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(PEM-UFRJ)
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Construções de Gênero, Santidade e Memória no
Ocidente Medieval
Equipe organizadora:
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Ana Paula Lopes Pereira
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira
Victor Mariano Camacho
Gabriel Braz de Oliveira
Flora Gusmão Martins
André Rocha de Oliveira
Danielle Mendes da Costa
3
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão (Coord. Geral)
367 f.
ISBN: 978-85-88597-25-9
Pem-UFRJ
4
Dedi a os essa olet ea a todos
ue t a alha pa a a p ese aç o do
pat i io ultu al da hu a idade.
.
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6
Sumário
Apresentação.............................................................................................9
Considerações sobre o culto aos santos mártires no reino visigodo dos
séculos VI e VII
Flora Gusmão Martins.............................................................................17
A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri Gundisalvi
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva.....................................................41
A o e o aç o das al as da Legenda Áurea: solidariedade entre vivos
e os mortos do purgatório
Laís Luz de Carvalho.................................................................................57
A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São
Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação
André Rocha de Oliveira...........................................................................77
Ma ia d Oig ies e Cla a de Assis : dois e e plos de sa tidade
laica nos Prólogos de Jacques de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de
Celano (1200-1260)
Ana Paula Lopes Pereira...........................................................................95
Os atributos conferidos à santidade feminina em dois processos
produzidos na Península Itálica no século XIII – uma comparação entre
Clara de Assis e Guglielma de Milão
Andréa Reis Ferreira Torres...................................................................115
A santidade em construção: revolvendo camadas para expor as
instituições atuantes na canonização de Domingos de Gusmão (1233-
1234)
Thiago de Azevedo Porto.......................................................................131
Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a condenação da
beguina Marguerite Porete (1250-1310)
Danielle Mendes da Costa.....................................................................161
A influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre a narrativa
da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima
Victor Mariano Camacho.......................................................................185
7
O sacramento da confissão no discurso franciscano do século XIII, a partir
dos Sermões Antonianos
Jefferson Eduardo dos Santos Machado...............................................203
Uma alternativa de leitura sobre a pobreza medieval no Novo
Testamento: a trajetória canônica da Epístola de Tiago
Gabriel Braz de Oliveira..........................................................................219
Espiritualidade e milenarismo no Expositio in Apocalypsim de Joaquim de
Fiore (1135-1202)
Valtair Afonso Miranda..........................................................................241
A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo com a Vita Tellonis
Archidiaconi
Alinde Gadelha Kühner..........................................................................261
A construção da figura feminina na Vita Sancti Theotonii
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira..................................281
A cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas
Cantigas de Santa Maria de Alfonso X
Guilherme Antunes Junior.....................................................................301
Uniões entre Borgonha e Leão - Castela: os casamentos de Urraca e
Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096)
Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira...................................................319
Consumo suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV
Thaiana Gomes Vieira............................................................................335
Bibliografia.............................................................................................349
8
Apresentação
9
e/ou teórico-metodológico. Tratam-se de investigações vinculadas à
redação de trabalhos finais - monografias, dissertações e teses -, ou às
atividades docentes. O livro é dirigido não só ao público acadêmico, mas
a todos os interessados em conhecer um pouco mais sobre a
organização social medieval.
10
Também partindo de um capítulo da Legenda Áurea, André Rocha,
em A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São
Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação, discute o
teor das representações dos imperadores da dinastia Staufen, com
realce à aplicação da metodologia de Análise de Avaliação, conforme a
sistematização realizada pela psicóloga Laurence Bardin, com a adoção
do conceito de aparência de representação proposto pelo historiador
Roger Chartier. No decorrer do texto, o autor discute as relações entre
Papado, Império e Ordem Dominicana no século XIII.
Ana Paula Lopes Pereira, no texto Ma ia d Oig ies e Cla a
de Assis (1253): dois exemplos de santidade laica nos Prólogos de Jacques
de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de Celano (1200-1260), discute o
florescimento de formas de piedade laica nos centros urbanos no século
XIII, que implicaram em novas formas de santidade e novos tipos de
narrativas hagiográficas, por meio de dois exemplos de santidade
fe i i a: Ma ia d Oig ies, o jeto de u do u e to o posto po
Jacques de Vitry, e Clara de Assis, cujos gestos foram recolhidos por
Thomas de Celano, hagiógrafo da Ordem Franciscana. Por meio da
análise comparativa dos prólogos contidos nos respectivos relatos, a
autora apresenta reflexões sobre a construção da santidade laica com
perspectivas iniciais semelhantes - o beguinal e o comunitário
franciscano-, mas com posteridade diferente, devido a força do
enquadramento e o recrudescimento da ordem eclesial.
Andréa Reis Ferreira Torres, em seu texto, Os atributos conferidos
à santidade feminina em dois processos produzidos na Península Itálica
no século XIII – uma comparação entre Clara de Assis e Guglielma de
Milão, também discute a questão da santidade feminina no século XIII, a
partir dos casos de Clara de Assis, que foi canonizada, e Guglielma de
Milão, cujo culto foi condenado. O objetivo central desse texto é analisar
os atributos de santidade conferidos pelos depoentes às suas figuras de
veneração, tal como registrados no Processo de Canonização de Clara de
Assis e no Processo Inquisitorial contra os Devotos e as Devotas de Santa
Guglielma. A autora desenvolve seu texto por meio da identificação dos
pontos de convergência e divergência entre as características que foram
associadas a pessoa venerável nos dois ambientes, a saber, a
comunidade religiosa feminina institucionalizada reunida em torno de
11
Clara de Assis e em um grupo mais heterogêneo de devotos, como
aquele envolvido na devoção a Guglielma.
Thiago Azevedo Porto, em A santidade em construção: revolvendo
camadas para expor as instituições atuantes na canonização de
Domingos de Gusmão (1233-1234), aborda o tema do reconhecimento
social da santidade. O autor, por meio de um estudo de caso, apresenta
reflexões sobre o processo de canonização do fundador da Ordem dos
Pregadores, considerando-o como o resultado de um projeto coletivo,
entrecruzado por interesses institucionais e de diversos agentes sociais.
Em Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a
condenação da beguina Marguerite Porete (1250-1310), Danielle
Mendes da Costa apresenta e discute um caso de execução ocorrido em
1º de junho de 1310, na cidade de Paris, quando uma multidão de
pessoas – entre as quais altos dignatários do clero e da nobreza –,
testemunhou a morte de Marguerite Porete, condenada como herege
relapsa. Esse acontecimento foi registrado em uma crônica francesa, que
relata o desfecho do processo inquisitorial desta beguina, acusada de
escrever um livro e ensinar a sua pedagogia espiritual às pessoas simples.
O presente capítulo tem por principal objetivo identificar, no referido
livro, os elementos que poderiam ter representado uma ameaça à
instituição eclesial e, por extensão, culminaram na condenação de
Porete.
A análise das narrativas relacionadas a pregação do frade menor
Antônio de Lisboa/Pádua ambientadas em Pádua, cidade localizada ao
Norte da Península Itálica, presentes na Beati Antonii Vita Prima, é o foco
do capítulo Influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre
a narrativa da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima, de
autoria de Victor Mariano Camacho. A Vita, também conhecida como
Legenda Assídua, foi o primeiro texto hagiográfico que se tem registro
dedicado a relatar a vida e os milagres do religioso português canonizado
em 1232 pelo papa Gregório IX. O autor discute, por meio da análise da
legenda, a atuação pastoral dos Frades Menores para garantir a
dominação pontifícia, por meio da prática dos sacramentos, e a
influência da própria ordem religiosa no âmbito urbano.
Jefferson Eduardo dos Santos Machado, também mantém o foco
na pregação franciscana, no texto O sacramento da confissão no discurso
franciscano do século XIII, a partir dos Sermões Antonianos. O autor
12
demonstra como a Ordem dos Frades Menores, surgida no início do
século XIII, trouxe renovação para a Igreja Romana, pois Francisco de
Assis e seus primeiros companheiros apresentaram uma proposta
diferenciada face às experiências religiosas institucionalizadas
anteriores. Com o desenvolvimento e institucionalização do movimento
inicial, os Frades Menores tornaram-se referenciais para o pensamento
teológico e a pregação douta. O primeiro a alcançar destaque foi Antônio
de Lisboa/Pádua, autor da obra Sermões Dominicais e festivos e
pregador, que marcou a primeira geração dos irmãos seguidores do
Poverello. No texto são analisadas as orientações sobre o Sacramento
da Reconciliação ou Confissão que o pregador franciscano apresenta em
seus Sermões para os Domingos da Quaresma, articulando-as com o
ideário da Igreja Romana.
Gabriel Braz de Oliveira, com o objetivo de buscar os fundamentos
da pobreza evangélica adotada pelos mendicantes no século XIII,
seguindo a sugestão de Michel Mollat, para quem o debate sobre o
abuso da riqueza foi resgatado da Epístola de Tiago, aborda a trajetória
desta obra no cânone neotestamentário. Assim, em Uma alternativa de
leitura sobre a pobreza medieval no Novo Testamento: a trajetória
canônica da Epístola de Tiago, os momentos de contestação e
consolidação desta epístola são abordados fazendo referência a
períodos e personagens que possuem alguma relação com a
transmissão, circulação e repercussão deste texto durante o medievo
Ainda buscando discutir como os textos neotestamentários foram
lidos no medievo, Valtair Afonso Miranda analisa a sétima seção do
Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore, no capítulo Espiritualidade
e milenarismo no Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore (1135-
1202). O autor discute como Joaquim rompe com a tradição agostiniana,
que identificou o milênio joanino com a história da Igreja, e propõe em
seu lugar um período de felicidade na terra para toda a humanidade, sob
a direção do Espírito Santo. O abade esperava algum tipo de
continuidade entre o presente e o futuro, mas com a transformação de
suas instituições sociais, especialmente da Igreja. Este período de
descanso e contemplação teve como ponto de partida as reflexões
hist i as de Joa ui e a t adiç o do ef ig io dos sa tos . A
emergência histórica desta visão de milenarismo teve grande impacto
e t e os f a is a os, e espe ial e t e os ha ados espi ituais .
13
Voltando o olhar novamente para a Península Ibérica, Alinde
Gadelha Kühner, em A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo
com a Vita Tellonis Archidiaconi, estuda em perspectiva comparada dois
textos hagiográficos vinculados ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,
um dos mais importantes cenóbios portugueses no Medievo. O
estabelecimento desta instituição, segundo a tradição, deu-se por meio
da idealização do arcediago D. Telo e do priorado de D. Teotônio. Assim,
ainda no século XII, dois textos foram escritos quando da morte dos
fundadores: a Vita Tellonis Archidiaconi e a Vita Theotonii. A autora
discute em seu texto como as representações de D. Telo se articulam à
promoção da legitimação do mosteiro.
Ainda tendo como foco a produção hagiográfica coimbrã,
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, em A construção da
figura feminina na Vita Sancti Theotonii, analisa a concepção acerca do
fe i i o a Vita Sancti Theotonii. O autor parte de duas questões
principais: quais elementos narrativos o hagiógrafo utilizou para
est utu a a o de de seu dis u so, o e te do a figu a fe i i a , e
última instância, em uma ferramenta de reforço da santidade do
hagiografado, e quais foram os fatores motivadores de tal construção
narrativa. O objetivo da análise é contribuir para a compreensão da
noção crúzia sobre a feminilidade delineada na segunda metade do
século XII.
Dentre as muitas figuras veneradas no medievo que continuam a
despertar a devoção de milhões de fiéis do mundo inteiro na atualidade,
encontra-se Maria, a mãe de Cristo. Guilherme Antunes Júnior, em A
Cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas
Cantigas de Santa Maria de Afonso X, debruça-se sobre tradições
relacionadas a esta santa. Para tanto, analisa um dos milagres presentes
na obra Cantigas de Santa Maria, elaborada na região de Castela e Leão
no século XIII. Seu principal coordenador e financiador foi o rei Afonso X,
entre os anos de 1270 a 1284. A cantiga em questão é a 26, cuja narrativa
central trata do pecado de um romeiro que teve relações sexuais antes
de iniciar uma peregrinação para Santiago de Compostela. O Diabo
aparece na história como personagem que engana o peregrino e tenta
levar sua alma para o inferno. Com a intervenção de Maria, a alma do
romeiro é salva, atestando o poder milagroso da santa. Para análise
14
dessa cantiga, o autor utiliza a categoria gênero para traçar reflexões
sobre o sentido político e cultural desse milagre.
Saindo do ambiente eclesiástico, mas atenta às suas influências
em outras esferas da organização social, Mariane Godoy da Costa Leal
Ferreira, em Uniões entre Borgonha e Leão – Castela: os casamentos de
Urraca e Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096), tem como foco
a visão eclesial sobre dois enlaces matrimoniais ocorridos no final do
século XI: Urraca e Raimundo e Teresa e Henrique. Neste artigo são
analisadas as menções a tais casamentos a o a Histo ia Co postela a,
ue foi redigida na primeira metade do século XII, na Sé episcopal de
Santiago de Compostela, tendo como protagonista o epíscopo Diego
Gelmirez. O objetivo é discutir qual a relação entre a perspectiva
apresentada na obra sobre os referidos casais, relacionando com as
estratégias políticas acionadas pelo bispo protagonista.
Ainda tendo como foco o ambiente laico, Thaiana Gomes Vieira
estuda as formas de controle da vestimenta na Baixa Idade Média,
pensando as roupas em sua articulação com a história em Consumo
suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV. Para tanto, a
autora faz um estudo de caso: as leis suntuárias de Múrcia na primeira
metade do século XIV, sobretudo, no que se refere às vestimentas e
adornos. O principal objetivo é discutir qual a relevância da aparência
nessa sociedade e o porquê era necessário estabelecer normatização
sobre o tema. A autora parte de dois pressupostos iniciais: é possível
falar de moda no período e a vestimenta foi um fator de comunicação e
componente da aparência.
15
16
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CULTO AOS SANTOS MÁRTIRES NO
REINO VISIGODO DOS SÉCULOS VI E VII
Martírio e santidade
O perfil do santo vai se modificando ao longo da história do
cristianismo. Neste texto pretendemos discutir algumas questões
relacionadas ao modelo de santidade martirial, tendo como base o reino
visigodo dos séculos VI e VII, período no qual se insere a pesquisa que
realizamos no mestrado. No período das perseguições aos cristãos, os
mártires são os santos por excelência. Associados por muitos
historiadores com os heróis clássicos, os mártires são aqueles que são
mortos por sua fé em Cristo e sua fidelidade ao cristianismo, e por isso
tinham acesso à glória do paraíso e da vida eterna. O santo é um
mediador, alguém que estabelece contato entre o céu e a terra, é um
intercessor, e a comemoração do seu martírio é a comemoração de seu
nascimento ao lado de Deus, para a vida eterna2. Ser santo, a princípio,
era morrer por e como Cristo, ou seja, desde o começo santidade e
martírio eram inseparáveis. Porém, após as perseguições, a instituição
eclesiástica aplica o conceito de santidade de forma a englobar também,
segundo Andrade, os vivos, venerando pessoas por sua vida exemplar
tanto quanto pela sua morte. De acordo com Andrade os santos eram
exemplos que traduziriam uma visão de mundo, ou seja, passavam os
valores morais da instituição eclesiástica. Segundo a autora:
O destaque a um determinado modelo de santidade revela
uma série de manifestações, gestos e palavras, traduzindo
uma visão de mundo integrada por crenças e práticas
coletivas, conectando o indivíduo a um determinado grupo,
fornecendo elementos para a compreensão dos modelos de
santidade atuais.
O fenômeno do martírio
Como já mencionado, a historiografia demonstra que o perfil do
santo vai se modificando ao longo do período medieval. De acordo com
19
André Vauchez tudo provém do culto aos mártires, que em um momento
inicial foram os únicos santos venerados pelos cristãos, e conservaram
na Igreja um prestígio considerável.7 A teóloga Candida Moss apresenta
a dificuldade em definir o fenômeno do martírio e saber suas origens. De
acordo com ela o termo martys fazia referência à testemunha ou ao
testemunho apresentado por um indivíduo em um julgamento, tendo
sido utilizado primeiramente em um contexto legislativo. Com o tempo
e sua maior difusão, o termo foi gradualmente modificando seu
significado para como o entendemos hoje: um indivíduo que prefere
morrer a renunciar a sua fé em Cristo ou à obediência aos seus
ensinamentos. De acordo com ela, dois séculos após a morte de Jesus, o
significado do termo teria se transformado de testemunha ocular para
um cristão executado. Moss afirma que o significado do termo martys
foi transformado discursivamente pelas primeiras comunidades cristãs
mesmo depois de sua primeira aplicação para definir um cristão
executado.8
Já Miranda, historiador e teólogo, atenta para a definição de
martírio de Strathmann, pensada sob uma abordagem etimológica, na
qual as formas básicas mais antigas seriam os nominativos gregos
martys, martyros e martyr, que parecem ter se originado da raiz grega
smer, ue pode se t aduzida o o te e e te , le a , assi
como a palavra grega mermeros a uele ue deli e a ou os e os
mermairo e mermerizo o side a , deli e a . De a o do o este
autor, os termos latinos memor e memoria têm uma associação íntima
às expressões gregas e, portanto, o mártir era aquele que lembrava, que
tinha conhecimento de algo e podia apresentar sua palavra sobre o
assunto em questão. Seguindo esta linha, Miranda afirma que então o
verbo martyrein sig ifi a a se u a teste u ha ou teste u ha
algo . Ju to o out os te os o sig ifi ados pa e idos, apa e ia
com esta acepção mais em demandas judiciais, na versão grega das
Escrituras judaicas e no Novo Testamento cristão. Porém, na segunda
metade do século II, o sentido do termo já aparece de forma mais
ampliada no documento intitulado Martírio de Policarpo. Neste, martírio
já aparece como a morte da testemunha e mártir como a testemunha
7I ide , p. .
8 MOSS, Ca dida R. A ie t Ch istia Ma t do – Di e se p a ti es, theologies, a d
t aditio s. Ne Ha e , e Lo d es: Yale U i e sit P ess, . p. - .
20
que morre, e agrega-se também a noção de sofrimento. Assim o autor
defende que no cristianismo do século II o termo mártir passa a designar
alguém que experimentava o sofrimento e, eventualmente, a morte, em
função de sua crença na religião cristã.9
Neste sentido ressaltamos aqui que o bispo contemporâneo à
conjuntura com a qual nos preocupamos, Isidoro de Sevilha (c.560-636),
na sua obra denominada Etimologias, afirma que mártir é a palavra grega
para significar testemunha, pois os mártires sofreram e padeceram para
dar testemunho de Cristo e lutaram até a morte para defender a
verdade. O bispo também ressalta que, apesar de ser factível chamar os
mártires de testemunhas, é preferível chamá-los pela palavra grega por
ser já mais familiar à igreja10.
Ro a o e i í io da Idade M dia.
21
culto aos mártires teria, segundo o autor, se difundido por meio do santo
patrono, que tem uma relação com os cristãos baseada nas mesmas
noções daquela antes mencionada: os santos seriam protetores de seus
devotos, agindo como intercessores na vida dos fiéis e mediadores em
sua salvação.12
O historiador González Fernández apresenta um panorama do
debate que relaciona o culto aos santos com o culto aos heróis antigos.
De acordo com ele atualmente é aceito que certas características da
religiosidade pagã sobreviveram sob fórmulas cristãs, e que é possível
que essa cristianização de modelos pagãos tenha sido motivada, em
certa medida, por dar conta de um novo mundo cristão para fiéis que
haviam nascido em um universo cultural e religioso pagão. González
Fernández sublinha que a discussão sobre este assunto, iniciada já em
princípios do século XX, tem sido fundamental para o estudo dos
mártires e seu culto. Segundo ele, já nos primeiros anos do século XX
autores como Saintyves e Lucius propuseram que os mártires e santos
eram sucessores dos deuses e heróis pagãos (proposta esta que tinha
influência da obra de Gibbon do século XVIII, Declínio e Queda do Império
Romano, a qual apresenta uma perspectiva negativa da instituição
eclesiástica). De acordo com Souza:
A obra de Saintyves tem ainda hoje o mérito de ter lançado a
inquietante sugestão da existência de um elo entre
cristianismo e mitologia, embora este termo ainda fosse
entendido pelo autor de forma muito limitada. No entanto, o
envelhecimento de sua pesquisa é inequívoco. Dedicada ao
culto aos santos, a investigação se lança na elaboração de um
inventário de datas, locais e nomes, que obscurece por
completo a apreciaç o da sa tidade e si. … Ne hu a
ap o i aç o e t e istia is o e 'paga is o' feita o
terreno dos conceitos ou do sentimento devocional.13
14I ide , p. .
15GONZÁLEZ FERNÁNDEZ, Rafael. El ulto a los ti es sa tos e la ultu a istia a.
O ige , e olu i fa to es de su o figu a i . Kalako ikos, . , p. - , .
23
dos sujeitos deriva da identidade do grupo para com eles e de eventos
que indicam uma excepcionalidade extra-humana. Para a autora o novo
sistema de valores expresso pelos santos cristãos foi capaz de recobrir
significados de indivíduos socialmente vistos como excepcionais ou até
mesmo como divindades para além dos limites do paganismo clássico.
Segundo ela santos e heróis eram, primeiramente, seres humanos
distintos por serem ao mesmo tempo vivos e mortos, por realizarem a
vinculação entre o aqui e o além. Souza afirma que as convicções cristãs
convergem para a atuação do morto especial entre os vivos e sobre as
realidades materiais.16
Neste sentido os filólogos Sanz, Codoñer Merino e Martín
exemplificam essa relação entre o culto pagão e cristão em seu livro
sobre a Hispania visigótica e mozárabe com uma história contada em
uma das obras de Santo Agostinho: de acordo com eles, o santo conta
que sua mãe tinha o costume, do norte da África, de celebrar o
aniversário dos mártires indo aos seus santuários com uma cesta de
alimentos, pão e vinho principalmente, e dividi-los com outras pessoas
que também estivessem no local. Porém, quando a mãe vai visitá-lo em
Milão, descobre que esse costume havia sido proibido por Ambrósio,
bispo da cidade, e somente a eucaristia poderia ser celebrada nos
santuários dos mártires. Para os autores, Agostinho, ao mencionar este
episódio em sua obra, condena a prática realizada por sua mãe por ser
muito similar ao festival pagão em honra dos mortos. Como lembram os
autores, refeições comemorativas partilhadas em tumbas eram de fato
um recurso padrão da prática memorial romana, e bispos como
Ambrósio e Agostinho, que estavam empenhados em formar a prática
religiosa cristã nos primeiros séculos, claramente desencorajavam-na
devido a sua similaridade com o paganismo. Os autores também
atentam para a própria natureza do culto aos santos, que estava ainda
sendo moldada por debates e recomendações realizadas por bispos
como os dois antes mencionados.17 Peter Brown também escreveu um
16I ide , p. - .
17SANZ, Ma ía Adelaida; CODOÑER MERINO, Ca e ; MARTÍN, Jos Ca los. La Hispa ia
Visig ti a Moz a e. Dos Épo as e su Lite atu a. Sala a a: U i e sidad de Sala a a,
.
24
artigo no qual apresenta Agostinho como uma figura proeminente no
controle do culto aos santos na Antiguidade Tardia.18
Brown ainda atenta para essa comparação entre o mártir e o herói
clássico. Para ele idealizar os mortos era algo natural para os homens dos
períodos Helenístico e Romano, assim como de certa forma oferecer
uma espécie de adoração a esses mortos, no âmbito familiar ou no
âmbito público, em casos em que o falecido era excepcional, como
heróis ou imperadores. A diferença mais marcante ressaltada pelo autor
é que na religião pagã, ao tratar-se do papel dos heróis, estava
praticamente ausente uma crença muito presente ressaltada pelos
autores cristãos em relação aos mártires: esses personagens, justamente
por terem morrido como homens, desfrutavam de uma estreita
intimidade com Deus. Essa intimidade era condição para a habilidade dos
santos mártires em interceder e proteger os mortais, ou seja, segundo
Brown, a grande diferença entre o mártir e o herói era que o santo
cristão era um intercessor na vida dos fieis de uma forma que o herói
clássico nunca foi.19
Já o teólogo e historiador Miranda afirma que alguns casos da
literatura romana apresentam uma significativa presença do desejo de
morte em determinados espaços romanos, desejo este que alguns
pesquisadores associam com a construção da própria identidade do
cristianismo. Segundo este autor isso significaria que a transformação
dos mortos cristãos em heróis realizou-se em uma cultura que conhecia
o fenômeno da exaltação daqueles que morriam de forma corajosa.20
Ana Teresa Gonçalves analisa três Homilias produzidas por Basílio
de Cesaréia no século IV, dedicadas aos mártires Julita, Górdio e
Mamante e tenta demonstrar, a partir de sua análise, como os
sacerdotes e bispos, para serem melhor compreendidos pela audiência,
costumavam utilizar um arsenal vindo da retórica clássica e pagã,
ressignificando-o para garantir o proselitismo cristão. De acordo com a
autora, vários autores cristãos, com o auxílio de topoi e imagens
reconhecíveis pelas audiências a serem tocadas pelo cristianismo,
Antecedentes do fenômeno
O professor de História Antiga Bowersock também trata martírio
em seu livro Martyrdom and Rome, no qual ele defende a especificidade
deste fenômeno cristão em relação a outras religiões. De acordo com ele
o sofrimento e a morte pelas mãos de magistrados romanos elevavam
presumivelmente os cristãos ao status de mártir, posição esta que
garantia a salvação e até mesmo a santidade, de tal forma que já no final
do século II, havia cristãos que buscavam a própria morte como mártires.
Este fenômeno de martírio voluntário, segundo o autor, era uma
excentricidade do período e continuou por mais de um século. Nas
33
A representação mais completa do martírio era pelas paixões, e,
segundo o autor, independentemente da utilização de documentos
anteriores para a redação, o certo era que o próprio ato de recordar era
uma transformação e reformulação do martírio, quando não a sua total
invenção. Assim, esses relatos preocupavam-se em narrar a violência do
martírio. O processo de simbolização do conflito permitia que a
recordação fosse carregada de complexos significados que serviam para
negociar as relações de identidade, de gênero, de poder, entre outras.
Portanto, a reformulação de um conflito participava ativamente nos
conflitos contemporâneos.33
É possível observar na conjuntura do reino visigodo dos séculos VI
e VII a preocupação do episcopado com a recordação do passado, mais
especificamente dos martírios. É preciso ressaltar também que as
paixões desse período foram escritas por cristãos tratando de um
conflito com os pagãos, então a forma como o conflito é relatado serve
aos interesses do emissor do discurso, ou seja, do episcopado. Nestes
relatos também encontramos certos determinados elementos
aparecem como exemplos para o público ao qual o discurso pretende
atingir. Além disso ressaltamos que nas paixões que foram escritas em
períodos posteriores às perseguições dos romanos aos cristãos
aparecem indícios de conflitos contemporâneos a sua redação, como
elementos que desvalorizam a fé judaica e ariana no caso da conjuntura
visigoda.
Desta forma o discurso eclesiástico sobre os mártires enfatiza a
santidade e, buscando também o propósito hagiográfico de edificação
dos fiéis, os relatos se preocupam em exaltar determinadas virtudes
cristãs e características que possam servir de exemplo para o público
cristão, além do próprio martírio. Como mencionado anteriormente,
dito fenômeno não serve mais para incentivar o enfrentamento com um
governo pagão repressor da fé cristã, e sim um martírio espiritual, no
qual o fiel encontra forças para enfrentar qualquer dificuldade terrena,
sabendo que será recompensado após a morte. Ressaltamos também
que a construção da santidade do mártir está relacionada com a própria
35 I ide , p. .
36 CASTILLO MALDONADO, Ped o. Op. Cit., p. - .
37 I ide , p. .
36
Sobre o terceiro processo, chamado pelo autor de redefinição ou
ampliação do conceito de santidade, Maldonado afirma que apesar das
raízes da santidade cristã encontrarem-se nos martírios da época das
perseguições, em tempos de paz outros modelos de santidade foram
buscados e assimilados ao original, tornando possível que atingir a
santidade por meio da disciplina ascética. Assim, ele ressalta os santos
bispos, anacoretas, monges, virgens, etc. que foram venerados no
período visigodo.38
A dinâmica de culto aos santos é essencial para o funcionamento
da instituição eclesiástica nesse período. Como dito anteriormente, era
uma forma de relação entre o cristão e o divino e de mostrar a ação
divina no terreno, o santo era o intermediário entre Deus e a pessoa
comum. Além disso, os santos faziam parte de identidade cristã, os
mártires relembravam o sofrimento do passado e serviam como
exemplo para superar qualquer dificuldade e como lembrança da
recompensa divina no pós-morte. O culto aos santos assim fazia parte
do cotidiano medieval, com as celebrações litúrgicas que apareciam no
calendário cristão durante todo o ano, e também traziam uma dinâmica
de movimentação de fiéis, pois os locais de santuário e relíquias atraiam
cristãos em peregrinação e em busca da intervenção do santo, além de
trazer prestígio e doações para a comunidade em que se encontrava.
Sobre esta dinâmica Maldonado afirma que por seus poderes
miraculosos os santos desempenhavam um importante papel como
patronos das cidades e na Hispania, como em outros reinos, a partir do
período hispano-romano os santos exerciam um papel proeminente na
criação de coesão social dentro das cidades. De acordo com ele os
festivais de santos, com hinos e procissões promoviam a identificação
entre mártir e cidade e permitiam uma suspensão momentânea de
categorias sociais. Para o autor em uma sociedade com valores cada vez
mais aristocráticos e militares, os mártires e seus locais santos tinham
também um importante papel político de determinação contra a
hostilidade de inimigos. Maldonado também defende que os bispos,
como guardiões privilegiados da santidade e intermediários com os
mártires, encontraram no culto aos santos um campo no qual formular
38 I ide , p. .
37
um evergetismo cívico para patrocinar todo um programa de construção
centrado nos loca sanctorum.39
Neste sentido o autor aponta que normativas conciliares chegam
a mencionar o culto aos santos como uma força motriz da construção
realizada pela aristocracia laica e eclesiástica, e as cidades, como
repositórios da maioria das relíquias, seriam o espaço geográfico
privilegiado por essa atividade. Segundo ele estes locais alteravam a
topografia física e mental de uma cidade, como os arredores da basílica
de Mérida dedicada à santa Eulália, e chegava a impactar também as
regiões campesinas. O autor defende, portanto, que mártires e
confessores não eram somente guardiões cívicos, mas também
auxiliavam efetivamente a cristianizar toda uma diocese, campo e
cidade, servindo assim aos interesses do episcopado.
Sobre esta questão Maldonado defende, em outro texto, que
desde o século VII é possível observar nas igrejas hispânicas um desejo
de us a suas o ige s, ou, fo a suas o ige s. Pa a ele a p o a desta
afirmação seria a formação de toda uma literatura cujo objetivo é a
construção de um passado honroso para as comunidades eclesiásticas,
principalmente as sedes episcopais, na qual se inserem as paixões
produzidas neste período. De acordo com o autor este fenômeno teria
três razões principais: o valor antiquitas, ou seja, ter um passado remoto
legitimaria o status de uma comunidade, repercutindo em sua
hierarquia; a incapacidade epistemológica de conceber uma origem da
cidade que não seja individual e unidirecional; e a concepção cristã da
consciência da sobreposição entre a comunidade dos vivos e a
comunidade dos mortos. Maldonado insere o culto aos mártires como
parte essencial deste fenômeno, e apresenta o exemplo da disputa por
poder entre Mérida, que contava com uma mártir ja bem cultuada, e
Toledo, que carecia de um mártir que pudesse legitimar a origem remota
de sua igreja. Portanto, para capitalizar o prestigio martirial para Toledo,
a nova capital, a monarquia e a hierarquia eclesiástica criaram a mártir
local Leocádia.
Maldonado defende que a identificação entre o santo cultuado e
a cidade abarca todo o conjunto citadino, e que o mártir é o defensor
civitatis e o emblema identificativo da cidade. Este elemento seria uma
39 I ide , p. .
38
consequência da associação do mártir com a fundação da cidade, com a
sua origem, e apresenta os exemplos de Vicente, Sabina e Cristeta como
fundadores de Ávila e o mártir Félix como fundador de Gerona. O autor
também ressalta, referindo-se a Brown, que os mortos têm uma
praesentia, autêntica e real, na comunidade dos vivos, e que seria a
comunidade e seu bispo que teriam a responsabilidade de perpetuar a
memória de seus membros principais. Portanto, para ele, as paixões do
século VII respondem ao auge do culto martirial e sua integração plena
nos rituais litúrgicos e servem também a uma necessidade de legitimar
e valorizar as origens das comunidades, especialmente das sedes
episcopais.40
Dentro desta dinâmica de culto aos santos Díaz ressalta a
relevância do peregrino, segundo ele sujeito que sem o qual a relíquia e
o lugar santo, até mesmo os milagres, não teriam sentido. O autor afirma
que a proliferação de locais santos dignos de serem visitados e de
converterem-se em lugares de peregrinação está estreitamente
relacionado com a implantação do culto aos santos e do culto às
relíquias. De acordo com ele a afluência às basílicas que contavam com
relíquias já seria um fenômeno mencionado por Prudêncio no século IV.
Segundo o autor o peregrino dirige-se aos locais sagrados buscando um
contato privilegiado com o divino, uma resposta aos seus pedidos,
oferece suas orações e promessas. Contudo, para ele, a mera
aproximação ao local já seria um ato válido em si mesmo, uma forma de
penitência e uma experiência mística que se manifesta com uma
aventura essencial da prática cristã.
Díaz destaca que existem poucos indícios de peregrinações longas
e de locais distantes na Hispania, ou seja, que no reino visigodo ela era
mais local, composta majoritariamente por habitantes da cidade e de
seu entorno e de cidades vizinhas. Ele também ressalta que os locais que
guardavam relíquias e recebiam peregrinos, como basílicas e mosteiros,
construíram uma infra-estrutura maior para lidar com esses visitantes,
assim, locais de culto eram, como defende também Maldonado, locais
que contavam com um projeto de construção e prestígio diferenciado.
Díaz também defende que as hagiografias eram formas de reforçar a
40 CASTILLO MALDONADO, Ped o. Los o íge es de las o u idades iudada as istia as:
la e pli a i ta doa tigua e la lite atu a a ti ial hispa a. Polis: Re ista de ideas
fo as políti as de la A tigüedad Cl si a, . , . p. - .
39
peregrinação nestas cidades e locais e afirma que a figura do mártir é
essencial para compreender a configuração da topografia das cidades
hispanas.41
Assim, concordamos com a perspectiva defendida por Castillo
Maldonado de que a dinâmica de culto aos santos era essencial no
período visigodo, e também em todo a conjuntura medieval, além de ser
uma estratégia de consolidação e fortalecimento do poder da instituição
eclesiástica. O culto aos santos trazia uma maior circulação de pessoas,
privilégios, possibilidades de crescimento para a cidade, doações, etc. e,
por isso, era uma das medidas de maior preocupação do episcopado
para fortalecer sua posição no território visigodo.
Introdução
Como uma das atividades relacionadas ao desenvolvimento do
projeto A construção medieval da memória de santos venerados na
cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero,
financiado pela Faperj por meio do Programa Cientista de Nosso Estado,
tenho estudado o processo de produção e o conteúdo da Legenda Beati
Petri Gundisalvi (LBPG). Esta obra narra a trajetória e milagres de um
frade pregador que viveu no século XIII na Península Ibérica, Pedro
González, também conhecido como São Telmo.2
Meu principal objetivo com este texto é apresentar e discutir as
referências à Ordem Dominicana que figuram na LBPG, relacionando tal
debate à questão do patrocínio da composição desta legenda. Mais do
que propor conclusões definitivas, minha meta é propor possibilidades
interpretativas.
Tude se, datada do s ulo XVI. Cf. NOVO SÁNCHEZ, F a is o Ja ie . La ida los ilag os
de Sa Tel o e la sille ía de o o de la Cated al de Tui. I : CENDÓN FERNÁNDEZ, M.,
GONZÁLEZ SOUTELO, S.. Coo d. Tui: Pasado, p ese te futu o. COLOQUIO DE HISTORIA
DE TUI, ., Tui, . A tas.... Po te ed a: Diputa i de Po te ed a, . p. , ota
.
4 SUÁREZ GONZÁLEZ, A a. U Li ellus Sa ti Tho e Ca tua ie sis A hiepis opi A hi o
Considerações finais
As menções à ordem dominicana no conjunto da LBPG são pontuais e
genéricas: fora recém instituída; era pobre, e os frades a ela vinculados se
dedicavam a pregar e ouvir confissões. No momento de redação da legenda,
segunda metade do século XIII, ou seja, algumas décadas após o reconhecimento
papal da Ordem dos Pregadores, os irmãos já eram conhecidos no Ocidente e
estavam instalados na Península Ibérica. O próprio fundador, Domingos, era
natural da Hispânia. Assim, o pertencimento a este instituto religioso era um
aspecto positivo na caracterização de Pedro González e, portanto, não poderia
ser esquecido.
Interpreto as menções à Ordem na LBPG, portanto, como uma estratégia
textual para destacar a radical transformação do santo, por isto o foco da narração
está nas virtudes e nas atividades realizadas pelo protagonista após a sua decisão
por uma mudança radical de vida. Ou seja, as referências foram inseridas para
engrandecer a figura de Pedro González e não para afamar a Ordem dominicana
como um todo.
55
Como sublinham diversos autores, com os quais concordo, o realce dado
de forma particular à santidade de um frade não foi uma política desenvolvida
pelos dominicanos no século XIII, pois objetivavam sublinhar a retidão do
conjunto dos irmãos.56 Esta não é a proposta da LBPG, que ressalta as virtudes e
milagres de Pedro González, tratando-o como uma figura excepcional.
Desta forma, apesar da LBPG fazer referências à Ordem dos Pregadores,
defendo a hipótese de que o patrocinador da redação desta obra não foi este
instituto, mas outro grupo que tinha interesses particulares na promoção do culto
a Telmo. Como a LBPG vincula o santo à cidade de Tui, e, especialmente à
Catedral, provavelmente, o promotor da redação desta hagiografia foi o cabido
da Catedral.
Introdução
4 DIAS, Ma ta Mi ia Ra os. A litu gia dos defu tos a a te fu e ia edie al. I ipit .
Wo kshop de Estudos Medie ais da U i e sidade do Po to, – , Po to, p. - ,
. p. .
5 LE GOFF, Ja ues. O Nas i e to do Pu gat io. T aduç o Ma ia Fe a da Go çal es de
polêmico (séculos XI-XII). In: ZERNER, Monique. (Org.). Inventar a heresia: discursos
polêmicos e poderes antes da inquisição. Campinas: Unicamp, 2009. p. 163-169. p. 179.
8 A es olha deste te o foi pela az o de ue, e o a C u e Pa aíso te ha se
to ado si i os, a a tog afia do Al fez du a te uito te po disti ç o e t e
58
único destino possível dali em diante.9 Embora o passo seguinte fosse o
espaço celeste, os locais de purgação se assemelhavam muito às
descrições infernais. Portanto, esse terceiro lugar teria efeitos de um
Inferno temporário de acordo com o discurso eclesiástico, figurando
como um destino quase inevitável para todos os cristãos pecadores.
Restava-lhes deste modo, recorrer a medidas que pudessem abreviar a
estadia no Purgatório. A possibilidade de encurtamento do tempo de
expurgação ficaria então nas mãos dos vivos, por meio das orações,
missas, indulgências e sufrágios,10 já que os mortos não estariam mais
em condições de ajudarem a si mesmos. Desenvolveu-se a partir desta
situação o laço que ligaria toda a comunidade cristã, viva ou não: a
solidariedade diante da morte.
depois muitas vezes aos laicos. O tabu do sangue recaiu sobre os açougueiros, os
médicos e os soldados. Os clérigos se oporam aos guerreiros. O Tabu da impureza recaiu
59
salvação para estes ofícios tão comuns e necessários ao cenário urbano,
permitindo o exercício destas profissões que foram aos poucos sendo
reabilitadas.
A partir do século XI a Igreja medieval encontrava-se imersa em
período que ficou conhecido por suas reformas, buscando a
centralização do poder nas mãos do papado romano, no intuito de
emancipar a Igreja Romana da influência laica. Afirmando sua autonomia
e o caráter inviolável de seus bens, propriedades, direitos e
procedimentos sobre os quais se assentava a organização da Igreja de
Roma, buscava-se disseminar este modelo por todo o Ocidente.15 A
condenação da simonia, do concubinato eclesiástico, da alienação dos
bens da Igreja e da reafirmação da prerrogativa do clero de eleger os
bispos foram algumas questões que ganharam força neste momento.16
Os reformadores do século XI, em sua maioria monges,
buscavam o retorno ao que acreditavam ter sido a forma de vida da
Igreja Primitiva. Essa insistente incitação para retornar às origens, se
afastando de um mundo moralmente decadente, no qual a Igreja
Romana se encontrava envolvida, impulsionava a onda reformadora,
estendendo-a inclusive aos leigos.
As reformas reforçaram o primado do bispo de Roma, que
também visava enquadrar movimentos espontâneos capazes de
perturbar a ordem eclesiástica. Além disso, aprofundou-se a
demarcação entre o clero e os fiéis.17 Suas respectivas funções,
espirituais e temporais, deveriam ficar mais claramente delimitadas,
principalmente pelo desenvolvimento da liturgia romana. Com o retorno
ao modelo ideal de Igreja primitiva, a imitação do que acreditava-se ter
sido a ida e dadei a e te apost li a i spi ada o E a gelho, t a ia
18 I ide , p. .
19 BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São
Paulo: Globo, 2006. p. 213.
20 ROCHA, Te eza Re ata Sil a. A Lege da Áu ea e o e e plu o o te to da p egaç o
do i i a a s . XIII . I : ZIERER, Ad ia a; VIEIRA, A a Lí ia Bo fi ; ABRANTES,
Eliza eth Sousa O g. . Nas t ilhas da a tiguidade e Idade M dia. S o Luiz: Edito a UEMA,
. p. - . p. .
61
exemplares (exempla), que ilustravam formas de condutas moralizantes
sob a forma de relatos breves e de fácil memorização. Nas palavras de
Jean-Claude S h itt: a iça, siste ti a, epetiti a, a o a p egaç o
pa e e u a e o e ui a de o e te al as .21
A Lege da Áu ea e A Co e o aç o das Al as
Como já mencionado, a Legenda Áurea é uma compilação
hagiográfica elaborada pelo dominicano Jacopo de Varazze no século
XIII, na Península Itálica. Entre a data aproximada do início da redação,
em 1260, e a morte do frade, em 1297, o autor foi modificando e
enriquecendo a sua obra, assim como posteriormente também o fizeram
copistas e tradutores.22 A obra difundiu-se rapidamente, contando com
versões de manuscritos latinos e traduções para línguas vernáculas.23
Algumas partes da LA são copiadas de outras fontes, já outras são criadas
pelo autor. O compilador acrescenta muitas vezes suas interpretações e
organiza a obra de modo a dar ao legendário um caráter autoral.24
Redigida em latim, tendo portanto como público direto clérigos
instruídos, a obra é repleta de artifícios didáticos, já que esta servia de
consulta aos pregadores para a formulação de sermões. Ao longo dos
séculos seguintes foi ganhando diversas traduções, e tal sucesso se deu
porque no momento de sua produção as línguas vernáculas passaram a
concorrer com o latim, e um número crescente de leigos foi se tornando
capaz de realizar leituras individuais25. Neri de Almeida ressalta que:
A Legenda aurea foi desenvolvida dentro do estilo tradicional do
autor medieval que lê, sintetiza mas também reinterpreta com
enorme liberdade o material que organiza para sua redação,
somando a ele o ouvido e o vivido, procurando conscientemente
agradar a um público o mais amplo possível. Enquanto as obras
66
N° Nome Resumo
antes, o filho confessa e faz penitências por
ela durante 7 anos. Ela é liberta.
Um homem combate a serviço da Igreja, e
O valente a em troca recebe indulgência pelo seu
14
serviço da Igreja falecido pai. Após 40 dias o pai agradece a
libertação.
Um cavaleiro fala mal de um falecido. O
fantasma aparece e diz a este que não faça
mau juízo dele. Pede que o amigo reze por
O cavaleiro
15 ele, sobretudo porque roubara um manto
presunçoso
do cemitério, que agora o esmagava. O
fantasma avisa que o amigo morreria em
breve. Este mudou sua vida para melhor.
Um cavaleiro pede ao primo que, caso
morra na guerra, este venda seu cavalo e
O parente dê o dinheiro aos pobres. Ele morre e o
16
egoísta parente fica com o cavalo. O fantasma diz
que padeceu 8 dias no Purgatório, e que o
primo vai para o Inferno.
33Ao Pu gat io de S o Pat í io, dedi ado o apítulo da LA, ue u a hagiog afia
do efe ido sa to. A ui, e A Co e o aç o das Al as, Ja opo de Va azze o eto a
essa hist ia de a ei a esu ida, ele si ples e te se o te ta e i di a ue ela foi
o tada e out o o e to da LA. No apítulo dedi ado S o Pat í io, o sa to pe o e
o Pu gat io e assiste aos to e tos sof idos pelas al as ue l ha ita , as ele o
te a esso hist ia de ada u , e, po ta to, o sa e uais pe ados o ete a pa a
esta e sof e do tais astigos. E uad o, po ta to, tal histo ieta a atego ia de
pe ados o i di ados, pe as i di adas . JACOPO DE VARAZZE, I ide , p. - .
68
N° Nome Pecados / penas Vínculo entre
morto e vivo
O valente a Parentes (pai e
14 Não indicados
serviço da Igreja filho)
Roubo ao cemitério /
esmagado pelo
manto roubado
Falar mal do amigo
O cavaleiro
15 morto/ Amigos
presunçoso
arrependimento e
mudança de atitude
ainda em vida (sem
penas)
Egoísmo, roubo e
avareza / penas não
16 O parente egoísta especificadas Parentes (primos)
(condenado ao
Inferno)
69
agonia final, para então se reconciliar, não sei se sai deste mundo
seguro. Portanto, escolha o certo e deixe o incerto.34
Considerações finais
A morte era pensada como uma separação instantânea entre
corpo e alma, sendo esta última submetida a um julgamento particular.51
A função do exempla é explorar essa temática do julgamento que se
segue ao trespasse, e o destino das almas no Além. Com a função de
facilitar o entendimento, comover e ajudar na memorização, estas
histórias são breves, e com lições de moral que se pretendem universais.
Os exempla são abundantes na Legenda Áurea – e na Comemoração das
Almas –, que foi frequentemente consultada para a elaboração de
sermões.52 As Ordens Mendicantes, especialmente a Dominicana,
desempenharam papel fundamental na difusão da doutrina do
Purgatório no meio urbano. Com isso, o novo modelo de culto aos
Introdução
O presente texto tem por escopo aplicar a Análise de Avaliação –
uma técnica oriunda da Análise de Conteúdo – no trecho que versa sobre
os imperadores da dinastia Staufen presentes na Vida de São Pelágio
(VSP) da Legenda Áurea (LA).2 Buscamos com isso averiguar qual a
conotação por trás da caracterização desses imperadores, se é positiva
ou negativa. Em outras palavras, procuramos alcançar por meio dessa
metodologia o teor da representação dessas personagens.
A VSP é considerada como pertencente a um ramo textual das
hagiografias3 conhecida como Vida de Santo. Esta modalidade
hagiográfica tem por essência relatar a trajetória/biografia4 de um santo,
de modo a reconhecer por escrito que essas figuras são conhecidas e
aceites pela sociedade em que vivem ou que viveram. Além disso, estes
relatos promovem a difusão do culto aos santos e a edificação de um
número maior de fiéis. A VSP está inserida no legendário intitulado LA,
um compêndio de Vidas de Santo que foi produzido por volta da década
17 I ide , p. .
18 I ide , p. .
19 I ide , p. .
20 I ide , p. .
81
Na terceira fase, a partir da normalização realizada constrói-se a
codificação. Para isso, as duas dimensões da atitude são invocadas.
Deste modo, a partir de uma direção avalia-se a intensidade por meio de
uma escala de sete pontos: + 3 (mais positivo); + 2; + 1; 0 (neutro); - 1; -
2; - 3 (mais negativo). Mas como chegar a estes números? Eles são
alcançados por meio das notações dos conectores verbais e dos termos
avaliativos. Assim, com relação ao primeiro, a direção dos conectores
pode ser associativa (direção positiva: + 1 ou + 2 ou + 3), quando ligam o
sujeito ao complemento, ou dissociativa (direção negativa: - 1 ou - 2 ou
- 3), quando o verbo os separa. A intensidade é medida a partir do verbo
ou advérbio utilizado. Portanto, uma
intensidade forte (+ ou – 3) é indicada pelo uso do verbo
<<ser>> ou <<ter>>, por certos verbos no presente, pela
presença de certos advérbios do tipo
<<absolutamente>>, <<definitivamente>>, que reforçam
a acção do verbo. Uma intensidade média (+ ou – 2) é
marcada por verbos que indicam a iminência, o parcial, o
provável, o crescimento (exemplo, ele vai tentar...) e por
outros tempos verbais que não sejam o presente. Uma
intensidade fraca (+ ou – 1) é caracterizada por uma
relação hipotética, apenas esboçada, ou pela presença
de advérbios do tipo <<ligeiramente>>,
<<ocasionalmente>>...21
21 I ide , p. .
22 I ide , p. .
82
Obtém-se o resultado médio para o objecto de atitude
considerado, dividindo-se o total da coluna do produto (c
x cm) [notação do objeto de atitude] pelo número de
temas registados [...] Se desejarmos comparar os
resultados dos AO [objetos de atitude] entre si numa
escala de sete escalões, dividimos este total por 3N (N:
número de temas; 3: amplitude da escala) [...].23
23 I ide , p. .
83
3. Frederico Barba-Ruiva atacou os romanos.
4. Frederico Barba-Ruiva matou milhares de romanos.
5. Frederico Barba-Ruiva matou mais do que no tempo de Aníbal.
6. Henrique VI exerceu firme tirania contra a Igreja romana.
7. Frederico II promulgou ótimas leis para a liberdade da Igreja e
contra os heréticos.
8. Frederico II ultrapassou todos os monarcas em riqueza e em
glória.
9. Frederico II deixou-se enganar pelo orgulho.
10. Frederico II foi um tirano.
11. Frederico II encarcerou dois cardeais.
12. Frederico II mandou enforcar os prelados.
13. Frederico II foi excomungado.
84
1. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por apoiar Otaviano, João
de Cremona e João de Estruma.
2. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por tomar Túsculo.
3. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por atacar os romanos.
4. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por matar milhares de
romanos.
5. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por matar mais do que no
tempo de Aníbal.
6. Henrique VI foi responsável por exercer firme tirania contra a
Igreja romana.
7. Frederico II foi responsável por promulgar ótimas leis para a
liberdade da Igreja e contra os heréticos.
8. Frederico II foi responsável por ultrapassar todos os monarcas
em riqueza e em glória.
9. Frederico II foi responsável por deixar-se enganar pelo orgulho.
10. Frederico II foi um tirano.
11. Frederico II foi responsável por encarcerar dois cardeais.
12. Frederico II foi responsável por mandar enforcar os prelados.
13. Frederico II foi excomungado.
85
é construída obedecendo a critérios que remetem a qualificações
positivas ou negativas. Já a intensidade, expressada pelas notações, tem
por escopo indicar o grau de convicção do locutor – Jacopo de Varazze –
ao discorrer sobre o objeto de atitude – os imperadores. As notações de
intensidade podem ser encontradas no quadro abaixo:
Notação dos
Objeto de Conectores Notação dos
Termo avaliativo termos Produto
atitude verbais conectores
avaliativos
responsável por apoiar
Frederico
foi +3 Otaviano, João de Cremona -3 -9
Barba-Ruiva
e João de Estruma
86
responsável por mandar
Frederico II foi +3 -3 -9
enforcar os prelados
Frederico II foi +3 Excomungado -3 -9
25 O conceito de Teocracia Régia foi proposto por José Souza e João Barbosa e refere-se
à intromissão de autoridades laicas – no caso, os imperadores – em assuntos pertinentes
à esfera espiritual (relacionada às questões de fé, culto, normas de vida religiosa, etc.).
O processo contrário, a interferência de autoridades eclesiásticas em questões do
âmbito temporal (relacionada à administração, à economia, etc.), é chamado de
Hierocracia. Cf. SOUZA, José António de Camargo Rodrigues de; BARBOSA, João Morais.
O reino de Deus e o reino dos Homens: as relações entre os poderes espiritual e temporal
na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quirdot). Porto Alegre: EDIPUCRS,
1997.
26 PARISSE, Mi hel. I p io. I : LE GOFF, Ja ues; SCHMITT, Jea -Claude. Di io io
Te ti o do O ide te Medie al. Bau u, SP: Edus , . ., V. , p. - .
27 FLORI, Jea . I p io C ist o. I : ______. Gue a Sa ta: Fo aç o da ideia de uzada
o O ide te ist o. Ca pi as: U i a p, . p. - .
88
Esta mensagem transcende com a afirmação de que Barba-Ruiva matara
mais do que no tempo de Aníbal. Este foi considerado um dos maiores
inimigos que o longínquo Império Romano já teve. Silva28 identifica a
figura de Aníbal – a partir dos relatos de Políbio – como o maior inimigo,
devido ao seu ódio, e, ao mesmo tempo, maior oponente, devido suas
qualidades militares. Defendemos que ao associar a figura de Barba-
Ruiva com a de Aníbal, Jacopo de Varazze busca estabelecer a imagem
do imperador como um inimigo da cristandade. Por esta razão
assi ala os o o - .
As se te ças He i ue VI foi espo s el po e e e fi e
ti a ia o t a a Ig eja o a a e F ede i o II foi u ti a o e e e a
a otaç o - ada, po pode e se t atados omo a mesma
mensagem: os imperadores são tiranos. De acordo com Cortés
Pacheco,29 a partir do estudo da filosofia pactualista de Francesc
Eiximenis – um frade franciscano que vivera na região da Catalunha no
século XIV –, o tirano é tido como a negação do bem comum e do próprio
pode políti o. E suas pala as, Ei i e is ualifi a o ti a o o o
ladrão público, corruptor de leis, homicida notório, homem sem
o s i ia, dest uido da oisa pú li a e o te pa a a o u idade.
(tradução nossa).30 Baseado na crença de que o poder político existe
para assegurar a liberdade dos súditos, e por isso é conferido à figura do
monarca – que tem o dever de zelar por esta liberdade –, o frade
Eiximenis afirma que este mesmo poder é limitado, pois, está submisso
a Deus (poder eclesiástico); restrito a uma região, e é restringido pelas
leis e pactos firmados entre soberano e os seus súditos. Quebrar este
acordo pautado em legislações e costumes significa ir contra Deus e em
direção à destruição da comunidade. Por estas razões, podemos inferir
que ao considerar os imperadores tiranos, as ideias de Eiximenis e de
31CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. 2 v., V. 2, p.
337-351.
90
e a liberdade das igrejas, porém muito mais, talvez, de defender os
i te esses ate iais do papa. .32 Assim, Jacopo de Varazze, ao afirmar
que o imperador prendera e, muito pior, mandara executar integrantes
da hierarquia eclesial transmite uma mensagem carregada de uma
conotação muito negativa, além de insinuar que o monarca não está
cumprindo com a sua obrigação original como imperador do Sacro
Império. Atribuímos notações diferentes para estes dois casos pelo
seguinte motivo: consideramos o ato de matar mais grave do que o de
prender prelados, daí ser impossível conferir a mesma intensidade para
ambos.
Po últi o, te os a se te ça F ede i o II foi e o u gado .
Assim como a questão do orgulho, levar em consideração
e o u gado o o te o a aliati o e ue u a e pli aç o. No
período medieval, ser excomungado significava estar excluído da
cristandade, ou seja, ficar de fora do conjunto dos cristãos. Essa
perspectiva era extremamente negativa. Para Mitre Fernández,33 a
excomunhão era uma medida que tinha por objetivo afastar e neutralizar
quaisquer ameaças à integração cristã. Neste sentido, a excomunhão era
tida o o uptu a da communio, da participação nas liturgias e nos
benefícios espirituais aos que o cristão se ha ia feito e te. t aduç o
nossa).34 Além disso, todos aqueles que viessem a interagir com o
excomungado também receberiam a mesma punição. Assim, Mitre
Fe dez afi a: No O ide te, a pe a de e o u h o se fazia
extensiva, nos primeiros séculos do Medievo, àqueles que ousaram ter
o tato o os ue j ha ia i o ido ela. t aduç o ossa .35 Por
estes motivos, ao registrar a figura do imperador Frederico II como
excomungado, Jacopo de Varazze faz com que este termo assuma a
função de qualificador do objeto de atitude. Papel este carregado com
u a i te sidade egati a o side el. Daí a otaç o - .
32 FLORI, J. Op.Cit., p. .
33 MITRE FERNÁNDEZ, Emilio. Integrar y excluir (comunión y excomunión en el medievo).
Hispania Sacra. Madrid, ano LXV, v. 132, n. 2, p. 519-542, 2013.
34 I ide , p. . No o igi al: o o uptu a de la o u io, de la pa ti ipa i e las
litu gias e los e efi ios espi ituales a los ue el istia o se ha a he ho a eedo .
35 I ide , p. . No o igi al: E el O ide te, la pe a de e o u i se ha a e te si a,
e los p i e os siglos del Medie o, a uie es osa a te e o ta to o los ue a
hu ie a i u ido e ella .
91
Finalmente, após justificar o porquê de termos conferido os níveis
de intensidade atribuídos a cada sentença, podemos passar ao último
ponto da terceira fase, a saber: identificar a intensidade média das
atitudes pa a o os i pe ado es po eio da es ala de Osgood . Pa a
isso, dividimos o total da coluna produto (- 72), que engloba a soma de
todos os produtos obtidos por cada imperador pela quantidade de
sentenças (13) multiplicada por três, que é a amplitude da escala. A
conta fica assim:
- 72 / 3 x 13 = - 1,8
92
Conclusão
Com o emprego da metodologia de Análise de Avaliação,
verificamos que o frade Jacopo de Varazze adotou uma postura bastante
crítica com relação aos monarcas Staufen, carregando suas atitudes na
VSP com uma conotação consideravelmente desfavorável. Assim, os
imperadores – ao observá-los como conjunto e não individualmente –
foram representados como: tiranos, ou seja, responsáveis por negar a
liberdade dos súditos e levar a comunidade à perdição; traidores, uma
vez que atacaram e mataram romanos e integrantes do clero, a quem
deveriam proteger; pecadores, pois foram orgulhosos, e excomungados
– excluídos espiritualmente do Reino do Céu.
Tal construção de uma imagem acintosamente negativa é
potencializada quando seu alcance é significativo. A LA foi objeto de
intenso consumo pela sociedade do Ocidente medieval. Suas Vidas de
Santo alcançaram setores da cultura clerical e da cultura vulgar,
tornando-se deste modo em uma das principais obras literárias da
chamada cultura intermediária.36 Foi sucessivamente copiada e
traduzida para as línguas vernáculas em um claro sinal do sucesso
atingido pelo legendário. Chegou à Inglaterra, França, Áustria, Germânia,
regiões do leste europeu, além da própria península itálica, onde o êxito
foi imediato. Desta forma, as funções – como a defesa da obediência – e
objetivos da LA, desejados por Jacopo de Varazze, chegaram aos mais
diferentes ouvintes e leitores, seja por meio da leitura – silenciosa ou em
voz alta –, seja por meio das pregações, para as quais o legendário foi
utilizado como fonte pelos frades. Portanto, podemos afirmar que os
diferentes conteúdos trabalhados na LA, inclusive na VSP, percorreram
os principais centros econômicos, religiosos, políticos, culturais, etc. do
período, levando as palavras do frade dominicano a uma quantidade
98
embaraça as autoridades dos topoi? Assim, gostaríamos de demonstrar
a diferença entre as duas vitae, apesar das aproximações pertinentes
feitas pela historiografia.16
Universidade de Paris, e se tornou magister. Antes de ser ordenado padre foi cura em
Argenteuil. Provavelmente em 1208 é ordenado cônego agostiniano no priorado de
Saint-Ni olas d Oig ies, o de o he e Ma ia d Oig ies e se to a seu o fesso . O pad e
Wankenne insiste, na biografia de Jacques de Vitry, em seu encontro com Maria
d Oig ies, o fo e a ado po Tho as de Ca ti p o Suple e to vita de Maria
d Oig ies. Foi ela ue o o e eu a e e e o h ito de ego o p io ado de
Oignies, e ela que teria previsto que ele iria para a Terra Santa e que se tornaria bispo.
Por volta de 1211 começa sua atividade de pregador e é notado pelo legado Raymond
d Uz s, ue pede pa a ue ele p egue o t a os al ige ses, ju ta e te o Foul ues
de Marselha (1205-1231) - daí o Prólogo à vita de Maria ter sido considerado como um
instrumento de pregação contra os hereges cátaros. Em 1216 parte para a Terra Santa e
e eleito ispo de S o Jo o d A e. De olta dio ese de Li ge, e , ele se
despe, e Oig ies, do a go de ispo d A e e , de is o aceita por Gregório IX.
Entre 1226 e 1229 é bispo auxiliar de Liège, Em 1228, Gregório IX o promove a bispo-
cardeal de Tusculum. Morre em Roma, em 1º de maio de 1240, e é inumado em Oignies,
na igreja paroquial. Suas relíquias, os tesouros que trouxe da Palestina, bem como o
eli io de Ma ia d Oig ies ue a ega a ao pes oço, est o o Co e to das I s de
Notre-Dame de Namur. Além da vita e das suas cartas, Jacques de Vitry como pregador
escreveu 410 sermões, entre 1226 e 1240. São quatro recolhas disti tas: os Se es de
tempore , pa a os do i gos e pa a as festas do te po al, os se es de sanctis , pa a
o sa to al, os se es ad status ou vulgares , de g a de i te esse pa a a tipologia
das categorias sociorreligiosas e para a compreensão da pregação para os laicos, e nos
quais inclui 314 exempla, e fi al e te os se es feriales vel communes , pa a os dias
da semana. A obra maior de Jacques de Vitry, a Historia Hierosolimitana abbreviata,
99
evidenciando, como vimos em suas cartas, as profundas mudanças no
sentimento religioso do início do século XIII. O caráter excepcional desta
vita vem, sobretudo, do fato de que Jacques de Vitry cria um modelo
narrativo hagiográfico, fundamentado em uma linguagem afetiva e
mística.19 Para nós, todo o jogo da hagiografia consiste em colocar em
discurso realidades que escapam à sensibilidade comum. Assim, Jacques
de Vitry transforma o relato hagiográfico na sua estrutura, nos seus
temas, nos seus topoi, no seu vocabulário. Essa nova narrativa
hagiog fi a de o i ada iog afia espi itual , pois o dis u so
hagiográfico tradicional é transformado não somente na escolha dos
temas, pois a ênfase é colocada sobre a ascese interior, mas, sobretudo,
no envolvimento pessoal dos biógrafos com seu sujeito de análise e
objeto de devoção. Através desse relato Jacques de Vitry se torna o
promotor do movimento beguinal e de um novo tipo de santidade.20
Nesse sentido, reconhece em Francisco aquilo que havia visto em Maria.
Mas é sobretudo sua linguagem que nos conduz a começar nossa análise
pelo prólogo da sua Vida de Ma ia d Oig ies. Morta em 1213, Maria
redigida entre 1220 e 1225, é composta de dois livros: Historia Orientalis, que trata do
Islã e das causas das Cruzadas, além de um histórico das três primeiras Cruzadas e uma
descrição da Terra Santa, e a Historia Occidentalis, que trata da Igreja do Ocidente.
WANKENNE, André, Le Cardinal Jacques de Vitry. In: MENEGALDO, Silvère. Jacques de
Vitry, Histoire Orientale. Cahiers de recherches médiévales. Disponível em
http://crm.revues.org//index1037.html. Acesso em 13/11/2009. HINNEBUSCH, John
Frederick, O.P (Ed.). The Historia Occidentalis of Jacques de Vitry, a critical edition.
Fribourg: Spicilegium Friburgense, 1973. V. 17; PLATELLE, Henri, Jacques de Vitry.
Dictionnaire de Spiritualité, Paris: Beauchesne, T.8, col. 60-65.
19 A Vita de Ma ia d'Oig ies o side ada pela aio ia dos auto es o o o te to ue
a a u a uda ça a li guage hagiog fi a, pela i flu ia e e ida pelos C ti os
dos C ti os e pelo li is o dos t o ado es. Ve LEJEUNE, R. L' ue de Toulouse, Fol uet
de Ma seille et la p i ipaut de Li ge. I : M la ges Feli Rousseau. B u elles, . p.
- .
20 O sa to u tipo so ial di i o, at elado ao p o esso de t a sfo aç o das
est utu as so io eligiosas. Na sua a epç o ais o u , a fu ç o do elato hagiog fi o
e p essa a p ese ça do di i o e u ho e ou u a ulhe , os uais os fi is de e
i ita pa a ga a ti a sal aç o ete a. Ele t a s ite ta a e teza da atualizaç o dos
gestos dos te pos e a g li os. Segu do Mi hel de Ce teau, o do u e to hagiog fi o
se a a te iza po u a o ga izaç o te tual, i pli ada o título: a ta, es gestae; s o u
l i o, a ifesta do i tudes e ilag es. CERTEAU, Mi hel de. A Es ita da Hist ia. Rio
de Ja ei o : Fo e se-U i e sita ia, , p. - .
100
d'Oignies,21 de família nobre, foi destinada muito jovem ao casamento,
as ap s sua o e s o de idiu segui , u isto u , ju ta e te om
seu marido, na castidade, mendigando e se ocupando dos leprosos da
cidade de Willambrok.
A vita, dividida em dois livros contém um prólogo e doze capítulos.
O texto se estrutura em uma série de pequenos relatos de suas
intercessões milagrosas, evidência dos sete dons que recebe do Espírito
Santo em função da sua ascese e apostolado. O prólogo abre com o
mandamento do Senhor no evangelho de João,22 seguido da palavra da
Cananéia, tirada do evangelho de Mateus.23 A exegese desses dois
versículos justifica o empreendimento hagiográfico de Jacques de Vitry:
o Senhor mostrou e pediu, aos seus discípulos saciados, que apanhassem
os restos da Ceia. Para Jacques de Vitry, esses pedaços são os exemplos
dos santos, fragmentos do pão do Senhor. E aqueles que os imitam, que
comem as migalhas caídas da mesa do Senhor, são os pequenos
cachorros, como Jacques de Vitry se via face à Marie d'Oignies.24 Essa
referência Eucarística estabelece de fato uma hierarquia em três níveis:
o Cristo, os santos e aqueles que deveriam se esforçar em imitá-los.25
Isso forma o primeiro elo narrativo das vitae liegenses.26
O prólogo é uma carta respondendo a um pedido de Foulques de
Toulouse,27 o que permite dizer que ele foi o instigador da escrita da vita.
Ele havia solicitado a Jacques de Vitry uma compilação de exemplos que
as pessoas de Liége poderiam dar àqueles que desprezam e abandonam
a Igreja. Depois do que havia ouvido dizer sobre essas mulheres, ele
Oignacensis de Jacques de Vitry (vers 1215). Journal des Savants, janvier-juin, 1989.
103
forma ele apresenta, pelo viés dos exempla, duas realidades opostas: as
virtudes das primeiras e os vícios dos segundos.38 Esses detratores que
amam o mundo atribuem às mulheres piedosas nomes ignóbeis,
o pa ados ueles ue os judeus de a ao C isto e aos seus
dis ípulos . Jacques de Vitry relembra aqui o programa evangélico
39
aqueles nomes figurava o de beguina. Juliana era também difamada com uma mesma
ai a a i a , o os es os isos de de o he. HENSCHENIO, G.; PAPEBROCHIO, D.
(Ed.) De Beata Juliana Corneliensi. Acta Sanctorum. Aprilis, Paris e Roma, t.I, p. 435-475,
1866.. Prol. p. 442.
40 Os o ges das a adias de Aul e e de Ville s est o e t e a ueles o ue ue as
egui as e as o jas a ti ha elaç es de a izade espi itual.
41 A ui a ú i a ez ue Ja ues de Vit pa e e e io a os egui os.
42 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § . p. .
43 É a des iç o desses do s ue o de a a di is o dos apítulos do li o II da ita de Ma ia
d Oig ies.
44 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § . p. .
104
(infirmitas) não era outra senão o desejo de Deus, que liquidificava suas
almas. Repousando suavemente no Senhor, elas se achavam
enfraquecidas nos seus corpos, mas fortificadas no espírito, gritando em
seus corações as palavras do Cântico dos Cânticos.45 Jacques de Vitry
narra esses êxtases, nos quais a grandeza desse amor fazia fundir suas
almas, liberando-as dos sentidos do corpo. Paradoxalmente, outras
sentiam em seus corações tanta doçura espiritual que o sabor do mel
preenchia sensivelmente sua boca e lágrimas suaves corriam sobre seus
rostos, conservando o pensamento (mens) na devoção.46 Assistimos
aqui a uma radicalização dos temas da mística afetiva cisterciense: o que
era antes experimentado pelo exercício da meditação monástica - vivida
como participação na divindade - acha aqui uma dimensão cotidiana
efetiva, inscrevendo-se em outra dimensão temporal, de longa
duração.47
Visto o caráter maravilhoso dessas experiências, Jacques de Vitry
se pergunta: através de que obra poderia ele contar a diversidade e a
beleza das graças operadas em diferentes pessoas?48 Jacques de Vitry
deve obedecer ao pedido de Foulques de Toulouse que, no momento
da morte de Maria d'Oignies, rogou-lhe, com todo o afeto (quanto
potuisti affectu rogasti me), que redigisse a vida da beata, pois ele havia
vivido como um de seus familiares (...utpote qui ejus familiaris
extiteram)49 e conservado na memória muitas coisas sobre as virtudes
dela. Ele lhe pede também que narre a vida de outras mulheres piedosas
de Liège, a fim de poder pregar contra os hereges as maravilhas que
45 Ca t. , .
46 "Ali ujus etia i a ilite & se si ilite , du a i a p ae a o is ag itudi e
li uefie et, ge ae o po ales atte uatae esol e a tu . Multis etia e fa o spi itualis
dul edi is i o de, edu da at ellis sapo se si ilite i o e, dul es la as eli e s, &
e te i de otio e o se a s". P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § . p.
..
47 E sua dout i a so e a deifi aç o Be a do de Clai au , o ega do a possi ilidade
da is o eatifi a te a tes da Rede ç o, su li ha, e t eta to, seu a te o e t eo.
48 "Sed uid opus esse i di e sis di e sas et i a iles g atia u a ietates e a a e? P ol.
Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS... Op.Cit., § , p. .
49 " ... ua to potuisti affe tu ogasti e, ut Vita ejus, p ius ua ad Do i u
t a si et, i s iptu edige e ; utpote ui ejus fa ilia is e tite a , et ulta de
i tuti us ejus e o iae o e dasse ; et o solu ejus Vita , sed etia alia u
sa ta u ulie u , i ui us i a ilite Do i us i pa ti us Leodii ope atu ". I ide .
105
Deus ope ou as sa tas ode as .50 Jacques de Vitry recusa,
entrentanto, narrar as virtudes e as obras daquelas que ainda viviam,
pois não suportariam ser conhecidas por todos.51 Jacques de Vitry
empreende então sua obra, e institui uma nova narrativa, escrevendo
o que passa a ser uma norma nos prólogos das vitae das mulheres santas
do Brabante: "Nos igitur, quae vidimus et novimus, et ex magna parte
per experientiam didicimus, ad honorem Dei et ancillae ejus, et
amicorum ejusdem ancillae Christi consolationem, pauca de multis
referemus". 52 Vemos aqui que a consolação dos amigos intervém como
motivo da composição, depois da honra de Deus e da escrava de Cristo.
Mas é ao final do prólogo da vita de Maria d'Oignies que
compreendemos o sentido dado às relações de amor e de amizade
espiritual. O biógrafo diz ali que, depois de seu beato trespasse, ela não
abandona aqueles que amou durante sua vida, uma vez que continua a
exortar as santas mulheres e a guiar os atos dos seus amigos, salvando-
os dos perigos através de sinais certos e secretos, retirando as dúvidas
de seus corações e pedindo para eles, em suas orações, a ajuda do
Senhor. 53 Jacques de Vitry narra ainda que um monge cisterciense vê
em sonho Maria dando de beber a alguns de seus amigos em um cálice
de ouro.54 Finalmente, o hagiógrafo mostra para sua audiência os
motivos que o levaram a consignar por escrito os fatos e gestos da
beata. Vemos que essa intenção é singular na medida em que o principal
61 Quasi veterata mundi senecta urgente fidei caligabat visus, morum nutabat
gressus.marcescebat,virilium operum fortitudo : quin imo faces temporu, faece
comutabatur etiam vitiorum, cum amator hominum Deus, ex suae pietatis arcano
sacrorum Ordinum Suscitans novitatem, providit per eosde fidei fulcimentum, et
reformandis moribus disciplinam.. P ologus. I : SOLELERIO, J-B. (Ed.) De Sancta Clara
Virgine, prima sancti Francisci Discipula. Acta Sanctorum. Augusti, Antuerpiae, t.II, p. 739-
767, 1735. p. 754.
62 Sus ita it p ote ea pius Deus Vi gi e e e ile Cla a at ue i ea la issi a
fe i is lu e a a e dit ua et tu Papa eatissi e pate , supe a dela u po e s,
110
após confessar seu amor ao Papa, protetor e governador da Ordem,
confirma que apesar da insuficiência de seu estilo, vai recolher os atos
da vida de santa Clara para compor uma legenda.63 Da mesma forma que
Jacques de Vitry, Celano confia seu relato a testemunhas dignas de fé -
os companheiros de Francisco e do colégio das virgens - pois ele reflete
com amargura sobre os que escreveram as historias dos santos sem tê-
los conhecido ou ouvido aqueles que viram os seus atos64 e, depois de
ter recolhido os testemunhos, se pôs ao trabalho, cheio de temor a Deus
e, omitindo alguns fatos, o fez em estilo simples para que as virgens se
deleitem na leitura dessa maior Virgem65. Finalmente exorta os homens
ao exemplo dos novos discípulos e as mulheres à nova condução de
Clara, vestígio da mãe de Deus. Ao final deixa ao Papa, pai santíssimo, o
cuidado de suprimir ou completar o que quiser.66
A profunda diferença no estilo e intenção do prólogo demonstra
o ímpeto original de Jacques de Vitry como promotor da santidade
feminina laica e o caráter oficial de Thomas de Celano. O resto da vita de
santa Clara permanece no mesmo sentido. Poderíamos discorrer
comparativamente sobre a ausência de citações bíblicas, de digressões
doutrinárias e edificantes, do maravilhoso místico, dos demônios
permanentemente lutando contra a beata, dos mortos no Purgatório
pedindo o doce e eficaz sufrágio de Maria, contar os que foram salvos,
classificar os termos e os sintagmas que emanam da leitura atenta da
mística dos Cânticos e da teologia afetiva cisterciense. Faremos
brevemente algumas anotações. No que concerne à conversão,
normalmente ocorrida na adolescência, uma idade social, quando o
67 GOODICH, M. Vita pe fe ta: The ideal of sai thood i the thi tee th e tu . Stuttga t:
A to Hie se a , . p. - .
68 A sa tidade ofi ial ep ese ta so e te a o izaç es e t e e so e
p o essos ue fo a a e tos.
69 GOODICH, M. Vita Pe fe ta.... Op.Cit., p. - .
70 LAUWERS, M. Pa oles des Fe es, sai tet f i i e. L Église du XIII e si le fa e au
B gui es. La iti ue histo i ue l p eu e. I : BRAIVE, Gasto et CAUCHIES, Jea -Ma ie
di . . T a au et Re he hes. B u elles: Pu li atio s des Fa ult s u i e sitai es Sai t-
Louis, , p. .
113
força do enquadramento e o recrudescimento da ordem eclesial, não há
mais espaço para a vita vere apostolica mística e nem para a sua
narrativa.
114
OS ATRIBUTOS CONFERIDOS À SANTIDADE FEMININA EM DOIS
PROCESSOS PRODUZIDOS NA PENÍNSULA ITÁLICA NO SÉCULO XIII – UMA
COMPARAÇÃO ENTRE CLARA DE ASSIS E GUGLIELMA DE MILÃO
obra PEDROSO, José Carlos. Fontes Clarianas. 4ª ed. Piracicaba: Centro Franciscano de
Espiritualidade, 2004. p. 13-18.
116
Segundo a maior parte dos historiadores consultados, no que
concerne às origens de Guglielma, ela teria nascido por volta de 1240,
na Boêmia e se mudado para Milão no ano de 1260.4 Nesta cidade, se
estabeleceu em uma propriedade nos arredores da abadia de Chiaravalle
e começou a conquistar fama de santidade ainda em vida, reunindo um
grupo bastante heterogêneo de seguidores, dentre eles irmãs humiliate,
monges e leigos conversos da abadia cisterciense. Após sua morte em
1281, o grupo de devotos, a exceção dos monges, acabou sendo
perseguido por heresia, tendo por principal alegação para isso a sua
crença de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo.
Em primeiro lugar, se faz necessário algum esclarecimento sobre
a forma e o conteúdo dos processos, uma vez que cada um tem um
propósito muito diferente do outro e, apesar disto, buscamos em cada
um o mesmo objeto, a santidade feminina.
Nosso trabalho parte de uma grande discrepância entre as duas
fontes. Não há dúvida de que Guglielma recebeu culto e era identificada
po seus de otos o o u a pessoa de ida oa e de o po ta e to
ho esto e ue [...] ha ia ealizado algu s ilag es .5 Contudo, nos
registros do processo sobre ela, será necessário um exame mais
minucioso para identificar os atributos de santidade que seus devotos
deixam entrever em algumas de suas respostas aos inquisidores, uma
vez que o foco das perguntas não estava neste assunto. O interesse dos
inquisidores se concentra naqueles elementos de crenças e práticas que
não deixariam dúvidas quanto à acusação por heresia, que alguns dos
devotos acabam, no decorrer do processo, por confessar.
Nossa pesquisa busca estudar as significações dentro dos
discursos.6 Mesmo que um discurso se torne hegemônico dentro de uma
4 A origem boêmia de Guglielma a faria filha do rei Otakar I e, logo, irmã de santa Inês de
Praga. Essa ascendência, no entanto, é tema de controvérsias entre os historiadores,
sobretudo pelo fato de não existirem documentos diretos que a comprovem
(BENEDETTI, Marina. Io non sono Dio. Guglielma di Milano e i Figli dello Spirito Santo.
Milano: Edizione Biblioteca franciscana,1998. p. 21-29, 141-145, 151s).
5 Depoi e to de Bo adeo Ca e ta o, de agosto de . Cf. BENEDETTI, Ma i a Ed. .
Mila o . I p o essi i uisito ial o t ole de ote e i de otidi sa ta Gugliel a. Mila o:
Li iS hei ille , . p. .
6 Utiliza os o te o dis u so a ui, segu do A d ia F az o, o o o st uç es hu a as
oe e tes, oleti as, di i as, e o ga izadas so e u a dete i ada te ti a [...]
o p ee s es p oduzidas pelas so iedades so e os dife e tes aspe tos de sua
117
sociedade e se materialize em instituições e seus instrumentos, tal como
os processos aqui estudados, outros discursos se fazem presentes,
mesmo quando ignorados ou inferiorizados. Isso permite ver a santidade
de Guglielma para além do discurso hegemônico da heresia. Podemos
observar que os atributos de santidade conferidos pelos devotos a
Guglielma não surgem como respostas diretas às perguntas dos
inquisidores. Isso aponta para uma relação de forças entre estes dois
sujeitos, devoto e inquisidor.
Assim, sempre que uma virtude sua ou um milagre seu é citado
por um dos depoentes, não há o menor indício de que os inquisidores
estariam interessados em registrar explicações mais pormenorizadas de
tais informações, nem mesmo para contrapor àquelas que apontavam
no sentido da heresia. Ou seja, uma maior explicação a respeito das
virtudes e dos milagres de Guglielma poderia ter tirado o foco de sua
imagem como heresiarca, mas este não parece ter sido um dos objetivos
dos inquisidores.
No caso de Clara, ao contrário, nosso objeto aparece de maneira
tão evidente, que pode ser totalmente identificado em uma única
passagem, no testemunho de sua irmã espiritual e carnal, Beatriz, onde
lemos:
Quando se perguntou em que consistia a santidade de dona
Clara, respondeu que era na virgindade, na humildade, na
paciência e benignidade, na oportuna correção, nas suaves
admoestações às Irmãs, na assiduidade da oração e
contemplação, na abstinência e jejuns, na aspereza da cama e
das roupas, no desprezo de si mesma, no fervor do amor de
Deus, no desejo do martírio. E máxime no amor pelo Privilégio da
Pobreza.7
8 [...] lei fusse stata pie a de g atie et de i tude et de sa te ope atio e. Et ede a he
tu to uello de sa tit he se p di e de al u a sa ta do a depo la Ve gi e Ma ia, i
e it se possa di e de lei . T aduç o do auto . Depoi e to da ui ta teste u ha, I
C istia a de Messe C istia o de Pa isse. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit.,
p. .
9 [...] la sua hu ilit , la e ig it , i ta to he lei ede a fe a e te he da la Ve gi e
Ma ia i ua, iu a do a fusse de agiu e e ito he epsa ado a . T aduç o do
auto . Depoi e to da s ti a teste u ha, I Bal i a de Messe Ma ti ho de
Co o a o. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
10 [...] edidit uod di ta Guillel a esset aio i glo ia di i a ua sa ta Ma ia ate
Ch ist el ua ali uis alius sa tus, espo dit et di it uod ipse u ua ali ui pe so e
ho di it, [...] et ho di isset isi ti uisset o o e pe so a u / [...] dis e de a la
ede za he Gugliel a fosse aggio e ella glo ia di i a di ualsiasi alt o sa to, a he
della eata Ma ia, e a e e detto i se o a esse te uto la eazio e spa e ta delle
pe so e . T aduç o ossa. Depoi e to de A d ea Sa a ita, de agosto de . Cf.
BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
120
Como podemos observar, o registro no processo de Clara tem
sempre a preocupação em apontar quais atributos Clara possuía para
que fosse identificada com a perfeição da santidade feminina. No caso
de Guglielma, tais atributos nem sempre aparecem de maneira tão
evidente. Em vista disso, partiremos agora para a apresentação das
virtudes das duas santas, de maneira comparada, com o intuito de
melhor compreender cada caso.
A construção da santidade
Uma das atitudes mais recorrentes relatadas como sinal de
santidade pode ser encontrada no tema das vestimentas. Tal tema se
associa a uma discussão maior, relacionada à moda na história que,
segundo Diane Huges, tem por volta do século XIII um incremento na
moda e nos artigos de luxo. Neste período, a questão das vestimentas
passa a ser levada em consideração de forma mais enfática nos textos
eclesiásticos, mostrando mulheres que abdicavam de roupas de
qualidade e beleza para adotar um hábito simples ao se retirarem em
conventos.11
Para Clara, que era de família nobre, a renúncia ao luxo e ao
conforto das vestimentas de seu meio social pode ser um exemplo bem
marcante:
[...] era de tanta aspereza no seu corpo que se contentava com
uma só túnica de pano rude e um manto [...] mandou fazer uma
certa veste de couro de porco e a usava com os pelos e pelugens
cortadas junto da carne; e a levava escondida embaixo da túnica
de pano rude [...] e mandou fazer mais uma roupa de pelos de
cauda de cavalo e, fazendo com elas umas cordinhas, apertava-
as junto ao seu corpo. Afligia desse modo a sua carne virginal com
esses ilí ios ; e a uito ise i o diosa o as I s ue o
podiam suportar tal aspereza e de boa vontade lhes dava
consolação.12
26 [...] et ipsa Guillel a ultu i ata, ut ide atu , espo dit eis uod ipsa e at de a e
et ossi us et etia du it filiu i i itate Mediola i, et uod ipsa o e at uod ipsi
ede a t [...] / [...] apa i a olto adi ata e a e a isposto lo o he ella e a di a e e
ossa, e a he a e a po tato il figlio ella itt di Mila o, e he o e a i he essi
ede a o [...] . T aduç o ossa. Depoi e to de Ma hisio Se o, de fe e ei o de
. BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
27 No p p io p o esso de a o izaç o de Cla a e os u a efe ia a essa
i fe io izaç o. U dos seus ilag es foi ealizado so e u a alei o de Assis, ue ha ia
a a do ado sua esposa, e ia do-a de olta asa dos pais, pois o podia o e e .
Ap s a os sepa ados, o a ido ou e de Cla a ue esta te e u a is o, de ue sua ulhe
lhe da ia u filho. Eles olta a a se u i e de a o ige a u e i o. Cf. Depoi e to
da d i a se ta teste u ha, Messe Hugoli o Ped o Gi a do e. PEDROSO, Jos Ca los.
Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
28 OPTZ, Claudia. Vida otidia a de l s uje es e la Baja Edad Media - .I :
DUBY, G.; PERROT, M.; Di . . Histo ia de las Muje es. Tau us: Mad id, . V. . p. -
, p. - .
29 [...] ipsa e at ilis fe i a et ilis e is / [...] u a ile fe i a e u ile e e .
T aduç o ossa. Depoi e to de Alleg a za dei Pe usi, de sete o de .
BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
126
ue foi ta ta a hu ildade da e -aventurada madre que desprezava
completamente a si mesma ,30 e outra ainda acrescenta que ela, por sua
ta a ha hu ildade, la a a o as suas os as adei as sa it ias das
I s doe tes, as uais algu as ezes ha ia e es .31
A questão da humildade se relaciona, por sua vez, a mais um
ponto de convergência entre os atributos de santidade das duas
mulheres: a questão da ascendência nobre e abandono da riqueza. Uma
teste u ha do p o esso so e Cla a diz ue ela e a o e po ge aç o
e parentela, e rica nas coisas do mundo, a qual amou tanto a pobreza
que vendeu toda a sua he a ça e a dist i uiu aos po es .32
A ascendência nobre aparece como topos hagiográfico em
diversos textos medievais, no entanto, o caso de Guglielma possui um
destaque interessante. Ela era, para seus devotos, filha do rei da Boemia
e, logo, uma princesa, como vemos, logo no início do inquérito, nas
palavras de Andrea Saramita, um dos principais membros do grupo de
devotos e, ao lado de Maifreda da Pirovano, aquele sobre quem mais
incidiam as acusações de heresia:
Interrogado se sabia ou se ouvira de onde era Guglielma,
respondeu que sim, que era filha do rei da Boêmia morto, como
se dizia. Interrogado se havia procurado a verdade sobre isso,
respondeu que sim, ou seja, que o mesmo, Andrea, havia ido até
o rei da Boêmia e havia encontrado-o morto, e havia confirmado
que assim era. Interrogado por que razão foi indagar sobre isso,
respondeu que foi para informar sobre a morte de Guglielma e
para ver se ele poderia obter do rei alguma coisa pela honra
dispensada a Guglielma pelo próprio Andrea. Interrogado se
Andrea havia ido até o dito rei com a intenção de agir junto a ele
a fim de que Guglielma fosse canonizada pela Igreja, respondeu
que não [...].33
127
Como podemos observar, a questão da santidade relacionada à
nobreza é tão marcada no processo sobre Guglielma,34 que um
inquisidor chega a questionar se o fato de Andrea ter ido à Boêmia
pesquisar sua ascendência nobre tinha por fim a petição de um processo
de canonização em nome dela.
Repetem-se os exemplos de nobres que fugiram da possibilidade
de grandes e ricos casamentos para se dedicarem à vida religiosa como
no caso de Clara, que, segundo uma das Irmãs de São Damião, que era
também sua irmã carnal,
[...] a virgem Clara concordou com o que ele [Francisco] dizia,
renunciou ao mundo e a todas as coisas terrenas e foi servir a
Deus o mais depressa que pôde. Pois vendeu toda a sua herança
e parte da herança da testemunha e deu-a aos pobres. E depois
São Francisco cortou seu cabelo diante do altar, na igreja da
Virgem Maria, chamada Porciúncula, e a levou para a Igreja de
São Paulo das Abadessas. Seus parentes quiseram levá-la
embora, mas dona Clara agarrou as toalhas do altar e descobriu
a cabeça, mostrando que a tinha raspado, e não consentiu de
modo algum, nem se deixou arrancar dali, nem levar de volta
com eles.35
uod fuit filia uo da Regis Boe ie, ut di e atu . I te ogatus si ipse i uisi it
e itate de ho , espo dit si , ideli et uod ipse A d eas i it us ue ad ege Boe ie
et i e it ege o tuu et i e it uod ita e at. I te ogatus ua de ausa ad
i ui e du ho , espo dit uod i it ad sig ifi a du egi uod illa Guillel a e at
o tua et si ipse A d eas ali uid posset o ti e e a ege p opte ho o e i pe su di te
Guillel e pe ipsu A d ea . I te ogatus ipse A d eas si i it ad di tu ege
o a io e p o u a di u eo ege ut illa Guillel a a o iça etu pe e lesia , espo dit
uod o ut tu , sed alias e e di it, sed o p o u a do. / I te ogato se a ia
saputo o udito do de e a uella Gugliel a, ispo de di s , ossia he e a figlia del e di
Boe ia defu to, o e si di e a. I te ogato se a ia e ato la e it su i , ispo de di
s , ossia he lo stesso A d ea e a a dato si dal e di Boe ia e a e a t o ato il e o to,
e a e a a e tato he os e a. I te ogato pe uale agio e sia a dato ad i daga e su
i , ispo de he e a a dato a fa sape e al e he Gugliel a e a o ta e [pe ede e] si
egli a esse potuto otte e e dal e ual osa i dipe de za dall o o e i e sato su
Gugiel a dallo stesso A d ea. I te ogato se A d ea sia a dato da detto e o l i te to
di agi e p esso di lui affi h Gugliel a e isse a o izzata dalla hiesa, ispo di di o i
ife i e to ad allo a, as alt e olte lo a e a detto, a o pe agi e a uel fi e .
T aduç o ossa. Depoi e to de A d ea Sa a ita, de julho de . BENEDETTI,
Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit. ,p. .
34 KLANICZAY, G o . Hol Rule s a d Blessed P i esses: d asti ults i edie al e t al
Eu ope. Ca idge: U i e sit P ess, . p. - .
35 [...] epsa i gi e Chia a a o se t alla sua p edi atio e, et e u ti al o do et ad
128
Aparecem ainda, exemplos de mulheres que, mesmo casadas,
tiveram uma vida santa, casta e de boas obras de caridade, como
Elizabeth da Hungria. Contudo, Guglielma mostra um exemplo diferente,
talvez um que não merecia ser seguido. A menção a um filho faz crer que
ela era casada e abandonou o marido em algum ponto de sua vida
pregressa à chegada à Milão, história essa tão misteriosa, ou que era
uma viúva que optou por não viver com os outros homens de sua família,
ou ainda, uma mulher que teve um filho fora da instituição matrimonial.
Isso não impediu, contudo, que Guglielma recebesse culto por parte
daqueles que conviviam com ela nem que os monges cistercienses
promovessem seu culto.
Podemos aqui inferir que a santidade feminina reconhecida pela
hierarquia eclesiástica podia ser marcada pela virgindade da vida
religiosa ou pela castidade mantida por uma boa esposa. No entanto,
Guglielma não se encaixa em nenhum desses exemplos. Por ter um filho,
não poderia ser virgem e por não ter um marido não poderia ser a boa
esposa casta.
Parece haver aqui uma ponte com o que Lacqueur aponta sobre o
feminino e o masculino na Idade Média. Algumas mulheres podiam ser
mais perfeitas por se aproximarem, verticalmente do divino, posição
geralmente ocupada por homens.36 A virgindade e a castidade são
justamente alguns dos atributos que conferem este status elevado a
uma mulher medieval. Nesta lógica, não há espaço para uma mãe que
abandonou o marido, como parece ser o caso de Guglielma. O saber
sobre a diferença sexual aqui pode ser uma categoria imprescindível
para entender por que a santidade de Clara foi reconhecida e a de
Guglielma ignorada.
130
A SANTIDADE EM CONSTRUÇÃO: REVOLVENDO CAMADAS PARA
EXPOR AS INSTITUIÇÕES ATUANTES NA CANONIZAÇÃO DE DOMINGOS
DE GUSMÃO (1233-1234)
Introdução
A canonização de Domingos de Gusmão foi o objeto de
investigação escolhido para a minha pesquisa de doutorado, que tinha a
intenção de abordar comparativamente a participação de instituições e
a formação de grupos organizados que atuaram no sentido de alavancar
e sustentar um processo formal junto ao papado.38 O intuito da análise
era problematizar as motivações políticas para a efetivação de um
reconhecimento oficial da santidade e para o estabelecimento de um
culto, legitimado localmente e referendado pela autoridade pontifícia.
Na minha perspectiva de análise historiográfica, a canonização
realizada em julho de 1234 foi apenas a última etapa de um
empreendimento histórico, de um projeto coletivo, caracterizado por
uma série de iniciativas realizadas por instituições e grupos diretamente
interessados no resultado final. Nesse sentido, a santidade é aqui
abordada como uma formação post mortem, que pouco dependia das
escolhas feitas em vida por aquele que foi, na primeira metade do século
XIII, reconhecido como santo pela Igreja Romana.
Essa construção da santidade de Domingos seria o resultado de
um processo não linear, marcado por contradições, disputas e relações
de poder, por sua vez evidenciadas em cada acontecimento ocorrido ao
longo dos anos após sua morte. Daí a necessidade em abordar tais
eventos em suas singularidades, o que não impede o avançar posterior
para uma visão de conjunto, que permita problematizar o resultado final
39 VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa:
Presença, 1989, pp. 211-230, p. 227-228.
40 GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude
(Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2002, V. II, pp. 449-463, p. 452.
132
Ao explorar as fontes históricas relacionadas ao projeto de
edificação da santidade de Domingos de Gusmão, identifiquei o
tratamento que foi dispensado ao seu corpo pelos frades dominicanos
do convento de São Nicolas (em Bolonha), por outros integrantes da
Ordem dos Frades Pregadores, por autoridades eclesiásticas e por
representantes do governo e da população citadina, indicando
diferentes etapas para a construção de um sepulcro mais adequado à
finalidade de um culto oficial. Um aspecto que chama atenção, nesse
caso, é que o tratamento dado inicialmente ao corpo de Domingos pelos
frades de São Nicolas não parecia apontar qualquer pretensão daquela
comunidade em elevá-lo ao altar da santidade.
Jordão da Saxônia, em uma carta encíclica dirigida aos integrantes
da instituição dominicana, em 1234, após a translatio corporis de
Domingos, fez críticas contundentes a forma como os frades da
comunidade bolonhesa tinham conservado (ou não), até aquele
o e to, o o po de seu fale ido líde : Pa a as o as edifi aç es se
derrubaram as antigas, e o corpo do servo de Deus ficou exposto à
intempérie. Quem, capaz de raciocinar, julgaria digno que o espelho de
pu eza […] pe a e esse assi e t o hu ilde sepul o? .41
Vale destacar que esse processo de ampliação dos edifícios do
convento de São Nicolas foi longo, tendo durado de 1228 a 1240, e, pelo
menos de início, não parecia estar associado a um planejamento prévio
voltado à construção da santidade de Domingos de Gusmão, mas sim
vinculado às demandas daquela comunidade, pois e a u p ojeto
arquitetônico preciso e um plano de construção que respondia
plenamente aos ideais da Ordem, de vida apostólica e de organização
i te a dos es os f ades .42
Assim sendo, a crítica de Jordão da Saxônia aos frades
41 Es ita lati a: Novis succedentibus vetera diruuntur et corpus Dei famuli sub divo
remansit. Quis rationis capax dignum aestimare, puritatis speculum [...] sic humili tectum
loculo permanere [...] ? , [p. ]. A ediç o íti a da efe ida a ta e í li a de Jordão
da Saxônia por mim utilizada está disponível em: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Ce t o Italia o di Studi sull Alto Medioe o, .
Deste ponto em diante farei referência a esta fonte como Carta Encíclica de 1234,
seguida da página correspondente à edição de Elio Montanari.
42 BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y
mandato potestatis Bononiensis multi honorati cives custodierunt archam per multos
dies, timentes ne subriperetur eis , p. 131 [Ventura de Verona].
47 Carta Encíclica de 1234, p. 259.
48 VAUCHEZ, André, Op. Cit., p. 223.
49 GAJANO, Sofia Boesch, Op. Cit., p. 453.
136
de santidade e a fundamentar as decisões institucionais para o
estabelecimento de um culto oficial. No caso do referido líder
dominicano, a localização de seu corpo no convento de São Nicolas era
de amplo conhecimento e, considerando a historiografia e as fontes aqui
e plo adas, te ia despe tado o i te esse lo al: A de oç o a Do i gos
se põe de manifesto imediatamente depois de sua morte. Se trata de
verdadeiras peregrinações a sua tumba, ou melhor, a aquela fossa
es a ada ao lado do alta aio da ig eja o igi a ia de S o Ni olas . 50
No inquérito realizado em Bolonha, como parte do processo de
canonização, frei Ventura de Verona registrou a existência de uma
devoção popular ao primeiro mestre da Ordem. Segundo ele, muitos
homens e mulheres procuravam o sepulcro do falecido pregador
le a do o sigo elas, i age s e otos, dize do ue Deus ha ia o ado
milagres neles ou nos seus pelos méritos do beato Domingos. E quiseram
alguns fechar e cobrir com panos de seda a sepultura do frade e padre
eato Do i gos .51
Jordão da Saxônia também registra uma devoção a Domingos no
seu local de sepulcro. Ele dedicou uma pequena parte de sua crônica
sobre a Ordem dos Frades Pregadores para falar do local de sepultura e
dos milagres que lá teriam ocorrido. Segundo Jordão, o estilo de vida e
as pregações com foco no desprezo ao mundo fizeram do fundador
dominicano uma referência popular, despertando logo após a sua morte
a de oç o do ulgo e a e e ia dos po oados: Muitos at i ulados
com diversas enfermidades e doenças acudiam ao seu sepulcro,
pe a e e do ali dia e oite at al a ça o e dio de seus ales .52
138
Tal hipótese encontra também sustentação no testemunho
prestado por frei Ventura de Verona, quando abordou o comportamento
dos frades como resposta à ação dos devotos junto ao sepulcro de
Domingos. Ele afirmou que quando os populares tentaram adornar a
sepultura, colocando panos de seda, fo a p oi idos pelos f ades
temendo que depois se turbara a ordem pela multidão de gentes e que
alguns dissessem que por cobiça ou jactância faziam isto os frades ou
o se tia ue se fizesse .56
Por outro lado, a fala de frei Ventura apontaria ainda uma
precaução com a manutenção da ordem no espaço do convento, visto
que a sepultura de Domingos estava em um altar na igreja de São
Nicolas, ou seja, no interior da comunidade dominicana em Bolonha.
Nesse caso, os frades estariam também preocupados com a
possibilidade de verem o seu ambiente tumultuado com a afluência de
devotos à procura das relíquias do santo.
O que foi reforçado por Jordão da Saxônia, fazendo críticas diretas
ao comportamento dos frades de Bolonha, que não queriam reconhecer
possíveis milagres junto ao sepulcro de Domingos para não parecerem
a i iosos a usa o ulto o o p ete to, e ue e ua to o u a
santidade indiscreta eram zelosos de sua própria opinião, não tiveram
em conta o comum proveito da Igreja, obscu e e do a gl ia di i a .57
Na carta encíclica de 1234 ele acusa aos frades de estarem mais
preocupados consigo mesmos e os responsabiliza pelo não
e o he i e to da sa tidade do a tigo est e at a uele o e to: E
assim permaneceu como adormecida e sem nenhuma veneração de
santidade, quase por espaço de doze anos, a glória do beato padre
Do i gos .58
Pelos argumentos apresentados até aqui, é possível defender a
existência de uma devoção junto ao sepulcro de Domingos antes mesmo
56 Acta Canonizationis S. Dominici, es ita lati a: [...] sed fratres timentes prohibuerunt,
ne ordo inde propter multitudinem turbaretur et ne aliqui dicerent, quod propter
cupiditatem vel iactantiam facerent predicta vel fieri paterentur , p. -131 [Ventura de
Verona].
57 Libellus, es ita lati a: Sicque dum propriam opinionem inconsiderata sanctitate
absque omni santitatis veneratione per annos fere XII sopita permaneret , p. .
139
da realização da translatio corporis, ocorrida em maio de 1233. E que
esse movimento de devotos na comunidade de São Nicolás enfrentou
alguma resistência, pelo menos de uma parcela dos frades dominicanos,
algo que ficou registrado na historiografia e nas próprias fontes aqui
exploradas, que apresentam diferentes interpretações para essa
resistência. Seriam esses frades idealistas e leais aos ensinamentos do
antigo líder? Ou estariam eles preocupados com o seu próprio bem-estar
e a manutenção de sua imagem pública? Não me arrisco a cravar uma
resposta, pois existem elementos na historiografia e nos documentos
que apontam ambas as direções. É possível que ambos os aspectos
estivessem juntos a mobilizar aquele comportamento de resistência.
Fato é que houve uma mudança no comportamento dos frades,
ou a quebra daquela resistência coletiva por um projeto maior. Tudo
indica que a correlação de forças dentro da comunidade dominicana
tenha sido alterada, pois os acontecimentos de 1233 em diante apontam
claramente a participação direta de alguns frades de São Nicolas nas
iniciativas com vistas a um reconhecimento oficial da santidade de
Domingos de Gusmão. O próprio prior do convento, frei Ventura,
participou da exumação do corpo e da cerimônia de translatio corporis,
sendo ainda um dos testemunhos no inquérito realizado em Bolonha
como parte do processo de canonização. Isso, por si só, já deveria indicar
aos de ais f ades da o u idade e ue di eç o o e to esta a
sop a do .
A continuidade das ações de devotos junto ao sepulcro de
Domingos e a pressão popular pelo estabelecimento de um culto público
oficial podem ter vencido a resistência dos frades de São Nicolas. É nessa
direção que caminha Beatrice Borghi ao argumentar que perante o
crescimento da devoção ao primeiro mestre dominicano, nem mesmo
os f ades de Bolo ha o segui a se opo , pois a e essidade de
construir um lugar sagrado para glorificar ao santo foi incitada
precisamente pela devoção popular, que acelerou e incitou a
reelaboração de ritos complexos, cuja forma mais evoluída foi a
dedi aç o da ig eja .59
Mas também existem elementos que apontam outra possibilidade
de interpretação, que não anula a anterior, podendo até mesmo
60 Carta Encíclica de 1234, escrita latina: Ille vero, ut erat vir magni zeli et fidei, durissime
148
redigida pelo frade Pedro Ferrando alguns anos após a canonização, e se
caracterizaria por interpretar a trasladação como fruto de um clamor
popular a favor do culto de Domingos. Nessa linha de pensamento tanto
a trasladação quanto a canonização estariam associadas ao movimento
da G a de De oç o e ao e ol i e to dos f ades do i i a os e
campanhas de pregação.78
Pa a Beat i e Bo ghi, a t asladaç o de Do i gos de Gus o foi
a expressão de afirmação, com novas exéquias, de um domicílio
pe p tuo e ade uado pa a o sa to , se do o esultado di eto da
reelaboração de ritos complexos que refletiam a necessidade de
construir um novo lugar de sepultura mais adequado à veneração, algo
que estava diretamente vinculado à devoção popular. 79 Portanto, para
ela foi a pressão popular que movimentou as instituições e, dessa forma,
destravou as amarras que impediam o reconhecimento oficial da
santidade e o estabelecimento de um culto para o fundador dominicano.
Já para Roberto Paciocco a mencionada cerimônia religiosa visava
primordialmente difundir a fama sanctitatis de Domingos como um pré-
requisito necessário para a abertura do processo de canonização, visto
que naquele contexto histórico formou-se uma articulação entre
trasladação e canonização, como duas etapas sucessivas de um mesmo
processo. Nesse caso, as ações realizadas em maio de 1233 permitiriam
articular interesses da cidade de Bolonha, da cúpula da Ordem dos
Frades Pregadores e do papado.80 Essa é basicamente a mesma posição
manifestada por Luigi Canetti, para quem o papa Gregório IX e uma
parcela significativa da Ordem, com o apoio da municipalidade
bolonhesa, decidiram na primavera de 1233 promover abertamente
iniciativas em favor da canonização de Domingos.81
Levando em consideração o que foi argumentado nessa parte do
texto, posso afirmar que a translatio corporis de Domingos de Gusmão
foi um acontecimento histórico e complexo, que demarcou mais um
avanço das ações dirigidas para a causa de canonização daquele
pregador dominicano. Por isso mesmo, nos procedimentos realizados
em maio de 1233 já é possível vislumbrar a participação de diferentes
149
grupos e instituições, bem como algumas contradições que marcam
justamente o caráter histórico desse projeto coletivo que alavancou e,
posteriormente, sustentou as iniciativas para o reconhecimento oficial
da santidade de Domingos pela Igreja Romana.
82MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE
GUERN, Philippe (dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes. Rennes:
Presses universitaires de Rennes, 2002, p. 46.
150
Pela abordagem realizada até aqui, posso afirmar que Bolonha foi
o centro principal para as iniciativas desse empreendimento coletivo,
embora tenham existido acontecimentos e grupos atuantes fora daquela
cidade italiana que também contribuíram para concluir a edificação. Mas
tudo indica que a reunião de forças e a formação de um grupo de
sustentação para a causa de canonização de Domingos de Gusmão tenha
ocorrido justamente naquela cidade.
Desde 1220, Bolonha passava por um processo de reorganização
social e política, no qual diferentes grupos disputavam entre si mais
espaço de representação no governo local. Aristocratas, mercadores,
cambistas e setores mais populares buscavam de todas as formas
ocuparem cadeiras nos órgãos e nos conselhos do governo, participando
diretamente das decisões citadinas. Esse cenário, caracterizado por
certa instabilidade sociopolítica, ainda era complementado por uma
conjuntura de amplos movimentos sociais de expressão de fé e
espiritualidade que ocorriam paralelamente e, às vezes, integrados ao
campo religioso abarcado pela Igreja Cristã.83
Tal o o te to do e o t o e t e Jo o de Vi e za, o Papa
Gregório IX, Enrique de Fratta, bispo de Bolonha, e os representantes da
Ordem e a cúpula do Estudio, p eludio da a o izaç o de .84 Um
ponto de partida que pode ser complementado pelos fatos explorados
anteriormente no texto, para identificar também a participação de
outros grupos citadinos mencionados nas documentações aqui
abordadas, como o podestá de Bolonha, os cidadãos ilustres
(provavelmente aristocratas) e o grupo de devotos que frequentava o
sepulcro de Domingos de Gusmão.
A participação direta do papa nesse grupo pode causar alguma
estranheza aos olhos contemporâneos, já que seria ele justamente o juiz
a decidir favoravelmente ou não sobre o reconhecimento da santidade
do falecido líder dominicano, após o término do processo de
canonização. Mas certamente não devia gerar grandes surpresas ou
desconfianças naquele contexto histórico, já que o nome de Gregório IX
151
é mencionado explicitamente nas fontes como alguém que conheceu
Domingos de Gusmão e manteve com ele relações fraternais, sendo
inclusive apontado como a autoridade eclesiástica a conduzir e/ou
autorizar ritos/cerimônias solenes que contribuíram para o projeto de
construção da santidade aqui investigado. Portanto, não houve
nenhuma precaução ou intenção em apagar nos documentos a
participação do pontífice nos eventos, ao contrário isso é algo destacado.
Jordão da Saxônia, por exemplo, registra na mencionada carta
encíclica de 1234, que Gregório IX, quando ainda era bispo de Ostia, foi
o celebrante da missa de sepultamento de Domingos em 1221, tendo
ele ainda autorizado a translatio corporis de maio de 1233 e enviado o
arcebispo de Ravena (acompanhado de bispos sufragâneos) para
conduzir a cerimônia religiosa naquela ocasião, como seus
representantes diretos, conferindo ao evento um caráter solene e
canônico.85
A participação do pontífice romano como um dos promotores da
causa de canonização do líder dominicano também foi evidenciada pela
historiografia. Giulia Barone ressalta o envolvimento do papa Gregório
para garantir a solenidade da trasladação de Domingos, bem como o seu
apoio e favorecimento à campanha de pregação de João de Vicenza
ocorrida na Itália padana no período de primavera/verão de 1233.86 Por
sua vez, Luigi Canetti chama atenção para o fato de que, ainda na
abertura do processo de canonização, na carta que foi dirigida aos
comissários de Bolonha para iniciar os trabalhos de investigação, o bispo
de Roma já manifestava claramente seu posicionamento favorável à
canonização ao caracterizar o líder dominicano como um novo astro da
Igreja.87
Por outro lado, a participação de integrantes da Ordem dos Frades
Pregadores nas iniciativas e nas ações empreendidas para o
reconhecimento da santidade do falecido mestre dominicano, está bem
evidenciada nas fontes e na historiografia, a começar pelo envolvimento
de Jordão da Saxônia. No testemunho de frei Bonviso de Piacenza ficou
152
registrada a iniciativa do mestre geral da ordem em fazer a ostentação
da cabeça de Domingos de Gusmão aos frades que não compareceram
à cerimônia da translatio corporis.88 Algo que foi problematizado por
Roberto Paciocco porque esse procedimento era claramente vetado
pelas normas eclesiásticas emanadas do IV Concílio de Latrão e que
posteriormente foram agregadas nas Decretais de Gregório IX.89 Por isso,
o envolvimento de Jordão nesse episódio pode ser interpretado como
uma iniciativa arriscada, mas que faria sentido como parte de um projeto
maior que visava o reconhecimento oficial da santidade de Domingos, já
que o evento conferiu uma repercussão mais ampla para a trasladação
realizada alguns dias antes.
É necessário frisar ainda outras ações de Jordão da Saxônia, que servem
para complementar esse quadro de iniciativas institucionais realizadas de sua
parte para a referida canonização. Foi ele também o autor intelectual de
documentos e textos que serviram de base para a construção da santidade de
Domingos. Tal como a carta encíclica que ele escreveu e enviou para os conventos
dominicanos, apresentando a sua versão para os eventos que resultaram na
translatio corporis, com o intuito claro de divulgar ao máximo os acontecimentos
e ampliar as áreas de possível devoção ao falecido pregador. Além do Libellus de
Principiis Ordinis Praedicatorum, a crônica de sua autoria que apresenta a história
de formação da Ordem dos Frades Pregadores e a trajetória religiosa de
Domingos de Gusmão, focando os últimos capítulos na morte e nos supostos
milagres ocorridos por intermédio do dominicano. Tudo indica que esse livro
circulou inicialmente de forma restrita nos conventos dominicanos e que foi
utilizado posteriormente como evidência documental para dar suporte à causa
de canonização.90
Para além da trasladação e da produção de documentos que
serviram para divulgar e dar suporte a causa de canonização, é possível
também apontar o envolvimento de Jordão da Saxônia na campanha de
pregação que foi realizada por um frade de Bolonha, com o intuito de
difundir a fama de santidade do antigo líder dominicano entre as
mendicant saints. In: WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in Religious
Sociology, Folklore and History. Cambridge: University Press, 1983. pp. 169-187, p. 178.
153
populações de diferentes cidades italianas.91 Esta iniciativa é uma das
que apontam o grau de planejamento institucional das ações realizadas
nos primeiros anos da década de 1230 com vistas ao reconhecimento
oficial da santidade.
Jordão da Saxônia, pela posição que ocupava na hierarquia da
ordem, foi um dos dirigentes das ações que foram realizadas naquele
contexto. Mas não foi o único integrante da Ordem dos Frades
Pregadores que participou desse empreendimento coletivo de
o st uç o da sa tidade. Segu do Mi hael Goodi h, o o i e to pa a
ter o fundador Domingos canonizado aparentemente teve sua origem
em Bolonha, sob o patronato de João de Vicenza, Estevão da Lombardia,
Ventura de Bolo ha e out os do i i a os i ulados u i e sidade .92
João de Vicenza era frade dominicano do convento de São Nicolás,
e não era oriundo dos grupos mais abastados da cidade de Bolonha, já
que era filho de um advogado, uma profissão liberal que ainda não
detinha a valorização social adquirida posteriormente. A sua atuação
como pregador fez com que ele ganhasse algum prestígio junto à
população bolonhesa, pois os temas mais recorrentes em seus discursos
eram bastante caros aos setores mais populares da cidade: ele se dirigia
contra os usurários, defendia a libertação de prisioneiros por dívidas e
um relaxamento da legislação que regulava esse domínio dos
empréstimos. 93
Esse pregador dominicano é apontado no inquérito de Bolonha e
na historiografia como um dos artífices que ajudaram a construir a
santidade de Domingos de Gusmão. É o que aparece registrado no
testemunho de frei Estevão de Espanha, que destaca a atuação de frei
João de Vicenza como aquele que anunciou ao povo a vida, a fama e a
santidade de Domingos através de uma pregação que tinha ares de
revelação divina.94 Aspecto que aparece reforçado na abordagem de
Roberto Paciocco, ao destacar que o culto ao fundador dominicano se
desenvolveu inicialmente em uma zona circunscrita que coincidia
politique des Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords
de paix. Mélanges d'archéologie et d'histoire, v. 78, n. 2, pp. 503-549, 1966, p. 506.
94 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 158 [Estevão de Espanha].
154
exatamente com a área abarcada pela atividade religiosa do referido
f ade, se do a p egaç o o eio utilizado pa a a difus o da sa tidade do
fundador dos Dominicanos e da própria afirmação de uma fama
sanctitatis i dispe s el pa a o i í io do p o esso .95
O envolvimento desse frade dominicano nas inciativas para a
canonização de Domingos também pode ser alvo de alguma contradição.
André Vauchez, de sua parte, destaca a atuação de João de Vicenza para
além da campanha de pregação mencionada, apontando-o como o
verdadeiro artífice da translatio corporis ocorrida no convento de São
Nicolas.96 Já Michael Goodich, por outro lado, ressalta que o referido
frade chegou a ser alvo de devoção popular e que acreditava ser capaz
de realizar milagres sem o intermédio da divindade, o que lhe valeu uma
reprovação da parte de seus próprios companheiros dominicanos. Ao
invés de se constranger, frei João teria respondido com uma ameaça
di eta: assi o o ele ti ha e altado S o Do i gos, ujos ossos ti ha
sido esquecidos em Bolonha por doze anos após sua morte até a
canonização em 1233, então ele poderia [...] difamar o santo e as obras
dos Do i i a os .97
Além do pregador de Vicenza, Estevão de Espanha e Ventura de
Verona tiveram participação ativa no projeto. Ambos atuaram como
testemunhas no processo de canonização iniciado em julho de 1233 e,
na época, ocupavam funções de comando no âmbito da Ordem dos
Frades Pregadores: Estevão era prior provincial da Lombardia e Ventura
era o prior do convento de São Nicolás. O simples fato de figurarem no
seleto grupo de frades que participaram como testemunhas no processo
já é um indício do seu envolvimento nas iniciativas em favor da
canonização do falecido líder, pois apenas nove pessoas foram
interrogadas pela comissão pontifícia na investigação conduzida em
Bolonha. O contraste fica ainda mais nítido quando se compara ao grupo
de pessoas interrogadas em Toulouse, sendo 27 diretamente
identificadas, além da referência a outras 300 testemunhas que teriam
sido ouvidas. Por isso, tudo indica que o inquérito realizado em Bolonha
foi controlado mais de perto pelos dominicanos e as testemunhas
selecionadas com cuidado.
155
No caso de frei Estevão os próprios testemunhos do processo de
canonização podem apontar algumas ações suas, como indiquei nas
partes anteriores deste texto. Ele mesmo, em seu testemunho, afirma
ter sido o responsável por estabelecer o dia e o modo de trasladar o
corpo de Domingos de Gusmão, além de ter participado diretamente dos
procedimentos de exumação e transporte para o novo sepulcro.98 Já frei
Guillerme de Montferrat afirma que o mencionado prior provincial teria
se mobilizado, junto com os frades de São Nicolas, para impedir a
presença de estranhos no dia da exumação, mas não obtiveram êxito
nessa empreitada.99 Por fim, o próprio frei Ventura coloca Estevão ao
lado de Jordão da Saxônia naquele episódio de reabertura do sepulcro e
ostentação da cabeça de Domingos aos demais frades dominicanos,
alguns dias após a realização da translatio corporis.100
Elio Montanari identifica frei Estevão como o principal organizador da
trasladação realizada em maio de 1233 e como o líder do grupo de frades que foi
a Roma solicitar a autorização do pontífice para a cerimônia religiosa.101 Portanto
a historiografia também destaca a participação do prior provincial da Lombardia
nas iniciativas favoráveis à canonização de Domingos, com um protagonismo que
parece concorrer com a posição de liderança de Jordão da Saxônia no âmbito da
Ordem dos Pregadores.102
Por sua vez, frei Ventura não aparece sendo destacado pelos
demais testemunhos do inquérito de Bolonha, mas figura como o
primeiro a ser transcrito nas atas e o conteúdo de sua fala é, sem sombra
de dúvidas, o mais longo e detalhado do documento. O que me leva a
interpretar que o seu testemunho foi o mais valorizado pela comissão
pontifícia que conduziu os trabalhos, além de servir de base para a carta
encíclica de Jordão da Saxônia, como eu ressaltei anteriormente.
Em outro grupo de atuação aparece o podestá bolonhês,
ocupante do mais alto cargo de governo da cidade, que é mencionado
Encaminhamentos finais
Ao iniciar este texto destaquei que a santidade de Domingos de
Gusmão, oficialmente reconhecida pelo papado em julho de 1234, seria o
resultado de uma construção coletiva, de um empreendimento histórico
não linear, marcado por avanços e contradições. E que para melhor
compreender e analisar esse processo, seria necessário, inicialmente,
abordar de forma singularizada os acontecimentos anteriores à canonização
daquele pregador dominicano.
Foi isso o que eu fiz nas três primeiras partes após a introdução.
Procurei explorar os eventos que antecederam a canonização de Domingos
de Gusmão e que, por isso mesmo, poderiam ser abordados como
diferentes camadas que se sobrepuseram em um mesmo projeto de
construção: o tratamento dispensado ao corpo do fundador dominicano
após a sua morte; a existência de devoção em seu local de sepulcro; a
translatio corporis realizada em maio de 1233 na comunidade dominicana
de São Nicolás. Tais são as camadas que, na minha perspectiva
historiográfica, ajudaram a fundamentar uma base necessária para a
referida construção da santidade.
Na penúltima parte do texto voltei minha atenção para os grupos e
para as instituições que estariam diretamente envolvidas nas iniciativas para
a construção e difusão da santidade de Domingos de Gusmão. Essa foi a
forma de avançar para uma visão de conjunto sobre os acontecimentos que
foram singularizados nas partes anteriores. A realização coletiva dos
eventos aqui brevemente explorados seria justamente um indicativo
histórico do interesse social e político mobilizado pelo estabelecimento de
um culto oficial para o primeiro líder dominicano. Tomando como base o
contexto histórico europeu da primeira metade do século XIII, as mesmas
ações podem ser apontadas como etapas prévias e necessárias para a
abertura de um processo de canonização junto ao papado, o último passo
para o reconhecimento oficial da santidade do fundador dominicano. O que
me leva a pensar, concordando com Paciocco e Canetti, que o papado, a
Ordem dos Frades Pregadores e a comuna de Bolonha tiveram participação
destacada neste empreendimento coletivo.
158
Na minha leitura historiográfica as iniciativas aqui apontadas
faziam parte de uma campanha organizada para viabilizar a canonização
de Domingos, o que efetivamente ocorreu em julho de 1234. Mas isso
não encerra as minhas reflexões e dúvidas sobre o caso. Falta explorar
melhor a resistência inicial dos frades de Bolonha a esse projeto coletivo,
pois é preciso dar espaço aos que foram historicamente silenciados, bem
como apontar as circunstâncias e os motivos que levaram as três
instituições referidas acima a convergirem forças para o mesmo
empreendimento.105
Introdução
Durante a primavera em Paris, no primeiro de junho de 1310,
quinto ano do pontificado do Papa Clemente V, uma multidão se reuniu
na Place de Grève para assistir à execução de uma mulher condenada
por heresia. Um cronista relatou que muitos ficaram comovidos e
hega a s l g i as ao teste u ha e os gestos o es e piedosos
da beguina Marguerite Porete enquanto as chamas da fogueira
consumiam seu corpo ainda com vida.2
Os poucos dados que chegaram até nós sobre esta beguina
nascida em 1250, provavelmente em Valenciennes na região de
Hainaut,3 resumem-se ao seu opúsculo escrito por volta de 1290, O
Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e que permanecem somente na
vontade e no desejo do Amor,4 os autos do seu julgamento e duas
crônicas que mencionam sua morte.5
Henry. A History of the Inquisition in the Middle Age. New York: The MacMillan Company,
1922, v.1, p. 575-578. Disponível em:
<http://www.metaphysicspirit.com/books/A%20History%20of%20the%20Inquisition%2
0of%20the%20Middle%20Ages%20Vol.%202.pdf>. Acesso em 10 mar 2017. Os relatos
sobre a morte de Porete constam no Cronique de Guillaume de Nangis, citado acima, e
em Les Grandes Crhoniques de France.
Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84472995>. Acesso em 10 mar
2017.
6 Estilo que floresceu nos séculos XII e XIII na França, sobretudo na região norte. Nos
poemas de amor cortês os trovadores utilizavam o fine amour para retratar o amor
pe feito e a a ado, e t e u a da a e seu poeta ue a ele a e a se e . RÉGNIER-
BOHLER, Danielle. Amor Cortesão. LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean Claude. Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v.1, p.47.
7 A a i uilaç o a p ti a do o ue e ue o duz a al a ao e o t o e a u i o o
Deus. Neste processo a alma suprime suas vontades, ou seja, os desejos e os medos que
a acompanham, recuperando sua forma original em Deus. Alcançando um estado de
perfeição, a alma transformada em uma essência superior, substitui, então, suas
vontades pela vontade divina. Tornando-se o que Deus é, por meio da graça concedida
por ele, a alma adquire a liberdade. EPINEY-BURGARD, G.; ZUM BRUNN, E. Femmes
Troubadours de Dieu. Belgique: Editions BREPOLS, 1988, p. 185-186.
162
Movimento do Livre Espírito, a autoria de Porete foi descoberta em
1944.8
O cenário do julgamento da beguina Marguerite Porete foi
complexo. A repercussão das novas experiências religiosas
desenvolvidas por mulheres, a partir do ideal de vita apostolica,9 e seu
relativo sucesso suscitaram, em fins do século XIII, as tensões acerca da
pedagogia espiritual e do apostolado feminino. Ao mesmo tempo, uma
tensão acerca das competências dos poderes temporal e religioso
conduziram uma série de conflitos entre o papado e o rei Felipe IV, o
Belo (1268-1314)10. Nesse sentido, a influência das experiências
religiosas femininas, principalmente daquelas que não se encontravam
inseridas na hierarquia eclesial, cujo status era considerado suspeito
como as beguinas, e a interferência laica nos interesses da Igreja,
representavam um grave problema para aqueles que temiam a ruptura
da autoridade hierárquica e do processo de normatização da
cristandade.11 No início do século XIV, estas questões foram tratadas no
Concílio de Viena (1311-1312) na forma da condenação da Ordem do
20 Embora a tipologia social do movimento ainda seja tema de debate, Schmitt aponta
que as suspeitas de heterodoxia recaíam, geralmente, sobre as beguinas que optavam
por seguir uma vida isolada e itinerante, formada por dois ou três membros. As beguinas
que pertenciam às comunidades, dispondo de uma direção espiritual regular, possuíam
maior segurança e proteção quanto a possíveis persecuções. Ibidem, p. 44-45.
21 As beguinarias eram um complexo de edifícios que podiam abrigar centenas de
mulheres, como as de Bruges ou Ghent (Bélgica). Nestes locais, cada beguina possuía
uma casa, mas compartilhavam uma capela, um cemitério e viviam sob a orientação
espiritual de um padre para cuidar de suas almas, celebrar missas, ministrar os
sacramentos e a confissão. BOLTON, B. Op. Cit., p. 104.
22 Segundo Schmitt, estas doações eram destinadas às oferendas, velas e rezas após a
pela instituição eclesial na acusação contra as beguinas, ao defender que estas mulheres
subtraíam as esmolas dos verdadeiros necessitados. Ibidem, passim.
24 EPINEY-BURGARD, G.; ZUM BRUNN, E. Op. Cit. p. 86.
166
o he i e to das Es itu as e da teologia, [...] o s po eio da
pregação e livros de oração, mas graças às traduções e escritos em língua
e ula .25 Sobre o aspecto doutrinário, o misticismo beguinal
deseja a [...] t a s e de -se e fundir-se com Deus em uma união
mística que exclui qualquer intermediário (sine medio .26 Isso
minimizava a necessidade de se recorrer à hierarquia eclesiástica e
reduzia o exercício das virtudes a um estágio preliminar imperfeito que
as almas deveriam se libertar.
A característica principal nos escritos das beguinas foi seu caráter
experimental por meio de um misticismo de Amor (Minemystik) e
místico especulativo (Wesenmystik). O misticismo de amor foi expresso
por meio de uma linguagem do corpo e literária. A linguagem do corpo
pode ser identificada pelos jejuns penitenciais voluntários, a distribuição
de alimentos aos necessitados e uma devoção ao corpo e ao sangue de
Cristo. Já a linguagem literária se deu ao associarem a cultura religiosa
e leiga (fins amours) na tradução de suas experiências em busca de Deus
sob a condição de um Amor eterno.
Sobre o aspecto do misticismo especulativo, o movimento
beguinal foi influenciado, sobretudo, pela doutrina de Guilherme de
Saint-Thierry (1085-1148), cuja teologia trinitária marcou uma relação
estreita entre a vida trinitária e a vida espiritual dos homens. Para
explicar a consonância da alma com Deus, o abade cisterciense utilizou
a e p ess o [...] to a -se o ue Deus [...] .27 Considerando que só o
amor é capaz de acessar as sutilizas de Deus (que não podem ser
captadas com a razão) ele admitiu que o próprio amor era um
o he i e to, afi a do ue A az o o pode ver Deus, senão o que
Ele não é, enquanto o amor está disposto a repousar-se o ue ele .28
25 [...] non plus seulement à travers les prédications et les livres de prière, mais grâce à
des traductions et à des écrits en langue vulgaire. Ibidem, p. 13.
26 [...] se fondre en Dieu dans une union qui exclut tout intermédiaire (sine medio) .
Ibidem, p. 9.
27 [...] devenir ce que Dieu est [...] . Segu do Zu B u , to a -se o ue Deus u a
expressão da doutrina de deificação tradicional dos Padres gregos, onde a assimilação
de Deus u a u i o a [...] u it d esp it [...] . Ibidem, p. 17.
28 La aiso e peut oi Dieu si e est e e u Il est pas, ta dis ue l a ou o se t
se epose e e u Il est . Guillaume de Saint-Thierry. De natura et dignitate amoris.
apud EPINEY-BURGARD, G., ZUM BRUNN, E., Op.Cit., 1988, p. 18.
167
Deste modo, o ideal proposto pelas mulieres religiosae é
justamente o amor nobre e orgulhoso que aceita as provações impostas
por Deus sobre a figura da Dama Amor, assim como o cavaleiro aceita as
provas de sua senhora no romance cortês.
Simbolizando a relação entre a alma e Deus, os escritos das
beguinas tratam, portanto, de um retorno da alma à sua relação original
com Deus. No entanto, para que isso seja possível, a alma deve ser
a i uilada pa a se to a o ue Deus . Ou seja, ega do o que deseja,
a alma passa a não desejar, assim ela será aniquilada podendo recuperar
o seu estado natural em Deus quando não estava separada dele, para
[...] to a -se o que ela [...] .29 Esta superação da alma foi expressa em
termos da mística negativa, segundo a tradição do Pseudo-Dionísio, o
Aeropagita. Esse é o tema principal do Espelho de Marguerite Porete,
quando descreve o estado das almas aniquiladas que vivem na vontade
do Amor.
medieval.
32 Os três clérigos foram o franciscano John de Quaregnon, o cisterciense Dom Franco da
37 Apesar de sua condenação, no Les Grandes Crhoniques de France Porete foi citada
como uma beguine clergesse e en clergie mult sufissent. Nesse sentido, ela foi
considerada um especialista da fé cristã. Cf. COURCELLES, Op. Cit., p. 78.
38 O movimento beguinal também continha uma ala masculina denominado berghardos.
de Porete. Dentre elas estavam a noção de que as almas após alcançarem um estado de
perfeição não poderiam pecar, não teriam mais a necessidade de jejuar ou rezar e que,
ao atingir a liberdade, não estariam sujeitas aos mandamentos da Igreja. Concílio de
Viena (1311-1312). Disponível em: http://www.dailycatholic.org/history/15ecume1.htm
40 O papa João XXII (1316-1334) publicou o decreto Ad nostrum relacionando a heresia
do Espírito Livre ao decreto vinte e oito do Concílio de Viena sobre as beguinas. Cf.
COURCELLES, op. cit., nota 10, p. 85. Segundo Zerner o movimento do Espírito Livre foi
iniciado pelo mestre parisiense Amauri de Bène (?-1207) no início do século XIII. Suas
mensagens foram alimentadas pelas profecias de Joaquim de Fiori (1135-1202), que
anunciava a chegada da Idade do Espírito, quando as formas sacramentais instituídas
pela Igreja deveriam ser ultrapassadas. ZERNER, Monique. Heresia. LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc,
2006, v.1, p. 516.
41 No fim de 1308, por ordem do inquisidor Guillaume Humbert de Paris, foi preso Guiard
a Santa Igreja, a Grande, a Santa Igreja, a Pequena, a Fé, o Temor, a Cortesia, a Discrição,
as Virtudes, a Tentação e a personalizações da divindade como o Espírito Santo, a
Verdade e Deus, o Pai. Mas, suas principais interlocutoras são a Alma, que dá o
testemunho do aniquilamento, e a Razão, que ouve os seus ensinamentos. Esta última,
representaria a própria ratio, concebida pelos pensadores cristãos como uma faculdade
mental, que possibilita o homem adquirir o conhecimento, por meio do seu exercício.
171
A o - Te sete estados de o e o diç o dos uais a
iatu a e e e seu se , se ela a t disposiç o de
ada u deles, a tes de hega pe feiç o de seu se ;
s a os fala so e o o, a tes de te i a este
li o.45
45 Amour - Il y a sept états de noble condition desquels la créature reçoit son être, si elle
Após revelar que esta alma não deseja nada que venha de um
intermediário e, por isso, não busca o conhecimento divino entre os
mestres do mundo, a dama Amor descreve como a alma se despede das
Virtudes. Em seguida, Amor diz o quanto a alma aniquilada é nobre, não
possui mais vontade própria e a nomeia por 12 nomes:
A uito a a ilhosa./A des o he ida./ A ais i o e te
das filhas de Je usal ./ A uela a ual toda Sa ta Ig eja
se aseia./ A ilu i ada de o he i e to./ Vestida de
a o ./ O lou o a i ado./ A a i uilada e todas as
oisas pela hu ildade./ A pa ifi ada o se di i o po
o tade di i a./U a ue o faz ada al da o tade
di i a./A o luída e ealizada se ual ue falha a
o dade di i a, pela o a da Sa tíssi a T i dade./Seu
últi o o e : Es ue i e to de si.50
auras trésor aux cieux. C est le o seil de pa faite e tu. Qui s tie d ait ie de eu e ait
en vraie charité. . Ibidem,., p. 42.
47 Nesta passagem como em muitas outras Porete desenvolve a noção de que Deus é
qui ne fasse rien pour Dieu,/-qui ne laisse rien à faire pour Dieu,/- ui l o e puisse ie
apprendre,/- ui l o e puisse ie a i ,/-ni donner,/-et ui ait poi t de olo t .
Ibidem, p. 44.
50 La très merveilleuse./La non connue./La plus inocente des filles de Jérusalem./Celle sur
divin être par di i e olo t ./Celle ui ie e eut si e est la di i e olo t ./La e plie
et a o plie sa s ulle d failla e de di i e o t , pa l oeu e de la T i it ./So de ie
nom est: Oubli de soi. .Ibidem, p. 52-53.
51 Co e t es A es o t poi t de volonté. Ibidem,, p. 50.
52 Le ai e te de e t de e ue e li e dit e e lieu , ue l A e A a tie a poi t de
volonté Ibidem,, p. 60.
53 Co e t il faut ue l esp it eu e afi u il pe de sa olo t . Ibidem,, p. 151.
54 Em sua tese, Ceci Mariani aponta que foi da Lettre aux Frères du Mont-Dieu de
174
Porete afirma que a alma, por estar tão abandonada, fundida e absorvida
pela Trindade, não poderia querer outra coisa senão a vontade divina,
ou seja, a própria Trindade, por meio dela.
A o - Esta Al a est total e te e t egue, fu dida e
ti ada, pu ada e u ida alta T i dade; e o pode ue e
ada e eto a o tade di i a pela ope aç o di i a da
T i dade i tei a. E u a la eza e u a luz e a tado a se
ju ta ela e a p essio a de pe to. [...].57
57 Amour – Cette Ame est toute remise, fondue et tirée, jointe et unie à la haute Trinité;
et e peut ie ouloi si e est la olo t di i e pa la di i e op atio de la T i it tout
entière. Et une clarté et une lumière ravissantes la joignent et la pressent de plus près.
[...] . Ibidem, p. 146.
58 Lu i e de L A e – [...] O o sid ez, pou ie o p e d e, e u est la olo t de
Dieu. C est la T i it tout e ti e ui est u e seule olo t . La volonté de Dieu est donc,
en la Trinité, une nature divine. [...] . Ibidem, p. 205
59 Co e t l A e a ourese de Dieu, vivant dans la paix de la charité, prend congé des
Vertus . Ibidem, p. 46.
60 L A e – Je vous le confesse, dame Amour: il y eut un temps où j elle fus, mais il en est
63 Comment cette Ame est franche de ses quatre quartiers . Ibidem, p. 169. Os quartos
Zunn Brum essa citação está relacionada à própria definição da criatura. A alma liberada
dos desejos de sua própria criatura poderia retornar o que ela é. Esta noção também foi
desenvolvida pela beguina Hadewijch de Antuérpia (1190-1240) e por mestre Eckhart.
Ibidem, p. 190.
177
Natureza transformada por ele. Antes disso, o amor da alma não bastaria
para Deus e vice-versa, mas quando a vontade divina se faz nela, a alma
então repousa e alcança a plenitude de sua satisfação.
Embora solicitasse frequentemente aos seus leitores e ouvintes
que entendessem ensinamentos de Amor por meio de um entendimento
sutil, em vários diálogos Porete admitiu que tal compreensão jamais
seria alcançada por aqueles regidos pela Razão. A dificuldade na
compreensão das coisas divinas se baseia na distinção expressa no
capítulo XIX – Como Fé, Esperança e Caridade solicitam à Amor
conhecimento destas Almas67 –, entre uma Santa Igreja, a Pequena,
regida pela Razão e uma Santa Igreja, a Grande, regida por Amor.
O fundamento desta classificação é apresentado no capítulo
XLIIIquarenta e três – Como estas Almas são chamadas Santa Igreja e o
que Santa Igreja pode dizer delas68 –, quando a beguina declara que as
Almas são chamadas de Santa Igreja, a Grande, porque a Trindade que
está dentro delas apoia, ensina e nutre toda a Santa Igreja. Admitindo
permanecer na razão, a Santa Igreja, a Pequena, reconhece que as Almas
Aniquiladas são superiores, mas que isso não a desfavorece.
Amor – Não, a Santa Igreja, que estão abaixo da Santa
Igreja, para aquelas almas são devidamente chamado
Santa Igreja, como elas apoiam e ensinam e nutrem toda
a Santa Igreja; não elas, mas a Trindade por meio delas,
e é verdade, sem dúvida. [...]
Santa Igreja (Pequena) - Queremos dizer que essas almas
vivem acima de nós, porque enquanto elas permanecem
no Amor Razão habita em nós; mas ela não é contra nós,
assim recomendamos e louvamos através do brilho de
nossas escrituras. 69
67 Comment Foi, Espérance et Charité demandent à Amour connaissance des ces Ames .
Ibidem, p. 75.
68 Co e t es A es so t appel es Sai te-Eglise et ce que Sainte-Eglise peut dire
d elles . Ibidem, p. 109.
69 Amour – Voire, Sainte-Eglise, qui êtes au-dessous de cette Sainte-Eglise, car ces Ames
70 Amour – Cette A e a, depuis lo gete ps, u est su u il est si grand sagesse que la
temperénce, ni si grande richesse que la plenitude de satisfaction, ni force si grande que
l a ou . Cette A e a la oi e et l e te de e t et la olo t a s e u seul t e,
est-à-di e e Dieu; et et tat lui do e d t e sa s savoir ni sentir ni vouloir aucun état
si e est dispositio de Dieu./Cette A e a ai tes fois la gui d a ou . . Ibidem, p.111-
112.
71 Sainte Eglise loue cette Ame . Ibidem, p. 230.
72 Este ponto demonstra mais uma vez a influência da teologia da Trindade da mística
cisterciense na doutrina de Porete. Segundo Etienne Gilson, nesta teologia existe uma
conciliação entre o amor a si com o amor a Deus, pois quanto mais um ser que é a
imagem tornar-se semelhante a Deus, mais fiel permanece a si. No entanto, isto só é
admissível porque Deus é amor. Deste modo, a caridade é o vínculo que assegura a
unidade da vida divina e, por isso, a paz e a beatitude divina. Essa concepção traz consigo
a ideia de ue Deus i e de u a lei do a o ete a e iado a, ue o ho em estaria
presente como caridade. Portanto, em nós a caridade não seria a substância de Deus,
mas o seu dom. GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 530. Em diversas partes do opúsculo Marguerite Porete se refere à
liberdade da Alma como um dom de Deus.
73 De l e te p ise d A ou et pou uoi elle-ci fit faire ce livre . Ibidem, p. 41.
179
acabou os dons da sua bondade74 –, a dama Amor diz que esse livro não
foi escrito para os que não estão preparados, mas que ainda estarão. No
LXXXIV – Como a Alma sincera em seus quatro quartos, se eleva em
soberania e vive sinceramente pela vida divina75 –, ela se di ige [...] s
pessoas para quem Amor fez com que este livro fosse feito e para
aqueles para quem o escrevi. Vós que não sois parte desses, não fostes,
nem sereis, sofrereis em vão se quiserdes entendê-lo .76 Na mesma
ocasião, a personagem Alma, perplexa no Nada-Pensar, reconhece que
os discípulos da Razão ainda desejam reconduzi-la sob a pobreza dos
seus conselhos, mas perdoa essa intenção porque eles não entendem.
Mais adiante, no capítulo LXXXVI – Como Razão está perplexa do que se
diz desta Alma77 – Amor diz que as pessoas regidas pela Razão ficam
maravilhadas ao ouvirem sobre as práticas das Almas Aniquiladas, pois
estão distante do país onde são realizadas.
No Espelho a barreira na compreensão dos ensinamentos de Amor
também foi associada às vias de salvação. Segundo a dama Amor,
enquanto as pessoas regidas pela Razão são salvas por si mesmas,
aquelas regidas por Amor são salvas por ele. No segundo caso é
necessário passar por três mortes, percorrendo sete estados que a alma
deve transpor antes de chegar à livre vida da alma aniquilada.
No primeiro estado, correspondente à morte do pecado, a Alma
tocada pela graça de Deus procura observar seus mandamentos,
contudo, ainda vive no ditame da Razão. No segundo, relacionado à
morte da natureza, a Alma vive a dinâmica de imitação de Cristo,
observando os conselhos evangélicos e das virtudes, para alcançar uma
vida espiritual de despojamento. No terceiro estado, a Alma aparece
recoberta do desejo de puro amor, porém é necessária a ruptura total
com as vontades do eu. Em seguida, a Alma vive um momento de
delicadeza, concentrando-se no exercício de meditação e contemplação.
No quinto estado ocorre a mudança essencial a que o livro se dedica: a
180
morte do espírito. Nesse estágio, a alma capturada pela luz divina toma
o s i ia da uilo ue Deus e ue ela o al a ça do o ist io
da humildade e da profundidade. O sexto estado delineia a perfeição
espiritual, pois a Alma deixa de ver a si mesma. Por fim, a glorificação da
Alma ocorre após a morte no sétimo estado, quando ela atinge a glória
eterna.
Neste percurso, ao tornarem-se a uilo ue pela g aça de
Deus , pois a o tade di i a a olo ou o se di i o ,78 as Almas
Aniquiladas são, portanto, um exemplo de salvação.
A o - [...] E t e s pe ue os, ue a o tade e o
desejo pega a p esa de seu pasto, deseje se o o
ela , po ue a uele ue deseja o e os, se o deseja
o ais, o dig o ue Deus lhe o eda o e o dos
seus e s [...].
78A concepção segundo a qual a vontade divina conduziria o retorno da alma ao seu
estado anterior foi desenvolvida no capítulo cento e dezoito.
79 [...] A i, ue o t di e gui es et ge s de eligio /Lo s u ils e te d o t l e elle e
de votre divine chanson?/Béguines disent que j e e, et aussi p t es, le s,
p heu s/Augusti s et a es et les f es i eu s,/Pou e ue j is de la t s fi e
A ou ./Et leu Raiso e les sau e pas, e e u elle leu fait di e./D si , Vouloi et C ai te
assurément leur ôtent et la connaissa e/Et l pa he e t et l u io de la t s haute
lu i e/D a deu de di i e A ou . . Ibidem, p. 234.
181
Considerações Finais
Demonstrando um elevado grau de erudição acerca dos
conhecimentos da Bíblia e de textos religiosos, Marguerite Porete
descreveu o estado de aniquilamento das almas, abordando o tema do
retorno da alma ao seu estado original em Deus. Em sua doutrina do
amor puro, a principal característica das Almas Aniquiladas é a perda das
suas vontades. Ao negar todos os seus desejos, estas almas se unem a
Deus, de tal modo, que só podem querer apenas a vontade divina. Por
conseguinte, adquirem um estado de liberdade, por intermédio da graça
de Deus. Ao ensinar sobre as diferenças dos graus para alcançar este
estado e suas capacidades de apreensão das coisas divinas, esta beguina
defendeu que apenas por meio do Amor e da aniquilação da alma é
possível compreender os ensinamentos de Deus.
No fim do século XIII, no contexto em meio ao controle dos
movimentos que seguiam o ideal de vita apostolica e ameaçavam a
mediação obrigatória dos clérigos com o divino, o Espelho de Porete
ensejou uma reação da instituição eclesial. O problema da expansão
destes movimentos emergiu a partir do século XI, quando o testemunho
e as interpretações do Evangelho poderiam apresentar ideias
divergentes da ortodoxia, sobre os possíveis caminhos para atingir a
salvação. Foi justamente neste período, entre os séculos XI-XIII, que as
heresias se multiplicaram. Diversas manifestações da piedade laica,
inicialmente toleradas, sofreram acusações de heterodoxia e
posteriormente foram condenadas. Dentro deste quadro, encontramos
o movimento beguinal.
Concebida em meados do século XII, a forma de vida religiosa das
beguinas percorreu um longo percurso, que incluiu uma autorização
papal para viverem em comunidades, até ser condenada no início do XIV.
De fato, o seu desenvolvimento expõe as mudanças das atitudes
eclesiásticas, diante das tendências espirituais e a concorrência laica na
Idade Média Central.
Ap ese ta do u dis u so a ti-he ti o , a i stituiç o e lesial
desempenhou o seu caráter normatizador, ao subjugar os pensamentos
considerados um desvio da ortodoxia cristã. Deste modo, a condenação
182
de Marguerite Porete e do seu Espelho estão inseridos num processo de
reestruturação da sociedade, sob a condução da Igreja Romana/Papal.
Mesmo após ter conseguido a aprovação de três clérigos, a
doutrina do amor puro de Porete, influenciada pela doutrina cristã
tradicional, sobretudo, a teologia cisterciense, foi condenada. Por meio
de uma experiência sine medio, esta beguina ensinou as práticas da
Santa Igreja, a Grande, regida por Amor. A noção de que a transformação
da alma, no quinto estágio de aniquilação, concedia uma liberdade foi
considerada um problema. A implicação de que esta liberdade nas Almas
Aniquiladas abdicaria das rezas, orações, jejuns, penitências e
sacramentos, representava uma divergência da ortodoxia acerca dos
possíveis caminhos para atingir a salvação.
Como vimos anteriormente, as questões teológicas do Espelho
foram retomadas no Concílio de Viena para proibir a doutrina das
beguinas e dos beghardos. E, posteriormente, a doutrina de Marguerite
Porete foi associada à heresia do Espírito Livre. Certamente, os conflitos
entre o rei Felipe IV e o papado exerceram alguma influência no
julgamento e na condenação desta beguina. Porém, considerando o
modo de vida das mulieres religiosae, o não pronunciamento dos votos,
a mendicância e o trabalho manual, acreditamos que outros elementos,
de razão política e econômica locais, possam ter contribuído para a
repressão do movimento. Nesse sentido, são necessários estudos mais
aprofundados para identificarmos e analisarmos os interesses ao redor
do propósito do Concílio de Viena ao tratar da doutrina do amor puro na
condenação das beguinas e begardos no Ocidente Medieval.
183
184
INFLUÊNCIA FRANCISCANA NA CIDADE DE PÁDUA: UM ESTUDO SOBRE A
NARRATIVA DA PREGAÇÃO ANTONIANA NA BEATI ANTONII VITA PRIMA
Introdução
O objetivo deste texto é tratar a questão da influência da Ordem
dos Frades Menores na cidade de Pádua, no norte da Itália através da
pregação do frade Antônio de Lisboa/Pádua narrada na Beati Antonii Vita
Prima, também chamada de Legenda Assídua. Analisaremos
especificamente o décimo terceiro capítulo da hagiografia que relata a
predica do santo lisboeta na comuna italiana durante a Quaresma de
1231.
O hagiografado que inicialmente se chamava Fernando Martins de
Bulhões, nasceu em Lisboa, foi cônego regular no Mosteiro de São
Vicente de Fora na mesma cidade e depois no mosteiro de Santa Cruz
em Coimbra, sendo ordenado presbítero por volta de1215. Quando os
primeiros franciscanos chegam ao reino de Portugal, Fernando decide
ingressar na Ordem dos Frades Menores fundada por Francisco de Assis
em meados de 1219, mudando seu nome para Antônio. Após ser aceito
entre os minoritas, o religioso faz o seu noviciado em Romagna, em
seguida, tenta uma missão sem sucesso no Oriente Islâmico e depois,
segue para a Península Itálica.2
De acordo com a tradição hagiográfica, Antônio, enquanto frade
menor desempenhou a função de professor de teologia em Bolonha,
custódio no Sul da França, sendo posteriormente nomeado ministro
provincial da Lombardia. Depois de desempenhar o cargo, foi transferido
para a cidade de Pádua, no Norte da Itália, onde viveu seus últimos anos
de vida. Na mesma comuna, o minorita se dedicou à pregação,
principalmente na Quaresma de 1231, momento em que sua ação
3 I ide , p. - .
4 VIDA PRIMEIRA DE SANTO ANTONIO TAMBÉM DENOMINADA LEGENDA ASSÍDUA. I :
Fo tes F a is a as III: Sa to A to io de Lis oa. B aga: Edito ial F a is a a, .
Dispo í el e : http://sa to-a to io. e ode.pt/fo tes-a to ia as/, a esso e de
ja ei o de . Cap. I, . Do a a te Assídua. Segue o t e ho e lati : Assidua f at u
postulatio e dedu tus e o et o edie tie saluta is f u tu p o o atus, ad laude et
glo ia o ipote tis Dei, ita et a tus eatissi i pat is a f at is ost i A to ii ... .
VITA PRIMA DI S. ANTONIO, o Assidua . . P dua: Edizio i Message o, .p. .
5 Segu do Le de Ke al, algu as hip teses fo a le a tadas a espeito da auto ia da
lege da. U a delas ap ese tada pelo f ade apu hi ho R. P. Hilai e, e , p opo do
ue a es a te ia sido edigida po Jo o Pe kha , ue o eu e . Po , tal
hip tese foi efutada ao e ifi a -se ue o te to a te io a e ue Pe kha te ia
as ido e t e a , se do e t o i possí el ue o es o a te ha es ito
KERVAL, Le de. Sa t ti A to ii de Padua ita duae. Pa is: Li ai ie Fis h a he , . p.
- .
6 GAMBOSO, Ve gílio. I t oduzio e. I : Vita P i a di S. A to io o Assidua . .
P dua: Edizio i Message o, . p. - , - .
186
Henrique Pinto Rema afirma que a legenda possivelmente foi
elaborada no Norte da Itália, visto que os detalhes relatados a respeito
da morte e do procedimento para a canonização do santo devem ter sido
coletados a partir de testemunhas oculares, ou o próprio autor esteve
presente em tais eventos.7
A hagiografia está dividida em duas partes: a primeira, formada
por quatorze capítulos, narra a infância e juventude de Antônio, o
momento em que ingressou no movimento franciscano, seu noviciado
em Romagna, passando em seguida para a sua atuação no Norte da Itália
em Forli, Rimini e por fim em Pádua. A segunda parte trata de sua morte
e canonização; ao final da hagiografia, há um apêndice com os milagres
post mortem que provavelmente constam no processo de canonização
que se perdeu.
franciscanos, no contexto do século XIII surgiram outras ordens que também foram
consideradas mendicantes como os agostinianos, aprovados pelo papado em 1244, os
carmelitas em 1245. Há também a ordem dos servitas fundada em 1233 e reconhecida
somente no século XV como uma ordem mendicante. Posteriormente, surgiram as
ordens dos mercedários, os trinitários, os mínimos e os irmãos de São João de Deus, além
dos jerônimos. (Cf. CRESTA, Geraldo. Valor y sentido del conocimiento en las órdenes
mendicantes del siglo XIII. Acta Scientiarum. Education. Maringá. v. 32, n. 2, p. 141-151,
2010).
188
demonstravam uma preocupação da Igreja Romana em contemplar de
forma satisfatória o ambiente laico e urbano, a partir da presença
franciscana e dominicana, uma vez que nestes locais, sobretudo no Sul
da França e no Norte da Itália, havia uma maior incidência e adesão aos
movimentos ditos heréticos.11
O papado nos anos 30 do século XIII organizou missões de
pregação formadas, sobretudo, por religiosos mendicantes nestas
regiões, com o intuito de obter possíveis conversões dos adeptos dos
grupos vistos como heterodoxos, bem como impedir que a sua
mensagem fosse aceita pelas populações locais. Todavia, com o pretexto
de combate a estes movimentos, pretendia-se também, por meio da
ação pastoral franciscana e dominicana, a garantia da dominação papal
nas cidades ao Norte da Península Itálica.12
Dominicanos e franciscanos, sob as ordens do papado, através de
suas exortações, promoveram uma expressiva influência nos estatutos
comunais das cidades da Itália do Norte, sobretudo em Pádua, Parma,
Bolonha, Vicenza, Verona, Milão e Monza. Em alguns casos, cidades
introduziram leis de cunho anti-herético, estreitando vínculos com a
Santa Sé e permanecendo obedientes a Roma.13
No texto, são os ouvintes que se dirigem à presença do
protagonista à noite. Assim, somente um exímio pregador seria capaz de
contar com um público variado ao fazer uma exortação oral em um
horário quando, normalmente, a grande maioria dos citadinos estaria
em suas casas repousando. Da mesma forma, o povo passa a noite em
claro para ouvir o santo na madrugada. Vemos, portanto a questão da
L'action politique des Ordres Mendiants d'après la réforme dês statuts communaux et
les accords de paix. Mélanges d'archéologie et d'histoire, Paris, t. 78, p. 503-549, 1966,
p.505-506.
189
ascese que é praticada pelos ouvintes no contexto da Quaresma, período
em que é prevista a prática da penitência com privações físicas. O texto
continua mencionando, também, a faixa etária dos ouvintes, além de
citar o bispo de Pádua:
Compareciam os velhos, acorriam os novos, homens e
mulheres simultaneamente, de toda a idade e condição;
todos eles, depois de haverem deposto os vestidos de
gala revestiam-se, por assim dizer, de hábito religioso.
Por fim, até o venerável Bispo dos Paduanos seguiu com
devoção a pregação do servo de Deus António e,
havendo-se tornado sinceramente modelo da grei,
exortou-a a ouvir com o exemplo da humildade.14
14 Assídua. Cap. XIII, 5- . Segue o t e ho e lati : Aderant senes, currebant iuvenes, viri
simul et mulieres, etas omnis atque conditio; qui omnes, depositis ornamentorum faleris,
habitu, ut ita dixerim, utebantur religioso. Denique et venerabilis Paduanorum episcopus,
cum clero suo, predicantem Dei servum Antonium devote secutus est, formaque gregis
factus ex animo, audire monuit humilitatis .
190
desejo de o ouvir, só, terminada a pregação, expunham
as mercadorias aos transeuntes.15
15 Assídua. Cap. XIII, 7- . Segue o t e ho e lati : Tanto autem omnes et singuli hiis que
dicebantur intendebant desiderio ut, cum sepe triginta - ut ferunt - hominum milia
predicanti assisterent, nec vox clamoris aut murmur tante multitudinis sonuit; sed
continuato, quasi vir unus, silentio, omnes suspensa mentis et corporis aure, loquentem
sustinebant. Stationarii quoque, seu cuiuscumque artis apothecas pro vendendis
mercibus tenentes, pré nimio audiendi desiderio, non nisi finita predicatione venalia
transeuntibus exponebant .
16 LE GOFF, Ja ues. A Idade M dia e o di hei o. S o Paulo: Ci ilizaç o B asilei a, .
Op. Cit., p. .
17 BÉRIOU, Nicole. L'esprit de lucre entre vice et vertu. Variations sur l'amour de l'argent
24 I ide , p. ; .
25 MERLO, G ado Gio a i. E o e de S o F a is o. Pet polis: Vozes, .p. .
26 Segue o t e ho da ula: De fato, Deus, pa a a ifesta de fo a ad i el o pode
da Sua fo ça e ealiza o ise i dia a ausa da ossa sal aç o, o oa se p e o u
os Seus fi is e, o f e u ia, ta os ho a este u do, ealiza do si ais e
p odígios ue os to a e o eis. Po tais si ais e p odígios o fu dida a aldade
he ti a e o fi ada a f at li a. Os fi is, sa udida a ti ieza espi itual, despe ta -se
ao u p i e to das oas o as; os he eges, e o ida a alige das t e as e ue se
e o t a e ol idos, a a do a os a i hos da pe diç o e eto a o a i ho da
sal aç o; os judeus e os pag os, o he ida a e dadei a luz, o e ao e o t o de
C isto, luz, a i ho, e dade e ida . Po isso, a íssi os i os, da os g aças ao
despe sei o de todas as g aças, se o ta tas ua tas de e os, pelo e os ua tas de
ue so os apazes. É ue e ossos dias, pa a o fi aç o da f at li a e o fus o da
aldade he ti a, Deus isi el e te e o a os si ais e e p ega o pode as
a a ilhas, faze do ilha po eio de ilag es a ueles ue o uste e a a f at li a
o o a do das suas o i ç es, o a elo u ia da sua pala a e o e e plo da sua
i tude. No ú e o destes a ha-se o e -a e tu ado A t io, da O de dos F ades
Me o es, de sa ta e ia. E ua to i eu o u do, possuiu g a des itos; ago a,
i e do o u, ilha o uitos ilag es, ue de o st a de fo a e ide te a sua
sa tidade. ... H te pos, o osso e e el i o o Bispo de P dua e os ossos a ados
filhos o P eside te e os e eado es do Mu i ípio, edia te legados seus e a tas heias
de hu ildade, supli a a - os ue a d sse os e olhe teste u hos dos ilag es do
Sa to, a ue o Se ho o edeu ta a ha gl ia, ao po to de lhe da a i ia da sua
p i ei a estola i o tal e e ide te e pe i ia da segu da, o ede do ue o seu
tú ulo se ealizasse g a des ilag es. Assi , ele dig o de ue seja i o ados os
seus suf gios e t e os de ais sa tos . GREGÓRIO IX. Cu di at do i us. I : REMA,
He i ue Pi to t ad . Fo tes f a is a as III: Sa to A to io de Lis oa. B aga: Edito ial
195
Além do apelo ao culto às relíquias e a santidade do frade ibérico,
observa-se também uma influência direta na ordem social vigente,
extinguindo as práticas condenadas pela Igreja Romana. Logo, a legenda
fala não só da usura, mas também da prostituição como aparece no
trecho a seguir:
Chamava os desavindos à reconciliação fraterna;
prendava os cativos com a liberdade; obrigava a restituir
as usuras e as rapinas violentas, e se as casas e os campos
se encontrassem penhorados, fosse o preço colocado a
seus pés e, por deliberação sua, todas as coisas roubadas,
fosse a rogo ou ajuste de preço, fossem restituídas aos
espoliados. Proibia também às meretrizes a sua vida
nefanda e escandalosa e arredava os famosos ladrões e
facinorosos do ilícito contacto do alheio. E deste modo,
havendo levado a bom termo o curso dos quarenta dias,
30 LEGOFF, Ja ues. A olsa e a ida: a usu a a Idade M dia. S o Paulo: B asilie se, .
p. - .
31 So e a p ostituiç o a Idade M dia e : ROSSIAUD, Ja ues. A p ostituiç o a Idade
33Assídua. Cap. XIII, 13- . Segue o t e ho e lati : Nec silendum puto, quod tantam
utriusque sexus multitudinem ad confitenda peccata mittebat, ut nec fratres, nec
sacerdotes alii, quorum non parva sequebatur eum frequentia, audiendis confessionibus
sufficerent. Dicebant autem et qui ad penitentiam veniebant, quod, divina visione
commoniti et ad Antonium transmissi, eius per omnia consiliis obtemperare in mandatis
accepissent. Quidam vero, post mortem eius, ad fratres secretius accedentes, ipsum
beatum Antonium dormientibus apparuisse et nomina fratrum, ad quos eos mittebat,
docuisse testati sunt .
199
individual com o sacerdote no período quaresmal em vista da comunhão
eucarística na festa da Páscoa. Tal princípio foi oficializado por meio da
constituição Omnis utriusque sexus.34
Segundo Roberto Rusconi, como o clero secular não colocava em
prática tal decreto de acordo com as exigências do concílio, uma vez que
muitos não tinham formação para tal, coube aos religiosos mendicantes
se especializarem na pregação e administração do sacramento no meio
urbano.35
Rusconi elucida que, desde o IX século, o ritual de imposição das
cinzas na quarta-feira da primeira semana da Quaresma marcava o início
de um período de penitência, que culminaria necessariamente com uma
confissão individual, em vista de se receber a comunhão pascal. Porém,
em finais do século XII, com o intuito de melhor fomentar esta prática,
cria-se o costume de preceder o ato da confissão com uma prédica.36
Logo, pregação e confissão estabelecem uma ligação estreita, já que os
34 A tradução do texto em espanhol é nossa: Todo fiel de um ou outro sexo, uma vez
chegado ao uso da razão deve confessar-se sinceramente todos os seus pecados por si
mesmo a seu pároco, ao menos uma vez por ano, cumprir com esmero e na medida de
suas possibilidades a penitência que houver sido imposta e receber com respeito, ao
menos pela Páscoa, o sacramento da Eucaristia, a não ser que por conselho do pároco,
por uma razão válida, julgue que deve abster-se do mesmo temporariamente. Segue a
e s o do o e a ediç o espa hola: Todo fiel, de uno y otro sexo, una vez Ilegado al
uso de razón debe confessar sinceramente todos sus pecados por si mismo a su párroco,
al menos uma vez el año, cumplir com esmero en la medida de sus possibilidades la
penitencia que le hubier sido impuesta y recibir com respeto, al menos por pascua, el
sacramento de la eucaristia, a no ser que por consejo de su párroco, por razón válida,
juzgue que debe abstenerse del mismo temporalmente . FOREVILLE, Raimunda (Ed.).
Lateranense IV. Vitória: ESET, 1972, p. 155- . Segue o t e ho e lati : Omnis
utriusque sexus fidelis postquam ad annos discretionis pervenerit omnia sua solus peccata
confiteatur fideliter saltem semel in anno proprio sacerdoti et iniunctam sibi poenitentiam
studeat pro viribus adimplere suscipiens reverenter ad minus in pascha eucharistiæ
sacramentum nisi forte de consilio proprii sacerdotis ob aliquam rationabilem causam ad
tempus ab eius perceptione duxerit abstinendum . Cf. e :
http://www.documentacatholicaomnia.eu/. Acesso em 16 de abril de 2014.
35 RUSCONI, Ro e to. De l p edi a io la o fissio : t a s issio et o t le de
od les de o po te e t au XIIIe si le. I : CROIRE, Fai e o g . Modalit s de la diffusio
et de la eptio des essages eligieu du XIIe au XVe si le. Ro a: É ole F a çaise de
Ro e, . p. -
36 Ibidem, p. 68.
200
discursos proferidos pelos frades, às vésperas das festividades pascais,
assumiram um caráter moralizante e penitencial.
Quanto ao caráter maravilhoso, os ouvintes se dirigem ao
confessionário após terem visões místicas que os mandava ir até o
religioso para confessarem seus pecados. Milagre ainda maior ocorre
após a morte do minorita, que aconselha ao povo em sonho a procurar
os frades sacerdotes e então confessarem suas faltas. Mas os fenômenos
só ocorrem por meio da exortação feita pelo lisboeta. O trecho reitera,
portanto, a confissão como algo divino.
Considerações finais
Como foi possível constatar ao longo da análise do décimo
terceiro capítulo da Legenda Assídua, observamos uma exaltação da
pregação de Antônio no âmbito da cidade de Pádua que age sobre o
espaço urbano, modificando a dinâmica comunal. Há, portanto, uma
aprovação da ação pastoral dos minoritas, representados na figura de
Antônio por parte dos poderes locais na pessoa do bispo diocesano.
Além disso, a própria fala do frade não só interrompe as atividades
comerciais e a usura condenadas pela Igreja Romana, como também
repreende a prática da prostituição, o que faz com que a comuna seja
um modelo de seguimento das diretrizes eclesiásticas. Somado a isso, o
povo, representado pelas mulheres que recortam as vestes do religioso,
declara Antônio santo antes mesmo da sua morte e posterior
canonização.
No tocante à confissão, a relação estabelecida entre prédica e o
sacramento, como previsto no cânone 21 do IV Concílio do Latrão é
ainda mais visível. Antônio é apresentado não apenas como modelo de
pregador, mas também, como frade menor, sob as ordens do papado,
pois fomenta que o povo se confesse, além de se dispor a ouvir os
pecados daqueles que estiveram presentes em sua exortação.
Vemos assim que o décimo terceiro capítulo da Legenda Assídua
reproduz a influência da ação pastoral franciscana em Pádua por meio
da pregação antoniana na dinâmica social, política e econômica urbana
de acordo com as diretrizes centralizadoras da Igreja Romana.
201
202
ANTÔNIO DE LISBOA/PÁDUA
E O DISCURSO SOBRE A CONFISSÃO NO SÉCULO XIII
Introdução
A Ordem dos Frades Menores, surgida no início do século XIII,
tornou-se um dos grandes sinais da renovação espiritual vivida pela
Igreja Romana no período. Francisco de Assis e seus companheiros
rapidamente transformaram o movimento em uma instituição
diferenciada face às experiências religiosas institucionalizadas
anteriores.
Apesar da proposta inicial da pregação de virtudes e sem
profundidade teológica, rapidamente os Frades Menores tornaram-se,
também, um referencial na Teologia da época e na pregação douta. Desta
forma, muitos menores se destacaram em tal ofício, tais como Duns
Scotto, Boaventura, Bernardino de Sena2 entre outros. O primeiro nome
dessa lista foi Antônio de Lisboa/Pádua que com sua obra Sermões
Dominicais e Festivos e sua pregação eloquente marcou a primeira
geração dos irmãos seguidores do Poverello.
Em nossas pesquisas, iniciadas na graduação, como membro do
Projeto Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade,
enveredamos pelo caminho do que seria o eclesiástico ideal na ótica de
frei Antônio de Pádua/Lisboa. Concluímos, então, que a sua obra,
conhecida como Sermões, é uma compilação de textos sermonários,
escritos a fim de instruir os irmãos franciscanos e demais membros da
Igreja Romana, e nos quais Antônio apresenta uma leitura pastoral dos
cânones do IV Concílio de Latrão, com o objetivo de doutrinar o clero e
os religiosos em geral.
Posteriormente, na dissertação intitulada Antônio de
Lisboa/Pádua: O Martelo da Igreja Romana, defendida junto ao
Programa de História Comparada da UFRJ, analisamos na obra de
204
destacar que com a autorização de Francisco para o ensino de Teologia
na Ordem e a criação entre o ano de 1223 e 1224 da escola de teologia
dos menores em Bolonha, Antônio passou a ser o protagonista de uma
grande mudança no modo de atuação da Ordem dos frades menores, 6
que deixaram de ser simples pregadores itinerantes a repetir versículos
e a impressionar pelo exemplo, uma vez que andavam maltrapilhos e a
mercê das intempéries, passando a ser grandes pregadores e destacados
intelectuais. Logo, era necessário produzir materiais para o estudo e
consulta dos frades a fim de fornecer apoio na elaboração das suas
pregações.
Antônio, após a autorização de Francisco de Assis para que se
tornasse mestre de teologia, realizou missões de pregação por todo o
norte da Península Itálica e sul da França. Adquiriu nessa empreitada a
ideia da necessidade de reforma do clero, presa fácil para o ímpeto dos
contestadores da Santa Sé. Então, dentro do contexto que viveu,
formulou um discurso religioso, assim como o de seu fundador. Seus
Sermões, segundo podemos constatar em nossa dissertação de
mestrado, são uma admoestação aos membros da Igreja. Assim, tratou
de como deveria ser o comportamento dos pregadores, dos clérigos em
geral, bispos, padres, monges, frades e penitentes, além de tratar dos
fiéis, principalmente os mais influentes.
Sua o a u a ual did ti o- ate u ti o de p egaç o, aseado
os te tos í li os, ue s o i te p etados po sa e es filos fi os,
teol gi os, p ofa os e ie tífi os da po a. Qua to ao uso da Bí lia,
A t io, ue o he ido o a al u ha eligiosa de A a do
Testa e to, de ido a seus o he i e tos í li os, e í io a utilizaç o
dos te tos sa os.
O f ade po tugu s apoia-se todo o te po os te tos dos Pad es
da Ig eja e dos p i ipais auto es l ssi os a sua disposiç o. Al disso,
la ça o de u lati ue o side ado ulto pela aio ia dos te i os
ue se de uça so e sua o a.
Nosso o jeti o a ui t ata do te a o fiss o a o a do f ade.
Bus a os de ate algu as das a a te ísti as ap ese tadas po ele e
elaç o a esse sa a e to at li o. Se do assi , ual a i po t ia da
o fiss o pa a ele? Quais auto idades ele utiliza pa a e asa sua
7I ide .
8ORLANDI, E i Pul i elli. Dis u so e Leitu a. Ca pi as: U i a p/Co tez, . p. .
9 I ide , p. .
206
Se es A to ia os da Qua es a e a Co fiss o
A data litú gi a ue i i ia a o st uç o do te to a to ia o o a
es a ue p i ipia a o ale d io litú gi o da Ig eja Ro a a. O
ale d io da i stituiç o foi o ga izado a pa ti de u siste a de di is o
do te po, ue se asea a as fases lu a es ue se o pleta a e
dias. Essa fo a de o ga izaç o do te po e a usada desde o s ulo IX e
hoje ai da e p egada pela Ig eja Cat li a Apost li a Ro a a. O
siste a e uest o te o o a o i i ial o p i ei o do i go do
ad e to, festa ue a ia e t e os dias e de o e o, o fo e a
data ue ai o do i go da p s oa.
Assi , ao i s de utiliza o ale d io da Ig eja, A t io optou
po es e e sua o a o ela io a do-a o as leitu as do A tigo
Testa e to, ue e a feitas de a o do o a e itaç o do Ofí io Di i o,
a o aç o ofi ial da Ig eja Ro a a. Dessa fo a, o p i ei o se o
efe ia-se ao a tigo do i go da Septuag si a, po a do a o o ual as
leitu as e a ti adas do p i ei o li o da Bí lia, o G esis. O últi o
se o esta a ela io ado ao te ei o do i go depois da oita a da
Epifa ia.10 Se do assi , o p i ei o g upo de se es ue s o
ap ese tados a o a a to ia a s o os da Qua es a.
A partir das características da águia, o frade trata, no Sermão do
Primeiro Domingo da Quaresma, do sacramento de confissão.
Diz-se no Apocalipse: Foram dadas à mulher duas asas
duma grande águia, a fim de voar para o deserto. Esta
mulher significa a alma penitente. Dela diz o Senhor: A
mulher, isto é, a alma, quando dá à luz o pecado na
confissão, que ela concebeu no deleite, tem tristeza. E
deve tê-la. A esta mulher são dadas duas asas de águia.
A águia, assim chamada pela agudeza da vista ou do bico,
significa o varão justo. De fato, a águia é de vista
agudíssima, e quando o bico, por causa da demasiada
10 Segu do Jos Reis Cha es, A pala a epifa ia do G ego epipha eia: ap ese taç o,
apa iç o e p egada pelo ale d io litú gi o da Ig eja, pa a desig a a ap ese taç o
de Jesus C isto aos po os. Isso se deu o o o he ido epis dio da isita dos Reis Magos
ao Me i o Jesus. E, o a efo a do itado ale d io e , ap s o Co ílio
Vati a o º, a Ig eja t a sfe iu essa festa litú gi a pa a o º do i go depois do Natal .
CHAVES, Jos Reis. Epifa ia. Dispo í el e : <http:// .po taldoespi ito. o . /po tal/
a tigos/jose- ha es/epifa ia.ht l>. Co sultado e : Jul .
207
velhice, começa a engrossar, aguça-o contra uma pedra
e desta forma rejuvenesce.11
11 Di itu i Apo al psi: Datae su t ulie i duae alae a uilae, ut ola et i dese tu .
Mulie ista a i a poe ite te sig ifi a t, de ua di it Do i us i Ioa e: Mulie , idest
a i a, u pa it i ofessio e pe atu , uod o epit i dele tatio e, t istitia ha et,
et de et ha e e. Hui ulie i da tu duae alae a uilae. A uila, a a u i e isus el
ost a si di ta, i u iustu sig ifi a t; A uila e i a utisi i est isus, et ua do
ost u p ae i ia se e tute g osses it, ad pet a a uit, et ita eiu e es it. T aduç o
He i ue P. Re a. I : SANTO ANTÔNIO. Op. Cit., p. .
208
eclesiae e que depois de morto lhe seja negada a
sepultura cristã. Este decreto encaminhado para a
salvação das almas, deve ser publicado com frequência
nas igrejas, de maneira que ninguém possa esconder-se
na ignorância. Todo aquele que deseje, por razões
legitimas, confessar seus pecados a outro sacerdote deve
anteriormente solicitar e obter para isso a autorização de
seu pároco; de outra forma este sacerdote não pode
absolver-lhe, ou reter seus pecados validamente. O
sacerdote, por sua parte, deve trabalhar com
discernimento e prudência, para saber, como médico
e pe i e tado despeja o i ho e o azeite [L , ]
nas feridas de quem o necessite, para recuperar o atraso
com cuidado e delicadeza da situação pessoal e concreta
do pecador e as suas circunstâncias do pecado, para
saber escolher com todo o tato o conselho necessário e
oportuno e finalmente para aplicar o remédio
apropriado, tendo em conta que são diversos os meios
capazes de curar a enfermidade. Que o confessor se
cuide para não trair o pecador, trate do que se trate [a
confissão], com palavra, com gesto ou de qualquer outra
maneira. No caso de o confessor acreditar que é
necessário um conselho que esclareça as coisas, que o
solicite, porém, sem revelar de jeito algum a pessoa do
pecador. Determinamos que quem revelar o pecado
confessado ante o tribunal da penitência, seja não
somente despossuído do ministério sacerdotal, como
reduzido perpetuamente ao estado de penitência em um
mosteiro da mais severa observância.12
prodat aliquatenus peccatorem sed si prudentiori consilio indiguerit illud absque ulla
e p essio e pe so æ aute e ui at uo ia ui pe atu i pœ ite tiali iudi io si i
detectum præsumpserit revelare non solum a sacerdotali officio deponendum
de e i us e u etia ad age da pe petua pœ ite tia i a tu o aste iu
detrudendum. Tradução de Raimunda Foreville. In: FOREVILLE, Raimunda. (Ed.).
Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973, p. 174.
13 Ca ete e go, o o fesso es, o sa e dotes, est as e datis i hu o te . I o te
e i est as e de e se etu o fessio is de uda e. No ta tu di o o as e datis,
sed etia e fi es eius ta gatis. Fi es o tes su t i u sta tiae o fessio is, uas e
e o, e sig o el ali uo odo uis de et ta ge e. ... O is, i uit Do i us, ui
tetige it o te , o te o ietu . REMA, H. Op. it.,
14 Nota uod i ha au to itate po u tu septe ge e a estia u , uae su t d a o,
st uthio, o o e tau i, idest asi us et Tau us, pilosus, la ia et e i ius. ... I d a o e
210
Segundo frei Antônio, problemas como a heresia estavam ligados
às deficiências que a própria Igreja Romana apresentava. Um deles era
uma certa tolerância diante dos pecados. Para ele, somente através da
penitência e da consciência de que o pecado era um mal é que a
Cristandade conseguiria se reconciliar com Deus. Por isso, ele
preocupou-se em combater algumas modalidades desse mal. Para o
religioso português, existiam sete espécies de pecados que deveriam ser
confessados. Mas um, em particular, o preocupava:
[...] o ouriço é todo coberto de espinhos. Se alguém
pretender apanhá-lo, esconde-se todo dentro de si e
torna-se como esfera na mão de quem o segura; tem a
cabeça e a boca na parte inferior, e na boca possuí cinco
dentes. O ouriço é o pecador obstinado. Rodeado por
toda a parte pelos espinhos dos pecados. Se pretenderes
argüi-lo [sic] de pecado perpetrado, recolhe-se
inteiramente dentro de si e esconde-se, escusando a
culpa cometida. E assim tem a cabeça e a boca na parte
inferior. A cabeça designa o entendimento; a boca, a fala.
O pecador, ao escusar-se da iniqüidade [sic] perpetrada,
que faz senão inclinar o entendimento; e as palavras para
a parte inferior, para as coisas terrenas? Por isso, diz-se
também ter cinco dentes na boca. Os cinco dentes na
boca do ouriço são os cinco modos de escusas na boca
do obstinado. De fato, ao ser argüido [sic], ou se escusa
de ignorância, ou de má sorte, ou de sugestão do
demônio, ou de fragilidade da sua carne, ou de que o
próximo foi a ocasião.15
otatu odii et det a tio is e e osa alitia, i st uthio e h po isies falla ia, i asi o
lu u ia, i tau o supe ia, i pilosis a a itia et usu a, i la ia hae eti a pe fidia, i e i io
e suta pe ato is e usatio. I ide , p. .
15 ... e i ius totus est spi osus, ue si uis ape e olue it, totu se i t a se a s o dit
Co side aç es fi ais
Podemos ver então que a confissão era um sacramento ao qual Frei
Antônio deu uma grande importância. Com suas alegorias e citações bíblicas
e de pensadores da Antiguidade, ele argumentou que ela fazia parte do
caminho do fiel para a salvação da alma. Isso se dava, uma vez que, o pecado
era o impedimento tanto para os fiéis como para os eclesiásticos de sua ida
ao paraíso.
Ele condenou os pecados, listou os mais torpes e mostrou como
deveria ser realizada a confissão. Notamos que esta parte explicativa, apesar
de poder ser acessada pelos cristãos em geral, era direcionada a auxiliar os
frades, ou a outros clérigos, que quisessem tornar-se confessores. Escrevendo
em forma de questionário, com perguntas e respostas, ele demonstrava
como deveria se realizar as perguntas aos fiéis.
Além disso, chamou a atenção dos cristãos de que os pecados tinham
que ser revelados. Mesmo que fosse doloroso e constrangedor as faltas
deveriam ser relatadas ao confessor. Apesar de não transparecer isso no seu
texto, Antônio corroborava com o controle social buscado pela Igreja.
Como vimos, a confissão passou a ser uma das formas de vigilância que
a Santa Sé utilizou de forma mais intensa, exatamente na época em que o
frade escreve seu texto. Para cumprir essa diretriz ele, como mestre, passou
a usar toda didática disponível em seu tempo para formar os homens da Igreja
e convencer aos fiéis.
Dessa forma, lança mão dos Bestiários Medievais e de textos dos
Padres da Igreja. Sua obra tem uma grande dramaticidade no intuito de
convencer através do medo. Medo da danação eterna. Nela podemos realizar
o exercício de imaginar a população nas praças ou templos em pânico e
buscando de forma urgente aos confessores.
Mesmo não sendo objetivo de nosso trabalho podemos aqui afirmar
que seus escritos aliados com a dramaticidade da pregação franciscana
medieval foram, então, uma grande arma de convencimento dos fiéis e do
clero em geral. E por isso uma pista fundamental para entender como a
instituição conseguiu, neste período, tornar-se hegemônica.
218
UMA ALTERNATIVA DE LEITURA SOBRE A POBREZA MEDIEVAL NO
NOVO TESTAMENTO: A TRAJETÓRIA CANÔNICA DA EPÍSTOLA DE TIAGO
Introdução
Iniciei a minha pesquisa monográfica com o intuito de estudar a
pobreza mendicante, mais especificamente a temática da pobreza nos
primeiros anos da Ordem dos Frades Pregadores. Sendo assim, foi-me
recomendada a leitura do livro clássico de Michel Mollat: Os Pobres na Idade
Média.
No decorrer da leitura me deparei com a passagem na qual Mollat
afirma que grupos do século XII resgataram debates sobre uma fonte pouco
usual para a exegese medieval no tocante ao abuso da riqueza.33 Fiquei
surpreendido por se tratar de um livro canônico do Novo Testamento. Decidi
então investigar inicialmente o porquê do livro, apesar de canônico, ser
tratado com cautela por uma parte considerável dos exegetas. Elaborada a
questão fundamental para a pesquisa, o objetivo traçado então esteve em
refletir a respeito da trajetória do documento canônico ao longo dos anos e
sobre a questão da pobreza em evidência na epístola.
O presente trabalho é fruto de uma investigação inicial e
p.103.
219
encontra-se estruturado em quatro partes que debatem, de maneira
breve, primeiramente algumas das características do documento
selecionado, como as principais temáticas contidas na epístola, a autoria
e a datação. Na sequência, o foco é deslocado para o conteúdo histórico
hermenêutico da documentação, principalmente na patrística, no qual
busco reunir comentários realizados sobre a carta por diferentes
personagens, em momentos distintos. Por fim, finalizo o presente artigo
ao apresentar uma das leituras possíveis para o tema da pobreza na
Epístola de Tiago.34
autoria é atribuída ao Apóstolo Paulo. São eles: Epístola aos Romanos, Primeira Epístola
aos Coríntios, Segunda Epístola aos Coríntios, Epístola aos Gálatas, Epístola aos Efésios,
220
salvação.37
A Epístola inicia com uma fórmula ge al de saudaç o: Tiago, se o
de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos da Dispersão:
saudaç es! .38 Aqui o autor utiliza uma fórmula introdutória muito
associada e reproduzida na retórica epistolar greco-romana:
inicialmente a referência ao remetente, a referência a Deus e/ou a Jesus
Cristo39 e aos destinatários da mensagem.
A delimitação geográfica e social dos destinatários é outro ponto
de discussão entre os estudiosos neotestamentários. Divergências de
opinião na possibilidade de a mensagem ter sido direcionada a todos os
cristãos da diáspora.40 Para R. Leconte, especialista na Epístola de Tiago
e membro da equipe de organização da primeira Bíblia de Jerusalém, a
resposta para a problemática é afirmativa. A carta teria sido enviada para
os cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano,
sobretudo nas regiões próximas à atual Palestina, como a Síria ou o
Egito.41
O escritor de Tiago se apresenta como um judeu-cristão muito
rigoroso na observância da Lei.42 As exortações morais e os exemplos, ao
longo da obra, mostram um homem que, perspicaz na sabedoria judaica
Epístola aos Filipenses, Epístola aos Colossenses, Primeira Epístola aos Tessalonicenses,
Segunda Epístola aos Tessalonicenses, Primeira Epístola a Timóteo, Segunda Epístola a
Timóteo, Epístola a Tito e, por fim, Epístola a Filêmon. O autor da Epístola aos Hebreus é
anônimo, mas tradicionalmente ela foi atribuída a Paulo. A Nova Edição, revista e
ampliada da Bíblia de Jerusalém separa Hebreus do conjunto das Epístolas Paulinas.
37 O foco do presente artigo não estará centrado neste tópico do documento, porém é
válido ressaltar que atualmente os documentos são vistos nos principais comentários
não como opostos, mas sim complementares. A Vida cristã (a fé em Cristo) é inútil se não
for acompanhada por boas obras. Neste sentido, Tiago complementaria o que foi dito no
corpus paulino.
38 Tg 1,1.
39 A Doutrina da Santíssima Trindade atingiu uma estruturação básica e certo grau de
consolidação apenas no século IV. Algumas das passagens bíblicas que contribuíram para
o fundamento do preceito são Mt 28,19; 2Cor 13; Ef 4,4-7; Jd 20-25.
40 Na antiguidade is aelita, o te o dispe s o g ego diasporá) designava os judeus
emigrados da Palestina. No contexto cristão, trata-se de cristãos de origem judaica
dispersos no mundo greco-romano. Bíblia de Jerusalém, Op.Cit., p. 2107, nota a.
41 Biblia de Jerusalém, Ibidem, p.2103.
42 Lei aqui faz referência à lei moral do Antigo Testamento formulada pela conjunção da
Autoria e datação
No tocante a epístola específica, esse é o ponto mais discutível e
sem uma resposta consensual até o momento. A principal dificuldade em
estabelecer uma autoria para o documento é a presença de não apenas
u , as algu s Tiagos o No o Testa e to. Dois deles fo a
apóstolos, mas a nenhum é cogitado o título de autor do nosso objeto
de pesquisa. Nem ao Apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, e nem ao
Apóstolo de mesmo nome, filho de Alfeu.46
O Tiago ue so ou i gu ais do ue o I o do Se ho ,
título oferecido ao personagem cuja tradição está diretamente
relacionada às figuras de Maria, em alguns momentos, e a José em
outros. Na introdução sobre as Epístolas Católicas na Bíblia de Jerusalém,
não há uma discussão profunda sobre a temática da autoria de Tiago, até
mesmo porque a proposta do texto era apresentar as sete epístolas. Ele
222
concentra a maior parte dos seus esforços na avaliação da mensagem da
carta, seja em relação à forma ou ao seu conteúdo. Contudo, Leconte
utiliza duas linhas de raciocínio para rebater a hipótese de que o autor
fosse irmão de Jesus. A argumentação pró Tiago de Jerusalém defende
ue, aso o i o de Jesus eal e te fosse o auto da o a o se
compreenderia bem a dificuldade que ela teve para se impor na Igreja
o o es itu a a i a .47 Em outras palavras, Tiago demorou tempo
demais para ser reconhecido oficialmente no Novo Testamento (século
IV) e isso inviabilizaria o irmão de Jesus como autor devido a sua
relevância na vida do Redentor.
Um segundo argumento, dessa vez, contrário à autoria de Tiago,
apresenta a proximidade entre a Epístola de Tiago com a Primeira Carta
de São Clemente Romano aos Coríntios48 e o Pastor de Hermas,49
manuscritos datados entre o fim do século I e início do século II. Assim,
como Tiago morreu martirizado no ano de 62 d.C, haveria uma
incompatibilidade cronológica entre Tiago, Clemente I e O Pastor. A
estrutura e as exortações da epístola católica, de acordo com Leconte,
estão próximas das outras duas. Desta forma, a data mais provável de
composição de Tiago varia entre o fim do século I e início do século II,
datas posteriores à morte do líder da Igreja de Jerusalém em 62 d.C.
Como ainda não foi possível apontar outro sujeito para a
elaboração da carta, é usual entre os estudiosos considerar a autoria do
líder da Igreja de Jerusalém, apesar das dificuldades históricas já
relatadas. Contudo, a admissão da autoria de Tiago de Jerusalém para
fins didáticos não impediu os dois intelectuais de pensarem alternativas
para o assunto. Como o autor do documento mostrou um domínio
surpreendente do grego, improvável para um galileu do século I, uma
224
Pelo contrário. A Epístola de São Tiago surpreende por ser um
documento voltado para o plano material, muito mais do que outros
livros de caráter contemplativo das qualidades de Deus e dos sacrifícios
realizados por seu Filho em prol da humanidade. Tiago retrata um
ambiente de intensa desigualdade social e admoesta os ricos para a
mudança desse panorama.
54 Jo 7,5.
55 Mt 12,46-50; Mc 3,31-35; Lc 8,19-21.
56 1Cor 15,7.
57 At 1,14.
225
s! . E u deles, te el o, agarrou o bastão com que
batia os panos e deu com este na cabeça do Justo, e
assim foi que sofreu o martírio.58
para a teologia cristã quando se torna o chefe da Igreja de Jerusalém após a partida de
Pedro para a Antioquia (atual Turquia). Bíblia de Jerusalém, Op.Cit., p. 1923, nota f.
60 Mc 3,31-35; Jo. 2,12. Aparentemente a ligação dos filhos com Maria é mais intensa,
pois José fica de fora das passagens nos quais a família é citada. Nessas passagens, a
Sagrada Escritura cria uma brecha para interpretar uma possível flexibilização da
estrutura aparentemente estática da Sagrada Família nos três membros clássicos. A
omissão da presença de José e a citação aos irmãos é um aspecto importante a ser
refletido.
61 RAMOS, Lincoln. A História do Nascimento de Maria: Protoevangelho de Tiago. 9ª Ed.
Petrópolis: Vozes, 2004. Mais especificamente o cap. 9, 1-2. Este manuscrito do século II
é considerado um escrito apócrifo pela Igreja Ocidental. Entretanto, a tradição dos filhos
de José, inaugurada pelo documento, é a mais aceita pelo Cristianismo Oriental.
226
Foi apenas no século IV, com Jerônimo, que a tradição em vigor
até hoje no catolicismo romano tornou-se predominante. Para
Je i o, as passage s í li as ue fazia e ç o aos i os
indicavam, na verdade, outro tipo de relação familiar com Jesus. A crença
de Jerônimo é que Tiago e os outros irmãos não são irmãos, mas primos
de Jesus.62
Ou seja, o que Raymond E. Brown deixa subentendido é o
contínuo esforço da Igreja dos primeiros séculos em afastar
gradativamente a associação da imagem de Jesus e Maria dos seus
eventuais irmãos e filhos, respectivamente. Quanto maior o afastamento
desses personagens em relação aos outros familiares, maior ainda se
tornava a percepção sacra dos mesmos para os cristãos. No caso de
Maria, além disso, entrava em contradição com um dos principais
preceitos relacionados a sua imagem: a certeza na sua Virgindade
Perpétua.63
Canonicidade de Tiago
Na antiguidade
Graças ao seu olhar social crítico, Tiago é considerado nos dias
atuais o es ito de aio o s i ia so ial do NT .64 Apesar do
significado especial creditado à carta nos estudos recentes, o histórico
da carta no cânon bíblico aponta para uma desvalorização do escrito
quando comparado a outros livros do Novo Testamento.
227
Tiago não é mencionada no que é considerado o representante
das Escrituras de Roma no final do século II, o Cânon de Muratori. Uma
hipótese para a ausência seria a glorificação do documento feita por
cristãos considerados heréticos, por contestarem os conteúdos das
epístolas de Paulo.65 Desta forma, a epístola atraía olhares cautelosos
apesar de já ser conhecida em Roma no início do século II. 66 A questão
judaico-cristã envolvendo as Epístolas Paulinas e a Epístola de Tiago foi
um dilema enfrentado pelas autoridades eclesiásticas antes, durante e
depois da canonização67 tardia de Tiago.
A iniciativa para a inclusão da epístola de Tiago no novo Cânon
partiu do cristianismo oriental, mais precisamente da figura de Orígenes,
erudito alexandrino. Em linhas gerais, o Novo Testamento até Orígenes
compreendia as quatorze cartas de Paulo (incluindo Hebreus entre elas),
os quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos, duas ou três cartas gerais
e um ou dois apocalipses.68 Como vemos, o corpus bíblico apresentava
variações em decorrência do local de culto. E a análise não deve se
limitar a uma divisão entre a interpretação grega e a interpretação latina
das Escrituras. As diferenças se faziam presentes a níveis locais, de uma
igreja para outra, em tempos nos quais uma maior centralidade de
autoridade poderia representar uma ameaça, já que organizações cristãs
se mantinham proibidas no Império.
Orígenes de Alexandria possuía um Novo Testamento maior do
que o de costume até aquele momento. No início do século III, ele dividiu
os livros incluídos entre os reconhecidos e os controversos, aqueles
passíveis de discussão. E entre os últimos, foi incluída pela primeira vez
eles como um autor contrário à lei judaica. O antipaulinismo testemunhado por Ireneu,
Tertuliano, Orígenes, Jerônimo e Epifânio está melhor documentado nos chamados
Es itos Pseudo le e ti os , o a datada do s ulo IV, as ue o po ta es itos
atribuídos tradicionalmente a Clemente I, bispo de Roma do século I. Entre eles
encontra-se a suposta correspondência entre Pedro e Tiago e uma carta do bispo de
Roma endereçada ao líder da Igreja de Jerusalém. Informações disponíveis em FABRIS,
Rinaldo. Para ler Paulo. São Paulo: Edições Loyola, 1996,p. 145.
66 BROWN, P. Op.Cit.,, p.967.
67 A palavra canonização aqui é empregada como uma referência ao processo
69 Ibidem,, p.35.
70 A redação do Novo Testamento em um único volume é uma tradição ocidental. Entre
os cristãos gregos era comum que encontrassem os livros divididos em três ou quatro
volumes. Esta prática colaborou na fixação da forma e do conteúdo dos volumes
redigidos em latim. Ibidem,, p.38.
71 Ibidem,, p.35.
72 Ibidem, p.35.
73 Um conjunto complexo de práticas oriundas da doutrina não trinitária criada por Ário,
229
ser recebidas que são Tiago, uma, uma de Pedro, e
aquela de João, uma. Alguns recebem três de João, e
além destas, de duas de Pedro, e aquela de Judas como
sétima. E outra vez a Revelação de João, é aprovada por
alguns, mas a maioria a considera apócrifa.75
Na Idade Média
Em relação ao cânon bíblico no período medieval, não ficou
demonstrado ao longo dos séculos a mesma instabilidade dos anos
iniciais do cristianismo. Isso posto, sabemos que a discussão em torno da
canonicidade de Tiago esteve minimizada. A presença na Vulgata de
Jerônimo lhe assegurava maior estabilidade, principalmente no
75 A presente tradução foi realizada por Alessandro Lima em: LIMA, Alessandro Ricardo.
O Cânon Bíblico: A Origem da Lista dos Livros Sagrados. Brasília: COMDEUS, 2007, p.69.
O texto original em grego está disponível em: http://www.bible-researcher.com/
amphilocius.html. Acesso em: 05 jun. 2016.
76 O Novo Testamento havia sido traduzido para o latim antes do ano 200, por meio de
tradições livres reunidas em um códice chamado Vetus Latina (Antiga Latina). A Antiga
latina continha todos os livros do Novo Testamento com exceção de Hebreus, de Tiago e
de 1 e 2 Pedro.
230
Ocidente.
Além da estabilidade proporcionada pela presença de Tiago entre
os vinte e sete livros neotestamentários da Vulgata Latina, outro fator
chave para efetivar a canonização da epístola foi a confirmação por parte
de Agostinho, um dos principais argumentos de autoridade durante todo
o período medieval, na sua obra A Doutrina Cristã. Segundo Agostinho,
o Novo Testamento era composto por:
Quatro livros do Evangelho: segundo Matheus, segundo
Marcos, segundo Lucas, segundo João; quatorze
epístolas do apóstolo Paulo: aos Romanos, duas aos
Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, duas
aos Tessalonicenses, aos Colossenses, duas a Timóteo, a
Tito, a Filêmon e aos Hebreus; duas de Pedro; três de
João; uma de Judas e uma de Tiago; Um livro dos Atos
dos Apóstolos e um livro do Apocalipse de João.77
Bogotá: Vicens Vives, 1985, p. 35. Por exemplo, encontramos em Rm. 13,1-7 a ordem
para a subordinação diante das autoridades constituídas. Bem como, em 1Cor. 11,3 a
visão de que o homem é a cabeça do corpo da mulher.
231
Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os
presbíteros da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-
o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o
doente e o Senhor o porá de pé; e se tiver cometido
pecados, estes lhe serão perdoados. Confessai, pois uns
aos outros, vossos pecados e orai uns pelos outros, para
que sejais curados.79
79 Tg. 5,14-16
80 SESBOÜÉ, Bernard; BOURGEOIS, Henri; TIHON, Paul. História dos Dogmas. Os Sinais da
Salvação. São Paulo: Edições Loyola, 2005, Tomo 3. p. 159.
81 VIDA PRIMEIRA DE SANTO ANTÔNIO (LEGENDA ASSÍDUA). In: Fontes Franciscanas III.
religiosos a partir do século XII demandaria um espaço exclusivo para discussão e fugiria
do objetivo inicial do artigo. No entanto, é válido o destaque para obra literária Veteris
ac Noui Testamenti Concordia, escrita por Martinho de Leão no século XII, em Isidoro de
232
Na visão de Lutero
Na sua tradução da Bíblia para o alemão, Lutero organizou os livros
neotestamentários de acordo com um critério bem particular. E esta nova
organização, apesar de abranger os mesmos 27 livros, representou uma
transformação sensível na maneira como esses livros foram interpretados nos
anos seguintes à Reforma.
O critério estabelecido por Lutero foi ordenar os livros de acordo com a
profundidade da reflexão que faziam sobre Cristo. Assim, os Evangelhos vinham
à frente, pois falavam de Cristo, na visão do reformador, melhor do que ninguém.
Em contraste, as epístolas aos Hebreus, Tiago, Judas e a Revelação (Apocalipse)
de João dedi a a pou os e sí ulos pa a u a efle o istol gi a . Esses
escritos foram assim deslocados para o final do Novo Testamento, demonstrando
claramente uma hierarquia dos outros escritos frente a esse grupo marginal. A
epígrafe selecionada para iniciar o artigo não pode ser mais clara nesse sentido. A
intenção de Lutero, como em toda introdução, é direcionar a leitura de quem
estivesse a ler. Sabemos então, que ao ler o prefácio da tradução de Lutero para
Novo Testamento, o público automaticamente, tinha a sua atenção voltada para
as poucas menções a Jesus nos respectivos documentos, segundo o
reformador.83
Como nos conta Goodspeed, a perda de prestígio dos escritos só não foi
maior graças aos organizadores da Grande Bíblia de 1539, a primeira versão
inglesa autorizada. A Grande Bíblia reconfigurou o Novo Testamento com
Hebreus seguindo as epístolas paulinas e Tiago à frente das epístolas gerais.84
233
e o rico na sua humilhação, porque passará como a flor
da erva. Com efeito, basta que surja o sol com seu calor:
logo seca a erva e sua flor cai, e desaparece a beleza do
seu viço! Eis como acabará por perecer o rico no meio
dos seus negócios!85
85Tg. , - .
86 BLOMBERG, Craig L. Neither poverty nor riches: A biblical theology of possessions.
Leicester: InterVarsity Press, 2000, p. 149.
234
igrejas e os líderes das congregações como membros necessariamente
presentes na vida de todo bom cristão. Creio, contudo, que o versículo
não deva ser interpretado de maneira literal, pois iria ao encontro da
própria função de Tiago enquanto líder da Igreja de Jerusalém.
Creio que nessa passagem, o escritor da epístola deixa de lado
u a dis uss o po es versus i os pa a de o st a u a p eo upaç o
social com os demais fragilizados, não somente materialmente, mas
principalmente fragilizados de espírito. Ao conjunto dos marginalizados
somam-se os pobres, mas também os órfãos e as viúvas. Todos
representam uma noção de pobreza ampliada, no qual a provisão pode
ser fornecida também pelo amor e pelo amparo. Os desprovidos
materialmente são carentes dos recursos necessários para a sua
subsistência. Os órfãos são carentes do amor de seus pais e do
direcionamento estreito que esses, supostamente, são os responsáveis.
O mesmo se aplica às viúvas, que nesse sentido, perderam a companhia
de seus maridos e toda a representatividade dessa figura masculina no
convívio público.
A análise da questão material da epístola segue quando mais dois
elementos são acrescidos às dificuldades encontradas pelos pobres. Em
Tg. 2,1-4, a et fo a da e t ada a ig eja de u a pessoa i a e te
estida e a de u po e o suas oupas sujas pode se u a
historieta moralizante inventada da sua cabeça, como também na
verdade contar muito bem algumas das experiências testemunhadas
pelo líder da Igreja de Jerusalém durante os encontros.87 A acepção de
pessoas combatida por Tiago nesses versículos é um dos problemas
enfrentados por aqueles que não têm. Na história contada, aquele que
não tinha trajes valiosos e uma boa aparência.
Na sequência, Tiago continua descrevendo a respeito de mais uma
fragilidade enfrentada pelo pobre, percebida por um olhar crítico em
relação ao seu ambiente social e as relações de força desiguais ali
estabelecidas.
Atentai para isto, meus amados irmãos: Não escolheu
Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos
na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que amam?
E, no entanto, vós desprezais o pobre! Ora, não são os
ricos que vos oprimem, os que vos arrastam aos
88.Tg. 2,5-7
89 BLOMBERG, C.L., Op.Cit., p. 152.
90 HARPER, A. F. A Epístola de Tiago. In: Comentário Bíblico Beacon. Hebreus a Apocalipse.
empregado com a significação religiosa de volta gloriosa de Jesus Cristo, no fim dos
236
desfavorável para os ditos opressores.
Pois bem, agora vós, ricos, chorai e gemei por causa das
desgraças que estão para vos sobrevir. Vossa riqueza
apodreceu e as vossas vestes estão carcomidas pelas
traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados e a
ferrugem testemunhará contra vós e devorará vossas
carnes. Entesourastes como que um fogo nos tempos do
fim!92.
tempos, para presidir o Juízo Final. Para maiores informações sobre o termo, consulte
http://dicionarioportugues.org/pt/parusia. Acesso em: 15 maio 2016.
92 Tg. 5,1-4
93 Segu do Ha pe Se ho dos e itos Jah e Sa aoth e a u o e is aelita pa a
Ja . HARPER, A., Op. Cit., p. .
94 Matança aqui pode ser compreendida por vários sentidos. Como nos informou
Conclusões parciais
Vimos ao longo dessas páginas as dificuldades encontradas pela
Epístola de Tiago para ingressar no cânon neotestamentário, a última
das epístolas católicas a ser reconhecida. E não foram poucas as razões
demonstradas para que a carta fosse vista sob desconfiança pelas
autoridades eclesiásticas. Mostro a dificuldade histórica de se apontar
um autor para os escritos, mesmo que ao longo do documento me refira
a Tiago, Irmão de Jesus, e líder da Igreja de Jerusalém após a partida de
Pedro, como o autor.
A suposta consanguinidade do autor com Jesus, em determinado
95 Tg. , - .
96 Dt. 24,15.
97 Tg. 5,7-9.
238
momento, atrapalhava o reconhecimento da epístola pelo fato do
personagem ter recusado a fé cristã durante a vida de Jesus e somente
tê-la aceitado durante a aparição miraculosa do Senhor após a
Ressurreição.
Vimos também como grupos opositores aos ensinamentos de
Paulo se identificaram com o documento acirrando a crença de que a
Epístola de Tiago foi escrita para negar o que Paulo tinha dito
anteriormente nas suas epístolas dificultando assim a entrada da
epístola nos compêndios canônicos.
O reconhecimento da canonicidade de Tiago se deu
paulatinamente, a partir do momento no qual algumas autoridades
eclesiásticas e intelectuais das igrejas de língua grega passaram a compor
os seus códices contendo o escrito no Novo Testamento. Personagens
como Eusébio de Cesaréia, Atanásio de Alexandria, Jerônimo, Santo
Agostinho e outros inscreveram a carta no corpo epistolar do Novo
Testamento.
Durante a Idade Média, o ponto de discussão deslocou-se para
questões mais específicas do documento como o tratamento com óleo
a enfermos acometidos pela doença ou pela velhice e a maneira como a
qual a prática confessional é abordada na obra.
O advento da Reforma Protestante na figura de Martinho Lutero
representou um baque na forma como a carta seria lida em parte do
istia is o o ide tal. A lassifi aç o epístola de palha oti ou o
título do artigo e a epígrafe que inicia a discussão. O título foi pensado a
partir da contradição criada no momento no qual Lutero decide rebaixar
uma epístola presente no corpo do Novo Testamento, reconhecida
então como uma Sagrada Escritura no Ocidente e no Oriente cristão, à
atego ia de epístola de palha , se do o tu de te as suas
o i ç es ao po to de o e ifi a u a a a te ísti a e a g li a o
escrito.
Tiago representa uma crítica ao apreço humano pelo
materialismo, como está explicitado no Evangelho de Mateus e em
o so ia o o es ito ja o eu o podeis se i a Deus e ao
Di hei o . 98 Vejo assim que a epístola busca essencialmente normatizar
uma segunda geração de cristãos da comunidade primitiva. Após
98 Mt. 6,24.
239
compreenderem e se converterem à fé defendida por Paulo, na visão do
autor da epístola, precisavam aplicar os seus ensinamentos na vida
cotidiana.
Acredito que as passagens 2,1-7; 4,13-17 e 5,1-6 apresentam os
mesmos personagens, ditos opressores, contudo vistos de diferentes
perspectivas. Com grande foco na transitoriedade terrena, Tiago
admoesta sobre como o status social e uma posição de prestígio pode se
transformar em ruínas rapidamente, principalmente se levarmos em
consideração a expectativa escatológica na qual o texto foi escrito.
A pesquisa, ainda em estágio inicial, possibilita um
aprofundamento nas interpretações exegetas para o documento.
Pensando no método comparativo, uma relação entre o documento e
um comentário posterior complementaria as primeiras impressões
delineadas ao longo do artigo. A intenção é inscrevê-lo no âmbito dos
estudos medievais ao fazer a comparação com uma documentação do
período.
240
ESPIRITUALIDADE E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN
APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE (1135-1202)
10 M GINN, Be a d. L A ate Cala ese: Gioa hi o da Fio e ella sto ia del pe sie o
o ide tale. G o a: Casa Edit i e Ma ietti, . p. .
11 O a ade e te de o p p io te po o o a ho a da a e tu a do se to selo, e o i í io do
18 I ide , p. .
248
primeiramente contra o Dragão, depois contra a besta que veio do mar
e a besta que veio da terra. O abade viu nesta longa passagem bíblica
três distinções. A primeira (Ap 16.18-18.24) descreve a queda da
Babilônia e da besta que a sustenta. Babilônia se torna símbolo para
qualquer oposição à Igreja de Roma.
A segunda distinção (Ap 19.1-10) apresenta a exultação dos fiéis
diante da ruína da Babilônia. A terceira distinção (Ap 19.11-21) apresenta
a derrota da besta e do falso-profeta. Ambos representam inimigos da
igreja desde o tempo dos apóstolos. Nos termos de Joaquim, são as
aç es i dulas ue u a ez esti e a sujeitas ao I p io Ro a o,
e e t o pe segue a C isto e sua Ig eja .19 Suas sete cabeças sucessivas
são: a) Herodes e seus judeus no reino da Judéia; b) os pagãos do Império
Romano até o tempo de Diocleciano; c) reino grego ariano; d) reino godo
ariano; e) reino vândalo ariano; f) reino lombardo ariano; g) o império de
Maomé. O tempo da sétima cabeça é o tempo da desolação da Babilônia.
Esta terceira distinção descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo
branco. Segundo o abade, esse cavaleiro pode indicar a manifestação de
Cristo para destruir a besta através de sua volta pessoal ou o poder de
Cristo operado por meio de outras figuras. Inicialmente, ele se inclina
para uma vinda pessoal. Depois, entretanto, admite que isso pode ser
explicado pela ação invisível de Cristo em sua Igreja militante.
Finalmente, as duas próximas seções do Expositio fecham o livro.
A parte sétima (209v-215r) discute o milênio (Ap 20.1-10), e a oitava
(215r-224r) a Jerusalém Celestial (Ap 20.11-22.21). Esta última
corresponde ao oitavo aetas, não mais dentro da história, mas no
seculum futurum posterior ao último tempo da humanidade.
foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine sexte etatis),
e Satanás o será no fim da sétima (in fine septime).
Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto, e fala
e últiplas opiniones . Po fi , o lui o outra alusão a Daniel, no
se tido de ue ua do fo ista a a o i aç o da desolaç o
abominationem desolationis po ue estas oisas est o pa a se
cumprir.36
abades. Ao que parece, foi uma condição de Teotônio para aceitar o cargo.
262
como privilégios papais. Aires Nascimento afirma que Pedro Alfarde
configurou a Vita Tellonis como um prólogo de toda a documentação.6
Escrita em prosa e em latim, a Vita apresenta um terço do tamanho
da hagiografia dedicada a Teotônio, e, neste curto espaço, algumas
páginas são inserções de documentos emitidos por Inocêncio II,
concedendo privilégios ao mosteiro. Assim, a obra estrutura-se em duas
partes, divididas entre antes e depois da inserção destes privilégios
concedidos pelo papa - dois capítulos anteriores e três capítulos
posteriores aos documentos. Na edição consultada, estão também
presentes os outros textos que compõe o Livro Santo.7
A introdução da Vita Tellonis Archidiaconi apresenta um topos
comum às hagiografias: é indicado o motivo de se escrever sobre
determinado santo, ressaltando a incapacidade do hagiógrafo para tão
grande tarefa. A Vita Tellonis apresenta esse elemento narrativo,
sucinto, como todo o restante da obra. O texto inicia-se com uma
referência a um trecho do livro bíblico de Eclesiastes: A ep ese taç o
de qualquer obra ou figuração é considerada merecedora de elogio
quando o termo de execução aguentar bem o início .8 Mesmo não sendo
uma citação direta, a menção remete ao sétimo capítulo do livro bíblico,
em que se discorre sobre a sabedoria, os sábios, os desvios. Ele destaca
que se deve começar bem e terminar da mesma forma, não podendo
ocorrer desequilíbrio entre as partes. Pedro Alfarde, apresenta-se
modesto, algo comum entre hagiógrafos: diz esperar cumprir bem sua
missão de escrever sobre um grande homem.
Logo após a introdução, a narrativa, diferentemente do que se
espera de uma vita, não se centra no seu suposto protagonista, Telo. O
foco é o contexto político e religioso da fundação de Santa Cruz de
Coimbra:
Foi assim que, no ano de 1131 da Incarnação do Senhor,
oitava indicção, segundo ano da rebelião do apóstata
Pier Leoni, em oposição ao piedosíssimo e santo Papa
Inocêncio II, sendo ainda vivo Luís, rei de França, e
263
estando dividida a parte cristã da Hispânia em três
domínios, cada um com sua governação [...]9
9 Ibidem, p. 55.
10 Ibidem, p. 57.
11 Ibidem. p. 58.
12 Cluniacence, D. Mauricio atuava junto à Cúria Romana para que se implementassem
as reformas papais. Neste sentido, é enviado à Península Ibérica como legado papal, e
assim trabalha por cerca de 10 anos – até se tornar bispo de Coimbra em 1099. Vinte
anos depois, é denominado arcebispo de Braga. Em 1118, envolve-se nas disputas entre
264
pa a ue Telo fosse seu o pa hei o de peregrinação até Jerusalém.
Co o tudo a hagiog afia, a a ati a da peregrinação e e e
podem ser notadas lacunas de informação – inclusive sobre D. Maurício.
O então bispo de Coimbra, que chegou à região como legado papal,
não tem sua posição inicial e sua origem franca e cluniacense citadas na
hagiografia. D. Maurício foi enviado ao então Condado Portucalense
para ajudar a implementar as reformas litúrgicas promovidas pela Cúria.
A região, até o século XI, tinha como rito moçárabe como predominante,
herdeiro da liturgia visigoda, considerada herética pela Cúria no
momento em que se passavam as ações narradas pelas hagiografias em
análise.
A primeira lacuna no relato sobre a viagem é a motivação de D.
Mauricio para a sua realização: se a motivação era espiritual, ou para a
compra de relíquias, ou para o exame de instituições locais, para buscar
referências para reformas no cabido, a narrativa de Pedro Alfarde não
explicita. Aires conjectura em nota que D. Mauricio fez a viagem como
pa te do movimento contemporâneo relacionado com as Cruzadas
p o o idas po U a o II .13
Maria Teresa Veloso também aponta este movimento como
motivação da viagem, e acrescenta a informação da busca e compra que
Mauricio fez de relíquias na Terra Santa e em Constantinopla.14 Não é,
porém, o que o texto aprese ta. Assi , o e o viajar des e e elho
o que foi narrado do que o mais comum relacionado a uma viagem à
Terra Santa: peregrinar .
O trecho a seguir demonstra a pouca ênfase dada à espiritualidade
contemplativa de Telo na Vita. E depois desta breve passagem, ele já
figura analisando instituições locais, que não são nomeadas na narrativa:
Aí, qual homem de grande discernimento como ele era,
depois de percorrer a pé, com intuito de observar com
seus próprios olhos, os lugares santos, e depois de com
inteligência perspicaz chegar à admiração e nessa
admiração ao maravilhamento por causa das sendas
o Papado e o Sacro Império Romano Germânico, sendo o antipapa Gregório VIII por três
anos. É punido, sendo prisioneiro em diversos mosteiros até a sua morte.
13 I ide , p. .
14 VELOSO, Maria Teresa. D. Maurício, monge de Cluny, bispo de Coimbra, peregrino na
Terra Santa. In: ___. et all. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Marques.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. 4v., V. 4,p. 125-135.p. 132.
265
mais diversas das várias Ordens no lugar por elas
ocupado (muito embora interligadas por um tenaz
vínculo de caridade, subindo até àquele supremo e ímpar
ponto de encontro que é o sumo bem, que não sofre
confronto com qualquer outro modo de vida), contendo
interiormente, tanto quanto podia, suspiros de dor,
e la a a: Ai de i , pois o eu deste o se
p olo gou, fi uei a o a o os ha ita tes de Ceda
(Ps. 119, 5)15
15 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p.57-9. Sendo uma edição bilingue, o pequeno trecho
destacado ocupa o final da página 57 e o início da p. 59. A p. 58 é preenchida pelo original
em latim. O parêntesis indicativo do versículo dos Salmos é indicação do editor, não
havendo esta referência no original.
16 Edição bíblica desenvolvida a partir da École Biblique, francesa, em que se realizou uma
além-Pireneus a partir do século XI. Em 1080, foi realizado o Concílio de Burgos, levado
a cabo pelo Rei de Leão Afonso VI, para proibir a liturgia moçárabe. Afonso VI era parente
de Hugo de Cluny
18 Liturgia desenvolvida no reino franco conjuntamente com Roma, a partir do século X.
266
acerca de 1113.19 O narrador preocupava-se especialmente com o
engrandecimento de Telo e de Santa Cruz, não com a historicidade exata
da narrativa. O que se queria ressaltar eram os interesses do mosteiro –
nesse caso, enaltecendo-se Telo e atribuindo a ele a precocidade de um
cargo ainda inexistente. Não se deve, aliás, atribuir a uma hagiografia o
valor histórico que se exige de uma obra historiográfica, como afirma
Ce teau: a função didática e epifânica [da hagiografia] exorbita da
história .20
Como já afirmado, o elemento narrativo principal da
peregrinação o e a e i stitu io al ue Telo te ia ealizado e
Jerusalém. Ali teria encontrado instituições exemplares, não indicadas
textualmente, que teriam sido a fonte primordial de inspiração para a
fundação de Santa Cruz, concretizada mais de vinte anos depois. Ele teria
examinado como e com que frequência os cônegos destas instituições
liam conjuntamente as Sagradas Escrituras; como era o relacionamento
entre os superiores e os cônegos; como era realizado o
acompanhamento dos mais novos, para que não se desviassem do bom
caminho e como se dava a organização disciplinar dessas ordens.
Nascimento, em nota, aponta que D. Mauricio tenha escolhido Telo
para a viagem por possivelmente compartilharem anseios de reforma
disciplinar no cabido de Coimbra.21 A hagiografia possibilita essa
interpretação ao enfatizar este exame, ao invés de se sublinhar o
itinerário dos peregrinos ou então a sua reação ao terem contato com o
sagrado. Essas questões, como destacamos, não estão totalmente
ausentes do relato, mas figuram de forma muito tênue.
Logo depois da olta da iage , o a e ispo de B aga, o ais ue
sa to 22 D. Geraldo morre, e D. Mauricio é sufragado em seu lugar. D.
Gonçalo, de oa e ria , su stitui D. Mau i io e Coi a, tornando
Telo seu corepíscopo. Pedro Alfarde faz, então, um intervalo narrativo,
sem descrever o que se passou. Provavelmente esta omissão ocorre
porque narrar o que acontecera nestes anos, uma vez que não
p.166
21 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 130.
22 Ibidem, p. 131.
267
interessava para enaltecer a fundação de Santa Cruz. A única coisa que
relatou sobre esse período é que Telo não conseguiu nem companheiros
e nem financiamento para seu projeto de fundação de um mosteiro de
cônegos regrantes. Intento surgido após a sua viagem à Jerusalém,
fomentado ainda mais com a recusa de parte do cabido de Coimbra em
adotar a liturgia franco-romana.
Também é provável que Alfarde tenha realizado esse salto no
tempo para narrar brevemente, em uma única oração, a instituição do
a tipapado de D. Mau i io, instituído papa pelo I pe ado .23 Essa
brevidade de narrativa pode ser duplamente explicada. Primeiramente,
porque D. Mauricio foi um importante companheiro para Telo e um dos
aliados do cônego. Assim, não é denominado negativamente nesta obra,
seja como antipapa, ou apóstata, ou Burdino, alcunha que lhe foi
conferida e pode significar burro ou bastardo, pois não interessava a
Pedro Alfarde desqualificar de forma veemente um aliado de Telo. Por
outro lado, tendo sido antipapa, também não poderia usar de adjetivos
positivos para caracterizar o excomungado. Assim, o narrador se limita a
informar que Maurício foi instituído papa pelo imperador. Ou seja, a
ação é do imperador, o antigo arcebispo age de forma passiva; não há,
desta forma, censuras textuais dirigidas a D. Mauricio.24
No mesmo período gramatical25 em que narra a instituição de D.
Mauricio como papa, Pedro Alfarde escreve sobre a morte de D.
Gonçalo:
Passados, porém, vários anos depois de, em Roma, o
arcebispo Maurício ter sido instituído papa pelo
imperador [Henrique V], Paio, seu arcediago, ter sido
elevado ao seu lugar como arcebispo, o prelado de
Coimbra, alquebrado não tanto pela idade, mas mais
pela doença, entregou ao céu o seu espírito e o arcediago
Telo, mais exemplar de vida e de costumes que todo o
23 Ibidem.
24 Neste momento, acontece na Península Itálica o episódio conhecido como Querela das
sempre que possível. Sendo uma edição bilíngue, pode-se perceber que Pedro Alfarde
realmente não endossava certas passagens do texto, como a aqui destacada.
268
outro clero, era requerido para bispo pelo clero e pelo
povo.26
29 Ibidem, p. 133.
30 Ibidem, p. 63.
31 Ibidem, p. 29.
32 A sagrada Sião, cidade de Deus (2Sm 5,9+), deve tornar-se a capital espiritual e a mãe
de todas os povos. Todos os vizinhos pagãos de Israel: Egito Raab ), Etiópia, Síria-
Palestina, Mesopotâmia são chamados a conhecer o Deus verdadeiro e a fornecer-lhe
prosépios .Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010, p.955.
271
reconhecem a Deus.33 Eis, com efeito, o tempo aceitável,
eis o dia da salvação.34
1988. p. 74.
272
coletânea de documentos que privilegiam o mosteiro, encabeçada por
essa hagiografia – que justifica tal inserção. Foi também a forma de
demonstrar o apoio do papa da época, fundamental num ambiente
hostil à continuidade do mosteiro, tal como foi formulado, como era
Coimbra. A inserção justifica-se ainda pela motivação principal da escrita
da hagiografia: narrar a forma pela qual um cônego almeja e realiza a
fundação de um mosteiro santo. Como se vê, Telo torna-se importante
a ponto de ter sua vida historicizada por ter inaugurado o mosteiro.
Sendo assim, a inserção de documentos que privilegiam a principal ação
definidora da santidade de Telo se justifica.
Há que destacar que os cônegos regulares de Santa Cruz de
Coimbra mostravam-se favoráveis à Reforma Papal, com a qual a Igreja
preocupava-se em atingir muitos objetivos, dentre estes: diminuir a
ingerência laica nos assuntos clericais, organizar as instituições religiosas
em torno de Roma e a moralização do clero (que perdia cada vez mais
credibilidade). Inocêncio II, ao conceder privilégios e reiterar a
necessidade de proteger o mosteiro de seus inimigos, reconhecia a
comunidade como aliada das reformas que buscava implementar.
Telo, ao regressar da viagem que fez a Pisa para pedir tutela e
proteção do Papa, alcançou seu intento, como demonstram os três
documentos que trouxe na bagagem, anexados na hagiografia. A tutela
direta de Roma sob Santa Cruz é instituída no primeiro:
damos grato assentimento aos vossos pedidos e
recebemos sob tutela e proteção a igreja de Santa Cruz
em que vos entregastes ao serviço divino, e damo-lhes a
salvaguarda do presente documento escrito,
determinando que a a disciplina canônica que, como é
sabido, com o auxílio de Deus, aí foi instituída segundo a
Regra de S.to Agostinho, seja observada inviolavelmente
pelos tempos fora.38
39 Ibidem, p. 69.
40 Ibidem, p. 70.
41 MARTINS, A. A., Op.Cit., p. 91.
274
contato do cônego com a canônica. Possivelmente, esse contato pode
ter sido feito em alguma outra viagem realizada por Telo não
mencionada na narrativa, como tantos episódios omitidos por Pedro
Alfarde.
Chegando em Santa Cruz, o quase homicida teria tido uma
indigestão. Pedro Alfarde cita o sétimo salmo, Prece do justo perseguido,
po Jo o Miguel se pa te dos ue p epa a a o laço e es a a a e
to o, as aí a a o a ue a i a Ps. , . O sal o de Da i
clama por justiça divina contra os iníquos, e ao destacar esse versículo o
hagiógrafo, vinculando-o com a indigestão, interpreta a mesma como
justiça divina a um perseguido.
Cinco meses após o regresso de Pisa, Telo cai doente, com um
tumor . Neste trecho, ele é comparado a Marta,42 porque, mesmo em
seu estado, fazia o que estava ao seu alcance para ajudar no dia a dia da
construção do mosteiro. Em pouco tempo já não seria capaz de
fisicamente ajudar no erguimento do cenóbio, então passa a cuidar
somente das plantas da edificação, tal como Tomé junto ao rei
Go dafo o , apo ta a a ati a.43
Ficando ainda mais doente, recolhe-se ao claustro, citando Davi:
E i est o, ó Deus, os teus votos que cumprirei como louvores para
o tigo Ps. , . Neste apítulo, o s timo e penúltimo, em que o
assunto principal são as ações de Telo, o primeiro plano da hagiografia
olta a se o santo . É certo que as ações narradas continuam todas
relacionadas ao mosteiro, mas agora de uma forma que Telo se
destaque, por meio das comparações com importantes personagens
bíblicos: Marta e São Tomé.
Com o mosteiro já fundado, cumprida a missão de se escrever sobre
a inauguração do mesmo, já se pode voltar a atenção para o suposto
protagonista. Mas, mesmo com o engrandecimento final da
personagem, a timidez de seu retrato persiste. É comparado a Maria
Madalena, no momento em que se encontra recluso, citando o
Evangelho de Marcos e o de Lucas. Nesta comparação, não se
exemplifica quais seriam os pecados pelos quais Telo estaria se
42 Marta é uma personagem bíblica. Juntamente com sua irmã Maria, testemunham
Jesus ressuscitar Lázaro. Marta e Maria teriam personalidades contrastantes: Maria seria
contemplativa, e Marta seria ativa. São descritas nos evangelhos de João e Lucas.
43 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 71.
275
arrependendo ao final da vida, o que o paralelismo com Madalena
permite inferir. Pensamos em duas hipóteses para esta escolha
narrativa. A primeira é a proteção da personagem, não desejando o
narrador que seus pecados fossem conhecidos. A segunda é a pouca
importância, de fato, da personagem Telo para a narrativa – sua
importância se dá por seus atos que possibilitaram a fundação do
mosteiro, histórias suas que não tenham relação com Santa Cruz, neste
caso, seus pecados, foram negligenciadas ao longo da narrativa.
Esta hipótese pode ser confirmada no prosseguimento da
hagiografia, em que se escreve sobre as virtudes de Telo. Ele é
novamente o pa ado a di e sas pe so age s í li as: e to da
promessa como Abraão, aberto à hospitalidade como Ló, exímio na
justiça o o Isaa , e pa si o a a idade o o Ja o .44 Essas palavras,
porém, são quase vazias de significado hagiográfico. Não são narradas
ações que as exemplifiquem e que qualifiquem Telo como um santo. São
apresentadas como forma de legitimar as qualidades do fundador do
mosteiro – e, neste caso, o nome, e especialmente as ações da
personagem, pouco importam. Ele tem que ser virtuoso, somente.
Segue-se a narrativa com o único trecho em todo o texto em que
se relata a espiritualidade de Telo de forma a fazer do hagiografado um
santo para além da sua maior ação santificadora: a fundação de Santa
Cruz. São descritas as orações realizadas nos últimos meses de vida, em
que se prostrava perante o altar, rezava pelo descanso, mas oferecendo-
se a viver enquanto fosse necessário para seus companheiros. A
narrativa indica que ele também preocupava-se em ensinar aos mais
novos as lições de sua vida. Então é novamente comparado a
personagens ilustres: Jacó, São Paulo, São Martinho. Como em todas as
outras comparações, o foco da narrativa encontra-se nas referências
(nem sempre com citações) a outros textos, não em ações de Telo, que
justifiquem a razão da similaridade. As ações são exemplificadas de
forma generalizante, sem episódios unificados, como se pode verificar
no exemplo abaixo:
[…] abençoava-nos levantando a mão, como se nos
tivesse tido como filhos únicos, qual outro Jacó, e, para
nos ser agradável, pedia, em longos suspiros, ao pastor
44 Ibidem, p. 73.
276
que não se deixa adormecer, que nos guardasse como
ovelhas expostas em campos abertos.45
Conclusão
Pedro Alfarde, ao escrever a Vita Tellonis Archidiaconi, produziu
uma hagiografia que quase não merece esse nome. A etimologia da
palavra nos diz que uma hagiografia é uma escrita (grafia) sobre um
santo (hagios), mas Telo, como pode-se perceber, só é protagonista da
narrativa na medida em que age para que o mosteiro fosse fundado.
Esse protagonismo particular nota-se desde o princípio da
narrativa, em que quase não se escreve sobre suas origens familiares,
sobre o percurso de sua vida – nascimento, estudos, o que o motivou a
se tornar cônego. Ao contrário, o princípio da hagiografia dedica-se ao
contexto da fundação do mosteiro, em 1131, quando Telo contava já
com cerca de cinquenta e cinco anos.47
Um evento que mereceria mais atenção para o protagonista, suas
emoções e motivações pessoais – a peregrinação a Jerusalém – passa ao
largo destas. Se teve a oportunidade apenas por ter sido convidado, seria
45 Ibidem, p.74.
46 Ibidem, p. 75.
47 Calcula-se que Telo tenha nascido em 1076, a partir da análise da própria Vita Tellonis.
277
de se esperar em uma hagiografia menos incomum que se escrevesse
sobre a reação do protagonista ao ser convidado para realizar a
peregrinação mais desejada do momento, à Terra Santa, poucos anos
depois da vitória da I Cruzada. Não foi relatado, assim como não foi
descrita qualquer passagem da viagem que não interessasse para a
fundação do mosteiro. O foco narrativo esteve nos exames das
instituições religiosas que ali se implementaram tão logo Jerusalém fora
conquistada. Pedro Alfarde quer convencer que foi ao ver instituições
exemplares na Terra Santa que Telo desejou fundar um mosteiro, e, ao
longo do texto, cita esse desejo sempre que o contexto da história
permite.
A vida de Telo não relacionada à fundação de Santa Cruz, portanto,
tem pouca importância narrativa.Como já foi ressaltado, dezoito anos da
vida do cônego foram descritos em pouco mais do que uma frase. Se
tentou implementar a Reforma Papal no cabido juntamente com D.
Maurício e D. Gonçalo, o que seria de se esperar, não foi dito. Se foi um
bom arcediago, não se conta nem um evento administrativo que o
descreva, ou uma boa relação com ao menos parte dos cônegos, ou
mesmo com os leigos da cidade de Coimbra, que tanto choraram a sua
morte, segundo a própria Vita.
Percebe-se que construiu uma relação de aliança com a rainha
Teresa, a ponto de ter comprometido sua eleição para bispo de Coimbra
por isso. Mas não se sabe como esta aliança foi construída, só se
escreveu sobre como a incapacidade dela para doar terrenos e dinheiro
teria adiado a construção do mosteiro. A história também não menciona
a batalha de São Mamede que a incapacitou, em uma tentativa de
neutralizar politicamente o fundador do mosteiro. Outra forma de
silenciar politicamente Telo foi a escrita sobre a motivação de Afonso
Henriques para preteri-lo ao bispado de Coimbra – sua suposta
inexperiência causada pela juventude do futuro rei, não o jogo de
alianças em que Telo se inseria. Se Telo tinha a expectativa de suceder a
D. Gonçalo, expectativa não enfatizada na narrativa, como um bom
religioso, figura como quem não tem ambições hierárquicas, mas
percebe-se a frustração no próprio texto, ao atribuir a Deus o desejo da
promoção do a ediago.
Narrar a fundação do mosteiro mostra-se o objetivo principal do
texto ao se interromper a história da vida de Telo com a inserção de três
278
documentos papais: carta a D. Bernardo, carta a Afonso Henriques e
confirmação da submissão direta do mosteiro à Cúria Papal. Na edição
utilizada, a hagiografia completa – da introdução à morte de Telo –
ocupa onze páginas. Metade delas é preenchida pelos documentos
papais. A vida de Telo, que já tem pouco destaque, fica espremida entre
o antes e o depois da viagem dele a Pisa para conseguir estes
documentos.
Ao final de toda uma hagiografia dedicada ao fundador de Santa
Cruz de Coimbra, não à personagem Telo, Pedro Alfarde finalmente o
coloca em primeiro plano. Mas só no seu último ano de vida. É quando
ele é elogiado, comparado a personagens bíblicas, mas as ações que
justificam suas virtudes não são contadas. É por ser o fundador do
mosteiro que Telo é santo, não importando as suas ações. Desta forma,
se o gênero hagiográfico comumente despersonaliza os protagonistas,
Pedro Alfarde o faz no limite. Mas ainda pode-se chamar seu texto de
hagiografia. Telo explicitamente é chamado de santo, pois luta para
santificar um lugar e consegue. Para tanto, segundo a Vita, ele não
realiza ações desabonadoras e é representado como o líder ativo, que
trabalhou sem cansar, até a morte, para erguer uma comunidade de
cônegos seguidores da regra de Agostinho.
279
280
A CONSTRUÇÃO DA FIGURA FEMININA NA VITA SANCTI THEOTONII
Introdução
Nos séculos XI e XII, a historiografia aponta que os elementos
característicos do ideal de vida religiosa teriam ganhado outros
redimensionamentos. Dentre eles, destacamos as chamadas vita
apostolica e vita vere apostolica, que tomavam por modelo Cristo e a
ha ada Ig eja p i iti a .2 Segundo André Vauchez,
[...] las experiencias religiosas de esta época están
caracterizadas por la voluntad de volver a la pureza
original del cristianismo. La idea de la Ecclsiae [sic]
primitivae forma se convierte en la referencia [...] de la
nueva espiritualidad que, de manera aparentemente
paradógica, busca a través de una creciente fidelidad al
testimonio de los Apóstolos y al mensaje evangélica la
respuesta a los problemas puesto por una sociedad en
mutación.3
História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central. Rio
de Janeiro: HP Comunicação Editorial, 2008.p.8.
3 VAUCHEZ, A d . La espi itualidad del O ide te Medie al. T ad. Pauli o I adiel. Mad id:
category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York, Columbia
University Press. 1989; FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no
College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2011.
282
castidade, dado, conforme o discurso, ser o desejo para a atividade
sexual indissociável de sua essência.10 Ca e ia, o e ta to, [...] ao
homem, não se entregar a carícias imoderadas a fim de evitar um estado
de agitaç o i possí el de ef ea [...]. 11
A construção discursiva12 empreendida pelos autores, partindo
justamente dos simbolismos disponíveis, dando um sentido proposital à
leitu a do fe i i o , fazia da i age da ulhe o age te desviante
da vida casta. Uma espécie de entrave à pureza corporal, fomentadora
do desejo sexual. Superar suas investidas, além de fundamental, seria
um ato de superação; de fato uma verdadeira demonstração de
santidade.13
Nossa proposta tem por fim verificar, a partir de duas passagens
da hagiografia de Teotônio14, como o autor da obra constrói uma
i age de ulhe de fo a a o e t -la em agente desviante do
propósito de castidade do religioso. Nossa problemática se fundamenta
basicamente em pensar: quais elementos narrativos o hagiógrafo
utilizou para estruturar a ordem de seu discurso, de forma a transformar
a figu a fe i i a , e últi a i st ia, e u a fe a e ta de efo ço
da santidade do hagiografado? Quais seus fatores motivadores?
Antes de nos debruçarmos à obra, inicialmente, faremos uma
breve exposição do trajeto de vida de Teotônio, explanando os dados
285
Mesmo não exercendo mais diretamente o priorado,29 tendo sido
sucedido por seu sobrinho, D. João Teotônio, permanecera nas
dependências do Mosteiro e a desempenhar reduzidas atividades até
sua morte, em 18 de fevereiro de 1162, sendo canonizado no ano
seguinte.30
286
que homem tão excelso não fique oculto, ele, [...] deverá ser imitado por
todos os odos [...]. 34
A produção da obra estava imersa em um contexto de mudanças
para a Comunidade de cônegos regrantes coimbrã.
O mosteiro de Santa Cruz, durante o primeiro priorado, teria se
desenvolvido significativamente. A obtenção de bens e direitos, por
doações, aquisições, etc., entre 1132 e 1162, seja proveniente de
particulares, de Afonso Henriques ou mesmo da Santa Sé, teriam
aumentado seu patrimônio, bem como expandido sua zona de influência
no Condado Portucalense.35 Em paralelo ao dilatamento experimentado
pelo Mosteiro, o consequente e progressivo aumento do número de
cônegos e a inserção na atividade pastoral, gerou também a necessidade
de um enquadramento maior por parte deles, buscando conter sua
dispersão em relação às diretrizes norteadoras da conduta moral na vida
ativa.
Tendo falecido Teotônio, primeiro Prior-Mor do Mosteiro
coimbrão, dois meses após, em 1 de maio de 1162, seu sucessor D. João
Teotônio convocara a primeira reunião capitular da comunidade.36 Ela
teria por fim regular e estabelecer as diretrizes bases de organização da
comunidade regrante.37 A necessidade de reafirmar as observâncias
norteadoras dos cônegos, buscando reaver a obediência aos preceitos
firmados se tornaram o fim principal.
Nesse sentido, acreditamos que logo após o Capítulo Geral, ainda
no primeiro ano de exercício do segundo priorado (1162-1181), seria
produzida uma obra narrativa em homenagem ao falecido superior do
fa ilia itates a se fu ditus a s ide at. PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. .
44 MARTINS, A. A., Op. Cit., p. . De a o do o a ª disposiç o, po e e plo: Ne o
ite u p oposse u ulie e o edat, el i at i ati o, el ase u o [...]. OLIVEIRA,
Jo athas Ri ei o dos Sa tos Ca pos de. A o st uç o da as uli idade o ostei o de
Sa ta C uz de Coi a o s ulo XII: u Estudo Co pa ado e t e as Disposiç es
apitula es de 6 e a Vita Sa ti Theoto ii. Rio de Ja ei o, . Disse taç o Mest ado
e Hist ia Co pa ada – I stituto de Hist ia, U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o,
Rio de Ja ei o, . A e o II .
291
Ora certa mulher que, segundo a podridão da carne,
parecia formosa, procurava ter com ele uma afeição
particular, e para isso forjou um bem urdido pretexto,
com palavras brandas. Mas, depois que o cervo de Deus
conheceu que era um laço enganoso que lhe estava a ser
preparado pelo sequaz do diabo, ferveu-lhe o ânimo e
com quanta força pôde cuspiu na face daquela miserável
mulher, dirigindo-lhe as devidas censuras.45
45 Es ita lati a: Queda igitu ulie , ue iu ta a is put edi e spe iosa uide atu ,
a o p iuata a i itia e pe iit, at ue ad ho ausa satis a u ate la do se o e
o fi it. Sed post ua fa ulus dei pe satellite dia uli la ueu si i de eptio is pa a i
og ouit, i fe ues e te i o spi itu, u ua to isu potuit, i fa ie illius ise i e
ulie is saliua p oie it, et i ue Re uit e p o auit. PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op.
Cit.,p. .
46 Se uaz se ia a uele ue segue, pa tid io, ue a o pa ha, ú pli e, et .
47 Es ita lati a: Multas ei hu a i ge e is i i i us p opte spe ie o po is sepissi e
tete dit i sidias. Statu a uippe ius ta e e fo ata e at, ut u de e ti uada et
i a ili ode atio e uide etu esse dedu ia. Co po e ag us ualdo ue pul he i us
292
No extrato, o autor realça os elementos que entendia como sendo
capitais para a construção imagética de um religioso, e que alimentava a
organização de seu discurso de santidade. São qualidades que delineiam
a masculinidade. Segundo Schmitt,
[...] os santos, tanto nas descrições dos hagiógrafos
quanto nas representações figuradas, portam na carne,
na vida e na morte, todos os signos de sua eleição
espiritual: seus corpos são belos, luminosos, prontos a
antecipar na terra a metamorfose gloriosa a que estão
prometidos.48
Considerações finais
O hagiógrafo, quando escreve a vida de Teotônio, busca fazer de
sua imagem um referencial; de sua vida um ideal a ser seguido,
principalmente pelos demais religiosos. A castidade, dentro do discurso,
desponta como a forma de demonstração da pureza corporal, que na
narrativa ganha uma leitura especial, se tornando a base de um ideal
proposto de vida religiosa.
A figu a fe i i a , de t o dessa l gi a dis u siva, aparece como
o agente de desvio, de desequilíbrio. Aquele que coloca em provação os
que seguem o princípio de castidade. O autor, nas duas passagens
analisadas da obra, a adjetiva como: sequaz do diabo, miserável,
bestalibidinosa e impudica. Tais são os simbolismos selecionados dentre
os disponíveis ao grupo, tendo, eles, leituras interpretativas
direcionadas, estruturando assim a noção de feminilidade em proposta.
A narrativa, como demonstramos, parece refletir as preocupações
provenientes do primeiro Capítulo Geral de 1162. Dentre elas, a
preocupação em relação à castidade, sendo ela reiterada diversas vezes,
dando sinal da importância que a sua manutenção tinha para a vida dos
cônegos. Nesse sentido, pensar possíveis desvios como fonte
motivadora da construção discursiva não parece tão falacioso. Teotônio,
como projeção dos preceitos capitulares, reuniria em sua imagem as
qualidades que se queria da própria comunidade, no caso, o devido
comprometimento com os votos feitos. Assim sendo, a ênfase
evidenciada na narrativa seria justamente o produto dos ideais
almejados para os integrantes da comunidade crúzia agostiniana. Era a
forma de construção de um referencial de enquadramento.
A ulhe , a o a, pa e e te pelo e os dois sig ifi ados: pa a
a figura de Teotônio, funciona como ferramenta de reforço de sua
santidade, dado a superação constante dos desafios que uma vida casta
pode apresentar. Já em relação aos propósitos capitulares da narrativa,
ela é sinalizada como um agende de desvio e fonte de vigilância para
manutenção dos votos feitos. A proximidade de relações deveria ser
298
evitada, tendo os cônegos por obrigação manterem a constante
prudência quanto a elas.
No paralelo construído, a personagem bíblica de José assim o fez,
bem como Teotônio. Ambos transpuseram os desafios. Reforçaram,
assim, através da superação das provas, suas posições como referenciais
a serem seguidos. Consolida-se, por fim, uma santidade imutável; um
exemplo que se pretende copiado pelos demais.
299
300
A CANTIGA 26 E O ROMEIRO PECADOR: GÊNERO NAS IMAGENS E
NOS TEXTOS NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE AFONSO X
Introdução
Afonso X, conhecido também pela alcunha de El Sábio, era filho de
Fernando III de Castela e Leão e de Beatriz de Suábia. Nasceu em Toledo,
em 23 de novembro de 1221, cidade em que também foi educado. Em
1246 se casou com Violante, filha de Jaime I, o Conquistador. Quando
Afonso tinha trinta e um anos, seu pai morreu e ele se tornou rei de
Castela e Leão, em de junho de 1252.
Durante seu reinado, Afonso X foi um verdadeiro mecenas, nas
palavras de Ângela Vaz Leão.2 Em seu governo, o rei Sábio patrocinou
diferentes obras, abrangendo vários domínios do conhecimento. Afonso
é reconhecido por ter sido uma pessoa culta que aprendeu, por exemplo,
vários idiomas, principalmente os ibéricos. Salvador Martínez sugere que
Afonso dominava galego-português, catalão, árabe, hebraico e algumas
línguas estrangeiras, como o francês, o provençal e talvez o alemão, por
causa de sua mãe, da casa dos Staufen.3 Havia em seu taller suporte
técnico e artístico que contava com a colaboração de desenhistas,
miniaturistas, pintores, poetas, legisladores, escribas, músicos, cientistas
e muitos outros. Com esse apoio intelectual, o monarca de Leão e
Castela pôde engendrar muitos trabalhos, sendo diretamente
coordenador ou financiador.
As Cantigas de Santa Maria (CSM) foram produzidas
simultaneamente com outros projetos régios, patrocinados pelo rei
Sábio, entre os anos de 1270 a 1284.4 As CSM formam um conjunto
interdependente de quatro manuscritos. O que utilizo para este trabalho
é conhecido como códice historiado ou Códice Rico, o manuscrito T-I-1
Coo de aç o de Lau a Fe dez Fe dez e Ju Ca los Ruiz Souza. Mad id: Real
Bi liote a del Mo aste io de Sa Lo e zo de El Es o ial, .
10 ALFONSO X, O SÁBIO. As Ca tigas de Sa ta Ma ia - C di e Ri o de El Es o ial T-I- - E .
I ide , p. .
310
3. A autonomia do corpo (pênis); vs. 43 e
44.
312
está indicando a legalidade, superioridade e qualidade da Lei de Deus.39
Enquanto isso, o romeiro abre uma das mãos, com a palma para frente,
sugerindo receptividade daquilo que é dito.
No te ei o e o ua to tulo le os: Co o o o ei o o tou sua
atu eza e se degolou po o selho do Dia o e Co o uis tirar do
Dia o a al a do seu o ei o .
Figura 2, vinhetas 3 e 4
39GARNIER, F a çois. Le la gage de l i age au Mo e Âge: sig ifi atio et s oli ue.
Pa is: Le L opa d D o , . . . p. .
40 Esta es e a apa e e e la p i e a iñeta, e la ui ta, e la is a olu a po
313
ado ada do Sa tiago e dadei o pa a o t asta o a do falso Sa tiago , ou
seja, o Diabo. Também, diferente da segunda vinheta, o santo aparece com uma
aureola e empunhando uma espada. Os iluminadores optaram por construir uma
imagem que se referisse ao santo como alguém que combate os inimigos da
cristandade, dentre eles, o principal deles, o Diabo.
As i hetas segui tes o t os segui tes tulos: Co o Sa tiago e o
Dia o ie a e juízo a tes de Sa ta Ma ia po a al a do o ei o e Co o o
romeiro essu giu po o de de Sa ta Ma ia .
Figura 3, vinhetas 5 e 6
lo ta to f il e te ela io a le o la p i e a, e os la es e a e la ue Sa tiago
Ped o a ude al t i u al a ia o, a odillados a te Ma ía, pa a pedi justi ia so e el
al a del o de ado, esta le i dose u a i ula i di e ta e t e a as i ge es.
FERNANDÉZ FERNANDÉZ, L. Op.Cit., , p. .
41 Ga ie p op e ue seja o se ado o es ue a de justaposiç o dos pe so age s, o
52 METTMANN, Op.Cit., - , p. .
53 It follo s the that ge de is the so ial o ga izatio of se ual diffe e e. But this does
ot ea that ge de efle ts o i ple e ts fi ed a d atu al ph si al diffe e es
et ee o e a d e ; athe ge de is k o ledge that esta lishes ea i gs fo
odil diffe e es. These ea i gs e a oss ultu es, so ial g oups, a d ti e si e
othi g a out the od , i ludi g o e s ep odu ti e o ga s, dete i es u i o all
ho so ial di isio s ill e shaped. We a ot see se ual diffe e es e ept as a fu tio
of ou k o ledge a out the od a d that k o ledge is ot pu e , a ot e isolated
f o i pli atio i the oad a ge of dis u si e o te ts . SCOTT, Joa Walla h. Ge de
a d the Politi s of Histo . No a Yo k: Colu ia U i e sit P ess, . p. .
317
pode ter uma punição moralizadora. O mais curioso é a ideia de que a
sexualidade está vinculada à carne, isto é, a partes autônomas que se
expressam na constituição física do corpo. Nesse sentido, manter o
pecador sem uma parte material do corpo evitaria, novamente, outra
relação sexual e, portanto, outro pecado. A cantiga rejeita a ideia de uma
sexualidade baseada no desejo emancipado do sujeito, preferindo
colocar o romeiro como vítima de uma mulher e de seu próprio corpo.
Além disso, para problematizarmos a castração, a ausência do
pênis seria uma punição ou uma virtude? Sendo uma dádiva, o romeiro
que ti ha al e gado o u a ulhe , passa do a oite o ela,
evitava outra tentação, como já disse. Esse pecado evoca a ideia de
libertinagem, abrindo espaço para que o Diabo enganasse o romeiro.
Sem o pênis, o romeiro não poderia mais provocar o pecado da luxúria,
principalmente se saísse em peregrinação, impedindo duas situações: a
aparição do Diabo e, ao mesmo tempo, de ter relações sexuais com
mulheres más. Maria, como juíza, previne que o peregrino caísse nessas
faltas. A castração seria uma prevenção e Maria, portanto, estaria
contribuindo para fortalecer as virtudes do personagem homem do
relato.
Politicamente, ao enaltecer a figura de Maria, a cantiga 26
expressa que a mãe de Deus é maior que Santiago, santo associado a
Compostela, e Pedro, figura ligada a Roma. Nessa cantiga, a rota de
peregrinação compostelana é vista como perigosa e lugar de atuação do
Diabo. No relato da história, Maria interveio em uma disputa em que
Santiago não foi capaz de solucionar o embate, porque o Diabo estava
levando a alma do peregrino para o inferno. Maria quebrou essa
hierarquia e, mesmo na condição de mulher, salvou a alma do romeiro,
sugerindo que ela é maior que as figuras masculinas do santo do
caminho jacobeu e de Pedro. Além disso, no texto poético, a mulher
pecadora é a antagonista de Maria. Mesmo sendo essa mulher pecante
uma personagem secundária, a cantiga 26 sugere que o Caminho de
Santiago era sensível às tentações sexuais, sendo necessária a
intervenção mariana para responder a um pedido de suprimento dos
personagens masculinos.
318
UNIÕES ENTRE BORGONHA E LEÃO - CASTELA: OS CASAMENTOS
DE URRACA E RAIMUNDO (1091) E DE TERESA E HENRIQUE (1096)
3 Utilizarei a versão crítica de Emma Falque de 1994, na qual ela utilizou cerca de 18
manuscritos e antigos fragmentos do documento para compô-la. HISTORIA
COMPOSTELANA. Madri: Akal, 1994.
4 Também conhecido como Diego II.
5 Os anos de 1100 até 1120 correspondem ao período referente ao seu bispado. Em
às Cruzadas, que na Península Ibérica significava a busca pela Espanha perdida pelos
mouros que precisava ser restituída à Cristandade. Embora considerando o apelo papal,
inúmeras batalhas entre mouros e cristãos já ocorriam no território hispânico, atraindo
cavalheiros, sem terras e títulos, com a promessa de salvação e territórios. Ibidem, p.116
11 Fundada na região de Borgonha em 909, em um contexto marcado pela luta contra a
partiu para a Espanha a pedido de Hugo de Cluny com o objetivo de servir ao rei Afonso
VI, com a missão de organizar a observância da disciplina cluniacense e aconselhar o rei.
Foi nomeado Abade no mosteiro de Sahagún em 1080, ano do casamento do rei de Leão
e Castela com Constança, rainha que o ajudou a se eleger para a Metrópole de Toledo,
após a conquista desta em 1085. SOARES,Torquato Sousa. O governo do Conde Henrique
de Borgonha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1975.p.378.
322
Sendo assim, o rei Afonso VI teria se casado com a sobrinha de
Hugo de Cluny, no ano de 1080. A historiografia15 defende que o próprio
Hugo teria ajudado a promover o matrimônio, como mais uma peça de
seus avanços políticos na Península Ibérica. De fato, a rainha Constança,
ao longo de seu casamento teria sido uma das principais incentivadoras
das reformas cluniacenses em todo o território governado por seu
marido, juntamente com o Arcebispo Bernardo de Toledo.
Da união matrimonial, o casal teria tido seis filhos, no entanto
apenas duas meninas (Urraca e Sancha) teriam sobrevivido. 16 O
casamento teria acabado com a morte da rainha e o terceiro casamento
de Afonso VI, dessa vez com Berta, de Borgonha, também não gerou
descendentes e finalizou-se com a morte prematura da rainha. O quarto
e último casamento oficial do rei teria sido com Beatriz de Poitiers,
também vinda da França. Ela era a meia-irmã por parte de pai
(Guilherme VIII da Aquitânia) da primeira esposa Inês da Aquitânia.
Dessa união, também não houve descendentes.
Afo so VI, e o a te ha pa ti ipado de u a políti a
at i o ial o os f a eses, ta se e ol eu o ulhe es
nascidas na Península Ibérica. Dos seus casos extraconjugais, a
historiografia tem notícia de dois: a primeira teria sido a nobre
324
tanto político quando estratégico da região, evitando rebeliões, ainda
mais com a morte do antigo rei Garcia, 20 em 1090.
Teresa, a filha ilegítima de Afonso VI, também se casou com um
nobre vindo de Borgonha no ano de 1096. Henrique era primo de
Raimundo por parte de mãe (sua mãe Sibila de Borgonha era irmã do
Conde Guilherme I, pai de Raimundo) e era sobrinho da Rainha
Constança, já falecida21 na época do casamento, irmã de seu pai, o nobre
Henrique de Borgonha (que morreu antes de ser o duque de Borgonha).
Deste modo, Henrique, o marido da princesa castelhana-leonesa era
sobrinho-neto de Hugo de Cluny, relação de parentesco sempre
lembrada ao longo de sua vida, visto que a busca pelos conselhos do
abade foi bastante recorrida ao longo de sua vida.
Possivelmente, Urraca não teria se casado com Henrique, que era
membro da família ducal de Borgonha e descendente de Hugo Capeto,
devido às novas medidas da Igreja Romana acerca do parentesco entre
eles. Por ele ser sobrinho da Constança, Henrique seria primo de
primeiro grau de Urraca, uma relação incestuosa, logo ilícita pelos
padrões da Igreja Romana. Já o casamento com Teresa, teria tudo para
ser lícito, pois o casal não tinha nenhum laço familiar em comum, no
entanto, em sua pesquisa, Torquato de Souza Soares22 escreve que na
época em que o casamento teria sido realizado a futura esposa, Teresa,
teria apenas dois anos de idade (Henrique teria por volta de dezessete
anos), contrariando a mudança feita pela Igreja de que ambos os noivos
deveriam consentir com a união. A quebra desta regra por Afonso VI,
segundo Soares, se motivou devido à derrota que o exército de Raimundo
teria sofrido pelos almorávidas em Lisboa em fins do ano de 1094 e início de
1095, o que motivou o casamento de Henrique e Teresa às pressas. O rei
castelhano-leonês, com medo da escassa proteção de seus territórios no leste
da península, decide separar as terras que estavam sob o comando de
Raimundo e dar a porção sul, correspondente ao anterior Condado de
Portucale, ao nobre Henrique, que recebe o título de conde, e a sua nova
esposa, Teresa. Após o enlace, Henrique não fica dependente de seu primo (o
23 I ide . p. .
24 SOARES, T., Lo .Cit.
25 MATTOSO, J. Op.Cit., p. .
326
borgonhês teria sido o seu grande benfeitor, a quem o clérigo
empenhou-se em defender seus interesses, oferecendo, inclusive, ajuda
militar.26 Raimundo, por sua vez, indicou Diego para cargos menores na
Igreja de Santiago, antes de ser o bispo, assunto que foi tratado na
fonte27 de forma resumida.
Sendo assim, o casamento dos condes da Galiza chega a ser
mencionado na passagem do Livro I, capítulo 3, porém como um detalhe,
em meio a um capítulo sobre a nomeação de um monge chamado Pedro
ao a go de ispo de Co postela: [...] Qua do ele [Ped o Ví a a]
morreu e depois de receber o casamento do Conde muito venerável
Dom Raimundo a filha muito augusta do rei católico Afonso, Arias Díaz
foi o eado ei i ho dessa te a [...] . HC I, . , t aduç o ossa 28
Neste trecho, o autor tratava sobre a sucessão de homens que
ficaram à frente da terra de Galiza antes de Raimundo, em especial Pedro
Vímara e Arias Díaz, ambos com um mau governo, que segundo a fonte,
teria sido repleto de crueldade, roubos e injustiças. É notável que neste
momento, o nome de Urraca não é nem mencionado. Apenas a
informação de ue ela se ia a filha uito augusta do ei Afo so VI j
bastava. Marta Silveira29 afirma que Urraca nascera em fins de 1080 e
início de 1081, tendo na época de seu casamento, dez/onze anos. Antes
da união, ela teria sido educada por seu aio, Pedro Ansures,30 um nobre
da confiança do rei. Após o casamento, em 1091, o casal permaneceu na
corte, possivelmente durante o período que Arias Diaz exercia o cargo
de meirinho na Galiza, e apenas em 1093, se mudam para essas terras,
acompanhando-os com o título de conde e condessa.
Na Historia Compostelana, o nome de Urraca só aparece cerca
de dois capítulos depois (Livro I, capítulo 5), quando ela é apresentada
depois do e e el ei Afo so seu pai , o filho do Rai u do
(marido) e por último ela, como sua esposa, a nobilíssima dona Urraca,
31 MATTOSO, J. Op.Cit., p.
32 SOARES, T. Op.Cit., p.
33 SILVEIRA, M. Op. Cit., p.188-189
34 Ela era a viúva do filho do rei mouro de Sevilha Al- Mutamid, que tinha sido assassinado
35 Fato que já tinha ocorrido antes com os reis Sancho III e Fernando I, que ao morrerem
tiveram seus reinos divididos entre seus filhos, sendo que o primeiro chegou inclusive a
dar o território de Aragão, em 1035, ao seu filho bastardo Ramiro I. Sendo assim, para
Henrique, o fato de sua mulher Teresa, ser filha bastarda, não era um empecilho à
herança.
36 MARQUES, A. H. O. Op .Cit., p.63
37 SOARES, T. Op. Cit., p.384
329
conquista, em 1085, foi um dos principais marcos do reinado de Afonso
VI, por representar a antiga capital do reino visigodo, a qual os povos
hispânicos descenderiam. Assim, o apoderamento desse castelo coloca
em risco o reino cristão peninsular. Outro problema que gerou essa
batalha foi a morte de sete nobres militarmente estratégicos para o
reino e a do herdeiro, Sancho Afonses, que deveria ter no máximo sete
anos, gerando uma crise sucessória em Leão- Castela.38
Para resolver a situação, Afonso VI, convoca as Cortes de Toledo
na primavera/verão de 1108, e anuncia a toda a sua corte que a sua filha
legítima Urraca, já viúva de Raimundo (há quase um ano) irá se casar
novamente com o rei Afonso I de Aragão, com o intuito de unir forças
contra a presença muçulmana. A princesa até poderia herdar o trono
sozinha, no entanto, seu pai opta por casá-la novamente para evitar
dessa forma o enfraquecimento do reino e uma crise interna promovida
entre os nobres para desposá-la, visto que seu filho Afonso Raimundes
ainda era uma criança com dois ou três anos. Essa medida não foi
favorável ao partido franco e principalmente Henrique, pois a nova
proposta de casamento romperia com toda a política borgonhesa de
colocar seu sobrinho, Afonso Raimundes, um príncipe com sangue de
Borgonha no trono.
No entanto, o casamento foi concretizado no mês de setembro do
ano de 1109, iniciando assim, a ação de diversos grupos contrários,
resultando em uma crise política nos reinos cristãos do Norte da
Península Ibérica.
A respeito da fonte Historia Compostelana, que é contrária ao
enlace, Raimundo passa a ser citado como justificativa para defender o
infante Afonso Raimundes, como herdeiro do trono, como por exemplo,
(livro I, capítulo 113):
Espanha se alegra pela reconciliação da mãe e da criança
e está feliz para o futuro de paz [...] e acreditam que
recuperar o que perderam desde a morte do rei D.
Afonso. Todo mundo quer este rei Afonso, apesar de ser
uma criança, e ansioso que ele reina no lugar de avô e
seu pai, que seguem os passos de paz e justiça do nobre
rei Afonso e do conde Raimundo. (HC. I, 113.51, tradução
nossa) 39
38 I ide , p. -
39 Se ego ija Espa po la e o ilia i de la ad e del hijo se aleg a po la futu a
330
Casamento de Henrique e Teresa na Historia Compostelana
A Historia Compostelana tem como lugar geográfico de produção
a cidade de Santiago de Compostela, localizada no reino da Galiza. Como
Raimundo e Urraca governaram a região, os autores incluíram ambos na
fonte e demostraram a relação estreita do casal com a personagem
principal. No entanto, quando se trata de Henrique e de Teresa, a fonte
é omissa. O que é justificável, visto que o Condado Portucalense, do qual
o casal era governante não possuía relevância para a estratégia política
do governo do bispo Diego Gelmírez. O máximo que poderia aparecer
seria em relação à batalha na qual o bispo (quando ainda não tinha
assumido o cargo), juntamente com Raimundo, em 1094/1095, teria
perdido Lisboa para os Almorávidas, resultando na separação do reino e
o casamento e dote para Henrique e sua nova esposa. Porém, como se
trata de um episódio de fracasso na vida do eclesiástico, os autores
preferiram ignorar, deixando-o de fora do documento. Como o objetivo
é enaltecer a vida e os feitos da personagem, essa perda não teria vez no
conjunto.
No entanto, o casal de condes portucalenses aparece ao longo da
fonte, porém com uma função de coadjuvante. Teresa aparece cerca de
8 vezes, porém todas elas são posteriores à morte de Henrique (1112),
que não é citado como seu marido. A única menção da relação deles se
dá no livro III, capítulo 6:
O infante de Portugal, filho do conde Henrique, chamado
Afonso, depois de receber a terra de Portugal arrebatou-
a forçosamente de Fernão Perez, filho do Conde Pedro
[Froillaz], que depois de deixar sua esposa legítima vivia
em adultério, seguia a mãe do infante, rainha Teresa, e
por toda aquela terra agiu como um príncipe, teve um
grande confronto e guerra com o rei Afonso, filho do
Conde Raymond e da rainha Urraca. [...] O Conde de Lara,
Pedro Gonzalez, que havia cometido adultério com a
mãe do próprio rei e tinha com ela filhos e filhas, frutos
do adultério. (HC III, 24. 1, tradução nossa).40
Considerações Parciais
O rei castelhano-leonês Afonso VI, ao longo do seu reinado
(1065/1072-1109) manteve a estratégia política adotada por seu avô e
pai em relação a uma aproximação com os reinos do Além Pirineus, em
especial Borgonha e a Abadia de Cluny, localizada nesse território. A via
franca de peregrinação à Santiago de Compostela possibilitou trocas
culturais e comerciais (doações para a construção de novos mosteiros,
por exemplo), como uma série de acordos políticos e intercâmbios de
pessoas. Como exemplo, Bernardo de Toledo, o conselheiro do rei,
Introdução
O tema que pesquisamos refere-se às formas de controle da
vestimenta na Baixa Idade Média, pensando as roupas em sua
articulação com a história. Nessa pesquisa tivemos como principal
objetivo estudar as leis suntuárias de Múrcia na primeira metade do
século XIV, sobretudo no que se refere às vestimentas e adornos. Nosso
intuito era compreender qual a relevância da aparência nessa sociedade
e porque era necessário estabelecer normatização sobre esse tema.
Temos como pressupostos a existência da moda nesse período e a
vestimenta como fator de comunicação e componente da aparência. E a
nossa principal hipótese é a de que os adornos são importantes itens de
comunicação e identificação, comuns às camadas mais altas da
sociedade, e por isso surge a necessidade de regulamentar sobre os
mesmos e obstaculizar que pessoas que não pertencessem à elite os
utilizasse.
5 I ide , p. .
6 Defi iç o de oda a pa ti das leitu as: ANDRZEJEWSKI, Lu ia a Mattos Qui ta ilha. A
oda o o Hist ia. Re ista Hist i a, S o Paulo, . , p. - , .; CALANCA,
Da iela. Hist ia so ial da oda. S o Paulo: Edito a Se a S o Paulo, . p. ; ROCHE,
Da iel. A ultu a das apa ias: U a hist ia da i du e t ia s ulos XVII-XVIII .
T aduç o de Assef Kfou i. S o Paulo: Edita Se a S o Paulo, . p. - .
7 CRANE, Dia a. Op. Cit.. p. .
337
mas apenas para grupos muito restritos que monopolizavam o poder de
criação e iniciativa.8
Segundo Lipovetsky, S a partir do final da Idade Média é possível
reconhecer a ordem própria da moda, a moda como sistema, com suas
metamorfoses incessantes, seus movimentos bruscos, suas
e t a ag ias. 9 Desse modo, o que consideramos comumente como
moda surgiu no final da Idade Média, particularmente no século XIV,
quando apareceu um tipo de vestuário diferenciado para os dois sexos:
curto e ajustado para o homem, longo e justo para a mulher.10 Lipovetsky
acrescenta: Se o lugar do aparecimento importante revolução do
vestuário é controvertido, sabe-se em compensação que muito
depressa, entre 1340 e 1350, a inovação difundiu-se por toda a Europa
o ide tal. 11 Foi a partir desse momento que as mudanças começaram,
se intensificaram e as variações tornaram-se mais correntes.
O gosto pelo luxo confirma-se especialmente na segunda metade
do século XIV e durante o século XV. Era um momento em que a
sociedade estava habituada às epibidemias mais intensas e
devastadoras, o que conferia aos contemporâneos uma necessidade de
viver intensa e plenamente, afinal, acreditava-se que a morte os rondava
em todos os momentos. Desse modo, houve uma descrença nos valores
acreditados, que acabaram resultando em grandes heresias, uma
valorização incipiente do individualismo e a falência dos quadros sociais
estabelecidos. O traje acompanhou as transformações, as perturbações
e inquietações dos espíritos, bem como refletiu as preocupações
daquele mundo que angustiava.
Segundo Christopher Berry, os artigos de luxo podem ser
alimentação, indumentária, moradia e lazer, ou seja, necessidades
humanas básicas.12 Para o autor luxo é um refinamento das
necessidades, e ainda, é universal e independente de momentos
históricos ou modelos econômicos. Gilles Lipovetsky aponta que em
19 I ide , p. .
20 CALANCA, Da iela. Op Cit, p. .
21 I ide , p. .
340
Análise
O documento que analisamos no decorrer da pesquisa foi a lei
suntuária murciana de 1332.22 Ela foi produzida no reinado de Afonso XI
e colocada em vigência, na província, pelo concelho da cidade de Murcia.
Esse concelho era formado por homens residentes em Murcia e agentes
do poder central, isto é, encarregados do rei que viviam na cidade, os
ditos homens bons, o que nos indica uma seleção, ou seja, não era
qualquer sujeito que poderia fazer parte desse grupo. Os regidores
murcianos cumpriam os ordenamentos e mandatos que chegavam da
corte sem adotar decisões próprias.23 As fontes foram produzidas, como
assinalado, em 1332. Logo foram apresentadas à comunidade, sob a
circunstância de necessidade de controle sobre a aparência e os gastos.24
O fato de a normativa ter sido elaborada na corte impossibilita
descobrir o que Murcia inovou no que se refere à legislação sobre as
vestimentas que eram usadas na cidade e às mercadorias que nela
chegavam.25 Essa circunstância poderia significar que havia uma lei
padrão para todo reino de Castela. Entretanto, o trecho e do o dano
que vem a esta cidade e aos vizinhos e moradores dela pelos adornos
que as mulheres colocam aqui nos estidos 26 indica que o regimento
possuía alguma especificidade e não era somente uma medida legal
geral.
A fonte apresenta variados detalhes sobre as peças proibidas:
larguras, comprimentos, pesos, custos, cores e materiais. Também
estipula aqueles que poderiam ou não utilizar as peças, especialmente
no que se refere a sua condição na sociedade, como a camada social a
Considerações finais
O reino de Murcia na primeira metade do século XIV passa por
situações que derivam de ações e decisões anteriores, como invasões
muçulmanas, conquista pelos castelhanos; conflitos entre as coroas entre
Aragão e Castela, e baixa demográfica. Eles tiveram efeito em diversos
aspectos, mas nos interessou destacar a ampliação da área para pecuária
ovina, o estímulo de produção têxtil, a comercialização interna e externa, com
importações e exportações, tanto de materiais elaborados como de matéria-
prima. Destacamos que a baixa demográfica não implicou na desvalorização
41Ressalta os ue estes auto es estuda a out os espaços, o leis espe ífi as. Mas, a
pa ti de seus estudos, p opo ho ue algu as de suas e pli aç es pode se apli adas
egi o de Mu ia da p i ei a etade do s ulo XIV.
347
348
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