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Programa de Estudos Medievais

(PEM-UFRJ)

1
2
Construções de Gênero, Santidade e Memória no
Ocidente Medieval

Equipe organizadora:
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Ana Paula Lopes Pereira
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira
Victor Mariano Camacho
Gabriel Braz de Oliveira
Flora Gusmão Martins
André Rocha de Oliveira
Danielle Mendes da Costa

3
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão (Coord. Geral)

Construções de Gênero, Santidade e Memória no


Ocidente Medieval. Rio de Janeiro: Programa de
Estudos Medievais, 2018.

367 f.

ISBN: 978-85-88597-25-9

1. Hagiografia. 2. Santidade. 3. Gênero. 4. Memória.


5. Medievo.

Arte da Capa: André Rocha de Oliveira


Imagem da capa: Detalhe do Psalte Wo ld Map : West i ste ,
c.1265 (MS 28681 da British Library Add )

Essa obra foi produzida no âmbito do Programa de Estudos Medievais


da UFRJ e publicada com recursos da Faperj.

Pem-UFRJ

4
Dedi a os essa olet ea a todos
ue t a alha pa a a p ese aç o do
pat i io ultu al da hu a idade.
.

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6
Sumário

Apresentação.............................................................................................9
Considerações sobre o culto aos santos mártires no reino visigodo dos
séculos VI e VII
Flora Gusmão Martins.............................................................................17
A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri Gundisalvi
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva.....................................................41
A o e o aç o das al as da Legenda Áurea: solidariedade entre vivos
e os mortos do purgatório
Laís Luz de Carvalho.................................................................................57
A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São
Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação
André Rocha de Oliveira...........................................................................77
Ma ia d Oig ies e Cla a de Assis : dois e e plos de sa tidade
laica nos Prólogos de Jacques de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de
Celano (1200-1260)
Ana Paula Lopes Pereira...........................................................................95
Os atributos conferidos à santidade feminina em dois processos
produzidos na Península Itálica no século XIII – uma comparação entre
Clara de Assis e Guglielma de Milão
Andréa Reis Ferreira Torres...................................................................115
A santidade em construção: revolvendo camadas para expor as
instituições atuantes na canonização de Domingos de Gusmão (1233-
1234)
Thiago de Azevedo Porto.......................................................................131
Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a condenação da
beguina Marguerite Porete (1250-1310)
Danielle Mendes da Costa.....................................................................161
A influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre a narrativa
da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima
Victor Mariano Camacho.......................................................................185
7
O sacramento da confissão no discurso franciscano do século XIII, a partir
dos Sermões Antonianos
Jefferson Eduardo dos Santos Machado...............................................203
Uma alternativa de leitura sobre a pobreza medieval no Novo
Testamento: a trajetória canônica da Epístola de Tiago
Gabriel Braz de Oliveira..........................................................................219
Espiritualidade e milenarismo no Expositio in Apocalypsim de Joaquim de
Fiore (1135-1202)
Valtair Afonso Miranda..........................................................................241
A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo com a Vita Tellonis
Archidiaconi
Alinde Gadelha Kühner..........................................................................261
A construção da figura feminina na Vita Sancti Theotonii
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira..................................281
A cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas
Cantigas de Santa Maria de Alfonso X
Guilherme Antunes Junior.....................................................................301
Uniões entre Borgonha e Leão - Castela: os casamentos de Urraca e
Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096)
Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira...................................................319
Consumo suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV
Thaiana Gomes Vieira............................................................................335
Bibliografia.............................................................................................349

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Apresentação

O presente volume, intitulado Construções de Gênero, Santidade


e Memória no Ocidente Medieval, apresenta conclusões do projeto A
construção medieval da memória de santos venerados na cidade do Rio
de Janeiro: uma análise a partir da categoria g e o , financiado pela
Faperj por meio da Bolsa Cientista do Nosso Estado, desde outubro de
2015. Essa pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Programa de Estudos
Medievais da UFRJ-UERJ e do Programa de Pós-graduação em História
Comparada. Participaram do desenvolvimento da pesquisa estudantes
de graduação e pós-graduação, egressos e professores doutores
vinculados a distintas instituições.
O principal objetivo desse projeto é articular as atividades de
ensino, pesquisa e extensão no estudo das memórias de santidade
elaboradas pelos religiosos mendicantes, franciscanos e dominicanos,
no século XIII que alcançaram grande impacto social no medievo e ainda
são perpetuadas na vida carioca. Para tanto, são empregadas as
categorias Gênero, Santidade e Memória.
Adotamos a definição de Gênero proposta por Joan Scott: saber
sobre as diferenças sexuais e forma primária de significar as relações de
poder. Quanto à santidade, empregamos uma perspectiva não
essencialista, ou seja, que não se vincula aos atributos daquele que é
considerado digno de veneração, mas aos valores e interesses do grupo
social que o reconhece como tal em um dado momento. Como memória,
partimos da contribuição de diversos autores, como Jacques Le Goff,
Pierre Nora, Michael Pollak, Maurice Halbwachs, Fernando Catroga. A
partir de tais reflexões, compreendemos memória como construções
sobre pessoas, eventos, lugares, etc, referenciadas no passado, que são
dinâmicas, coletivas, permeadas por relações de poder, e que recebem,
à luz dos distintos contextos históricos, ajustes, tais como recortes,
acréscimos e ressignificações, expressando-se por meio de práticas
sociais, textos, imagens, etc.
Estão reunidos nesta coletânea 17 textos elaborados por
participantes da equipe de pesquisa e que apresentam reflexões
relacionadas ao projeto seja por seu recorte temático, temporal, espacial

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e/ou teórico-metodológico. Tratam-se de investigações vinculadas à
redação de trabalhos finais - monografias, dissertações e teses -, ou às
atividades docentes. O livro é dirigido não só ao público acadêmico, mas
a todos os interessados em conhecer um pouco mais sobre a
organização social medieval.

Iniciamos o livro com o texto de Flora Gusmão Martins, intitulado


Considerações sobre o culto aos santos mártires no Reino Visigodo dos
séculos VI e VI. Por meio desse texto, recuamos no tempo, para
compreender a formação de um modelo de santidade martirial tomando
como referência o reino visigodo, estabelecido na Península Ibérica
séculos antes da constituição dos atuais estados de Portugal e Espanha.
Dentre outros aspectos, a autora discute a relação entre o mártir e o
herói e os antecedentes do martírio.
O segundo texto, A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri
Gundisalvi, de autoria da coordenadora geral do projeto, Andréia
Cristina Lopes Frazão da Silva, tem como principal objetivo contribuir
para o estudo da hagiografia dedicada a Pedro González, atualmente
mais conhecido como São Telmo, sobre a qual existem diversas dúvidas.
Telmo foi um dominicano que viveu no século XIII na Península Ibérica.
Após um período de pregação na Galiza, faleceu e foi sepultado na
cidade de Tui. Apesar de não ter sido canonizado pelo papado, sua fama
de santidade estendeu-se, chegando até o Brasil. No Rio de Janeiro, ele
recebeu especial devoção na Igreja de Santa Cruz dos Militares, ao
menos desde o século XVII.
O texto A Comemoração das Al as da Legenda Áurea:
solidariedade entre vivos e os mortos do Purgatório, de autoria de Laís
Luz de Carvalho, apresenta conclusões sobre a dinâmica da solidariedade
entre os fiéis cristãos vivos e mortos incentivada pela Igreja Romana no
século XIII. Para tanto, ela analisa o capítulo que aborda a Festa de
Finados, presente no legendário dominicano que alcançou maior fama
durante o medievo, explicando a razão de sua instituição. A festa, ainda
comemorada pelos católicos em diversas regiões do mundo, foi
instituída pela Igreja Romana a fim de estimular a encomenda de
sufrágios em benefício dos mortos, não só pelos amigos e parentes, mas
também desconhecidos.

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Também partindo de um capítulo da Legenda Áurea, André Rocha,
em A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São
Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação, discute o
teor das representações dos imperadores da dinastia Staufen, com
realce à aplicação da metodologia de Análise de Avaliação, conforme a
sistematização realizada pela psicóloga Laurence Bardin, com a adoção
do conceito de aparência de representação proposto pelo historiador
Roger Chartier. No decorrer do texto, o autor discute as relações entre
Papado, Império e Ordem Dominicana no século XIII.
Ana Paula Lopes Pereira, no texto Ma ia d Oig ies e Cla a
de Assis (1253): dois exemplos de santidade laica nos Prólogos de Jacques
de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de Celano (1200-1260), discute o
florescimento de formas de piedade laica nos centros urbanos no século
XIII, que implicaram em novas formas de santidade e novos tipos de
narrativas hagiográficas, por meio de dois exemplos de santidade
fe i i a: Ma ia d Oig ies, o jeto de u do u e to o posto po
Jacques de Vitry, e Clara de Assis, cujos gestos foram recolhidos por
Thomas de Celano, hagiógrafo da Ordem Franciscana. Por meio da
análise comparativa dos prólogos contidos nos respectivos relatos, a
autora apresenta reflexões sobre a construção da santidade laica com
perspectivas iniciais semelhantes - o beguinal e o comunitário
franciscano-, mas com posteridade diferente, devido a força do
enquadramento e o recrudescimento da ordem eclesial.
Andréa Reis Ferreira Torres, em seu texto, Os atributos conferidos
à santidade feminina em dois processos produzidos na Península Itálica
no século XIII – uma comparação entre Clara de Assis e Guglielma de
Milão, também discute a questão da santidade feminina no século XIII, a
partir dos casos de Clara de Assis, que foi canonizada, e Guglielma de
Milão, cujo culto foi condenado. O objetivo central desse texto é analisar
os atributos de santidade conferidos pelos depoentes às suas figuras de
veneração, tal como registrados no Processo de Canonização de Clara de
Assis e no Processo Inquisitorial contra os Devotos e as Devotas de Santa
Guglielma. A autora desenvolve seu texto por meio da identificação dos
pontos de convergência e divergência entre as características que foram
associadas a pessoa venerável nos dois ambientes, a saber, a
comunidade religiosa feminina institucionalizada reunida em torno de

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Clara de Assis e em um grupo mais heterogêneo de devotos, como
aquele envolvido na devoção a Guglielma.
Thiago Azevedo Porto, em A santidade em construção: revolvendo
camadas para expor as instituições atuantes na canonização de
Domingos de Gusmão (1233-1234), aborda o tema do reconhecimento
social da santidade. O autor, por meio de um estudo de caso, apresenta
reflexões sobre o processo de canonização do fundador da Ordem dos
Pregadores, considerando-o como o resultado de um projeto coletivo,
entrecruzado por interesses institucionais e de diversos agentes sociais.
Em Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a
condenação da beguina Marguerite Porete (1250-1310), Danielle
Mendes da Costa apresenta e discute um caso de execução ocorrido em
1º de junho de 1310, na cidade de Paris, quando uma multidão de
pessoas – entre as quais altos dignatários do clero e da nobreza –,
testemunhou a morte de Marguerite Porete, condenada como herege
relapsa. Esse acontecimento foi registrado em uma crônica francesa, que
relata o desfecho do processo inquisitorial desta beguina, acusada de
escrever um livro e ensinar a sua pedagogia espiritual às pessoas simples.
O presente capítulo tem por principal objetivo identificar, no referido
livro, os elementos que poderiam ter representado uma ameaça à
instituição eclesial e, por extensão, culminaram na condenação de
Porete.
A análise das narrativas relacionadas a pregação do frade menor
Antônio de Lisboa/Pádua ambientadas em Pádua, cidade localizada ao
Norte da Península Itálica, presentes na Beati Antonii Vita Prima, é o foco
do capítulo Influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre
a narrativa da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima, de
autoria de Victor Mariano Camacho. A Vita, também conhecida como
Legenda Assídua, foi o primeiro texto hagiográfico que se tem registro
dedicado a relatar a vida e os milagres do religioso português canonizado
em 1232 pelo papa Gregório IX. O autor discute, por meio da análise da
legenda, a atuação pastoral dos Frades Menores para garantir a
dominação pontifícia, por meio da prática dos sacramentos, e a
influência da própria ordem religiosa no âmbito urbano.
Jefferson Eduardo dos Santos Machado, também mantém o foco
na pregação franciscana, no texto O sacramento da confissão no discurso
franciscano do século XIII, a partir dos Sermões Antonianos. O autor
12
demonstra como a Ordem dos Frades Menores, surgida no início do
século XIII, trouxe renovação para a Igreja Romana, pois Francisco de
Assis e seus primeiros companheiros apresentaram uma proposta
diferenciada face às experiências religiosas institucionalizadas
anteriores. Com o desenvolvimento e institucionalização do movimento
inicial, os Frades Menores tornaram-se referenciais para o pensamento
teológico e a pregação douta. O primeiro a alcançar destaque foi Antônio
de Lisboa/Pádua, autor da obra Sermões Dominicais e festivos e
pregador, que marcou a primeira geração dos irmãos seguidores do
Poverello. No texto são analisadas as orientações sobre o Sacramento
da Reconciliação ou Confissão que o pregador franciscano apresenta em
seus Sermões para os Domingos da Quaresma, articulando-as com o
ideário da Igreja Romana.
Gabriel Braz de Oliveira, com o objetivo de buscar os fundamentos
da pobreza evangélica adotada pelos mendicantes no século XIII,
seguindo a sugestão de Michel Mollat, para quem o debate sobre o
abuso da riqueza foi resgatado da Epístola de Tiago, aborda a trajetória
desta obra no cânone neotestamentário. Assim, em Uma alternativa de
leitura sobre a pobreza medieval no Novo Testamento: a trajetória
canônica da Epístola de Tiago, os momentos de contestação e
consolidação desta epístola são abordados fazendo referência a
períodos e personagens que possuem alguma relação com a
transmissão, circulação e repercussão deste texto durante o medievo
Ainda buscando discutir como os textos neotestamentários foram
lidos no medievo, Valtair Afonso Miranda analisa a sétima seção do
Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore, no capítulo Espiritualidade
e milenarismo no Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore (1135-
1202). O autor discute como Joaquim rompe com a tradição agostiniana,
que identificou o milênio joanino com a história da Igreja, e propõe em
seu lugar um período de felicidade na terra para toda a humanidade, sob
a direção do Espírito Santo. O abade esperava algum tipo de
continuidade entre o presente e o futuro, mas com a transformação de
suas instituições sociais, especialmente da Igreja. Este período de
descanso e contemplação teve como ponto de partida as reflexões
hist i as de Joa ui e a t adiç o do ef ig io dos sa tos . A
emergência histórica desta visão de milenarismo teve grande impacto
e t e os f a is a os, e espe ial e t e os ha ados espi ituais .
13
Voltando o olhar novamente para a Península Ibérica, Alinde
Gadelha Kühner, em A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo
com a Vita Tellonis Archidiaconi, estuda em perspectiva comparada dois
textos hagiográficos vinculados ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,
um dos mais importantes cenóbios portugueses no Medievo. O
estabelecimento desta instituição, segundo a tradição, deu-se por meio
da idealização do arcediago D. Telo e do priorado de D. Teotônio. Assim,
ainda no século XII, dois textos foram escritos quando da morte dos
fundadores: a Vita Tellonis Archidiaconi e a Vita Theotonii. A autora
discute em seu texto como as representações de D. Telo se articulam à
promoção da legitimação do mosteiro.
Ainda tendo como foco a produção hagiográfica coimbrã,
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, em A construção da
figura feminina na Vita Sancti Theotonii, analisa a concepção acerca do
fe i i o a Vita Sancti Theotonii. O autor parte de duas questões
principais: quais elementos narrativos o hagiógrafo utilizou para
est utu a a o de de seu dis u so, o e te do a figu a fe i i a , e
última instância, em uma ferramenta de reforço da santidade do
hagiografado, e quais foram os fatores motivadores de tal construção
narrativa. O objetivo da análise é contribuir para a compreensão da
noção crúzia sobre a feminilidade delineada na segunda metade do
século XII.
Dentre as muitas figuras veneradas no medievo que continuam a
despertar a devoção de milhões de fiéis do mundo inteiro na atualidade,
encontra-se Maria, a mãe de Cristo. Guilherme Antunes Júnior, em A
Cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas
Cantigas de Santa Maria de Afonso X, debruça-se sobre tradições
relacionadas a esta santa. Para tanto, analisa um dos milagres presentes
na obra Cantigas de Santa Maria, elaborada na região de Castela e Leão
no século XIII. Seu principal coordenador e financiador foi o rei Afonso X,
entre os anos de 1270 a 1284. A cantiga em questão é a 26, cuja narrativa
central trata do pecado de um romeiro que teve relações sexuais antes
de iniciar uma peregrinação para Santiago de Compostela. O Diabo
aparece na história como personagem que engana o peregrino e tenta
levar sua alma para o inferno. Com a intervenção de Maria, a alma do
romeiro é salva, atestando o poder milagroso da santa. Para análise

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dessa cantiga, o autor utiliza a categoria gênero para traçar reflexões
sobre o sentido político e cultural desse milagre.
Saindo do ambiente eclesiástico, mas atenta às suas influências
em outras esferas da organização social, Mariane Godoy da Costa Leal
Ferreira, em Uniões entre Borgonha e Leão – Castela: os casamentos de
Urraca e Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096), tem como foco
a visão eclesial sobre dois enlaces matrimoniais ocorridos no final do
século XI: Urraca e Raimundo e Teresa e Henrique. Neste artigo são
analisadas as menções a tais casamentos a o a Histo ia Co postela a,
ue foi redigida na primeira metade do século XII, na Sé episcopal de
Santiago de Compostela, tendo como protagonista o epíscopo Diego
Gelmirez. O objetivo é discutir qual a relação entre a perspectiva
apresentada na obra sobre os referidos casais, relacionando com as
estratégias políticas acionadas pelo bispo protagonista.
Ainda tendo como foco o ambiente laico, Thaiana Gomes Vieira
estuda as formas de controle da vestimenta na Baixa Idade Média,
pensando as roupas em sua articulação com a história em Consumo
suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV. Para tanto, a
autora faz um estudo de caso: as leis suntuárias de Múrcia na primeira
metade do século XIV, sobretudo, no que se refere às vestimentas e
adornos. O principal objetivo é discutir qual a relevância da aparência
nessa sociedade e o porquê era necessário estabelecer normatização
sobre o tema. A autora parte de dois pressupostos iniciais: é possível
falar de moda no período e a vestimenta foi um fator de comunicação e
componente da aparência.

Os textos apresentados nesse livro formam uma pequena


amostragem da multiplicidade da organização social no medievo.
Esperamos que os materiais aqui apresentados venham a suscitar novas
reflexões e questões, motivando a leitura de outros trabalhos
acadêmicos. Para auxiliar nessa tarefa, reunimos ao final toda a
bibliografia citada nos capítulos, que poderão ser um ponto de partida
para a ampliação das leituras.

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16
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CULTO AOS SANTOS MÁRTIRES NO
REINO VISIGODO DOS SÉCULOS VI E VII

Flora Gusmão Martins1

Martírio e santidade
O perfil do santo vai se modificando ao longo da história do
cristianismo. Neste texto pretendemos discutir algumas questões
relacionadas ao modelo de santidade martirial, tendo como base o reino
visigodo dos séculos VI e VII, período no qual se insere a pesquisa que
realizamos no mestrado. No período das perseguições aos cristãos, os
mártires são os santos por excelência. Associados por muitos
historiadores com os heróis clássicos, os mártires são aqueles que são
mortos por sua fé em Cristo e sua fidelidade ao cristianismo, e por isso
tinham acesso à glória do paraíso e da vida eterna. O santo é um
mediador, alguém que estabelece contato entre o céu e a terra, é um
intercessor, e a comemoração do seu martírio é a comemoração de seu
nascimento ao lado de Deus, para a vida eterna2. Ser santo, a princípio,
era morrer por e como Cristo, ou seja, desde o começo santidade e
martírio eram inseparáveis. Porém, após as perseguições, a instituição
eclesiástica aplica o conceito de santidade de forma a englobar também,
segundo Andrade, os vivos, venerando pessoas por sua vida exemplar
tanto quanto pela sua morte. De acordo com Andrade os santos eram
exemplos que traduziriam uma visão de mundo, ou seja, passavam os
valores morais da instituição eclesiástica. Segundo a autora:
O destaque a um determinado modelo de santidade revela
uma série de manifestações, gestos e palavras, traduzindo
uma visão de mundo integrada por crenças e práticas
coletivas, conectando o indivíduo a um determinado grupo,
fornecendo elementos para a compreensão dos modelos de
santidade atuais.

Ainda, a autora afirma que dentre os modelos de santidade


predominantes na história do cristianismo, é dado destaque ao mártir,

1Mest e pelo P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia Co pa ada PPGHC/UFRJ .


2VAUCHEZ, A. O sa to. I .: LE GOFF, J. Di . . O Ho e Medie al. Lis oa: Edito ial
P ese ça, . p. .
17
primeira modalidade de santo.3 Neste sentido, houve no período alto-
medieval uma preocupação do episcopado com a divulgação do culto de
três modelos diferentes de santidade: o mártir, modelo mais antigo de
santo, que, além de seu caráter de exemplaridade, também seria, por
seu prestígio e antiguidade, legitimador de dois modelos mais
contemporâneos à conjuntura estudada, os santos bispo e asceta. O
mártir legitimaria, assim, a santidade do bispo a partir da associação
deste e da comunidade sob sua responsabilidade, a um santo mais antigo
e conhecido. Legitimaria também o santo asceta a partir da lembrança
do martírio, da associação com o sofrimento do mártir e da ampliação
do conceito de martírio para um martírio da alma, por meio de práticas
ascéticas. Neste sentido Castillo Maldonado também afirma que as
raízes da santidade cristã estão nos martírios da época das perseguições,
mas que em tempos de paz outros modelos de santidade foram
buscados e assimilados ao original, ou seja, tornou-se possível atingir a
santidade por meio da disciplina ascética.4 Sobre a santidade do asceta,
Souza afirma que os mesmos movimentos e significados do martírio
estão presentes, só em outra extensão e motivo, e que, como no
martírio, o asceta deve ignorar o apelo de dores físicas, superar os
imperativos corporais.5 Destacamos aqui que o bispo visigodo Isidoro de
Sevilha apresenta esta perspectiva ainda no período estudado,
defendendo que existem dois tipos de martírio: o do sofrimento
material, como nas perseguições, e o que consiste na virtude oculta do
espírito. Sobre este segundo o bispo afirma que muitos resistem às
armadilhas do inimigo e são firmes diante de todos os desejos carnais, e
assim se tornam mártires em tempos de paz, pois, se as perseguições
tivessem continuado, poderiam ser mártires autênticos.6

3 ANDRADE, Sola ge Ra os de. A eligiosidade at li a e a sa tidade do ti . P ojeto


Hist ia, . , . p. .
4 CASTILLO MALDONADO, Ped o. A gelo u Pa ti ipes: The Cult of the Sai ts i Late
A ti ue Spai . I .: BOWES, ki e KULIKOWSKI, Mi hael. Hispa ia i Late A ti uit : u e t
pe spe ti es. Bosto : B ill, . p. - .
5 SOUZA, N i de A. Hip teses so e a atu eza da sa tidade: o sa to, o he i e a o te.
Sig u , S o Paulo, . , , p. - .
6 ISIDORO DE SEVILHA. Eti ologías. Mad id: Bi liote a de Auto es C istia os. Edi i

Bili gue. Te to lati o, e si española otas: Jose O oz Reta Ma uel Ma us


Cas ue o. . p. .
18
Ap s o pe íodo das pe seguiç es e os e t o su gi o odelo do
sa to ispo, a uele ue te o ais alto a go a hie a uia e lesi sti a
e te u de e pa a o a o u idade ist . O ispo ge al e te
asso iado p ospe idade de sua p p ia o u idade, e ju to ao ulto
desse o o odelo de sa tidade e os essu gi , o aio fo ça a
Hispa ia isigoda, o ulto aos ti es. Estes se p e o se a a e to
g au de p estígio de t o do istia is o, po este o e to e os
u a p eo upaç o e efo ça o seu ulto, p eo upaç o esta dos
p p ios ispos. Os ti es e a asso iados sua idade de o ige ou
idade o de sof e a o a tí io, ge al e te ta lo al o de se
e o t a a sua elí uia, e ad ui ia a fu ç o de pat o us eleste da
idade, efo ça do assi o p estígio do seu ep ese ta te, o ispo. As
elí uias fo a se to a do ada ez ais i po ta tes o ulto aos
sa tos e fo a o jeto de ho e age s ada ez aio es, ofe e e do,
desse odo, o u idade u a a a opo tu idade de ost a sua
u idade e i teg a g upos a gi ais.
Pode os pe sa , po ta to, ue e u o te to e ue a
i stituiç o e lesi sti a us a fo tale e o pode o ei o isigodo, se ia
i te essa te pa a o epis opado eto a o ulto aos ti es, o s pela
elaç o ue os sa tos esta ele e o os fi is, as ta po o ta
do p estígio ue o ulto pode t aze pa a as o u idades. As
hagiog afias, e si li o p oduzido pelo epis opado ou so a
supe is o do g upo, se e pa a difu di os ultos de aio i te esse
da hie a uia e lesi sti a, seja pela lo alizaç o do sa tu io ou da
elí uia, ou o o u a fo a de i o po a e sa aliza u ulto
e iste te. Os ti es, apesa de se e sa tos de u passado ais
dista te e ue os ist os e a pe seguidos, fo a os p i ei os
odelos de sa tidade e s o pa te esse ial da o st uç o da ide tidade
ist . No ei o isigodo dos s ulos VI e VII o ti ua se do e e plos
de o duta, o ais o o fo a de i e ti a o a tí io físi o, as si
u a tí io espi itual, o ual o ist o de e e o t a o ti u
e e plo de fo taleza dia te de ual ue sof i e to e o pe de a sua
f .

O fenômeno do martírio
Como já mencionado, a historiografia demonstra que o perfil do
santo vai se modificando ao longo do período medieval. De acordo com
19
André Vauchez tudo provém do culto aos mártires, que em um momento
inicial foram os únicos santos venerados pelos cristãos, e conservaram
na Igreja um prestígio considerável.7 A teóloga Candida Moss apresenta
a dificuldade em definir o fenômeno do martírio e saber suas origens. De
acordo com ela o termo martys fazia referência à testemunha ou ao
testemunho apresentado por um indivíduo em um julgamento, tendo
sido utilizado primeiramente em um contexto legislativo. Com o tempo
e sua maior difusão, o termo foi gradualmente modificando seu
significado para como o entendemos hoje: um indivíduo que prefere
morrer a renunciar a sua fé em Cristo ou à obediência aos seus
ensinamentos. De acordo com ela, dois séculos após a morte de Jesus, o
significado do termo teria se transformado de testemunha ocular para
um cristão executado. Moss afirma que o significado do termo martys
foi transformado discursivamente pelas primeiras comunidades cristãs
mesmo depois de sua primeira aplicação para definir um cristão
executado.8
Já Miranda, historiador e teólogo, atenta para a definição de
martírio de Strathmann, pensada sob uma abordagem etimológica, na
qual as formas básicas mais antigas seriam os nominativos gregos
martys, martyros e martyr, que parecem ter se originado da raiz grega
smer, ue pode se t aduzida o o te e e te , le a , assi
como a palavra grega mermeros a uele ue deli e a ou os e os
mermairo e mermerizo o side a , deli e a . De a o do o este
autor, os termos latinos memor e memoria têm uma associação íntima
às expressões gregas e, portanto, o mártir era aquele que lembrava, que
tinha conhecimento de algo e podia apresentar sua palavra sobre o
assunto em questão. Seguindo esta linha, Miranda afirma que então o
verbo martyrein sig ifi a a se u a teste u ha ou teste u ha
algo . Ju to o out os te os o sig ifi ados pa e idos, apa e ia
com esta acepção mais em demandas judiciais, na versão grega das
Escrituras judaicas e no Novo Testamento cristão. Porém, na segunda
metade do século II, o sentido do termo já aparece de forma mais
ampliada no documento intitulado Martírio de Policarpo. Neste, martírio
já aparece como a morte da testemunha e mártir como a testemunha

7I ide , p. .
8 MOSS, Ca dida R. A ie t Ch istia Ma t do – Di e se p a ti es, theologies, a d
t aditio s. Ne Ha e , e Lo d es: Yale U i e sit P ess, . p. - .
20
que morre, e agrega-se também a noção de sofrimento. Assim o autor
defende que no cristianismo do século II o termo mártir passa a designar
alguém que experimentava o sofrimento e, eventualmente, a morte, em
função de sua crença na religião cristã.9
Neste sentido ressaltamos aqui que o bispo contemporâneo à
conjuntura com a qual nos preocupamos, Isidoro de Sevilha (c.560-636),
na sua obra denominada Etimologias, afirma que mártir é a palavra grega
para significar testemunha, pois os mártires sofreram e padeceram para
dar testemunho de Cristo e lutaram até a morte para defender a
verdade. O bispo também ressalta que, apesar de ser factível chamar os
mártires de testemunhas, é preferível chamá-los pela palavra grega por
ser já mais familiar à igreja10.

Relação mártir e herói e o discurso sobre o martírio


Alguns autores defendem uma analogia entre os mártires e heróis
gregos e romanos, perspectiva esta da qual o historiador Vauchez
discorda. Para ele a morte seria o ponto essencial de diferenciação entre
os dois, pois, na Antiguidade Clássica, a morte seria uma fronteira
intransponível entre os homens e os deuses, enquanto que para o
cristianismo, seria justamente por terem morrido como seres humanos,
seguindo Cristo e sua mensagem, que os mártires teriam acesso ao
paraíso e à vida eterna. Ainda neste sentido, Vauchez afirma que o santo
é o homem por meio do qual se estabelece um contato entre o celestial
e o terreno. Assim, o historiador defende que o culto aos mártires teria
se enraizado na característica mais autêntica do cristianismo em relação
às outras religiões, a salvação.
Apesar disso, o autor ressalta que no período denominado
Antiguidade Tardia11 já existia uma crença bastante difundida em seres
protetores dos indivíduos, como demônios, gênios, anjos, etc., e alguns
bispos teriam se empenhado em transferir para seres humanos, os
santos, a relação que as pessoas tinham com esses seres. Desta forma o

9 MIRANDA, Valtai Afo so. M ti es a A tiguidade e a Idade M dia. I .: SILVA, A d ia


C. L. F az o da. SILVA, Leila Rod igues o gs . M ti es, o fesso es e i ge s. O ulto aos
sa tos o O ide te Medie al. Pet polis: Edito a Vozes, . p. - .
10 ISIDORO DE SEVILHA, Op. Cit., p. .
11 Co eito utilizado po di e sos histo iado es pa a se efe i ao pe íodo fi al do I p io

Ro a o e i í io da Idade M dia.
21
culto aos mártires teria, segundo o autor, se difundido por meio do santo
patrono, que tem uma relação com os cristãos baseada nas mesmas
noções daquela antes mencionada: os santos seriam protetores de seus
devotos, agindo como intercessores na vida dos fiéis e mediadores em
sua salvação.12
O historiador González Fernández apresenta um panorama do
debate que relaciona o culto aos santos com o culto aos heróis antigos.
De acordo com ele atualmente é aceito que certas características da
religiosidade pagã sobreviveram sob fórmulas cristãs, e que é possível
que essa cristianização de modelos pagãos tenha sido motivada, em
certa medida, por dar conta de um novo mundo cristão para fiéis que
haviam nascido em um universo cultural e religioso pagão. González
Fernández sublinha que a discussão sobre este assunto, iniciada já em
princípios do século XX, tem sido fundamental para o estudo dos
mártires e seu culto. Segundo ele, já nos primeiros anos do século XX
autores como Saintyves e Lucius propuseram que os mártires e santos
eram sucessores dos deuses e heróis pagãos (proposta esta que tinha
influência da obra de Gibbon do século XVIII, Declínio e Queda do Império
Romano, a qual apresenta uma perspectiva negativa da instituição
eclesiástica). De acordo com Souza:
A obra de Saintyves tem ainda hoje o mérito de ter lançado a
inquietante sugestão da existência de um elo entre
cristianismo e mitologia, embora este termo ainda fosse
entendido pelo autor de forma muito limitada. No entanto, o
envelhecimento de sua pesquisa é inequívoco. Dedicada ao
culto aos santos, a investigação se lança na elaboração de um
inventário de datas, locais e nomes, que obscurece por
completo a apreciaç o da sa tidade e si. … Ne hu a
ap o i aç o e t e istia is o e 'paga is o' feita o
terreno dos conceitos ou do sentimento devocional.13

Segundo González Fernández a perspectiva contrária, que


discordava da influência do mundo pagão no cristianismo, teve como
grande defensor o bollandista Delahaye. De acordo com Souza, Delahaye
de ate as e i is ias pag s o ulto aos sa tos a pa ti da a lise
de uma vasta documentação cristã. Souza afirma que a perspectiva de

12 VAUCHEZ, A., Op. Cit., p. .


13 SOUZA, N i de A., Op. Cit., p. .
22
Delaha e defe de ue a i ge ia de ele e tos pag os o ulto aos
santos se explicaria pela livre utilização dos modelos antigos pelo
cristianismo para expressar-se e pela entrada espontânea de aspectos
formais no culto. Segundo ela:
A distinção mais importante encontra-se, para o autor, nos
fundamentos teológicos e nas distâncias entre os homens e
a divindade no cultos dos santos e dos heróis. A aproximação
entre estes cultos estaria ligada à analogia formal entre eles,
derivada de circunstancias similares de implantação, e não a
um retorno inconsciente ao paganismo ou a uma ligação
secreta com a velha religião.14

Outros autores, de acordo com o historiador González


Fernández, defendem uma progressiva substituição da personalidade
dos heróis pela dos santos, porém com uma nova escala de valores.
González Fernández também ressalta que frequentemente lendas
mitológicas que contam as façanhas e proezas dos heróis, ao serem
comparadas com relatos hagiográficos, apresentam numerosos
aspectos coincidentes. O autor, porém, atenta que, apesar das evidentes
semelhanças, existem também uma série de diferenças substanciais,
sendo a principal que o herói pagão não apresenta a capacidade de
interceder pela salvação dos fiéis, já que não é eterno como o mártir,
que adquire a salvação eterna, o dom profético e é, essencialmente,
intermediário e intercessor entre os seres humanos e o divino, 15
concordando assim com Vauchez.
Já Souza defende que a ligação histórica da Idade Média com a
Antiguidade induz à aproximação entre o culto aos santos e o culto aos
heróis cívicos romanos, porém não a justifica completamente. De acordo
com ela a noção de herói está presente em praticamente todas as
culturas humanas e a busca de uma herança histórica linear entre as
tradições greco-latinas e cristãs não se sustenta. Porém a autora
reconhece que os estudiosos que defenderam a aproximação entre os
dois cultos foram sensíveis a um aspecto que une a representação de
heróis antigos e santos: ambos são seres humanos mortos, eleitos pela
comunidade para um existência memorável indefinida e, cuja escolha

14I ide , p. .
15GONZÁLEZ FERNÁNDEZ, Rafael. El ulto a los ti es sa tos e la ultu a istia a.
O ige , e olu i fa to es de su o figu a i . Kalako ikos, . , p. - , .
23
dos sujeitos deriva da identidade do grupo para com eles e de eventos
que indicam uma excepcionalidade extra-humana. Para a autora o novo
sistema de valores expresso pelos santos cristãos foi capaz de recobrir
significados de indivíduos socialmente vistos como excepcionais ou até
mesmo como divindades para além dos limites do paganismo clássico.
Segundo ela santos e heróis eram, primeiramente, seres humanos
distintos por serem ao mesmo tempo vivos e mortos, por realizarem a
vinculação entre o aqui e o além. Souza afirma que as convicções cristãs
convergem para a atuação do morto especial entre os vivos e sobre as
realidades materiais.16
Neste sentido os filólogos Sanz, Codoñer Merino e Martín
exemplificam essa relação entre o culto pagão e cristão em seu livro
sobre a Hispania visigótica e mozárabe com uma história contada em
uma das obras de Santo Agostinho: de acordo com eles, o santo conta
que sua mãe tinha o costume, do norte da África, de celebrar o
aniversário dos mártires indo aos seus santuários com uma cesta de
alimentos, pão e vinho principalmente, e dividi-los com outras pessoas
que também estivessem no local. Porém, quando a mãe vai visitá-lo em
Milão, descobre que esse costume havia sido proibido por Ambrósio,
bispo da cidade, e somente a eucaristia poderia ser celebrada nos
santuários dos mártires. Para os autores, Agostinho, ao mencionar este
episódio em sua obra, condena a prática realizada por sua mãe por ser
muito similar ao festival pagão em honra dos mortos. Como lembram os
autores, refeições comemorativas partilhadas em tumbas eram de fato
um recurso padrão da prática memorial romana, e bispos como
Ambrósio e Agostinho, que estavam empenhados em formar a prática
religiosa cristã nos primeiros séculos, claramente desencorajavam-na
devido a sua similaridade com o paganismo. Os autores também
atentam para a própria natureza do culto aos santos, que estava ainda
sendo moldada por debates e recomendações realizadas por bispos
como os dois antes mencionados.17 Peter Brown também escreveu um

16I ide , p. - .
17SANZ, Ma ía Adelaida; CODOÑER MERINO, Ca e ; MARTÍN, Jos Ca los. La Hispa ia
Visig ti a Moz a e. Dos Épo as e su Lite atu a. Sala a a: U i e sidad de Sala a a,
.
24
artigo no qual apresenta Agostinho como uma figura proeminente no
controle do culto aos santos na Antiguidade Tardia.18
Brown ainda atenta para essa comparação entre o mártir e o herói
clássico. Para ele idealizar os mortos era algo natural para os homens dos
períodos Helenístico e Romano, assim como de certa forma oferecer
uma espécie de adoração a esses mortos, no âmbito familiar ou no
âmbito público, em casos em que o falecido era excepcional, como
heróis ou imperadores. A diferença mais marcante ressaltada pelo autor
é que na religião pagã, ao tratar-se do papel dos heróis, estava
praticamente ausente uma crença muito presente ressaltada pelos
autores cristãos em relação aos mártires: esses personagens, justamente
por terem morrido como homens, desfrutavam de uma estreita
intimidade com Deus. Essa intimidade era condição para a habilidade dos
santos mártires em interceder e proteger os mortais, ou seja, segundo
Brown, a grande diferença entre o mártir e o herói era que o santo
cristão era um intercessor na vida dos fieis de uma forma que o herói
clássico nunca foi.19
Já o teólogo e historiador Miranda afirma que alguns casos da
literatura romana apresentam uma significativa presença do desejo de
morte em determinados espaços romanos, desejo este que alguns
pesquisadores associam com a construção da própria identidade do
cristianismo. Segundo este autor isso significaria que a transformação
dos mortos cristãos em heróis realizou-se em uma cultura que conhecia
o fenômeno da exaltação daqueles que morriam de forma corajosa.20
Ana Teresa Gonçalves analisa três Homilias produzidas por Basílio
de Cesaréia no século IV, dedicadas aos mártires Julita, Górdio e
Mamante e tenta demonstrar, a partir de sua análise, como os
sacerdotes e bispos, para serem melhor compreendidos pela audiência,
costumavam utilizar um arsenal vindo da retórica clássica e pagã,
ressignificando-o para garantir o proselitismo cristão. De acordo com a
autora, vários autores cristãos, com o auxílio de topoi e imagens
reconhecíveis pelas audiências a serem tocadas pelo cristianismo,

18 BROWN, Pete . E jo i g the sai ts i Late A ti uit . I : Ea l Medie al Eu ope, . , .


, , p. - .
19 BROWN, Pete . The Cult of Sai ts: Its Rise a d Fu tio i Lati Ch istia it . Chi ago:

The U i e sit of Chi ago P ess, . p. - .


20 MIRANDA, Valtai Afo so, Op. Cit., p. .
25
utilizaram-se de instrumentos de persuasão disponíveis e reconhecíveis
advindos dos cânones clássicos. Segundo ela era mais fácil levar a
mensagem cristã por meio de expressões, símbolos, imagens e idéias
que já circulavam e que poderiam ser mais facilmente compreendidos
pelo público que se procurava atingir.
Para a autora, a cristianização do Império Romano teria sido a
criação de novas representações a partir de cânones já estabelecidos na
retórica clássica, ou seja, já presentes no imaginário dos habitantes do
Império. A figura do mártir preencheria uma lacuna deixada pelo
abandono e/ou reelaboração de sustentáculos retóricos clássicos,
traçando assim um paralelo entre as características do mártir com as do
herói, como a coragem. Segundo Gonçalves, nesse período a
necessidade humana de exemplos de boas condutas sociais permanecia,
assim os heróis antigos precisavam ser substituídos por novos modelos
de interação comunitária - no caso, os mártires.21
Em relação a nossa pesquisa podemos ressaltar que os elementos
retóricos mencionados pela autora aparecem de forma significativa nas
paixões visigodas. Apesar de se inserirem em um período posterior, nos
séculos VI e VII, essas paixões são também produtos de um episcopado
preocupado com o fortalecimento da instituição eclesiástica. Para isto
era preciso manter vivo o culto aos santos mártires, e as paixões,
majoritariamente inspiradas em relatos anteriores, estavam repletas de
recursos retóricos que exaltavam a santidade do mártir.

Antecedentes do fenômeno
O professor de História Antiga Bowersock também trata martírio
em seu livro Martyrdom and Rome, no qual ele defende a especificidade
deste fenômeno cristão em relação a outras religiões. De acordo com ele
o sofrimento e a morte pelas mãos de magistrados romanos elevavam
presumivelmente os cristãos ao status de mártir, posição esta que
garantia a salvação e até mesmo a santidade, de tal forma que já no final
do século II, havia cristãos que buscavam a própria morte como mártires.
Este fenômeno de martírio voluntário, segundo o autor, era uma
excentricidade do período e continuou por mais de um século. Nas

21 GONÇALVES, Aa Te esa Ma ues. A o te do ti ist o o o u a o te he i a:


epe sa do algu as Ho ilias de Basilio de Cesa ia. Di logos Medite i os, Cu iti a,
. , , p. - .
26
paixões analisadas nesta pesquisa vemos alguns casos em que os
personagens saem em busca do martírio, porém ressaltamos que isto
pode ser um topoi hagiográfico, ou seja, uma característica recorrente
nos relatos de martírio.
Bowersock afirma que mesmo muito tempo depois do Império
Romano, tanto o fato quanto o conceito de martírio continuaram a ser
uma força poderosa na relação entre política e religião. Segundo ele o
martírio não era um fenômeno conhecido no mundo antigo, e o que se
pode observar nos séculos II, III e IV é algo completamente novo. Para o
autor o cristianismo traz uma novidade, discordando assim dos que
defendem alguns antecedentes paralelos, como a morte de Sócrates no
início do século IV A.E.C. e dois episódios na história dos Macabeus na
Palestina no II século A.E.C. Para Bowersock nenhum destes dois
episódios demonstra que a ideia de martírio deveria ser associada a
sociedades anteriores – para ele este fenômeno era algo desconhecido
tanto para os gregos como para judeus. De acordo com o autor a menção
de Sócrates como mártir em escritos cristãos, por exemplo, era um
argumento retórico utilizado pela instituição eclesiástica em um
contexto de empenho em persuadir os pagãos de que o fenômeno do
martírio cristão não era irracional.22
A professora de Letras e Literatura na Universidade de Coimbra,
Carlota Miranda Urbano, afirma que a compreensão do fenômeno do
martírio é essencial para se conhecer o significado das outras tipologias
de santidade, pois a todas elas precede a figura do mártir da antiguidade
cristã. Do ponto de vista literário, o modelo de mártir cristão teria se
configurado nas origens, no cristianismo nascente, ou seja, em um
contexto de rupturas e continuidades, e tinha relação com o tipo ideal
de veneração pública da antiguidade pagã – o herói. Além desta
característica a autora ressalta outros dois elementos que teriam
também influenciado a configuração do martírio: a herança da tradição
hebraica e a interpretação neotestamentária da morte de Cristo como
sacrifício.
Esta autora, diferentemente de Bowersock, defende que há várias
referências ao martírio no Antigo Testamento, como por exemplo os

22 BOWERSOCK, G. W. Ma t do a d Ro e. Ca idge, U ited Ki gdo : Ca idge


U i e sit P ess, . p. - .
27
profetas, que são considerados não apenas homens inspirados pelo
Espírito Santo, mas sim mártires no sentido original do termo, como
testemunhas, na medida em que testemunharam ao seu povo a
mensagem de Deus. Para ela testemunho e profecia são identificados no
profeta que frequentemente passa pelo julgamento e condenação dos
homens, mostrando já uma tipificação do martírio de Jesus. Além disso,
a autora defende que há outro tipo de martírio que aparece no Antigo
Testamento: o mártir fiel à lei e à tradição hebraica. Aqui a autora utiliza
como exemplo o caso dos Macabeus, mencionado por Bowersock, como
um dos modelos mais influentes da hagiografia dos mártires cristãos,
perspectiva esta que o autor antes mencionado discorda.23 Como dito,
Bowersock defende a especificidade do fenômeno cristão, concordando
também com os autores apresentados inicialmente, que defendem que
características como a morte, a salvação, a relação do santo com o fiel e
a ênfase na construção da santidade são os principais elementos
diferenciais do martírio cristão. Porém lembramos que Bowersock
analisa o tema a partir de uma perspectiva histórica e Urbano apresenta
uma análise do ponto de vista literário.
Um aspecto bastante ressaltado pela historiografia é a
identificação de Jesus com o mártir, e posteriormente com os outros
tipos de santidade, sendo Cristo o principal modelo de santidade a ser
seguido. Urbano afirma que a identificação entre Jesus e o santo é um
traço quase constante nos relatos de martírio e na hagiografia no geral.
Segundo ela, na Igreja Antiga o martírio é concebido como um privilégio
– não pode ser conquistado somente pelo cristão com suas próprias
forças, mas apenas pode ser recebido como um dom de Deus.24
Como mencionamos anteriormente Miranda defende que o
termo martírio aparece de forma mais ampla no relato denominado
martírio de Policarpo. Segundo o autor esse texto é relevante porque
parece ser um dos mais antigos documentos do cristianismo escrito
especialmente para descrever a morte de um cristão. De acordo com ele
a ideia de teste u ho pe a e eu o a tí io" as o o te to judi ial
foi minimizado e agregou-se também a noção de sofrimento, de forma
que o mártir é retratado como aquele que sofre para testemunhar. Em

23 URBANO, Ca lota Mi a da. Tipologias lite ias do a tí io a hagiog afia – as o ige s.


Theologi a, . , . , p. - , .
24 I ide , p. .
28
relação às ideias defendidas pelos autores mencionados anteriormente,
Miranda afirma que algumas tradições tiveram papel importante na
forma como o cristianismo teria transformado o termo martírio, como
as histórias dos macabeus sobre judeus que morreram em confrontos
com monarcas helenistas. Uma das histórias mais defendidas como
precursora do martírio é a da morte de sete filhos de uma viúva que se
recusaram a comer carne de porco por seguiram determinadas leis
religiosas. Segundo Miranda, o termo mártir não chegou a ser usado para
descrever os macabeus, mas suas histórias inspiraram muitos cristãos.
Este autor também afirma que ao exaltarem seus mortos, os cristãos
criaram heróis da fé, em um contexto relevante para a consolidação
identitária do cristianismo. Portanto, as mortes cristãs, quando
ritualizadas segundo o modelo do mártir, eram eficientes instrumentos
de propaganda para a religião cristã, em uma cultura que respeitava
ue sa ia o e .25
Consideramos portanto que, para a nossa pesquisa, devemos
pensar o martírio como fenômeno cristão, não por discordar que tenha
influências de outros fenômenos e das culturas pagã e hebraica, mas sim
porque temos como objetivo analisar o discurso sobre ele produzido
pela instituição eclesiástica alguns séculos após o período das
perseguições. Na conjuntura na qual se insere nosso corpus documental,
o cristianismo ainda está em construção, porém o martírio já não é mais
um fenômeno recorrente,26 e os relatos, no geral, referem-se a
acontecimentos do período das perseguições. Na conjuntura em que as
paixões a serem analisadas foram produzidas, o mártir já não era mais o
principal modelo de santidade a ser seguido, mas ainda conservava
grande prestígio e estava diretamente relacionado com a difusão do
culto aos santos e o processo de fortalecimento da instituição
eclesiástica. Desta forma, pretendemos analisar o martírio e suas
principais características cristãs, relacionadas à construção da santidade,
tema este de maior prioridade em nossa pesquisa.

25MIRANDA, Valtai Afo so. Op. Cit., p. .


26 Na o ju tu a o a ual os p eo upa os o a tí io o ais u fe e o
e o e te, po o i e iste te. No pe íodo do s ulo VII h ai da a ti izados po
judeus e poste io e te hegada dos a es, ist os ue te ia sido pe seguidos e
a ti izados pelos es os.
29
A construção da santidade e o culto aos santos
Notamos que é consenso entre os autores a relevância do martírio
para a difusão do culto aos santos e para os estudos sobre santidade. O
mártir, como mencionado, foi o primeiro modelo de santo, e o conceito
de martírio foi se modificando e se adaptando a novas demandas da
construção da santidade. Neste sentido, o modelo posterior ao mártir, o
asceta, idealmente viveria em constante martirização do próprio corpo.
No caso do santo bispo, modelo também de santidade, o santo mártir
patrono de determinado local trazia prestígio para a comunidade
episcopal e, consequentemente, para o bispo responsável por esta
comunidade.
De acordo com Vauchez, o conceito de santidade possui um
significado ambivalente, pois evoca algo que implica uma separação
radical da condição humana e, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma
relação com o divino. O autor ressalta que a santidade foi entendida
sobretudo como o poder de agir em benefício dos indivíduos e das
comunidades e que o santo supera os limites normais da condição
humana, recusando toda e qualquer ligação com o mundo. Ou seja, o
santo seria ao mesmo tempo diferente do homens por sua proximidade
com o divino, e próximo ao homem por ter experimentado a vida
mundana. Vauchez também afirma que somente se é santo em função
dos outros e pelos outros, ou seja, a santidade atribuída a um indivíduo
se relaciona à uma experiência anterior, experiência esta que se refere à
ideia que os homens de determinada época faziam da santidade e à
função desta em dada sociedade.27
Sobre os estudos do fenômeno do martírio, González Fernández
afirma que falar de um santo é falar de um personagem cristão, ilustre
por suas virtudes e que tenha sido reconhecido pela instituição
eclesiástica como merecedor de um culto público.28 Desta forma,
segundo o autor, o historiador deveria se concentrar, ao estudar tal
fenômeno, na existência de um culto, ou seja, na manifestação pública
de honra prestada pela comunidade de fiéis em memória de um santo.

27 VAUCHEZ, A. Sa tidade. I : E i lop dia Ei audi. Lis oa: I p e sa Na io al – Casa da


Moeda, , . , p. - .
28 Dis o da os do auto ue o p o esso seja t o si ples assi . O ulto ao sa to o
e essa ia e te i i iado pela i stituiç o e lesi sti a, ele pode se o igi ado dos
p p ios fi is e ap op iado po ela.
30
Segundo ele, a glorificação de um mártir seria composta principalmente
das seguintes manifestações: o aniversário de morte do mártir celebrado
oficialmente pela comunidade, possivelmente tendo como centro a
tumba do santo ou suas relíquias; o panegírico (atas de martírio ou
milagres) do homenageado seria pronunciado por um membro do corpo
eclesiástico; os fiéis invocariam a proteção do santo e em certos casos
sua intercessão.29
A autora Sofia Boesch Gajano afirma que a santidade constitui um
fenômeno notável no Ocidente medieval, e que possui múltiplas
dimensões: espiritual, como expressão da busca do divino; teológica,
pois é uma manifestação de Deus no mundo; religiosa, por ser um
momento privilegiado da relação do cristão com o sobrenatural; social,
pois é um fator de coesão e identificação dos grupos e das comunidades;
institucional, por estar no fundamento das estruturas eclesiásticas e
monásticas; e por último, política, pois é um ponto de interferência ou
coincidência da religião e do poder. Todas essas dimensões perpassam
de diferentes formas o período medieval, e todas são importantes para
pensarmos a santidade nas paixões que analisamos em nossa pesquisa e
sua relação com o contexto de produção.
De acordo com esta autora a santidade é uma construção, a
percepção e o reconhecimento do caráter excepcional de um homem ou
mulher, ou seja, a ela existe para os outros e através dos outros,
dependendo do reconhecimento, e baseando-se em um processo no
qual este homem ou mulher constrói sua própria santidade, fazendo
certas escolhas, como a prática de determinados exercícios espirituais
(oração, virtudes, ascese) e inspirando-se em modelos (Cristo como o
principal modelo). Ela ressalta que as escolhas devem ser visíveis e
reconhecíveis, questão esta que estaria relacionada com a importância
dada ao corpo dos santos, pois, para ela, o corpo é a realidade física no
qual o percurso espiritual é evidenciado. Segundo a autora, esta
importância central dada ao corpo na construção da santidade ajuda a
explicar as relíquias, ou seja, atribuir a este corpo, inclusive depois da
morte, um poder taumatúrgico.30 Essa questão vemos claramente nas
paixões visigodas, por exemplo, pois todas elas apresentam uma

29GONZÁLEZ FERNÁNDEZ, Rafael, Op. Cit., p. .


30GAJANO, Sofia Boes h. Sa tidade. I : Le Goff, Ja ues; S h itt, Jea -Claude Coo d .
Di io io te ti o do O ide te edie al. Bau u: Edus . . V. . . p. - .
31
preocupação em explanar o que aconteceu com o corpo do mártir, e
seus milagres após a morte.
O culto aos santos é um elemento presente em todo o período
medieval, e possui significativo papel no processo de fortalecimento da
instituição eclesiástica visigoda. De acordo com Ruy Andrade Filho e João
Paulo Charrone a receptividade do culto aos santos inseriu a santidade
nas operações de persuasão da igreja e foi devido principalmente às
estratégias de desnaturação dos locais e significados sagrados que o
culto teria se adaptado com maior facilidade à conjuntura.31 Segundo
Andrade o culto aos santos seria a maior expressão da religiosidade
católica, e está presente desde a constituição da hierarquia cristã e sua
consequente necessidade em firmar valores morais por meio de
modelos exemplares capazes de traduzir sua visão de mundo.32 Os
relatos hagiográficos possuíam, portanto, uma função essencial de
edificação, de exemplo. Os santos eram modelos ideais para o homem
medieval, eram pessoas que conseguiram atingir determinados ideais e
que tornavam possível o contato entre terreno e o divino.
Villazala, em sua tese, trata, de forma geral, sobre conflitos e sua
utilização pelo poder episcopal. O autor afirma que o conflito funcionava
como uma forma de comunicação social e que todo conflito transmitia
conceitos de legitimidade, autoridade e hierarquia, e a forma como este
se resolvia acabava apoiando um determinado sistema de relações
sociais e diretrizes de comportamento social. Assim, ao tratar dos
séculos IV e V (período de interesse do autor), é preciso considerar que
o que sabemos sobre o conflito foi escrito por autores que pretendiam
legitimar sua postura. Para Villazala o discurso não somente construiu a
forma como deveria ser interpretado, mas também constituiu uma
forma de intervenção ativa no conflito, ao influenciar as concepções dos
conflitos passados e presentes. Deste modo, segundo o autor, o
cristianismo, por meio de um discurso acessível a todos, criou novas
categorias e formas de pensar que transformaram as audiências.
Segundo Villazala a habilidade oratória era uma atribuição
herdada da educação retórica que as classes governantes recebiam no
mundo clássico. Assim, a habilidade para a oratória e a redação

31 ANDRADE FILHO, Ru de Oli ei a e CHARRONE, Jo o Paulo. A sa tidade as


hagiog afias de Ve ius Fo tu atus, Hist ia, , . , . p. .
32ANDRADE, Sola ge Ra os de. Op. Cit., p. - .
32
continuaram sendo consideradas uma virtude digna de elogios nos
bispos e um elemento de propaganda. Dentro do discurso o uso do
conflito serviu como ferramenta para guiar o raciocínio da audiência e
expressar conteúdos sociais, políticos, religiosos ou étnicos. Os conflitos
eram parte central da narrativa e neles se concentrava a atenção por
meio de complexas descrições que deixavam claro qual grupo tinha
razão e qual estava equivocado, ao mesmo tempo em que transmitia
conteúdos sobre a ordem social. Para Villazala essas questões estão
especialmente presentes na literatura hagiográfica. Outro aspecto
destacado pelo autor é que os autores cristãos compreenderam que os
conflitos do passado eram parte fundamental da memória da
comunidade que a experiência produzida pela lembrança chegava até o
presente.
O autor menciona novamente a dificuldade de recepção da
mensagem e o impacto causado na audiência para o período tardo-
antigo. Este é influenciado pelo momento em que a mensagem foi
reproduzida e os aspectos cerimoniais e rituais a ele associados. Para
Villazala a questão não é fácil, porém, independentemente da recepção
da mensagem, o que é evidente é o processo de reformulação do
passado subjacentes aos textos episcopais. Neste sentido Villazala cita
outros autores, que afirmam que a santificação do passado está na raiz
do processo de sacralização do espaço, que em ocasiões se fez em
detrimento de espaços sagrados pagãos ou judios, que eram destruídos
ou reutilizados e apagados da memória.
Segundo o autor, como parte deste processo, a paisagem urbana
romana passou a ser povoada de construções chamadas memoriae
martyrum que continham relíquias de santos. A partir do século IV, para
Villazala, o martírio se converteu no caso mais claro de reformulação e
aproveitamento de um conflito passado que produzia efeitos no
presente. O martírio se converteu no primeiro drama especificamente
cristão e um dos principais símbolos de sua identidade. Assim, para ele,
a memória destes mortos atualizava o conflito do martírio, que se
convertia em um reagente de uma união cristã, ajudando portanto a
cristianizar o calendário e a paisagem do Império, e se tornando uma das
imagens mais evocativa da resistência à opressão do poder secular e da
renúncia ao mundo.

33
A representação mais completa do martírio era pelas paixões, e,
segundo o autor, independentemente da utilização de documentos
anteriores para a redação, o certo era que o próprio ato de recordar era
uma transformação e reformulação do martírio, quando não a sua total
invenção. Assim, esses relatos preocupavam-se em narrar a violência do
martírio. O processo de simbolização do conflito permitia que a
recordação fosse carregada de complexos significados que serviam para
negociar as relações de identidade, de gênero, de poder, entre outras.
Portanto, a reformulação de um conflito participava ativamente nos
conflitos contemporâneos.33
É possível observar na conjuntura do reino visigodo dos séculos VI
e VII a preocupação do episcopado com a recordação do passado, mais
especificamente dos martírios. É preciso ressaltar também que as
paixões desse período foram escritas por cristãos tratando de um
conflito com os pagãos, então a forma como o conflito é relatado serve
aos interesses do emissor do discurso, ou seja, do episcopado. Nestes
relatos também encontramos certos determinados elementos
aparecem como exemplos para o público ao qual o discurso pretende
atingir. Além disso ressaltamos que nas paixões que foram escritas em
períodos posteriores às perseguições dos romanos aos cristãos
aparecem indícios de conflitos contemporâneos a sua redação, como
elementos que desvalorizam a fé judaica e ariana no caso da conjuntura
visigoda.
Desta forma o discurso eclesiástico sobre os mártires enfatiza a
santidade e, buscando também o propósito hagiográfico de edificação
dos fiéis, os relatos se preocupam em exaltar determinadas virtudes
cristãs e características que possam servir de exemplo para o público
cristão, além do próprio martírio. Como mencionado anteriormente,
dito fenômeno não serve mais para incentivar o enfrentamento com um
governo pagão repressor da fé cristã, e sim um martírio espiritual, no
qual o fiel encontra forças para enfrentar qualquer dificuldade terrena,
sabendo que será recompensado após a morte. Ressaltamos também
que a construção da santidade do mártir está relacionada com a própria

33 NATAL VILLAZALA, Da id. De A osio de Mil a L i s. Gesti del o fli to


o st u i del pode epis opal e po a teodosia a - d.C. . Leo : U i e sidad
de Le Fa ultad de Filosofía Let as. Depa ta e to de Histo ia, Tesis Do to al .
p. - .
34
identidade cristã, e que a lembrança de um conflito com o governo
romano pagão no qual os cristãos saíram vitoriosos é uma forma de
reforçar a identidade deste grupo e legitimar a instituição eclesiástica
cristã nicena como única e ortodoxa.
Peter Brown atenta também para os chamados loca sanctorum,
segundo ele locais sagrados, ou santuários, que continham uma tumba,
uma relíquia ou fragmento desta, e onde se dava o encontro entre o
divino e o terreno. Esses locais se espalharam por todo o Ocidente
Medieval, trazendo a presença dos santos para perto dos fiéis. Para este
autor a identificação dos santos com os fiéis também é essencial para se
compreender o culto aos santos. Segundo ele a comunidade cristã passa
a lembrar somente de seus próprios membros, ou seja, a observação
cuidadosa dos aniversários de morte dos mártires e bispos, por exemplo,
dava à comunidade cristã a responsabilidade de manter na memória de
seus heróis e líderes.34
O culto aos santos é um dos elementos essenciais para o
fortalecimento da instituição eclesiástica e sua expansão no Ocidente
Medieval. O papel que apresentou no processo de cristianização é
extremamente relevante, a partir da apropriação de certos elementos
da religiosidade pagã e do caráter exemplar do santo. Além disso, os
locais sagrados de culto também tinham significativa relevância nesse
processo, pois geravam um sentimento de comunidade e pertencimento
tanto à comunidade cristã nicena como um todo como também à região
do santo cultuado. Neste sentido era de interesse dos bispos incentivar
de diversas formas o culto aos santos, principalmente nas regiões que
estavam sob sua responsabilidade. Um local sagrado trazia prestígio para
a comunidade, com doações e peregrinações por exemplo, e
consequentemente prestígio para o bispo responsável pelo local. Peter
Brown apresenta assim como exemplo o bispo Ambrósio de Milão e a
descoberta das relíquias dos santos Gervasius e Protasius no século IV.
Segundo o autor o bispo se apropriou de ditas relíquias, ao transportá-
las do santuário onde haviam sido descobertas para uma nova basílica
construída por ele. Assim, Brown afirma que os santos se tornavam
inseparavelmente ligados à liturgia da comunidade, em uma igreja
construída pelo próprio Ambrósio e a qual ele frequentemente presidia.

34 BROWN, Pete . Op. Cit., p. .


35
Essa iniciativa fortalece o prestígio e autoridade do bispo, e outros
membros do episcopado agiram de forma parecida em outros locais.35
Castillo Maldonado afirma que o culto aos santos na Hispania
visigoda se difundiu principalmente a partir de três processos: a
descoberta de relíquias pertencentes a supostos mártires locais do
passado; a importação de cultos de outros locais do Mediterrâneo; e a
transferência do conceito martírio como único critério de santidade para
uma definição mais ampla, incluindo confessores como objetos de culto.
Segundo o autor esse desenvolvimento é similar à Gália e a Britânia,
províncias nas quais as perseguições também foram limitadas como na
Hispania. No caso do reino visigodo o autor ressalta a descoberta das
relíquias de são Mancio, que possivelmente teve lugar no século VII, e o
caso de Leocadia, que, de acordo com Maldonado, teria sido uma
fundadora da basílica que posteriormente teria sido transformada em
sua patrona titular, virgem e mártir. O autor também afirma que as
constantes referências à descoberta de relíquias, ou inventio, eram uma
forma de justificar a posse de tais relíquias e/ou a existência de alguns
loca sanctorum. De qualquer forma ele defende que a Hispania seguiu o
exemplo de outras regiões do Mediterrâneo de procurar valiosas
relíquias de mártires do passado para estimular o culto. Maldonado
também ressalta o papel central dos bispos nesse processo de inventio,
devido ao capital espiritual e político que as relíquias de um mártir
popular poderiam trazer para uma igreja e seu bispo.36
No segundo processo mencionado, o autor afirma que alguns
mártires estrangeiros eram sobrepostos no cenário local, e que no final
do século VI a Península recebeu uma significativa quantidade de
relíquias de santos estrangeiros. Maldonado também ressalta que a
importação de restos de mártires estrangeiros era uma das formas de
satisfazer o desejo de comunidades locais por objetos devocionais. O
autor menciona que dentre estes santos estrangeiros, os africanos e seus
festivais eram mais populares na Hispania, como demonstrado no caso
da paixão de Felix de Gerona, personagem que de acordo com o relato
teria saído da Africa e sido martirizado no reino visigodo, que depende
diretamente da hagiografia do santo homônimo de Thibiuca.37

35 I ide , p. .
36 CASTILLO MALDONADO, Ped o. Op. Cit., p. - .
37 I ide , p. .
36
Sobre o terceiro processo, chamado pelo autor de redefinição ou
ampliação do conceito de santidade, Maldonado afirma que apesar das
raízes da santidade cristã encontrarem-se nos martírios da época das
perseguições, em tempos de paz outros modelos de santidade foram
buscados e assimilados ao original, tornando possível que atingir a
santidade por meio da disciplina ascética. Assim, ele ressalta os santos
bispos, anacoretas, monges, virgens, etc. que foram venerados no
período visigodo.38
A dinâmica de culto aos santos é essencial para o funcionamento
da instituição eclesiástica nesse período. Como dito anteriormente, era
uma forma de relação entre o cristão e o divino e de mostrar a ação
divina no terreno, o santo era o intermediário entre Deus e a pessoa
comum. Além disso, os santos faziam parte de identidade cristã, os
mártires relembravam o sofrimento do passado e serviam como
exemplo para superar qualquer dificuldade e como lembrança da
recompensa divina no pós-morte. O culto aos santos assim fazia parte
do cotidiano medieval, com as celebrações litúrgicas que apareciam no
calendário cristão durante todo o ano, e também traziam uma dinâmica
de movimentação de fiéis, pois os locais de santuário e relíquias atraiam
cristãos em peregrinação e em busca da intervenção do santo, além de
trazer prestígio e doações para a comunidade em que se encontrava.
Sobre esta dinâmica Maldonado afirma que por seus poderes
miraculosos os santos desempenhavam um importante papel como
patronos das cidades e na Hispania, como em outros reinos, a partir do
período hispano-romano os santos exerciam um papel proeminente na
criação de coesão social dentro das cidades. De acordo com ele os
festivais de santos, com hinos e procissões promoviam a identificação
entre mártir e cidade e permitiam uma suspensão momentânea de
categorias sociais. Para o autor em uma sociedade com valores cada vez
mais aristocráticos e militares, os mártires e seus locais santos tinham
também um importante papel político de determinação contra a
hostilidade de inimigos. Maldonado também defende que os bispos,
como guardiões privilegiados da santidade e intermediários com os
mártires, encontraram no culto aos santos um campo no qual formular

38 I ide , p. .
37
um evergetismo cívico para patrocinar todo um programa de construção
centrado nos loca sanctorum.39
Neste sentido o autor aponta que normativas conciliares chegam
a mencionar o culto aos santos como uma força motriz da construção
realizada pela aristocracia laica e eclesiástica, e as cidades, como
repositórios da maioria das relíquias, seriam o espaço geográfico
privilegiado por essa atividade. Segundo ele estes locais alteravam a
topografia física e mental de uma cidade, como os arredores da basílica
de Mérida dedicada à santa Eulália, e chegava a impactar também as
regiões campesinas. O autor defende, portanto, que mártires e
confessores não eram somente guardiões cívicos, mas também
auxiliavam efetivamente a cristianizar toda uma diocese, campo e
cidade, servindo assim aos interesses do episcopado.
Sobre esta questão Maldonado defende, em outro texto, que
desde o século VII é possível observar nas igrejas hispânicas um desejo
de us a suas o ige s, ou, fo a suas o ige s. Pa a ele a p o a desta
afirmação seria a formação de toda uma literatura cujo objetivo é a
construção de um passado honroso para as comunidades eclesiásticas,
principalmente as sedes episcopais, na qual se inserem as paixões
produzidas neste período. De acordo com o autor este fenômeno teria
três razões principais: o valor antiquitas, ou seja, ter um passado remoto
legitimaria o status de uma comunidade, repercutindo em sua
hierarquia; a incapacidade epistemológica de conceber uma origem da
cidade que não seja individual e unidirecional; e a concepção cristã da
consciência da sobreposição entre a comunidade dos vivos e a
comunidade dos mortos. Maldonado insere o culto aos mártires como
parte essencial deste fenômeno, e apresenta o exemplo da disputa por
poder entre Mérida, que contava com uma mártir ja bem cultuada, e
Toledo, que carecia de um mártir que pudesse legitimar a origem remota
de sua igreja. Portanto, para capitalizar o prestigio martirial para Toledo,
a nova capital, a monarquia e a hierarquia eclesiástica criaram a mártir
local Leocádia.
Maldonado defende que a identificação entre o santo cultuado e
a cidade abarca todo o conjunto citadino, e que o mártir é o defensor
civitatis e o emblema identificativo da cidade. Este elemento seria uma

39 I ide , p. .
38
consequência da associação do mártir com a fundação da cidade, com a
sua origem, e apresenta os exemplos de Vicente, Sabina e Cristeta como
fundadores de Ávila e o mártir Félix como fundador de Gerona. O autor
também ressalta, referindo-se a Brown, que os mortos têm uma
praesentia, autêntica e real, na comunidade dos vivos, e que seria a
comunidade e seu bispo que teriam a responsabilidade de perpetuar a
memória de seus membros principais. Portanto, para ele, as paixões do
século VII respondem ao auge do culto martirial e sua integração plena
nos rituais litúrgicos e servem também a uma necessidade de legitimar
e valorizar as origens das comunidades, especialmente das sedes
episcopais.40
Dentro desta dinâmica de culto aos santos Díaz ressalta a
relevância do peregrino, segundo ele sujeito que sem o qual a relíquia e
o lugar santo, até mesmo os milagres, não teriam sentido. O autor afirma
que a proliferação de locais santos dignos de serem visitados e de
converterem-se em lugares de peregrinação está estreitamente
relacionado com a implantação do culto aos santos e do culto às
relíquias. De acordo com ele a afluência às basílicas que contavam com
relíquias já seria um fenômeno mencionado por Prudêncio no século IV.
Segundo o autor o peregrino dirige-se aos locais sagrados buscando um
contato privilegiado com o divino, uma resposta aos seus pedidos,
oferece suas orações e promessas. Contudo, para ele, a mera
aproximação ao local já seria um ato válido em si mesmo, uma forma de
penitência e uma experiência mística que se manifesta com uma
aventura essencial da prática cristã.
Díaz destaca que existem poucos indícios de peregrinações longas
e de locais distantes na Hispania, ou seja, que no reino visigodo ela era
mais local, composta majoritariamente por habitantes da cidade e de
seu entorno e de cidades vizinhas. Ele também ressalta que os locais que
guardavam relíquias e recebiam peregrinos, como basílicas e mosteiros,
construíram uma infra-estrutura maior para lidar com esses visitantes,
assim, locais de culto eram, como defende também Maldonado, locais
que contavam com um projeto de construção e prestígio diferenciado.
Díaz também defende que as hagiografias eram formas de reforçar a

40 CASTILLO MALDONADO, Ped o. Los o íge es de las o u idades iudada as istia as:
la e pli a i ta doa tigua e la lite atu a a ti ial hispa a. Polis: Re ista de ideas
fo as políti as de la A tigüedad Cl si a, . , . p. - .
39
peregrinação nestas cidades e locais e afirma que a figura do mártir é
essencial para compreender a configuração da topografia das cidades
hispanas.41
Assim, concordamos com a perspectiva defendida por Castillo
Maldonado de que a dinâmica de culto aos santos era essencial no
período visigodo, e também em todo a conjuntura medieval, além de ser
uma estratégia de consolidação e fortalecimento do poder da instituição
eclesiástica. O culto aos santos trazia uma maior circulação de pessoas,
privilégios, possibilidades de crescimento para a cidade, doações, etc. e,
por isso, era uma das medidas de maior preocupação do episcopado
para fortalecer sua posição no território visigodo.

41 DÍAZ, Pa lo C. El pe eg i o e la iudad: e p esio is o eligioso e la Hispa ia


Ta doa tigua. I e ia, . , . p. - .
40
A ORDEM DOMINICANA NA LEGENDA BEATI PETRI GUNDISALVI

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva1

Introdução
Como uma das atividades relacionadas ao desenvolvimento do
projeto A construção medieval da memória de santos venerados na
cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero,
financiado pela Faperj por meio do Programa Cientista de Nosso Estado,
tenho estudado o processo de produção e o conteúdo da Legenda Beati
Petri Gundisalvi (LBPG). Esta obra narra a trajetória e milagres de um
frade pregador que viveu no século XIII na Península Ibérica, Pedro
González, também conhecido como São Telmo.2
Meu principal objetivo com este texto é apresentar e discutir as
referências à Ordem Dominicana que figuram na LBPG, relacionando tal
debate à questão do patrocínio da composição desta legenda. Mais do
que propor conclusões definitivas, minha meta é propor possibilidades
interpretativas.

Legenda Beati Petri Gundisalvi (LBPG): transmissão e estudos


Também intitulada como Vita S. Petri Gundisalvi Tudensis, a LBPG
foi escrita em latim e em prosa. Ela foi transmitida por um único
manuscrito medieval,3 o códice 1 do Arquivo Capitular da Diocese de Tui-

1 Douto a e Hist ia So ial PPGHIS, UFRJ , o atuaç o a ea de Hist ia Medie al.


P ofesso a Titula do I stituto de Hist ia da UFRJ, i ulada ao P og a a de P s-
g aduaç o e Hist ia Co pa ada. Bolsista P do CNP . Sele io ada o edital Cie tista
de Nosso Estado da Fape j e . Coo de ado a, o os p ofesso es Leila Rod igues
da Sil a e Paulo Dua te Sil a, do P og a a de Estudos Medie ais da UFRJ.
2 A pa ti da e pa s o a íti a e o e ial i i a, Ped o Go z lez passou a se
o side ado p oteto dos iaja tes. Esse dado e pli a o o e o o ual o sa to to ou-
se o he ido e fi ais do s ulo XVI: S o Tel o. Segu do Gal s, o f ade foi asso iado
a Sa to E as o, ta de o i ado o o E o ou El o, ispo de Fo ia e da
Ca p ia ue, segu do a t adiç o, foi a ti izado a pe seguiç o p o o ida po
Dio le ia o e e a o side ado p oteto dos a i hei os. GALMÉS, Lo e zo. El
ie a e tu ado F a Ped o Go z lez O.P. Sa Tel o. Estudio hist i o-hagiog fi o de su
ida su ulto. Sala a a-Tui: Edito ial Sa Este a – Cof adía de Sa Tel o, . p.
- .
3 Segu do No o S hez, h u a pia desta o a o Li o Be e o I da Cated al
41
Vigo, que reúne outros textos. Esse códice contém atualmente 292 fólios
em pergaminho, medindo 457 por 293 mm.
Segundo Ana Suarez González,4 há um núcleo primitivo, que
contem vários relatos hagiográficos, que foi provavelmente elaborado
no noroeste penínsular, talvez até mesmo em Tui, entre os séculos XII e
XIII, foram anexados documentos de diversas datas, relacionados
diretamente à diocese tudense. Dentre estes encontra-se a LBPG, que
não foi transmitida integralmente.5
A LBPG foi copiada em dez fólios (257r.-261v.), subdividida em 15
partes, destacadas por títulos.6 No manuscrito foram usadas três cores.
O texto foi copiado em tinta preta, os subtítulos, em vermelho e nas
letras capitulares usou-se o vermelho e o azul. Salvo a primeira capitular,
que é maior e decorada com motivos geométricos, todas as demais são
simples. Não há iluminuras. Por essas características, é possível afirmar
que não se trata de um material luxuoso. Os autores datam esta cópia
entre fins do século XIII e início do XIV.7
Esta legenda foi conhecida pelos bolandistas, que a incluíram na
Bibliotheca hagiographica latina antiquæ et mediæ ætatis, sob o número
6711.8 Há duas edições da LBPG: uma com o texto em latim, publicada

Tude se, datada do s ulo XVI. Cf. NOVO SÁNCHEZ, F a is o Ja ie . La ida los ilag os
de Sa Tel o e la sille ía de o o de la Cated al de Tui. I : CENDÓN FERNÁNDEZ, M.,
GONZÁLEZ SOUTELO, S.. Coo d. Tui: Pasado, p ese te futu o. COLOQUIO DE HISTORIA
DE TUI, ., Tui, . A tas.... Po te ed a: Diputa i de Po te ed a, . p. , ota
.
4 SUÁREZ GONZÁLEZ, A a. U Li ellus Sa ti Tho e Ca tua ie sis A hiepis opi A hi o

de la Cated al de Tu , C di e , ff. XIX -XXVII . Hispa ia Sa a, Mad id, . LXI, . , p. -


, e e o-ju io . p. .
5 Flo ez afi a ue ha ia u a pia o pleta da efe ida Vita a Co f a ia de Baio a,
ue ele te ia usado, e eados do s ulo XVIII, pa a o pleta o esu o ue ap ese ta
e seu t a alho. Co tudo, tal pia se pe deu. FLOREZ, He i ue. España Sag ada.
Theat o geog aphi o-histo i o de la iglesia de España. Mad id: A to io Ma i , . t.,
T. . p. .
6 Utilizo as su di is es do a us ito pa a i di a as pa tes da lege da e io adas o
de o e do t a alho.
7 FLOREZ, H., Op. Cit., p. ; MANSO PORTO, C. A te g ti o e Gali ia: Los do i i os. La
Co uña: Fu da i Ped o Ba i de la Maza, . ., V. .p. . I feliz e te o ti e
a esso di eto a o a de Ma so Po to, s a t e hos ia i te et.
8 SOCII BOLLANDIANI. Bi liothe a hagiog aphi a lati a a ti uæ et ediæ ætatis. B u ellis:

So i t des Bolla distes, - . t.,T. . p. .


42
por Henrique Flórez no tomo 23 de sua España Sagrada, em 1767,9 e
outra traduzida para o espanhol, preparada pelo historiador tudense
Suso Vila, lançada em 2009.10 Até o momento não foi elaborada uma
edição crítica da obra seguindo critérios filológicos, codicológicos,
literários e historiográficos.
No decorrer da pesquisa não encontrei trabalhos preocupados em
realizar análises sistemáticas da LBPG. Como esta obra é a fonte mais
completa e antiga sobre a trajetória de Pedro González,11 é muito
mencionada pelos biográfos do santo ou por aqueles que estudam sobre
o seu culto. Dentre estes, destaca-se o livro de Galmés, no qual o autor
dedica algumas páginas para apresentar a Legenda.12 Suso Vila também
faz considerações sobre a Vita, mas como o seu principal objetivo é
elaborar uma história do culto a S. Pedro González, desde sua morte até
o século XXI, também não faz reflexões mais aprofundadas.13
Também localizei dois autores que estudam a produção
hagiográfica ibérica centromedieval e mencionam a LBPG: Fernández
Conde, que se refere a essa obra para ilustrar os aspectos que
singularizam a hagiografia ibérica em La religiosidad medieval en España:
Plena Edad Media, ss. XI-XIII,14 e Angeles García de la Borbolla, que faz
menções a esta Vita em quatro textos, publicados entre os anos de 1999
a 2011,15 que têm como foco o conjunto das hagiografias castelhano-

9 FLÓREZ, H., Op. Cit, p. - .


10 VILA, S., I ipt Lege da... Co ie za la le e da del Beato Ped o, o feso de la o de
de los p edi ado es. I : ____. Co po Sa to. Sa Tel o. Po te ed a: Cof adía de Sa Tel o
de Tui, . p. - .
11 Poste io e te, out os ele e tos ela io ados ida e ilag es de Ped o Go z lez
fo a adi io ados a essa e ia i i ial.
12 GALMÉS, L., Op. Cit., p. - .
13 VILA, S., Op. Cit., p. - . .
14 FERNÁNDEZ CONDE, F a is o Ja ie . La eligiosidad edie al e España: Ple a Edad
Media, ss. XI-XII. O iedo: U i e sidad de O iedo, . p. - .
15 GARCÍA DE LA BORBOLLA, A geles. Algu as o side a io es so e la p edi a i

edie al a pa ti de la hagiog afía e di a te. E e ea: Re ista de Hu a idades


Cie ias So iales, Huel a, . , p. - , ; GARCÍA DE LA BORBOLLA, A geles. El
u i e so de lo a a illoso e la Hagiog afía Castella a. Boletí de la Real A ade ia de las
Bue as Let as de Ba elo a, Ba elo a, . , p. - , - ; GARCÍA DE LA
BORBOLLA, A geles. La fu i del sa to a pa ti de los elatos hagiog fi os. I :
ESPAÑOL, F a es a; FITÉ, F a es eds. . Hagiog afía pe i sula e els segles edie als.
Lleida: U i e sidad de Lleida, . p. - ; GARCÍA DE LA BORBOLLA, A geles. La
43
leonesas medievais. Neste sentido, sobre a LBPG há muitas dúvidas e
algumas hipóteses.

Conteúdo, datação, local geográfico e autoria da LBPG


A LBPG narra a vida, a morte e os milagres atribuídos à intercessão
de Pedro González. Segundo a própria legenda, ele nasceu em Frómista,
estudou nos Estudos Gerais de Palência e foi membro do cabido da
catedral, chegando a ocupar o cargo de Deão.16 Como relata a obra, após
cair ao andar a cavalo ricamente vestido pelas ruas da cidade, ficou
muito envergonhou, e ao refletir sobre a sua trajetória, 17 decidiu
ingressar na Ordem dos Pregadores. Depois de novos estudos, realizou
atividades de pregação; primeiro na Andaluzia e depois na Galiza.
Faleceu em 1246, em Tui, onde foi sepultado.
Não há consenso sobre o momento de composição da LBPG. Para
Garcia de la Borbolla, na segunda metade do século XIII.18 Para Suso Vila,
o último quartel do século XIII. 19 Segundo Novo Sánchez, foi no século
XIV.20 Com base na informação presente na LBPG de que Pedro González

ate ialidad e te a de los sa tos: sepul os, eli uias pe eg i a io es e la


hagiog afía astella o-leo esa siglo XIII . Medie alis o: Boletí de la So iedad Española
de Estudios Medie ales, Mad id, . , p. - , .
16 Segu do Díaz Bodegas, De o a p i ipal dig idade do Ca ido, a ual todos os de ais

e os de e se su ete Cf. Glosa io de o a ulos edie ales. I : DÍAZ BODEGAS,


P. La Di esis de Calaho a la Calzada e el siglo XIII: la sede, sus o ispos e i stitu io es.
Log oño: O ispado de Calaho a La Calzada-Log oño, . p. .
17 O epis dio e tela foi u a ueda do a alo o ual Ped o Go z lez desfila a pelas
uas de Pal ia ap s to a -se de o. Te to lati o: ... ade te & e uo ipso, i lo u
ue da so didissi u , a lutuosu i is, e i e ito tu te po e ige te
hie iali, o tigit e idisse. De uo ita ue ta foedo, ta ue e e u do asu ta ta ejus
a i o a a a i epsit a a itudo, a sui ipsius ta ta e epit displi e tia , &
a o i atio e , de i u sta ti us e o e e u dia & u o e ... . FLOREZ,E. ,
p. . T aduç o: ... aído do a alo e luga sujíssi o e uito la a e to, de ido ao
te po de i e o ige te. De algo t o i fa a te e de t o e go hosa ueda, a a ga
a a gu a pe et ou e seu i o, e te e de si es o desgosto e epulsa e, dos
i u da tes, e go ha e u o .
18 GARCÍA DE LA BORBOLLA, A geles. La fu i del sa to a pa ti de los elatos
hagiog fi os. Hagiog afia Pe i sula e els segles edie als. Lleida: U i e sidad de
Lieida, , p. - , p. .
19 VILA, S. Op. Cit., p. .
20 NOVO SÁNCHEZ, Op. Cit., p. .
44
flo es e a estes ossos o íssi os te pos 21 e no inquérito dos
milagres atribuídos ao santo realizado nos anos de 1250, a mando do
bispo Gil de Cerveira,22 considero que ao menos uma primeira versão do
relato foi composta poucos anos após a morte de Telmo, na década de
1250.23
Como a LBPG enfatiza as missões do santo na Galiza, é muito
provável que tenha sido redigida nesta região. De forma mais específica
em Tui, pois, dentre todas as localidades galegas mencionadas, é a que
recebe maior destaque, por ser o local da morte, sepultamento e núcleo
inicial do culto a Pedro González.
O nome do autor da legenda não é conhecido, mas García de la
Borbolla24 e Suso Vila25 afirmam que foi um frade pregador. A redação
da LBPG por um dominicano é possível, já que tais religiosos estavam
estabelecidos na Galiza desde 1222, data provável de fundação do
primeiro convento na região, São Domingos de Bonaval, em Santiago de
Compostela.26 Há notícias sobre vários irmãos letrados que circularam
pela Galiza no século XIII, tais como Sueiro Gomes, Fernando Pires,
Gualter do Porto, Lourenço Mendes, Gil de Santarém, Raimundo de
Peñaforte, Geraldo Domingues, João de Faria, Domingos de Tui.27

21 Optei po t a s e e o o po do te to a t aduç o pa a o po tugu s da LBPG


ela o ada po i a pa ti das ediç es de Fl ez e Suso Vila, i lui do as otas o te to
lati o, sal o ua do a t a s iç o figu a u i a e te as otas. Te to lati o: His
o issi is ost is te po i us . Cf. FLÓREZ, H. , p. .
22 Esse i u ito foi e etido ao Capítulo Ge al da O de dos P egado es eu ido e
e e io ado a Vitae F at u Cf. GERARDUS DE FRACHETO. Vitae F at u
O di is P aedi ato u . I : GELABERT F . Miguel e MILAGRO F . Jos Ma ia eds. . Sa to
Do i go de Guz a isto po sus o te po eos. Mad id: BAC, . p. - ..
Pa te desse i u ito foi p ese ado e pu li ado po He i ue Fl ez, FLÓREZ, H., Op.
Cit., p. - e VILA, S., Op. Cit. p. - .
23 Ap ese to u a dis uss o ais detalhada so e o p o esso de p oduç o da LBPG e
A lege da Beati Pet i Gu disal i: efle es so e a elaç o e t e a O de dos P egado es,
a Dio ese de Tui e a es ita hagiog fi a. Hist ia, F a a, . , e , . Dispo í el e
http:// .s ielo. /pdf/his/ / - -his- -e .pdf
24 GARCÍA DE LA BORBOLLA, A geles., Op. Cit., p. .
25 VILA, S. Op. Cit., p. .
26 So e o ostei o de Bo a al e VILLAR, Au elia o Pa do. Los do i i os e Sa tiago:
apu tes hist i os. Sa tiago de Co postela: Edito ial CSIC, .
27 Ve , po e e plo, a listage ap ese tada e ROSÁRIO, A t io, O. P. Do i i a os a
Hist ia da S de B aga. I : IX Ce te io da Dedi aç o da S de B aga. CONGRESSO
INTERNACIONAL. A tas... B aga: U i e sidade Cat li a Po tuguesa - Ca ido
45
Qualquer um desses ou ainda outro pregador, cujo nome não é
conhecido atualmente, poderia ter composto a obra.
Os principais argumentos para sustentar a autoria dominicana da
LBPG são as semelhanças entre essa legenda e as obras hagiográficas
dedicadas a Domingos de Gusmão,28 considerado o fundador da Ordem
dos Pregadores, e o fato de Telmo ter pertencido ao referido instituto.
Porém, nenhum desses dois argumentos é definitivo para a indicação do
lugar social do redator da LBPG.
Em relação à primeira alegação, como Domingos de Gusmão foi
canonizado pelo papado em 1234, as hagiografias sobre ele já deveriam
circular amplamente na década de 1250, inclusive fora dos ambientes
dominicanos, tornando-se conhecida entre os letrados eclesiásticos e
leigos. Logo, mesmo quem não era frade pregador poderia conhecer e
se inspirar nas narrativas sobre o Santo fundador.
Sobre a segunda razão, a filiação religiosa de Pedro González era,
certamente, conhecida pelos seus contemporâneos, já que ele atuou,
segundo aponta a própria LBPG, como pregador em diversas localidades
da Galiza. Portanto, essa era uma informação que não poderia ser
omitida em uma legenda que foi escrita somente alguns anos após a sua
morte.
Ainda sobre a autoria, há que refletir sobre a observação de
Galmés quanto às diferenças de estilo que a LBPG apresenta.29 Neste
se tido, os p i ei os apítulos a o a possui i dis utí el sa o
í li o , pois ela io a os e si a e tos da Sag ada Es itu a o as
manifestações temporais da divina Providência através de seus
sa tos .30 Porém, a partir do texto nove:

Met opolita o e P i a ial de B aga, . ., V. / , p. - , . p. - .


28 Po e e plo, a dedi aç o de Ped o Go z lez aos estudos, a ada a LBPG, si ila a

de Do i gos de Gus o, tal o o des e e a Lege da at i uída a Ped o Fe a do.


A o dei de fo a detalhada o te a o a tigo Edu atio , Do i i a O de a d
Hagiog aph : a o pa ati e a al sis of Lege da Beati Pet i Gu disal i a d Lege da Sa ti
Do i i i. A ta S ie tia u : Edu atio , Ma i g , . , p. - , .
29 GALMÉS, L., Op. Cit., p. - .
30 ... i dis uti le sa o li o , pois ela io a las e saña zas de la Sag ada Es itu a
o las a ifesta io es te po ales de la di i a P o ide ia a t a s de sus sa tos .
GALMÉS, L., Op. Cit., p. .
46
(...) o redator da Legenda, tal como aparece na edição de
Flórez, muda o tom e dá a sensação de empreender
outros caminhos. Na verdade, já não se veem com tanta
claridade os traços bíblicos que pareciam sustentar o
relato. A narrativa se torna mais realista ou novelesca.
Entram em jogo descrições e discursos, que a tornam
mais atrativa, mas a redação perde eficácia didática. Em
contraponto, a força do exemplo é favorecida e com
possibilidade de impactar mais a sensibilidade popular.31

Desta forma, é possível sugerir que o material atualmente


conhecido pode ser resultado da ação de mais de um autor ou editor,
que poderiam se vincular a ambientes sociais diferentes e até terem
interferido na LBPG em momentos distintos.
Por fim, mais um pontoa salientar: a redação de uma obra no
medievo implicava em altos custos. Assim, além de um ou mais autores,
para a composição de uma obra era necessário um patrocinador, uma
instituição ou pessoa que reunia os recursos materiais para viabilizar a
escrita da legenda. Provavelmente a Ordem dos Pregadores estabelecida
na Galiza possuía tais recursos, mas teria o interesse de compor uma vita
de Pedro González? A LBPG apresenta elementos que permitam concluir
que os dominicanos foram os promotores da obra?
Essas questões me motivaram a realizar uma análise de como a
Ordem dos Pregadores é apresentada e caracterizada na LBPG, como já
destacado no início do texto. Esta reflexão tem como meta a reunião de
dados para discutir, à luz de outras informações, possíveis motivações
dominicanas para a construção de uma memória textual de santidade de
Pedro González.

31 ... el eda to de la Lege da, tal o o apa e e e la edi i de Fl ez, a ia de


to o da la se sa i de e p e de ot os de ote os. De he ho a o se e o ta ta
la idad las etas li as ue pa e a soste e la ela i . La a a i se uel e s
ealista o o eles a. E t a e juego des ip io es dis u sos, ue la ha e s
at a ti a, pe o la eda i pie de efi a ia did ti a. E a io la fue za del eje plo sale
fa o e ida o posi ilidades de i pa ta s a la se si ilidad popula . GALMÉS, L.,
Op. Cit., p. .
47
A Ordem Dominicana na LBPG
Do conjunto de 15 partes nas quais o manuscrito medieval
subdivide a LBPG, há referências explícitas à Ordem dos Pregadores em
seis.32 Passo a apresentá-las.
No p logo, o título desta ado e e elho i di ado Co eça
a lege da do Beato Ped o, o fesso da O de dos P egado es .33 Após
sublinhar que em um momento perigoso os santos brilham na Igreja
Universal, é ressaltado na narrativa que um novo confessor foi plantado
a i ha do Se ho : Ped o da flo es e te O de dos P egado es. .34
A segunda referência figura na parte cinco, intitulada So e o
i g esso a O de .35 Neste trecho, destaca-se que Pedro González,
seguindo o exemplo do Apóstolo Pedro, retornando ao caminho que
seguira no começo de sua vida, retirando de seu coração as ambições
humanas e renunciando a tudo, ingressou na Ordem dos Pregadores,
informando que fora instituída recentemente. Além disso, a ordem é
qualificada como pobríssima.
A narração destaca que, com o ingresso na Ordem, Pedro tornou-
se, rapidamente, um novo homem. E nessa transformação, acrescenta o
narrador, ele o esta a s , pois uitos se os de Deus da es a
Ordem, que abandonaram a imundície há não grande decurso de tempo,
e ala ag ífi a sa tidade .36
A terceira referência está na parte seis, na qual é informado que
Pedro, mudado, guiava-se pelo exemplo de Santo Domingos. A obra
também destaca que o frade seguia os costumes da sua Ordem e
suplicava a Deus para ter a ciência necessária para pregar, o que lhe foi
concedido. Assim, vivendo em pobreza evangélica, passou a predicar
com palavras, obras e exemplos e a ouvir confissões.

32 Se dú ida a o a possuí out as efe ias ue pode se asso iadas aos


do i i a os, o o, po e e plo, a se elha ça e t e os ilag es at i uídos a Ped o
Go z lez e aos asso iados a Do i gos de Gus o. Co tudo, o o assi alei o o po do
te to, as efe ias di etas fo a o fo o da i ha a lise.
33 Te to lati o: i ipit lege da B. Pet i Co fesso is, o di is p aedi ato u . FLOREZ, H.
Op. Cit., p. .
34 Te to lati o: Pet u de flo ido P aedi ato u O di e . FLOREZ, H., Op. Cit., p. .
35 Te to lati o: De i g essu o di is . FLOREZ, H., Op. Cit., p. .
36 Te to lati o: ... plu i os O di is ejusde Dei fa ulos, ui o ultis de u sis
te po i us i u du e e e a t, odo e i a dae sa titatis . FLOREZ, H., Op. Cit., p.
.
48
A quarta encontra-se na oitava parte do texto e é ao mesmo
tempo pontual e específica. Pontual, pois é feita em meio a uma
narrativa sobre um milagre ocorrido nas margens do rio Minho, como
um pequeno acréscimo que visa a identificação de um dos personagens
do relato. Específica, já que não se refere aos dominicanos em geral, mas
aos da cidade de Tui.
Segundo o relato, Pedro González reuniu recursos e um grupo de
pessoas para edificar uma ponte em Vila do Castelo. Durante a
construção, quando faltavam peixes para a refeição dos trabalhadores,
bastava que o Santo e o seu companheiro ficassem nas margens do rio
para que os animais se oferecessem como alimento, colocando-se nas
mãos dos frades. Quando é informado o nome do companheiro do
santo, Pedro Martínez, há também uma observação, que, no manuscrito
medieval, figura entre parênteses:37 o ue ago a e Tui, a asa dos
P egado es, o o asso iado e ida, a o te e e ado .38 Trata-se
da única menção aos frades pregadores tudenses em toda a obra.
As duas últimas referências, tal como a anterior, são pontuais e se
referem ao convento dominicano de Compostela. Na leitura 9, destaca-
se que Pedro González fora designado para o convento Compostelano,39
e na 13, é indicado que após o frade ficar doente, resolveu ir para a
cidade de Santiago, para dirigir-se ao referido convento.40

Uma proposta de interpretação


Como interpretar as menções à Ordem dos Pregadores na LBPG?
Em primeiro lugar, sublinho a preocupação, já no início do texto,
de associar Pedro à Ordem dos Dominicanos. Mas por que iniciar a
legenda com essa vinculação?
Como testemunha a bula Religiosam Vitam,41 a Ordem dos
Pregadores foi confirmada pelo Papa Honório III em 1216. Assim,

37 I feliz e te o foi possí el e a i a o di e pa a o lui se esta a aç o u a


adiç o poste io . Na pes uisa, utilizo u a pia digitalizada dos f lios.
38 Te to lati o: ... ui u Tudae apud do u P aedi ato u eI ide , si ut i ita, si
&i o te asso iatus e e atu . FLOREZ, Op. Cit., p. .
39 Te to lati o: Post odu e o u I ide , f ate Pet us Co postella o esset
asssig atus Co e tui saepedi ti O di is P aedi ato u FLOREZ, Op. Cit.,, p. .
40 Te to lati o: i de e ede s e sus Co postella oepit pe ge e ad sui O di is
Coe o iu . FLOREZ, H., Op. Cit., p. .
41 O te to o pleto desta ula est dispo í el, e espa hol, o li k
49
considerando a segunda metade do século XIII como provável momento
de redação da LBPG, vale sublinhar que nessa conjuntura esse grupo
religioso ainda estava em franca expansão e em fase de organização
institucional. Provavelmente, já era uma Ordem conhecida entre os
eclesiásticos e leigos e vista, por muitos, como uma novidade positiva,
pois era reconhecida pelo papado e apoiada pela realeza ibérica.
Graña Cid, que estudou especificamente a presença mendicante
na Galiza, conclui:
(...) os frades gozavam do apoio dos habitantes das
cidades, embora todavia ainda não haviam conseguido
suplantar em popularidade os outros institutos
religiosos, mais antigos, e haviam suscitado uma reação
semelhante entre os membros do setor nobiliário.42

A pesquisadora explica que os mendicantes não superaram, no


século XIII, os grupos religiosos tradicionais, sobretudo os monges, na
atração por ofertas, no apoio para fundações de conventos e na busca
por enterramentos em seus cemitérios, sobretudo entre os nobres. 43
Contudo, como a pregação itinerante foi uma estratégia dos Pregadores,
certamente muitos leigos tiveram contato com os frades e essa
experiência foi positiva.
E ua to aos e lesi sti os? Ai da segu do G aña Cid … os
dados disponíveis parecem indicar que são as altas hierarquias
eclesiásticas as que estão mais atentas – para bem ou para mal – aos
f ades du a te o s ulo XIII .44 Ela destaca, sobretudo, o apoio dos
ispos, ue ti ha u o he i e to ais e ato dos i te esses
supe io es da Ig eja ; alo izavam o papel dos frades como mediadores

.do i i os.o g/fa ilia-do i i a a/f ailes/ ula. A esso e de julho de .


42 … los f ailes goza a del apo o de los ha ita tes de las iudades, au ue toda a o
ha a o seguido desplaza e popula idad a ot os i stitutos eligiosos s a tiguos,
ue ha a sus itado u a ea i se eja te e t e los ie os del se to o ilia io .
Cf. GRAÑA CID, Ma ía del Ma . F a is a os do i i os e la Gali ia edie al: aspe tos
de u a posi i de p i ilegio. A hi o I e o-A e i a o, Mad id, . , . - , p. -
, . p. - .
43 I ide , p. .
44 … los datos dispo i les pa e e i di a ue so las altas je a u as e lesi sti as las
ue est s pe die tes – pa a ie o pa a al – de los f ailes du a te el siglo XIII
I ide , p. .
50
a sal aç o e esta a ie tes de sua supe io p epa aç o
i tele tual . 45

Desta forma, seguindo a conclusão de Graña Cid, se a Ordem dos


Pregadores era conhecida pelos leigos e eclesiásticos por seu rigor e
dedicação à pastoral, associar Pedro González a tal grupo, logo no início
do texto, pode ter sido uma estratégia discursiva para realçar as suas
virtudes e, por extensão, promover o seu culto.
A menção à Ordem dos Pregadores também pode ter sido incluída
para sublinhar a conversão de Telmo e a sua decisão por mudar
radicalmente de vida, renunciando às ambições terrenas, já que, como
Deão do cabido da Sé de Palência, possuía autoridade, prestígio e
benefícios. Assim, são destacadas as transformações operadas no frade,
que se torna pobre, manso, obediente, puro, ou seja, repleto de virtudes
que eram tradicionalmente associadas à santidade. A Ordem, com sua
rigorosa disciplina, funciona, portanto, como uma espécie de
instrumento para a ascese, uma forma de vida desafiadora que foi
seguida por Pedro González na sua busca por perfeição espiritual.
A LBPG também destaca que Domingos foi o modelo seguido pelo
frade e o intercessor a quem ele recorria a fim de suplicar auxílio para
conseguir se dedicar à salvação das almas. Esse dado é compreensível,
se for considerado, como assinalado, que o Fundador já havia sido
canonizado pelo papado como santo universal no momento de redação
da obra.
Contudo, desde 1253, havia outro dominicano canonizado: Pedro
de Verona, que fora assassinado por um herege e, portanto, foi
considerado um mártir.46 Por que a obra também não o menciona?
Uma primeira tentativa de resposta, que não passa de uma
conjectura, pois não há testemunhos para sustentá-la, seria explicar a
ausência de referências ao Mártir porque a LBPG foi escrita antes da
difusão da sua canonização. Outra possibilidade interpretativa é que,
como a legenda visava realçar a santidade de Pedro, talvez não fosse
estratégico incluir referências a um santo que alcançara a coroa do

45 ... ue te a u o o i ie to s e a to de los i te eses supe io es de la Iglesia


alo a a el papel de los f ades o o ediado es e la sal a i e esta a ie tes de
sua supe io p epa a i i tele tual I ide , p. .
46 So e Ped o de Ve o a e seu ulto e PRUDLO, Do ald. The Ma t ed I uisito : The

Life a d Cult of Pete of Ve o a + . Alde shot: Ashgate P ess, .


51
martírio, sinal da renúncia completa pela fé. Citar somente Domingos
pode ter sido mais uma forma de associar Pedro à Ordem dos
Pregadores por meio de seu fundador.
Outro aspecto a realçar é a relação presente na LBPG entre os
dominicanos e uma das principais características associada à santidade
de Pedro González: a sua dedicação à pregação. A obra enfatiza que tal
preocupação só surgiu após o seu ingresso na Ordem, ainda que
anteriormente ele tenha sido membro do cabido catedralício.
Vale destacar que o ato de predicar é uma atividade associada
também a santos não dominicanos em textos hagiográficos
contemporâneos. Um exemplo pode ser encontrado na Vida de Santo
Domingo de Silos de Gonzalo de Berceo, escrita por volta de 1240, na
qual o protagonista, um beneditino, é retratado proferindo um longo
sermão para os leigos.47 Mas Pedro González, além de pregar, segundo
a LBPG, dedicava-se a ouvir confissões, o que parece ser uma marca
distintiva dos santos mendicantes nas hagiografias produzidas no século
XIII.48
Pregar e ouvir confissões, entretanto, eram metas delineadas pela
Igreja de Roma para todos os clérigos, e não só para os Frades
pregadores, desde fins do século XII. Neste sentido, basta recordar o
cânone 10 do IV Concílio de Latrão, de 1215, no qual é estipulado que
em todas as dioceses deveriam ser designadas pessoas capacitadas para
auxiliarem os bispos na pregação, no recebimento de confissões, na
imposição das pe it ias, e a u a das al as .49
Se, por um lado, é possível considerar que a ênfase na dedicação
de Pedro González para pregar e ouvir confissões seja uma forma de
sublinhar o seu perfil como dominicano na LBPG, por outro, pôde ter sido
incluída para que o frade funcionasse como uma espécie de modelo para
os clérigos em geral. Em um momento em que se buscava disciplinar os
eclesiásticos no campo moral e promover a sua educação, a fim de
prepará-los para o serviço pastoral, um santo repleto de virtudes e

47 Vida de Sa to Do i go de Silos, est ofes a . GONZALO DE BERCEO. O as


o pletas. Estudo e ediç o íti a po B ia Dutto . Lo d es: Ta esis Books, . . :
la Vida de Sa to Do i go de Silos.
48 GARCÍA DE LA BORBOLLA, A geles. Algu as o side a io es …, Op. Cit.
49 Os o es de Lat o IV, e lati , est o dispo í eis e
.i te ets .i fo/A hi e/CLate a e se .pdf. A esso e de outu o de .
52
devotado à cura animarum poderia ter a função de estimular os
consagrados em geral a imitá-lo.
E como explicar a referência pontual aos dominicanos de Tui? Por
que a casa dos dominicanos não é explorada como o principal local do
culto a Telmo, em uma hagiografia dedicada ao santo?
Graña Cid, baseando-se em um documento publicado por Pardo
Villar, por meio do qual o cavalheiro D. Ociro e sua mulher, D. Elvira,
doam uma casa e uma vinha, em 1250, aos frades da Ordem dos
Pregadores de São Domingo que moram na vila de Tui, propõe que é
possível que já houvesse um grupo de irmãos estabelecido nesta
localidade ao menos desde meados do XIII.50
Unindo esse testemunho à forma como as residências
dominicanas de Tui e Santiago de Compostela são denominadas na
LBPG, é possível traçar outras considerações. Enquanto a expressão
usada pa a desig a a tude se domum Praedicatorum , ue pode se
traduzida por Casa dos Pregadores, para referir-se à compostelana são
utilizados os te os Conventui Ordinis Praedicatorum e Ordinis
Coenobium . H , po ta to, u a dife e ça, ai da ue sutil, a
qualificação de um e outro local.
As expressões usadas para referir-se ao convento compostelano
não deixam dúvidas de que se tratava de um espaço juridicamente
vinculado à Ordem. Já o uso de casa dos pregadores associado à
comunidade de Tui permite interpretar que o local ainda não possuía
caráter estável e vinculação institucional com a Ordem. Alguns frades
poderiam permanecer em alguma casa em Tui por temporadas, a fim de
desenvolver seu ministério de pregação e ouvir confissões, sem que a
residência tivesse organizada como um convento.
Suso Vila informa que o convento dominicano tudense só foi
fundado na década de 1270.51 Neste sentido, considerando que a LBPG
foi composta por volta de 1250, ainda não havia um convento
estabelecido na cidade, o que explicaria que a Catedral tenha se tornado
o local de sepultamento do Santo, guarda de suas relíquias e centro

50 GRAÑA CID, Ma ía del Ma . Geog afía de lo sag ado ea i de o e tos: Las


de es e di a tes e Gali ia siglos XIII-XIV . Mis el ea Co illas: Re ista de Cie ias
Hu a as So iales, Mad id, . , . , p. - , . p. .
51 VILA, S. Op. Cit., p. - .
53
radiador do seu culto, ainda que o texto destaque que na casa
dominicana Pedro González e Pedro Martínez fossem venerados.
Outra explicação para o fato de que a casa dos dominicanos de Tui
não tenha se tornado o principal centro de culto a Pedro González pode
ser encontrada quando o olhar é ampliado. Como alguns autores têm
insistido, não havia por parte dos Frades Pregadores um interesse em
promover o culto individual de seus membros. Por um lado, como
salienta Gómez-Chacon, alguns frades temiam que o culto aos santos
atraísse doações, gerando perigo para o cumprimento da observância da
pobreza.52 Por outro, a meta era constituir uma identidade coletiva de
santidade, que abarcasse todos os irmãos.53 Daí a preferência pelas
compilações hagiográficas, como os legendários e as Vitae Fratrum, nos
quais a ênfase recai não em personagens particulares, mas no grupo. Se
esta era a diretriz geral a ser seguida na Ordem, ao menos nas décadas
de 1250 e 1260,54 por que patrocinar a redação de uma legenda para
realçar as virtudes de um único irmão?
O inquérito de milagres de Pedro González, preparado a pedido
do bispo Gil de Cerveira, acima citado, foi encaminhado ao Capítulo Geral
da Ordem dos Pregadores em 1258. Não há notícias de que ele tenha
gerado um processo de canonização. O que ocorreu foi a incorporação
de parte desse material, junto a vários outros relatos sobre frades
virtuosos, na Vitae Fratrum.55
Em contrapartida, para outros patrocinadores, a vinculação de
Pedro González com a Ordem dominicana, devido ao perfil apostólico e
à rigorosa disciplina dos irmãos pregadores, poderia ser um aspecto a
mais para garantir a sua aceitação como figura virtuosa e digna de
veneração. Tais características funcionavam como um meio de
aproximar o santo do modelo de Cristo e, portanto, poderiam suscitar a
devoção dos fiéis, que seria demonstrada por meio de peregrinações e

52 GÓMEZ CHACÓN, Dia a Lu ía. Sa Ped o M ti de Ve o a. Re ista digital de i o og afía


edie al, Mad id, . , . , p. - , . p. .
53 Co o defe dido e BOUREAU, Alai . No o aç o da Idade M dia: Os do i i a os
e a aest ia a ati a. Re ista de Hist ia Co pa ada, Rio de Ja ei o, . , . , p. -
, .
54 ALMEIDA, N i de Ba os. Hagiog afia, P opaga da e Me ia Hist i a. O
Mo asti is o a Lege da Au ea de Ja opo de Va azze. Re ista Te it ios & F o tei as,
Cuia , . , . , p. - , jul.-dez., . p. .
55 GERARDUS DE FRACHETO, Op. Cit., p. - .
54
ofertas. Desta forma, a presença de referências à Ordem dos Pregadores
não é uma evidência inquestionável de que a LBPG foi promovida por
esse instituto religioso.
É possível supor que um ou mais autores e/ou redatores da LBPG
possam ter tido vínculo direto com os dominicanos, o que explicaria as
semelhanças com as legendas dedicadas ao fundador. Contudo,
certamente eles compuseram a obra a mando de um patrocinador
distinto da Ordem, que possuía motivações particulares para promover
a memória e culto a Pedro González em meados do século XIII.
Como discuti em outro trabalho, defendo que o patrocinador da
LBPG foi a Catedral de Tui. Ela possuía recursos materiais para financiar
a redação desse texto e carecia de um patrono diretamente ligado à
cidade. Como já frisado, foi o bispo de tudense, Gil de Cerveira, que
ordenou a realização de um inventário dos milagres do santo, o que
aponta para o interesse episcopal por sublinhar os feitos de Pedro
González, que era um irmão pregador que atuou na região da Galiza e
faleceu em Tui. Provavelmente ele também encomendou a redação da
Vita, talvez até a um frade. Por isto as referências diretas à Ordem
Dominicana não foram ignoradas, mas figuram, como demonstrado, só
em alguns pontos da obra.

Considerações finais
As menções à ordem dominicana no conjunto da LBPG são pontuais e
genéricas: fora recém instituída; era pobre, e os frades a ela vinculados se
dedicavam a pregar e ouvir confissões. No momento de redação da legenda,
segunda metade do século XIII, ou seja, algumas décadas após o reconhecimento
papal da Ordem dos Pregadores, os irmãos já eram conhecidos no Ocidente e
estavam instalados na Península Ibérica. O próprio fundador, Domingos, era
natural da Hispânia. Assim, o pertencimento a este instituto religioso era um
aspecto positivo na caracterização de Pedro González e, portanto, não poderia
ser esquecido.
Interpreto as menções à Ordem na LBPG, portanto, como uma estratégia
textual para destacar a radical transformação do santo, por isto o foco da narração
está nas virtudes e nas atividades realizadas pelo protagonista após a sua decisão
por uma mudança radical de vida. Ou seja, as referências foram inseridas para
engrandecer a figura de Pedro González e não para afamar a Ordem dominicana
como um todo.
55
Como sublinham diversos autores, com os quais concordo, o realce dado
de forma particular à santidade de um frade não foi uma política desenvolvida
pelos dominicanos no século XIII, pois objetivavam sublinhar a retidão do
conjunto dos irmãos.56 Esta não é a proposta da LBPG, que ressalta as virtudes e
milagres de Pedro González, tratando-o como uma figura excepcional.
Desta forma, apesar da LBPG fazer referências à Ordem dos Pregadores,
defendo a hipótese de que o patrocinador da redação desta obra não foi este
instituto, mas outro grupo que tinha interesses particulares na promoção do culto
a Telmo. Como a LBPG vincula o santo à cidade de Tui, e, especialmente à
Catedral, provavelmente, o promotor da redação desta hagiografia foi o cabido
da Catedral.

56 Tal ez a efe ia uase a gi al e e aç o a Ped o Go z lez e a Ped o Ma tí ez


a asa dos do i i a os e Tui o o ju to do te to seja u a i te polaç o poste io
feita po u do i i a o pa a efo ça a ideia de u a o de fo ada po ho e s sa tos,
j ue des ia a a ati a, es o ue po tual e te, pa a out o f ade p egado al de
Tel o, o p otago ista da LBPG.
56
A COMEMORAÇÃO DAS ALMAS DA LEGENDA ÁUREA: SOLIDARIEDADE
ENTRE VIVOS E OS MORTOS DO PURGATÓRIO

Laís Luz de Carvalho1

Introdução

O presente trabalho parte de algumas reflexões iniciais


realizadas para a pesquisa monográfica. Como fonte documental, utilizo
o apítulo a Co e o aç o das Al as da Lege da Áu ea LA , ue t ata
de questões doutrinais acerca do Purgatório. O referido legendário é
uma compilação de vidas de santos e festas litúrgicas, produzido na
segunda metade do século XIII, na Península Itálica, pelo frade
dominicano Jacopo de Varazze. Busco neste artigo, entender os
objetivos e a dinâmica da solidariedade incentivada pela Igreja Romana,2
entre os fiéis cristãos vivos e mortos.
A proposta consiste em, por meio da Análise de Narrativa,3
observar a ênfase dada a alguns elementos como os pecados e as penas
atribuídas aos pecadores, e a relação estabelecida entre os personagens
das anedotas exemplares – ou exempla – incorporadas à exposição
teológica. Este aspecto está atrelado à instituição do dia de
Comemoração das Almas – ou Dia de Finados –, e à tomada de
consciência do Purgatório como um terceiro espaço intermediário do
Além. Segundo a historiografia, tal mudança, embora lenta e discreta,
estava vinculada a uma modificação significativa na prática de culto aos
mortos. Por fim, apontarei como esta abordagem da questão do

1 G adua da do I stituto de Hist ia da UFRJ. Vi ulada ao P og a a de Estudos


Medie ais PEM-UFRJ o o o ie ta da da P ofesso a Douto a A d ia C isti a Lopes
F az o da Sil a.
2 Ao utiliza o te o Ig eja Ro a a, desta o ue o se pode to a a Ig eja o o u a
i stituiç o o solidada desde o p i ípio do pe íodo edie al, e si o o u
o i e to de u ifi aç o ue se i i ia po olta do s ulo XI e e o t a seu ple o
dese ol i e to o s ulo XIII.
3 A A lise de Na ati a se utilizada o o o jeti o de ide tifi a e a alisa os di e sos

ele e tos ue o figu a a a ati a e ue a to a u todo de se tido . SILVA,


A d ia C isti a Lopes F az o da. Refle es etodol gi as so e a a lise do dis u so
e pe spe ti a hist i a: pate idade, ate idade, sa tidade e g e o. C o os: Re ista
de Hist ia, Ped o Leopoldo, . , - , . p. .
57
Purgatório e o incentivo à solidariedade, por meio, sobretudo de
sufrágios, poderia atender aos interesses da Ordem Dominicana e da
Igreja Romana em tempos de reformas.

Considerações sobre o Além Medieval


Na Alta Idade Média não existia a noção de julgamento individual
da alma após o trespasse, mas somente de um julgamento coletivo dos
cristãos no Juízo Final. Portanto, as incertezas do paradeiro da alma
imediatamente após a morte acabaram por abrir a possibilidade de um
espaço de espera pela salvação no Além.4 Desde os Pais da Igreja, havia
uma reflexão sobre a situação das almas entre a morte e o Julgamento
Final, e embora as opiniões fossem variáveis, já se pensava que as almas
poderiam ser salvas durante esse período após sofrerem uma provação.
Tal crença já vislumbrava a gênese do Purgatório que surgiria no século
XII.5
A vida terrena poderia ser entendida como um combate
constante pela salvação, pois esta estava em risco a todo instante, e é
desta tensão escatológica que derivava o medo da morte súbita, sem a
possibilidade da confissão e purificação antes do falecimento.6 Para se
salvar, a primeira condição era ser batizado, depois era preciso ter
confessado os pecados, ter se arrependido verdadeiramente, e ter
prestado as devidas penitências. Mesmo os que não tivessem
conseguido pagar por seus pecados em vida, precisavam pertencer à
cristandade para se beneficiarem de uma ajuda após a morte.7
O Purgatório surgiu como um local reservado à purificação das
almas que partiram da vida em pecado, para então chegarem ao Céu, 8

4 DIAS, Ma ta Mi ia Ra os. A litu gia dos defu tos a a te fu e ia edie al. I ipit .
Wo kshop de Estudos Medie ais da U i e sidade do Po to, – , Po to, p. - ,
. p. .
5 LE GOFF, Ja ues. O Nas i e to do Pu gat io. T aduç o Ma ia Fe a da Go çal es de

Aze edo. . ed. Lis oa: Esta pa, . p. .


6 LE GOFF, Jacques. Além. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean Claude. (Org.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002. 2 v. V.1. p. 21-34. p. 22.


7 LAUWERS, Mi hel. Os suf gios dos i os e efi ia os o tos? : hist ia de u te a

polêmico (séculos XI-XII). In: ZERNER, Monique. (Org.). Inventar a heresia: discursos
polêmicos e poderes antes da inquisição. Campinas: Unicamp, 2009. p. 163-169. p. 179.
8 A es olha deste te o foi pela az o de ue, e o a C u e Pa aíso te ha se
to ado si i os, a a tog afia do Al fez du a te uito te po disti ç o e t e
58
único destino possível dali em diante.9 Embora o passo seguinte fosse o
espaço celeste, os locais de purgação se assemelhavam muito às
descrições infernais. Portanto, esse terceiro lugar teria efeitos de um
Inferno temporário de acordo com o discurso eclesiástico, figurando
como um destino quase inevitável para todos os cristãos pecadores.
Restava-lhes deste modo, recorrer a medidas que pudessem abreviar a
estadia no Purgatório. A possibilidade de encurtamento do tempo de
expurgação ficaria então nas mãos dos vivos, por meio das orações,
missas, indulgências e sufrágios,10 já que os mortos não estariam mais
em condições de ajudarem a si mesmos. Desenvolveu-se a partir desta
situação o laço que ligaria toda a comunidade cristã, viva ou não: a
solidariedade diante da morte.

As reformas da Igreja, as Ordens Mendicantes e a pregação nas cidades


Para Le Goff, o sistema binário Céu-Inferno deu lugar a uma
geografia do além mais complexa, que se adequava melhor ao
desenvolvimento das cidades medievais.11 Durante os séculos XI-XIII o
Ocidente vivenciou um significativo crescimento demográfico, devido ao
progresso das técnicas de agricultura, assim como o restabelecimento
de uma paz relativa, e uma provável melhoria das condições climáticas.12
Em um cenário que, apesar de continuar essencialmente rural, as
cidades ganhavam um novo impulso,13 a aglomeração urbana fazia saltar
às vistas diversas práticas que causavam suspeita perante os olhares
mais austeros quanto à experiência religiosa. Multiplicaram-se neste
momento novos grupos sociais e profissões condenadas por induzirem
ao pecado.14 O Purgatório ofereceu, portanto, uma possibilidade de

uitos us, dos uais o Pa aíso se ia o ais alto. Cf: LE GOFF, , p. .


9 LE GOFF, J. Op.Cit., p. .
10 DIAS, M.M.R., Lo .C it.
11 LE GOFF, J. OP. it., p. .
12 CARDINI, F a o. A It lia e t e os s ulos XI e XIII. I : MONGELLI, L ia M ia. O g. .
Muda ças e u os: o O ide te edie al s ulos XI – XIII . Cotia: Í is, . p. - . p.
.
13 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 65.


14 Na Alta Idade Média algumas profissões foram condenadas e proibidas aos clérigos,

depois muitas vezes aos laicos. O tabu do sangue recaiu sobre os açougueiros, os
médicos e os soldados. Os clérigos se oporam aos guerreiros. O Tabu da impureza recaiu
59
salvação para estes ofícios tão comuns e necessários ao cenário urbano,
permitindo o exercício destas profissões que foram aos poucos sendo
reabilitadas.
A partir do século XI a Igreja medieval encontrava-se imersa em
período que ficou conhecido por suas reformas, buscando a
centralização do poder nas mãos do papado romano, no intuito de
emancipar a Igreja Romana da influência laica. Afirmando sua autonomia
e o caráter inviolável de seus bens, propriedades, direitos e
procedimentos sobre os quais se assentava a organização da Igreja de
Roma, buscava-se disseminar este modelo por todo o Ocidente.15 A
condenação da simonia, do concubinato eclesiástico, da alienação dos
bens da Igreja e da reafirmação da prerrogativa do clero de eleger os
bispos foram algumas questões que ganharam força neste momento.16
Os reformadores do século XI, em sua maioria monges,
buscavam o retorno ao que acreditavam ter sido a forma de vida da
Igreja Primitiva. Essa insistente incitação para retornar às origens, se
afastando de um mundo moralmente decadente, no qual a Igreja
Romana se encontrava envolvida, impulsionava a onda reformadora,
estendendo-a inclusive aos leigos.
As reformas reforçaram o primado do bispo de Roma, que
também visava enquadrar movimentos espontâneos capazes de
perturbar a ordem eclesiástica. Além disso, aprofundou-se a
demarcação entre o clero e os fiéis.17 Suas respectivas funções,
espirituais e temporais, deveriam ficar mais claramente delimitadas,
principalmente pelo desenvolvimento da liturgia romana. Com o retorno
ao modelo ideal de Igreja primitiva, a imitação do que acreditava-se ter
sido a ida e dadei a e te apost li a i spi ada o E a gelho, t a ia

sobre os pisoeiros, os tintureiros, os cozinheiros, as lavadeiras e os lavadores de louça.


Tabu do dinheiro condenou os mercenários, os campeadores, as prostitutas, os
mercadores, e entre eles os cambistas e os usurários. LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a vida.
São Paulo: Editora Brasiliense, 2004. p. 44-45.
15 RUST, Lea d o Dua te; SILVA, A d ia C isti a Lopes F az o da. A Refo a G ego ia a:
t ajet ias histo iog fi as de u o eito. Hist ia da Histo iog afia, Ou o P eto, . , p.
- , . p.
16 ARNALDI, Gi ola o. Ig eja e Papado. LE GOFF, Ja ues; SCHIMITT, Jea Claude. O g. .

Di io io Te ti o do O ide te Medie al. Bau u: EDUSC, . . V. . p. - . p.


.
17 I ide , p. .
60
com força o movimento da pobreza como opção, de pregadores
itinerantes no limite da heresia ou além.18
As Ordens Mendicantes nasceram no início no século XIII, e
embora aceitassem uma regra de vida comunitária e ascética, tal como
os monges, não optavam pela fuga do mundo. Seus membros eram
denominados frades, e viviam em meio aos fiéis para pregar pela palavra
e pelo exemplo. Seguindo o ideal de pobreza, humildade e penitência,
atuavam combatendo heresias, por meio do trabalho intelectual e da
pregação. Tais ordens dedicaram-se, em fins do período da Idade Média
Central, sobretudo à salvação das almas. Os frades mendicantes
empreendiam a atividade pastoral adaptada aos espaços urbanos,
agindo em um meio que até então o clero secular tinha intervenção
majoritária.19
Nesse momento de revitalização das cidades, a reforma religiosa
aprofundou os contornos da religião oficial, fazendo pulular as vertentes
acusadas de heresias. Além de combater estes grupos tachados de
heréticos, a pregação se apresentou como uma maneira eficaz de
propagação da doutrina à população em geral. A Ordem Dominicana,
que mais se destacou na pregação, e que desde o início apresentou uma
preocupação intelectual com relação à doutrina, utilizava-se de artifícios
para facilitar o entendimento e a memorização de ensinamentos
doutrinais aos leigos. Buscando se aproximar de seus distintos públicos,
a pregação desenvolveu-se principalmente nas grandes cidades, sendo
praticada especialmente em lugares movimentados, tal como as
praças.20
Com a intensificação da pregação, foi desenvolvendo-se o
sermão moderno, mais sistemático e eficaz, direcionado especialmente
ao público leigo. O sermão moderno desenvolveu-se sobre três bases: as
autoridades (auctoritates) tiradas da bíblia ou de autores cristãos, as
razões (rationem) vindas da dialética universitária, e as anedotas

18 I ide , p. .
19 BASCHET, Jérôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São
Paulo: Globo, 2006. p. 213.
20 ROCHA, Te eza Re ata Sil a. A Lege da Áu ea e o e e plu o o te to da p egaç o
do i i a a s . XIII . I : ZIERER, Ad ia a; VIEIRA, A a Lí ia Bo fi ; ABRANTES,
Eliza eth Sousa O g. . Nas t ilhas da a tiguidade e Idade M dia. S o Luiz: Edito a UEMA,
. p. - . p. .
61
exemplares (exempla), que ilustravam formas de condutas moralizantes
sob a forma de relatos breves e de fácil memorização. Nas palavras de
Jean-Claude S h itt: a iça, siste ti a, epetiti a, a o a p egaç o
pa e e u a e o e ui a de o e te al as .21

A Lege da Áu ea e A Co e o aç o das Al as
Como já mencionado, a Legenda Áurea é uma compilação
hagiográfica elaborada pelo dominicano Jacopo de Varazze no século
XIII, na Península Itálica. Entre a data aproximada do início da redação,
em 1260, e a morte do frade, em 1297, o autor foi modificando e
enriquecendo a sua obra, assim como posteriormente também o fizeram
copistas e tradutores.22 A obra difundiu-se rapidamente, contando com
versões de manuscritos latinos e traduções para línguas vernáculas.23
Algumas partes da LA são copiadas de outras fontes, já outras são criadas
pelo autor. O compilador acrescenta muitas vezes suas interpretações e
organiza a obra de modo a dar ao legendário um caráter autoral.24
Redigida em latim, tendo portanto como público direto clérigos
instruídos, a obra é repleta de artifícios didáticos, já que esta servia de
consulta aos pregadores para a formulação de sermões. Ao longo dos
séculos seguintes foi ganhando diversas traduções, e tal sucesso se deu
porque no momento de sua produção as línguas vernáculas passaram a
concorrer com o latim, e um número crescente de leigos foi se tornando
capaz de realizar leituras individuais25. Neri de Almeida ressalta que:
A Legenda aurea foi desenvolvida dentro do estilo tradicional do
autor medieval que lê, sintetiza mas também reinterpreta com
enorme liberdade o material que organiza para sua redação,
somando a ele o ouvido e o vivido, procurando conscientemente
agradar a um público o mais amplo possível. Enquanto as obras

21 SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Tradução Maria


Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 144.
22 LE GOFF, Ja ues. E us a do Te po Sag ado: Tiago de Va azze e a Le da dou ada.
T aduç o: Ma os de Cast o. Rio de Ja ei o: Ci ilizaç o B asilei a, . p. - .
23 Na Idade M dia i ula a a us itos e italia o, f a s, hola d s, alto ale o,
ai o-ale o, t he o e i gl s, al das u e osas e s es i p essas a pa ti do s ulo
XV. I ide , p. .
24 Ja ues Le Goff desta a ue a o pilaç o deti ha e o e p estígio o pe íodo, e s
ad ui iu a te pejo ati o o se tido de pl gio a pa ti do s ulo XVIII. Ele ita ai da
Alai Bou eau, ue ad itiu ue O o pilado foi ta u auto . I ide , p. - .
25 At e t o as leitu as ostu a a se feitas e oz alta. I ide , p. .
62
dos grandes teólogos e escritores medievais permaneciam
encerradas e compreendidas apenas por meios restritos do
clero, de onde suas idéias retiravam seu prestígio, esta obra [...]
demonstra quanto Jacopo de Varazze é representativo daquela
parcela do clero que estava em constante contato com os fiéis.26

O corpus documental que me proponho a analisar neste


t a alho a festa de o i ada A Co e o aç o das Al as , apítulo
158 da edição em língua portuguesa da LA.27 Jacopo de Varazze inicia a
exposição teológica acerca do destino das almas dos fiéis defuntos no
Além, explicando o objetivo da festa: socorrer do Purgatório as almas
que não se beneficiaram de preces especificamente dedicadas a elas. No
decorrer do capítulo, ele procura esclarecer a lógica da purgação das
almas, e demonstrar como os vivos podem ajudar os mortos a se
libertarem do Purgatório mais rapidamente. Tudo isso é feito por meio
de diversos exempla.28
Os frades pregadores, sobretudo os da Ordem Dominicana,
tinham uma preocupação especial com a questão da salvação. Como já
fora mencionado, o sermão moderno era voltado para o público leigo
citadino, e não mais restrito ao clero. Composto das autoridades, das
razões e dos exempla, a retórica do sermão se torna, portanto, mais
sistemática para que a pregação ao público em geral seja mais eficiente.
Deter-me-ei a seguir sobre as principais características dos exempla, tão
caros à exposição teológica simplificada do Purgatório realizada por
Jacopo de Varazze.
Os exempla tinham a função de ilustrar por meio de relatos
breves tomados por verídicos, as vantagens da boa conduta para o
cristão. Moralizantes e didáticos, eram inseridos nos sermões. Os temas
abordados são voltados para a salvação pessoal de cada um dos
cristãos29 espectadores da pregação. Falam sobre a morte, o julgamento

26 ALMEIDA, N i de Ba os. Pala a de púlpito e e udiç o o s ulo XIII: A Lege da au ea


de Ja opo de Va azze. Re ista B asilei a de Hist ia, S o Paulo, . , . , p. - , .
p. .
27 JACOPO DE VARAZZE. Lege da Áu ea: Vidas de Sa tos. T aduç o do lati ,

ap ese taç o, otas e seleç o i o og fi a: Hil io F a o Jú io . S o Paulo: Co pa hia


das Let as, .
28 Hist ias u tas, to adas po e ídi as e o aliza tes. SCHMITT, I id., p. .
29 Mi hel Lau e s desta a ue, a pa ti dos s ulos XII e XIII, a o te foi do a a te
pe sada o o a sepa aç o da al a e do o po, seguido pelo julga e to pa ti ula
63
particular que se segue ao trespasse, as alegrias e as tribulações do Além
e no fim dos tempos, e outras questões relacionadas a estas.30
As principais características desses relatos são: a brevidade, para
que fossem fáceis de memorizar e não se tornassem cansativos aos
ouvintes; os personagens e lugares em geral são imprecisos,
pretendendo mostrar tipos humanos e situações universais; a narrativa
submete-se a estruturas mais ou menos fixas, repetitivas e
memorizáveis, e, portanto mais eficazes para um auditório iletrado. 31
Retrata pessoas comuns, personagens modestos, homens e mulheres,
do campo ou da cidade, leigos e religiosos. A atenção é dada geralmente
à situação do morto individual, em seu pedido de missas, preces e
esmolas, ou então a avisos, dirigidos aos vivos, normalmente parentes
ou pessoas próximas.

Análise de fonte: as relações entre os vivos e os mortos


Para construir uma reflexão sobre as relações de solidariedade
estabelecidas entre os vivos e os mortos presentes nos exempla que
o p e A Co e o aç o das Al as , utilizei a técnica de Análise de
Narrativa. A seguir, apresento duas tabelas. A primeira com os nomes32
e os resumos dos exempla, e a segunda com as ligações entre pecados e
penas, e entre vivos e mortos. As tabelas poderão auxiliar na
compreensão de algumas questões caras à lógica de salvação proposta,
se não pela Igreja Romana, ao menos intencionada por Jacopo de
Varazze, integrante e um dos porta-vozes da Ordem Dominicana.

Tabela 1: resumos dos exempla

de ada defu to. Philippe A i s ha a isto de a o te de si , ua do os ho e s


o he e sua i di idualidade. LAUWERS, Mi hel. Mo te e o tos. I : LE GOFF,
Ja ues; SCHMITT, Jea -Claude O g. . Di io io te ti o do o ide te edie al.
Bau u: Edus , . . V. . p. - .
30 SCHMITT, J-C., I ide , p. .
31 I ide , p. .
32 Os o es dos e e pla fo a dados po i , o i tuito de o ga iza a ta ela e fa ilita
o e te di e to.
64
N° Nome Resumo
Santo Odilo ordena a realização da
Almas o e o aç o dos o tos , ap s to a
arrancadas das conhecimento de gritos e urros dos
1
mãos dos demônios queixando-se de que as almas
demônios eram arrancadas de suas mãos devido a
esmolas e preces.
Pescadores fisgam um bloco de gelo, de
onde sai a voz de uma alma congelada
A pesca de um implorando por 30 missas. O Diabo aparece
2
bloco de gelo 3 vezes para impedir a realização destas
missas, mas finalmente o fantasma é liberto
de sua pena purgatória.
O fantasma, ex sofista, aparece ao seu
mestre para mostrar que estava esmagado
Capa de
por uma pesada capa de pergaminho em
3 pergaminho em
chamas. Um pingo de suor do morto perfura
chamas
a mão do mestre, que, assustado, resolve
mudar suas condutas.
Um padre oferece a hóstia em
agradecimento ao homem que lhe servia no
Fantasma do balneário. O homem recusa o pão santo
4
balneário dizendo que está ali para pagar seus
pecados, e pede que o ofereça a Deus.
Depois de 30 dias ele é liberto.
O Purgatório de O santo pediu para algumas pessoas um
5
São Patrício purgatório em certo lugar sob a terra.
O Diácono Pascásio prefere o pontífice
errado quando dois são eleitos ao mesmo
tempo, e permanece no erro. É enviado ao
6 Dois pontífices
balneário depois da morte para pagar por
seus pecados, e pede preces ao bispo
Germano. Poucos dias depois é liberto.
Um bispo, após suspender de seu ofício um
As missas padre que celebrava a missa pelos mortos,
7
suspensas passa pelo cemitério e é ameaçado de
morte pelos defuntos. Então ele absolve o
65
N° Nome Resumo
padre e passa a celebrar as missas de boa
vontade.
Um homem sempre recitava um salmo
pelos mortos quando passava pelo
Defendido pelos cemitério. Certa vez, ao ser perseguido por
8
mortos seus inimigos, refugiou-se ali. Os mortos
levantaram-se com seus instrumentos de
profissão e o defenderam.
Um soldado volta à vida. Conta que vira um
rio negro, lodoso e fétido, sobre o qual havia
uma ponte que levava a uma amena
9 Ponte dos justos
pradaria florida e perfumada. Somente os
justos atravessavam a ponte, os demais
caíam no rio negro.
O monge Justo, agonizante, confessa que
escondera 3 moedas de ouro e morre
O monge e as lamentando este fato. É enterrado no
10
moedas de ouro estrume por isso. Gregório manda celebrar
por ele missas durante 30 dias. O monge é
liberto.
Um minerador sobrevive a um
desabamento e fica preso em uma rocha.
O sobrevivente
Sua mulher, pensando que ele havia
11 minerador
morrido, manda celebrar missas, oferece
soterrado
pão, vinho e velas por ele. O Diabo tenta
atrapalhar, mas o homem sobrevive.
Um marinheiro naufraga e é salvo graças a
O sobrevivente um padre que lhe rezava missas. Ao ser
12
do naufrágio resgatado, diz que no meio do mar, já
esgotado, alguém lhe ofereceu um pão.
Uma mulher pobre perde o marido e o
A viúva Diabo promete-lhe riquezas em troca de
13 enganada pelo obediência. A mulher aceita o trato. Já
Diabo agonizante, ela conta seus pecados ao filho,
que manda chamar um padre. Ela morre

66
N° Nome Resumo
antes, o filho confessa e faz penitências por
ela durante 7 anos. Ela é liberta.
Um homem combate a serviço da Igreja, e
O valente a em troca recebe indulgência pelo seu
14
serviço da Igreja falecido pai. Após 40 dias o pai agradece a
libertação.
Um cavaleiro fala mal de um falecido. O
fantasma aparece e diz a este que não faça
mau juízo dele. Pede que o amigo reze por
O cavaleiro
15 ele, sobretudo porque roubara um manto
presunçoso
do cemitério, que agora o esmagava. O
fantasma avisa que o amigo morreria em
breve. Este mudou sua vida para melhor.
Um cavaleiro pede ao primo que, caso
morra na guerra, este venda seu cavalo e
O parente dê o dinheiro aos pobres. Ele morre e o
16
egoísta parente fica com o cavalo. O fantasma diz
que padeceu 8 dias no Purgatório, e que o
primo vai para o Inferno.

Tabela 2: relação entre pecados / penas purgatórias e entre vivos /


mortos

N° Nome Pecados / penas Vínculo entre


morto e vivo
Almas arrancadas
Sem vínculo
1 das mãos dos Não indicados
pessoal
demônios
A pesca de um Não indicados / Sem vínculo
2
bloco de gelo prisão na geleira pessoal
Capa de
Sofismo / peso e
3 pergaminho em Mestre e aluno
queimação da capa
chamas
Fantasma do Não indicados / servir Sem vínculo
4
balneário no balneário pessoal
67
N° Nome Pecados / penas Vínculo entre
morto e vivo
Não indicados /
O Purgatório de penas indicadas no Sem vínculo
5
São Patrício capítulo de São pessoal
Patrício (LA) 33
Preferir o pontífice
6 Dois pontífices errado / servir no Conhecidos
balneário
As missas Sem vínculo
7 Não indicados
suspensas pessoal
Defendido pelos Sem vínculo
8 Não indicados
mortos pessoal
Prazer na crueldade/
atado de costas a um
bloco de ferro Sem vínculo
9 Ponte dos justos
Vícios da carne / pessoal
puxado por anjos e
demônios na ponte
O monge e as Esconder as moedas /
10 Da mesma ordem
moedas de ouro não indicadas
O sobrevivente Não morre, pecados
Familiares (marido
11 minerador e penas não
e mulher)
soterrado indicados
Não morre, pecados
O sobrevivente
12 e penas não Conhecidos
do naufrágio
indicados
A viúva enganada Pacto com o Diabo / Parentes (mãe e
13
pelo Diabo não indicadas filho)

33Ao Pu gat io de S o Pat í io, dedi ado o apítulo da LA, ue u a hagiog afia
do efe ido sa to. A ui, e A Co e o aç o das Al as, Ja opo de Va azze o eto a
essa hist ia de a ei a esu ida, ele si ples e te se o te ta e i di a ue ela foi
o tada e out o o e to da LA. No apítulo dedi ado S o Pat í io, o sa to pe o e
o Pu gat io e assiste aos to e tos sof idos pelas al as ue l ha ita , as ele o
te a esso hist ia de ada u , e, po ta to, o sa e uais pe ados o ete a pa a
esta e sof e do tais astigos. E uad o, po ta to, tal histo ieta a atego ia de
pe ados o i di ados, pe as i di adas . JACOPO DE VARAZZE, I ide , p. - .
68
N° Nome Pecados / penas Vínculo entre
morto e vivo
O valente a Parentes (pai e
14 Não indicados
serviço da Igreja filho)
Roubo ao cemitério /
esmagado pelo
manto roubado
Falar mal do amigo
O cavaleiro
15 morto/ Amigos
presunçoso
arrependimento e
mudança de atitude
ainda em vida (sem
penas)
Egoísmo, roubo e
avareza / penas não
16 O parente egoísta especificadas Parentes (primos)
(condenado ao
Inferno)

Como já mencionado, o capítulo estudado dedica-se à Festa de


Finados, explicando a razão de sua instituição e sua importância para as
almas do Purgatório. Nele Jacopo procura esclarecer a lógica de
purgação destas almas, recomendando que os fiéis fossem observantes
de suas próprias condutas, incentivando a confissão, o arrependimento
e a contrição antes que a morte chegasse de surpresa. Ele também
mostra como os vivos poderiam ajudar os mortos a terem suas penas
aliviadas ou a se libertarem do Purgatório mais rapidamente.
O autor dá bastante importância à contrição, que consiste no
arrependimento verdadeiro pelos pecados e ofensas a Deus, mais por
amor a Deus do que por receio do castigo. Ele cita Santo Agostinho para
enfatizar esse ponto, trazendo sua palavra de autoridade:
Aquele que sai deste mundo logo depois de ser batizado está
seguro; o fiel que vive bem sai deste mundo seguro; aquele que
faz penitência e está reconciliado [com Deus] enquanto tem
saúde, sai deste mundo seguro; aquele que faz penitência na

69
agonia final, para então se reconciliar, não sei se sai deste mundo
seguro. Portanto, escolha o certo e deixe o incerto.34

Após citar Santo Agostinho para recomendar que os fiéis se


preocupem com a salvação ao longo de suas vidas, e não somente tendo
chegado o momento aproximado da morte, ele acrescenta com suas
p p ias pala as ue tais pessoas t o ostu e de faze pe it ia
mais por necessidade do que por vontade, mais por medo do castigo do
ue po a o gl ia .35 Aqui pode-se observar que a ênfase do
dominicano não se assenta tanto no medo que as pessoas deveriam ter
do Purgatório, visto que o amor de Deus é maior e ele proporciona a
salvação. Cabe destacar que o IV Concílio de Latrão, de 1215, instituiu o
modelo de confissão auricular anual e obrigatória,36 possibilitando ao
pecador a sua volta e um direcionamento dentro da ortodoxia. O
confessor deveria oferecer o perdão ao pecador, antes de castigá-lo por
seus pecados.37
Para fins de esclarecimentos doutrinários de forma mais
didática, Jacopo de Varazze estrutura o capítulo da seguinte maneira.
Primeiro, trata sobre os que devem purgar: quem são os purgados; por
quem são purgados; onde são purgados. Depois aborda sobre os
sufrágios que devem ser dirigidos a eles: os sufrágios em si mesmos; para
quem eles são feitos; por quem eles são feitos. Para facilitar o
entendimento, além desta divisão esquemática do texto, ele recheia sua
exposição sobre o funcionamento do Purgatório com exempla,38 sejam

34 JACOPO DE VARAZZE, Ibidem, p. 914.


35 I ide , p. .
36 Todo fiel, de u o de out o se o, u a ez llegado al uso de az , de e o fesa
si e a e te todos sus pe ados po si is o a su p o o, al e os u a ez al año,
u pli o es e o e la edida de sus posi ilidades la pe ite ia ue le hu ie a sido
i puesta e i i o espeto, al e os po pas ua, el sa a e to de la eu a ist a [...].
FOREVILLE, Ra o de. Late a e se IV. Vit ia : Eset, , p. . C. .
37ARRUDA, Fabiana dos Santos. A Dimensão Pastoral do IV Concílio de Latrão. In:

CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, ., , Ma i g . Atas… Ma i g :


Universidade Estadual de Maringá, 2011. p. 2369-2376. p. 2372.
38 Cha a ei todas as dezesseis histo ietas ap ese tadas o do u e to de e e pla,

po ue e o a duas delas te ha o igi ado de fo tes hagiog fi as e u a delas de u a


is o, elas s o ap ese tadas o fo e as a a te ísti as dos e e pla j des itas
a te io e te: s o u tas e to adas po e ídi as, e t o o te a a sal aç o.
70
hagiografias, visões ou relatos de aparições de fantasmas,39 no intuito de
o p o a a e a idade de toda a sua a gu e taç o.
Dos dezesseis exempla, optei por classificá-los entre os que
apresentam: os pecados; as penas; os pecados e as penas (causa e
conseqüência); e ainda os que não apresentam nem uma característica
nem outra. Os exempla 10 (o monge e as moedas de ouro), 13 (a viúva
enganada pelo Diabo) e 16 (o parente egoísta)40 mencionam apenas os
pecados cometidos, sem fazer a ligação com os castigos infligidos aos
pecadores. Os exempla 2 (a pesca de um bloco de gelo), 4 (fantasma do
balneário) e 5 (o Purgatório de São Patrício) apresentam as penas
aplicadas aos mortos, sem no entanto apontar seus pecados. Os exempla
3 (capa de pergaminho em chamas), 6 (dois pontífices), 9 (ponte dos
justos) e 15 (o cavaleiro presunçoso) explicitam quais foram os pecados
e as devidas penas acometidas, criando, portanto, uma relação de causa
e consequência entre os atos pecaminosos e os sofrimentos a que foram
submetidos. Já os exempla 1 (almas arrancadas das mãos dos demônios),
7 (as missas suspensas), 8 (defendido pelos mortos), 14 (o valente a
serviço da Igreja) e ainda os 11 (o sobrevivente minerador soterrado) e
12 (o sobrevivente do naufrágio)41 não apresentam nem os pecados nem
as penas relativas aos personagens.
Somando o número de exempla para cada categoria de acordo
com as características explicitadas, são 3 que apresentam os pecados, 3

39 As is es ou iage s ao Al ostu a fo aliza a geog afia deste espaço e o


at logo de to tu as, ge al e te apo ta do dete i ados seg e tos do Al pa a
dete i ado tipo de pe ado es ue sof e pe as espe ífi as. J as apa iç es de
fa tas as d o desta ue situaç o o p s- o te do o to o di io. N o ost a o
Al e si, o al e te o o to olta pa a o ta so e seus i fo tú ios. SCHMITT, J-
C. Op.Cit., p. - .
40 O aso ost a dois julga e tos p s- o te: o do p i o ue o e a gue a e ai
pa a o Pu gat io e o do p i o a a e to ue ai pa a o I fe o. No p i ei o aso o
sa e os e os pe ados e e as pe as, sa e os ape as ue ele foi pa a o Pu gat io
e depois foi sal o. No segu do aso sa e os ue o pe ado foi a a a eza, e ue o o to
foi o de ado da aç o ete a o I fe o, as o sa e os uais astigos lhe fo a
i fligidos. Co side o e t o o segu do aso, o ual so e te o pe ado i di ado, e o a
o seja efe e te ao Pu gat io, a edito ue a ui o siste a e sage o aliza te do
e e pla, e ue a ui eside o ú leo da liç o p opo io ada pela hist ia.
41 Nos asos e os pe so age s o o e , e o a a uest o e t al seja
ela io ada ao ho izo te da o te e da sal aç o, e ue si a pa a o p o a a
efi ia dos suf gios dedi ados aos o tos.
71
as penas, 4 com pecados e penas, e 6 sem pecados e sem penas
mencionados. Portanto, esta última categoria na qual não são mostradas
as consequências (penas) dos pecados (causas das penas infligidas) é
proporcionalmente majoritária às demais. O que pode levar a considerar
que Jacopo de Varazze não estava tão preocupado em fazer um apelo a
determinado modelo comportamental moralizante tão contundente e
detalhado, por meio do artifício do medo. Embora esse caráter também
esteja presente, não se mostra tão essencial quanto poderia parecer em
uma leitura mais descuidada. As descrições a respeito do Purgatório são
fluidas, este lugar pode tomar ainda formas diversas, mas a sua função é
bem especificada: ele é lugar de espera para os mortos que necessitam
de ajuda, para que o tempo de sofrimentos seja encurtado, e eles
possam o quanto antes serem salvos definitivamente.
Uma segunda classificação dos exempla realizada aqui, diz
respeito aos tipos de vínculos estabelecidos entre os vivos e os mortos
que figuram nos dezesseis casos. Estes casos são complicados de
classificar em contatos estabelecidos entre parentes, amigos e
desconhecidos, pois as especificidades das relações estabelecidas
perpassam situações de ligações fluidas que não se encaixariam
totalmente nessas categorias. Algumas destas ligações são institucionais
religiosas. Um exemplo é quando vivo e morto pertenciam à mesma
ordem religiosa, podendo ser classificados como conhecidos, amigos,
ligados por laço institucional ou parentes espirituais. A mesma
dificuldade se aplica no caso entre pessoas casadas, que embora façam
parte de uma mesma família, não são parentes de sangue, visto que
foram unidas pelo matrimônio. Em vista dessa dificuldade, optei por não
classificar os casos em grandes blocos, para então apresentar suas
especificidades, o que não muda o resultado da análise empreendida.
No exempla 3 (capa de pergaminho em chamas), o contato se
estabelece entre mestre e aluno, e pelo que diz a historieta, entende-se
que eram amigos. Já no exempla 6 (dois pontífices), suponho que a
relação se estabelece entre conhecidos, mais pela fama talvez do que
pela vivência, visto que o homem que se depara com o morto, questiona
o que fazia ali um homem tão importante. No exempla 10 (o monge e as
moedas de ouro), o contato ocorre entre dois membros de uma mesma
ordem religiosa. O exempla 11 (o sobrevivente minerador soterrado)
tem como protagonistas marido e mulher, embora como já indica o
72
nome escolhido para a historieta, o homem não tenha morrido,
conforme a esposa imaginava. No exempla 12 (o sobrevivente do
naufrágio), um padre reza uma missa pelo náufrago, que, por sua vez, é
salvo. Classifico como contato entre conhecidos, considerando que a
ligação seja um laço social, entre padre e fiel. No exempla 13 (a viúva
enganada pelo Diabo) o contato ocorre entre mãe e filho, e no 14 (o
valente a serviço da Igreja) entre pai e filho. No 15 (o cavaleiro
presunçoso) ambos são amigos, e no 16 (o parente egoísta) são primos.
São 9 casos ao todo em que há uma ligação estabelecida ainda
em vida. Dentre estes, em 4 os envolvidos são conhecidos ou têm alguma
relação social, e em 5 são parentes por sangue ou familiares por
matrimônio, ou então são da mesma ordem religiosa. Por outro lado, em
7 casos os fantasmas aparecem para desconhecidos – ou pelo menos
que não eram conhecidos em vida -, são estes os casos das historietas: 1
(almas arrancadas das mãos dos demônios), 2 (a pesca de um bloco de
gelo), 4 (fantasma do balneário), 5 (o Purgatório de São Patrício), 7 (as
missas suspensas), 8 (defendido pelos mortos) e 9 (ponte dos justos).
Verificando este panorama descrito acima, compreende-se que
a grande ocorrência de contato entre desconhecidos caracteriza bem o
objetivo da Festa de Finados, já que:
A comemoração de todos os fiéis defuntos foi instituída
neste dia [2 de novembro] pela Igreja a fim de socorrer,
por boas obras gerais, os que não se beneficiam de
preces especificamente dedicadas a eles [...].42

Portanto, o objetivo da Igreja Romana era incentivar a


solidariedade entre toda a comunidade cristã de vivos e mortos, em prol
da salvação eterna das almas. Somente a Igreja poderia realizar essa
mediação. Fazia-se necessária então a encomenda de sufrágios em
benefício dos mortos, não só dos conhecidos e parentes, mas também
dos desconhecidos que não teriam quem a fizesse por eles. A
solidariedade foi reforçada, justamente porque entendia-se que ao
ajudar o próximo, o benfeitor também estaria ajudando-se por estar
fazendo uma caridade,43 e, portanto, ficaria mais perto do caminho da

42 JACOPO DE VARAZZE, Op.Cit., p. .


43 A a idade a itas desig a o a o pu o do ual o C iado fo te; o ho e o de e
a a ape as a Deus, as ta o seu p i o pelo a o de Deus. BASCHET, J. I ide ,
p. .
73
salvação. Tal colocação é evidenciada no seguinte trecho da
documentação:
[...] deve-se oferecer sufrágios por três razões. Primeira,
por causa da unidade, pois os mortos formam um só
corpo com a Igreja militante e podem usufruir dos bens
espirituais comuns. Segunda, por causa da dignidade, já
que durante a vida ajudaram os outros mortos e
merecem agora ser ajudados. Terceira, por causa da
necessidade, pois a posição deles não permite ajudar a si
mesmos.44

A instituição eclesiástica desempenhou um papel fundamental


no culto dos mortos no Ocidente. Sobre a salvação das almas, a doutrina
afirmava que os sufrágios dos vivos poderiam ser úteis aos defuntos que
mereceram se beneficiar deles. Essa concepção agostiniana foi imposta
pela tradição eclesiástica na ausência quase completa da abordagem do
assunto nas Escrituras.45 Assim, o Dia de Finados passou a ser celebrado
a partir do século XI,46 marcando uma nova tendência no que concerne
ao culto dos mortos.
O modelo monástico que preservava a memória aristocrática em
troca de grandes doações de terras e financiamento de suas obras foi
aos poucos cedendo lugar ao modelo que ganhou espaço nas cidades
após o século XI, e que se reforçava com o surgimento das Ordens
Mendicantes no século XIII. Os mercadores e banqueiros, que eram
muito mal vistos e passíveis de condenação eterna, acreditavam que
passariam a ter condições de juntar somas de dinheiro destinadas à
encomenda de missas, para garantir que seriam ajudados futuramente
no Purgatório. Isto também valia para todos os ofícios que, de
condenados, passaram a crescer e ser tolerados no período.47
De acordo com a doutrina eclesiástica, a morada temporária das
almas era o Purgatório. Assim, colocou-se um fim às divagações incertas
dos mortos, justamente em uma época em que as autoridades estavam
preocupadas com a multiplicação de desocupados que vagueavam pelas
ruas das cidades.48 A multiplicação dos relatos, a partir do século XI, de

44 JACOPO DE VARAZZE, Op. Cit., p. , g ifos eus.


45 LAUWERS, M. Op. Cit., p. 245.
46 BASCHET, J. Op. Cit., p. .
47 LE GOFF, J. Op.Cit.,. p. .
48 SCHMITT, J-C. Op. Cit., p. - .
74
fantasmas – anteriormente rejeitados e vistos com desconfiança pela
Igreja medieval49 – clamando por sufrágios, é um indicativo de que
ocorre uma intensificação e difusão na sociedade leiga das práticas
litúrgicas ligadas aos mortos.
Tal fator demonstra que o modelo monástico, que prezava pela
salvação e memória das famílias nobres em troca de grandes doações
piedosas de terras, foi sendo substituído pelo modelo mendicante,
voltado às cidades. Neste modelo o defunto legava em um testamento
somas de riquezas destinadas a construir igrejas e celebrar missas para
apressar sua saída do Purgatório. De um lado, a terra, a liturgia dos
monges, a memória da linhagem aristocrática; do outro lado, a vontade
do indivíduo, o papel do dinheiro e dos banqueiros, as ordens
e di a tes e a o ta ilidade do Al .50

Considerações finais
A morte era pensada como uma separação instantânea entre
corpo e alma, sendo esta última submetida a um julgamento particular.51
A função do exempla é explorar essa temática do julgamento que se
segue ao trespasse, e o destino das almas no Além. Com a função de
facilitar o entendimento, comover e ajudar na memorização, estas
histórias são breves, e com lições de moral que se pretendem universais.
Os exempla são abundantes na Legenda Áurea – e na Comemoração das
Almas –, que foi frequentemente consultada para a elaboração de
sermões.52 As Ordens Mendicantes, especialmente a Dominicana,
desempenharam papel fundamental na difusão da doutrina do
Purgatório no meio urbano. Com isso, o novo modelo de culto aos

49 O Al dualista C u-I fe o o da a luga aos o tos o di ios ue agueia ,


passea do e t e o u do dos o tos e dos i os e us a de ajuda, tal o o fa ia
ais o u e te ap s o ad e to do Pu gat io. Po uito te po essas apa iç es e a
asso iadas aos aus espí itos do paga is o ue de e ia se e o izados po
p o o a e deso de s as o u idades ist s. Cf: I id., p. .
50 Ja ues Chiffoleau e pli a a Co ta ilidade do Al apud SCHMITT, J-C. Os i os e os
o tos., Op.Cit., p. , ue o siste o egist o e dupli ata das issas e dos a os de
pu gat io ue elas pe ite esgata .
51 LAUWERS, M. Op.Cit., p. 243.
52 FORTES, Ca oli a Coelho. A Lege da Au ea: dataç o, ediç es, desti at ios e odelo
de sa tidade. I : TEIXEIRA, Igo . O g. . Hist ia e Histo iog afia so e a Hagiog afia
Medie al. . ed. S o Leopoldo: Oikos, . p. - . p. .
75
mortos substituiu o culto antes restrito à aristocracia. Cristãos comuns
puderam acreditar que teriam seus sofrimentos abreviados neste Além
intermediário, por meio dos sufrágios, podendo garantir este benefício
com economias feitas em vida.
Tratava-se sobretudo da operação, por parte da instituição
eclesiástica, da espiritualização dos bens oferecidos, de modo que as
doações aos santos e a Deus transformassem os bens materiais em bens
espirituais mais úteis. N o pode ia e isti ape as u siste a de t o a
ge e alizada se a o otaç o espi itual. A ideia e a de ue so e te o
dom gratuito valia, sem interesse, expresso pela analogia de que Jesus
se entregou gratuitamente à morte para a salvação da humanidade.53
Incentivava-se a contribuição com o grande tesouro, que cabia à Igreja
gerir. A instituição eclesiástica estava neste momento no centro deste
sistema, transmutando doações materiais em bens espirituais, figurando
como intercessora indispensável nas ofertas dos homens a Deus.
O Purgatório possibilitou a crença de redenção a numerosos
grupos sociais laicos e urbanos, que antes eram bem pouco toleráveis e
pareciam correr o alto risco de não garantirem sua salvação. A instituição
eclesiástica passara a incentivar a solidariedade da comunidade cristã,
incluindo os mortos, de modo que todos os envolvidos nesse sistema
saíssem beneficiados e estivessem mais próximos de alcançarem a
salvação eterna. Salvação esta cuja Igreja Romana possuía o monopólio,
e que lhe renderia uma expressiva arrecadação de bens. Esse incentivo
à solidariedade em prol da salvação estava, pode-se dizer, alinhado à
pretensão reformista de reforço do poder da Igreja Romana, e do
aumento do controle desta sobre a sociedade. Isto fica expresso nos
mecanismos de interiorização da culpa e dos meios de pagar pelos
pecados para se alcançar a salvação eterna.

53 BASCHET, Op. Cit., p. .


76
A REPRESENTAÇÃO DOS IMPERADORES DA DINASTIA STAUFEN NA
VIDA DE SÃO PELÁGIO DA LEGENDA ÁUREA: APLICANDO A ANÁLISE DE
AVALIAÇÃO
André Rocha de Oliveira1

Introdução
O presente texto tem por escopo aplicar a Análise de Avaliação –
uma técnica oriunda da Análise de Conteúdo – no trecho que versa sobre
os imperadores da dinastia Staufen presentes na Vida de São Pelágio
(VSP) da Legenda Áurea (LA).2 Buscamos com isso averiguar qual a
conotação por trás da caracterização desses imperadores, se é positiva
ou negativa. Em outras palavras, procuramos alcançar por meio dessa
metodologia o teor da representação dessas personagens.
A VSP é considerada como pertencente a um ramo textual das
hagiografias3 conhecida como Vida de Santo. Esta modalidade
hagiográfica tem por essência relatar a trajetória/biografia4 de um santo,
de modo a reconhecer por escrito que essas figuras são conhecidas e
aceites pela sociedade em que vivem ou que viveram. Além disso, estes
relatos promovem a difusão do culto aos santos e a edificação de um
número maior de fiéis. A VSP está inserida no legendário intitulado LA,
um compêndio de Vidas de Santo que foi produzido por volta da década

1 Mest a do pelo P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia Co pa ada PPGHC da UFRJ


e i teg a te do P og a a de Estudos Medie ais da es a i stituiç o, so a o ie taç o
da P of.ª D .ª A d ia C. L. F az o da Sil a. "O p ese te t a alho foi ealizado o apoio
da Coo de aç o de Ape feiçoa e to de Pessoal de Ní el Supe io - B asil CAPES -
C digo de Fi a ia e to
2 Utiliza os pa a este t a alho a e s o asilei a da Lege da Áu ea, t aduzida pelo
histo iado Hil io F a o Jú io , o a pa ti ipaç o da histo iado a N i de Ba os
Al eida, e pu li ada e pela Co pa hia das Let as. JACOPO DE VARAZZE. Lege da
Áu ea: Vidas de Sa tos. T ad. Hil io F a o Jú io . Rio de Ja ei o: Co pa hia das Let as,
.
3 De a o do o Sil a, o te o hagiog afia o fe ido ta to ao te to, ua to ao estudo
ealizado uja te ti a e t al seja o sa to e/ou seus ultos. Cf. SILVA, A d ia C isti a
Lopes F az o da. I t oduç o. I : ______. O g. . Hagiog afia e Hist ia. Rio de Ja ei o: HP
Co u i aç o, . p. - .
4 Segu do a fil loga Isa el Vel z uez, estes elatos o se est i ge ape as aos feitos
ealizados e ida po dete i ado sa to. Eles se este de , uitas ezes, at depois da
o te o o i tuito de egist a os ilag es ealizados es o o p s- o te. Cf.
VELÁZQUEZ, Isa el. Hagiog afía Culto a los Sa tos e la Hispa ia Visigoda: Ap o i a i
a sus a ifesta io es lite a ias. Cuade os E e ite ses, M ida, . , p. - , .
77
de 1260,5 no seio da Ordem dos Irmãos Pregadores, e cuja autoria é
atribuída ao frade Jacopo de Varazze. A LA é uma das obras hagiográficas
mais conhecidas da Idade Média e obteve um sucesso dificilmente
alcançado por quaisquer outras produzidas no mesmo período. A
considerável quantidade de cópias e traduções realizadas em um curto
período de tempo, para as mais diferentes localidades, atestam este
fato.
Nosso interesse sobre a VSP foi despertado quando da
constatação da composição e natureza atípica do texto. Encontramos em
suas páginas relatos acerca da história dos lombardos, dos francos, de
Maomé, de Beda e dos imperadores do Sacro Império Romano. Neste
sentido, chama a nossa atenção o fato de que, em meio a este universo
de personagens e histórias relatadas, não encontramos praticamente
nada sobre São Pelágio. As informações disponíveis sobre este venerável
– que em vida fora papa – no decorrer desta Vida de Santo a ele dedicada
são extremamente escassas. O estranhamento apenas se acentua
quando contrapomos a ausência de dados sobre o protagonista – São
Pelágio – às características típicas das hagiografias. Estas se caracterizam
primordialmente pelo protagonismo do santo – ou da santa – ou de seu
culto como personagem principal do relato. Sendo assim, como explicar
a ausência de informações sobre a vida, a morte e/ou o culto de São
Pelágio na Vida em que, em tese, este ocupa o papel central?
Entendemos que a presença dos relatos sobre os imperadores da
dinastia Staufen6 na VSP está relacionada com um contexto de disputas
entre Igreja e Império, no qual o texto serve como um instrumento de
propaganda que reafirma a proeminência do poder espiritual7 sobre o
poder temporal.8 Destarte, a Análise de Avaliação mostra-se bastante

5 Adota os o o dataç o da LA a d ada de po esta se o se so e t e os


pes uisado es da o a. Mes o a ueles ue defe de ue o lege d io possuiu ais de
u a e s o, a eita ue a p i ei a foi edigida este pe íodo. Neste se tido, pode os
e io a Ca oli a Coelho Fo tes, N i de Ba os Al eida, Ja ues Le Goff, Isa el
Vel z uez, de t e out os, ue a eita esta data.
6 F ede i o Ba a-Rui a, He i ue VI e F ede i o II fo a os i pe ado es da efe ida
di astia.
7 E te de os o o pode espi itual a uele asso iado auto idade po tifí ia e ao
ofí io sa e dotal ue se a ifesta e assu tos de f , ulto, o as da ida eligiosa, et .
No p ese te te to, pa a e ita o uso epetiti o do te o pode espi itual , adota e os
as e p ess es pode e lesi sti o e pode papal o o e ui ale tes.
8 O pode te po al a uele e e ido e uest es ela io adas ad i ist aç o,
78
útil para identificar o teor da caracterização desses imperadores na VSP,
algo imprescindível para podermos constatar como a representação
dessas personagens se inseria nesse conflito de poderes. No entanto, a
aplicação de tal metodologia só ganha sentido quando aplicada em
consonância com outro conceito, capaz de identificar com clareza o
porquê de a utilizarmos. Este conceito é o de aparência de
representação, proposto pelo historiador francês Roger Chartier.
O conceito de aparência de representação te po o jeti o faze
com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da
representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a
e i e .9 Ela ocorre dentro da relação de representação, que consiste no
elacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente,
ale do a uela po este .10 Sendo assim, a aparência de representação
está relacionada ao primeiro significado de representação atribuído por
Chartier – a projeção de algo que está ausente.11 Porém, vai além. A
aparência de representação não apenas projeta algo, mas busca fazer
com que esta projeção é que seja válida e reconhecida, em detrimento
do objeto concreto, real, que deve ser esquecido. Para isso, a ação da
imaginação exerce importante influência ao faze to a o log o pela
verdade, que ostenta os signos visíveis como provas de uma realidade
ue o o . .12

e o o ia, ao fu io a e to da so iedade , et . Assi o o o aso a te io ,


utiliza e os pode se ula , pode i pe ial e pode lai o o luga de pode
te po al pa a eduzi as epetiç es.
9 CHARTIER, Roge . A Hist ia Cultu al: E t e p ti as e ep ese taç es. . ed. Alg s:

Difus o Edito ial, . p. .


10 I ide , p. .
11 O histo iado Roge Cha tie o se a a e ist ia de dois sig ifi ados pa a o o eito
de ep ese taç o. Po u lado, o ap ese ta o o u a p ojeç o de algo ue est
ause te, o ue p essup e u a dife e ça sig ifi ati a e t e o ue se ep ese ta e o ue
ep ese tado. E out as pala as, ao o p ee de ep ese taç o o o u a p ojeç o
so e u a aus ia, ia-se u azio o ual a ep ese taç o de u o jeto e o o jeto
eal – po ause te – assu e p ofu das dife e iaç es. Po out o lado,
ep ese taç o tida o o a e posiç o de u a p ese ça, o o ap ese taç o pú li a
de algo ou algu . Neste se tido, pode os e e plifi a esta defi iç o o a i age
da o oa, ue ao se ista pelos súditos, i ediata e te asso iada o a ealeza ou
o os logotipos i ulados s e p esas e i stituiç es. I ide , p. .
12 I ide , p. .
79
No período em que a LA – e, consequentemente, a VSP – foi
escrita, podemos verificar que o trono imperial estava vacante. Assim,
ao conceber representação como a projeção sobre algo ausente,
podemos identificar a sua presença no relato sobre os imperadores, uma
vez que não havia nenhum à frente do Sacro Império Romano naquele
momento. Deste modo, os imperadores Staufen na VSP podem ser
entendidos como resultado de um processo de aparência de
representação. A Vida transmite uma imagem, uma caracterização
desses imperadores profundamente influenciada pelos interesses de seu
autor, da Ordem a qual pertence e, por fim, da própria Igreja Romana.
Desta forma, defendemos que é esta caracterização, esta imagem que
Jacopo de Varazze e as instituições por trás de si querem que seja
reconhecida como válida. A contribuição da Análise de Avaliação incide
justamente nesta caracterização, ao pôr em relevo a intensidade e o teor
nela empregados.

A representação dos imperadores da dinastia Staufen

A técnica de Análise de Avaliação


No trabalho que se segue, conforme já enfatizado, utilizamos
como metodologia uma das ramificações da Análise de Conteúdo. Trata-
se da Análise de Asserção Avaliativa ou, simplesmente, Análise de
Avaliação. Esta técnica, sistematizada por Laurence Bardin13 a partir das
considerações de Osgood,14 te po fi alidade edi as atitudes do
locutor quanto aos objectos de ue ele fala. .15 Ela é fundamentada na
o epç o de li guage ha ada de ep ese ta io al , ou seja, a
ual a li guage ep ese ta e efle te di e ta e te a uele ue a
utiliza. .16 Neste sentido, a atitude ocupa um papel central, na qual é
identificada como uma pré-disposição organizada para reagir em forma
de opiniões, de atos ou sobre objetos de determinada maneira. De
acordo com Bardin (1977), as atitudes são caracterizadas por duas

13 BARDIN, Lau e e. A A lise de A aliaç o. I : ______. A lise de Co teúdo. Lis oa:


Ediç es ; S o Paulo: Ma ti s Fo tes, . p. - .
14 OSGOOD, Cha les Ege to . The ep ese tatio al odel a d ele a t esea h
ethods. I : POOL, Ithiel Sola Ed. . T e ds i o te ts a al sis. Illi ois: U a a U i e sit ,
.
15 BARDIN, L. Op. Cit., p. .
16 I ide , p. .
80
di e s es: a di eç o e a i te sidade. Deste odo, a di eç o o sentido
da opinião segundo um par bi-polar. Pode-se ser a favor ou contra,
favorável ou desfavorável [...] positiva ou negativa, amigável ou hostil,
ap o ado a ou desap o ado a [...] .17 Enquanto que a intensidade condiz
o a fo ça ou o g au de o i ç o expressa: uma adesão pode ser fria
ou apai o ada, u a oposiç o pode se ligei a ou ee e te. .18 Como o
nosso interesse recai em como Jacopo de Varazze representa os
imperadores da dinastia Staufen, podemos considerar que a linguagem
adotada pelo frade é a representacional. Destarte, analisar as atitudes
tomadas por Jacopo no decorrer da caracterização dos imperadores
permitirá com que nos aproximemos daquela imagem projetada que se
deseja válida, conforme a aparência de representação.
É necessário esclarecermos aqui quais são os pilares desta técnica,
quais são as suas fases e onde pretendemos chegar com os resultados
obtidos. Reiterando, a Análise de Avaliação visa analisar um texto a partir
da identificação das atitudes do autor nele presentes. Para isso, três
elementos possuem significativa importância: os objetos de atitude; os
termos avaliativos, e os conectores verbais. Mas o que são cada um
destes ele e tos? Segu do Ba di , os o jetos de atitude s o os
objectos sobre os quais recai a avaliação: pessoas, grupos, ideias, coisas,
a o te i e tos, et . .19 Os te os a aliati os s o te os ue
qualificam os objectos da atitude. Em linguística chamar-se-iam
<<predicados>>, quer dizer, comentários do tema (<<o que se diz acerca
dele>> . .20 Podem ser adjetivos, substantivos, advérbios ou até mesmo
verbos que expressem uma ação, uma atitude tomada pelo objeto de
atitude. Por fim, os conectores verbais. Eles ligam os objetos de atitude
aos termos avaliativos. A identificação e a extração da fonte destes itens
correspondem à primeira fase da análise.
Na segunda etapa se realiza a normalização dos enunciados.
Assim, as frases destacadas são transformadas em sentenças afirmativas
que contemplem a combinação sintática: ator (objeto de atitude) – ação
(conector verbal) – complemento (termo avaliativo). Esta etapa é
essencial para que a próxima possa ser concretizada.

17 I ide , p. .
18 I ide , p. .
19 I ide , p. .
20 I ide , p. .
81
Na terceira fase, a partir da normalização realizada constrói-se a
codificação. Para isso, as duas dimensões da atitude são invocadas.
Deste modo, a partir de uma direção avalia-se a intensidade por meio de
uma escala de sete pontos: + 3 (mais positivo); + 2; + 1; 0 (neutro); - 1; -
2; - 3 (mais negativo). Mas como chegar a estes números? Eles são
alcançados por meio das notações dos conectores verbais e dos termos
avaliativos. Assim, com relação ao primeiro, a direção dos conectores
pode ser associativa (direção positiva: + 1 ou + 2 ou + 3), quando ligam o
sujeito ao complemento, ou dissociativa (direção negativa: - 1 ou - 2 ou
- 3), quando o verbo os separa. A intensidade é medida a partir do verbo
ou advérbio utilizado. Portanto, uma
intensidade forte (+ ou – 3) é indicada pelo uso do verbo
<<ser>> ou <<ter>>, por certos verbos no presente, pela
presença de certos advérbios do tipo
<<absolutamente>>, <<definitivamente>>, que reforçam
a acção do verbo. Uma intensidade média (+ ou – 2) é
marcada por verbos que indicam a iminência, o parcial, o
provável, o crescimento (exemplo, ele vai tentar...) e por
outros tempos verbais que não sejam o presente. Uma
intensidade fraca (+ ou – 1) é caracterizada por uma
relação hipotética, apenas esboçada, ou pela presença
de advérbios do tipo <<ligeiramente>>,
<<ocasionalmente>>...21

Para a notação dos termos avaliativos, atribui-se um valor da


escala (+ 3; + 2; + 1; 0; - 1; - 2; - 3) obedecendo-se aos critérios de
i te sidade uito , asta te e pou o . Ca e desta a ue e ossa
análise justificamos os valores que atribuímos aos termos avaliativos. A
principal notação, porém, é a dos objetos de atitude. Ela é alcançada por
eio da ultipli aç o e so a das otas at i uídas aos ualifi ado es
[termos avaliativos] e aos conectores por cada objeto de atitude [as
se te ças afi ati as f uto da o alizaç o] .22 O cálculo da média
entre os objetos de atitude, que permite estabelecer uma visão de
conjunto – por meio do que chamamos de escala de Osgood –, é feito
do seguinte modo:

21 I ide , p. .
22 I ide , p. .
82
Obtém-se o resultado médio para o objecto de atitude
considerado, dividindo-se o total da coluna do produto (c
x cm) [notação do objeto de atitude] pelo número de
temas registados [...] Se desejarmos comparar os
resultados dos AO [objetos de atitude] entre si numa
escala de sete escalões, dividimos este total por 3N (N:
número de temas; 3: amplitude da escala) [...].23

O que pretendemos com isso? Como já dissemos antes, analisar


as atitudes tomadas por Jacopo de Varazze no decorrer da
caracterização dos imperadores permitirá com que nos aproximemos da
imagem projetada, a que se deseja válida segundo os desígnios do
conceito de aparência de representação. Cabe aqui relembrar qual é o
objetivo principal desta definição: ela tem por escopo não apenas
projetar algo, mas buscar fazer com que esta projeção é que seja válida
e reconhecida, em detrimento do objeto concreto, real, que deve ser
esquecido. Assim, a aplicação da técnica de Análise de Avaliação
permitirá estabelecer o teor da caracterização dos imperadores Staufen
na VSP. Como consequência deste procedimento, poderemos afirmar
como esta representação – ou melhor, aparência de representação – se
insere no contexto de disputas entre os poderes espiritual e temporal.

A representação dos imperadores Staufen a partir da Análise de


Avaliação
A primeira fase para a execução da análise é a identificação e a
extração dos enunciados de nossa fonte, nos quais estarão presentes os
ite s o jeto de atitude , te os a aliati os e o e to es e ais .
Encontramos, ao todo, treze enunciados. Cabe destacar que nesta parte
procedemos de modo a simplificá-los ao máximo. Assim, naqueles casos
e ue se e o t a a istu ados ais de u ite e ossa fo te,
os separamos com o intuito de facilitar o procedimento de normalização
que seria realizado posteriormente. Desta forma, chegamos às seguintes
afirmativas:

1. Frederico Barba-Ruiva apoiou Otaviano, João de Cremona e João


de Estruma.
2. Frederico Barba-Ruiva tomou Túsculo.

23 I ide , p. .
83
3. Frederico Barba-Ruiva atacou os romanos.
4. Frederico Barba-Ruiva matou milhares de romanos.
5. Frederico Barba-Ruiva matou mais do que no tempo de Aníbal.
6. Henrique VI exerceu firme tirania contra a Igreja romana.
7. Frederico II promulgou ótimas leis para a liberdade da Igreja e
contra os heréticos.
8. Frederico II ultrapassou todos os monarcas em riqueza e em
glória.
9. Frederico II deixou-se enganar pelo orgulho.
10. Frederico II foi um tirano.
11. Frederico II encarcerou dois cardeais.
12. Frederico II mandou enforcar os prelados.
13. Frederico II foi excomungado.

Como podemos observar nos enunciados destacados acima, os


objetos de atitude são facilmente identificáveis. Eles correspondem aos
imperadores Frederico Barba-Ruiva, Henrique VI e Frederico II. Por outro
lado, isolar os conectores verbais e os termos avaliativos em nossa fonte
não é tarefa das mais simples, uma vez que se encontram
profundamente imbricados um no outro. Assim, se simplesmente os
separássemos, os termos avaliativos seriam esvaziados de sentido em
algumas situações. Podemos citar como um exemplo o enunciado 11:
F ede i o II e a e ou dois a deais . Nesta passage , isola do os
fatores de forma simplificada chegaríamos a seguinte constatação:
F ede i o II o o jeto de atitude, e a e ou o o e to e al e
dois a deais o te o a aliati o. O a, o o e t o o te o a aliati o
dois a deais pode ualifi a o o jeto de atitude F ede i o II ? N o
pode. Como resolver este impasse então? Aplicando a segunda fase da
Análise de Avaliação: a normalização dos enunciados. Com isso,
objetivamos transformar essas frases em sentenças afirmativas que
mantenham o sentido original e obedeçam à combinação sintática: ator
(objeto de atitude) – ação (conector verbal) – complemento (termo
avaliativo), essencial para o prosseguimento da análise. É importante,
porém, destacar que, em alguns casos não foi necessário realizar
modificação alguma. Destarte, chegamos às seguintes sentenças:

84
1. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por apoiar Otaviano, João
de Cremona e João de Estruma.
2. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por tomar Túsculo.
3. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por atacar os romanos.
4. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por matar milhares de
romanos.
5. Frederico Barba-Ruiva foi responsável por matar mais do que no
tempo de Aníbal.
6. Henrique VI foi responsável por exercer firme tirania contra a
Igreja romana.
7. Frederico II foi responsável por promulgar ótimas leis para a
liberdade da Igreja e contra os heréticos.
8. Frederico II foi responsável por ultrapassar todos os monarcas
em riqueza e em glória.
9. Frederico II foi responsável por deixar-se enganar pelo orgulho.
10. Frederico II foi um tirano.
11. Frederico II foi responsável por encarcerar dois cardeais.
12. Frederico II foi responsável por mandar enforcar os prelados.
13. Frederico II foi excomungado.

Após o procedimento de normalização chegamos a essas


sentenças elencadas acima. Podemos perceber que a utilização da
expressão normalizado a foi espo s el po foi de g a de ajuda pa a
esta etapa da análise. Ela foi capaz de conferir um conector verbal – foi
– válido, que não altera o sentido da frase preexistente, e permitiu ao
verbo original – que então aparecia como conector verbal (exercer,
encarcerar, enforcar, matar, etc.) – migrar para o termo avaliativo,
tornando este inteligível. Deste modo, tornou-se possível avaliar as
atitudes presentes, possibilitando que avancemos à terceira fase da
técnica de análise utilizada.
É nesta etapa que as duas dimensões da atitude assumem o
protagonismo na avaliação. Assim, são definidas a direção e a notação
atribuída a cada item segundo sua intensidade. Em nossa pesquisa,
investigamos a representação dos imperadores da dinastia Staufen na
VSP. Por este motivo, a direção que adotamos para guiar nossas
reflexões é a oposição positivo-negativo. Escolhemos esta oposição
como direção porque entendemos que a representação de personagens

85
é construída obedecendo a critérios que remetem a qualificações
positivas ou negativas. Já a intensidade, expressada pelas notações, tem
por escopo indicar o grau de convicção do locutor – Jacopo de Varazze –
ao discorrer sobre o objeto de atitude – os imperadores. As notações de
intensidade podem ser encontradas no quadro abaixo:

Notação dos
Objeto de Conectores Notação dos
Termo avaliativo termos Produto
atitude verbais conectores
avaliativos
responsável por apoiar
Frederico
foi +3 Otaviano, João de Cremona -3 -9
Barba-Ruiva
e João de Estruma

Frederico responsável por tomar


foi +3 -1 -3
Barba-Ruiva Túsculo

Frederico responsável por atacar os


foi +3 -3 -9
Barba-Ruiva romanos

Frederico responsável por matar


foi +3 -3 -9
Barba-Ruiva milhares de romanos

Frederico responsável por matar mais


foi +3 -3 -9
Barba-Ruiva do que no tempo de Aníbal
responsável por exercer
Henrique VI foi +3 firme tirania contra a Igreja -3 -9
romana
responsável por promulgar
ótimas leis para a liberdade
Frederico II foi +3 +3 +9
da Igreja e contra os
heréticos
responsável por ultrapassar
Frederico II foi +3 todos os monarcas em +3 +9
riqueza e em glória

responsável por deixar-se


Frederico II foi +3 -3 -9
enganar pelo orgulho

Frederico II foi +3 um tirano -3 -9


responsável por encarcerar
Frederico II foi +3 -2 -6
dois cardeais

86
responsável por mandar
Frederico II foi +3 -3 -9
enforcar os prelados
Frederico II foi +3 Excomungado -3 -9

Total --- --- --- --- - 72

Como é possível observar na tabela, como consequência da


utilizaç o da e p ess o foi espo s el po o p o esso de
o alizaç o, todos os o e to es e ais fo a o e o se o
passado – foi . Co o j e io a os a tes, a otaç o dos o e to es
verbais ati ge o i o da es ala ua do se t ata dos e os se ou
te . Al disso, po se t ata e de e os asso iati os – unem o
objeto de atitude ao termo avaliativo –, a direção é positiva. Sendo
assim, a todas estas sentenças foram atribuídas à notaç o i a + .
Em relação às notações atribuídas aos termos avaliativos, estas
são as que requerem uma maior atenção. Quase a totalidade das
se te ças e e eu a otaç o - ou + . U a das e eç es foi a
afi aç o F ede i o Ba a-Ruiva foi respons el po to a Tús ulo , a
ual at i uí os - de i te sidade. Opta os po o fe i este g au
de ido i e teza e olta do e o to a . N o possí el p e isa ,
por exemplo, o cunho deste acontecimento. Se adotarmos o ponto de
vista do império, a tomada de um território é algo positivo. Agora, se
considerarmos o mesmo fenômeno sob a ótica dos habitantes desta
região ou do papado – lembrando que naquele período (reinado de
Frederico Barba-Ruiva) as relações entre Igreja Romana e Império
andavam bastante tensas –, a tomada assume uma perspectiva negativa.
Pelo fato de a VSP ter sido escrita por um frade, tendemos a aceitar a
segu da pe spe ti a. Po este oti o de idi os e t o assi ala - .
Na se te ça F ede i o Ba a-Ruiva foi responsável por apoiar
Ota ia o, Jo o de C e o a e Jo o de Est u a at i uí os a otaç o -
po estas figu as o espo de e a a tipapas. Segu do Ga ía
Villoslada,24 após a morte do papa Adriano IV (1154-1159), Rolando
Bandinelli foi escolhido pontífice pelo Colégio Cardinalício sob o nome
de Alexandre III. No mesmo ano, porém, cardeais descontentes com esta

GARCIA VILLOSLADA, Ri a do. El Po tifi ado hasta I o e io III. I : ______; LLORCA;


24

MONTALBAN. Histo ia de la Iglesia Catoli a. Mad id: Edito a Cat li a, . . V. . p. -


.
87
escolha elegeram – com o apoio do imperador Frederico Barba-Ruiva –
o cardeal Otaviano para o cargo máximo com o nome de Victor IV (1159-
1164), em substituição ao recém-eleito. A cúria romana passou a contar
então com dois papas: Alexandre III, que fugiu de Roma quando da
eleição de Otaviano; e Victor IV, estabelecido na mesma cidade com o
respaldo do imperador. Era o início do cisma que duraria por dezoito
anos e envolveria mais duas figuras centrais, os papas patrocinados por
Barba-Ruiva, Pascoal III e Calisto III que, respectivamente, sucederiam
Victor IV e fariam oposição a Alexandre III até o fim do cisma. Ora,
interferir na sucessão papal remete à ingerência do poder imperial sobre
o eclesiástico, em um típico caso da chamada Teocracia Régia, 25 o que,
impreterivelmente levaria à desaprovação enfática do frade que
escreveu a LA.
Nas se te ças F ede i o Ba a-Ruiva foi responsável por atacar
os o a os , F ede i o Ba a-Ruiva foi responsável por matar milhares
de o a os e F ede i o Ba a-Ruiva foi responsável por matar mais
do ue o te po de A í al at i uí os, ais u a ez, a otaç o -
para cada uma delas. O título de imperador romano significava também
o de rei dos romanos.26 Além disso, nos primórdios do Sacro Império
Romano, este era associado à cristandade.27 Neste sentido, podemos
afirmar que o imperador era o rei dos romanos e que, portanto, era sua
responsabilidade proteger a cristandade, na qual Roma ocupava uma
posição de destaque. Sendo assim, acreditamos que, quando o locutor
destaca o ataque aos romanos e a responsabilidade do imperador por
matar milhares de romanos, ele quer dizer com isso que o imperador –
no caso Frederico Barba-Ruiva – não está cumprindo com o seu papel.

25 O conceito de Teocracia Régia foi proposto por José Souza e João Barbosa e refere-se
à intromissão de autoridades laicas – no caso, os imperadores – em assuntos pertinentes
à esfera espiritual (relacionada às questões de fé, culto, normas de vida religiosa, etc.).
O processo contrário, a interferência de autoridades eclesiásticas em questões do
âmbito temporal (relacionada à administração, à economia, etc.), é chamado de
Hierocracia. Cf. SOUZA, José António de Camargo Rodrigues de; BARBOSA, João Morais.
O reino de Deus e o reino dos Homens: as relações entre os poderes espiritual e temporal
na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quirdot). Porto Alegre: EDIPUCRS,
1997.
26 PARISSE, Mi hel. I p io. I : LE GOFF, Ja ues; SCHMITT, Jea -Claude. Di io io
Te ti o do O ide te Medie al. Bau u, SP: Edus , . ., V. , p. - .
27 FLORI, Jea . I p io C ist o. I : ______. Gue a Sa ta: Fo aç o da ideia de uzada
o O ide te ist o. Ca pi as: U i a p, . p. - .
88
Esta mensagem transcende com a afirmação de que Barba-Ruiva matara
mais do que no tempo de Aníbal. Este foi considerado um dos maiores
inimigos que o longínquo Império Romano já teve. Silva28 identifica a
figura de Aníbal – a partir dos relatos de Políbio – como o maior inimigo,
devido ao seu ódio, e, ao mesmo tempo, maior oponente, devido suas
qualidades militares. Defendemos que ao associar a figura de Barba-
Ruiva com a de Aníbal, Jacopo de Varazze busca estabelecer a imagem
do imperador como um inimigo da cristandade. Por esta razão
assi ala os o o - .
As se te ças He i ue VI foi espo s el po e e e fi e
ti a ia o t a a Ig eja o a a e F ede i o II foi u ti a o e e e a
a otaç o - ada, po pode e se t atados omo a mesma
mensagem: os imperadores são tiranos. De acordo com Cortés
Pacheco,29 a partir do estudo da filosofia pactualista de Francesc
Eiximenis – um frade franciscano que vivera na região da Catalunha no
século XIV –, o tirano é tido como a negação do bem comum e do próprio
pode políti o. E suas pala as, Ei i e is ualifi a o ti a o o o
ladrão público, corruptor de leis, homicida notório, homem sem
o s i ia, dest uido da oisa pú li a e o te pa a a o u idade.
(tradução nossa).30 Baseado na crença de que o poder político existe
para assegurar a liberdade dos súditos, e por isso é conferido à figura do
monarca – que tem o dever de zelar por esta liberdade –, o frade
Eiximenis afirma que este mesmo poder é limitado, pois, está submisso
a Deus (poder eclesiástico); restrito a uma região, e é restringido pelas
leis e pactos firmados entre soberano e os seus súditos. Quebrar este
acordo pautado em legislações e costumes significa ir contra Deus e em
direção à destruição da comunidade. Por estas razões, podemos inferir
que ao considerar os imperadores tiranos, as ideias de Eiximenis e de

28 SILVA, José Guilherme Rodrigues da. Roma e a representação de domínio do mundo no


contexto das guerras púnicas: uma leitura das Histórias, de Políbio. 2010. 193 fls.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.
29 CORTÉS PACHECO, Ca e . El ti a o la ti a ía e el pe sa ie to políti o pa tista de
F a es Ei i e is. I : ROCHE ARNAS, Ped o Coo d. . El pe sa ie to políti o e la Edad
Media. Mad id: Fu da i Ra A e es, . p. - .
30 I ide , p. . No o igi al: Ei i e is alifi a al ti a o o o lad pú li o, o upto
de le es, ho i ida oto io, ho e si o ie ia, dest u to de la osa pú li a ue te
pa a la o u idade .
89
Jacopo de Varazze confluem, carregando a mensagem deste último com
u a i te sidade asta te egati a. Daí a otaç o - .
As se te ças F ede i o II foi espo s el por promulgar ótimas
leis pa a a li e dade da Ig eja o a a e o t a os he ti os e F ede i o
II foi responsável por ultrapassar todos os monarcas em riqueza e em
gl ia s o as ú i as a ue at i uí os u a otaç o fa o el: + . Isto
ocorre devido à inte sidade e p essada pelo te o ti as a p i ei a
fo ulaç o, e ao e p ego do e o ult apassa a segu da. E
ambos os casos está presente uma conotação bastante positiva, afinal
de contas Frederico II é tido como aquele que promulgou leis muito
positi as pa a a Ig eja e foi o aio o a a e te os de i ueza e
glória.
Na se u ia, te os a afi ati a F ede i o II foi espo s el po
deixar-se e ga a pelo o gulho , pa a a ual at i uí os - . O te o
avaliativo desta sentença aparenta não ser uma qualificação do objeto
de atitude. Po , ao desta a os a a ei a o o o e o dei a
empregado – dei a -se –, este faz com que Frederico II assuma um
papel ativo ao invés de vítima do orgulho. Mas por que entendemos a
questão do orgulho como uma qualificação do imperador? Ao tratar
Frederico II como alguém orgulhoso, o frade Jacopo alude ao mais grave
dos pecados. Em esquematização adaptada pelo papa Gregório Magno
– pontífice entre fins do século VI e começo do VII – o orgulho aparece
como o mais terrível pecado dentre os chamados pecados capitais.31 Por
este motivo, qualificar o imperador – mesmo que de modo sutil – como
um pecador que cometera o pior dos erros é uma mensagem que
carrega consigo uma forte intensidade negativa. Daí a notação conferida.
A i te sidade assi alada de - pa a a se te ça F ede i o II foi
espo s el po e a e a dois a deais e - pa a F ede i o II foi
espo s el po a da e fo a os p elados se de e ao fato das duas,
mas principalmente a segunda, serem fenômenos extremamente graves
de agressão à Igreja. Portanto, são passíveis de forte desaprovação por
parte dos integrantes do meio eclesiástico. Mais uma vez, podemos
remeter às origens do Sacro Império Romano no tempo de Carlos
Magno. Naquela época, o impé io e as ia pa a ga a ti a paz dos fi is

31CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. 2 v., V. 2, p.
337-351.
90
e a liberdade das igrejas, porém muito mais, talvez, de defender os
i te esses ate iais do papa. .32 Assim, Jacopo de Varazze, ao afirmar
que o imperador prendera e, muito pior, mandara executar integrantes
da hierarquia eclesial transmite uma mensagem carregada de uma
conotação muito negativa, além de insinuar que o monarca não está
cumprindo com a sua obrigação original como imperador do Sacro
Império. Atribuímos notações diferentes para estes dois casos pelo
seguinte motivo: consideramos o ato de matar mais grave do que o de
prender prelados, daí ser impossível conferir a mesma intensidade para
ambos.
Po últi o, te os a se te ça F ede i o II foi e o u gado .
Assim como a questão do orgulho, levar em consideração
e o u gado o o te o a aliati o e ue u a e pli aç o. No
período medieval, ser excomungado significava estar excluído da
cristandade, ou seja, ficar de fora do conjunto dos cristãos. Essa
perspectiva era extremamente negativa. Para Mitre Fernández,33 a
excomunhão era uma medida que tinha por objetivo afastar e neutralizar
quaisquer ameaças à integração cristã. Neste sentido, a excomunhão era
tida o o uptu a da communio, da participação nas liturgias e nos
benefícios espirituais aos que o cristão se ha ia feito e te. t aduç o
nossa).34 Além disso, todos aqueles que viessem a interagir com o
excomungado também receberiam a mesma punição. Assim, Mitre
Fe dez afi a: No O ide te, a pe a de e o u h o se fazia
extensiva, nos primeiros séculos do Medievo, àqueles que ousaram ter
o tato o os ue j ha ia i o ido ela. t aduç o ossa .35 Por
estes motivos, ao registrar a figura do imperador Frederico II como
excomungado, Jacopo de Varazze faz com que este termo assuma a
função de qualificador do objeto de atitude. Papel este carregado com
u a i te sidade egati a o side el. Daí a otaç o - .

32 FLORI, J. Op.Cit., p. .
33 MITRE FERNÁNDEZ, Emilio. Integrar y excluir (comunión y excomunión en el medievo).
Hispania Sacra. Madrid, ano LXV, v. 132, n. 2, p. 519-542, 2013.
34 I ide , p. . No o igi al: o o uptu a de la o u io, de la pa ti ipa i e las
litu gias e los e efi ios espi ituales a los ue el istia o se ha a he ho a eedo .
35 I ide , p. . No o igi al: E el O ide te, la pe a de e o u i se ha a e te si a,
e los p i e os siglos del Medie o, a uie es osa a te e o ta to o los ue a
hu ie a i u ido e ella .
91
Finalmente, após justificar o porquê de termos conferido os níveis
de intensidade atribuídos a cada sentença, podemos passar ao último
ponto da terceira fase, a saber: identificar a intensidade média das
atitudes pa a o os i pe ado es po eio da es ala de Osgood . Pa a
isso, dividimos o total da coluna produto (- 72), que engloba a soma de
todos os produtos obtidos por cada imperador pela quantidade de
sentenças (13) multiplicada por três, que é a amplitude da escala. A
conta fica assim:
- 72 / 3 x 13 = - 1,8

Deste modo, a intensidade das atitudes de Jacopo de Varazze para


com os imperadores da dinastia Staufen na VSP é representada da
seguinte forma:

A partir da aplicação da técnica de Análise de Avaliação, podemos


constatar que os imperadores da dinastia Staufen são representados, em
quase sua totalidade, de maneira desfavorável. A escala de Osgood
exposta acima expressa esse resultado. Tanto Frederico Barba-Ruiva,
quanto Henrique VI e Frederico II são qualificados negativamente. Ao
verificarmos apenas as sentenças destacadas, onze delas – de um
universo de treze – atribuem características, no mínimo, nocivas a estas
personagens. Assim, ao utilizar este método conseguimos embasar o
que antes era apenas uma impressão. Deste modo, podemos agora
afirmar que a imagem – a aparência de representação – a qual Jacopo
de Varazze se esforça por transmitir sobre os imperadores desta dinastia
na VSP é carregada de uma poderosa conotação (intensidade) negativa.

92
Conclusão
Com o emprego da metodologia de Análise de Avaliação,
verificamos que o frade Jacopo de Varazze adotou uma postura bastante
crítica com relação aos monarcas Staufen, carregando suas atitudes na
VSP com uma conotação consideravelmente desfavorável. Assim, os
imperadores – ao observá-los como conjunto e não individualmente –
foram representados como: tiranos, ou seja, responsáveis por negar a
liberdade dos súditos e levar a comunidade à perdição; traidores, uma
vez que atacaram e mataram romanos e integrantes do clero, a quem
deveriam proteger; pecadores, pois foram orgulhosos, e excomungados
– excluídos espiritualmente do Reino do Céu.
Tal construção de uma imagem acintosamente negativa é
potencializada quando seu alcance é significativo. A LA foi objeto de
intenso consumo pela sociedade do Ocidente medieval. Suas Vidas de
Santo alcançaram setores da cultura clerical e da cultura vulgar,
tornando-se deste modo em uma das principais obras literárias da
chamada cultura intermediária.36 Foi sucessivamente copiada e
traduzida para as línguas vernáculas em um claro sinal do sucesso
atingido pelo legendário. Chegou à Inglaterra, França, Áustria, Germânia,
regiões do leste europeu, além da própria península itálica, onde o êxito
foi imediato. Desta forma, as funções – como a defesa da obediência – e
objetivos da LA, desejados por Jacopo de Varazze, chegaram aos mais
diferentes ouvintes e leitores, seja por meio da leitura – silenciosa ou em
voz alta –, seja por meio das pregações, para as quais o legendário foi
utilizado como fonte pelos frades. Portanto, podemos afirmar que os
diferentes conteúdos trabalhados na LA, inclusive na VSP, percorreram
os principais centros econômicos, religiosos, políticos, culturais, etc. do
período, levando as palavras do frade dominicano a uma quantidade

36 De a o do o F a o Jú io , a ultu a i te edi ia se ia a i te ess o e t e a ultu a


le i al e a ultu a ulga . E te de-se o o ultu a le i al a uela ue e a p oduzida o
eio e lesi sti o, let ada – o a utilizaç o do lati – e t a s itida po eios fo ais –
u i e sidades, es olas o sti as. J a ultu a ulga e a tudo o ue o pe te ia
ultu a le i al. Neste se tido, a ultu a ulga e a o al, t a s itida i fo al e te as
asas, uas, p aças, ta e as, et . po eio de idio as e dialetos e ulos.
Espo ta ea e te ela o ada, ela e p essa a a e talidade de fo a ais di eta, o
e os i te ediaç es, o e os eg as p eesta ele idas. . Cf. FRANCO JÚNIOR,
Hil io. A Idade M dia: Nas i e to do O ide te. . ed. S o Paulo: B asilie se, . p.
.
93
significativa de pessoas. A representação dos imperadores da dinastia
Staufen do Sacro Império Romano nesta obra adquire então um valor
simbólico bastante poderoso. Desta maneira, sua caracterização
negativa resultou, por vezes, na única imagem dos imperadores recebida
pelos públicos.
Com isso, a imagem que se pretende fazer válida, em detrimento
do objeto real, assume uma posição de destaque nas querelas entre os
poderes espiritual e temporal. A representação dos imperadores atende
assim à função de defender a superioridade do poder papal, ao assumir
um papel de ataque aos detentores do poder imperial. Este ataque se
manifesta por meio das constantes desqualificações, insinuações e
críticas abertas atribuídas aos imperadores.
A presença do relato de líderes do poder mundano no interior
de uma obra que se pretende hagiográfica – em detrimento de
informações sobre o próprio santo ao qual a suposta hagiografia se
dedica – foi sim permeada e influenciada pelo contexto de disputa entre
ambos os poderes. Ao construir a imagem dos imperadores com base
em atributos negativos e que os deslegitimam, Jacopo de Varazze tem
por objetivo reafirmar a superioridade do espiritual frente ao temporal
a partir da construção da aparência de representação. Destarte,
concluímos que a representação dos imperadores da dinastia Staufen na
VSP contribui para que a LA sirva como um instrumento de propaganda
política37 a favor dos interesses comuns aos detentores do poder
espiritual.

37FORTES, Carolina Coelho. A Legenda Áurea: datação, edições, destinatários e modelo


de santidade. In: TEIXEIRA, Igor Salomão (Org.). História e Historiografia sobre a
Hagiografia Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2014. p. 30-46.
94
MARIA D OIGNIES E CLARA DE ASSIS : DOIS
EXEMPLOS DE SANTIDADE LAICA NOS PRÓLOGOS DE JACQUES DE VITRY
(1160/80-1240) E THOMAS DE CELANO (1200-1260)

Ana Paula Lopes Pereira1

No século XIII os centros urbanos viram florescer novas formas de


piedade laica, como o movimento beguinal e o franciscano, implicando
novas formas de construção da santidade. No Brabante2 e na Úmbria,
tipos semelhantes de devoção se constituíram fundamentados na
o tade e a g li a de segui u C isto u . Dois e e plos aio es de
sa tidade fe i i a se o stituí a : Ma ia d Oig ies, o jeto de u
importante documento composto por Jacques de Vitry, pregador e bispo
d A e t ata-se do primeiro relato individualizado de uma pessoa que
não pertence a nenhuma ordem eclesiástica ou à aristocracia3) e Clara
de Assis, a companheira de Francisco, que também teve seus gestos
recolhidos por Thomas de Celano, hagiógrafo da Ordem Franciscana.
Buscamos aqui - através da análise comparativa dos Prólogos das duas
vitae4 - refletir sobre a construção da santidade laica com perspectivas
iniciais semelhantes (o beguinal e o comunitário franciscano) mas com

1 P ofesso Adju to de Hist ia Medie al da Fa uldade de Fo aç o de P ofesso es-Ue j


UERJ-FFP . Pes uisado ola o ado do P og a a de Estudos Medie ais PEM-UERJ .
2 Regi o de o ige do o i e to egui al. As Mulie es eligiosae, egui ae,
eggi ae su ge o fi al do s ulo XII e Fla d es, a Ale a ha, e a F a ça
sete t io al. A Vita de Ma ia d Oig ies o p i ei o do u e to ue d o ta dessa o a
fo a de espi itualidade.
3 LAUWERS, M. Pa oles des Fe es, sai tet f i i e. L Église du XIII e si le fa e au
B gui es. La iti ue histo i ue l p eu e. I : BRAIVE, Gasto et CAUCHIES, Jea -Ma ie
di . . T a au et Re he hes. B u elles: Pu li atio s des Fa ult s u i e sitai es Sai t-
Louis, p. .
4 Utilizaremos as edições: SOLELERIO, J-B. (Ed.) De Sancta Clara Virgine, prima sancti

Francisci Discipula. Acta Sanctorum. Augusti, Antuerpiae, t.II, p. 739-767, 1735 e


HENSCHENIO, G. PAPEBROCHIO, D. (Ed.) Vita B. Maria Oigniacensi. Acta Sanctorum. Junii,
Paris e Roma, t.V., p. 542-588, 1867. No texto dos Acta sanctorum a autoria é atribuída
a um anônimo contemporâneo. Na edição estão incluídos os Atos de seu processo de
canonização. Atualmente a legenda latina Sanctae Clarae Virginis é atribuída a Thomas
de Celano. Jacques Dalarun e Armelle Le Huërou editaram e traduziram o corpus clariano
completo em: DALARUN, J., LE HUËROU, A. Claire d'Assise. Écrits, vies et documents, Le
Cerf-Éditions franciscaines, 2013.
.
95
posteridade diferente, para tentarmos compreender, por um lado, os
limites do ulto a Ma ia d Oig ies, a pe seguiç o e o e uad a e to das
beguinas; por outro lado, a expansão do culto a Clara de Assis, fundadora
da Ordem das clarissas e rapidamente canonizada e, em última instância,
tentar compreender porque o corpo eclesiástico apóia, reconstrói e
enquadra o franciscanismo, inclusive através da perseguição aos
franciscanos espirituais, e sufoca outras manifestações de piedade laica,
como o movimento beguinal.
Podemos primeiramente considerar que a aproximação entre o
movimento beguinal - que expressa a piedade laica renovadora - e o
franciscanismo da primeira geração foi justamente feita por Jacques de
Vitry, atento às novas formas de vida religiosa. R.B.C.Huygens5
demonstra que um dos mais antigos testemunhos sobre são Francisco e
sobre os primeiros irmãos menores se encontra nas cartas de Jacques de
Vit . E , a o da o te de Ma ia d Oig ies, Ja ues de Vit p ega
a Quinta Cruzada, assiste à sagração de Honório III e, no outono de 1216,
parte para a Terra Santa, depois de haver terminado a redação da vita
de Ma ia d Oig ies. E t e e a o pa ha a C uzada o Egito e
assiste ao desastre do cerco de Damieta. São sete cartas escritas durante
esse período, ditadas para Jean de Cambrai e expedidas para diferentes
destinatários. Essas cartas, segundo o editor, são as mais agradáveis e
simpáticas de toda literatura latina medieval.6 As cartas que tratam de
Francisco e seus primeiros companheiros são as cartas I e VI. A carta I,
datada de outubro de 1216, é destinada aos amigos flamengos de Vitry7
e demonstra todo o interesse e estilo que encontramos na Vita de Maria
d Oig ies. O auto , apesa de o t a iado o as at i ulaç es se ula es,
encontra consolo no modo de vida dos irmãos e descreve seus hábitos
em comum: pessoas de ambos os sexos deixavam as riquezas e sua vida
no mundo por Cristo, chamavam-se irmãos e irmãs menores, e viviam
conforme a Igreja Primitiva, quando a multidão dos crentes formava um

5 HUYGENS, R.B.C. (Ed.). Epistolae de Jaques de Vitry. Leyde: Brill, 1960.


6 HUYGENS, R.B.C. Les passages des lettres de Jacques de Vitry relatifs à saint François
d Assise et ses p e ie s dis iples. In: Hommages à Leon Herrmann. Bruxelles: [s. n.],
1960. (Collection Latomus, V. 44). p. 446-453, p. 448.
7 Co se ada e u s a us ito a Bi liote a U i e sit ia de Ga d . . I ide ,.
96
só coração e uma só alma. Mulheres habitavam conjuntamente,
próximas às cidades e viviam do trabalho das suas mãos.8
A carta VI, escrita em março de 1220, tem três versões: uma
enviada ao Papa, outra dirigida ao amigo Jean de Nivelles (presente na
iog afia de Ma ia d Oig ies , pedi do pa a ue seja e iada ao a ade
de Villers9, e uma última versão endereçada à abadessa e ao convento
de Aywières.10 Na passagem que relata a viagem de Francisco ao Egito,
em agosto de 1219, o autor ressalta a dimensão eclesial tomada pelos
Irmãos Menores e insiste no seu caráter primitivo e apostólico; refere-se
também à coragem do fundador (Magister) da ordem que prega aos
Sarracenos.11 Dessa forma poderíamos afirmar que sua primeira e
p ofu da i ia o Ma ia d Oig ies o p epa a pa a o
reconhecimento da vida apostólica, de pobreza e trabalho. Jacques de
Vitry anuncia e enuncia uma nova forma de piedade e de modo de vida,
a vida comunitária, fundamentada em Atos 4,32.12
A linha de aproximação entre o movimento beguinal e o
franciscanismo foi iniciada com o capuchinho Alcântara Mens que

8 U u ta e i pa ti us illis i e i solatiu , ulti e i ut ius ue se us di ites et


se ula es o i us p o Ch isto eli tis se ulu fugie a t, ui F at es Mi o es et So o es
Mi o es o a a tu ... Ipsi aute se u du fo a p i iti e e lesie i u t, de ui us
s iptu est: ultitudi is ede tiu e at o u u et a i a u a...Mulie es e o iu ta
i itates i di e sis hospitiis si ul o o a tu ; ihil a ipiu t, sed de la o e a uu
<sua u > i u t, alde aute dole te et tu a tu uod a le i is et lai is plus ua
elle t ho o a tu ... C edo aute uod i opp o iu p elato u , ui uase a es
su t ulti o ale tes lat a e, do i us pe hujus odi s pli es et paupe es ho i es
ultas a i as a te fi e u di ult sal a e. I ide ,, p. - .
9 A a adia iste ie se de Ville s o side ada o luga de p oduç o das iog afias
espi ituais de egui as ue se to a a iste ie ses. A e s o dessa a ta est
o se ada e uat o a us itos
10 Le a os ue A i es a a adia de sa ta Lutga de - , o jeto de u
elato hagiog fi o de Tho as de Ca ti p - , he dei o estilísti o de Ja ues
de Vit .
11 ... F at u Mi o u , ue eligio alde ultipli atu p u i e su u du eo, uod
e p esse i ita tu fo a p i iti e e lesie et ita apostolo u . ... Magiste e o
illo u , ui o di e illu i stituit, u e isset i e e itu ost u , zelo fidei a e sus
ad e e itu hostiu ost o u pe t a si e o ti uit et u ali uot die us Sa a e is
e u dei p edi asset, odi u p ofe it . HUYGENS, R.B.C., Les passages des lett es de
Ja ues de Vit . ..Op.Cit., p. - .
12 Multitudi is aute ede tiu e at o u u et a i a u a: e uis ua eo u uæ
posside at, ali uid suu esse di e at, sed e a t illis o ia o u ia. Vulgata
97
es e e, e , LO ie Italie e et L O ie B a a ço e. Deu
ou a ts pa all les d i spi atio o u e e logo de início coloca
13

Ja ues de Vit o o o po to de ju ç o e t e a eligiosidade popula


da Úmbria e da Toscana, centrada em São Francisco, e o movimento
eligioso fe i i o da dio ese de Li ge : as sa tas elgas s o
contemporâneas de Francisco, as beguinas-reclusas são irmãs de santa
Cla a... 14 Assim, A. Mens retoma as fontes da espiritualidade franciscana
que, como a beguinal, se encontram na mística cisterciense de Bernardo
de Clairvaux e de Guillaume de Saint-Thierry, na devoção Eucarística, na
devoção à Cruz e à Paixão de Cristo e finalmente, na mística que de
o a al se to a popula 15 e na lírica cavalheiresca que expressa o
amor absoluto de Deus e na pobreza voluntária. O artigo compara assim,
brevemente, cada tema devocional e espiritual presente nas vidas de
beatas do Brabante com alguns elementos da hagiografia franciscana.
Assim, a historiografia relativa aos relatos hagiográficos das beatas
beguinas e cistercienses e a vasta e complexa documentação
hagiográfica franciscana relacionam inicialmente os dois movimentos
através de temas característicos da espiritualidade laica, tais como: a
devoção Eucarística e à humanidade de Cristo, a obediência às
instituições eclesiais e aos clérigos pregadores, confessores, diretores
espirituais, a vida apostólica (ascese, penitência, disciplina, humildade),
os dons do Espirito Santo (profecia, lágrimas), e por fim, o Amor de Deus,
a Caridade. Evidentemente, essas experiências aparecem em toda a
documentação que manifesta a espiritualidade do século XIII, ou seja,
nos relatos hagiográficos, nos processos de canonização, nas coletâneas
de exempla, nos sermões ad status, na especulação teológica
universitária.
Mas, no tipo de documentação que nos concerne, o relato
hagiográfico, o que diferencia o relato de Jacques de Vitry, seu estilo
literário e a construção de um novo tipo de santidade que abrasa e

13 MENS, Al a ta a. L'O ie Italie e et l'O ie a a ço e: deu ou a ts eligieu


pa all les d'i spi atio o u e. Etudes F a is ai es, T. , Pa is: pp. - .
14 A. Me s epete essa asse ç o de E. M Do ell e The egui es a d egga ds i
edie al ultu e, ith spe ial e phasis o the Belgia s e e. Ne B u s i k: Rutge s
U i e sit P ess, e o p ef io de Mg . L.Ce fau epete Leo Va de Esse a
o elaç o e t e as egui as e sa ta Cla a.
15 I ide , p.

98
embaraça as autoridades dos topoi? Assim, gostaríamos de demonstrar
a diferença entre as duas vitae, apesar das aproximações pertinentes
feitas pela historiografia.16

O P logo Vida de Ma ia d Oig ies po Ja ues de Vit


A vita de Maria d'Oignies constitui um documento capital no que
diz respeito às evidências históricas que ela traz sobre o movimento
voluntário de mulheres piedosas.17 Por sua posição na Igreja, Jacques de
Vitry18 se torna o porta-voz dos movimentos de caráter reformador,

16 Na histo iog afia o te po ea pode os ita C.W.B u , B e da Bolto , M.


Lau e s, M. Goodi h, Da ie Bo uet.
17 As ulie es sa tae , ou ulhe es piedosas, lai as, egui as es olhe a
olu ta ia e te a ida eligiosa fo a das o u idades o sti as. Essa o a fo a de
piedade, situada os li ites da hete odo ia, e ige o o t ole das auto idades
e lesi sti as, as, po out o lado, sus ita a ad i aç o dos g upos aos uais pe te e.
Suas pala as e seus gestos s o o tados os elatos hagiog fi os, ou iog afias
espi ituais, ia do u a o a tipologia de sa tidade.
18 Jacques de Vitry nasceu entre 1160 e 1180, em um lugar desconhecido. Estudou na

Universidade de Paris, e se tornou magister. Antes de ser ordenado padre foi cura em
Argenteuil. Provavelmente em 1208 é ordenado cônego agostiniano no priorado de
Saint-Ni olas d Oig ies, o de o he e Ma ia d Oig ies e se to a seu o fesso . O pad e
Wankenne insiste, na biografia de Jacques de Vitry, em seu encontro com Maria
d Oig ies, o fo e a ado po Tho as de Ca ti p o Suple e to vita de Maria
d Oig ies. Foi ela ue o o e eu a e e e o h ito de ego o p io ado de
Oignies, e ela que teria previsto que ele iria para a Terra Santa e que se tornaria bispo.
Por volta de 1211 começa sua atividade de pregador e é notado pelo legado Raymond
d Uz s, ue pede pa a ue ele p egue o t a os al ige ses, ju ta e te o Foul ues
de Marselha (1205-1231) - daí o Prólogo à vita de Maria ter sido considerado como um
instrumento de pregação contra os hereges cátaros. Em 1216 parte para a Terra Santa e
e eleito ispo de S o Jo o d A e. De olta dio ese de Li ge, e , ele se
despe, e Oig ies, do a go de ispo d A e e , de is o aceita por Gregório IX.
Entre 1226 e 1229 é bispo auxiliar de Liège, Em 1228, Gregório IX o promove a bispo-
cardeal de Tusculum. Morre em Roma, em 1º de maio de 1240, e é inumado em Oignies,
na igreja paroquial. Suas relíquias, os tesouros que trouxe da Palestina, bem como o
eli io de Ma ia d Oig ies ue a ega a ao pes oço, est o o Co e to das I s de
Notre-Dame de Namur. Além da vita e das suas cartas, Jacques de Vitry como pregador
escreveu 410 sermões, entre 1226 e 1240. São quatro recolhas disti tas: os Se es de
tempore , pa a os do i gos e pa a as festas do te po al, os se es de sanctis , pa a
o sa to al, os se es ad status ou vulgares , de g a de i te esse pa a a tipologia
das categorias sociorreligiosas e para a compreensão da pregação para os laicos, e nos
quais inclui 314 exempla, e fi al e te os se es feriales vel communes , pa a os dias
da semana. A obra maior de Jacques de Vitry, a Historia Hierosolimitana abbreviata,
99
evidenciando, como vimos em suas cartas, as profundas mudanças no
sentimento religioso do início do século XIII. O caráter excepcional desta
vita vem, sobretudo, do fato de que Jacques de Vitry cria um modelo
narrativo hagiográfico, fundamentado em uma linguagem afetiva e
mística.19 Para nós, todo o jogo da hagiografia consiste em colocar em
discurso realidades que escapam à sensibilidade comum. Assim, Jacques
de Vitry transforma o relato hagiográfico na sua estrutura, nos seus
temas, nos seus topoi, no seu vocabulário. Essa nova narrativa
hagiog fi a de o i ada iog afia espi itual , pois o dis u so
hagiográfico tradicional é transformado não somente na escolha dos
temas, pois a ênfase é colocada sobre a ascese interior, mas, sobretudo,
no envolvimento pessoal dos biógrafos com seu sujeito de análise e
objeto de devoção. Através desse relato Jacques de Vitry se torna o
promotor do movimento beguinal e de um novo tipo de santidade.20
Nesse sentido, reconhece em Francisco aquilo que havia visto em Maria.
Mas é sobretudo sua linguagem que nos conduz a começar nossa análise
pelo prólogo da sua Vida de Ma ia d Oig ies. Morta em 1213, Maria

redigida entre 1220 e 1225, é composta de dois livros: Historia Orientalis, que trata do
Islã e das causas das Cruzadas, além de um histórico das três primeiras Cruzadas e uma
descrição da Terra Santa, e a Historia Occidentalis, que trata da Igreja do Ocidente.
WANKENNE, André, Le Cardinal Jacques de Vitry. In: MENEGALDO, Silvère. Jacques de
Vitry, Histoire Orientale. Cahiers de recherches médiévales. Disponível em
http://crm.revues.org//index1037.html. Acesso em 13/11/2009. HINNEBUSCH, John
Frederick, O.P (Ed.). The Historia Occidentalis of Jacques de Vitry, a critical edition.
Fribourg: Spicilegium Friburgense, 1973. V. 17; PLATELLE, Henri, Jacques de Vitry.
Dictionnaire de Spiritualité, Paris: Beauchesne, T.8, col. 60-65.
19 A Vita de Ma ia d'Oig ies o side ada pela aio ia dos auto es o o o te to ue
a a u a uda ça a li guage hagiog fi a, pela i flu ia e e ida pelos C ti os
dos C ti os e pelo li is o dos t o ado es. Ve LEJEUNE, R. L' ue de Toulouse, Fol uet
de Ma seille et la p i ipaut de Li ge. I : M la ges Feli Rousseau. B u elles, . p.
- .
20 O sa to u tipo so ial di i o, at elado ao p o esso de t a sfo aç o das
est utu as so io eligiosas. Na sua a epç o ais o u , a fu ç o do elato hagiog fi o
e p essa a p ese ça do di i o e u ho e ou u a ulhe , os uais os fi is de e
i ita pa a ga a ti a sal aç o ete a. Ele t a s ite ta a e teza da atualizaç o dos
gestos dos te pos e a g li os. Segu do Mi hel de Ce teau, o do u e to hagiog fi o
se a a te iza po u a o ga izaç o te tual, i pli ada o título: a ta, es gestae; s o u
l i o, a ifesta do i tudes e ilag es. CERTEAU, Mi hel de. A Es ita da Hist ia. Rio
de Ja ei o : Fo e se-U i e sita ia, , p. - .
100
d'Oignies,21 de família nobre, foi destinada muito jovem ao casamento,
as ap s sua o e s o de idiu segui , u isto u , ju ta e te om
seu marido, na castidade, mendigando e se ocupando dos leprosos da
cidade de Willambrok.
A vita, dividida em dois livros contém um prólogo e doze capítulos.
O texto se estrutura em uma série de pequenos relatos de suas
intercessões milagrosas, evidência dos sete dons que recebe do Espírito
Santo em função da sua ascese e apostolado. O prólogo abre com o
mandamento do Senhor no evangelho de João,22 seguido da palavra da
Cananéia, tirada do evangelho de Mateus.23 A exegese desses dois
versículos justifica o empreendimento hagiográfico de Jacques de Vitry:
o Senhor mostrou e pediu, aos seus discípulos saciados, que apanhassem
os restos da Ceia. Para Jacques de Vitry, esses pedaços são os exemplos
dos santos, fragmentos do pão do Senhor. E aqueles que os imitam, que
comem as migalhas caídas da mesa do Senhor, são os pequenos
cachorros, como Jacques de Vitry se via face à Marie d'Oignies.24 Essa
referência Eucarística estabelece de fato uma hierarquia em três níveis:
o Cristo, os santos e aqueles que deveriam se esforçar em imitá-los.25
Isso forma o primeiro elo narrativo das vitae liegenses.26
O prólogo é uma carta respondendo a um pedido de Foulques de
Toulouse,27 o que permite dizer que ele foi o instigador da escrita da vita.
Ele havia solicitado a Jacques de Vitry uma compilação de exemplos que
as pessoas de Liége poderiam dar àqueles que desprezam e abandonam
a Igreja. Depois do que havia ouvido dizer sobre essas mulheres, ele

21 HENSCHENIO, G. PAPEBROCHIO, D. (Ed.) Vita B. Maria Oigniacensi. Acta Sanctorum.

Junii, Paris e Roma, t.V., p. 542-588, 1867.


22 Jo o , .
23 Mt. , . A utilizaç o do epis dio da Ca a ia sig ifi ati a de u a o a a ei a
de pe e e a pala a da ulhe , to ada possí el e elati a e te a eita o ojo da
e o aç o e a g li a.
24 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis .A t. SS...Op.Cit § , p. .
25 Segu do Hugo de Sai t-Vi to a i itaç o u pe ue o g au de pa ti ipaç o o se
di i o. HUGO DE SAINT-VICTOR. I Hie o i us. II, Pat ologia Lati a, t. , .
26 Ja ues de Vit defi e ta as di e s es a t opol gi as do sa ifí io eu a ísti o
e a u ia a i po t ia da de oç o ao Sa to-Sa a e to a dio se de Li ge.
27 Foul ues de Ma seille + , eleito ispo de Toulouse e , foi assado pelos
al ige ses e pa tiu pa a Li ge e . Foul ues ajudou Do i gos de Guz a a
fu daç o de La P ouille e apoiou o esta ele i e to dos do i i a os e Li ge, at a s
da i te ess o de Ja ues de Vit .
101
dificilmente acreditaria na plenitude de sua graça, e ele só creria se
fizesse a experiência de conhecê-las:28 crer nas mulheres que choram
ais po u pe ado e ial, do que os homens da tua região por mil
pe ados o tais .29 Mas Foulques as viu e se regozijou: "vidiste (et
gavisus est)." É a repetição dessa nota apocalíptica30 que vai dar o ritmo
à primeira parte do prólogo e aprofundar a importância da renúncia
dessas santas mulheres. Foulques participa sua alegria a Jacques de
Vitry, mas é Jacques de Vitry que escolhe Maria como sujeito absoluto
de seu relato.
A escrita dessa vita procedeu do desdobramento da vontade de
Jacques de Vitry: de um lado, um homem da Igreja preocupado em lutar
contra os hereges; por outro lado, um homem animado pela devoção
pessoal. Foulques é a testemunha melancólica da perdição de uma
região. Cassado pelos hereges de Toulouse, cidade metaforizada com os
traços do Egito, ele "atravessará o deserto" para chegar a Liége, vista
aqui como a Terra Prometida,31 atraído pelo odor de santidade que
emanava dos militantes de Deus – sobretudo das santas mulheres que
"veneravam com um supremo desejo e reverência a Igreja do Cristo e os
Sacramentos da santa Igreja."32 Jacques de Vitry descreve então as
categorias sociorreligiosas que formam o grupo das mulieres religiosae,
que são virgens, viúvas e continentes. Seu prólogo se torna assim uma
evidência histórica da existência de tais categorias, dada por um
hagiógrafo que, preocupado em erigir essas mulheres em exemplo,
procura retraçar o contexto e os agentes de um movimento espiritual,
assim como seus efeitos salutares para toda a cristandade. Foulques se
regozijou ao ver agrupadas (catervas) em diversos lugares as virgens
santas que, tendo abandonado os prazeres da carne e as riquezas do
mundo pelo amor do reino celeste e que, mesmo ricas, trabalham com

28 Ja ues de Vit ha ia ido a Li ge e .


29 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis .A t. SS...Op.Cit., § . p. . Cf. Epistola I, HUYGENS,
R.B.C. Ed. Lett es...Op.Cit., p. , l. p. .
30 Ap . , - : Vidi ... et i atus su ...
31 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § , p. . Na sua Histo ia O ide talis
Ja ues de Vit eite a sua et fo a: JACQUES DE VITRY, De o iali us ste ie si us.
HINNEBUSCH, J.P. Ed. Histo ia O ide talis....Op.Cit., . XV, p. .
32 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § , p. . A de oç o eu a ísti a ga ha,
pa a os histo iado es ue se de uça a so e esse te to, al de eio de o t ole da
"espi itualidade fe i i a", o se tido de p i ipal ele e to ga a tido da sua o todo ia.
102
suas próprias mãos e renunciam a suas famílias e casas para se ligarem
ao Esposo na pobreza e na humildade.33 Vêm em seguida as matronas
que ensinam, por meio de proposições salutares, as jovens meninas a
conservar sua pureza e a só desejar o Esposo celeste. Viúvas que,
segundo sua condição, devem velar, jejuar, rezar, chorar e se ocupar de
obras de misericórdia.34 Ele evoca, enfim, as mulheres continentes, que
servem ao Senhor no estado do casamento: elas educam seus filhos no
temor de Deus e se mostram impassíveis às tentações do diabo. É aí, com
efeito, que reside a glória dessas mulheres: a de viver uma verdadeira
vida angélica, uma vez que, no meio do fogo, elas não ardem.35 Virgens,
viúvas, continentes, são todas santas mulheres.36
Jacques de Vitry tem consciência da emergência de um novo tipo
de santidade, ao mesmo tempo moderna, laica e feminina. Ele
reconhece a importância do movimento como sendo portador de
esperança e de força espiritual. M. Lauwers notou, com muita
pertinência, que a vita de Marie d'Oignies foi a primeira tentativa de
individuação de um representante de um grupo sociorreligioso não
institucionalizado e de ortodoxia suspeita.37 De fato, ela é a expressão da
mudança ocasionada pelo florescimento dos movimentos reformadores
de caráter evangélico e que, colocados pelo hagiógrafo na dimensão da
história da salvação e na mudança de percepção religiosa do laicado,
adquire uma significação precisa. Por isso essa vita guarda um aspecto
escatológico e libertador que vai influenciar a produção hagiográfica.
Na sequência, Jacques de Vitry defende a ortodoxia das mulheres
piedosas, colocando em cena seus detratores e perseguidores. Dessa

33 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § , p. .


34 I ide ,. § , p. . Ja ues de Vit a a a i po t ia da e o taç o útua. Vi os
ue Ho o ius III d a Ja ues de Vit a pe iss o o al pa a as egui as de Fla d es,
F a ça e I p io i e e ju tas e o u idades eligiosas e se assisti e utua e te
pela e o taç o, o ue ep ese ta u esfo ço de o ga izaç o, so dife e tes fo as, das
egui as e os li ites de Lat o IV. JACQUES DE VITRY, Epistola I, i HUYGENS, R.B.C. Ed.
Lett es...Op.Cit., p. - . M DONNELL, E. The egui es a d egga ds i edie al ultu e,
ith spe ial e phasis o the Belgia s e e. Ne B u s i k: Rutge s U i e sit P ess,
. p. .
35 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS.. Op.Cit., § , p. .
36 Pa e e a ui ue o a epe di e to ais i po ta te o o teste u ho de f do ue
a i gi dade, ue pode se p e se pe dida.
37 LAUWERS, Expérience Béguinale et récit hagiographique. A propos de la Vita Maria

Oignacensis de Jacques de Vitry (vers 1215). Journal des Savants, janvier-juin, 1989.
103
forma ele apresenta, pelo viés dos exempla, duas realidades opostas: as
virtudes das primeiras e os vícios dos segundos.38 Esses detratores que
amam o mundo atribuem às mulheres piedosas nomes ignóbeis,
o pa ados ueles ue os judeus de a ao C isto e aos seus
dis ípulos . Jacques de Vitry relembra aqui o programa evangélico
39

dessas mulheres piedosas e as compara à pureza dos primórdios. Para


provar sua santidade, ele relata a revelação feita pelo Espírito Santo a
um velho monge da abadia cisterciense de Aulne40 que duvidava desses
homens41 e mulheres, nomeadas com nomes novos, como beguinas,
catervas, mulieres religiosae. Essa revelação, que ele recebeu em
oração, apresenta-os o o se do sólidos na fé e eficazes nas obras , e
a partir deste momento ele se ligou a eles com tal dileção que ele não
podia suportar que alguém pudesse maldizê-los dia te dele .42 Assim, a
revelação divina, que lhe dá a certeza da ortodoxia e das obras dos
novos piedosos, implica a dileção e não a devoção.
Para dar conta do caráter maravilhoso da experiência mística,
Jacques de Vitry enumera os dons do Espírito-Santo, de quem essas
mulheres são o receptáculo, e pelos quais a santidade delas é percebida:
as visões, os milagres, o exorcismo, o êxtase, o repouso do espírito, o
dom de profecia, o discernimento dos corações, a sabedoria e a
ciência.43 Utilizando uma linguagem tirada do Cântico dos Cânticos, ele
institui essas mulheres como sendo as verdadeiras esposas de Cristo.
Algumas dentre elas se abandonavam na afeição do amor de Deus tão
especial e admiravelmente que languesciam de desejo e não podiam se
levantar de suas camas por vários anos.44 A causa desta "doença"

38 Esses det ato es s o todos ho e s "te e osos e ali iosos," a a o e e e e e


ie de sua a sti iaP ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS....Op.Cit., § , p. .
39. Vitae Mariae Oignacensis. Act. SS... Op.Cit., § 4, p.548. Podemos nos perguntar se entre

aqueles nomes figurava o de beguina. Juliana era também difamada com uma mesma
ai a a i a , o os es os isos de de o he. HENSCHENIO, G.; PAPEBROCHIO, D.
(Ed.) De Beata Juliana Corneliensi. Acta Sanctorum. Aprilis, Paris e Roma, t.I, p. 435-475,
1866.. Prol. p. 442.
40 Os o ges das a adias de Aul e e de Ville s est o e t e a ueles o ue ue as
egui as e as o jas a ti ha elaç es de a izade espi itual.
41 A ui a ú i a ez ue Ja ues de Vit pa e e e io a os egui os.
42 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § . p. .
43 É a des iç o desses do s ue o de a a di is o dos apítulos do li o II da ita de Ma ia

d Oig ies.
44 P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § . p. .
104
(infirmitas) não era outra senão o desejo de Deus, que liquidificava suas
almas. Repousando suavemente no Senhor, elas se achavam
enfraquecidas nos seus corpos, mas fortificadas no espírito, gritando em
seus corações as palavras do Cântico dos Cânticos.45 Jacques de Vitry
narra esses êxtases, nos quais a grandeza desse amor fazia fundir suas
almas, liberando-as dos sentidos do corpo. Paradoxalmente, outras
sentiam em seus corações tanta doçura espiritual que o sabor do mel
preenchia sensivelmente sua boca e lágrimas suaves corriam sobre seus
rostos, conservando o pensamento (mens) na devoção.46 Assistimos
aqui a uma radicalização dos temas da mística afetiva cisterciense: o que
era antes experimentado pelo exercício da meditação monástica - vivida
como participação na divindade - acha aqui uma dimensão cotidiana
efetiva, inscrevendo-se em outra dimensão temporal, de longa
duração.47
Visto o caráter maravilhoso dessas experiências, Jacques de Vitry
se pergunta: através de que obra poderia ele contar a diversidade e a
beleza das graças operadas em diferentes pessoas?48 Jacques de Vitry
deve obedecer ao pedido de Foulques de Toulouse que, no momento
da morte de Maria d'Oignies, rogou-lhe, com todo o afeto (quanto
potuisti affectu rogasti me), que redigisse a vida da beata, pois ele havia
vivido como um de seus familiares (...utpote qui ejus familiaris
extiteram)49 e conservado na memória muitas coisas sobre as virtudes
dela. Ele lhe pede também que narre a vida de outras mulheres piedosas
de Liège, a fim de poder pregar contra os hereges as maravilhas que

45 Ca t. , .
46 "Ali ujus etia i a ilite & se si ilite , du a i a p ae a o is ag itudi e
li uefie et, ge ae o po ales atte uatae esol e a tu . Multis etia e fa o spi itualis
dul edi is i o de, edu da at ellis sapo se si ilite i o e, dul es la as eli e s, &
e te i de otio e o se a s". P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit., § . p.
..
47 E sua dout i a so e a deifi aç o Be a do de Clai au , o ega do a possi ilidade
da is o eatifi a te a tes da Rede ç o, su li ha, e t eta to, seu a te o e t eo.
48 "Sed uid opus esse i di e sis di e sas et i a iles g atia u a ietates e a a e? P ol.
Vitae Ma iae Oig a e sis. A t. SS... Op.Cit., § , p. .
49 " ... ua to potuisti affe tu ogasti e, ut Vita ejus, p ius ua ad Do i u
t a si et, i s iptu edige e ; utpote ui ejus fa ilia is e tite a , et ulta de
i tuti us ejus e o iae o e dasse ; et o solu ejus Vita , sed etia alia u
sa ta u ulie u , i ui us i a ilite Do i us i pa ti us Leodii ope atu ". I ide .
105
Deus ope ou as sa tas ode as .50 Jacques de Vitry recusa,
entrentanto, narrar as virtudes e as obras daquelas que ainda viviam,
pois não suportariam ser conhecidas por todos.51 Jacques de Vitry
empreende então sua obra, e institui uma nova narrativa, escrevendo
o que passa a ser uma norma nos prólogos das vitae das mulheres santas
do Brabante: "Nos igitur, quae vidimus et novimus, et ex magna parte
per experientiam didicimus, ad honorem Dei et ancillae ejus, et
amicorum ejusdem ancillae Christi consolationem, pauca de multis
referemus". 52 Vemos aqui que a consolação dos amigos intervém como
motivo da composição, depois da honra de Deus e da escrava de Cristo.
Mas é ao final do prólogo da vita de Maria d'Oignies que
compreendemos o sentido dado às relações de amor e de amizade
espiritual. O biógrafo diz ali que, depois de seu beato trespasse, ela não
abandona aqueles que amou durante sua vida, uma vez que continua a
exortar as santas mulheres e a guiar os atos dos seus amigos, salvando-
os dos perigos através de sinais certos e secretos, retirando as dúvidas
de seus corações e pedindo para eles, em suas orações, a ajuda do
Senhor. 53 Jacques de Vitry narra ainda que um monge cisterciense vê
em sonho Maria dando de beber a alguns de seus amigos em um cálice
de ouro.54 Finalmente, o hagiógrafo mostra para sua audiência os
motivos que o levaram a consignar por escrito os fatos e gestos da
beata. Vemos que essa intenção é singular na medida em que o principal

50 A espeito da sa tidade ode a, Ja ues de Vit p opoe u a e egese du Ps. :


I ide , § .
51 " ... ; ego ta e o a uie i, ea u uae adhu i u t, i tutes et ope a s ipto
o e da e, uia ullo odo susti e e t". P ol. Vitae Ma iae Oig a e sis. A t.
SS...Op.Cit., § , p. .
52 "N s, ue de fato i os e o he e os e ue a aio pa te ap e de os po
e pe i ia, pela ho a de Deus e da sua es a a, e pa a a o solaç o dos a igos da
es a a do C isto, os elata os pou as oisas e t e uitas. I ide , § , p. .
53 "Post o te etia uos dile e at i ita, o dese uit sed ad ali uos edie s, Sa tas
etia et p o atae itae ulie es f e ue te allo ue s, a i os suos do uit i age dis, et
p ae u i it i pe i ulis, e tis et se etis sig is, o e a o di us eo u du itatio e
e o e s. Ali ui us etia a i o u suo u p e i us suis, ut edi us, i pet a it a
Do i o et sapie tiae sple do e et a itatis fe o e ". Co lusio Vitae Ma iae
Oig a e sis. A t. SS...Op.Cit, § , p. .
54 "U ue uida sa tus Ciste ie sis Mo a hus, idit i so is, post t a situ Ch isti
a illae, uod ali au eus, a o e ejus e i at, uo ui usda a i is suis potu da at".
I ide ..
106
motivo do relato é o amor e a admiração que o biógrafo carrega por essa
mulher piedosa.
Para concluir pensamos que Jacques de Vitry traz quase todos os
elementos narrativos que viriam a ser explorados pelos biógrafos do
Brabante, sejam eles cônegos regulares, cistercienses ou dominicanos.
Assim, para além do vocabulário e da linguagem utilizados para
expressar as experiências espirituais dessas mulheres piedosas, ele
enuncia - com mais nuanças que seus sucessores - três elementos que
marcaram, naquele momento, a reflexão sobre o empreendimento
hagiográfico: a colocação por escrito de relatos de uma substância tão
maravilhosa (fruto da sabedoria infusa destas mulheres) e, portanto, de
credulidade tão difícil, que torna necessário o chamamento de
testemunhas dignas de fé, porque conheceram e amaram as beatas.

O Prólogo à Vida de Clara de Assis por Thomas de Celano


Após a breve exposição da narrativa de Jacques de Vitry nos
questionamos, então, como se apresenta, diante da semelhança
espiritual e devocional dos movimentos religiosos de caráter apostólico
fundamentados na pobreza evangélica, a narrativa de Thomas de
Celano55 na Vita Clara Virgine.56

55 Nas ido e Cela o A uzzes a tes de o e ju to s Cla issas o o apel o


do Val de Va i e seus estos o tais fo a t a sfe idos pa a Taglia ozzo e
. E t ou pa a os I os Me o es e e o he eu pessoal e te F a is o. Foi
dos p i ei os i os e iados Ale a ha, e .E se to a i ist o da
P o í ia ge i a Col ia, Wo s, Spi e e Mogú ia . E a o pa ha o
p o i ial da Ale a ha o Capítulo Ge al e Po iú ula. A pedido do Ca deal Hugoli o
G eg io IX , es e e e , a o da a o izaç o de F a is o, a Vita P i a, o ase
o teste u ho dos o pa hei os de F a is o e de Elias de Co to e. E o Capítulo
Ge al lhe e o e da u a o a ita, o detalhes e olhidos po Leo , A gelo e Rufi o,
a Vita Se u da Me o iale i Deside io A i ae , ap o ada o Capítulo Ge al de L o e
. Es e e ai da u a Vita ad usu ho i ou Lege da O ia a e o uad o
da e o aç o litú gi a p o o ida po A o de Fa e sha , u T atado de Milag es de
s o F a is o T a tatus de Mi a ulis e , a pedido de Jo o de Pa a, e e a
Vida de sa ta Cla a. Fi al e te duas p osas pa a uso litú gi o: Sa titatis No a Sig a,
so e os estig as, e F egit i to i tualis e o Dies I ae, passage da Missa dos Mo tos.
56 SOLELERIO, J-B. (Ed.) De Sancta Clara Virgine, prima sancti Francisci Discipula. Acta

Sanctorum. Augusti, Antuerpiae, t.II, p. 739-767, 1735.


107
Como se sabe, Clara Offreduccio di Favarone nasceu de uma
família nobre de Assis em 1194 ou 119357 e morreu, aos 59 anos, no dia
11 de agosto de 1253, ano da aprovação da sua Regra. É canonizada em
1255, representando a força institucional e eclesial das Clarissas e dos
Irmãos Menores. No início do século XIII, talvez em 1210, com 17 anos,
Clara assiste à pregação de Francisco na igreja de San-Giorgio. Fascinada
pela novidade da pregação e pelo chamamento salutar e evangélico, e
após levar uma vida de humildade, tendo sido criada a sua volta um fama
de santidade, deixa sua família aos dezoito anos na noite do domingo de
Ramos, no dia 20 de março de 1212, para encontrar Francisco e seus
companheiros em Porciúncula. Lá ela recebe uma túnica de material
rude e tem seus cabelos cortados em sinal de renúncia. Francisco a
entrega às beneditinas de Santa Maria dos Anjos. Ao fim de abril é
instalada, também por Francisco, em uma nova comunidade próxima à
Capela de San Damiano, onde se torna abadessa em 1214. Clara adquire
a graça e logo a fama de curadora. Francisco lhes dá uma Formula vitæ,
inspirada na regra dos irmãos menores. Cria-se dessa forma a Ordem das
Pobres Senhoras, ou Clarissas. Supostamente em 1216 teriam recebido
de Inocêncio III (1160- o p i il gio de po eza 58. Em 1219 o
cardeal Hugolino lhes dá uma regra mais estrita de observância
beneditina. Em 1247 Clara redige uma regra inspirada na de Francisco59.
Ao fim de julho de 1253 Inocêncio IV visita Clara in extremis e no dia 9
de agosto aprova a Regra da Ordem das Pobres Damas. No dia 11 Clara
morre aos 59 anos, com o privilégio de pobreza em suas mãos. No dia 18
de outubro de 1253, com a Bula Gloriosus Deus Inocêncio IV (1180-1254)
encomenda ao bispo Bartolomeu de Spoleto a instrução do seu processo
de canonização. Clara é canonizada em 26 de setembro de 1255, e
Alexandre IV (1199-1261) logo começa a construção da Basílica de Santa

57 Segu do u digo ge i o do s ulo XIV te ia as ido e de fe e ei o de


ou dia de julho segu do o i o Ma ia o da Fi e ze. A Ig eja fi a a data de as i e to
dia de julho de .
58 Esse p i il gio uestio ado po We e Male zek Das "P i ilegiu paupe tatis"
I o e z' III. u d das Testa e t de Kla a o Assisi ü e legu ge zu F age ih e
E htheit, Istituto Sto i o dei Cappu i i, , p. - .
59 Ap o ada e de sete o de pelo Ca deal Ra ald. O Co pus Cla ea o
o posto po u a Fo a de Vida, u testa e to, a tas Ag es de P aga es itas
e te e , u a Be ç o pa a as la issas, ue ep ese ta sua p eo upaç o o
a di eç o espi itual e e p essa a izade.
108
Clara em Assis. Nesse momento Alexandre IV dá a Thomas de Celano os
documentos do processo para a redação da biografia oficial da santa que
acaba em 1256 - última obra redigida por ele a pedido do papado e da
Ordem.
O caráter oficial da demanda se expressa na narrativa. A vita
contém um prólogo, que também é uma carta dedicatória a Alexandre
IV, e sete capítulos com 71 parágrafos que narram sua origem nobre, sua
infância e conversão pela fama de Francisco, a perfeição de vida, sua
virtude pública e fama, humildade e pobreza, o milagre da multiplicação
dos pães, sua vida austera e a eficácia das orações, seu sentimento
eucarístico e sua devoção pela Cruz e pela Paixão de Cristo.
De início é necessário considerar que todas as biografias escritas
por Celano foram encomendadas pela Cúria pontifical ou pelo Capítulo
Geral.60 Ele escreve a vida de Clara em 1255 com o objetivo de recolher
testemunhos para o processo de canonização de Clara que ocorre no
mesmo ano. Nesse sentido, algumas observações preliminares se
impõem: fica evidente que a trajetória de Clara é profundamente
diferente da de Maria. Maria morre em 1213, período da conversão de
Clara após ouvir a pregação de Francisco em São-Giorgio. Mas o mais
relevante e que talvez, no nosso entendimento, determine a diferença
expressa na estrutura do texto hagiográfico e na sua narrativa é o fato
de Clara ser enclausurada, por determinação de Francisco, logo após ter
saído de casa. Assim, Clara se torna uma noviça entre as beneditinas e
posteriormente uma abadessa em San Damiano, uma mãe com
obrigações para com suas filhas/irmãs. Não há aqui a construção
progressiva de uma vida de santidade no mundo. No momento em que
ela foi entregue às irmãs ela foi investida da santidade decorrente de

60 Segu do Ja ues Le Goff, Cela o pode se o side ado u hagi g afo de


o p o isso, ue se situa e t e a Lege da A ti ua Spe ulu Pe fe tio is do i o
Leo e a o a de Bo a e tu a Lege da Maio e Lege da Mi o , o postas e .
No e e dessas dife e ças o elato e a pessoa de F a is o est a uest o da Po eza
a soluta e a o de aç o dos f a is a os espi ituais. Dessa fo a o Capítulo ge al de
p oí e a leitu a de ual ue out o elato do po e ello e o a da a sua dest uiç o.
A Vita P i a s foi pu li ada pelos Bola distas e . Assi a figu a de F a is o se
odifi a de i dissi ile s o i us I, , pa a se liga aos odelos t adi io ais
legados po Sulpí io Se e o e G eg io o G a de, apesa da iti a o side a-lo fiel
espi itualidade f a is a a. LE GOFF, Ja ues. Sai t F a çois d'Assise. Pa is: Galli a d,
, p. - .
109
Francisco. Talvez, a própria trajetória de Clara e o motivo da consignação
por escrito da vita possam explicar a simplicidade desse relato. Assim,
embora os topoi e os temas devocionais sejam semelhantes, estão
distantes da expressão radical de Jacques de Vitry. Constatamos que,
apesar da manutenção de alguns topoi (como o da criança com a graça
da sa tidade desde o úte o da e, o o Ma ia d Oig ies, a o e s o,
as práticas penitenciais realizadas no período da infância, o respeito aos
sacerdotes e à Igreja, o desejo de viver plenamente a pobreza
evangélica, de viver uma vida de trabalho e oração - que por sinal está
no fundamento da Regra de São Bento) os dois relatos são
profundamente diferentes na sua intenção e narrativa, mesmo
fundamentados nos testemunhos daqueles que conheceram e
participaram de suas vidas.
O Prólogo de Celano inicia-se com a metáfora de um mundo senil,
mas Deus, amante da humanidade, permitiu o espetáculo das novas
ordens religiosas (amator hominum Deus, ex suae pietatis arcano
sacrorum Ordinum suscitans novitatem).61 Na segunda metade do século
XIII a força das ordens mendicantes é inconteste, é a verdadeira ordem
e é por onde passa doravante o processo de enquadramento interno à
própria ordem - como no caso dos espirituais - e externamente, na
diminuição progressiva da importância doutrinária e clerical dos
iste ie ses e e editi os. Dessa fo a os santos Pais modernos e seus
verdadeiros discípulos podem dizer que eles se tornaram a luz da terra,
os perfeitos mestres da verdade clareando a via direita nesse mundo
tenebroso a et fo a da luz o sta te a vita de Clara,
evidentemente). E, para combater o pecado e a impureza Deus promove
Clara, para que ela seja, pelas suas virtudes, a luz para outras mulheres.
O beatíssimo Papa, inscrevendo-a no catálogo dos santos, coloca-a em
um candelabro para que ilumine a todos que estão na casa.62 Celano,

61 Quasi veterata mundi senecta urgente fidei caligabat visus, morum nutabat
gressus.marcescebat,virilium operum fortitudo : quin imo faces temporu, faece
comutabatur etiam vitiorum, cum amator hominum Deus, ex suae pietatis arcano
sacrorum Ordinum Suscitans novitatem, providit per eosde fidei fulcimentum, et
reformandis moribus disciplinam.. P ologus. I : SOLELERIO, J-B. (Ed.) De Sancta Clara
Virgine, prima sancti Francisci Discipula. Acta Sanctorum. Augusti, Antuerpiae, t.II, p. 739-
767, 1735. p. 754.
62 Sus ita it p ote ea pius Deus Vi gi e e e ile Cla a at ue i ea la issi a
fe i is lu e a a e dit ua et tu Papa eatissi e pate , supe a dela u po e s,
110
após confessar seu amor ao Papa, protetor e governador da Ordem,
confirma que apesar da insuficiência de seu estilo, vai recolher os atos
da vida de santa Clara para compor uma legenda.63 Da mesma forma que
Jacques de Vitry, Celano confia seu relato a testemunhas dignas de fé -
os companheiros de Francisco e do colégio das virgens - pois ele reflete
com amargura sobre os que escreveram as historias dos santos sem tê-
los conhecido ou ouvido aqueles que viram os seus atos64 e, depois de
ter recolhido os testemunhos, se pôs ao trabalho, cheio de temor a Deus
e, omitindo alguns fatos, o fez em estilo simples para que as virgens se
deleitem na leitura dessa maior Virgem65. Finalmente exorta os homens
ao exemplo dos novos discípulos e as mulheres à nova condução de
Clara, vestígio da mãe de Deus. Ao final deixa ao Papa, pai santíssimo, o
cuidado de suprimir ou completar o que quiser.66
A profunda diferença no estilo e intenção do prólogo demonstra
o ímpeto original de Jacques de Vitry como promotor da santidade
feminina laica e o caráter oficial de Thomas de Celano. O resto da vita de
santa Clara permanece no mesmo sentido. Poderíamos discorrer
comparativamente sobre a ausência de citações bíblicas, de digressões
doutrinárias e edificantes, do maravilhoso místico, dos demônios
permanentemente lutando contra a beata, dos mortos no Purgatório
pedindo o doce e eficaz sufrágio de Maria, contar os que foram salvos,
classificar os termos e os sintagmas que emanam da leitura atenta da
mística dos Cânticos e da teologia afetiva cisterciense. Faremos
brevemente algumas anotações. No que concerne à conversão,
normalmente ocorrida na adolescência, uma idade social, quando o

ut lu eat o i us ui i do o su t, i tute pe oage te sig o u , sa to u atalogo


ads ipsisti I ide ,.
63 sa e pla uit Do i atio i est ae, eae pa itati i ju ge e, ut, e e sitis a ti us S.
Cla ae Lege da ejus fo a e . I ide .
64 ... ad so ios eati F a is i at ue ad ipsu ollegiu i gi u Ch isti pe e i,
f e ue te illud o de e ol e s li uisse a ti uitus histo ia te e e, isi iis, ui idisse t,
aut a ide ti us a episse t I ide .
65 Iis, i ua , e itate p ae iae u ti o e Do i i e ple ius i st ue ti us, ali ua
ollige s, et plu a di itte s, pla o st lo t a s u i; ut, uia ag alia Vi gi is, i gi es
lege e dele ta it, udis i tellige tia o i e iat, u i p o e o u a itu te e es at
I ide .
66 Se ua tu e go i i i os Ve i i a ati o os dis pulos. I ite tu fe i ae Cla a ,

Dei at is estigiu , o a apita ea ulie iu I ide , p.


111
jovem deve ser colocado no interior de categorias sociais determinadas,
a idade de 12 anos é considerada como de discrição tanto para o
casamento quanto para a escolha da vida monástica. Se durante a
adolescência a beata enfrenta a obrigatoriedade do casamento, este é o
momento de reação à autoridade paterna e o motivo da crise e da
conversão. Elas enfrentam a fúria dos parentes, que são contrários ao
abandono do mundo. Nesse caso, Maria é continente, pois fora casada
jovem e Clara a virgem esposa de Cristo. Quanto aos outros dons - como
o de lágrimas, o de profecia e a eficácia das orações - eles aparecem
como pequenos milagres reservados às irmãs ou, no caso de sua relação
com Francisco, se ele vai visitá-la ou, no momento de sua morte, quando
seu corpo passa por São Damiano. Celano, apesar de em alguns
momentos utilizar as metáforas do Cântico dos Cânticos, está muito
distante da lírica e do enredo forjado por Jacques de Vitry. Mas, o que
mais distancia os dois modelos de santidade é o fato de que Clara, apesar
de ter o dom da profecia, de assistir à missa e ao cântico dos irmãos de
longe, de ficar em alguns momentos em êxtase com Francisco, de ver o
menino Jesus quando está em oração, segundo o testemunho fiel de
algumas irmãs, ou ainda pelo fato de outras verem o menino Jesus em
seu colo e o Espirito Santo abraçando-a, não é uma mística visionária,
o o Ma ia d Oig ies. N o o he e o seg edo do o aç o dos out os,
não incita à confissão, não conhece os mistérios divinos, não vê
sistematicamente os santos, os mortos, os amigos. É uma vida austera
de obediência, ensino e humildade. Clara realiza os milagres que curam
o corpo, Maria os milagres que salvam a alma.
Podemos refletir provisoriamente sobre um aspecto,
demonstrado na escrita das vitae dessas mulheres: a questão da
santidade no mundo e na clausura, ou seja, o enquadramento das
formas novas de piedade. O discurso hagiográfico, por mais que seja
fundamentado por topoi, pelas autoritates, pelas preocupações
estilísticas, pode efetivamente, como literatura, representar diferenças
profundas na construção e na representação da santidade enunciada.
Retomo aqui, algumas considerações feitas anteriormente sobre o relato
hagiográfico como sendo o meio de santificar e de oficializar um culto.
O relato hagiográfico aparece, segundo Michel Lauwers e Michael
Goodich, como sendo um instrumento de processos inquisitoriais e de
propaganda para a instituição de novos cultos e de novos modelos de
112
santidade, que certamente correspondem às necessidades do laicado,
mas que ao mesmo tempo guiam essas necessidades. Para Goodich, a
transformação do tipo de documentação hagiográfica se dá devido a
mudanças jurídicas e ao controle papal no processo de canonização.
Desde 1181 a canonização e a beatificação estavam reservadas ao Papa,
mas com Inocêncio III vemos o desenvolvimento de uma política
judiciária e inquisitorial, através da organização da investigação da fama
sanctitas, que apela para testemunhas oculares dos fenômenos
maravilhosos.67 Para Inocêncio III "falsitas sub velamine sanctitatis
tolerari non debet." A fama sanctitas começa e a Igreja a consagra ou
não.68 Assim, a primeira função do relato hagiográfico é a de servir como
documento preliminar para o processo ou mesmo como produto do
processo de canonização que, guiado pelos modelos judiciários, melhora
a sua própria legibilidade,69 pois oferece agora evidências vindas das
testemunhas oculares, tais como o confessor, um interesse maior pelo
modo de vida, a conversão, o comportamento do santo. Sabemos que
com Jacques de Vitry, na sua Vita Maria Oignacensis, o beguinismo é
institucionalizado pelos hagiógrafos. Michel Lauwers considera então
que a colocação em latim de feitos e gestos - o relato hagiográfico - é
u a fo a de o t ole: os i ú e os elatos de t a ses e tases ue
aparecem nas vidas (no caso das místicas) visariam à constituição e à
deli itaç o de u do í io eligioso pa a essas ulhe es ,70
constituindo uma série de exempla para a pregação. Lauwers busca
demonstrar uma especificidade da santidade feminina, além de
considerar o discurso hagiográfico como normatizador e instrumento de
controle eclesiástico. Porém, ao compararmos as duas narrativas,
concluímos, através da ideia de que uma experiência de santidade é
vivida e enunciada da forma como foi vivida, que a mudança de geração
e t e Ma ia d Oig ies e Clara de Assis e dos hagiógrafos demonstra a

67 GOODICH, M. Vita pe fe ta: The ideal of sai thood i the thi tee th e tu . Stuttga t:
A to Hie se a , . p. - .
68 A sa tidade ofi ial ep ese ta so e te a o izaç es e t e e so e
p o essos ue fo a a e tos.
69 GOODICH, M. Vita Pe fe ta.... Op.Cit., p. - .
70 LAUWERS, M. Pa oles des Fe es, sai tet f i i e. L Église du XIII e si le fa e au
B gui es. La iti ue histo i ue l p eu e. I : BRAIVE, Gasto et CAUCHIES, Jea -Ma ie
di . . T a au et Re he hes. B u elles: Pu li atio s des Fa ult s u i e sitai es Sai t-
Louis, , p. .
113
força do enquadramento e o recrudescimento da ordem eclesial, não há
mais espaço para a vita vere apostolica mística e nem para a sua
narrativa.

114
OS ATRIBUTOS CONFERIDOS À SANTIDADE FEMININA EM DOIS
PROCESSOS PRODUZIDOS NA PENÍNSULA ITÁLICA NO SÉCULO XIII – UMA
COMPARAÇÃO ENTRE CLARA DE ASSIS E GUGLIELMA DE MILÃO

Andréa Reis Ferreira Torres1

A política papal ao longo do século XIII pode ser caracterizada por


uma tendência à ampliação da abrangência de seu poder que se fez
notar em diversos instrumentos jurídicos surgidos no período, como, no
caso de nossa pesquisa, os processos de canonização e inquisição. Neste
período, então, o papado consolidou as bases para um projeto de
reforma – marcado pela mentalidade e pelas formas de organização
políticas da sociedade feudal –, segundo o qual o poder reivindicado pelo
pontífice possuía um caráter universal e fundamentado na hierarquia
eclesiástica. Esse projeto de alargamento da atuação papal teve
consequências diretas no controle do reconhecimento da santidade, no
combate às crenças e práticas heréticas e na aceitação de determinadas
formas de vida religiosa.
Por permear essas diversas instâncias, acreditamos que a
santidade constitui um fenômeno central para a análise das relações de
poder envolvidas nessa conjuntura. Sendo assim, nesse trabalho nos
propomos um estudo comparado acerca da santidade no final da Idade
Média Central, por meio dos registros de dois processos produzidos na
Península Itálica no século XIII, o Processo de Canonização de Santa Clara
de Assis e o Processo Inquisitorial Contra os Devotos e as Devotas de
Santa Guglielma.
Nosso principal objetivo será analisar os atributos de santidade
conferidos, pelos depoentes, às santas de sua devoção nos dois
processos. Pretendemos com isso identificar pontos de convergência e
divergência entre as características que tornavam uma pessoa venerável

1 Mest e pelo P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia Co pa ada do I stituto de


Hist ia da U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o. O p ese te te to pa te da
disse taç o defe dida pa a o te ç o do título de est e. Cf. TORRES, A. R. F. G e o e
Sa tidade fe i i a os p o essos de a o izaç o e i uisiç o da Pe sula It li a o
s ulo XIII – U estudo o pa ado dos asos de Cla a de Assis e Gugliel a de Mil o.
. f Disse taç o Mest ado e Hist ia Co pa ada – I stituto de Hist ia,
U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o, Rio de Ja ei o, .
115
em dois âmbitos distintos, a saber, em uma comunidade religiosa
feminina, reunida em torno de Clara de Assis, e em um grupo mais
heterogêneo de devotos, como aquele em torno da devoção a
Guglielma.
No que se refere ao aporte teórico da pesquisa, o uso da categoria
gênero2 em nossa análise tem por principal objetivo permitir a
compreensão acerca de como as diretrizes de gênero interferem na
construção dos ideais de santidade e como esta construção se relaciona
com as instituições ligadas ao papado, na Península Itálica do século XIII.
Além disso, nos interessa perceber quais são as formas pelas quais os
processos interrogatórios constroem discursos genderizados sobre as
figuras femininas que receberam diferentes tipos de culto.

Clara de Assis e Guglielma de Milão


Clara de Assis viveu de 1194 a 1253 na cidade de Assis e foi a fundadora
do ramo feminino da ordem dos franciscanos. Pertencia a uma família da
baixa nobreza, sendo seu pai um cavaleiro, mas rompeu seus laços familiares
aos 18 anos, fugindo de casa para se juntar a Francisco de Assis e seus frades
menores. Foi inicialmente para o mosteiro beneditino de São Paulo das
Abadessas, mas desenvolveu sua vida religiosa no Mosteiro de São Damião.
Os relatos a respeito de sua vida a caracterizam como alguém que buscou
sempre o ideal da vida evangélica, propondo uma forma de vida para o grupo
de religiosas que se formou ao seu redor. Foi justamente nesse ponto, na sua
busca por implementar os ideais franciscanos para a religiosidade feminina,
que se constituiu o maior interesse sobre sua figura, pela peculiaridade
apresentada pela situação de uma mulher ter conseguido implantar uma
forma de vida tida como original em um momento em que o papado apenas
permitia a entrada para a vida religiosa sob uma das ordens já aprovadas.3

2 Segui os a ui as efle es te i as dese ol idas e SCOTT, J. G e o: u a atego ia


útil pa a os estudos hist i os? Edu aç o e Realidade. Po to Aleg e, . , . , p. - ,
jul./dez. , e e FLAX, Ja e. P s- ode is o e elaç es de g e o a teo ia
fe i ista. I : HOLLANDA, H. B. O g. . Mode is o e Políti a. Rio de Ja ei o: Ro o, .
p. - .
3 As informações introdutórias aqui apresentadas aqui sobre Clara foram consultadas na

obra PEDROSO, José Carlos. Fontes Clarianas. 4ª ed. Piracicaba: Centro Franciscano de
Espiritualidade, 2004. p. 13-18.
116
Segundo a maior parte dos historiadores consultados, no que
concerne às origens de Guglielma, ela teria nascido por volta de 1240,
na Boêmia e se mudado para Milão no ano de 1260.4 Nesta cidade, se
estabeleceu em uma propriedade nos arredores da abadia de Chiaravalle
e começou a conquistar fama de santidade ainda em vida, reunindo um
grupo bastante heterogêneo de seguidores, dentre eles irmãs humiliate,
monges e leigos conversos da abadia cisterciense. Após sua morte em
1281, o grupo de devotos, a exceção dos monges, acabou sendo
perseguido por heresia, tendo por principal alegação para isso a sua
crença de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo.
Em primeiro lugar, se faz necessário algum esclarecimento sobre
a forma e o conteúdo dos processos, uma vez que cada um tem um
propósito muito diferente do outro e, apesar disto, buscamos em cada
um o mesmo objeto, a santidade feminina.
Nosso trabalho parte de uma grande discrepância entre as duas
fontes. Não há dúvida de que Guglielma recebeu culto e era identificada
po seus de otos o o u a pessoa de ida oa e de o po ta e to
ho esto e ue [...] ha ia ealizado algu s ilag es .5 Contudo, nos
registros do processo sobre ela, será necessário um exame mais
minucioso para identificar os atributos de santidade que seus devotos
deixam entrever em algumas de suas respostas aos inquisidores, uma
vez que o foco das perguntas não estava neste assunto. O interesse dos
inquisidores se concentra naqueles elementos de crenças e práticas que
não deixariam dúvidas quanto à acusação por heresia, que alguns dos
devotos acabam, no decorrer do processo, por confessar.
Nossa pesquisa busca estudar as significações dentro dos
discursos.6 Mesmo que um discurso se torne hegemônico dentro de uma

4 A origem boêmia de Guglielma a faria filha do rei Otakar I e, logo, irmã de santa Inês de
Praga. Essa ascendência, no entanto, é tema de controvérsias entre os historiadores,
sobretudo pelo fato de não existirem documentos diretos que a comprovem
(BENEDETTI, Marina. Io non sono Dio. Guglielma di Milano e i Figli dello Spirito Santo.
Milano: Edizione Biblioteca franciscana,1998. p. 21-29, 141-145, 151s).
5 Depoi e to de Bo adeo Ca e ta o, de agosto de . Cf. BENEDETTI, Ma i a Ed. .
Mila o . I p o essi i uisito ial o t ole de ote e i de otidi sa ta Gugliel a. Mila o:
Li iS hei ille , . p. .
6 Utiliza os o te o dis u so a ui, segu do A d ia F az o, o o o st uç es hu a as
oe e tes, oleti as, di i as, e o ga izadas so e u a dete i ada te ti a [...]
o p ee s es p oduzidas pelas so iedades so e os dife e tes aspe tos de sua
117
sociedade e se materialize em instituições e seus instrumentos, tal como
os processos aqui estudados, outros discursos se fazem presentes,
mesmo quando ignorados ou inferiorizados. Isso permite ver a santidade
de Guglielma para além do discurso hegemônico da heresia. Podemos
observar que os atributos de santidade conferidos pelos devotos a
Guglielma não surgem como respostas diretas às perguntas dos
inquisidores. Isso aponta para uma relação de forças entre estes dois
sujeitos, devoto e inquisidor.
Assim, sempre que uma virtude sua ou um milagre seu é citado
por um dos depoentes, não há o menor indício de que os inquisidores
estariam interessados em registrar explicações mais pormenorizadas de
tais informações, nem mesmo para contrapor àquelas que apontavam
no sentido da heresia. Ou seja, uma maior explicação a respeito das
virtudes e dos milagres de Guglielma poderia ter tirado o foco de sua
imagem como heresiarca, mas este não parece ter sido um dos objetivos
dos inquisidores.
No caso de Clara, ao contrário, nosso objeto aparece de maneira
tão evidente, que pode ser totalmente identificado em uma única
passagem, no testemunho de sua irmã espiritual e carnal, Beatriz, onde
lemos:
Quando se perguntou em que consistia a santidade de dona
Clara, respondeu que era na virgindade, na humildade, na
paciência e benignidade, na oportuna correção, nas suaves
admoestações às Irmãs, na assiduidade da oração e
contemplação, na abstinência e jejuns, na aspereza da cama e
das roupas, no desprezo de si mesma, no fervor do amor de
Deus, no desejo do martírio. E máxime no amor pelo Privilégio da
Pobreza.7

o ga izaç o so ial e ue o a a te ede . SILVA, A d ia C. L. F az o da. A o st uç o


ge de ifi ada da sa tidade a hagiog afia edite i a do s ulo XIII. I : SEMANA DE
INTEGRAÇÃO ACADÊMICA DO CFCH – UFRJ: DESAFIOS ÀS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS,
., , Rio de Ja ei o. Atas... Rio de Ja ei o: CFCH-UFRJ, . p. .
7 Ado a data i ue e a la sa tit de epsa ado a Chia a, espuse, he e a ella
i gi it , ella hu ilit , ella patie tia et e ig it , ella o e tio e e essa ia, elle
dol e ad o itio e alle So e, ella assiduit della o atio e et o te platio e, ella
a sti e tia et degiu i, ella aspe it del le to et del esti e, el desp eçço de se
edesi a, el fe o e de lo a o e de Dio, el deside io del a ti io, et a i a e te
ello a o e del P i ilegio della po e t . T aduç o do auto . Depoi e to da d i a
segu da teste u ha, I Beat iz de Messe Fa a o e de Assis. PEDROSO, Jos Ca los.
Fo tes Cla ia as. ª ed. Pi a i a a: Ce t o F a is a o de Espi itualidade, . p. .
118
A forma dos dois processos se assemelha na questão da
construção do inquérito, no entanto, diverge bastante no conteúdo.
Uma vez que o processo sobre Clara tem a função primeira de comprovar
sua santidade, todas as suas virtudes são comentadas e explicadas
detalhadamente. Uma vez que o questionário iniciador deste inquérito
não sobreviveu, não podemos afirmar se tais informações eram
solicitadas das Irmãs ou se eram ditas de maneira livre. No entanto, o
espaço que ocupam nos registros demonstra que eram informações do
máximo interesse daqueles que o desenvolviam.
Além disso, podemos aqui pensar na questão da construção da
memória da santa. Mesmo entendendo a diferença existente entre um
texto hagiográfico narrativo e um processo de canonização, sobretudo
no que se refere à transmissão a um determinado público, o processo
também tem por intenção a construção de memória que, em última
instância, é o que confere o caráter edificante do texto hagiográfico.
Assim, podemos analisar os registros acerca dos atributos de santidade
à luz do que seria mais apropriadamente edificante para os fiéis naquela
sociedade.
Outra comparação que envolve a forma dos processos diz respeito
à exímia dos registros. No processo sobre Clara, inúmeras vezes o notário
se resume a usar a fo a so e isso afi ou o es o ue a I a tal .
No caso do processo sobre Guglielma, esta forma nunca aparece, por
mais que os depoentes se repitam em suas respostas sobre assuntos
correlatos, como crença em que Guglielma era o Espírito Santo, ou em
que esta deveria ressurgir antes juízo final, ou em que salvaria judeus,
sarracenos e pagãos. Todos os depoentes são questionados sobre estes
temas com perguntas demasiado similares e é registrada uma resposta
para cada uma das perguntas, geralmente sim ou não, sem maiores
explicações. De alguma forma, é como se o que está sendo perguntado,
ou melhor, a acusação, fosse mais importante que aquilo que os
depoentes têm a dizer. E isto tem relação com o que dizíamos acima
sobre a minúcia das explicações dadas pelas Irmãs de Clara.
Uma vez que pretendemos utilizar o gênero como categoria de
análise em nossa pesquisa, temos, em primeiro lugar, nossa atenção
voltada para um dos temas mais recorrentes na historiografia sobre
santidade feminina, as comparações feitas com a figura de Maria. E já
aqui encontramos um ponto de divergência radical.
119
No processo de Clara vemos uma inflamada, no entanto
o t olada o pa aç o. Segu do u a das I s, Cla a ti ha sido heia
de graças e de virtudes e de santas obras, e achava que tudo que de
santidade pode ser dito de alguma santa mulher depois da Virgem Maria,
e e dade pode ia se dito dela .8 Outra testemunha reitera o relato,
fala do so e sua hu ildade, a e ig idade, a pa i ia e as out as
virtudes que ela possuía em abundância, tanto que cria firmemente que,
da Virgem Maria para cá, nenhuma mulher tinha maior mérito que a
se ho a .9 Aqui, fica claro que existe algo de marcadamente feminino da
identificação de Clara como santa. Por que a comparação com Maria?
Por que não com Cristo ou com outro santo ou santa?
Em Guglielma vemos também a comparação, apresentada por
Andrea Saramita já em um momento adiantado do inquérito, em que
este afi a a edita ue Gugliel a fosse aio a gl ia di i a ue
qualquer outro santo, mesmo que a beata Maria, e que teria dito isso
aso o te esse a eaç o assustada das pessoas .10
As duas atitudes em relação à comparação com a virgem Maria
divergem em absoluto, sobretudo no que diz respeito às possibilidades
de aceitação pela Igreja. É possível, no entanto, aproximar os dois relatos
de maneira quase paralela, uma vez que ambos afirmam que Maria foi a
mulher de maior santidade na história do cristianismo. No entanto, a
afirmação de Andrea sobre a superioridade de Guglielma excede o
discurso da perfeição mariana.

8 [...] lei fusse stata pie a de g atie et de i tude et de sa te ope atio e. Et ede a he
tu to uello de sa tit he se p di e de al u a sa ta do a depo la Ve gi e Ma ia, i
e it se possa di e de lei . T aduç o do auto . Depoi e to da ui ta teste u ha, I
C istia a de Messe C istia o de Pa isse. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit.,
p. .
9 [...] la sua hu ilit , la e ig it , i ta to he lei ede a fe a e te he da la Ve gi e
Ma ia i ua, iu a do a fusse de agiu e e ito he epsa ado a . T aduç o do
auto . Depoi e to da s ti a teste u ha, I Bal i a de Messe Ma ti ho de
Co o a o. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
10 [...] edidit uod di ta Guillel a esset aio i glo ia di i a ua sa ta Ma ia ate

Ch ist el ua ali uis alius sa tus, espo dit et di it uod ipse u ua ali ui pe so e
ho di it, [...] et ho di isset isi ti uisset o o e pe so a u / [...] dis e de a la
ede za he Gugliel a fosse aggio e ella glo ia di i a di ualsiasi alt o sa to, a he
della eata Ma ia, e a e e detto i se o a esse te uto la eazio e spa e ta delle
pe so e . T aduç o ossa. Depoi e to de A d ea Sa a ita, de agosto de . Cf.
BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
120
Como podemos observar, o registro no processo de Clara tem
sempre a preocupação em apontar quais atributos Clara possuía para
que fosse identificada com a perfeição da santidade feminina. No caso
de Guglielma, tais atributos nem sempre aparecem de maneira tão
evidente. Em vista disso, partiremos agora para a apresentação das
virtudes das duas santas, de maneira comparada, com o intuito de
melhor compreender cada caso.

A construção da santidade
Uma das atitudes mais recorrentes relatadas como sinal de
santidade pode ser encontrada no tema das vestimentas. Tal tema se
associa a uma discussão maior, relacionada à moda na história que,
segundo Diane Huges, tem por volta do século XIII um incremento na
moda e nos artigos de luxo. Neste período, a questão das vestimentas
passa a ser levada em consideração de forma mais enfática nos textos
eclesiásticos, mostrando mulheres que abdicavam de roupas de
qualidade e beleza para adotar um hábito simples ao se retirarem em
conventos.11
Para Clara, que era de família nobre, a renúncia ao luxo e ao
conforto das vestimentas de seu meio social pode ser um exemplo bem
marcante:
[...] era de tanta aspereza no seu corpo que se contentava com
uma só túnica de pano rude e um manto [...] mandou fazer uma
certa veste de couro de porco e a usava com os pelos e pelugens
cortadas junto da carne; e a levava escondida embaixo da túnica
de pano rude [...] e mandou fazer mais uma roupa de pelos de
cauda de cavalo e, fazendo com elas umas cordinhas, apertava-
as junto ao seu corpo. Afligia desse modo a sua carne virginal com
esses ilí ios ; e a uito ise i o diosa o as I s ue o
podiam suportar tal aspereza e de boa vontade lhes dava
consolação.12

11 HUGES, Dia e. O. Las odas fe i i as su o t ol. I : DUBY, G.; PERROT, M.; Di . .


Histo ia de las Muje es. Tau us: Mad id, . V. . p. - , p. .
12 [...] e a de ta ta aspe it el o po suo, he e a o te ta de u a sola to i ha de laçço
et de u o a tello [...] se fe e fa e u a e ta este de oio de po ho, et po ta a li peli et
le setole to dite e so la a e; et uesta po ta a as osta e te so to la to i ha de laçço
[...] se fe e fa e u alt a esta de peli de oda de a allo, et fa to e poi e te o delle, o
esse lo se st e ge a al suo o po; et us o li de ti ilitii afflige a le sua i gi ea a e
[...] e a pe olto ise i o diosa alle So e he o pote a o pate e uelle aspe itade,
121
Esse último trecho pode significar que as suas Irmãs eram
obrigadas a fazer o mesmo, mas recebiam consolo por sofrerem com
isso, ou que não eram obrigadas, uma vez que Clara era em santidade
tão superior a todas que podia suportar o que as outras não podiam. De
qualquer forma, Clara dava outro significado ao uso de suas vestimentas,
ultrapassando a ênfase na entrega à pobreza, para acrescentar um
elemento de mortificação que relaciona santidade e gênero ao ser visto
pela historiografia como uma forma pela qual mulheres consideradas
santas se afastavam de sua sexualidade para se aproximar do divino.13
A questão da austeridade nas vestes aparece também nos
relatos sobre Guglielma, onde se diz que esta usava apenas uma roupa
simples de cor moreto, ou seja, marrom acinzentado e seus devotos
fizeram disto uma forma de identificação do grupo.
[...] interrogado pelo inquisidor sobre por que ele ou os outros
que eram da congregação, conventículo e devoção de domina
Guglielma, se vestiam de moreto, responde que todos eles se
vestiam comumente de moreto em conformidade com as vestes
de Guglielma que portava roupas de moreto escuro, a fim de que
todos parecessem da mesma congregação e devoção.14

Seus devotos, mesmo depois de sua morte, vestiam-se da mesma


forma, sobretudo na comemoração de suas festas. Isso indica que há

et olu tie i lo da a o solatio e . T aduç o do auto . Depoi e to da segu da


teste u ha, i Be i da de Pe usia. Cf. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op.
Cit., p. .
13 SILVA, A d ia C. L. F az o da. Moda, sa tidade e g e o a o a hagiog fi a de To s
de Cela o. I : COSTA, S.; SILVA, A. C. L. F.; SILVA, L. R. A t adiç o o sti a e o
f a is a is o. Rio de Ja ei o: P og a a de Estudos Medie ais – I stituto Teol gi o
F a is a o, , p. - . p. .
14 [...] et i te ogatus [...] ua e ipse A d eas et alii, ui e a t de o g egatio e,

o e ti ulo et de otio e do i e Guilliel e, i due a tu de o eto, espo dit uia


p edi ta do i a Guillel e po ta at estes de u a o eta et ideo, p opte
o fo itate ad estes eius, i due a tu de o eto o u ite o es, ut ide e tu
o es de aede o g egatio e et de otio e. / [...] i te ogato dall i uisito e pe h
egli e gli alt i Che e a o della o g egazio e, o e ti ola e de ozio e di do i a
Gugliel a, si estisse o di o eto , ispo de he tutti lo o si esti a o o u e e te di
o eto pe o fo it alle esti di Gugliel a he po ta a esti di o eto su o, affi h
tutti appa isse o della stessa o g egazio e e de ozio e . T aduç o ossa. Depoi e to de
A d ea Sa a ita, de agosto de . BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit.,
p. - .
122
uma identificação entre devotos e santa, mesmo a partir de algo tão
material quanto a vestimenta. Apesar da construção da ideia de que
Gugliel a se ia a e a aç o de Espí ito Sa to, e dadei o Deus e
ve dadei o ho e e se o fe i i o ,15 os traços mais materiais de sua
santidade eram hábitos simples que ela transmitiu a seus devotos. Este
poderia ser um aspecto interessante da construção de um culto de
caráter laico, uma proximidade mais imediata entre santo e devoto.
A austeridade dos hábitos aparece também relacionada à
alimentação das duas santas, mas aí com uma pequena divergência.
So e Cla a, u a das I s diz ue ela e a t o est ita a so iedade dos
alimentos que parecia alimentada pelos anjos. Castigava tanto seu corpo
que, em três dias da semana, segunda, quarta e sexta, não comia coisa
algu a .16 A ideia de astiga o o po o a es assez de ali e to, o
entanto, não é explorada nos relatos sobre Guglielma. Ela era apenas
simples na alimentação, le a a u a ida o u o elaç o o ida
e e ida .17 Esse é mais um ponto em que vemos uma proximidade
entre a santa e os devotos. Guglielma, aparentemente, não era adepta
do jejum como forma de contemplação. Seus devotos, mais ainda, se
reuniam em refeições comunais que faziam parte do culto à sua santa.
Contudo, o jejum está relacionado à questão da identificação de
mulheres com Cristo, tema que interessa à nossa pesquisa, tanto no caso
de Guglielma, quanto no de Clara. A associação entre o sofrimento de
Cristo, visto como analogicamente feminino, já que corporal, acaba por
conferir às mulheres uma autoridade e lugar de fala que era geralmente
ocupado apenas por homens.18

15 [...] e us Deus et e us ho o i se u fe i i o [...] / [...] e o Dio e e o uo o i


sesso fe i ile [...] . T aduç o ossa. Depoi e to de Maif eda da Pi o a o, de
agosto de . BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
16 Nella pa it delli i i e a ta to st e ta, he pa e a fusse ut ita da li A geli. Epsa

e ta e te afflige a el o po suo, i ta to he t e d de la septi a a, io , el lu ed , el


e o d el e a d, o a gia a esu a osa [...] . T aduç o do auto . Depoi e to da
ua ta teste u ha, i A ata de Messe Ma ti ho de Co o a o. PEDROSO, Jos
Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
17 [...] ipsa du e at ita o u e i i o et potu et esti us. / [...] ella o du e a
u a ita o u e i ife i e to al i o e al e e e alle esti . T aduç o ossa. Depoi e to
de A d ea Sa a ita, de julho de . BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op.
Cit., p. .
18 BYNUM, Ca oli e W. Wo e M sti s a d Eu ha isti De otio i the Thi tee th

Ce tu . I : ______. F ag e tatio a d Rede ptio : Essa s o Ge de a d the Hu a


123
No caso de Guglielma, não podemos perceber, como acontecia
com outras santas do período, como Clara de Assis, uma tendência à vida
ascética. No entanto, acreditamos ser possível aproximar as
argumentações de Bynum a respeito do caráter feminino da experiência
humana de Cristo com a questão da consubstanciação presente desde
os primeiros trabalhos a respeito de Guglielma. 19
Além disso, Bynum argumenta que o jejum e sofrimento se
tornam uma forma de alcançar a divindade e que o sofrimento aqui deixa
de ser visto como uma forma de misoginia internalizada, que previa a
punição do corpo luxurioso, e passa a ser vista em termos de uma relação
com a experiência humana de Cristo, esta vista como metaforicamente
feminina.20
Voltando à questão do relacionamento com os fiéis faz-se
necessário tratar da questão dos ensinamentos passados a estes pelas
duas mulheres. Uma das Irmãs de Clara relata que
a primeira coisa que a senhora lhe ensinou foi a amar a Deus
sobre todas as coisas; a segunda, que devia confessar
integralmente e com frequência os seus pecados; e terceira, que
devia recordar sempre a paixão do Senhor.21

Os ensinamentos de Clara são, assim, ensinamentos da Igreja,


especialmente a exortação à confissão frequente demonstra isso.
No processo inquisitorial, somente em duas passagens são
relatados ensinamentos que Guglielma teria passado a seus devotos. Em
u a delas, ela diz Gua da-te dos pe ju os e dos e ga os e da usu a 22

Bod i Medie al Religio . Ne Yo k: Zo e Books, . p. .


19 Este te a se t a alhado e out a opo tu idade, ua do fo a e os a uest o
e t al da he esia, ou seja, a assi ilaç o e t e Gugliel a e o Espí ito Sa to, e o o a
as ese de Cla a ela io ada p ti a da I itatio Ch isti.
20 BYNUM, Ca oli e W. Hol Feast a d Hol Fast: the eligious sig ifi a e of food to

edie al o e . Be kel : U i e sit of Ca oli a P ess, . p. .


21 [...] epsa ado a li i seg de a a e Dio sop a o e alt a osa; se o do, li i seg
he i teg a e te et spesso o fessasse li suoi pe ati; te tio, la a aest he se p e
ella e o ia sua ha esse la passio e del Sig o e . T aduç o do auto . Depoi e to da
d i a p i ei a teste u ha, i Be i da de Do a Dia a de Assis. PEDROSO, Jos
Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
22 Ca eatis o is a pe iu iis et de eptio i us et usu is / Gua date i dagli spe giu i e

dagli i ga i e dalle usu e . T aduç o ossa. Depoi e to de Bo adeo Ca e ta o, de


agosto de . BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
124
e e out o ela os e si a ue de e esta ju tos, a a e honrar uns
aos out os . Segundo esses registros, para seus devotos, se não para
23

ela mesma, o mais importante era a união do grupo e a formação de uma


família espiritual. Por mais que tenhamos em conta que se tratava de um
grupo heterogêneo, com homens e mulheres de diferentes vinculações
religiosas, podemos observar que eles mesmos se viam como um grupo
coeso, ao menos no que dizia respeito ao culto das virtudes de
Guglielma. Tal coesão não iria se repetir quando o tema fosse as
questões identificadas como passíveis da acusação de heresia.
A formação dos dois grupos de devotos chama atenção para
mais um elemento sobre o qual a categoria gênero permite analisar.
Enquanto Clara formou ao redor de si uma comunidade composta de
mulheres religiosas em vida conventual, Guglielma possuía devotos de
diferentes vinculações religiosas e diferentes estilos de vida. Desde irmãs
Humiliatas, passando por leigos conversos que viviam com suas famílias
até os monges de Chiaravalle.24 Essas diferentes formas de vida têm a
ver com o reconhecimento do grupo de devotos como comunidade
religiosa e, logo, com a construção da santidade em vida das duas
mulheres. Um dos temas que surge aqui é o da sexualidade.
Ve os o p o esso so e Cla a ue foi t o g a de a sa tidade
de vida e honestidade dos costumes da bem-aventurada madre [e que]
foi virgem desde a infância, [e] assim virgem permaneceu escolhida pelo
Se ho ,25 ou seja, um dos pontos da identificação de sua santidade está
no fato de a religiosa ter se mantido virgem por toda a vida. Da mesma
forma, era parte central da forma de vida das religiosas em torno de
Clara a abstinência sexual.

23 [...] se te e e, a a e et ho o a e ad i i e / [...] sta e i sie e, a a si e o o a si


gli u i o gli alt i . T aduç o ossa. Depoi e to de Da isio Cotta, de sete o de
. BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
24 Opta os po o ap ofu da a dis uss o a e a dos o ges, u a ez ue eles
e ede osso o jeti o a ui ue a alisa os e u iados egist ados a pa ti do
teste u ho dos de otos. Os o ges da a adia iste ie se o fo a ha ados ao
i u ito, logo, as i fo aç es ue te os deles s o ais ta ge iais.
25 [...] ta ta fu la sa tit de la ita et la ho est delli ostu i de epsa eata Mat e [...]

fu e gi e della i fa tia sua, us e gi e dal Sig o e ele ta pe ase . T aduç o do auto .


Depoi e to da te ei a teste u ha, I Filipa, filha do fale ido Messe Leo a do de
Gisl io. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
125
Guglielma, por outro lado, usa o fato de não ser virgem, de ter
tido um filho, como justificativa para negar a divinização que alguns
devotos fazia dela. Segu do u deles, e esposta a isso, [...]
Guglielma parecia muito irritada e respondeu que ela era de carne e
osso, e que também havia levado um filho à cidade de Milão, e que não
e a isso ue a edita a ue ela fosse [...] ,26 ou seja, para ela, a
maternidade era prova de que era apenas uma mulher comum.
Dedicar-se a dar à luz e cuidar dos filhos era tarefa que competia
exclusivamente à mulher e isso marca uma das questões que constroem
as diferenças entre os sexos. Uma vez que era papel da mulher gerar e
criar filhos, deixar de fazê-lo foi visto de diferentes formas pelos autores
medievais. Desde a inferiorização de mulheres estéreis,27 passando pela
consagração das virgens, até a santificação de mulheres que deixaram
seus filhos, como um sacrifício, para servir a Deus.28
O caráter mundano que Guglielma concedia à maternidade é
também observado em outro depoimento no qual um devoto diz tê-la
ou ido dize ue e a u a ulhe il e u il e e e esposta
afirmativa deste mesmo devoto de que ela era o Espírito Santo.29 A
pouca estima à sua própria pessoa é aqui um ponto de convergência
entre os relatos sobre as duas santas. Uma das devotas de Clara afirma

26 [...] et ipsa Guillel a ultu i ata, ut ide atu , espo dit eis uod ipsa e at de a e
et ossi us et etia du it filiu i i itate Mediola i, et uod ipsa o e at uod ipsi
ede a t [...] / [...] apa i a olto adi ata e a e a isposto lo o he ella e a di a e e
ossa, e a he a e a po tato il figlio ella itt di Mila o, e he o e a i he essi
ede a o [...] . T aduç o ossa. Depoi e to de Ma hisio Se o, de fe e ei o de
. BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
27 No p p io p o esso de a o izaç o de Cla a e os u a efe ia a essa
i fe io izaç o. U dos seus ilag es foi ealizado so e u a alei o de Assis, ue ha ia
a a do ado sua esposa, e ia do-a de olta asa dos pais, pois o podia o e e .
Ap s a os sepa ados, o a ido ou e de Cla a ue esta te e u a is o, de ue sua ulhe
lhe da ia u filho. Eles olta a a se u i e de a o ige a u e i o. Cf. Depoi e to
da d i a se ta teste u ha, Messe Hugoli o Ped o Gi a do e. PEDROSO, Jos Ca los.
Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
28 OPTZ, Claudia. Vida otidia a de l s uje es e la Baja Edad Media - .I :
DUBY, G.; PERROT, M.; Di . . Histo ia de las Muje es. Tau us: Mad id, . V. . p. -
, p. - .
29 [...] ipsa e at ilis fe i a et ilis e is / [...] u a ile fe i a e u ile e e .
T aduç o ossa. Depoi e to de Alleg a za dei Pe usi, de sete o de .
BENEDETTI, Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit., p. .
126
ue foi ta ta a hu ildade da e -aventurada madre que desprezava
completamente a si mesma ,30 e outra ainda acrescenta que ela, por sua
ta a ha hu ildade, la a a o as suas os as adei as sa it ias das
I s doe tes, as uais algu as ezes ha ia e es .31
A questão da humildade se relaciona, por sua vez, a mais um
ponto de convergência entre os atributos de santidade das duas
mulheres: a questão da ascendência nobre e abandono da riqueza. Uma
teste u ha do p o esso so e Cla a diz ue ela e a o e po ge aç o
e parentela, e rica nas coisas do mundo, a qual amou tanto a pobreza
que vendeu toda a sua he a ça e a dist i uiu aos po es .32
A ascendência nobre aparece como topos hagiográfico em
diversos textos medievais, no entanto, o caso de Guglielma possui um
destaque interessante. Ela era, para seus devotos, filha do rei da Boemia
e, logo, uma princesa, como vemos, logo no início do inquérito, nas
palavras de Andrea Saramita, um dos principais membros do grupo de
devotos e, ao lado de Maifreda da Pirovano, aquele sobre quem mais
incidiam as acusações de heresia:
Interrogado se sabia ou se ouvira de onde era Guglielma,
respondeu que sim, que era filha do rei da Boêmia morto, como
se dizia. Interrogado se havia procurado a verdade sobre isso,
respondeu que sim, ou seja, que o mesmo, Andrea, havia ido até
o rei da Boêmia e havia encontrado-o morto, e havia confirmado
que assim era. Interrogado por que razão foi indagar sobre isso,
respondeu que foi para informar sobre a morte de Guglielma e
para ver se ele poderia obter do rei alguma coisa pela honra
dispensada a Guglielma pelo próprio Andrea. Interrogado se
Andrea havia ido até o dito rei com a intenção de agir junto a ele
a fim de que Guglielma fosse canonizada pela Igreja, respondeu
que não [...].33

30 [...] ta ta fu la hu ilit de epsa eata Mad e, he desp eçça a al tutto se edesi a


[...] . T aduç o do auto . Depoi e to da te ei a teste u ha, I Filipa, filha do fale ido
Messe Leo a do de Gisl io. Cf. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
31 [...] o le a e suoi la a a le sedie de le So e i fe e, elle uali al u a olta e a o
li e i i . T aduç o do auto . Depoi e to da se ta teste u ha, I Ce ília de Messe
Gualtie i Ca iague a de Spello. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
32 No ile de ge e atio e et pa e tado, et i ha elle ose del o do; la uale ta to
a la po e t , he tu ta la sua e edit e de te et dist i u alli po e i . T aduç o do
auto . Depoi e to da te ei a teste u ha, I Filipa, filha do fale ido Messe Leo a do
de Gisl io. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes Cla ia as. Op. Cit., p. .
33 I te ogatus si s it el audi it u de fue it illa Guillel a, espo dit uod si , ideli et

127
Como podemos observar, a questão da santidade relacionada à
nobreza é tão marcada no processo sobre Guglielma,34 que um
inquisidor chega a questionar se o fato de Andrea ter ido à Boêmia
pesquisar sua ascendência nobre tinha por fim a petição de um processo
de canonização em nome dela.
Repetem-se os exemplos de nobres que fugiram da possibilidade
de grandes e ricos casamentos para se dedicarem à vida religiosa como
no caso de Clara, que, segundo uma das Irmãs de São Damião, que era
também sua irmã carnal,
[...] a virgem Clara concordou com o que ele [Francisco] dizia,
renunciou ao mundo e a todas as coisas terrenas e foi servir a
Deus o mais depressa que pôde. Pois vendeu toda a sua herança
e parte da herança da testemunha e deu-a aos pobres. E depois
São Francisco cortou seu cabelo diante do altar, na igreja da
Virgem Maria, chamada Porciúncula, e a levou para a Igreja de
São Paulo das Abadessas. Seus parentes quiseram levá-la
embora, mas dona Clara agarrou as toalhas do altar e descobriu
a cabeça, mostrando que a tinha raspado, e não consentiu de
modo algum, nem se deixou arrancar dali, nem levar de volta
com eles.35

uod fuit filia uo da Regis Boe ie, ut di e atu . I te ogatus si ipse i uisi it
e itate de ho , espo dit si , ideli et uod ipse A d eas i it us ue ad ege Boe ie
et i e it ege o tuu et i e it uod ita e at. I te ogatus ua de ausa ad
i ui e du ho , espo dit uod i it ad sig ifi a du egi uod illa Guillel a e at
o tua et si ipse A d eas ali uid posset o ti e e a ege p opte ho o e i pe su di te
Guillel e pe ipsu A d ea . I te ogatus ipse A d eas si i it ad di tu ege
o a io e p o u a di u eo ege ut illa Guillel a a o iça etu pe e lesia , espo dit
uod o ut tu , sed alias e e di it, sed o p o u a do. / I te ogato se a ia
saputo o udito do de e a uella Gugliel a, ispo de di s , ossia he e a figlia del e di
Boe ia defu to, o e si di e a. I te ogato se a ia e ato la e it su i , ispo de di
s , ossia he lo stesso A d ea e a a dato si dal e di Boe ia e a e a t o ato il e o to,
e a e a a e tato he os e a. I te ogato pe uale agio e sia a dato ad i daga e su
i , ispo de he e a a dato a fa sape e al e he Gugliel a e a o ta e [pe ede e] si
egli a esse potuto otte e e dal e ual osa i dipe de za dall o o e i e sato su
Gugiel a dallo stesso A d ea. I te ogato se A d ea sia a dato da detto e o l i te to
di agi e p esso di lui affi h Gugliel a e isse a o izzata dalla hiesa, ispo di di o i
ife i e to ad allo a, as alt e olte lo a e a detto, a o pe agi e a uel fi e .
T aduç o ossa. Depoi e to de A d ea Sa a ita, de julho de . BENEDETTI,
Ma i a Ed. . Mila o ... Op. Cit. ,p. .
34 KLANICZAY, G o . Hol Rule s a d Blessed P i esses: d asti ults i edie al e t al
Eu ope. Ca idge: U i e sit P ess, . p. - .
35 [...] epsa i gi e Chia a a o se t alla sua p edi atio e, et e u ti al o do et ad
128
Aparecem ainda, exemplos de mulheres que, mesmo casadas,
tiveram uma vida santa, casta e de boas obras de caridade, como
Elizabeth da Hungria. Contudo, Guglielma mostra um exemplo diferente,
talvez um que não merecia ser seguido. A menção a um filho faz crer que
ela era casada e abandonou o marido em algum ponto de sua vida
pregressa à chegada à Milão, história essa tão misteriosa, ou que era
uma viúva que optou por não viver com os outros homens de sua família,
ou ainda, uma mulher que teve um filho fora da instituição matrimonial.
Isso não impediu, contudo, que Guglielma recebesse culto por parte
daqueles que conviviam com ela nem que os monges cistercienses
promovessem seu culto.
Podemos aqui inferir que a santidade feminina reconhecida pela
hierarquia eclesiástica podia ser marcada pela virgindade da vida
religiosa ou pela castidade mantida por uma boa esposa. No entanto,
Guglielma não se encaixa em nenhum desses exemplos. Por ter um filho,
não poderia ser virgem e por não ter um marido não poderia ser a boa
esposa casta.
Parece haver aqui uma ponte com o que Lacqueur aponta sobre o
feminino e o masculino na Idade Média. Algumas mulheres podiam ser
mais perfeitas por se aproximarem, verticalmente do divino, posição
geralmente ocupada por homens.36 A virgindade e a castidade são
justamente alguns dos atributos que conferem este status elevado a
uma mulher medieval. Nesta lógica, não há espaço para uma mãe que
abandonou o marido, como parece ser o caso de Guglielma. O saber
sobre a diferença sexual aqui pode ser uma categoria imprescindível
para entender por que a santidade de Clara foi reconhecida e a de
Guglielma ignorada.

tu te le ose te e e, et a d ad se i e ad Dio ua to pi p esto podde. Pe he


e de te tu ta la sua he edit , et pa te de la he edit de epsa testi o ia, et de tela alli
po e i. Et poi sa to F a es o la to d de a te allo alta e, ella hiesia de la Ve gi e
Ma ia di ta de la Po tiu ula; et poi la e alla hiesia de Sa to Paulo de A atissis.
Et ole dola li suoi pa e ti t a e fo a, epsa ado a Chia a p ese li pa i de lo alta e,
et s ope se lo suo apo, ost a doli he e a to dito, et pe esu o odo lo a o se t ,
se lass a a e de l , e e a e o lo o . T aduç o do auto . D i a segu da
teste u ha, I Beat iz de Messe Fa a o e de Assis. PEDROSO, Jos Ca los. Fo tes
Cla ia as. Op. Cit., p. - .
36 LAQUEUR, Thomas. Inventando o Sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud. Rio de

Janeiro: Relume-Dumará, 2001. p. 19.


129
Essa questão traz à tona ainda outro elemento, ou seja, aquele da
proximidade dessas mulheres com homens. Nesses dois processos, por
mais que possamos apontar que alguns dos atributos de santidade de
Clara sejam marcadamente relacionados ao feminino e que a principal
acusação feita ao grupo de devotos de Guglielma seja nitidamente o fato
de mulheres ocuparem papéis de homens na hierarquia cristã, Guglielma
no papel de Cristo e Maifreda como papa, nada nestes processos torna
essas mulheres dependentes de tutela masculina.
Guglielma não tinha homens que fossem responsáveis por
nenhum aspecto de sua vida. O homem com o qual ela possuía maior
contato, segundo a fonte, Andrea Saramita, não foi capaz de influenciá-
la, como vemos nas respostas dela à afirmação dele sobre sua
divinização. No caso de Clara, vemos eventualmente a menção a
Francisco como iniciador de sua vida religiosa, mas, nos depoimentos,
nada é relatado sobre a presença de confessores ou outros homens que
seriam superiores a estas mulheres. O mais provável é que estes
existissem, mas não ocuparam, dentro da construção da memória das
devotas sobre Clara e seu convívio cotidiano com ela, nenhum papel que
merecesse menção.
A partir da desconstrução dos enunciados presentes nos múltiplos
discursos que permeiam ambas as fontes, vemos que mesmo se
tratando de obras produzidas sob uma ótica masculina, por legados
papais e inquisidores dominicanos, o gênero interfere de maneira bem
mais fluida do que se poderia pensar seguindo uma lógica em que os
homens do papado determinavam qual mulher seguiria um padrão
aceitável dentro daquela sociedade. O fim conferido às duas mulheres já
aponta para este caminho óbvio, mas os processos permitem entrever
nuances muito mais variadas, que podem ser úteis a compreensão dos
discursos aí construídos.
Acreditamos que o saber sobre a diferença sexual que permeia
essas características, esses atributos, deve ser mais aprofundado,
partindo da premissa de que as experiências religiosas de Clara e
Guglielma apresentam diversos fatores que parecem apontar para
conflitos relacionados a significados de gênero e de que essas
experiências estão representadas nas alegações feitas por seus devotos.

130
A SANTIDADE EM CONSTRUÇÃO: REVOLVENDO CAMADAS PARA
EXPOR AS INSTITUIÇÕES ATUANTES NA CANONIZAÇÃO DE DOMINGOS
DE GUSMÃO (1233-1234)

Thiago de Azevedo Porto37

Introdução
A canonização de Domingos de Gusmão foi o objeto de
investigação escolhido para a minha pesquisa de doutorado, que tinha a
intenção de abordar comparativamente a participação de instituições e
a formação de grupos organizados que atuaram no sentido de alavancar
e sustentar um processo formal junto ao papado.38 O intuito da análise
era problematizar as motivações políticas para a efetivação de um
reconhecimento oficial da santidade e para o estabelecimento de um
culto, legitimado localmente e referendado pela autoridade pontifícia.
Na minha perspectiva de análise historiográfica, a canonização
realizada em julho de 1234 foi apenas a última etapa de um
empreendimento histórico, de um projeto coletivo, caracterizado por
uma série de iniciativas realizadas por instituições e grupos diretamente
interessados no resultado final. Nesse sentido, a santidade é aqui
abordada como uma formação post mortem, que pouco dependia das
escolhas feitas em vida por aquele que foi, na primeira metade do século
XIII, reconhecido como santo pela Igreja Romana.
Essa construção da santidade de Domingos seria o resultado de
um processo não linear, marcado por contradições, disputas e relações
de poder, por sua vez evidenciadas em cada acontecimento ocorrido ao
longo dos anos após sua morte. Daí a necessidade em abordar tais
eventos em suas singularidades, o que não impede o avançar posterior
para uma visão de conjunto, que permita problematizar o resultado final

37 Professor de História Antiga e Medieval da Faculdade de História do Campus


Universitário de Bragança (UFPA). Mestre e Doutor em História Comparada
(PPGHC/UFRJ). É autor de artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e atualmente
desenvolve pesquisa para explorar o inquérito realizado em Toulouse como parte do
processo de canonização de Domingos de Gusmão.
38 PORTO, Thiago de Azevedo. O papado, os dominicanos e as instituições de Bologna na

canonização de Domingos: uma análise comparativa. Rio de Janeiro, 2018. Tese


(Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
131
e suas etapas.
O que se busca explorar neste texto é o desenrolar de um projeto
coletivo marcado por acontecimentos singulares, que se sucederam e se
sobrepuseram uns aos outros, formando diferentes camadas de um
empreendimento histórico. Revolver cada uma dessas camadas é a
forma de singularizar tais eventos e identificar as lutas, os conflitos, as
resistências e os rearranjos típicos de relações marcadas pelo exercício
do poder. Articular essas camadas em uma visão de conjunto,
posteriormente, é o caminho para se analisar a construção da santidade
de Domingos, sem que ela ganhe o sentido de uma evolução, ressaltando
as contradições e os acidentes de percurso que caracterizaram as
relações e os projetos humanos aqui abordados.

Corpo e Santidade: as primeiras evidências de uma construção


A relação entre corpo e santidade pode ser abordada a partir de
diferentes perspectivas historiográficas. Por isso, é necessário frisar o
meu ponto de partida: a importância do corpo como objeto de uma
sacralidade cristã que evidencia o culto aos santos, bem como indica os
planejamentos e as ações realizadas para a construção de uma
santidade. Desde a Antiguidade, a ideia de um patronato especial
exercido pelos santos no local de sepultura ganhou repercussão entre os
cristãos, daí se explica a corrida das igrejas episcopais em busca de um
corpo santo que protegesse os habitantes e a própria cidade.39
Mas a formação de um culto no local de sepultura não explica, por
si só, a relevância atribuída ao corpo como objeto de devoção à
santidade pelos cristãos no medievo. É a sua objetivação como relíquia
associada a um culto particular e/ou público que atesta mais claramente
a relação entre materialidade e sacralidade: cada fragmento de um
corpo santo evidencia um poder intrínseco, por isso a prática
disseminada de guardá-lo em um altar erigido especialmente para essa
finalidade, ou em receptáculos preciosos (os relicários) que em muitos
casos eram verdadeiras obras de arte.40

39 VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa:
Presença, 1989, pp. 211-230, p. 227-228.
40 GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude

(Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2002, V. II, pp. 449-463, p. 452.
132
Ao explorar as fontes históricas relacionadas ao projeto de
edificação da santidade de Domingos de Gusmão, identifiquei o
tratamento que foi dispensado ao seu corpo pelos frades dominicanos
do convento de São Nicolas (em Bolonha), por outros integrantes da
Ordem dos Frades Pregadores, por autoridades eclesiásticas e por
representantes do governo e da população citadina, indicando
diferentes etapas para a construção de um sepulcro mais adequado à
finalidade de um culto oficial. Um aspecto que chama atenção, nesse
caso, é que o tratamento dado inicialmente ao corpo de Domingos pelos
frades de São Nicolas não parecia apontar qualquer pretensão daquela
comunidade em elevá-lo ao altar da santidade.
Jordão da Saxônia, em uma carta encíclica dirigida aos integrantes
da instituição dominicana, em 1234, após a translatio corporis de
Domingos, fez críticas contundentes a forma como os frades da
comunidade bolonhesa tinham conservado (ou não), até aquele
o e to, o o po de seu fale ido líde : Pa a as o as edifi aç es se
derrubaram as antigas, e o corpo do servo de Deus ficou exposto à
intempérie. Quem, capaz de raciocinar, julgaria digno que o espelho de
pu eza […] pe a e esse assi e t o hu ilde sepul o? .41
Vale destacar que esse processo de ampliação dos edifícios do
convento de São Nicolas foi longo, tendo durado de 1228 a 1240, e, pelo
menos de início, não parecia estar associado a um planejamento prévio
voltado à construção da santidade de Domingos de Gusmão, mas sim
vinculado às demandas daquela comunidade, pois e a u p ojeto
arquitetônico preciso e um plano de construção que respondia
plenamente aos ideais da Ordem, de vida apostólica e de organização
i te a dos es os f ades .42
Assim sendo, a crítica de Jordão da Saxônia aos frades

41 Es ita lati a: Novis succedentibus vetera diruuntur et corpus Dei famuli sub divo

remansit. Quis rationis capax dignum aestimare, puritatis speculum [...] sic humili tectum
loculo permanere [...] ? , [p. ]. A ediç o íti a da efe ida a ta e í li a de Jordão
da Saxônia por mim utilizada está disponível em: MONTANARI, Elio. Litterae Encyclicae
annis 1233 et 1234 datae. Spoleto: Ce t o Italia o di Studi sull Alto Medioe o, .
Deste ponto em diante farei referência a esta fonte como Carta Encíclica de 1234,
seguida da página correspondente à edição de Elio Montanari.
42 BORGHI, Beatrice. Una ciudad, un santo, una orden: Bolonia, Domingo de Caleruega y

la Orden de los Frailes Predicadores. Entre la vocación al estudio y la custodia de las


sagradas prendas. Medievalismo, v. 25, pp. 13-54, 2015, p. 23.
133
dominicanos de Bolonha se direcionava a um comportamento dos
membros daquela comunidade em relação ao sepulcro do falecido
pregador. Para o mestre geral da Ordem dos Frades Pregadores, que foi
o primeiro a suceder Domingos de Gusmão nessa função, o corpo do
antigo líder dominicano não estava sendo conservado e honrado da
maneira adequada. Qual seria o motivo desse tratamento? Por que os
frades de São Nicolas mantinham o corpo de Domingos em um sepulcro
humilde? Por que permitiram que ele ficasse exposto às intempéries em
decorrência das obras de ampliação da comunidade?
Ao explorar tais questões vale destacar uma mudança na postura
daquela comunidade dominicana que, segundo o próprio Jordão da
Saxônia, tomou a iniciativa de se comunicar com o papa Gregório IX para
viabilizar a translatio corporis de Domingos de Gusmão através de uma
cerimônia religiosa e solene. O ato em si da comunicação já apontaria a
existência de um projeto para o reconhecimento da santidade do líder
dominicano, pois o próprio autor da encíclica argumentou que eles
poderiam ter feito o procedimento sem consultar o pontífice romano e
ue ao us a pa a isso aio auto idade, o ti e a u e aio ;
pois assim esta trasladação gloriosa não foi uma simples trasladação, e
si a i a .43
Outros aspectos também registrados nas documentações
exploradas na referida pesquisa de doutorado não deixam dúvidas sobre
o planejamento para um culto oficial a Domingos de Gusmão em
Bolonha e as iniciativas tomadas para que isso fosse possível. A mudança
no tratamento dispensado ao sepulcro do falecido mestre é apenas um
dos indícios. A própria presença de autoridades e representantes de
instituições locais e de outras regiões nos procedimentos realizados
antes, durante e depois da translatio corporis, é outro elemento a
fortalecer a tese do empreendimento coletivo, pois aponta um crescente
interesse de diferentes grupos/instituições pela guarda e conservação
daquele corpo.
A começar pelo próprio pontífice romano que teria se
escandalizado com o tratamento dispensado pelos frades de Bolonha ao
sepulcro de Domingos de Gusmão. Tal como ressalta Luigi Canetti,

43 Cata E í li a de , p. . Es ita lati a: [...] sed dum in hoc maioris auctoritatem


requirunt, cessit in melius, ut non solum simplex sed et canonica fieret translatio gloriosi .
134
recorrendo ao testemunho do dominicano Bartolomeo de Trento, ao afirmar
que a iniciativa da trasladação teria sido tomada após Gregório IX ter ordenado
ao arcebispo de Ravena e aos seus bispos sufragâneos que providenciassem um
lugar adequado para colocar o corpo do líder dominicano.44
Partindo das atas do inquérito realizado na cidade de Bolonha, em 1233,
é possível identificar a presença de autoridades e o aparato de segurança
montado para a proteção do corpo daquele antigo mestre geral da ordem. Frei
Ventura de Verona, que naquele contexto era o prior do convento de São
Ni olas, foi u a das teste u has a egist a o i u ito esses aspe tos: Po
onde, ao vir de noite os frades para abrir a arca, estando presente o podestá e
muitos cidadãos de Bolonha e outros ilustres e religiosos varões, bispos e leigos,
a ha a e fe hado o sepul o e du o e uito fo te o i e to .45
Já o testemunho de frei Guilherme de Montferrat destaca a
preocupação dos frades dominicanos com a exumação do corpo de Domingos,
ato precedente e necessário para a realização da trasladação. Eles não queriam
a p ese ça de est a hos, as o pude a faz -lo sem que o podestá, com
vinte e quatro nobres e honrados cidadãos de Bolonha, assistissem à abertura
de dito sepulcro, alguns dos quais guardaram o sepulcro durante muitas noites
antes de abri-lo . Fato o fi ado e e pli ado o depoi e to de f ei Ve tu a
de Verona, quando afirmou que antes da translatio corporis po a dato do
podestá de Bolonha, muitos honrados cidadãos custodiaram a arca durante
uitos dias, te e do ue a ou asse .46

44 CANETTI, Luigi. L i e zio e della e o ia. Il ulto e l i agi e di Do e i o ella


storia dei primi frati Predicatori. Spoleto: Ce t o Italia o di Studi sull Alto Medioe o,
1996, p. 41.
45 Es ita lati a: Unde cum in nocte fratres venerunt ad aperiendum archam, presente

potestate et multis civibus Bononiensibus et aliis honoratis viris et religiosis, episcopis et


laycis, invenerunt sepulcrum bene clausum et cementum durum et valde forte , p.
[Ventura de Verona]. A edição crítica da Ata dos Testemunhos de Bolonha, parte
integrante do processo de canonização de São Domingos, por mim utilizada está
disponível em: WALZ, A. Acta Canonizationis S. Dominici. In: Monumenta Ordinis Fratrum
Praedicatorum Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum,
1935, pp. 89-194. Deste ponto em diante farei referência a esta fonte como Acta
Canonizationis S. Dominici, seguida da página correspondente à edição de A. Walz e
identificando a testemunha.
46 Acta Canonizationis S. Dominici, escrita lati a: [...] sed non potuerunt facere, quin

potestas cum viginti quatuor nobilibus et honoratis civibus Bononiensibus interessent in


appertione dicte sepulture, quorum quidam custodiebant ipsam sepulturam antequam
apperiretur pluribus noctibus , p. [Guilhe e de Mo tfe at]. Es ita lati a: [...] ex
135
A presença de autoridades religiosas e citadinas, bem como a
existência de uma tropa para fazer a guarda do corpo antes e durante o
procedimento de trasladação a um novo sepulcro, também foi atestada
na carta encíclica de Jordão da Saxônia.47 Pode-se, primeiramente,
i te p eta essas p ese ças ilust es o o u esultado da i po t ia
que se atribuía as trasladações naquele contexto histórico, parte
integrante da vida religiosa e dos rituais associados à santidade, bem
como a possibilidade real do furto de relíquias, o que só confirma o papel
de destaque reservado ao corpo santo nas práticas cristãs do século
XIII.48
Por outro lado, também se poderia argumentar que a presença de uma
autoridade citadina, como é o caso do podestá de Bolonha, seria uma forma de
garantir oficialidade e publicidade aos procedimentos, visto que naquele
contexto difundiu-se o h ito de o fia a fu io ios pú li os os ot ios a
tarefa de certificar a autenticidade das deposições e [...] de fornecer as provas
da a a te ísti a so e atu al das u as ue a o te e a pe to de elí uias .49
De uma forma ou de outra, qualquer que seja a interpretação
adotada, a presença de autoridades e de representantes de instituições
citadinas e religiosas, tomando parte nos procedimentos realizados no
convento de São Nicolas a partir de maio de 1233, permitiria apontar a
existência de uma campanha organizada com vistas ao reconhecimento
oficial da santidade de Domingos de Gusmão. Algo que, somado ao
comportamento inicial dos frades e a mudança de postura da
comunidade bolonhesa em relação ao sepulcro do antigo líder, indicam
a cidade de Bolonha como o espaço onde convergiram forças atuantes
para sustentar a causa de canonização daquele que foi apontado como
fundador dominicano.

A devoção a Domingos de Gusmão: resistências, contradições e


relações de poder
A existência de devoção no local de sepulcro é um dos aspectos
que, na primeira metade do século XIII, ajudava a disseminar uma fama

mandato potestatis Bononiensis multi honorati cives custodierunt archam per multos
dies, timentes ne subriperetur eis , p. 131 [Ventura de Verona].
47 Carta Encíclica de 1234, p. 259.
48 VAUCHEZ, André, Op. Cit., p. 223.
49 GAJANO, Sofia Boesch, Op. Cit., p. 453.

136
de santidade e a fundamentar as decisões institucionais para o
estabelecimento de um culto oficial. No caso do referido líder
dominicano, a localização de seu corpo no convento de São Nicolas era
de amplo conhecimento e, considerando a historiografia e as fontes aqui
e plo adas, te ia despe tado o i te esse lo al: A de oç o a Do i gos
se põe de manifesto imediatamente depois de sua morte. Se trata de
verdadeiras peregrinações a sua tumba, ou melhor, a aquela fossa
es a ada ao lado do alta aio da ig eja o igi a ia de S o Ni olas . 50
No inquérito realizado em Bolonha, como parte do processo de
canonização, frei Ventura de Verona registrou a existência de uma
devoção popular ao primeiro mestre da Ordem. Segundo ele, muitos
homens e mulheres procuravam o sepulcro do falecido pregador
le a do o sigo elas, i age s e otos, dize do ue Deus ha ia o ado
milagres neles ou nos seus pelos méritos do beato Domingos. E quiseram
alguns fechar e cobrir com panos de seda a sepultura do frade e padre
eato Do i gos .51
Jordão da Saxônia também registra uma devoção a Domingos no
seu local de sepulcro. Ele dedicou uma pequena parte de sua crônica
sobre a Ordem dos Frades Pregadores para falar do local de sepultura e
dos milagres que lá teriam ocorrido. Segundo Jordão, o estilo de vida e
as pregações com foco no desprezo ao mundo fizeram do fundador
dominicano uma referência popular, despertando logo após a sua morte
a de oç o do ulgo e a e e ia dos po oados: Muitos at i ulados
com diversas enfermidades e doenças acudiam ao seu sepulcro,
pe a e e do ali dia e oite at al a ça o e dio de seus ales .52

50 BORGHI, Beatrice, Op. Cit., p. 36.


51 Acta Canonizationis S. Dominici, esita lati a: [...] dicentes, quod Deus operatus fuerat
miracula circa eos vel suos per merita beati Dominici. Et voluerunt quidam claudere
sepulturam ipsius fratris et patris beati Dominici et cooperire pannis sericis , p.
[Ventura de Verona].
52 Es ita lati a: [...] et accurrentes multi, qui diversis infirmitatum quarumcumque

premebantur molestiis, ibique permanentes diebus ac noctibus fatebantur, omnino


percepisse se remedia sanitatum , [p. ]. A edição crítica da crônica escrita por Jordão
da Saxônia, por mim utilizada, está disponível em: WALZ, A. Libellus de principiis Ord.
Praedicatorum auctore Iordano de Saxonia. In: Monumenta Ordinis Fratrum
Praedicatorum Historica, tomus XVI. Romae: Institutum Historicum FF. Praedicatorum,
1935, pp. 23-88. Deste ponto em diante farei referência a esta fonte como Libellus,
seguida da página correspondente à edição de A. Walz.
137
Se por um lado as fontes e a historiografia permitem atestar a
existência de uma devoção se iniciando logo após a morte de Domingos
de Gusmão, por outro, também apontam alguma resistência no âmbito
da o u idade de S o Ni olas, ue o s eti a a os otos ue dei a a
a multidão junto à tumba do santo, mas também, com motivo das obras
de ampliação do convento, deixaram as relíquias de seu fundador
e postas s i le ias do te po .53 Qual seria o motivo para esse
comportamento dos frades de Bolonha? Não teriam eles interesse no
desenvolvimento de uma devoção popular ao antigo mestre?
A resposta pode estar nos valores e ideais associados à atuação
daquele pregador dominicano, e que estariam influenciando a própria
conduta dos frades bolonheses. Beatrice Borghi, ao abordar a translatio
corporis de Domingos, argumentou que os integrantes daquele
o e to te ia optado po u sepul o e o so ia o o
caráter da comunidade dos religiosos, que não queria ser acusada de
o iça pela e essi a aflu ia ue ha e ia ausado si se hou esse o
olo ado e sa fago de o oso e de o ado . 54
Argumentei anteriormente que a presença de um corpo santo em
uma cidade e/ou comunidade era algo que mobilizava os cristãos em
busca de contato com uma relíquia sagrada, ao ponto de se planejarem
esquemas de segurança para as trasladações com o intuito de evitar
possíveis furtos. Ao que parece os frades bolonheses tinham temor de
serem acusados de utilizar o corpo de Domingos para atrair os fiéis e,
consequentemente, suas doações para a comunidade de São Nicolas, o
que seria uma traição às práticas e aos ideais defendidos pelo antigo líder
dominicano, representados, sobretudo, pela pobreza coletiva e pela
mendicância como forma de sobrevivência.
Para essa direção aponta Diana Lucía, ao argumentar que os fiéis
deseja a o st ui u a apela e ho a ao seu ue ido sa to o u
bonito sepulcro, mas os frades se negavam posto que consideravam que
dita ostentação ia contra o espírito de pobreza e humildade que
a a te izou a seu fu dado .55

53 GÓMEZ-CHACÓN, Diana Lucía. Santo Domingo de Guzmán. Revista Digital de


Iconografía Medieval, v. 5, n. 10, pp. 89-106, 2013, p. 94-95.
54 BORGHI, Beatrice, Op. Cit., p. 37.
55 GÓMEZ-CHACÓN, Diana Lucía, Op. Cit., p. 95.

138
Tal hipótese encontra também sustentação no testemunho
prestado por frei Ventura de Verona, quando abordou o comportamento
dos frades como resposta à ação dos devotos junto ao sepulcro de
Domingos. Ele afirmou que quando os populares tentaram adornar a
sepultura, colocando panos de seda, fo a p oi idos pelos f ades
temendo que depois se turbara a ordem pela multidão de gentes e que
alguns dissessem que por cobiça ou jactância faziam isto os frades ou
o se tia ue se fizesse .56
Por outro lado, a fala de frei Ventura apontaria ainda uma
precaução com a manutenção da ordem no espaço do convento, visto
que a sepultura de Domingos estava em um altar na igreja de São
Nicolas, ou seja, no interior da comunidade dominicana em Bolonha.
Nesse caso, os frades estariam também preocupados com a
possibilidade de verem o seu ambiente tumultuado com a afluência de
devotos à procura das relíquias do santo.
O que foi reforçado por Jordão da Saxônia, fazendo críticas diretas
ao comportamento dos frades de Bolonha, que não queriam reconhecer
possíveis milagres junto ao sepulcro de Domingos para não parecerem
a i iosos a usa o ulto o o p ete to, e ue e ua to o u a
santidade indiscreta eram zelosos de sua própria opinião, não tiveram
em conta o comum proveito da Igreja, obscu e e do a gl ia di i a .57
Na carta encíclica de 1234 ele acusa aos frades de estarem mais
preocupados consigo mesmos e os responsabiliza pelo não
e o he i e to da sa tidade do a tigo est e at a uele o e to: E
assim permaneceu como adormecida e sem nenhuma veneração de
santidade, quase por espaço de doze anos, a glória do beato padre
Do i gos .58
Pelos argumentos apresentados até aqui, é possível defender a
existência de uma devoção junto ao sepulcro de Domingos antes mesmo

56 Acta Canonizationis S. Dominici, es ita lati a: [...] sed fratres timentes prohibuerunt,
ne ordo inde propter multitudinem turbaretur et ne aliqui dicerent, quod propter
cupiditatem vel iactantiam facerent predicta vel fieri paterentur , p. -131 [Ventura de
Verona].
57 Libellus, es ita lati a: Sicque dum propriam opinionem inconsiderata sanctitate

zelarent, communem ecclesie neglexere profectum et gloriam sepeliere divinam , p. .


58 Carta Encíclica de 1234, es ita lati a: Sicque factum est, ut beati patris Dominici gloria

absque omni santitatis veneratione per annos fere XII sopita permaneret , p. .
139
da realização da translatio corporis, ocorrida em maio de 1233. E que
esse movimento de devotos na comunidade de São Nicolás enfrentou
alguma resistência, pelo menos de uma parcela dos frades dominicanos,
algo que ficou registrado na historiografia e nas próprias fontes aqui
exploradas, que apresentam diferentes interpretações para essa
resistência. Seriam esses frades idealistas e leais aos ensinamentos do
antigo líder? Ou estariam eles preocupados com o seu próprio bem-estar
e a manutenção de sua imagem pública? Não me arrisco a cravar uma
resposta, pois existem elementos na historiografia e nos documentos
que apontam ambas as direções. É possível que ambos os aspectos
estivessem juntos a mobilizar aquele comportamento de resistência.
Fato é que houve uma mudança no comportamento dos frades,
ou a quebra daquela resistência coletiva por um projeto maior. Tudo
indica que a correlação de forças dentro da comunidade dominicana
tenha sido alterada, pois os acontecimentos de 1233 em diante apontam
claramente a participação direta de alguns frades de São Nicolas nas
iniciativas com vistas a um reconhecimento oficial da santidade de
Domingos de Gusmão. O próprio prior do convento, frei Ventura,
participou da exumação do corpo e da cerimônia de translatio corporis,
sendo ainda um dos testemunhos no inquérito realizado em Bolonha
como parte do processo de canonização. Isso, por si só, já deveria indicar
aos de ais f ades da o u idade e ue di eç o o e to esta a
sop a do .
A continuidade das ações de devotos junto ao sepulcro de
Domingos e a pressão popular pelo estabelecimento de um culto público
oficial podem ter vencido a resistência dos frades de São Nicolas. É nessa
direção que caminha Beatrice Borghi ao argumentar que perante o
crescimento da devoção ao primeiro mestre dominicano, nem mesmo
os f ades de Bolo ha o segui a se opo , pois a e essidade de
construir um lugar sagrado para glorificar ao santo foi incitada
precisamente pela devoção popular, que acelerou e incitou a
reelaboração de ritos complexos, cuja forma mais evoluída foi a
dedi aç o da ig eja .59
Mas também existem elementos que apontam outra possibilidade
de interpretação, que não anula a anterior, podendo até mesmo

59 BORGHI, Beatrice, Op. Cit., p. 37.


140
complementá-la em um quadro que considere as relações de poder
atuantes no caso. É o que pode ser visto na carta encíclica escrita por
Jordão da Saxônia, justamente na parte em que ele trata da
movimentação dos frades de Bolonha para conseguir junto ao pontífice
romano uma autorização formal para a cerimônia de translatio corporis:
Ele [G eg io IX], ue e a u homem de grande zelo e fé, os reprendeu
muito duramente, por terem negligenciado a honra e o serviço que se
de ia p esta .60
A pressão institucional pode ser outro caminho para entender a
mudança dos rumos em relação ao culto de Domingos de Gusmão.
Qualquer movimento contrário dentro da comunidade de São Nicolas,
se não tivesse uma adesão quase total dos frades de Bolonha,
dificilmente suportaria a pressões oriundas da cúpula da Ordem dos
Frades Pregadores e do papado. E existem elementos a apontar que o
comportamento de resistência não tinha a participação de todos os
frades. É o que registra, uma vez mais, Jordão da Saxônia em sua carta:
Out os, o e ta to, dife ia e se ti e to, as a atidos pelo espí ito
de pusila i idade, o se opu ha a eles . 61
É nesse contexto que a hipótese de uma pressão institucional para
o reconhecimento da santidade de Domingos pode ter vencido a
resistência feita por um grupo de frades de Bolonha. Jordão da Saxônia,
pelas transcrições anteriores, manifestava claramente sua contrariedade
com relação ao tratamento que foi dado ao corpo, ao sepulcro e aos
devotos de Domingos, sendo inclusive duro nas críticas direcionadas aos
frades dominicanos de São Nicolas. E não era uma opinião qualquer, era
proferida em carta encíclica direcionada a todos os conventos da ordem
por aquele que era o mestre geral da instituição e o primeiro a substituir
Domingos de Gusmão nessa função.
Além disso, a repreensão feita pelo papa Gregório IX aos frades da
comunidade São Nicolas e a decisão de mobilizar o arcebispo de Ravena
e seus bispos sufragâneos para a translatio corporis de 1233, servem
para registrar o apoio pontifício já nas primeiras iniciativas tomadas para
o reconhecimento da santidade de Domingos. O que, por si só, já

60 Carta Encíclica de 1234, escrita latina: Ille vero, ut erat vir magni zeli et fidei, durissime

eos corripuit, qui tanto patri debito honore neglexerant famulari , p. .


61 Carta Encíclica de 1234, escrita latina: Alii autem aliter sentiebant, tamen
pusillanimitatis depressi spiritu his non obviabant , p. .
141
exerceria pressão suficiente sobre qualquer grupo de religiosos que
pretendesse opor-se a um movimento apoiado pelo mestre geral da
ordem e pelo pontífice romano.

A trasladação ocorrida em Bolonha: pobreza versus poder


A exumação de um corpo sepultado em um local e a sua transferência
para outro sepulcro, ocorrendo paralelamente a uma cerimônia religiosa
conduzida por um sacerdote e assistida por um público diverso, seria, grosso
modo, uma definição atual para o procedimento intitulado de translatio
corporis, que foi muito utilizado no medievo com o intuito de marcar o
estabelecimento de um culto de santidade.
A trasladação era, geralmente, um acontecimento que alterava o
cotidiano de uma cidade ou povoado, pela quantidade de pessoas
mobilizadas em sua execução, bem como pela presença de autoridades
e representantes de diferentes instituições, e da população local a
acompanhar os procedimentos. Por isso mesmo, era um evento de
desta ue as so iedades edie ais, a edida em que a posse de um
corpo santo – e se possível, de vários – era uma necessidade vital para
as oleti idades, leigas ou e lesi sti as .62
O tratamento inadequado ao corpo de um santo, seja pela falta de
conservação de seu sepulcro, ou pela negligência de uma veneração
religiosa não continuada, foi utilizado, no contexto do Ocidente
medieval, como justificativa para a realização de uma translatio corporis
e at pa a o ou o de elí uias: a tal po to os fi is esta a o e idos
de que tinham esse direito e de que davam provas de piedade, não
abandonando à sua sorte as relíquias dos santos que, para eles, [não]
e a o jeto de u a e e aç o ade uada .63 Seria esse o caso da
trasladação do corpo de Domingos de Gusmão? Estaria o povo de
Bolonha a pressionar a comunidade dominicana, que assim procedeu à
translatio corporis? Ou foi tudo planejado e executado pelos grupos e
pelas instituições diretamente interessadas nos efeitos posteriores ao
evento?
Em uma parte anterior desse texto, mencionei que a comunidade
dominicana de Bolonha passou por um longo período de modificações

62 VAUCHEZ, André, Op. Cit., p. 223.


63 Ibidem, p. 224.
142
arquitetônicas. As edificações mais antigas foram reformadas e novas
estruturas foram também construídas nessa primeira fase que se iniciou
ainda em 1228, cerca de sete anos após a morte de Domingos de
Gusmão, e que perdurou até 1240. Ou seja, tal empreendimento se
iniciou antes da translatio corporis e da canonização de Domingos,
terminando somente depois desses eventos. É difícil apontar, a partir
dos dados levantados até o momento, se esse processo já fazia parte de
um planejamento voltado ao estabelecimento de um culto oficial para o
frade dominicano. Mas é certo que o convento de São Nicolas, ao
empreender tais reformas e construções, assumiu gastos acima de suas
capacidades e chegou a se endividar com empréstimos tomados juntos
a usurários.64
Pouco antes da trasladação do corpo de Domingos, os trabalhos
de construção da nova basílica e de outras edificações do convento de
São Nicolás ainda estavam em andamento. Tanto é que os ossos do
antigo mestre da ordem foram colocados em uma caixa de madeira e
fe hados e u sa fago de o e, ue foi alo ado o h o det s
do altar de uma capela late al da a e di eita . Mas e de aio de
1233, dia do evento, a nova igreja já estava pronta para acolher as
autoridades e o público que foram participar da cerimônia de
trasladação, restando apenas concluir as demais obras no convento, o
que ainda despertava preocupação na comunidade dominicana por
o ta dos g a es p o le as de í dole e o i a . 65
Nem a historiografia, nem os documentos consultados, até o
presente momento, apontam qualquer tipo de mal-estar ou
discordância no interior daquela comunidade dominicana quanto aos
gastos realizados nesse longo processo de construção e de reforma, tão
altos que teriam gerado endividamento ao convento de São Nicolas. Isso
é algo que chama atenção porque contrasta visivelmente com o ideal de
pobreza que é apontado como marca da atuação religiosa de Domingos
de Gusmão, isso sim destacado reiteradamente nas fontes históricas
aqui exploradas.
Anteriormente argumentei que a questão da pobreza poderia ser
uma explicação para o comportamento de resistência dos frades de

64 BORGHI, Beatrice, Op. Cit., p. 23.


65 Ibidem, p. 24.
143
Bolonha, que retiravam os objetos deixados sobre o sepulcro de
Domingos e impediam qualquer tentativa dos devotos de adornar dita
sepultura, tal como foi registrado no testemunho prestado por frei
Ventura de Verona no âmbito do processo de canonização.66 Outros
frades interrogados também destacaram a prática da pobreza como
sendo uma preocupação constante do antigo líder dominicano, tanto em
seu comportamento quanto na disciplina que buscava implantar naquela
ordem religiosa.
Frei Amizo de Milão fez parte do grupo dominicano interrogado
no inquérito de Bolonha e destacou que Domingos trabalhou ao longo
de sua vida na Ordem dos Pregadores para que os frades não utilizassem
em suas vestimentas, nem na ornamentação dos espaços religiosos,
qualquer tipo de material que não fosse condizente com o ideal de
pobreza. Ele caracterizou o antigo mestre como um amante da pobreza
ta to o ali e to o o o estu io, seus e dos f ades de sua O de ,
e ta os edifí ios e ig ejas dos f ades .67
A preocupação com os edifícios e demais espaços religiosos sob a
responsabilidade da Ordem dos Frades Pregadores, para que estivessem
todos em acordo com o ideal de pobreza, também aparece registrada no
testemunho de frei Estevão de Espanha. Ele que era prior provincial da
Lombardia (um cargo de confiança e autoridade na hierarquia da ordem)
na época do inquérito de Bolonha, reproduziu uma história interessante
para problematizar a questão da pobreza. Disse que em um período de
viagem de Domingos de Gusmão, Rodolfo de Faenza, que era o
procurador do convento de São Nicolás, empreendeu uma reforma na
comunidade, com o objetivo de aumentar o tamanho das celas, que
eram os cômodos nos quais os frades dormiam. Ao retornar de viagem,
o então mestre geral teria chorado ao constatar a alteração do edifício,
e ep ee dido Rodolfo e os de ais f ades, dize do a eles: Que eis
a a do a a po eza t o apida e te e le a ta g a des pal ios? .68

66 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 130.


67 Acta Canonizationis S. Dominici, es ita lati a: […] tam in victu quam in vestitu fratrum
ordinis sui, et sui, quam etiam in edificiis et ecclesiis fratrum , p. [A izo de Mil o].
68 Acta Canonizationis S. Dominici, es ita lati a: Vultis tam cito paupertatem relinquere

et magna palatia edificare , p. [Este o de Espa ha].


144
Os testemunhos acima destacados dos frades dominicanos
(Ventura, Amizo e Estevão), são suficientes para ressaltar o aspecto
apontado anteriormente: a pobreza, como ideal e como prática, tem um
espaço de destaque nos documentos aqui explorados, quando se trata
de caracterizar o comportamento de Domingos e a sua atuação à frente
da Ordem dos Pregadores. Existem menções explícitas a ações suas no
sentido da manutenção da pobreza, inclusive nos edifícios utilizados
pelas comunidades dominicanas, para que não se tornassem uma
contradição ao estilo de vida religiosa dos frades mendicantes.
Esse comportamento de austeridade e manutenção de uma vida
religiosa pautada no ideal de pobreza certamente não se encontra
refletido nas decisões tomadas pela comunidade de São Nicolas, ao
empreender um longo e custoso processo de reformas e de construções.
E que, coincidentemente ou não, ocorreram antes, durante e depois dos
eventos que marcaram um encaminhamento para a canonização de
Domingos de Gusmão. Vale ressaltar, uma vez mais, o silêncio nas fontes
e na historiografia até aqui consultadas, sobre qualquer tipo de
resistência ou conflito no convento dominicano de Bolonha acerca de tal
empreendimento. Resta saber se esse silêncio aponta apenas o
direcionamento dos grupos que produziram tais fontes (não
mencionando ou retirando dos textos possíveis conflitos existentes), ou
se é um indício da derrocada do grupo que supostamente fazia uma
resistência a esses encaminhamentos e que teria sido, dessa forma,
tragado pelos acontecimentos.
Uma breve reprodução dos procedimentos da translatio corporis
de Domingos de Gusmão pode dar alguma noção dos grupos e das
instituições envolvidas no evento, permitindo uma visão sobre a
diversidade de interesses presentes naquela cerimônia. A começar,
segundo o testemunho de frei Ventura de Verona, o local do sepulcro foi
vigiado durante alguns dias antes da exumação do corpo por homens da
cidade de Bolonha, que ali estiveram por mandato do podestá,69 aquele
que representava o cargo mais alto do governo citadino e que
acompanhou todos os procedimentos realizados. Quase todos os
testemunhos do processo de canonização, com exceção de João de
Navarra e Frugerio de Penna, fazem referência explícita à presença do

69 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 131 [Ventura de Verona].


145
podestá e de outros cidadãos bolonheses dando suporte e segurança
para a realização da trasladação.
Na passagem do dia 23 para o dia 24 de maio de 1233, foi feita a
exumação dos restos mortais de Domingos do primeiro sepulcro onde
foi colocado ainda em 1221, logo após sua morte. A ação foi executada
a noite, um tanto as escondidas, por temor que o corpo estivesse em
avançado estado de decomposição e que a possibilidade de emanar
algum cheiro ruim pudesse obscurecer o culto ao santo pelos fiéis.70 Algo
que está registrado também no testemunho de frei Guillerme de
Montferrat, ao afirmar que o prior provincial, na época frei Estevão de
Espanha, e outros frades do convento de São Nicolas temiam a
possibilidade de fedor na sepultura e, por isso mesmo, não queriam a
presença de estranhos no dia da exumação.71
Apesar dessa preocupação, a exumação foi acompanhada por um
público formado por leigos, religiosos e clérigos, estando presentes o
podestá de Bolonha, cidadãos ilustres, frades dominicanos de São
Nicolas e de outras comunidades, priores e outros superiores da Ordem
dos Pregadores, além de bispos que não estão identificados na fonte. Os
ossos foram retirados da antiga arca onde estavam e colocados em uma
caixa de madeira reforçada com fechadura, ficando a chave sob a guarda
do podestá de Bolonha, o que reforça a participação do poder citadino
nos eventos. Ao amanhecer do dia 24 de maio, com a chegada do
arcebispo de Ravena e de outros bispos que o acompanhavam, a caixa
foi reaberta e foi feita a trasladação para um novo sepulcro, sob a
condução dessas autoridades eclesiásticas, segundo a versão
apresentada no testemunho de frei Ventura.72 Nesse mesmo dia foi
realizado o rito solene e canônico conduzido pelo arcebispo de Ravena,
como representante do papa Gregório IX, marcando a celebração
religiosa oficial da translatio corporis de Domingos de Gusmão.73

70 GÓMEZ-CHACÓN, Diana Lucía, Op. Cit., p. 95.


71 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 136 [Guilherme de Montferrat].
72 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 131 [Ventura de Verona].
73 PACIOCCO, Roberto. Il Papato e i santi canonizzati degli Ordini mendicanti. Significati,

osservazioni e linee di ricerca (1198-1303). In: Il Papato duecentesco e gli Ordini


Mendicanti. Atti del XXV Convegno Internazionale (Assisi, 13-14 febbraio 1998). Spoleto:
Ce t o Italia o di Studi sull Alto Medioe o, , pp. -341, p. 285.
146
A versão reproduzida no testemunho de frei Estevão de Espanha
é um pouco diferente, dando maior ênfase às ações conduzidas pelos
superiores da Ordem dos Frades Pregadores e colocando as autoridades
eclesiásticas na posição de testemunhas. Embora confirmando as
mesmas presenças que aparecem registradas no testemunho de frei
Ventura, ele afirma ter sido o responsável por estabelecer o dia e a forma
de trasladar o corpo do antigo mestre, além de ter cavado ele mesmo a
sepultura com picos e barras de ferro, sendo ajudado por outros frades.
Também destaca a participação do mestre geral Jordão da Saxônia, a
quem ele aponta como a pessoa que retirou os ossos da antiga arca e
colocou na nova caixa, procedendo depois à trasladação para o novo
sepulcro juntamente com ele, e na companhia de outros frades.74
O testemunho de frei Ventura foi certamente o mais valorizado
por Jordão da Saxônia que, ao relatar o evento da translatio corporis na
carta encíclica dirigida aos integrantes da Ordem dos Pregadores,
reproduz exatamente a visão consolidada pelo prior do convento de São
Nicolás. A versão reproduzida por Jordão dá amplo destaque ao
arcebispo e aos bispos presentes como condutores das ações realizadas
naquela ocasião, e ainda lembra que foi o papa Gregório IX, quando
ainda atuava como bispo de Ostia, o responsável pelo sepultamento de
Domingos de Gusmão em 1221. 75
Já a versão de frei Estevão de Espanha encontra reforço em outros
testemunhos do processo de canonização, que também destacam a
participação dos frades dominicanos e de seus superiores à frente dos
procedimentos da translatio corporis. Frei Rodolfo de Faenza declarou
ter sido um dos frades que abriram o sepulcro onde estava o corpo de
Domingos de Gusmão desde sua morte, além de afirmar que foi o
responsável por reforçar a sepultura com pedras e cimentos para evitar
a ação de ladrões quando houve o primeiro sepultamento em 1221. Já
frei Guillerme de Montferrat ressaltou a tentativa do prior provincial, no
caso o próprio frei Estevão, e de outros frades para evitar a presença de
estranhos no dia da exumação do corpo de Domingos. Por fim, frei
Bonvizo de Piacenza destacou em seu testemunho o dia em que Jordão
da Saxônia mostrou os ossos do antigo mestre para os frades que não

74 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 159-160 [Estevão de Espanha].


75 Carta Encíclica de 1234, p. 259-260.
147
puderam acompanhar a trasladação, estando presentes também nesse
dia o podestá de Bolonha e outros cidadãos, além do prior provincial (frei
Estevão) com os demais frades.76
A história contada por frei Bonviso de Piacenza registra a
realização de um ato de ostentação das relíquias do antigo líder
dominicano, um episódio ocorrido alguns dias após a translatio corporis
e através de um procedimento que não seria exatamente permitido
pelas leis canônicas da Igreja. É o que destaca Roberto Paciocco ao
argumentar que a eficácia da trasladação para alavancar a devoção a
Domingos foi au e tada pelo fato da e i ia te sido dupli ada: oito
dias após o rito solene e canônico de 24 de maio de 1233, [...] o sepulcro
foi reaberto e Jordão da Saxônia fez a ostentação da cabeça do santo –
canonicamente vetada pelo IV Lateranense e depois pelas Decretais de
. 77
Afinal, quem estaria na condução dos trabalhos e no início dos
procedimentos que marcaram a referida trasladação? Seria o papado a
instituição a incentivar e legitimar as ações empreendidas no âmbito da
translatio corporis? Ou a Ordem dos Frades Pregadores pelo
envolvimento dos seus superiores e dos frades em todos os eventos?
Partindo dos documentos selecionados e aqui utilizados, as duas
possibilidades são sustentáveis, ora pendendo para um lado, ora
pendendo para o outro, dependendo da testemunha escolhida. Existiria
ainda alguma outra perspectiva de interpretação? É o que parece
apontar a historiografia.
Segundo Elio Montanari, existem duas grandes linhas de
interpretação para o evento da translatio corporis de maio de 1233. A
primeira aponta a trasladação como uma consequência dos trabalhos de
ampliação e reforma dos edifícios do convento de Bolonha, que teriam
deixado o sepulcro de Domingos exposto e desprotegido, gerando a
necessidade de um novo lugar para o seu sepultamento. Essa seria a
perspectiva fundamentada na carta encíclica de Jordão da Saxônia e que
não apontaria nenhum planejamento prévio para a trasladação e para a
canonização no âmbito da Ordem dos Pregadores. A segunda
perspectiva teria como base a Legenda de Santo Domingo, hagiografia

76 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 152 [Rodolfo de Faenza], p. 136 [Guilerme de


Montferrat] e p. 141 [Bonviso de Piacenza].
77 PACIOCCO, Roberto, Op. Cit., p. 285.

148
redigida pelo frade Pedro Ferrando alguns anos após a canonização, e se
caracterizaria por interpretar a trasladação como fruto de um clamor
popular a favor do culto de Domingos. Nessa linha de pensamento tanto
a trasladação quanto a canonização estariam associadas ao movimento
da G a de De oç o e ao e ol i e to dos f ades do i i a os e
campanhas de pregação.78
Pa a Beat i e Bo ghi, a t asladaç o de Do i gos de Gus o foi
a expressão de afirmação, com novas exéquias, de um domicílio
pe p tuo e ade uado pa a o sa to , se do o esultado di eto da
reelaboração de ritos complexos que refletiam a necessidade de
construir um novo lugar de sepultura mais adequado à veneração, algo
que estava diretamente vinculado à devoção popular. 79 Portanto, para
ela foi a pressão popular que movimentou as instituições e, dessa forma,
destravou as amarras que impediam o reconhecimento oficial da
santidade e o estabelecimento de um culto para o fundador dominicano.
Já para Roberto Paciocco a mencionada cerimônia religiosa visava
primordialmente difundir a fama sanctitatis de Domingos como um pré-
requisito necessário para a abertura do processo de canonização, visto
que naquele contexto histórico formou-se uma articulação entre
trasladação e canonização, como duas etapas sucessivas de um mesmo
processo. Nesse caso, as ações realizadas em maio de 1233 permitiriam
articular interesses da cidade de Bolonha, da cúpula da Ordem dos
Frades Pregadores e do papado.80 Essa é basicamente a mesma posição
manifestada por Luigi Canetti, para quem o papa Gregório IX e uma
parcela significativa da Ordem, com o apoio da municipalidade
bolonhesa, decidiram na primavera de 1233 promover abertamente
iniciativas em favor da canonização de Domingos.81
Levando em consideração o que foi argumentado nessa parte do
texto, posso afirmar que a translatio corporis de Domingos de Gusmão
foi um acontecimento histórico e complexo, que demarcou mais um
avanço das ações dirigidas para a causa de canonização daquele
pregador dominicano. Por isso mesmo, nos procedimentos realizados
em maio de 1233 já é possível vislumbrar a participação de diferentes

78 MONTANARI, Elio, Op. Cit., p. 6-8.


79 BORGHI, Beatrice, Op. Cit., p. 37.
80 PACIOCCO, Roberto, Op. Cit., p. 285.
81 CANETTI, Luigi, Op. Cit., p. 24.

149
grupos e instituições, bem como algumas contradições que marcam
justamente o caráter histórico desse projeto coletivo que alavancou e,
posteriormente, sustentou as iniciativas para o reconhecimento oficial
da santidade de Domingos pela Igreja Romana.

Iniciativas para a canonização de Domingos: grupos, ações e


caminhos
A década de 1230, contexto mais amplo dos eventos aqui
identificados, foi o período de consolidação de uma disciplina pontifícia para
os processos de canonização. Normas, procedimentos e critérios foram
estabelecidos pelo papado para que uma pessoa tida como santa pudesse
ser reconhecida oficialmente pela Igreja Romana. 82 A partir de então, o
sucesso de uma canonização dependia mais diretamente do cumprimento
de pré-requisitos, da superação de algumas etapas e, acima de tudo, da
existência de um grupo de suporte para organizar, executar e sustentar uma
série de iniciativas que integravam uma causa de canonização, que poderia
ser longa ou não.
Todos os acontecimentos referidos nas partes anteriores do texto
foram realizados antes da abertura de um processo formal de canonização
para Domingos de Gusmão, o que ocorreu somente em julho de 1233. O
sepultamento do antigo líder dominicano em 1221 e o tratamento dado ao
seu sepulcro durante 12 anos; a existência de devoção junto à sua sepultura;
a exumação de seu corpo e a translatio corporis (ocorridas em maio de
1233), são eventos que podem ser estudados de maneira isolada. Mas
também podem ser abordados de forma articulada como se fossem
diferentes níveis de uma mesma construção, espécies de camadas que se
sobrepõem umas às outras ajudando a formar a base das edificações
posteriores.
Nessa perspectiva, a canonização de Domingos de Gusmão em 03 de
julho de 1234 seria a última camada do edifício, sendo necessário revolver
as camadas inferiores para identificar e analisar suas bases. Assim sendo, ao
abordar os eventos ocorridos desde a sua morte e identificar os grupos mais
diretamente envolvidos, é possível vislumbrar o desenvolvimento de um
projeto coletivo de construção da santidade daquele líder dominicano.

82MATZ, Jean-Michel. Contrôle et discipline du culte des saints au moyen âge. In: LE
GUERN, Philippe (dir.). Les cultes médiatiques: Culture fan et oeuvres cultes. Rennes:
Presses universitaires de Rennes, 2002, p. 46.
150
Pela abordagem realizada até aqui, posso afirmar que Bolonha foi
o centro principal para as iniciativas desse empreendimento coletivo,
embora tenham existido acontecimentos e grupos atuantes fora daquela
cidade italiana que também contribuíram para concluir a edificação. Mas
tudo indica que a reunião de forças e a formação de um grupo de
sustentação para a causa de canonização de Domingos de Gusmão tenha
ocorrido justamente naquela cidade.
Desde 1220, Bolonha passava por um processo de reorganização
social e política, no qual diferentes grupos disputavam entre si mais
espaço de representação no governo local. Aristocratas, mercadores,
cambistas e setores mais populares buscavam de todas as formas
ocuparem cadeiras nos órgãos e nos conselhos do governo, participando
diretamente das decisões citadinas. Esse cenário, caracterizado por
certa instabilidade sociopolítica, ainda era complementado por uma
conjuntura de amplos movimentos sociais de expressão de fé e
espiritualidade que ocorriam paralelamente e, às vezes, integrados ao
campo religioso abarcado pela Igreja Cristã.83
Tal o o te to do e o t o e t e Jo o de Vi e za, o Papa
Gregório IX, Enrique de Fratta, bispo de Bolonha, e os representantes da
Ordem e a cúpula do Estudio, p eludio da a o izaç o de .84 Um
ponto de partida que pode ser complementado pelos fatos explorados
anteriormente no texto, para identificar também a participação de
outros grupos citadinos mencionados nas documentações aqui
abordadas, como o podestá de Bolonha, os cidadãos ilustres
(provavelmente aristocratas) e o grupo de devotos que frequentava o
sepulcro de Domingos de Gusmão.
A participação direta do papa nesse grupo pode causar alguma
estranheza aos olhos contemporâneos, já que seria ele justamente o juiz
a decidir favoravelmente ou não sobre o reconhecimento da santidade
do falecido líder dominicano, após o término do processo de
canonização. Mas certamente não devia gerar grandes surpresas ou
desconfianças naquele contexto histórico, já que o nome de Gregório IX

83 Para um maior aprofundamento do contexto aqui apontado, conferir: HESSEL, Alfred.


Storia dela città di Bologna dal 1116 al 1280. (A cura di Gina Fasoli) Bologna: Edizioni
ALFA, 1975; CAPITANI, Ovidio (Org.). Bologna nel Medioevo. Bologna: Bononia University
Press, 2007. (Storia di Bologna, 2).
84 BORGHI, Beatrice, Op. Cit., p. 24-25.

151
é mencionado explicitamente nas fontes como alguém que conheceu
Domingos de Gusmão e manteve com ele relações fraternais, sendo
inclusive apontado como a autoridade eclesiástica a conduzir e/ou
autorizar ritos/cerimônias solenes que contribuíram para o projeto de
construção da santidade aqui investigado. Portanto, não houve
nenhuma precaução ou intenção em apagar nos documentos a
participação do pontífice nos eventos, ao contrário isso é algo destacado.
Jordão da Saxônia, por exemplo, registra na mencionada carta
encíclica de 1234, que Gregório IX, quando ainda era bispo de Ostia, foi
o celebrante da missa de sepultamento de Domingos em 1221, tendo
ele ainda autorizado a translatio corporis de maio de 1233 e enviado o
arcebispo de Ravena (acompanhado de bispos sufragâneos) para
conduzir a cerimônia religiosa naquela ocasião, como seus
representantes diretos, conferindo ao evento um caráter solene e
canônico.85
A participação do pontífice romano como um dos promotores da
causa de canonização do líder dominicano também foi evidenciada pela
historiografia. Giulia Barone ressalta o envolvimento do papa Gregório
para garantir a solenidade da trasladação de Domingos, bem como o seu
apoio e favorecimento à campanha de pregação de João de Vicenza
ocorrida na Itália padana no período de primavera/verão de 1233.86 Por
sua vez, Luigi Canetti chama atenção para o fato de que, ainda na
abertura do processo de canonização, na carta que foi dirigida aos
comissários de Bolonha para iniciar os trabalhos de investigação, o bispo
de Roma já manifestava claramente seu posicionamento favorável à
canonização ao caracterizar o líder dominicano como um novo astro da
Igreja.87
Por outro lado, a participação de integrantes da Ordem dos Frades
Pregadores nas iniciativas e nas ações empreendidas para o
reconhecimento da santidade do falecido mestre dominicano, está bem
evidenciada nas fontes e na historiografia, a começar pelo envolvimento
de Jordão da Saxônia. No testemunho de frei Bonviso de Piacenza ficou

85 Carta Encíclica de 1234, p. 258-259.


86 BARONE, Giulia. Il Papato e i Domenicani nel Duecento. In: Il Papato duecentesco e gli
Ordini Mendicanti. Atti del XXV Convegno Internazionale (Assisi, 13-14 febbraio 1998).
Spoleto: Ce t o Italia o di Studi sull Alto Medioe o, , pp. -103, p. 94.
87 CANETTI, Luigi, Op. Cit., p. 21.

152
registrada a iniciativa do mestre geral da ordem em fazer a ostentação
da cabeça de Domingos de Gusmão aos frades que não compareceram
à cerimônia da translatio corporis.88 Algo que foi problematizado por
Roberto Paciocco porque esse procedimento era claramente vetado
pelas normas eclesiásticas emanadas do IV Concílio de Latrão e que
posteriormente foram agregadas nas Decretais de Gregório IX.89 Por isso,
o envolvimento de Jordão nesse episódio pode ser interpretado como
uma iniciativa arriscada, mas que faria sentido como parte de um projeto
maior que visava o reconhecimento oficial da santidade de Domingos, já
que o evento conferiu uma repercussão mais ampla para a trasladação
realizada alguns dias antes.
É necessário frisar ainda outras ações de Jordão da Saxônia, que servem
para complementar esse quadro de iniciativas institucionais realizadas de sua
parte para a referida canonização. Foi ele também o autor intelectual de
documentos e textos que serviram de base para a construção da santidade de
Domingos. Tal como a carta encíclica que ele escreveu e enviou para os conventos
dominicanos, apresentando a sua versão para os eventos que resultaram na
translatio corporis, com o intuito claro de divulgar ao máximo os acontecimentos
e ampliar as áreas de possível devoção ao falecido pregador. Além do Libellus de
Principiis Ordinis Praedicatorum, a crônica de sua autoria que apresenta a história
de formação da Ordem dos Frades Pregadores e a trajetória religiosa de
Domingos de Gusmão, focando os últimos capítulos na morte e nos supostos
milagres ocorridos por intermédio do dominicano. Tudo indica que esse livro
circulou inicialmente de forma restrita nos conventos dominicanos e que foi
utilizado posteriormente como evidência documental para dar suporte à causa
de canonização.90
Para além da trasladação e da produção de documentos que
serviram para divulgar e dar suporte a causa de canonização, é possível
também apontar o envolvimento de Jordão da Saxônia na campanha de
pregação que foi realizada por um frade de Bolonha, com o intuito de
difundir a fama de santidade do antigo líder dominicano entre as

88 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 141 [Bonviso de Piacenza].


89 PACIOCCO, Roberto, Op. Cit., p. 285.
90 GOODICH, Michael. The politics of canonization in the thirteenth century: lay and

mendicant saints. In: WILSON, Stephen (Ed.). Saints and Their Cults: Studies in Religious
Sociology, Folklore and History. Cambridge: University Press, 1983. pp. 169-187, p. 178.
153
populações de diferentes cidades italianas.91 Esta iniciativa é uma das
que apontam o grau de planejamento institucional das ações realizadas
nos primeiros anos da década de 1230 com vistas ao reconhecimento
oficial da santidade.
Jordão da Saxônia, pela posição que ocupava na hierarquia da
ordem, foi um dos dirigentes das ações que foram realizadas naquele
contexto. Mas não foi o único integrante da Ordem dos Frades
Pregadores que participou desse empreendimento coletivo de
o st uç o da sa tidade. Segu do Mi hael Goodi h, o o i e to pa a
ter o fundador Domingos canonizado aparentemente teve sua origem
em Bolonha, sob o patronato de João de Vicenza, Estevão da Lombardia,
Ventura de Bolo ha e out os do i i a os i ulados u i e sidade .92
João de Vicenza era frade dominicano do convento de São Nicolás,
e não era oriundo dos grupos mais abastados da cidade de Bolonha, já
que era filho de um advogado, uma profissão liberal que ainda não
detinha a valorização social adquirida posteriormente. A sua atuação
como pregador fez com que ele ganhasse algum prestígio junto à
população bolonhesa, pois os temas mais recorrentes em seus discursos
eram bastante caros aos setores mais populares da cidade: ele se dirigia
contra os usurários, defendia a libertação de prisioneiros por dívidas e
um relaxamento da legislação que regulava esse domínio dos
empréstimos. 93
Esse pregador dominicano é apontado no inquérito de Bolonha e
na historiografia como um dos artífices que ajudaram a construir a
santidade de Domingos de Gusmão. É o que aparece registrado no
testemunho de frei Estevão de Espanha, que destaca a atuação de frei
João de Vicenza como aquele que anunciou ao povo a vida, a fama e a
santidade de Domingos através de uma pregação que tinha ares de
revelação divina.94 Aspecto que aparece reforçado na abordagem de
Roberto Paciocco, ao destacar que o culto ao fundador dominicano se
desenvolveu inicialmente em uma zona circunscrita que coincidia

91 BARONE, Giulia, Op. Cit., p. 94.


92 GOODICH, Michael, Op. Cit., p. 178.
93 VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233. L'action

politique des Ordres Mendiants d'après la réforme des statuts communaux et les accords
de paix. Mélanges d'archéologie et d'histoire, v. 78, n. 2, pp. 503-549, 1966, p. 506.
94 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 158 [Estevão de Espanha].

154
exatamente com a área abarcada pela atividade religiosa do referido
f ade, se do a p egaç o o eio utilizado pa a a difus o da sa tidade do
fundador dos Dominicanos e da própria afirmação de uma fama
sanctitatis i dispe s el pa a o i í io do p o esso .95
O envolvimento desse frade dominicano nas inciativas para a
canonização de Domingos também pode ser alvo de alguma contradição.
André Vauchez, de sua parte, destaca a atuação de João de Vicenza para
além da campanha de pregação mencionada, apontando-o como o
verdadeiro artífice da translatio corporis ocorrida no convento de São
Nicolas.96 Já Michael Goodich, por outro lado, ressalta que o referido
frade chegou a ser alvo de devoção popular e que acreditava ser capaz
de realizar milagres sem o intermédio da divindade, o que lhe valeu uma
reprovação da parte de seus próprios companheiros dominicanos. Ao
invés de se constranger, frei João teria respondido com uma ameaça
di eta: assi o o ele ti ha e altado S o Do i gos, ujos ossos ti ha
sido esquecidos em Bolonha por doze anos após sua morte até a
canonização em 1233, então ele poderia [...] difamar o santo e as obras
dos Do i i a os .97
Além do pregador de Vicenza, Estevão de Espanha e Ventura de
Verona tiveram participação ativa no projeto. Ambos atuaram como
testemunhas no processo de canonização iniciado em julho de 1233 e,
na época, ocupavam funções de comando no âmbito da Ordem dos
Frades Pregadores: Estevão era prior provincial da Lombardia e Ventura
era o prior do convento de São Nicolás. O simples fato de figurarem no
seleto grupo de frades que participaram como testemunhas no processo
já é um indício do seu envolvimento nas iniciativas em favor da
canonização do falecido líder, pois apenas nove pessoas foram
interrogadas pela comissão pontifícia na investigação conduzida em
Bolonha. O contraste fica ainda mais nítido quando se compara ao grupo
de pessoas interrogadas em Toulouse, sendo 27 diretamente
identificadas, além da referência a outras 300 testemunhas que teriam
sido ouvidas. Por isso, tudo indica que o inquérito realizado em Bolonha
foi controlado mais de perto pelos dominicanos e as testemunhas
selecionadas com cuidado.

95 PACIOCCO, Roberto, Op. Cit., p. 280.


96 VAUCHEZ, André, Op. Cit., 516.
97 GOODICH, Michael, Op. Cit., p. 178.

155
No caso de frei Estevão os próprios testemunhos do processo de
canonização podem apontar algumas ações suas, como indiquei nas
partes anteriores deste texto. Ele mesmo, em seu testemunho, afirma
ter sido o responsável por estabelecer o dia e o modo de trasladar o
corpo de Domingos de Gusmão, além de ter participado diretamente dos
procedimentos de exumação e transporte para o novo sepulcro.98 Já frei
Guillerme de Montferrat afirma que o mencionado prior provincial teria
se mobilizado, junto com os frades de São Nicolas, para impedir a
presença de estranhos no dia da exumação, mas não obtiveram êxito
nessa empreitada.99 Por fim, o próprio frei Ventura coloca Estevão ao
lado de Jordão da Saxônia naquele episódio de reabertura do sepulcro e
ostentação da cabeça de Domingos aos demais frades dominicanos,
alguns dias após a realização da translatio corporis.100
Elio Montanari identifica frei Estevão como o principal organizador da
trasladação realizada em maio de 1233 e como o líder do grupo de frades que foi
a Roma solicitar a autorização do pontífice para a cerimônia religiosa.101 Portanto
a historiografia também destaca a participação do prior provincial da Lombardia
nas iniciativas favoráveis à canonização de Domingos, com um protagonismo que
parece concorrer com a posição de liderança de Jordão da Saxônia no âmbito da
Ordem dos Pregadores.102
Por sua vez, frei Ventura não aparece sendo destacado pelos
demais testemunhos do inquérito de Bolonha, mas figura como o
primeiro a ser transcrito nas atas e o conteúdo de sua fala é, sem sombra
de dúvidas, o mais longo e detalhado do documento. O que me leva a
interpretar que o seu testemunho foi o mais valorizado pela comissão
pontifícia que conduziu os trabalhos, além de servir de base para a carta
encíclica de Jordão da Saxônia, como eu ressaltei anteriormente.
Em outro grupo de atuação aparece o podestá bolonhês,
ocupante do mais alto cargo de governo da cidade, que é mencionado

98 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 159 [Estevão de Espanha].


99 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 136 [Guilherme de Montferrat].
100 Acta Canonizationis S. Dominici, p. 131 [Ventura de Verona].
101 MONTANARI, Elio, Op. Cit., p. 15.
102 Análises e hipóteses para explicar a concorrência de poder e as divergências entre

Jordão da Saxônia e Estevão podem ser encontradas em : PORTO, Thiago de Azevedo,


op. cit., p. 195 et seq; FORTES, Carolina Coelho; SILVA, Andréia C. L. Frazão da. A vida
religiosa feminina e as relações de poder na Ordem dos Pregadores. Horizonte, Belo
Horizonte, v. 15, n. 48, p. 1220-1252, out./dez. 2017. p. 1239 et seq.
156
na maioria dos testemunhos do inquérito italiano. André Vauchez o
identifica como sendo Hubert Visconti e afirma que ele poderia ser um
acompanhante do frade João de Vicenza em seus deslocamentos e
campanhas de pregação pelas cidades de Treviso e Verona, o que seria
uma demonstração de apoio da cidade de Bolonha ao pregador
dominicano por conta do prestígio de sua atuação religiosa e por ele ter
favorecido a comuna como árbitro em um conflito com o bispo da
cidade.103 Por isso é possível lhe conferir um papel de destaque nos
procedimentos de exumação e trasladação do corpo de Domingos em
maio de 1233, por tudo que foi apontado nos testemunhos aqui
evocados, sendo o podestá o principal responsável pela guarda do
sepulcro do falecido mestre dos dominicanos.
Situação mais difícil é analisar o envolvimento das parcelas menos
abastadas da população, assim como dos setores aristocráticos. Quanto
ao primeiro grupo, é apontado como a principal base de devoção a
Domingos logo após sua morte, tanto na historiografia quanto nas fontes
aqui trabalhadas. Mas não vai além disso, aparecendo apenas como uma
massa popular anônima a frequentar o sepulcro para pedir e/ou
agradecer pelos milagres intermediados pelo santo dominicano. Um
caminho a ser ainda explorado é o das manifestações de devoção
popula , ais p e isa e te o o i e to i titulado de G a de
De oç o ou de Alleluja , ue foi a o dado po A d Vau hez o
artigo anteriormente referenciado. Tudo indica que esse movimento
despertou grande interesse da Igreja Romana e das Ordens Mendicantes
que atuavam nas cidades da Itália, porque não teria sua origem nas
práticas e liturgias oficiais, sendo uma manifestação de fervor e de
penitência espontânea dos grupos mais populares.104
Já os setores aristocráticos aparecem identificados nos
teste u hos do p o esso de a o izaç o o o idad os ilust es ue
acompanharam de perto todos os procedimentos realizados em maio de
1233 no convento de São Nicolás, ajudando a montar guarda e garantir
a segurança por mandato do podestá de Bolonha. Mas é preciso ir além,
se possível com a identificação de algumas famílias e das relações
mantidas com os dominicanos, com a igreja local e com o papado, bem

103 VAUCHEZ, André, Op. Cit., p. 541.


104 VAUCHEZ, André, Op. Cit., p. 504.
157
como os seus posicionamentos nas disputas de poder envolvendo o
governo da cidade. Dessa forma será possível encontrar algum sentido
histórico para a participação desse grupo nos eventos aqui explorados.

Encaminhamentos finais
Ao iniciar este texto destaquei que a santidade de Domingos de
Gusmão, oficialmente reconhecida pelo papado em julho de 1234, seria o
resultado de uma construção coletiva, de um empreendimento histórico
não linear, marcado por avanços e contradições. E que para melhor
compreender e analisar esse processo, seria necessário, inicialmente,
abordar de forma singularizada os acontecimentos anteriores à canonização
daquele pregador dominicano.
Foi isso o que eu fiz nas três primeiras partes após a introdução.
Procurei explorar os eventos que antecederam a canonização de Domingos
de Gusmão e que, por isso mesmo, poderiam ser abordados como
diferentes camadas que se sobrepuseram em um mesmo projeto de
construção: o tratamento dispensado ao corpo do fundador dominicano
após a sua morte; a existência de devoção em seu local de sepulcro; a
translatio corporis realizada em maio de 1233 na comunidade dominicana
de São Nicolás. Tais são as camadas que, na minha perspectiva
historiográfica, ajudaram a fundamentar uma base necessária para a
referida construção da santidade.
Na penúltima parte do texto voltei minha atenção para os grupos e
para as instituições que estariam diretamente envolvidas nas iniciativas para
a construção e difusão da santidade de Domingos de Gusmão. Essa foi a
forma de avançar para uma visão de conjunto sobre os acontecimentos que
foram singularizados nas partes anteriores. A realização coletiva dos
eventos aqui brevemente explorados seria justamente um indicativo
histórico do interesse social e político mobilizado pelo estabelecimento de
um culto oficial para o primeiro líder dominicano. Tomando como base o
contexto histórico europeu da primeira metade do século XIII, as mesmas
ações podem ser apontadas como etapas prévias e necessárias para a
abertura de um processo de canonização junto ao papado, o último passo
para o reconhecimento oficial da santidade do fundador dominicano. O que
me leva a pensar, concordando com Paciocco e Canetti, que o papado, a
Ordem dos Frades Pregadores e a comuna de Bolonha tiveram participação
destacada neste empreendimento coletivo.
158
Na minha leitura historiográfica as iniciativas aqui apontadas
faziam parte de uma campanha organizada para viabilizar a canonização
de Domingos, o que efetivamente ocorreu em julho de 1234. Mas isso
não encerra as minhas reflexões e dúvidas sobre o caso. Falta explorar
melhor a resistência inicial dos frades de Bolonha a esse projeto coletivo,
pois é preciso dar espaço aos que foram historicamente silenciados, bem
como apontar as circunstâncias e os motivos que levaram as três
instituições referidas acima a convergirem forças para o mesmo
empreendimento.105

105Este último aspecto, ou seja, as circunstâncias e os motivos que levaram a uma


convergência de forças para a canonização de Domingos foi devidamente contemplado
na minha tese de doutorado, principalmente na conclusão. Cf. : PORTO, Thiago de
Azevedo, Op. Cit., p. 221-231.
159
160
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ALMAS SIMPLES ANIQUILADAS E A
CONDENAÇÃO DA BEGUINA MARGUERITE PORETE (1250-1310)

Danielle Mendes da Costa1

Introdução
Durante a primavera em Paris, no primeiro de junho de 1310,
quinto ano do pontificado do Papa Clemente V, uma multidão se reuniu
na Place de Grève para assistir à execução de uma mulher condenada
por heresia. Um cronista relatou que muitos ficaram comovidos e
hega a s l g i as ao teste u ha e os gestos o es e piedosos
da beguina Marguerite Porete enquanto as chamas da fogueira
consumiam seu corpo ainda com vida.2
Os poucos dados que chegaram até nós sobre esta beguina
nascida em 1250, provavelmente em Valenciennes na região de
Hainaut,3 resumem-se ao seu opúsculo escrito por volta de 1290, O
Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e que permanecem somente na
vontade e no desejo do Amor,4 os autos do seu julgamento e duas
crônicas que mencionam sua morte.5

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ sob


orientação da Profa Dra Andreia Cristina Lopes Frazão da Silva, coordenadora do
PEM/UFRJ, e da Profa. Dra. Ana Paula Lopes Pereira (UERJ/FFP). "O presente trabalho foi
realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
2 Esta descrição sobre a morte de Marguerite Porete consta na crônica de Guilherme de

Nangis. Chronique de Guillaume de Nangis.


Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k946086>. Acesso em: 18 de jun
2015.
3 Localizada ao norte da França, esta região faz fronteira com a Lotaríngia, onde o

movimento beguinal teria surgido.


4 PORETE, Marguerite. Le Miroir des simples âmes anéanties et qui seulement demeurent

e ouloi et d si d a ou . França: Éditions Jérôme Millon, 2001.


5 Os autos do julgamento de Marguerite Porete foram retidos pelos ministros do rei Filipe

IV, o Belo. Atualmente encontram-se no Enxoval do Tesouro Charters (Paris, 1863-1909,


2 v.). Este é o primeiro auto de fé formal conhecido em Paris. Os textos latinos da
consulta canônica, realizada em 30 de maio de 1310, e da sentença de Marguerite Porete
constam no anexo da obra de Charles Lea sobre a História da Inquisição. CHARLES LEA,
161
Considerado o texto mais antigo da literatura mística em francês,
o Espelho foi redigido no estilo verso e prosa, combinando o modelo
literário do amor cortês6 aos gêneros épico e alegórico. Composto por
um prólogo e 148 capítulos, ele possui como tema principal a
annihilation.7 Através da personagem Amor, Porete alude às três mortes
que a Alma deve transpor – a do pecado, a da natureza e a do espírito –
percorrendo sete estados fundamentais em um processo de ruptura dos
vínculos que impediriam o exercício da verdadeira humildade e do
encontro com a divindade.
Apesar dos esforços dos inquisidores em destruir o Espelho, que
foi queimado em praça pública por duas vezes, proibido de ser lido pela
Igreja, sob pena de excomunhão e confiscado em toda Europa até o
Renascimento, ele sobreviveu. Além de uma cópia da versão em médio-
francês, foram preservados seis manuscritos em latim, três em médio-
inglês e quatro em italiano. Encontrado em Viena no ano de 1876 por
Francesco Toldi, o opúsculo foi atribuído inicialmente à beata Marguerite
de Hungria, porém, graças aos estudos de Romana Guarnieri sobre o

Henry. A History of the Inquisition in the Middle Age. New York: The MacMillan Company,
1922, v.1, p. 575-578. Disponível em:
<http://www.metaphysicspirit.com/books/A%20History%20of%20the%20Inquisition%2
0of%20the%20Middle%20Ages%20Vol.%202.pdf>. Acesso em 10 mar 2017. Os relatos
sobre a morte de Porete constam no Cronique de Guillaume de Nangis, citado acima, e
em Les Grandes Crhoniques de France.
Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84472995>. Acesso em 10 mar
2017.
6 Estilo que floresceu nos séculos XII e XIII na França, sobretudo na região norte. Nos

poemas de amor cortês os trovadores utilizavam o fine amour para retratar o amor
pe feito e a a ado, e t e u a da a e seu poeta ue a ele a e a se e . RÉGNIER-
BOHLER, Danielle. Amor Cortesão. LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean Claude. Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v.1, p.47.
7 A a i uilaç o a p ti a do o ue e ue o duz a al a ao e o t o e a u i o o
Deus. Neste processo a alma suprime suas vontades, ou seja, os desejos e os medos que
a acompanham, recuperando sua forma original em Deus. Alcançando um estado de
perfeição, a alma transformada em uma essência superior, substitui, então, suas
vontades pela vontade divina. Tornando-se o que Deus é, por meio da graça concedida
por ele, a alma adquire a liberdade. EPINEY-BURGARD, G.; ZUM BRUNN, E. Femmes
Troubadours de Dieu. Belgique: Editions BREPOLS, 1988, p. 185-186.
162
Movimento do Livre Espírito, a autoria de Porete foi descoberta em
1944.8
O cenário do julgamento da beguina Marguerite Porete foi
complexo. A repercussão das novas experiências religiosas
desenvolvidas por mulheres, a partir do ideal de vita apostolica,9 e seu
relativo sucesso suscitaram, em fins do século XIII, as tensões acerca da
pedagogia espiritual e do apostolado feminino. Ao mesmo tempo, uma
tensão acerca das competências dos poderes temporal e religioso
conduziram uma série de conflitos entre o papado e o rei Felipe IV, o
Belo (1268-1314)10. Nesse sentido, a influência das experiências
religiosas femininas, principalmente daquelas que não se encontravam
inseridas na hierarquia eclesial, cujo status era considerado suspeito
como as beguinas, e a interferência laica nos interesses da Igreja,
representavam um grave problema para aqueles que temiam a ruptura
da autoridade hierárquica e do processo de normatização da
cristandade.11 No início do século XIV, estas questões foram tratadas no
Concílio de Viena (1311-1312) na forma da condenação da Ordem do

8 O problema do reconhecimento da autoria se impôs porque no processo verbal que


relata a condenação do opúsculo em 1309, pela comissão de teólogos, não foi
mencionado o nome da autora e do livro. A identificação de Marguerite Porete consta
apenas nas atas de nove de maio de 1310, relativo à sua sentença de morte. A ligação
entre a beguina e o Espelho foi possível pela aproximação entre o primeiro e o décimo
quinto artigos condenados no processo, e os capítulos quinto e décimo quinto do
opúsculo, relativos, respectivamente, ao abandono das Virtudes e o Sacramento do altar.
9 Por meio dos exemplos de Cristo e os apóstolos, muitos homens e mulheres de diversas

categorias sociais vivenciaram uma espiritualidade in saeculo. Os dois aspectos


fundamentais da vita apostolica eram a vida comunitária e a pobreza voluntária.
BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Século XII. Lisboa, Portugal: Edições 70,
1986, p. 22-23.
10 As contendas entre Felipe IV e o papado tiveram início com a arrecadação dos tributos

sobre as rendas do clero sem o consentimento da cúria, durante o período de vacância


da sede romana (1292-1294). Após a morte de Bonifácio VIII, o rei francês teria
influenciado as eleições para a escolha do futuro papa Clemente V (1305-1314) e, na
transferência da sede do papado para a cidade de Avignon (1309-1378). Em meio a estas
disputas, ocorreu o processo contra os Templários. Movida por Felipe IV, a condenação
da Ordem representava a possibilidade do confisco dos seus bens. PAREDES, Javier (org.).
Diccionario de los Papas y Concilios. Barcelona: Editorial Ariel, 1998, p. 233-246.
11 RUST, Leandro D., SILVA, Andrea Cristina L. F da. A Reforma Gregoriana: trajetórias

historiográficas de um conceito. Revista História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, p.


135-152, 2009.
163
Templo e no uso do Espelho para a condenação dos erros doutrinários
do movimento beguinal. Por um lado, buscava-se a legitimidade do
arrendamento dos bens da Ordem, por outro, a repressão contra o
misticismo concebido pelas mulieres religiosae.12 Deste modo, existiria
uma complexa rede de interesses no julgamento desta beguina.13
Quem eram as Almas Aniquiladas? Quais os seus predicados? Que
ameaça elas poderiam representar para a instituição eclesial?
Reconhecendo que o surgimento de movimentos piedosos laicos
transformou e tornou mais complexo os sistemas de valores
sociorreligiosos desta sociedade,14 o presente trabalho tem por objetivo
identificar na pedagogia de Porete os elementos das Almas e suas
práticas, que colocavam em risco a preeminência da Igreja como
mediadora indispensável para a salvação. Para tanto, iniciaremos com
algumas considerações sobre o movimento beguinal e a espiritualidade
das mulieres religiosae. Em seguida, abordaremos as circunstâncias do
julgamento desta beguina. Por fim, optamos pela análise narrativa, 15
utilizando como base a tradução francesa do manuscrito em médio-
francês publicada em 1991.16

12 Esta expressão se refere às mulheres piedosas leigas, principalmente as beguinas.


13 Ancorada nos estudos de Paul Verdeyen sobre o processo de inquirição contra
Marguerite Porete, a hipótese de que sua condenação poderia ter sido uma
oportunidade para Felipe IV agradar ao papa e restaurar a sua reputação de rei cristão é
sugerida no artigo de Dominique de Courcelles. COURCELLES, Dominique de. Marguerite
Porete, une mystique de feu. Lumière & Vie, n. 297, p. 77-89, 2013.
14 PEREIRA, A a Paula Lopes. Deus amicitia est . Ca idade e a izade e pe spe ti a
comparada: as vitae de beatas da diocese de Liége no século XIII face à doutrina da
caridade na patrística e na mística cisterciense. In: SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 10.,
2013. Rio de Janeiro. Atas... Rio de Janeiro: PEM, 2014, p. 9-18. Disponível em: <
http://www.pem.historia.ufrj.br/arquivo/atas_xsemana.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
15 SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões metodológicas sobre a análise do

discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero.


Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n.6, p.194-223, 2002. Sobre os fundamentos
da análise do discurso ver: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no
Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola,
2011.
16 PORETE, Marguerite. Le Miroir des simples âmes anéanties et qui seulement demeurent

e ouloi et d si d a ou . França: Éditions Jérôme Millon, 2001. Esta edição contempla


apresentação e notas da historiadora Emilie Zum Brunn. O manuscrito utilizado é
composto por 119 fólios e encontra-se arquivado em Chantilly, no Musée Condé, sob a
164
O desenvolvimento do movimento beguinal e a espiritualidade das
mulieres religiosae nos séculos XII-XIII
Conforme apontado por Brenda Bolton,17 as transformações
estruturais da sociedade Medieval Ocidental nos séculos XI e XII
permitiram uma renovação espiritual e religiosa caracterizada pela
participação de leigos que seguiam a vita apostolica, pregavam e liam as
Escrituras. Durante esse processo, a propagação de uma espiritualidade
penitencial atrelando amor e contrição no caminho da salvação
contribuiu para o desenvolvimento da religiosidade feminina. Dentre os
movimentos femininos laicos que tiveram início no século XII, e se
alastraram pelo norte da França no século XIII, destaca-se o movimento
beguinal.
As beguinas seriam herdeiras de um pequeno grupo denominado
licoisae, sobre o qual os historiadores sabem pouco. Iniciado
provavelmente na diocese de Liège e nas áreas do Brabante e de
Flandres, denominadas pelos contemporâneos de Lotaríngia, os
estudiosos reconhecem que o movimento beguinal teria se originado ao
redor de Maria de Oignies (1177-1213).18 As beguinas eram mulheres
adultas celibatárias ou viúvas, que optavam entre uma vida religiosa
individual ou comunitária, associando a prática de caridade, o trabalho
manual e a prece. Não faziam votos de pobreza e podiam dispor
livremente de seus bens e deixar esta vida para se casarem. Segundo
Schmitt,19 mesmo que elas mantivessem um laço estreito com seus

referência XIV F 26 (Catologue, nº 157). A tradução para o português das citações no


corpo do nosso trabalho é livre. Em nota colocaremos a referência no idioma original.
17 BOLTON, B. Op. Cit. p. 23.
18 Jacques de Vitry (1160-1240) escreveu a Vita de Maria de Oignes. Atraído pela fama e

a vontade de se identificar com o trabalho da beguina, foi conhecê-la e, depois, por


influência da própria Maria, tornou-se o seu confessor. Jacques se referia a ela como sua
matter spiritualis. Após solicitar o reconhecimento das beguinas na corte pontificial, o
cardeal conseguiu, em 1233, uma autorização de Gregório IX para que as mulieres
religiosae vivessem em comunidades. Ibidem, p. 103-109.
19 SCHMITT, Jean-Claude. La Mo t d u e h sie: L Eglise et les le s fa e au gui es et
aux béghards du Rhin supérieur du XIVe au XVe siècle. Paris: Mouton, 1978.
165
confessores ou diretores espirituais (cistercienses, franciscanos ou
dominicanos) eram vistas por alguns contemporâneos com suspeitas.20
O movimento foi um fenômeno urbano e para controlá-lo os
bispos permitiram a constituição de grandes conventos denominados
beguinarias.21 Estes estabelecimentos possuíam um ato de fundação
com normas que determinavam o modo de vida das mulieres religiosae.
Até meados do século XIV, as mulheres provenientes de famílias nobres
eram predominantes nesses asilos. Portanto, era comum que as
beguinarias possuíssem bens oriundos do seu fundador e das doações
correspondentes às heranças deixadas por nobres e burgueses.22
Direcionadas ao trabalho caritativo, as fundações se ocupavam dos
cuidados com os moribundos, da alimentação dos pobres e da visita aos
doentes. Além disso, as beguinas realizavam trabalhos manuais, cuja
venda da produção não pode ser considerada uma atividade econômica.
Inscritos nas normas das casas estas tarefas estavam condicionadas às
atividades espirituais. Em relação a mendicância, apesar da proibição
nesses documentos, algumas beguinas o fizeram como uma forma de
penitência.23
Para Zunn Brum24 as aspirações espirituais das beguinas
desempenharam um papel importante no acesso dos leigos no

20 Embora a tipologia social do movimento ainda seja tema de debate, Schmitt aponta
que as suspeitas de heterodoxia recaíam, geralmente, sobre as beguinas que optavam
por seguir uma vida isolada e itinerante, formada por dois ou três membros. As beguinas
que pertenciam às comunidades, dispondo de uma direção espiritual regular, possuíam
maior segurança e proteção quanto a possíveis persecuções. Ibidem, p. 44-45.
21 As beguinarias eram um complexo de edifícios que podiam abrigar centenas de

mulheres, como as de Bruges ou Ghent (Bélgica). Nestes locais, cada beguina possuía
uma casa, mas compartilhavam uma capela, um cemitério e viviam sob a orientação
espiritual de um padre para cuidar de suas almas, celebrar missas, ministrar os
sacramentos e a confissão. BOLTON, B. Op. Cit., p. 104.
22 Segundo Schmitt, estas doações eram destinadas às oferendas, velas e rezas após a

morte do beneficiente. Deste modo, as beguinas ofereciam assistência nas missas


celebradas pela alma e nas funções funerárias. Também dividiam os bens mobiliários
doados com outras instituições (ordens beneficentes, hospitalares ou conventos) e com
igrejas paroquiais, que as auxiliavam na realização de algum trabalho. SCHMITT, J-C. Op.
Cit, p. 45-48.
23 A realização de trabalhos manuais e a mendicância foram posteriormente utilizados

pela instituição eclesial na acusação contra as beguinas, ao defender que estas mulheres
subtraíam as esmolas dos verdadeiros necessitados. Ibidem, passim.
24 EPINEY-BURGARD, G.; ZUM BRUNN, E. Op. Cit. p. 86.

166
o he i e to das Es itu as e da teologia, [...] o s po eio da
pregação e livros de oração, mas graças às traduções e escritos em língua
e ula .25 Sobre o aspecto doutrinário, o misticismo beguinal
deseja a [...] t a s e de -se e fundir-se com Deus em uma união
mística que exclui qualquer intermediário (sine medio .26 Isso
minimizava a necessidade de se recorrer à hierarquia eclesiástica e
reduzia o exercício das virtudes a um estágio preliminar imperfeito que
as almas deveriam se libertar.
A característica principal nos escritos das beguinas foi seu caráter
experimental por meio de um misticismo de Amor (Minemystik) e
místico especulativo (Wesenmystik). O misticismo de amor foi expresso
por meio de uma linguagem do corpo e literária. A linguagem do corpo
pode ser identificada pelos jejuns penitenciais voluntários, a distribuição
de alimentos aos necessitados e uma devoção ao corpo e ao sangue de
Cristo. Já a linguagem literária se deu ao associarem a cultura religiosa
e leiga (fins amours) na tradução de suas experiências em busca de Deus
sob a condição de um Amor eterno.
Sobre o aspecto do misticismo especulativo, o movimento
beguinal foi influenciado, sobretudo, pela doutrina de Guilherme de
Saint-Thierry (1085-1148), cuja teologia trinitária marcou uma relação
estreita entre a vida trinitária e a vida espiritual dos homens. Para
explicar a consonância da alma com Deus, o abade cisterciense utilizou
a e p ess o [...] to a -se o ue Deus [...] .27 Considerando que só o
amor é capaz de acessar as sutilizas de Deus (que não podem ser
captadas com a razão) ele admitiu que o próprio amor era um
o he i e to, afi a do ue A az o o pode ver Deus, senão o que
Ele não é, enquanto o amor está disposto a repousar-se o ue ele .28

25 [...] non plus seulement à travers les prédications et les livres de prière, mais grâce à
des traductions et à des écrits en langue vulgaire. Ibidem, p. 13.
26 [...] se fondre en Dieu dans une union qui exclut tout intermédiaire (sine medio) .

Ibidem, p. 9.
27 [...] devenir ce que Dieu est [...] . Segu do Zu B u , to a -se o ue Deus u a
expressão da doutrina de deificação tradicional dos Padres gregos, onde a assimilação
de Deus u a u i o a [...] u it d esp it [...] . Ibidem, p. 17.
28 La aiso e peut oi Dieu si e est e e u Il est pas, ta dis ue l a ou o se t
se epose e e u Il est . Guillaume de Saint-Thierry. De natura et dignitate amoris.
apud EPINEY-BURGARD, G., ZUM BRUNN, E., Op.Cit., 1988, p. 18.

167
Deste modo, o ideal proposto pelas mulieres religiosae é
justamente o amor nobre e orgulhoso que aceita as provações impostas
por Deus sobre a figura da Dama Amor, assim como o cavaleiro aceita as
provas de sua senhora no romance cortês.
Simbolizando a relação entre a alma e Deus, os escritos das
beguinas tratam, portanto, de um retorno da alma à sua relação original
com Deus. No entanto, para que isso seja possível, a alma deve ser
a i uilada pa a se to a o ue Deus . Ou seja, ega do o que deseja,
a alma passa a não desejar, assim ela será aniquilada podendo recuperar
o seu estado natural em Deus quando não estava separada dele, para
[...] to a -se o que ela [...] .29 Esta superação da alma foi expressa em
termos da mística negativa, segundo a tradição do Pseudo-Dionísio, o
Aeropagita. Esse é o tema principal do Espelho de Marguerite Porete,
quando descreve o estado das almas aniquiladas que vivem na vontade
do Amor.

O julgamento de Marguerite Porete


O primeiro processo diocesiano contra o Espelho teria sido aberto
entre 1296 e 1306. Acusada de heresia pelo Bispo de Cambrai, Dom Guy
de Colmieu, Marguerite Porete recebeu uma advertência, ficando
proibida de ensinar e escrever. Na ocasião, o seu opúsculo foi queimado
em praça pública de Valenciennes e sua leitura proibida, sob pena de
excomunhão. Mas estas sentenças não conseguiram deter esta beguina
em disseminar a sua doutrina do amor puro.30
Esforçando-se para conseguir aprovação de sua pedagogia,
acrescentou o capítulo Aprobatio,31 contendo o parecer de três
autoridades religiosas.32 No entanto, apesar de considerarem as práticas
descritas em honra de Deus e em benefício dos seus servos, dois deles
aconselharam que poucos o vissem. A alegação do franciscano John de

29 [...] de e i e u Il est [...] . Ibidem, p. 21.


30 COURCELLES, D. Op. Cit., Cf. nota 10.
31 O capítulo final Aprobatio consta apenas nas versões em latim, italiano e no inglês

medieval.
32 Os três clérigos foram o franciscano John de Quaregnon, o cisterciense Dom Franco da

abadia de Villers (monastério reconhecido pela direção e suporte oferecidos às beguinas)


e o teólogo secular Godfrey de Fontains – renomado filósofo escolástico, doutor da
Universidade de Paris entre 1285 a 1306, falecido três anos antes do julgamento de
Porete. COURCELLES, Op. Cit. p. 81.
168
Quaregnon e do mestre Godfrey de Fontains era a de que o livro, por ser
tão elevado e de difícil compreensão, poderia levar as almas mais fracas
ao engano, caso tentassem alcançar o nível da perfeição que ele
descreve.
Em 1308, Marguerite Porete foi levada à presença do sucessor de
Dom Guy de Colmieu, Philippe de Marigny, e acusada pelo Alto
Inquisidor da Província de Lorraine33 de encaminhar sua obra ao Bispo
Jean de Châlons-sur-Marne e proferir suas práticas entre as pessoas
simples. No ano seguinte, Porete foi presa na cidade de Paris e lá
permaneceu até sua morte.
Nesse ínterim, ela se recusou a responder às questões que lhe
foram feitas e até mesmo de prestar os juramentos necessários à sua
inquirição. No dia onze de abril de 1309, uma comissão de 21 mestres
em teologia e direito canônico reunida pelo Inquisidor Geral do Reino da
França, o dominicano Mestre Guillaume Humbert de Paris,34 analisou 15
fragmentos suspeitos extraídos do Espelho. Por unanimidade todos
foram julgados heréticos e Porete mantida presa por um ano e meio,
período legalmente concedido aos réus para a sua reflexão.35
Um ano após a condenação do Espelho, foi realizada uma nova
consulta aos teólogos. Na reunião preparatória de março de 1310, 11
autoridades que haviam participado anteriormente compareceram. Na
consulta de três de abril, como Marguerite Porete demonstrava-se
o tu az e e elde 36 e considerando-a merecedora da condenação
de herege, o conselho apresentou uma deliberação na qual, caso ela não
se arrependesse antes ou depois da sentença, seria entregue à

33 A jurisdição desse inquisidor abrangia os condados de Hainaut e Cambrésis.


34 Confessor do rei Felipe IV, ele também esteve à frente do processo contra os
templários.
35 Não consta nos autos do processo se a comissão de teólogos teve acesso à obra

completa ou julgaram os artigos isoladamente. Segundo Zum Brunn a análise de


fragmentos fora do seu contexto era frequente nos tribunais eclesiásticos da Idade
Média. Isso poderia explicar em parte a contradição do julgamento do opúsculo pela
comissão e a aprovação dos três clérigos igualmente competentes, que teriam lido e
entendido o Espelho. ZUNN BRUM, Op. Cit., p. 175-176. No mesmo ano, alguns teólogos
deste grupo também participaram do processo aberto contra o grão mestre e os altos
dignatários da Ordem do Templo na cidade de Paris. COURCELLES, D. Op. Cit., p. 85.
36 Esses adjetivos foram utilizados na condenação para descrever sua relutância em fazer

o juramento da verdade e responder os inquisidores. CHARLES LEA, Op. Cit., p. 576.


169
autoridade secular. A segunda deliberação contra Porete, apresentada
em nove de maio, relatava como ela havia se recusado a comparecer
diante do inquisidor Guillaume Humbert, a prestar o juramento da
verdade, a responder suas questões e como havia desobedecido à
advertência do Bispo de Cambrai. Por fim, declarada herege relapsa,
Marguerite Porete foi entregue ao braço secular e no dia 31 de maio, em
uma cerimônia pública, foi sentenciada à morte na fogueira.37
Após alguns meses as questões teológicas tratadas no Espelho
foram levadas ao Concílio de Viena. Nele, a proibição da doutrina dos
beghardos38 e beguinas se baseou na descrição de oito erros, cujas
práticas estavam relacionadas ao estado de liberdade das Almas
Aniquiladas.39 A partir de então, a alma liberada do opúsculo foi
associada à doutrina do Espírito Livre.40 Entretanto, é difícil estabelecer
uma relação direta entre estas duas inspirações teológicas, mesmo que
o processo do beghardo Guiard de Cressonessart tivesse exercido uma
influência contra Marguerite Porete.41 Diante das suspeitas, a partir de

37 Apesar de sua condenação, no Les Grandes Crhoniques de France Porete foi citada
como uma beguine clergesse e en clergie mult sufissent. Nesse sentido, ela foi
considerada um especialista da fé cristã. Cf. COURCELLES, Op. Cit., p. 78.
38 O movimento beguinal também continha uma ala masculina denominado berghardos.

No entanto, eles se desenvolveram somente a partir de 1292, e estiveram em menor


número se comparado as mulheres. SCHMITT, Op. Cit., p. 41.
39 Os erros descritos no decreto vinte e oito, correspondiam à interpretação da doutrina

de Porete. Dentre elas estavam a noção de que as almas após alcançarem um estado de
perfeição não poderiam pecar, não teriam mais a necessidade de jejuar ou rezar e que,
ao atingir a liberdade, não estariam sujeitas aos mandamentos da Igreja. Concílio de
Viena (1311-1312). Disponível em: http://www.dailycatholic.org/history/15ecume1.htm
40 O papa João XXII (1316-1334) publicou o decreto Ad nostrum relacionando a heresia

do Espírito Livre ao decreto vinte e oito do Concílio de Viena sobre as beguinas. Cf.
COURCELLES, op. cit., nota 10, p. 85. Segundo Zerner o movimento do Espírito Livre foi
iniciado pelo mestre parisiense Amauri de Bène (?-1207) no início do século XIII. Suas
mensagens foram alimentadas pelas profecias de Joaquim de Fiori (1135-1202), que
anunciava a chegada da Idade do Espírito, quando as formas sacramentais instituídas
pela Igreja deveriam ser ultrapassadas. ZERNER, Monique. Heresia. LE GOFF, Jacques;
SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc,
2006, v.1, p. 516.
41 No fim de 1308, por ordem do inquisidor Guillaume Humbert de Paris, foi preso Guiard

de Cressonessart, um bergardo da diocese de Beauvais, que anunciou publicamente ser


defensor e partidário de Marguerite Porete. No documento da consulta aos teólogos
datado de três de abril de 1310, os canonistas chegaram à conclusão que Porete e
Cressonessart tratavam-se de dois casos justapostos (teriam a mesma inspiração
170
meados do século XIV, muitas beguinas foram condenadas ou obrigadas
a se integrarem numa ordem, levando gradualmente à
institucionalização do movimento.

As Almas Aniquiladas: um reflexo do Espelho


Assim como outras obras intituladas Speculum que apresentavam
uma imagem ideal, um modelo a ser seguido durante a Idade Média, o
Espelho das Almas Simples e Aniquiladas pode ser concebido como um
dispositivo didático. Segundo Zum Brunn, a palavra espelho possui uma
conotação visual forte e permite não só admirar uma realidade, mas
também se aproximar dela. Nesse sentido, ao convidar uma
aproximação com Deus, o opúsculo oferece uma transformação e a
assimilação do objeto contemplado, pois, como havia anunciado são
João aos eleitos bem-a e tu ados, Po ue e os Deus, s se e os
se elha tes a ele .42
Como vimos anteriormente, na obra a protagonista é a dama
Amor.43 Por meio desta personagem Marguerite Porete ensina o
caminho gradual para a libertação da alma e do seu encontro místico
com Deus.44

espiritual) e não justificados (devido suas posturas diferentes). Enquanto Cressonessart,


um visionário influenciado por visões apocalípticas, não resistiu às investidas dos
inquisidores e acabou declarando ser o Anjo da Filadélfia (Ap 3, 7-13) enviado por Deus;
Porete não esmaeceu, permanecendo fiel à doutrina que defendia no Espelho. Por ter se
retratado, o begardo foi condenado a prisão perpétua. Apesar do episódio singular, a
falta de dados sobre o bergardo e suas inspirações não nos permite estabelecer uma
relação com os ensinamentos de Porete. Cf. MARIANI, Ceci Maria C. Baptista. Marguerite
Porete, te loga do s ulo XIII. E pe i ia ísti a e teologia dog ti a e O Espelho das
Al as si ples de Ma gue ite Po ete. São Paulo, SP: PUC, 2008, p. 15 e 16..
42 Parce que nous verrons Dieu, nous lui serons semblables . Cf. EPINEY-BURGARD, G.;

ZUM BRUNN, E., Op. Cit., p. 181.


43 No capítulo XXI, a dama Amor admite que é Deus, porque Deus é amor. Portanto, para

ep ese ta Deus esta pe so age , Po ete se aseou a oç o de ue [...] Deus


a o , e ue est e a o est e Deus, e Deus ele. Jo o : .
44 Durante este percurso, Amor mantém diálogos com diferentes personagens, entre eles

a Santa Igreja, a Grande, a Santa Igreja, a Pequena, a Fé, o Temor, a Cortesia, a Discrição,
as Virtudes, a Tentação e a personalizações da divindade como o Espírito Santo, a
Verdade e Deus, o Pai. Mas, suas principais interlocutoras são a Alma, que dá o
testemunho do aniquilamento, e a Razão, que ouve os seus ensinamentos. Esta última,
representaria a própria ratio, concebida pelos pensadores cristãos como uma faculdade
mental, que possibilita o homem adquirir o conhecimento, por meio do seu exercício.
171
A o - Te sete estados de o e o diç o dos uais a
iatu a e e e seu se , se ela a t disposiç o de
ada u deles, a tes de hega pe feiç o de seu se ;
s a os fala so e o o, a tes de te i a este
li o.45

Devido à natureza do Espelho, optamos pela análise da narrativa


para examinar e cruzar as informações dos discursos dos seus
personagens. Isso nos permitiu identificar e compreender o papel das
Almas Aniquiladas no complexo sistema de representações da doutrina
do amor puro de Porete.
Para apresentar as almas aniquiladas e descrever como elas
vivem, incialmente a dama Amor expõe os principais mandamentos da
Santa Igreja, quais sejam, amar a Deus sobre todas as coisas e por nós
sem desejar recompensas, mas a vontade de Deus e, amar o próximo
como a nós mesmos. Além disso, dá o exemplo de Jesus Cristo, que
aconselha aos que procuram a perfeição das virtudes a permanecerem
a e dadei a a idade e a desfaze e -se dos bens:
A o - E t o, a os o eça o os a da e tos da
Sa ta Ig eja pa a ue todos possa ti a seu ali e to
este li o o a ajuda de Deus, ue os o de a a a -
lo o todo o o aç o, toda a al a e toda a ossa fo ça;
e s de e os, e ao osso p i o o o a s es os.
[...] Note-se a ui o e e plo do apaz ue disse pa a Jesus
ue ele ha ia gua dado os a da e tos desde a sua
ju e tude. E Jesus disse-lhe, u a oisa ue o de e
faze se o ue se pe feito. A ui est : ai e e de
tudo o ue te s e d aos po es, e seguida, siga- e, e
o te u tesou o o u. Este o o selho da i tude
pe feita. Que se a te esse o selho pe a e e
a e dadei a a idade. 46

45 Amour - Il y a sept états de noble condition desquels la créature reçoit son être, si elle

se tie t dispositio de ha u d eu , a a t de pa e i la pe fe tio de son être; nous


ous di o s o e t a a t ue e li e e s a h e. . PORETE, Op. Cit., nota 16, p. 41.
46 Amour – Nous commencerons donc par les commandements de la Sainte Eglise afin

ue ha u puisse p e d e sa ou itu e e e li e a e l aide de Dieu, lequel nous


o a de de l ai e de tout ot e oeu , de toute ot e e et de toute ot e fo e; et
nous-mêmes, ainsi que nous le devons, et notre prochain comme nous-mêmes. [...] Notez
i i l e e ple du jou e eau uidit J sus-Ch ist u il a ait ga d es commandements
dès son enfance. Et Jésus-Christ lui dit: une chose te faut faire, si tu veux être parfait. Voici:
va et vends toutes les choses que tu as et donne les aux pauvres, et puis suis-moi, et tu
172
Em seguida, observando o ensinamento das Escrituras, Amor
afirma que a Caridade não obedece a ninguém, nada teme e nada retém
na expectativa de quanto mais se doa, mais permaneça nela.47 Aqueles
que vivem na caridade perfeita seriam mortificados pela obra da
caridade. Desta forma, a caridade perfeita seria experimentada numa
ida de paz da a idade a ida a i uilada . No apítulo V – Da vida que
se chama paz da caridade na vida aniquilada48– esta personagem
ressalta que nesta vida podemos encontrar:
[...] -u a al a/- ue se sal a pela f se as o as,/- ue
seja s o a o ,/- ue o faça ada pa a Deus,/- ue o
dei e ada a faze po Deus,/-a ue ada pode se
e si ado,/-de ue ada pode se ti ado,/- e dado/-e
ue o possui o tade.49

Após revelar que esta alma não deseja nada que venha de um
intermediário e, por isso, não busca o conhecimento divino entre os
mestres do mundo, a dama Amor descreve como a alma se despede das
Virtudes. Em seguida, Amor diz o quanto a alma aniquilada é nobre, não
possui mais vontade própria e a nomeia por 12 nomes:
A uito a a ilhosa./A des o he ida./ A ais i o e te
das filhas de Je usal ./ A uela a ual toda Sa ta Ig eja
se aseia./ A ilu i ada de o he i e to./ Vestida de
a o ./ O lou o a i ado./ A a i uilada e todas as
oisas pela hu ildade./ A pa ifi ada o se di i o po
o tade di i a./U a ue o faz ada al da o tade
di i a./A o luída e ealizada se ual ue falha a
o dade di i a, pela o a da Sa tíssi a T i dade./Seu
últi o o e : Es ue i e to de si.50

auras trésor aux cieux. C est le o seil de pa faite e tu. Qui s tie d ait ie de eu e ait
en vraie charité. . Ibidem,., p. 42.
47 Nesta passagem como em muitas outras Porete desenvolve a noção de que Deus é

Amor e Caridade, conforme 1 Cor 13, 4-7.


48 De la ie ui s appelle pai de ha it e ie a a tie . Ibidem,., p. 44.
49 [...] – une âme /- qui se sauve par la foi sans oeuvres,/-qui soit seulement en amour,/-

qui ne fasse rien pour Dieu,/-qui ne laisse rien à faire pour Dieu,/- ui l o e puisse ie
apprendre,/- ui l o e puisse ie a i ,/-ni donner,/-et ui ait poi t de olo t .
Ibidem, p. 44.
50 La très merveilleuse./La non connue./La plus inocente des filles de Jérusalem./Celle sur

ui la Sai te Eglise tout e ti e est fo d e./L illu i e de o aissa e./La pa e


d a ou ./La i e de loua ge./L a a tie e toutes hoses pa hu ilit ./La paisi le e
173
O fato de as almas aniquiladas possuírem apenas a vontade divina,
resultado da união com Deus, evidencia a sua principal característica, da
qual todas as outras derivam, que é não ter mais vontade própria. Apesar
de este tema ser recorrente nos debates entre os personagens,
Marguerite Porete dedicou os capítulos IX – Como estas Almas não tem
ponto de vontade51 –, XII – O verdadeiro entendimento do que este livro
diz em vários lugares, que a Alma Aniquilada não tem ponto de vontade52
– e, LXXIII – Como foi que o espírito morreu para que ele perdesse sua
vontade53 – para desenvolver essa noção. Segundo a dama Amor,
quando a Alma não tem mais vontade, a vontade divina é realizada nela,
pois caso existisse ainda alguma vontade, se distanciaria de Amor.
Vivendo apenas da compreensão, do amor e do louvor, estas almas não
teriam mais a compreensão de si mesmas, por isso ninguém pode viver
a vida divina e encontrar satisfação enquanto tiver vontade.
Conforme vimos anteriormente, essa vontade divina nas almas
está fundamentada na teologia trinitária desenvolvida por Guilherme de
Saint-Thierry, na qual a alma, estando unida à Trindade, só poderia
querer a vontade divina.54 A concordância com os ensinamentos do
mestre cisterciense é manifestada ao longo de toda obra, especialmente
nos capítulos LXXVIII – Como, por operação divina, esta Alma está junta
da Trindade e como ela chama de anos aqueles que vivem do conselho
da Razão55 – e, CVIII – Bela consideração para evitar o pecado56. Neles

divin être par di i e olo t ./Celle ui ie e eut si e est la di i e olo t ./La e plie
et a o plie sa s ulle d failla e de di i e o t , pa l oeu e de la T i it ./So de ie
nom est: Oubli de soi. .Ibidem, p. 52-53.
51 Co e t es A es o t poi t de volonté. Ibidem,, p. 50.
52 Le ai e te de e t de e ue e li e dit e e lieu , ue l A e A a tie a poi t de
volonté Ibidem,, p. 60.
53 Co e t il faut ue l esp it eu e afi u il pe de sa olo t . Ibidem,, p. 151.
54 Em sua tese, Ceci Mariani aponta que foi da Lettre aux Frères du Mont-Dieu de

Guilherme de Saint-Thierry, que Porete desenvolveu a ideia da glorificação da liberdade


do espí ito, uja u idade e Deus i pedi ia de [...] ue e out a oisa ue o seja o
ue Deus uise . MARIANI, Op. Cit., p. 27. Provavelmente, foi na biblioteca da abadia de
Villers, próximo de Valenciennes, que Marguerite Porete teve acesso as obras de
Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint-Thierry e outros textos teológicos.
COURCELLES, D. Op. Cit., nota, p. 6.
55 Comment, par opération divine, cette Ame est jointe à la Trinité et comment elle

appelle ânes ceux qui vivent du conseil de Raison . Ibidem, p. 145.


56 Belle considerátion pour éviter le péché . Ibidem, p. 204.

174
Porete afirma que a alma, por estar tão abandonada, fundida e absorvida
pela Trindade, não poderia querer outra coisa senão a vontade divina,
ou seja, a própria Trindade, por meio dela.
A o - Esta Al a est total e te e t egue, fu dida e
ti ada, pu ada e u ida alta T i dade; e o pode ue e
ada e eto a o tade di i a pela ope aç o di i a da
T i dade i tei a. E u a la eza e u a luz e a tado a se
ju ta ela e a p essio a de pe to. [...].57

Luz da Al a - Co side e os, pa a elho o p ee de ,


esta ue a o tade de Deus. Esta a T i dade toda
i tei a ue so e te u a o tade. A o tade de Deus
a T i dade, u a atu eza di i a. [...].58

A principal consequência desta perfeita comunhão da alma com a


Trindade diz respeito ao seu estado de liberdade. Esta condição é
anunciada pela primeira vez no capítulo VI – Como a Alma amante de
Deus, vivendo na paz da caridade, se despede das Virtudes59 –, quando
as almas aniquiladas testemunham como se despediram das Virtudes,
pois a cortesia de amor as libertou.
Al a – Eu os o fesso, da a A o : hou e u te po
e ue eu e a assi , as ago a h out o; ossa o tesia
e li e tou de sua se id o. E t o posso ago a dize a
eles e a ta : Vi tudes, e despeço de o s pa a
se p e,/Eu ou te u o aç o ais f a o e feliz;
[...]/E t o, eu e a sua se a; ago a estou li e. [...] /A ui
eu estou lo ge de seus pe igos e dos seus u e osos
p o le as./Nu a fui t o li e isto , e eto ua do eu
esta a li e de o ./Eu o pi o seus pe igos; E a paz
eu fi uei. 60

57 Amour – Cette Ame est toute remise, fondue et tirée, jointe et unie à la haute Trinité;
et e peut ie ouloi si e est la olo t di i e pa la di i e op atio de la T i it tout
entière. Et une clarté et une lumière ravissantes la joignent et la pressent de plus près.
[...] . Ibidem, p. 146.
58 Lu i e de L A e – [...] O o sid ez, pou ie o p e d e, e u est la olo t de
Dieu. C est la T i it tout e ti e ui est u e seule olo t . La volonté de Dieu est donc,
en la Trinité, une nature divine. [...] . Ibidem, p. 205
59 Co e t l A e a ourese de Dieu, vivant dans la paix de la charité, prend congé des
Vertus . Ibidem, p. 46.
60 L A e – Je vous le confesse, dame Amour: il y eut un temps où j elle fus, mais il en est

d so ais u aut e; ot e ou toisie a li e de leu se age. Aussi puis-je à présent


leu di e et leu ha te :/Ve tus, je p e ds o g de ous ja ais,/J e au ai le oeu plus
175
A causa desta liberdade foi esclarecida no capítulo XXI – Amor
responde ao argumento da Razão sobre o que diz este livro que estas
Almas se despediram das Virtudes.61 Promovida por Amor, esta liberdade
se deve à obediência e ao aprendizado das Almas em relação às Virtudes.
A partir de então, é o próprio Amor que governa as virtudes destas
Almas. Deste modo, as Almas Aniquiladas pertencem unicamente à
vontade do Amor, que é Deus.
A o - [...] É e dade ue essa al a se despediu das
Vi tudes, das suas p ti as e do seu desejo ue elas
de a da , as as i tudes o se despedi a delas,
po ue elas ai da est o ju tas, as a pe feita
o edi ia.
[...] po ue ela possui ela tudo a uilo ue as Vi tudes
sa e e si a , e uito ais, se o pa aç o, po ue
ela possui, a do a das Vi tudes, ue o eada A o
Di i o, ue te t a sfo ada o pleta e te e a te
u ida ela, de odo ue esta Al a o se pe te e ais
e e pe te e ais s Vi tudes.
Raz o – A ue e t o elas pe te e ?
A o – A i ha o tade, ue a t a sfo ou e i .
Raz o – E ue sois s, A o , pa a esta a i a de s?
N o sois s u a das Vi tudes, e t e s?
A o – Eu sou Deus, po ue A o Deus e Deus A o ,
e esta Al a Deus po o diç o do A o , e eu sou Deus
pela atu eza di i a e esta Al a pela justiça do A o .
[...]. 62

franc et plus gai; [...]/J tais do ot e se e; p se t je suis d li e. [...]/Me voici loin


de vos dangers où je connus maint ennui./Jamais e fus f a he si e est lo s ue je fus
d li e de ous./J ai o pu a e os da ge s; e pai je suis est e. Ibidem, p.46.
61 A ou po d l a gu e t de Raiso su e ue dit e li e ue es A es p e e t
congé des Vertus . Ibidem, p. 77.
62 Amour – [...] Il est vrai que cette Ame a pris congé des Vertus, pour ce qui est de leur

usage et du d si de e u elles de a de t, ais les Ve tus o t pas p is o g d elles,


car elles sont toujours avec elles, mais en leur parfait obédience. [...] car elle possède en
elle tout ce que les Vertus savent apprendre, et encore plus, sans comparaison, car elle
dispose, e elle, de la a t esse des Ve tus, ue l o o e Di i e A ou , la uelle l a
o pl te e t t a sfo e et l a u ie elle, e so te ue ette A e e s appa tie t plus
et appa tie t plus au Ve tus./Raiso - A qui donc appartient-elle?/Amour- A ma volonté
oi, ui l ai t a sfo ee oi./Raiso - Et qui êtê-vous, Amour, pour être au-dessus
de ous? N tes- ous pas l u e des Ve tus, pa i ous?/A our-Je suis Dieu, car Amour
est Dieu et Dieu est A ou , et ette A e est Dieu pa o ditio d A ou , et je suis Dieu
pa atu e di i e et ette  e l est pa d oitu e d A ou . Ibidem, p. 78-79.
176
Esta união estabelece na alma uma perfeição que a torna sincera
nos seus quatro aspectos, conforme apresentado no capítulo LXXXII –
Como esta alma é franca de seus quatro quartos:63
Amor- [...] O primeiro quarto cuja esta Alma é franca, é
que ela não se censura, quer ela faça ou não as obras das
Virtudes [...] O segundo quarto é que ela não tem mais
vontade [...] se esta não é a vontade divina. [...] O terceiro
quarto é que ela crê e suporta que ninguém foi e será
pior que ela, nem amada melhor por aquele que ama por
esta que ela é. [...] O quarto quarto é que ela crê e
suporta que, não é mais possível que Deus possa desejar
outra coisa que sua bondade, paralelamente ela não
pode desejar outra coisa que sua divina vontade [...]64.

Esses princípios elucidam o enunciado apresentado no capítulo


XXIV – Em que momento estas Almas estão na perfeita liberdade do Amor
Puro65 –, acerca das Almas Aniquiladas estarem na liberdade do puro
amor. Ao possuí e a o p ee s o do ais e o deseja e ada
que não fosse a vontade divina, estas almas não precisariam mendigar,66
e nada do que lhe acontecesse poderia tirar-lhe desse estado. Estando
livres das amarras que a impediam de unir-se com Deus, Porete ensina
ao longo do Espelho que as Almas Aniquiladas não desejam nem
desprezam as missas e sermões. Tal é a conformidade da vontade do
Amor nesta alma, que ela poderia dar tudo o que fosse necessário à

63 Comment cette Ame est franche de ses quatre quartiers . Ibidem, p. 169. Os quartos

aludem a divisão de um de um escudo heráldico.


64 Amour – [...] Le p e ie ua tie do t ette A e est f a he, est u elle a poi t de
ep o he e ele, u elle fasse ou o les oeu es des Ve tus. [...] Le second quartier est
u elle a pas plus de olo t [...], si e est o lo t di i e. [...] Le troisième quartier
est u elle oit et soutie t ue ja ais il e fut i est i e se a pe so e de pi e u elle,
i de ieu Ai e de elui ui l ai e pou e u elle est. [...] Le quatrième quartier est
u elle oit et soutie t ue, pas plus u il est possi le ue Dieu puisse ouloi aut e
chose que as bonté, pareillement ele ne peut vouloir autre chose que as divine volonté.
Ibidem, p. 169-170.
65 En quel temps ces Ames sont ent la parfaite liberte de Pure Amour . I id., p. .
66 No capítulo noventa e seis Porete afirma ter sido uma criatura mendicante. Segundo

Zunn Brum essa citação está relacionada à própria definição da criatura. A alma liberada
dos desejos de sua própria criatura poderia retornar o que ela é. Esta noção também foi
desenvolvida pela beguina Hadewijch de Antuérpia (1190-1240) e por mestre Eckhart.
Ibidem, p. 190.
177
Natureza transformada por ele. Antes disso, o amor da alma não bastaria
para Deus e vice-versa, mas quando a vontade divina se faz nela, a alma
então repousa e alcança a plenitude de sua satisfação.
Embora solicitasse frequentemente aos seus leitores e ouvintes
que entendessem ensinamentos de Amor por meio de um entendimento
sutil, em vários diálogos Porete admitiu que tal compreensão jamais
seria alcançada por aqueles regidos pela Razão. A dificuldade na
compreensão das coisas divinas se baseia na distinção expressa no
capítulo XIX – Como Fé, Esperança e Caridade solicitam à Amor
conhecimento destas Almas67 –, entre uma Santa Igreja, a Pequena,
regida pela Razão e uma Santa Igreja, a Grande, regida por Amor.
O fundamento desta classificação é apresentado no capítulo
XLIIIquarenta e três – Como estas Almas são chamadas Santa Igreja e o
que Santa Igreja pode dizer delas68 –, quando a beguina declara que as
Almas são chamadas de Santa Igreja, a Grande, porque a Trindade que
está dentro delas apoia, ensina e nutre toda a Santa Igreja. Admitindo
permanecer na razão, a Santa Igreja, a Pequena, reconhece que as Almas
Aniquiladas são superiores, mas que isso não a desfavorece.
Amor – Não, a Santa Igreja, que estão abaixo da Santa
Igreja, para aquelas almas são devidamente chamado
Santa Igreja, como elas apoiam e ensinam e nutrem toda
a Santa Igreja; não elas, mas a Trindade por meio delas,
e é verdade, sem dúvida. [...]
Santa Igreja (Pequena) - Queremos dizer que essas almas
vivem acima de nós, porque enquanto elas permanecem
no Amor Razão habita em nós; mas ela não é contra nós,
assim recomendamos e louvamos através do brilho de
nossas escrituras. 69

67 Comment Foi, Espérance et Charité demandent à Amour connaissance des ces Ames .
Ibidem, p. 75.
68 Co e t es A es so t appel es Sai te-Eglise et ce que Sainte-Eglise peut dire
d elles . Ibidem, p. 109.
69 Amour – Voire, Sainte-Eglise, qui êtes au-dessous de cette Sainte-Eglise, car ces Ames

sont proprement appelées Sainte-Eglise, car elles soutiennent et enseignent et nourrissent


toute la Sainte-Eglise; o pas elles, ais toute la T i it t a e s elles, et est ai, sa s
aucun doute. [...]/ Sainte-Eglise (la Petite) – Nous voulons dire que ces Ames vivent au-
dessus de nous, car Amour demeure en elles tandis que Raison demeure en nous; mais ce
est pas o t e ous, aussi ie ous le e o a do s et louo s t a e s la glose de
nos écritures. Ibidem, p. 109.
178
Em seguida, a condição superior da Alma aniquilada é
reafirmada, tendo em vista que sua memória, intelecto e vontade estão
no abismo do ser uno (Deus), pois tal estado lhe dá o ser, nem nada mais
sentir, querer ou saber, exceto o que é disposto por Deus.
A o - Esta al a, desde lo go te po, sa e ue o te
aio sa edo ia ue a te pe a ça, e aio i ueza
ue a ple itude da satisfaç o, e hu a fo ça t o g a de
ue a o . Esta al a te e ia, o e te di e to e a
o tade est o o a is o do se u o, isto , e Deus; e
este estado d o se se ela sa e ou ue e se ti
ual ue estado, e eto a disposiç o de Deus. Esta al a
uitas ezes e la gues eu o a o . 70

A aquiescência da Santa Igreja em relação a esta superioridade


é ratificada no capítulo CXXI – Santa Igreja louva esta Alma71 – quando
enaltece as Almas Aniquiladas e afirma que não estão contrárias à lei,
mas acima dela.72
Ainda que Porete tenha afirmado no capítulo II – Da Obra de
Amor e porque ela fez esse livro73 – que o Espelho foi escrito para os filhos
da Santa Igreja entenderem como fortalecer a perfeição da vida, existe
nos diálogos uma tensão em relação às barreiras deste entendimento.
Assim, por exemplo, no capítulo LXXVII – Onde a Alma pergunta se Deus

70 Amour – Cette A e a, depuis lo gete ps, u est su u il est si grand sagesse que la
temperénce, ni si grande richesse que la plenitude de satisfaction, ni force si grande que
l a ou . Cette A e a la oi e et l e te de e t et la olo t a s e u seul t e,
est-à-di e e Dieu; et et tat lui do e d t e sa s savoir ni sentir ni vouloir aucun état
si e est dispositio de Dieu./Cette A e a ai tes fois la gui d a ou . . Ibidem, p.111-
112.
71 Sainte Eglise loue cette Ame . Ibidem, p. 230.
72 Este ponto demonstra mais uma vez a influência da teologia da Trindade da mística

cisterciense na doutrina de Porete. Segundo Etienne Gilson, nesta teologia existe uma
conciliação entre o amor a si com o amor a Deus, pois quanto mais um ser que é a
imagem tornar-se semelhante a Deus, mais fiel permanece a si. No entanto, isto só é
admissível porque Deus é amor. Deste modo, a caridade é o vínculo que assegura a
unidade da vida divina e, por isso, a paz e a beatitude divina. Essa concepção traz consigo
a ideia de ue Deus i e de u a lei do a o ete a e iado a, ue o ho em estaria
presente como caridade. Portanto, em nós a caridade não seria a substância de Deus,
mas o seu dom. GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 530. Em diversas partes do opúsculo Marguerite Porete se refere à
liberdade da Alma como um dom de Deus.
73 De l e te p ise d A ou et pou uoi elle-ci fit faire ce livre . Ibidem, p. 41.

179
acabou os dons da sua bondade74 –, a dama Amor diz que esse livro não
foi escrito para os que não estão preparados, mas que ainda estarão. No
LXXXIV – Como a Alma sincera em seus quatro quartos, se eleva em
soberania e vive sinceramente pela vida divina75 –, ela se di ige [...] s
pessoas para quem Amor fez com que este livro fosse feito e para
aqueles para quem o escrevi. Vós que não sois parte desses, não fostes,
nem sereis, sofrereis em vão se quiserdes entendê-lo .76 Na mesma
ocasião, a personagem Alma, perplexa no Nada-Pensar, reconhece que
os discípulos da Razão ainda desejam reconduzi-la sob a pobreza dos
seus conselhos, mas perdoa essa intenção porque eles não entendem.
Mais adiante, no capítulo LXXXVI – Como Razão está perplexa do que se
diz desta Alma77 – Amor diz que as pessoas regidas pela Razão ficam
maravilhadas ao ouvirem sobre as práticas das Almas Aniquiladas, pois
estão distante do país onde são realizadas.
No Espelho a barreira na compreensão dos ensinamentos de Amor
também foi associada às vias de salvação. Segundo a dama Amor,
enquanto as pessoas regidas pela Razão são salvas por si mesmas,
aquelas regidas por Amor são salvas por ele. No segundo caso é
necessário passar por três mortes, percorrendo sete estados que a alma
deve transpor antes de chegar à livre vida da alma aniquilada.
No primeiro estado, correspondente à morte do pecado, a Alma
tocada pela graça de Deus procura observar seus mandamentos,
contudo, ainda vive no ditame da Razão. No segundo, relacionado à
morte da natureza, a Alma vive a dinâmica de imitação de Cristo,
observando os conselhos evangélicos e das virtudes, para alcançar uma
vida espiritual de despojamento. No terceiro estado, a Alma aparece
recoberta do desejo de puro amor, porém é necessária a ruptura total
com as vontades do eu. Em seguida, a Alma vive um momento de
delicadeza, concentrando-se no exercício de meditação e contemplação.
No quinto estado ocorre a mudança essencial a que o livro se dedica: a

74 Òu l A e de a de si Dieu a mis fin et terme aux dons de sa bonté . Ibidem, p. 159.


75 Co e t l A e f a he de ses uat e ua tie s s l e e sou e ai et et it
franchement de vie divine. Ibidem, p.172.
76 [...] aux personnes pour qui Amour a fait faire ce livre et à celles pour ui je l ai it.
Qua t ous ui e tes poi t i e fu e t i e se ez, ous ous fatiguez e ai
le vouloir entendre. . Ibidem, p. 173.
77 Comment Raison est émerveillée de ce qui est dit de cette Ame . Ibidem, p. 175.

180
morte do espírito. Nesse estágio, a alma capturada pela luz divina toma
o s i ia da uilo ue Deus e ue ela o al a ça do o ist io
da humildade e da profundidade. O sexto estado delineia a perfeição
espiritual, pois a Alma deixa de ver a si mesma. Por fim, a glorificação da
Alma ocorre após a morte no sétimo estado, quando ela atinge a glória
eterna.
Neste percurso, ao tornarem-se a uilo ue pela g aça de
Deus , pois a o tade di i a a olo ou o se di i o ,78 as Almas
Aniquiladas são, portanto, um exemplo de salvação.
A o - [...] E t e s pe ue os, ue a o tade e o
desejo pega a p esa de seu pasto, deseje se o o
ela , po ue a uele ue deseja o e os, se o deseja
o ais, o dig o ue Deus lhe o eda o e o dos
seus e s [...].

Apesar dos ensinamentos de Amor, a recepção da pedagogia


espiritual e o entendimento sobre o estado de liberdade das Almas
Aniquiladas parece ter provocado uma inquietação geral. No final do
Espelho, ao recitar a canção divina do Amor, a Alma lamenta por aqueles
que não a compreendem.
[...] Amigo, que vão dizer as beguinas e as pessoas de
religião
Quando ouvirem a excelência de sua música divina?
Beguinas dirão que eu erro, e também padres, clérigos,
pregadores/
Agostinianos e carmelitas e os frades menores,
Porque eu escrevo sobre o Amor.
E sua Razão não os salvam, uma vez que os faz dizer.
Desejo, Vontade e Medo certamente roubam seus
conhecimentos.
E o derramamento e a união da luz muito alta.
No ardor do divino amor. 79

78A concepção segundo a qual a vontade divina conduziria o retorno da alma ao seu
estado anterior foi desenvolvida no capítulo cento e dezoito.
79 [...] A i, ue o t di e gui es et ge s de eligio /Lo s u ils e te d o t l e elle e
de votre divine chanson?/Béguines disent que j e e, et aussi p t es, le s,
p heu s/Augusti s et a es et les f es i eu s,/Pou e ue j is de la t s fi e
A ou ./Et leu Raiso e les sau e pas, e e u elle leu fait di e./D si , Vouloi et C ai te
assurément leur ôtent et la connaissa e/Et l pa he e t et l u io de la t s haute
lu i e/D a deu de di i e A ou . . Ibidem, p. 234.

181
Considerações Finais
Demonstrando um elevado grau de erudição acerca dos
conhecimentos da Bíblia e de textos religiosos, Marguerite Porete
descreveu o estado de aniquilamento das almas, abordando o tema do
retorno da alma ao seu estado original em Deus. Em sua doutrina do
amor puro, a principal característica das Almas Aniquiladas é a perda das
suas vontades. Ao negar todos os seus desejos, estas almas se unem a
Deus, de tal modo, que só podem querer apenas a vontade divina. Por
conseguinte, adquirem um estado de liberdade, por intermédio da graça
de Deus. Ao ensinar sobre as diferenças dos graus para alcançar este
estado e suas capacidades de apreensão das coisas divinas, esta beguina
defendeu que apenas por meio do Amor e da aniquilação da alma é
possível compreender os ensinamentos de Deus.
No fim do século XIII, no contexto em meio ao controle dos
movimentos que seguiam o ideal de vita apostolica e ameaçavam a
mediação obrigatória dos clérigos com o divino, o Espelho de Porete
ensejou uma reação da instituição eclesial. O problema da expansão
destes movimentos emergiu a partir do século XI, quando o testemunho
e as interpretações do Evangelho poderiam apresentar ideias
divergentes da ortodoxia, sobre os possíveis caminhos para atingir a
salvação. Foi justamente neste período, entre os séculos XI-XIII, que as
heresias se multiplicaram. Diversas manifestações da piedade laica,
inicialmente toleradas, sofreram acusações de heterodoxia e
posteriormente foram condenadas. Dentro deste quadro, encontramos
o movimento beguinal.
Concebida em meados do século XII, a forma de vida religiosa das
beguinas percorreu um longo percurso, que incluiu uma autorização
papal para viverem em comunidades, até ser condenada no início do XIV.
De fato, o seu desenvolvimento expõe as mudanças das atitudes
eclesiásticas, diante das tendências espirituais e a concorrência laica na
Idade Média Central.
Ap ese ta do u dis u so a ti-he ti o , a i stituiç o e lesial
desempenhou o seu caráter normatizador, ao subjugar os pensamentos
considerados um desvio da ortodoxia cristã. Deste modo, a condenação

182
de Marguerite Porete e do seu Espelho estão inseridos num processo de
reestruturação da sociedade, sob a condução da Igreja Romana/Papal.
Mesmo após ter conseguido a aprovação de três clérigos, a
doutrina do amor puro de Porete, influenciada pela doutrina cristã
tradicional, sobretudo, a teologia cisterciense, foi condenada. Por meio
de uma experiência sine medio, esta beguina ensinou as práticas da
Santa Igreja, a Grande, regida por Amor. A noção de que a transformação
da alma, no quinto estágio de aniquilação, concedia uma liberdade foi
considerada um problema. A implicação de que esta liberdade nas Almas
Aniquiladas abdicaria das rezas, orações, jejuns, penitências e
sacramentos, representava uma divergência da ortodoxia acerca dos
possíveis caminhos para atingir a salvação.
Como vimos anteriormente, as questões teológicas do Espelho
foram retomadas no Concílio de Viena para proibir a doutrina das
beguinas e dos beghardos. E, posteriormente, a doutrina de Marguerite
Porete foi associada à heresia do Espírito Livre. Certamente, os conflitos
entre o rei Felipe IV e o papado exerceram alguma influência no
julgamento e na condenação desta beguina. Porém, considerando o
modo de vida das mulieres religiosae, o não pronunciamento dos votos,
a mendicância e o trabalho manual, acreditamos que outros elementos,
de razão política e econômica locais, possam ter contribuído para a
repressão do movimento. Nesse sentido, são necessários estudos mais
aprofundados para identificarmos e analisarmos os interesses ao redor
do propósito do Concílio de Viena ao tratar da doutrina do amor puro na
condenação das beguinas e begardos no Ocidente Medieval.

183
184
INFLUÊNCIA FRANCISCANA NA CIDADE DE PÁDUA: UM ESTUDO SOBRE A
NARRATIVA DA PREGAÇÃO ANTONIANA NA BEATI ANTONII VITA PRIMA

Victor Mariano Camacho1

Introdução
O objetivo deste texto é tratar a questão da influência da Ordem
dos Frades Menores na cidade de Pádua, no norte da Itália através da
pregação do frade Antônio de Lisboa/Pádua narrada na Beati Antonii Vita
Prima, também chamada de Legenda Assídua. Analisaremos
especificamente o décimo terceiro capítulo da hagiografia que relata a
predica do santo lisboeta na comuna italiana durante a Quaresma de
1231.
O hagiografado que inicialmente se chamava Fernando Martins de
Bulhões, nasceu em Lisboa, foi cônego regular no Mosteiro de São
Vicente de Fora na mesma cidade e depois no mosteiro de Santa Cruz
em Coimbra, sendo ordenado presbítero por volta de1215. Quando os
primeiros franciscanos chegam ao reino de Portugal, Fernando decide
ingressar na Ordem dos Frades Menores fundada por Francisco de Assis
em meados de 1219, mudando seu nome para Antônio. Após ser aceito
entre os minoritas, o religioso faz o seu noviciado em Romagna, em
seguida, tenta uma missão sem sucesso no Oriente Islâmico e depois,
segue para a Península Itálica.2
De acordo com a tradição hagiográfica, Antônio, enquanto frade
menor desempenhou a função de professor de teologia em Bolonha,
custódio no Sul da França, sendo posteriormente nomeado ministro
provincial da Lombardia. Depois de desempenhar o cargo, foi transferido
para a cidade de Pádua, no Norte da Itália, onde viveu seus últimos anos
de vida. Na mesma comuna, o minorita se dedicou à pregação,
principalmente na Quaresma de 1231, momento em que sua ação

1 Douto a do pelo P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia Co pa ada da U i e sidade


Fede al do Rio de Ja ei o so a o ie taç o da P ofesso a D a. A d eia C isti a Lopes
F az o da Sil a e o-o ie taç o da P ofesso a D a. Ca oli a Coelho Fo tes.
2 SOUZA, Jos A t io C. R. de. O pe sa e to so ial de Sa to A to io. Po to Aleg e:
EDIPUCRS, .p. - .
185
pastoral teve grande expressão entre os paduanos. O lisboeta vem a
falecer em junho do mesmo ano.3

Dados sobre a Legenda Assídua


Antes de nos atermos a análise da vita, consideramos necessário
apresentar dados sobre seu contexto de produção, bem como do autor
e do público que era destinada.
A autoria da fonte é anônima, logo, poucas informações existem
sobre seu autor. Contudo, Vergílio Gamboso acredita que se tratava de
um frade menor, baseando-se no prólogo: Le ado po i siste te pedido
dos irmãos e incitado pelo merecimento da salutar obediência, houve por
bem escrever a vida e os actos do beatíssimo padre e nosso irmão
A t io ... .4 Ao dizer que escreve a hagiografia pelos assidua f atu
postulatio e , isto é, pelos pedidos assíduos dos irmãos, Gamboso
concluiu, portanto, que se tratava de um franciscano que escrevia a
legenda por solicitação da ordem.5
O texto era destinado tanto aos frades quanto ao clero secular,
pois seria usado para pregações, a fim de propagar o culto ao lisboeta.
Além disso, é provável que seu autor tenha se envolvido diretamente
com o processo de canonização do santo, pelo fato de narrar com
riqueza de detalhes este episódio.6

3 I ide , p. - .
4 VIDA PRIMEIRA DE SANTO ANTONIO TAMBÉM DENOMINADA LEGENDA ASSÍDUA. I :
Fo tes F a is a as III: Sa to A to io de Lis oa. B aga: Edito ial F a is a a, .
Dispo í el e : http://sa to-a to io. e ode.pt/fo tes-a to ia as/, a esso e de
ja ei o de . Cap. I, . Do a a te Assídua. Segue o t e ho e lati : Assidua f at u
postulatio e dedu tus e o et o edie tie saluta is f u tu p o o atus, ad laude et
glo ia o ipote tis Dei, ita et a tus eatissi i pat is a f at is ost i A to ii ... .
VITA PRIMA DI S. ANTONIO, o Assidua . . P dua: Edizio i Message o, .p. .
5 Segu do Le de Ke al, algu as hip teses fo a le a tadas a espeito da auto ia da
lege da. U a delas ap ese tada pelo f ade apu hi ho R. P. Hilai e, e , p opo do
ue a es a te ia sido edigida po Jo o Pe kha , ue o eu e . Po , tal
hip tese foi efutada ao e ifi a -se ue o te to a te io a e ue Pe kha te ia
as ido e t e a , se do e t o i possí el ue o es o a te ha es ito
KERVAL, Le de. Sa t ti A to ii de Padua ita duae. Pa is: Li ai ie Fis h a he , . p.
- .
6 GAMBOSO, Ve gílio. I t oduzio e. I : Vita P i a di S. A to io o Assidua . .
P dua: Edizio i Message o, . p. - , - .
186
Henrique Pinto Rema afirma que a legenda possivelmente foi
elaborada no Norte da Itália, visto que os detalhes relatados a respeito
da morte e do procedimento para a canonização do santo devem ter sido
coletados a partir de testemunhas oculares, ou o próprio autor esteve
presente em tais eventos.7
A hagiografia está dividida em duas partes: a primeira, formada
por quatorze capítulos, narra a infância e juventude de Antônio, o
momento em que ingressou no movimento franciscano, seu noviciado
em Romagna, passando em seguida para a sua atuação no Norte da Itália
em Forli, Rimini e por fim em Pádua. A segunda parte trata de sua morte
e canonização; ao final da hagiografia, há um apêndice com os milagres
post mortem que provavelmente constam no processo de canonização
que se perdeu.

A prédica de Antônio em Pádua


O décimo terceiro capítulo da Legenda Assídua, como já
informamos, se passa durante a Quaresma do ano de 1231. A narrativa
é repleta de elementos vinculados aos ouvintes do lisboeta, isto é, o
povo de Pádua. Não é mencionado o assunto ou as características da
pregação de Antônio; por outro lado, a hagiografia fala dos mais diversos
grupos sociais que presenciaram a exortação do frade ibérico na cidade.
Segundo a legenda, a população formada por cavaleiros, damas nobres,
camponeses e mercadores se dirige ao local em que ocorre a exortação
por volta da meia noite.
Das cidades, das praças fortes e aldeias, vinha uma
multidão quase inumerável, de um e outro sexo, todos
com suma devoção, sequiosos da palavra da vida, pondo
a sua salvação com firme esperança na sua doutrina.
Efectivamente, erguendo-se por volta da meia noite,
disputavam entre si qual seria o primeiro a chegar e,
acesas as lanternas, corriam ansiosos, para o local, onde
ele ia pregar. Cavaleiros e matronas nobres poder-se-iam
ver a chegar em massa, na escuridão, e aqueles que se
tinham acostumado a trabalhar grande parte do dia,
despertos, acalentando os efeminados membros do

7REMA, He i ue Pi to. I t oduç o. I : VIDA PRIMEIRA DE SANTO ANTONIO TAMBÉM


DENOMINADA LEGENDA ASSÍDUA. I : Fo tes F a is a as III: Sa to A to io de Lis oa.
B aga: Edito ial F a is a a, , p. - . Dispo í el e : http://sa to-
a to io. e ode.pt/fo tes-a to ia as/. A esso e de ja ei o de .
187
corpo, no torpor, com mantas macias, como dizem, sem
qualquer custo antecipavam-se à pessoa do pregador.8

Aqui observamos a reprodução do topos do pregador ideal que se


dirige aos mais diversos grupos sociais e gêneros. Segundo Marie Paolo
Bolieu, com os parâmetros construídos, tanto pela Igreja Romana quanto
pelas ordens mendicantes, o bom pregador deveria ser capaz de proferir
exposições tanto em meios eruditos quanto para os fiéis leigos. Ele
também deveria ser capaz de falar em todo o local ou circunstância,
como em cortes, universidades, concílios, sínodos, colégios, assim como
simples paróquias ou capelas. Deveria atrair multidões, transformando
locais públicos, ou, até mesmo, monumentos pagãos em locais de
pregação.9
No contexto do século XIII, um dos meios pelos quais o papado
procurou exercer sua influência política e doutrinal foi a ação pastoral de
religiosos mendicantes.10 Investindo nas audiências em língua vulgar, os
frades menores e pregadores, procuraram se fazer presentes em vários
momentos da vida social urbana. Além da missa, pregavam em outras
ocasiões como casamentos, funerais e festas. Estas ações

8 Assídua Cap. XIII, 2- . Segue o t e ho e lati : Veniebant enim de civitatibus, castris


et villis Paduani circumstantibus, utriusque sexus turba pene innumerabilis, omnes
verbum vite summa devotione sicientes, et salutem suam in doctrina ipsius spe firma
constituentes. Medio namque noctis tempore surgentes, mutuo se prevenire
contendebant et, accensis luminaribus, ad locum ubi predicaturus erat, ardentissime
properabant. Milites ac matronas nobiles medias tenebris cerneres accurrentes, et qui,
resoluta torpore membra stramentis mollioribus foventes, non parvam diei partem
consumere consueverant, absque ullo, ut ferunt gravamine predicantis faciem vigiles
preoccupabant .
9 De BEAULIEU, Ma ie-A e Polo. P egaç o. I : LE GOFF, Ja ues. SCHIMITT, Jea -Claude.
Di io io Te ti o do O ide te Medie al. S o Paulo: EDUSC, . , V. , p. - .,
p. .
10 Apesar da grande maioria dos estudos se concentrarem nos dominicanos e

franciscanos, no contexto do século XIII surgiram outras ordens que também foram
consideradas mendicantes como os agostinianos, aprovados pelo papado em 1244, os
carmelitas em 1245. Há também a ordem dos servitas fundada em 1233 e reconhecida
somente no século XV como uma ordem mendicante. Posteriormente, surgiram as
ordens dos mercedários, os trinitários, os mínimos e os irmãos de São João de Deus, além
dos jerônimos. (Cf. CRESTA, Geraldo. Valor y sentido del conocimiento en las órdenes
mendicantes del siglo XIII. Acta Scientiarum. Education. Maringá. v. 32, n. 2, p. 141-151,
2010).
188
demonstravam uma preocupação da Igreja Romana em contemplar de
forma satisfatória o ambiente laico e urbano, a partir da presença
franciscana e dominicana, uma vez que nestes locais, sobretudo no Sul
da França e no Norte da Itália, havia uma maior incidência e adesão aos
movimentos ditos heréticos.11
O papado nos anos 30 do século XIII organizou missões de
pregação formadas, sobretudo, por religiosos mendicantes nestas
regiões, com o intuito de obter possíveis conversões dos adeptos dos
grupos vistos como heterodoxos, bem como impedir que a sua
mensagem fosse aceita pelas populações locais. Todavia, com o pretexto
de combate a estes movimentos, pretendia-se também, por meio da
ação pastoral franciscana e dominicana, a garantia da dominação papal
nas cidades ao Norte da Península Itálica.12
Dominicanos e franciscanos, sob as ordens do papado, através de
suas exortações, promoveram uma expressiva influência nos estatutos
comunais das cidades da Itália do Norte, sobretudo em Pádua, Parma,
Bolonha, Vicenza, Verona, Milão e Monza. Em alguns casos, cidades
introduziram leis de cunho anti-herético, estreitando vínculos com a
Santa Sé e permanecendo obedientes a Roma.13
No texto, são os ouvintes que se dirigem à presença do
protagonista à noite. Assim, somente um exímio pregador seria capaz de
contar com um público variado ao fazer uma exortação oral em um
horário quando, normalmente, a grande maioria dos citadinos estaria
em suas casas repousando. Da mesma forma, o povo passa a noite em
claro para ouvir o santo na madrugada. Vemos, portanto a questão da

11 GILLI, Pat i k. Cidades e so iedades u a as a It lia Medie al. Ca pi as: U i a p,


, p. . No aso dos p p ios alde ses, sa e os ue a aio ia de seus adeptos e a
p o e ie te de g upos de e ado es, te do o seu o i e to su gido e L o , ao Sul
da F a ça. Po isso, a aç o destes eligiosos estas egi es o o i tuito de e pu ga a
he esia, ao lo go do s ulo XIII, foi ais i isi a. Da es a fo a os ta os su gia a
egi o de Al i ta o Sul da F a ça se e pa di do pa a o No te da It lia. So e as
he esias a Idade M dia Ce t al e : FALBEL, Na h a . As he esias edie ais. S o Paulo:
Pe spe ti a, .
12 I ide , p. - .
13 VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233.

L'action politique des Ordres Mendiants d'après la réforme dês statuts communaux et
les accords de paix. Mélanges d'archéologie et d'histoire, Paris, t. 78, p. 503-549, 1966,
p.505-506.
189
ascese que é praticada pelos ouvintes no contexto da Quaresma, período
em que é prevista a prática da penitência com privações físicas. O texto
continua mencionando, também, a faixa etária dos ouvintes, além de
citar o bispo de Pádua:
Compareciam os velhos, acorriam os novos, homens e
mulheres simultaneamente, de toda a idade e condição;
todos eles, depois de haverem deposto os vestidos de
gala revestiam-se, por assim dizer, de hábito religioso.
Por fim, até o venerável Bispo dos Paduanos seguiu com
devoção a pregação do servo de Deus António e,
havendo-se tornado sinceramente modelo da grei,
exortou-a a ouvir com o exemplo da humildade.14

No fragmento acima, cabe destacar a presença da figura do bispo.


De acordo com a legenda, o prelado não apenas compareceu ao local
como também recomendou que o povo de sua diocese ouvisse a
pregação de Antônio, colocando-se ele também como ouvinte, pois via
nele um modelo de pregador.
A figura do bispo, portanto, representa o aval da autoridade
eclesiástica local não só para a audiência do lisboeta, mas também para
a Ordem dos Frades Menores na cidade. Constatamos assim, que a
hagiografia destaca a adesão dos paduanos e da Igreja local à atividade
pastoral dos minoritas, bem como a influência dos religiosos na dinâmica
social urbana. O texto prossegue desta vez caracterizando a postura dos
ouvintes:
Todos e cada um escutavam com tão grande desejo o
que dizia que, não obstante muitas vezes, como consta,
assistirem à pregação trinta mil homens, nem sequer se
ouvia um sinal de clamor ou murmúrio de tão grande
multidão; pelo contrário, num silêncio prolongado, como
se fora um só homem, todos escutavam o orador com os
ouvidos da mente e do corpo atentos. Até os próprios
mercadores ou proprietários de lojas de qualquer
espécie, onde se vendem as mercadorias, pelo grande

14 Assídua. Cap. XIII, 5- . Segue o t e ho e lati : Aderant senes, currebant iuvenes, viri
simul et mulieres, etas omnis atque conditio; qui omnes, depositis ornamentorum faleris,
habitu, ut ita dixerim, utebantur religioso. Denique et venerabilis Paduanorum episcopus,
cum clero suo, predicantem Dei servum Antonium devote secutus est, formaque gregis
factus ex animo, audire monuit humilitatis .
190
desejo de o ouvir, só, terminada a pregação, expunham
as mercadorias aos transeuntes.15

O fragmento novamente exalta Antônio como modelo de


pregador ao afirmar, provavelmente de forma retórica, que trinta mil
homens ouviam a exposição do santo em silêncio, como se fossem
apenas um. Porém, segundo a legenda, não apenas os ouvidos estavam
atentos, mas também os corpos dos presentes.
Cabe destacar outro tipo de ouvinte mencionado: os mercadores.
Segundo a fonte, eles deixaram de vender seus produtos naquele
momento para poderem ouvir Antônio e só depois que o mesmo havia
terminado, voltaram às suas atividades. A presença dos mercadores,
neste trecho, está ligada a postura dos mendicantes em relação ao
comércio e acúmulo financeiro.
De acordo com Jacques Le Goff, Francisco de Assis, fundador do
movimento franciscano que pertencia a uma família de mercadores,
criou aversão à acumulação financeira e usura, logo, um dos princípios
adotados pela ordem foi a mendicância e a observância da pobreza.
Além disso, a própria Igreja Romana condenava o enriquecimento por
meio da prática da usura e do lucro sobre os produtos vendidos.16
Franciscanos e dominicanos, como aponta Nicóle Bériou,
passaram a proferir exortações que condenavam o acúmulo de bens por
meio da usura e da atividade comercial, que eram umas das principais
fontes de riqueza do meio urbano.17 Assim, o texto da Legenda Assídua
reproduz este princípio mendicante, ao substituir o comércio pela fala

15 Assídua. Cap. XIII, 7- . Segue o t e ho e lati : Tanto autem omnes et singuli hiis que
dicebantur intendebant desiderio ut, cum sepe triginta - ut ferunt - hominum milia
predicanti assisterent, nec vox clamoris aut murmur tante multitudinis sonuit; sed
continuato, quasi vir unus, silentio, omnes suspensa mentis et corporis aure, loquentem
sustinebant. Stationarii quoque, seu cuiuscumque artis apothecas pro vendendis
mercibus tenentes, pré nimio audiendi desiderio, non nisi finita predicatione venalia
transeuntibus exponebant .
16 LE GOFF, Ja ues. A Idade M dia e o di hei o. S o Paulo: Ci ilizaç o B asilei a, .
Op. Cit., p. .
17 BÉRIOU, Nicole. L'esprit de lucre entre vice et vertu. Variations sur l'amour de l'argent

dans la prédication du XIIIe siècle. In: Societé des historiens medievalistes de


l e seig e et sup ieu public (org.). CONGRÈS DE LA SOCIÉTÉ DES HISTORIENS
MÉDIÉVISTES DE L'ENSEIGNEMENT SUPÉRIEUR PUBLIC., 1997, Clermont-Ferrand.
Actes.... Paris: Publications de la Sorbonne, 1997. p. 267-287.
191
do santo. Os mercadores deixam de ganhar com a venda de seus
produtos para buscarem a salvação de suas almas ao ouvirem o frade
pregar.
Podemos apontar uma representação da influência franciscana
na cidade de Pádua. Primeiramente ao fazer com que os citadinos se
dirijam à noite ao local em que Antônio profere sua exortação
englobando tanto clérigos quanto leigos. Em seguida, há também a
influência em âmbito político e religioso, já que o bispo diocesano
comparece ao evento como ouvinte e aponta o lisboeta como modelo
de pregador. Por fim, há também influência nas atividades econômicas,
já que os mercadores deixam de ganhar com a venda de seus produtos
para também comparecerem ao evento.
Depois da exposição feita, a reação de mulheres presentes foi a
de tentar recortar ou mesmo tocar o hábito do minorita, o que levou a
necessidade de que um grupo de homens o defendesse e que o mesmo
fugisse da multidão:
No final, no calor da devoção, as mulheres, de tesouras
em punho, cortavam-lhe a túnica na ponta da franja e,
quem pudesse ao menos tocar-lhe na franja do hábito,
tinha a convicção de que haveria de ser feliz. Ao invés,
não poderia defender-se de um punhado de homens que
se fizeram para ele, se não fora resguardado por um
numeroso grupo de jovens alentados, ou não espreitasse
solícito o local por onde fugir ou ele próprio, depois de a
multidão ter debandado, não esperasse a melhor
ocasião.18

Na hagiografia há a ideia de que as vestes do religioso têm caráter


milagroso ou sagrado. Todavia, acreditamos que esta passagem também
representa uma prefiguração do culto às relíquias do protagonista da
legenda. De acordo com André Vauchez, no cristianismo designam-se
como relíquias restos corporais dos santos ou objetos que estiveram em

18 Assídua. Cap. XIII, 9- . Segue o t e ho e lati : Mulieres denique, devotione


ferventes, allatis forficibus, tunicam ipsius reliquiarum vice precidebant; et qui vel
fimbriam vestimenti eius tangere potuit, beatum se foro censebat. Sed nec ab irruentium
hominum manu tutari potuit, nisi copiosa fortium iuventute circumdatus, vel fugiendi
locum sollicitus observaret vel, recedentibus tandem populis .
192
contato com os mesmos, que posteriormente eram conservados em
templos, onde passam a ser objetos de veneração.19
Sophia Boesch Gajano, por seu turno, salienta que, no medievo,
as relíquias passaram a ser guardadas sob altares ou conservadas em
receptáculos preciosos que são os relicários. Deste modo, materialidade
e sacralidade tornavam a relíquia um objeto de devoção, sendo muitas
vezes concorrente com a própria Eucaristia. Além disso, estes objetos
acabaram tornando-se amuletos portados por pessoas que desejavam
garantir proteção espiritual, além de serem doadas entre comunidades
religiosas ou instituições eclesiásticas e políticas com o intuito de
reforçar vínculos.20
O que se pode observar no fragmento é a extrema devoção às
vestes de Antônio, o que também representa um reconhecimento prévio
de sua santidade por parte das mulheres paduanas.
Cabe destacar o contexto do reconhecimento pontifício da
santidade do lisboeta. Antônio foi canonizado em um espaço de tempo
consideravelmente curto, pois morreu em 1231 e teve seu nome inscrito
no cânon dos santos em 1232, pelo papa Gregório IX que já havia
concedido o reconhecimento oficial da santidade a Francisco de Assis em
1228. Contudo, o processo de canonização do santo ibérico foi ainda
mais rápido se comparado ao do assisense, pois o espaço de tempo entre
sua morte e sua inscrição no cânon dos santos se deu em menos de um
ano.
Roberto Paciocco salienta que no início do século XIII o movimento
mendicante, atendendo às novas diretrizes da Igreja, inauguraria uma
esp ie de odelo de ida ist e de sa tidade, o ual se desta a a
não apenas o cultivo de virtudes, mas também a colaboração com os
projetos políticos da Igreja Romana, já que estes religiosos passaram a
se dedicar à pregação no intuito de garantir a hegemonia doutrinal e
política almejada pela Santa Sé. Neste sentido, a canonização dos
minoritas representaria esta institucionalização da santidade

19 VAUCHEZ, A d . Relí uias. I : ______. C istia is o: di io io dos te pos, dos luga es


e das figu as. Rio de Ja ei o: Fo e ze U i e sit ia, . p. - .
20 GAJANO, Sophia Boes h. Sa tidade. I : LE GOFF, Ja ues. SCHIMIDTT, Jea -Claude

o g . Di io io Te ti o do O ide te Medie al. S o Paulo: EDUSC, . .V, . , p. -


, p. .
193
mendicante como uma estratégia de afirmação da autoridade
pontifícia.21
Michael Goodich, porém, levanta a hipótese de que, dentre outros
elementos, o embate direto a movimentos heréticos seria um dos
critérios principais, mesmo que de forma implícita, estabelecido pela
Igreja Romana para se elevar um candidato à categoria de santo naquele
momento. Logo, isto explicaria o fato dos santos vinculados a ordens
mendicantes obterem do papado um parecer favorável para a
canonização, visto que franciscanos e dominicanos assumiram esta
função no decorrer do século XIII.22
Todavia, a iniciativa de canonizar Antônio não parte somente do
papado, mas também dos poderes eclesiásticos locais que tinham como
autoridade maior o Bispo de Pádua, assim como dos poderes seculares
existentes na cidade. Justamente quando a Cúria Romana, a partir da
ação de religiosos mendicantes, estabelece seu domínio político em
cidades ao Norte da Península Itálica, como é destacado por Antonio
Rigon, a referida comuna se torna um exemplo na região aos olhos de
Roma em seu esforço para atender as exigências pontifícias de
enquadramento do clero e perseguição à heresia. Estas ações se dão
principalmente por meio da atuação pastoral dos frades menores, tendo
como referência a exortação antoniana.23

21 PACIOCCO, Ro e to. Il Papato e i sa ti a o izzati degli O di i e di a ti. Sig ifi ati,


o se azio i e li ee di i e a - . I : ATII DELL XV CONVEGNO
INTERNAZIONALE. Assisi: . Atti... Spoleto: Ce t o italia o di studi dell alto edie o,
.p. - , p. - . Pa io o a a a o o da do o Vau hez e sua tese a
espeito dos odelos de sa tidade ao lo go da Idade M dia, defi i do a sa tidade
e di a te o u destes odelos. Po , apesa de o o pa tilha os desta is o
a espeito da sa tidade edie al, o o da os o a os os auto es ao p opo e ue
o de o e do s ulo XIII a políti a fa o el de a o izaç o do papado a a didatos
p o e ie tes da O de dos F ades Me o es e da O de dos P egado es fu io ou o o
u a est at gia de afi aç o do pode po tifí io a pa ti do odelo de eligioso
e di a te, ue ti ha o o a a te ísti as o apelo a ti-he ti o, a p egaç o, a iss o
e t e os sa a e os e a atuaç o pasto al o ito u a o.
22 GOODICH, Michael. The politics of canonization in the Thirteenth Century: Lay and

mendicant saints. Church History. Cambridge. n. 3, v. 44, p. 294-307, 1975.


23 RIGON, A to io. S. A to i da Pate Padue a pat o us i itas . I : ______. Dal li o

alla folha: A to io di Pado a e Il f a es a esi o edio alle. Viella: Ro a, . p. -


, p. .
194
Ainda segundo Rigon, em Pádua, observa-se o surgimento de uma
espécie de religiosidade e devoção à memória do lisboeta atrelada ao
patriotismo cívico que elege Antonio como Pat o us Ci itas . A prédica
quaresmal antoniana é entendida neste contexto como restauradora do
vigor cristão na comuna. Logo, estabelece-se uma política impregnada
de elementos religiosos que legitima a cidade como uma Nova Jerusalém
almejada pela Santa Sé e que fomenta uma identidade cívica, a partir da
santidade do religioso.24 Grado Giovanni Merlo, por seu turno, elucida
que o reconhecimento oficial da santidade do frade ibérico realizado em
menos de um ano após a sua morte, reflete a união entre o papado e a
cidade de Pádua, que se mostrara fiel a Gregório IX.25
O caráter anti-herético da santidade de Antônio e os interesses
comunais para a sua canonização podem ser observados em trechos da
bula Cum Dicat Dominus que oficializa a santidade do lisboeta.26

24 I ide , p. ; .
25 MERLO, G ado Gio a i. E o e de S o F a is o. Pet polis: Vozes, .p. .
26 Segue o t e ho da ula: De fato, Deus, pa a a ifesta de fo a ad i el o pode
da Sua fo ça e ealiza o ise i dia a ausa da ossa sal aç o, o oa se p e o u
os Seus fi is e, o f e u ia, ta os ho a este u do, ealiza do si ais e
p odígios ue os to a e o eis. Po tais si ais e p odígios o fu dida a aldade
he ti a e o fi ada a f at li a. Os fi is, sa udida a ti ieza espi itual, despe ta -se
ao u p i e to das oas o as; os he eges, e o ida a alige das t e as e ue se
e o t a e ol idos, a a do a os a i hos da pe diç o e eto a o a i ho da
sal aç o; os judeus e os pag os, o he ida a e dadei a luz, o e ao e o t o de
C isto, luz, a i ho, e dade e ida . Po isso, a íssi os i os, da os g aças ao
despe sei o de todas as g aças, se o ta tas ua tas de e os, pelo e os ua tas de
ue so os apazes. É ue e ossos dias, pa a o fi aç o da f at li a e o fus o da
aldade he ti a, Deus isi el e te e o a os si ais e e p ega o pode as
a a ilhas, faze do ilha po eio de ilag es a ueles ue o uste e a a f at li a
o o a do das suas o i ç es, o a elo u ia da sua pala a e o e e plo da sua
i tude. No ú e o destes a ha-se o e -a e tu ado A t io, da O de dos F ades
Me o es, de sa ta e ia. E ua to i eu o u do, possuiu g a des itos; ago a,
i e do o u, ilha o uitos ilag es, ue de o st a de fo a e ide te a sua
sa tidade. ... H te pos, o osso e e el i o o Bispo de P dua e os ossos a ados
filhos o P eside te e os e eado es do Mu i ípio, edia te legados seus e a tas heias
de hu ildade, supli a a - os ue a d sse os e olhe teste u hos dos ilag es do
Sa to, a ue o Se ho o edeu ta a ha gl ia, ao po to de lhe da a i ia da sua
p i ei a estola i o tal e e ide te e pe i ia da segu da, o ede do ue o seu
tú ulo se ealizasse g a des ilag es. Assi , ele dig o de ue seja i o ados os
seus suf gios e t e os de ais sa tos . GREGÓRIO IX. Cu di at do i us. I : REMA,
He i ue Pi to t ad . Fo tes f a is a as III: Sa to A to io de Lis oa. B aga: Edito ial
195
Além do apelo ao culto às relíquias e a santidade do frade ibérico,
observa-se também uma influência direta na ordem social vigente,
extinguindo as práticas condenadas pela Igreja Romana. Logo, a legenda
fala não só da usura, mas também da prostituição como aparece no
trecho a seguir:
Chamava os desavindos à reconciliação fraterna;
prendava os cativos com a liberdade; obrigava a restituir
as usuras e as rapinas violentas, e se as casas e os campos
se encontrassem penhorados, fosse o preço colocado a
seus pés e, por deliberação sua, todas as coisas roubadas,
fosse a rogo ou ajuste de preço, fossem restituídas aos
espoliados. Proibia também às meretrizes a sua vida
nefanda e escandalosa e arredava os famosos ladrões e
facinorosos do ilícito contacto do alheio. E deste modo,
havendo levado a bom termo o curso dos quarenta dias,

F a is a a, .p. - . Segue o t e ho e lati : Cu di at Do i us pe P opheta ,


Da o os u tis populis i laude , et glo ia , et ho o e , et pe se polli eatu , uod
justi si ut sol i o spe tu. Dei fulge u t, piu et justu est, ut uos Deus ito
Sa titatis o o at et ho o at, i E lesis Nos e e atio is offi io laude us et
glo ifi e us i te is, u ipso potius laudetu et glo ifi etu i illis ui est lauda ilis et
glo iosus i se ula et i sa tis. Ut e i sue i tutis pote tia i a ilite a ifeste , et
Nost ae salutis ta ise i o dite ope etu fideles suos, uos se pe o o at i aelo
f e ue te , etia ho o at i sae ulo ad eo u e ias sig a fa ie s et p odigia, pe
uae p e itas o fu datu he eti a, et fides atholi a o fi etu , fideles e tis to po e
dis usso ad o i op e is e ite tu i sta tia . Ha e eti depulsa, i ua ja e t e itatis
aligi e a io edu atu ad ia , et judaei at ue Paga i e o lu i e g ito u a t
ad Ch istu lu e ia a iate et ita . U de Nos a issi i etsi o ua tas de e us
ua tas ta e possu us g atias egi us g atia u o iu la gito i, uod die us ost is
ad o fi atio e atholi e fidei, et ad o fusio e he eti e p a itatis e ide te i o at
sig a, et i a ilia pote te i utat fa ie s illos o us a e i a ulis ui fI ide ,
Catholi a , ta o de ua o e, Ne o et ope e o o a u t, de uo u o eo
sa tae e o iae B. A to ius de O di e F at u Mi o u ui oli i sae ulo ag is
polle at e itis, u i e s i aelo ultis o us at i a ulis, et ejus Sa titas ultis
i di iis o p o etu . ... Cu e i dudu Ve e a ilis F ate Noste Epis opus, et Dile ti
Filii Potestas et Co u is Padua us No is pe Nu tios suos et litte is hu ilite supli asse t,
ut u Do i us eI ide , Sa to ta ta o tule it glo ia , ut ad da da s ue tia
p i ae stolae i o talitatis ipsuis, et e pe i e tu e ide s de s u da sepul h u ejus
tot et ta tis da et o us a e i a ulis uod ejus i te alios Sa tos o i o ati suff agia
est i dig u , de ipsuis i a ulis testes e ipi a da e us. GREGORIO IX. Cu di at
Do i us. Apud: SCIPIONE, F a es o. Disse tazio i sop a l sto ia e lesiasti a di Pado a.
Pado a: [s. .], . p. - .
196
amontoou diligentemente uma grada colheita para o
Senhor.27

Um dos primeiros elementos observados é a libertação daqueles


que estavam em cativeiro, o que também pode ser visto como a
reprodução do discurso presente em textos bíblicos como no livro do
profeta Isaias.28 Somado a isso, é possível observar, desta vez de maneira
mais nítida, o papel da pregação mendicante no que diz respeito às
práticas econômicas urbanas. Neste mesmo capítulo é dito que os
mercadores deixam de fazer comércio para ouvir o santo, todavia, são
mencionados também os usurários, ou seja, aqueles que emprestavam
dinheiro e cobravam juros. O relato, contudo, classifica a prática como
predationes, ou seja, os usurários são classificados como predadores,
aqueles que devoram ou roubam as riquezas alheias.
Além disso, após a prédica, dívidas são perdoadas e todas as
propiedades antes penhoradas foram restituídas aos endividados. Este
elemento aparece no capítulo 18 do Evangelho de Mateus, quando
Cristo conta a parábola do servo que sem ter como pagar ao seu senhor,
acaba lhe entregando tanto a mulher quanto os filhos e tudo o que
possuía para quitar a dívida. O credor, porém, perdoa o homem.29
No mesmo trecho são mencionados tanto usurários quanto
meretrizes. Jacques Le Goff salienta que os filósofos medievais
entendiam que as duas práticas, assim como o roubo, deveriam ter o
mesmo tipo de condenação. Os usurários se embrenhavam na profissão
pública do roubo tal como as prostitutas na comercialização da prática
sexual, ofendiam a Deus. Aqueles que exerciam estas atividades

27 Assídua. Cap. XIII, 11- . Segue o t e ho e lati : Discordantes ad fraternam pacem


revocabas; captivitate pressos libertan donabat; usuras ac violentas predationes restitui
faciebat, in tantum ut, pignori obligatis domibus et agris, ante pedes eius precium
ponerent et, consilio ipsius, ablata queque prece vel precio spoliatis restituerent.
Meretrices quoque a nephario prohibebat flagicio; fures malefactis famosos a contactu
alieni compescebat illicito . Atque in hunc modum quadraginta dierum curricula felici
consummatione percurrens, gratam Domino messem sollicitus congregavit .
28 Isaías , : O espí ito do Se ho Iah eh est so e i , po ue Iah eh e u giu:
enviou-se para anunciar a boa nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração e
proclamar a liberdade aos ati os, a li e taç o dos ue est o p esos . Os te tos í li os
foram extraídos Bíblia de Jerusalém. BÍblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
29 Mateus , - .
197
desprezíveis deveriam ser negados os direitos à sepultura cristã após a
morte e à esmola.30
Contudo, os trabalhos de Jacques Rossiaud apontam que no
contexto urbano havia uma tolerância e até uma institucionalização da
prostituição, sobretudo por parte dos poderes públicos, que garantiam
uma legislação para a defesa das meretrizes que viessem a sofrer
violência. Existia também uma preocupação com a construção de
bordéis urbanos, que eram visitados por homens que viviam na cidade.
Tais medidas, segundo Rossiaud, visavam evitar que os homens
estuprassem jovens ainda virgens ou que tivessem certas práticas
sexuais com suas esposas consideradas imorais pela doutrina católica.31
Tanto Le Goff quanto Rossiaud destacam certa tolerância por
parte da Igreja Romana tanto em relação à prática da usura quanto da
p ostituiç o, u a ez ue a as e a o o ue ales e ess ios
para a circulação monetária que beneficiava a própria Igreja. Tal postura
se devia ao fato de mercadores e banqueiros fazerem doações generosas
às igrejas e capelas, além de garantir também a manutenção da
harmonia matrimonial.
Mesmo assim, a narrativa hagiográfica promove uma mudança
na própria organização social e econômica da comuna. Retomando
Antônio Rigon, a Legenda Assídua objetivou apresentar Pádua como uma
idade sa ta , a Je usal Celeste ue passa a pauta suas ati idades a
partir da doutrina eclesiástica almejada pelo papado por meio da
pregação de Antônio.32 Por isso, a condenação da prática usurária e da
prostituição na legenda, que embora fossem comuns no âmbito urbano,
eram, em tese, condenadas pela moral católica. Tal elemento é
reforçado no fato de todos aqueles que ouviam a prédica do santo
procurarem o sacramento da confissão individual:
Julgo também não dever silenciar que levava uma tão
grande multidão de ambos os sexos a confessar os
pecados que nem os frades nem o grande número de
outros sacerdotes que o acompanhavam eram

30 LEGOFF, Ja ues. A olsa e a ida: a usu a a Idade M dia. S o Paulo: B asilie se, .
p. - .
31 So e a p ostituiç o a Idade M dia e : ROSSIAUD, Ja ues. A p ostituiç o a Idade

M dia. S o Paulo: Paz e Te a, ; ROSSIAUD, Ja ues. La p ostitutio da s les illes


f a çaises au XVe si le. Co u i atio s. La al, Pa is, . , p. - , .
32 RIGON, A to io. Op it., p. .
198
suficientes para ouvir as confissões. Diziam também os
que se aproximavam do confessionário que,
aconselhados por uma visão divina e enviados para
António, se tinham comprometido, nas recomendações,
a obedecerem aos seus conselhos, custasse o que
custasse. Alguns, porém, depois da sua morte,
aproximando-se muito em segredo dos frades,
testemunhavam que o próprio bem-aventurado António
lhes aparecera, quando dormiam e lhes indicava o nome
dos frades a quem ele os enviava.33

O fragmento entra em consonância com a relação estabelecida


entre pregação e confissão. Neste trecho é possível constatar a
reprodução do que foi estabelecido no IV Concílio do Latrão, que previa
a obrigatoriedade da confissão com o sacerdote durante o tempo da
quaresma em vista da comunhão pascal.
A Legenda Assídua, portanto, narra a confissão coletiva de uma
multidão que toma tal iniciativa depois de ouvir as exortações do frade
dentro do tempo da Quaresma. Entretanto, a vita dá ao episódio um
caráter apoteótico e maravilhoso, bem como ao próprio sacramento. De
acordo com o fragmento, a quantidade de fiéis era tão grande que os
padres presentes não eram suficientes para atendê-los. Não se pode
afirmar que isto tenha sido um fato, porém também pode ser entendido
como um recurso retórico que faz de Antônio, novamente um pregador
ideal ao fazer com que os fiéis se confessem após a sua exortação.
Além das investidas contra a heresia, o papado também
objetivava neste momento uma regulamentação das práticas
sacramentais no âmbito da sociedade medieval. No ano de 1215,
durante o pontificado de Inocêncio III foi realizado o IV Concílio do Latrão
que, além de estabelecer meios para conter o avanço da heresia, e as
missões na Terra Santa, impôs a obrigatoriedade da confissão auricular

33Assídua. Cap. XIII, 13- . Segue o t e ho e lati : Nec silendum puto, quod tantam
utriusque sexus multitudinem ad confitenda peccata mittebat, ut nec fratres, nec
sacerdotes alii, quorum non parva sequebatur eum frequentia, audiendis confessionibus
sufficerent. Dicebant autem et qui ad penitentiam veniebant, quod, divina visione
commoniti et ad Antonium transmissi, eius per omnia consiliis obtemperare in mandatis
accepissent. Quidam vero, post mortem eius, ad fratres secretius accedentes, ipsum
beatum Antonium dormientibus apparuisse et nomina fratrum, ad quos eos mittebat,
docuisse testati sunt .
199
individual com o sacerdote no período quaresmal em vista da comunhão
eucarística na festa da Páscoa. Tal princípio foi oficializado por meio da
constituição Omnis utriusque sexus.34
Segundo Roberto Rusconi, como o clero secular não colocava em
prática tal decreto de acordo com as exigências do concílio, uma vez que
muitos não tinham formação para tal, coube aos religiosos mendicantes
se especializarem na pregação e administração do sacramento no meio
urbano.35
Rusconi elucida que, desde o IX século, o ritual de imposição das
cinzas na quarta-feira da primeira semana da Quaresma marcava o início
de um período de penitência, que culminaria necessariamente com uma
confissão individual, em vista de se receber a comunhão pascal. Porém,
em finais do século XII, com o intuito de melhor fomentar esta prática,
cria-se o costume de preceder o ato da confissão com uma prédica.36
Logo, pregação e confissão estabelecem uma ligação estreita, já que os

34 A tradução do texto em espanhol é nossa: Todo fiel de um ou outro sexo, uma vez
chegado ao uso da razão deve confessar-se sinceramente todos os seus pecados por si
mesmo a seu pároco, ao menos uma vez por ano, cumprir com esmero e na medida de
suas possibilidades a penitência que houver sido imposta e receber com respeito, ao
menos pela Páscoa, o sacramento da Eucaristia, a não ser que por conselho do pároco,
por uma razão válida, julgue que deve abster-se do mesmo temporariamente. Segue a
e s o do o e a ediç o espa hola: Todo fiel, de uno y otro sexo, una vez Ilegado al
uso de razón debe confessar sinceramente todos sus pecados por si mismo a su párroco,
al menos uma vez el año, cumplir com esmero en la medida de sus possibilidades la
penitencia que le hubier sido impuesta y recibir com respeto, al menos por pascua, el
sacramento de la eucaristia, a no ser que por consejo de su párroco, por razón válida,
juzgue que debe abstenerse del mismo temporalmente . FOREVILLE, Raimunda (Ed.).
Lateranense IV. Vitória: ESET, 1972, p. 155- . Segue o t e ho e lati : Omnis
utriusque sexus fidelis postquam ad annos discretionis pervenerit omnia sua solus peccata
confiteatur fideliter saltem semel in anno proprio sacerdoti et iniunctam sibi poenitentiam
studeat pro viribus adimplere suscipiens reverenter ad minus in pascha eucharistiæ
sacramentum nisi forte de consilio proprii sacerdotis ob aliquam rationabilem causam ad
tempus ab eius perceptione duxerit abstinendum . Cf. e :
http://www.documentacatholicaomnia.eu/. Acesso em 16 de abril de 2014.
35 RUSCONI, Ro e to. De l p edi a io la o fissio : t a s issio et o t le de
od les de o po te e t au XIIIe si le. I : CROIRE, Fai e o g . Modalit s de la diffusio
et de la eptio des essages eligieu du XIIe au XVe si le. Ro a: É ole F a çaise de
Ro e, . p. -
36 Ibidem, p. 68.

200
discursos proferidos pelos frades, às vésperas das festividades pascais,
assumiram um caráter moralizante e penitencial.
Quanto ao caráter maravilhoso, os ouvintes se dirigem ao
confessionário após terem visões místicas que os mandava ir até o
religioso para confessarem seus pecados. Milagre ainda maior ocorre
após a morte do minorita, que aconselha ao povo em sonho a procurar
os frades sacerdotes e então confessarem suas faltas. Mas os fenômenos
só ocorrem por meio da exortação feita pelo lisboeta. O trecho reitera,
portanto, a confissão como algo divino.

Considerações finais
Como foi possível constatar ao longo da análise do décimo
terceiro capítulo da Legenda Assídua, observamos uma exaltação da
pregação de Antônio no âmbito da cidade de Pádua que age sobre o
espaço urbano, modificando a dinâmica comunal. Há, portanto, uma
aprovação da ação pastoral dos minoritas, representados na figura de
Antônio por parte dos poderes locais na pessoa do bispo diocesano.
Além disso, a própria fala do frade não só interrompe as atividades
comerciais e a usura condenadas pela Igreja Romana, como também
repreende a prática da prostituição, o que faz com que a comuna seja
um modelo de seguimento das diretrizes eclesiásticas. Somado a isso, o
povo, representado pelas mulheres que recortam as vestes do religioso,
declara Antônio santo antes mesmo da sua morte e posterior
canonização.
No tocante à confissão, a relação estabelecida entre prédica e o
sacramento, como previsto no cânone 21 do IV Concílio do Latrão é
ainda mais visível. Antônio é apresentado não apenas como modelo de
pregador, mas também, como frade menor, sob as ordens do papado,
pois fomenta que o povo se confesse, além de se dispor a ouvir os
pecados daqueles que estiveram presentes em sua exortação.
Vemos assim que o décimo terceiro capítulo da Legenda Assídua
reproduz a influência da ação pastoral franciscana em Pádua por meio
da pregação antoniana na dinâmica social, política e econômica urbana
de acordo com as diretrizes centralizadoras da Igreja Romana.

201
202
ANTÔNIO DE LISBOA/PÁDUA
E O DISCURSO SOBRE A CONFISSÃO NO SÉCULO XIII

Jefferson Eduardo dos Santos Machado1

Introdução
A Ordem dos Frades Menores, surgida no início do século XIII,
tornou-se um dos grandes sinais da renovação espiritual vivida pela
Igreja Romana no período. Francisco de Assis e seus companheiros
rapidamente transformaram o movimento em uma instituição
diferenciada face às experiências religiosas institucionalizadas
anteriores.
Apesar da proposta inicial da pregação de virtudes e sem
profundidade teológica, rapidamente os Frades Menores tornaram-se,
também, um referencial na Teologia da época e na pregação douta. Desta
forma, muitos menores se destacaram em tal ofício, tais como Duns
Scotto, Boaventura, Bernardino de Sena2 entre outros. O primeiro nome
dessa lista foi Antônio de Lisboa/Pádua que com sua obra Sermões
Dominicais e Festivos e sua pregação eloquente marcou a primeira
geração dos irmãos seguidores do Poverello.
Em nossas pesquisas, iniciadas na graduação, como membro do
Projeto Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade,
enveredamos pelo caminho do que seria o eclesiástico ideal na ótica de
frei Antônio de Pádua/Lisboa. Concluímos, então, que a sua obra,
conhecida como Sermões, é uma compilação de textos sermonários,
escritos a fim de instruir os irmãos franciscanos e demais membros da
Igreja Romana, e nos quais Antônio apresenta uma leitura pastoral dos
cânones do IV Concílio de Latrão, com o objetivo de doutrinar o clero e
os religiosos em geral.
Posteriormente, na dissertação intitulada Antônio de
Lisboa/Pádua: O Martelo da Igreja Romana, defendida junto ao
Programa de História Comparada da UFRJ, analisamos na obra de

1 Douto e Hist ia Co pa ada pelo P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia


Co pa ada da U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o PPGHC/UFRJ , Pes uisado
ola o ado do P og a a de Estudos Medie ais PEM/UFRJ e histo iado do Museu
Ae oespa ial o Rio de Ja ei o.
2 A idade italia a de Sie a pode se g afada ta o o Se a. Opta os po usa Se a.
203
Antônio, na qual são utilizados diversos animais, tanto reais como
inventados, como linguagem simbólica. A partir de uma comparação dos
Sermões com os bestiários medievais, concluímos que um dos objetivos
do frade era disciplinar o clero para que esse não fosse alvo fácil diante
das críticas dos cátaros. Antônio participa dessa forma do amplo
processo conhecido como Reforma Eclesiástica, vivido pela Igreja
Romana do período, e prepara os frades e demais clérigos para as
missões de combate heresia cátara.
Em nosso doutorado, sob a mesma orientação, comparamos a
obra sermonária de Antônio com a de um frade franciscano do século XV,
Roberto de Caracciolo. Na tese constatamos as mudanças e
permanências apresentadas pelo discurso franciscano no que tange a
temas como a confissão, os judeus, a cidade, a hierarquia eclesiástica, os
bens materiais e a condenação aos hereges.
Os Sermões Dominicais e Festivos,3 são uma obra composta de
duas partes distintas. Na primeira figuram os Sermões Dominicais, que
somam 53 sermões e foram escritos em Pádua durante o triênio em que
frei Antônio foi Ministro Provincial do norte da Itália (1227 – 1230). A
esses estão agregados mais quatro sermões para as festas marianas,
colocados logo após o sermão para o décimo segundo domingo depois
de Pentecostes.
A partir do fim de 1230, o frade iniciou a confecção da segunda
parte, os Sermões Festivos, que foram escritos até o agravamento de sua
doença, que o levou a morte em 1231. Antônio escreveu esse último
conjunto partir das ordens de Rainaldo de Jenne, Cardeal de Óstia, que
viria a se tornar o papa Alessandro IV.4 Contudo, sua saúde só permitiu a
escrita de vinte sermões, indo até a festa de São Paulo, que ocorre no dia
30 de junho.
Além do pedido do Cardeal, frei Antônio nos informa, no Prólogo
da sua obra, que esta fora produzida para a honra de Deus, edificação
das almas e consolação, tanto dos leitores como dos ouvintes, e que a tal
fora soili itada pelos rogos e caridade dos seus confrades.5 Há que se

3 REMA. He i ue Pi to. I t oduç o. I :___. ed. . Sa to A t io de Lis oa. O as


Co pletas: Se es Do i i ais e Festi os. Po to: Lello & I o, . p. XXVI.
4 Esta i fo aç o foi e o t ada o site . e sagei osdesa toa to io. o .it.
A esso: Jul. .
5 REMA. He i ue Pi to, Op.Cit.

204
destacar que com a autorização de Francisco para o ensino de Teologia
na Ordem e a criação entre o ano de 1223 e 1224 da escola de teologia
dos menores em Bolonha, Antônio passou a ser o protagonista de uma
grande mudança no modo de atuação da Ordem dos frades menores, 6
que deixaram de ser simples pregadores itinerantes a repetir versículos
e a impressionar pelo exemplo, uma vez que andavam maltrapilhos e a
mercê das intempéries, passando a ser grandes pregadores e destacados
intelectuais. Logo, era necessário produzir materiais para o estudo e
consulta dos frades a fim de fornecer apoio na elaboração das suas
pregações.
Antônio, após a autorização de Francisco de Assis para que se
tornasse mestre de teologia, realizou missões de pregação por todo o
norte da Península Itálica e sul da França. Adquiriu nessa empreitada a
ideia da necessidade de reforma do clero, presa fácil para o ímpeto dos
contestadores da Santa Sé. Então, dentro do contexto que viveu,
formulou um discurso religioso, assim como o de seu fundador. Seus
Sermões, segundo podemos constatar em nossa dissertação de
mestrado, são uma admoestação aos membros da Igreja. Assim, tratou
de como deveria ser o comportamento dos pregadores, dos clérigos em
geral, bispos, padres, monges, frades e penitentes, além de tratar dos
fiéis, principalmente os mais influentes.
Sua o a u a ual did ti o- ate u ti o de p egaç o, aseado
os te tos í li os, ue s o i te p etados po sa e es filos fi os,
teol gi os, p ofa os e ie tífi os da po a. Qua to ao uso da Bí lia,
A t io, ue o he ido o a al u ha eligiosa de A a do
Testa e to, de ido a seus o he i e tos í li os, e í io a utilizaç o
dos te tos sa os.
O f ade po tugu s apoia-se todo o te po os te tos dos Pad es
da Ig eja e dos p i ipais auto es l ssi os a sua disposiç o. Al disso,
la ça o de u lati ue o side ado ulto pela aio ia dos te i os
ue se de uça so e sua o a.
Nosso o jeti o a ui t ata do te a o fiss o a o a do f ade.
Bus a os de ate algu as das a a te ísti as ap ese tadas po ele e
elaç o a esse sa a e to at li o. Se do assi , ual a i po t ia da
o fiss o pa a ele? Quais auto idades ele utiliza pa a e asa sua

6 HARDICK, Lotha . Sa to A t io: Vida e Dout i a. Pet polis: Vozes, . p. .


205
p oposta? Que alego ias t a alha pa a e pli ita o te a? Seu dis u so
est ali hado o o da Ig eja Ro a a? Estas se o, e t o, as p i ipais
pe gu tas as uais al eja os espo de .
Para tanto, visualizaremos as nossas fontes e nosso objeto de
pesquisa, que é o sermão franciscano do século XIII, através da lente da
Análise de Discurso.
Para nós a Análise de Discurso não é simplesmente uma
observação linguística, ou seja, apenas um olhar apurado sobre a parte
gramatical da língua. Trata-se também de uma análise sobre as
características externas a ela, mas que são fundamentais em uma
abordagem discursiva. Assim, os elementos históricos, sociais e
ideológicos fazem parte do ambiente de construção de um discurso e
nele se refletem. Dessa maneira o estudo da língua não pode separar-se
dos aspectos sociais e históricos.7
Destarte o sujeito produtor do discurso é marcado pela
historicidade. Situado na história do seu grupo social, em um tempo e
espaço concreto. Ele é também um sujeito ideológico, pois seu texto
retém valores e crenças de um determinado grupo. Não cria um discurso
inédito, único, pois além de ser, como Orlandi afirma, um continuum,
divide o espaço com outro, porque pensa, organiza e molda sua fala
tendo como objetivo o interlocutor com quem dialoga, a partir de outras
falas.8
Segundo Maingueneau, o discurso ultrapassa o nível gramatical.
Nele deve-se levar em conta os interlocutores e a situação em que o
discurso foi produzido. Além do conhecimento da língua, aqueles que se
comunicam devem estar a par de qual deve ser o discurso adequado no
momento, que temas devem ser tratados, conhecimento do seu papel
social e daqueles com os quais vão se comunicar.9
Por isso é importante entendermos que o discurso antoniano é
uma orientação aos pregadores e estudantes de teologia da Ordem dos
Frades Menores, escrito em um latim rebuscado e em forma de manual
de pregação. Porém, o autor sabia que sua voz iria ser amplificada. Por
isso, escreveu um texto para toda a cristandade e em especial para os
membros do clero.

7I ide .
8ORLANDI, E i Pul i elli. Dis u so e Leitu a. Ca pi as: U i a p/Co tez, . p. .
9 I ide , p. .
206
Se es A to ia os da Qua es a e a Co fiss o
A data litú gi a ue i i ia a o st uç o do te to a to ia o o a
es a ue p i ipia a o ale d io litú gi o da Ig eja Ro a a. O
ale d io da i stituiç o foi o ga izado a pa ti de u siste a de di is o
do te po, ue se asea a as fases lu a es ue se o pleta a e
dias. Essa fo a de o ga izaç o do te po e a usada desde o s ulo IX e
hoje ai da e p egada pela Ig eja Cat li a Apost li a Ro a a. O
siste a e uest o te o o a o i i ial o p i ei o do i go do
ad e to, festa ue a ia e t e os dias e de o e o, o fo e a
data ue ai o do i go da p s oa.
Assi , ao i s de utiliza o ale d io da Ig eja, A t io optou
po es e e sua o a o ela io a do-a o as leitu as do A tigo
Testa e to, ue e a feitas de a o do o a e itaç o do Ofí io Di i o,
a o aç o ofi ial da Ig eja Ro a a. Dessa fo a, o p i ei o se o
efe ia-se ao a tigo do i go da Septuag si a, po a do a o o ual as
leitu as e a ti adas do p i ei o li o da Bí lia, o G esis. O últi o
se o esta a ela io ado ao te ei o do i go depois da oita a da
Epifa ia.10 Se do assi , o p i ei o g upo de se es ue s o
ap ese tados a o a a to ia a s o os da Qua es a.
A partir das características da águia, o frade trata, no Sermão do
Primeiro Domingo da Quaresma, do sacramento de confissão.
Diz-se no Apocalipse: Foram dadas à mulher duas asas
duma grande águia, a fim de voar para o deserto. Esta
mulher significa a alma penitente. Dela diz o Senhor: A
mulher, isto é, a alma, quando dá à luz o pecado na
confissão, que ela concebeu no deleite, tem tristeza. E
deve tê-la. A esta mulher são dadas duas asas de águia.
A águia, assim chamada pela agudeza da vista ou do bico,
significa o varão justo. De fato, a águia é de vista
agudíssima, e quando o bico, por causa da demasiada

10 Segu do Jos Reis Cha es, A pala a epifa ia do G ego epipha eia: ap ese taç o,
apa iç o e p egada pelo ale d io litú gi o da Ig eja, pa a desig a a ap ese taç o
de Jesus C isto aos po os. Isso se deu o o o he ido epis dio da isita dos Reis Magos
ao Me i o Jesus. E, o a efo a do itado ale d io e , ap s o Co ílio
Vati a o º, a Ig eja t a sfe iu essa festa litú gi a pa a o º do i go depois do Natal .
CHAVES, Jos Reis. Epifa ia. Dispo í el e : <http:// .po taldoespi ito. o . /po tal/
a tigos/jose- ha es/epifa ia.ht l>. Co sultado e : Jul .
207
velhice, começa a engrossar, aguça-o contra uma pedra
e desta forma rejuvenesce.11

Segundo ele, para aliviar-se e sentir-se bem e em condições de


aproveitar ao máximo o que a divindade tinha a lhe oferecer, os fiéis
precisavam confessar. Nesse momento, o religioso segue a lógica dos
Bestiários Medievais, obras que narram as características dos animais.
Assim, ele se utiliza da águia, que para voltar a alimentar-se
adequadamente, deveria amolar o bico. Enquanto o fiel, que tem seu
bico, isto é, o afeto do entendimento engrossado por qualquer pecado,
para comungar, deveria, primeiro, amolar seu bico na confissão.
Vale salientar que no momento em que a obra Sermões
Dominicais e Festivos foi escrita, tal sacramento ganhava uma relevância
muito grande para a Igreja Romana. Segundo as orientações da
instituição, os fiéis deveriam buscar os sacerdotes para confessarem-se
ao menos uma vez ao ano. Assim, este ato passou a ser uma atitude
essencial para a salvação da alma. Através dos documentos emitidos pela
Sé de Roma da primeira metade do século XIII, podemos constatar que
Antônio foi um eco da instituição ao pregar a revalorização do
sacramento da confissão, como podemos atestar no cânone 21 do
Concilio Lateranense IV:
21. Da confissão, do segredo da confissão e da obrigação
da comunhão pascal. Todo fiel, de um ou outro sexo,
uma vez chegado ao uso da razão, deve confessar
sinceramente todos os seus pecados por si mesmo a seu
pároco, ao menos uma vez ao ano, cumprir com esmero
na medida de duas possibilidades a penitência que lhe
houvera sido imposta e receber com respeito, ao menos
na páscoa, o sacramento da eucaristia, a não ser por
conselho de seu pároco, por uma razão válida, julgue que
deve abster-se do mesmo temporariamente. Se não for
assim que seja separado ao longo da vida ab ingressu

11 Di itu i Apo al psi: Datae su t ulie i duae alae a uilae, ut ola et i dese tu .
Mulie ista a i a poe ite te sig ifi a t, de ua di it Do i us i Ioa e: Mulie , idest
a i a, u pa it i ofessio e pe atu , uod o epit i dele tatio e, t istitia ha et,
et de et ha e e. Hui ulie i da tu duae alae a uilae. A uila, a a u i e isus el
ost a si di ta, i u iustu sig ifi a t; A uila e i a utisi i est isus, et ua do
ost u p ae i ia se e tute g osses it, ad pet a a uit, et ita eiu e es it. T aduç o
He i ue P. Re a. I : SANTO ANTÔNIO. Op. Cit., p. .

208
eclesiae e que depois de morto lhe seja negada a
sepultura cristã. Este decreto encaminhado para a
salvação das almas, deve ser publicado com frequência
nas igrejas, de maneira que ninguém possa esconder-se
na ignorância. Todo aquele que deseje, por razões
legitimas, confessar seus pecados a outro sacerdote deve
anteriormente solicitar e obter para isso a autorização de
seu pároco; de outra forma este sacerdote não pode
absolver-lhe, ou reter seus pecados validamente. O
sacerdote, por sua parte, deve trabalhar com
discernimento e prudência, para saber, como médico
e pe i e tado despeja o i ho e o azeite [L , ]
nas feridas de quem o necessite, para recuperar o atraso
com cuidado e delicadeza da situação pessoal e concreta
do pecador e as suas circunstâncias do pecado, para
saber escolher com todo o tato o conselho necessário e
oportuno e finalmente para aplicar o remédio
apropriado, tendo em conta que são diversos os meios
capazes de curar a enfermidade. Que o confessor se
cuide para não trair o pecador, trate do que se trate [a
confissão], com palavra, com gesto ou de qualquer outra
maneira. No caso de o confessor acreditar que é
necessário um conselho que esclareça as coisas, que o
solicite, porém, sem revelar de jeito algum a pessoa do
pecador. Determinamos que quem revelar o pecado
confessado ante o tribunal da penitência, seja não
somente despossuído do ministério sacerdotal, como
reduzido perpetuamente ao estado de penitência em um
mosteiro da mais severa observância.12

12 21. De confessione facienda et non revelanda a sacerdote et saltem in pascha


communicando. Omnis utriusque sexus fidelis postquam ad annos discretionis pervenerit
omniasua solus peccata confiteatur fideliter saltem semel in anno proprio sacerdoti et
i iu ta si i pœ ite tia studeat p o i i us adi ple e sus ipie s e e e te ad i us
in pascha eucharistiæ sacramentum nisi forte de consilio proprii sacerdotis ob aliquam
rationabilem causam ad tempus ab eius perceptione duxerit abstinendum. Alioquin et
vivens ab ingressu Ecclesiæ arceatur et moriens christiana careat sepultura.Unde hoc
salutare statutum frequenter in ecclesiis publicetur ne quisquam ignorantiæ cæcitate
velamen excusationis assumat. 21 Si quis autem alieno sacerdoti voluerit iusta de causa
sua confiteri peccata licentiam prius postulet et obtineat a proprio sacerdote cum aliter
ille ipsum non possit solvere vel ligare. Sacerdos autem sit discretus et cautus ut more
periti medici superinfundat vinum et oleum vulneribus sauciati diligenter inquirens et
peccatoris circumstantias et peccati per quas prudenter intelligat quale illi consilium
debeat exhibere et cuiusmodi remedium adhibere diversis experimentis utendo ad
sanandum ægrotum. Caveat autem omnino ne verbo vel signo vel alio quovis modo
209
Nesse cânone, além de determinar a obrigatoriedade de se relatar
todos os pecados ao sacerdote e comungar pelo menos uma vez ao ano,
são dadas orientações aos padres sobre como deveriam proceder ao
ouvir a confissão e é sublinhado que os segredos relatados pelos fiéis
não poderiam ser revelados sob pena de perda do ministério sacerdotal.
Neste sentido, Antônio orienta o seguinte aos presbíteros
Guardai-vos, portanto, ó confessores, ó sacerdotes, de
subir a este monte, pois subir ao monte é revelar o
segredo da confissão. Não digo somente que não subais,
mas também que nem toqueis nos seus limites. Os
limites do monte são as circunstâncias da confissão, que
ninguém deve tocar, nem com uma palavra, nem com
um sinal ou algum outro modo. (...) todo aquele que
tocar o monte, diz o Senhor será punido de morte.13

O ex-agostiniano, no segundo Sermão do Primeiro Domingo da


Quaresma, trata da confissão por ser a quaresma um momento dedicado
à penitência entre os fiéis da Igreja Romana. Para ele, por causa desse
sacramento, o pecador deveria confessar todos os pecados, que ele
relaciona a alguns animais:
Nota que nesta sentença citam-se sete espécies de
bestas: o dragão, o avestruz, os onocentauros, isto é, o
asno e o touro, o peludo, a lâmia e o ouriço. (...) no
dragão nota-se a malícia venenosa do ódio e da detração;
no avestruz, a mentira da hipocrisia; no asno, a luxúria;
no touro a soberba, nos peludos a avareza e a usura, na
lâmia perfídia herética; no ouriço, a escusa matreira do
pecador. 14

prodat aliquatenus peccatorem sed si prudentiori consilio indiguerit illud absque ulla
e p essio e pe so æ aute e ui at uo ia ui pe atu i pœ ite tiali iudi io si i
detectum præsumpserit revelare non solum a sacerdotali officio deponendum
de e i us e u etia ad age da pe petua pœ ite tia i a tu o aste iu
detrudendum. Tradução de Raimunda Foreville. In: FOREVILLE, Raimunda. (Ed.).
Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973, p. 174.
13 Ca ete e go, o o fesso es, o sa e dotes, est as e datis i hu o te . I o te
e i est as e de e se etu o fessio is de uda e. No ta tu di o o as e datis,
sed etia e fi es eius ta gatis. Fi es o tes su t i u sta tiae o fessio is, uas e
e o, e sig o el ali uo odo uis de et ta ge e. ... O is, i uit Do i us, ui
tetige it o te , o te o ietu . REMA, H. Op. it.,
14 Nota uod i ha au to itate po u tu septe ge e a estia u , uae su t d a o,
st uthio, o o e tau i, idest asi us et Tau us, pilosus, la ia et e i ius. ... I d a o e
210
Segundo frei Antônio, problemas como a heresia estavam ligados
às deficiências que a própria Igreja Romana apresentava. Um deles era
uma certa tolerância diante dos pecados. Para ele, somente através da
penitência e da consciência de que o pecado era um mal é que a
Cristandade conseguiria se reconciliar com Deus. Por isso, ele
preocupou-se em combater algumas modalidades desse mal. Para o
religioso português, existiam sete espécies de pecados que deveriam ser
confessados. Mas um, em particular, o preocupava:
[...] o ouriço é todo coberto de espinhos. Se alguém
pretender apanhá-lo, esconde-se todo dentro de si e
torna-se como esfera na mão de quem o segura; tem a
cabeça e a boca na parte inferior, e na boca possuí cinco
dentes. O ouriço é o pecador obstinado. Rodeado por
toda a parte pelos espinhos dos pecados. Se pretenderes
argüi-lo [sic] de pecado perpetrado, recolhe-se
inteiramente dentro de si e esconde-se, escusando a
culpa cometida. E assim tem a cabeça e a boca na parte
inferior. A cabeça designa o entendimento; a boca, a fala.
O pecador, ao escusar-se da iniqüidade [sic] perpetrada,
que faz senão inclinar o entendimento; e as palavras para
a parte inferior, para as coisas terrenas? Por isso, diz-se
também ter cinco dentes na boca. Os cinco dentes na
boca do ouriço são os cinco modos de escusas na boca
do obstinado. De fato, ao ser argüido [sic], ou se escusa
de ignorância, ou de má sorte, ou de sugestão do
demônio, ou de fragilidade da sua carne, ou de que o
próximo foi a ocasião.15

otatu odii et det a tio is e e osa alitia, i st uthio e h po isies falla ia, i asi o
lu u ia, i tau o supe ia, i pilosis a a itia et usu a, i la ia hae eti a pe fidia, i e i io
e suta pe ato is e usatio. I ide , p. .
15 ... e i ius totus est spi osus, ue si uis ape e olue it, totu se i t a se a s o dit

et effi itu uase sphae a i a u te etis; aput et os ha et i fe ius et i t a os ha et


ui ue de tes. E i ius est pe ato o sti atus, spi is pe ato u u di ue o situs. Hu
si de pe ato pe pet ato eda gue e olue is, stati se i t a se e olligit et ulpa , ua
o isit, e usa do a s o dit. Et si aput et os ha et i fe ius. I apite e s, i o e
lo utio desig atu . Pe ato , du se de pe pet ata e uitia es usat, uid aliud fa it, isi
uod e te et e a i fe ius ad te e a i li at? U de et di itu ha e e ui ue de tes
i o e. Qui ue de tes i o e e i ii su t ui ue odi e usatio u i o e o sti ati. Cu
e i eda guitu , aut e usat se ig o a tia, aut fo tu a, aut dia oli suggestio e, aut suae
a is f agilitate, aut p o i i o asio e. I ide , p. - .
211
Antônio trata, ao citar o ouriço, dos fiéis que fugiam da confissão,
por preferirem praticar o que era condenado pela doutrina da instituição
romana. E, quando se confessavam, sempre colocavam a culpa de seus
erros em fatores externos e nas suas fraquezas. Para o frade, isto era
simplesmente uma desculpa e não justificava suas atitudes. Ou seja, era
necessário criar uma consciência de pecado pessoal, na qual cada um,
individualmente, reconhecia-se responsável pelos seus atos.
Segundo Delumeau, a confissão deveria inquietar o pecador, para
depois confortá-lo. Era uma troca, para que o fiel fosse confortado e
amparado pela Igreja Romana, através do perdão dos pecados, deveriam
ser reveladas todas as faltas dos pecadores.16 A Igreja Romana, portanto,
propõe o medo e a culpa aos fiéis, mas coloca a si própria como solução
para esse problema. Ser pecador é estar fora dos planos de Deus, mas se
ele procurar o confessor retornará ao caminho da salvação da danação
eterna. Isso, sem dúvida, é uma forma de se empoderar da divindade. O
poder de Deus perpassa, então, pelas mãos, ou melhor, pelos ouvidos e
bocas do sacerdote.
Neste mesmo sermão é utilizada a simbologia da cítara. O
português afirma como nesse instrumento musical, no qual as cordas
ficam estendidas e expostas, as circunstâncias do pecado devem ser
mostradas através da confissão. A partir daqui ele apresenta um
pequeno manual de orientação sobre as principais questões que devem
ser respondidas na confissão, demonstrando as circunstâncias do
pecado, que são: quem, o quê, onde, por quem, quantas vezes, porque,
de que modo, quando.
Diante do desafio de implementar de forma satisfatória o
sacramento da confissão, surgiram a partir do século XIII textos que
buscavam orientar tanto os fiéis como os confessores, com o intuito de
disseminar essa prática e orientar em relação à sua correta realização.
Dentre esses escritos, encontramos dois tipos principais: Sumas de
Confessores e os Manuais de Confissão.
Interessam-nos aqui os manuais, que foram escritos tanto para os
padres com a incumbência de ouvirem confissões quanto para os
penitentes que quisessem se preparar para uma confissão.17 Esses textos

16 DELUMEAU, J. O pe ado e o edo. A ulpa ilizaç o o O ide te s ulos XIII-XVIII . S o


Paulo: EDUSC, . p. .
17 I ide , p. .
212
tinham objetivo didático. Eles deixam claro que não era só a obrigação
que levava o fiel a confessar. Além do medo e da culpa, todo um
arcabouço teórico teológico era usado para o convencimento da
importância do ato de confessar.
Segundo Foucault, a característica didática dos Manuais de
Confissão é uma forma de exercício de poder. Os confessores,
representantes da Igreja Romana, tornaram-se intermediários
indispensáveis da remissão dos pecados. Ou seja, a partir do XII, quando
instituiu o sacramento da confissão, a Igreja Romana se apoderou da
remissão dos pecados, que exigia uma confissão regular ao padre. Como
o fiel não pode revelar sua culpa para Deus diretamente, ele depende de
um sacerdote, que funciona, poderíamos dizer, como ouvidos, cérebro
e boca da divindade, que pressiona, questiona e examina. Como vimos
pelas perguntas das circunstâncias do pecado, foi criado um sistema
codificado de interrogação ou a Teologia Sacramental da Penitência, que
criou uma fórmula específica de realizar o processo.18
Para M. Fernandes, os manuais fazem parte da ação reformadora
e catequética da Igreja Romana, que objetivava o controle social, a
formação do clero e a orientação dos fiéis na busca do
autoconhecimento. Dessa maneira, tornaram-se propaganda da
doutrina do pecado, o que esclarecia que a ideia de pecado fazia parte
do cotidiano, porém a certeza de quais seriam as atitudes consideradas
pecaminosas ainda necessitava de uma melhor compreensão.19
A primeira pergunta das circunstâncias do pecado era quem? Ou
seja, quem seria o pecador, isto é, qual era a identidade de quem estava
confessando. Seria casada? A qual classe social pertencia? Qual era a sua
profissão ou ocupação? Pertencia ao clero ou não?
Depois vinha outra indagação o quê? Isto é, qual pecado havia
cometido e quantas vezes. Em relação a essa pergunta o autor explica:
Se simples fornicação, como sucede quando peca
solteiro com solteira, e no caso de solteira, se é meretriz
de corpo prostituído ou alugado; se é adultério; se
incesto, próprio de consangüíneas [sic] e afins; se
corrompeu uma virgem: por ter aberto o caminho ao

18 FOUCAULT, M. Os A o ais. Cu so Coll ge de F a e - S o Paulo: Ma ti s


Fo tes, . p. .
19 FERNANDES, M. L. C.. As A tes da Co fiss o. E to o dos a uais de o fesso es do
s ulo XVI e Po tugal. Hu a ísti a e Teologia, . II, p. - , . p. .
213
pecado, pecou gravissimamente, e tenha cautela de não
se tornar participante de todos os pecados que ela vá
cometer, não lhe facultando lugar para penitência, ou o
matrimônio, se se lhe oferecera possibilidade; se pecado
contra natureza se derrama sêmen fora da matriz da
mulher: isto deve inquerir-se com a máxima cautela e por
longe; se cometeu homicídio por desejo, palavra ou na
realidade; se sacrilégio, rapina ou furto e com que
pessoas e se publicamente ou em privado; se praticou
usura e de que modo, pois tudo o que se recebe além do
que lhe cabe em sorte chama-se usura; se fez perjúrio,
falso testemunho e de que modo; pecou em alguma das
três espécies de soberba: não querer obedecer ao
superior; não querer ter igual; desprezar o inferior: tudo
isto devemos absolutamente confessar.20

Continuando com as circunstâncias temos a pergunta o de? ...


isto é, se em igreja consagrada ou não, ou perto de igreja ou no cemitério
dos fiéis, ou noutro lugar dedicado à oração cometeu o pecado, ou falou
de coisa ilícita.21
Logo ap s o f ade la ça out a pe gu ta so e o delito, por
ue ? Ou seja, (...) por auxílio ou conselho de quem pecou, ou fez
pecar outros; se poucas ou muitas pessoas tomaram parte ou
conheceram o seu pecado; se pecou por causa de dinheiro dado ou
recebido.22

20 ... si si ple fo i atio, ut est solutus u soluta, et uae fuit soluta, si e et i


p ostituti el lo ati fue it o po is; si adulte iu ; si i estus, ui est o sagui ea u et
affi iu ; si i gi e o upit, uia ape uit ia pe ato, g a issi e pe a it, et a eat
si i e pa ti eps sit o iu pe ato u uae illa o ise it, isi ei p o ide it i ali uo
lo o, u i agat poe ite tia , el i at i o io, si fa ultas ei suppetit; si pe atu o t a
atu a , uod fit uo u ue odo s e effu ditu p aete i as ulu ulie is. Et
ho autissi e et a e otis de et i ui i. Si ho i idiu e te, o e, el a u fe it; si
sa ilegiu , api a et fu tu , et ui us pe so ie, et si pu li e el p i ate; si usu a , et
uali odo fe e it; si supe ia ha uit, uius t s su t spe ies: supe io i olle o edi e,
ae uale olle ha e e, i fe io e o te e e: hae etia de e us o i o o fite i.
REMA, H. Op. Cit. p. - .
21 ... id est si i e lesia sa ata el o sa ata, el iu ta e lesia , el i oe ete io
fideliu , el i ali uo lo o o atio i dedi ato pe atu o ise it, el de e illi ita lo utus
fue it. I ide , p. .
22 ... uo u au ilio el o silio pe a it, el alios pe a e fe it; si pau i el ulti so ii
et o s ii fue u t eius pe ati; si p opte pe u ia data el a epta pe atu
o isit. I ide .
214
Depois disso era questionado sobre quantas vezes. Era necessário
declarar a quantidade de vezes, ou seja, a assiduidade, se o ato havia
sido demorado e se, após várias confissões, voltou a pecar. Seguindo o
i u ito a uest o passa a a se porquê? (...) isto é, se preparou a
tentação com o consentimento do espírito ou com a efetivação da obra;
se de algum modo violentou a natureza para realizar o pecado, e então
pecou muito mortalmente.23
Em seguida o frade orienta ao leitor, que deve perguntar de que
modo? Ou seja, o o? (...) de que modo cometeu o pecado: se de modo
indevido, de modo extraordinário, se com tacto ilícito, etc.24
E po últi o quando? (...) se no tempo de jejum, se na festa de
algum santo; se quando devia ir à igreja foi a uma coisa ilícita; também
que idade tinha quando cometeu este ou aquele pecado.25
Para o frade, o fiel deveria explicitar todas as suas culpas a um
único sacerdote e espelhar-se no rugido do leão, que
é a confissão do penitente, de que fala o Profeta: O
gemido do meu coração arranca-me rugidos, porque do
gemido do coração deve sair o rugido da confissão. Ao
ouvi-lo, os espíritos malignos, aterrados, não presumem
proceder a tentações. 26

Pois ele es o afi a ue Ao ugido do le o todas as estas


sust o passo , dize do ue esse sa a e to o pode ia se
praticado com superficialidade. Segundo os bestiários, o rugido do leão
era capaz de ressuscitar seu filhote no terceiro dia após sua morte.
Assim, ao utilizar a figura do rugido do leão, o frade estava defendendo
que a confissão faria Cristo renascer no coração dos fiéis. Assim, era
necessário que toda a cristandade buscasse tal sacramento, e como leão,
não adormecesse nunca e estivesse sempre a vigiar. O arrependimento

23 Cu , idest si e tis o se su el ope is effe tu p ae e it te tatio e ; si ali uo odo


fe it i atu ae, ut pe atu o ple et, et tu o talissi e pe a it. I ide , p. .
24 ... uali odo pe atu o isit; si i d ito odo, si e t ao di io, si ta tu illi ito,
et si de o si ili us. I ide .
25 Qua do, idest si i te po e ieiu ii, si i festo ali uius sa ti; si ua do de uit i e ad

e lesia i it ad e illi ita ; i ua etia aetate e at ua do o isit illut el illud


pe atu . I ide .
26 ... est o fessio poe ite tis, de uo P opheta: Rugie a , i uit, a ge itu o dis
de et e i e ugitus o fessio is, uo audito, alig i spi itus, pete iti, ad te tatio es
p o ede e o p aessu u t. I ide , p. .
215
de atos cometidos anteriormente, portanto, deveria ser verdadeiro e ter
a força de espanta os espí itos alig os .
No Sermão do Terceiro Domingo da Quaresma o frade afirmou
que,
Conta-se que existe uma ave27que, se olhar fixamente o
rosto do enfermo, este curar-se-á por completo; se
porém, desviar do rosto do enfermo a vista ou olhar em
oblíquo, é sinal de morte. Também o pecador, se levantar
os olhos em linha reta e vir e conhecer os seus pecados,
crê-me que viverá e não morrerá, se porém olhar em
oblíquo, ou confessar os seus pecados fingidamente, ou
desculpando-os, é sinal e indício de condenação
eterna.28

Essa ave era a calhandra ou carádrio, porque tinha como uma de


suas características principais a taumaturgia. Ao citá-la, Antônio quer
mostrar como deve proceder um fiel que vai confessar os seus pecados
ao sacerdote católico. Como a Igreja Romana vivia um momento litúrgico
que propiciava a prática de tal sacramento, ele queria ensinar aos fiéis
que uma confissão fingida, em vez de curar, iria matar o fiel; isto é, em
vez de salvar a sua alma, iria condená-lo eternamente.
Diz-se em ciências naturais que as éguas não se doem
quando dão a luz e abortam com o fumo de torcida mal
apagada. Assim se comportam alguns pecadores, que ao
confessarem os pecados, dizem-nos sem trabalho e sem
dor. Mas a mulher quando dá a luz está em tristeza, diz o
Senhor. E quando em tais indivíduos está mal apagada a
torcida da graça, enfumarando a concupiscência,
abortam, isto é, dão à luz o pecado.29

27 No su io do Se o o f ade a o eia alha d a.


28 Fe tu esse ua da a e , uae si e to et di e to i tuitu o ulo u i fi i fa ie
aspe e it, i fi us o i o li e a itu ; si e o a ipsius i fi i fa ie a is o ulo u suo u
i tuitu a e te it, el i o li ua pa te aspe e it, sig u est o tis. Si pe ato , si
ulos suos i di e tu le a e it et pe ata sua ide it et og o e it, ede ihi, uia ita
i et et o o ietu . Si e o i o li uu aspe e it, el si ulato ie, el palliate pe ata
sua o fessus fue it, sig u et i di iu est aete ae da a atio s. REMA, H. Op. Cit. p.
.
29 Di itu i Natu ali us, uod e uae o dole t u pa iu t et p opte fu u lu i is
e ti ti a o su fa iu t. Si uida pe ato es, ui, u pe ata sua o fite tu , si e
la o e et dolo e ipsa pa tu iu t; sed ulie u pa it t istitia ha et, di it Do i us; et
ua do i tali us e ti tu est lu e g atiae fu a te o upis e tia, a o su fa iu t,
216
Uma confissão feita friamente não era verdadeira segundo o
religioso. Para ele, os que assim se comportavam eram como as éguas
que não sentiam as dores com o que saía de dentro delas. Eles
precisavam envergonhar-se e penitenciar-se, pois o arrependimento do
pecado era algo doloroso. E quando confessavam sem arrependerem-
se, era como se abortassem sua confissão, continuando a pecar.
Continuando, frei Antônio utiliza outra ave para exemplificar
como deveria ser praticada a confissão. Segundo ele,
Devemos então proceder como o cisne, que morre a
cantar. E dizem que isto acontece por causa duma pena
que tem na garganta. E contudo, aquele canto é-lhe
doloroso. O cisne branco é o pecador convertido à
penitência, tornado mais alvo que a neve. Este, em artigo
de morte, deve cantar devotamente, isto é, repensar os
próprios pecados na amargura da sua alma. A pena na
garganta do cisne é o conhecimento do pecado e da
confissão na boca do justo. Dela deve proceder um canto
doloroso, porque então é repleto de fruto.30

O franciscano insiste que a confissão deve ser um momento de


dor. Pois o fiel deve relembrar suas faltas, resignando-se delas e
buscando a conversão para ficar tão alvo como o cisne branco, isto é,
sem nenhuma mácula. Sua confissão deve ressoar como o canto da ave
ao saber que vai morrer, pois ao conhecer seu pecado e confessá-lo,
sabe que encontrará sua salvação.
Em seus sermões da quaresma, Antônio busca tratar dos
pecadores, mas, sobretudo, da importância de confessar os erros. Mas
essa confissão não deveria, na perspectiva do franciscano, ser um ato
mecânico. Esse ato deveria ser acompanhado de diversos sentimentos,
como contrição, tristeza, vergonha, etc... Assim, em tom pastoral, o
frade busca conscientizar os fiéis, leigos ou eclesiásticos, não só sobre

idest pe atu pa iu t. I ide , p. .


30 Tu e i de e us fa e e si ut fa it g us, ui, ua do o itu , a ta do o itu ;
et ho di u t o ti ge e p opte ua da plu a , ua ha et i guttu e; sed ta e
a tus ille dolo osus est ei. C g us al us est pe ato o e sus, supe i e deal atus.
Hi i a ti ulo suae o tis de ote de et a ta e, idest pe ata sua i a a itudi e a i ae
suae egogita e. Plu a i g i guttu e est pe ati otitia et o fessio i o e iusti, e uo
de et p o ede e a tus dolo osus, uia tu alde f u tuosus. I ide , p. .
217
quais os eram pecados para a Igreja Romana, mas que era fundamental
confessá-los para os sacerdotes.

Co side aç es fi ais
Podemos ver então que a confissão era um sacramento ao qual Frei
Antônio deu uma grande importância. Com suas alegorias e citações bíblicas
e de pensadores da Antiguidade, ele argumentou que ela fazia parte do
caminho do fiel para a salvação da alma. Isso se dava, uma vez que, o pecado
era o impedimento tanto para os fiéis como para os eclesiásticos de sua ida
ao paraíso.
Ele condenou os pecados, listou os mais torpes e mostrou como
deveria ser realizada a confissão. Notamos que esta parte explicativa, apesar
de poder ser acessada pelos cristãos em geral, era direcionada a auxiliar os
frades, ou a outros clérigos, que quisessem tornar-se confessores. Escrevendo
em forma de questionário, com perguntas e respostas, ele demonstrava
como deveria se realizar as perguntas aos fiéis.
Além disso, chamou a atenção dos cristãos de que os pecados tinham
que ser revelados. Mesmo que fosse doloroso e constrangedor as faltas
deveriam ser relatadas ao confessor. Apesar de não transparecer isso no seu
texto, Antônio corroborava com o controle social buscado pela Igreja.
Como vimos, a confissão passou a ser uma das formas de vigilância que
a Santa Sé utilizou de forma mais intensa, exatamente na época em que o
frade escreve seu texto. Para cumprir essa diretriz ele, como mestre, passou
a usar toda didática disponível em seu tempo para formar os homens da Igreja
e convencer aos fiéis.
Dessa forma, lança mão dos Bestiários Medievais e de textos dos
Padres da Igreja. Sua obra tem uma grande dramaticidade no intuito de
convencer através do medo. Medo da danação eterna. Nela podemos realizar
o exercício de imaginar a população nas praças ou templos em pânico e
buscando de forma urgente aos confessores.
Mesmo não sendo objetivo de nosso trabalho podemos aqui afirmar
que seus escritos aliados com a dramaticidade da pregação franciscana
medieval foram, então, uma grande arma de convencimento dos fiéis e do
clero em geral. E por isso uma pista fundamental para entender como a
instituição conseguiu, neste período, tornar-se hegemônica.

218
UMA ALTERNATIVA DE LEITURA SOBRE A POBREZA MEDIEVAL NO
NOVO TESTAMENTO: A TRAJETÓRIA CANÔNICA DA EPÍSTOLA DE TIAGO

Gabriel Braz de Oliveira31

Em suma: o Evangelho segundo João e sua primeira


epístola, as epístolas de Paulo, particularmente, as
dirigidas aos romanos, aos gálatas, aos efésios, e a
Primeira Epístola de Pedro, são livros que te apresentam
Cristo e te ensinam tudo o que é necessário e bom saber,
ainda que jamais visses ou desses ouvidos a qualquer
outro livro ou doutrina. Por isso, a epístola de Tiago é uma
epístola de palha comparada às outras, pois ela, de
qualquer forma, não tem característica evangélica.32

Introdução
Iniciei a minha pesquisa monográfica com o intuito de estudar a
pobreza mendicante, mais especificamente a temática da pobreza nos
primeiros anos da Ordem dos Frades Pregadores. Sendo assim, foi-me
recomendada a leitura do livro clássico de Michel Mollat: Os Pobres na Idade
Média.
No decorrer da leitura me deparei com a passagem na qual Mollat
afirma que grupos do século XII resgataram debates sobre uma fonte pouco
usual para a exegese medieval no tocante ao abuso da riqueza.33 Fiquei
surpreendido por se tratar de um livro canônico do Novo Testamento. Decidi
então investigar inicialmente o porquê do livro, apesar de canônico, ser
tratado com cautela por uma parte considerável dos exegetas. Elaborada a
questão fundamental para a pesquisa, o objetivo traçado então esteve em
refletir a respeito da trajetória do documento canônico ao longo dos anos e
sobre a questão da pobreza em evidência na epístola.
O presente trabalho é fruto de uma investigação inicial e

31 Graduando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista


PIBIC/CNPq pelo Programa de Estudos Medievais (PEM/UFRJ).
32 Martinho Lutero, 1522, em seu prefácio ao Novo Testamento. Cf. MARTINHO LUTERO.

Pelo evangelho de Cristo: obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Belo


Horizonte: Perspectiva teológica, 1985, p.176.
33 MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990,

p.103.
219
encontra-se estruturado em quatro partes que debatem, de maneira
breve, primeiramente algumas das características do documento
selecionado, como as principais temáticas contidas na epístola, a autoria
e a datação. Na sequência, o foco é deslocado para o conteúdo histórico
hermenêutico da documentação, principalmente na patrística, no qual
busco reunir comentários realizados sobre a carta por diferentes
personagens, em momentos distintos. Por fim, finalizo o presente artigo
ao apresentar uma das leituras possíveis para o tema da pobreza na
Epístola de Tiago.34

Os detalhes de Tiago: Apresentação do documento


A Epístola de Tiago corresponde a uma das sete cartas que
compõem o chamado grupo das Epístolas Católicas do Novo
Testamento. Essas cartas possuem origens bem diversas e, que ao longo
dos anos, suscitaram intermináveis discussões entre os estudiosos das
Sagradas Escrituras. Um dos poucos aspectos nos quais os
pesquisadores parecem concordar é que o conjunto das sete epístolas
recebeu essa terminologia devido ao perfil similar dos destinatários das
a tas. S o ha adas de at li as ou ge ais pelo fato de a aio ia delas
não ser dirigida a comunidades ou pessoas particulares, mas visar os
ist os e ge al .35 Completam o grupo das Epístolas católicas: uma de
Judas, duas de Pedro e três de João.
Duas grandes temáticas são abordadas ao longo da carta. A
primeira delas adverte severamente os ricos contra a exploração
acometida aos pobres. A segunda exalta a importância de uma vida cristã
acompanhada por boas obras. Nesse aspecto, a carta de Tiago suscitou
constantes discussões entre os estudiosos neotestamentários a respeito
de uma suposta contradição com o conteúdo das chamadas Epístolas
Paulinas,36 que considera a fé em Cristo o elemento essencial para a

34 Em relação à Bíblia adotada ao longo da pesquisa, foi utilizada a versão em português


da Bíblia de Jerusalém – Nova edição, revista e ampliada, publicada pela editora Paulus
em 2002. Os critérios para a escolha resumem-se ao acréscimo de informações que as
introduções e notas explicativas trazem para o corpo dos textos bíblicos, bem como uma
postura acadêmica no descrever das informações.
35 LECONTE, René. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002, p.2102.
36 Corresponde ao maior corpo epistolar do Novo Testamento. Compila documentos cuja

autoria é atribuída ao Apóstolo Paulo. São eles: Epístola aos Romanos, Primeira Epístola
aos Coríntios, Segunda Epístola aos Coríntios, Epístola aos Gálatas, Epístola aos Efésios,
220
salvação.37
A Epístola inicia com uma fórmula ge al de saudaç o: Tiago, se o
de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos da Dispersão:
saudaç es! .38 Aqui o autor utiliza uma fórmula introdutória muito
associada e reproduzida na retórica epistolar greco-romana:
inicialmente a referência ao remetente, a referência a Deus e/ou a Jesus
Cristo39 e aos destinatários da mensagem.
A delimitação geográfica e social dos destinatários é outro ponto
de discussão entre os estudiosos neotestamentários. Divergências de
opinião na possibilidade de a mensagem ter sido direcionada a todos os
cristãos da diáspora.40 Para R. Leconte, especialista na Epístola de Tiago
e membro da equipe de organização da primeira Bíblia de Jerusalém, a
resposta para a problemática é afirmativa. A carta teria sido enviada para
os cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano,
sobretudo nas regiões próximas à atual Palestina, como a Síria ou o
Egito.41
O escritor de Tiago se apresenta como um judeu-cristão muito
rigoroso na observância da Lei.42 As exortações morais e os exemplos, ao
longo da obra, mostram um homem que, perspicaz na sabedoria judaica

Epístola aos Filipenses, Epístola aos Colossenses, Primeira Epístola aos Tessalonicenses,
Segunda Epístola aos Tessalonicenses, Primeira Epístola a Timóteo, Segunda Epístola a
Timóteo, Epístola a Tito e, por fim, Epístola a Filêmon. O autor da Epístola aos Hebreus é
anônimo, mas tradicionalmente ela foi atribuída a Paulo. A Nova Edição, revista e
ampliada da Bíblia de Jerusalém separa Hebreus do conjunto das Epístolas Paulinas.
37 O foco do presente artigo não estará centrado neste tópico do documento, porém é

válido ressaltar que atualmente os documentos são vistos nos principais comentários
não como opostos, mas sim complementares. A Vida cristã (a fé em Cristo) é inútil se não
for acompanhada por boas obras. Neste sentido, Tiago complementaria o que foi dito no
corpus paulino.
38 Tg 1,1.
39 A Doutrina da Santíssima Trindade atingiu uma estruturação básica e certo grau de

consolidação apenas no século IV. Algumas das passagens bíblicas que contribuíram para
o fundamento do preceito são Mt 28,19; 2Cor 13; Ef 4,4-7; Jd 20-25.
40 Na antiguidade is aelita, o te o dispe s o g ego diasporá) designava os judeus
emigrados da Palestina. No contexto cristão, trata-se de cristãos de origem judaica
dispersos no mundo greco-romano. Bíblia de Jerusalém, Op.Cit., p. 2107, nota a.
41 Biblia de Jerusalém, Ibidem, p.2103.
42 Lei aqui faz referência à lei moral do Antigo Testamento formulada pela conjunção da

Lei Mosaica (A Torá), os ensinamentos proféticos e os demais escritos


veterotestamentários.
221
a adaptou para uma vida cristã em consonância com os novos
ensinamentos da Divina Providência. A problematização feita por
Raymond Brown é a possibilidade dos seguidores gentios43 de Paulo
terem sido excluídos simbolicamente da carta, já que as suas práticas e
costumes andavam afastados dos princípios judaicos, exaltados pelo
escritor de Tiago.44 Outros autores, como indica Leconte, creem que a
epístola foi escrita para combater aqueles que teriam deformado os
ensinamentos de Paulo.45 Contudo, é da opinião de ambos que atribuir
um papel central no debate teológico entre Romanos/Gálatas, de um
lado, e Tiago, do outro, é um equívoco já que, na opinião deles esses não
foram os principais motivos para a produção das epístolas.

Autoria e datação
No tocante a epístola específica, esse é o ponto mais discutível e
sem uma resposta consensual até o momento. A principal dificuldade em
estabelecer uma autoria para o documento é a presença de não apenas
u , as algu s Tiagos o No o Testa e to. Dois deles fo a
apóstolos, mas a nenhum é cogitado o título de autor do nosso objeto
de pesquisa. Nem ao Apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, e nem ao
Apóstolo de mesmo nome, filho de Alfeu.46
O Tiago ue so ou i gu ais do ue o I o do Se ho ,
título oferecido ao personagem cuja tradição está diretamente
relacionada às figuras de Maria, em alguns momentos, e a José em
outros. Na introdução sobre as Epístolas Católicas na Bíblia de Jerusalém,
não há uma discussão profunda sobre a temática da autoria de Tiago, até
mesmo porque a proposta do texto era apresentar as sete epístolas. Ele

43 A pala a ge tio desig a u o is aelita e de i a do termo latino gens (significando


clã ou um grupo de famílias) e é, muitas vezes, usada no plural. Os tradutores cristãos da
Bíblia usaram esta palavra para designar coletivamente os povos e nações distintos do
povo israelita. A palavra é especialmente importante em relatos sobre a história dos
cristianismos, para designar os povos europeus que, gradualmente, se converteram à
nova religião, sob a influência do apóstolo Paulo de Tarso e outros. O próprio Paulo
nascera na atual Turquia, mas tinha sido educado no judaísmo. Para maiores informações
sobre o termo, consulte http://dicionarioportugues.org/pt/gentio. Acessado em 30 de
maio de 2016.
44 BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 962.
45 Biblia de Jerusalém, Op.Cit., p. 2103.
46 Mt 10,2-3; At 1,13;

222
concentra a maior parte dos seus esforços na avaliação da mensagem da
carta, seja em relação à forma ou ao seu conteúdo. Contudo, Leconte
utiliza duas linhas de raciocínio para rebater a hipótese de que o autor
fosse irmão de Jesus. A argumentação pró Tiago de Jerusalém defende
ue, aso o i o de Jesus eal e te fosse o auto da o a o se
compreenderia bem a dificuldade que ela teve para se impor na Igreja
o o es itu a a i a .47 Em outras palavras, Tiago demorou tempo
demais para ser reconhecido oficialmente no Novo Testamento (século
IV) e isso inviabilizaria o irmão de Jesus como autor devido a sua
relevância na vida do Redentor.
Um segundo argumento, dessa vez, contrário à autoria de Tiago,
apresenta a proximidade entre a Epístola de Tiago com a Primeira Carta
de São Clemente Romano aos Coríntios48 e o Pastor de Hermas,49
manuscritos datados entre o fim do século I e início do século II. Assim,
como Tiago morreu martirizado no ano de 62 d.C, haveria uma
incompatibilidade cronológica entre Tiago, Clemente I e O Pastor. A
estrutura e as exortações da epístola católica, de acordo com Leconte,
estão próximas das outras duas. Desta forma, a data mais provável de
composição de Tiago varia entre o fim do século I e início do século II,
datas posteriores à morte do líder da Igreja de Jerusalém em 62 d.C.
Como ainda não foi possível apontar outro sujeito para a
elaboração da carta, é usual entre os estudiosos considerar a autoria do
líder da Igreja de Jerusalém, apesar das dificuldades históricas já
relatadas. Contudo, a admissão da autoria de Tiago de Jerusalém para
fins didáticos não impediu os dois intelectuais de pensarem alternativas
para o assunto. Como o autor do documento mostrou um domínio
surpreendente do grego, improvável para um galileu do século I, uma

47 Biblia de Jerusalém, Op.Cit., p. 2102.


48 Clemente de Roma ou Clemente I foi o quarto papa da Igreja entre os anos de 88 e 97.
O Documento tratado refere-se a uma carta escrita por Clemente à Igreja de Corinto. É
considerado pelos especialistas o mais antigo documento cristão não incluído no Novo
Testamento. A autoria de Clemente para um segundo documento já foi refutada.
49 Co he ido ta si ples e te o o O Pasto , o a us ito elata u a s ie de
visões divinas de um morador de Roma. O eventual cidadão seria Hermas, um ex-escravo
residente na capital do Império. Muito popular nos primeiros séculos do Cristianismo, a
data mais provável de sua produção é o século II. Cf. JEFFERS, James S. O Pastor de
Hermas e seu contexto social. In: ______. Conflito em Roma: ordem social e hierarquia
no cristianismo primitivo. São Paulo: Loyola, 1995.
223
alternativa levantada seria a possível escrita posterior à morte de Tiago
em 62 d.C. por parte de um discípulo que dominava o idioma.
O grego empregado em Tiago foi classificado pela Filologia e pela
Linguística como extremamente fluente e erudito. Dificilmente a obra foi
traduzida do hebraico/aramaico para o grego. Bem como, é improvável
pensar que o espaço social de produção da obra seja a atual região da
Palestina.50
Ao ser levada em consideração a hipótese de uma autoria
posterior à morte de Tiago de Jerusalém, um discípulo seu pretendeu
representar Tiago como uma das autoridades cristãs mais leais ao
judaísmo. A moral judaica é tão presente na epístola, que o escritor não
ofe e e u espaço desta ado pa a a efle o istol gi a , as pala as
de Raymond Brown, como era o costume das outras epístolas:
Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
que, em sua grande misericórdia, nos gerou de novo,
pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para
a esperança viva, para a herança incorruptível, imaculada
e imarcescível, reservada nos céus para vós, os que,
mediante a fé, fostes guardados pelo poder de Deus para
a salvação prestes a revelar-se no tempo do fim (1Pd 1,3-
5).51
Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora,
aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os
últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É
ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua
substância; sustenta o universo com o poder de sua
palavra; e depois de ter realizado a purificação dos
pecados, sentou-se nas alturas à direita da Majestade,
tão superior aos anjos quanto o nome que herdou
excede o deles (Hb 1,1-4).52
Graça e paz a vós da parte de Deus nosso Pai e do Senhor
Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo pelos nossos
pecados a fim de nos livrar do presente mundo mau,
segundo a vontade do nosso Deus e Pai, a quem seja
dada a glória pelos séculos dos séculos! Amém. (Gl, 1,3-
5).53

50 BROWN, P., Op. Cit., p.964-965.


51 Primeira Epístola de São Pedro.
52 Epístola aos Hebreus.
53 Epístola aos Gálatas.

224
Pelo contrário. A Epístola de São Tiago surpreende por ser um
documento voltado para o plano material, muito mais do que outros
livros de caráter contemplativo das qualidades de Deus e dos sacrifícios
realizados por seu Filho em prol da humanidade. Tiago retrata um
ambiente de intensa desigualdade social e admoesta os ricos para a
mudança desse panorama.

Tiago: informações biográficas na literatura exegética


Este sujeito histórico sempre esteve ligado a controvérsias pelos
atos cometidos ainda durante a vida de Cristo. Assim como todos os
outros irmãos, Tiago negou Jesus ainda em vida, para posteriormente
aceitá-lo após a sua ressurreição. É o que testemunha João, pois e
es o os i os ia ele .54A relação estremecida fica exposta na
passagem comum presente em Mateus, Marcos e Lucas, pois Jesus,
quando informado sobre a multidão que os seus parentes o estavam à
procura, responde-lhes: Que fize a o tade de Deus, esse eu
i o, i e e .55
No entanto, a aparição de Jesus a Tiago como descrito em
Primeira aos Coríntios, após a ressurreição, é representativa do marco
de conversão do irmão de Jesus à fé Cristã.56 Foi a partir de então que
Tiago com os seus outros irmãos juntou-se ao grupo dos seguidores de
Jesus.57
No que se refere à morte do irmão de Jesus, Eusébio de Cesaréia
(265-339) nos oferece uma descrição minuciosa sobre o ocorrido.

Subiram, pois, e lançaram abaixo o Justo. E diziam uns


aos outros: "Apedrejemos a Tiago o Justo!" E começaram
a apedrejá-lo, porque ao cair não chegou a morrer. Mas
ele, virando-se, ajoelhou-se e disse: "Eu te peço Senhor,
Deus Pai: Perdoa-os, porque não sa e o ue faze . E
quando estavam assim apedrejando-o, um sacerdote,
um dos filhos de Recab, filho dos Recabim, dos quais o
profeta Jeremias havia dado testemunho, gritava
dize do: Pa ai, ue estais faze do? O Justo oga po

54 Jo 7,5.
55 Mt 12,46-50; Mc 3,31-35; Lc 8,19-21.
56 1Cor 15,7.
57 At 1,14.

225
s! . E u deles, te el o, agarrou o bastão com que
batia os panos e deu com este na cabeça do Justo, e
assim foi que sofreu o martírio.58

A passagem sobre a morte de Tiago em Atos 12,1-2 pode causar


certa confusão. O Tiago morto à espada, a mando de Herodes Antipas,
governador da Judéia, é um dos dois apóstolos chamados Tiago, este
irmão de João Evangelista, e filho de Zebedeu e de Salomé (Maria
Salomé). Assim sendo, não existe passagem no Novo Testamento que
descreva o martírio do líder do templo de Jerusalém.
Os laços de parentesco que unem Tiago59 à Sagrada Família
(Jesus, Maria e José) foram modificados ao longo do tempo, conforme
nos mostra Raymond Brown. Levando-se em consideração apenas as
impressões transmitidas no Novo Testamento, os irmãos Tiago, José,
Judas e Simão são filhos de Maria e José após o nascimento de Jesus.60
Porém, outras tradições posteriores também estão associadas ao grau
de parentesco dos irmãos de Jesus. A virgindade perpétua de Maria
entrava em conflito com essa crença. Com o advento do Protoevangelho
de Tiago, já no começo do século II, eles foram identificados como filhos
de José vindos de um casamento anterior.
Disse o sa e dote: Jos , Jos , ou e a ti e e e a
virgem do Senhor para tomá-la so tua gua da . Jos
e usou, dize do: Tenho filhos e sou velho, ao passo
que ela é jovem. Receio tornar-me objeto de zombaria
pa a os filhos de Is ael .61

58 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fisher. São Paulo:


Novo Século, 2002, p.48.
59 Apesar de nunca ter sido um apóstolo, Tiago torna-se um personagem significativo

para a teologia cristã quando se torna o chefe da Igreja de Jerusalém após a partida de
Pedro para a Antioquia (atual Turquia). Bíblia de Jerusalém, Op.Cit., p. 1923, nota f.
60 Mc 3,31-35; Jo. 2,12. Aparentemente a ligação dos filhos com Maria é mais intensa,

pois José fica de fora das passagens nos quais a família é citada. Nessas passagens, a
Sagrada Escritura cria uma brecha para interpretar uma possível flexibilização da
estrutura aparentemente estática da Sagrada Família nos três membros clássicos. A
omissão da presença de José e a citação aos irmãos é um aspecto importante a ser
refletido.
61 RAMOS, Lincoln. A História do Nascimento de Maria: Protoevangelho de Tiago. 9ª Ed.

Petrópolis: Vozes, 2004. Mais especificamente o cap. 9, 1-2. Este manuscrito do século II
é considerado um escrito apócrifo pela Igreja Ocidental. Entretanto, a tradição dos filhos
de José, inaugurada pelo documento, é a mais aceita pelo Cristianismo Oriental.
226
Foi apenas no século IV, com Jerônimo, que a tradição em vigor
até hoje no catolicismo romano tornou-se predominante. Para
Je i o, as passage s í li as ue fazia e ç o aos i os
indicavam, na verdade, outro tipo de relação familiar com Jesus. A crença
de Jerônimo é que Tiago e os outros irmãos não são irmãos, mas primos
de Jesus.62
Ou seja, o que Raymond E. Brown deixa subentendido é o
contínuo esforço da Igreja dos primeiros séculos em afastar
gradativamente a associação da imagem de Jesus e Maria dos seus
eventuais irmãos e filhos, respectivamente. Quanto maior o afastamento
desses personagens em relação aos outros familiares, maior ainda se
tornava a percepção sacra dos mesmos para os cristãos. No caso de
Maria, além disso, entrava em contradição com um dos principais
preceitos relacionados a sua imagem: a certeza na sua Virgindade
Perpétua.63

Canonicidade de Tiago

Na antiguidade
Graças ao seu olhar social crítico, Tiago é considerado nos dias
atuais o es ito de aio o s i ia so ial do NT .64 Apesar do
significado especial creditado à carta nos estudos recentes, o histórico
da carta no cânon bíblico aponta para uma desvalorização do escrito
quando comparado a outros livros do Novo Testamento.

62 BROWN, P., Op. Cit., p.946.


63 A discussão em torno da preservação da virgindade de Maria antes, durante e depois
do parto estendeu-se, principalmente, durante os três primeiros séculos. Porém o
debate nem sempre esteve adormecido em relação aos preceitos marianos. Ainda no
século XIII, Antônio de Lisboa/Pádua escreve um sermão no qual defende a Imaculada
Concepção de Maria. Já outros teólogos da Idade Média Central como Bernardo de
Claraval, Anselmo de Cantuária, Boaventura e Tomás de Aquino não estavam tão certos
sobre o assunto. Conferir SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões
Dominicais e Festivos. Introdução, tradução e notas por Henrique Pinto Rema. Porto:
Lello e Irmão Editores, 1987, Vol. 1. p. 207-215; SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio
de Teologia. Tradução e notas de D. Odilão Moura (OSB). Rio de janeiro: Presença, 1977,
cap. 224.
64 BROWN, P. Op.Cit., 2004, p.945.

227
Tiago não é mencionada no que é considerado o representante
das Escrituras de Roma no final do século II, o Cânon de Muratori. Uma
hipótese para a ausência seria a glorificação do documento feita por
cristãos considerados heréticos, por contestarem os conteúdos das
epístolas de Paulo.65 Desta forma, a epístola atraía olhares cautelosos
apesar de já ser conhecida em Roma no início do século II. 66 A questão
judaico-cristã envolvendo as Epístolas Paulinas e a Epístola de Tiago foi
um dilema enfrentado pelas autoridades eclesiásticas antes, durante e
depois da canonização67 tardia de Tiago.
A iniciativa para a inclusão da epístola de Tiago no novo Cânon
partiu do cristianismo oriental, mais precisamente da figura de Orígenes,
erudito alexandrino. Em linhas gerais, o Novo Testamento até Orígenes
compreendia as quatorze cartas de Paulo (incluindo Hebreus entre elas),
os quatro evangelhos, os Atos dos Apóstolos, duas ou três cartas gerais
e um ou dois apocalipses.68 Como vemos, o corpus bíblico apresentava
variações em decorrência do local de culto. E a análise não deve se
limitar a uma divisão entre a interpretação grega e a interpretação latina
das Escrituras. As diferenças se faziam presentes a níveis locais, de uma
igreja para outra, em tempos nos quais uma maior centralidade de
autoridade poderia representar uma ameaça, já que organizações cristãs
se mantinham proibidas no Império.
Orígenes de Alexandria possuía um Novo Testamento maior do
que o de costume até aquele momento. No início do século III, ele dividiu
os livros incluídos entre os reconhecidos e os controversos, aqueles
passíveis de discussão. E entre os últimos, foi incluída pela primeira vez

65 Esses grupos considerados heréticos constituíram um movimento antipaulino, tido por

eles como um autor contrário à lei judaica. O antipaulinismo testemunhado por Ireneu,
Tertuliano, Orígenes, Jerônimo e Epifânio está melhor documentado nos chamados
Es itos Pseudo le e ti os , o a datada do s ulo IV, as ue o po ta es itos
atribuídos tradicionalmente a Clemente I, bispo de Roma do século I. Entre eles
encontra-se a suposta correspondência entre Pedro e Tiago e uma carta do bispo de
Roma endereçada ao líder da Igreja de Jerusalém. Informações disponíveis em FABRIS,
Rinaldo. Para ler Paulo. São Paulo: Edições Loyola, 1996,p. 145.
66 BROWN, P. Op.Cit.,, p.967.
67 A palavra canonização aqui é empregada como uma referência ao processo

compreendido entre a escrita de um documento até o seu registro em um cânon bíblico.


68 GOODSPEED, Edgar Johnson. Como nos veio a Bíblia? Tradução de Benedito de Paula

Bittencourt. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1957. p. 34.


228
a carta de Tiago, praticamente 150 anos após a data estimada da sua
escrita.69
Estes manuscritos70 foram preservados e receberam o nome de
Códice Sinaítco (Codex Sinaiticus). Eles representam o Códice mais antigo
a conter o Novo Testamento completo, datado de meados do século IV.
O códice é composto por 29 livros, sendo 27 deles os que compõem a
atual configuração neotestamentária, somando-se a eles a Carta de
Barnabé e o Pastor de Hermas.71
O percurso de Tiago como sagrada escritura continuou com
Eusébio de Cesaréia, no começo do século IV, ao mantê-la no cânon,
mesmo com o status de escritura controversa. O Novo Testamento do
bispo de Cesaréia apresenta os mesmos livros atuais da Igreja Católica
Apostólica Romana, retirando das Escrituras o Pastor e Barnabé.72
Outra figura chave para consolidação no cristianismo grego foi
Atanásio de Alexandria, considerado um dos maiores bispos da história
da Igreja pelo impacto do seu episcopado no combate ao arianismo73 e
pela longevidade de praticamente meio século como autoridade máxima
da Igreja de Alexandria. Atanásio aponta como a aceitação de Tiago
estava aparentemente consolidada nas igrejas de língua grega no
Oriente.74
Em virtude das informações acima, os vinte e sete livros que
compõem o atual Novo Testamento devem ser entendidos como objetos
que foram alvo de disputas entre grupos interessados na inclusão desses
mesmos escritos em detrimento de outros. O relato feito por Anfilóquio
de Icônio, bispo de Icônio, na Gália, ainda no século IV, nos mostra a
efervescência sobre a composição canônica nesse período:
Das epístolas católicas, alguns dizem que nós devemos
receber sete, mas outros dizem que somente três devem

69 Ibidem,, p.35.
70 A redação do Novo Testamento em um único volume é uma tradição ocidental. Entre
os cristãos gregos era comum que encontrassem os livros divididos em três ou quatro
volumes. Esta prática colaborou na fixação da forma e do conteúdo dos volumes
redigidos em latim. Ibidem,, p.38.
71 Ibidem,, p.35.
72 Ibidem, p.35.
73 Um conjunto complexo de práticas oriundas da doutrina não trinitária criada por Ário,

um presbítero de Alexandria que viveu entre os séculos III e IV.


74 BROWN, P., Op. Cit., p.967.

229
ser recebidas que são Tiago, uma, uma de Pedro, e
aquela de João, uma. Alguns recebem três de João, e
além destas, de duas de Pedro, e aquela de Judas como
sétima. E outra vez a Revelação de João, é aprovada por
alguns, mas a maioria a considera apócrifa.75

Jerônimo, na sua revisão do Novo Testamento para o latim, 76


decidiu por preservar a configuração oriental de Eusébio de Cesaréia e
Atanásio de Alexandria. O reconhecimento e a importância no
cristianismo ocidental da Vulgata Latina, após ser escolhida como o
códice oficial da Igreja Romana, e a presença da Carta de Tiago no Livro,
nos permite dizer que a canonicidade do texto, enfim tornou-se estável,
tanto no Oriente como no Ocidente, nos confins do século IV. Isso não
sig ifi a dize ue a epístola goza a de u a eputaç o a i a
semelhante aos outros escritos. Fenômeno similar também pode ser dito
sobre o Apocalipse de João. Ambos ocupando espaços marginais entre
os escritos neotestamentários.
A epístola, portanto, foi reconhecida pelos cristianismos greco-
latinos, como manuscrito integrante do cânon bíblico, apenas nos
confins do século IV, a última escritura reconhecida entre as Epístolas
Católicas. Mesmo após o seu reconhecimento, o livro foi relegado a um
segundo plano e retomado muito tempo depois em circunstâncias
completamente distintas.

Na Idade Média
Em relação ao cânon bíblico no período medieval, não ficou
demonstrado ao longo dos séculos a mesma instabilidade dos anos
iniciais do cristianismo. Isso posto, sabemos que a discussão em torno da
canonicidade de Tiago esteve minimizada. A presença na Vulgata de
Jerônimo lhe assegurava maior estabilidade, principalmente no

75 A presente tradução foi realizada por Alessandro Lima em: LIMA, Alessandro Ricardo.
O Cânon Bíblico: A Origem da Lista dos Livros Sagrados. Brasília: COMDEUS, 2007, p.69.
O texto original em grego está disponível em: http://www.bible-researcher.com/
amphilocius.html. Acesso em: 05 jun. 2016.
76 O Novo Testamento havia sido traduzido para o latim antes do ano 200, por meio de

tradições livres reunidas em um códice chamado Vetus Latina (Antiga Latina). A Antiga
latina continha todos os livros do Novo Testamento com exceção de Hebreus, de Tiago e
de 1 e 2 Pedro.
230
Ocidente.
Além da estabilidade proporcionada pela presença de Tiago entre
os vinte e sete livros neotestamentários da Vulgata Latina, outro fator
chave para efetivar a canonização da epístola foi a confirmação por parte
de Agostinho, um dos principais argumentos de autoridade durante todo
o período medieval, na sua obra A Doutrina Cristã. Segundo Agostinho,
o Novo Testamento era composto por:
Quatro livros do Evangelho: segundo Matheus, segundo
Marcos, segundo Lucas, segundo João; quatorze
epístolas do apóstolo Paulo: aos Romanos, duas aos
Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, duas
aos Tessalonicenses, aos Colossenses, duas a Timóteo, a
Tito, a Filêmon e aos Hebreus; duas de Pedro; três de
João; uma de Judas e uma de Tiago; Um livro dos Atos
dos Apóstolos e um livro do Apocalipse de João.77

Dificilmente poderíamos afirmar, no entanto, que Tiago ocupou


um espaço de destaque no seio das igrejas medievais. Como nos mostra
William R. Cook, Bill Cook e Ronald Herzman em La visión Medieval del
Mundo, uma das principais bases teóricas dos escritos agostinianos
foram as epístolas consideradas escritas pelo apóstolo Paulo.78
O centro das atenções voltou-se para Tiago em momentos nos
quais o modelo de fiel cristão era questionado por movimentos de
espiritualidade laica que exigiam um papel mais ativo na vida cristã. A
passagem no documento sobre a unção dos enfermos é representativa:

77 Novi autem quattuor libris Evangelii: secundum Matthaeum, secundum Marcum,


secundum Lucam, secundum Ioannem; quattuordecim Epistolis apostoli Pauli: ad
Romanos, ad Corinthios duabus, ad Galatas, ad Ephesios, ad Philippenses, ad
Thessalonicenses duabus, ad Colossenses, ad Timotheum duabus, ad Titum, ad
Philemonem, ad Hebraeos; Petri duabus; tribus Ioannis; una Iudae et una Iacobi; Actibus
Apostolorum libro uno et Apocalypsi Ioannis libro uno (TRADUÇÃO DO AUTOR). Optei
pela consulta ao texto em latim, pois a versão do texto publicada e traduzida em livro
pela editora Paulus em 2002, no momento da tradução para o português, omitiu a
Epístola de Tiago como um dos escritos canônicos na visão de Agostinho. Por isso recorri
ao texto em latim disponível em: http://www.augustinus.it/latino/
dottrina_cristiana/index2.htm. Acesso em: 20 mar. 2017.
78 COOK, William R.; COOK, Bill; HERZMAN, Ronald B. La visión medieval del mundo.

Bogotá: Vicens Vives, 1985, p. 35. Por exemplo, encontramos em Rm. 13,1-7 a ordem
para a subordinação diante das autoridades constituídas. Bem como, em 1Cor. 11,3 a
visão de que o homem é a cabeça do corpo da mulher.
231
Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os
presbíteros da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-
o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o
doente e o Senhor o porá de pé; e se tiver cometido
pecados, estes lhe serão perdoados. Confessai, pois uns
aos outros, vossos pecados e orai uns pelos outros, para
que sejais curados.79

A primeira parte do trecho está voltada para a temática da unção


dos enfermos, defendida pelo irmão do Senhor. A unção dos enfermos
aqui ainda não conotava o mes o se tido de e t e a-u ç o
adquirido posteriormente, quando foi restringido apenas àqueles no
leito de morte.80 Como exemplo, no leito de morte de Antônio de
Lis oa/P dua ua do os i os, ali p ese tes, i a ue o seu feliz
êxito estava iminente, decidiram ungir o santo de Deus com o óleo da
sag ada U ç o .81
Notamos inicialmente uma comunhão entre a prática da oração e
a unção pelo óleo. A impressão no documento é que o efeito curativo do
óleo será potencializado se for acompanhado de orações, independente
de quem as esteja proferindo, desde que sejam feitas com fé. Esta
comunhão é tão miraculosa que não somente recuperará a saúde do
doente, bem como trará o perdão das faltas cometidas pelo fiel.
Mas é a segunda temática do trecho que compreendo abordar
como uma temática fulcral no tocante a organização do Medievo
Ocidental a partir do século XII. O caráter imperativo da prática da
confissão entre os fiéis, sem mencionar uma autoridade eclesiástica
específica, em Tg. 5,16, pode ter aberto espaço para a fundamentação
teológica de movimentos laicos na Idade Média Central que visavam
uma flexibilização de práticas anteriormente concedidas ao clero, como
a pregação e a confissão.82

79 Tg. 5,14-16
80 SESBOÜÉ, Bernard; BOURGEOIS, Henri; TIHON, Paul. História dos Dogmas. Os Sinais da
Salvação. São Paulo: Edições Loyola, 2005, Tomo 3. p. 159.
81 VIDA PRIMEIRA DE SANTO ANTÔNIO (LEGENDA ASSÍDUA). In: Fontes Franciscanas III.

Braga: Editorial Franciscana, 1996, p.55.


82 Uma investigação mais aprofundada sobre a relação entre a epístola e movimentos

religiosos a partir do século XII demandaria um espaço exclusivo para discussão e fugiria
do objetivo inicial do artigo. No entanto, é válido o destaque para obra literária Veteris
ac Noui Testamenti Concordia, escrita por Martinho de Leão no século XII, em Isidoro de
232
Na visão de Lutero
Na sua tradução da Bíblia para o alemão, Lutero organizou os livros
neotestamentários de acordo com um critério bem particular. E esta nova
organização, apesar de abranger os mesmos 27 livros, representou uma
transformação sensível na maneira como esses livros foram interpretados nos
anos seguintes à Reforma.
O critério estabelecido por Lutero foi ordenar os livros de acordo com a
profundidade da reflexão que faziam sobre Cristo. Assim, os Evangelhos vinham
à frente, pois falavam de Cristo, na visão do reformador, melhor do que ninguém.
Em contraste, as epístolas aos Hebreus, Tiago, Judas e a Revelação (Apocalipse)
de João dedi a a pou os e sí ulos pa a u a efle o istol gi a . Esses
escritos foram assim deslocados para o final do Novo Testamento, demonstrando
claramente uma hierarquia dos outros escritos frente a esse grupo marginal. A
epígrafe selecionada para iniciar o artigo não pode ser mais clara nesse sentido. A
intenção de Lutero, como em toda introdução, é direcionar a leitura de quem
estivesse a ler. Sabemos então, que ao ler o prefácio da tradução de Lutero para
Novo Testamento, o público automaticamente, tinha a sua atenção voltada para
as poucas menções a Jesus nos respectivos documentos, segundo o
reformador.83
Como nos conta Goodspeed, a perda de prestígio dos escritos só não foi
maior graças aos organizadores da Grande Bíblia de 1539, a primeira versão
inglesa autorizada. A Grande Bíblia reconfigurou o Novo Testamento com
Hebreus seguindo as epístolas paulinas e Tiago à frente das epístolas gerais.84

A pobreza na carta jacobeia


A primeira passagem da epístola de Tiago direcionada para a
dis uss o da te ti a posses ate iais i titulada a Bíblia de
Jerusalém o desti o do i o .
Glorie-se o irmão de humilde condição na sua exaltação,

Leão, comunidade de cônegos regrantes de Santo Agostinho. Mais especificamente o


seu comentário sobre a Epístola de Tiago Expositio In Epistolam Beati Jacobi Apostoli.
Toda a obra do cônego foi publicada online pela Patrologia Latina nos tomos 208 e 209.
83 Seria de extrema valia para o artigo uma discussão mais detalhada sobre as convicções

de Lutero e o seu posicionamento sobre a Epístola de Tiago. Contudo, a limitação de


páginas impede que a discussão seja feita ainda neste artigo. É uma boa temática a ser
pesquisada mais detalhadamente no futuro.
84 GOODSPEED, E., Op. Cit., p. 7.

233
e o rico na sua humilhação, porque passará como a flor
da erva. Com efeito, basta que surja o sol com seu calor:
logo seca a erva e sua flor cai, e desaparece a beleza do
seu viço! Eis como acabará por perecer o rico no meio
dos seus negócios!85

Vemos aqui um apreço de Tiago por todo e qualquer cristão


independente da condição social em que esteja, pois se refere ao mais
humilde como a um irmão e o impele a glorificar. Glorificar porque
apesar das dificuldades, o panorama para os desprovidos é favorável em
um cenário escatológico quando comparado ao dos abastados. Eis que a
conquista dos ricos é apenas aparente. No primeiro obstáculo imposto,
a fragilidade do bem é exposta. Mesmo a beleza, se foi adquirida,
desaparece e deixa exposta a aparência disfarçada. O autor inicia aqui
uma hipótese que será reverberada em outras passagens do texto: a
transitoriedade dos bens materiais e da vida terrena.
A última frase da passagem provoca, ainda hoje, contínuos
debates sobre qual seria o público alvo das críticas do autor, ou seja, se
o rico que vai pe e e o eio dos seus eg ios ou o ist o.
Essa foi uma problemática apontada por Craig L. Blomberg, mas que não
terá um espaço de destaque no capítulo.86 Entretanto, considero
importante salientar um dos aspectos pensados pelo autor. Se a crença
é a de que o rico pode ser um cristão e não um judeu ou um romano
como muitos autores defendem, isso implica necessariamente afirmar
que não é incompatível com o viver cristão o acúmulo de bens materiais.
Um segundo momento para a discussão seria o versículo 27, ainda
do capítulo I, no qual o líder da Igreja de Jerusalém aponta quem são os
mais necessitados para ele e que, por isso, devem receber uma atenção
especial por parte dos seus irmãos de fé. Disse o líder da Igreja de
Je usal : o efeito, a eligião pura e sem mácula diante de Deus,
nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações
e guardar-se li e da o upç o do u do .
De fato, se a e p ess o eligi o pu a fo o p ee dida o seu
sentido literal, a radicalidade do versículo estaria em não mencionar as

85Tg. , - .
86 BLOMBERG, Craig L. Neither poverty nor riches: A biblical theology of possessions.
Leicester: InterVarsity Press, 2000, p. 149.
234
igrejas e os líderes das congregações como membros necessariamente
presentes na vida de todo bom cristão. Creio, contudo, que o versículo
não deva ser interpretado de maneira literal, pois iria ao encontro da
própria função de Tiago enquanto líder da Igreja de Jerusalém.
Creio que nessa passagem, o escritor da epístola deixa de lado
u a dis uss o po es versus i os pa a de o st a u a p eo upaç o
social com os demais fragilizados, não somente materialmente, mas
principalmente fragilizados de espírito. Ao conjunto dos marginalizados
somam-se os pobres, mas também os órfãos e as viúvas. Todos
representam uma noção de pobreza ampliada, no qual a provisão pode
ser fornecida também pelo amor e pelo amparo. Os desprovidos
materialmente são carentes dos recursos necessários para a sua
subsistência. Os órfãos são carentes do amor de seus pais e do
direcionamento estreito que esses, supostamente, são os responsáveis.
O mesmo se aplica às viúvas, que nesse sentido, perderam a companhia
de seus maridos e toda a representatividade dessa figura masculina no
convívio público.
A análise da questão material da epístola segue quando mais dois
elementos são acrescidos às dificuldades encontradas pelos pobres. Em
Tg. 2,1-4, a et fo a da e t ada a ig eja de u a pessoa i a e te
estida e a de u po e o suas oupas sujas pode se u a
historieta moralizante inventada da sua cabeça, como também na
verdade contar muito bem algumas das experiências testemunhadas
pelo líder da Igreja de Jerusalém durante os encontros.87 A acepção de
pessoas combatida por Tiago nesses versículos é um dos problemas
enfrentados por aqueles que não têm. Na história contada, aquele que
não tinha trajes valiosos e uma boa aparência.
Na sequência, Tiago continua descrevendo a respeito de mais uma
fragilidade enfrentada pelo pobre, percebida por um olhar crítico em
relação ao seu ambiente social e as relações de força desiguais ali
estabelecidas.
Atentai para isto, meus amados irmãos: Não escolheu
Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos
na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que amam?
E, no entanto, vós desprezais o pobre! Ora, não são os
ricos que vos oprimem, os que vos arrastam aos

87 BLOMBERG, C. L., Op. Cit., p.151.


235
tribunais?88.

Vemos aqui um caráter extremamente intimista com a expressão


eus a ados i os . A i p ess o ue o te to foi di eta e te
transcrito de uma fala de Tiago para a sua comunidade. Os ricos são
apontados como os responsáveis pela miséria dos pobres, apesar da
predileção inicial de Deus a eles. Como deixou bem claro Blomberg, essa
superioridade aos olhos de Deus dos pobres não é criada de uma
maneira naturalizada. Ela só se aplica na epístola aos pobres que são
ricos na fé, ou seja, bons cristãos, e porque no geral, os pobres
reconhecem mais facilmente a sua dependência espiritual com Deus do
que os ricos em bens terrenos.89 O pobre de posse, mas rico de espírito
o te p aze as suas p i aç es, as possui a fo te da e dadei a
alegria que eleva o seu espírito acima das limitações mate iais .90
Além da miséria, o pobre devido a sua fragilidade material e social,
não consegue uma defesa jurídica legítima para se defender dos ataques
processuais dos ricos. Boa parte do público de Tiago aparenta ser
composta por cristãos pobres que sofriam perseguição de proprietários
ricos. As provações dos primeiros capítulos foram endereçadas a uma
elite que deveria estar preocupada com a situação socioeconômica da
população de uma forma geral. Ao invés disso muitos colaboraram para
a situação calamitosa dessas pessoas nas palavras do autor.
A mensagem compreendida entre os versículos 13 e 17 do
capítulo 4, intitulada admoestação aos ricos mais uma vez destaca o
caráter provisório de todos os bens materiais. A mensagem contida aqui
é voltada diretamente para os comerciantes que, na visão de Tiago, em
suas ego iaç es pa a o te o s lu os , uitas ezes es ue e a
brevidade das suas vidas terrenas e desperdiçam o seu tempo com
fa fa o adas ao i s de ajuda a ue p e isa.
O escritor de Tiago faz questão de alertar aos materialistas sobre
a chegada da Parusia91 e o panorama apocalíptico é extremamente

88.Tg. 2,5-7
89 BLOMBERG, C.L., Op.Cit., p. 152.
90 HARPER, A. F. A Epístola de Tiago. In: Comentário Bíblico Beacon. Hebreus a Apocalipse.

São Paulo: CPAD, 2006, V. 10. p. 157-158.


91Segunda vinda de Cristo, Segundo Advento ou Parusia é o termo usualmente

empregado com a significação religiosa de volta gloriosa de Jesus Cristo, no fim dos
236
desfavorável para os ditos opressores.
Pois bem, agora vós, ricos, chorai e gemei por causa das
desgraças que estão para vos sobrevir. Vossa riqueza
apodreceu e as vossas vestes estão carcomidas pelas
traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados e a
ferrugem testemunhará contra vós e devorará vossas
carnes. Entesourastes como que um fogo nos tempos do
fim!92.

Repare na transformação do tempo verbal na passagem acima.


O Juízo Final não está mais para acontecer. Ele já está em curso e a
superficialidade das riquezas terrenas é exposta de uma maneira
incomum em comparação aos outros escritos neotestamentários.
Palavras chaves o o apod e eu , a o idas , t aças ,
e fe ujados , de o a efo ça a ate ialidade da passage . Isso
fica bem evidente no trecho anterior quando aponta as mazelas
responsáveis por cegar o homem perante a dificuldade do outro.
Segundo o escritor, a i ueza , ep ese tada pelas estes , ou o e
p ata , se de ida e te eti ada de sua posse no Juízo Final. É
i te essa te ota o o o t e ho a fe uge teste u ha o t a s
e de o a ossas a es essalta ue os e s te e os, u a ez
indicativos de distinção social, um dia se voltam contra aquele que os
possui e ajudam no processo de derrocada do mau cristão.
Lembrai-vos de que o salário, do qual privastes os
trabalhadores que ceifaram os vossos campos, clama, e
os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor
dos exércitos.93 Vivestes faustosamente na terra e vos
regalastes; saciastes-vos no dia da matança. 94
Condenastes o justo e o pusestes à morte: ele não vos

tempos, para presidir o Juízo Final. Para maiores informações sobre o termo, consulte
http://dicionarioportugues.org/pt/parusia. Acesso em: 15 maio 2016.
92 Tg. 5,1-4
93 Segu do Ha pe Se ho dos e itos Jah e Sa aoth e a u o e is aelita pa a
Ja . HARPER, A., Op. Cit., p. .
94 Matança aqui pode ser compreendida por vários sentidos. Como nos informou

Blomberg, a interpretação costumeira é uma matança simbólica, referida ao assassinato


jurídico e social de uma pessoa. Porém, ele não descarta uma interpretação literal se
pensarmos nas rebeliões dos zelotas (ou zelotes) no século I E. C. BLOMBERG, C.L., Op
.Cit., p.157-158. Outra perspectiva, fazendo menção às festas judaicas e os sacrifícios
muitas vezes realizados nelas, pode ser encontrada em HARPER, A, Op. Cit., p. 190.
237
resiste.95

Para o trecho acima acho válido mencionar as contribuições de


Harper para uma melhor compreensão da mensagem. Harper disse que
a mensagem está diretamente relacionada à Lei Mosaica do Antigo
Testa e to pa a o t a alhado : Paga -lhe-ás o salário a cada dia, antes
que o sol se ponha, porque ele é pobre e disso depende a sua vida. Deste
odo, ele la a a Iah eh o t a ti, e e ti o ha e .96
A última das passagens selecionadas da epístola, intitulada A
Vinda do Senhor, muda completamente a postura frente à exploração
material por parte dos opressores. Novamente a mensagem é destinada
não mais aos opressores, mas aos oprimidos. O discurso conciliador
contrasta com as passagens anteriores que advertem os ricos contra as
mazelas acometidas aos pobres. A vinda do Senhor está próxima,
portanto a paciência deve imperar. Além disso, eventuais reclamações
serão passíveis de julgamento no Dia do Juízo.
Sede, pois, pacientes, irmãos, até a Vinda do Senhor.
Vede como o lavrador espera o precioso fruto da terra,
aguardando por ele pacientemente até que venham as
chuvas temporãs e as serôdias. Assim, também vós,
esperai com paciência e fortalecei os vossos corações,
porque a Vinda do Senhor está próxima. Irmãos, não
murmureis uns contra os outros, para que não sejais
julgados. Lembrai-vos de que o Juiz está às portas.97

Conclusões parciais
Vimos ao longo dessas páginas as dificuldades encontradas pela
Epístola de Tiago para ingressar no cânon neotestamentário, a última
das epístolas católicas a ser reconhecida. E não foram poucas as razões
demonstradas para que a carta fosse vista sob desconfiança pelas
autoridades eclesiásticas. Mostro a dificuldade histórica de se apontar
um autor para os escritos, mesmo que ao longo do documento me refira
a Tiago, Irmão de Jesus, e líder da Igreja de Jerusalém após a partida de
Pedro, como o autor.
A suposta consanguinidade do autor com Jesus, em determinado

95 Tg. , - .
96 Dt. 24,15.
97 Tg. 5,7-9.

238
momento, atrapalhava o reconhecimento da epístola pelo fato do
personagem ter recusado a fé cristã durante a vida de Jesus e somente
tê-la aceitado durante a aparição miraculosa do Senhor após a
Ressurreição.
Vimos também como grupos opositores aos ensinamentos de
Paulo se identificaram com o documento acirrando a crença de que a
Epístola de Tiago foi escrita para negar o que Paulo tinha dito
anteriormente nas suas epístolas dificultando assim a entrada da
epístola nos compêndios canônicos.
O reconhecimento da canonicidade de Tiago se deu
paulatinamente, a partir do momento no qual algumas autoridades
eclesiásticas e intelectuais das igrejas de língua grega passaram a compor
os seus códices contendo o escrito no Novo Testamento. Personagens
como Eusébio de Cesaréia, Atanásio de Alexandria, Jerônimo, Santo
Agostinho e outros inscreveram a carta no corpo epistolar do Novo
Testamento.
Durante a Idade Média, o ponto de discussão deslocou-se para
questões mais específicas do documento como o tratamento com óleo
a enfermos acometidos pela doença ou pela velhice e a maneira como a
qual a prática confessional é abordada na obra.
O advento da Reforma Protestante na figura de Martinho Lutero
representou um baque na forma como a carta seria lida em parte do
istia is o o ide tal. A lassifi aç o epístola de palha oti ou o
título do artigo e a epígrafe que inicia a discussão. O título foi pensado a
partir da contradição criada no momento no qual Lutero decide rebaixar
uma epístola presente no corpo do Novo Testamento, reconhecida
então como uma Sagrada Escritura no Ocidente e no Oriente cristão, à
atego ia de epístola de palha , se do o tu de te as suas
o i ç es ao po to de o e ifi a u a a a te ísti a e a g li a o
escrito.
Tiago representa uma crítica ao apreço humano pelo
materialismo, como está explicitado no Evangelho de Mateus e em
o so ia o o es ito ja o eu o podeis se i a Deus e ao
Di hei o . 98 Vejo assim que a epístola busca essencialmente normatizar
uma segunda geração de cristãos da comunidade primitiva. Após

98 Mt. 6,24.
239
compreenderem e se converterem à fé defendida por Paulo, na visão do
autor da epístola, precisavam aplicar os seus ensinamentos na vida
cotidiana.
Acredito que as passagens 2,1-7; 4,13-17 e 5,1-6 apresentam os
mesmos personagens, ditos opressores, contudo vistos de diferentes
perspectivas. Com grande foco na transitoriedade terrena, Tiago
admoesta sobre como o status social e uma posição de prestígio pode se
transformar em ruínas rapidamente, principalmente se levarmos em
consideração a expectativa escatológica na qual o texto foi escrito.
A pesquisa, ainda em estágio inicial, possibilita um
aprofundamento nas interpretações exegetas para o documento.
Pensando no método comparativo, uma relação entre o documento e
um comentário posterior complementaria as primeiras impressões
delineadas ao longo do artigo. A intenção é inscrevê-lo no âmbito dos
estudos medievais ao fazer a comparação com uma documentação do
período.

240
ESPIRITUALIDADE E MILENARISMO NO EXPOSITIO IN
APOCALYPSIM DE JOAQUIM DE FIORE (1135-1202)

Valtair Afonso Miranda1

Joaquim de Fiore foi um notário do Reino normando da Sicília,


atuante na sede do reino em Palermo e em algumas regiões da Itália
meridional, pelo menos até 1167, quando deixou a corte a fim de fazer
uma peregrinação à Jerusalém. Quatro anos depois, quando voltou para
Sicília, ele já tinha abraçado uma vocação religiosa, inicialmente de perfil
eremita, mas logo vinculado a um monastério em Corazzo, na Calábria.
Em 1189, junto com alguns seguidores, ele fundou uma nova casa
religiosa nas montanhas calabresas de Fiore, com uma regra baseada nos
costumes da Ordem Cisterciense.2
Enquanto monge, e eventualmente abade, de Corazzo e Fiore,
Joaquim escreveu diversos livros, cartas, panfletos e sermões, mas uma
de suas obras mais significativas foi realmente um comentário exegético
do Apocalipse de João, intitulado Expositio in Apocalypsim.3 Este texto
acompanhou-o por quase vinte anos, sendo concluído apenas dois anos
antes de sua morte (1202). Neste capítulo, olharemos para o Expositio
para refletirmos sobre a forma como nele se conjugaram alguns aspectos
da espiritualidade e do milenarismo do monge calabrês.4

1 Douto e Ci ias da Religi o pelo P og a a de P s-G aduaç o e Ci ias da


Religi o UMESP , e e Hist ia pelo P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia
Co pa ada UFRJ .
2 RUCQUOI, Adeli e. No ha al ue po ie o e ga : Joa uí de Fio e las
espe a zas ile a istas a fi e de la Edad Media. Clío & C í e : Re ista del Ce t o de
Histo ia del C i e de Du a go, Du a go, . , p. - , . p. .
3 JOAQUIM VON FIORE. E positio i Apo al psi . F a kfu t: Mi e a, .
4 O fe e o so ial defi ido o o ile a is o a ado, esse ial e te, po u a
pe spe ti a te e a de sal aç o e pela i i ia do seu su gi e to. Cf. TALMON, Yo i a.
Mille a is . I : SILLS, Da id L. ed. I te atio al E lopedia of the So ial S ie es.
Lo do : The Ma illa Co pa & The F ee P ess, . ., V. X, p. - ; LANDES,
Ri ha d A. Hea e o Ea th: the a ieties of the ille ial e pe ie e. O fo d: O fo d
U i e sit P ess, .
241
Síntese do Expositio in Apocalypsim5
Joaquim se propõe a escrever um comentário exegético do
Apocalipse de João, tarefa que o coloca na tradição de outros exegetas
medievais da obra joanina, como Beda, o Venerável, ou Beato de
Liébana. Mas o resultado, entretanto, vai além de discussões teológicas
pa a se to a o ue Potest ha ou de hist ia teol gi a do
C istia is o .6 Esta história aparece no Expositio de duas formas: linear
e cíclica. Tanto na narrativa linear, quanto na cíclica, há uma
preocupação contínua do abade em vincular cada texto do Apocalipse a
eventos históricos da forma mais estreita possível.7
A revelação linear aparece quando o abade estrutura o último
livro do Novo Testamento cristão em oito partes, sendo que as sete
primeiras simbolizariam sete fases (aetas) da história da Igreja. Das sete,
seis relatam algum tipo de confronto da Igreja. As quatro primeiras fases
apresentam protagonistas diferentes (apóstolos, mártires, doutores,
monges e virgens). Na quinta e na sexta, é a Igreja em geral que enfrenta
a Babilônia e o Anticristo. A sétima seria de descanso, na forma de um
sabbatum8 especial. Finalmente, viria o oitavo período, que seria a
consumação final da história e a eternidade transcendental.9 Esta seria a
relação esquemática entre a história da Igreja e as partes do Apocalipse:
- Primeira parte (Apocalipse 1.9-3.22): os apóstolos lutam contra
os judeus;
- Segundo parte (Apocalipse 4.1-8.1): os mártires lutam contra a
Roma pagã;

5 Pa a esta sí tese, f. POTESTÀ, Gia Lu a. Il Te po Dell'Apo alisse: Vita di Gioa hi o da


Fio e. Ro a: Late za, . p. - ; ELLIOTT, E. B. Ho ae Apo al pti ae: a o e ta
o the Apo al pse, iti al a d histo i al. Lo d es: Seele , . p. - ;
TAGLIAPIETRA, A d ea. Il p is a Gioa hi ita: I t oduzio e all ope a di Gioa hi o da
Fio e. I : GIOACCHINO DA FIORE. Sull Apo alisse. Mila o: Felt i elli, . p. - . p.
- .
6 POTESTÀ, G.L., Op. Cit., p. .
7 I ide , p. .
8 Te o de o ige he ai a ‫ ַׁשבָ ת‬, apa e e a Vulgata o o sa atu . Seu sig ifi ado
o s ti o dia da se a a o ale d io judai o, ou o dia de des a so. Cf. LEWIS, Cha lto
T.; SHORT, Cha les. A Lati Di tio a . O fo d: Cla e do P ess, . p. .
9 COURT, Joh M. App oa hi g the Apo al pse: a sho t histo of Ch istia ille a ia is .
Ne Yo k: I. B. Tau is, . p. .
242
- Terceira parte (Apocalipse 8.2-11.19): os doutores da Igreja
lutam contra Ário e os governantes arianos;
- Quarta parte (Apocalipse 12.1-14.20): os monges e as virgens
lutam contra os sarracenos;
- Quinta parte (Apocalipse 15.1-16.17): a Igreja em geral luta
contra a Babilônia;
- Sexta parte (Apocalipse 16.18-19.21): a Igreja em geral luta
contra o Anticristo;
- Sétima parte (Apocalipse 20.1-10): o descanso sabático;
- Oitava parte (Apocalipse 20.11-22.21): a Nova Jerusalém.

A história da igreja aparece de forma cíclica (recapitulatio) nas


cinco primeiras seções do Apocalipse, justamente aquelas em que
Joaquim conseguiu fornecer uma estrutura sétupla. Em cada uma delas,
ele retorna ao ponto de partida para narrar novamente uma história que
começaria na encarnação de Cristo.10 Aparentemente, todas terminam
no descanso sabático, um tempo de felicidade na terra. Isso indica que a
série de recapitulações pode ter se restringido apenas às cinco primeiras
partes do Expositio em função da perspectiva do abade de estar vivendo
no tempo da sexta seção, quando os eventos lhe são contemporâneos,
ou estão para acontecer em breve.11
A primeira parte do Expositio (26v-99r) apresenta os comentários
de Joaquim sobre Apocalipse 1.1-3.22 (a seção das sete cartas para sete
igrejas). É a mais longa seção do comentário. Na estrutura geral, é o
primeiro tempo da Igreja, a luta dos apóstolos contra a sinagoga dos
judeus. Na história da salvação, ela corresponde a sete gerações, com
cada igreja descrevendo sete ordens e seus respectivos inimigos. A igreja
de Éfeso apresenta a ordem dos apóstolos em luta contra os inimigos
judaizantes; a de Esmirna descreve a ordem dos mártires no confronto
contra inimigos pagãos; a de Pérgamo simboliza a ordem dos doutores e
seus adversários arianos e sabelianos; a de Tiatira aponta para a ordem
dos virgens em confronto contra os falsos contemplativos; a de Sardes
indica a ordem dos monges cenobíticos, cujos inimigos eram monges

10 M GINN, Be a d. L A ate Cala ese: Gioa hi o da Fio e ella sto ia del pe sie o
o ide tale. G o a: Casa Edit i e Ma ietti, . p. .
11 O a ade e te de o p p io te po o o a ho a da a e tu a do se to selo, e o i í io do

te ei o status. M GINN, B. Op. Cit., p. .


243
hipócritas; a de Filadélfia revela a ordem dos eremitas e contemplativos
numa luta contra falsos cristãos e falsos profetas; a de Laodicéia, por fim,
representa a ordem dos monges do final dos tempos.
Na segunda parte do Expositio (99r-123v) Joaquim discute a
seção dos selos (Ap 4.1-8.1). Na estrutura geral, é o segundo tempo da
Igreja, quando os principais personagens são os mártires em luta contra
os pagãos, em um tempo que vai até o momento de paz da Igreja no
tempo de Constantino e Silvestre. Corresponde também a sete
tribulações paralelas ao Antigo e ao Novo Testamentos. Desta forma, o
abade desenvolveu um sistema de duplo septenário: um trata de
eventos da história de Israel e o outro aponta para a história da Igreja.
O cavalo branco que apareceu na abertura do primeiro selo foi
imaginado por Joaquim como a igreja primitiva pregando o evangelho
enquanto é perseguida pelos judeus. No Antigo Testamento, significa o
nascimento de Israel por meio do cativeiro egípcio.
A abertura do segundo selo descreve o surgimento do cavalo
vermelho, cujo cavaleiro carrega uma espada mortal. O cavalo simboliza
a Roma pagã com seus sacerdotes e exércitos. Na história da Igreja, este
selo inaugura a perseguição dos fiéis sob o antigo Império Romano.
Corresponde, na história dos judeus, à conquista de Canaã, que vai do
tempo dos juízes até o governo de Davi.
O terceiro selo, que descreve um homem com um par de balanças,
é a heresia de Ário, cujo clero aparece representado no cavaleiro que
traz terror e escuridão para a fé cristã. O ser angelical que anuncia este
selo representa a ordem de doutores que proclamou a verdade e
enfrentou os arianos. Na história do Antigo Testamento, corresponde ao
período de enfrentamento dos sírios.
Na abertura do quarto selo, um cavalo pálido aparece trazendo
pragas e é seguido pelo Hades. Este representa a ameaça sarracena, cujo
cavaleiro é Maomé. Durante este período, os monges e virgens tentaram
sobreviver e manter a fé cristã. Corresponde ao tempo da tribulação de
Israel sob os assírios.
Ao abrir o quinto selo, o Apocalipse descreve um grupo de almas
debaixo do altar. Nos quatro primeiros selos, cristãos foram perseguidos
e mortos na Judéia, Roma, Grécia e Arábia. Esta quinta perseguição vem
da Mauritânia e Espanha, onde sarracenos mataram muitos cristãos.
Também significa o sofrimento da igreja romana em luta contra os
244
imperadores germânicos. As roupas brancas significam que os mártires
passa a do luto pa a a aleg ia. A e p ess o at ue seus i os seja
o tos i di a pa a Joa ui ue ai da esta u o flito fi al ue
promoverá o martírio de muitos cristãos.
O sexto selo descreve cataclismos cósmicos. Ele representa o dia
do julga e to da Ba il ia, ujo sig ifi ado ue ue ue ata ue a
Ig eja de Ped o, o al ou fisi a e te ,12 especialmente os falsos
cristãos ou falsos membros da Igreja romana. O abade espera
perseguições para os fiéis, com papel significativo na história, já que por
meio delas a Igreja será purificada de sua corrupção.
Na abertura do sétimo selo, um silêncio se manifesta no céu.
Para Joaquim, ele representa o sabbatum de descanso, no qual um
silêncio contemplativo será trazido à realidade. Em comparação, na
correspondente era do Antigo Testamento, depois de Esdras e
Malaquias, cessou a produção de Escritura. Então, sob o sétimo selo, não
será mais preciso a pregação.
A terceira parte do Expositio (123v-153r) trata das sete trombetas
do Apocalipse (Ap. 8.2-11.18). Na estrutura geral, é o tempo terceiro,
quando a ordem dos doutores digladia contra os hereges, em particular
os arianos. Mas também corresponde a sete fases. A trombeta de
número um é a fase dos Apóstolos, principalmente Paulo, pregando
contra o Judaísmo e o legalismo. O granizo, misturado com fogo e
sangue, significa o espírito de escuridão dos corações dos judeus. Como
resultado, um terço dos judeus convertidos apostatou de volta para o
Judaísmo.
A segunda trombeta significa os Mártires da era pós-apostólica,
pregando contra a heresia dos nicolaítas. Nicolau é a montanha que caiu
o a dos ge tios . Po ausa dele, u te ço dos pag os o e tidos
abandonou a fé. A terceira trombeta simboliza os doutores do tempo de
Constantino. O meteoro que cai é Ário, cujo erro desabou sobre bispos
e sacerdotes, e contaminou a água pura das escrituras. A quarta
trombeta tipifica os monges e as virgens, que, como luminares celestiais,
caminhando em contemplação, iluminam o mundo. Serão em larga
medida atingidos pelo aparecimento dos sarracenos. A quinta trombeta

12 Qui u ue Pet i e lesia o i us i i us ue i pug a t . As t aduç es do


E positio s o p p ias, a o se ue haja i di aç es e o t io.
245
descreve gafanhotos-escorpiões, que representam os pathareni.13 As
arvores que os gafanhotos destroem indicam a Igreja católica. A couraça
dos escorpiões aponta para o coração duro dos perfecti entre os
pathareni. Neste ponto de seu comentário, o abade fala de um homem
que escapou de uma prisão em Alexandria no ano anterior (1195).
Joaquim o encontrou em Messina e ouviu dele notícias de uma aliança
entre sarracenos e pathareni. A esta aliança, outras nações hostis se
juntarão, como os turcos do Oriente, os mouros e os berberes do sul.
Entre a sexta e a sétima trombeta, o Apocalipse descreveu três
cenas distintas: a convocação para que se coma um livro, a descrição da
medida do templo, e a atuação das duas testemunhas martirizadas pela
besta. Na cena em que o livro é comido, o abade descreveu a ordem
monástica segundo o modelo joanino (monaschis designatis in Joanne).
A cidade santa que aparece na medição do templo significa a Igreja
romana. A Igreja grega, por ter se afastado da sé apostólica, é a parte
externa do templo, que será dada aos gentios. Aos olhos de Joaquim isso
já aconteceu em grande medida, mas os gregos podem esperar por
novas desolações. A rejeição ao filioque era, para o abade, a maior prova
de apostasia da Igreja grega.14 Sobre as duas testemunhas, Joaquim as
entende como Moisés e Elias, ou duas ordens espirituais que virão no
poder destes antigos personagens bíblicos para pregar contra o
A ti isto. Segu do o a ade, Mois s foi u Le ita e pasto do po o de
Israel. Elias foi um homem solitário que não teve esposa ou filhos. Logo,
u ep ese ta a o de dos l igos; o out o, a o de dos o ges . 15
Finalmente, surge a sétima trombeta. É tempo do julgamento da besta e
do falso profeta. O Anticristo e os seus seguidores serão exterminados.

13 Joa ui usa o te o patha e i pa a se efe i ao o i e to disside te o he ido


o o ata is o . POTESTÀ, G.L., Op. Cit., p. .
14 WHALEN, B ett Ed a d. Do i io of God: Ch iste do a d Apo al pse i the Middle
Ages. Ca idge: Ha a d U i e sit P ess, . p. . O filio ue e a u a f ula
lati a de des iç o do ela io a e to e t e as pessoas da T i dade. Ela afi a a dupla
o ige do Espí ito, p o ede do, si ulta ea e te, do Pai e do Filho.
15 Moses fuit Le ita, et pasto Populi Is ael; Hel as i solita ius o ha e s filios aut

u o e . Ille e go sig ifi at o di e le i o u ; iste o di e o a ho u . .


Muito se espe ula , poste io e te, a e epç o do pe sa e to joa ui ita, so e a
elaç o e t e as duas teste u has de Apo alipse e as o de s de F a is o e Do i gos.
REEVES, Ma jo ie. The i flue e of p ophe i the Late Middle Ages: a stud i
Joa hi is . Lo do : U i e sit of Not e Da e P ess, . p. - .
246
Co eça e t o a fase fi al da hist ia da Ig eja, o te ei o status do
mundo, que será um tempo de descanso e contemplação. Nele, após o
fim das pessoas o uptas da te a, ei a o po o sa to do Altíssi o. 16
Esta seção termina com uma longa descrição da conversão final dos
gregos e judeus à Igreja latina.
A quarta parte do Expositio (153r-174v) não apresenta uma
estrutura clara no Apocalipse (Ap 11.19-14.20), mas mesmo assim o
abade optou pela divisão em sete distinções (distinctiones). A seção
começa na abertura do santuário celestial, mas tem como foco a história
do Dragão.17 É o quarto tempo da história da Igreja, no qual a ordem dos
monges e das virgens luta contra Maomé, a quarta cabeça do Dragão.
Igualmente, corresponde a sete fases.
A primeira distinção apresenta o conflito entre a mulher vestida
de sol e o Dragão. Nesta primeira batalha, os protagonistas foram Pedro
e seus sucessores. O inimigo, por sua vez, agiu através de Herodes e
Nero. A segunda distinção apresenta a guerra entre Miguel e o Dragão
(Ap 12.7-12) como símbolo da perseguição pagã aos cristãos até o tempo
de Constantino. A terceira distinção descreve a fuga da mulher para o
deserto, que representa a perseguição à igreja através das monarquias
arianas. Ela fugirá para uma vida de retiro e contemplação durante 42
meses, ou 1260 dias.
A quarta distinção começa em Apocalipse 12.17, com o
levantamento das duas bestas, e vai até 14.5 (o ajuntamento das
144.000 testemunhas do Cordeiro). A besta representa a perseguição
sarracena aos eremitas e virgens, mas também indica, por meio de suas
cabeças, uma série de adversários históricos da igreja. As quatro
primeiras cabeças, respectivamente, eram os judeus, pagãos romanos,
arianos e sarracenos. Esta cabeça sarracena parecia ter morrido, em
função da tomada de Jerusalém, da conquista normanda na Sicília, e da
expulsão dos mouros na Espanha. Para Joaquim, entretanto, ela voltou
a viver, tão terrível quanto antes, e a tomada de Jerusalém seria uma
demonstração disso. É a cabeça que parecia ter morrido mas reviveu
para impressionar o mundo todo. Joaquim interpretou a segunda besta
de Apocalipse como um falso-profeta, que se levantará do meio da

16 Et ad te tiu statu u di, ui e it i sa atu et uiete : i uo, e te i atis p ius


o upto i us te ae, eg atu us est populus sa eto u Altissi i. .
17 POTESTÀ, G.L., Op. Cit., p. .
247
igreja, conhecendo e falando como um cristão. Este fará aliança com a
a eça sa a e a da p i ei a esta. S o os pathareni, a es ia dos
he eges haereticorum fex). Os 144.000 que aparecem em Apocalipse
14 são, para o abade, os monges e virgens da igreja que se opõe àqueles
que têm a marca da besta.
A quinta distinção cobre apenas dois versículos do Apocalipse (Ap
14.6-7). É o anúncio do Evangelho Eterno e do juízo. Também é o tempo
da desolação da Babilônia. A sexta distinção (Ap 14.8-12) descreve o
anúncio dos dois últimos anjos no céu. É o tempo do advento da Besta e
do falso-profeta. No momento de descrever a sétima distinção (Ap
14.13-20), a cena do Filho do Homem e a ceifa, Joaquim anuncia a idade
sabática final, quando os fiéis viverão na terra com aqueles que
sobreviverem à queda do Anticristo.
Potestà alerta que o Expositio é um comentário bíblico e não um
tratado escolástico. Além do mais, ele foi escrito no transcurso de quase
vinte anos de trabalho. Isso faz com que ele comporte algumas
contradições ou oscilações. Nesta sétima distinção, por exemplo, o
descanso sabático parece ter a presença de Cristo na terra com os
santos. Nas outras referências ao mesmo período, Cristo não exerce um
papel pessoal na transição para a era do Espírito.18
A quinta parte do Expositio (177r-191v) cobre a seção das sete
taças do Apocalipse (Ap 15.1-16.17). É o quinto tempo da Igreja,
indicando o confronto da Igreja romana, simbolizada pelo trono de Deus,
contra Babilônia. Cada taça representa também sete destinatários da ira
divina. A primeira taça da ira foi despejada sobre os judaizantes, que
adoraram a besta no tempo de Herodes e a sinagoga judaica. A segunda,
sobre a igreja infiel antes de Constantino. A terceira, sobre os bispos
arianos e seus ensinos depois de Constantino. A quarta, sobre os
hipócritas das ordens contemplativas. A quinta, sobre os falsos clérigos
e monges. A sexta, sobre os perversos do mundo. A sétima taça, sobre
os próprios eleitos, na forma de uma perseguição purificadora.
A sexta parte do Expositio (191v-209v) não apresenta mais a
divisão septenária. Esta seção do Apocalipse descreve a queda da
Babilônia e o juízo sobre as bestas (Ap 16.18-19.21). É o sexto tempo da
história, e trata da luta dos viri spirituales (homens espirituais),

18 I ide , p. .
248
primeiramente contra o Dragão, depois contra a besta que veio do mar
e a besta que veio da terra. O abade viu nesta longa passagem bíblica
três distinções. A primeira (Ap 16.18-18.24) descreve a queda da
Babilônia e da besta que a sustenta. Babilônia se torna símbolo para
qualquer oposição à Igreja de Roma.
A segunda distinção (Ap 19.1-10) apresenta a exultação dos fiéis
diante da ruína da Babilônia. A terceira distinção (Ap 19.11-21) apresenta
a derrota da besta e do falso-profeta. Ambos representam inimigos da
igreja desde o tempo dos apóstolos. Nos termos de Joaquim, são as
aç es i dulas ue u a ez esti e a sujeitas ao I p io Ro a o,
e e t o pe segue a C isto e sua Ig eja .19 Suas sete cabeças sucessivas
são: a) Herodes e seus judeus no reino da Judéia; b) os pagãos do Império
Romano até o tempo de Diocleciano; c) reino grego ariano; d) reino godo
ariano; e) reino vândalo ariano; f) reino lombardo ariano; g) o império de
Maomé. O tempo da sétima cabeça é o tempo da desolação da Babilônia.
Esta terceira distinção descreve ainda um cavaleiro sobre um cavalo
branco. Segundo o abade, esse cavaleiro pode indicar a manifestação de
Cristo para destruir a besta através de sua volta pessoal ou o poder de
Cristo operado por meio de outras figuras. Inicialmente, ele se inclina
para uma vinda pessoal. Depois, entretanto, admite que isso pode ser
explicado pela ação invisível de Cristo em sua Igreja militante.
Finalmente, as duas próximas seções do Expositio fecham o livro.
A parte sétima (209v-215r) discute o milênio (Ap 20.1-10), e a oitava
(215r-224r) a Jerusalém Celestial (Ap 20.11-22.21). Esta última
corresponde ao oitavo aetas, não mais dentro da história, mas no
seculum futurum posterior ao último tempo da humanidade.

A sétima seção do Expositio


Faremos agora um recorte e focaremos especialmente na sétima
parte do comentário, seção em que Joaquim constrói uma exegese da
perícope joanina que descreveu o reino milenarista dos martirizados
com Cristo. Para acompanhar a interpretação de Joaquim, é útil ter em
mente o texto de Apocalipse 20.1-10:

19 U i e sas ge tes i fideles uae ali ua do su je tae fue u t Ro a o i p io, et

pe se utae su t Ch istu , et e lesia ejus . .


249
E vi um anjo descendo do céu tendo a chave do abismo e uma
grande corrente em suas mãos. E prendeu o Dragão, a antiga
serpente, que é o Diabo e Satanás, aprisionando-o por mil anos.
E lançou-o para o abismo, fechou e selou o abismo, para que não
engane mais as nações até que se complete os mil anos. Depois
destas coisas é necessário que ele seja solto por pouco tempo. E
vi tronos, e sentaram neles, e [autoridade de] julgamento foi
dada a eles; também as almas dos decapitados por causa do
testemunho de Jesus e da palavra de Deus, e todos que não
adoraram a besta, nem sua imagem, e não receberam a marca
dela na fronte e na mão. Viveram e reinaram com Cristo por mil
anos. Os demais mortos não viveram até que terminasse os mil
anos. Esta é a primeira ressurreição. Bendito e santo o que tem
parte na primeira ressurreição. Sobre estes a segunda morte não
tem poder, porém serão sacerdotes de Deus e de Cristo e
reinarão com ele por mil anos. E quando concluir os mil anos,
será solto Satanás da sua prisão. E virá a enganar as nações que
estão nos quatro cantos da terra, Gog e Magog, e reuni-las para
a guerra, das quais o número é como a areia do mar. E subiram
então pela superfície da terra e cercaram o acampamento dos
santos e a cidade amada. Mas desceu fogo do céu e os queimou.
E o diabo, o enganador deles, foi jogado para o lago de fogo e
enxofre, onde também estão o animal e o falso profeta, e serão
atormentados dia e noite para todo o sempre.20

A sétima seção do Expositio é a menor do comentário de Joaquim,


o que não significa status diminuído. Como argumentou Potestà, a
estrutura do Expositio coloca o acento na sua mais significativa novidade:
a des o e ta ue a p i ei a pa te de Apo alipse trata daquele
grande sábado futuro no final do mundo".21
O abade dividiu a seção em quatro partes, precedidas de uma
introdução:
- Introdução, 209v-210v;22
- Pars prima, 210v-212r (comentário de Apocalipse 20.1-3);
- Pars secunda, 212r-214v (comentário de Apocalipse 20.4);

20 T aduç o p p ia, a pa ti da Ediç o g ega de ALAND, Ku t ed. . The G eek Ne


Testa e t. Stuttga t: Deuts he Bi elgesells haft, .
21 POTESTÀ, G.L., Op. Cit., p. .
22 O E positio u i u ulo. Co se ue te e te, ele o te a est utu a de p gi as,
as si de f lios. As itaç es, e t o, i di a o ú e o do f lio, e se f e te ou e so
ua do fo a pa te f o tal; pa a o e so do f lio .
250
- Pars tertia, 214v (comentário de Apocalipse 20.5-6);
- Pars quarta, 214v-215r (comentário de Apocalipse 20.7-10).

A i t oduç o a e ta logo o a f ase: est o o pletadas seis


partes do livro de Apocalipse nas quais encontramos seis tempos de
trabalho. Vem agora a sétima parte, na qual vemos aquele sábado futuro
no fim do mundo, que em outro lugar chamamos de terceiro status .23
Fica clara assim a relação construída por Joaquim entre o milênio de
Apocalipse 20 e um período de paz na terra durante o fim do terceiro
status da história da humanidade. Ele completa ainda que se trata do
tertium statum sive etiam septimam mundi statem do te ei o status,
ou da sétima idade do mundo). Corresponde também à sétima aetas da
Igreja, que ele vem narrando repetidas vezes nas partes anteriores do
seu Expositio.
Após estas frases de definição, ou mesmo de contextualização, o
abade recorre a Agostinho e uma figura que ele chama de St. Remigius.
Do primeiro ele toma a ideia de que a exp ess o dia fi al as Es itu as
não precisa ser entendida como significando o último momento do
mundo, podendo antes ser uma última fase, ou então o tempo do fim.
Po isso os auto es í li os pode ia dize , h ais de il a os, ue j
era a última hora . No segu do ele us a apoio pa a a afi aç o de ue
haverá um certo tempo, de duração indeterminada, posterior à derrota
do Anticristo. Esse parece ser o motivo dele ter buscado nesta figura de
identidade incerta (Remigius) uma voz autoritativa para legitimar sua
interpretação. Segundo Potestà, provavelmente este Remigius foi um
exegeta do século XII, cuja obra foi atribuída a um certo Aimone de
Halberstadt.24
A ideia de um período sabático na terra representa
descontinuidade com a tradição exegética de Agostinho. Joaquim está
ciente disso, e gasta algumas linhas do seu comentário para explicar que
a expectativa da vinda à terra de uma sétima aetas, na qual a igreja
estará livre de perseguições e reinaria sem perturbação na plena
possess o da i telig ia espi itual , o u e o, as u a aio

23 Pe a tis se pa ti us li i Apo al psis i ui us otata su t se te po a la o iosa.


Ve ie du est ua do ue ad septi a pa te i ua agitu de ag o illo sa ato i
fi e u di futu o: uod o a i pla luit te tiu statu .
24 POTESTÀ, G.L., Op. Cit., p. .
251
o p ee s o. Segu do o a ade, u a opi i o a io al, o o t ia
f .25
Após isso, ele usa boa parte da introdução para retomar aspectos
que precederiam o período sabático: o diabo lançará os sarracenos
contra o império cristão; após a queda da Babilônia, haverá um pequeno
período de tranquilidade para a Igreja; então a besta que parecia morta
se erguerá novamente para uma segunda batalha contra os exércitos de
fiéis; o resultado será a derrota da besta e do falso profeta, e, finalmente,
se seguirá uma grande paz, o descanso sabático.
A partir de então, ele analisa os versículos de Apocalipse 20.1-10
por meio da estratégia que já utilizou no restante do comentário: há uma
transcrição de uma pequena porção do texto na sua versão latina,26
seguido de apontamentos exegéticos, filológicos e históricos.
A primeira parte da seção corresponde a Apocalipse 20.1-3 (a
prisão de Satanás). O abade começa com a discussão do significado da
e p ess o il a os . O ú e o o literal, já que ele significa um
número perfeito.27 Isso indicaria que a duração da prisão de Satanás
se ia du a te u pe íodo pe feito . Mes o assi , o a ade apli a ao
tempo milenar dois significados. O primeiro teve um cumprimento inicial
(incipient) no tempo da ressureição de Cristo. Neste sentido, o milênio
se estenderia daquela época até o fim do mundo, durante todo o tempo
da hist ia da Ig eja ad totum tempus ecdesie . Mas seu pe feito e
o pleto u p i e to se ia o te po sa ti o ad sabbatum ),
depois da destruição da besta.
Nos seus termos, o milênio do Apocalipse teria um cumprimento
duplo: pa ial e te, a pa ti da uele s ado e ue o Se ho
descansou no sepulcro; plenamente, após a destruição da Besta e do
Falso-p ofeta .28 É uma forma curiosa de afirmar a posição de Agostinho
(milênio como o tempo de existência histórica da Igreja), para logo em

25 Ta e esse potest atio a ilis opi io ue o sit o t a fI ide ,


26 N oh a aç o de apítulos ou e sí ulos a e s o lati a usada po Joa ui . Ela
dife e le e e te da Vulgata Cle e ti a, usada este a tigo: COLUNGA, Al e to;
TURRADO, Lau e tio. Bi lia Sa a iu ta Vulgata Cle e ti a . Mad id: Bi liote a de
Auto es C istia os, .
27 Mille a ius u e us pe fe tissi us est
28 Se u du pa te i ipit a illo sa ato uo e uie it Do i us i sepul h o:
se u du ple itudi e sui, a ui a Bestiae et Pseudo-P ofhetae .
252
seguida abandoná-la em prol da retomada da antiga posição quiliasta
(milênio como um período futuro intra-histórico).29 Para Joaquim, o
bispo de Hipona estava correto apenas parcialmente. Como ele, o abade
insiste em afirmar que o milênio não será literal. Pode ser longo, ou
u to, as sua du aç o se segu do o a ít io de Deus .30 Talvez seja
mesmo curto, mas o tempo esclarecerá isto.
Sobre a atuação do Espírito, o abade afirma que ele manterá a
chave da prisão de Satanás. Neste período, a terceira pessoa da Trindade
atuará sobre toda a terra, não apenas sobre os fiéis, mas também sobre
os pag os. Po isso, ha e u a g a de paz, o o u a a tes desde o
p i ípio dos s ulos .31
No f lio , o a ade fala do ei a do Espí ito Sa to
regnare Spiritus divinus , o ue se o stitui u a sig ifi ati a
alte ati a ao ei o de C isto de Apo alipse . -10. Há ainda uma
insistência de Joaquim em caracterizar este período como um tempo de
paz: Ge uí a paz f ui pa a a Ig eja de C isto .32
A segunda parte da sétima seção corresponde ao texto de
Apocalipse 20.4-5a, e ocupa apenas uma coluna do fólio 212r. Joaquim
começa indicando a relação do te to de Jo o o o po o sa to do
altíssi o des ito po Da iel, ujo ei o ete o .33 O abade entende
ue os mille anni destes e sí ulos de e se pa alelos p is o de
Sata s: O te po do ei o dos Sa tos se i te ligado o o te po da
pris o do D ag o .34 Será um tempo breve, de duração incerta, no qual
a Igreja estará livre de perseguições e alcançará a plena possessão da
intelligentia spiritualis .
A ressurreição mencionada por João é também entendida como a
prevista em Daniel 12. Já os mortos que não reviveram até o final do
milênio, segundo Joaquim, serão os fiéis que ressuscitarão e entrarão
di eto a No a Je usal , se passa pelo julga e to do t o o
a o des ito a pa ti de Apo alipse . . Mas ele ad ite

29M GINN, B. Op. Cit., p. .


30 Cujus te i us e it i a it io Dei .
31 E it ag a pa ualis o fuit ap i ipio se uli .
32 Ve a pa e f ui pote it e lesia Ch isti .
33 Cuius eg u se pite u est
34 I ide , te pu i telligatu i a e atio is d a o is et eg i Sa to u .
253
dificuldades neste ponto e entende que é preciso esperar por novos
esclarecimentos espirituais.
A terceira parte da seção corresponde ao texto de Apocalipse
20.5b-6, que não passa de uma declaração do estado daqueles que
pa ti ipa da p i ei a essu eiç o . É u lo o uito pequeno, só
ocupando 19 linhas de uma coluna do fólio 214v. A versão latina citada
pelo a ade de la a: beatus et sanctus qui habet partem in resurrectione
prima Feliz e sa to ue te pa te a p i ei a essu eiç o .
Percebe-se que Joaquim não tem muito para falar sobre estes versículos
do Apocalipse. Ele se contenta em afirmar que aqueles que
e pe i e ta e a p i ei a essu eiç o se o eal e te felizes
(felicius viro), pois não estarão mais ao alcance da morte.
A quarta e última seção da sétima parte do Expositio corresponde
a Apocalipse 20.7-10 (a volta de Satanás e o confronto contra Gog e
Magog). Joaquim recorre à passagem paulina de 1Tessalonicenses 4.13
para descrever duas ressurreições. Segundo o abade, alguns
ressuscitarão logo; outros, depois. Também vincula o texto de João com
uma profecia de Ezequiel 38, ao descrever um conflito no final dos
tempos. A paz do período sabático será interrompida quando Satanás for
solto do abismo e instaurar a tribulação de Gog e Magog, que significa
uma última ameaça para os cristãos vinda dos confins do Oriente, talvez
de povos que no passado longínquo foram aprisionados por Alexandre o
G a de. Este e ito se le a ta o t a a idade a ada o fi dos
s ulos , mas será logo destruído. Assim, a besta e o falso-profeta
35

foram aniquilados no fim da sexta idade do mundo (in fine sexte etatis),
e Satanás o será no fim da sétima (in fine septime).
Joaquim reconhece igualmente as dificuldades deste texto, e fala
e últiplas opiniones . Po fi , o lui o outra alusão a Daniel, no
se tido de ue ua do fo ista a a o i aç o da desolaç o
abominationem desolationis po ue estas oisas est o pa a se
cumprir.36

35 Ci itate dile ta i o su atio e se uli


36 E Da iel . egist a-se ue algu i so e as asas da a o i aç o . A es a
i age usada e Da iel . e . , as a efe ia p i ia, e te os
hist i os e lite ios, es o Da iel , ua do o auto apo alípti o des e e a
p ofa aç o do te plo po A tío o Epífa es. A fu ç o p i ipal desta a ati a
apo alípti a e a ga a ti ue o te po de a gústia dos leito es esta a pa a hega ao fi ,
254
O descanso dos monges na Era do Espírito
Segu do Be a d MCGi , Joa ui se tia a de te e te a
i i ia da o diç o ideal de ida so e a te a .37 Sua descrição desta
época futura parece realmente estar marcada pela ansiedade. Ele
desejava ver o que naquele momento apenas podia imaginar, e esperava
estar vivo quando tudo acontecesse. Mas que tipo de vida o abade
espe a a? Quais se ia as tais o diç es ideais de e ist ia hu a a
sobre a terra?
Acima de tudo, seria o reino do Espírito (regnus Spiriti Divini). O
Espírito é a mais frequente referência de Joaquim para este período. Ele
o a jo ue a a a Sata s po il a os , ou seja, du a te u
pe íodo pe feito de te po. Du a te este te po, o Espí ito atua
sobre toda a terra, enchendo-a de paz. Finalmente terá acabado a longa
série de conflitos e perseguições que marcou os dois povos de Deus
(Israel e Igreja) desde o início da história. Neste período, ambos estarão
u idos judeus e ge tios de ai o da ple a posse da i telig ia
espi itual pa a o hecer os segredos das Escrituras. Joaquim fala de
u a idade a ada o fi al da s ti a seç o do Expositio, o que pode
ser uma indicação de que Joaquim esperava que Jerusalém fosse o lugar
desta eu i o u i e sal dos po os do altíssi o o fi al dos te pos.38
Joaquim denomina o período de sabbatum, e abre a sétima
seção do Expositio fala do dos seis te pos a te io es tempore
laboriosa). Se a ocasião anterior foi de trabalho, este último tempo da
hist ia se de des a so. Po isso u s ado , e p ess o ue faz
alusão à semana primordial de criação das Escrituras hebraicas, cuja
narrativa descreve a divindade criando o mundo em seis dias. No sétimo,
entretanto, des a sou de toda a sua o a ue ti ha feito. E a e çoou
Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra
ue, o o C iado , fize a. G esis . -3).39 Esse relato dos primórdios

e po isso o elato a u ia u a i i e te g a de a o i aç o efe ia p ofa aç o


do te plo de Je usal , as ga a te ue, ua do isso a o te e , a li e taç o di i a
i e seguida. Cf. COLLINS, Joh J. Da iel: ith i i t odu tio to apo al pti lite atu e.
G a d Rapids: Willia B. Ee d a s Pu lishi g Co pa , . p. .
37 M GINN, B. Op. Cit., p. .

38 WHALEN, B.E., Op. Cit., p. .


39 Ve s o í li a itada: Bi lia Sag ada. S o Paulo: So iedade Bí li a do B asil, .
255
retorna várias vezes nas narrativas bíblicas. Em uma delas, surge no
digo legal judai o o he ido o o dez a da e tos : e seis dias,
fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo
dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o
santifi ou Ê odo . . O te to da Vulgata assi t aduziu u a das
e p ess es: benedixit Dominus diei sabbati O Se ho a e çoou o dia
do s ado . To a do esta se a a da iaç o o o u a das est utu as
da história da humanidade, o abade vinculou os tempos anteriores, de
trabalho, com os seis primeiros dias, aguardando com muita ansiedade
o septimum mundi statem , o s ado de des a so espi itual.
Na sétima parte do Expositio, a descrição deste sábado final
permanece vaga em muitos aspectos. Joaquim fala de características
como pax e spiritualis intellectus. A primeira é uma inversão dos
sucessivos conflitos que caracterizaram a história da humanidade. A
segunda aponta para um aperfeiçoamento da sabedoria humana que
excederá a sabedoria dos livros e tornará desnecessária a pregação. Em
linhas gerais, ele espera por uma Era do Espírito onde a Igreja
descansaria dos seus conflitos, numa sociedade onde os monges
finalmente teriam a primazia.

Fatores e condições de emergência


Joaquim foi encaminhado para seguir a mesma carreira do pai,
Mauro, um notário a serviço da chancelaria normanda. Inicialmente,
estes passos foram dados sem sobressaltos, começando na Calábria, e
se deslocando em seguida para a corte do Reino da Sicília em Palermo.
Ele nasceu em 1135, um pouco depois da fundação do Reino por Rogério
II, e abandonou a carreira na corte em 1167, um ano depois da morte do
rei William I. Estas primeiras décadas de vida, e o treinamento recebido
para o trabalho na corte, devem ter lhe capacitado para o
relacionamento com as diversas populações e etnias do reino. Um
notário, especialmente em Palermo, deveria ter conhecimento do grego
e do árabe para promover seus registros. Estas qualidades
possivelmente estiveram envolvidas em sua rápida ascensão no
monastério de Corazzo, e nas negociações com os poderes eclesiásticos
e temporais enquanto abade e fundador da Ordem de Fiore.
Ele ingressou numa comunidade religiosa no início do governo
de William II, no começo da década de 1170. Quando este rei morreu,
256
em 1189, Joaquim já havia passado por Casamari, começado a produção
de suas grandes obras, e tinha já uma definição das duas deffinitio que
ele usava para refletir a história. Aqueles foram tempos de muita
instabilidade. Depois de quatro governantes de origem normanda
(Rogério I, Rogério II, William I e William II), o reino finalmente passou
para as mãos germânicas dos Hohenstaufen, após o governo de
transição do conde Tancredo. Os encontros do abade com o imperador
Henrique, ou com a rainha Constância, resultaram não apenas em
benefícios materiais para Joaquim e seus irmãos de Fiore, mas também
o fim do vínculo entre a Babilônia e os imperadores germânicos que se
manifestava nos primeiros esquemas milenaristas do calabrês. Com isso,
na parte final do Expositio, o Império deixou de ser o grande adversário
da Igreja no final dos tempos.40
Entretanto, talvez o fator preponderante na emergência de sua
espi itualidade ile a ista esteja o o i e to efo ado ge ado
no interior da Igreja romana. A perspectiva de que as coisas não eram
como deveriam ser, de que a Igreja dos próprios tempos havia se
afastado dos propósitos pregados pelos primeiros apóstolos e pelo
próprio fundador, principalmente na questão da simplicidade de vida,
acabou dando origem, a partir do século XI, a movimentos de reforma
em diversos setores da sociedade Ocidental e em diferentes espaços
eclesiásticos. Estes movimentos desejavam restaurar a pureza do clero,
entendido como corrompido, e refletir sobre o papel da Igreja na
sociedade em relação, principalmente, com as estruturas dos poderes
temporais. A professora Andréia Frazão, ao analisar os projetos
subjacentes aos concílios lateranenses, listou algumas destas
perspectivas reformistas, como as implementadas por poderes seculares
(monarquias carolíngias, ou imperadores germânicos, por exemplo), as
promovidas por movimentos monásticos (Cluny, Gorze, Metz etc.), as de
i i iati a popula o o o o i e to pata i o , e a fo e tada pelos
bispos de Roma, eventualmente denominada de Reforma Gregoriana.
Este último movimento, partindo da Cúria Papal, procurou impor Roma
o o centro político, religioso e administrativo da Igreja ocidental [...]

40TAGLIAPIETRA, A d ea. Il p is a Gioa hi ita: I t oduzio e all ope a di Gioa hi o


da Fio e. I : GIOACCHINO DA FIORE. Sull Apo alisse. Mila o: Felt i elli, . p. - .
257
e como o principal poder de caráter universal no Ocidente, ao qual todos
os de ais de e ia se su o di a , i lusi e o i pe ial . 41
A tal Reforma Gregoriana recebeu este nome em função do papa
Gregório VII (papa de 1073-1085), que em diversos momentos apelou
para o senso de iminência do advento do Anticristo para dar legitimidade
aos seus apelos reformadores. Em uma de suas cartas, ele explica a
oposiç o o o si al do fi do u do: E ão fiquem admirados! Pois
quanto mais perto o dia do Anticristo se manifestar, mais ele luta para
es aga a f ist .42 Este papa, na linha agostiniana, evitou fazer
predições sobre o fim do mundo, mas reiteradamente manifestou a
convicção de que ele deveria estar perto, em função da manifestação
das heresias e da corrupção da Igreja. Neste tipo de visão de história, os
eventos finais deveriam validar os esforços para buscar pureza moral e
ordem correta na instituição eclesiástica. Mudanças no cenário político
recebiam um lugar no cenário do fim do mundo, conflitos de múltiplas
naturezas eram legitimados pela perspectiva do juízo final, de forma que
a maioria das crenças apocalípticas medievais passaram a ser
instrumentos de retórica religiosa, política e social à serviço de papas,
clérigos, imperadores, reis e seus apologistas.
É certo que o senso de fim de mundo, ou as representações
escatológicas, não conseguem explicar totalmente as práticas dos
movimentos reformadores. De qualquer forma, esta relação entre
reforma e fim do mundo foi apropriada por Joaquim de Fiore, conectado
com o modelo gregoriano no seu desejo de expandir imperativos
monásticos tradicionais para toda a sociedade (christianitas).43 Mas o
abade acabou ultrapassando o modelo gregoriano, e mesmo o imperial,
em função de sua ênfase numa nova forma de ecclesia totalmente
monasticisada. O arquétipo também deixou de ser a era apostólica (no
passado), mas uma comunidade religiosa ideal (no futuro).

41 SILVA, A d ia C isti a Lopes F az o da. A luta e t e o Reg u et I pe iu e a


Co st uç o da E lesia U i e salis: u a a lise o pa ati a dos Co ílios Late a e ses
- . I : SILVA, F a is o Ca los Tei ei a; CABRAL, Ri a do Pe ei a; MUNHOZ,
Sid ei J. oo ds. I p ios a Hist ia. Rio de Ja ei o: Else ie , . p. - , p. - .
42 Citado po M GINN, Be a d. Apo al pti is a d hu h efo : - . I :
M GINN, Be a d ed. . The E lopedia of Apo al pti is : Apo al pti is i Weste
Histo a d Cultu e. Ne Yo k: Co ti uu , . ., V. , p. - , p. .
43 Este odelo g ego ia o us ou e pa di -se pa a a so iedade i tei a, po eio da
di ulgaç o do ideal da Ig eja dos te pos apost li os . M GINN, Be a d, Op. Cit., p. .
258
Kathryn Kerby-Fulton e Bernard McGinn denominaram este
fe e o de apo alip is o efo ado , u tipo de pe spe ti a
apocalíptica medieval que tinha como preocupação primária a reforma
clerical.44 Estes reformadores estavam continuamente avaliando as
instituições eclesiásticas de seus dias, e projetavam para ela um período
dourado de vitalidade espiritual. Este tipo de expectativa eventualmente
demandava ação e sugeria que indivíduos e instituições poderiam
participar (apropinquare) na viabilização do futuro, ou pelo menos na
definição de quais pessoas poderiam participar deste futuro idealizado.
É u a esp ie de des iç o de u futu o dou ado pa a o f o ta o
p ese te poluído .
Em termos concretos, tanto os movimentos reformadores quanto
os apocalipcismos medievais tiveram seus próprios fatores de
surgimento, mas alguns destes podem ter promovido o encontro das
duas expectativas. Primeiramente, o desenvolvimento dos movimentos
heréticos, com frequência o resultado de programas reformistas
frustrados, com constantes críticas ao clero e a corrupção da Igreja. A
persistência destes grupos poderia produzir a sensação de que as
heresias eram consequência do pecado da Igreja, e que para acabar com
elas era preciso se purificar. Produzia também a retórica apocalíptica por
parte das autoridades que constantemente recorriam às figuras
negativas do final do tempo para vinculá-las com as heresias. Um
segundo fator poderia estar nas cruzadas, que acentuaram a sensação
de que o cristianismo estava sob constante ameaça de povos pagãos.
Finalmente, e talvez o mais significativo, os efeitos da controvérsia das
investiduras e o conflito entre Igreja e poder temporal. A persistência
dos conflitos com os imperadores germânicos pode ter promovido o
surgimento da perspectiva de que a caminhada da Igreja era permeada
de conflitos históricos desde os seus primórdios. A Igreja passa a ser vista
como uma comunidade sagrada que sofre perseguição intermitente.45

44 KERBY-FULTON, Kath . Refo ist apo al pti is a d Pie s Plo a . Ca idge:


Ca idge U i e sit P ess, . p. ; M GINN, B. Apo al pti is a d hu h efo ...,
Op. Cit., p. - .
45 RIEDL, Matthias. Joa hi of Fio e as politi al thi ke . I : WANNENMACHER, Julia E a.
Joa hi of Fio e a d the i flue e of i spi atio : essa s i e o of Ma jo ie Ree es
- . Lo do : Routledge, . p. - , p. .
259
Este apocalipticismo reformador nem sempre se manifestou de
forma milenarista. Em Joaquim, entretanto, o fenômeno foi conjugado
com o milenarismo nos moldes do antigo quiliasmo cristão,46 e
manifestou as noções de que uma unidade cristã idealizada seria
alcançada através da transformação da ecclesia. Quando isso
a o te esse, judeus, g egos, pag os, e, tal ez, es o os sa acenos,
seriam levados à salvação através de homens espirituais da Igreja latina,
reunidos sob a direção de uma igreja Romana transformada .47

46 O uilias o defi ido po Wai ight o o a e ça de ue C isto eto a pa a a


te a e i augu a u a e a de p ospe idade de il a os so e o pla eta , e ça esta
o u a di e sos g upos ist os du a te os s ulos I-IV. Cf. WAINWRINGHT, A thu W.
M ste ious Apo al pse: I te p eti g the Book of Re elatio . Euge e: Wipf a d Sto k
Pu lishe s, . p. .
47 WHALEN, B.E., Op. Cit., p. . Joa ui a aça o ideal do se o sof edo de Isaías ,
e a espe a de u a g a de o e s o dos po os o fi al dos te pos, ue de a da ais
p egaç o e e os o flito. Nos seus te os, p aedi a do agis ua p oelia do
E positio i Apo al psi . TAGLIAPIETRA, A. Op. Cit., p. .
260
A FUNDAÇÃO DE SANTA CRUZ DE COIMBRA DE ACORDO COM A
VITA TELLONIS ARCHIDIACONI

Alinde Gadelha Kühner1

Este texto examina dois aspectos da Vita Tellonis: a natureza


tipológica da narrativa sobre a Vida de D. Telo e a maneira como o relato
relaciona-se com a fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
Como se perceberá ao longo da análise, a Vita Tellonis dificilmente pode
ser classificada como hagiografia, sendo esta a causa do exame de sua
tipologia textual. A relação com o mosteiro é o eixo do artigo.
Primeiramente, a personagem será apresentada; em seguida, a análise
da Vita Tellonis; e por fim, a conclusão.
Telo nasceu por volta de 1076, no então Condado Portucalense. Os
dados transmitidos sobre a sua vida são escassos, permitindo traçar
pouco mais que conjecturas. Cogita-se que tenha realizado sua formação
escolar no studium da Sé de Coimbra, onde iniciou sua vida clerical.
Servindo no capítulo da catedral,2 possivelmente participou da formação
final de Teotônio,3 a partir do momento em que este chegou de Viseu.
Trabalhando no posto de arquidiácono, peregrinou a Jerusalém com o
então bispo de Coimbra, D. Maurício. Segundo o hagiógrafo, a partir
desta viagem, Telo teria começado a desejar a possibilidade de fundar
um mosteiro de cônegos regrantes. Foi cônego da Sé de Coimbra por
mais de vinte anos antes de conseguir este intento.
Sob o episcopado de D. Gonçalo, sucessor de D. Maurício, Telo
alcançou o cargo de arcediago, função que exerceu até a fundação do
mosteiro e pela qual foi denominado mesmo após 1131. Quando D.
Gonçalo morreu, em 1128, Telo esperava ser promovido a bispo. D.

1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora da


rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e integrante do Programa de Estudos
Medievais (PEM-UFRJ/UERJ).
2U apítulo u a asse leia dos egos da S , u a ido.
3 P i ei o p io do Mostei o de Sa ta C uz de Coi a, desde a sua fu daç o e
at , ua do e u ia ao p io ado.
261
Afonso Henriques, porém, patrocinou a eleição de D. Bernardo, então
arcediago de Braga.
Telo, pouco depois, teria reunido condições para que a fundação do
Mosteiro de Santa Cruz, cuja inauguração oficial deu-se em 1131,
acontecesse. Com a ajuda de D. João Peculiar – futuro arcebispo de
Braga – conseguiu doações que permitiriam a concretização de seu
projeto que teria sido acalentado desde a sua viagem à Jerusalém. Além
disso, de acordo com a hagiografia, trocou uma sela de montaria com D.
Afonso Henriques, que na permuta entregou o terreno dos Banhos
Régios; comprou um terreno de D. Bernardo; arrebanhou companheiros,
entre eles Teotônio. Também viajou a Pisa para conseguir privilégios de
Inocêncio II. Fez eleger Teotônio como prior do mosteiro, promovendo
esta escolha entre os fundadores, e dessa forma convencendo o
companheiro a aceitar o cargo, ao menos de acordo com a narrativa da
Vita Theothonii.4 Telo trabalhou diretamente na construção do edifício
da comunidade, como idealizador e supervisor das obras, enquanto sua
doença permitiu, e depois passou a ter uma vida dedicada a orações.
Morreu cinco anos depois da inauguração do mosteiro.

A hagiografia Vita Tellonis Archidiaconi e sua análise


A hagiografia escrita sobre Telo, a Vita Tellonis Archidiaconi, foi
elaborada no priorado5 de João Teotônio, sobrinho de Teotônio e
sucessor deste. Seu escritor, Pedro Alfarde, era escriba de Santa Cruz de
Coimbra e, trinta anos depois de escrever esse texto, assumiu o priorado
do cenóbio. O período em que a hagiografia foi reunida com outros
textos no Livro Santo, por volta de 1155, foi um momento em que o
mosteiro lutava por sua independência jurídico-religiosa em relação ao
cabido da Sé de Coimbra, que buscava ter o cenóbio sob sua custódia.
O manuscrito que contém a Vita Tellonis Archidiaconi recebeu no
século XVII o epíteto de Livro Santo. Este nome deriva do fato desta Vita
ser o primeiro texto do códice, mas a maior parte do volume é composto
por documentos usados para a legitimação dos interesses do mosteiro,

4 NASCIMENTO, Aires. Santa Cruz de Coimbra e suas hagiografias medievais. Lisboa:


Edições Colibri, 1998. p.167.
5 Desde sua fundação, Santa Cruz denominou seus superiores como priores, ao invés de

abades. Ao que parece, foi uma condição de Teotônio para aceitar o cargo.
262
como privilégios papais. Aires Nascimento afirma que Pedro Alfarde
configurou a Vita Tellonis como um prólogo de toda a documentação.6
Escrita em prosa e em latim, a Vita apresenta um terço do tamanho
da hagiografia dedicada a Teotônio, e, neste curto espaço, algumas
páginas são inserções de documentos emitidos por Inocêncio II,
concedendo privilégios ao mosteiro. Assim, a obra estrutura-se em duas
partes, divididas entre antes e depois da inserção destes privilégios
concedidos pelo papa - dois capítulos anteriores e três capítulos
posteriores aos documentos. Na edição consultada, estão também
presentes os outros textos que compõe o Livro Santo.7
A introdução da Vita Tellonis Archidiaconi apresenta um topos
comum às hagiografias: é indicado o motivo de se escrever sobre
determinado santo, ressaltando a incapacidade do hagiógrafo para tão
grande tarefa. A Vita Tellonis apresenta esse elemento narrativo,
sucinto, como todo o restante da obra. O texto inicia-se com uma
referência a um trecho do livro bíblico de Eclesiastes: A ep ese taç o
de qualquer obra ou figuração é considerada merecedora de elogio
quando o termo de execução aguentar bem o início .8 Mesmo não sendo
uma citação direta, a menção remete ao sétimo capítulo do livro bíblico,
em que se discorre sobre a sabedoria, os sábios, os desvios. Ele destaca
que se deve começar bem e terminar da mesma forma, não podendo
ocorrer desequilíbrio entre as partes. Pedro Alfarde, apresenta-se
modesto, algo comum entre hagiógrafos: diz esperar cumprir bem sua
missão de escrever sobre um grande homem.
Logo após a introdução, a narrativa, diferentemente do que se
espera de uma vita, não se centra no seu suposto protagonista, Telo. O
foco é o contexto político e religioso da fundação de Santa Cruz de
Coimbra:
Foi assim que, no ano de 1131 da Incarnação do Senhor,
oitava indicção, segundo ano da rebelião do apóstata
Pier Leoni, em oposição ao piedosíssimo e santo Papa
Inocêncio II, sendo ainda vivo Luís, rei de França, e

6 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 135.


7 NASCIMENTO, Aires. Santa Cruz de Coimbra e suas hagiografias medievais. Lisboa:
Edições Colibri, 1998.
8 Ibidem, p. 55. O trecho refere-se a Ecl. 7,9.

263
estando dividida a parte cristã da Hispânia em três
domínios, cada um com sua governação [...]9

O segundo capítulo discorre sobre o contexto político da fundação


do mosteiro, pouco importando as origens e os estudos de Telo. Desta
forma, no primeiro parágrafo deste capítulo só se menciona o cônego
po ele te sido o idealizado do ostei o, o ho e ue o e eu a
10
primeira reforma de vida apóstolica de sua região. Apenas depois da
contextualização política e religiosa da fundação e de escrever sobre a
excelência do mosteiro, é que o foco da narrativa centra-se em Telo: na
sua origem, nas suas virtudes físicas, comportamentais e espirituais:
[...] era, todavia, forte de corpo, prendado no aspecto
físico, mas mais prendado na alma, de uma vivacidade
que exteriorizava mais contenção que expansividade,
respeitador dos superiores, compreensivo para com os
inferiores, compassivo para com os necessitados, fiel
para com os senhores, afável para com todos, justo, mas
terno pela misericórdia, casto de espírito e de corpo, mas
firme em humildade extrema, cheio de sabedoria,
sobressaía em prudência, fazia-se notar pela
honestidade do seu comportamento e mantinha-se
firme em qualquer momento de perturbação.11

Esta caracterização de Telo, sobretudo no tocante às suas virtudes,


só é retornada de forma mais vigorosa ao final da hagiografia, quando o
santo está doente, quase morrendo. Vale destacar que estas virtudes
são apenas listadas, quase não são descritos episódios que as
ilustrassem. Este inventário de qualidades tem uma importante função
para a hagiografia: justificar sua escrita. Sendo um texto que apresenta
um santo fundador do mosteiro, foi necessário elencar seus méritos.
O texto inicia a narrativa da vida de Telo quando este já tem cerca
de vinte e oito anos e já era cônego do cabido de Coimbra. Salta-se das
virtudes de Telo para o convite do então bispo de Coimbra, D. Maurício,12

9 Ibidem, p. 55.
10 Ibidem, p. 57.
11 Ibidem. p. 58.
12 Cluniacence, D. Mauricio atuava junto à Cúria Romana para que se implementassem

as reformas papais. Neste sentido, é enviado à Península Ibérica como legado papal, e
assim trabalha por cerca de 10 anos – até se tornar bispo de Coimbra em 1099. Vinte
anos depois, é denominado arcebispo de Braga. Em 1118, envolve-se nas disputas entre
264
pa a ue Telo fosse seu o pa hei o de peregrinação até Jerusalém.
Co o tudo a hagiog afia, a a ati a da peregrinação e e e
podem ser notadas lacunas de informação – inclusive sobre D. Maurício.
O então bispo de Coimbra, que chegou à região como legado papal,
não tem sua posição inicial e sua origem franca e cluniacense citadas na
hagiografia. D. Maurício foi enviado ao então Condado Portucalense
para ajudar a implementar as reformas litúrgicas promovidas pela Cúria.
A região, até o século XI, tinha como rito moçárabe como predominante,
herdeiro da liturgia visigoda, considerada herética pela Cúria no
momento em que se passavam as ações narradas pelas hagiografias em
análise.
A primeira lacuna no relato sobre a viagem é a motivação de D.
Mauricio para a sua realização: se a motivação era espiritual, ou para a
compra de relíquias, ou para o exame de instituições locais, para buscar
referências para reformas no cabido, a narrativa de Pedro Alfarde não
explicita. Aires conjectura em nota que D. Mauricio fez a viagem como
pa te do movimento contemporâneo relacionado com as Cruzadas
p o o idas po U a o II .13
Maria Teresa Veloso também aponta este movimento como
motivação da viagem, e acrescenta a informação da busca e compra que
Mauricio fez de relíquias na Terra Santa e em Constantinopla.14 Não é,
porém, o que o texto aprese ta. Assi , o e o viajar des e e elho
o que foi narrado do que o mais comum relacionado a uma viagem à
Terra Santa: peregrinar .
O trecho a seguir demonstra a pouca ênfase dada à espiritualidade
contemplativa de Telo na Vita. E depois desta breve passagem, ele já
figura analisando instituições locais, que não são nomeadas na narrativa:
Aí, qual homem de grande discernimento como ele era,
depois de percorrer a pé, com intuito de observar com
seus próprios olhos, os lugares santos, e depois de com
inteligência perspicaz chegar à admiração e nessa
admiração ao maravilhamento por causa das sendas

o Papado e o Sacro Império Romano Germânico, sendo o antipapa Gregório VIII por três
anos. É punido, sendo prisioneiro em diversos mosteiros até a sua morte.
13 I ide , p. .
14 VELOSO, Maria Teresa. D. Maurício, monge de Cluny, bispo de Coimbra, peregrino na

Terra Santa. In: ___. et all. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Marques.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. 4v., V. 4,p. 125-135.p. 132.
265
mais diversas das várias Ordens no lugar por elas
ocupado (muito embora interligadas por um tenaz
vínculo de caridade, subindo até àquele supremo e ímpar
ponto de encontro que é o sumo bem, que não sofre
confronto com qualquer outro modo de vida), contendo
interiormente, tanto quanto podia, suspiros de dor,
e la a a: Ai de i , pois o eu deste o se
p olo gou, fi uei a o a o os ha ita tes de Ceda
(Ps. 119, 5)15

Conforme nota da Bíblia de Jerusalém,16 a adjetivação de bárbaro


se adequa a esses habitantes de Cedar, citados no salmo. Uma
interpretação possível do uso desse trecho na narrativa é a equiparação
dos habitantes de Cedar o pa te dos habitantes de Coimbra,
especialmente os clérigos, adjetivando-os de bárbaros. O cabido, por
este tempo, enfrentava uma acirrada disputa entre os partidários da
liturgia moçárabe17 e os partidários da liturgia franco-romana.18 Sendo
Telo partidário da última, o relato buscou mostrar que ele considerava
como bárbaros àqueles que não a desejavam.
Pedro Alfarde atribui às virtudes de Telo, listadas no parágrafo
anterior ao da narrativa da viagem, a sua escolha para acompanhar D.
Mauricio. Também explica a escolha do bispo ao suposto cargo de
arcediago ocupado por Telo. Ele não utiliza esta palavra, mas atribui ao
protagonista as funções do cargo: gestão dos negócios da cúria e do
bispo. Mas o que a documentação do Cabido da Sé indica é que Telo
recebeu essa promoção posteriormente, já no bispado de D.Gonçalo,

15 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p.57-9. Sendo uma edição bilingue, o pequeno trecho
destacado ocupa o final da página 57 e o início da p. 59. A p. 58 é preenchida pelo original
em latim. O parêntesis indicativo do versículo dos Salmos é indicação do editor, não
havendo esta referência no original.
16 Edição bíblica desenvolvida a partir da École Biblique, francesa, em que se realizou uma

edição a partir de uma equipe multidisciplinar de forma a oferecer contextualizações


histórica, geográficas, culturais apuradas dos diversos textos bíblicos.
17 Liturgia desenvolvida na Península Ibérica ocupada pelo Islã. Foi tratada como heresia

além-Pireneus a partir do século XI. Em 1080, foi realizado o Concílio de Burgos, levado
a cabo pelo Rei de Leão Afonso VI, para proibir a liturgia moçárabe. Afonso VI era parente
de Hugo de Cluny
18 Liturgia desenvolvida no reino franco conjuntamente com Roma, a partir do século X.

266
acerca de 1113.19 O narrador preocupava-se especialmente com o
engrandecimento de Telo e de Santa Cruz, não com a historicidade exata
da narrativa. O que se queria ressaltar eram os interesses do mosteiro –
nesse caso, enaltecendo-se Telo e atribuindo a ele a precocidade de um
cargo ainda inexistente. Não se deve, aliás, atribuir a uma hagiografia o
valor histórico que se exige de uma obra historiográfica, como afirma
Ce teau: a função didática e epifânica [da hagiografia] exorbita da
história .20
Como já afirmado, o elemento narrativo principal da
peregrinação o e a e i stitu io al ue Telo te ia ealizado e
Jerusalém. Ali teria encontrado instituições exemplares, não indicadas
textualmente, que teriam sido a fonte primordial de inspiração para a
fundação de Santa Cruz, concretizada mais de vinte anos depois. Ele teria
examinado como e com que frequência os cônegos destas instituições
liam conjuntamente as Sagradas Escrituras; como era o relacionamento
entre os superiores e os cônegos; como era realizado o
acompanhamento dos mais novos, para que não se desviassem do bom
caminho e como se dava a organização disciplinar dessas ordens.
Nascimento, em nota, aponta que D. Mauricio tenha escolhido Telo
para a viagem por possivelmente compartilharem anseios de reforma
disciplinar no cabido de Coimbra.21 A hagiografia possibilita essa
interpretação ao enfatizar este exame, ao invés de se sublinhar o
itinerário dos peregrinos ou então a sua reação ao terem contato com o
sagrado. Essas questões, como destacamos, não estão totalmente
ausentes do relato, mas figuram de forma muito tênue.
Logo depois da olta da iage , o a e ispo de B aga, o ais ue
sa to 22 D. Geraldo morre, e D. Mauricio é sufragado em seu lugar. D.
Gonçalo, de oa e ria , su stitui D. Mau i io e Coi a, tornando
Telo seu corepíscopo. Pedro Alfarde faz, então, um intervalo narrativo,
sem descrever o que se passou. Provavelmente esta omissão ocorre
porque narrar o que acontecera nestes anos, uma vez que não

19 MARTINS, Armando Alberto. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média.


Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003. p. 191.
20 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

p.166
21 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 130.
22 Ibidem, p. 131.

267
interessava para enaltecer a fundação de Santa Cruz. A única coisa que
relatou sobre esse período é que Telo não conseguiu nem companheiros
e nem financiamento para seu projeto de fundação de um mosteiro de
cônegos regrantes. Intento surgido após a sua viagem à Jerusalém,
fomentado ainda mais com a recusa de parte do cabido de Coimbra em
adotar a liturgia franco-romana.
Também é provável que Alfarde tenha realizado esse salto no
tempo para narrar brevemente, em uma única oração, a instituição do
a tipapado de D. Mau i io, instituído papa pelo I pe ado .23 Essa
brevidade de narrativa pode ser duplamente explicada. Primeiramente,
porque D. Mauricio foi um importante companheiro para Telo e um dos
aliados do cônego. Assim, não é denominado negativamente nesta obra,
seja como antipapa, ou apóstata, ou Burdino, alcunha que lhe foi
conferida e pode significar burro ou bastardo, pois não interessava a
Pedro Alfarde desqualificar de forma veemente um aliado de Telo. Por
outro lado, tendo sido antipapa, também não poderia usar de adjetivos
positivos para caracterizar o excomungado. Assim, o narrador se limita a
informar que Maurício foi instituído papa pelo imperador. Ou seja, a
ação é do imperador, o antigo arcebispo age de forma passiva; não há,
desta forma, censuras textuais dirigidas a D. Mauricio.24
No mesmo período gramatical25 em que narra a instituição de D.
Mauricio como papa, Pedro Alfarde escreve sobre a morte de D.
Gonçalo:
Passados, porém, vários anos depois de, em Roma, o
arcebispo Maurício ter sido instituído papa pelo
imperador [Henrique V], Paio, seu arcediago, ter sido
elevado ao seu lugar como arcebispo, o prelado de
Coimbra, alquebrado não tanto pela idade, mas mais
pela doença, entregou ao céu o seu espírito e o arcediago
Telo, mais exemplar de vida e de costumes que todo o

23 Ibidem.
24 Neste momento, acontece na Península Itálica o episódio conhecido como Querela das

Investiduras. Igreja e Império rivalizam na investidura de clérigos, a Igreja desejando


implementar a investidura somente internamente e o Império tentando manter a sua
influência nas investiduras realizadas a partir dos poderes laicos.
25 Alguns períodos gramaticais do texto são bem extensos, Aires Nascimento os divide

sempre que possível. Sendo uma edição bilíngue, pode-se perceber que Pedro Alfarde
realmente não endossava certas passagens do texto, como a aqui destacada.
268
outro clero, era requerido para bispo pelo clero e pelo
povo.26

O autor sintetiza, desta forma, o período em que D. Paio foi


instituído bispo de Braga, D. Gonçalo, de Coimbra e Telo arcediago desta
última cidade. Cerca de vinte anos são praticamente ignorados pelo
narrador. A atuação de Telo como arcediago foi ignorada, assim como
sua relação com o restante dos cônegos do cabido. Assim, ficam
perguntas: neste período ele tentou implementar a liturgia franco-
romana? Se a resposta é positiva, houve reação? Nem mesmo suas
relações políticas são destacadas. Sua vida só volta ao primeiro plano da
narrativa em 1128, quando D. Gonçalo morre e Telo, apesar do costume
do arcediago suceder o bispo, não foi nomeado seu sucessor, mesmo
tendo obtido o apoio de D. Teresa.
Este episódio se deu depois da Batalha de S. Mamede, ocorrida em
1128, quando D. Teresa e D. Afonso Henriques disputaram o mando
sobre o Condado Portucalense, e ela já havia perdido o embate, tendo
sido exilada, o que a impediu de influenciar nesta decisão. D. Afonso
Henriques, seu filho e vencedor da batalha, não apoiou a eleição de Telo,
e D. Pedro Alfarde atribui essa posição i atu idade do infante, e não
a uma escolha política estrategicamente pensada.
D. Afonso Henriques privilegiava o arcebispado de Braga, por ser de
sua alçada territorial. O rei temia que um cônego ligado ao arcebispo
Bernardo de Toledo, como Telo teria demonstrado ser, fosse menos
interessado em manter o cabido autônomo em relação a Toledo.27
Assim, ele tinha como estratégia fortalecer a Igreja portucalense,
resultando desse estratagema o apoio ao arcediago de Braga, D.
Bernardo, para ser eleito bispo de Coimbra.
Não tendo sido eleito, Telo direciona sua atenção para outro
projeto, embora na hagiografia não se admita que o bispado fora um
objetivo seu: sua única ambição seria a criação de um mosteiro regrante.
Para isso, contou com a ajuda fundamental de D. João Peculiar, captador
de recursos e, posteriormente, apoiador do mosteiro, tanto quando foi
bispo de Porto, e, depois, como arcebispo de Braga. A Vita destaca que

26 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 59


27ERDMANN, Carl. O papado e Portugal no primeiro século da história portuguesa.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1996. p. 23 ss.
269
ele foi desde sempre um grande aliado de Telo. Assim, o futuro arcebispo
de Braga é elogiado desde sua primeira aparição na narrativa. É uma das
personagens mais destacadas pela adjetivação, em uma hagiografia
marcada pela exiguidade de qualificativos.
De acordo com o texto, Telo e D. João Peculiar foram companheiros
a partir do momento em que se conheceram. Pouco tempo de
conhecimento se passa e Telo fala a ele de seu projeto de fundação de
um mosteiro, no que ganha apoio imediato. Mas não sabem ainda como
conseguir mais adeptos e, principalmente; recursos. Telo recorre, então,
à rainha Teresa, mas ela não pode ajudar. Essa entrevista com a rainha,
ao que parece, ocorreu após a Batalha de São Mamede, e, como já
destacado, ela já não tinha influência para patrocinar projetos religiosos.
A referida batalha se deu em 1128, e só dois anos depois Telo
conseguiu o primeiro terreno: segundo a hagiografia, D. Afonso
Henriques trocou o terreno dos Banhos Régios por uma sela. A narrativa
não discorre sobre nenhuma passagem de Telo por Montpellier, mas
neste local o cônego teria adquirido uma sela vistosa, que Afonso
Henriques cobiça assim que a vê. Por ocasião dessa troca, segundo a
Vita, Afonso Henriques responde que antes de efetivar a troca iria se
a o selha : espo deu ao a ediago ue p i ei o te ia de e o
assunto, bem lembrado das palavras do sapientíssimo rei Salomão tudo
faz com conselhos para não te arrependeres (Eccl. 32, 34).28
Ao fazer o príncipe citar Salomão e efetivamente pedir o conselho
do mordomo-mor do castelo, Pedro Alfarde a um só tempo legitima o rei
e a doação ao mosteiro. Legitima Afonso Henriques, ao fazê-lo citar um
e e plo í li o de rei sábio e, ao es o te po, desta a ue a doaç o
não se deu de forma despótica, mas debatida, justamente por ter sido
uma decisão importante. Depois de conseguir a primeira parcela do
terreno, Telo obtém a segunda parte, dessa vez por compra, do bispo D.
Bernardo. Com essa aquisição, o futuro mosteiro já teria um espaço para
o horto e uma fonte de águas.
Pedro Alfarde atribui ao período imediatamente após essa
transação a dificuldade que o mosteiro iria encontrar em se relacionar
com os cônegos do cabido. Houve, de fato, conflitos com a Sé de
Coimbra, mas o hagiógrafo antecipou para o momento da fundação as

28 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p.61


270
tensões que se concretizaram alguns anos depois.29 Neste momento,
logo depois das aquisições necessárias para a construção, os cônegos do
cabido teriam realizado uma tentativa de embargar a obra de construção
do cenóbio, alegando que esta seria um encargo a mais para o
presbítero, dificultando-lhe a administração de recursos como tempo e
dinheiro.30
Mesmo com essa suposta dificuldade, reuniram-se os
companheiros necessários para a fundação, entre eles João Peculiar (ao
que parece, somente formalmente) e Teotônio. Doze teriam sido os
idealizadores e, em um curto período, teriam se juntado a eles mais
sessenta cônegos.
Não se tem um registro exato do número de cônegos iniciais, e as
conjecturas possíveis são realizadas a partir dos registros, posteriores,
que apontam para uma manipulação dos números a favor do suposto
caráter apostólico da canônica.31 Doze e setenta e dois são números de
simbologia apostólica, e o uso desses números pelo narrador da Vita
para marcar as etapas da fundação contribuiu, certamente, para a
legitimação religiosa do mosteiro.
Narra-se o lançamento da primeira pedra de fundação como tendo
sido realizada no dia 28 de junho, vigília de São Pedro e São Paulo, santos
diretamente ligados à Igreja de Roma. A fundação do Mosteiro de Santa
Cruz transforma o terreno, de profano a sagrado, segundo o hagiógrafo:
Santa é, pois, esta transformação e santa é a devoção de
quem dá e dos que trabalham e mais que santa é a
perfeição de Deus, autor e protetor supremo.
Proclamem, pois, coisas gloriosas a teu respeito, cidade
de Deus, e lembra-te de Raab e de Babilônia32 que

29 Ibidem, p. 133.
30 Ibidem, p. 63.
31 Ibidem, p. 29.
32 A sagrada Sião, cidade de Deus (2Sm 5,9+), deve tornar-se a capital espiritual e a mãe

de todas os povos. Todos os vizinhos pagãos de Israel: Egito Raab ), Etiópia, Síria-
Palestina, Mesopotâmia são chamados a conhecer o Deus verdadeiro e a fornecer-lhe
prosépios .Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010, p.955.
271
reconhecem a Deus.33 Eis, com efeito, o tempo aceitável,
eis o dia da salvação.34

Como pode-se perceber no trecho destacado e em nossos grifos,


Pedro Alfarde citou a Bíblia, inscrevendo a fundação do mosteiro no
plano do sagrado. Ao citar Ps. 86,2 e II Cor. 6,2, ele compara Santa Cruz
a Sião e à chegada da salvação que Cristo possibilitou.
Como Aires assinala, o que está em causa não é a sequência
cronol gi a dos a o te i e tos, as o elato de u a fu daç o a pa ti
de u a ida j esta ele ida .35 Esse comentário é realizado a partir da
suposta data de adoção da Regra de Santo Agostinho pela comunidade:
quarta-feira de cinzas do ano seguinte ao da fundação, segundo a Vita,
quando outros documentos apontam que a regra foi efetivamente
adotada anos depois.36 Não há registro do funcionamento da
comunidade nesses primeiros anos. Não só a atribuição da adoção da
regra é propositalmente errônea , como também o calendário se
encontra alterado. Essa mudança teria ocorrido, segundo Pedro Alfarde,
na festa do Apóstolo S. Matias, continuando assim a inserção das datas
importantes do mosteiro no calendário apostólico. Mas a festa do
apóstolo, em 1132 (ano que, segundo a cronologia da obra, teriam
adotado a regra), não teria sido nesta quarta-feira.37
O relato prossegue, destacando que Telo sente necessidade de se
aliar ao então papa, Inocêncio II. Para isso, vai a Pisa, junto com João
Peculiar, buscar proteção papal, pois os cônegos de Coimbra estariam
clamando para que o mosteiro fosse deixado em testamento de Telo à
Sé, o que o santo recusa, buscando apoio papal para que o mosteiro
permanecesse financeira e juridicamente independente da Sé de
Coimbra.
Inocêncio II recebe na hagiografia os elogios de praxe devidos a um
papa e, dada a importância dos seus textos direcionados ao mosteiro,
privilégios, suas cartas são indexadas na hagiografia, algo incomum neste
gênero de texto. É a natureza do códice que contém a Vita Telloniis - uma

33 Grifonosso: Ps. 87,4.


34 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 63. Grifo meu: 2 Cor. 6, 2.
35 Ibidem, p. 134.
36 Ibidem, p. 134
37 CAPELLI, A. Cronologia, Cronografia e Calendario Perpetuo. Milano: Ulrico Hoeplo,

1988. p. 74.
272
coletânea de documentos que privilegiam o mosteiro, encabeçada por
essa hagiografia – que justifica tal inserção. Foi também a forma de
demonstrar o apoio do papa da época, fundamental num ambiente
hostil à continuidade do mosteiro, tal como foi formulado, como era
Coimbra. A inserção justifica-se ainda pela motivação principal da escrita
da hagiografia: narrar a forma pela qual um cônego almeja e realiza a
fundação de um mosteiro santo. Como se vê, Telo torna-se importante
a ponto de ter sua vida historicizada por ter inaugurado o mosteiro.
Sendo assim, a inserção de documentos que privilegiam a principal ação
definidora da santidade de Telo se justifica.
Há que destacar que os cônegos regulares de Santa Cruz de
Coimbra mostravam-se favoráveis à Reforma Papal, com a qual a Igreja
preocupava-se em atingir muitos objetivos, dentre estes: diminuir a
ingerência laica nos assuntos clericais, organizar as instituições religiosas
em torno de Roma e a moralização do clero (que perdia cada vez mais
credibilidade). Inocêncio II, ao conceder privilégios e reiterar a
necessidade de proteger o mosteiro de seus inimigos, reconhecia a
comunidade como aliada das reformas que buscava implementar.
Telo, ao regressar da viagem que fez a Pisa para pedir tutela e
proteção do Papa, alcançou seu intento, como demonstram os três
documentos que trouxe na bagagem, anexados na hagiografia. A tutela
direta de Roma sob Santa Cruz é instituída no primeiro:
damos grato assentimento aos vossos pedidos e
recebemos sob tutela e proteção a igreja de Santa Cruz
em que vos entregastes ao serviço divino, e damo-lhes a
salvaguarda do presente documento escrito,
determinando que a a disciplina canônica que, como é
sabido, com o auxílio de Deus, aí foi instituída segundo a
Regra de S.to Agostinho, seja observada inviolavelmente
pelos tempos fora.38

O pedido de proteção real, em uma carta a Afonso Henriques:


de tal modo que, por consideração para conosco e para
com S. Pedro, tenhas em particular atenção e respeito

38 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 65.


273
aos irmãos desse lugar e não permitas que sejam
prejudicados por quem quer que seja;39

E a proteção eclesiástica na terceira, em carta ao bispo:


[…] -nos grato tomarmos conhecimento de que na
igreja de Santa Cruz que, como é sabido, fica nos
arrebaldes da cidade, com a ajuda de Deus, se instituiu
uma ordem religiosa. Por isso, rogamos a vossa atenção
e ordenamos que a esse lugar e aos irmãos que aí servem
a Deus os tenhais em consideração, por respeito para
com Deus onipotente, e os tenhais em grande respeito,
e não lhes causeis qualquer ofensa ou dano nem deixeis
que lhes sejam infligidos por outros, a fim de que eles
mais livremente e com mais tranquilidade possam
entregar-se ao serviço divino e vós, pela benemerência
que lhes dispensardes, mereçais receber de Deus
onipotente a retribuição tanto temporalmente como
espiritualmente.40

De volta de Pisa, Telo, que estava a caminho de cumprir um voto a


Santo Agostinho, é assaltado. Não consegue levar para Santa Cruz
relíquias que teria conseguido, mas percorre são e salvo seu caminho até
São Rufo de Avinhão. Chegando a essa parte do destino, conscientiza-se
que um dos seus companheiros de viagem, João Miguel, teria sido
contratado por alguma personagem não identificada na narrativa para
assassiná-lo, mas que o veneno que estava em seu poder não fora usado.
É nesta viagem que Telo sela a amizade com o mosteiro de São
Rufo, e de lá sai com o Costumeiro, que seria copiado e adaptado em
Santa Cruz. São Rufo de Avinhão, mosteiro regrante francês, foi
importante para o aumento da abrangência de canônicas seguidoras da
Regra de Santo Agostinho.41 A relação com Santa Cruz parece ter sido
estreita, mas não de dependência, já que a casa coimbrã só aceitava
responder à Cúria de Roma, como se vê pelos privilégios alcançados. Ao
mesmo tempo em que a canônica francesa foi importante para a
constituição de Santa Cruz – o Costumeiro não foi o único códice copiado
– não se explicita na hagiografia de Telo qual teria sido o primeiro

39 Ibidem, p. 69.
40 Ibidem, p. 70.
41 MARTINS, A. A., Op.Cit., p. 91.

274
contato do cônego com a canônica. Possivelmente, esse contato pode
ter sido feito em alguma outra viagem realizada por Telo não
mencionada na narrativa, como tantos episódios omitidos por Pedro
Alfarde.
Chegando em Santa Cruz, o quase homicida teria tido uma
indigestão. Pedro Alfarde cita o sétimo salmo, Prece do justo perseguido,
po Jo o Miguel se pa te dos ue p epa a a o laço e es a a a e
to o, as aí a a o a ue a i a Ps. , . O sal o de Da i
clama por justiça divina contra os iníquos, e ao destacar esse versículo o
hagiógrafo, vinculando-o com a indigestão, interpreta a mesma como
justiça divina a um perseguido.
Cinco meses após o regresso de Pisa, Telo cai doente, com um
tumor . Neste trecho, ele é comparado a Marta,42 porque, mesmo em
seu estado, fazia o que estava ao seu alcance para ajudar no dia a dia da
construção do mosteiro. Em pouco tempo já não seria capaz de
fisicamente ajudar no erguimento do cenóbio, então passa a cuidar
somente das plantas da edificação, tal como Tomé junto ao rei
Go dafo o , apo ta a a ati a.43
Ficando ainda mais doente, recolhe-se ao claustro, citando Davi:
E i est o, ó Deus, os teus votos que cumprirei como louvores para
o tigo Ps. , . Neste apítulo, o s timo e penúltimo, em que o
assunto principal são as ações de Telo, o primeiro plano da hagiografia
olta a se o santo . É certo que as ações narradas continuam todas
relacionadas ao mosteiro, mas agora de uma forma que Telo se
destaque, por meio das comparações com importantes personagens
bíblicos: Marta e São Tomé.
Com o mosteiro já fundado, cumprida a missão de se escrever sobre
a inauguração do mesmo, já se pode voltar a atenção para o suposto
protagonista. Mas, mesmo com o engrandecimento final da
personagem, a timidez de seu retrato persiste. É comparado a Maria
Madalena, no momento em que se encontra recluso, citando o
Evangelho de Marcos e o de Lucas. Nesta comparação, não se
exemplifica quais seriam os pecados pelos quais Telo estaria se

42 Marta é uma personagem bíblica. Juntamente com sua irmã Maria, testemunham
Jesus ressuscitar Lázaro. Marta e Maria teriam personalidades contrastantes: Maria seria
contemplativa, e Marta seria ativa. São descritas nos evangelhos de João e Lucas.
43 NASCIMENTO, A. Op. Cit., p. 71.

275
arrependendo ao final da vida, o que o paralelismo com Madalena
permite inferir. Pensamos em duas hipóteses para esta escolha
narrativa. A primeira é a proteção da personagem, não desejando o
narrador que seus pecados fossem conhecidos. A segunda é a pouca
importância, de fato, da personagem Telo para a narrativa – sua
importância se dá por seus atos que possibilitaram a fundação do
mosteiro, histórias suas que não tenham relação com Santa Cruz, neste
caso, seus pecados, foram negligenciadas ao longo da narrativa.
Esta hipótese pode ser confirmada no prosseguimento da
hagiografia, em que se escreve sobre as virtudes de Telo. Ele é
novamente o pa ado a di e sas pe so age s í li as: e to da
promessa como Abraão, aberto à hospitalidade como Ló, exímio na
justiça o o Isaa , e pa si o a a idade o o Ja o .44 Essas palavras,
porém, são quase vazias de significado hagiográfico. Não são narradas
ações que as exemplifiquem e que qualifiquem Telo como um santo. São
apresentadas como forma de legitimar as qualidades do fundador do
mosteiro – e, neste caso, o nome, e especialmente as ações da
personagem, pouco importam. Ele tem que ser virtuoso, somente.
Segue-se a narrativa com o único trecho em todo o texto em que
se relata a espiritualidade de Telo de forma a fazer do hagiografado um
santo para além da sua maior ação santificadora: a fundação de Santa
Cruz. São descritas as orações realizadas nos últimos meses de vida, em
que se prostrava perante o altar, rezava pelo descanso, mas oferecendo-
se a viver enquanto fosse necessário para seus companheiros. A
narrativa indica que ele também preocupava-se em ensinar aos mais
novos as lições de sua vida. Então é novamente comparado a
personagens ilustres: Jacó, São Paulo, São Martinho. Como em todas as
outras comparações, o foco da narrativa encontra-se nas referências
(nem sempre com citações) a outros textos, não em ações de Telo, que
justifiquem a razão da similaridade. As ações são exemplificadas de
forma generalizante, sem episódios unificados, como se pode verificar
no exemplo abaixo:
[…] abençoava-nos levantando a mão, como se nos
tivesse tido como filhos únicos, qual outro Jacó, e, para
nos ser agradável, pedia, em longos suspiros, ao pastor

44 Ibidem, p. 73.
276
que não se deixa adormecer, que nos guardasse como
ovelhas expostas em campos abertos.45

Depois desse relativamente curto trecho em que narra as virtudes


e a espiritualidade de Telo, narra-se a sua morte. Mais importante do
que o momento da morte, para o texto, é a suposta reação dos cônegos
e dos citadinos ao evento. Neste sentido, não é relatado nenhum
episódio sobrenatural relacionado à morte de Telo. O que o santifica
narrativamente é a frase: e e edo das filei as dos sa tos, e t egou o
espírito .46
Muitos teriam chorado, lamentado a morte do santo : além dos
cônegos de Santa Cruz, religiosas, virgens e viúvas também teriam
derramado lágrimas quando do enterro de Telo. Ele teria sido um bom
conselheiro para muitos ao longo de seus quarenta anos como cônego –
seja no cabido, seja no mosteiro. E essa faceta pastoral do santo só é
apresentada quando da sua morte, ao que parece sendo narrada apenas
para constar narrativamente esta qualidade na listagem das suas
virtudes.

Conclusão
Pedro Alfarde, ao escrever a Vita Tellonis Archidiaconi, produziu
uma hagiografia que quase não merece esse nome. A etimologia da
palavra nos diz que uma hagiografia é uma escrita (grafia) sobre um
santo (hagios), mas Telo, como pode-se perceber, só é protagonista da
narrativa na medida em que age para que o mosteiro fosse fundado.
Esse protagonismo particular nota-se desde o princípio da
narrativa, em que quase não se escreve sobre suas origens familiares,
sobre o percurso de sua vida – nascimento, estudos, o que o motivou a
se tornar cônego. Ao contrário, o princípio da hagiografia dedica-se ao
contexto da fundação do mosteiro, em 1131, quando Telo contava já
com cerca de cinquenta e cinco anos.47
Um evento que mereceria mais atenção para o protagonista, suas
emoções e motivações pessoais – a peregrinação a Jerusalém – passa ao
largo destas. Se teve a oportunidade apenas por ter sido convidado, seria

45 Ibidem, p.74.
46 Ibidem, p. 75.
47 Calcula-se que Telo tenha nascido em 1076, a partir da análise da própria Vita Tellonis.

277
de se esperar em uma hagiografia menos incomum que se escrevesse
sobre a reação do protagonista ao ser convidado para realizar a
peregrinação mais desejada do momento, à Terra Santa, poucos anos
depois da vitória da I Cruzada. Não foi relatado, assim como não foi
descrita qualquer passagem da viagem que não interessasse para a
fundação do mosteiro. O foco narrativo esteve nos exames das
instituições religiosas que ali se implementaram tão logo Jerusalém fora
conquistada. Pedro Alfarde quer convencer que foi ao ver instituições
exemplares na Terra Santa que Telo desejou fundar um mosteiro, e, ao
longo do texto, cita esse desejo sempre que o contexto da história
permite.
A vida de Telo não relacionada à fundação de Santa Cruz, portanto,
tem pouca importância narrativa.Como já foi ressaltado, dezoito anos da
vida do cônego foram descritos em pouco mais do que uma frase. Se
tentou implementar a Reforma Papal no cabido juntamente com D.
Maurício e D. Gonçalo, o que seria de se esperar, não foi dito. Se foi um
bom arcediago, não se conta nem um evento administrativo que o
descreva, ou uma boa relação com ao menos parte dos cônegos, ou
mesmo com os leigos da cidade de Coimbra, que tanto choraram a sua
morte, segundo a própria Vita.
Percebe-se que construiu uma relação de aliança com a rainha
Teresa, a ponto de ter comprometido sua eleição para bispo de Coimbra
por isso. Mas não se sabe como esta aliança foi construída, só se
escreveu sobre como a incapacidade dela para doar terrenos e dinheiro
teria adiado a construção do mosteiro. A história também não menciona
a batalha de São Mamede que a incapacitou, em uma tentativa de
neutralizar politicamente o fundador do mosteiro. Outra forma de
silenciar politicamente Telo foi a escrita sobre a motivação de Afonso
Henriques para preteri-lo ao bispado de Coimbra – sua suposta
inexperiência causada pela juventude do futuro rei, não o jogo de
alianças em que Telo se inseria. Se Telo tinha a expectativa de suceder a
D. Gonçalo, expectativa não enfatizada na narrativa, como um bom
religioso, figura como quem não tem ambições hierárquicas, mas
percebe-se a frustração no próprio texto, ao atribuir a Deus o desejo da
promoção do a ediago.
Narrar a fundação do mosteiro mostra-se o objetivo principal do
texto ao se interromper a história da vida de Telo com a inserção de três
278
documentos papais: carta a D. Bernardo, carta a Afonso Henriques e
confirmação da submissão direta do mosteiro à Cúria Papal. Na edição
utilizada, a hagiografia completa – da introdução à morte de Telo –
ocupa onze páginas. Metade delas é preenchida pelos documentos
papais. A vida de Telo, que já tem pouco destaque, fica espremida entre
o antes e o depois da viagem dele a Pisa para conseguir estes
documentos.
Ao final de toda uma hagiografia dedicada ao fundador de Santa
Cruz de Coimbra, não à personagem Telo, Pedro Alfarde finalmente o
coloca em primeiro plano. Mas só no seu último ano de vida. É quando
ele é elogiado, comparado a personagens bíblicas, mas as ações que
justificam suas virtudes não são contadas. É por ser o fundador do
mosteiro que Telo é santo, não importando as suas ações. Desta forma,
se o gênero hagiográfico comumente despersonaliza os protagonistas,
Pedro Alfarde o faz no limite. Mas ainda pode-se chamar seu texto de
hagiografia. Telo explicitamente é chamado de santo, pois luta para
santificar um lugar e consegue. Para tanto, segundo a Vita, ele não
realiza ações desabonadoras e é representado como o líder ativo, que
trabalhou sem cansar, até a morte, para erguer uma comunidade de
cônegos seguidores da regra de Agostinho.

279
280
A CONSTRUÇÃO DA FIGURA FEMININA NA VITA SANCTI THEOTONII

Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira1

Introdução
Nos séculos XI e XII, a historiografia aponta que os elementos
característicos do ideal de vida religiosa teriam ganhado outros
redimensionamentos. Dentre eles, destacamos as chamadas vita
apostolica e vita vere apostolica, que tomavam por modelo Cristo e a
ha ada Ig eja p i iti a .2 Segundo André Vauchez,
[...] las experiencias religiosas de esta época están
caracterizadas por la voluntad de volver a la pureza
original del cristianismo. La idea de la Ecclsiae [sic]
primitivae forma se convierte en la referencia [...] de la
nueva espiritualidad que, de manera aparentemente
paradógica, busca a través de una creciente fidelidad al
testimonio de los Apóstolos y al mensaje evangélica la
respuesta a los problemas puesto por una sociedad en
mutación.3

Esta iniciativa, produto do amalgama entre concepções


precedentes associadas a novas percepções, trouxera uma lógica
espiritual reflexo inteiramente das necessidades do momento.
Conforme Silva, o novo padrão de santidade alo iza ia [...] a piedade
leiga, a penitência, a vida comunitária, a pobreza voluntária, a pregação
pública, o trabalho assistencial e a considerar a santificação como uma
a e tu a pessoal . 4

1 Douto a do e Hist ia Co pa ada pela U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o UFRJ


e i teg a te do P og a a de Estudos Medie ais PEM-UFRJ/UERJ .
2 SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da (introdução). In. _______ (org.). Hagiografia e

História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central. Rio
de Janeiro: HP Comunicação Editorial, 2008.p.8.
3 VAUCHEZ, A d . La espi itualidad del O ide te Medie al. T ad. Pauli o I adiel. Mad id:

C ted a, . p. . A espi itualidade o fo e este auto se ia defi ida o o: [...] u a


fo a di i a o o el o ju to de ela io es e t e aspe tos hist i a e te
dete i ados del iste io istia o u as p ti as o etas itos, plega ias,
de o io es . I ide ,. e so da apa .
4 SILVA, A.C.L.F. Op. Cit.,p. . Isso o ue dize ue todas as hagiog afias iadas o
pe íodo ap ese tasse efeti a e te todas essas a a te ísti as, as ue de e ta fo a
281
Tomado pelo referencial que o próprio monaquismo exercera
para tal concepção,5 o corpo, ou melhor, a pureza corporal se converteu
em um ideal a ser seguido para a elevação espiritual. De acordo com
Vau hez, [...] ua to s se aleja u o de la a e, ide tifi ada a ui o
la se ualidad, s pe fe to se es. 6 É justamente esta perfeição,
segundo o discurso, que a comunidade religiosa deveria buscar.
A castidade, dentro dessa leitura, ganhara importância capital,
haja vista ser uma, talvez a mais importante, das formas de contenção
de um dos desejos carnais discursivamente mais combatidos: o sexual.
Mantê-la, em meio às tentações mundanas, era fundamental. O sexo,
esse se tido, des ia ia [...] o pe ado pa a o o po, a edida e ue
este o luga das te taç es e o i st u e to da al a pe ado a. 7 O
corpo seria justamente a própria expressão da alma,8 sendo à
comunidade religiosa, portanto, necessário manter sua integridade.
Diversos discursos nesse sentido foram construídos. Todos de
alguma forma salientando a importância da contenção sexual para a vida
religiosa. Dentro dessa lógica, pensando mesmo a construção do
discurso a partir da questão da castidade, a significação, por
determinados grupos, de elementos simbólicos socialmente disponíveis
se faria presente na organização das relações. Os sentidos
interpretativos seriam balizados por determinados conceitos
normativos, sendo delineados, em meio a um corpo social marcado pelas
construções binárias, de noções interpretativas acerca do sentido do
fe i i o .9 Co isso, a figu a fe i i a , e dete i adas a ati as,
aparecia frequentemente como o elemento antípoda ao princípio da

tais alo es e a e o e tes as a ati as.


5 Segu do Vau hez, La a alga a ue se ea e to es e t e el ideal o sti o la
pe fe i istia a a a te iza [...] las ep ese ta io es de la sa tidad tal o o se
o figu e la e talidad del tie po. VAUCHEZ, A. Op. Cit., p. .
6 I ide ,. ,p. .
7 SCHMITT, Jea -Claude. Co po e Al a. T ad. Jos Ca los Est o. I : LE GOFF, Ja ues;
_______. Di io io Te ti o do O ide te Medie al. Bau u, SP: Edus , . . .p. -
.
8 I ide , p. .
9 Para ver a linha teórica que nos orienta, ver: SCOTT, Joan Wallach. Gender: a useful

category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York, Columbia
University Press. 1989; FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no
College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2011.
282
castidade, dado, conforme o discurso, ser o desejo para a atividade
sexual indissociável de sua essência.10 Ca e ia, o e ta to, [...] ao
homem, não se entregar a carícias imoderadas a fim de evitar um estado
de agitaç o i possí el de ef ea [...]. 11
A construção discursiva12 empreendida pelos autores, partindo
justamente dos simbolismos disponíveis, dando um sentido proposital à
leitu a do fe i i o , fazia da i age da ulhe o age te desviante
da vida casta. Uma espécie de entrave à pureza corporal, fomentadora
do desejo sexual. Superar suas investidas, além de fundamental, seria
um ato de superação; de fato uma verdadeira demonstração de
santidade.13
Nossa proposta tem por fim verificar, a partir de duas passagens
da hagiografia de Teotônio14, como o autor da obra constrói uma
i age de ulhe de fo a a o e t -la em agente desviante do
propósito de castidade do religioso. Nossa problemática se fundamenta
basicamente em pensar: quais elementos narrativos o hagiógrafo
utilizou para estruturar a ordem de seu discurso, de forma a transformar
a figu a fe i i a , e últi a i st ia, e u a fe a e ta de efo ço
da santidade do hagiografado? Quais seus fatores motivadores?
Antes de nos debruçarmos à obra, inicialmente, faremos uma
breve exposição do trajeto de vida de Teotônio, explanando os dados

10 A ulhe esta ia di eta e te sujeita ao desejo, se do i sa i el se ual e te. Cf.


ROSSIAUD, Ja ues. Se ualidade. T ad. M io Jo ge da Motta Bastos. I : LE GOFF, Ja ues;
SCHMITT, Jea -Claude. Di io io Te ti o do O ide te Medie al. Bau u, SP: Edus ,
. . . p. .
11 ROSSIAUD, J. Op. Cit., p. .
12 Pe sa os o dis u so o o se do u efeito de se tido e iste te e t e lo uto es. Pa a
ais, e : ORLANDI, E i P. A lise de Dis u so: p i ípios e p o edi e tos. Ca pi as:
Po tes, .
13 A Sa tidade , a ui, pe sada o o se do u a s ie alo es ao í el das
ep ese taç es e tais oleti as, dese ol idas e siste as asso iados a u a
dete i ada ede de elaç es so iais. Pa a ais, e : DELOOZ, Pie e. Pou u e tude
so iologi ue de la sai tet a o is e da s l Eglise atholi ue. A hi es des s ie es
so iales des eligio s. Pa is, . , p. - , .p. .
14 A es olha das duas passage s se justifi a u i a e te po elas se e , segu do

pe sa os, as ue ap ese ta a , des iti a e te, i estidas di etas da figu a fe i i a


pessoa de Teot io. Nelas o auto dese ol e o ais detalhes as situaç es ue
te ia e ado ada u dos dois e e tos, i p i i do assi , a de ida fase ao a te
asto do ego.
283
que julgamos serem de relevância para sua identificação.
Posteriormente, destacaremos algumas informações relacionadas à
hagiografia de Teotônio, bem como sua conjuntura de produção.
Finalmente, ingressaremos na análise do texto, buscando identificar
como seu autor trabalhou, em seu discurso, uma noção possível do
fe i i o , e o o os oti os e ol idos pa a tal.
Para analisar a Hagiografia de Teotônio, utilizaremos a edição
bilíngue (português e latim) feita pela Prof.ª Maria Helena da Rocha
Pereira, Vida de S. Teotónio (1987).15

Síntese biográfica de Teotônio


Segundo a historiografia, Teotônio,16 filho de D. Oveco e Eugésia,17
teria nascido em 1082, em Tardinhade, freguesia de Ganfei, conselho de

15 PEREIRA, Ma ia Hele a da Ro ha. Vida de S. Teot io. Coi a: Ediç o da Ig eja de


Sa ta C uz, . Ca e essalta ue algu as das passage s t aduzidas pa a o po tugu s,
o est o de a o do o a ediç o lati a ap ese tada a o a. A ediç o ia ilizada pela
auto a, pa a o pa aç o, ao ue tudo i di a, pa e e se a p oduzida po Ale a d e
He ula o, Vita Sa ti Theoto ii, e o t ada o Po tugaliae Mo u e ta Histo i a,
S ipto es . Segu do o sta a o a, ela te ia feito a t aduç o do Ms. , da
Bi liote a Mu i ipal do Po to, a us ito le ado pa a l pelo p p io He ula o. No
e ta to, a edita os, pelo j salie tado, ue o fo a e ata e te este a us ito o
t a s ito e sua o a, as si a ediç o ou e s o de He ula o. Salie ta os, o tal
ha ada, a e essidade de e ifi a , o o p oposta de pes uisa, at ue po to a ediç o
deste auto est de a o do o o Ms. . A t aduç o ap ese tada pela auto a, pelo ue
pode os ota , se asse elha uito o u a feita a te io e te po Joa ui da
E a aç o Coi a, , es o ue seja ide tifi ados algu s a s i os. Este
auto , pela dataç o, o te ia utilizado, o o efe e ial pa a t aduç o, a ediç o lati a
de He ula o, as si , out a dispo í el. Assi , o luí os ue p o el, pelas
se elha ças, ue ta to ele, ua to Pe ei a pode ia te utilizado o es o efe e ial,
isto , o Ms. . Co isso, o luí os ue e iste dife e ças e t e o a us ito e a
ediç o de He ula o. Salie ta os ue, o t a s o e do osso a tigo, ao ita os as
passage s t aduzidas da ediç o de Pe ei a, ap ese ta e os o ue de e ia se o
f ag e to lati o o espo de te, de a o do o a ediç o ia ilizada pela auto a, isto ,
a de He ula o. Ou seja, ale ta os ue uitas das passage s pode o te algu a
i oe ia a t aduç o.
16 Nome de origem grega que, segundo seu biógrafo, significa divino. MARQUES, José. S.

Teotónio e a cultura do século XII. Porto, 2014. Disponível em: <http://repositorio-


aberto.up.pt/bitstream/10216/72412/2/JornadasTeotonianas2014000223946.pdf>.
Acesso em: 28 Maio 2014.p.3.
17 MARQUES, Jos . Teot io e a ultu a do s ulo ...Op. Cit.,p.
284
Valênça.18 Seu tio, D. Crescônio, abade do mosteiro de São Bartolomeu
de Tui, direcionaria sua educação, ensinando-lhe as primeiras letras.19
Após ser sagrado bispo da diocese de Coimbra,20 Crescônio o teria
levado consigo, iniciando-o, a partir de 1092, no ritual romano e,
possivelmente, nos costumes cluniacenses.21 Na cidade, estudou na
escola catedralícia, tendo como preceptor o arcediago D. Telo,22 e, por
seu tio, seria ordenado presbítero.23
Logo após a morte de Crescônio, em 1098, destaca os estudiosos
que Teotônio teria passado para o cabido de Viseu, para dar
prosseguimento em sua formação. Após concluí-la, seguiria pelo
caminho da vida eclesiástica, percorrendo ao longo do tempo os mais
diversos graus.24 Seria nomeado por D. Maurício, então bispo de
Coimbra, prior da Sé e do Cabido,25 acredita-se que antes de 1110.26
Segundo Marques, Teotônio teria exercido tal função até o momento em
ue i i ia ia a pe eg i aç o pa a a Te a Sa ta 1),27 tendo para
isso renunciado ao seu cargo.28
Posteriormente, Teotônio seria convidado, tanto por D. Telo,
quanto por D. João Peculiar, futuro arcebispo de Braga, para compor o
grupo fundador do mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, sendo, em 24
de fevereiro de 1132, eleito seu primeiro Prior. Teria ocupado
efetivamente tal função até 1152, quanto, então, se afastara por motivos
de saúde, embora indiretamente continuasse a assinar a documentação.

18 MARQUES, Jos . A ealidade da Ig eja o te po de S. Teot io. Re ista da Fa uldade


de Let as. Hist ia. Vol. VII, Po to, , p. .
19 MARQUES, Jos . Teot io e a ultu a do s ulo ...Op. Cit.,p. .
20 A dio ese de Coi a, este o e to, efleti ia, ai da, at a s da litu gia, ele e tos
de t adiç o oç a e, se do assi , fo te esiste te s i estidas do ito o a o. Cf.
I id.,p. .
21 MATTOSO, Jos . D. Afo so He i ues. Lis oa: Cí ulo de Leito es, .p. .
22 Figu a a ue se at i ui a i i iati a fu da io al do ostei o de Sa ta C uz de Coi a
e .
23 MARQUES, Jos . A ealidade da Ig eja o te po... Op. Cit.,p. .
24 MARQUES, Jos . Teot io e a ultu a do s ulo ...Op. Cit.,p. .
25 I ide ,, p. .
26 MATTOSO, Jos , A ealidade da Ig eja o te po... Op. Cit.,p. .
27 Ap s e u ia , te ia dei ado seu luga Od io, ofi ializa do a t a sfe ia dos
pode es e de fe e ei o de . MARQUES, Jos , Teot io e a ultu a do s ulo ...
Op.Cit,. p. .
28 MARQUES, Jos . A ealidade da Ig eja o te po ...Op. Cit.,p.

285
Mesmo não exercendo mais diretamente o priorado,29 tendo sido
sucedido por seu sobrinho, D. João Teotônio, permanecera nas
dependências do Mosteiro e a desempenhar reduzidas atividades até
sua morte, em 18 de fevereiro de 1162, sendo canonizado no ano
seguinte.30

A hagiografia de Teotônio e sua conjuntura de produção


A obra é uma narrativa anônima da vida de Teotônio, primeiro
Prior-mor do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, escrita em latim,
acredita-se que na segunda metade do século XII, por um discípulo seu,
logo após sua morte em 1162.31
Segundo José Mattoso, este dis ípulo o sig ou u [...] elogio
das suas virtudes e narrou vários episódios da sua existência [...]
(transmitindo) ainda uma emoção muito particular e o testemunho de
uma santidade que deve ter causado grande impressão nos seus
contempor eos. 32
Na linha do que delimita o panegírico, a narrativa apresenta um
caráter apologético e de exaltação da figura do religioso, além de ter um
cunho de formação moral.33 Fazer da imagem de Teotônio um ideal a ser
seguido parece ser um dos fins almejados pelo autor. Tal aspecto fica
pate te ua do este e io a ue: So e as sa tíssi as a ç es, pa a

29 Mes o o a t a s iss o do p io ado pa a D. Jo o Teot io e , oti ada po


u a possí el doe ça do p i ei o p io i fo aç o o sta te e sua hagiog afia , sua
assi atu a o ti ua ia a apa e e a do u e taç o p oduzida pela Casa úzia o
pe íodo de seu suposto afasta e to, e so e te e , ap s sua o te e eu i o do
p i ei o apítulo ge al, D. Jo o Teot io se ia ofi ial e te e o he ido o o supe io
da o u idade de egos eg a te oi .
30 I ide ,, p.
31 MARTINS, A a do Al e to. O Mostei o de Sa ta C uz de Coi a a Idade M dia.
Lis oa: Ce t o de Hist ia da U i e sidade de Lis oa, .p. . Algu as passage s da
o a d o i dí ios da p o i idade e iste te e t e a o te de Teot io e a p oduç o do
a us ito. Na p i ei a pa te da o a, o fo e a ediç o de Pe ei a, po e e plo, o
auto e io a Qua do ele h pou o os dei ou e as e deu [...]. PEREIRA op.
it., .p. . Ou ua do pa e e e io a o ue se ia u a es a o ju tu a: [...]
ho e i o os ossos te pos. . I ide , p. .
32 MATTOSO, José, Op. Cit.,p.85. [Grifo nosso].
33 PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. .

286
que homem tão excelso não fique oculto, ele, [...] deverá ser imitado por
todos os odos [...]. 34
A produção da obra estava imersa em um contexto de mudanças
para a Comunidade de cônegos regrantes coimbrã.
O mosteiro de Santa Cruz, durante o primeiro priorado, teria se
desenvolvido significativamente. A obtenção de bens e direitos, por
doações, aquisições, etc., entre 1132 e 1162, seja proveniente de
particulares, de Afonso Henriques ou mesmo da Santa Sé, teriam
aumentado seu patrimônio, bem como expandido sua zona de influência
no Condado Portucalense.35 Em paralelo ao dilatamento experimentado
pelo Mosteiro, o consequente e progressivo aumento do número de
cônegos e a inserção na atividade pastoral, gerou também a necessidade
de um enquadramento maior por parte deles, buscando conter sua
dispersão em relação às diretrizes norteadoras da conduta moral na vida
ativa.
Tendo falecido Teotônio, primeiro Prior-Mor do Mosteiro
coimbrão, dois meses após, em 1 de maio de 1162, seu sucessor D. João
Teotônio convocara a primeira reunião capitular da comunidade.36 Ela
teria por fim regular e estabelecer as diretrizes bases de organização da
comunidade regrante.37 A necessidade de reafirmar as observâncias
norteadoras dos cônegos, buscando reaver a obediência aos preceitos
firmados se tornaram o fim principal.
Nesse sentido, acreditamos que logo após o Capítulo Geral, ainda
no primeiro ano de exercício do segundo priorado (1162-1181), seria
produzida uma obra narrativa em homenagem ao falecido superior do

34 Es ita lati a: De uius sa tissi is a ti us, e ta tus ui lat at, ui odis o i us


fue it i ita dus [...]. I ide ,p. .
35 O au e to pat i o ial pode se atestado, po e e plo, a pa ti da a lise das elaç es

de o p a, e da, es a o, doaç es, et ., p ese tes ta to o Li o Sa to , pa a o


pe íodo ajo it io de p io ado de Teot io, ua to o Li o de D. Jo o Teot io -
, elati o ao segu do p io ado.
36 MARTINS, A.A. Op. Cit.,p. . Se ia essa opo tu idade, ue D. Jo o Teot io te ia
ofi ializado o i í io de seu p io ado a f e te do ostei o de Sa ta C uz. A tes, ao ue
tudo i di a, a pa ti de , te ia di idido as fu ç es o Teot io, es o este esta do
elati a e te afastado do p io ado. S o a eu i o apitula esta ia ofi ial e te da
di eç o da o u idade eg a te.
37 As di et izes esta ele idas o p i ei o Capítulo Ge al e uad a a ta to egos
eg a tes ua to o e sos.
287
Mosteiro, projetando em sua imagem os ideais clericais estabelecidos na
reunião. Teotônio teria sido convertido no referencial a ser seguido pelos
demais, trazendo no seu transcurso de vida as qualidades fundamentais
orientadoras dos regrantes à vida na Comunidade.

A construção da figura fe i i a a Vida de S. Teot io


O auto , ao es e e a hist ia da ida de Teot io , us ou
imprimir na imagem do religioso uma ideia de sacralidade baseada nas
ações que este efetuava, segundo a narrativa, em seu cotidiano. A
privação, a solidariedade e a luta constante que este travava contra as
dificuldades terrenas, marcavam justamente o discurso que o
encaminhava ao plano sagrado.
Muitos eram os obstáculos apresentados pelo autor, no percurso
de vida do religioso. Todos de alguma forma procurando desequilibrar
Teotônio de seu caminho espiritual. Dentre eles, e se aproximando do
osso o jeti o, desta a os a figu a o st uída da ulhe .38
A i age fe i i a o u o po e te p edo i a te a
narrativa, aparecendo somente em passagens bem específicas, cujo fim,
ao que tudo indica, estaria direcionado no sentido de evidenciar a

38 A leitu a ue o istia is o fez ao lo go do te po, ela io a do a i age da ulhe


ao pe ado, e aspe tos ge ais, es o ue adaptada a ealidades lo ais uito
pa ti ula es, aseia-se e a ai as o epç es ue i ula a sua i age da E a
pe ado a. Segu do as i te p etaç es de Te tulia o, a E a te ia se to ado u odelo
pa a o e te di e to de todas as ulhe es o o u a i ho pa a a te taç o ao pe ado.
ELLINGTON, Do a Spi e . E e. I : SCHAUS, Ma ga et. Wo e a d Ge de i Medie al
Eu ope: A E lopedia. Ne Yo k: Routledge, .p. . Augusti ho, da es a
fo a, fa ia das ulhe es, a pa ti das o epç es ue ti ha de E a, sí olo do o po e
da se ualidade, ue i ita a os ho e s a sua ueda. Segu do ele, seu i o t ol el
desejo se ual se ia justa e te u a pu iç o pelo pe ado o igi al. ELLINGTON, D. S., Op.
Cit., p. . E ide te e te ue ao lo go do dese ol i e to do istia is o, os seus
ais di e sos aspe tos e ultipli idades, ada u a destas leitu as fo a ga ha do
i te p etaç es p p ias, se ap o i a do dis u si a e te da uilo ue a o u idade
lo al ti ha po asseio. No e ta to, o ue diz espeito aos o i e tos ais as ti os,
o o os o sti os, pelo a te de sua o ie taç o, tais leitu as a a a a se do
esgatadas e et a alhadas. Salie to ue estas o epç es o de e se a alisadas de
fo a fe hada, u ifo e e u i e saliza te , de e do ada aso se t atado pa ti do da
l gi a dis u si a, po pa te do o i e to ist o espe ífi o, asso iadas s suas
o se ue tes adaptaç es s e essidades lo ais.
288
virtuosidade de Teotônio, ressaltando os valores cristãos ante o estrato
secular.39
As qualidades que o autor sinaliza no cônego, como antes
destacamos, estão diretamente relacionadas aos ideais apregoados no
Capítulo Geral de 1162. Não obstante o antes já definido, dentre as
observâncias reiteradas na reunião, a manutenção da castidade e,
po ta to, a i pe iosa p e auç o ua to figu a fe i i a se desta a
o dis u so. I siste-se, [...] na contínua vigilância sobre a vida de
castidade a que por voto comprometeram, sendo irrepreensíveis, longe
do o í io o ulhe es [...]. 40 Elas aparecem como centro de
preocupações, sendo as recomendações de afastamento necessárias à
disciplina interna da Comunidade.
Assim sendo, o hagiógrafo, ao escrever sua narrativa, teria
projetado na imagem de Teotônio as atitudes ideais que se desejavam
de um cônego; a postura modelar a toda a Comunidade regrante e,
portanto, imitável. Valores indissociáveis da vida ativa, dado a própria
atividade pastoral na qual estavam inseridos e os possíveis problemas
dela provenientes.

39 Algu s t e hos da o a pa e e e p essa as uest es ela io adas s disputas de


pode e iste tes e t e lai os e eligiosos. Nesse se tido, ga ha desta ue, po e e plo, a
passage a ual Teot io efo ça ia a p i azia dos alo es eligiosos, ap s a te tati a
de i te e ç o po pa te da ai ha D. Te eza, e u a issa ele ada po ele, ua do
esta pedi a ue a fizesse o e idade e a o e . No e ta to, sua esposta te ia sido de
ue: [...] ha ia o u out a Rai ha ue e a uit ssi o elho e uit ssi o ais o e,
ual se dispu ha, o a ueles e t e os de e e aç o, a dize as sole idades da issa,
le ta e de o ada e te; as ue esta a o seu pode ou i a issa ou afasta -se de todo
e todo. PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. . A hagiog afia eflete ada ais ue os
asseios de u a Ig eja e ple a t a sfo aç o, uja us a, e t e out os, seguia o
se tido de li ita ou es o eli i a as i te fe ias lai as as uest es e lesi sti as.
P o u a a-se esta ele e a p i azia da Ig eja a te as auto idades lai as, li e a do o le o
de sua su iss o, e defi i do a posiç o ta to do pode eligioso, ua to do políti o
se ula . Segu do C espo, Las ela io es e t e Po tifi ado e I pe io su lu ha po la
supe io idad se ía la la e de suste ta i pa a este pe íodo [...]. CRESPO, Esthe
Go z lez. El po tifi ado, de la efo a a la ple it udo potestatis. I : FERNÁNDEZ, E ilio
Mit e oo d. . Histo ia del istia is o: el u do edie al. Mad id: Edito ial T otta,
. . .p. - .
40 MARTINS, A.A., Op. Cit., p. . I fo aç o e t aída do di e: BPMP, Sa ta C uz de
Coi a, , do s ulo XIV. As o se ias ela io adas astidade e a p ud ia do
eg a te pa a o a ulhe apa e e os ite s e do di e. I ide ,p. .
289
Dentre as passagens relacionadas a tal iniciativa, as que nos
interessam nesse momento são as que mencionam a tentativa de duas
mulheres, em momentos distintos, de tirar Teotônio de sua castidade.41
Esta, de muito valor para o religioso, segundo o autor, ganhara um
importante papel na articulação dos acontecimentos.
O hagiógrafo menciona, em diversas partes, o quanto Teotônio
presava por sua pureza corporal,42 buscando se afastar de tudo aquilo
que entendia como sendo uma fonte para a desvirtuação dos preceitos
que defendia. Segundo ele,
[...] para não incorrer em culpa por causa de qualquer
mulher, nunca queria ter com elas, sem testemunha,
uma conversa ou mesmo uma confissão particular, pois
dizia que, se fosse preciso falar de qualquer assunto mais
íntimo, nenhuma havia tão pouco humana que não
tivesse tal ou tal mulher em quem confiasse, que devesse
vir juntamente com ela à confissão. Amava, contudo,
todas as mulheres como se fossem irmãs, mas,
precavendo-se delas como de um inimigo, conforme
dissemos, afastara radicalmente de si todas as
familiaridades deste género.43

41 A astidade, de t o da l gi a dis u si a do o e to, ad ui e u a leitu a espe ífi a,


se to a do u a das fo as de sepa aç o e t e a ida p ofa a e a ida eligiosa. No
poe a O upatio, de Odo de Clu , ele desta a a astidade o o se do e p essa e te
e ess ia aos o ges, e esta ele e do u a i o pati ilidade e t e a fu ç o
sa e dotal e o o u i ato. VAUCHEZ, J. Op. Cit., p. . A astidade a t a pu eza
o po al e o fe e ao asto, o al f e te aos de ais. Segu do Rossiaud, O se o,
i t i se a e te ui , to a-se e todos os asos, a tago ista ao sag ado. [...] A
supe io idade dos o ato es est ligada e ú ia ou o ti ia, e a astidade do pad e
[...] o fe e-lhe auto idade o al fa e aos o jugati e aos out os. ROSSIAUD, J. Op. Cit.,
p. .
42 É i po ta te salie ta , esse se tido, a i po t ia ue o o po te e pa a o
o i e to ist o, ai da ue o o dis u so, se do t a alhado a sua p p ia
o po eidade o o a e p ess o da al a. SCHMITT, J-C., Op. Cit., p. . Po ta to, a
pu eza o po al ada ais e a ue u a de o st aç o da pu eza espi itual; [...] o o po
a ealidade físi a a ual o pe u so espi itual se olo a e e id ia [...]. GAJANO,
Sofia Boes h. Sa tidade. T ad. Elia a Mag a i. I : LE GOFF J.; SCHMITT, J-C. Op. Cit.,
p. .
43 Es ita lati a: Ne e go ali ua pe fe i a i u e et ulpa , u ua u eis
e oto teste ollo uiu uel etia p iuatu o fessio e ha e e uole at. Di e at e i
si ali uid fa ilia ius lo ue du esset, ulla esse ta i hu a a , ui ha e et tale
uel tale fe i a ui se ede s ad o fessio e pa ite ue i e de uisset. O es ta e
fe i as ut so o es dilige at, sed eas, ut di i us, uasi hoste aue s, huius odi
290
Portanto, se afastar dos caminhos desviantes da norma definida
se tornava uma forma de se manter incorruptoe alinhado aos valores da
vida regrante.
Devemos notar, também, que, dentro da retórica do autor, de
acordo com a ordem lógica de tradução construída por Pereira, não é
especificamente Teotônio quem ganha ação ativa sucumbindo aos
desejos a ais a te a ulhe , as si ela, ue, p i a do eligioso,
age para tal.
Na passage , a ulhe o i spi a o fia ça, seja ela ue fo ,
havendo, portanto, a necessidade de, junto a Teotônio, vir uma
testemunha para qualquer iniciativa de uma confissão mais íntima. Essa
é a mensagem que o fragmento transmite; de constante atenção e
precaução.
Considerando o cotidiano que integrava a atividade pastoral dos
cônegos, cabe notar, em complemento à obra, que as diretrizes
apitula es de esta ele ia ue os eg a tes de e ia e ita [...]
participar em banquetes, festas, divertimentos ou qualquer forma de
fa ilia idade p i a [...]. 44 Pedia-se contínua vigilância para que
suspeitas não fossem levantadas colocando sob desconfiança a
castidade de algum religioso.
Retornando ao fragmento da Vita, o autor salienta o amor que o
p io ti ha po todas as ulhe es , o e ta to, precavendo-se delas
como de um inimigo . Assi , o luí os, ao a alisa o t e ho, a ação
ati a da figu a fe i i a , a ti a do hagi g afo, ua do esta ele e a
relação entre os sexos.
Buscando marcar a santidade do religioso frente às provações
mundanas e de certa forma corroborando a linha de raciocínio aventada
anteriormente, no primeiro dos relatos, o autor deixa claro a investida
de u a dete i ada ulhe o t a Teot io. Segu do a a,

fa ilia itates a se fu ditus a s ide at. PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. .
44 MARTINS, A. A., Op. Cit., p. . De a o do o a ª disposiç o, po e e plo: Ne o
ite u p oposse u ulie e o edat, el i at i ati o, el ase u o [...]. OLIVEIRA,
Jo athas Ri ei o dos Sa tos Ca pos de. A o st uç o da as uli idade o ostei o de
Sa ta C uz de Coi a o s ulo XII: u Estudo Co pa ado e t e as Disposiç es
apitula es de 6 e a Vita Sa ti Theoto ii. Rio de Ja ei o, . Disse taç o Mest ado
e Hist ia Co pa ada – I stituto de Hist ia, U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o,
Rio de Ja ei o, . A e o II .
291
Ora certa mulher que, segundo a podridão da carne,
parecia formosa, procurava ter com ele uma afeição
particular, e para isso forjou um bem urdido pretexto,
com palavras brandas. Mas, depois que o cervo de Deus
conheceu que era um laço enganoso que lhe estava a ser
preparado pelo sequaz do diabo, ferveu-lhe o ânimo e
com quanta força pôde cuspiu na face daquela miserável
mulher, dirigindo-lhe as devidas censuras.45

A pa ti daí, a aç o ati a da figu a fe i i a , de a o do o a


lógica do autor, fica mais clara. É ela quem se aproxima de Teotônio e
tenta corrompê-lo, at a s da ela o aç o de pretexto e o blando
sermone pala as a das , o ele. Ela quem investe contra o
religioso, não o inverso.
Evidente que a partir desta leitura notamos a iniciativa do
hagi g afo de faze da figu a fe i i a o p p io age te des ia te. É
ela ue , a pa tí ula, al u hada pelo auto de satellitem diabuli 46,
isto , ú pli e di eto dele. Vale desta a ue o laço e ga oso o
preparado pelo diabo, mas sim pela sua cúmplice, ou seja, pela própria
ulhe .
Buscando realçar na narrativa os atributos físicos relacionados à
imagem de Teotônio, que de certa forma teriam motivado muitas das
i estidas fe i i as , e faze do ligaç o ao o teúdo a ado, o
anônimo salienta que:
Muitas foram as vezes em que o inimigo do género
humano lhe armou ciladas, em razão da sua beleza física.
Na verdade, a sua estatura era tão bem constituída que
parecia sido calculada com medidas convenientes e
admiráveis. Era grande de corpo, e muito formoso, belo
de feições e de expressão alegre, reveladora de mais
honestidade do que lascívia.47

45 Es ita lati a: Queda igitu ulie , ue iu ta a is put edi e spe iosa uide atu ,
a o p iuata a i itia e pe iit, at ue ad ho ausa satis a u ate la do se o e
o fi it. Sed post ua fa ulus dei pe satellite dia uli la ueu si i de eptio is pa a i
og ouit, i fe ues e te i o spi itu, u ua to isu potuit, i fa ie illius ise i e
ulie is saliua p oie it, et i ue Re uit e p o auit. PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op.
Cit.,p. .
46 Se uaz se ia a uele ue segue, pa tid io, ue a o pa ha, ú pli e, et .
47 Es ita lati a: Multas ei hu a i ge e is i i i us p opte spe ie o po is sepissi e
tete dit i sidias. Statu a uippe ius ta e e fo ata e at, ut u de e ti uada et
i a ili ode atio e uide etu esse dedu ia. Co po e ag us ualdo ue pul he i us
292
No extrato, o autor realça os elementos que entendia como sendo
capitais para a construção imagética de um religioso, e que alimentava a
organização de seu discurso de santidade. São qualidades que delineiam
a masculinidade. Segundo Schmitt,
[...] os santos, tanto nas descrições dos hagiógrafos
quanto nas representações figuradas, portam na carne,
na vida e na morte, todos os signos de sua eleição
espiritual: seus corpos são belos, luminosos, prontos a
antecipar na terra a metamorfose gloriosa a que estão
prometidos.48

Assi , aspe tos o o a oa estatu a, corpore magnus g a de


de o po , facie uenustus elo de feiç es e alacrior uultu
(expressão alegre), na lógica do hagiógrafo, são convertidos em
p edi ados da i age teoto ia a ue at ae a figu a fe i i a .
No segundo relato, em outra situação, Teotônio sofre novamente
a i estida de ais u a ulhe . Co fo e o auto ,
Pela mesma ocasião, foi chamado por outra mulher, que
contudo era de elevada categoria, para ir a casa dela, em
emergência razoável, ao que se supunha, levando
consigo um acompanhamento de clérigos. Ela, porém,
qual besta libidinosa, chamou-o à parte para um
aposento interior, como que a pretexto de assunto
religioso, e principiou a ameigá-lo com voluptuosas
carícias, a estar suspensa das suas palavras, a prestar-lhe
serviços, a desapertar-lhe o calçado, e a lavar-lhe os pés,
como se estivesse a abrandar a canícula do dia49. A
verdade, porém, é que queria impeli-lo a um ato ilícito.50

e at, fa ie ue ustus, et ala io uultu ho estate agis ua las iuia


oste ta s. PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. .
48 SCHMITT, J-C. Op. Cit., p. .
49 Mo e to ais ue te do dia.
50 Es ita lati a: Pe I ide , te pus a alte a i hilo i us, ue ag e dig itatis fe i a

e at, su a io a ili, ut eda atu , o asio e ad do u uo atus ue it, iu tus o se uio


le i o u . Illa ue o ta ua estia li idi is, seo su u uase su o te tu eligio is
i i te ius u i ulu euo atu , la di iis li idi osis epit le i e, De o e ius pe de o,
o se uiu e i e e, al ia e ta dissolue e, et uasi p o fe uo e diei te pe a do, pedes
a lue e: Re ue a aute ad e illi ita u uole at i pelle e. PEREIRA, M.H. da Ro ha,
Op. Cit., p. .
293
Nesta passagem, não diferente da primeira, mais uma vez a
ulhe ga ha desta ue p otago iza do o papel de age te des ia te.
No entanto, quando o anônimo estrutura o palco do evento, traz uma
leitura interessante.
Aqui ele, por um lado, aproxima as situações quando menciona
ue Teot io ha ia sido ha ado po out a ulhe , ou seja, o
primeiro relato, mesmo não ficando claro, ele havia atendido também a
um chamado; e, por outro lado, particulariza os casos quando parece
hie a uiza as ulhe es . Na p i ei a passage , o faz ual ue
menção acerca do status social, enquanto que na segunda, menciona
ue ela se ia de magne dignitatis femina ele ada atego ia . Co isso,
ao hie a uiza as ulhe es , as a te do sua es a o diç o, isto
é, de pecadora, entendemos que o autor não categoriza
e essa ia e te sua leitu a a e a do fe i i o , t a alha do
indistintamente sua concepção. Talvez somente a fizesse pela reação,
uma vez que nas duas passagens elas são distintas. Enquanto que na
p i ei a ele ha ia uspido a fa e [...] fa ie [...] saliua p oje it
[...]. , al de ha e -lhe censurado, bastava, no segundo ato, somente
fugir. A distinção social aqui, portanto, poderia ter implicado na variação
das reações apresentadas pelo Santo.
Teotônio, diferente da primeira vez, vai acompanhado de clérigos
ao chamado da mulher, seguindo a orientação comunitária. Com este
acompanhamento, que dentro da narrativa figura como uma espécie de
testemunha, aquela que inibiria ou limitaria qualquer iniciativa
imprópria, o hagiógrafo buscava reforçar a ideia de que Teotônio se
acautelava de situações problemáticas.
É interessante notar, como já sinalizado, que esta mesma
vigilância não havia sido tida pa a o a p i ei a ulhe , ou, pelo
menos, indicada. Com isso, acreditamos na possibilidade de que tal
iniciativa, na segunda passagem, poderia estar vinculada ao status social
dela. Uma vez sendo de categoria elevada, a necessidade de uma
testemunha que, antes mesmo da função de inibir, atestasse a investida
iniciada, dava crédito a uma possível denúncia ou defesa do regrante.
Cabe lembrar que eles deveriam atentar para que atitudes suspeitas
fossem evitadas,51 sendo nesse sentido, consequentemente,

51 De t e as e o e daç es feitas aos egos o Capítulo Ge al de , desta a-se a


294
fundamental a presença testemunhal. Cabe notar também o possível
des dito dado p i ei a ulhe ue, e oposiç o segu da, e
sequer necessitava de testemunha. Ou seja, bastava a palavra do
religioso para atestar seu desvio.
Voltando à narrativa, mesmo no acompanhamento de outros
l igos, a ulhe , po se bestia libidinis esta li idi osa , u la ia
tal precaução chamando-o a pa te a u apose to, o p ete to de
assu to eligioso . A pa ti dai, i este o t a o ego.
Percebemos ue o auto t az o o a tifí io utilizado pela
ulhe : de la a os p s de Teot io, uest o ue apa e e a ª
disposição capitular de 1162, mostrando assim a base referencial da qual
fez uso. Co fo e a efe ida defi iç o: [...] ac sub uno tecto maneat,
vitet quoque abe a in lavandis pedibus, manibus, et hujusmodi familiare
obsequium quantum potest. 52
O autor, nesta passagem, lançando mão diretamente da matéria
apitula , a a a posiç o da figu a fe i i a , da do se tido s
preocupações apresentadas na reunião de 1162. É ela quem age, é quem
tenta impelir Teotônio a um ato ilícito. Ele quem sofre toda a iniciativa
dela. É quem recebe a investida. O hagiógrafo, porém, mesmo
construindo tal situação, mais uma vez reitera a castidade do religioso, a
excepcionalidade do acontecido e a admiração de Teotônio face as
i essa tes i estidas da ulhe e, o se ue te e te, sua e usa.
Segundo ele,
D. Teotónio, porém, em quem nunca tocara mulher
alguma, nem mesmo nenhuma se tinha aproximado
dele, estava admirado da insistência da impudica mulher,
e quando, finalmente, compreendeu o que a
desavergonhada pretendia, refazendo-se com o sinal da
cruz, conforme estava, já de pés descalços, precipita-se
com grande rompante por ali fora, deixando ficar o
calçado; e, execrando aquela casa, chama os clérigos que
tinham vindo com ele e dirigiu-se para a Igreja.53

e essidade de [...] o tí ua igil ia pa a ue e hu oti o se d e es o de


falsa suspeiç o [...]. MARTINS, A. A. Op. Cit., p. .
52 OLIVEIRA, Op. Cit., p. . [G ifo osso]
53 Es ita lati a: Do us aute theoto ius, ue ulla u ua fe i a o tigisset,
i o ui ulla p op ius astitisset, i atus i pude tis ulie is i sta ia , u ta de ,
uid p o a fe i a ue e et, i telle it, i sig o u is euo atus, udis ut e at ia
pedi us, ag o o a i e fo as sese p e ipite effe e s, al ia e tu de eli uit, et
295
A partir deste momento, o autor, buscando aproximar a imagem
de Teotônio a de personagens do Antigo Testamento, destacando a
santidade de suas ações, faz um paralelo entre a fuga empreendida pelo
religioso e a passagem bíblica de fuga de José do Egito ante as investidas
da mulher de Potifar (Gn.39:7). Segundo o autor,
Quem estiver lembrado da arte retórica compará-lo-ia
com o castíssimo José e, seja-me lícito dizê-lo, à parte a
majestade do mistério, não o acharia inferior.
Efectivamente, aquele deixou a capa; este, evadindo-se
por motivo diferente, pela graça de Deus, deixou ficar o
calçado.54

Com isso, Teotônio não se afastaria do ideal proposto, cujo


referencial de ações era tomado de figuras do Antigo Testamento. É
possível que a passagem tenha sido o modelo para o trecho descrito.
Que o autor se utilizara do fragmento da narrativa de José para
estruturar a de Teotônio.
Fazia-se, assim, aos leitores da hagiografia, a aproximação sagrada
entre as duas personagens colocadas em paralelo. Haveria, com a
analogia proposta, uma transposição dos caracteres de virtuosidade
tanto de uma personagem quanto outra. Com tal iniciativa, quando
menciona ser, José, castíssimo, estende a Teotônio tal qualidade. Para as
características que são identificadas no primeiro, a projeção equivalente
poderia ser encontrada no segundo. Um seria a imagem do outro.
A ulhe , de t o das a ati as, apa e e justa e te o o u a
figura de desvio, isto é, aquela que coloca a prova os preceitos de
castidade, tanto de José, quanto de Teotônio. Ambos símbolos
equipotentes da defesa dos valores cristãos.
A necessidade de tal discurso ser construído, sendo, conforme
acreditamos, produto das observâncias feitas no Capítulo Geral, cujo fim,
entre outros, buscava enquadrar os cônegos em desvio, parece dar
mostra de uma vida casta pouco seguida de fato.

do u illa e e a do, uo atis le ieis, ui u o ue e a t, ad e lesia se o lulit.


PEREIRA, M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. .
54 Es ita lati a: Ali uis etho i e a tis e o o fe et istu u astissi o ioseph, et
uod li at ihi sepa ata iste ii aiestate di isse, i fe io e o i ue i et. Ille e i
palliu , iste desi ili ausa pe dei g atia euade s al ia e tu de eli uit. PEREIRA,
M.H. da Ro ha, Op. Cit., p. .
296
A hipertrofia experimentada pelo mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra durante o primeiro priorado (1132-1162), conforme antes
apresentamos, tanto em bens quanto em membros, teria levado seus
integrantes, imersos na atividade pastoral no Ocidente Ibérico, a um
progressivo afastamento dos preceitos que antes os norteavam. A
experiência ativa da vida comunitária, exercendo suas atividades
cotidianas em meio à população local, pode ter tornado mais tênue os
meandros da relação religiosamente contida e proibida entre os sexos, o
que fazia da castidade um dos votos pouco respeitados. Tal condição,
entre outros motivos, teria feito com que D. João Teotônio, tendo
oficialmente assumido o priorado, iniciasse a reunião capitular da
Comunidade ainda em 1162. Enquadrar novamente os cônegos aparecia
como imperativo, por isso o imediatismo da organização do Capítulo
Geral. Nesse sentido, seria o relacionamento entre os sexos um dos
principais alvos de regulação, sendo a austeridade face aos votos antes
assumidos e a constante vigilância uma das questões reiteradas nas
Disposiçõescapitulares.55
Em meio às discussões levadas a cabo pela historiografia, não
podemos negar a possibilidade de a preocupação dos Crúzios retomar
localmente as orientações provenientes da Santa Sé, questão que
encontra precedentes mais gerais, por exemplo, nas diretrizes dos I e II
Concílios Lateranenses (1123 e 1139, respectivamente).56 Tal situação
demonstra um relativo alinhamento entre os interesses da Comunidade
agostiniana e os da Cúria romana. Todavia, para além do intento em
adotar as prescrições provenientes do Papado, parte que também
compete ao Mosteiro nessa relação dialogada, acreditamos que as
demandas locais teriam tornado, antes, mais efetiva a necessidade de
retomar o referido tema, que necessariamente adotar os preceitos
conciliares sem causas percebidas.
A reiteração de dadas determinações, em suas variadas instâncias,
nos permite perceber mais a possível recorrência dos desvios então
combatidos, que vínculos entre as lideranças clericais para com Roma,
apesar de esta associação, em alguns casos, poder ser feita direta e
indiretamente. Com isso, identificar as orientações relativas à castidade

55 No e latu a utilizada po s pa a se efe i s doze esoluç es do p i ei o Capítulo


Ge al do ostei o de Sa ta C uz de Coi a, o ga izado e .
56 CRESPO, Op. Cit., p. .
297
no discurso capitular de 1162, embora apareça já em cânones gerais
definidos, respeita menos o desejo de simples alinhamento à Igreja
romana que o interesse em conter localmente os desvios de conduta
moral na vida ativa dos cônegos agostinianos.

Considerações finais
O hagiógrafo, quando escreve a vida de Teotônio, busca fazer de
sua imagem um referencial; de sua vida um ideal a ser seguido,
principalmente pelos demais religiosos. A castidade, dentro do discurso,
desponta como a forma de demonstração da pureza corporal, que na
narrativa ganha uma leitura especial, se tornando a base de um ideal
proposto de vida religiosa.
A figu a fe i i a , de t o dessa l gi a dis u siva, aparece como
o agente de desvio, de desequilíbrio. Aquele que coloca em provação os
que seguem o princípio de castidade. O autor, nas duas passagens
analisadas da obra, a adjetiva como: sequaz do diabo, miserável,
bestalibidinosa e impudica. Tais são os simbolismos selecionados dentre
os disponíveis ao grupo, tendo, eles, leituras interpretativas
direcionadas, estruturando assim a noção de feminilidade em proposta.
A narrativa, como demonstramos, parece refletir as preocupações
provenientes do primeiro Capítulo Geral de 1162. Dentre elas, a
preocupação em relação à castidade, sendo ela reiterada diversas vezes,
dando sinal da importância que a sua manutenção tinha para a vida dos
cônegos. Nesse sentido, pensar possíveis desvios como fonte
motivadora da construção discursiva não parece tão falacioso. Teotônio,
como projeção dos preceitos capitulares, reuniria em sua imagem as
qualidades que se queria da própria comunidade, no caso, o devido
comprometimento com os votos feitos. Assim sendo, a ênfase
evidenciada na narrativa seria justamente o produto dos ideais
almejados para os integrantes da comunidade crúzia agostiniana. Era a
forma de construção de um referencial de enquadramento.
A ulhe , a o a, pa e e te pelo e os dois sig ifi ados: pa a
a figura de Teotônio, funciona como ferramenta de reforço de sua
santidade, dado a superação constante dos desafios que uma vida casta
pode apresentar. Já em relação aos propósitos capitulares da narrativa,
ela é sinalizada como um agende de desvio e fonte de vigilância para
manutenção dos votos feitos. A proximidade de relações deveria ser
298
evitada, tendo os cônegos por obrigação manterem a constante
prudência quanto a elas.
No paralelo construído, a personagem bíblica de José assim o fez,
bem como Teotônio. Ambos transpuseram os desafios. Reforçaram,
assim, através da superação das provas, suas posições como referenciais
a serem seguidos. Consolida-se, por fim, uma santidade imutável; um
exemplo que se pretende copiado pelos demais.

299
300
A CANTIGA 26 E O ROMEIRO PECADOR: GÊNERO NAS IMAGENS E
NOS TEXTOS NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DE AFONSO X

Guilherme Antunes Junior1

Introdução
Afonso X, conhecido também pela alcunha de El Sábio, era filho de
Fernando III de Castela e Leão e de Beatriz de Suábia. Nasceu em Toledo,
em 23 de novembro de 1221, cidade em que também foi educado. Em
1246 se casou com Violante, filha de Jaime I, o Conquistador. Quando
Afonso tinha trinta e um anos, seu pai morreu e ele se tornou rei de
Castela e Leão, em de junho de 1252.
Durante seu reinado, Afonso X foi um verdadeiro mecenas, nas
palavras de Ângela Vaz Leão.2 Em seu governo, o rei Sábio patrocinou
diferentes obras, abrangendo vários domínios do conhecimento. Afonso
é reconhecido por ter sido uma pessoa culta que aprendeu, por exemplo,
vários idiomas, principalmente os ibéricos. Salvador Martínez sugere que
Afonso dominava galego-português, catalão, árabe, hebraico e algumas
línguas estrangeiras, como o francês, o provençal e talvez o alemão, por
causa de sua mãe, da casa dos Staufen.3 Havia em seu taller suporte
técnico e artístico que contava com a colaboração de desenhistas,
miniaturistas, pintores, poetas, legisladores, escribas, músicos, cientistas
e muitos outros. Com esse apoio intelectual, o monarca de Leão e
Castela pôde engendrar muitos trabalhos, sendo diretamente
coordenador ou financiador.
As Cantigas de Santa Maria (CSM) foram produzidas
simultaneamente com outros projetos régios, patrocinados pelo rei
Sábio, entre os anos de 1270 a 1284.4 As CSM formam um conjunto
interdependente de quatro manuscritos. O que utilizo para este trabalho
é conhecido como códice historiado ou Códice Rico, o manuscrito T-I-1

1 Douto e Hist ia pelo P og a a de P s-g aduaç o e Hist ia Co pa ada da UFRJ.


Cola o ado do P og a a de Estudos Medie ais.
2 LEÃO, Â gela Vaz. Ca tigas de Sa ta Ma ia de Afo so X, o S io: aspe tos ultu ais e

lite ios. Belo Ho izo te: Ve edas e Ce ios; S o Paulo: Li ea B, . p. .


3 SALVADOR MARTÍNEZ, H. Alfo so X, the Lea ed: a Biog aph . Bosto : B ill, . p. .
4 FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, Lau a. Ca tigas de Sa ta Ma ía - fo tu a de sus a us itos.
Al a ate - Re ista de Estudios Alfo síes, Se ilha, . , p. - , - . p. .
301
(E2), pertencente à Real Biblioteca del Monasterio de El Escorial e teria
sido elaborado entre os anos de 1280 a 1284, ano da morte de Afonso
X.5
Meu objetivo é analisar a cantiga 26 à luz das relações de gênero,
entendendo que o texto poético e as imagens nessa cantiga constroem
discursos sobre homens e mulheres, atribuindo-lhes papéis sociais
distintos, sendo o poder o centro em que gravitam essas relações.
Gênero, portanto, articula-se, enquanto ferramenta conceitual, com o
poder que está diluído em múltiplas ações que permeiam as relações
hu a as. Catego ias o o ho e , ulhe , fe i i o ou
as uli o s o azias de se tidos e, ao es o te po,
transbordantes.6 Os discursos, então, tentam preenchê-las de
significações e estabelecer formas de controle, dominação, hierarquia e
outros saberes.
Para trabalharmos a cantiga 26, uso as seguintes fontes impressas
das CSM: a da Universitatis Conimbrigensis, editadas por Walter
Mettmann, entre 1959 a 1972,7 e o fac-símile editado pela Edilán em
1979.8 Além destes, serão cotejadas duas traduções para o espanhol do
Códice Rico: a coordenada por Laura Fernández Fernández e Juán Carlos
Ruiz Souza, publicado em 2011,9 e a versão comentada de José Filgueira
Valverde.10

5 FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, L. Op.Cit., p. .


6 Nas pala as de Joa W. S ott: N s s pode os es e e a hist ia desse p o esso se
e o he e os ue ho e e ulhe s o, ao es o te po, atego ias azias e
t a s o da tes. Vazias, po ue o t sig ifi ado últi o, t a s e de te.
T a s o da tes, po ue es o ua do pa e e esta fi adas, ai da o t de t o
defi iç es alte ati as, egadas ou sup i idas. . SCOTT, Joa Walla h. G e o - u a
atego ia útil de a lise hist i a. Edu aç o & Realidade, Po to Aleg e, . , . , p. -
, jul./dez. . p. .
7 ALFONSO X, O SÁBIO. As Ca tigas de Sa ta Ma ia. Editadas po Walte Mett a .
Coi a: A ta U i e sitatis Co i ige sis, - . .
8 ALFONSO X, O SÁBIO. As Ca tigas de Sa ta Ma ia - C di e Ri o de El Es o ial T-I- - E .

Mad id: Edil , .


9 ALFONSO X, O SÁBIO. As Ca tigas de Sa ta Ma ia - C di e Ri o de El Es o ial T-I- - E .

Coo de aç o de Lau a Fe dez Fe dez e Ju Ca los Ruiz Souza. Mad id: Real
Bi liote a del Mo aste io de Sa Lo e zo de El Es o ial, .
10 ALFONSO X, O SÁBIO. As Ca tigas de Sa ta Ma ia - C di e Ri o de El Es o ial T-I- - E .

Ve s o de Jos Filguei a Val e de. Mad id: Castalia, .


302
Para consultar outras traduções, utilizei o portal eletrônico
Dicionario de Dicionarios do Galego Medieval, coordenado por Ernesto
González Seoane, María Álvarez de la Granja e Ana Isabel Boullón Agrelo,
do Instituto da Língua Galega.11

A narrativa textual da cantiga


As cantigas foram escritas em galego-português erudito. Sua
estrutura em versos é denominada zéjel, composição de origem
moçárabe, surgida em Córdoba. O zéjel (bailado) é composto de um
refrão com dois versos rimados, seguindo estrofes de quatro versos
combinados, cada um de um trístico monorrimo com rimas diferentes
de est ofe pa a est ofe o he ida o o uda ça , ais u ua to
e so ue i a o o ef o a o he ida o o olta . . Ou seja,
podemos ilustrar sua estrutura poética da seguinte forma: AA/ bbbA/
AA/ cccA/ AA etc.
A cantiga que analiso tem como título Esta é como Santa María
juïgou a alma do Roméu que ía a Santïago, que se matou na carreira por
engano do dïabo, que tornass' ao córpo e fezésse pẽedenç? Esta é sobre
como Santa Maria julgou a alma do romeiro que ía a Santiago, se matou
no caminho por enganação do diabo, para que volta-se ao corpo e fizesse
penitência. São três as narrativas que a compõem. O poema, as imagens
e os rótulos sobre os desenhos.12 Iremos analisar as três perspectivas
conjuntamente para, em seguida, compará-las.
A cantiga 26 está associada ao tema da peregrinação e aparece
em outras fontes medievais, tendo o caminho de Santiago de
Compostela como pano de fundo para a história.13 A fonte dessa cantiga

11 Dispo í el e : http://sli.u igo.es/DDGM/. A esso e : ja . .


12 Os tulos s o su títulos ue se lo aliza a pa te supe io das i o og afias e sua
fu ç o a a o ue a o te e as i age s. Po , elas o s o esu os do te to
po ti o, ao o t io, possue se tido p p io e dese ol i e to i depe de te.
13 S o os a us itos: THOTT , Cope hage , Ro al Li a ; PHILLIPPS , Chi ago,
U i e sit of Chi ago; Li e Ma iae , de Gil de Za o a, Mad id, Bi liote a Na io al;
ALCOBACENSE , Lis oa, Ma iale Lis oa; MADRID MARIALE , Mad id, Bi liote a
Na io al; ARUNDEL , ff. - , Ma iale , Lo d es, B itish Li a ; BARTHOLOMEU DE
TRENT , Bolo ha, U i e sidade de Bolo ha; Ro al B XI, f lios - , A glo-
No a Mi a les of the Vi gi , Lo d es, B itish Li a ; COTTON CLEOPATRA C. ., ff. -
, Ma iale , Lo d es, B itish Li a ; Li e de i a ulis sa tae dei ge it i is Ma iae.
PEZ, Be a d Ed . No a Yo k: Co ell U i e sit P ess, ; GARLAND Joh de. Stella
303
pode ter origem na cultura oral, pois, logo no início do poema, o narrador
a isa ue des e e a hist ia o o ... com' oí contar /a ouviu
o ta .14
O poema descreve a história de um romeiro que vai a Santiago de
Compostela, mas o peregrino esteve com uma mulher na noite anterior.
Durante o caminho, o Diabo se disfarça de Santiago e engana o romeiro,
dizendo-lhe que estava em pecado e que deveria se castrar. Diante da
intimação do falso Santiago, o homem se mata, degolando-se.15 Com a
hemorragia, o romeiro morre e sua alma é disputada pelo Diabo e pelo
e dadei o Sa tiago. O Dia o ue le -lo para o inferno e Santiago
argumenta que o romeiro foi engando. A disputa é decidida pela Virgem
Maria, que salva a alma do peregrino, ressuscita-o, porém o mantém
sem o pênis.
A narrativa te tual o eça o o segui te ef o: N o de se
espa ta ue o juízo d a M e ue o u do i tei o ai julga .16 A
ideia se ia da u o juízo, o joízo da , ou seja, u o selho pa a
lembrar ao público que Maria adverte as pessoas quanto ao
comportamento delas. Em seguida, o narrador descreve que Deus
mamou em seu peito e por isso ela nunca recebeu o desprezo de Deus:
... ue t ou e a Deus e seu o po e o amamentou de seu peito e
u a e e eu despeito d Ele .17 Essa introdução à história principal da
cantiga tem a função de hierarquizar os personagens, colocando, desde
o início, que o protagonismo milagroso é monopólio de Santa Maria. Por
isso, o narrado le a: So e isso, se e ou es, os fala ia de u juízo

Ma is. Ca idge: Mediae al A ade of A e i a, . BERCEO Go zalo de. Milag os


de Nuest a Seño a. Ba elo a: C íti a, ; COINCI, Gautie de, Les Mi a les de Nost e
Da e. Ge o a: D oz, .
14 FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, Lau a. I age e i te i . La ep ese ta i de Sa tiago
Ap stol e los a us itos de las Ca tigas de Sa ta Ma ía. A ales de Histo ia del A te, .
, p. - , . p. . Out a a tiga dedi ada ao a i ho de Sa tiago, a , ta
faz alus o ao fato de a hist ia te o ige i p e isa ou po eio da o alidade, pois,
o a e te o a ado ou e fala dela ... o ' u oí o ta ... .
15 A pala a sui ídio o e istia o edie o, o o le ou Jea Claude S h itt,
apa e e do pela p i ei a ez o s ulo XVIII e est ela io ada alo izaç o do i di íduo
e ao a a do o da ideia de i e o t a si es o. Cf. SCHMITT, Jea -Claude. Le Sui ide
au Mo e Âge. A ales: Histoi e, S ie es So iales, . , p. - , . p. .
16 No g a ousa se sa e o jo zo da a Mad e do ue o u do tod' de joïga .
ALFONSO X, O SÁBIO, - , p. .
17 ... de s u peito a e tou, e del despeito u a foi fila . I ide , p. .
304
que deu Santa Maria em favor de um que ia a cada ano (...) a Santiago
e o a ia .18 Ou seja, por ser mãe de Deus, Maria é superior a Santiago
na ordem dos perpetradores de milagres.
Mui gran razôn é que sábia dereito
quen Déus troux' en séu córp' e de séu peito
mamentou, e del despeito
nunca foi fillar;
porên de sen me sospeito
que a quis avondar.19

Ao ir para Santiago de Compostela, como mencionei, o peregrino


teve relações sexuais com uma mulher sem que fosse casado com ela,
embora, segundo o texto, seja apresentado como um romeiro de boa
vontade e com verdade.20 A a tiga diz ue o o ei o a t' al e ga 21
com uma mulher sem bondade, má, ou seja, passou a noite com ela. Em
seguida, ele se pôs no Caminho de Santiago sem se confessar e o
de io apa e eu a f e te dele, ais a o ue o a i , pa a
melhor enganá-lo , e tomou a figura de Santiago.
22

Este roméu con bõa voontade


ía a Santïago de verdade;
pero desto fez maldade
que ant' albergar
foi con mollér sen bondade,
sen con ela casar.
Pois esto fez, meteu-s' ao caminno,
e non se mãefestou o mesquinno;

18 So ' esto, se ' o ssedes, di a du jo zo ue d u Sa ta Ma a po u ue ad' a o a,


o ' o o ta , a Sa Ja ' e o a a… . I ide , p. .
19 Opta os po a te os e sos a lí agua o igi al o o po do te to pa a p ese a a a
est ti a dos e sos. Raz o uito g a de ue sa e di eito ue t ou e a Deus e seu
o po e o a a e tou de seu peito e u a e e eu despeito d Ele. . I ide , p. .
20 Este o u o a oo tade a a Sa tïago de e dade; pe o desto fez aldade ue
a t' al e ga foi o oll se o dade, se o ela asa . ALFONSO X, O SÁBIO, -
, p. .
21 A t aduç o fo e ida po Walte Mett a pa a a pala a al e ga hospeda , aloja -
se ou passa a oite. METTMANN, Walte . Gloss io das Ca tigas de Sa ta Ma ia. Coi a:
A ta U i e sitatis Co i ige sis, - . . J Filguei a Val e de t aduz pa a o
espa hol o o oha ita . ALFONSO X, O SÁBIO. As Ca tigas de Sa ta Ma ia- C di e Ri o
de El Es o ial T-I- - E . op. it. p. .
22 ... e o d o ui festi o se lle foi ost a se le foi se lle foi ais a o ue u
a i o, polo t st' e ga a . . ALFONSO X, O SÁBIO, - , p. .
305
e o démo mui festinno
se lle foi mostrar
mais branco que un arminno,
polo tóst' enganar.23

O Diabo apareceu porque houve um pecado grave. O romeiro não


ponderou o código que o peregrino deve adotar antes de caminhar. A
importância da peregrinação é um tema que está presente em outras
obras alfonsinas, o que demonstra que essa prática era objeto de
reflexões e normatizações. Nas Siete Partidas, há um capítulo dedicado
à romaria e à peregrinação.24 Nesse texto jurídico, há uma normativa
expressa sobre o comportamento do romeiro, atentando para a
relevância e a dedicação da viagem, considerada como santificadora.
Assim, o Título XXIV, da Primeira Partida, Lei II, trata dos preparativos
para a viagem, a maneira como o peregrino deve se portar e a
importância da devoção:
Romaria e peregrinação devem os romeiros fazer com grande
devoção, dizendo e fazendo bem e resguardando-se de fazer o
mal, não andando fazendo comércio, nem descuidos pelo
caminho, e deve-se chegar cedo à pousada o quanto puderem;
além disso, ir acompanhados, quando puderem, para que sejam
resguardados de danos, e fazer melhor sua romaria. E devem os
habitantes locais, quando passarem os romeiros por seus
lugares, honrá-los e protegê-los. O que é certo é que os homens
que saem de sua terra com boa vontade, para servir a Deus, que
os outros os recebam em suas terras e os protejam do mal, da
força, do dispêndio e da desonra.25

23 Este o ei o ia a Sa tiago o oa o tade e o e dadei o esp ito, po , a tes


oa itou o u a ulhe , se se asa o ela / Depois de faz -lo, p s-se o
a i ho e o o fessou, o es ui ho, e o de io a diloso lhe apa e eu, ais a o
ue o a i ho, pa a elho e ga -lo. I ide , p. .
24 As Siete Pa tidas u a o a de a te legislati o, p oduzida o s ipto iu alfo si o,
e t e os a os de a . Ela est di idida e sete pa tidas, e, su se ue te e te,
e títulos e leis. Ve : PÉREZ MARTÍN, A to io. La o a legislati a alfo si a puesto ue
e ella o upa las Siete Pa tidas. Glossae: Eu opea Jou al of Legal Histo , . , p. - ,
.
25 Ro e ia, e peleg i aje deue faze Ro e os o g a d deuo io , dizie do e fazie do

ie , e gua da dose de faze al, o a da do fazie do e ade ias, i a lote ias po


el a i o, e deue se llega te p a o a la posada ua to pudie e ; ot osi
a o pañados, ua do pudie e , po ue sea guadados de daño, e faze ejo su
o e ia. E deue los de la tie a, ua do passa e los Ro e os po sus loga es, o a los
e gua da los. Ca de e ho es, ue los o es ue sale de su tie a o ue a olu tad, pa a
306
Era necessário para o peregrino, segundo as Siete Partidas,
e p i i de oç o, deuo io , e gua da o dade, fazie do ie .
Paralelamente, vejo que a mesma preocupação está no texto poético da
cantiga, quando o narrador fala que o romeiro estava com boa vontade,
o o j disse, de a o do o os p e eitos o ati os, Este o u o
a oo tade ía a Sa tïago de e dade . A i te dis u si idade e t e o
texto legislativo e o poético indica que o romeiro deve evitar fazer
maldades, pois essa advertência aparece nas duas narrativas.
Entretanto, é uma mulher que é mencionada na cantiga como alguém
ue o possui o dade, ... foi o oll se o dade , ou seja, h
uma hierarquização entre a moller e o Roméu: ele teve relações sexuais
com ela, mas era ela que não tinha bondade, sugerindo que a maldade
preexistente na mulher foi o que provocou a desestruturação da viagem
do peregrino, desviando-o de sua missão.
Semellança fillou de Santïago
e disse: Ma a ' éu de ti despago,
a salvaçôn éu cha trago
do que fust' errar,
por que non cáias no lago
d' if o, se dulta .

Mas ante farás esto que te digo,


se sabor ás de seer méu amigo:
talla o que trages tigo
que te foi deitar
en poder do ẽemigo,
e vai-te degolar. 26

Em seguida, entendo que a relação sexual e a ausência de


confissão do peregrino antes de começar a caminhada geraram a
presença do Diabo (démo). O Diabo, disfarçado de Santiago, então avisa
ao a i ha te: Mes o ue eu esteja de ep io ado o ti, t ago a
salvação para o que errastes, para que não caias, indefectivelmente, no

se ui a Dios, ue los ot os los es i a e la su a, e se gua de de faze les al, i fue za,


i daño, i deso a. . ALFONSO X, O SÁBIO. Las Sete Pa tidas. Mad id: Co pañia
Ge e al de I peso es Li e os del Rei o, . To o , p. - .
26 Assu iu a figu a de Sa tiago e lhe disse: E o a eu esteja des o te te de ti, t ago-
lhe a sal aç o do ue e ou, pa a ue o aias, i defe ti el e te, o i fe o / Po ,
a tes fa s isto ue te digo: se desejas se a igo eu, o ta-te o ue t az o tigo ue te
ati ou o pode do i i igo, e degola-te . ALFONSO X, O SÁBIO, - , p. .
307
i fe o .27 O demônio aconselha que o romeiro corte uma parte do seu
corpo, que entendo que seja o próprio pênis e, depois, degole a si
es o: Mas a tes, fa s isto ue te digo: se desejas se eu a igo,
corta-te o que traz contigo que te lançou no poder do inimigo e te
degola .28 A ideia de pecado é associada ao corpo, como se houvesse
autonomia de alguma parte dele,29 em relação às demais, nesse caso,
a uilo ue o o ei o t az o sigo e ue la çou o pode do i i igo ,
ou seja, o p is. E assi foi feito: ... ua do lhe mandou cortar, cortava
e e ua to o o ta a se degola a .30
O roméu, que sen dôvida cuidava
que Santïag' aquelo lle mandava,
quanto lle mandou tallava;
poi-lo foi tallar,
lógu' entôn se degolava,
cuidando ben obrar.

Séus companneiros, poi-lo mórt' acharon,


por non lles apõer que o mataron,
foron-s'; e lógo chegaron
a alma tomar
démões, que a levaron
mui tóste sen tardar.31

27 Ma a ' eu de ti despago, a sal aço eu ha t ago do ue fust' e a , po ue o


ias [ o] lago d'if o, se dulta . I ide ,, p. .
28 Mas a te fa s esto ue te digo, se sa o s de see u a igo: talla o ue t ages tigo
ue te foi de ta e pode do ẽe igo, e ai-te degola . I ide , p. .
29 H u pa alelis o o a Bí lia essa passage do elato, espe ifi a e te e Mateus

: , ua do se l : Se teu olho di eito pa a ti ausa de ueda, a a a-o e la ça-o


lo ge de ti, po ue te p efe í el pe de -se u s dos teus e os, a ue o teu o po
todo seja la çado a gee a ; e Mateus : : E se tua o di eita pa a ti ausa de
ueda, o ta-a e la ça-a lo ge de ti, po ue te p efe í el pe de -se u s dos teus
e os, a ue o teu o po i tei o seja ati ado a gee a. . Dispo í el e :
http:// . i lia atoli a. o . / i lia-a e- a ia/sao- ateus/ /. A esso e : aio
.
30 ... ua to lle a dou talla a; poi-lo foi talla , l gu' e t se degola a. . ALFONSO X,
O SÁBIO, p. .
31 O o ei o, ue se d ida pe sa a ue a uilo foi o de ado po Sa tiago, ua do o
a dou o ta , o ta a, e e ua do o o tou se degolou, e do o a e . Seus
o pa hei os, ua do o a ha a o to, pa a ue o os a usasse de ha -lo atado,
fo a e o a. Qua do hega a u s de ios a a ega a al a, ue a le a a logo,
se ta da . ALFONSO X, O SÁBIO, - , p. .
308
O Diabo, por ter se disfarçado de Santiago, induziu o romeiro ao
suicídio. O romeiro que acreditava estar diante do verdadeiro Santiago,
cumpriu tudo aquilo que lhe era ordenado, inclusive a automutilação,
ua do o tou o p p io p is, ... ue se d ida uida a ue Sa tïag'
a uelo lle a da a, ua to lle a dou talla a. El i a Fidalgo e plo ou
esse aspecto enganador da figura do Diabo nas CSM e destacou que ele
aparece como antropomorfo em várias delas, porque:
Embora caídos em desgraça, os diabos pertencem a mesma
natureza dos anjos: são seres incorpóreos, que possuem um
corpo aéreo que não os impede de transformar-se em distintas
figuras visíveis aos olhos dos hombres. É precisamente esta
capacidade de diversificação e metamorfoses o que faz que
sejam mais perigrosos e temidos porque são mais difíceis de
reconhecer.32

O que Fidalgo chama atenção é que o Demônio é capaz, nas CSM,


de se metamorfosear para conseguir seus objetivos, sendo essa
dissimulação uma das suas principais estratégias de atuação. Com essa
astúcia, o Diabo tenta levar a alma do romeiro para o inferno: ... l go
hega o a al a to a d es, ue a le a o ui t ste se ta da . 33
A fim de evitar essa condenação eterna, Santiago argumenta que o Diabo
usou a enganação para persuadir o romeiro:
A alma do méu roméu que fillastes,
ca por razôn de mi o enganastes;
gran traïçôn i penssastes,
e, se Déus m' ampar,
pois falssament' a gãastes,
o os p de du a .

Responderon os démões louçãos:


Cuja est' al a foi fez feitos os,

32 Au ue aídos e desg a ia, los dia los pe te e e a la is a atu aleza ue los


geles: so se es i o p eos, ue posee u ue po a eo ue o les i pide
t a sfo ase e disti tas figu as isi les a los ojos de los ho es. Es p e isa e te esta
apa idad de di e sifi a i eta o fosis lo ue ha e ue sea s pelig osos
te idos po ue so s difí iles de e o o e . FIDALGO, El i a. El Dia lo e las Ca tigas
de Sa ta Ma ia. I : MARTINEZ PEREZ A to ia et al. Coo d. . U o de los ue os del ei o
- ho e aje al p of. Fe a do D. Ca o a. Sa Mill de la Cogolla: Cile gua, . p. -
. p. - .
33 ... logo hega a u s de ios a aptu a a al a, ue a le a a logo, se ta da .
ALFONSO X, O SÁBIO, Op. Cit., p. .
309
por que somos ben certãos
que non dev' entrar
ante Déus, pois con sas mãos
se foi despe e ta . 34

A disputa entre os demônios e o verdadeiro Santiago é travada


porque o romeiro foi reivindicado para o inferno. O verdadeiro Santiago
argumenta que houve uma enganação por parte do Diabo,
demonstrando o quanto o demônio era astucioso ao confundir o
pe eg i o ... a po az de i o e ga astes .
Por conta da intervenção mariana, para resolver a disputa, o
romeiro é perdoado. O fato curioso é que o peregrino ressuscita, mas
recebe a seguinte punição: que ficasse sem aquilo com que pecara. No
nosso entendimento, tratava-se do pênis. O narrador adverte que o
a i ha te se iu a Deus depois, as ... u a p de e upe a a uilo
de ue se p i a a e o o ue fo a a pe a . 35 Novamente, a cantiga
expressa a ideia de independência do corpo, como se o pecador só
pudesse cometer o pecado porque seu órgão sexual o exorta a fazê-lo.
Por isso a castração é imposta. A disputa é resolvida com a interferência
de Ma ia, ue sal a o pe eg i o: Dela tal se te ça ou i a : ue a al a
fosse devolvida de onde a trouxeram para que depois possa salvar-se .36
Assim, os pecados cometidos pelo romeiro são provocados por
fatores externos a ele, como se ele não pudesse controlá-los, ou mesmo
evitá-los; ou por fatores internos, em que ele é autor da ação:

Fatores internos Fatores externos


1. A relação sexual com uma mulher sem 1. A falta de bondade da mulher; v. 24.
ser casado; v. 24.
2. Não ter se confessado; v. 28. 2. O engodo de satanás; vs. 29 a 31.

34 A al a do eu o ei o, ue ha eis le ado, po ue, o eu p ete to, lhe e ga astes,


g a de t aiç o u g sseis, e, assi Deus e a pa e, pois falsa e te a ga hastes, o os
podeis du a . / Respo de a os de ios lu u iosos: A uele de ue esta al a fez
oisas s, po isso esta os e tos de ue o de e e t a a te Deus, pois ue o suas
p p ias os ti ou a ida. ALFONSO X, O SÁBIO, - , p. .
35 ... as u a o a pod' o de ue foi falido, o ue fo a pe a . I ide , p. .
36 Dela tal joiz' ou e o : ue fosse to a a al a o de a t ou e o , po se depois sal a . .

I ide , p. .
310
3. A autonomia do corpo (pênis); vs. 43 e
44.

Como disse, esse desequilíbrio entre as causas que provocaram


o suicídio do romeiro e, ulteriormente, a intervenção de Maria,
demonstram que o caminhante sofre a ação, sendo mais vítima que
protagonista do pecado.37 As relações do gênero sugerem que o pecado
o se u ia de u a aç o e te a, se do a elaç o se ual o oll
se o dade, se o ela asa 38 o elemento desencadeador e
desestruturador da normatividade social. A figura feminina é obliterada
pelo seu inominalismo, marginalizando sua condição, e classificando-a
como portadora de valores imorais e não cristãos, nesse caso, a falta de
bondade. Curiosamente, o narrador anuncia os atributos do romeiro
para, adiante, compará-los com a mulher com quem ele tem relações
sexuais. Só há, portanto, uma menção da narrativa poética dedicada à
mulher para delineá-la negativamente, ao passo que ele é descrito como
algu o ualidades positi as, pois o ... o u o a oo tade ía
a Sa tïago de e dade .
A história do romeiro pecador é recontada a partir de imagens
em que compararemos a seguir com os discursos textuais.

Análise das imagens e dos rótulos


As imagens nas CSM ficam paralelas ao texto nas páginas quinais,
ou seja, a cada cinco cantigas escritas há uma iconografia que expressa
imageticamente o texto poético. Não se trata de uma ilustração da
história narrada, mas um complexo paralelismo em que os discursos de
cada um se inter-relacionam, se excluem ou se completam.
As primeiras imagens da cantiga 26 possuem os seguintes rótulos:
"Co o Sa ta Ma ia a a e tou seu filho o seu peito e Co o o
de io apa e eu ao o ei o e fo a de Sa tiago o a i ho .

37 Co o ad e te S h itt, e se p e o sui ídio foi isto pela Ig eja o o u pe ado


ue o de a ia da aç o ete a, pois, ao se e ga ado pelo Dia o, ou po esta
desespe ado, o sui ida pode ia ea e sua ida po eio da i te e ç o da Vi ge ou
dos sa tos. SCHMITT, J-C. Op.Cit., p. - .
38 I ide , p. .
311
Figura 1, vinhetas 1 e 2

A primeira vinheta possui um significado simbolicamente


atrelado ao restante da história: o iluminador anuncia que Maria tem
importância central na salvação por ter função materna, pois aparece
amamentando seu filho, Jesus. Esse prenúncio no início das iluminuras
hierarquiza a relevância dos santos, colocando Santiago e Pedro como
figuras secundárias. Ela aparece entronizada, no centro da imagem,
entre duas pilastras e cercada de dois anjos. Seu seio está à mostra e sua
cabeça está localizada geometricamente na área central do plano, isto é,
um ponto fixo de referência, em que os demais têm a mesma distância
nas diagonais. Defendo que essa proeminência da cabeça de Maria com
uma aureola no ponto médio do plano direciona o olhar do observador,
fixando a ideia de protagonismo de Maria.
Na vinheta dois, podemos observar a paisagem constituída de
uma árvore, flores e pedras, sugerindo que os romeiros estão no
Caminho de Santiago. O Diabo aparece disfarçado do santo, de costas
para os outros personagens, espremido entre o falso Santiago e a coluna
quadri ula da ilu i u a. O a usado , ou seja, o o ei o, est situado
à margem da cena, no canto direito, juntamente com o falso Santiago.
Ambos estão com uma das mãos estendidas, mas o Diabo está
apontando para o céu com o dedo indicador, sugerindo que estão
tratando de assuntos relativos ao divino. Com a outra mão, o falso
Santiago está segurando um livro. Esse gesto, seguindo a referência de
François Garnier, em que o Diabo aponta para o céu, demonstra que ele

312
está indicando a legalidade, superioridade e qualidade da Lei de Deus.39
Enquanto isso, o romeiro abre uma das mãos, com a palma para frente,
sugerindo receptividade daquilo que é dito.
No te ei o e o ua to tulo le os: Co o o o ei o o tou sua
atu eza e se degolou po o selho do Dia o e Co o uis tirar do
Dia o a al a do seu o ei o .

Figura 2, vinhetas 3 e 4

Na vinheta três há a distribuição no plano da imagem de três


situações: a morte do romeiro, a alma do suicida sendo levada por
demônios e a debandada dos outros peregrinos diante da situação. O
romeiro está segurando uma faca com a mão direita que é usada para
cortar sua própria garganta. No lugar do pênis há uma mancha vermelha,
p o a el e te sa gue, de o st a do ue o o ei o o tou lla atu a ,
aludindo que houve a castração. Há um estreito paralelismo com o texto poético,
pois, na iconografia também se atribui o pecado do romeiro ao seu próprio corpo.
No entanto, as imagens não mencionam a causa do pecado, pois, diferentemente
do texto narrativo, a mulher que albergou com o peregrino não é citada nas
iconografias. Por fim, a alma do romeiro é capturada por demônios ao subir aos
céus.
Na vinheta seguinte, Santiago disputa a alma do romeiro com o demônio.
A outra figura que aparece, segunda Laura Fernandéz Fernandéz, é São Pedro,
que guarda as portas do Céu.40 O iluminador destaca a indumentária mais rica e

39GARNIER, F a çois. Le la gage de l i age au Mo e Âge: sig ifi atio et s oli ue.
Pa is: Le L opa d D o , . . . p. .
40 Esta es e a apa e e e la p i e a iñeta, e la ui ta, e la is a olu a po
313
ado ada do Sa tiago e dadei o pa a o t asta o a do falso Sa tiago , ou
seja, o Diabo. Também, diferente da segunda vinheta, o santo aparece com uma
aureola e empunhando uma espada. Os iluminadores optaram por construir uma
imagem que se referisse ao santo como alguém que combate os inimigos da
cristandade, dentre eles, o principal deles, o Diabo.
As i hetas segui tes o t os segui tes tulos: Co o Sa tiago e o
Dia o ie a e juízo a tes de Sa ta Ma ia po a al a do o ei o e Co o o
romeiro essu giu po o de de Sa ta Ma ia .

Figura 3, vinhetas 5 e 6

A disputa entre Santiago e o Diabo pela alma do romeiro faz com


que a questão seja levada à Santa Maria. Na vinheta quatro, Maria
aparece como juíza e não como advogada, como é mais comum nas CSM.
Esta fu ç o est de a o do o o ef o ue diz ue Ma ia ... o u do
i tei o ai julga . Aos seus p s est o Sa tiago e S o Ped o o as os
estendidas em sinal de súplica. O objeto que ela segura parece um livro,
manifestando a ideia de sabedoria e respeito às Leis de Deus. Maria está
mais ao centro do plano e acima dos demais personagens,
demonstrando superioridade, visto que ela olha para baixo, enquanto os
demais olham para cima.41 Fica claro que o certame é decidido por

lo ta to f il e te ela io a le o la p i e a, e os la es e a e la ue Sa tiago
Ped o a ude al t i u al a ia o, a odillados a te Ma ía, pa a pedi justi ia so e el
al a del o de ado, esta le i dose u a i ula i di e ta e t e a as i ge es.
FERNANDÉZ FERNANDÉZ, L. Op.Cit., , p. .
41 Ga ie p op e ue seja o se ado o es ue a de justaposiç o dos pe so age s, o

ual o histo iado ha a de o elaç o: E te de os o o o elaç o u a elaç o


314
Maria, que devolve a alma ao romeiro e o ressuscita, como está
demonstrado na última vinheta.
Vemos que o papel de Maria é decisivo nas imagens. Isso
demonstra que na cantiga 26 ela está em um plano de importância maior
que Santiago e São Pedro. Na iluminura, assim como no texto poético,
aparece como juíza, ou seja, aquela que julga e decide sobre a alma dos
cristãos.

Conclusão: possibilidades comparativas


Minhas considerações estão situadas dentro de duas
perspectivas. Uma relacionada à dimensão política que envolve a cantiga
e suas implicações nas discussões de poder entre Afonso X e o clero
compostelano. A outra é relativa às questões de gênero. Entendo que
ambas se complementam e são úteis para problematizarmos minhas
hipóteses.
As cantigas que têm o Caminho de Santiago como temática
principal,42 não abordam essa rota de peregrinação como algo positivo.
Há um fator político em discussão: Afonso X considerava que o caminho
jacobeu43 deveria ser desprestigiado em função de outras rotas de
peregrinos. Para Corti, havia relações políticas tensas entre a corte
alfonsina e os bispos de Santiago, pois Afonso X tentou nomear um
notário de León, Juan Afonso, no lugar do arcebispo de Santiago, Juan
Arias, morto em 1266.44 A sede permaneceu vacante, até que o papa
Gregório X nomeou Gonzalo García, em 1272, como novo arcebispo.
Porém, García foi mandado ao exílio por não prestar homenagem a
Afonso X. Fernández Fernández corrobora com esta ideia afirmando que
a ... sede epis opal ue supuso u g a e p o le a desde el p i ipio

e t e dois ele e tos, si ples ou o ple os, ujo u dete i a a ua e ou a


sig ifi aç o do out o. Os ele e tos figu ados a o elaç o faze pa te de u a es a
ep ese taç o . GARNIER, F. Op.Cit., p. .
42 As a tigas ue e io a di eta e te o a i ho ja o eu s o: , , , ,
e .
43 O a i ho de S o de Co postela ta ha ado de ja o eu ou ja o eo, de ido
ao fato do o e lati o de Tiago se Ia o o.
44 CORTI, F a is o; MANZI, Ofelia. La i age de los pe eg i os e la ilust a i de las
Ca tigas de Sa ta Ma ía de Alfo so X el sa io. I : ENCONTRO INTERNACIONAL DE
ESTUDOS MEDIEVAIS, ., , Rio de Ja ei o. Atas… Rio de Ja ei o: ABREM/ Ágo a da
Ilha, . p. - . p. .
315
para Afonso X fue la de Sa tiago de Co postela .45 Isso porque Afonso
X já havia rechaçado a ordem do papa Gregório X, que tentou nomear
don Egas, bispo de Coimbra, em 1267, para sede compostelana.46
Além disso, Corti destaca que também havia disputas econômicas
em jogo, pois o caminho a Santiago de Compostela perdia com o fluxo
comercial que, no século XIII, concentrava-se mais no eixo Norte-Sul, ou
seja, afastando-se do caminho jacobeu e se concentrando nas rotas que
unem as costas da Cantábria com Andaluzia.47
Corroborando com Corti, Elvira Fidalgo trabalhou também com
cantigas que remetem a lugares de peregrinação que aparecem no
repertório alfonsino, como, por exemplo, Jerusalém, Santiago e Roma.48
No entanto, os santuários que mais aparecem nas CSM são os do Puerto
de Santa María, em Sevilha, e o de Salas, localizado na província de
Huesca.49 Para Fidalgo, esses centros de peregrinação representavam
uma verdadeira concorrência em relação a outros espaços sagrados ao
longo do Caminho de Santiago, figurando como alternativas rivais aos
peregrinos. Assim, enaltecer esses lugares poderia aumentar o
patrimônio das igrejas nesses locais de culto.50 Uma das funções das CSM
dedicadas ao Puerto de Santa María seria, para a historiadora espanhola,
desencorajar os caminhantes que continuavam indo a Compostela e
incentivá-los a buscarem a proteção milagrosa dos santuários do
Puerto.51
O outro ponto são as questões relacionadas ao gênero.
Entendemos que as imagens foram construídas, especificamente na
a tiga , a pa ti da a ati a te tual. A i o og afia e ai ou
diversas passagens do texto poético, equilibrando-as com os recursos

45 FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, L., Op.Cit., p. .


46 I ide , p. .
47 CORTI; MANZI, Op.Cit., p. .
48 FIDALGO, El i a. Pe eg i a i Políti a e las Ca tigas de Sa ta Ma ía. I : Co g eso
de Fo as Na ati as B e es e la Edad Media, , , Sa tiago de Co postela, Atas...
Sa tiago de Co postela: Se i io de Pu li a io es, . p. - . p. .
49 As a tigas dedi adas a Salas s o: , , , , , , , , , , ,
, , , , , , , , , e ; as ue s o efe e tes ao Pue to
de Sa ta Ma ía s o: , , , , , , , , , , , , , ,
, , , , , , , e .
50 FIDALGO, Op. Cit., p. .
51 I ide , p. .
316
imagéticos. No entanto, o iluminador não menciona qual foi o pecado do
romeiro, apenas que o diabo o enganou e o exortou a se castrar e a se
sui ida . A e ç o ulhe se o dade apa e e ape as o te to,
sendo ignorado nas imagens. A mulher foi determinante para o
desencadeamento do pecado, e o romeiro foi chamado apenas de
es ui o , isto , po e, miserável.52
Entendo que a construção das relações de gênero é um elemento
que tenta, por meio dos discursos, definir as diferenças entre homem e
mulher, dentro de um exercício de poder, como salienta Joan Scott:
Segue-se então que gênero é a organização social da diferença
sexual. Mas isso não significa que o gênero reflete ou estabeleça
as diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres;
mais ainda, o gênero é o conhecimento que estabelece
significados para as diferenças corporais. Esses conhecimentos
variam de acordo com as culturas, grupos sociais e épocas,
porque não há nada do que se refere ao corpo, incluindo os
órgãos reprodutivos das mulheres, que determine
unilateralmente como se devem forjar as divisões sociais. Nós
não podemos ver as diferenças sexuais exceto como uma função
de nosso conhecimento sobre o corpo e esse conhecimento não
é puro, não pode ser isolado de sua implicação num amplo
espectro de contextos discursivos.53

A elaboração da cantiga concentrou-se na castração, pois, em


ambos os relatos, há claramente ênfase para o fato de o romeiro cortar
o próprio pênis. Na vinheta três, da figura dois, aparece, como já
dissemos, uma mancha vermelha no lugar do pênis e no rótulo está
escrito que o romeiro cortou sua natureza. Também, no texto, há o
registro de que o romeiro ficou sem o pênis ao ressuscitar, salientando
ainda mais que a relação sexual antes da romaria, e sem se confessar,

52 METTMANN, Op.Cit., - , p. .
53 It follo s the that ge de is the so ial o ga izatio of se ual diffe e e. But this does
ot ea that ge de efle ts o i ple e ts fi ed a d atu al ph si al diffe e es
et ee o e a d e ; athe ge de is k o ledge that esta lishes ea i gs fo
odil diffe e es. These ea i gs e a oss ultu es, so ial g oups, a d ti e si e
othi g a out the od , i ludi g o e s ep odu ti e o ga s, dete i es u i o all
ho so ial di isio s ill e shaped. We a ot see se ual diffe e es e ept as a fu tio
of ou k o ledge a out the od a d that k o ledge is ot pu e , a ot e isolated
f o i pli atio i the oad a ge of dis u si e o te ts . SCOTT, Joa Walla h. Ge de
a d the Politi s of Histo . No a Yo k: Colu ia U i e sit P ess, . p. .
317
pode ter uma punição moralizadora. O mais curioso é a ideia de que a
sexualidade está vinculada à carne, isto é, a partes autônomas que se
expressam na constituição física do corpo. Nesse sentido, manter o
pecador sem uma parte material do corpo evitaria, novamente, outra
relação sexual e, portanto, outro pecado. A cantiga rejeita a ideia de uma
sexualidade baseada no desejo emancipado do sujeito, preferindo
colocar o romeiro como vítima de uma mulher e de seu próprio corpo.
Além disso, para problematizarmos a castração, a ausência do
pênis seria uma punição ou uma virtude? Sendo uma dádiva, o romeiro
que ti ha al e gado o u a ulhe , passa do a oite o ela,
evitava outra tentação, como já disse. Esse pecado evoca a ideia de
libertinagem, abrindo espaço para que o Diabo enganasse o romeiro.
Sem o pênis, o romeiro não poderia mais provocar o pecado da luxúria,
principalmente se saísse em peregrinação, impedindo duas situações: a
aparição do Diabo e, ao mesmo tempo, de ter relações sexuais com
mulheres más. Maria, como juíza, previne que o peregrino caísse nessas
faltas. A castração seria uma prevenção e Maria, portanto, estaria
contribuindo para fortalecer as virtudes do personagem homem do
relato.
Politicamente, ao enaltecer a figura de Maria, a cantiga 26
expressa que a mãe de Deus é maior que Santiago, santo associado a
Compostela, e Pedro, figura ligada a Roma. Nessa cantiga, a rota de
peregrinação compostelana é vista como perigosa e lugar de atuação do
Diabo. No relato da história, Maria interveio em uma disputa em que
Santiago não foi capaz de solucionar o embate, porque o Diabo estava
levando a alma do peregrino para o inferno. Maria quebrou essa
hierarquia e, mesmo na condição de mulher, salvou a alma do romeiro,
sugerindo que ela é maior que as figuras masculinas do santo do
caminho jacobeu e de Pedro. Além disso, no texto poético, a mulher
pecadora é a antagonista de Maria. Mesmo sendo essa mulher pecante
uma personagem secundária, a cantiga 26 sugere que o Caminho de
Santiago era sensível às tentações sexuais, sendo necessária a
intervenção mariana para responder a um pedido de suprimento dos
personagens masculinos.

318
UNIÕES ENTRE BORGONHA E LEÃO - CASTELA: OS CASAMENTOS
DE URRACA E RAIMUNDO (1091) E DE TERESA E HENRIQUE (1096)

Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira1

Nesse capítulo serão tratadas as estratégias matrimoniais do rei


castelhano-leonês Afonso VI em relação à Casa de Borgonha. Analisarei,
em especial, os casamentos de suas duas filhas, Urraca e Teresa, com
dois primos borgonheses, Raimundo e Henrique, respectivamente, que
teriam ocorrido na última década do século XI, na Península Ibérica.
Ao longo do seu reinado (1065/1072-1109), esse rei utilizou-se da
formação de alianças e de parentesco com os reinos do Além Pirineus,
principalmente com Borgonha, para perpetuar o seu poder e garantir
uma descendência comum, somado com todo o apoio que teria de
membros influentes daquela família, como o abade Hugo de Cluny.2
A política que uniria os dois reinos já teria sido iniciada por seus
antecessores, seu avô Sancho III de Pamplona e seu pai Fernando I, o
Magno, que reformaram mosteiros peninsulares, adaptando suas regras
à semelhança de Cluny e pela reabertura do Caminho francês à Santiago
de Compostela, que permitiria intercâmbios culturais, econômicos e o
tráfego de pessoas. Porém, as alianças matrimoniais entre membros da
família real com a casa borgonhesa teriam começado no reinado de
Afonso, no qual, ele mesmo, ao longo de sua vida, casou-se quatro vezes,
com mulheres provindas daquela localidade e em seguida casou duas de
suas filhas, com homens borgonheses.
O objetivo desta pesquisa é demostrar como esses dois
casamentos das filhas do rei, vantajosos pelo ponto de vista político ao
reino, afetaram o contexto peninsular das duas últimas décadas de vida
de Afonso VI (1091- 1109).

1 Mest a da o P og a a de P s-G aduaç o e Hist ia Co pa ada da UFRJ. "O


p ese te t a alho foi ealizado o apoio da Coo de aç o de Ape feiçoa e to de
Pessoal de Ní el Supe io - B asil CAPES - C digo de Fi a ia e to
2 O a ade Hugo de Clu e a tio da segu da esposa de Afo so VI, Co sta ça de Bo go ha,
po se i o da e dela, H lia de Se u . Ta e a tio a de He i ue, o so i ho
de Co sta ça.
319
Para isso, será utilizada a fonte de natureza eclesiástica Historia
Compostelana,3 escrita no século XII, entre os anos de 1107 e 1149, na
cidade de Santiago de Compostela. O objetivo da mesma era o de
essalta e to a pú li o os i ú e os feitos do bispo/arcebispo Diego
Gelmírez4 (1100-1140)5 para a sede, e destacar também as atitudes
tomadas pelo clérigo no contexto político (durante o reinado de Afonso
VI, Urraca de Leão e Afonso VII em Castela e Leão).
Para isso, a própria personagem central, Gelmírez, teria
recomendado a escrita a quatro clérigos,6 ligados ao seu círculo pessoal,
que compuseram um texto que atualmente poderia se encaixar no
gênero literário da crônica cartulário (gesta + registrum),7 que está
dividida em três livros (o qual o primeiro livro narra os antecedentes e
bispado de Gelmírez e o segundo e terceiro narram o período
correspondente do seu arcebispado do mesmo).
Como a Historia Compostelana foi escrita contemporaneamente
aos fatos apresentados, há alguns momentos em que os próprios
autores testemunharam a situação tratada. No entanto, é válido
ressaltar que muitas vezes um episódio narrado pode ter sido alterado
pelo autor para valorizar ainda mais a figura de Diego Gelmírez. Tais
alterações justificavam as posições políticas e ações do arcebispo,
afirmando a ideia de que o clérigo visava apenas o bem da comunidade
de Santiago de Compostela.

3 Utilizarei a versão crítica de Emma Falque de 1994, na qual ela utilizou cerca de 18
manuscritos e antigos fragmentos do documento para compô-la. HISTORIA
COMPOSTELANA. Madri: Akal, 1994.
4 Também conhecido como Diego II.
5 Os anos de 1100 até 1120 correspondem ao período referente ao seu bispado. Em

1120, o Papa Calisto II (1119-1124), eleva a diocese à categoria de arquidiocese. Diego,


então, na função de arcebispo, ocupa o cargo até sua morte em 1140.
6 Seus nomes: Nunõ Alfonso (também pode aparecer como Munio Alfonso, trabalhou na

administração da sede compostelana como tesoureiro e posteriormente se torna bispo


de Mandoñedo), Hugo (arcediano da Igreja Compostelana e posteriormente se torna
bispo de Porto), Geraldo (cônego da Igreja de Santiago) e Pedro (capelão da Igreja de
Santiago). SILVEIRA, Marta de Carvalho. Amor e poder: o casamento de Urraca e Alfonso.
Setembro de 1996. Dissertação de mestrado (Mestrado em história social). Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: UFRJ,
p.33-45.
7 Gênero literário que narra fatos de um personagem (gesta), como também compila

documentos e cartas, os contextualizando (registrum). Ibidem, p.30-31.


320
Outra questão a ser mencionada é a de que como a obra trata do
período em que Gelmírez assumiu o bispado/arcebispado, os fatos
passaram a ser narrados a partir do ano 1100. Deste modo, não há
relatos detalhados sobre os casamentos de Afonso VI com as suas quatro
esposas francesas, nem da união de Urraca com Raimundo, ocorrida no
ano de 1091, como Teresa com Henrique, em 1096. Sendo assim, o
objetivo do artigo é o de identificar na Historia Compostelana a
construção discursiva relativa a união das famílias apresentadas, em
especial, a referente a Urraca e Teresa, e seus respectivos esposos.

O reino de Castela e Leão - Borgonha: uma aproximação


Os reinos cristãos peninsulares, durante o século XI, prosperaram
devido à trégua em relação aos reinos muçulmanos e normandos.8 O
crescimento demográfico teria ocorrido a partir do reavivamento da via
de peregrinação francesa à cidade de Santiago de Compostela,9 que
ligava a Galiza às cidades do reino Carolíngio, trazendo uma série de
sujeitos portadores de novas ideias, gerando um forte impulso para a
vida urbana e comercial peninsular. Também, teriam vindo pela rota,
inúmeros guerreiros provenientes de Borgonha, Aquitânia e Normandia
o o i tuito de luta o t a os i fi is ,10 em troca de terras e títulos.
Os reis Sancho III (1000-1035) e seu filho Fernando I (1035-1065)
começaram a empreender uma política ligada à reaproximação com os
franceses, em especial com a Abadia de Cluny,11 localizada em Borgonha.

8 RUCQUOI, Adeline. História medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995.


p.131-205.
9 O corpo do apostolo Santiago foi descoberto na Península Ibérica no século VIII e no

início do século X, os primeiros peregrinos começaram a se dirigir para a região da Galiza


em busca de bênçãos. Porém, apenas na primeira metade do século XI, com o
enfraquecimento das ameaças externas (normandos e do califado de Córdoba), a
peregrinação ganha forças e a localidade deixa de ser um pequeno povoado para se
transformar em uma das cidades-santuário mais popular do mundo cristão ocidental,
perdendo apenas para Roma e Jerusalém. SILVEIRA, Marta. Op.Cit., p.103-107.
10 No ano de 1095, no Concílio de Clermont, o Papa Urbano II (1088-1099) faz um apelo

às Cruzadas, que na Península Ibérica significava a busca pela Espanha perdida pelos
mouros que precisava ser restituída à Cristandade. Embora considerando o apelo papal,
inúmeras batalhas entre mouros e cristãos já ocorriam no território hispânico, atraindo
cavalheiros, sem terras e títulos, com a promessa de salvação e territórios. Ibidem, p.116
11 Fundada na região de Borgonha em 909, em um contexto marcado pela luta contra a

influência laica em questões eclesiásticas. Desta forma, os monges desta abadia


321
Porém, foi no reinado de Afonso VI (1065/1072-1109) que esta
estratégia intensificou-se. Os monarcas da Península financiaram a
construção de mosteiros cluniacenses em solo hispânico, realizaram
doações e concederam privilégios para os religiosos ligados à Cluny,
como por exemplo, o arcebispo de Toledo, Bernardo,12 que teria vindo
para a Península com o intuito de estreitar a relação entre os dois
poderes e aconselhar o rei Afonso.13 Ambos os soberanos também
doavam uma quantia de ouro anualmente à sede monástica.
No entanto, essa estratégia também teve um lado negativo para
o reino de Leão e Castela, visto que gerou um descontentamento interno
por parte do clero hispânico, que se viu desvalorizado em prol dos
estrangeiros, gerando, assim, inúmeras revoltas.
A política e o contato entre ambos os reinos permitiram também
a criação de alianças marcadas pelo matrimônio. Ao longo de sua vida,
Afonso VI teria se casado várias vezes, e todas as noivas legítimas eram
provenientes do reino franco. A primeira, Inês, era proveniente da região
de Aquitânia, porém, o enlace teria sido anulado por suspostamente a
esposa ser infértil, logo incapaz de gerar herdeiro para o trono. A
segunda esposa teria sido Constança de Borgonha, membro de um dos
ramos da dinastia capetíngia. Seu pai era Roberto da França, o primeiro
duque de Borgonha e irmão mais novo do rei Henrique I (o rei capeto).14
Sua mãe era a nobre Hélia de Semur, cujo irmão, Hugo, era o abade de
Cluny (1049-1109), religioso influente por toda a cristandade ocidental,
devido ao seu cargo.

reconheceriam como autoridade apenas o Papa, fugindo do raio de poder de senhores


laicos, e implementaram e restauraram a regra beneditina de modo que ela seja mais
rigorosa. O abade de Cluny passou a ser a figura proeminente da cristandade ocidental,
perdendo apenas para o Papa. Ibidem, p.167-168.
12 Bernardo de Sedirac foi um monge no mosteiro cluniacense de S. Orens de Auch, e

partiu para a Espanha a pedido de Hugo de Cluny com o objetivo de servir ao rei Afonso
VI, com a missão de organizar a observância da disciplina cluniacense e aconselhar o rei.
Foi nomeado Abade no mosteiro de Sahagún em 1080, ano do casamento do rei de Leão
e Castela com Constança, rainha que o ajudou a se eleger para a Metrópole de Toledo,
após a conquista desta em 1085. SOARES,Torquato Sousa. O governo do Conde Henrique
de Borgonha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1975.p.378.

322
Sendo assim, o rei Afonso VI teria se casado com a sobrinha de
Hugo de Cluny, no ano de 1080. A historiografia15 defende que o próprio
Hugo teria ajudado a promover o matrimônio, como mais uma peça de
seus avanços políticos na Península Ibérica. De fato, a rainha Constança,
ao longo de seu casamento teria sido uma das principais incentivadoras
das reformas cluniacenses em todo o território governado por seu
marido, juntamente com o Arcebispo Bernardo de Toledo.
Da união matrimonial, o casal teria tido seis filhos, no entanto
apenas duas meninas (Urraca e Sancha) teriam sobrevivido. 16 O
casamento teria acabado com a morte da rainha e o terceiro casamento
de Afonso VI, dessa vez com Berta, de Borgonha, também não gerou
descendentes e finalizou-se com a morte prematura da rainha. O quarto
e último casamento oficial do rei teria sido com Beatriz de Poitiers,
também vinda da França. Ela era a meia-irmã por parte de pai
(Guilherme VIII da Aquitânia) da primeira esposa Inês da Aquitânia.
Dessa união, também não houve descendentes.
Afo so VI, e o a te ha pa ti ipado de u a políti a
at i o ial o os f a eses, ta se e ol eu o ulhe es
nascidas na Península Ibérica. Dos seus casos extraconjugais, a
historiografia tem notícia de dois: a primeira teria sido a nobre

15 SILVEIRA, Marta de Carvalho. Op.Cit., p.168.


16 Ibidem, p.8.
323
castelhana Ximena Moniz, a qual ele teve duas filhas bastardas (Teresa e
Elvira). A segunda amante seria a moura Zaida (convertida ao
cristianismo e batizada com o nome de Isabel).17 De qualquer forma, essa
segunda relação foi a única de todos os relacionamentos de Afonso VI
que gerou um herdeiro varão à Leão e Castela. Sancho Afonses teria sido
apresentado como o próximo rei na linha de sucessão por seu pai,
causando uma crise interna no reino, a qual mais tarde trataremos.
A política franca de Afonso VI foi perpetuada também em sua
descendência. De suas quatro filhas, duas delas (Urraca e Teresa) 18
teriam casado com pretendentes vindos de Borgonha, com relações
estreitas com a Ordem de Cluny.
No ano de 1091, a filha mais velha e legítima de Afonso VI, Urraca
de Leão, casa-se com Raimundo, membro da família condal de Borgonha
e irmão da terceira esposa do rei, Berta (na época do casamento de
Urraca, a união dela com Afonso ainda não teria se realizado). Ele era o
quarto filho do Conde Guilherme I, logo sem pretensões de assumir o
título de seu pai e as terras. Sendo assim, teria partido para a Península
Ibérica, a fim de lutar contra a intimidação moura, juntamente com seu
primo Eude I,19 futuro duque de Borgonha em 1086/1087. A
historiografia afirma que ele estaria frequentando a corte de Afonso VI,
desde 1090, embora o casamento só tenha se dado um ano depois,
provavelmente respeitando a idade núbil de Urraca. Após o matrimônio,
o casal permaneceu na corte, pois o dote – o governo da Galiza – foi
concedido apenas em 1093, devido a uma ação de prevenção contra
revoltas de nobres galegos que buscavam a independência da região.
Colocando o genro e a filha no poder, o rei Afonso VI teria um controle

17 A historiografia possui visões acerca da legitimidade desta relação. Alguns autores,


entre eles, Oliveira Marques (MARQUES, António Henrique R. de Oliveira. História de
Portugal. Lisboa: Palas, 1974. p.62-63) afirmam que ela seria concubina do rei
castelhano-leonês, enquanto outros, como por exemplo Mattoso (MATTOSO, José. D.
Afonso Henriques. Rio de Mouro: Círculo de Leitura. 2006. p.21) afirmam que o
casamento teria sido legítimo e fruto de um acordo de Afonso com o rei de Sevilha, que
era sogro da noiva (que era viúva). Esta questão é relevante, pois definiria a posição que
Sancho Afonses, o filho do casal, teria na corte e no futuro do reino.
18 As outras duas filhas, Sancha de Leão (filha da Rainha Constança) e Elvira de Leão (filha

da amante real Ximena), se casaram respectivamente com Rodrigo Gonzales de Lara e o


rei Rogério II da Sicilia.
19 Irmão de Henrique, marido de Teresa, filha de Afonso VI.

324
tanto político quando estratégico da região, evitando rebeliões, ainda
mais com a morte do antigo rei Garcia, 20 em 1090.
Teresa, a filha ilegítima de Afonso VI, também se casou com um
nobre vindo de Borgonha no ano de 1096. Henrique era primo de
Raimundo por parte de mãe (sua mãe Sibila de Borgonha era irmã do
Conde Guilherme I, pai de Raimundo) e era sobrinho da Rainha
Constança, já falecida21 na época do casamento, irmã de seu pai, o nobre
Henrique de Borgonha (que morreu antes de ser o duque de Borgonha).
Deste modo, Henrique, o marido da princesa castelhana-leonesa era
sobrinho-neto de Hugo de Cluny, relação de parentesco sempre
lembrada ao longo de sua vida, visto que a busca pelos conselhos do
abade foi bastante recorrida ao longo de sua vida.
Possivelmente, Urraca não teria se casado com Henrique, que era
membro da família ducal de Borgonha e descendente de Hugo Capeto,
devido às novas medidas da Igreja Romana acerca do parentesco entre
eles. Por ele ser sobrinho da Constança, Henrique seria primo de
primeiro grau de Urraca, uma relação incestuosa, logo ilícita pelos
padrões da Igreja Romana. Já o casamento com Teresa, teria tudo para
ser lícito, pois o casal não tinha nenhum laço familiar em comum, no
entanto, em sua pesquisa, Torquato de Souza Soares22 escreve que na
época em que o casamento teria sido realizado a futura esposa, Teresa,
teria apenas dois anos de idade (Henrique teria por volta de dezessete
anos), contrariando a mudança feita pela Igreja de que ambos os noivos
deveriam consentir com a união. A quebra desta regra por Afonso VI,
segundo Soares, se motivou devido à derrota que o exército de Raimundo
teria sofrido pelos almorávidas em Lisboa em fins do ano de 1094 e início de
1095, o que motivou o casamento de Henrique e Teresa às pressas. O rei
castelhano-leonês, com medo da escassa proteção de seus territórios no leste
da península, decide separar as terras que estavam sob o comando de
Raimundo e dar a porção sul, correspondente ao anterior Condado de
Portucale, ao nobre Henrique, que recebe o título de conde, e a sua nova
esposa, Teresa. Após o enlace, Henrique não fica dependente de seu primo (o

20 LÓPEZ FERREIRO, A. Historia de La Santa A. M. Iglesia de Santiago de Compostela:


Santiago de Compostela, 1898-1909. 2º vol. p.151-179.
21 A Rainha Constança morre no ano de 1093.
22 SOARES, Op.Cit., p. .
325
antigo proprietário das terras). Soares23 afirma que ele já teria dado provas do
seu alo e o pet ia ilita a luta o t a os i fi is . Desta fo a, ele
ficaria ligado apenas ao seu suserano e sogro, Afonso VI.
Como o Condado de Portugale estava enfrentando ameaças
almorávidas na sua fronteira sul, Henrique, recém-casado estava em
campanha na fronteira do rio Tejo, enquanto Teresa estava sob os
cuidados do seu aio (tutor) Soeiro Mendes e de sua esposa Gontronde
Moniz.24 O casal, na verdade, era formado por seus tios maternos, visto
que Gontronde era a irmã de Ximena Moniz, a amante do rei castelhano-
leonês.
Durante seu governo, Henrique teria elegido inúmeros cortesões
franceses para ocupar cargos políticos, gerando assim impopularidade
com a aristocracia hispânica, que os consideravam intrusos. De fato, sua
criação e infância, foram diferentes da dos nobres peninsulares25 e teria
lhe permitido o contato com o tio-avô Hugo de Cluny, que
provavelmente foi o diferencial na sua vida para a de Urraca, sua prima,
que possui o mesmo grau de parentesco com ele, mas não o contato,
devido à distância física, visto que a princesa teria vivido sua vida inteira
na Península Ibérica.

Condes da Galiza e Condes de Portucale na Historia Compostelana


Como dito anteriormente, na fonte eclesiástica Historia
Compostelana, os casamentos de Urraca e Raimundo e Teresa e
Henrique não são tratados diretamente. Os autores até chegam a
mencionar, de forma resumida, a vida do clérigo antes da nomeação,
porém não são narradas as uniões, sendo assim irei analisar as aparições
das personagens, como casal, ao longo da fonte, e como suas uniões
teriam influenciado o contexto do final do século XI e início do século XII,
pelo ponto de vista dos partidários do bispo/arcebispo Diego Gelmírez.

Urraca e Raimundo na Historia Compostelana


O casal Urraca e Raimundo possuem uma relação estreita com
Diego Gelmírez, visto que, antes de assumir o cargo na diocese, ele teria
sido encarregado de ser o chanceler da casa dos dois. O conde

23 I ide . p. .
24 SOARES, T., Lo .Cit.
25 MATTOSO, J. Op.Cit., p. .
326
borgonhês teria sido o seu grande benfeitor, a quem o clérigo
empenhou-se em defender seus interesses, oferecendo, inclusive, ajuda
militar.26 Raimundo, por sua vez, indicou Diego para cargos menores na
Igreja de Santiago, antes de ser o bispo, assunto que foi tratado na
fonte27 de forma resumida.
Sendo assim, o casamento dos condes da Galiza chega a ser
mencionado na passagem do Livro I, capítulo 3, porém como um detalhe,
em meio a um capítulo sobre a nomeação de um monge chamado Pedro
ao a go de ispo de Co postela: [...] Qua do ele [Ped o Ví a a]
morreu e depois de receber o casamento do Conde muito venerável
Dom Raimundo a filha muito augusta do rei católico Afonso, Arias Díaz
foi o eado ei i ho dessa te a [...] . HC I, . , t aduç o ossa 28
Neste trecho, o autor tratava sobre a sucessão de homens que
ficaram à frente da terra de Galiza antes de Raimundo, em especial Pedro
Vímara e Arias Díaz, ambos com um mau governo, que segundo a fonte,
teria sido repleto de crueldade, roubos e injustiças. É notável que neste
momento, o nome de Urraca não é nem mencionado. Apenas a
informação de ue ela se ia a filha uito augusta do ei Afo so VI j
bastava. Marta Silveira29 afirma que Urraca nascera em fins de 1080 e
início de 1081, tendo na época de seu casamento, dez/onze anos. Antes
da união, ela teria sido educada por seu aio, Pedro Ansures,30 um nobre
da confiança do rei. Após o casamento, em 1091, o casal permaneceu na
corte, possivelmente durante o período que Arias Diaz exercia o cargo
de meirinho na Galiza, e apenas em 1093, se mudam para essas terras,
acompanhando-os com o título de conde e condessa.
Na Historia Compostelana, o nome de Urraca só aparece cerca
de dois capítulos depois (Livro I, capítulo 5), quando ela é apresentada
depois do e e el ei Afo so seu pai , o filho do Rai u do
(marido) e por último ela, como sua esposa, a nobilíssima dona Urraca,

26 Diego Gel í ez te ia lutado ao lado de Rai u do o e o de Lis oa o a o de ,


e ue seus e itos f a assa a . I id. p. -
27 HISTORIA COMPOSTELANA, Op.Cit., L. , apítulo .
28 Na ediç o íti a, o t e ho apa e e a lí gua astelha a: Al ou i ste t as e i i
el at i o io el u e e a le o de do Rai u do a la u augusta hija del at li o
e do Alfo so, A ias D az fue o ado e i o de esta tie a[...].
29 SILVEIRA, M., Op.Cit., p. .
30 SOARES, T, Op.Cit., p. .
327
em um trecho da HC que fala sobre a eleição a bispo de Santiago de
Compostela, do monge cluniacense Dalmácio, que ocorreu em 1094. A
partir daí, sempre que Raimundo é citado em alguma ação política na
fonte, ele é acompanhado logo em seguida por sua esposa, indicando
que o casamento dos dois era legitimado, e que supostamente, as ações
políticas eram tomadas em conjunto (mesmo que ela tenha pouca
idade). Apenas nas situações de batalhas, ele é citado sozinho, sem a
companhia da mulher.
O primeiro capítulo no qual Urraca aparece desacompanhada é
o que trata dos últimos momentos de vida e a morte de Raimundo (Livro
I, capítulo 27), que ocorreu em setembro de 1107.31 O autor teria
destacado a presença de Afonso VI na situação devido a u afeto
espe ial , o o diz o do u e to. Sua p ese ça, se eal e te e istiu,
algo a ser questionado, visto que Torquato Soares,32 escreve que ele
teria permanecido em seu leito doente, desde 1106 e que o sogro e o
genro teriam se desentendido no final da vida devido ao reconhecimento
de Afonso a respeito de seu filho bastardo Sancho Afonses como seu
herdeiro para o Reino de Castela e Leão, no lugar de Urraca e do seu
neto Afonso Raimundes, o filho da infanta com Raimundo, nascido em
1105. Essa mudança desagradou a Raimundo e seu primo Henrique, pois
o primeiro tinha a pretensão ao trono devido ao seu casamento com a
filha legítima de Afonso VI e o segundo, pretendia enriquecer e ganhar
mais terras durante o reinado de seu primo, que lhe concederia uma
série de favores.
A questão da sucessão teve certa relevância no início do século
XII para o reino de Leão-Castela. Legitimamente, Afonso VI não possuía
herdeiros do sexo masculino e segundo Marta Silveira,33 na ausência de
filhos varões, a filha mulher primogênita poderia herdar o trono.
Inclusive, no reino de Castela, poderia exercer efetivamente o governo.
No entanto, o rei Afonso, teria tido um filho bastardo com sua concubina
moura Zaida (batizada de Isabel),34 chamado Sancho Afonses, nascido

31 MATTOSO, J. Op.Cit., p.
32 SOARES, T. Op.Cit., p.
33 SILVEIRA, M. Op. Cit., p.188-189
34 Ela era a viúva do filho do rei mouro de Sevilha Al- Mutamid, que tinha sido assassinado

pelos almorávidas em 1091, e concedida a Afonso VI como sua concubina. SOARES, T.


Op .Cit., p.184-185
328
entre 1099 e 1101. Em 1105, o rei decide nomeá-lo como seu herdeiro
no lugar de suas filhas, desagradando os primos de Borgonha, visto que
ambos tinham pretensões ao trono (Raimundo por ser casado com a
primogênita Urraca e Henrique, que tinha a esperança de que o rei
castelhano-leonês dividisse suas terras entre suas filhas,35 como já tinha
acontecido antes).
Os primos borgonheses chegaram, inclusive no mesmo ano, a
firmarem um pacto secreto com o intuito de formar uma aliança contra
os planos do sogro. Sendo assim, perante o enviado cluniacense
Dalmácio Geret, Geraldo de Braga e o Arcebispo de Toledo, Bernardo,
Henrique se comprometeu a ajudar e aconselhar Raimundo como
herdeiro do trono castelhano-leonês e, em troca, ganharia o governo
hereditário de Toledo e do seu antigo reino Taifa, com um terço de todo
o tesouro da cidade, e caso seu primo não pudesse entregar Toledo,
entregaria a Galiza.36 Torquato Soares, ao escrever sobre o pacto, afirma
sobre o seu caráter sagrado, devido à intervenção de um representante
religioso. Dessa forma, ele valeria inclusive após a morte de Raimundo
(ocorrida em 1107), a qual Henrique teria que defender os interesses de
seu sobrinho, Afonso Raimundes.37
É possível concluir que a Igreja e a ordem cluniacense, não
reconheciam a união de Afonso VI com Isabel, e muito menos a
hereditariedade de Sancho Afonses, que por ser filho de uma moura,
colocava em risco os reinos cristãos do norte à intimidação almorávida.
Logo, Raimundo e seu filho recém-nascido Afonso Raimundes, seriam
opções mais apropriadas e cristãs para ocupar o trono, possibilitando
inclusive a influência direta de Cluny na direção do reino.
De qualquer forma, os planos de Afonso VI não deram certo, pois
seu herdeiro, em maio de 1108, participava juntamente com seu aio, o
nobre Garcia Ordonhez, da Batalha de Uclés, entre os almorávidas e os
cristões. Uclés era um castelo que protegia a cidade de Toledo, cuja

35 Fato que já tinha ocorrido antes com os reis Sancho III e Fernando I, que ao morrerem
tiveram seus reinos divididos entre seus filhos, sendo que o primeiro chegou inclusive a
dar o território de Aragão, em 1035, ao seu filho bastardo Ramiro I. Sendo assim, para
Henrique, o fato de sua mulher Teresa, ser filha bastarda, não era um empecilho à
herança.
36 MARQUES, A. H. O. Op .Cit., p.63
37 SOARES, T. Op. Cit., p.384

329
conquista, em 1085, foi um dos principais marcos do reinado de Afonso
VI, por representar a antiga capital do reino visigodo, a qual os povos
hispânicos descenderiam. Assim, o apoderamento desse castelo coloca
em risco o reino cristão peninsular. Outro problema que gerou essa
batalha foi a morte de sete nobres militarmente estratégicos para o
reino e a do herdeiro, Sancho Afonses, que deveria ter no máximo sete
anos, gerando uma crise sucessória em Leão- Castela.38
Para resolver a situação, Afonso VI, convoca as Cortes de Toledo
na primavera/verão de 1108, e anuncia a toda a sua corte que a sua filha
legítima Urraca, já viúva de Raimundo (há quase um ano) irá se casar
novamente com o rei Afonso I de Aragão, com o intuito de unir forças
contra a presença muçulmana. A princesa até poderia herdar o trono
sozinha, no entanto, seu pai opta por casá-la novamente para evitar
dessa forma o enfraquecimento do reino e uma crise interna promovida
entre os nobres para desposá-la, visto que seu filho Afonso Raimundes
ainda era uma criança com dois ou três anos. Essa medida não foi
favorável ao partido franco e principalmente Henrique, pois a nova
proposta de casamento romperia com toda a política borgonhesa de
colocar seu sobrinho, Afonso Raimundes, um príncipe com sangue de
Borgonha no trono.
No entanto, o casamento foi concretizado no mês de setembro do
ano de 1109, iniciando assim, a ação de diversos grupos contrários,
resultando em uma crise política nos reinos cristãos do Norte da
Península Ibérica.
A respeito da fonte Historia Compostelana, que é contrária ao
enlace, Raimundo passa a ser citado como justificativa para defender o
infante Afonso Raimundes, como herdeiro do trono, como por exemplo,
(livro I, capítulo 113):
Espanha se alegra pela reconciliação da mãe e da criança
e está feliz para o futuro de paz [...] e acreditam que
recuperar o que perderam desde a morte do rei D.
Afonso. Todo mundo quer este rei Afonso, apesar de ser
uma criança, e ansioso que ele reina no lugar de avô e
seu pai, que seguem os passos de paz e justiça do nobre
rei Afonso e do conde Raimundo. (HC. I, 113.51, tradução
nossa) 39

38 I ide , p. -
39 Se ego ija Espa po la e o ilia i de la ad e del hijo se aleg a po la futu a
330
Casamento de Henrique e Teresa na Historia Compostelana
A Historia Compostelana tem como lugar geográfico de produção
a cidade de Santiago de Compostela, localizada no reino da Galiza. Como
Raimundo e Urraca governaram a região, os autores incluíram ambos na
fonte e demostraram a relação estreita do casal com a personagem
principal. No entanto, quando se trata de Henrique e de Teresa, a fonte
é omissa. O que é justificável, visto que o Condado Portucalense, do qual
o casal era governante não possuía relevância para a estratégia política
do governo do bispo Diego Gelmírez. O máximo que poderia aparecer
seria em relação à batalha na qual o bispo (quando ainda não tinha
assumido o cargo), juntamente com Raimundo, em 1094/1095, teria
perdido Lisboa para os Almorávidas, resultando na separação do reino e
o casamento e dote para Henrique e sua nova esposa. Porém, como se
trata de um episódio de fracasso na vida do eclesiástico, os autores
preferiram ignorar, deixando-o de fora do documento. Como o objetivo
é enaltecer a vida e os feitos da personagem, essa perda não teria vez no
conjunto.
No entanto, o casal de condes portucalenses aparece ao longo da
fonte, porém com uma função de coadjuvante. Teresa aparece cerca de
8 vezes, porém todas elas são posteriores à morte de Henrique (1112),
que não é citado como seu marido. A única menção da relação deles se
dá no livro III, capítulo 6:
O infante de Portugal, filho do conde Henrique, chamado
Afonso, depois de receber a terra de Portugal arrebatou-
a forçosamente de Fernão Perez, filho do Conde Pedro
[Froillaz], que depois de deixar sua esposa legítima vivia
em adultério, seguia a mãe do infante, rainha Teresa, e
por toda aquela terra agiu como um príncipe, teve um
grande confronto e guerra com o rei Afonso, filho do
Conde Raymond e da rainha Urraca. [...] O Conde de Lara,
Pedro Gonzalez, que havia cometido adultério com a
mãe do próprio rei e tinha com ela filhos e filhas, frutos
do adultério. (HC III, 24. 1, tradução nossa).40

paz [...] ee ue e o a lo ue pe die o desde la ue te del e Afo so. Todos


desea a este e Afo so, a pesa de se u iño, a s a ue l ei e el e luga de su
a elo de su pad e, ue siga las huellas de paz de justi ia del u o le e Afo so
del o de Rai u do.
40 El i fa te de Po tugal, hijo del o de He i ue,lla ado afo so despu s de ha e

o seguido la tie a de po tugal a e at dola po la fue za a fe a do p ez, hijo del


331
Neste trecho, que se passa em um contexto posterior (cerca de
vinte anos), quando os filhos de ambos os casais (Afonso Raimundes, que
virou o rei Afonso VII e Afonso Henriques) já são adultos e brigam entre
si por terras, os autores mencionam os maridos falecidos41 há mais de
dez anos de ambas as mães apenas para destacar a situação ilícita da
vida amorosa de ambas as mulheres. Teresa estaria de relacionando com
o nobre galego Fernão Peres de Trava, um homem casado, que teria
abandonado a esposa para viver com ela, enquanto Urraca, cujo
segundo casamento com Afonso I de Aragão foi anulado pelo papa
Pascoal II em 1110 devido à consanguinidade, teve filhos e filhas
bastardos de seu amante, o Conde Pedro Gonçalves de Lara. As duas
mulheres foram retratadas pecando contra a memória de seus maridos,
que a Historia Compostela fez questão de levantar, mesmo não tendo
nenhuma relação com a vida e os feitos de Diego Gelmírez.
Sendo assim, podemos concluir que a fonte só faz essa menção
aos casamentos de Raimundo e Urraca e Henrique e Teresa quando
buscar trazer à tona a opinião da Igreja acerca da relação, com o intuito
de condenar o adultério que ambas as viúvas teriam cometido no final
de suas vidas.

Considerações Parciais
O rei castelhano-leonês Afonso VI, ao longo do seu reinado
(1065/1072-1109) manteve a estratégia política adotada por seu avô e
pai em relação a uma aproximação com os reinos do Além Pirineus, em
especial Borgonha e a Abadia de Cluny, localizada nesse território. A via
franca de peregrinação à Santiago de Compostela possibilitou trocas
culturais e comerciais (doações para a construção de novos mosteiros,
por exemplo), como uma série de acordos políticos e intercâmbios de
pessoas. Como exemplo, Bernardo de Toledo, o conselheiro do rei,

o de ped o, uie t as a a do a a su leg ti a esposa i i e adulte io po e to es


o la ad e de di ho i fa te, la ei a Te esa, e toda a uella tie a a tua a o o
p i ipe , tu o u g a e f e ta ie to gue a o el e alfo so, hijo del o de
Rai u do de la ei a doña u a a. [...] el o de de La a, Ped o Go z lez, uie ha a
o etido adulte io o la ad e del is o e ha a te ido o la ei a hijos e hijas,
f utos de di ho adult io.
41 E o a, a ú i a ue esta a i a essa po a e a a Rai ha Te esa Rai u do o e e
, He i ue e eU a ae .
332
arcebispo de Toledo e monge cluniacense, enviado à Península pelo
Abade Hugo, com a missão de implementar o seu modelo monástico no
Império Hispânico.
Afonso VI, visando melhorar ainda mais a aproximação, iniciou
uma política matrimonial, promovendo uniões para si e para suas filhas.
Ao todo, ele teria se casado quatro vezes com mulheres francas e cada
uma de suas duas filhas, com um noivo borgonhês. Desta forma, seu
governo investia nesses casamentos políticos com o intuito de preservar
a aliança e o apoio do reino borgonhês.
Analisando o discurso construído pela obra História Compostelana
a respeito das uniões das filhas de Afonso, Urraca e Teresa, com os
primos de Borgonha, Raimundo e Henrique, respectivamente, podemos
perceber que ambos, ao longo do seu governo condal tentaram incluir
aspectos francos na sua política, como por exemplo, a nomeação de
conterrâneos para cargos de prestígio, em prol de homens locais,
causando uma série de revoltas e insatisfações. Outro fator teria sido o
objetivo de manter no poder, tanto nos condados da Galiza e de
Portucale, como também na coroa de Castela-Leão, um herdeiro ao
trono que tivesse sangue borgonhês, para perpetuar a aliança a outras
gerações.
O escolhido para isso era o filho de Raimundo e de Urraca (a
princesa legítima e primogênita), Afonso Raimundes. Porém, no final de
sua vida, Afonso VI decide cortar com a política borgonhesa e nomeia
seu filho bastardo Sancho como seu herdeiro, e posteriormente exige
um casamento de sua filha mais velha (já viúva) com o rei de Aragão,
Afonso I, deixando o neto fora da linha de sucessão. Essas ações geraram
uma crise sucessória em todo o reino cristão peninsular, na qual os
franceses e Cluny se juntaram como partido pró Afonso Raimundes para
impedir a medida.
Deste modo, é possível perceber, que os reinos de Leão e Castela
e Borgonha criaram uma aliança política que interessava a ambos,
nutrida por quase três reinados hispânicos (quase todo o século XI), que
chegou ao seu ápice quando o herdeiro ao trono teria ascendência dos
dois grupos e a influência direta dos mesmos. Porém, com a quebra de
expectativa de Afonso VI e seus novos planos para o seu reino, a aliança
é quebrada no início do século XII, gerando uma instabilidade política na
Península, que afetará um e o outro território e suas futuras gerações.
333
334
CONSUMO SUNTUÁRIO E A SOCIEDADE MURCIANA DOS SÉCULOS
XIII E XIV

Thaiana Gomes Vieira1

Introdução
O tema que pesquisamos refere-se às formas de controle da
vestimenta na Baixa Idade Média, pensando as roupas em sua
articulação com a história. Nessa pesquisa tivemos como principal
objetivo estudar as leis suntuárias de Múrcia na primeira metade do
século XIV, sobretudo no que se refere às vestimentas e adornos. Nosso
intuito era compreender qual a relevância da aparência nessa sociedade
e porque era necessário estabelecer normatização sobre esse tema.
Temos como pressupostos a existência da moda nesse período e a
vestimenta como fator de comunicação e componente da aparência. E a
nossa principal hipótese é a de que os adornos são importantes itens de
comunicação e identificação, comuns às camadas mais altas da
sociedade, e por isso surge a necessidade de regulamentar sobre os
mesmos e obstaculizar que pessoas que não pertencessem à elite os
utilizasse.

O estudo das vestimentas


Utilizamos como documento a lei suntuária de Múrcia de 1332.
Assim, o objetivo do trabalho não é realizar uma simples descrição linear
sobre a moda, mas pensá-la como objeto representativo da história, pois
se articula a diversos fenômenos sociais, políticos e econômicos. No
caso, buscamos verificar como a normativa controla as vestimentas dos
personagens dessa sociedade, as restrições dos adornos, cores e tecidos,
e analisar porque eram estabelecidas. Desta forma, concordamos que:
Como objeto de pesquisa, de fato, a indumentária é um
fenômeno completo porque, além de propiciar um
discurso histórico, econômico, etnológico e tecnológico,
também tem valência de linguagem, na acepção de
sistema de comunicação, isto é, um sistema de signos por

1 Mesta pelo I stituto de A tes e Desig da U i e sidade Fe al de Juiz de Fo a. G aduada


e Hist ia pela U i e sidade Fede al do Rio de Ja ei o, o ito do P og a a de
Estudos Medie ais PEM .
335
meio do qual os seres humanos delineiam a sua posição
no mundo e sua relação com ele.2

Os documentos que analisaremos não são as indumentárias em si,


mas leis que pretendem manter os consumos adequados às hierarquias
da sociedade, impedindo ou minimizando a mobilidade social, ou pelo
menos, a visibilidade dessa flexibilidade. Nesse sentido, Daniel Roche
considera que as normativas suntuárias tinham fins econômicos.3 Já
Maria Giusephina Muzzarelli defende que o objetivo não era somente
o te luxos e de limitar importações e despesas, mas também (e
sobretudo) para fixar um código detalhado de apa ias .4
Não se pode negar que há uma História do costume, mas maior
parte do que foi produzido sobre o tema são obras que descrevem as
vestimentas de homens e mulheres, seus ornamentos e seus penteados.
A abordagem complexa do tema, em sua relação com os segmentos
econômico, político e social é recente e ocorrem para períodos mais
recentes da história. A problematização do costume na Baixa Idade
Média é pouco explorada pelos historiadores e estudiosos de outras
áreas.
O período da Baixa Idade Média é bastante intenso e fecundo em
normatividades, e, ainda, momento de surgimento do que consideramos
moda. Nesse momento, as vestimentas são representações
sociopolíticas e as leis suntuárias reconhecem e registram as diferentes
condições dos habitantes da comunidade. Deste modo, tratar do
controle exercido pelas autoridades na sociedade da Baixa Idade Média

2 CALANCA, Da iela. Hist ia so ial da oda. S o Paulo: Edito a Se a S o Paulo, . p.


.
3A pa ti de O poli ia e to dos gastos ago a afeta a todos os súditos. No es e ple eus

esta a igual e te u idos os e essos i du e t ios, ue dese adea a a aç o do


Estado. I .: ROCHE, Da iel. A ultu a das apa ias: U a hist ia da i du e t ia
s ulos XVII-XVIII . S o Paulo: Edita Se a S o Paulo, . p. .
4T aduç o da auto a a pa ti do o igi al: La o ati a su tu ia fu pe ta to o epita
o solo allo s opo di o te e e lussi e di li ita e i po tazio i e spese, a a he di ei
sop attutto pe fissa e u p e iso di e dele appa e ze. I : MUZZARELLI, Ma ia
Giusephi a. Il guada o a edie ale: esti e so iet dal XIII al XVI se olo. Bolo ha: il
Moli o, , p. .
336
na Península Ibérica por meio das vestimentas é pertinente e um tema
pouco explorado.
Considerando a vestimenta um fenômeno completo, o estudo de
um conjunto de leis que tratam desse aspecto é legítimo e permite
analisar relações ainda pouco exploradas. Daniela Calanca apresenta as
leis suntuárias são, na história do costume, um grande capítulo que ainda
deve ser es ito .5

Definição dos conceitos


A moda é, em sentido geral, a adoção de uma postura, apreensão
de uma realidade, de um comportamento, de uma identidade. A roupa
marca, representa e comunica algo. Considerando o contexto e os
dispositivos de uma época, aquela permite a produção e a compreensão
do cenário, configura uma linguagem específica, e, por fim, a percepção
de uma encenação da realidade. Moda é, neste caso, uma intervenção
que organiza e hierarquiza o mundo e as relações sociais; é uma
linguagem de um grupo e de uma época, materializa e oferece sentido
aos sujeitos históricos e concretiza um estilo de ser e de estar numa
sociedade. Sublinhamos que a moda não consegue ser privativa de um
grupo. Ao tornar-se pública, ao ganhar as ruas, ela pode ser partilhada
por outros grupos ou sofre uma releitura. Aquela valoriza uma
dist ncia entre os sujeitos, e ao realizar tais processos ela significa e
resignifica os sentidos.6
Durante séculos, o traje de moda permaneceu um consumo
luxuoso e prestigioso confinado às camadas nobres e o vestuário
respeitava a hierarquia das condições. As normativas suntuárias
proibiam as camadas baixas de se vestirem como os nobres,
especificando materiais, ornamentos e formas utilizados pelos
diferentes sujeitos da sociedade.7 Fica claro, desde esse período inicial,
que a moda já revelava seus traços sociais e estéticos característicos,

5 I ide , p. .
6 Defi iç o de oda a pa ti das leitu as: ANDRZEJEWSKI, Lu ia a Mattos Qui ta ilha. A
oda o o Hist ia. Re ista Hist i a, S o Paulo, . , p. - , .; CALANCA,
Da iela. Hist ia so ial da oda. S o Paulo: Edito a Se a S o Paulo, . p. ; ROCHE,
Da iel. A ultu a das apa ias: U a hist ia da i du e t ia s ulos XVII-XVIII .
T aduç o de Assef Kfou i. S o Paulo: Edita Se a S o Paulo, . p. - .
7 CRANE, Dia a. Op. Cit.. p. .
337
mas apenas para grupos muito restritos que monopolizavam o poder de
criação e iniciativa.8
Segundo Lipovetsky, S a partir do final da Idade Média é possível
reconhecer a ordem própria da moda, a moda como sistema, com suas
metamorfoses incessantes, seus movimentos bruscos, suas
e t a ag ias. 9 Desse modo, o que consideramos comumente como
moda surgiu no final da Idade Média, particularmente no século XIV,
quando apareceu um tipo de vestuário diferenciado para os dois sexos:
curto e ajustado para o homem, longo e justo para a mulher.10 Lipovetsky
acrescenta: Se o lugar do aparecimento importante revolução do
vestuário é controvertido, sabe-se em compensação que muito
depressa, entre 1340 e 1350, a inovação difundiu-se por toda a Europa
o ide tal. 11 Foi a partir desse momento que as mudanças começaram,
se intensificaram e as variações tornaram-se mais correntes.
O gosto pelo luxo confirma-se especialmente na segunda metade
do século XIV e durante o século XV. Era um momento em que a
sociedade estava habituada às epibidemias mais intensas e
devastadoras, o que conferia aos contemporâneos uma necessidade de
viver intensa e plenamente, afinal, acreditava-se que a morte os rondava
em todos os momentos. Desse modo, houve uma descrença nos valores
acreditados, que acabaram resultando em grandes heresias, uma
valorização incipiente do individualismo e a falência dos quadros sociais
estabelecidos. O traje acompanhou as transformações, as perturbações
e inquietações dos espíritos, bem como refletiu as preocupações
daquele mundo que angustiava.
Segundo Christopher Berry, os artigos de luxo podem ser
alimentação, indumentária, moradia e lazer, ou seja, necessidades
humanas básicas.12 Para o autor luxo é um refinamento das
necessidades, e ainda, é universal e independente de momentos
históricos ou modelos econômicos. Gilles Lipovetsky aponta que em

8 LIPOVETSKY, Gilles. O I p io do ef e o: a oda e seu desti o as so iedades


ode as. S o Paulo: Co pa hia das Let as, . p. .
9 I ide , p. .
10 I ide , p. .
11 I ide , p. .
12 BERRY, Ch istophe . The Idea of Lu u : A Co eptual a d Histo i al I estigatio .

Ca idge: Ca idge U i e sit P ess, . p. .


338
todas as sociedades sempre existiu uma forma de excesso, mas que nem
sempre o conceito de luxo foi o mesmo. Sobre a Baixa Idade Média o
autor aponta que E plena era de desigualdade aristocrática, o luxo
tornou-se uma esfera aberta às fortunas adquiridas pelo trabalho, o
talento e o mérito, uma esfera aberta à mobilidade so ial .13
O dicionário14 define luxo como odo de vida que inclui um
conjunto de coisas ou atividades supérfluas e aparatosas; bem ou
atividade que não é considerado necessário, mas gera conforto ou
p aze . . Sobre o que Pastoreau destaca as sociedades aristocráticas,
o luxo não é algo supérfluo, é uma necessidade absoluta de
representação decorrente da ordem social desigual. 15 Ainda:
com a dinâmica do enriquecimento dos comerciantes e
dos banqueiros, o luxo deixa de ser privilégio exclusivo de
um estado baseado no nascimento, adquire um estatuto
autônomo, emancipado que está do vínculo com o
sagrado e da ordem hierárquica hereditária. Em plena
era de desigualdade aristocrática, o luxo tornou-se uma
esfera aberta às fortunas adquiridas pelo trabalho, o
talento e o mérito, uma esfera aberta à mobilidade
social.16

Os dois conceitos são complementares para o sentido da


pesquisa. Segundo Lipovetsky, Co a moda instala-se a primeira grande
figura de um luxo absolutamente moderno, superficial e gratuito, móvel,
liberto das forças do passado e do i isí el .17 Sobre o individualismo,
aponta Co o dizia Simmel, a moda sempre une gosto pela imitação e
gosto pela mudança, conformismo e individualismo, aspiração a fundir-
se no grupo social e desejo de diferenciar-se dele, ainda que por
pequenos detalhes .18
As riquezas circulavam nesse momento também nas mãos dos
incipientes burgueses, que, com bom padrão de vida, começaram a

13 LIPOVETSKY, Gilles. Op. Cit., p. .


14 Lu o. I Di io io P i e a da Lí gua Po tuguesa [e li ha], -
, http:// .p i e a .pt/dlpo/lu o [ o sultado e - - ].
15 LIPOVETSKY, Gilles. Op. Cit., p. .
16 I ide , p. .
17 I ide , p. .
18 LIPOVETSKY, Gilles, ROUX, El ette, O Lu o Ete o. Da Idade do Sag ado ao Te po das

Ma as. S o Paulo: Co pa hia das Let as, . p. .


339
vestir-se como os nobres, utilizando joias e tecidos preciosos. A
burguesia, que começa a formar-se, se abriu para uma nova vida e, nela,
graças ao desenvolvimento do comércio, começou a reter o lucro e,
consequentemente, a romper com os valores da Igreja. Pela grande
proximidade na área urbana, esse grupo começou a imitar os nobres e,
logo que eles copiavam, os superiores inventavam algo novo e, assim,
propiciaram a engrenagem da moda funcionar. Lipovetsky destaca que
do duplo movimento de imitação e distinção nasceu a mutabilidade da
moda. Foi nesse momento que na Itália, França e Espanha se
multiplicaram as leis suntuárias, tentando inicialmente proteger as
indústrias locais e impedir o esbanjamento de metais raros e preciosos.19
As normativas suntuárias eram promulgadas pelo monarca,
direcionadas, sobretudo, às camadas em ascensão e tinham como
principal objetivo frear o consumo, reforçar a hierarquia social e
possibilitar a diferenciação social e de sexo a partir das vestes, em
resumo, uma identificação externa. Também se dirigiam às minorias,
como judeus, muçulmanos, leprosos, prostitutas, ordenando e
regulamentando a utilização de vestuário distintivo, para identificação
rápida de religião e condição social, para que os demais pudessem
adequar anteriormente seu comportamento e, principalmente, que
evitassem relações sexuais com esses personagens. Verifica-se,
entretanto, que essas leis foram de baixa eficácia e não impediram que
os sujeitos consumissem o que não lhes era permitido.
Além da normatização social, essas leis tinham uma justificativa
econômica de contenção de gastos, mas não foram eficazes na
minimização do consumismo. Como aponta Daniela Calanca, o luxo e
suas proibições desencadeiam análises a cerca das normas su tu ias .20
Inclusive o papel do legislador é ambíguo, pois nos códigos há a
proibição, mas há também a saída para aqueles que descumprissem as
regras: uma multa altíssima. Nesse sentido, a autora aponta que as
normas também funcionavam como um sistema para harmonizar
consciências e substâncias itadi as .21

19 I ide , p. .
20 CALANCA, Da iela. Op Cit, p. .
21 I ide , p. .
340
Análise
O documento que analisamos no decorrer da pesquisa foi a lei
suntuária murciana de 1332.22 Ela foi produzida no reinado de Afonso XI
e colocada em vigência, na província, pelo concelho da cidade de Murcia.
Esse concelho era formado por homens residentes em Murcia e agentes
do poder central, isto é, encarregados do rei que viviam na cidade, os
ditos homens bons, o que nos indica uma seleção, ou seja, não era
qualquer sujeito que poderia fazer parte desse grupo. Os regidores
murcianos cumpriam os ordenamentos e mandatos que chegavam da
corte sem adotar decisões próprias.23 As fontes foram produzidas, como
assinalado, em 1332. Logo foram apresentadas à comunidade, sob a
circunstância de necessidade de controle sobre a aparência e os gastos.24
O fato de a normativa ter sido elaborada na corte impossibilita
descobrir o que Murcia inovou no que se refere à legislação sobre as
vestimentas que eram usadas na cidade e às mercadorias que nela
chegavam.25 Essa circunstância poderia significar que havia uma lei
padrão para todo reino de Castela. Entretanto, o trecho e do o dano
que vem a esta cidade e aos vizinhos e moradores dela pelos adornos
que as mulheres colocam aqui nos estidos 26 indica que o regimento
possuía alguma especificidade e não era somente uma medida legal
geral.
A fonte apresenta variados detalhes sobre as peças proibidas:
larguras, comprimentos, pesos, custos, cores e materiais. Também
estipula aqueles que poderiam ou não utilizar as peças, especialmente
no que se refere a sua condição na sociedade, como a camada social a

22 Ressalta os ue ti e os a esso ao do u e to t a s ito, o ao a us ito. O


do u e to o igi al est o A hi o Mu i ipal de Mu ia, Ca t. , E as, fols. - .
23 TORRES FONTES, Jua . El o ejo u ia o e el ei ado de Alfo so XI, AHDE, Mad i,
. , p. - , .
24 Segundo Torres Fontes, três aspectos são abarcados pelas ordenações murcianas, que

são gerais nessa classe de normativas: tecidos de mulheres, ordenamentos sobre


casamentos, e os duelos que ocorriam pelos finados. Destacamos que somente
analisamos os aspectos relacionados à aparência das leis que tratam dos duelos e
casamentos. A partir de: TORRES FONTES, Juan. Ordenanza suntuaria murciana en el
reinado de Alfonso XI. Miscelánea Medieval Murciana, Murcia, v. 6, p. 99-131, 1980.
p.117.
25 TORRES FONTES, Juan. Op. Cit., p.116.
26 Lei su tu ia de Mu ia de . e e do el daño ue ie e a esta çi dat e a los
e i os e o ado es della po los ado os ue las uje es po e a u e los estidos
341
qual pertencia, a sua situação com relação ao matrimônio e também o
fato de serem homens ou mulheres.
Fizemos uma classificação das peças referentes à aparência que
figuram na lei e classificamos como vestuário, adorno, matéria-prima. O
quantitativo de cada categoria nos possibilita perceber o que era mais
utilizado e consequentemente se tornava um incômodo para as camadas
superiores, que desejavam exclusividade na aparência. O amplo
emprego de determinados itens na indumentária indica aos personagens
das camadas altas que estes já não são mais exclusivos, e, portanto,
deveriam, de algum modo, manter-se restritos a sua camada, e desse
modo eram alvos maiores de normatização.
Analisando o documento, verificamos que ele normatiza de modo
geral sobre a aparência e as vestimentas. Separamos os itens que são
objeto da normatização em categorias27:
- vestimentas (as próprias peças de composição da indumentária),
- tecidos/processos/produção (em que são incluídos aspectos
referentes aos tecidos e sua produção, de modo abrangente é o
processo que a matéria-prima sofre para formar o tecido ou o próprio
tecido já pronto, antes de ser transformado na peça da vestimenta),
- matérias-primas (as matérias-primas restritas apenas às elites),
- e adornos (peças prontas que compõem a aparência e não são
itens primários, porém são importantes para comunicação e
identificação).
Na categoria vestimenta estão os itens pelote, cota e par de
panos. No grupo tecidos/processos/produção estão incluídos: pano de
ouro, pano de seda, tecido riscado de ouro, esmalte, pano de lã e
sobredouradas. A seção matéria-prima é composta por pedras preciosas,
pérolas, ouro e prata. E, por fim, a ordem adornos é formada por: coroas,
guirlanda, xale, colar, cobre orelhas, véus, cabos28 e joias.
Como dito anteriormente, a categoria mais abordada na lei
analisada é a referente aos adornos (oito itens). Após temos a categoria

27 Destacamos que alguns itens foram conflitantes de acordo com as categorias


estabelecidas, entretanto optamos pela função principal do mesmo para distribuir mais
adequadamente, primando pelo nosso objetivo de verificar qual era a intenção dessas
normativas.
28Cada u dos e t e os das oisas; peças soltas ue se usa o o estido e ue s o
o ple e tos ou ado os, as o pa tes p i ipais dele.
342
tecidos/processos/produção (seis itens), seguida, pela categoria
matéria-prima (quatro itens). Por fim, as referentes às vestimentas
propriamente ditas, com poucos componentes (três itens).29
A categorização e o seu quantitativo já nos orientam no sentido
da confirmação de uma hipótese, a de que os adornos são importantes
itens de comunicação e identificação, comuns às camadas altas da
sociedade, daí a necessidade de normatizar sobre os mesmos e dificultar
que qualquer pessoa que não pertencesse à elite os utilizasse.
O fato de a lei também insistir na normatização sobre tecidos
demonstra que estes eram variados, tanto em processos quanto em
produto final. O tipo de fiação, a matéria com que era fiado, liso ou
estampado, enfim, havia diversidade. Essa variedade era significativa,
pois cada tipo de tecido era condizente a um grupo social e os luxuosos,
estampados, fiados com ouro, dourados eram exclusivos das camadas
mais altas. Nos fragmentos que seguem fica claro tal aspecto. E se
quiser trazer faixa de seda bordada de ouro que seja de fio de ouro fiado
com seda que valha a onça30 até em 20 maravedis e não ais, 31; as
que a fita bordada de ouro que seja tecido e não de outra maneira, e
traga uma via sem adornos pelas extremidades do manto ou do pano ou
da apa. 32 e E também, possa trazer nos ditos mantos escudos longos
que cubram todo o corpo do combatente e capas, cendal33 ou tafetás34
em que não haja ouro nem p ata. .35
No trecho destacado acima as proibições referem-se "às donas,
donzelas ou outra mulher de qualquer condição que seja".36 Nesse

29 Desta a os ue a lei ta efe e-se do as, as o a i luí os e ual ue


atego izaç o, pois o o segui os ide tifi a o ue se ia detalhada e te, ape as
ue s o p ese tes do oi o o edidos oi a.
30 O ça o u , ue igual a , g, utilizada pa a al ula p eços de e s de
o su o ali e tos, os ti os, et ; o ça t o , ue igual a , g, utilizada
o o pad o de edida de peso de etais p e iosos, o o o ou o.
31 Lei su tu ia de Mu ia de . E s uise t ae o of esses ue sea de filo do o filado
o seda ue ala la o ça fasta e XX a a edis e o as
32 Lei su tu ia de Mu ia de . pe o uel o off es ue sea te ido e o de out a
a e a, e t a a u a ia se ziella po las o iellas del a to o del paues o de la apa.
33 Te ido de seda ou de li ho uito fi o e t a spa e te.
34 Te ido lust oso feito de fios de seda.
35 Lei su tu ia de Mu ia de . Ot oss , pueda t ae e los di hos a tos.
Paues ues e apas, çe dales o taffetaffes e ue o a a o o i plata.
36 Lei su tu ia de Mu ia de . i gu as dueñas i do zelas i out a uge de
343
sentido, pensamos que o fato de a legislação referir-se à figura feminina
em qualquer condição (social, econômica, matrimonial), tinha como
objetivo distingui-las dos homens, que nesses casos, poderiam utilizar
esses tecidos. Ressaltando o que alguns pesquisadores apontam,
Os trajes elegantes eram vistos como uma prerrogativa
masculina, e a maioria das representações pictóricas-
esculturas e arquitetura, pintura em madeira, tapeçarias e
afrescos- retrata trajes masculinos, e não femininos, como
reflexão da hierarquia social da época.37

Entretanto, consideramos que se fossem os homens que


utilizassem estes tecidos, as normativas se voltariam aos mesmos. Assim,
concluímos que as regras dirigem-se para qualquer mulher no sentido
de reservar às figuras femininas da alta aristocracia o direito de utilizar
esses tecidos.
A normatização da matéria-prima segue a lógica anterior,
referente aos tecidos e só são abordadas na lei preservando as camadas
altas. O sujeito que desejasse usar colares de materiais valiosos, pedras
preciosas ou algo semelhante deveria ter determinada condição. Esses
elementos base de produção são valiosos, comunicativos e indicam que
aqueles que as utilizavam pertenciam aos mais elevados estratos sociais.
O trecho destacado abaixo refere-se às do as, donzelas ou outra
mulher de qualquer condição que seja e seguimos a mesma perspectiva
de pensamento apresentada no parágrafo passado:
E também não tragam colares nem uma série de coisas
passadas por um fio ou corda nem cubra orelhas de
pedras preciosas, nem de pérolas, nem de ouro, nem de
prata nem de esmaltes, salvo que possam trazer cubra
orelhas de prata, do peso de quarta onça entra amas ou
abaixo, e estas que possam ser sobredouradas.38

O fato de a categoria das vestimentas propriamente ditas ser o


último aspecto abordado nos confirma o já apontado pela historiografia:

ual ue o diçio ue sea .


37 FOGG, Ma ie. Tudo so e oda. Rio de Ja ei o: Se ta te, . p.
38Lei su tu ia de Mu ia de . Ot oss , o t a a olla es i sa tales i o eje as
de pied as p esçiosas i de aljoffa i de o o i de plata i de es altes, saluo ue
pueda t ae o eje as de plata, peso de ua ta do ça e t e a as o de d a uso, e estas
ue pueda se so edo adas.
344
que eram poucos os modelos de peças, o que variava eram as matérias-
primas, os tecidos com os quais faziam as roupas e os adornos que
compunham e complementavam as aparências. E realmente, quando
essas peças aparecem na normatização são seguidas de informações
referentes a outras características das mesmas. No trecho Também,
possam trazer em cada xale, panos, capa, pelote ou cota até uma cinta
de prata, do modo que quiser, não sendo dourada nem es altada. 39
fica claro que a peça de roupa é pouco relevante, o mais importante é
que a peça não podia ser, para aquele personagem, dourada nem
esmaltada.
Alguns fragmentos não são de fácil classificação. Por exemplo, o
fragmento anterior trata de peças de vestimentas (pelote), adorno
(xale), mas a proibição é com relação aos seus materiais (dourada).
Destacamos que optamos por segmentar de modo a priorizar o objetivo
de cada tópico do regulamento. Nesse caso, ainda que a proibição seja
com relação aos materiais, o alvo é a vestimenta. Assim, esta passagem
soma o qualitativo da categoria esti e tas .
A normativa não apresenta variadas alegações para sua
elaboração, ou para as restrições. Exceto em um momento, em que
apresenta o argumento moral contra o uso das vestimentas e adornos.
Conforme a lei:
vendo o dano que vem a esta cidade e aos vizinhos e
moradores dela pelos adornos que as mulheres colocam
aqui nos vestidos, assim, por serviço de nosso senhor o
rei e favor e bem e povoamento dessa cidade e por seguir
os ordenamentos e os bons costumes que outras boas
cidades e vilas e lugares do senhorio de nosso senhor o
rei, há nessa razão, segundo o que disseram e o que
viram e o sabem os mandadeiros que agora vieram e vem
dela, fizeram proclamas pela cidade com a trombeta
desses ordenamentos que se seguem.40

39Lei su tu ia de Mu ia de . Ot os , pueda t ae e ada a to , paues, apas,


pellote, o sa a fasta u a çi ta de plata e ual guisa uisie e o se e do do ada i
es altada.
40Lei su tu ia de Mu ia de . e e do el daño ue ie e a esta çi dat e a los
e i os e o ado es della po los ado os ue las uje es po e a u e los estidos, po
e de, po se uiçio de uest o seño el e e p o e ie e po la ie to desta çi dat e po
segui los o de a ie tos e las ue as ostu es ue ot as ue as çi dades e illas e
loga es del seño io de uest o seño el e a e esta az , segu t lo de ie o ue lo
345
Em resumo, por mais que a motivação para a legislação fosse
socioeconômica, a questão moral permeava o ato de normatizar e estava
explícito na lei. Afinal, os danos acometidos à cidade e aos vizinhos
tinham como causa, segundo o próprio conjunto de regras, os adornos
que as mulheres colocavam nos vestidos e na aparência de modo geral.
A normatização utiliza o recurso da cobrança de multas para
àqueles que a infringissem. E disponibiliza oficiais para fazer a
observação e garantir que as regras fossem cumpridas nas ruas
murcianas. A fonte apresenta a saída monetária e/ou a perda das peças
como forma de reparar o delito cometido. Os valores eram razoáveis.
Desta forma, aqueles que desejassem utilizar as peças proibidas não se
sentiam acuados pela possibilidade de pagamento da penalidade. Em
resumo, as autoridades criaram alternativas para os considerados
infratores, que pagariam um dado valor sem grandes problemas. De
modo geral, aqueles que não eram das camadas mais altas e tinham
condições de adquirir as peças presentes na normativa também tinham
recursos para pagar a punição. Ou seja, acabavam arcando com esse
custo e permaneciam utilizando as peças.
O recolhimento das punições era revertido em benefícios para a
cidade. De modo que as infrações cometidas e solucionadas acabam
servindo de investimento urbano. E também as penas pecuniárias se
apresentavam como um modo de afirmação de autoridade do concelho,
no sentido de que caso a normatização fosse descumprida não haveria
impunidade.

Considerações finais
O reino de Murcia na primeira metade do século XIV passa por
situações que derivam de ações e decisões anteriores, como invasões
muçulmanas, conquista pelos castelhanos; conflitos entre as coroas entre
Aragão e Castela, e baixa demográfica. Eles tiveram efeito em diversos
aspectos, mas nos interessou destacar a ampliação da área para pecuária
ovina, o estímulo de produção têxtil, a comercialização interna e externa, com
importações e exportações, tanto de materiais elaborados como de matéria-
prima. Destacamos que a baixa demográfica não implicou na desvalorização

ie o e lo sa e los a dade os ue ago a e ie o de Bu gos de uest o seño el e e


ot os u hos ue e ie o e ie e della, fezie o p ego a po la çi dat o el añafil
estos o de a ie tos ue se sigue
346
da moda e nem na diminuição da ostentação no vestir, comer, habitar e
melhor aproveitar dos dias daqueles que podem fazê-lo.
O rei Afonso XI mantinha proximidade com Aragão e outras regiões,
devido à posição geográfica de Murcia, que propiciava circulação de pessoas,
com seus hábitos e costumes, o que justificava as influências diversificadas na
indumentária murciana.
As normativas suntuárias analisadas tinham a intenção de determinar
o que cada grupo da sociedade utilizaria como vestimenta e adorno. Nesse
sentido, não entendemos que as motivações fossem apenas econômicas (no
sentido de manter riquezas no reino, ou retirá-las com as altas quantidades
de importações), como aponta Daniel Roche, mas que possuem também um
objetivo real de determinar uma identificação visual, como apresenta Maria
Giusephina Muzzarelli.41 Assim, em Murcia, o controle da vestimenta teria
como objetivo a manutenção da hierarquia, por meio de um código de
aparências, o que abarca intenções socioeconômicas e também morais.
Nas leis há referências a multas: a opção da pena para a infração sugere
uma baixa eficácia das mesmas. O código de aparências não era
extremamente competente, visto que as peças eram copiadas e as regras não
cumpridas. Assim as autoridades encontravam, na ineficácia desse código, um
modo de arrecadar fundos por meio do pagamento das multas e reverter em
benefícios para a cidade.
Concluímos que a normativa suntuária de Murcia de 1332 nos
permite perceber o alcance que possuem a pecuária, a produção têxtil, o
comércio e as diferentes formas de vida na capital. Nas leis estão refletidos
aspectos desenvolvidos a partir de cada um desses segmentos. A aparência
era um importante aspecto nessa sociedade, desse modo, vestimenta e
adornos de modo geral possuíam destaque. Nesse momento em que se
instaura a moda no sentido de variedade, o desejo de se inserir em
determinado grupo (o das camadas altas) e se diferenciar das camadas baixas
e até de distinguir-se como sujeito é tão almejado que os monarcas precisam
legislar sobre os mesmos, para manterem a sua aparência resguardada em
exclusividade. O que é feito com resultados pouco eficazes.

41Ressalta os ue estes auto es estuda a out os espaços, o leis espe ífi as. Mas, a
pa ti de seus estudos, p opo ho ue algu as de suas e pli aç es pode se apli adas
egi o de Mu ia da p i ei a etade do s ulo XIV.
347
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