀLÁMÌ,
1990, p. 115). Na cosmogonia desses povos africanos, acredita-se que Oyá
tenha recebido de Obaluaiê o reino dos mortos, se tornando a rainha dos
espíritos dos mortos.
Certa vez uma festa com todas as divindades presentes. Omolu – Obaluaê
chegou vestindo seu capucho de palha. Ninguém o podia reconhecer sob o
disfarce e nenhuma mulher quis dançar com ele. Só Oyá, corajosa atirou-
-se na dança com o senhor da terra. Tanto girava Oyá na sua dança que
provocou o vento. E o vento de Oyá levantou as palhas e descobriu o corpo
de Obaluaiê. Para surpresa geral era um belo homem. O povo o aclamou
por sua beleza. Obaluaiê ficou mais que contente com a festa, ficou grato.
E como recompensa, dividiu com ela o seu reino. Fez de Oyá a rainha dos
espíritos dos mortos. Rainha que é Oyá Igbalê, a condutora dos eguns.
[...]. (PRANDI, 2001, p. 308).
85
[..]. mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oyá muito triste. A jo-
vem pensou numa forma de homenagear seu pai adotivo. Reunião todos os
instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano. Também pre-
parou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear. Dançou e cantou
por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto, fa-
zendo com que se reunisse no local todos os caçadores da terra. Na sétima
noite, acompanhada dos caçadores, Oyá embrenhou-se mata adentro e
depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê. Olorum
que tudo via, emocionou-se com o gesto de Oyá e deu-lhe o poder de ser
a guia dos mortos no caminho do Orum. [...]. (PRANDI, 2001, p. 311)
86
Umbanda e Culto Afro-brasileiro do Maranhão, também filho do Terreiro
de Yemanjá. Questão 1: Quais os terreiros que tiveram perdas humanas em
São Luís? Questão 02: Quantas pessoas foram perdidas para a covid-19 nesses
terreiros? A questão 03 foi estendida a três Filhos de Santo do Terreiro de
Yemanjá: A covid-19 impôs restrições para o ritual funerário nesses Terreiros?
Quais restrições? Optou-se por não identificar nominalmente os investiga-
dos, tendo em vista a sensibilidade do tema abordado.
Diante da realidade de isolamento social, as questões foram enviadas
pelo aplicativo WhatsApp, e foram respondidas em forma de áudio. As
transcrições de suas falas foram realizadas literalmente no sentido de ex-
pressar seus testemunhos como sobreviventes da pandemia da covid-19,
fato que os legitima com testemunhas importantes, portadoras de memórias
recentes. Pois, “as testemunhas estão assim, do lado dos fatos e do passado;
do lado do que não se viu ou não se pode ver.” (HARTOG, 2013, p. 214).
Durante a fala do entrevistado nº 1, quanto as questões 1 e 2, percebe-
se a dificuldade das pessoas em falar sobre a morte:
Eu vou tentar falar pra você, assim ... Eu sei que alguns terreiros [...], mas,
as pessoas não quiseram nunca falar, mesmo a gente sabendo que teve
perdas no terreiro, as pessoas nunca falaram. E sabe aquele assunto que as
pessoas – como tudo - que se quer esquecer, eles nunca falam [...] A gente
sabe que o Terreiro de Yemanjá teve perdas, o Terreiro Obá Yzoo de Pai
Wender, o Terreiro de Mãe Graça de Joãozinho lá do Araçagi, o Terreiro
de Pai Claudio. [...].
87
No que tange às questões 3, o entrevistado 1, fez referência às restrições
impostas pela covid-19 ao rito funerário:
O rito funerário foi prejudicado pela covid porque não vimos nossos pa-
rentes, nossos irmãos serem sepultados, não fizemos nossos procedimentos
que são feitos no ato do falecimento, que é cortar o vínculo do filho de san-
to com o terreiro. Isso foi um dos piores momentos já existente para nós.
Eu sei que existiram muitos outros momentos difíceis, mas como o que eu
presenciei, é sem comentários, sem palavras, foi muito triste, muito difícil
e continua sendo. Não velamos nossos mortos, não fizemos o ritual que é
feito no axexê para poder a pessoa desencarnar, e levar toda a sua bagagem
na sua passagem desse mundo para o outro. (ENTREVISTADO 3)
88
da via terrena, impedindo assim sua trajetória para o retorno da vida. Para
os vivos fica a compreensão de que o morto se torna um egum6 mal despa-
chado, vagando entre os vivos, fato que gera energia negativa impedindo a
circulação do axé, energia vital para a ancestralidade.
A entrevistada 4, também manifestou dificuldades em responder. “Eu
senti uma dor muito grande de não poder me despedir das minhas irmãs e
até hoje eu sinto e choro”. O relato foi interrompido pelo choro. Nos dois
últimos relatos percebe-se a dificuldade que essas pessoas apresentaram em
opinar em um tema tão difícil. O que deveria ser uma boa lembrança, tende
a ser infinitamente uma grande dor. Pois, os rituais de ancestralização são
rituais de negação da morte. O axexê para a comunidade de terreiro quer
dizer nós não te esqueceremos, é um ritual de lembrança.
Considerações finais
89
precisaria ser cumprido. Para a História do Tempo Presente, importa per-
ceber estes sentidos que foram partidos, as crenças que foram suspensas, os
sentimentos que ficaram sem as despedidas e as linguagens que procuram
reinterpretar o evento da morte.
REFERÊNCIAS
90
do vivido. In Revista Coleção do Tempo Presente V. 1 (0rg.) Reis, Tiago
Siqueira et al, Boa Vista: Editora da UFRR, 2019.
91
SITES
https://www.agenciatambor.net.br
92
raça e racismo no brasil:
problemas teóricos e históricos1
Considerações iniciais
94
determinado conjunto de representações com a intenção de produzir deter-
minados resultados sociais (BARROS, 2005). No tocante ao racismo como
ideologia, mormente no Brasil do século XIX, observa-se um conjunto de
representações raciais aparelhado à manutenção de uma hierarquia social.4
No século XIX, esse conjunto de representações raciais, conformado
em ideologia racista, encontrou na ciência os argumentos dos quais ca-
recia e se aparelhou aos interesses imediatos das elites brasileiras, que, a
partir da década de 1880, procuravam novas formas de reiterar a inferio-
ridade dos libertos. Como efeito, os libertos viraram negros aos olhos da
sociedade brasileira.
Durante séculos, a hierarquia social no Brasil foi marcada pela verticali-
dade entre senhores e escravizados. No entanto, com o advento da ideologia
racista no século XIX, em face de uma sociedade de libertos, essa hierarquia
social foi reestruturada e assinalada por uma profunda desigualdade racial.
Cabe enfatizar que a ideologia racista a qual estou me referindo é
precisamente o racismo moderno, criado sob a égide da ciência moderna.
Portanto, a ideia de raça no século XIX implica uma natureza imanente,
da qual se emana determinada biologia e determinada psicologia. Confor-
me Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2003), a ideia de raça é anterior
ao racismo moderno, contudo, nas sociedades ocidentais, trata-se de uma
ideia de ordem teológica.5
95
de um futuro, visto que a mistura de raças heterogêneas era considerada um
erro, e levava à degeneração não só do indivíduo como de toda a sociedade.
Tais ideias eram promovidas pelo modelo determinista poligenista,
em que se defendia uma hierarquia natural de tipos humanos. Outrossim,
o poligenismo presumia que as diferentes raças humanas constituíam es-
pécies distintas, tipos específicos, não redutíveis pela mistura a uma única
humanidade (SCHWARCZ, 1993). O conde francês Arthur de Gobi-
neau, um dos precursores do modelo poligenista, proferiu duras palavras
ao descrever a situação racial da população brasileira, a qual, para ele,
era degenerada no sangue e no espírito, e “assustadoramente feia” (apud
SCHWARCZ, 1995).
O racismo moderno chegou ao Brasil por meio de um conjunto de
teorias raciais, as quais, a princípio, foram acolhidas com entusiasmo pelos
intelectuais. Apesar de inicialmente bem recebidas, essas teorias, criadas a
partir de modelos deterministas, embatiam-se com a realidade brasileira,
há tempo já mestiça. Em consequência, formava-se um impasse: condenar
a miscigenação e aceitar o negro como elemento degenerativo incontorná-
vel ou adaptar as teorias raciais à realidade do Brasil.
Como a realidade do país destoava dos modelos deterministas pre-
conizados pelas teorias raciais, o que restou foi então aceitar a ideia da
diferença ontológica entre as raças, mas sem condenar a miscigenação,
pelo menos como processo (SCHWARCZ, 1995). Do contrário, seria
condenar o Brasil ao fracasso enquanto nação.
Os projetos de cunho nacional se vinculavam ao racismo moderno, e
em um país como o Brasil, cuja realidade apontava para a existência emi-
nente de uma população mestiça (e, ademais, negra), pensar em raça parecia
oportuno (SCHWARCZ, 1995). Em vista disso, à medida que a realidade
do país impossibilitava o pleno aproveitamento dos modelos deterministas,
fazia-se apropriado, ao menos, o uso político-ideológico das teorias raciais,
ainda que isso significasse abrir mão de alguns preceitos teóricos.6
Os intelectuais brasileiros procuraram descartar as conclusões pessi-
mistas das teorias raciais, adaptando-as a soluções mais pertinentes à rea-
lidade do país; e, como exemplo, tem-se a tese do branqueamento, que
96
concluía com otimismo que a miscigenação não produzia degenerados, mas
sim uma população mestiça saudável apta ao embranquecimento contínuo
(SKIDMORE, 1976). Tal apropriação decerto se elucida à luz de Hannah
Arendt (2012), ao ilustrar que toda ideologia é criada e aprimorada como
arma política, e não como doutrina teórica.7
Cidadania postergada
97
que pertenciam a uma “outra fase do desenvolvimento intelectual e moral”,
sendo desprovidos de “mentalidade adiantada”. Cabe destacar que Nina
Rodrigues foi um dos médicos mais prestigiados do período, e um dos prin-
cipais críticos do Direito Penal brasileiro, contrapondo-se veementemente
ao jusnaturalismo e à ideia de igualdade jurídica entre as raças.
Na Gazeta Médica da Bahia (1906), mesmo após a virada do século,
nota-se como as teses de Nina Rodrigues continuavam a promover ener-
gicamente a defesa da ontologia das diferenças humanas e a crítica à igual-
dade racial:
98
dos superiores aos africanos e aos asiáticos. A imigração aumentaria consi-
deravelmente o número de brancos no país e, como efeito, a miscigenação
acabaria por branquear o Brasil num futuro próximo.
A cidadania não era considerada um direito natural, mas sim um direi-
to concedido, e cabia à sociedade julgar quem era merecedor desse direito
(GOMES, 1991). Nesse caso, julgados como inaptos à vida social em vir-
tude da experiencia com o cativeiro e por efeito da inferioridade racial, o di-
reito à cidadania seria negado aos negros, assim como o direito de constituir
uma parte da sociedade brasileira.
99
Para ele (1980: 156), era, então, o negro:
100
neste último momento, buscarei me orientar conforme as análises do inte-
lectual brasileiro Silvio Luiz de Almeida.
Assim sendo, como conceito moderno, tem-se que a raça é um ele-
mento essencialmente político, utilizada para naturalizar desigualdades
e para justificar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamen-
te considerados minoritários, tal como se observou na Alemanha nazista
(ALMEIDA, 2018).
Para Silvio Luiz de Almeida (2018), o racismo se concretiza por meio
de práticas discriminatórias, que consistem na atribuição de tratamen-
to diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Desse
modo, a discriminação racial tem como premissa o poder, ou melhor, o
exercício de poder de um grupo sobre outro.
Por conseguinte, o racismo é:
[...] uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fun-
damento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou incons-
cientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a
depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2018: 25).
101
indiretamente, desvantagens ou privilégios a partir da raça. Para Silvio
Luiz de Almeida (2018), é no interior das instituições, que as práticas
individuais passam a ser inseridas em um conjunto de significados es-
tabelecidos, de antemão, pela estrutura social. As instituições moldam,
ou procuram moldar comportamentos, conformando modos de pensar e
preferências. Nesse sentido, as instituições são conformações das deter-
minações formais da vida social, e resultam das lutas pela hegemonia do
poder social e pelo controle das instituições.
Observa-se que a concepção institucional do racismo trata o poder
como elemento central da relação racial. Decerto, como elucida Silvio
Luiz de Almeida (2018), o racismo é dominação. Exerce o poder os gru-
pos que têm o domínio sobre a organização política e econômica da so-
ciedade; mas a manutenção de tal poder depende da capacidade do grupo
hegemônico de institucionalizar os seus interesses, impondo à sociedade
regras e referências que tornem “normal e natural” o seu domínio.
Já a concepção estrutural do racismo decorre da própria estrutura
social, em que se constituem as relações políticas, econômicas, etc., não
sendo o racismo, portanto, uma patologia social e, menos ainda, uma de-
sordem institucional. Comportamentos individuais e processos institu-
cionais decorrem de uma sociedade cujo racismo “é regra e não exceção”.
De acordo com Silvio Luiz de Almeida (2018), o racismo é parte de um
processo histórico e político que cria condições sociais para que, direta ou
indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de
forma sistemática.
Nada obstante, o aspecto estrutural do racismo não exclui os sujeitos
racializados, mas os considera como parte constitutiva e ativa, bem como
não retira a responsabilidade do indivíduo sobre suas práticas racistas.
Raça é um conceito cujo significado apenas pode ser entendido como
exercício de poder (de um grupo sobre outro) e sob o olhar relacional. Por
conseguinte, racismo não é uma patologia de indivíduos mal intenciona-
dos, e sim resultado de uma relação social. O que significa dizer que o ra-
cismo se manifesta em atos concretos ocorridos no interior de uma estru-
tura social assinalada por disputas e antagonismos (ALMEIDA, 2018).
Considerações finais
102
mo no Brasil sob múltiplos olhares e em diversos contextos, a partir de pro-
blemas teóricos e históricos que, não acidentalmente, enleiam-se. Para isso,
fez-se importante uma releitura de Lília Moritz Schwarcz (1993), chegan-
do-se à seguinte conclusão: o desafio de se compreender a apropriação da
ideia de raça no Brasil (em face das teorias raciais) não está na busca pelos
usos ingênuos e como tais considerá-los. Mais importante é pensar sobre a
originalidade dessa apropriação, que procurou adaptar o que combinava e
descartar o que era inviável ou problemático.
Ademais disso, sobre a questão do racismo em Silvio Luiz de Almeida
(2018), compreende-se a importância de se entender o racismo sob o olhar
estrutural. Nada obstante, acrescenta-se que para combater o racismo é ne-
cessário antes se combater a racialização de pessoas, suprimir a ideia de raça,
pois, quando imposta e legitimada em uma sociedade, seus indivíduos ten-
dem a se dividir em grupos considerados racialmente distintos. Assim, pe-
rigosamente, raça pode significar grupos de pessoas socialmente divididos
em virtude de marcadores físicos como a pigmentação da pele, a textura de
cabelo, os traços faciais, a estatura e coisas do gênero (CASHMORE et al.,
2000). Emprega-se a palavra “perigosamente”, porquanto essas sociedades:
REFERÊNCIAS
103
talitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
104
poderes, políticas e sociabilidades
as contribuições da perspectiva global
para o estudo da escravização africana
Introdução
108
um sistema que não admitia o trabalho escravo, sendo a evolução desse
sistema um elemento que levaria a uma generalização do uso do trabalho
assalariado. Com as modificações na forma de ver essa questão, passou-se a
considerar a existência de outras formas de controle do trabalho.
Nessa linha ressaltou-se Immanuel Walerstein que pondera que o tra-
balho livre era crucial nas áreas centrais, onde havia mais possibilidade de
organização dos trabalhadores. Já nas regiões periféricas prevaleceu formas
de trabalho compulsório ou semiproletários. Tal perspectiva é, para Mar-
quese, algo muito sugestivo para a escrita da História Global, pois vê o
capitalismo como uma combinação de várias formas de exploração.
Esse é um dos cernes da argumentação de Marquese. Para ele, a te-
mática da escravidão deve ser vista como uma totalidade aberta, no sentido
de que se deve considerar a sua diversidade, a sua historicidade, os modos
como aconteceu em vários tempos e espaços. O autor ressalta isso ao anali-
sar os trabalhos produzidos sobre o tema, especialmente, os que relacionam
escravidão e capitalismo. A principal crítica que Marquese faz a esses escri-
tos é que tratam esses dois elementos como fenômenos exteriores entre si e
que estão presos em bases nacionalistas. Para ele, o capitalismo precisa ser
visto em sua globalidade, nas diferentes articulações que possui no mundo,
do ponto de vista do espaço, do tempo, dos aparatos institucionais e das
variadas formas de exploração do trabalho. Da mesma forma, Marquese vê
a escravidão: “uma instituição atravessada por múltiplos estratos de tempo
e, portanto, prenhe de história” (2019, p. 29).
Brandon Pepijn (2017) em Capitalismo y esclavitud: nuevas perspectivas
a partir de debates norte-americanos destaca que os trabalhos tratando sobre
as relações entre a escravização e capitalismo voltaram ao centro das aten-
ções com a publicação de Capitalism & Slavery de Eric Williams, em 1944.
Para isso contribuíram uma série de crises agudas. A primeira delas foi a
crise da memória. Uma sucessão de acontecimentos históricos relacionados
com a história da escravidão e da abolição em um curto espaço de tempo
gerou um grande interesse pelo tema, mas que, conforme o autor, apre-
sentou deficiências quanto ao modo como a escravidão estava integrada ou
separada das histórias nacionais existentes.
A segunda crise foi a do capitalismo em 2008, que trouxe novas his-
tórias do capitalismo com temas como o Estado, política internacional,
consumo, história vista de baixo; temas que vão além das preocupações
econômicas tradicionais. A terceira crise, por sua vez, foi na política racial
109
norte-americana e se relaciona com a eleição de Barack Obama e o movi-
mento “vidas negras importam.”
Essas inquietações fizeram ressurgir o debate sobre escravidão e capi-
talismo. De acordo com Brandon, esse novo giro da historiografia norte-
-americana sobre o assunto questiona os limites cronológicos, geográficos
e disciplinares. Entra em cena propostas de uma “nova história” da escra-
vidão e, assim, o referido autor propõe-se a examinar o que há de novo
nesses estudos.
Na seção intitulada Das teses de Williams ao debate atual, Brandon
apresenta duas perspectivas sobre a relação entre a escravidão e o sistema
capitalista. A primeira delas é representada por Williams, no seu livro
Capitalism & Slavery, que trata sobre a Grã-Bretanha e que conclui que o
capitalismo não era compatível com a escravização, sendo o seu desenvol-
vimento o responsável pela abolição deste sistema político naquele país. A
segunda refere-se aos cinco autores objeto de estudo de Brandon. Segun-
do ele, esses tratam sobre o Sul dos Estados Unidos no século XIX e de
suas relações com o restante do mundo. E, diferentemente de Williams,
esses trabalhos consideram a escravidão como parte integrante do capi-
talismo industrial e da globalização, ou seja, não há essa linha divisória
marcante entre um e outro.
Entendemos a comparação feita por Brandon entre Williams e os
autores que constituem o objeto de investigação do seu artigo como apon-
tamentos sobre os limites de pesquisas que dissociam o sistema escravista
da globalização. Nesse sentido, o autor considera como importante que
pesquisas sobre a escravidão num dado espaço leve em conta conexões
com outros espaços, não se fechando a um país em específico.
Na seção seguinte, intitulada Esclavitud expansionista: Johnson, Baptist
y Schermerhorn, Brandon se propõe a destacar alguns erros e acertos sobre os
historiadores comprometidos com essa “nova história” sobre a escravidão.
O primeiro deles, Walter Johnson, relaciona um lugar (o vale do Mississipi)
e um setor econômico (transporte a vapor) com as tendências expansionis-
tas do capitalismo do Sul e, assim, diferente das abordagens tradicionais
que priorizam um espaço específico, modelos de produção fechados em
plantações e a história econômica e quantitativa, ele teve como prioridades
o movimento, as conexões e a história política e cultural.
O segundo, Edward Baptist, utilizou narrativas escritas pelos próprios
escravos do século XIX, permitindo a escrita de uma história baseada na
110
visão dos próprios escravizados: “esto fuerza al lector a observar diferentes
tipos de conexiones entre la expansión económica y el sufrimiento humano”
(BRANDON, 2017, p: 184). Por último, Schermerhorn. Em sua história
do capitalismo escravista examinou as cadeias empresariais que conectavam
os traficantes de escravos com a rede de comércio e serviços que a cercavam.
Nas palavras do autor, escreve uma história “acerca de la integración de la
‘empresa de la esclavitud’ en el conjunto más amplio de la historia empresa-
rial del siglo XIX” (BRANDON, 2017, p:185).
Julgamos, a partir das observações de Brandon, que ultrapassar os limi-
tes geográficos, considerar diferentes atores sociais envolvidos na empresa
escravista bem como as conexões desta com o comércio mundial são ele-
mentos importantes para a escrita de uma história sob a perspectiva global.
Na seção Capitalismo (s) en gran escala: Grandin y Beckert, esses dois au-
tores são destacados por Brandon como os que mais se destacaram em rela-
ção aos demais. Grandin escreve sobre o capitalismo numa perspectiva mais
cultural e não apenas como um sistema econômico, falando das conexões
entre a escravidão e a modernidade cultural. E Becker, por sua vez, relacio-
na em seu trabalho escravidão e desenvolvimento do capitalismo. A produ-
ção de algodão seria, na concepção de Becker, uma recombinação constante
entre diferentes sistemas de trabalhos, de violência e de mercados.
Com isso podemos estabelecer conexões entre os textos de Marquese e
Brandon. Ambos os autores trazem reflexões sobre a escrita da história da
escravidão, do tráfico e das suas relações com o sistema econômico vigente.
Tais reflexões cruzam-se nos apontamentos para uma historiografia mais
abrangente, que abarque novas possibilidades e mais perspectivas, não se
prendendo de forma fechada à questão econômica ou a visão dos proprietá-
rios de escravos, mas que possa dar vazão a outras discussões.
Brandon menciona as múltiplas formas pelas quais a escravidão pode
se relacionar com o capitalismo moderno, quebrando a ideia de que os dois
são indissociáveis. Mesmo tratando dos Estados Unidos, Brandon ressalta
que seus questionamentos podem ser feitos para outros lugares defendendo,
desse modo, estudos mais integrados. Indo na mesma direção, Marquese
aponta que um caminho promissor para a escrita da história da escravidão
é considerá-la como elemento independente, que possui história, isto é,
que se constituiu sob contradições, em vários tempos e localidades. E da
mesma forma, o capitalismo deve ser visto. Assim, “ao observador interes-
sado na história global desse objeto cabe observar, descrever e explicar como
111
os múltiplos estratos de tempo da escravidão atlântica se relacionaram aos
múltiplos estratos de tempo do capitalismo” (MARQUESE, 2019, p: 29).
112
lução do Haiti ressoou. Com isso podemos fazer um diálogo com as “no-
vas perspectivas” historiográficas que Brandon apresenta em seu texto: Ada
Ferrer não prioriza um espaço específico, no entanto conecta dois lugares
(Cuba e Haiti), não por um viés unicamente econômico, mas também cul-
tural e social.
Brandon, fala a respeito do livro de Eward Baptista como uma contri-
buição para a escrita de uma história da escravidão que conta o lado oculto
do capitalismo escravista do século XIX, retratando a experiência de sofri-
mento e dor dos escravizados por meio de relatos dos próprios escravos.
Podemos assim, afirmar que o texto desta autora não foge a esse sentido.
Na seção Cuba: o medo, a escravidão e Estado Colonial, Ada Ferrer es-
creve que em Cuba sabia-se o que tinha acontecido no Haiti tanto pela
proximidade geográfica como pelo fato da ilha ter se tornado o destino
para os que fugiam do Haiti procurando refúgio. E apesar das descrições
dos acontecimentos serem embebidas por medo, a autora reforça que não
foi somente esse sentimento que a Revolução suscitou nos diferentes ato-
res sociais.
O Estado Colonial e os fazendeiros cubanos, por exemplo, buscavam
imitar a sociedade escravista haitiana. É importante mencionar que como
o Haiti era um dos principais produtores de açúcar e agora estava em crise
era a oportunidade de Cuba superá-lo. “Temendo que os eventos em Sain-
t-Domingue encorajassem o rei a restringir o tráfico de negros, fazendeiros
e autoridades insistiram no fato de que não haveria nenhum risco a temer”
(FERRER, 2012, p: 41). Os argumentos para sustentar essa situação di-
ziam que os homens livres de cor eram leais à Coroa Espanhola, diferente
daqueles que viviam no Haiti e que eram vistos como os causadores da
rebelião. Além disso, insistiam na ideia de que os escravos cubanos eram
maltratados pelos seus senhores e isso os tornava mais dóceis.
Por isso, dentre os efeitos da Revolução em Cuba destaca-se o au-
mento das importações de escravos, o que gerou uma preocupação com a
demografia da população da ilha: era necessário trazer mais escravizados
para trabalhar e ampliar a produção, mas o seu número jamais poderia
ultrapassar o número de brancos. Na seção intitulada Escravos, Escravi-
dão e Terror Haitiano, a autora menciona que o Estado Colonial passou a
preocupar-se com as relações entre senhores e escravos. As notícias sobre
a Revolução no Haiti davam conta de que a culpa era dos senhores que
maltratavam seus servos. Assim, em Cuba, os donos de escravos passaram
113
a ser observados para que nem fossem muito brandos e nem muito violen-
tos com os escravizados.
As repercussões do Haiti em Cuba também contribuíram para que, em
território cubano, qualquer tentativa de revolta ou resistência tivesse como
culpado os eventos haitianos. A autora menciona que essa era, mais uma
vez, a forma de negar a capacidade dos escravizados de se rebelarem por
si só. Em outras palavras, é como se a condição escravista a qual estavam
submetidos os trabalhadores não fosse o bastante para insuflar revoltas. E
cabe mencionar: a revolução haitiana atraia a atenção dos escravizados, pois
podia ser uma forma de mudar o direcionamento de suas vidas.
Quando Brandon cita o novo giro historiográfico norte-americano so-
bre a escravidão ele coloca em evidência fatores que o constituíram - como
a luta por direitos civis e a eleição do primeiro presidente negro dos Estados
Unidos – e que refletiam “novos olhares”. Nesse entendimento, a pesquisa
de Alda Ferrer desvia a atenção do ângulo do proprietário de escravos e
lança também olhares para a forma como os escravizados apreenderam os
acontecimentos revolucionários do Haiti.
Por fim, Ada Ferrer (2012, p: 52) diz que “os acontecimentos no Haiti
modelaram a forma como escravos e senhores passaram a ver uns aos outros
e a considerar sua situação e seu futuro.” Em outras palavras, a revolução
haitiana repercutiu em Cuba não apenas pelo medo que gerou, mas que se
espalhou no imaginário dos diferentes atores sociais, servindo para direcio-
nar ações e atingir os objetivos de cada um deles.
Para discutirmos o segundo texto, consideremos a seguinte indagação:
que fatores levaram à abolição da escravidão no século XIX? Para Dale W.
Tomich (2011), no capítulo A segunda escravidão - do livro Pelo Prisma da
Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial-, o debate dos estudio-
sos para responder a essa questão girou, de modo geral, em torno de duas
explicações. Na primeira, a Grã-Bretanha seria a precursora de um mundo
moderno e que, ao abolir a escravidão, gerou um efeito dominó que desar-
ticulou formas de trabalho escravo ao redor do mundo. Nessa narrativa,
a Revolução de São Domingos e a fundação do Haiti são ignoradas. Na
segunda, são realçadas as características nacionais da escravização de cada
lugar, destacando-se as suas características internas.
A primeira explicação apontada por Tomich negligencia a Revolução
do Haiti como fator que contribuiu para a extinção da escravidão e confabu-
la com as observações de Ada Ferrer, quando esta relata em seu texto que os
114
contemporâneos da Revolução de São Domingos foram incapazes de reco-
nhecer a ação dos escravos em liderar uma revolução. Eles preferiram culpar
a Revolução Francesa e os próprios proprietários, ao invés de reconhecerem
a força dos homens e mulheres escravizados. Para a autora essa concepção
fez com que houvesse um silêncio sobre essa revolução na história, gerando
muito desconhecimento e incompreensões. A segunda explicação associa o
fim da escravidão ao processo natural de desenvolvimento do capitalismo.
Em ambas as explicações a escravidão é vista como um fenômeno
único em todos as partes do globo. Distinguindo-se apenas por contextos
econômicos, culturais e políticos, é realçada uma suposta singularidade
que se estende ao processo de abolição, tomando-a como um caminho
único de transição de uma economia arcaica para uma economia moder-
na. Examinando essas formulações apresentadas, o objetivo do autor é
mostrar o caráter variável da escravidão na economia mundial do século
XIX, ou seja, enfatizar como a escravidão está imbricada nos processos
econômicos mundiais e ao mesmo tempo junta à irredutível desigualdade
do sistema capitalista.
A concepção de Tomich sobre a escravidão está imbricada na dinâmica
capitalista no que remete à ideia do capitalismo como constituído por di-
versas formas de trabalho. Elemento que, para Marquese, é indispensável
para a escrita da História Global. Assim, no diálogo entre esses dois autores
percebe-se o propósito de considerar que o capitalismo não excluiu o traba-
lho escravo da sua pauta.
Tomich atesta isso nas duas seções seguintes do seu texto quando tra-
ta da hegemonia britânica e da nova divisão internacional do trabalho. A
hegemonia britânica no comércio mundial inicia-se entre 1780 e 1815 e o
mercado que antes era preso nas relações entre colônia e metrópole passou
por um processo de mudanças que envolveram o aumento da produção de
produtos tropicais, da população, melhorias nos sistemas de transportes,
reestruturação das relações sociais e também das organizações do mercado
mundial, cujos preços passaram a dominar em detrimentos dos locais.
A Grã-Bretanha, ponto central do comércio internacional, passou a
ditar as regras do comércio mundial. Este país possuía um grande aparato
tecnológico e industrial. Dependia do comércio com a América Latina e
com a Índia, importando matérias-primas industriais e gêneros alimentí-
cios. Depois começou a penetrar o mercado das demais potências coloni-
zadoras, estabelecendo relações de trocas globais e é, nesses termos, que as
115
condições de trabalho escravo na economia mundial se alteram.
Com a hegemonia britânica e a Revolução Industrial na Grã-Bretanha
as relações sociais e de trabalhos arcaicas continuaram a existir, só que ago-
ra fundidas nesses novos processos de produção: “esses desenvolvimentos
não apenas criaram as condições para a extinção da escravidão dentro do
Império britânico, mas também encorajaram a expansão e a intensificação
da escravidão fora dele” (TOMICH, 2011, p: 87). Como foi o caso de
Cuba, cuja produção de açúcar se intensificou e junto com ela a quantidade
de escravos que entravam na ilha; dos Estados Unidos, com a produção de
algodão, que aumentou as terras destinadas à agricultura comercial e ao uso
lucrativo de escravos; e da produção de café no Brasil, que era baseada na
utilização intensiva de escravos.
O autor conclui falando a respeito da adaptabilidade da escravidão
às novas formas de produção mundial. De acordo com ele, as condições
impostas pela divisão internacional do trabalho geraram respostas varia-
das ao longo do globo, como por exemplo, o antiescravismo e a busca por
emancipação. No Brasil e em Cuba, a supressão do tráfico de escravos le-
vou os fazendeiros a buscar formas de trabalho para complementar o tra-
balho forçado, como por exemplo, por contrato, assalariado e camponês,
mas o trabalho escravo continuou sendo o principal sustentáculo dessa
forma de produção.
Seguindo essa linha de raciocínio Robin Blackburn (2003) na Intro-
dução do livro A construção do escravismo no Novo Mundo intitulada Es-
cravidão e Modernidade relata como os sistemas europeus de escravização
colonial nas Américas se constituíram e que papel tiveram no advento da
modernidade. Eram novos em relação a formas anteriores de escravidão,
mesmo com aspectos tradicionais; tornaram-se intensamente comerciais;
contribuíram para a incorporação de formas avançadas de organização
técnica e econômica.
A escravidão na América se associou a vários processos que tem sido
usado para definir a modernidade como o nascimento do sentimento na-
cional e do estado-nação, a disseminação das relações de mercado e do
trabalho assalariado e a crescente sofisticação do comércio e das comu-
nicações, para citar apenas alguns dos exemplos mencionados pela auto-
ra. Utilizando Anthony Giddens que afirma que umas características da
modernidade é efetuar um “desinserção” dos indivíduos do seu contexto,
Blackburn argumenta que na África a escravidão já existia e, com o co-
116
mércio atlântico, tanto a instituição escravista quanto os escravos foram
“desinseridos” do seu contexto (a escravidão na África era diferente) e
inseridos em novas relações sociais.
Se voltarmos ao texto de Marquese podemos ver que essa relação
entre modernidade e escravidão aparece na relação que o autor estabelece
entre o sistema escravista e o capitalismo histórico. Para ele,
117
verdade, a identidade do escravo tinha de ser domesticada, normalizada ou
naturalizada. Sua redução à condição de gado era elemento decisivo deste
processo”. Os escravos africanos não eram considerados membros de um
estado, e assim, mesmo quando se tornavam livres, direitos básicos eram-
-lhes negados.
Retomando Brandon quando este fala que os debates sobre escravidão
e capitalismo vieram à tona nas últimas décadas como resultado de deba-
tes públicos envolvendo a luta por direitos civis, podemos perceber que,
nessas duas seções trabalhadas por Blackburn, a questão da escravidão não
fica apenas no contexto das relações produtivas, mas permeiam o espaço de
construção de representações sobre a figura do negro, baseada em grande
parte em pensamentos eurocêntricos. As inquietações atuais sobre as ques-
tões raciais fortaleceram o debate historiográfico sobre a escravidão e trou-
xeram contribuições essenciais para o combate de práticas racistas.
A proposta de Joseph C. Miller (1997) em O Atlântico escravista: açú-
car, escravos e engenhos foi desconstruir a imagem generalizada e fixa do
sistema escravista, para dar mais atenção ao aspecto processual e histórico.
O autor fala que há uma maneira convencional de entender a África em
sua conexão com o Atlântico que é pensá-la como um complexo de escra-
vos trabalhando em plantações de cana-de-açúcar nas colônias americanas
e nas ilhas atlânticas. Isso se torna problemático porque esse sistema co-
meça a ser visto como uma “instituição” e, como tal, de natureza estável
e não histórica. Para ele, não ver o sistema escravista como um processo
contínuo é perder de vista as contingências, as eventualidades, os dramas
e as tensões envolvidas.
Para isso, o autor destaca os fatores econômicos como essenciais para
se entender a origem da venda de escravos já que, para ele, “o tráfico e a
escravidão eram, afinal, emprego e negócio para as pessoas envolvidas, e
algumas delas tinham recursos econômicos significativos em jogo” (MIL-
LER, 1997, p: 12). Os interessados nesse comércio precisavam fazer vulto-
sos investimentos, cujo dinheiro para tal veio de metais preciosos da África,
inicialmente, e depois das colônias americanas.
Miller explica o que originou o sistema escravista, mas não de forma
engessada. Pondera que suas considerações são, digamos assim, um dos
caminhos possíveis. Apesar do cultivo de cana ser antigo, a utilização de es-
cravos como mão de obra só aconteceu aos poucos. E um dos motivos foi a
falta de capital. As colônias estrearam no comércio atlântico com a extração
118
de matérias-primas exóticas do seu território já que exigia pouco capital. Só
depois de muito tempo é que se teve dinheiro para sustentar os engenhos
em locais que não eram os mais ricos da Europa, pois até o século XVI o
capitalismo e a venda de escravos não estavam desenvolvidos o bastante
para sustentar a produção de açúcar no Novo Mundo.
Nas últimas décadas desse século, a utilização de escravos africanos
nas Américas se tornará viável pela redução do preço dessa mão de obra
na África, eventualidade causada por motivos aleatórios como uma revolta
escrava em São Tomé, uma situação instável na região africana causada por
guerras e estiagem e terceiro pelo capital holandês, que financiou Bahia e
Pernambuco com escravos e com a construção de engenhos.
Dessa forma, o modo de produção agrícola da América baseado no
cultivo da cana e na utilização intensiva de mão de obra escrava africana
não teria acontecido de forma imediata, mas ocorreu de forma processual ao
longo do tempo. O parágrafo a seguir resume bem o argumento de Miller
(1997, p: 35):
119
cimento único e acabado, mas foi resultado de um processo histórico que
contou com contradições, adversidades e acasos.
O artigo O envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlântico
de escravos para o Brasil (1840 – 1858) de Dale T. Graden (2007) traz
alguns episódios que abordam a importância que navios construídos nos
Estados Unidos tiveram para o transporte de africanos para o Caribe e o
Brasil, atividade que se tornou altamente lucrativa. Nesse período, a alta
demanda de mão de obra escrava para o Brasil se deveu a fatores inter-
nos, como a expansão da agricultura de café e de cana, e externos, como
rebeliões escravas e desastres naturais em lugares que antes dominavam a
produção de insumos agrícolas.
Os navios norte-americanos davam apoio ao transporte de escravos
para a costa brasileira. Era uma atividade rentável e que fazia os nor-
te-americanos melhorarem seus navios, inclusive, para competir com os
europeus: “em meados do século XIX, a capacidade média de um navio
negreiro norte-americano aumentou para mais de 200 toneladas. Este
incremento foi um reflexo da determinação dos comerciantes e dos ar-
madores norte-americanos de competirem com os europeus por lucros e
supremacia” (GRADEN, 2007: p. 11).
De acordo com o autor, o comércio de escravos era uma atividade co-
mercial de muitos tentáculos, de modo que os entrepostos escravistas po-
diam ser considerados empresas, por ter uma demanda de pessoas respon-
sáveis por gerenciar a venda de seres humanos. Eram construídos barracões
sob condições precárias para colocar os negros escravizados e armazéns para
guardar mercadorias. Havia comerciantes dos Estados Unidos nesses en-
trepostos que vendiam produtos variados como alimentos secos e louças; e
os agentes comerciais que, além de escravos, vendiam ouro e especiarias.
Utilizar navios norte-americanos era ainda uma forma de burlar as leis
britânicas que revistavam os navios visando acabar com o tráfico, já que até
1862 era proibido que britânicos revistassem navios dos Estados Unidos.
Nesse sentido, Dale Graden fala que os cônsules dos Estados Unidos no
Brasil, muitas vezes, tinham ações voltadas para acabar com o tráfico de
escravos. Às vezes, eles impediram que compradores recebessem a docu-
mentação que comprovasse que os navios eram oriundos dos Estados Uni-
dos: uma estratégia para burlar a inspeção britânica de combate ao tráfico.
Gordon foi “um dos mais tenazes e eficientes cônsules americanos no mun-
do Atlântico. Durante sua estada no Rio de Janeiro, conseguiu a prisão de
120
quatro comandantes de navios norte-americanos, junto com outras trinta
pessoas (oficiais e tripulantes), acusando-os de envolvimento no comércio
negreiro” (GRADEN, 2007, p: 23). Essas intervenções podiam gerar in-
conformismo com indivíduos ligados ao tráfico negreiro.
Dale Graden conclui considerando o envolvimento dos Estados Uni-
dos no comércio de escravizados como o exemplo de uma economia que
beneficiava a muitos: “foi um negócio multinacional de primeira ordem’’
(GRADEN, 2007, p: 34). Além de ajudar a enriquecer milhares de co-
merciantes norte-americanos, teve o apoio de pessoas comuns. A constru-
ção dos navios demandava a atuação de lenhadores, carpinteiros e comer-
ciantes de produtos em geral.
Esse raciocínio do autor nos remete a Brandon que, ao tratar do livro
de Calvin Schermerhorn, ressalta o fato de este autor examinar as cadeias
empresariais que conectavam os traficantes de escravos aos transporta-
dores e a outras formas de comércios. Desse modo, a proposta de Dale
Graden sobre os navios norte-americanos também nos permite pensar
sobre essa integração entre a empresa escravista e o conjunto de atividades
comerciais do mundo.
Do texto de Dale Graden podemos fazer algumas considerações. Olhar
a questão do tráfico de escravos pelo prisma dos transportes que os levavam
até seu destino nos permite perceber a diversas tramas que permeavam o
sistema escravista. Vemos as péssimas condições de transporte dos escravi-
zados, os arranjos de logística para transportá-los da forma mais lucrativa,
as estratégias dos donos de escravos e tripulantes para burlar a legislação
antiescravista e até o embate de alguns cônsules para proibir o tráfico.
É possível ver a escravidão enquanto empresa, pela gerência de toda
uma estrutura para atender as suas demandas, envolvendo trabalhadores di-
versos. E ainda, a empresa escravista funcionou dando prioridade aos lucros
e não aos valores mais humanitários. Dale Graden (2007, p: 34) ressalta que
“como em outros momentos na história dos Estados Unidos, eles tiraram
vantagens das oportunidades econômicas pouco importando seus custos
sociais”. Essa colocação não foi única desse texto, mas pode ser percebida
quando nos lembramos do texto de Ada Ferrer. Se por um lado a Revo-
lução do Haiti gerou medo, em Cuba foi o momento oportuno para fazer
progredir a lavoura de açúcar. A ânsia por crescimento econômico superou
a sensibilização pela situação dos negros escravizados.
121
Considerações finais
REFERÊNCIAS
122
GRADEN, D. T. O envolvimento dos Estados Unidos no comércio Tran-
satlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858. Afro-Ásia, 35, p. 9-35.
2007.
123
expressividades da morte: rituais fúnebres
e práticas mortuárias nos óbitos dos
negros escravizados na freguesia de nossa
senhora da vitória (1868-1869)
Introdução
126
missas que eram rezadas antes e após a morte dos moribundos, pois era um
meio fundamental de facilitar as suas passagens para o segundo plano.
São essas intenções e comportamentos sociais que se entrelaçam com
o mundo religioso que buscamos apresentar nesta pesquisa. Por isso con-
cordamos com Silva (2011) ao acenar a necessidade de desenvolver uma
perspectiva que seja capaz de refletir sobre a capacidade simbólica religiosa
dos diversos grupos sociais. E devido a isso, o objetivo proposto a este arti-
go é refletirmos sobre as simbologias religiosas das práticas mortuárias dos
negros escravizados no Maranhão na década de 1860. Utilizamos como
arcabouço documental o Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora
da Vitória, atualmente acondicionado no Arquivo Público do Maranhão
(APEM), essa que era uma das principais freguesias do século XIX, loca-
lizada na região central da capital da província, São Luís. A documentação
utilizada clarifica algumas informações, como o nome dos mortos, local,
causa da morte, os proprietários dos escravizados, se esses receberam os
devidos sacramentos antes de partirem e de que forma foram enterrados:
amortalhados, com hábitos de santos, lenços ou sem nada.
Tendo em vista que esses sujeitos históricos eram pouco afeitos com a
escrita, a documentação analisada trata-se da versão de alguém que lavrou
os óbitos dos escravizados no livro da freguesia, ou seja, um discurso so-
bre os seus atos e comportamentos. Entretanto, através das entrelinhas e
analisando no âmbito do provável, observaremos as possíveis imbricações
que essas formas de morrer e os ritos fúnebres tiveram para os respectivos
mortos.
Ademais, reduzimos a escala da nossa análise através da micro his-
tória, para compreendermos as especificidades de cada caso. Para tanto,
concordamos com Giovanni Levi (In: BURKER, 1992, p. 136) em “So-
bre a Micro História” que afirma:
127
redução da escala da observação, em uma análise microscópica e em um
estudo intensivo do material” (LEVI, 1992, p. 136).
Não está em jogo um demérito as estruturas maiores e as formas de
pensar da sociedade no geral. Na verdade, objetivamos fazer um jogo de
escalas entre as estâncias e estruturas maiores e menores, por exemplo,
compreendendo a forma do “bem morrer” no século XIX estabelecido pela
Igreja Católica e comparando as especificidades que se atribuíam aos mor-
tos nesse mesmo período. Tal qual propôs Bensa no seu artigo “Da micro-
-história a uma antropologia crítica” (In: REVEL, 1998, p. 43):
128
giosa de alguns escravizados no Maranhão.
Como afirma Coe (2005), para muitas sociedades a morte terá signifi-
cado importante, seja pelo fim desta vida e para a passagem de outra ou para
facilitação do encontro com ancestrais. Assevera:
129
sociedade dos mortos, já que os enterros deveriam ser em cemitérios longe
dos espaços urbanos.
Por isso que no século XIX os cemitérios estavam sendo laicizados, não
eram mais geridos pelas irmandades religiosas como perdurou até meados
da década de 1830 (COE, 2005). Período também que discutiram os “de-
vidos” espaços para enterrarem os mortos a fim de protegerem os vivos das
insalubridades, miasmas e outras doenças que podiam se proliferar com a
proximidade das covas, o que levou, por exemplo, a proibição dos enterros
dentro das igrejas. E é na década de 1850 que se criaram os primeiros cemi-
térios públicos em São Luís, um deles é o Cemitério dos Gaviões.
As irmandades religiosas também tiveram papel fundamental nos pro-
cessos mortuários do século XIX, no momento de acolher o irmão morto
e dar-lhes o devido destino e a passagem tranquila, uma nova morte movi-
mentava toda a associação (COE, 2005). A maioria dos casos de escraviza-
dos encontrados nessa pesquisa foi amortalhada com o hábito de irmanda-
des e santos, mesmo sem receber os devidos sacramentos. Isso demonstra
uma evidente aproximação dos escravizados com a fé católica. É o caso de
Vicencia que morreu no dia 8 de maio de 1868, aos 30 anos de idade, a cau-
sa da sua morte é “phtysica”, estado de tuberculose avançada. Como consta
em seu atestado de óbito: “não recebeu os sacramentos, e foi amortalhada
em habito de Nossa Senhora do Carmo, encomendada e acompanhada por
mim e cruz de fábrica, até o cemitério da Santa Casa da Misericórdia, onde
sepultou-se” (MARANHÃO, 08/05/1868).
Mesmo sem ter recebido os devidos sacramentos, ela foi sepultada com
o hábito de uma santa e com a cruz da fábrica. Provavelmente, ela era par-
ticipante e praticante da fé cristã na freguesia citada para ter sido contem-
plada com tais quesitos na hora de sua morte.
O uso das mortalhas e dos hábitos dos santos e santas é conhecido, tal-
vez, por facilitar a passagem destes mortos, principalmente para que fossem
“tranquilas e sem atropelos” (COE, 2005, p. 20). É muito comum encon-
trarmos em grande parte dos atestados de óbitos essa relação direta com os
mortos envoltos em lenços, mortalhas e hábitos próximos a manifestação
do aspecto religioso da igreja católica. Desta forma, algumas questões para
o uso destes atributos eram:
130
pelo morto, protegendo-o na viagem para o além, e falava do morto como
fonte de poder mágico, mas também enquanto sujeito social. Dizia de sua
idade e sexo, além de sua posição na sociedade (COE, 2005, p. 20-21).
Observamos através dessa asserção que até a hora da morte não era o
momento de igualar os humanos, pois os ritos fúnebres das pessoas per-
tencentes às famílias abastadas eram pomposos, seguidas por um grande
número de pessoas e conhecidos, o cortejo por si era festivo com cânticos e
coros. Além de suas covas e cemitérios serem escolhidos pelos seus atributos
em vida, quanto mais próximo ao altar-mor, mais próximo de sua salvação.
Ademais, os escravizados não dispunham de tantas preponderâncias,
tinham o mínimo de reconhecimento no funeral, e os espaços que eram
enterrados não eram atrativos para ninguém. Tal assertiva condiz com a
afirmação de Rodrigues (In: SCHWARCZ, 2018, p. 322): “Os diferentes
tipos de cerimônia – inclusive sua ausência – expressavam a diversidade de
posições, origens e vínculos sociais daquele que deixava o mundo”. Coe
(2005, p. 103) também aponta esse fato entre os mortos no Maranhão: “O
tipo de enterro dependia dos recursos financeiros do falecido. Os que não
tinham condições de comprar uma bela roupa mortuária eram envoltos em
panos fornecidos pela irmandade para os funerais de caridade”.
Nesse sentido, ainda que pese as diferenciações entre as diversas for-
mas de morrer e de enterrar, a prática da inumação e dos ritos fúnebres
para a passagem do morto foi fundamental, o “descansar em paz” era a
principal meta dos que ficavam vivos para com o morto. Principalmente
os católicos que rezavam um número grande de missas para ajudar os que
partiram dessa vida.
Apesar desse tipo de comportamento ser mais incidente na fé católica,
é preciso considerar que estamos falando da década de 1860, onde o nú-
mero de africanos que entravam no Maranhão através do tráfico negreiro
está completamente acabado, após a sua proibição em 1850, e os africanos
e seus descendentes estão mais aculturados pelo período que estão convi-
vendo no novo mundo. Contudo, é preciso afirmar que estes não deixaram
de lado as práticas mortuárias africanas ou que esqueceram suas raízes em
África. Mas, consideramos essas evidencias, que foram postas nos atestados
de óbitos, como essencial para compreensão das práticas de morrer e de se
enterrar dos escravizados no século XIX. Mesmo que jamais saberemos a
real forma que estes desejavam morrer e se enterrar, visto que não deixaram
131
evidências escritas.
2. Titulo utilizado de uma frase de Cláudia Rodrigues no seu artigo Morte e Ritos Fúnebres
que se encontra no livro “Dicionário da Escravidão e Liberdade” organizado por Lilia M.
Schwarcz e Flávio Gomes (2018), acreditamos que este se encaixava com a pretensão da nossa
análise. (p. 324)
132
do Bispo, que foi antigo Colégio dos Jesuítas, contígua à catedral”. Apesar
de ser a freguesia mais populosa, era a menor em extensão, um pouco mais
de dez ruas compunham este núcleo. Além dos grandes casarões coloniais
erguidos em sua área, as ruas, becos e praças foi palco para diversas atitudes
dos escravizados.
Entender a formação social e cultural do Maranhão e suas interseções
culturais ocorridas entre indígenas, europeus e africanos é fundamental para
compreendermos as diversas formas de morrer e os ritos fúnebres estabele-
cidos no Maranhão. Notoriamente, cada grupo social tem questões e for-
mas específicas de vivenciar a morte, o luto, a inumação do corpo, findar a
matéria corporal do ser humano e o pós-morte.
Como afirmado anteriormente, no Brasil, a classe social do morto e a
sua condição jurídica na maioria das vezes dava os direcionamentos quanto
aos procedimentos que deveriam ser realizados para o momento em que os
homens findavam sua experiência terrena. De acordo com Rodrigues (In:
SCHWARCZ, 2018, p. 324), a maioria dos escravizados que morriam ti-
nha como destino os cemitérios pouco afeitos ou o enterro na casa de seus
próprios senhores. No entanto, alguns conseguiram outras formas de “mor-
rer”, através da formação de pecúlio com o trabalho de ganho, há também
os que obtiveram a liberdade pela pia batismal e os que se filiaram a uma
irmandade religiosa conseguiram “ter destino fúnebre diferente devido às
estratégias criadas em vida”.
Ou seja, a condição social não era um fator determinante quanto ao
tratamento dado ao morto, no entanto, nos casos em que os escravizados
tinham melhores condições no ato fúnebre eram exceções. Nesta pesqui-
sa, por exemplo, a maioria dos escravizados foram enterrados no cemi-
tério da Santa Casa de Misericórdia, a época, o mais popular que tinha
e o mais próximo da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória. Rodrigues
(2018) afirma que era mais comum que os crioulos pudessem ser enter-
rados nas paróquias das igrejas e os africanos nas igrejas ou cemitérios de
suas irmandades. E alguns escravizados ultrapassaram os espaços à época
considerados para os brancos, a autora indica que possivelmente foi con-
seguido através das relações que esses mantinham: compadrio, alianças e
vantagens sobre o restante da escravaria.
Não dispomos de documentos que comprovem esta afirmação para o
caso da província do Maranhão, visto que estamos analisando uma fregue-
sia específica e num espaço de dois anos apenas. Mas se ampliarmos nossos
133
olhares para outras singularidades, acreditamos que encontraremos outros
casos que demonstrem distintas vivências com a morte e os rituais fúnebres.
Em nossa documentação encontramos africanos que não foram envol-
tos de nada que represente a fé cristã. É o caso da escravizada Maria, que
morreu aos 60 de idade no terceiro dia do mês de junho de 1968, vítima
de “anazarca”, um sintoma de inchaço, e como consta em seu atestado de
óbito: “sem receber os sacramentos, Maria, preta, solteira, Africana escrava
de Joaquim Pedro de Jesus, a qual envolta num lençol, foi encomendada e
acompanhada por mim ao cemitério da Santa Casa de Misericórdia” (MA-
RANHÃO, 03/06/1868).
Analisando a partir do âmbito do provável, Maria, possivelmente, não
tinha nenhuma ligação com nenhuma irmandade religiosa ou preferia mor-
rer sem ser pelo viés cristão. Visto que não se constaram atributos da forma
que grande parte dos cristãos ou cristianizados morria. Pelo menos a maio-
ria dos atestados de óbitos catalogados nessa pesquisa afirma quando os
mortos recebiam sacramentos ou eram envoltos de hábitos de santos.
Diferentemente de Maria, a africana de 80 anos de idade, de nome
Felicidade, morreu também de anazarca três meses depois. Essa por sua
vez, apesar não ter recebido os sacramentos, foi envolta do hábito de Nossa
Senhora das Mercês (MARANHÃO, 04/09/1968).
Já o africano João, falecido em 15 de maio de 1869, além de ter recebi-
do o hábito de Nossa Senhora do Carmo, recebeu os devidos sacramentos
para realizar o seu findar no plano físico. Como consta no atestado de óbito:
134
Essa questão também não anula a possibilidade de que a prática de
morrer com os símbolos católicos pode ter sido requerida pelos próprios
proprietários dos escravizados, uma vez que grande parte deles eram ca-
tólicos ou pelo menos diziam professar essa fé. Portanto, a forma de lidar
com os corpos dos mortos também advém muito dos que ficaram vivos, que
queriam ou pretendiam que esses tivessem uma passagem tranquila. Assim,
além das vontades do que se foram, a morte e as práticas fúnebres também
são definidas pelos que ficaram vivos.
Se olharmos as homo moritur (causas morte) observamos uma miríade
de causas. Dos 20 casos que analisamos entre 1868 a 1869, a maioria de-
les tem como causa as complicações na saúde, é comum nesse período as
doenças como: aneurisma, thydropesia, protomites, convulsões, tuberculo-
se, anazarca, moléstia interior, inflamação interior e até suicídio.
Algumas doenças são justificadas pela pouca atenção que a saúde básica
destes escravizados recebia, muitos pereciam em locais totalmente insalu-
bres e sob condições que lhe permitiam viver com saúde fragilizada. Ainda
mais em São Luís que tinha pouquíssimos locais com saneamentos básicos.
Certamente que naquele contexto os escravos eram um bem valioso, além
de ser caro para os padrões de vida da época, mas nem todos os senhores
tinham cuidado com suas “propriedades”. E a prova desse descuido são as
crianças que morriam antes de chegarem aos 10 anos, pelo menos 8 dos 20
casos analisados são de escravizados pequenos. E mesmo os que não sabiam
falar, que não conheciam a fé cristã, eles também foram envoltos por ela. É
o caso da escrava Cassiana que morreu aos 03 anos de idade no dia 24 de
junho de 1868, como consta em seu atestado de óbito:
[..] falleceu da vida presente, de febre, com trez annos de idades Cassiana,
natural desta cidade e filha natural da mulata Victoria ambas escravas de
Raymundo Lamagner Muniz, a qual envolta no habito de nossa Senhora
do Bom Parto, foi encomendada e acompanhada por mim e capellães can-
tores da Cathedral, ao cemitério da Santa Casa da Misericórdia (MARA-
NHÃO, 24/06/1868, p. 9).
Cassiana além de ter sido envolta pelo hábito de uma santa muito co-
nhecida pelos católicos, também teve a oportunidade de ser acompanhada
por capelães cantores. Outro caso é o do menino João, que também morreu
aos três anos de idade no dia 26 de março de 1868, de typho e era escravo
de Andre de Castro Reis, o mais interessante em seu enterro é que o mesmo
135
foi envolto do “habito do menino Deus, foi encomendado e acompanhado
pelo Reverendo Coadjutor deste curado e cruz da fabrica” (MARANHÃO,
26/03/1868).
João era apenas mais um dos pequeninos que foram envoltos pelo ha-
bito do “menino Deus”, provavelmente, era uma associação por parte dos
pais para que seus filhos pudessem se aproximar da figura do Deus menino,
neste caso de Jesus Cristo. Havia na figura representada no hábito uma
associação entre a infância morta e um Deus pequeno.
Os óbitos avaliados nesse texto demonstram que a morte dos escraviza-
dos também foi envolta de simbologias e esperanças de uma passagem mais
concreta. E isso é comprovado através dos atestados de óbitos através da
utilização dos hábitos de santos, são encontradas expressões como: “hábito
de Nossa Senhora de Nazaré”, “amortalhada no hábito de Nossa Senhora
do Carmo”, “envolva do habito de Nossa Senhora da Conceição”, “hábito
de Santa Teresa”, essas e tantas outras santas e santos também são registra-
dos na documentação.
Ademais, apareciam outras expressões como “envolto em hábito de
seda cor da rosa” ou “envolto com pano azul”, não conseguimos definir
por via da documentação as definições destas cores e por que serem essas
e não outras. Todavia, provavelmente elas tinham alguma simbologia para
o morto ou para as irmandades, ligadas aos santos ou santas e suas cores e
mantos sagrados.
Um dado curioso e que nos conduz a reflexões, é que os escravizados
do sexo masculino estão em menor número dos sujeitos que foram envoltos
em hábitos de santos nesse período. Talvez isso demonstre que as mulheres
eram mais participativas nas festividades religiosas? Talvez sim.
Outros casos também são bem peculiares, um deles é do escravizado
Narciso que deu cabo da própria vida aos 30 anos de idade, no dia 27 do
mês de maio de 1868:
[...] faleceu da vida presente, suicidado, com trinta anos de idade, Narciso,
natural desta cidade, escravo de Moyses Benedicto, solteiro o qual envolto
no habito de Nossa Senhora das Mercês, e foi encomendado e acompa-
nhado por mim e capelães cantores da Catedral, ao cemitério da Santa
Casa da Misericórdia para ser inhumado (MARANHÃO, 27/05/1868).
136
ou ajudasse o pretensioso a cometer o ato. No entanto, no século XIX a
Igreja Católica, como religião oficial do Império brasileiro, estabelecia di-
retrizes a partir dos seus preceitos de religiosidade, a fim de moldar e definir
as relações sociais cotidianas. Assim, através das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia3 criaram-se diretrizes da Igreja Católica Apostólica
Romana em que estabelecia as pessoas que não tinham direito a sepultura
eclesiástica, dentre elas, os suicidas:
Constituições Primeiras, em seu título LVII- Das pessoas que se deve negar
a sepultura eclesiástica – havia a determinação de proibir o enterro em solo
sagrado aos judeus, hereges, cismáticos, apóstatas, blasfemos, suicidas,
duelistas, usuários, ladrões de bens da Igreja, excomungados, professores
religiosos enriquecidos (que não renunciavam os bens na hora da morte),
os que não se confessaram antes da morte e que foram contrários a ex-
trema-unção, infiéis, crianças que não fossem batizadas e adultos pagãos.
[grifo nosso] (VIDE, Sebastião, 2007, p. 299-301).
137
das Mercês”. Podemos inferir que o ato de utilizar o hábito da santa, pos-
sivelmente, era uma forma de proteção dos que ficaram vivos para guiar a
passagem do suicida para outro plano, como assinalou Reis (1991) sobre
o uso comum das mortalhas e hábitos.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
138
BARROS, J. A. Teoria da História: A Escola dos Annales e a Nova Histó-
ria. Petrópolis: Vozes, 2012.
139
REVEL, J. (org) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. trad. de
Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
FONTES DOCUMENTAIS
140
Vitória da Igreja Catedral da Sé. Livro nº 13 (1868/1886), p. 3 – APEMA.
141
convocação e recrutamento de
indígenas das colônias e diretorias na
província do maranhão para a guerra
do paraguai (1865-1870)
Introdução
2. Há pelo menos três perspectivas de compreensão sobre a guerra:(i) uma historiografia ofi-
cial, surgida no pós-guerra e cristalizada por trabalhos de memorialistas, cuja grande rele-
vância se constitui na própria originalidade documental;(ii) uma historiografia revisionista,
que surge no final da década de 1960 do século XX, encastelada nas universidades, defensora
da ideia de intervenção inglesa e do projeto de destruição total do Paraguai pelos países sig-
natários do Tratado da Tríplice Aliança; e, finalmente, (iii)uma historiografia mais recente,
surgida em fins dos anos 90,que trata o tema sob a perspectiva de uma nova história política,
militar e das relações internacionais, que valoriza a ideia da formação dos estados nacionais
na América do Sul. Sobre a historiografia da Guerra do Paraguai, ver: (MAESTRI, 2009).
144
América do Sul. Pesquisas já mostraram que gente do povo, mulheres, es-
cravos e ex-escravos também tiveram atuação marcante na Guerra do Pa-
raguai (1864-1870). De todas essas minorias combatentes, a participação
dos índios era menos conhecida. Hoje se sabe que eles atuaram no conflito
como verdadeiros soldados, e foram considerados “bravos auxiliares” por
oficiais do nosso exército. Existem muitos relatos sobre os gestos heroicos
de soldados indígenas que fazem jus aos elogios, como, por exemplo, o de
grupos avançando de peito nu, numa demonstração de extrema coragem,
para desalojar soldados paraguaios escondidos nas matas que eles tão bem
conheciam. Ou de pelotões indígenas realizando com êxito a missão de
observar os movimentos do inimigo ou de trazerem de volta aos seus des-
tacamentos soldados desertores e escravos fugidos. Nessas ações, não eram
movidos propriamente por patriotismo ou sentimento semelhante, mas
sobretudo pelos interesses dos grupos a que pertenciam. Os índios que ha-
bitavam as terras da Província de Mato Grosso, ao se tornarem soldados,
queriam, antes de mais nada, ver pelas costas, fora de seu território e longe
de sua vista, o soldado inimigo, que traria para o seu povo morte e des-
truição. Ao defenderem o exército imperial, acreditavam estar defendendo
também sua gente e resguardando seu espaço.3
145
posição diante do Estado Nacional. Como bem apontou Maria Regina Ce-
lestino de Almeida (2010, p. 148), “Os índios que colaboraram na Guerra
do Paraguai, por exemplo, forçados ou não, souberam valer-se disso para
reivindicar ganhos ao Estado, sobretudo territoriais”.
Além do mais, Dornelles afirma que, “Na medida em que se ampliam
os estudos brasileiros sobre a participação indígena na Guerra do Para-
guai, da Tríplice Aliança ou Guerra Grande, verifica-se a pequena valori-
zação historiográfica sobre as dimensões indígenas do conflito” (2021, p.
03). Cabendo-se ponderar que, em significativos trabalhos sobre a Guerra
do Paraguai, percebe-se a obliteração5, diga-se de passagem, o esqueci-
mento da participação dessas populações indígenas nas respectivas narra-
tivas históricas.
Assim, é perceptível em tempos recentes que a perspectiva de estudar
os efeitos da Guerra com o Paraguai pelas notícias em nível regional tem se
tornado uma prática de maior regularidade, contudo, vários estudos sobre
o impacto das notícias da Guerra do Paraguai nas províncias começaram
a surgir. E ao identificar essa lacuna historiográfica quanto a história da
Guerra com o Paraguai, com foco na presença das populações indígenas no
processo de recrutamento militar na Província do Maranhão na segunda
metade do século XIX, procuro investigar e compreender como essas po-
pulações indígenas foram envolvidos na Guerra com o Paraguai? Como se
deu tal envolvimento? Como as populações indígenas da província do Ma-
ranhão foram convocadas para os campos de batalha? Sob quais interesses
e motivações as populações indígenas do Maranhão foram envolvidas na
Guerra com o Paraguai? Quais as razões estratégicas e atrativos utilizados
pelo governo? Quais sujeitos faziam os agenciamentos indígenas? Qual o
significado da guerra para essas populações indígenas? Quais retribuições
foram dadas com o fim da guerra a esses voluntários e combatentes soldados
indígenas na província do Maranhão?
5. Tomei, tal enunciado de Giovani José da Silva (2018) como aforismo. SILVA, Giovani
José. Protagonismos indígenas em Mato Grosso (do Sul): memórias, narrativas e ritual ka-
diwéu sobre a Guerra (sem fim) do Paraguai.
146
breve que “Em dezembro de 1864, o navio brasileiro Marquês de Olinda
foi capturado pelo Exército paraguaio, quando navegava no rio Paraguai;
esse foi o episódio que deflagrou o início do conflito que ficou marcado na
história e memória dos países envolvidos.
A Guerra do Paraguai para os brasileiros, La Guerra Grande ou Guerra
de La Triple Alianza, para os países de língua espanhola viria a ser o maior
conflito armado da América do Sul. A guerra estava se desenhando há mui-
to tempo: quando o império brasileiro ocupou militarmente o Uruguai em
1864 o governo paraguaio protestou formalmente contra a ingerência bra-
sileira nos países da região platina. Contudo, os enviados diplomáticos do
império ao país platino duvidavam que o Paraguai fosse realmente atacar,
coisa que acabou acontecendo, a partir, da prisão do navio brasileiro6.
Consequentemente, pode-se constatar que “O Império brasileiro pela
primeira vez viu-se obrigado a organizar um exército rapidamente e em
larga escala. Neste período, tanto o Exército quanto a Armada (Marinha)
sofriam um forte desprestígio popular, motivado em grande parte pela
precariedade e violência do tratamento destinado aos soldados. Com o
soldo estagnado desde 1825, o soldado em serviço alimentava-se apenas
uma vez ao dia, o armamento era extremamente obsoleto, o tempo de
serviço prestado era muito longo7.
Tentando validar os aspectos já mencionados quanto aos episódios da
prisão do navio Marquês de Olinda e a invasão do território nacional por
um inimigo estrangeiro, acontecimentos estes que deflagraram a guerra, e
que impressionou demasiadamente a nação. Com efeito, é oportuno des-
tacar que, tais fatos desencadearam uma grande comoção e o patriotismo
tomou conta da sociedade. Por sua vez, Vitor Izecksohn, descreveu essa
primeira onda, de dezembro de 1864 a maio de 1865, como uma “corrente
de fogo elétrico”8
Como sublinhou Johny Santana de Araújo (2021), na província do
Maranhão a ideia do conflito surgira como um eixo de expansão de ideias
em prol da participação da Província na Guerra. De fato, quando do início
147
da guerra, alguns jornais maranhense e consequentemente seus editores,
também iniciaram uma construção discursiva da guerra nas páginas de seus
respectivos jornais9.
Os jornais , de modo panorâmico procuram exaltar as ações do Império
na região do Prata, nas províncias, segundo Araújo (2021,p. 284) havia um
clima favorável à política brasileira no Prata, estabelecendo uma ideia de
que o público brasileiro estava apoiando a política externa do Império, e que
a guerra gerava um sentimento de euforia coletivo10.
Nesse contexto, destacamos o jornal Publicador Maranhense, de 20 de ja-
neiro de 1865, o qual vem corroborando com a referida ideia informando que:
148
dade do imaginário da guerra, a exemplo da obra O Mulato12, de Aluísio
de Azevedo.
149
Ainda seguindo o caminho de Johny Santana de Araújo (2021, p. 288),
o mesmo afirmou que:
150
luntários que se apresentaram, a prática de recrutamento foi abandonada
naquele momento.
Por sua vez, o primeiro batalhão de Voluntários formado na província
do Maranhão, o qual recebera a numeração de 22º Corpo de Voluntários
da Pátria, uma vez que o número necessário de homens para se formar a
referida força, que era de 354, fora atingida a contento, restava treiná-los
e embarcá-los. De acordo com o relatório do Presidente Ambrósio, no
dia do embarque um batalhão constituído por um efetivo de 382 homens,
entre voluntários civis, membros do corpo de polícia da guarda nacional
seguiu viagem, “ (...) com o maior luzimento e garbo militar19. Do mais,
o referido evento ganhou notoriedade em quase todos os jornais da Pro-
víncia do Maranhão.
Convém destacar que o governo imperial também ordenou a con-
centração da tropa de primeira linha existente na província do Maranhão
para o treinamento de guerra e prestes a embarcar para o Sul, o governo
provincial manda destacar e aquartelar um contingente da Guarda Na-
cional da capital para substituir a referida força de linha no serviço da
guarnição20.
19. MARANHÃO. Relatório com que o Exm°. Senhor presidente da província, Dr. Am-
brósio Leitão da Cunha, passou a administração da mesma província ao Exm°. Senhor 4.o
vice-presidente, tenente-coronel José Caetano Vaz Júnior, no dia 23 de abril de 1865. São
Luís, Typ. de B. de Mattos, 1865, p. 6.
20. MARANHÃO. Relatório com que o Exm°. Sr. presidente da província, Dr. Ambrósio
Leitão da Cunha, passou a administração da mesma província ao Exm°. Senhor 4° vice-presi-
dente, Tenente-Coronel José Caetano Vaz Junior, no dia 23 de abril de 1865. São Luís, Typ.
de B. de Mattos, 1865, p. 19.
151
tiva preocupação com a segurança interna da província.
Como deixou registrado Johny Araújo (2008, p.334), O presidente
comunicou à corte que tinha problemas financeiros para bancar o aquar-
telamento da unidade da Guarda Nacional destacada, e em ofício de 3 de
fevereiro de 1865, dirigido ao Ministro da Justiça, informou que:
21. Ofícios trocados entre os Presidentes de Províncias e os Ministros das Pastas da Guer-
ra e da Justiça e vice-versa. Ofício n.o 63, 3a Seção do Palácio do Governo do Maranhão,
03.02.1865; Coleção de Manuscritos do Arquivo Nacional. Apud: DUARTE, Paulo de
Queiroz. op. cit., v. 2, t. IV, p. 165.
22. FERNANDES, Claudia Moraes. Guerra do Paraguai: o discurso oficial e a participação
do Maranhão (1864-1870). São Luís, 2006. (Monografia)
152
João, e a de Nazareth, até pouco antes de desembarcar no largo da As-
sembléia, achavam-se vistóriosamente decoradas. Em toda a sua exten-
são, viam-se, separados por curtas distancias, arcos de murta, embandei-
rados, e alguns entresachados de flores. Ao longo dos passeios estavam
collocados pequenos mastros, pintados de verde, ornados de bandeiras, e
unidos uma aos outros por festões de rama. O chão achava-se alastrado
de folhas.Essa bella decoração, devida aos nobres sentimentos dos mo-
radores dessas ruas, nacionaes e estrangeiros, foi dirigida pelos Snrs. Ca-
pitão João Marcelino Romeu, Oséias, Frederico Guilherme de Araújo, o
empresário da companhia dramática Vicente Pontes d’Oliveira e alguns
de seus irmãos d’Arte.Ao largo do Palácio havia um arco triumphal, le-
vantado por ordem da Câmara Municipal. O Snr. José Joaquim Gomes
Palmeira, encarregado desse trabalho, fel-o gratuitamente.A rampa [de
embarque do porto] foi também embandeirada pelo Snr Guarda mor in-
terino Raymundo Ferreira Barbosa. As janelas regorgitavam de senhoras
que derramavam flores sobre esses bravos e os saudavam com lenços(...)23
23. Publicador Maranhense, n. 175, 4 ago. 1865. p. 2. Biblioteca Pública Benedito Leite. São
Luís, Maranhão. Seção de Periódicos, rolo 94.
24. Decreto nº 3505, de 4 de agosto de 1865. In: BRASIL. Leis do Brasil, 1865, p. 329.
153
Convocação de Indígenas na Província do Maranhão
como Voluntários da nação
154
Quando tomei conta da presidencia, contavão os corpos 326 praças, das
quaes forão, inclusive os officiaes, cerca de 62 desalistados por incapazes
do serviço e por outros motivos justos. Hoje contão 55125. (Grifo nosso)
... desde que chegou a esta Província ordem para serem libertados por
conta da Fazenda e terem praça no Exército e na Armada, escravos que
tivessem aptidão para aquelle serviço tiveram liberdade, foram alistados
e seguiram daqui a Corte 422 libertos sendo 140 para o Exército e 282
para a Armada
25. MARANHÃO, Relatório que o Exm. Sr. Dr. José Caetano Vaz Junior, Vice-Presidente
da Província do Maranhão, apresentou à Assembleia legislativa provincial, em 21 de maio de
1865. Maranhão: Typografia de B.de Matos, rua da Paz, 3,1865.
155
Maranhão atingir a sua cota. (ARAUJO, 2001, p.43-440)
Consideravelmente essa escassez de voluntários, fez com que o governo
voltasse sua atenção para a convocação das populações indígenas das Colônias
e Diretorias Parciais de índios, almejando assim o preenchimento do quan-
titativo estipulado.
Refletindo historiograficamente sobre essas experiências indígenas e
suas vivências temporais nas Colônias e Diretorias parciais de índios no
Maranhão provincial, as quais passaram a ser vistos pelo governo não só
como espaços que reservam braços úteis a lavoura, mas locais onde se arre-
gimentariam soldados voluntários capazes de serem integrados como pra-
ças ao Exército nacional, assim como é possível perceber, indígenas dessas
diretorias e colônias, negociando com as autoridades provinciais na capital,
em diversas ocasiões e situações bem como índios agenciadores de outros
índios para a Guerra, através de táticas e meios suasórios, recebendo vanta-
gens por parte do Estado. Tal perspectiva pode ser evidenciada no oficio do
Diretor Geral Interino do índio Fernando Luís Ferreira, ao presidente da
província do Maranhão, onde se registrou que:
156
ria, para lhes dar transporte para cá, com os voluntários que trouxerem, e a
estes as calças e camisas de que falo, parece-me ser as medias bastantes. V.
Excia .porém ordenará o que julgar conveniente26. (Grifo nosso)
157
missionários” 29
Diante de tais configurações, fica evidenciado o protagonismo indí-
gena, como descreveu, Maria Regina Celestino de Almeida (2012, p. 21),
bem como o lugar dos mesmos na história, enquanto sujeitos históricos
antes ignorado ou pouco lembrados pela historiografia tradicional.
Na Província do Maranhão na segunda metade do século XIX, como
já assinalado, Diretores Parciais de índios, capitães, maiorais das aldeias e
índios letrados, foram incumbidos de convidarem, demais indígenas das
respectivas diretorias e colônias, capazes de pegar em armas para se alista-
rem como voluntários no exército em operação. Pode-se identificar que sete
diretores receberam os ofícios e circulares, assim como o impresso publica-
do pela comissão encarregada de obter voluntários30.
Havia, a necessidade de organizar um grande efetivo para defender o
País. O próprio imperador deu o exemplo, libertando todos os escravos das
fazendas nacionais para lutarem na guerra. Em dezembro de 1866, o Im-
perador escrevia ao seu ministro da guerra: “Forças e mais forças a Caxias,
apresse a medida de compra de escravos e todos31 os que possam aumentar
o nosso Exército”32
Então, o governo lançou mão de alguns artifícios para realizar a con-
vocação do maior número de força humana. Em 7 de janeiro de 1865, o
Imperador decretou a Lei nº 3.371, que criava o Corpo de Voluntários da
Pátria, oferecendo vantagens aos homens de 18 a 50 anos que se apresen-
tassem voluntariamente para combater nessa campanha militar. Assim, o
Imperador, atendendo as graves e extraordinárias circunstâncias em que se
achava o País e a urgente e indeclinável necessidade de tomar, na ausência
do Corpo Legislativo, todas as providências para a sustentação, no exterior,
da honra e integridade do Império, tomou por bem decretar:
29. AMOROSO, Marta. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposições no século XIX.
In: Revista de História 154 (1º 2006), p. 119-150
30. Decreto 3.371 dos voluntários da pátria, de 7 de janeiro de 1865.
31. A presente discursividade, me faz perceber que esse “todos”, passa a incluir a coletividade
indígena.
32. TORAL, André Amaral de. A participação dos negros escravos na Guerra do Paraguai.
Estudos avançados. 1995. p. 292.
158
gens declaradas.
Art. 2º- Os voluntários que não forem Guardas Nacionais então, além
do soldo que recebem os voluntários do exército, mais 300 réis diários e a
gratificação de 300$000, quando derem baixa e prazo de terra de 22 500
braças quadradas nas colônias militares ou agrícolas, além de outras hon-
rarias militares e pensão por invalidez ou morte. [...]
Art. 9º- Os voluntários terão direito aos empregos públicos, de preferên-
cia, em igualdade de habilitações, a quaisquer outros indivíduos.
33. FERREIRA, Fernando Luíz. Ofício do Diretor Geral dos índios, em 1 de março de 1868.
159
Incluso achará V. Excia um ofício datado de 1º de março último, de Dire-
tor interino da colônia Leopoldina, em que este faz considerações, que me
parecem atendíveis, sobre o intento de mandar índios daquela colônia
para o Exército. V. Excia. se dignará dizer-me o que julga conveniente
responder aquele diretor. Rogo a V. Excia a devolução desse ofício para ser
arquivado nessa diretoria34. (Grifo nosso)
Illmo. Exmo. Snr. De posse de seu ofício sob data de 7 de fevereiro úl-
timo, vou responde-lo. Certa da necessidade que ocorre para reforçar o
nosso exército no Campo de Guerra com o Paraguai, e sobre que nutro
ardentes desejos nem só em angarias os índios de que trata V. Excia, como
mesmo em outra matéria relatei-o ao mesmo sentido; e então quanto aos
índios tenho de ponderar a V. Excia. que poderia conseguir remeter al-
gum número dali, porém ocorre que todos que seguir em para a guerra
que afinal não volte um só deles, e que por lá se acabem, visto que além
de irem para um país diferente deste vão também mandar de modo em
que estão acostumado em suas comidas e criação selvagem, e que assim
ocorrendo, como é provável, a não voltar dos que seguirem vem isso sacri-
ficar (para com a colônia em peso) os habitantes desta localidade, e com
especialidade, e autor de reduzi-los, para isso V. Excia. desculpará dizer-
-lhe que intina conveniente desistir-se de uma tal empresa, que pode ser
funesta para o futuro, e que muito pouco ou nada poderão estes índios
influir na guerra, visto que não há entre eles civilização alguma, no en-
tretanto se V. Senhoria entender pelo contrário (com suas novas ordens)
eu recorrerei aos meios será suasivos (sic), afim de conseguir angariar o
34. FERREIRA, Fernando Luíz. Ofício do Diretor Geral dos índios, em 16 de abril de 1868.
160
número que for possível por suas espontâneas vontades, e faze-los remeter
de conformidade com as ordens de V. Excia. reflexionando novamente
que se conseguir a remessa de alguns índios verá isso ser perniciosos a esta
localidade35. (Grifo nosso)
Ao passo que a guerra, que teve o nosso governo de sustentar por longo
tempo contra o governo da república do Paraguay retirava d’aqui, com
destino ao exército, grande número de braços válidos, ia também a ex-
portação de escravos, que de há muito é feita em larga escala, privando os
estabelecimentos agrícolas desse elemento de vida , único, forçoso é con-
fessa-lo, que até hoje tem tido a grande lavoura entre nós36. (Grifo nosso)
Considerações finais
161
As retribuições dadas ao fim da guerra a esses voluntários e combatentes
soldados indígenas na província do Maranhão? E dado a resistência dos
diretores parciais dos indígenas, se teria ocorrido efetivamente tal envio,
ou por sua vez, o Governo provincial no Maranhão, teria recuado em
tais decisões? Do mais, se faz necessário a continuidade da pesquisa e
investigação, uma vez que, a busca de novas evidencias a partir de novos
documentos e referências, nos permite lançar novas luzes sobre o contexto
histórico delimitado para a análise.
Logo, ao buscar compreender de modo mais específico a participação
das populações indígenas das Colônias e Diretorias parciais de índios no
Maranhão Provincial e concomitantemente identificar como essas popu-
lações indígenas foram envolvidas na Guerra com o Paraguai, além dos
significados, impressões e representações produzidas por eles sobre o refe-
rido acontecimento, se faz pertinente, discorrer que depois de muito tem-
po de invisibilidade historiográfica, as populações indígenas na história do
Brasil do século XIX passaram a ser estudadas a partir de novos enfoques,
mostrando-se partícipes e protagonistas em diferentes momentos e movi-
mentos sociais e políticos (ALMEIDA, 2021). Visto que, Guerras, terra e
trabalho, são temas que associavam-se à questão indígena tão amplamente
debatida no século XIX.
Como bem afirmou Maria Regina Celestino de Almeida (2012, p.
22), no Brasil oitocentista, povos e indivíduos indígenas agiam e reagiam
diferentemente às múltiplas formas de aplicação da política para eles tra-
çada37. Do mais, é possível se perceber que estando as populações indí-
genas sujeitas a todo momento às estruturas formas de controle e domi-
nação, foram capazes de dar respostas criativas e desenvolverem táticas e
estratégias em seu cotidiano para driblá-las.
FONTE
REFERÊNCIAS
37. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil no século XIX:
da invisibilidade ao protagonismo. Revista História Hoje, Rio de Janeiro, v. 1, no 2, p. 21-
39 – 2012.
162
ALMEIDA, M. R. C. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Edi-
tora FGC, 2010.
163
MONTEIRO, J. M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
164
reunir para organizar o império:
“cidadãos” do maranhão na câmara
dos deputados
Introdução
166
A construção do Estado nacional na primeira metade do século XIX foi
marcada pelo debate entre diferentes projetos que refletiam a diversidade
de interesses e de concepções da elite dirigente. A América lusitana emer-
gia do período colonial como um conjunto de regiões distintas, cuja uni-
dade não estava dada e foi construída ao longo do século XIX. Não seria
fácil acomodar em uma mesma nação territórios tão distintos, com poucos
laços de interação e cujas elites apresentavam demandas muitas vezes con-
traditórias entre si (DOLHNIKOFF, 2005, p. 23-24).
167
A digitalização e disponibilidade de fontes históricas é crescente nos
dias atuais. Os Anais, Diários e outras documentações da Câmara dos De-
putados fazem parte do processo de virtualização. No site da Câmara é
possível abrir, ler e fazer download de arquivos para análise. Na página da
Hemeroteca Digital Brasileira é disponibilizado com a denominação Anais
do Parlamento Brasileiro, por Tomos, reunidos em legislaturas, com melhor
qualidade na digitalização, estado de conservação, sequência cronológica e
filtros de pesquisa por nomes ou termos.
Os registros sobre o Parlamento brasileiro iniciam com as sessões pre-
paratórias, período das apresentações de demandas internas, análise de di-
plomas dos deputados eleitos, composição de comissões da Câmara, além
de emissão e leitura pareceres das eleições realizadas nas províncias, re-
cepção de deputados para tomada de assento e medidas necessárias para a
instalação e abertura das sessões legislativas com a presença do Imperador.
Datas e horários de início e término das sessões, relação nominal dos
presidentes de mesa, secretários e membros de comissão, quantidade de
deputados presentes, ausentes e daqueles que apresentaram justificativa de
falta, são elementos que contribuem no acompanhamento dos debates.
Quanto aos discursos parlamentares da casa – fundamentais para ana-
lisar as defesas de pontos de vista – são destacados pareceres, projetos de lei,
ofícios, resoluções, emendas, indicações, propostas, aditamentos, relatórios
de comissões, artigos e declarações de votos. Além de querelas enviadas ao
Parlamento por distintos “cidadãos”, direito estabelecido pelo Artigo 179º,
inciso 30 da Constituição de 1824, em que “todo o cidadão poderá apresen-
tar por escrito ao Poder Legislativo e ao Executivo reclamações, queixas ou
petições”. Nessa perspectiva,
168
que o acúmulo de leituras e discussão de projetos contribuíam para o atra-
so das sessões.
O insuficiente número de deputados para a abertura das sessões pre-
paratórias e deliberativas do Parlamento, acarretava a prorrogação das
pendências. No encerramento de cada sessão, o presidente da casa decla-
rava a “ordem do dia”, isto é, dos debates que seguiam na próxima sessão.
As sessões parlamentares ocorriam no período de seis a oito meses
por ano, com quantidades mensais em diferentes porcentagens, desde a
abertura dos trabalhos legislativos em 1826 a 1829, com o encerramento
da primeira legislatura. Com 4.387 páginas de Anais, as referências rela-
cionadas ao Maranhão são relativamente “poucas”, quando exploradas nos
pronunciamentos dos deputados e alusões gerais à província, apresentan-
do volume maior nas participações discursivas de Manoel Odorico Men-
des. Os dois anos iniciais da primeira legislatura apresentam expressivas
participações de Telles Lobo, Francisco Martins e Bráulio Muniz.
Os pronunciamentos dos deputados do Maranhão variavam conforme
a quantidade de sessões por ano. Com a disponibilidade virtual do Índice
Onomásticos da Câmara dos Deputados (1826-1889), é possível localizar
as diferentes ações da bancada maranhense, acompanhadas na cronologia
dos Anais identificando as resoluções, aprovação e reprovação dos projetos
encaminhados à leitura e deliberações dos demais deputados3. As demandas
legislativas, as participações em Comissões Permanentes, Internas e em de-
putações possibilitam traçar a trajetória de atuação dentro do Parlamento.
Além de destacar atuações políticas de parlamentares no processo de
consolidação do Estado nacional brasileiro, os Anais possibilitam perceber
os hábitos, comportamentos e crenças adotadas nos regimentos internos
existentes ou que foram criados com o objetivo de organizar, disciplinar e
estruturar a unidade política do Império e das elites regionais que desdobra-
vam-se na manutenção da autoridade política residente no Rio de Janeiro.
A negação a formulas regimentais de nações estrangeiras, a formação
de leis próprias, a defesa dos interesses da pátria e das localidades de ori-
gens, a manutenção de redes de sociabilidades dentro e fora do “Soberano
Congresso”, e a legitimação do Poder Legislativo como soberano da nação
169
são pontos presentes nos Anais que estão diretamente relacionados com a
cultura política do período.
170
para acompanhar a fidelidade dos súditos do Império, principalmente das
províncias em que a resistência à adesão provocou intensa movimentação
política entre “portugueses” e “brasileiros”.
Resultado do processo de elaboração do constitucionalismo brasileiro
desde 1823, o nascimento do Parlamento brasileiro com a presença dos
membros das elites políticas e administrativas do Império, determinou o
início de novas estratégias políticas na consolidação da unidade nacional
(principalmente com as regiões mais longínquas do eixo Centro-Sul), da
soberania do Imperador e do “povo”.
A soberania popular ou do “povo”, exercia força nos rumos da cultura
política brasílica pós-independência e estava condicionada ao pacto exerci-
do entre os súditos e o Imperador, pois na visão de Odorico Mendes “S. M.
I. C. não padece dúvida que é legitimo soberano, porque, quanto cabe em
suas forças, busca aditar os Brasileiros, e governa por unanime aclamação
dos povos e por geral consentimento” (Argos da Lei, nº 17, 4/3/1825).
Para compreender a estruturação do Brasil imperial mediante o pro-
cesso de organização político-institucional, é necessário destacar as leis da
Constituição de 1824 e sua influência na composição da Assembleia Geral
Legislativa como centro de autoridade administrativa e política da nação,
ampliando o quadro institucional do Estado, com a representatividade das
províncias no arranjo político nacional, construindo um grupo político coe-
so com a unidade do Império.
Se por um lado o Parlamento brasileiro, em seus primeiros passos, re-
unia um conjunto de cidadãos para pensar a estrutura administrativa do
Império, por outro envolveu a defesa de interesses particulares, em razão
das diferentes potencialidades que continha cada região naquele período
e da manutenção das relações de sociabilidades criadas em benefício das
futuras eleições para o Congresso. Portanto, desde a província até a cadeira
parlamentar, a força e o poder político estavam relacionados com as redes
de sociabilidades tecidas entre as elites do centro – autoridade política no
Rio de Janeiro – e as províncias.
Na Câmara, o exercício parlamentar no quadriênio de 1826 a 1829,
configurou a consolidação da promulgação da Constituição; a operaciona-
lização das medidas expressas no texto constitucional; a reunião de alguns
cidadãos com experiências parlamentares desde as Cortes portuguesas e
Constituinte brasileira; e, atuação de cidadãos eleitos por grupos políticos
províncias para a primeira experiência de representação política. Tal como
171
havia sido estabelecido em 1821 nas Cortes Extraordinárias portuguesas e
no Brasil pós-independência desde 1823,
172
como determinado aos súditos provinciais natos ou àqueles naturalizados
no pós-independência; eleger o Regente e marcar os limites do exercício
da autoridade na nação, submetendo a atuação do monarca às observações
e avaliação da Câmara e do Senado, instituindo o exame da administração
quanto aos abusos cometidos; fazer leis, ponto maior para a consolidação
da unidade nacional no processo de organização social; conceder ou negar
a entrada de forças estrangeiras de terra e mar dentro do Império ou dos
portos, com intuito de limitar, principalmente o “elemento português” no
Brasil; e regulamentar a administração dos bens nacionais, atentando para
as riquezas produzidas por cada província e as advindas dos impostos con-
centrados no Rio de Janeiro.
Eletiva, temporária e renovada a cada quatro anos, podendo ser reeleito
os parlamentares por meio de novas eleições provinciais, cabia à Câmara
dos Deputados legislar sobre regras e procedimentos dos impostos; recru-
tamentos e escola de nova dinastia para compor a esfera do poder real do
sistema monárquico vigente pela Constituição.
Além disso, exercia o exame da administração passada com o objeti-
vo de verificar suas violações – atividade realizada com a criação de uma
comissão que entre os membros estava o deputado do Maranhão Manoel
Odorico Mendes; a discussão das propostas oriundas do Poder Executivo;
e, a realização de acusações – a partir de apuração e comprovações – dos
ministros e conselheiros de Estado.
Após a convocação dos deputados eleitos para compor a Assembleia
Geral Legislativa, ocorreu em 29 de abril de 1826, às nove horas da manhã,
a primeira das sete sessões preparatórias da Câmara que definiram os regi-
mentos iniciais dos trabalhos legislativos da casa. As sessões preparatórias
antecediam a abertura das legislaturas, onde discutiam dentre várias temáti-
cas básicas de organização da casa, a composição do Regimento Interno da
Câmara dos Deputados – estabelecido durante o funcionamento da antiga
Assembleia que vigorou até a legislatura de 1830.
Oficialmente, a abertura da Assembleia Geral ocorreu em 6 de maio
de 1826 com presença conjunta de alguns deputados, senadores e o Impe-
rador, reunidos ao meio-dia na casa do Senado. No discurso do Imperador,
legitimou o projeto constitucional do Brasil, pois “a harmonia que se pode
desejar entre os poderes políticos, transluz nesta Constituição do melhor
modo possível”, e alertou para o dever da Assembleia em:
173
Merecer-vos sumo cuidado a educação da mocidade de ambos os sexos, a
fazenda pública, todos os mais estabelecimentos públicos, e primeiramente
a fartura de leis regulamentares, assim como a abolição de outras direta-
mente opostas à Constituição; para por esta nos podermos guiar e regular
exatamente (ANAIS, Tomo I, 8/5/1826).
174
dois corpos. Quer o Senado tenha a metade, e mais um dos seus membros,
quer não tenha, é sempre incompetente para deliberar, enquanto esta Câ-
mara permanecer sem o número legal. Quanto, porém aos trabalhos pre-
paratórios, creio que ambas as Câmaras podem tomar medidas necessárias
para a abertura da Assembleia Geral, sem embargo de não estarem ainda
com metade e mais um de seus membros respectivos (Apoiados) (ANAIS,
1/5/1826, p. 12, grifo do autor).
175
horas da manhã com duração de quatro horas “sucessivas em todos os dias,
que não forem domingos, dias santos e de festas nacionais”. Na maioria das
sessões ordinárias, seguiam até às 15 horas – levando em consideração o
teor, ânimos das discussões, prolongamentos dos pronunciamentos, vota-
ções e resoluções.
O tempo diário de cada sessão era instável, necessitando em algumas
vezes, da interrupção do presidente para o “levantamento/suspensão” da
sessão. Com a ampliação do conceito de cidadão instituído pela Consti-
tuição, o Regimento determinava que as sessões poderiam ser assistidas
por “cidadãos” e estrangeiros desarmados, permanecendo-os em silêncio
“sem dar o mais pequeno sinal de aplauso ou reprovação do que se passar
na Câmara”.
O Regimento Interno da Câmara estabelecia que a abertura das ses-
sões deveria conter cinquenta e um deputados presentes, em consonância
com o Artigo 23º da Constituição em que “não se poderá celebrar sessão
em cada uma das câmaras sem que esteja reunida a metade e mais um dos
seus respectivos membros”. Nesse sentido, vale lembrar que o decreto de
26 de março de 1824 determinou a quantidade de 102 parlamentares para
a Câmara dos Deputados.
O presidente e vice-presidente de mesa possuíam a função de organi-
zar, dirigir e comandar as sessões preparatórias, ordinárias e extraordinárias;
declaração de abertura, autorizar e barrar pronunciamentos, votações e re-
soluções da casa. Na ausência do presidente, assumia a mesa o vice para as
mesmas ocupações. Além desses, eram eleitos os secretários encarregados
de reunir ofícios, pareceres, indicações, emendas e documentações enca-
minhadas ao Parlamento para leitura e conhecimento dos deputados para
deliberações. Pelas regras do regimento, o presidente era vetado a “oferecer
projeto, ou indicação, nem discutir, e votar, estando na presidência” (PA-
CHECO; RICCI, 2017, p. 130).
As eleições eram realizadas separadamente por escrutínios à pluralida-
de absoluta de votos, elegendo primeiro o presidente, depois o vice, quatro
secretários efetivos e dois suplentes, pois “para suprir a falta dos Secretá-
rios haverá dois Secretários Suplentes”, conforme o Regimento Interno de
1826. Em caso de empate ou proximidade da quantidade de votos entre
dois parlamentares, realizava-se um novo escrutínio. Os membros eleitos
ocupavam o cargo com duração de um mês, “mas poderão ser reeleitos”
como determinava o Regimento Interno.
176
As sucessivas eleições da mesa ocorriam a cada início dos meses. Ao
longo da primeira legislatura, a presidência da mesa da Câmara não foi
ocupada pelos deputados da bancada do Maranhão. Em 3 de julho de 1828,
saiu eleito para secretário suplente da Câmara o deputado pelo Maranhão
Francisco Gonçalves Martins com total de 17 votos, juntamente com Mi-
guel Calmon Du Pin e Almeida, deputado da Bahia, com 8 votos.
Reeleito em 4 de maio de 1829, Miguel Calmon ficou como segundo
suplente (18 votos) e João Bráulio Muniz – deputado do Maranhão – em
primeiro (19 votos), durante as sessões extraordinárias da Câmara. Em
geral, foi a única participação de Francisco Martins e Bráulio Muniz em
eleições internas. Quanto a Telles Lobo e Odorico Mendes, ambos não ti-
veram participação nas composições da mesa durante a primeira legislatura.
Diante da estrutura de poder criada na Câmara, dois fatores contri-
buíram para a ausência da bancada do Maranhão nas presidências da mesa:
1- por se tratar de membros eleitos em província geograficamente distante
da Corte imperial e recém incorporada no Império; 2- restrição, determi-
nada no Regimento Interno, a criação e apresentação de projetos e medidas
pontuais para o Maranhão enquanto eleito presidente ou vice da mesa.
Telles Lobo sequer foi membro das Comissões Permanentes criadas
pelo Regimento Interno de 1826, que eram: da Guarda da Constituição;
de Legislação, Justiça Civil e Criminal; da Estatística e Diplomática; da
Maranha e Guerra; de Fazenda; do Comércio, Agricultura, Indústria e Ar-
tes; da Instrução Pública; da Saúde Pública; da Colonização, Catequese
e Civilização dos Índios; das Minas e Bosques; da Redação das Leis; de
Petições; da Polícia e Inspeção da Casa. Todas deveriam conter de três até
sete membros, sendo vetada a participação dos deputados em mais de duas
comissões citadas, conforme o Regimento.
Outras comissões eram criadas mediante a necessidade interna da
Câmara, podendo ser a composição de deputação junto ao Imperador ou
Senado; Comissão para redigir e organizar e publicar os Diários da Câ-
mara, que contou com expressiva atuação de Odorico Mendes – eram as
chamadas Comissões Interiores5.
Na primeira legislatura foram realizadas 19 eleições para compor as
mesas dirigentes da Câmara dos Deputados. Entre as bancadas presentes,
177
ocuparam com maior frequência o assento da presidência os parlamen-
tares do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
Com maiores quantidades de deputados eleitos em comparação com as
outras províncias, as bancadas citadas possuíram alta participação quanto
a apresentação de projetos, indicações e emendas durantes as resoluções
da Câmara6.
Em 1827, ocuparam continuamente o assento presidencial da casa
o deputado pernambucano Pedro Araújo Lima, com vice-presidência do
deputado da Bahia, José da Costa Carvalho. De acordo com André Ma-
chado os “representantes eleitos pelas províncias mais integradas à Corte,
como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas e Bahia, tentaram impor aos de-
mais a ideia de que deveriam ser propostas leis gerais, que pensassem a
nação como um todo” (MACHADO, 2009, p. 82), e não a particularida-
de provincial, presente na atuação de Francisco Martins, Bráulio Muniz,
Odorico Mendes e Telles Lobo ao propor projetos e indicações incluindo
benefícios ao Maranhão, durante a primeira legislatura7.
Quando não encaminhavam propostas à mesa, procuravam ampliar os
pedidos solicitados por parlamentares de outras bancadas. A aprovação de
resoluções da Câmara para “âmbito nacional” pelas bancadas ligadas ao Rio
de Janeiro, contribuía no processo de unidade do Império, principalmente
entre as elites políticas, que por meio da oralidade e capacidade discursiva,
argumentavam seus pontos de vistas com o objetivo de obter apoio dos
parlamentares presentes.
Apenas o Arcebispo da Bahia e deputado pelo Pará, Romualdo Antô-
nio de Seixas, atuou brevemente na presidência de 3 de julho a 2 de agosto
de 1828 – eleição marcada por protesto dos demais membros em razão da
elevada falta de votos dos deputados presentes no salão deliberativo da Câ-
mara. Machado destaca que “manobras regimentais foram realizadas para
tentar invalidar sua nomeação” (MACHADO, 2009, p. 89). Provavelmen-
te, a entrada de Seixas na presidência expressaria a “união” das bancadas
distantes da Corte, como o Pará e Maranhão, que mantinha intensa ligação
quanto aos benefícios locais.
6. A província de Minas Gerais elegeu 20 deputados; em Pernambuco foram eleitos 15; Rio
de Janeiro e São Paulo elegeram, cada uma, 10 parlamentares.
7. Diversas propostas de leis e projetos atravessaram as legislaturas da Câmara, pois não eram
discutidas durante as sessões por esgotamento de tempo, suspensão/levantamento ou cancela-
mento da sessão, adiamento da leitura, discussão e votação.
178
Durante todas as sessões extraordinárias e ordinárias de 1829, o depu-
tado Pedro de Araújo Lima dirigiu a casa, tendo como vice-presidente o
deputado José Carlos Pereira de Almeida Torres, representante de Minas
Gerais. Conduzindo o último ano da primeira legislatura, as deliberações
seguiram com baixa participação dos deputados do Maranhão, como desta-
cadas entre as 118 sessões daquele ano.
Considerações finais
179
REFERÊNCIAS
Documentos
a) Manuscritos
- Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados (Brasil):
Anais da Assembleia Geral Legislativa do Império do Brasil (1826-1829);
Constituição Política do Império de 1824;
Decreto imperial de 26 de março de 1824;
Índice Onomástico dos Anais da Câmara dos Deputados (1826-1889) –
(1978));
b) Periódicos (impressos)
(O) Argos da Lei (MA) – 1825.
Bibliografia
BACELLAR, C. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassa-
nezi. (Orga.). Fontes Históricas. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2010.
180
MACHADO, A. R. A. As “reformas em sentido federal”. A atuação dos
representantes do Grão-Pará no Parlamento e as expectativas na província
em torno do Ato Adicional. Revista Estudos Amazônicos. Vol. IV, n° 1, p.
53-98, 2009.
181
“não podemos mais tolerar uma polícia feita
no improviso”: história da historiografia da
polícia e uma conexão entre europa e brasil
durante a primeira república (1889-1930)
São Luís havia mudado e àquela altura já contava com uma vida boêmia
que avançava pela madrugada, alertava em 1914, Alcides Pereira, chefe da
Polícia do estado do Maranhão, cobrando do governo estadual providências
no sentido de modernizar os aparatos de policiamento locais, substituin-
do as velhas práticas empíricas por modernas técnicas científicas, a fim de
melhor combater pessoas que poderiam possivelmente representar amea-
ça à ordem pública (PEREIRA, 1914 apud BARROS FILHO, 2013). O
delegado Gabriel Rebelo, em 1918, elenca que as atribuições da polícia
civil “moderna” eram a investigação, o estudo e averiguação dos compor-
tamentos suspeitos, sempre dentro de critérios jurídicos e cientificamente
embasados (REBELO 1918 apud BARROS FILHO, 2013). Os saberes,
práticas e técnicas modernos acima mencionados começaram a ser adotados
em diversos países da Europa desde meados do século XIX, atravessando o
oceano e alcançando o Brasil – não apenas como parte do discurso civiliza-
184
integrantes da cúpula policial maranhense eram oriundos da “Academia de
Recife”. Eram eles: Alcides Jansen Serra Lima Pereira, Chefe de Polícia em
1914; Raimundo Leôncio Rodrigues, Secretário de Justiça e Segurança en-
tre os anos de 1915 e 1917; Gabriel Antônio Rebelo; 1º Delegado Auxiliar
da Capital entre os anos de 1915 e 1917; Joaquim Mariano Nogueira Coe-
lho, Delegado-Geral da Capital entre os anos de 1915 e 1917. (BARROS
FILHO, 2013). Isso leva a crer que ao atuarem em cargos da segurança
pública estadual de forma mais ou menos simultânea teriam compartilha-
do dos mesmos princípios criminológicos e também de saberes, práticas e
técnicas de policiamento. Estes indivíduos, devido sua posição de destaque,
acabaram por consolidar a tese de que era urgente ao estado do Maranhão
e, em especial, à capital maranhense imediatamente se enquadrassem nos
moldes de uma polícia dita moderna.
Assim, na junção entre a busca por um saber policial técnico e a es-
trutura burocrática do Estado, a circulação transnacional de padrões de
policiamento possibilita levantar outra hipótese essencial e igualmente
norteadora da presente pesquisa que pode se desdobrar em duas possibi-
lidades analíticas.
Primeiramente, a de que o fluxo global de técnicas investigativas,
métodos de identificação de criminosos, procedimentos policiais preven-
tivos e ostensivos, não se encaixa como uma mera transferência de mo-
delos de um centro produtor para uma periferia receptora. Desta forma
esses deslocamentos, ao serem analisados pela interpretação da História
transnacional, apresentam indícios de que não se limitam a motivações
entusiasmadas modernizantes de uma elite burocrática policial do Mara-
nhão que se restringe a copiar modelos de outros países ou estados, mas
representam a intenção em elaborar estratégias de colaboração mútua e
solidificar estruturas de transferência de dados e conhecimentos entre os
aparatos de policiamento, seja em uma dimensão internacional, nacional
ou, de forma mais reduzida, regional.
As fontes utilizadas neste trabalho foram classificadas e organizadas da
seguinte maneira: fontes documentais produzidas tanto pelo Poder Execu-
tivo (ofícios, requerimentos, documentos produzidos pela polícia) quanto
pelo Poder Legislativo (Atas das sessões parlamentares) e fontes documen-
tais jornalísticas, buscadas em artigos que circularam na imprensa local em
torno da temática dos usos e costumes da cidade de São Luís e da seguran-
ça pública durante a Primeira República (1889-1930). Tal documentação
185
produzida pelos Poderes Executivo e Legislativo está disponível, sobretudo,
no Arquivo Público do Estado do Maranhão, mas também no Arquivo
Geral da Polícia Militar do Maranhão, Arquivo Judiciário do Estado do
Maranhão, Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão e
Arquivo de Jornais da Biblioteca Pública Benedito Leite.
186
Na passagem da década de 1960 para a de 1970 emergem duas críti-
cas ao modelo interpretativo althusseriano que incluía a polícia como braço
armado do Estado e com funções naturais de repressão e imposição da lei
predominante até então. Eram elas as perspectivas thompsoniana e foucaul-
tiana. Em relação a Thompson, pode-se dizer que pertence a uma linhagem
de historiadores que passou a observar a “história vinda de baixo”, deixando
de lado os corriqueiros métodos da tradicional História Política, adotando
estratégias analíticas voltadas para o campo social e das experiencias indi-
viduais e coletivas das chamadas classes subalternas. (HUNT, 1992). Além
de suas análises sobre motins e de seu questionamento mais abrangente
às simplificações do estruturalismo marxista, também merecem destaque
seus estudos a respeito da lei como lugar da luta de classes e de ressaltar
a importância das experiências históricas coletivas ou individuais. A obra
de Thompson influenciou diversas pesquisas referentes a crime e práticas
ilegais populares, polícia e legislação criminal na Inglaterra setecentista e
oitocentista, bem como às mudanças nas relações entre o Estado os “des-
viantes” durante o século XIX. (THOMPSON, 1997).
Pode-se afirmar que, para Thompson, a compreensão da dinâmica his-
tórica se dá através dos indicadores históricos, ou seja, é necessário assimilar
como as pessoas se comportam e concebem o mundo nas circunstâncias
mais diversas, sobretudo em sua vida material condicionada por suas expe-
riências. (THOMPSON, 1981). A perspectiva thompsoniana, ao romper
com o engessamento do estruturalismo althusseriano e tomar a experiência
como categoria de análise, rompe com as práticas e modelos teóricos mais
fechados que negam o protagonismo dos indivíduos e condicionam de for-
ma reducionista os fenômenos sociais a um mero reflexo do campo econô-
mico e assume uma postura que tem por fundamento a compreensão dos
indivíduos como protagonistas, ou seja, como sujeitos que se apropriam de
outras experiências que são somadas às suas próprias experiências e adap-
tadas à sua realidade. (THOMPSON, 1981). Ao mesmo tempo é possível
fazer, na perspectiva thompsoniana, uma crítica ao pensamento althusse-
riano de negação da teoricidade da História, pensando que essa desordem
inocente ou abatimento possa vir a ser efetivamente um ato de rebeldia
consciente contra perspectivas teóricas totalizantes e imutáveis. (THOMP-
SON, 1981).
Por sua vez, Foucault, que passou a década de 1960 praticamente es-
quecido pelos historiadores (HUNT, 1992), foge das concepções tradicio-
187
nais que centram o poder no Estado e seu estabelecimento se dá por meio
de contratos políticos ou jurídicos; na análise de Foucault, percebe-se a pre-
sença de um tipo de teia de microfísica do poder articulado ao Estado, ou
seja, a ideia de poder como algo circulante. Assim, a realidade social traceja
campos de conhecimento que permitem a busca e a elaboração de novas
indagações sobre “antigos” objetos e o deslocamento do olhar sobre tais
objetos, fazendo-os de espectadores a protagonistas; de invisíveis, sombrios
e infames, para aqueles cuja voz se faz ouvir ao longe. Alterando, inclusive,
a própria noção de verdade. (FOUCAULT, 1996). Percebe-se que, apesar
das perspectivas thompsoniana e foucaultiana serem extremamente diferen-
tes entre si, elas se encontram na medida em que ambas formulam, segundo
Marcos Bretas e André Rosemberg:
188
ideológica caso os sujeitos que investigam a história não compreendam sua
disciplina como dotada de critérios científicos comuns que buscam uma
compreensão objetiva dos fatos históricos. (THOMPSON, 1981).
Partindo da perspectiva segundo a qual as variadas abordagens das
Ciências Humanas são resultantes de processos dedutivos aleatórios em sua
localização histórica. (HUNT, 1992) serão produzidos, então, diversos ar-
tigos, dissertações, teses e livros com os mais variados direcionamentos e
aproximações. Baseado nesse recorte opta-se pelo registro de uma pequena
bibliografia como exemplo dessa variedade. Tais obras foram selecionadas
conforme sua relevância para a Historiografia Brasileira sobre a polícia; se-
melhança em relação ao recorte temporal definido para este trabalho; pro-
dução historiográfica maranhense; adequação à área de concentração do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ma-
ranhão (PPGHis-UFMA).
Thomas H. Holloway analisa a evolução da polícia enquanto compo-
nente do aparelho estatal e destaca as características do controle social im-
posto pelo aparato de policiamento na cidade do Rio de Janeiro no século
XIX à medida em que o Estado vai se tornando cada vez mais presente nos
espaços públicos. (HOLLOWAY, 1997). Elizabeth Cancelli, no início da
década de 1990, apresenta uma obra que segue basicamente na mesma linha
de Thomas Holloway. Ou seja, ela analisa o aparato de policiamento e o
controle social imposto pelo Estado brasileiro. A diferença na abordagem
está no corte cronológico escolhido por Cancelli: a Era Vargas (1930-1945),
detalhando seu estudo em relação ao Estado Novo. (CANCELLI, 1993).
O trabalho de Marcos Bretas é de suma importância para a construção
de uma Historiografia Brasileira sobre a polícia por seu rigor teórico de
linhagem thompsoniana e metodologia aplicada a partir da análise dos livros
de registro de ocorrência de sete delegacias de polícia da Cidade do Rio de
Janeiro, após a reforma urbana, no início do século XX. Ele investiga as
estratégias usadas pelo governo municipal para promover a modernização
da cidade, bem como o controle das massas populares. Além disso, nota-se
nesse trabalho que os policiais são colocados no centro da narrativa e há a
preocupação do autor em entender como pensam, agem, veem o mundo e
seu lugar na sociedade. (BRETAS, 1997).
Cláudia Mauch, em sua tese de doutorado, investiga os mecanismos
de policiamento adotados na cidade de Porto Alegre, capital riograndense,
durante o período entre 1896 e 1929. Ela realiza a intersecção entre o tipo
189
de policiamento planejado pelas autoridades e o praticado pelos policiais
no seu cotidiano. Para a realização desse estudo Mauch faz uso de vas-
ta documentação disponível produzida pelas próprias instituições policiais
gaúchas. (MAUCH, 2011).
No começo da década de 1990 a terminologia globalização passou a
fazer parte também do universo lexical das Ciências Humanas e Sociais.
Logo, passou a ser utilizado para designar uma inovação historiográfica de-
nominada História Global que se distingue em vários aspectos da já clás-
sica História mundial que por décadas foi predominante. Nesse sentido,
embora o desenvolvimento dos procedimentos historiográficos da História
Global tenha sido influenciado pelos movimentos da globalização, eles não
estão necessariamente restritos a ele, mas por meio da globalização a His-
tória Global se propõe a analisar as relações de reciprocidade em dimensão
mundial ao longo das várias etapas do desenvolvimento histórico. (BRES-
CIANO, 2015).
Recentemente o tratamento dos movimentos que ultrapassam as de-
marcações tradicionais do Estado-Nação tem estimulado indagações que
utilizam perspectivas analíticas que igualmente ultrapassam os limites do
Estado-Nação. (BRESCIANO, 2015). Assim, desenvolveram-se propo-
sições metodológicas bastante profusas: “Histórias conectadas, histórias
globais, histórias cruzadas. O chamado ‘giro transnacional’ acolhe aborda-
gens diversas como a comparação histórica, a análise das relações interna-
cionais, as transferências e circulações culturais”. (FERRARI; GALEA-
NO, 2016, p. 175).
Por conta disso, os recursos teóricos da História Global e transnacional
vêm estimulando a produção de estudos históricos sobre a polícia com foco
em novas perspectivas de análise menos preocupadas com o papel repressor
das instituições policiais, sua ligação com o Estado, formação e rotina do
trabalho policial ou, além disso, a pensar as instituições policiais como sen-
do constituídas apenas na dimensão formadora do Estado-Nação.
Em 2012, Diego Galeano defendeu sua tese de doutorado, cuja in-
vestigação centrou-se na análise de vasta documentação técnica produzida
pelos órgãos de policiamento das cidades do Rio de Janeiro e Buenos
Aires, na passagem do século XIX para o XX. Galeano observa que tal
documentação, através de grande circulação transnacional cooperativa
entre os organismos de policiamento de Brasil e Argentina, visava cons-
truir, além de imagens e conceitos sobre o crime, o criminoso e a própria
190
polícia, saberes e práticas comuns em torno do combate à criminalidade.
(GALEANO, 2012).
A grande contribuição do trabalho de Galeano consiste em inserir na
análise das transposições fronteiriças realizadas por organismos do próprio
Estado as possibilidades de colaboração institucional com intuito de formar
uma teia de relações regionais mais especificamente voltadas ao campo da
segurança pública.
Em relação a dimensão da produção historiográfica local destacam-se
alguns trabalhos. Encabeça a lista tese de doutorado de Regina Helena Fa-
ria que investigou a formação do aparato policial luso-brasileiro, em meados
do século XVIII, como consequência da ampliação do aparelho burocrático
dos Estados Nacionais modernos, à medida em que expandem seu contro-
le sobre a sociedade, bem como a configuração deste aparato ao longo da
constituição da Monarquia brasileira, no século XIX. (FARIA, 2007).
Em sua dissertação de mestrado, Paulo Henrique Matos de Jesus,
analisa as experiências coletivas dos militares estaduais do Maranhão du-
rante a ocorrência do movimento reivindicador realizado por eles no ano
de 2011. Seu trabalho possui um escopo analítico- descritivo das me-
mórias dos militares no contexto do movimento, examinando a possibi-
lidade de conexão com as dimensões institucionais, jurídicas e políticas
historicamente estabelecidas no contexto nacional e estadual, em especial
como as experiências desses sujeitos se manifestaram nessa dinâmica e na
construção de uma memória individual e coletiva a seu respeito. (JESUS,
2020). Ao mesmo tempo este trabalho apresenta algo ainda inédito na
historiografia local que é investigar as estratégias de dominação, contro-
le e imposição da disciplina impostas pela Polícia Militar do Maranhão
(PMMA) e as táticas de subversão dessa ordem (CERTEAU, 1994) apli-
cadas pelos soldados, cabos, sargentos e subtenentes, reunidos no movi-
mento reivindicatório, não com intenção de alterar a ordem hierárquica,
mas de obterem conquistas trabalhistas.
A dissertação de Mestrado de Marize Helena de Campos analisa o
processo de urbanização, as medidas higienizadoras crescimento das casas
de prostituição e repressão policial em São Luís, capital maranhense, na
passagem do século XIX para o XX. (CAMPOS, 2001). A coletânea de
textos organizada por Mundicarmo Ferretti ressalta as práticas repressivas
impostas pela polícia contra a população negra da capital maranhense e suas
manifestações festivas e religiosas. (FERRETTI, 2015).
191
Note-se que entre os trabalhos selecionados apenas o de Regina He-
lena Faria (2007) e o de Paulo Henrique Matos de Jesus (2020) colocam
os policiais, e as instituições policiais como o centro da análise. Em uma
abordagem já considerada clássica, Regina Helena Faria observa que a in-
clusão dos aparatos de policiamento montados no Brasil, no século XVIII, é
extensão dos aparatos de policiamento portugueses. E após a Independên-
cia, as estruturas policiais adquiriam suas feições conforme as instituições
do Estado-Nação brasileiro iam se constituindo e as disputas em torno do
poder nas dimensões local e nacional se desenvolviam. Nesse sentido, os
aparatos de policiamento refletiam um dos pilares básicos na construção –
dentro desta já mencionada perspectiva clássica – de uma ideia de soberania
nacional. (FARIA, 2007).
Por sua vez, os trabalhos de Marize Helena de Campos (2001) e
Mundicarmo Ferretti (2015) colocam a polícia apenas como um pano
de fundo de suas respectivas análises e partindo da perspectiva que sua
grande atribuição é reprimir e controlar as massas pobres urbanas, sua or-
ganização e mobilizações coletivas, mas também de suas festas e manifes-
tações religiosas e estilo de vida, colocando as forças policiais como parte
de uma política modernizadora e higienizadora autoritária. (CAMPOS,
2001; FERRETTI, 2015).
Com base nos trabalhos acima mencionados e no sentido mais estrito
não se pode dizer que haja uma Historiografia maranhense voltada para
a polícia. O que se tem são alguns trabalhos eventuais que, por vezes, in-
cluem a polícia em suas análises. Todavia para além do trabalho historio-
gráfico, o mérito destes estudos é mostrar os caminhos possíveis para uma
temática que só bem recentemente passou a despertar o interesse da His-
toriografia e que ajudam a construir uma História na qual os sujeitos não
sejam apenas dados quantitativos, vítimas da exclusão social, ou meros
depositários de um único discurso homogeneizador. Além de permitir a
elaboração de trabalhos cuja perspectiva possa trazer novos enfoques para
a análise dos aparatos de policiamento e segurança pública mais articula-
dos a um entendimento de circulação transnacional de saberes policiais e
práticas de policiamento que possibilitem a estruturação de procedimen-
tos mundiais conectados entre si.
192
REFERÊNCIAS
193
Autêntica, 2010.
194
deral do Maranhão, São Luís, 2020. Disponível em: https://tedebc.ufma.
br/jspui/handle/tede/tede/3215. Acesso em: 20 nov. 2021.
195
o(s) lugar(es) do crime na urbe do século
xix: um itinerário de pesquisa
Existe, contudo, uma outra posição teórica que rompe com a concepção
de continuidade no tempo como pressuposto de conhecimento das cidades
contemporâneas. Esta opção [...] volta-se para as cidades associadas à idéia
de modernidade, para o momento em que, na primeira metade do século
XIX, são problematizadas em questão urbana, concebidas como espaço de
tensões empíricas e conceituais, concepção que perdura na formulação do
paradigma que orienta o conhecimento e a vivência nas cidades contem-
198
porâneas. (BRESCIANI, 1992, p. 12, grifo do autor).
199
Desta maneira, qual seria o balizamento para se pensar as pesquisas em
torno da História da Cidade? Em que medida ela se diferencia de outros
campos da pesquisa historiográfica? Como é possível o enquadramento des-
se campo de pesquisa?
Nem de longe é proposta deste artigo pensar todas essas questões.
Todavia, são indagações pertinentes a todo aquele que deseja se aventurar
nesse campo historiográfico tão multidisciplinar que permite ao historiador
abordagens igualmente variadas. Entretanto, é importante ponderar que a
preocupação dos historiadores com os estudos sobre a cidade iniciou-se so-
mente a partir do século XIX em um cenário profundamente marcado pelo
intenso fluxo migratório de pessoas do campo para a cidade e do acelerado
processo de industrialização. Não apenas os historiadores despertaram suas
atenções para os estudos sobre as cidades, mas, também pesquisadores de
outros ramos das Ciências Humanas e Sociais, como por exemplo geógra-
fos e sociólogos.
Pondera-se que:
200
teiro (SILVA apud MONTEIRO, 2012, p.106):
201
crise de identidade numa sociedade divida e segregada socialmente. Nesse
sentido, talvez um bom exemplo seja o livro Os sete pecados da capital de
Sandra Pesavento.
202
Entretanto, deve-se notar que Paris acaba se dividindo em dois uni-
versos compostos por multidões díspares, mas, inda assim deslumbrante e
encantadora: a Paris diurna e a Paris noturna, conforme Bresciani (2008,
p. 12):
Para alguns a noite não chega a ser tão encantadora. Ao contrário. Ela
é vista como amedrontadora e perigosa e a multidão noturna se assemelha
a uma chaga que se espalha e contamina as ruas parisienses. Entretanto, há
também aqueles que veem a noite a partir das impressões. O universo que
constitui a noite é composto por uma multidão sem nome.
Indo mais adiante, acrescenta-se o fato de que a multidão ao se aglo-
merar passa a ser tratada tanto como elemento responsável pelo desenvol-
vimento quanto pelo aviltamento da humanidade, como, por exemplo, no
caso específico de Londres que, em 1840, vive este contrassenso. Ao mes-
mo tempo a cidade se descobre vivendo, por um lado, o avanço do pro-
cesso de industrialização e por outro os desdobramentos desse fenômeno
manifestados pela proliferação de bairros operários insalubres, longe do
centro nervoso da cidade e contrastando com os princípios civilizatórios
apregoados então.
Nesse sentido, a multidão aglomerada passa a ser tratada como um
problema social o que leva as autoridades a desenvolverem diversos me-
203
canismos de controle social dessa população pobre, visto que ela se torna
ameaçadora aos olhos da burguesia e das próprias autoridades. Tudo isso
ocorre em um cenário marcado pelo aumento acelerado dos índices de po-
breza e da degradação cada vez maior dos bairros operários considerados
o local de origem dos novos ladrões. De pronto, na França em especial, as
péssimas condições de vida, instabilidade econômica e a possibilidade de
amotinamento leva a população pobre a ser vista também como uma amea-
ça política, ainda como memória viva da Revolução de 1789.
Sobre o temor político ligado à Revolução de 1789 representado pelos
pobres, Bresciani (2008, p. 109, grifo do autor) reitera:
204
Fato digno de nota é que o Estado e a burguesia lançavam mão de
vasta legislação e de práticas repressivas de cunho físico e psicológico com o
propósito de frear seu ímpeto supostamente revolucionário e extremamente
perigoso. Nesse sentido, tais ações se manifestam através da constante vi-
gilância que as autoridades exercem sobre a multidão, como se constata na
afirmação de Bresciani (2008, p. 120, grifo do autor):
205
públicos urbanos têm o poder de concentrar em si o temor ou a fixação
pelo crime.
Segundo Dominique Kalifa (2014, p. 288):
206
estreiteza desse espaço permitia a paradoxal proximidade entre os lugares
do crime e os da repressão. ‘Não é estranho, ou melhor, fatal que haja
uma irreversível atração que faça sempre que estes criminosos gravitem em
torno do formidável tribunal que os condena à prisão, ao trabalho força-
do e ao cadafalso!’, nota maliciosamente Eugène Sue, que sabia, é claro,
explorar o potencial romanesco dessas histórias. De um lado, antros, ca-
barés e redutos de malfeitores, cujas descrições tornaram-se rapidamente
um dos virtuosismos de toda uma literatura criminal (o Lapin Blanc e o
Paul Niquet, situados na rua aux Fèves; o Chat-noir, na rua de la Vieille
Draperie; o Bordier, na rua Aubry-le-boucher; o Hôtel d’Anglaterre, na
rua Saint-Honoré; o Épice-scié no bulevar du Temple; o Château-Rouge
e o Pére-les-lunettes na rua Galande). Do outro lado, os principais órgãos
da ordem: o Palais-de-Justice, a Conciergerie, a delegacia de polícia, cujo
sórdido depósito se abria para a rua de Jérusalem, um ‘beco estreito, escuro
e barrento onde o sol nunca penetra a não ser de forma dissimulada’; a
sede da segurança pública, na rua Sainte-Anne; a praça de Grève, lugar de
todas as execuções do Consulado em 1832, sem esquecer o necrotério, no
cais do Marché-Neuf, assiduamente visitado pelos parisienses. Não muito
longe dali, a prisão ‘de la Force’, na rua do Roi-de-Sicile e a prisão de
Sainte-Pélagie, acessível somente pela sinistra rua de la Clef e que acolhia
a maioria dos detentos, com exceção das mulheres, enviadas ao convento
das Madelonnettes, perto do Temple, antes da abertura de Saint-Lazare
em 1834, na rua de faubourg Saint-Denis. Preciosa vizinhança em um
tempo onde a estratégia policial consistia principalmente em se infiltrar no
mundo do crime para neutralizá-lo.
207
Esse processo lento e longo é descrito por Kalifa (2014, p. 291) da
seguinte maneira:
208
em Val-de-Grâce, na borda do Maine, na Puits-qui-parle ou ainda na
praça d’Enfer. Recusada na temática tradicional do submundo ou naquela
metáfora hugoliana das ‘partes inferiores’ e da caverna social, a existência
de uma imensa Paris subterrânea e criminal constitui, portanto, um clichê
generalizado que romancistas populares como Élie Berchet ou Pierre Za-
conne encarregaram-se de espalhar.
209
É evidente, até mesmo na literatura, o deslocamento dos locais de
ocorrência das ações criminosas. Toda a área localizada entre La Concor-
de e Le Bois se apresenta como espaço de cenas criminosas narradas pela
literatura. Percebe-se, também que os equipamentos urbanos2 de cidade
hausmanniana passaram a ser locais vivos e autônomos de ações criminais,
ou seja, “Estações de trem e hipódromos, onde atuam desenfreadamente os
batedores de carteira; os bosques de Boulogne e de Vincennes, abarrotada
de assediadores e, é claro, o metrô, rapidamente transformado em teatro de
novas violências.” (KALIFA, 2014, p. 294).
Portanto, nota-se que todo o universo que envolve as ações criminosas
na Cidade de Paris, seja no período anterior quanto posterior a haussman-
nização, é apropriado pela literatura que constrói representações sociais e
memórias sobre a topografia do crime e seu deslocamento em meio a essas
transformações.
Considerações finais
210
deslocamento do crime para os novos bairros da cidade e se espalhando pelo
equipamento urbano.
REFERÊNCIAS
211
essa obra foi composta em adobe caslon pro em
junho de 2023.