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ANAIS DO VIII SEMINÁRIO INTERNACIONAL E XVII SEMINÁRIO

NACIONAL MULHER E LITERATURA: TRANSGRESSÕES,


DESCENTRAMENTOS, SUBVERSÃO

Salvador
2018
Comissão Nacional

Cláudia de Lima Costa (UFSC)


Constância Lima Duarte (UFMG)
Ivia Iracema Duarte (UFBA)
Izabel F. O. Brandão (UFAL)
Lúcia Osana Zolin (UEM)
Márcia de Almeida (UFJF)
Maria da Conceição C.de Medeiros G. Matos Flores (UnP)
Ria Lemaire ( Université de Poitiers - França)
Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
Rosana Cássia Kamita (UFSC)
Sandra Maria Pereira Sacramento (UESC)
Sandra Regina Goulart Almeida (UFMG)
Susana Borneo Funck (UFSC)

Comissão Organizadora Local

Alvanita Almeida Santos (ILUFBA)


Márcio Ricardo Coelho Muniz (ILUFBA)
Milena Britto de Queiroz (ILUFBA)
Nancy Rita Ferreira Vieira (ILUFBA) – Coordenadora do evento
Risonete Batista de Souza (ILUFBA)
Rosa Borges dos Santos (ILUFBA)

S471 Seminário Internacional (8.: 2017: Salvador).


Anais do VIII Seminário Internacional e XVII
Seminário Nacional Mulher e Literatura: transgressões,
descentramentos, subversão, de 17 a 20 de setembro de
2017. – Salvador: UFBA, 2018.
633 p.

ISBN 978-85-8292-167-8

1. Mulheres na literatura - congresso. 2. Mulher e


Literatura. I. Título. II. Seminário Nacional Mulher e
Literatura: transgressões, descentramentos, subversão (17.
: 2017, Salvador).

CDU 82-055.2(062.552)

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Sandra Batista de Jesus – CRB-5/ 1914
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 8
Nancy Rita Ferreira Vieira (UFBA)

DEPOIMENTO DE ESCRITORAS 10
Natália Borges Polesso

I- LITERATURA CONTEMPORÂNEA: DESCENTRAMENTOS, 12


VIOLÊNCIA E TRANSGRESSÕES

Kambili e Ifemelu – Representação, Voz e Identidade Feminina – Relações de 12


Alteridade nos Romances Hibisco Roxo e Americanah de Chimamanda Ngozi
Adichie
Ana Claudia Oliveira Neri Alves (UESPI)
Algemira de Macedo Mendes (UESPI)

A Ficcionalidade do Pertencimento ou Como Viver Entre Mundos 19


Ana Cristina Dos Santos (UERJ)

Haunted by the Past: questions of identity and trauma in Edwidge Danticat’s 32


The Dew Breaker
Carolina De Pinho Santoro Lopes (UERJ)

Outros Percursos da Escrita: “3 Poemas com o Auxílio do Google”, de Angélica 42


Freitas
Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)
Susana Souto Silva (UFAL)

Tradição e Modernidade em Niketche, de Paulina Chiziane, e Desobediência, de 55


Licínio Azevedo
Jéssica Fabrícia da Silva (UNICAMP)

A Escrita Feminina no Caribe Anglófono Pós-Colonial 62


Livia Maria Bastos Vivas (Universidade do Minho)

A Violência de Gênero no Romance As Parceiras 74


Maria Juliana de Jesus Santos (UFS)

“Eu Sofri um Acidente e o Bebê se Foi...”: Violência Doméstica em Hibisco roxo, 85


de Chimamanda Ngozi Adichie
Mariana Antônia Santiago Carvalho (UFC)
Edilene Ribeiro Batista (UFC)

Blogs e a Prática da Escrita de Autoria Feminina em Espaço Digital 92


Naiana Pereira de Freitas (UFBA)

Representação de Gênero nas Personagens Femininas em O Matador, de Patrícia 103


Melo
Naira Suzane Soares Almeida (UESPI)
Escrita feminina de autobiografias na contemporaneidade: uma análise de Não 115
sou uma dessas, de Lena Dunham
Paula Cristina Janay Alves Oliveira (UFBA)

São todas Marias: a violência contra a mulher em Desesterro, de Sheyla 127


Smanioto
Paula Queiroz Dutra (UnB)

Tecendo o Entrelaçamento de Gênero e Raça: uma Reflexão sobre a Escrita de 135


Conceição Evaristo
Tailane de Jesus Sousa (UFBA)

Diáspora e Hibridismo: o Retorno a uma Antígua Desconhecida em My Brother, 143


de Jamaica Kincaid
Walter Cruz Caminha (UERJ)
Leila Assumpção Harris (UERJ)

II - AUTORIA FEMININA, RESGATE E HISTÓRIA 155


Júlia Lopes de Almeida e Amélia Carolina de Freitas Bevilaqua: entre O 155
Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914) e a Academia Brasileira de Letras
Ângela Maria Rodrigues Laguardia (CLEPUL - Centro de Literaturas e Culturas
Lusófonas e Europeias da Faculdade Letras da Universidade de Lisboa)

Lutas do Coração de Inês Sabino: a Inserção Feminina na Teia Literária 163


Brasileira
Antonia Rosane Pereira Lima (UEFS)

Jacinta Passos e Ingrid Jonker: Solidariedades Poética, Biográfica e Política 171


Beatriz Azevedo Silva

A Distopia de Mary Shelley em The Last Man: Impressões sobre Pioneirismo 182
Feminino Distópico no Século XIX
Janile Pequeno Soares (UFPB)

Catherine Morland e os Papéis de Gênero em Jane Austen: uma Leitura Crítica 193
de A Abadia De Northanger
Lailla Mendes Correia (UESB)

As Contribuições da Literatura Feminina para a (Re) Escrita da História da 200


Bahia
Márcia Barreiros (UNEB)

Letra de Mulher: Transgressões, Exclusões e Reações em Mato Grosso 213


Marli Terezinha Walker (IFMT)
O Feminino e o Fantástico na Obra A Rainha Do Ignoto de Emília Freitas 221
Suellen Silva (UNIFESSPA)

III - SUBVERSÕES E RESISTÊNCIAS EM NARRATIVAS DE MULHERES 233


Feminismo e Representação em Nawal El Saadawi 233
Fernanda Nery (UFBA)

O Moderno e o Marginal: Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar na Subversão 241


do Modelo Tradicional de Mulher
Flavia Viana Pontes (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Anawe mulheres indígenas no Brasil: literatura de autoria/autonomia 254


Flaviane Gonçalves Borges (UFBA)

Madres en Lucha: a Representação do Conflito Armado Interno do Peru em 266


Rosa Cuchillo (1997), de Oscar Colchado Lucio
Jirlaine Costa dos Santos (UFBA)

Narrar e Recontar: a Narrativa de Paulina Chiziane como Forma de Liberdade 273


e Resistência
Márcia Costa (UEFS)

Discussões sobre Mobilidade e Subversão da Identidade em Recollections of my 279


Life as a Woman, de Diane Di Prima
Maria Clara Santos (UnB)

Opressão e Resistência no Entre-Lugar no Conto The Arrangers Of Marriage 289


Raquel Nunes (UFAL)

IV - CORPO, DESEJO E EROTISMO NA ESCRITA DE MULHERES 312


A Ménagère e a Bacante: Corpo e Desejo em Júlia Lopes de Almeida 312
Gabriela Simonetti Trevisan (UNICAMP)

Espiral do Corpo: Autoficção como Resistência em Domingo de Revolución de 321


Wendy Guerra
Marcella de Paula Carvalho (PUC-Rio)

Corpo de Mulher Negra: Infância e Maternidade Roubadas, em Conceição 335


Evaristo e Cristiane Sobral
Mirian Cristina dos Santos (UFJF)

(Ac)cursed affections: lesbian existence in Nicole Dennis-Benn’s Here comes the 345
Sun
Natália Affonso (UERJ)
A Mística do Desejo: a Poesia Mundanodivina de Adélia Prado 355
Paloma do Nascimento Oliveira (UFPB)

Filha, Mãe, Avó e Puta: a História de Uma Mulher 366


Renata de Melo Gomes (UESC)

Thank You, Barbie!: O Não-Lugar do Corpo Velho na Sociedade 385


Contemporânea
Renata Cristina Sant’Ana (UFJF)

“Un Pasaje a Otra Dimensión”: Deslocamentos e Identidades em La Virgen 398


Cabeza, de Gabriela Cabezón Cámara
Renata de Souza Spolidoro (UERJ)
Ana Cristina dos Santos (UERJ)

Corpo e Erotismo na Poética Colasantiana: Questões de Gênero e Literatura 406


Tássia Tavares de Oliveira (UFCG)

V - REPRESENTAÇÕES FEMININAS NO TEATRO E NO CINEMA 418

María Antonia: Transgredir é morrer fisicamente, porém sobreviver na 418


memória
Alen das Neves Silva
Marcos Antônio Alexandre

Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas: a representação da mulher 434
negra no teatro brasileiro contemporâneo
Alessandra Aparecida Muniz Dornelas

Nivalda Costa: “Para Rasgar um Silêncio” (Escrita Subversiva e Práticas de 442


Resistência)
Débora de Souza (UFBA)
Rosa Borges dos Santos (UFBA)

Leituras de um Feminino Subversivo na Dramaturgia Baiana dos Anos Setenta 454


Isabela Araújo Calmon (UFBA)

Será que Ela Volta? Uma Breve Análise sobre a Representação do Feminino e 465
do Materno nas Obras Cinematográficas Laranja Mecânica (1971) e Que Horas
Ela Volta? (2015)
Louise Emilie Nascimento Marques Pinto (UESC)
Renata de Melo Gomes (UESC)

Hitchquotes 479
Luiz Souza (UFBA)

Thelma & Louise: a Figura da Morte e os Discursos Prescritos do Feminino 487


Marcos Vinícius das Neves (UFBA)
Vozes Femininas na Dramaturgia Baiana sob Censura: Cleise Mendes, Jurema 498
Penna e Nivalda Costa
Rosa Borges dos Santos (UFBA)

VI - REPRESENTAÇÕES FEMININAS 511

A Metamorfose de Flora: Mito e História em Na Praia, de Ian Mcewan 511


Ana Claudia Aymoré Martins (UFAL)

(Des)Afetos na Poética de (Re)Existências de Rita Santana e Sónia Sultuane 519


Ana Rita Santiago (UFRB)

Rachel e Dôra: Semelhanças e/ou Dessemelhanças entre Criadora e Criatura 532


Andréa Andrade Oliveira Prado (UESB)
Adriana Maria de Abreu Barbosa (UESB)

A Construção de Bertoleza de O Cortiço a partir das Interseccionalidades de 544


Raça, Gênero e Classe
Gabriela de Sousa Costa (UFC)

As Manifestações do Fluxo de Consciência em A Paixão Segundo G.H. de 568


Clarice Lispector
José Rosa dos Santos Júnior (UFBA)

Narrador e personagem: um breve estudo sobre a voz da mulher no texto 577


literário
Juliana Ribeiro Carvalho (UFSE)

Representações Femininas em A Muralha de Dinah Queiroz 587


Mônica Cardoso Silva (UESPI)
Algemira De Macedo Mendes (UESPI)

O Vertiginoso Pulsar da Vida: Verão dos Infiéis (1968), de Dinah Silveira de 596
Queiroz, uma História de seu Tempo
Sarah Pinto Holanda (UFC)

Representação da Mulher Reprimida no Conto “Senhor Diretor” de Lygia 607


Fagundes Telles
Thaíla Moura Cabral (UEFS)

Gregório de Matos e Soror Juana Inés de La Cruz: o perfeito inverso barroco 614
Thalita Gadêlha (UFPB
8

APRESENTAÇÃO

O VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura:


Transgressões, Descentramentos, Subversão, realizado entre os dias 17 a 20 de setembro de
2017, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, congregou pesquisadoras (es)
de diversas universidades brasileiras e estrangeiras, escritoras locais, nacionais e estrangeiras,
professoras (es), participantes de diversos países, estudantes de graduação e de pós-
graduação. A forte presença de inscritos enfatizou a ampliação do interesse por este campo de
investigação e revela, para além do crescimento inconteste, a legitimação dos estudos
temáticos na área da crítica feminista, dos estudos acerca da mulher e da literatura, iniciados,
no Brasil, há 32 anos, por um conjunto de pesquisadoras, dentre as quais destaco Zahidé
Lupinacci Muzart (in memoriam), Suzana Bornéo Funck, Rita Terezinha Schmidt, Constância
Lima Duarte, Nádia Battella Gotlib, Heloísa Buarque de Hollanda.
O formato do seminário adotado para o XVII encontro nacional (VIII internacional)
seguiu o viés adotado pelos eventos anteriores, qual seja, a de divulgação das pesquisas
realizadas nas universidades brasileiras e estrangeiras pelas (os) integrantes do GT da
ANPOLL - A mulher na literatura, acrescido da participação de comunicadores,
conferencistas, convidados especiais, ouvintes, docentes, estudantes de graduação e de pós-
graduação de mais de dezenove estados brasileiros.
É com muita satisfação, portanto, que resgatamos a tradição de publicar os Anais do
Seminário Mulher e Literatura, com a presença de mais de 50 comunicações apresentadas no
evento. A abrangência da participação revela a diversidade de interesses em torno da mulher e
da literatura. Infelizmente nem todos os participantes atenderam ao nosso chamado de envio
dos textos ou puderam enviá-los no prazo estipulado para publicação.
O presente livro traz os anais do seminário organizados em torno das confluências
temáticas estabelecidas pelos nexos Transgressões, Descentramentos, Subversão e tem por
intenção divulgar trabalhos relacionados à literatura de autoria feminina, pesquisas na área de
Teorias e Críticas Feministas, dos Estudos de Gênero, de Resgate, de Representação de
Gênero na Literatura e Outras Linguagens, permitindo a expansão de visões e perspectivas
norteadoras dessa área de estudos, bem como contribuir para a ampliação do referencial
teórico e a disseminação do pensamento crítico construído..
Salienta-se aqui o nosso especial agradecimento às pesquisadoras estrangeiras e de
outras instituições brasileiras que acolheram aos nossos convites e tiveram presença honrosa e
amiga no Seminário. O Seminário contou com a presença das escritoras Cidinha da Silva,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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Lívia Natália, Luciany Aparecida Alves, Manuela Lunati, Natália Borges Polesso, Rita
Santana, as quais agradecemos imensamente.
Registramos aqui nosso especial agradecimento a todas (os) aqueles que contribuíram
para a realização deste evento, em especial, ao Instituto de Letras, através de sua diretora,
Profa. Dra. Risonete Batista de Souza; à dedicação entusiasta dos colegas: Alvanita Almeida
Santos, Milena Britto, Rosa Borges dos Santos, Márcio Ricardo Muniz, coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura; à monitora Bianca Rios, pela digitação e
organização do material, aos funcionários e alunos da graduação e da pós-graduação pelo
apoio. À Flávia Goulart Rosa, diretora da EDUFBA, pelo apoio e publicação de todo o
material gráfico.
Agradecemos ainda o apoio da CAPES, do CNPQ, da FAPEX, que contribuíram para
que o evento pudesse ser concretizado, bem como à UNEB, na pessoa do Prof. Dr. Paulo
César Garcia; à UCSal, na pessoa da Profa. Dra. Liliane Vasconcelos; à SECULT-Ba, na
coordenadora de Literatura, Karina Rabinovitz. Aos professores Luciany Aparecida Alves
(UNEB), Jecilma Alves Lima (IFBA) e Luís Souza (UFBA) agradecemos pelo oferecimento
dos minicursos durante o evento.
Que os textos aqui reunidos venham a contribuir para o acesso às pesquisas realizadas
no âmbito dos estudos feministas, de gênero, da escrita das mulheres e/ou de suas
representações, em particular na literatura, mas também no cinema e no teatro, possibilitando
o diálogo profícuo, a reflexão interdisciplinar e o desenvolvimento de discussões de ordem
acadêmica – e porque não – política de um novo olhar acerca da produção das mulheres.

Nancy Rita Ferreira Vieira


Coordenadora do VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e
Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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DEPOIMENTO DE ESCRITORA

Natalia Borges Polesso

Por ocasião do Seminário Mulher e Literatura, realizado em setembro de 2017, na


UFBA, e a convite de Milena Britto, compartilhei uma mesa de debate com Luciany
Aparecida, Manuela Lunati e Ana Luisa Amaral, a mediação foi de Mônica Menezes. Eu
estava em Salvador para dar uma oficina de escrita na FUNCEB. A ponte até a universidade
foi feita pela querida Karina Rabinovich, que coordenou o projeto que, para além de trabalho,
me fez conhecer pessoas incríveis. Era uma tarde quente, tocada a ar condicionado. Meu
corpo ainda não conhecia o calor do nordeste, era a primeira vez que eu pisava ali, o que foi
muito emocionante. Me disseram que nem estava quente nada, mas para mim estava.
No evento, participei como ouvinte das mesas de debate que tinham por foco trabalhos
de mulheres lésbicas e me deixou muito contente ver meu Amora ser debatido por ali. Outra
agradável surpresa foi ver entrar naquela mesma sala Cidinha da Silva, com quem eu já
conversava pelas redes. Ela, muito séria, perguntou se eu sabia que ela era ela e eu respondi
que sim. Depois ela fez algumas críticas a repercussão do meu trabalho, dizendo que aquilo
ela já havia feito e que possivelmente não estariam olhando direito para seu trabalho.
Concordei. De volta ao sul, li muito da produção de Cidinha – ela mesma gentilmente me
cedeu seus livros – e entendi as críticas. Desde então, tenho trabalhado cada vez mais para a
visibilidade de escritoras. É claro que nosso contato não ficou apenas na literatura e na
academia, dividimos também passeios e um jantar, e me alegra muito dizer que isso nos
aproximou.
Mas antes disso tudo, na mesa de debate mesmo, fomos perguntadas como era
escrever naquele momento nos nossos países e fora dele. Chegamos a conclusão de que
escrever era necessário, como escrever seria outra preocupação, mais pessoal, mais
atravessada por questões íntimas. Assim, ouvi atentamente quando Manuela Lunati começou
a falar sobre suas personagens mulheres, em cenários impossíveis, destruídos pela guerra,
suas personagens que estavam também destruídas por guerras pessoais. Nunca estive dentro
de uma catedral desmoronada, a não ser pela ficção da autora. Suas descrições me levaram ao
lugar narrado e me fizeram sentir sua necessidade de escrita. Depois, Luciany Aparecida leu

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um conto de Ruth Ducaso, seu alter ego literário. O desconforto com a leitura foi imediato. A
posição que narradora-mãe tomou para narrar a tortura infligida a um filho-bobo foi algo que
me ensinou muito sobre deslocamento. Me ensinou a pensar em como podemos tomar
distância para escrever sobre questões que nos tiram do nosso lugar seguro. Para Antônio
passou a fazer parte de minhas oficinas: narrador distante, eu digo. Distante de quem?, Ruth
perguntaria. Ainda não respondi sua pergunta, Ruth. Quando a voz ritmada de Ana Luisa
perfilou o verbo, fui lançada a imagens poderosas sobre o fogo e sobre o imo. E pensei que
era necessário também cuidar dos encontros lexicais para que as imagens nos surpreendessem,
para que existisse o arrebatamento. Era simples e poderosa, a voz. O fazer, disse ela, naquele
sotaque estalado e pesado sobre a língua, era diário. Escrever é rito e exercício, porém,
completar a escrita não era uma necessidade. Lembrei com ela, a importância do exercício, do
escrever não por sua completude de apresentar ideias, mas pelo prazer estético da criação.
Quando li um trecho de um dos meus contos, fiquei atenta ao respirar das pessoas, ao que
poderiam ali pensar sobre a menina que pensava estar doente, que pensava ter “machorra”. E
ouvi o riso e a empatia em suspiros ternos da plateia. Foi uma tarde muito agradável. De
compartilhamentos e aprendizagem. Me arrependo apenas de ter esquecido de dar logo um
exemplar de Amora para Ana Luisa. Quando fui buscá-lo na sessão de autógrafos, já não mais
havia. Me sinto um pouco incompleta por ter ficado com vergonha e não ter oferecido o livro.
Paciência. Com as outras compartilhei leituras e mais. Compartilhei praia, cadeiras, planos de
projetos, compartilhei copos e arrumadinhos com pimenta e coentro, compartilhei caruru
vegetariano, porque sou alérgica a camarão, e isso na Bahia parece ser algo a se dar atenção
mesmo, fui a igreja do senhor do Bonfim, de branco, numa sexta-feira. E comprei uma fitinha
rosa, que, agora, no final de março, ainda está aqui, ralinha no meu braço. Esperando romper
na hora certa de cumprir seu papel.
Para mim, este Mulher e Literatura foi muito especial, e digo isso porque os encontros
que tive, com mulheres pesquisadoras, me fizeram entender melhor a rede imensa que
formamos. Agradeço imenso a experiência e espero voltar logo.

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LITERATURA CONTEMPORÂNEA: DESCENTRAMENTOS, VIOLÊNCIA E


TRANSGRESSÕES

PARTICIPANTES: ANA CLAUDIA OLIVEIRA NERI ALVES; ALGEMIRA DE MACEDO


MENDES; ANA CRISTINA DOS SANTOS; CAROLINA DE PINHO SANTORO LOPES; EDUARDA
ROCHA GÓIS DA SILVA; SUSANA SOUTO SILVA; JÉSSICA FABRÍCIA DA SILVA; LIVIA
VIVAS; MARIA JULIANA DE JESUS SANTOS; MARIANA ANTÔNIA SANTIAGO CARVALHO;
NAIANA PEREIRA DE FREITAS; NAIRA SUZANE SOARES ALMEIDA; PAULA JANAY; PAULA
QUEIROZ DUTRA; TAILANE DE JESUS SOUSA; WALTER CRUZ CAMINHA.

KAMBILI E IFEMELU – REPRESENTAÇÃO, VOZ E IDENTIDADE FEMININA –


RELAÇÕES DE ALTERIDADE NOS ROMANCES HIBISCO ROXO E
AMERICANAH DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

Ana Claudia Oliveira Neri Alves (UESPI)


anaclaudianeri2@gmail.com
Drª. Algemira de Macedo Mendes (UESPI)
ajemacedo@ig.com.br

A romancista, Chimamanda Ngozi Adichie, nasceu em 15 de setembro de 1977 em


Enugu, Nigéria e foi a quinta de seis filhos. Ela cresceu em Nsukka, na antiga casa do popular
escritor nigeriano Chinua Achebe. O pai de Adichie é professor aposentado de estatística e
Vice-Chanceler Adjunto e sua mãe a primeira secretária executiva na Universidade da Nigéria
em Nsukka. Adichie estudou medicina e farmácia na mesma universidade, mas deixou a
Nigéria com a idade de dezenove anos para estudar comunicação na Universidade Drexel, na
Filadélfia, EUA. Ela prosseguiu seus estudos na Eastern Connecticut State University, se
formou summa cum laude e adicionou um mestrado em Escrita Criativa na Johns Hopkins
University, em Baltimore.
Seu primeiro romance, Hibisco Roxo, foi lançado em 2003, selecionado para o Orange
Fiction Prize em 2004 e premiado com o Commonwealth Writers 'Prize na categoria Melhor
Romance de Estreia em 2005. Além disso, o segundo romance de Adichie, Meio Sol Amarelo
(2006) e sua coletânea de contos, No seu Pescoço (2009), receberam numerosos prêmios e
nomeações. Em 2005/6 Adichie recebeu a bolsa Hodder na universidade de Princeton, e lhe
foi concedido adicionalmente à bolsa MacArthur. Na Universidade de Harvard, ela recebeu
uma outra bolsa em 2011/12, onde também terminou seu terceiro romance “Americanah”

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(2013). Atualmente, Adichie ministra e participa de oficinas de escrita criativa na Nigéria


quando não está lecionando nos EUA.
Chimamanda Ngozi Adichie é uma das mais notórias escritoras africanas da
atualidade. Suas obras literárias lidam com temas prementes como racismo, gênero, família e
outras relações, a diferença entre gerações, imigração, religião, violência, opressão e
corrupção política, mas é a inclusão de suas memórias como uma criança nigeriana e a sua
experiência pessoal como um imigrante nos EUA que fazem suas histórias tão realistas e
verossímeis. Adichie é uma das inúmeras escritoras que dá voz as mulheres em suas obras, as
experiências delas em convulsões políticas, imigração ou disputas familiares estão sendo
retratadas e os sujeitos que dividem com elas essas vivencias estão sendo representados na sua
ficção.
A maioria das personagens nas obras de Adichie encontra-se em lugares de
desconforto e deslocamento e têm de encontrar uma maneira de escapar de suas mazelas.
Cada uma das suas narrativas retrata personagens femininas que são diferentes a sua própria
maneira, que estão situadas em um lugar ou tempo diferentes e são, portanto, retratadas em
sua diversidade e não devem ser resumidas a um estereótipo de mulher pós-colonial.
Adichie revela seu talento na narração de enredos próximos do leitor internacional, ou
seja, narrativas nas quais as personagens vivem dramas individuais e coletivos dentro e fora
de seus respectivos países; de fato, o deslocamento de suas protagonistas a contextos
geográficos urbanos distantes da África é recorrente na obra de Adichie.
O romance Hibisco Roxo é narrado por Kambili Achike, uma jovem nigeriana de
classe alta que sente na vida familiar as consequências da substituição dos costumes e tradição
do seu povo por aqueles impostos pelos colonizadores e pela introdução da religião cristã no
país. Eugene Achike, pai de Kambile, é um homem extremamente severo que coloca os
dogmas da religião cristã acima de qualquer perspectiva humana tornando a convivência
familiar insuportável.
Kambili lamenta não poder assumir uma identidade mais próxima dos padrões
ancestrais de sua cultura, como fazem seus primos Amaka, Obiora e Chima, que não foram
obrigados a romper abruptamente os laços com as crenças e valores tradicionais da
comunidade. Ela também sofre não poder manter qualquer relação com seu avô paterno, Papa
Nnukwu, que é considerado um reservatório da ancestralidade local pela comunidade, mas é
rejeitado pelo próprio filho.
Para Kambili, seu pai, porém, representa algo repulsivo, no entanto respeitável.
Eugene é um símbolo do individualismo, seu mundo inteiro gira em torno de auto-afirmação,

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poder e sucesso material. Ele deseja ser a definição perfeita de um homem bem-sucedido por
mérito prórpio. E ele usa isso para intimidar sua família: “Eu não tive um pai que me
mandasse para as melhores escolas (ADICHIE, 2011, p. 49).
Dessa forma, Kambili representa a nação africana que se sente desconectada de suas
tradições culturais pela imposição de uma concepção de mundo estrangeira, ao mesmo tempo
em que se percebe preparada para assumir a própria independência. Nessa concepção, o pai
representa o colonizador, e a comunidade aculturada, que impõe sobre ela sua cultura.
Criticando os colonizadores e a oligarquia nativa que assumiu seu lugar, Ifeoma, a tia liberal
de Kambili afirma:

[...] há muita gente que acha que nós não somos capazes de governar a nós mesmos,
já que fracassamos nas poucas vezes que experimentamos, como se todos os outros
que atualmente governam a si mesmos, tivessem sucesso quando tentaram da
primeira vez. É como dizer a uma criança que está engatinhando e que está tentando
andar, mas cai de bunda, para ficar no chão para sempre. Como se todos os adultos
que estão caminhando não tivessem um dia engatinhado (Adichie, 2011, p. 301)

Há uma transformação na concepção do Estado nigeriano. No período pós-


independência britânica, o país instaura um regime ditatorial, que limitou direitos e impôs
deveres contrários aos costumes ancestrais africanos.

A condição feminina em Purple Hibiscus mostra (1) a íntima relação entre o


patriarcalismo e os mecanismos da colonização europeia e sua sucessora
formada pela burguesia nacional que detém o poder no país independente;
(2) a opressão feminina é realizada abertamente e, portanto, naturalizada e
justificada, sem nenhuma necessidade de explicações ou qualquer
manifestação de problemas éticos; (3) a liberdade física feminina que pode
ser uma camuflagem para esconder uma profunda opressão e carência da
liberdade verdadeira; (4) os obstáculos profundos que as mulheres nas
comunidades pós-coloniais e nas minorias nos países desenvolvidos ainda
encontram para conquistar a igualdade, a autonomia e a agência, apesar de
sua participação nas lutas anticoloniais ou pela igualdade de gênero; (5) a
reação feminina, às vezes extrema, a qual, devido à semelhança à opressão
do colonizador, torna-se ambígua, efêmera e inconclusa. (BONNICI, 2006,
p.23)

Kambili é uma garota de 15 anos que mora com sua família na Nigéria, ela vive na
fronteira entre a tradição e os sistemas culturais impostos pelos colonizadores, ora
reafirmando ora rejeitando os valores patriarcais. A alteridade proporcionada pelo convívio
com a família da sua tia Ifeoma, irmã de Eugene, trará para Kambili uma nova visão de si e do
ser mulher através de uma perspectiva diversa daquela vivenciada junto a sua mãe, Beatrice.
Hibisco roxo proporciona, portanto, o debate acerca da alteridade, do transformar-se a partir

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deste outro que lhe define e lhe impõe uma distância ou uma aproximação e certamente
oportuniza uma transformação.
A literatura mistura valores locais com desejos e ansiedades globais para assinalar o
que Bhabha (2007) chama de ‘espaços intersticiais’, locais nos quais as práticas pré-coloniais
não se separam da modernidade colonial, mas são mediadas através de troca mútua. Assim,
examinar literaturas coloniais e pós-coloniais é experimentar camadas de práticas inter-
relacionadas porque seus textos reconstituem culturas que são em si sobrepostas de uma
forma complexa.
Ifemelu, a protagonisa e narradora de parte do romance Americanah (2013), é uma
nigeriana de família classe média que vai estudar nos Estados Unidos após uma sequência de
greves nas universidades de seu país. Em diferentes cidades norte-americanas, começa a lidar
cotidianamente com elogios travestidos de piedade ou culpa, com preconceitos mal
disfarçados e com os gatilhos de ódio que mesmo as relações mais íntimas podem disparar
quando não apenas sua cor, mas particularmente sua origem africana se tornam marcações de
poder.
Por toda a narrativa de Americanah, Ifemelu problematiza as diferenças entre os
Estados Unidos e a Nigéria, principalmente no tocante às questões raciais e sociais, pois
apesar de ter estar em uma posição privilegiada em relação a mulheres africanas, uma vez que
já havia cursado geologia em uma universidade na Nigéria, não se viu livre de preconceito
nos Estados Unidos. No blog no qual ela relata sua experiência de imigrante nigeriana nos Estados
Unidos, a protagonista escreve:

Querido negro Não-americano, quando você escolhe vir para os Estados Unidos,
vira negro. Pare de argumentar. Pare de dizer que é jamaicano ou ganense. A
América não liga. E daí se você não era negro no seu país? Está nos Estados Unidos
agora. Nós todos temos nosso momento de iniciação na Sociedade dos Ex-Crioulos.
O meu foi na faculdade, quando me pediram para dar uma visão negra de algo, só
que eu não tinha ideia do que aquilo significava. Então, simplesmente inventei. (…)
Se estiver falando com uma pessoa que não for negra sobre alguma coisa racista que
aconteceu com você, tome cuidado para não ser amargo. Não reclame. Diga que
perdoou. Se for possível, conte a história de um jeito engraçado. E, principalmente,
não demonstre raiva. Os negros não devem ter raiva do racismo. Se tiverem,
ninguém vai sentir pena deles. (ADICHIE, 2013, p. 239)

A narrativa se desenvolve em um espaço narrativo fragmentado, o enredo não é linear


e percorre a Nigéria, os Estados Unidos e a Inglaterra na trajetória da americanah. Além de
Ifemelu, a maioria dos personagens faz parte de um contexto acadêmico e/ou politizado em
constante debate intelectual burguês sobre os tópicos raciais e étnicos, seja nos Estados
Unidos ou na Europa.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
16

O texto busca representar a inferioridade imagética da mulher negra africana em solo


norte-americano e discute os elementos que formam as identidades tidas como hegemônicas
que ainda são impostas às mulheres das ex-colônias. Ifemelu enfrenta inúmeros desafios,
principalmente, por sua condição de imigrante, mulher e negra: “Eu sou de um país onde raça
não é um problema; eu não pensava em mim mesma como negra e só me tornei negra quando
vim para os Estados Unidos.” (ADICHIE, 2014, p. 315)
No início de sua história, Ifemelu é retratada como uma mulher rara que não esconde
que é bastante segura em seu próprio senso de atração e valor. Mas Adichie habilmente
mostra como o racismo trabalha para minar o seu senso de confiança com toda a apatia das
observações e olhares cotidianos sobre seu cabelo e o que as pessoas consideram como sua
projeção de africanidade, de migração ao longo de linhas de gênero: como monstruosa a
situação pode ser para os negros e pardos que viajam para os EUA ou Europa.
Dada sua personalidade forte, seu senso crítico e sua ‘língua afiada’, Ifemelu começa
um blog intitulado: “Recteenth ou Observações Diversas sobre Negros Americanos
(Antigamente Conhecidos como crioulos) Feitas por uma Negra Não Americana” (ADICHIE,
2014, p. 07) – no qual faz relatos e observações acerca das questões raciais, principalmente
sobre o apagamento da cultura africana junto à comunidade negra americana e a invisibilidade
social da mulher negra. Através das postagens no blog, Ifemelu pode liberar seu lado mais
polêmico e fazer valer suas opiniões e sua voz:

Ao descrever as mulheres negras que você admira, sempre use a palavra FORTE,
porque nos Estudos Unidos, é isso que as mulheres negras devem ser. Se você for
mulher, por favor, não fale o que pensa como está costumada a fazer em seu país.
Porque nos Estados Unidos, mulheres negras de personalidade forte dão MEDO.
(AICHIE, 2013, p.240)

Ifemelu torna um olhar questionador sobre colegas imigrantes nigerianos também, que
conversam nostalgicamente em fóruns on-line sobre uma pátria que eles realmente conhecem
mais. Estes nigerianos economizam para viagens de volta para casa durante as férias, quando
eles enchem suas famílias com sapatos e relógios comprados nos Estados Unidos na
esperança de fazer seus parentes parecerem um pouco mais americanos. Em uma das
postagens do seu blog, direcionada aos negros imigrantes como ela, Ifemelu dispara:

Querido Negro Não Americano, quando você escolhe vir para os Estados Unidos,
vira negro. [...] você é negro, baby. Essa é a questão de se tornar negro: você tem
que se mostrar ofendido quando palavras como “farofeiro” e “tiziu” são usadas de

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17

brincadeira, mesmo que não tenha ideia do que está sendo dito. (ADICHIE, 2014, p.
239)

Ainda mais triste, Ifemelu vê em nigerianos que vivem nos EUA, como ela, um
excesso de vontade de abraçar os padrões do seu novo país, especialmente em matéria de raça
e etnia. Quando a tia de Ifemelu, Uju, que acaba de receber papéis para exercer a medicina
nos Estados Unidos, diz que precisa desfazer as tranças e alisar seu cabelo por causa das suas
entrevistas de trabalho para que os empregadores americanos a vejam como mais profissional,
Ifemelu pergunta se não há médicos com cabelo trançado nos EUA. Uju rebate: "Você está
em um país que não é o seu próprio. Você faz o que tem que fazer se você quiser ter sucesso”
(ADICHIE, 2014, p. 69).

A realidade é que o cabelo alisado está vinculado historicamente e atualmente a um


sistema de dominação racial que é incutida nas pessoas negras, e especialmente nas
mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não somos belas.
(HOOKS, 2005, p.8)

A perplexidade diante do cabelo das mulheres negras desempenha um grande papel


neste romance. Hall (2003, p. 83) comenta que “as comunidades migrantes trazem as marcas
da diáspora, da ‘hibridização’ e da différance em sua própria constituição”. Este é um
exemplo inerente à globalização, pois Hall (2003, p. 59) afirma que “a globalização é um
processo homogeneizante, (...), estruturado em dominância, mas não pode controlar ou saturar
tudo dentro de sua órbita”.

Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é


evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas
afeta o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma
presença autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. As preferências
individuais (estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem escamotear a
realidade em que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete
psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista. (HOOKS, 2005,
p.05)

Adichie denuncia as tensões sociais transindividuais que afetam, na


contemporaneidade, o negro nos EUA, nativo ou imigrante, e de modo especial, a mulher
diaspórica. Para Bell Hooks (2005), “O salão de beleza era um espaço de aumento da
consciência, um espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias,
atribulações, fofocas – um lugar onde se poderia ser acolhida e renovar o espírito.” Quando
Ifemelu vai ao salão de tranças em Trenton ela faz uma pequena reflexão sobre esse espaço
comunal de mulheres africanas:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
18

Elas olharam para Ifemelu, querendo que concordasse, aprovasse. Era o que
esperavam naquele espaço compartilhado de africanidade delas, mas Ifemelu não
disse nada e virou a página do livro. Tinha certeza de que iam falar mal dela depois
que fosse embora. Aquela menina nigeriana se acha muito importante por causa de
Princeton. Iam rir de desprezo, mas apenas de leve, por que ela ainda era uma irmã
africana, apesar de ter perdido brevemente o rumo. (ADICHIE, 2014, p.114)

Percebemos a representação do poder feminino em novas rupturas e intervenções pelas


quais a mulher negra, encontra sua identidade e ousa propagar sua voz e tomar seu lugar
autônomo no mundo contemporâneo.
Em Americanah, constatamos os resíduos da herança colonial agora oriundos da
globalização e do neoimperialismo americano e da tentativa de supressão do
multiculturalismo. Concomitantemente, em personagens como Ifemelu, percebemos a forte
representação do poder feminino em novas rupturas e intervenções pelas quais a mulher negra
diaspórica ousa propagar sua voz e tomar seu lugar autônomo no mundo contemporâneo.
A autora usa o debate sobre a alteridade como um caminho para compreender as
questões sociais e culturais africanas contemporâneas. A partir das relações pessoais e sociais
vividas pelas personagens, Chimamanda busca desconstruir estereótipos sobre os sujeitos
africanos e, dessa forma, construir uma nova identidade para esses sujeitos perante os olhos
do mundo.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. Trad.: Julia Romeu. São Paulo: Companhia
Das Letras, 2011 [2003].

_______________. Americanah. São Paulo: Companhia Das Letras, 2014 [2013].

BONNICI, Thomas .O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed.


Maringá: Eduem, 2012.

BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Trad: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima
Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 4.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik;


Tradução Adelaine La Guardia Resende...let all. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasilia:
Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

HOOKS, Bell. Alisando nosso cabelo. in Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y
Artista de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.
<http://www.criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf>
acessado em: 29/07/2016

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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A FICCIONALIDADE DO PERTENCIMENTO OU COMO VIVER ENTRE


MUNDOS

Dra Ana Cristina dos Santos (UERJ/UVA)


E-mail: anacrissuerj@gmail.com

Estar no mundo, hoje, é conviver com os diversos deslocamentos territoriais em forma


de movimentos migratórios, diásporas, exílios, turismo e também com todas as implicações
que esses deslocamentos acarretam no sujeito e na própria sociedade. Não que esses
movimentos sejam uma característica específica do momento atual, eles são parte intrínseca
da história do Ocidente, pois não podemos pensar as suas sociedades sem os diversos
deslocamentos que as formaram. Contudo, na contemporaneidade, existe uma intensificação
desses deslocamentos provocados por diversos motivos que vão desde a maior facilidade em
viajar e em trabalhar ou estudar no exterior até a saída de um grande número de pessoas
provocada pelas guerras civis. Em todo esse vaivém, temos a sensação de que as distâncias
diminuíram entre um lugar e outro e de que as fronteiras entre os países se diluíram.
Sentimento intensificado pelos meios de transportes que nos permitem chegar mais rápido aos
lugares. Esses deslocamentos territoriais contribuem para que, na concepção de Castells
(1999), pensemos a sociedade atual em termos de territorializações e reterritorializações,
mobilidades urbanas, de não lugares intercambiáveis, de cidades globais que privilegiam o
que se move, se desloca e flui1. Ao considerarmos esse cenário, percebemos que não é casual
o fato de o cenário literário e a crítica contemporânea privilegiarem, também, as narrativas
que mapeiam as diversas formas de deslocamento e que colocam em evidência os sujeitos em
trânsito.
Dentro dessa perspectiva, um dos temas mais marcantes no cenário literário latino-
americano contemporâneo é a estrangeiridade, seja como autoria ou como tema. Como autoria
está marcada por um grupo de escritores desterritorializados que escrevem e publicam suas
obras fora de seus países de origem e, muitas vezes, na língua do país de chegada2. Seus
textos se situam no tempo presente, no espaço urbano das cidades cosmopolitas e retratam
sujeitos moventes e desenraizados (como eles próprios) que manifestam o viver entre dois

1
O teórico Néstor García Canclini (2009, p. 4-5) não está de acordo de que a sociedade atual deve ser vista como
em constante movimento. Afirma que essa exaltação do nomadismo como uma ideologia da época
contemporânea ocorre pelo crescimento do turismo e de outros tipos de viajes. Para ele, essa ideia de sociedade
em movimento é insustentável, já que a maioria das pessoas não migra, não é bilíngue e continua valorizando o
seu lugar geográfico e a sua língua nativa, enfim, são sedentárias e não nômades. Contudo, penso que a
facilidade em locomover-se entre cidades e países, nos dias de hoje, é o que contribui para essa impressão.
2
À guisa de exemplificação podemos citar os escritores Anna Kazumi Stahl; Nela Rio e Sergio Kokis.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
20

mundos: o do país de origem e o do país de chegada. A estrangeiridade vivida por esses


autores permite o vínculo não só com a língua do país de chegada, mas também com
paisagens culturais e memórias identitárias diferentes das que possuíam no país de origem.
Assim, no país de chegada esses escritores criam novos mecanismos de identificação
que não coincidem com os já existentes. De tal forma que precisam romper com os vínculos
sempre existentes entre a língua e a cultura do indivíduo e o seu lugar de origem. Agora, eles
as utilizam em outro espaço, fora do território de origem, onde elas entram em contato com
outras relações linguísticas e culturais próprias do país de chegada. Com isso, necessitam
estabelecer novas relações entre língua, identidade e pertencimento que desestabilizam as já
existentes. Como consequência, em suas narrativas manifestam essas novas relações
linguísticas e culturais, externando o viver entre duas línguas e duas culturas e, como tal,
ressignificam os conceitos de cultura e identidade nacionais e, por conseguinte, o próprio
espaço da literatura nacional. A teórica Zilá Bernd (2010, p. 16) nomeia a essas narrativas de
transnacionais e acrescenta que há nelas um jogo identitário móvel e múltiplo, já que seus
autores aceitam o heterogêneo e recusam as “definições identitárias fechadas e circunscritas a
um só quadro de referências”.
Já como tema, a estrangeiridade aparece tanto em narrativas de escritores que vivem
fora do país de origem quanto nos que nunca deixaram o país natal. São obras que retratam as
experiências de viagens, migrações e exílio de suas personagens que, por circularem por
diversos territórios, não se reconhecem mais no espaço em que ocupam e problematizam o
sentimento de pertença: são personagens traduzidas que pertencem tanto aos espaços de lá
como aos de cá. Essas obras exprimem a crise do sujeito contemporâneo que, em constante
trânsito e em contato com o outro, precisa negociar e renegociar constantemente os seus
processos de identificações. Por ser assim, a estrangeiridade como tema está diretamente
relacionada com a transformação da subjetividade, pois, como nos explica Ianni (2003, p. 14)
o deslocar-se “desvenda alteridades, recria identidades e descortina pluralidades”.
Essa relação entre o deslocamento e as constantes negociações culturais e identitárias
dos sujeitos em trânsito é tema presente, especificamente, nas narrativas de escritoras
contemporâneas que, por escolha ou por questões políticas, migraram e passaram a viver em
outros países. Os encontros e os desencontros entre a cultura do país de partida e a do país de
chegada transformam essas escritoras em sujeitos descentrados, possuidores de identidades
móveis, híbridas e traduzidas. A partir da experiência do deslocamento, elas problematizam a
questão do pertencimento e da subjetividade pessoal e nacional em suas obras e criam
personagens que, como elas, também habitam espaços de movência em um processo

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
21

constante de desenraizamento, como é o caso da escritora objeto de nosso trabalho, Patricia


Cerda.
A autora é chilena de nascimento e viveu no Chile até 1986, quando foi fazer
doutorado em História na Universidade de Berlim, na Alemanha, e passou a viver nesse país,
entre as cidades de Berlim e Munique. Constantemente visita o país natal (segundo entrevistas
vem ao Chile, pelo menos, duas vezes ao ano). Em 2013, com o motivo de completar 25 anos
vivendo na Alemanha, publicou o seu primeiro livro de contos intitulado Entre mundos, que,
nas palavras da própria autora, trata de “Una destilación de los pensamientos que fueron
naciendo en el extranjero… cómo me ves y cómo te veo y de las experiencias de la mitad de
una vida fuera de mi país. Escritos en algún lugar lejano, desde del centro de mí misma”
(CERDA, 2012, Orelha do livro. Grifo da autora) 3.
Sob essa perspectiva de viver metade de sua vida fora do país de origem, Patricia
Cerda, com a obra Entre mundos (2013), apresenta o deslocamento e as questões identitárias
como um princípio produtivo - fonte e motivo - dos contos. Tal fato possibilita tanto a análise
e a discussão das relações de pertencimento, quanto à problematização do “viver em trânsito”
das personagens e suas ambiguidades culturais que acarretam, com base nas experiências do
deslocamento, negociações identitárias plurais. Dessa forma, os contos de Cerda nos permite
refletir sobre as novas relações com o espaço que resultam das experiências femininas de
deslocamentos e reterritorialização e suas consequências para a (re)construção identitária do
sujeito feminino.
A obra está composta por sete contos. Os espaços da narrativa são as cidades
cosmopolitas de Santiago de Chile e as de Berlim e Munique (as mesmas pelas quais circulam
a autora). As personagens, de várias nacionalidades, são sujeitos migrantes pelos espaços
urbanos das duas cidades alemãs ou apenas em trânsito por Santiago. Há quatro características
comuns em todos os contos que os une em torno do tema do deslocamento: o protagonismo
feminino; a presença do cosmopolita pobre4; a ditadura chilena como pano de fundo e a
formação de uma comunidade cosmopolita no país de chegada.
A primeira característica que destaco é o protagonismo feminino. As personagens
femininas são as que têm voz nas narrativas5. É por meio de suas ações que as narrativas
acontecem. São elas que se deslocam para outros países, muitas vezes sozinhas, e
3
Em 2016, a autora publicou o romance histórico Mestiza.
4
Conforme conceito difundido por Silviano Santiago (2016).
5
Segundo Dalcastagnè (2010, p. 52), o protagonismo feminino nos contos ou romances, isto é, a posição de
narradoras está relacionada ao sexo do autor da obra: “Os dados demonstram que a possibilidade de criação de
uma personagem feminina está estritamente ligada ao sexo do autor do livro. Quando são isoladas as obras
escritas por mulheres, há uma ampliação significativa da presença de personagens do sexo feminino”.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
22

protagonizam a formação de novos vínculos sociais no e pelo movimento espacial. São elas,
também, as responsáveis por mudar os seus próprios destinos ou o das pessoas que circulam
em volta delas:
Camila había descubierto de pronto algo nuevo y posible y Mariluz la secundaba con
entusiasmo. También ella estaba sola. Camila y Mariluz pertenecían a una
generación de mujeres chilenas que tuvo tiempo hasta sus treinta años para contraer
matrimonio. Una generación de mujeres que se entregaban vírgenes a sus maridos; si
habían elegido mal, no les quedaba más alternativa que conformarse. Una
generación para quienes la viudez significaba necesariamente el inicio de la soledad.
[…] Así fue como Camila subió al avión que la llevaría a Atenas. (CERDA, 2013, p.
45-6. “Sócrates en el bolso de mano”) 6

As personagens masculinas, quando presentes na obra, ocupam espaço secundário ou


são apenas mencionadas, muitas vezes não têm nem voz na narrativa. A escolha pelas
personagens femininas desterritorializadas nas obras da autora não me parece aleatória, mas
em consonância com uma das características da escrita de autoria feminina contemporânea. Se
seguimos as reflexões da crítica feminista Spivak (1996 apud ALMEIDA, 2010, p. 13) sobre
o caráter gendrado das diásporas contemporâneas e a feminização dos movimentos globais,
vemos que os deslocamentos atuais nas cidades cosmopolitas se distinguem dos anteriores
justamente pela presença da mulher que é o elemento diferenciador desse deslocamento. Se
antes as mulheres migravam para acompanhar seus maridos, agora, elas empreendem
processos migratórios autônomos por motivos laborais ou econômicos. Hoje, as mulheres
ganham destaque nesses movimentos migratórios pelos papéis sociais desempenhados e pelas
participações, cada vez mais pujantes, no mercado de trabalho. Dessa forma, a produção
literária de autoria feminina contemporânea acompanha essa feminização dos fluxos
migratórios e retrata personagens femininas diaspóricas, que vivem em processos de
desterritorialização e reterritorialização (muitas vezes como as próprias autoras), em que o
entre-lugar e o hibridismo cultural são marcas predominantes.
Heloísa Buarque de Hollanda (2005, p. 17), em seu artigo “Os estudos de gênero e a
mágica da globalização”, também aponta a mulher contemporânea como sujeito participativo
da sociedade globalizada e multicultural. Como Spivak, a teórica discute como o contexto da
contemporaneidade influencia o conceito de feminino, possibilitando que nele se insiram
novos elementos políticos, culturais e geopolíticas. Hollanda assegura, também, que a
intervenção da mulher nas sociedades contemporâneas gera novos significados para os
contatos culturais que, por sua vez, redirecionam a análise do sujeito feminino e de seus
lugares de enunciação. Por tais motivos, cada vez mais as personagens das narrativas
6
Quando necessário, o nome do conto da obra Entre mundos citado aparecerá referenciado, entre aspas, após o
sobrenome do autor, ano e página.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
23

produzidas pelas escritoras nessas sociedades, e aí incluímos Patricia Cerda, são sujeitos
femininos diaspóricos em deslocamentos externos e internos. Consequentemente, estão em
constante estado de renegociação identitária, pois são identidades culturais "em transição...
que retiram seus recursos, ao mesmo tempo; de diferentes tradições culturais; e que são o
produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns
num mundo globalizado" (HALL, 2005, p. 88. Grifo do autor).
Essas reflexões possibilitam a análise dos contos de Patricia Cerda sob os efeitos dos
fenômenos da contemporaneidade que se entrelaçam com um mundo global e multicultural: a
desterritorialização e reterritorialização, os espaços de movências, o entre-lugar e o
desenraizamento. As personagens dos contos não se restringem mais aos espaços privados e
intimistas, muitas vezes atribuídos às mulheres como o “seu espaço”. Elas se inserem nesse
novo contexto sociocultural. Com essa mudança, a autora cria personagens que habitam
espaços de movência em um processo de desenraizamento (tais como os que ela própria
habita), e que, por tal motivo, problematizam a questão de viver em outro país:

Me presento, soy Carla Moreno, chilena. Trabajo desde hace veinte años en la
sección de literatura latinoamericana en esta biblioteca. El ombligo del mundo de los
intelectuales latinoamericanos en Alemania. Soy la encargada de las nuevas
adquisiciones. Hoy no ha llegado ningún correo de América Latina por lo que tengo
tiempo para repasar. Es además el momento propicio para hacerlo: hace exactamente
veinticinco años que llegué a este país. Veinticinco años hacen también la mitad de
mi vida. Voy a repasar y destilar, a dejar solo lo más importante, aquello que ha
marcado de una u otra manera mi camino aquí. (CERDA, 2013, p. 157. “Desde el
templo”)

Como segunda característica dos contos, noto que há uma divisão bem marcada com
relação aos motivos do trânsito das personagens: se são personagens hispano-americanas vão
à Alemanha em busca de melhores condições de vida e muitas vezes estão de maneira ilegal
no país; se são alemãs e vão ao Chile, estão em turismo ou vão trabalhar apenas um período
para logo depois voltar ao país. Contudo, as personagens alemãs são representadas como
pessoas cultas e com situação financeira superior a dos chilenos com os quais se relacionam,
como nos contos “Solidariedad con Chile”; “Testigos del tiempo o yo no me mando sola” e
“Miércoles de justicia”. Os contos, infelizmente, naturalizam a visão estereotipada de
europeus e hispano-americanos e, por fim, acabam por naturalizar, também, essa diferença de
representação entre os alemães e os chilenos.
Essa divisão entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, nos remete à
categoria analítica do cosmopolita pobre, como nomeia Silviano Santiago (2016), em que os
latino-americanos e africanos migram para fugir da pobreza em seus países e buscam

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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melhores oportunidades de vida no mundo de abundância das “metrópoles mais endinheiradas


do mundo ocidental” (2016, p. 15). Nos contos, muitos desses migrantes trabalham em
atividades que os alemães não desejam fazer, tais como as atividades do lar e serviços de
limpeza e, em sua maioria, transgridem as leis de migração, pois estão ilegalmente no país.
Nos contos “Cosmopolitismo”, “Pasajeros” y “Desde el tiemplo” o cosmopolitismo do pobre
é leitmotiv da narrativa. No conto “Cosmopolita”, a peruana Pamina busca um emprego de
empregada doméstica, na tentativa de conseguir sua independência financeira, voltar para seu
país e comprar uma casa lá:

Caí en casa de Evelina por un aviso que leí por casualidad en el periódico de
Schwabing [..] Se buscaba una mujer para la limpieza y el cuidado de los niños
pequeños […] El pago por hora estaba bastante bien. Llamé de inmediato al número
indicado para presentarme como una persona apta para el puesto […] Menos mal
que no me preguntó si tenía a mis papeles al día, porque no los tenía. Los peruanos
necesitamos visa para vivir en Alemania y yo no tenía como conseguirla. Mi
situación legal era así: vivía en Munich sin permiso de residencia pero solía andar
con un pasaporte prestado en el que decía clarito que tenía visa indefinida. (CERDA,
2013, p. 131e 133)

O terceiro ponto que destaco como característica comum nos contos é a presença,
como pano de fundo, da ditadura chilena. Os personagens chilenos que saem do país, ainda
que seja apenas para estudar na Alemanha, o fazem, também, na tentativa de se afastar do
regime totalitário chileno. O exílio e o autoexílio também são nos contos os motivos que
levam as personagens a abandonar a terra natal. Essa constatação mostra como ainda é difícil
encontrarmos narrativas chilenas contemporâneas que não roçam no tema da ditadura, sejam
como elemento principal ou como tema transversal. As personagens chilenas que chegam à
Alemanha, o fazem em busca de melhores condições de vida, tanto financeiramente quanto de
liberdade política. Os contos, assim, tratam de dois tipos de migração: a socioeconômica e a
sociopolítica, nas quais as personagens fogem da ditadura chilena e, no país de chegada, se
unem a outros chilenos (ou hispano-americanos) para lutar pela democracia de seu país, como
no conto “Desde el templo”, no qual a protagonista, Carla Moreno, vê a possibilidade de
estudar na Alemanha como uma forma de fugir do regime ditatorial chileno e “respirar”
democracia: “Llegar del Chile de Pinochet a Berlín occidental fue como saltarme varios
escalones en la evolución del homo sapiens en matéria de libertad y justicia” (CERDA, 2013,
p. 159. Grifo da autora).
A ditadura chilena como pano de fundo também está presente nos contos cujas
personagens são alemãs em turismo no Chile, como em “Solidariedad con Chile”. No conto, a
personagem Kerstin, que namorou um chileno exilado na Alemanha nos anos de 1970, vai à

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
25

cidade de Santiago pela primeira vez, trinta anos depois da última vez que o viu, na tentativa
de reencontrá-lo. Enquanto observa como telespectadora a cidade chilena pela janela de um
restaurante giratório, rememora os encontros com Marcelo, o chileno exilado; sua
participação nos movimentos pela liberdade política do Chile e o que aprendeu com os
exilados sobre a cultura chilena e; sobre o sentimento de pertença a uma cidade e a um país:

Cuando pidió la cuenta, tenía en frente el mismo panorama que la había saludado a
su llegada. Otra vez había aparecido el Mapocho dividiendo el norte y el sur de la
ciudad: la alta densidad de edificios caros de un lado y la mazamorra de viviendas
al otro. El restaurant había dado una vuelta de 360 grados. Sintió que Santiago le
había dado a su manera la bienvenida. ¡Cómo hablaba Marcelo de esa ciudad!
Recordó la expresión de sus rostro cuando cantaba con la guitarra: “yo pisaré las
calles novamente…”. Ella nunca sintió algo así ni por Dachau ni por Munich.
(CERDA, 2013, p. 29)

A última característica presente em todos os contos é a que chamo de “formação de


uma comunidade cosmopolita no país de chegada”: as personagens dos contos estão sempre
em meio a outros estrangeiros como elas. As personagens chilenas se relacionam nos contos
com outras personagens estrangeiras, formando uma comunidade à parte da sociedade local,
na qual vivem, como no título da obra, entre mundos, ou seja, entre as duas ou mais culturas.
As personagens são mexicanas, peruanas, russas, palestinas e as da comunidade local são
apenas mencionadas nos contos ou não possuem protagonismo. Essa comunidade cosmopolita
forma um grupo em que as personagens estão tangenciadas pelas relações de movência
provenientes dos processos de desterritorialização e reterritorialização. Esses processos geram
nas personagens uma nova formação identitário-cultural que se caracteriza por ser hifenizada,
traduzida, própria dos indivíduos que, como a autora, cruzaram as fronteiras territoriais,
linguísticas e culturais: “Normalmente nos encontramos después del trabajo en Alfredo’s Bar
en el puerto. Son momentos en que escribimos nuevos capítulos de un texto implícito que se
titula: Nosotras en Alemania” (CERDA, 2013, p. 89. “Pasajeros”).
As histórias narradas apresentam situações nas quais as personagens chilenas se unem
a outras hispano-americanas ou estrangeiras como elas, tanto no que tange às relações de
amizade quanto às amorosas. Por meio dos amigos hispano-americanos ou estrangeiros, as
personagens constituem grupos de pertencimento com os quais apreendem a nova cultura e
com isso, se inserem na comunidade do país de chegada. O conto “Pasajeros” aborda essa
questão e esclarece o motivo pelo qual a narradora chilena e duas outras mulheres (mexicana
e venezuelana, respectivamente) criaram laços de amizade:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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- Todavía no me han dicho de dónde se conocen.


- Digámoslo así, - dije yo – es que tenemos una biografía parecida y la vida nos ha
juntado por eso.
-¿Cómo así?
-Venimos de otro continente, vivimos aquí y hemos tenido experiencias parecidas
con la gente de aquí.
Además hablamos el mismo idioma, - agregó Rosalía y prosiguió con otra pregunta.
(CERDA, 2013, p. 91. Grifo meu.)

Essas quatro características une os contos em torno à temática da estrangeiridade e dos


deslocamentos. Contudo, nossa análise, devido às limitações desse trabalho, centra-se em um
conto específico da obra, “Pasajeros”. Nesse conto, a autora acrescenta mais uma
característica dos relatos de deslocamentos de autoria feminina: a genealogia. Para Almeida
(2004), a genealogia é a palavra-chave que define a literatura de autoria feminina da metade
do século XX até os dias atuais. A teórica acrescenta que os textos genealógicos apresentam
as relações das protagonistas femininas com mulheres de sua ascendência feminina que foram
determinantes em suas vidas e biografias, tais como mães, avós ou bisavós. Acrescenta, ainda,
que essas narrativas possuem uma narradora autodiegética que, “... num procedimento
memorialístico, resgata ou estabelece uma relação especular com outra, relação esta,
fundamental para um afirmativo e importante desenvolvimento identitário” (ALMEIDA,
2004, s/p).
No conto, o uso da genealogia mostra a preocupação da narradora autodiegética em
conhecer sua origem, "esse lugar de onde veio", em uma tentativa de afiliação individual, de
pertencimento ao território “outro”, mas que também é seu, em que se encontra, a Alemanha.
De maneira, que nos parece óbvio que nas narrativas de deslocamento, principalmente
naquelas em que as personagens buscam a sua origem, o tema da genealogia esteja presente.
No conto, a narradora recorre à historia familiar, a migração de seus antepassados, para
entender, por meio de uma história que não compartilhou, o sentimento de não pertencer. De
modo que a necessidade da descoberta de uma identidade própria é também o tema central
nessas narrativas. Voltar ao passado, por meio da história de seus antepassados, é encontrar a
si mesma.
Acrescido ao tema da genealogia, encontramos, no conto, o gênero textual diário
íntimo, forma discursiva marcadamente reconhecida como pertencente à escrita feminina. De
forma que o conto entrelaça essa particularidade “concebida” como da escrita feminina para
também refletir sobre o desenraizamento e o pertencimento. A narrativa apresenta duas
histórias entrelaçadas e contadas por narradoras diferentes. A primeira é contada por uma
narradora autodiegética, Paula Steineberga, chilena, da cidade de Valdivia que migrou para a

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cidade de Hamburgo, na Alemanha, na época contemporânea. A segunda é narrada por uma


mulher sem nome que escreve, em forma de diário, o percurso inverso ao de Paula, da
Alemanha para o Chile, especificamente, da cidade de Hamburgo para Valdivia, em um
barco, no século XIX. As narrativas apresentam uma relação especular em relação às
personagens e seus percursos. Ambas vão à procura de uma vida melhor no país de chegada.
No conto as histórias são graficamente diferenciadas. A narração em forma de diário
vem em itálico e se intercala com a história narrada pela personagem Paula. Por meio dessas
duas histórias, é possível criar (ou a inventar?) um pertencimento para a personagem Paula
por meio de sua genealogia, pois logo no início da narrativa, ela indica que o percurso que faz
a narradora-diarista foi o mesmo que fizeram os seus antepassados. Tal observação sobre o
seu passado, permite entrelaçar sua história com a da narradora-diarista do século XIX:

Me llamo Paula Steineberga. Mi nombre procede de ese rincón del mundo, el que no
crecí. Soy chilena. Mis antepasados se fueron a colonizar el sur de Chile hace
ciento y treinta y cinco años. En ese tiempo la travesía de Hamburgo a Valdivia, mi
tierra natal, duraba – según las condiciones climáticas – entre noventa y ciento y
tantos días en un barco ínfimo. Hace trece años, demoré sólo un día a llegar aquí
desde Valdivia, contando las tres horas que tuve que esperar en Santiago. (CERDA,
2013, p. 83. “Pasajeros”. Grifo meu.)

Ao mesmo tempo em que a narradora do século XX se questiona sobre o seu


pertencimento àquele lugar, a mulher do século XIX se questiona sobre o seu futuro na
Alemanha, nesse lugar novo e tão distante da sua terra natal. E, como num jogo de espelhos, a
narrativa de Paula, a chilena, se espelha na narrativa da diarista alemã. São somente em duas
partes do conto em que há a “intromissão” da voz da narradora-diarista: uma no início da
narrativa e outra no final, fechando a narrativa. Enquanto a narradora Paula tenta entender por
que ela e muitas outras mulheres deixaram o país natal e foram viver na Alemanha; a
narradora-diarista relata a travessia marítima, as náuseas e a esperança de uma nova vida no
Chile; ou seja, as dificuldades, mas muito mais a esperança de uma vida melhor no país de
chegada. Em uma relação especular são esses mesmos sentimentos que a narradora Paula
transmite em sua narrativa ao entrelaçar também a sua história com a da migrante peruana
ilegal, Norma, que atende como paciente em seu consultório e que acaba tendo um visto
permanente de residência na Alemanha com o nascimento de sua filha com um alemão.
A história das duas narrativas principais e a inserção da história da migrante peruana
exemplificam a feminização da diáspora que analisávamos como uma das características
presentes nos contos de Patricia Cerda: na contemporaneidade há uma autonomia na migração
feminina. A narradora-diarista do século XIX migra para o Chile, mas está acompanhada de

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seu marido e de seus sogros. Não viaja sozinha; enquanto a personagem Paula e a peruana
ilegal migram sozinhas para a Alemanha. Contudo em todas as histórias narradas há ainda um
componente comum: a realização do sonho individual ou familiar de migrar para ter uma vida
economicamente melhor. A narradora-diarista do século XIX deixa essa situação bem clara ao
escrever em seu diário: “Fue muy tranquilizante hablar con él porque nos aseguró que todo lo
que dice en nuestros folletos sobre ese país es cierto. Que es tierra muy fértil, muy buena
para trabajarla y que hay mucha necesidad de artesanos allí” (CERDA, 2013, p. 84. Grifo a
autora). A mesma perspectiva que tem a migrante peruana: “Norma me contó también porque
se lo pregunté – que había migrado a Alemania con la esperanza de juntar dinero” (CERDA,
2013, p. 93). Já a narradora autodiegética do século XX, Paula, esclarece que o fato de estar e
viver na Alemanha tem relação, principalmente, com o peso do sonho de toda uma geração de
migrantes de voltar à terra de origem:

Me vine a estudiar psicología [en Alemania] porque así lo quisieron mis padres, y
ellos lo quisieron así, porque lo mismo hubieron esperado de ellos mis abuelos, y
mis tatarabuelos de mis abuelos, lo mismo que mis tátara tátara abuelos de mis tátara
abuelos, etc. Cumplí el sueño de muchas generaciones al venirme a esta ciudad, al
estudiar aquí, al casarme aquí, con un alemán de aquí. (CERDA, 2013, p. 85).

No início do conto ainda não sabemos o que motivou a personagem a se questionar


sobre os motivos de seu desenraizamento. Apenas sabemos que há uma inquietude provocada
por “algo” que uma senhora alemã e octogenária lhe conta no batizado da filha de Norma e
que, a partir dessas palavras, começa a pensar em suas raízes:

Crucé solo algunas palabras con ella y al hacerlo, se me vino algo encima que no
logro descifrar. Fueron dos o tres frases densas, sonoras, luminosos, aunque
estrictamente hablando sólo se refirieron a hechos anecdóticos. Como no me gusta
meterme a la cama sin haber descifrado a los enigmas del día, escribo esas líneas a
ver si eso ayuda. (CERDA, 2013, p. 84)

Somente no final da narrativa, a narradora autodiegética esclarece o motivo de sua


inquietude. Em uma “conversa” despreocupada com a senhora octogenária, vislumbra a
possibilidade de encontrar as raízes da família alemã perdida quando essa migrou há 135 anos
para a cidade de Valdívia, no Chile. É a possibilidade de encontrar suas origens:

Cuando mencioné la palabra Chile, me comentó que una vez había escuchado decir
a su abuelo que una rama de su familia se había ido a colonizar el sur de ese país.
Fue casi un comentario a pasar […]. Pensé en comentarle que teníamos el mismo
apellido. Steineberga, Steneiberger ambos suenan igual, solo se escriben diferente,
tal vez porque un funcionario del registro civil chileno se tomó una libertad
ortográfica o se equivocó, es casi lo mismo. (CERDA, 2013, p. 96)

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29

A narrativa da personagem Paula termina nesse ponto e imediatamente inicia a


narração do diário da mulher do século XIX, no qual conta que faltam poucos dias para ela e a
família chegarem ao Chile, especificamente à cidade de Valdivia, seu lugar de destino:
“Menos mal que sólo quedan pocos días para llegar a nuestro destino final. Todos aquí
estamos ansiosos por conocer Valdivia” (CERDA, 2013, p. 97. Grifo da autora). Com essa
informação, a narrativa une as histórias das duas narradoras com a história contada pela
senhora octogenária de que uma parte da família tinha saído de Hamburgo para ir ao Chile,
especificamente à cidade de Valdivia. De forma cíclica, unem-se assim, as duas histórias, que,
por meio da genealogia, propicia um pertencer à personagem-autodiégetica, pois implica,
além do compartilhamento do idioma e dos costumes do país de chegada, também uma
identidade étnica.
A história contada pela narradora-diarista remete à genealogia da personagem Paula
que, na tentativa de diminuir a inquietude que lhe traz as palavras da senhora octogenária,
escreve para decifrar “los enigmas del día” (CERDA, 2013, p. 84). O enigma de decifrar de
onde veio, de saber que pertence também a esse lugar. No conto, apenas se induz que a
história contada pela narradora-diarista é a escrita pela narradora autodiegética na tentativa de
“voltar atrás”, ao início da história familiar de desterritorialização para mostrar que a
experiência da emigração já havia sido empreendida pelos seus antepassados, ao trocaram a
Alemanha por um Chile jovem e cheio de promessas. Enfim, de entender que o
desenraizamento que vive é um legado familiar. Com essa história, a personagem constrói
para si um pertencimento com o grupo do país de chegada, os Steineberger de Hamburgo se
transformaram nos Steineberga de Valdívia. Nessa ficcionalidade do pertencimento, a
personagem consegue encontrar-se; pois compreende que ela é o somatório tanto de suas
experiências quanto das experiências de seus antepassados. Os processos de
desterritorialização deles influenciaram em quem ela é hoje em dia: um ser deslocado,
desenraizado, que não pertence mais ao seu lugar de origem e tampouco ao espaço de
chegada, o que a torna um ser traduzido.
Com a análise desse conto específico, verificamos que a obra Entre mundos, de
Patricia Cerda, caracteriza-se pela feminização da diáspora. O tema do deslocamento presente
em todos os contos da obra foca as figuras femininas desterritorializadas da diáspora
contemporânea. A obra ajusta-se, assim, ao contexto sociocultural e geopolítico
contemporâneo, no qual a autora explora a literatura como uma prática política e social que

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desestabiliza as noções de poder e visibiliza a mulher como parte constitutiva da sociedade


cosmopolita.
As personagens dos contos, quase sempre chilenas como a autora, são passageiras
entre mundos, tangenciadas pelos processos diaspóricos provenientes da desterritorialização,
no qual o contato com o “outro”, quase sempre estrangeiro como elas próprias, é o elemento
fundamental para a construção da própria identidade, visto que esta se dá pela diferença. A
estrangeiridade nos contos representa a busca pelo “eu”, que procura afirmar-se no país de
chegada e entender quem é, em uma busca por “si mesmo” que, provavelmente não as levará
de volta para casa, mas, sim, as deixará eternamente no entre-lugar dos dois mundos, ou
melhor, entre mundos. Nesse contexto, verifica-se que elas adquirem, como consequência dos
deslocamentos e dos contatos com as diferenças, uma subjetividade traduzida que requer
negociações identitárias constantes e reflete a ficcionalidade do pertencimento e as
heterogeneidades presentes em seus seres.

Referências

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contemporânea e as narrativas cosmopolitas na aldeia global. In: DALCASTAGNÉ, Regina;
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estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016. p. 15-32.

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HAUNTED BY THE PAST: QUESTIONS OF IDENTITY AND TRAUMA IN


EDWIDGE DANTICAT’S THE DEW BREAKER
Ma. Carolina de Pinho Santoro Lopes (UERJ)
E-mail: carol.pslopes@gmail.com

Remembering the past can lead both to uncritical nostalgia and to new ways of
understanding and changing the present (HUA, 2008, pp. 203-4). Edwidge Danticat,
contemporary Haitian-born author who moved to the United States at age twelve, brings Haiti,
its history and its people to the forefront of her literary works, always dealing with these
subjects from a critical perspective. The Dew Breaker (2004), for example, is a book of
interconnected stories which focus on several Haitian immigrants living in the United States,
many of whom experienced the horrors of the Duvalier regime (1957-1986)7. The aim of this
paper is to explore how questions of identity and trauma relate to the complicated relationship
of most characters in this work with their past.
The notion that memory can help one learn and have a different vision for the future
may be illustrated by the story of Michel. On the verge of becoming a father himself, he
recounts how he came to know the identity of his father. Growing up under the Duvalier
dictatorship, he is told by his mother that his father died for political reasons. Michel
describes himself as “part of a generation of mostly fatherless boys, though some of our
fathers were still living, even if somewhere else” (DANTICAT, 2005, p. 141)8. On the day
after the fall of the Duvalier regime, Romain, his best friend and the illegitimate son of a
tonton macoute (a member of the Duvaliers’ private militia), tells him that Michel’s father
actually lives across the street and has known him for his whole life. As Michel expresses his
shame for being considered “a dishonorable secret” (p. 160) and describes Romain’s father as
“the biggest problem of his [friend’s] life” (p. 161), it is clear that he disapproves of his and
Romain’s fathers’ attitude of not acknowledging their sons. Then, Michel’s decision to
recount his story and to name his son after his childhood friend signals an intention to learn
from the past and to avoid his father’s mistake. Symbolically, this new beginning represented

7
Dictator François Duvalier (“Papa Doc”) governed Haiti from 1957 to 1971, and was succeeded by his son
Jean-Claude Duvalier (“Baby Doc”), who remained in power until his deposition in 1986 (Encyclopaedia
Britannica, <www.britannica.com/place/Haiti/Military-regimes-and-the-Duvaliers>, 7 Aug. 2017).
8
All quotations are from the same edition of the book, which will be, from now on, referred to by page
numbers only.

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by his son’s birth is expected to happen on the anniversary of the day when he found out
about his father, “the day that everything changed for [him]” (p. 164).
Memory and narrative are closely related to identity. According to Paul John Eakin
(2008, p. 2), recounting one’s life is a “work of self-construction”, making narrative “a
constituent part of self” (italics in the original). It is important to take into consideration that
memory itself is a construction, that is, it is subject to processes of selection, interpretation
and distortion, and not a faithful reproduction of past events. Anh Hua (2008, p. 198) argues
that “memory does not revive the past but constructs it”. Hence, there is a process of mutual
influence: our present self both influences our view of the past and is influenced by our
previous experiences.
Identity, however, far from being stable and fixed, is fluid and constantly in process.
Susan Friedman (1998, p. 20) affirms that identity came to be seen in the late twentieth
century as “the product of complex intersections and locations”, highlighting its multifaceted
character. This means that each person inhabits multiple positions in relation to various axes
of identity, such as gender and ethnicity, with these different aspects becoming more or less
significant depending on the situation (FRIEDMAN, 1998, pp. 22-3). In this way, the
multiplicity of identity has to do not only with variations through time, but also with the
coexistence and interaction of different axes.
In The Dew Breaker, the multifarious nature of identity may be illustrated by two
characters who appear in different stories: the unnamed tonton macoute and his wife, Anne.
Instead of being represented as a one-dimensional villain, the dew breaker – the title of the
book is another nickname for the tonton macoutes – is a complex character, who can be both a
brutal torturer and a loving father. His decision to join the militia is nuanced by the fact that
his family lost their land to army officials in the beginning of the Duvalier period, which
drove his father mad (p. 191). It is only during the president’s Flag Day speech, after deciding
not to leave the capital, that he “finally believed his father’s oft-repeated declaration that his
son would never work the land” (p. 193). He becomes a tonton macoute on the same day,
which indicates that this is a way for him to seek a better life.
However, the torturer’s cruelty is also evident in the stories as he becomes known as
“the one who came up with the most physically and psychologically taxing trials for the
prisoners in his block” (p. 197). Besides, it is clear that he derives pleasure from playing
psychological games, such as giving false hopes to the prisoners (p. 190), and from
“[creating] all sorts of evil tales” around his victims (p. 187). Another appeal of becoming a
tonton macoute for him is the growing “sense of power” he experiences as “the people who

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had looked down on him and his family in the past [...] came all the way from Léogâne to ask
him for favors” (p. 196). Quoting Haitian writer Jacques Alexis, the character states that he
suffers from “the greatest hazard of the job. Tu deviens un véritable gendarme, un bourreau.9
It was becoming like any other job” (pp. 197-8). This passage reinforces the idea that
belonging to the militia affects his sense of identity, being not only his work, but becoming a
part of him.
The dew breaker’s difficulty of coming to terms with his own past is so great that he
creates a new persona and lies to his daughter Ka for years, saying that he was a political
prisoner in Haiti. Even after confessing the truth to her, he seeks to establish a distance
between his past and his present, by telling her that “I’m still your father, still your mother’s
husband. I would never do these things now" (p. 24). This distance is reinforced by the fact
that he is able to talk about the subject only in Creole because his tongue is “too heavy in
English to say things like this, especially older things” (p. 17). The importance of his family
in his attempt to leave the past behind is expressed by his daughter’s affirming that she and
her mother are “his masks against his own face” (p. 34), which suggests that he may seek to
make his role as a husband and father become more salient to him than the position of an ex-
torturer.
Nevertheless, like the scar on his face, the past can never be completely erased or
forgotten. As predicted by the preacher who wounded him,

he’d left a mark on him, a brand that he would carry for the rest of his life. Every
time he looked in the mirror, he would have to confront this mark and remember
him. Whenever people asked what happened to his face, he would have to tell a lie, a
lie that would further remind him of the truth (pp. 227-8).

According to Carole Boyce Davies, the scar carved by Ka in the sculpture she makes
of her father is the central metaphor in the book, signaling a wound in his face, as well as in
his family and even in Haiti itself (HARRIS, 2010, p. 34). The fact that the character covers
the scar with his hands in the few pictures he allows to be taken of him also suggests the
symbolic relationship between the mark and his violent past, as both have to be constantly
hidden.
The dew breaker’s wife, Anne, is an example of literary representation of the fact that
an individual can hold contradictory subject positions. She is introduced in “The Book of the
Dead” only as Ka’s mother and the ex-torturer’s wife, but other facets of the character are

9
You become a true police officer, a torturer and executioner. (our translation)

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presented in “The Book of Miracles” and “The Dew Breaker”. In “The Book of Miracles”, in
addition to her name, her ambivalent feelings about being married to a former tonton macoute
are expressed since she thinks about her life as “a pendulum between forgiveness and regret”
and oscillates between anger and considering her husband’s transformation a “small miracle”
(p. 86). In “The Dew Breaker”, the last story of the book, Anne is presented as the sister of a
preacher who speaks up against the dictatorial regime in Haiti. Not only is this dissenting
minister arrested, tortured and killed by the man who would later become her husband, but he
is also the one responsible for the scar on his face. Thus, the final story reveals that Anne is
tied by family bonds both to a victim of the Duvalier regime and by a perpetrator of its
dictatorial violence.
However, inhabiting these two positions simultaneously entails a difficult relationship
with the past. When Anne gets involved with the dew breaker, she is unaware of his
participation in the militia and in her brother’s imprisonment and death. The conversation that
reveals that he arrested the preacher is marked by the impossibility to fully express what
happened. While talking to her daughter after she found out about her father’s occupation in
Haiti, Anne remembers the conversation about her brother as such:

He referring to ‘his last prisoner,’ the one who scarred his face, and she to ‘my
stepbrother, the famous preacher,’ neither venturing beyond these coded utterances,
dreading the day when someone other than themselves would more fully convene
the two halves of this same person (p. 241).

This passage shows that their past is so overwhelming to them that it is impossible to
put it directly into words; consequently, it can only be communicated through codes and
suggestions.
Moreover, Anne seeks to distance herself from the past to be able to put up with it.
Although she does not believe her husband’s version that her brother killed himself in prison,
they never “[delve] too far back in time, beyond the night they met” (p. 241), which suggests
that they are afraid of what they can find if they look very closely into the past. Anne also
avoids reading the articles about her brother’s death because “she was too busy concentrating
on and revising who she was now, or who she wanted to become” (p. 241). The character, in
this way, tries to leave her past behind, to make it disappear without a trace like her brother’s
corpse, in order to become another person. However, instead of vanishing, the past comes
back in the phone call from her daughter, shocked by her father’s confessions, making it clear
that “there was no way to escape this dread anymore, this pendulum between regret and
forgiveness” (p. 242).
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This complex relationship with the past, rather than an exception, is remarkably
common among the characters in The Dew Breaker, whose lives are frequently marked by a
traumatic event. Cathy Caruth (1995, pp. 4-5) describes the experience of being traumatized
as being “possessed by an image or event” from the past. A traumatic event cannot be fully
witnessed or registered in one’s psyche since it does not fit within the frameworks of prior
knowledge (CARUTH, 1995, pp. 6-7, 153). As a consequence, the traumatized person
experiences the repeated return of the event against their will as they have virtually no
conscious control over it (CARUTH, 1995, p. 5, 151). Besides, this lack of conscious access
to the traumatic event leads to a difficulty in speaking about it.
An instance of this impossibility of speaking about a past event is present in the story
“Water Child”. After going through an abortion, Nadine is unable to cope with this decision,
creating, for example, a shrine dedicated to her aborted child (p. 57). She avoids calling her
parents in Haiti and, even when she finally talks to them, she does not mention the fact that is
anguishing her despite her “wish to be the one guarded, rather than the guardian, to be
reassured now and then that some wounds could heal, that some decisions would not haunt
her forever” (p. 63). This difficulty to speak is also reflected on the fact that the abortion is
hardly mentioned throughout the story and is usually referred to in a veiled manner, as “the
procedure” (p. 57) or a “wound” or “decision” in the quotation above.
Moreover, her uncomfortable silence is mirrored in the figure of Ms. Hinds, the young patient
under Nadine’s charge who cannot speak after undergoing a treatment for cancer. Nadine is
the only one who manages to calm her down when she is agitated after realizing her inability
to speak, which makes Ms. Hinds bond with her. When the patient is about to be discharged
from the hospital, Nadine’s thoughts about the situation may also be applied to her own
traumatic experience: “Nadine was tempted to warn Ms. Hinds that whatever form of relief
she must be feeling now would only last for a while, the dread of being voiceless hitting her
anew each day as though it had just happened” (p. 66). This passage recalls Caruth’s
description of the return of traumatic events; furthermore, the idea of ephemeral relief
followed by a constant feeling of horror may be a projection of Nadine’s own feelings about
the abortion.
Many traumatic experiences in The Dew Breaker are related to events connected to the
Haitian political and historical background. These experiences fit Dominick LaCapra’s
definition of historical trauma since they are historically situated, related to particular events
and specific to some individuals (LACAPRA, 1999, 712, 722). Although stating that trauma
cannot be directly healed, LaCapra (2007, p. 207) argues that it is possible to deal with its

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symptoms and to “mitigate the effects of trauma by generating counterforces to compulsive


repetition”, which would enable “ethical and sociopolitical agency”. Agency seems
particularly relevant in this case since the author affirms that we can fight the political, social
and economic causes of trauma and avoid its recurrence (LACAPRA, 2007, p. 207). One of
the ways to deal with posttraumatic symptoms is through narrative, which can help people to
express their traumatic experience through language and to see new possibilities for their
future (LACAPRA, 2007, p. 208).
The dichotomy between silence and narrative in relation to trauma may be illustrated
by different characters in The Dew Breaker. As aforementioned, silence permeates the
relationship between Anne and the ex-torturer. In addition, the incommunicability of trauma
may be observed in the story of Dany, in “Night Talkers”. Dany is traumatized by the loss of
his parents during his childhood in a politically-motivated attack which also made his aunt
blind. As in Caruth’s description of trauma, while sleeping, Dany vividly relives the night
when his parents died and, upon waking up, he feels that “he was still back there, on the
burning porch, hoping that his mother and father would rise to put out the fire” (p. 108). Thus,
the repetition of the traumatic event is experienced “outside the boundaries of any single place
or time”, which makes it so impactful (CARUTH, 1995, p. 9). Twenty-five years after the
attack, Dany believes that his landlord in New York, who works as a barber, is his parents’
murderer. The suspect is the dew breaker with the scar on his face that appears in other
stories. Besides his thirst for revenge, this man’s presence reawakens a feeling of terror in
Dany, who “couldn’t shake the feeling that after all these years the barber might finally make
good of his promise to shoot him, just as he had his parents” (p. 108), demonstrating the
lasting power of traumatic events.
The incommunicability of trauma is represented by the fact that Dany does not manage
to discuss the subject with his aunt Estina when he visits her in Haiti. As she avoids talking
about the past, the only conversation in which Dany can openly share his memories and
feelings occurs in his dream (p. 104), suggesting the impossibility for both of them to
consciously dwell upon these painful events. This incapacity to speak contrasts with the fact
that both Estina and Dany are “night talkers” (p. 98), that is, they frequently speak during
their sleep, which may also indicate that the traumatic experience is unbearable for their
conscious mind. The silence about the trauma is reinforced by the fact that Estina dies during
her nephew’s visit, putting an end to any possibility of expressing that experience into words.
Estina’s death also emphasizes the lack of closure felt by Dany in relation to the loss
of his parents. This blank in his life may be symbolized by the fact that the traditional burial

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rites could not be properly performed when his parents died as they had to be buried in secret
(p. 113). His need for answers is evident when he thinks about avenging his family. Face to
face with the barber as he is asleep, Dany refrains from killing him not only due to the fear of
killing an innocent man by mistake, but also because of “the realization that he would never
know why – why one single person had been given the power to destroy his entire life” (p.
107). His search for answers in Haiti also proves itself fruitless since his aunt cannot explain
to him why his parents, who did not seem to be involved in politics, were killed (p. 109). The
lack of information and memories about his parents is likewise felt by Dany, who sometimes
“substitute[s] moments from his own life in trying to re-create theirs” (p. 99), in a
representation of the fictionalizing processes involved in memory.
The connection between memory and narrative during his aunt’s funeral vigil
highlights Dany’s incapacity to speak. Although he enjoys the moment reserved for telling
stories about the deceased person, he is not able to talk about his memories of her (p. 114).
The fact that Dany falls silent after his aunt’s death reinforces the character’s tendency to be
speechless when faced with traumatic events. In fact, Dany affirms the insufficiency of
language to describe his own feelings, remarking that “there’s no word yet for it. No one has
thought of a word yet” (p. 118). This quotation reinforces the difficulty to speak about painful
memories and events, emphasizing the impossibility to truly communicate one’s feelings.
Dany’s involuntary and unwanted silence is in stark contrast with Claude’s ability to talk
about difficult past events. Claude, a young man who was deported from the United States
back to Haiti after killing his father, is able to recount his story and even feels lucky and
grateful for the life he has. Hence, Claude is also described as a “night talker, one of those
who spoke their nightmares out loud to themselves”; however, from Dany’s perspective,
“Claude was even luckier than he realized, for he was able to speak his nightmares to himself
as well as to others, in the nighttime as well as in the hours past dawn” (p. 120). Thus,
Claude’s ability to talk about distressing experiences is positively represented as an attitude
which may help to better cope with them.
The depiction of speaking as a possible path to healing is also present in the story “The
Funeral Singer”, which focuses on three Haitian women, Rézia, Mariselle and Freda, who
become friends while taking a preparatory course for the high school certification exams in
the United States. The three of them left Haiti for reasons connected to the country’s political
background. Mariselle and Freda were trying to escape the political retaliation and
persecution carried out by the Duvalier regime; the first was the wife of a painter killed for
making a portrait of the president which did not please him, and the latter refused an

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39

invitation to sing at the national palace (p. 172). Rézia migrated to the United States after
being sexually abused by a “uniformed man” who threatened to arrest her aunt if she did not
allow him to do that (p. 173). Carrying this heavy luggage, Freda decides to share some
memories with the others in an attempt to “inspire them to do the same and slowly we’d
parcel out our sorrows, each walking out with fewer than we’d carried in” (p. 170). This idea
that talking about the past may assist people who have gone through traumatic situations is
referred to by Danticat in an interview, in which she affirms that “Julia Alvarez’s sister, who
works with trauma survivors, has told her, as Julia reports in her book Something to Declare,
that once victims can tell their stories, they are going to be OK. The biggest obstacle is often
telling the story of what happened to you” (DANTICAT, 2003, p. 197).
This short story, which is narrated by Freda, the funeral singer, revolves around
memory and telling her story. Freda recounts childhood recollections, like drawing, playing
with her mother, and the trauma of losing her father, who disappeared at the sea after being
arrested and tortured by two tonton macoutes. Memories of her father, such as his singing and
his enjoyment of cockfights, are especially common, which seems related to her mother’s
statement that one of the deaths a person will experience is “the one that will erase us
completely and no one will remember us at all” (p. 177). Hence, remembering her father is
also a way to keep his memories alive and avoid this type of death represented by oblivion.
Besides, singing is strongly connected to memory in Freda’s life, not least due to the
fact that she used to sing at funerals, which are occasions to recall and pay homage to
someone’s life. Music also represents a form of connection with her father as she has strong
memories of a song he used to sing called Brother Timonie. This connection is so powerful
that she became a funeral singer after performing at her father’s memorial Mass (p. 175).
Moreover, Freda justifies her decision of refusing to sing at the national palace by saying “I’d
rather stop singing altogether than sing for the type of people who’d killed my father” (p.
179), which suggests that accepting the invitation would disrespect or even profane her
father’s memory.
In spite of the bond created by sharing memories among the characters in “The
Funeral Singer”, recounting one’s memories is no guarantee of escaping from the ghosts of
the past. Beatrice, from the story “The Bridal Seamstress”, is traumatized by the abuse
perpetrated by a tonton macoute who arrested and hurt her after she refused to go dancing
with him. Even after moving to the United States, she feels that the torturer is still persecuting
her. During the interview conducted by Aline, Beatrice states that “this man, wherever I rent
or buy a house in this city, I find him, living on my street” (p. 132). The use of the words “I

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find” suggests that this may be Beatrice’s impression, rather than an objective fact in material
reality, a suspicion which is reinforced by the fact that Aline finds out that the house where
the macoute is supposedly living is empty.
Beatrice’s fear, however, remains terribly real as, unable to deal with her trauma, she
moves from house to house in an attempt to escape her past. She attests the lingering power of
traumatic events, saying that “you never look at anyone the way you do someone like this. [...]
No matter how much he’d changed, I would know him anywhere” (p. 132). Haunted by the
image of this man, Beatrice’s hope of leaving the past behind lies in her retirement from
sewing wedding gowns. Once she does not need to advertise her new address anymore for her
clients, she can hope that “the next time I move, he won’t find out where I am” (p. 137).
Nevertheless, given that the memories of this man are within her wherever she goes,
overcoming the trauma remains uncertain by the end of the story.
In addition to the impact of Beatrice’s traumatic past, “The Bridal Seamstress” deals
with Aline’s growth both as a journalist and as a person. Whereas she considers Beatrice “a
bit nutty” (p. 132) in the beginning, she is more empathetic toward the end of the interview,
becoming aware of the existence of “men and women whose tremendous agonies filled every
blank space in their lives” (p. 137). She finds thus a way to fulfill her wish to “do something
with her life” (p. 123), realizing her desire to write about these people who experience such
afflictions (p. 138). In this way, the development of this character points out to an intention to
bring to light stories of harrowing, traumatic events, which may describe in part Danticat’s
project in writing The Dew Breaker.
By writing stories which focus on the horrors of the Duvalier era, Danticat contributes
to uncovering the atrocities carried out during their government, using memory as “a strategy
for social justice by recalling the forgotten or suppressed to bear witness” (HUA, 2008, p.
198). Dominick LaCapra (2007, p. 210) emphasizes the relevance of historical trauma to the
present as connected to “a strong, perhaps inevitable, tendency to repeat aspects of the
traumatic past”, which means that “historical trauma is not squarely in the past but implicates
‘us’ to varying degrees”. This idea may be related to LaCapra’s aforementioned affirmation
that it is possible to transform the political, social and economic causes for trauma. As the
lack of awareness about the wrongs committed during the Duvalier years seems to be
contributing to an increasing nostalgia for that period (HARRIS, 2010, pp. 32-3), writing
stories about them is particularly relevant. Breaking the silence about the past may be an
important step toward overcoming traumatic events in Haitian history.

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41

The Dew Breaker presents a gallery of characters who are marked by a problematical
relationship with their own past. These narratives reinforce the multiple positions inhabited by
individuals, as well as the troubling impact of traumatic events on one’s life, and the
importance of telling one’s story. Even though far from presenting a nostalgic vision, The
Dew Breaker emphasizes the importance of acknowledging and talking about the past to fight
against its ghosts as memory is an essential tool to construct a better future.

Bibliographical References

CARUTH, Cathy. Trauma: Explorations in Memory. Baltimore: The Johns Hopkins


University Press, 1995.

DANTICAT, Edwidge. An Interview with Edwidge Danticat. Contemporary Literature, v. 44,


n. 2: p. 183-198, Madison, Summer 2003. Interview conducted by Bonnie Lyons.

______. The Dew Breaker. New York: Vintage Books, 2005.

EAKIN, Paul John. Living Autobiographically: How We Create Identity in Narrative. Ithaca:
Cornell University Press, 2008.

FRIEDMAN, Susan S. Mappings: Feminism and the Cultural Geographies of Encounter.


Princeton: Princeton University Press, 1998.

HAITI. In: Encyclopaedia Britannica, <www.britannica.com/place/Haiti/Military-regimes-


and-the-Duvaliers>, 7 Aug. 2017.

HARRIS, Leila A. História e memória na literatura diaspórica de Edwidge Danticat. In:


______ (org.). A Voz e o Olhar do Outro – volume 2. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010. p.
30-39.

HUA, Anh. Diaspora and Cultural Memory. In: AGNEW, V. (ed.) Diaspora, Memory, and
Identity: A Search for Home. Toronto: University of Toronto Press, 2008. p. 191-208.

LACAPRA, Dominick. Dominick LaCapra: from History in Transit: Experience, Identity,


Critical Theory. In: ROSSINGTON, Michael; WHITEHEAD, Anne (eds.). Theories of
Memory: A Reader. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007. p. 206-211.

______. Trauma, Absence, Loss. Critical Inquiry, v. 5, n. 4: p. 696-727, Chicago, Summer


1999.

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OUTROS PERCURSOS DA ESCRITA: “3 POEMAS COM O AUXÍLIO DO


GOOGLE”, DE ANGÉLICA FREITAS

Eduarda Rocha Góis da Silva – Doutoranda/Ufal


Susana Souto Silva – Profa. Dra./Ufal

Introdução

Angélica Freitas (1973), poeta e tradutora gaúcha, publicou dois livros de poemas:
Rilke shake (2007) e Um útero é do tamanho de um punho (2012). Nesta segunda obra – que
acaba de ganhar uma nova edição – Freitas opera uma reelaboração irônica dos estereótipos
de gênero atribuídos às mulheres, resgatando clichês do pensamento machista/patriarcal.
Um útero é do tamanho de um punho está dividido em sete seções. Este texto tem
como objetivo discutir a seção “3 poemas com o auxílio do google”, na qual a poeta recorre
ao mecanismo de busca através de três frases que dariam origem aos poemas: “a mulher vai”,
“a mulher pensa” e “a mulher quer”. Tal processo de elaboração poética, denominado pela
autora como googlagem, google + colagem, mobiliza a discussão de temas como autoria e
propriedade, além de pôr em xeque o fazer poético, levando-nos a questionar o que é um
poema.
As googlagens nos convidam a refletir sobre como a poesia contemporânea é
atravessada pelo fim das fronteiras entre gêneros, estéticas e éticas composicionais. Para além
das questões estritamente formais, este paradigma de composição indica uma espécie de
“modelo” de pensamento vigente, na medida em que as frases encontradas no google revelam
o discurso machista e patriarcal dos textos mostrados como resultado de busca.
Desde as vanguardas, sobretudo no dadaísmo, o ato de recortar e colar já era utilizado
enquanto procedimento de composição poética, como indica a receita do poema-manifesto de
Tristan Tzara. No entanto a escolha da ferramenta de busca mais utilizada do mundo, que
possui um sistema de resultados baseados em links mais acessados, se afasta da colagem
dadaísta – a qual pretendia explicitar a impossibilidade de controle racional da criação
artística –, revelando nuances de um discurso contemporâneo marcado por ideologias
patriarcais. A palavra colagem vem do verbo francês “coller” (colar). Para Marjorie Perloff, a
colagem é já “[…] um emblema do jogo sistemático da diferença, a mise en question da
representação, que é inerente a sua estrutura verbo-visual” (1993, p. 107) e implica: ruptura

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entre gêneros, mistura de matérias e referências, descontinuidade, fragmentação e


deslocamento. Para discutir tal processo de colagem, levando em consideração as implicações
relativas às questões de gênero, são importantes como fundamentação teórica os textos de
Bakhtin (2012); Antoine Compagnon (2007); Judith Butler (2013); Monique Wittig (2017);
Elizabeth Grosz (2000), entre outras/os.

Escrever é reescrever: poesia e internet

O google é a ferramenta de busca mais utilizada no mundo. Consultamos este site para
encontrar informações sobre os assuntos mais diversos, desde uma receita, uma letra de
canção, uma biografia, até uma pesquisa acadêmica. Enquanto este texto é escrito, o google é
acessado e um dos links leva-nos a um texto da própria Angélica Freitas sobre tal processo de
composição. No final de 2004, a autora decidiu pesquisar o episódio em que Paul Verlaine
saca um revólver e dá um tiro em Arthur Rimbaud. A partir dos resultados encontrados, em
inglês, ela compôs o poema “love (a collage)”, o que deu origem a sua primeira googlagem.
Depois veio uma inquietação em saber, segundo os textos da internet, o que a poesia não era.
Desse modo, teve origem outra googlagem intitulada “a poesia não”, publicada no blog da
poeta, tome uma xícara de chá10. Em 2012, ao escrever poemas do seu segundo livro,
Angélica Freitas começou a buscar, no google, textos sobre o corpo feminino:

Queria saber como eram escritos, com que palavras, com que autoridade. Um dia
coloquei no Google “A mulher é” – vai que obtivesse alguma resposta interessante.
Fui copiando e colando os resultados para talvez montar um poema mais tarde. Ao
ler o material que havia juntado, percebi que nem fazia falta dar-lhe uma “ordem”.
Não havia como ficar menos ou mais absurdo do que aquilo. Permaneceu inédito.
Foi um teste, o embrião da série “Três poemas com o auxílio do Google” (“A mulher
vai”, “A mulher quer”, “A mulher pensa”), que acabou sendo publicada no livro.
(FRETAS, 2016, p. 354)

Através dos resultados encontrados, foram selecionadas e combinadas as frases que se


transformariam nos versos dos três poemas. Esse mecanismo de composição, como dito, põe
em xeque o fazer poético e as ideias de autoria, propriedade e originalidade, já que a poeta se
vale de frases escritas por outros/as na internet para compor o seu próprio poema.
Diversos/as teóricos/as discutiram essas noções. Bakhtin afirma que “Cada enunciado
é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados.” (2011, p. 272). Desse
modo, todo texto dialoga com textos anteriores – inserindo-se nessa ampla corrente de

10
Este blog pode ser acessado no link http://www.loop.blogspot.com

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enunciação –, para estabelecer uma relação de concordância (parcial ou não) ou de refutação,


o que torna questionável a noção de originalidade. Assim, todo enunciado se orienta para uma
resposta. Todo diálogo, seja ele face a face ou não é uma resposta a um enunciado anterior,
“tudo já está dito”.
Antoine Compagnon compara, em O trabalho de citação (2007), o fazer poético ao ato
de recortar e colar, para ele, “escrever é sempre reescrever, não difere de citar”. (2007, p.41).
Seguindo a perspectiva de que toda escrita é uma reescrita, o autor postula:

Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las,


fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos postos em
presença do outro: toda escrita é colagem, glosa, citação e comentário.
(COMPAGNON, 2007, p. 39).

O essencial da leitura, portanto, é o que eu recorto, o que eu cito, e é por isso que toda
leitura é única, pois os fragmentos selecionados e combinados por mim, não necessariamente
serão os mesmos escolhidos por outras/os leitoras/es ou até mesmo por mim em uma nova
leitura; toda leitura é, em alguma medida, uma reescrita.

“Era uma vez uma mulher e ela queria falar de gênero”

Como vimos anteriormente, foi a partir de uma busca sobre o corpo feminino que
Angélica Freitas pensou as googlagens. No entanto, todo o livro Um útero é do tamanho de
um punho foi escrito como uma espécie de estudo sobre as mulheres. Poderíamos dizer que
uma pergunta central paira sobre esta obra: “o que é uma mulher?”. As sete seções do livro
enfrentam esse impasse, com o qual a poeta se confrontou em seu primeiro contato com um
grupo feminista em Bahía Blanca, na Argentina11. O livro surge, então, como uma
investigação sobre o tema. Freitas revela em uma entrevista, desta vez para o portal
estratégias narrativas12, que o livro foi escrito para suprir uma necessidade de leituras sobre o
que é uma mulher, sobre o corpo feminino. “Eu acredito na poesia como investigação” (2017,
6:50), afirma a autora. A partir daí, começou a pesquisar em diversos textos de que maneira se
escrevia sobre as mulheres; o título do livro, inclusive, foi retirado de um texto da internet que
trata do aparelho reprodutor feminino. Nessa tentativa de compreender o que é uma mulher,
escreveu diversos poemas que abordam estereótipos atribuídos às mulheres, quase sempre se
valendo do discurso do senso comum, para ironizar um certo pensamento machista vigente,

11
Cf. Entrevista para a Revista TPM: http://revistatrip.uol.com.br/tpm/um-utero-e-do-tamanho-de-um-punho
12
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DDgloKrGbrE Acesso: 11 de setembro 00:20

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em um processo de ironia interdiscursiva (HUTCHEON, 200), deslocando e questionando


sentidos que parecem naturalizados.13
Nos 3 poemas com o auxílio do google, estereótipos de gênero são explicitados, na
medida em que os resultados das buscas revelam um vasto repertório de clichês machistas
presentes nos textos da internet, no discurso hodierno. Essas frases recortadas foram
organizadas em versos e os verbos escolhidos revelam como as mulheres são compreendidas,
em uma ampla corrente enunciativa, em que os temas muitas vezes se repetem. Os três
poemas são compostos pelo verso “a mulher” acrescidos de um verbo no presente do
indicativo (vai, pensa, quer). Vejamos o primeiro poema da seção:

a mulher vai

a mulher vai ao cinema


a mulher vai aprontar
a mulher vai ovular
a mulher vai sentir prazer
a mulher vai implorar por mais
a mulher vai ficar louca por você
a mulher vai dormir
a mulher vai ao médico e se queixa
a mulher vai notando o crescimento do seu ventre
a mulher vai passar nove meses com uma criança na barriga
a mulher vai realizar o primeiro ultrassom
a mulher vai para a sala de cirurgia e recebe a anestesia
a mulher vai se casar, ter filhos, cuidar do marido e das crianças
a mulher vai a um curandeiro, com um grave problema de hemorroidas
a mulher vai sentindo-se abandonada
a mulher vai gastando seus folículos primários
a mulher vai se arrepender até a última lágrima
a mulher vai ao canil disposta a comprar um cachorro
a mulher vai para o fundo da camioneta e senta-se, choramingando
a mulher vai colocar ordem na casa
a mulher vai ao supermercado comprar o que é necessário
a mulher vai para dentro de casa para preparar a mesa
a mulher vai desistir de tentar mudar um homem

13
“Não é que a ironia cria comunidades ou grupos fechados; em vez disso, eu quero argumentar que a ironia
acontece porque o que ser chamado de ‘comunidades discursivas’ já existe e fornece o contexto tanto para o
emprego quanto para a atribuição de ironia.” (HUTCHEON, 2000, p. 37)

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a mulher vai mais cedo para a agência


a mulher vai pro trabalho e deixa o homem na cozinha
a mulher vai embora e deixa uma penca de filhos
a mulher vai no fim sair com outro
a mulher vai ganhar um lugar ao sol
a mulher vai poder dirigir no afeganistão
(FREITAS, 2012, p. 69 e 70)

Todos os 29 versos se iniciam com a anáfora “a mulher vai”, que indica um certo
vaticínio sobre o “destino” da mulher”. Simone de Beauvoir, em sua célebre frase, afirma que:
“Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume
no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre
o macho e o castrado que qualificam o feminino” (BEAUVOIR, 2016, p. 11). Esse destino
construído culturalmente por uma lógica patriarcal impõe papeis sociais: a mulher irá casar,
ter filhos; irá cuidar do marido, das crianças, da casa, ou seja, irá, de modo restrito, ocupar – e
se ocupar da – a esfera doméstica.
O poema começa indicando atividades que dariam prazer à mulher, tanto relacionadas
ao lazer (“a mulher vai ao cinema”), quanto ao prazer sexual, ironizado na incorporação do
discurso autocelebrativo masculino, no final, “louca por você” (“a mulher vai sentir prazer/ a
mulher vai implorar por mais /a mulher vai ficar louca por você”). A partir do verso 8, a
mulher do poema sai do espaço do prazer e entra no campo semântico da gravidez, o que a
conduz ao âmbito da família e da casa: “a mulher vai se casar, ter filhos, cuidar do marido e
das crianças”. Esse poema traz uma narrativa implícita: após o prazer, vem o casamento, a
gravidez, seguidos da insatisfação com a vida doméstica, explícita nos versos: “a mulher vai
sentindo-se abandonada”, numa gradação que afirma: “a mulher vai se arrepender até a última
lágrima”.
Em seguida, a inclusão da mulher na esfera do privado se torna ainda mais evidente no
verso: “a mulher vai para dentro de casa preparar a mesa”, a menção ao espaço interior, ao
lado de dentro da casa, remete novamente ao papel tradicional da dona de casa e nos permite
subentender que o exterior – o lado de fora – é o espaço masculino, na lógica dos binários de
gênero que o poema ironiza. Esse binário fora x dentro – que evoca também o espaço público
e o privado – é um dos vários que perpetuam uma lógica de divisão que hierarquiza e
privilegia um termo em detrimento do outro: “O pensamento dicotômico necessariamente
hierarquiza e classifica os dois termos polarizados de modo que um deles se torna o termo

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privilegiado e o outro sua contrapartida suprimida, subordinada, negativa.” (GROSZ, 2000, p.


47).
Nos versos finais há uma inversão irônica dos estereótipos de gênero: “a mulher vai
para o trabalho e deixa o homem na cozinha / a mulher vai embora e deixa uma penca de
filhos”, subvertendo os papéis tradicionais de gênero numa relação heteronormativa,
culminando com um desfecho que pode ser considerado utópico: “a mulher vai ganhar um
lugar ao sol / a mulher vai poder dirigir no afeganistão”. Tendo em vista que são negados os
direitos básicos às mulheres afegãs, a maioria delas sequer frequenta a escola e grande parte
atua apenas na realização das atividades domésticas, pensar que a mulher um dia vai poder
dirigir neste país se configura como uma utopia, pois nem mesmo as mulheres estrangeiras
podem dirigir no Afeganistão14.
No segundo poema da seção, reaparecem alguns temas do primeiro: o casamento, a
maternidade e os cuidados com a família, desta vez relacionados ao verbo “pensar”.
a mulher pensa

a mulher pensa com o coração


a mulher pensa de outra maneira
a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante
a mulher pensa será em compras talvez
a mulher pensa por metáforas
a mulher pensa sobre sexo
a mulher pensa mais em sexo
a mulher pensa: se fizer isso com ele, vai achar que faço com todos
a mulher pensa muito antes de fazer besteira
a mulher pensa em engravidar
a mulher pensa que pode se dedicar integralmente à carreira
a mulher pensa nisto, antes de engravidar
a mulher pensa imediatamente que pode estar grávida
a mulher pensa mais rápido, porém o homem não acredita
a mulher pensa que sabe sobre homens
a mulher pensa que deve ser uma “supermãe” perfeita
a mulher pensa primeiro nos outros
a mulher pensa em roupas, crianças, viagens, passeios
a mulher pensa não só na roupa, mas no cabelo, na maquiagem
a mulher pensa no que poderia ter acontecido
a mulher pensa que a culpa foi dela
a mulher pensa em tudo isso

14
Cf: http://www.dgabc.com.br/Noticia/230583/mulheres-estrangeiras-nao-podem-dirigir-no-afeganistao

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a mulher pensa emocionalmente


(FREITAS, 2012, p. 71)

A escolha do verbo “pensar” para discutir os estereótipos de gênero ligados às


mulheres é significativa, pois um dos binários de gênero mais conhecidos é o par que opõe
mente e corpo, referido aqui já no primeiro verso: “a mulher pensa com o coração”.
Historicamente, as mulheres foram associadas à emoção, à sensibilidade, à delicadeza,
seríamos o “sexo frágil”. Em contrapartida, os homens foram associados à razão, à força, ao
intelecto. Elizabeth Grosz (2000) postula, em seu famoso ensaio “Corpos reconfigurados”,
que a dicotomia mente e corpo serviu para contribuir com a exclusão e mistificação das
mulheres. Para ela, a opressão patriarcal vincula as mulheres aos seus corpos muito mais
intimamente que aos corpos dos homens e tenta justificar essa identificação, limitando os
papeis sociais das mulheres a termos biológicos; tendo como base o essencialismo, o
naturalismo e o biologismo. Nessa perspectiva binária, a maternidade seria um dos fatores
biologizantes e limitadores. De acordo com Grosz:

A oposição macho/fêmea tem sido intimamente aliada à oposição mente/corpo.


Tipicamente, a feminilidade é representada (explícita ou implicitamente) de uma de
duas maneiras nesse cruzamento de pares de oposição: ou a mente é tornada
equivalente ao masculino e o corpo equivalente ao feminino (e, assim, de antemão
excluindo as mulheres como sujeitos do conhecimento, ou filósofas) ou a cada sexo
é atribuída sua própria forma de corporalidade. (GROSZ, 2000, p. 68)

A especificidade corporal das mulheres é, portanto, usada para explicar e justificar as


posições sociais e as capacidades cognitivas desiguais dos dois sexos, em que os corpos das
mulheres seriam previamente incapazes das realizações masculinas, “sendo mais fracos, mais
expostos à irregularidades (hormonais), intrusões e imprevistos.” (Grosz, 2000, p.69).
De acordo com a teórica australiana, essa dicotomia mente e corpo se relaciona a
várias outras para além de macho e femêa: razão e paixão, dentro e fora, sensatez e
sensibilidade, entre outras. Dizer que “a mulher pensa com o coração”, como vimos, é
reforçar um pensamento binário e essencialista que tenta se justificar pela biologia para incluir
as mulheres na categoria de “frágeis”. O segundo verso do poema reforça novamente essa
lógica: “a mulher pensa de outra maneira”; haveria uma maneira padrão de pensar, e este
padrão seria, obviamente, masculino. Em outras palavras, teria a mesma equivalência dizer:
“a mulher pensa diferente do homem”. No discurso do senso comum, a mulher é aqui
representada como um Outro, o diferente, sempre tomando como ponto de partida o
masculino como modelo ideal. Em seguida, a mulher é associada àquela que não pensa,

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voltando para o binário corpo e mente, em que a razão é masculina: “a mulher pensa em nada
ou em algo muito semelhante”, para logo após se alinhar com a futilidade, o consumismo: “a
mulher pensa será em compras talvez”. O verbo “será” e o advérbio “talvez” atuam como
operadores da ironia.
Nos versos de 6 a 9, a dimensão sexual da mulher vem à tona e também a preocupação
de ser julgada pelas preferências sexuais; depois de “pensar em sexo”, “a mulher pensa: se
fizer isso com ele, vai achar que faço com todos”. Nos versos de 10 a 13, surge mais uma vez
o tema da gravidez. Ao passo que pensa em engravidar, a mulher pensa, também, em “se
dedicar integralmente a uma carreira” e tenta pensar nisto antes de engravidar, o que remete à
injusta divisão social, na qual concerne à mulher a responsabilidade sobre os filhos e as
atividades domésticas. A mulher não consegue conciliar a dedicação integral a uma carreira
com a maternidade, pois ela é, quase sempre, a principal responsável pelos cuidados das
crianças. Nos versos 16 e 17: “a mulher pensa que deve ser uma supermãe perfeita / a mulher
pensa primeiro nos outros”, a idealização da maternidade volta a aparecer, não basta pensar
em ser mãe, há que ser “perfeita”, o que implica abrir mão de si em função dos filhos,
seguindo essa lógica machista.
Nos versos 18 e 19, a mulher é relacionada novamente ao pensamento em assuntos
triviais, associados pelo senso comum à futilidade, tais como os cuidados com a beleza e a
aparência. Nos versos finais, o poema retorna ao campo semântico do binário corpo e mente.
O último verso retorna de modo circular ao ponto de partida; “a mulher pensa
emocionalmente”, se articulando diretamente ao primeiro: “a mulher pensa com o coração”,
mantendo a mulher ironicamente no estereótipo de fragilidade e sensibilidade.
“a mulher quer”, último poema da seção, aborda diretamente a questão do desejo, pois
“querer algo” se relaciona semanticamente a “desejar”, “aspirar a alguma coisa”. Mais uma
vez, o que o senso comum, ou o discurso heteronormativo, pensa sobre os desejos das
mulheres recai em diversos clichês, muitos dos quais já apareciam nos dois poemas anteriores,
como veremos abaixo.

a mulher quer

a mulher quer ser amada


a mulher quer um cara rico
a mulher quer conquistar um homem
a mulher quer um homem
a mulher quer sexo
a mulher quer tanto sexo quanto o homem

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a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça lentamente


a mulher quer ser possuída
a mulher quer um macho que a lidere
a mulher quer casar
a mulher quer que o marido seja seu companheiro
a mulher quer um cavalheiro que cuide dela
a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar
a mulher quer conversar pra discutir a relação
a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar do flamengo
a mulher quer apenas que você escute
a mulher quer algo mais do que isso, quer amor, carinho
a mulher quer segurança
a mulher quer mexer no seu e-mail
a mulher quer ter estabilidade
a mulher quer nextel
a mulher quer ter um cartão de crédito
a mulher quer tudo
a mulher quer ser valorizada e respeitada
a mulher quer se separar
a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais
a mulher quer se suicidar
(FREITAS, 2012, p. 72)

O primeiro verso do poema indica o desejo de a mulher ser amada, que se liga ao
primeiro verso do poema anterior, “a mulher pensa com o coração”; os seguintes revelam que
este desejo está sempre ligado ao masculino: “a mulher quer ser amada / a mulher quer um
cara rico / a mulher quer conquistar um homem / a mulher quer um homem”. Não há no
poema um verso “a mulher quer uma mulher”, o que nos leva a pensar que o senso comum –
sem perder de vista que esses versos foram recortados de frases do google – pensa a
heterossexualidade como única relação possível, ou, ao menos, como relação exemplar.
Diversas teóricas feministas discutiram a heterossexualidade compulsória como um
problema central nas questões de gênero. É a manutenção dessa norma que implica padrões de
comportamento sociais femininos e masculinos (binários); que nega a existência de relações
homossexuais e lesboafetivas; e que prevê uma ordem compulsória entre sexo, gênero e
desejo. Para Monique Wittig (2017), há um pensamento straight que funciona como um
“conglomerado de toda sorte de disciplinas, teorias e ideias correntes [...]” (2017, p. 268) e

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que universaliza sua produção de conceitos em leis gerais que se pretendem verdadeiras em
todas as sociedades, em todas as épocas, para todos os indivíduos.
Esse pensamento straight e sua pretensão de universalidade implicam na dificuldade
em conceber uma sociedade em que a heterossexualidade não seja ordenadora de todas as
relações humanas e “sua própria produção de conceitos e processos que escapam à
consciência” (WITTIG, 2017, p. 269). Essa sociedade straight tem a necessidade de que exista
um diferente/outro para a manutenção de sua própria lógica. “ [...] o conceito de diferença
entre os sexos constitui ontologicamente as mulheres em diferentes/outros. [...] essa
característica ontológica da diferença entre os sexos afeta todos os conceitos que são parte do
mesmo conglomerado” (2017, p.270). Desse modo, “Homem” e “Mulher” são conceitos que
só existem em função de uma heterossexualidade compulsória. Wittig chega a afirmar que a
lésbica não seria uma “Mulher”, na medida em que rompe com essa norma, deixando de se
definir nos termos de uma oposição binária. Em diálogo com ela, Judith Butler afirma: “Se a
lésbica refuta a disjunção radical promovida por Wittig entre as economias heterossexual e
homossexual, então já não é mais uma lésbica? [...]” (2013, p. 183) e continua: “Pode-se
entender a sexualidade lésbica como contestação não só das categorias de ‘sexo’, ‘mulheres’ e
‘corpos naturais’, mas também de ‘lésbica’?” (2013, p. 183 e 184). Para Butler, a estratégia
mais eficaz é a completa apropriação e deslocamento das categorias de “identidade”, com o
intuito de problematizar constantemente essa categoria, sob qualquer uma de suas formas.
No poema, a lógica heteronormativa do senso comum é exposta quando tenta
inviabilizar a possibilidade de a mulher querer outra mulher, reforçando um desejo exclusivo
pelo homem. Nos versos que seguem, o desejo sexual da mulher é pensado em comparação ao
desejo masculino, sempre como ponto de partida, o que submete a mulher ao lugar do
diferente/outro, problematizado por Wittig: “a mulher quer sexo/ a mulher quer tanto sexo
quanto o homem”. A vontade de sexo é relacionada a mesma vontade do homem, evocando o
estereótipo de homem como sujeito do desejo e mulher como objeto do desejo.
Nos versos de 8 a 13 o estereótipo de mulher submissa volta à cena: “a mulher quer ser
possuída / a mulher quer um macho que a lidere” o que resulta no casamento, tido como
objetivo maior da mulher numa lógica patriarcal, seguindo os padrões da heterossexualidade
compulsória: “a mulher quer casar/ a mulher quer que o marido seja seu companheiro / a
mulher quer um cavalheiro que cuide dela”. No verso seguinte, a mulher retorna ao campo
semântico da dona de casa, responsável pelos filhos e pela casa: “a mulher quer amar os
filhos, o homem e o lar”. A partir do verso 14, a aparente estabilidade da relação heterossexual
que a mulher vinha construindo, no poema, começa a ser quebrada. A mulher começa a querer

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discutir a relação, a querer ser ouvida. Depois da crise na relação, ela começa a pensar em si
mesma: “a mulher quer estabilidade” e logo se torna consumidora: “a mulher quer Nextel / a
mulher quer ter um cartão de crédito”. O desejo que no começo do poema era sexual, no final
se torna um desejo de consumo, sobretudo depois da separação: “a mulher quer separar / a
mulher quer ganhar, decidir e consumir mais”, o que culmina com o desfecho irônico e
trágico: “a mulher quer se suicidar”.
Depois de desejar o homem, o sexo, o casamento, de viver a submissão, ela começa a
pensar em si mesma, se entrega ao consumo e quer morrer. Parece ser um destino de algum
modo libertador, se pensarmos que este é o fim não só deste poema como de toda a seção “3
poemas com o auxílio do google”. Quando a mulher começa a ter uma espécie de consciência
de sua submissão e passa a querer ser valorizada e respeitada, como está explícito no verso
24, ela deseja em seguida se separar, decidir e consumir mais e depois deseja a morte. É como
se o suicídio fosse uma espécie de fuga para esses problemas e uma “salvação” de toda essa
série de opressões a que esteve submetida.
Os vários tipos de desejo atribuídos a mulher são passados em revista, de modo
irônico, sem culminar numa solução ou desfecho grandioso, em que todos os conflitos seriam
desfeitos, em um mundo sem imposições. Fora do casamento heterormativo, no poema, não
está o paraíso, a tensão se mantém e a morte de si pode ser um caminho final de libertação de
todos os constrangimentos que assediam a mulher, o seu corpo, a sua vida. Não há, porém,
uma celebração do suicídio, como solução, uma vez que o poema mantém a abertura para a
reflexão e o incômodo de ter se confrontado e nos confrontado com os discursos que buscam
nos definir, nos disciplinar e também nos libertar.

Conclusão aos pedaços: uma breve colagem

Ao longo desta série de poemas, vimos que diversos estereótipos de gênero são
explicitados o que nos mostra que o discurso sobre as mulheres, na internet, é carregado de
uma ideologia machista e patriarcal. Até mesmo a escolha de “mulher” no singular, já aponta
para uma idealização dos sujeitos femininos, pois “mulher” não representa uma categoria
concreta, na medida em que não há uma mulher ideal/universal que possa ser compreendida
de maneira totalizadora, sendo mais adequado pensar em “mulheres”, com suas implicações
específicas de raça e classe. Se seguimos com Bakhtin (2011) e pensamos o enunciado como
resposta a uma corrente de enunciados anteriores, perceberemos que este discurso responde a

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uma série de clichês vigentes, construídos historicamente, sobre o papel das mulheres na
sociedade.
Tradicionalmente, as mulheres têm sido relegadas ao espaço privado, na medida em
que os homens ocupam o espaço público. Esse espaço privado implica os cuidados com o lar,
com os filhos – já que a maternidade aparece nesse discurso heteronormativo como uma
compulsão, um destino inescapável da mulher –, a manutenção das atividades domésticas e
priva as mulheres da disputa nos espaços de poder onde o conhecimento científico é
construído.
Essa seção de Um útero é do tamanho de um punho dialoga com outros poemas
presentes no livro que, em suas sete seções, problematiza diversas questões relacionadas ao
corpo das mulheres e ao seu papel numa sociedade estruturalmente machista e patriarcal.
Freitas não pretende indicar uma solução desses problemas, ela expõe os clichês através do
discurso que tenciona ironizar; tornando mais evidente como este é absurdo.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução


Renato Aguiar.4a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

COMPAGNON, Antoine. O trabalho de citação. Trad.: Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1996.

FREITAS, Angélica. Rilke shake. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

________. A mulher é: uma googlagem. eLyra: Revista da Rede Internacional


Lyracompoetics, n. 7, 2016. Disponível em:
http://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/130/126 acesso: 28 de agosto às 19:37.

GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. In: cadernos pagu. Trad. Cecília Holtermann n.
14, p. 45-86, 2000.

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HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. BH: EdUFMG, 2000.
PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: avant-garde, avant-guerre e a linguagem da ruptura.
Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Edusp, 1993.

WITTIG, Monique. O pensamento straight. Trad. Ana Cecília Acioli Lima. In: Traduções da
cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Orgs. BRANDÃO, IZABEL, et al.
Florianópolis/Maceió: Edusc/Edufal, 2017.

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TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE, E


DESOBEDIÊNCIA, DE LICÍNIO AZEVEDO

Jéssica Fabrícia da Silva (UNICAMP)


jefabricia@hotmail.com

Introdução

Pensar de forma ponderada a questão da dicotomia tradição e modernidade nas obras


Niketche, uma história de poligamia, da moçambicana Paulina Chiziane, e Desobediência, do
brasileiro radicado moçambicano Licínio Azedo, um livro e um filme, respectivamente, é
possível mobilizando-se conceitos como a condição do subalterno na sociedade moçambicana
e, mais especificamente, como essa condição é modificada pelo pós-colonialismo, que se
encontra imbricado a primeira concepção. Desse modo, buscar-se-á, nesse artigo, a partir da
lenda da princesa Vuyazi presente no romance de Paulina Chiziane e o filme Desobediência,
do cineasta Azevedo, demonstrar como a mulher moçambicana esforça-se para (sobre)viver
ao espaço repressor que mobiliza em seu alicerce questões dicotômicas já citadas.

Subalterno & pós-colonialismo

Em Pode o Subalterno Falar? Gayatri Chakavorty Spivak, crítica literária e teórica


indiana, discorre, como o título de seu artigo sugere, a (in)capacidade de fala do subalterno.
Vale ressaltar que a reflexão proposta por ela tem origem por meio da indagação sobre a
função do intelectual que intenta a representação do subalterno e a capacidade de agir deste.
Para Spivak, os subalternos são aqueles que abarcam “as camadas mais baixas da
sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante” (p. olhar). O que demonstra a agência dos subalternos, então, é a possibilidade de
“fala”, marca de autossuficiência à sociedade que os relegam.
Não se pode omitir o propósito mor a qual se propõe o estudo da teórica indiana:
Spivak questiona o que Michel Foucault e Gilles Deleuze compreendem por subalterno, que,

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na visão desses autores, segundo a teórica, seria composta por uma massa de indivíduos que
“[...] sabem muito mais do que [o intelectual] e certamente o dizem muito bem [...]”
(FOUCAULT apud SPIVAK, 2014, p.36). Desse modo, os autores entram no ponto crucial
do texto: não há mais a premência do intelectual para agenciar a fala do sujeito subalterno,
pois esse está capacitado a falar por si. Entretanto, “[...] devemos agora confrontar a seguinte
questão: no outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e
fora do circuito da violência epistêmica da lei e educação imperialistas, complementando um
texto econômico anterior, pode o subalterno falar?” (SPIVAK, 2014, p.70, grifos em itálico
do autor, grifos em negrito nosso). É importante fazer essa breve retomada do texto de Gayatri
Spivak, pois a estudiosa afirma categoricamente que o subalterno não pode falar: “[...] o
subalterno como sujeito feminino não pode ser ouvido ou lido” (2014, p.163). Desse modo,
ela expõe que a mulher enquanto intelectual carece de não cair na falácia de permitir que o
subalterno fale por ele mesmo: “o subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à
‘mulher’ como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não
definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não
deve rejeitar com um floreio” (SPIVAK, 2014, p.164).
Em outro ensaio em que discute sobre a questão da alteridade – Quem reinvidica
alteridade? –, Spivak evidencia que “no contexto pós-colonial global atual, nosso modelo
deve ser o de uma crítica da cultura política, do culturalismo político, cujo veículo é a
escritura de história legíveis, seja do discurso dominante, seja das histórias alternativas”
(1994, p.189, grifos nossos). Fazendo um paralelo entre a importância da escrita para a
construção de narrativas outras e o papel da mulher intelectual, pode-se conjecturar que a fala
do subalterno, hodiernamente, dá-se por meio da escritura – seja essa no texto narrativo seja
essa no texto fílmico.
No que tange a pós-colonialidade, Inocência Mata explicita que

[...] não tendo o termo a ver, necessariamente, com a linearidade do tempo histórico, o pós-colonial
pode ser pensado no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de
descolonização, ou da independência política, transformando tanto as entidades-sujeito como aquelas
que sempre foram vistas como objeto, [...] o que não quer dizer, a priori, tempo de liberdade: na
verdade, muitos romances escritos depois da independência, sobre esse tempo, são exemplo de como o
pós-independência não é sinônimo de liberdade e de liberdade de amarras de outros tipos (que não
aquelas coloniais) (2013, p.19, grifos em itálico da autora, grifos em negrito nosso).

Ao se referir a não-liberdade de outros tipos, Mata abrange a reflexão para as


narrativas não ditas durante o processo de independência: as falas de grupos minoritários,

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como mulheres e homossexuais, situam-se ainda mais na periferia dessas novas nações. Ela
ainda afirma que “[...] torna-se, por isso, necessário iluminar outros campos de marcação de
relações de poder (classe e ideologia política, raça e etnia, gênero e origem cultural),
protagonizadas pelas elites locais, e suscitadas, ou não, por qualquer tipo de diferença que
potencie hierarquizações [...]” (MATA, 2013, p.18).
Niketche, uma história de poligamia e Desobediência convergem, como já dito, nesses
dois pontos: retratam a vivência de personagens femininas e são obras pós-coloniais.

Niketche, uma história de poligamia

Percebe-se em Paulina Chiziane uma conscientização da importância da escrita


enquanto instrumento de luta e reinvindicação, de possibilidade de fala do sujeito subalterno,
pois a escritora reafirma em suas entrevistas e ensaios o quão significativo foi poder lançar
seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento (1990):

Reencontrei na escrita o preenchimento do vazio e incompreensão que se erguia à minha volta. A


condição social da mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Coloquei no papel a aspirações da
mulher no campo afectivo para que o mundo as veja, as conheça e reflita sobre elas. Se as próprias
mulheres não gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará
da forma como elas desejam. Foi assim que surgiu a minha primeira obra, Balada de amor ao Vento,
tornando-me deste modo uma das poucas escritoras do meu país. (CHIZIANE, 2013, p.202-203)

Em Niketche, uma história de poligamia, percebe-se que Paulina chega ao ápice de seu
fazer literário, consagrando-se como cânone em uma tradição narrativa de crítica a poligamia
(LEITE, 2012).
A história é narrada por uma personagem-protagonista, ou seja, em primeira pessoa,
Rami, que não estava satisfeita com o seu casamento com o comandante de polícia Tony.
Criada conforme os princípios da religião católica, Rami honrava a posição de esposa a qual
estava imbuída: era uma mulher submissa, que relegava os seus desejos. Todavia, mesmo
renunciando as suas ânsias em pró do marido, Tony não se incomodava em descumprir os
votos matrimoniais, traindo Rami e sempre se ausentando do lar. Exausta em ser preterida, a
narradora-protagonista move-se à casa de Julieta, a quem as vizinhas dizia ser amante de
Tony, e, chegando à moradia, uma discussão principia-se. Rami apanha e é humilhada por
Julieta; entretanto, surge entre elas um certo respeito-mútuo, pois Ju confessa que também
está sendo traída por Tony e não sabe onde ele se encontra. Assim, de casa em casa, e de

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discussão em discussão, sendo humilhada, Rami descobre que seu marido possui mais três
amantes: Luísa, Saly e Mauá Saulé.
Em um primeiro momento, a tentativa de Rami foi a de buscar nas tradições antigas,
como os ritos de passagem, meios de reconquistar seu marido e afastar as rivais – que era o
modo como as outras mulheres eram vistas pela narradora. Contudo, Rami não tem sucesso
em sua empreitada e principia a ponderar sobre como a poligamia fixou-se em Moçambique:

Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos sem


memória. Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo
deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência da religião. Islamizou-
se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-se de
imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e dominar.
Conheço um povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país.
Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à poligamia.
Cristianizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas
mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e
renunciou. A prática mostrou que com uma só esposa não se faz um grande
patriarca. Por isso os homens deste povo hoje reclamam o estatuto perdido e
querem regressar às raízes. Praticam uma poligamia tipo ilegal, informal sem
cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não aos costumes, sim ao
cristianismo e à lei. No momento seguinte, dizem não onde disseram sim, ou
sim onde disseram não. Contradizem-se, mas é fácil de entender A poligamia
dá privilégios. Ter mordomia é coisa boa: uma mulher para cozinhar, outra
para lavar os pés, uma para passear, outra para passar a noite. Ter
reprodutoras de mão-de-obra, para as pastagens e gado, para os campos de
cereais, para tudo, sem o menor esforço, pelos simples facto de ter nascido
homem. (CHIZIANE, 2004, p.92)

Rami, então, decide que o correto seria juntar todas as esposas e consumar a poligamia
como de fato ela é: com os direitos e deveres ao esposo e às mulheres, liderando e
aconselhando as esposas no que elas precisassem. Tony, em contrapartida, desespera-se pois
não era isso que desejava ao procurar o adultério.
Em determinado momento da obra, as mulheres descobrem que Tony possui uma nova
amante – a Eva – e convocam um tribunal para decidir se concordam ou não com esse
relacionamento e o que deve ser feito com o marido adultero. Elas, então, decidem que a
melhor maneira de se vingar é dominando-o na cama em um ritual dançando niketche, uma
dançando sensual e sexual das regiões da Zambézia e Nampula.
É a partir daqui que a lenda da princesa Vuyazi adentra na trama, pois uma das tias de
Tony decide conta-lhes como forma de repreensão após o episódio da dança, já que esse foi
tido como falta de respeito e insubmissão:

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— Era uma vez uma princesa. Nasceu da nobreza mas tinha o coração de
pobreza. Às mulheres sempre se impôs a obrigação de obedecer aos homens.
É a natureza. Esta princesa desobedecia ao pai e ao marido e só fazia o que
queria. Quando o marido repreendia ela respondia. Quando lhe espancava,
retribuía. Quando cozinhava galinha, comia moelas e comia coxas, servia ao
marido o que lhe apetecia. Quando a primeira filha fez um ano, o marido
disse: vamos desmamar a menina, e fazer outro filho. Ela disse que não.
Queria que a filha mamasse dois anos como os rapazes, para que crescesse
forte como ela. Recusava-se a servi-lo de joelhos e a aparar-lhe os pentelhos.
O marido, cansado da insubmissão, apelou à justiça do rei, pai dela. O rei,
magoado, ordenou ao dragão para lhe dar um castigo. Num dia de trovão, o
dragão levou-a para o céu e a estampou na lua, para dar um exemplo de
castigo ao mundo inteiro. Quando a lua cresce e incha, há uma mulher que se
vê no meio da lua, de trouxa à cabeça e bebé nas costas. É Vuyazi, a princesa
insubmissa estampada na lua. É a Vuyazi, estátua de sal, petrificada no alto
dos céus, num inferno de gelo. É por isso que as mulheres do mundo inteiro,
uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e ficam impuras, choram
lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi. (CHIZIANE,
2004, p.157)

Sabendo que se trata de uma obra literária, Niketche e uma lenda presente dentro dessa
narrativa; e, assim, compreendo, a partir de Aristóteles, a capacidade de verossimilhança do
fato criador15, pode-se depreender que a insubmissão da mulher dentro da sociedade
moçambicana foi sempre marcada como algo ruim e que precisaria ser punido. No decorrer de
Niketche, percebe-se mais nitidamente como a personagem de Rami sofre com as
consequências de uma modernidade que se favorece de uma tradição. Todavia, nos romances
de Chiziane não há uma tentativa de deslegitimar as tradições e leis moçambicanas, mas
discutir como elas, da forma como estão estruturadas, contribuem para a manutenção da
subalternidade feminina.
De certa maneira, esse mesmo processo também é observado em Desobediência, de
Licínio Azevedo.

Desobediência

Licínio Azevedo é considerado um dos maiores cineastas moçambicanos. Trabalhou,


nos anos de 1970 pós-independência em Moçambique, com nomes importantes do cinema
mundial, Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean-Luc Godard, sendo que deste último é perceptível a
influência nos filmes de Azevedo.

15
“Segue-se então que o poeta deve ser mais criador do que metrificador, uma vez que é poeta porque imita, e
por imitar ações. Continua sendo poeta mesmo quando se serve de fatos reais, pois nada impede que alguns
fatos, por natureza, sejam verossímeis e possíveis e, por esse motivo, seja o poeta o seu criador”
(ARISTÓTELES, 2000, p.48).

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Sobre o cinema africano, Fernando Arenas explicita que é “[...] fundamentalmente


uma atividade e uma experiência pós-colonial, pois refletem as intensas mudanças culturais e
sociais que vêm ocorrendo nas nações africanas como consequência de reviravoltas políticas e
econômicas que afligem constantemente o continente” (2007, p.143).
Assim, Desobediência é um filme do gênero docudrama, “[...] híbrido resultante da
fusão entre documentário e drama, que busca reconstruir ou retratar fatos históricos”
(RICKLI, 2011, p.02, grifos do autor). O filme conta, a partir de um episódio autêntico e
atuado pelos seus protagonistas no papel de atores, a história de uma camponesa
moçambicana, Rosa, acusada pela família do falecido marido, Tomás, de ser responsável pelo
suicídio dele, já que ela o contestava, sendo vista como uma esposa desobediente. A ideia de
realizar a película surgiu com Licínio lendo em um jornal a notícia de que Rosa, apesar de ter
sido absolvida por um juiz – que pode ser visto como representação da modernidade – e por
um curandeiro – representação da tradição, ainda era perseguida e acusada pelos familiares de
Tomás.
Durante as filmagens, o cineasta percebeu a necessidade de uma segunda câmera que
gravasse o making of, pois o conflito motivador do filme ampliou-se e gerava
comportamentos dos quais ele não sabia lidar, como a questão do curandeiro, pois a família da
Tomás não aceitava que o curandeiro fosse o mesmo que eles tinham ido da primeira vez, que
explanou o motivo do suicídio de Tomás: ele tinha se deitado com a mulher de seu irmão e
isso o perturbava muito. Não aguentando a pressão, Tomás começou a beber mais e tornar-se
agressivo, o que gerava as contestações de Rosa.
Nota-se, então, que apesar de se tratar de uma realidade muito mais próxima da
ficcional criada por Chiziane, pois a representação é (re)vivida pelos próprios agentes, a
perspectiva do cineasta ainda está presente ao fazer uso dessa segunda câmera, possibilitando
para o telespectador uma catarse, que capta toda a tensão enfrentada por Rosa, tensão dupla,
já que ela recria o que sentiu e o que sente enquanto experiência nova, ainda colocada em um
local de subalternidade.

Conclusão

O intuito desse artigo era explicitar que a tradição e a modernidade em Moçambique


se configuram de maneira a corroborarem para a manutenção da subalternidade da mulher,
não lhe dando direito a fala, seja por meio da escrita de autoria feminina, seja por um cineasta.
Todavia, deve-se observar que escrita em seus diferentes meios pode ser uma maneira de luta

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contra um sistema que não se obteve melhoras significativas para as mulheres após a
independência. Desse modo, deve-se refletir que “[...] pela escrita – que compõe esse
‘documentário literário’ – pode-se chegar a essa ‘história’ de vozes silenciadas, pois é
também a escrita a representação do indizível” (MATA, 2007, p.423).

Referências bibliográficas
ARENAS, Fernando. “Retrato de Moçambique pós-guerra Civil: a filmografia de Licínio de
Azevedo”. In: BAMBA, Mahomed; MELEIRO, Alessandra (orgs.). Filmes da África e da
diáspora: objetos de discursos. Salvador: EDUFBA, 2012, p.72-98.

ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Col. Os
pensadores).

CHIZIANE, Paulina. [Testemunho] Eu, mulher... Por uma nova visão do mundo. Abril –
NEPA/UFF, [S.l.], v.5, n.10, p.199-205, apr.2013. Disponível em:
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2017.

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LEITE, A. M. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 2ª ed. Lisboa: Colibri, 2013.

MATA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial – reconversões. Manaus:


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62

A ESCRITA FEMININA NO CARIBE ANGLÓFONO PÓS-COLONIAL

Dra. Lívia Vivas (UMinho)


E-mail: liviavivas@hotmail.com

Introdução

Os estudos feministas configuram uma das principais categorias discursivas no


domínio de investigação pós-colonial, viabilizando, ao compartilharem princípios comuns,
uma eficiente consonância entre os seus componentes de análise. Os cruzamentos entre essas
linhas favoreceram o aparecimento de considerações socioculturais articuladas, facultando a
eclosão da voz do Outro silenciado.
Os debates abordados pela teoria pós-colonial, no que se refere à categoria
universalista da mulher, têm sido alvo de reflexão, expandindo a teorização sobre a forma de
se versar sobre o seu lugar na contemporaneidade, os vários sujeitos oriundos do feminismo e
a própria transversalidade da questão de gênero, visto que os aportes que produzem
contribuem para a compreensão das dimensões dos papeis dos indivíduos, sendo essenciais ao
desenvolvimento de estratégias de enfrentamento às matrizes de desigualdade, visando
contribuir com deslocamentos, transformações, conexões e reposicionamentos, dentro de uma
proposta descolonial.
O fato de as mulheres negras reivindicarem seus próprios espaços em termos teóricos e
históricos culminou com o surgimento da explosão da produção literária feminina negra.
Essas publicações têm na questão racial um dos eixos basilares para a composição do enredo
que entremeia o curso de suas personagens e testemunham que o racismo não apenas opera
como ideologia e estrutura distinta, mas também interage com outras ideologias e estruturas
de dominação.
Procuramos catalogar e caracterizar nesse texto as vozes de romancistas negras
oriundas da segmentação do Caribe anglófono pós-colonial. Tais autoras compõem um
proeminente substrato literário em expansão e se concentram em expor e reformular pontos de
vista em relação à sua identidade cultural, tanto na própria região, quanto a partir dos mais
variados espaços da diáspora.

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63

Fronteiras do feminismo

Os estudos feministas configuram uma das principais categorias discursivas no


domínio de investigação pós-colonial. Ao refletirem acerca de suas avaliações em relação aos
fundamentos pós-coloniais e feministas, bem como ao paradigma que elaboram, os críticos
literários procuram apoiar suas convicções sobre a expectativa de agenciamento do sujeito
feminino submisso, tratando de inferir competências minuciosas, de maneira a consolidar
habilidosamente o pensamento intervencionista no discurso feminista. Depreendemos que os
pilares pós-coloniais e feministas viabilizaram, ao partilharem princípios conjuntos, uma
eficiente consonância entre seus componentes de análise crítica. Claramente, os cruzamentos
entre essas linhas oportunizaram o aparecimento de considerações sociais e culturais
articuladas, facultando que a voz do Outro silenciado pudesse restrugir.16
A crítica feminista tem sido questionada ao longo do tempo devido ao branqueamento
e ao ocidentalismo. O debate ampliado nas discussões abordadas pelo pós-colonialismo no
que se refere à categoria universalista da mulher tem sido alvo de reflexão, expandindo a
teorização sobre a forma de se versar sobre o lugar das mulheres na contemporaneidade, as
distinções entre elas, os vários sujeitos oriundos do feminismo e a própria transversalidade da
questão de gênero. As agendas associadas ao feminismo ocidental são vistas com profundo
ceticismo no terreno dos movimentos femininos pós-coloniais. Apesar das agendas em
comum, a incredulidade recíproca faz com que debates que poderiam ser bem articulados
16
Relativamente a questões de vitimização e agenciamento, Almeida (2013), no artigo Intervenções feministas:
pós-colonialismo, poder e subalternidade, ressaltou que estes elementos têm movido grande parte da crítica
feminista, pois se por um lado procura-se elaborar um discurso sobre a vitimização histórica e o legado desse
processo de silenciamento e invisibilidade, por outro, busca-se construir um conceito de agenciamento que possa
incluir as condições existenciais e materiais das mulheres como uma classe intricada, multifária, tangenciada
pelos diversos componentes identitários e pela existência manifesta de hierarquias de gênero, de classe e de raça.
Para a autora, a subalternidade como operador crítico não pode nem estar vinculada a um discurso vitimizante,
nem se tornar um elemento fetichizado e exotizado para um suposto consumo, visto que não há qualquer
grandeza em se fixar o sujeito subalterno nesse espaço excludente e destituído de possibilidade de poder e
agenciamento ou entregar nas mãos de outrem, geralmente um intelectual europeu, apesar de suas supostas boas
intenções - o destino a ele reservado. Em outras palavras, a advertência que Spivak (1988) faz em Can the
Subaltern Speak -de que para o intelectual é necessário estar consciente do seu papel para que não cometa o
equívoco de falar pelo outro ou mantê-lo na subalternidade-embora o feminismo não tenha sido entreposto
facilmente aos debates pós-coloniais e aos estudos culturais. Para demonstrar a interrupção do feminismo no
campo dos estudos culturais, Schmidt (2010, apud ALMEIDA, op. cit.) pontuou a indispensabilidade em
acreditar-se que as energias feministas no âmbito dos estudos literários possuem a competência de intervir no
discurso crítico, revitalizar o ensino e promover uma agenda educativo-pedagógica- política capaz de romper as
continuidades históricas das exclusões, da violência e do preconceito. Essa interrupção provoca a
desestabilização das estruturas patriarcais, a transgressão de paradigmas binários vigentes no campo social e
científico, a descolonização do pensamento em sentido amplo e irrestrito e a reinvenção de subjetividades.

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entre os dois grupos sejam acirrados e não possibilitem a abertura para um mútuo diálogo
profícuo. Refletir, portanto, a partir de histórias inteligíveis, alternativas e críticas, mantendo
essa postura desestabilizadora e intervencionista, torna-se função decisiva tanto da crítica pós-
colonial quanto da feminista contemporânea.

O fato de as mulheres negras reivindicarem seus próprios espaços em termos teóricos e


históricos culminou no surgimento da explosão da produção literária de autoria feminina
negra, como também da escrita sobre essas mulheres. Muitas dessas publicações têm na
questão racial um dos eixos basilares para a composição do enredo que entremeia o curso de
suas personagens e testemunham que o racismo não apenas opera como ideologia e estrutura
distinta, mas também interage com outras ideologias e estruturas de dominação.

Diversos autores criticam explicitamente o reducionismo econômico rígido e


argumentam que as mulheres negras em sociedades dominadas por indivíduos brancos
frequentemente são vítimas de exploração econômica através da raça. O mesmo pode se
proferir em relação à opressão de gênero. De acordo com Stasiulis (1987, p. 5), as feministas
negras “chegaram à quase unanimidade em concordar que a questão racial, mais do que a de
gênero, configura a sua primeira fonte de opressão.” As mulheres negras vivenciam o sexismo
na sociedade, em geral, através de construções de gênero racistas e etnicistas. Nos debates em
torno das experiências de mulheres negras, portanto, tanto estão envolvidos o sexismo quanto
o racismo. Esses dois conceitos se entrelaçam estreitamente e se combinam sob determinadas
condições, em um fenômeno híbrido. Dessa forma, é profícuo falarmos em racismo de gênero
quando nos referimos à opressão racial de mulheres negras, estruturada por perceções racistas
e etnicistas de papéis de gênero (CARBY, 1982, p. 214; PARMAR, 1982, p. 237, apud
ESSED, 1991). Não apenas as mulheres, mas também os homens negros são confrontados
com o racismo estruturado por construções racistas de papéis de gênero, sendo exemplos
notáveis o estereótipo do pai ausente ou o mito do violador negro (DUSTER, 1970;
HERNTON, 1965, p. 31).17

17
Ideologias de gênero específicas racionalizaram a adequação das mulheres negras às ocupações no menor
estrato do mercado de trabalho, já segmentado por questões de gênero. A atuação das mulheres negras foi restrita
quase exclusivamente à operacional. A natureza de seu trabalho cruzou linhas de gênero. Durante a escravidão,
as mulheres negras foram exploradas sexualmente e obrigadas a realizar o trabalho definido como
distintivamente feminino, mas, simultaneamente, foram forçadas a empreender o mesmo trabalho árduo
masculino. Após a abolição, essas mulheres auferiram as posições com piores remunerações tanto em funções
femininas quanto masculinas. Ao mesmo tempo, a maioria encontrou apenas ocupações domésticas nos lares das
famílias brancas, devido à discriminação flagrante que limitou o número de negros em empregos qualificados e
semiqualificados (HINE, 1989). Apenas na metade da década de 60, quando a legislação federal norte-
americana, forçada pelo movimento de direitos civis lançou um ataque à discriminação racial, as mulheres

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Em fins do século XIX, a doutrina de direitos iguais alimentou uma mobilização


feminista na Europa e na América do Norte e em outras colônias de povoamento (CONNELL,
1998). Por volta da década de 20, as mulheres nesses continentes haviam transgredido as mais
inconvenientes deficiências formais ou legais, mais notadamente em relação ao sufrágio, à
propriedade privada e ao acesso à educação. Ao mesmo tempo, o conceito de direitos iguais
conduziu a distintos questionamentos: se a subordinação das mulheres não era natural ou
justa, de que maneira acontecia? Como era sustentada?

As mulheres colonizadas, mesmo antes do surgimento dos ditames imperiais, eram


invariavelmente desfavorecidas em suas sociedades, de maneira que o reordenamento colonial
do seu trabalho originou resultados distintos daqueles dos homens colonizados, pois
necessitaram renegociar não apenas os desequilíbrios de suas relações com os próprios
homens de sua sociedade, mas também o agrupamento impetuoso de regras hierárquicas e
restrições que estruturavam suas novas relações com os homens e as mulheres do Império.

As mulheres colonizadas foram ambiguamente inseridas nesse processo. Excluídas dos


corredores do poder formal, experimentaram os privilégios e as contradições sociais do
imperialismo muito diferentemente dos homens colonizados. Ainda que tenham servido
discretamente no cotovelo do poder como esposas dos oficiais coloniais, confirmando os
contornos do império, mesmo que tenham percorrido instituições missionárias ou enfermarias
hospitalares em postos avançados ou trabalhado em lojas e em fazendas de seus maridos, as
mulheres coloniais não se envolviam nas decisões econômicas diretas ou militares do império
e muito poucas colhiam os seus fartos lucros. As leis matrimoniais, as leis de propriedade e de
terra e a violência intratável do decreto masculino as amarraram em padrões de gênero
desvantajosos e frustrantes. A vasta e fissurada arquitetura do imperialismo foi moldada sob
questões de género pelo fato de que foram os homens brancos que produziram e aplicaram as
leis e as políticas à custa de seus próprios interesses. Como tais, as mulheres brancas não
foram as espectadoras infelizes do império, mas foram ambiguamente cúmplices tanto como
colonizadoras e colonizadas, privilegiadas e restringidas.

negras adquiriram ocupações tradicionalmente desempenhadas por mulheres brancas. Às mulheres negras foram
impostos os piores empregos qualificados e semiqualificados. Tais tipologias de preconceito de gênero e de
classe foram racionalizadas por construções ideológicas de feminilidade e sexualidade racialmente específicas,
representando os modelos opostos aos de mulheres brancas de classe média. Ao contrário da imagem patriarcal
dessas mulheres, consideradas fracas, dependentes, passivas e monogâmicas, as mulheres negras foram
concebidas como trabalhadoras, fortes, dominantes e sexualmente promíscuas (DAVIS, 1981; HOOKS, 1981).
Supostamente, deveriam ser subservientes e estar dispostas a nutrir crianças brancas às custas de suas próprias
crianças. As suas imagens racionalizaram a violação de seu papel enquanto mães e o seu controle através da
violência e da exploração sexual (DAVIS, 1978, 1981; HOOKS, 1981).

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As mulheres negras possuem uma sólida tradição de autonomia e independência. Para


Essed (1991), essas mulheres são mais assertivas e menos conformadas do que as brancas na
ideologia do papel sexual devido às suas longas experiências como trabalhadoras e aos seus
contínuos desafios em resistir ao racismo e ao sexismo (ADAMS, 1983; MALSON, 1983).
Embora exista a tese de que a independência autossuficiente foi exagerada (RANSFORD &
MILLER, 1983), o estereótipo da matriarca negra permanece e deve, assim, também ser
compreendido em termos de suas implicações sexistas.
A recessão econômica após a Segunda Guerra e a passagem da produção industrial à
tecnológica dispuseram diversos trabalhadores negros não-qualificados em condições
vulneráveis. As deterioradas condições económicas da maioria da população negra e da
população desempregada conduziram ao crescimento de famílias lideradas por mulheres de
cor. Nesse contexto, a imagem da matriarca negra foi revivida (MOYNIHAN, 1965) e
impulsionou um estereótipo que mescla imagens sexistas, racistas e classistas das mulheres de
cor, assim reforçando a polarização de gênero. Após ignorar a imprescindibilidade econômica
de tais mulheres trabalharem fora do lar, muitos a acusaram de ocupar postos de trabalho
destinados a homens negros e de privá-los do papel de chefes de família.
O imperialismo e a concepção de raça foram elementos relevantes no Ocidente e na
modernidade industrial, sendo que nas metrópoles urbanas tal concepção tornou-se central
não apenas para a autodefinição da classe média, mas também para o policiamento das
“classes temerárias”, ou seja, a classe trabalhadora, os judeus, as prostitutas, as feministas, os
homossexuais, os criminosos e assim por diante. O imperialismo, por outro lado, não pode ser
completamente compreendido sem que se considere que o poder da categoria gênero não era a
pátina superficial do império, um brilho efêmero sobre a mecânica mais decisiva dos
elementos classe ou raça. Ao invés disso, a dinâmica de gênero era, desde o início,
fundamental para a garantia e a manutenção do império. A categoria gênero, entretanto, não
foi a dinâmica dominante do imperialismo industrial. Desde o final da década de 70, uma
crítica feminista entusiasta e convincente emergiu- em grande parte por iniciativa de mulheres
negras- desafiando as feministas eurocêntricas que reivindicavam dar voz a uma feminilidade
essencial (em conflito universal com uma masculinidade essencial) e que privilegiava a
questão de gênero sobre todos os demais conflitos.
O surgimento do movimento feminista negro transportou o debate que se travava entre
os marxistas e as feministas sobre as categorias de sexo e classe, para outra esfera, provando
que o fator raça deveria se articular aos demais, o que suscitou que esses elementos
coexistissem não apenas quando relacionados às desigualdades entre homens e mulheres, mas

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entre os componentes desses grupos, separadamente. Dessa forma, gênero, etnia, raça e classe
passaram a ser tratados como elementos distintivos das relações sociais e que a partir de uma
aplicação simultânea contribuíam para dar voz ao subalterno.
A condição feminina é considerada um quesito social relevante e complexo e a mulher
já não é mais compreendida em termos estáveis ou permanentes, conforme afirmou Butler
(2003, p. 18), para quem as questões de gênero não são estáticas, moldadas a partir de
elementos que lhe atribuem coerência ou consistência. Contrariamente, interagem com
modalidades raciais, de classe, dentre outras, que permitem caracterizarmos a sua
instabilidade moderada, sobretudo, por fatores histórico-culturais e sociais que lhes propiciam
dinamismo ao assinalar a sua atuação enquanto elemento inter-relacional que não deve ser
examinado de forma isolada. O gênero, muito além de ser uma interseção entre as demais
categorias, como argumentou Butler, passa a coexistir com as mesmas, conforme reforçou
Linda Nicholson. Para Butler (Id.), o gênero é aplicado às pessoas como um sinal de diferença
biológica, linguística e/ou cultural. A partir dessa perspectiva, essa categoria é considerada
um efeito da linguagem, produzida e gerada a partir de discursos e não da biologia. Dessa
maneira, é compreendida como relação social que ocorre em um campo discursivo e histórico
de relações de poder, de direitos entre homens e mulheres.
Em O segundo sexo (1949), Simone de Beauvoir, partindo de uma terminologia
filosófica, denomina a mulher como o “outro”. Argumenta que o homem é o sujeito, o
absoluto; a mulher, pelo contrário, é o possuído, o outro, o “ocasional”, como a propriedade
do homem. Em oposição a Beauvoir, Butler (Id.) argumentou que tanto o sujeito como o
Outro são os esteios de uma economia significante falocêntrica e fechada, que atinge seu
objetivo totalizante por via da completa exclusão do feminino. Para Beauvoir, as mulheres são
o negativo dos homens, a falta em confronto com a qual a identidade masculina se diferencia.
Para Butler, o sexo feminino não representa uma “falta” ou um “Outro” que define o sujeito
negativamente em sua masculinidade e o feminino jamais poderia ser a marca de um sujeito,
como defendeu Beauvoir. A relação entre masculino e feminino não pode ser representada em
uma economia significante em que o masculino constitua o círculo fechado do significante e
do significado.
McClintock (1994) também considerou que até recentemente a relação crucial, porém
oculta, entre género e imperialismo não foi reconhecida ou foi desdenhada como um fato
consumado da natureza. A autora acrescentou que os teóricos do imperialismo e do pós-
colonialismo raramente sentiram-se movidos a explorar a dinâmica de género do imperialismo
e que até mesmo a obra Orientalism (1978), de Said, com a sua expressiva relevância e

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influência, não explora o género como uma categoria constitutiva do imperialismo. A vasta e
crucial história dos povos negros na Grã-Bretanha, Staying Power: The History of Black
People in Britain (1984), de Peter Fryer, também é quase silenciosa em relação à condição
feminina, assim como a valiosa análise da cultura popular negra em There Ain’t No Black in
the Union Jack (1987), de autoria de Paul Gilroy.
As evidências emergiram de modo a estabelecer que mulheres e homens não
experimentaram o imperialismo da mesma forma. O imperialismo europeu foi, desde o início,
um encontro devastador entre hierarquias de poder preexistentes que tomaram forma não
como o desdobramento de seu próprio destino interior, mas como uma interferência
desordenada e oportunista com outros regimes de poder. Tais encontros, por sua vez,
transformaram as trajetórias do imperialismo. A partir desse longo e engajado conflito, as
dinâmicas de gênero de culturas colonizadas foram contorcidas de tal forma a alterar, por sua
vez, as formas irregulares que o imperialismo tomou em várias partes do mundo.
Enquanto características como a agressividade e o domínio são consideradas positivas
para o homem branco em uma sociedade capitalista altamente competitiva, as mesmas
particularidades tornam-se negativas quando atribuídas a mulheres negras. Tais estereótipos
são reforçados através da literatura e da mídia (JOSEPH & LEWIS, 1981) e afetam a todas,
independentemente da sua origem de classe. Eles racionalizam forças em sociedade com o
propósito de manter essas mulheres no estrato mais inferior. Assim, podem ser utilizados
flexivelmente para racionalizar a exploração das mulheres negras como trabalhadoras, assim
como a sucessão de práticas discriminatórias que impedem aquelas que possuem altos níveis
educacionais em seus esforços na consecução de seus propósitos.18
Como afirmou R. W. Connel (Op. cit., p. 23), as teorias socio científicas de gênero são
uma criação do Ocidente, definitivamente modernas. Outras civilizações tiveram suas
18
Para um aprofundamento relativo aos aspectos raciais da opressão feminina negra, o fator raça deve ser isolado
das condições sociais e económicas opressoras associadas à escolaridade deficiente e à exploração económica.
Mulheres negras com formação em nível superior constituem um grupo particularmente relevante para a
investigação sobre o racismo porque, tradicionalmente, consideram a realização pessoal através da educação um
elemento fulcral que lhes oportuniza consideráveis avanços sociais. Enquanto a opressão de classe limita os
recursos económicos e as oportunidades educacionais da maioria das mulheres negras, a discriminação de raça-
género no mercado de trabalho enfraquece os benefícios educacionais da classe média. Mulheres negras
consistentemente compõem um grupo que apresenta um alto índice de desemprego e de rendimentos
insignificantes em relação aos homens negros. Estas e outras categorias de racismo de género impedem o
progresso de mulheres negras com escolaridade superior, em suas carreiras. Há uma série de adversidades
estruturais que as mulheres negras enfrentam quanto à escolarização universitária e à obtenção e permanência em
suas ocupações. A falta de modelos as coloca em uma posição desvantajosa, se comparadas às mulheres brancas.
Elas ainda são rotineiramente subestimadas, tendência nitidamente contrastante com suas ambições, geralmente
elevadas.

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próprias formas de lidar com a sexualidade humana e as relações entre os sexos. Como a
questão do erotismo indiano e os códigos de família ilustram, esses podem ser tão sofisticados
e elaborados como qualquer criação do Ocidente. Apenas possuem categorias de formação
cultural distintas.
Os aportes produzidos pela crítica feminista e pelos estudos de género contribuem para
a compreensão das diversas dimensões dos papéis dos indivíduos, assim como são essenciais
para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento às matrizes de desigualdade. Em uma
perspetiva antirracista e anti classista, busca dialogar com o feminismo e os estudos de
género, visando contribuir com os deslocamentos, as transformações, as conexões e os
reposicionamentos, dentro de uma proposta descolonial.

A escrita feminina no Caribe

A separação da escrita feminina caribenha de todo o cânone, tanto em termos de crítica


ou de temas de conferência, é uma ramificação do movimento feminino e permite às mulheres
escritoras e aos críticos literários engajarem significantes discussões nesse campo, de uma
maneira concentrada e produtiva. Os estudos de gênero cruzados são ponderosos, de maneira
que o entrelaçamento da história literária feminina com a de autoria masculina é também
explorado e compreendido. As questões que interessam à crítica incluem as conexões entre os
afro-caribenhos, os afro-americanos e a escrita feminina africana, as questões de classe, de
raça e de etnia, especialmente o papel e o contributo de escritoras indo-caribenhas e crioulas
brancas.
A produção literária anglófona caribenha é tão diversa e tão complexadamente
localizada -na região, na Grã-Bretanha, no Canadá, nos Estados Unidos- que é impossível
fixar uma forma de lê-la. Temas como o pós-colonialismo, o feminismo, o pós e o
neomodernismo e as abordagens dos estudos culturais estão bem estabelecidos nesse campo,
como em outros do estudo literário pós-colonial. Os contextos históricos e os culturais
explicam os parâmetros em contínua transformação de uma região diversa que sofre ameaças
da ordem global e de influências comerciais transnacionais. É uma criação que tem
contribuído significativamente para a potência da cultura caribenha contra a opressão e a
apropriação externa.
Em Anglophone Caribbean literature (2008), Elaine Savory, quando abordou a escrita
feminina e as questões de gênero, pontuou que desde 1980, quando o movimento feminino no
Caribe se tornou influente e organizado, a escrita feminina cresceu significativamente tanto

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dentro quanto fora da região. O suporte à escrita feminina foi impulsionado tanto pela
Caribbean Women Writers, cuja data da primeira conferência foi em 1988, quanto pelo jornal
Macomere que, juntos, propiciaram um fórum acadêmico sobre a escrita feminina.
Adicionalmente, antologias como Creation Fire (1990) e jornais literários como The
Caribbean Writer encorajaram as escritoras femininas a publicarem na região.
A história da escrita feminina caribenha anglófona remonta à escravidão. The History
of Mary Prince (1831) pertence à tradição das narrativas de escravos dos Estados Unidos e do
Caribe que testemunhou as condições de vida do sistema de plantation durante a escravidão,
onde as experiências femininas eram particulares e frequentemente envolviam relações
sexuais coercitivas entre negras e brancos. De forma semelhante, a narrativa Crimean (1857),
de Mary Seacole, permitiu às vozes femininas caribenhas romper estereótipos estabelecidos.
Um conhecimento minucioso sobre os aspetos sociológicos relativos à mulher caribenha é
extremamente considerável na crítica de textos feministas.
A política é um tema marcante na escrita feminina caribenha, assim como na
masculina. É complexamente composto por interseções de vertentes políticas importantes, a
exemplo da luta em favor da descolonização, contra o racismo e a pobreza, e relativamente
em desenvolver e proteger as identidades caribenhas e culturas, tanto quanto a preocupação
com a questão feminista.
Em termos de estilo, há mais escritoras de ficção, com predomínio de romancistas em
relação a poetisas e dramaturgas. Um notável volume de textos demonstra, através de formas
inovadoras de narrativa, não apenas a experiência caribenha, mas particularmente a afro-
caribenha - a exemplo de Angel (1987), de Merle Collins. Esse fato é demonstrado sob a
forma de ensaio crítico em Black Women, Writing and Identity: Migrations of the Subject
(1994), de autoria de Carole Boyce Davies.
Embora a produção de Jean Rhys seja a mais extensa dentre as escritoras do Caribe
anglófono, o corpo literário pertencente a Paule Marshall, a Jamaica Kincaid, a Michelle Cliff
e a Beryl Gilroy, assegura estudos críticos mais amplos. Há diversas investigações a respeito
das obras de Marshall e Kincaid, porém Cliff e Gilroy são relativamente negligenciadas. Há
ainda jornais literários como o The Journal of West Indian Literature, o Sargasso, o The
Caribbean Writer e o The Jean Rhys Review que publicam tanto trabalhos críticos quanto
criativos sobre os escritores caribenhos em geral.

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Conclusão

A partir de um grupo significativo de escritores, procuramos catalogar as vozes de


romancistas e de poetas oriundos da segmentação do Caribe anglófono. Tais autores
compõem um proeminente substrato literário em expansão e concentram-se em expor e em
reformular pontos de vista em relação à identidade cultural, tanto situando-se fisicamente na
região, quanto a partir dos mais variados espaços da diáspora. Os conteúdos mais
expressamente narrados são a interação de nativos em âmbitos familiares, a contextualização
de práticas folclóricas, a exposição de adversidades do passado histórico da região, como a
escravidão e as suas consequências em condições pós-coloniais, as particularidades que
envolvem o contexto linguístico local, como a formação, o desenvolvimento e a propagação
da língua crioula, as experiências diaspóricas, além das mais variadas conjunturas que
envolvem a tese em torno da construção da identidade cultural da sociedade, nomeadamente
de origem africana. É eloquente ressaltarmos a consciência aguda desses escritores no que
respeita aos relevos sociais e políticos das ilhas que compõem a região, que os enredos de
suas narrativas são construídos fundamentalmente em torno de questões que envolvem a
classe operária e menos frequentemente a classe média, e que a maior parte do grupo é de
descendência africana, sendo os crioulos brancos constituintes de um grupo menor.
Outro fator relevante é que a maior parte da produção literária é escrita e publicada
fora do Caribe e o público leitor é maioritariamente estrangeiro, o que revela uma falta de
conexão entre o escritor e o seu potencial público interno, um dos pontos que configura a falta
de espaço adequado para o escritor em sua própria sociedade, situação que em parte justifica o
exílio, que é explicado também devido aos recursos escassos e às condições sócio-económico-
culturais das ilhas, além do poder que a nação metropolitana possui. Esses são pontos que
ocasionam o hibridismo característico da cultura caribenha- embora esse seja um atributo
comum às nações que passaram pela experiência colonial- com a fusão entre as culturas de
raiz e a dos colonizadores.
A questão linguística também aparece como um dos extratos centrais das subseções e
sua abordagem é controversa. O idioma padrão é a língua inglesa, que propicia a comunicação
em moldes formais, de maneira que a voz do escritor ultrapassa as fronteiras geográficas e ele
pode existir para o Outro. Questionável, entretanto, é o fato de que o escritor precisa conceber
o advento de utilizar o inglês como idioma de referência para descrever a sua cultura negra,
em diversas perspetivas tão distinta da cultura metropolitana branca. Nesse sentido, um dos
conflitos em torno da identidade cultural nacional é pautado na linguagem, visto que há uma

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identificação entre esses elementos. Tais fatores não impedem, entretanto, que o inglês crioulo
seja a língua afetiva utilizada entre os caribenhos e sirva para dar voz às personagens dos
diversos romances.
No âmbito das questões feministas, foi dada ênfase aos fragmentos divergentes entre
as agendas relativas ao feminismo branco e ao negro, e nessa matéria retornou-se à discussão
em torno da questão racial, que é precisamente o que distingue a mulher de cor, fator que tem
suscitado demasiados debates e produções literárias nesse grupo, além do crescimento de
movimentos feministas negros. A escrita feminina negra caribenha originou-se na época da
escravidão e tem suscitado discussões em contextos raciais, políticos, de classe e culturais.

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A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO ROMANCE AS PARCEIRAS

Maria Juliana de Jesus Santos (UFS)19


E-mail: juliana.j.santos@hotmail.com

Introdução

O Presente artigo tem como objetivo central analisar textos literários a partir dos
estudos de gênero, identificando os tipos de violência doméstica em algumas obras
contemporâneas de autoria feminina, mas especificamente, As parceiras, da escritora Lya
Luft. O romance de Luft faz parte da década de 1980 e como contexto apresenta nuances da
violência contra a mulher. Nesse critério, proporemos um revisionismo literário que busque
averiguar como essas formas de poder se encontram distribuídas na obra, além de apresentar a
importância de temas atuais e recorrentes no texto literário, como método de denúncia e
questionamento social.
A partir das constatações que temos sobre como o cotidiano das sociedades está
repleto de manifestações de violência, dentre as quais, a violência de gênero destinada às
mulheres, que passa por diferentes etapas: simbólica, física, sexual e feminicídio. Esse tema
social vem chamando a atenção de muitos pesquisadores, os quais colocam em pauta estudos
e debates quanto a este fenômeno. Nessa medida, a finalidade dos estudos de gênero é
evidenciar tais práticas. Desse modo, analisamos como a violência de gênero é representada
na literatura com a prerrogativa de trazer reflexões críticas sobre esses crimes praticados na
sociedade brasileira.
Neste sentido, ao analisar o texto literário a partir dos estudos de gênero, propomos
uma estratégia de leitura que identifique os diferentes tipos de violência de gênero em textos
de autoria feminina. Para isso, primeiramente abordamos questões de violência doméstica na
sociedade brasileira e os aspectos das representações de gênero conforme a Lei Maria da
Penha; aplicamos os estudos propostos por Lia Zanotta Machado no que se refere à violência
de gênero e abordagens de Elódia Xavier sobre as classificações do corpo e da casa em ficção
de autoria feminina; e em seguida, passamos a análise do texto de Lya Luft para exemplificar
como a literatura de autoria feminina questiona a violência de gênero.

19
Mestranda em Letras/ Estudos Literários pela UFS. Bolsista CAPES.

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75

Aplicamos, então, duas etapas a esta proposta. Inicialmente, retomamos a teoria a fim
de mostrar como a violência de gênero se faz presente no meio sociocultural e em seguida,
através de algumas evidências trazidas no texto literário e que foram associadas à realidade.
Assim, através da ficção, procuramos comentar sobre os conflitos sociais com a intenção de
identificar estas tensões e não as naturalizar. Para a fundamentação teórica deste trabalho
recorremos às perspectivas de vários estudiosos, dentre tantos, a antropóloga Lia Zanotta
Machado, que formula conceitos da violência de gênero voltados a uma perspectiva social que
engloba a simbólica, física e sexual, dando maior visibilidade ao problema e permitindo a
aplicação de tais conceitos nas referidas obras literárias.
A violência de gênero está entre as maiores estatísticas de crimes da sociedade
brasileira, sua prática está ligada a atos de inferiorização da mulher, seja por meio de palavras
ou pela utilização da força de dominação bruta. Faz-se necessário então, enfatizar as
diferenças entre a violência simbólica, física, sexual e feminicídio. A primeira atinge o
psicológico, por meio de humilhações, ameaças ou chantagens emocionais; por meio de
palavras os agressores procuram inferiorizar a vítima, que fica marginalizada e exposta ao
ridículo. A sexual é descrita pela Lei Maria da Penha como “qualquer conduta que constranja
à mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força” (BRASIL, 2006) .
Quanto à violência física, de acordo com Lia Zanotta Machado, há várias etapas em
relacionamentos conjugais passando por surras, agressões corporais, tapas, como força de
dominação bruta à mulher, ocasionando muitas vezes a morte (MACHADO, 2006). Nesse
sentido, o feminicídio é a consequência final de violências contínuas aplicadas à mulher
devido à discriminação de gênero, ou seja, por serem mulheres. Este tipo de ato é resultado de
um “padrão cultural que é aprendido e transmitido ao longo de gerações” (PASINATO, 2011,
p. 230). Ao verificarmos que as formas graduais das agressões conduzem ao feminicídio,
percebemos que estas ações decorrem da diferença de poder entre homens e mulheres, um
poder desigual que procura ser mantido pelo homem a todo custo. Observamos, inclusive,
como as agressões são predominantes e como resultam em estágios finais, por exemplo, na
morte de muitas mulheres, seja pelo controle de normas sociais ou defesa da honra masculina.

A violência de gênero na perspectiva sociológica

A violência de gênero é classificada por Machado (2010) como uma construção social
que se repete em vários setores sociais. Ela destaca que a postura cruel do homem é parte da

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76

violência social, visto que “em nome do controle, do poder e dos ciúmes, os atos tendem a ser
de violência cotidiana e crônica física, psíquica. Podem e desencadeiam em morte”
(MACHADO, 2010, p. 57). Assim, a violência contra a mulher vai além do assassinato, pois
passa também pela invisibilidade que esses casos sofrem nas delegacias, espaço predominante
masculino, no qual o corpo feminino sofre novo controle e punição de um corpo disciplinado
por “esquemas predeterminados, e repressores” (XAVIER, 2007, p. 59).
A origem dessas agressões tem ligações com as relações socioculturais, que são
naturalizadas, em nosso país, e faz parte do cotidiano de muitas mulheres há muito tempo. Por
isso, reforçar o debate sobre esse assunto para os/as leitores/as permite, de certo modo, uma
visão crítica a fim de se questionar e discutir as principais medidas e soluções. Nessa esfera,
partimos, primeiramente, de abordagens feministas a fim de abranger e aprofundar o tema.
De antemão, por meio dos dados estatísticos, por exemplo, podemos destacar que no
campo social, a violência de gênero ainda traz dados alarmantes: 77% dos assassinatos de
mulheres são cometidos por homens abandonados por sua parceira. Para piorar esse quadro,
na grande maioria das vezes, tal crime é antecedido por agressões físicas e sexuais. Portanto,
“os femicídios são “domésticos” e se traduzem no ponto final da escalada desta violência
doméstica cotidiana” (MACHADO, 2006, p. 15).
Mesmo com a existência de leis que assegurem às mulheres de seus direitos, como por
exemplo, a Lei Maria da Penha (sancionada em 2006) e a Lei do Feminicídio (aprovada em
2015), essas instâncias não conseguem dar conta do número de casos de violência contra a
mulher. Ainda precisa de investimentos nas delegacias, contratações de profissionais que
atendam às necessidades da vítima (segurança, assistência médica, etc). As elaborações destas
leis foram consideradas um grande marco na história feminina, mas é preciso ainda que a
sociedade, em geral, desconstrua o pensamento patriarcal predominante na realidade
brasileira.
A partir da história da sociedade, pode-se notar que determinados estereótipos
precisam ser rompidos, para surgirem novos significados e transformações positivas. Embora
a mulher tenha conseguido mudanças satisfatórias, como por exemplo, controle do próprio
corpo, participação na política, uma profissão, ainda há muito a ser mudado. As principais
mudanças positivas, para diminuir o preconceito existente e a violência de gênero entre os
sujeitos, deveriam ser partidas do primeiro grupo de ‘contacto’ social do indivíduo: a família.
Porém, essa instituição reflete os valores ideológicos da igreja e da cultura, os aderem como
atos preconizados e naturais, estabelece, assim, uma sociedade em que ainda o “patriarca”

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desempenha a função de submeter a esposa/companheira a determinados prazeres e


satisfação.
Por essa razão, vários estudos feministas desempenham importante atuação na
mudança de pensamentos e valores misóginos. Desta forma, após apontarmos um debate
sociológico em torno do tema, apresentaremos a análise literária que destaca essa forma de
poder às mulheres, sob as diferentes formas e práticas de violência que mata milhares de
mulheres todos os dias. Por essa razão, promoveremos algumas medidas capazes de diminuir
o problema, através do texto literário, que faz uma denúncia social a muitos problemas, dentre
eles, a violência de gênero.
Nesta trilha, partimos do reconhecimento de que as escritoras brasileiras,
especialmente, a partir da divulgação de obras dos anos 70, trazem para o texto literário
problemas da violência de gênero, pois “a literatura de autoria feminina, no século XX, passa
a questionar os diferentes tipos de violência física e simbólica contra a mulher quando repudia
a dominação masculina” (GOMES, 2013, p. 03). A escrita literária se aproxima da luta
feminista quando denuncia a opressão, pois

Pode-se, efetivamente, afirmar que a voz feminina destaca-se no contexto cultural da


pós-modernidade, na medida em que, apropriando-se da palavra, denuncia sua
exclusão e defende seu direito de falar e de representar-se nos diferentes domínios
tanto públicos quanto privados (ZINANI, 2013, p. 242).

Nesse sentido, destacamos que a “escrita, ela mesma gerada nos domínios da razão do
conhecimento e da verdade, não é um meio neutro e transparente, uma vez que razão,
conhecimento e verdade são também os meios dos quais a violência e o delito são
perpetrados” (SCHMIDT, 2013, p. 222). A escrita de autoria feminina procura mostrar a
matéria histórica da mulher e os efeitos produzidos tanto na dimensão real quanto na fictícia.
A partir desses dois estudos (o sociológico e o literário) apresentaremos a análise do romance
escolhido. A obra de Luft retratará as classificações da violência de gênero e como esse
fenômeno está representado em suas personagens.

Violência e Culpabilização das Vítimas: o retrato de uma sociedade machista

A violência contra a mulher está atrelada à dominação masculina, que preconiza o


modelo tradicional de família em detrimento da liberdade de expressão feminina, educando-
as, portanto à submissão e as punindo por meio das diversas formas de violência quando não
cumprem as normas sociais impostas a seu gênero. A complexidade desse crime foi levada em

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conta na hora da análise do texto literário de Lya Luft. Deste modo, verificamos como essa
escritora denuncia as formas de violência a que estão sujeitas as mulheres, além de salientar o
quanto a sociedade ainda as culpa pelos crimes em que são vítimas. Realizamos a análise do
romance As parceiras, de Luft.
O romance As parceiras (1980), de Lya Luft, apresenta a violência de gênero como
parte do controle familiar. Temas como assédio, exploração sexual e loucura compõem o
olhar crítico da obra. Este tipo de violência ocorre em qualquer tipo de ambiente, neste caso
foi no ambiente rural, em um chalé, habitado por uma família de classe média alta. As
diferentes formas de violências são evidenciadas a partir da personagem Catarina, através de
memórias e recordações de sua neta, Anelise. O enredo narra fatos que vão do estupro ao
isolamento, especificamente na personagem Catarina, dentro do casamento. Esta personagem
apresenta a “infância destruída” por atos cruéis do companheiro, embora na época a união
matrimonial fosse “um acordo naturalizado”, a presença da violência sexual na vida da vítima
de apenas 14 anos era predominante e as formas de realização de desejos para seu
companheiro eram tidas como comuns.
Em um ensaio a escritora Iara Barroca, pesquisadora das obras luftiana, apresenta uma
entrevista sobre Lya Luft, e dentre os questionamentos há a predileção temática de temas
como família, morte e condição da mulher, recorrente em praticamente todas as suas obras,
inclusive no romance analisado.

IB: Os romances publicados até o final da década de 80 privilegiam visões que


esboçam uma representação para a questão da família, da morte, da condição
feminina e, principalmente, para a condição humana. Como você explicaria essa
“predileção temática”, se assim a isso eu posso chamar, e por que esses conflitos
tanto povoam o seu imaginário ficcional? Lya Luft: Não faço a menor idéia.
Sempre observei, e sempre me fascinaram as questões existenciais humanas, sendo
as principais, para mim, relacionamentos amorosos (incluindo familiares), vida e
morte, e o sentido de tudo que nunca encontraremos. Cada escritor tem seu
território: esse é o meu, em ficção e poesia. Nele me sinto bem, e mesmo temas
sombrios escrevo com grande alegria, grande prazer. Muito lúdico (BARROCA,
2011, p. 316).

Como percebemos, há temas predominantes na obra de Luft, marcado por um teor


introspectivo e denunciativo. Na obra, em análise, nos deteremos nas formas de violência que
a personagem Catarina sofre de seu companheiro. Em relação à elaboração estética da obra, a
narrativa é construída através de um monólogo, realizado pela narradora- personagem Anelise
(neta da Catarina). A estrutura do romance é marcada pela divisão em sete capítulos,
intitulados como dias da semana. O enredo é não linear, pois a história é marcada por
lembranças da personagem que narra a relação da sua família e como um tabuleiro de peças

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de xadrez, a narradora tenta entender como se dá a construção de cada peça (personagem),


mediante o predomínio de tramas e intrigas, presente na obra. Nesse sentido, a obra é
instigante e prende a atenção dos/as leitores/as, permitindo-lhes deleitarem-se sobre temas que
ainda prevalecem na atualidade, além de favorecer a formulação de uma possível postura
crítica daquilo que necessita ser melhorado.
A história é iniciada com recordações que a neta tem da sua avó: “Catarina tinha
catorze anos quando casou ” (LUFT, 1980, p.13). A construção de fatos parte do casamento
imposto à Catarina. Por conseguinte, tem-se a destruição da inocência, já que foi “obrigada” a
casar ainda na fase da infância. O matrimônio, na época, era naturalizado e imposto à mulher.
Embora a avó sofresse um crime, as constantes violências sexuais do marido não eram caso
de punição, pois prevalecia nas normas civis e sociais, como um débito conjugal a ser
cumprido, a mulher ceder aos desejos sexuais do companheiro. “Esse contraste entre o texto
literário e o texto sociológico fortalece a importância dos estudos feministas para a mudança
de paradigmas culturais que estão por trás da violência sexual contra a mulher”
(GOMES,2014, p.116).
O controle do corpo e o saciamento do desejo masculino do avô ocasionam a
dominação e o surgimento de um “crime embutido”, pois ao ver social este tratamento é tido
como natural e muito distante de ser um crime, porque, segundo os preceitos sociais,
incluindo a família, o marido apenas estava exercendo seu papel e tinha todo o direito de
usufruir do corpo da mulher/menina.

O destino foi zeloso. Caçou-a pelos quartos do casarão. Seguiu-a pelos corredores,
ameaçou arrombar os banheiros chaveados como arrombava dia e noite o corpo
imaturo. Mais tarde, entenderam que os arroubos do meu avô eram doentios: nada
aplacava suas virilhas em fogo. [...] E Catarina sucumbiu a um fundo terror do sexo
e da vida. (LUFT,1980 p.13).

Nessa premissa, a partir dos respaldos referentes ao estudo sobre o corpo na literatura
brasileira, a obra Que corpo é esse (2007) de Elódia Xavier nos revela o quanto, no decorrer
do século XX, as escritoras buscaram reverter as amarras do corpo submisso da mulher no
espaço da família. Com esse intuito, podemos destacar como o corpo é fundamento perante as
normas sociais e como a disciplina é aplicada como forma de controle. A partir do fragmento
destacado, notamos que entre as formas de relacionamento, está a de impor a disciplina e a
punição aos corpos subordinados. Xavier afirma que o corpo disciplinado é “um corpo
previsível, uma vez que ser previsível é tanto o meio quanto o resultado final das regras
impostas” (XAVIER, 2007, p. 58). Nas relações conjugais não é diferente, o corpo da mulher,

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em muitos casos, está sujeito a cumprir as exigências do companheiro. Esses desejos estão
sendo explorados pela ficção de Luft, pois a personagem Catarina está submetida à disciplina,
reforçando sua condição de submissão.
No texto de Lya Luft, a violência é descrita como algo desumano, muito
próximo dos estudos da sociologia, pois: “as mulheres em geral e especialmente quando são
vítimas de violência recebem tratamentos de não-sujeitos” (SAFFIOTI, 1999, p. 85). O ser
feminino, neste caso, sofre o abuso sexual e mesmo assim, mantém-se silenciado. Tal relação
de escravidão do corpo da mulher faz parte de um ritual de imposição da ordem do patriarca.
O homem quer dominar a todo custo o “território feminino”, “seu corpo”, como forma de se
apoderar. Nesta circunstância é prevalecida uma força do “macho” em que “a “virilidade em
excesso” do estupro e o “imaginário” da violência em nome da “honra”, passam a ser
encenados na realidade, como se fossem puros jogos mascarados, como simulacros das
relações de desafios ou como atos banais” (MACHADO, 2010, p. 81).
Embora o estupro seja considerado um “ato cruel” e “nojento”, que vai além das
sequelas físicas e permeiam o psicológico das vítimas, a sociedade determina esse controle
masculino como uma prática naturalizada. Diante da mentalidade dos agressores, que não se
arrependem das atitudes grotescas realizadas, retomam ações e atividades cotidianas
normalmente, sem pensar nas atitudes que tiveram com suas parceiras, nem nas marcas
deixadas. Na narrativa de Luft, Catarina cria um mundo particular, habitado da “loucura”, o
sótão como válvula de escape aos tratamentos do marido. “Subia até lá sempre que podia,
esquivava-se do marido, dos parentes, das visitas. Começou a desfiar ali uma espécie de
ladainha ...” (LUFT,1980, p.14).
A personagem criou um espaço de fuga para a situação. No entanto, esse espaço é
descrito por Elódia Xavier, na obra A casa na ficção de autoria feminina (2012), “não um
simples cenário da ação narrada, mas uma intersecção significativa entre ser e espaço”
(XAVIER, 2012, p. 15). A escritora apresenta vinte e duas tipologias sobre a casa. No
entanto, utilizamos apenas a classificação do espaço “casa jaula”, pois a personagem, por ser
submissa, assemelha-se a um cárcere privado, sentindo-se aprisionada dentro do próprio lar.
Além disso, é dentro desse meio que ocorre com maior frequência a violência contra a
mulher. Por isso, unir esse espaço às relações dos personagens é um importante viés de
entendimento social sobre o tema comentado nesta análise.
Catarina, desde o início do matrimônio, muito jovem sente-se aprisionada, tanto na
falta de escolha como na obrigação de começar uma nova fase de sua vida: muito nova, aos
catorze anos, tem sua vida sexual iniciada. Dentro de um espaço obscuro e repleto de

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violência, ela começa a habitar uma “casa jaula” que a aprisiona aos desejos do marido. A
violência reforça o quanto a casa significa “um espaço de tensão, onde o modelo tradicional
da família está alterado, provocando o isolamento e a incomunicabilidade dos moradores”
(XAVIER, 2012, p. 47). As normas sociais impostas, que determinam a virilidade do homem
e a submissão da mulher, concretizam-se como relações conflituosas, que perpassam as
práticas da violência de gênero.
Com essas constatações, podemos afirmar que “rigorosamente, a relação violenta se
constitui em verdadeira prisão” (SAFFIOTI, 1999, p.88), pois o homem domina a qualquer
custo, e a mulher apresenta-se submissa, como focamos na obra. A personagem Catarina, ao
criar uma realidade de “fuga” imposta pela circunstância de submissão a qual ela pertencia,
possibilita o isolamento em um local propício a isto, o sótão. Nesse ambiente, a insegurança,
o medo e o trauma são transformados em “loucura”. A vítima, mesmo recebendo as agressões
do marido, seja de maneira simbólica ou física é vista como a culpada da própria reclusão.
Conforme o fragmento:

Com o tempo, minha avó foi perdendo a lucidez a intervalos cada vez menores. Por
fim baixou a penumbra definitiva. Os médicos acharam que sua mania de morar no
sótão não era de todo má: livrava-a da responsabilidade por uma casa que não podia
administrar e das três filhas que não tinha condições de criar. (LUFT,1980, p.17)

A exploração masculina só ocorre porque há poder, resistência e controle abusivo.


Continuadamente, “o poder produz sujeitos, fabrica corpos dóceis, induz comportamentos”
(LOURO,1997, p.40). Neste caso, o tratamento de não sujeito está presente dentro do próprio
lar, no qual a violência de gênero acontece, dentre elas a sexual. A mulher passou a viver
isolada e silenciada, e mesmo vítima é tida como “louca” e culpada do ocorrido, conforme
destacamos na obra.
“A dimensão de gênero vai sendo ressignificada mas continua fundante para se
entender e se enfrentar as formas e articulações das violências” ( MACHADO, 2010, p.85).
Após anos idealizados de luta feminista em prol dos direitos das mulheres, restitui-se a partir
do poder público que “os direitos das mulheres devem ser assegurados, assumindo que
modelos familiares ancorados em tradições culturais devem se adequar ao acordado em
relação aos direitos humanos das mulheres” (MACHADO, 2010, p.89).
Derrida citado por Spivak, na obra Pode o subalterno falar? (2010) , “clama por uma
reescrita do impulso estrutural utópico como forma de tornar delirante aquela voz interior que
é a voz do outro em nós”. (SPIVAK, 2010, p. 125). Portanto, notamos que a obra (re)apresenta

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a voz silenciada , através da construção da personagem Catarina. No entanto, essa voz não foi
escutada, pois, notoriamente, na medida que a sociedade culpa as vítimas, e mantém o
controle masculino sobre os corpos e a sexualidade das mulheres, a violência de gênero
praticada tende a se renovar e a se propagar com força em todos os níveis estruturais da
sociedade. Inclusive, o próprio discurso masculino que tem como principal finalidade manter
assegurado o direito do homem de fala, de dominação e de opressão ao sujeito feminino.

Considerações Finais

O nosso grande desafio aqui foi mostrar claramente que as leituras de autoria feminina
em diferentes vertentes e áreas do conhecimento precisam ser vistas com olhares positivos.
Mudanças de comportamentos são necessárias para a inserção do papel fundamental da
mulher na sociedade e na literatura, por isso, é crucial romper barreiras provindas das
heranças patriarcais que nossa sociedade ainda carrega, as quais colocam a mulher e outros
gêneros discriminados sob a margem social. A construção de um modelo inovador se tornaria
essencial no que se refere à equidade de papéis sociais entre os sujeitos, pois, poderíamos
problematizar o modo de pensar e agir do senso comum. Neste sentido, o texto literário que
abarca essas temáticas promove uma discussão gerida de indagação e questionamentos dos
aspectos que demandam transformação.
Nesta perspectiva, aprofundamo-nos em conceitos de violência de gênero, gênero e
feminicídio, aliados ao estudo literário, algo que favorece um modo construtivo de se pensar
na ruptura da desigualdade de gênero, seja através de medidas coibidoras e seja através do
próprio texto que atua de maneira “indispensável para uma prática politizada, pois devemos
ter uma mirada no adiante e estar preocupados com o poder que circula nas representações
literárias” (GOMES, 2014, p.136). No romance As parceiras, foi possível verificar o estupro
dentro do próprio casamento e a situação de submissa da companheira, destacando como
ainda as normas preconizam atos e mantém impunes os agressores, a invisibilidade das
próprias vítimas e como as estruturas sociais favorecem as desigualdades entre os gêneros.
Assim, o texto literário, por meio de seus personagens, nos fornece subsídios de
discussão destas práticas culturais tão recorrentes no cotidiano, pois “A ficção ressalta a
violência como consequência da falta de habilidade do companheiro em não aceitar a
premissa de que a mulher está em transformação e em busca de novos espaços sociais”
(GOMES, 2013, p. 4). Ao fazermos um paralelo da obra com a realidade, temos como intuito
mostrar nitidamente que as leituras de autoria feminina desempenham uma função relevante

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na contemporaneidade, ao questionar o poder dominador do homem e pôr em vigor o papel da


mulher, procurando atribuir-lhe voz , tão silenciada e apagada.

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“EU SOFRI UM ACIDENTE E O BEBÊ SE FOI...”: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM


HIBISCO ROXO, DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

Mariana Antônia Santigo Carvalho (UFC)


Email: marianaasc92@hotmail.com

Drª. Edilene Ribeiro Batista (UFC)


Email: batistaedilene@yahoo.com.br

Presente trabalho pretende abordar a violência doméstica que a personagem Beatrice, também
intitulada Mama, sofre nas mãos do marido Eugene - o Papa - e como ela, ao longo do
romance, mascara-se, silencia-se, diminui-se, diante dos maus tratos para proteger os filhos e
ter “harmonia” no lar. Constância Lima Duarte (2013) questiona a rara presença de marcas de
violência contra a mulher na literatura, como os espancamentos, os estupros, os abortos, que
cotidianamente muitas mulheres são submetidas. O silenciamento que ocorre na vida real,
também vigora na literatura, onde pouco de encontra personagens femininas em tal situação, e
menos ainda a quebra do ciclo da violência. A obra Hibisco Roxo (2011), da nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie, possui o protagonismo de diversas mulheres negras, cada uma
com sua luta em especial: uma adolescente que descobre novas formas de ser mulher, uma
professora universitária que precisa criar seus filhos sozinha e Beatrice, a personagem de
destaque do nosso estudo, o qual já descrevemos suas peculiaridades na obra. A personagem
que pouco fala, Beatrice é uma interessante alusão à situação de dominância que sofre. Mama
vive entre quatro paredes, devotada totalmente à família. Sua parceria com a empregada
doméstica Sisi será o ponto final do jugo a qual está submetida. Papa, personificação do
patriarcalismo, autodenomina dono do corpo de sua esposa, e espanca-o, na maioria das vezes
como válvula de escape das suas frustrações. Ocasiona, em mais de uma situação, abortos na
mulher, o que gera peso na sua consciência: um intervalo de tempo para novas agressões.
Utilizaremos Bourdieu com sua obra A Dominação Masculina (1999) e teóricos que tratem
sobre a violência física - um dos grandes males do patriarcalismo - que as mulheres sofrem.

Palavras-chaves: Hibisco Roxo. Violência Doméstica. Patriarcalismo. Mulher silenciada.


Dona de Casa.

Toda vez que você


Diz para sua filha
Que grita com ela
Por amor
Você a ensina a confundir
Raiva com carinho
O que parece uma boa ideia
Até que ela cresce
Confiando em homens violentos
Porque eles são tão parecidos
Com você.
- Aos pais que têm filhos

Rupi Kaur

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
86

Os noticiários repercutem todos os dias manchetes sobre violências às mulheres.


Feminicídio, agressão física, assédio sexual, ejaculações em seus corpos... No Brasil temos
uma lei específica que visa proteger as mulheres, Lei Maria da Penha (11.340, de 2006), que
carrega o nome da farmacêutica cearense que foi alvejada pelo marido enquanto dormia,
ocasionando uma lesão que a deixou tetraplégica. As estatísticas provam o quanto as mulheres
são vítimas de violências por parte de homens – familiares, companheiros e desconhecidos – e
que, infelizmente, é um número longe de ser o real, visto que muitas mulheres preferem o
silêncio a denúncia.
A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ganhou destaque no meio literário ao
publicar três romances e um livro de contos, em que, em meio a um contexto pós-colonial,
insere o protagonismo feminino. Suas personagens negras e nigerianas vivenciam situações de
violência de gênero, racismo, de empoderamento e até mesmo da busca de sua identidade em
meio a uma sociedade interferida pela cultura inglesa, resquícios do período colonial.
Algumas protagonistas são fortes e possuem voz, como Ifemelu, de Americanah (2014), que
comenta sua situação de negra nos EUA em seu blog pessoal e Olanna, em Meio Sol Amarelo
(2006), professora universitária de sociologia que volta e meia discute sobre o imperialismo,
movimentos negros, teóricos sociais, em noites de bebedeira na casa do namorado. Sujeito
historicamente emudecido, Spivak (2010) questiona a causa da mudez feminina inferindo que
seja uma das implicações do imperialismo e utilizando o termo de “mulher subalterna”.
“Pode o subalterno falar? O que a elite deve fazer para estar atenta à construção contínua do
subalterno? A questão da “mulher” parece ser mais problemática nesse contexto.” (2010,
p.85)
Em seu romance de estreia, Hibisco Roxo (2011), Chimamanda Ngozi Adichie retrata
a protagonista Kambili, uma adolescente que pertence a uma família rica, que vive sob a
autoridade paterna em constante medo. Eugene, o pai, é um homem conservador,
ultracatólico, que cria os filhos debaixo de uma vigilância constante afim de que sejam
cristãos e alunos exemplares. Qualquer falta que os filhos cometam, menor que seja e fruto da
ingenuidade tipicamente juvenil, Eugene os pune com castigos físicos pesados e violência
psicológica. Contudo, quem sofre os maiores castigos e com maior recorrência, às vezes
assumindo a culpa dos filhos para poupar-lhes dos castigos paternais, é Beatrice, a esposa e
mãe de Kambili. Durante várias passagens da narrativa, Kambili que é a narradora, descreve o
quanto a mãe é silenciosa, como pouco se expressa e mesmo com o corpo cheio de
hematomas, prefere o silêncio. “Mama em geral não falava tanto de uma só vez. Ela falava da
maneira como os pássaros se alimentam: aos bocadinhos” (ADICHIE, 2011, p.26). Seu corpo

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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é completamente maculado por agressões, os abortos são constantes, contudo se sente grata
por Eugene ainda estar casado com ela, mesmo tendo apenas gerado dois filhos.

Dependente em seu corpo, ele pode receber “corretivos”, como uma criança indócil,
pelo chefe da casa, depositário da ordem doméstica. “Quem ama castiga”. Bater na
mulher é uma prática tolerada, admitida, desde que não seja excessiva. Se os
vizinhos escutam os gritos de uma mulher maltratada, não interferem. (PERROT,
2016, p. 47-48)

Depois das surras, inocenta-o intimamente, acreditando que a alteração de humor,


culminando na agressividade, é fruto da vida atribulada, cheia de responsabilidades do
marido. As agressões não são públicas e em nenhum momento da narrativa são presenciadas
pelos filhos. Contudo, os atos violentos são ouvidos pelos jovens que criaram mecanismos –
música, tampar os ouvidos, contar - para abafar o som e os gemidos de dor da mãe. “Contar
fazia o tempo passar mais rápido, fazia com que não fosse tão ruim. Às vezes acabava antes
de eu chegar ao número vinte.” (ADICHIE, 2011, p. 39). Mesmo sendo uma família classe
média alta, católica, parâmetro de imitação para as famílias da paróquia, a violência se faz
presente, ratificando Saffioti (2004) ao dizer que ela não mede classe social nem raça.
Gomes diz que nas produções literárias “a ficção ressalta a violência como
consequência da falta de habilidade do companheiro em não aceitar a premissa de que a
mulher está em transformação e em busca de novos espaços sociais” (2013, p.04), muitas das
vezes esse sim pode ser o motivo, mas o que acontece em Hibisco Roxo é a violência como
válvula de escape da fúria desse homem negro nigeriano que busca constantemente se
enquadrar no padrão europeu, falando o inglês de forma mais polido possível, agradando
constantemente o pároco da cidade, renegando tudo o que esteja vinculado à cultura
tradicional igbo (o qual ele pertencia antes da catequização). Beatrice é para ele uma
ferramenta de ascensão social. Vinda de uma família de missionários católicos, seu pai era
negro, porém de uma tez mais clara, “vovô tinha a pele clara, era quase albino, e diziam que
esse fora um dos motivos pelos quais os missionários haviam gostado dele” (ADICHIE, 2011,
p.75), o que para Eugene era considerado um prestígio.
A violência não abala mais a família, a tal ponto que eles não comentam sobre ela.
“Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das
coisas” (PERROT, 2016, p.14). As suas internações no hospital e a perda dos bebês,
infelizmente, naturalizaram-se no seio familiar. Há um intervalo de paz e amor, até a próxima
ida ao ambulatório. É necessária a vinda de Tia Ifeoma, professora universitária e irmã de
Eugene, para mexer com silêncio da família. Para ela é inconcebível a situação deprimente da

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cunhada, aconselha-a e tenta impor ânimo na baixa autoestima de Beatrice, colocando-se


como exemplo sua relação com o marido, que enquanto estava vivo, sempre a tratou com
respeito e em mesmo a momentos difíceis nunca levantou a mão contra ela.
Saffioti (2004) é reticente em utilizar o tempo violência, por acreditar haver
subjetividade na conceituação, visto que o é violência para uma mulher, não seja violência
para outra, pois “situa-se no terreno da individualidade” (2004, p.75). Para ela é possível
classificar três tipos de violência: a de gênero, que atinge tanto o homem quanto a mulher,
mas na maioria das vezes o agressor é um homem; a familiar, independente do local, ocorre
entre familiares; e a doméstica, que atinge até mesmo pessoas fora da família, como
empregados, mas que ocorre exclusivamente no território residencial.
A violência que ocorre em Hibisco Roxo é de caráter acima de tudo familiar, visto que
até o filho mais velho, Jaja, não está isento da fúria do pai, inclusive tendo uma deformidade
na mão por conta de uma pancada que recebeu por ter ficado em segundo lugar na turma do
catecismo. “Papa o levou até o andar de cima da casa e trancou a porta. Jaja, aos prantos, saiu
segurando a mão esquerda com a mão direita, e Papa levou-o ao Hospital St. Agnes.”
(ADICHIE, 2011, p. 157). Porém, tais classificações não se excluem, podendo ocorrer
concomitantemente. Não obstante, a antropóloga enfatiza: “qualquer que seja a forma
assumida pela agressão, a violência emocional está sempre presente.” (2004, p.75).
O silêncio praticado por Beatrice se estende aos filhos que começam a praticá-lo
também. No momento que Jaja conta para a tia Ifeoma o porquê de o seu dedo ser torto, um
ciclo é quebrado. Kambili fica desnorteada, pois sabe que uma regra – não imposta, mas
interpretada – foi descumprida. “Será que Jaja tinha esquecido que nós não contávamos a
ninguém, que havia tanto que nunca contávamos a ninguém?” (ADICHIE, 2011, p.166). A
insurreição contra o pai começará através dos filhos que encorajarão a mãe a também mudar
sua atitude frente aos maus tratos.

A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de
regra, intervenção externa. Raramente uma mulher consegue desvincular-se de um
homem violento sem auxílio externo. Até que este ocorra, descreve uma trajetória
oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela. (SAFFIOTI, 2004,
p. 79)

Ifeoma, em seus conselhos à cunhada, tenta quebrar o ciclo de violência mostrando


que não é natural apanhar, pelo contrário, é desumano, degradante; e que não é destino da
mulher ser maltratada. Na sua primeira tentativa de se desvincular de Eugene, Beatrice foge
do hospital – depois de outro aborto provocado por seu marido ao quebrar um vidro de mesa

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
89

sobre sua barriga – e se refugia no apartamento de Ifeoma, onde seus filhos, Kambili e Jaja, já
estão passando férias. Há um breve momento de mudança de vida e planos são traçados,
como a possibilidade de mudança de cidade e começar a trabalhar para prover o sustento. No
entanto, logo tudo é esquecido depois de um telefonema de Eugene, aos prantos, implorando o
perdão da esposa e prometendo, mais uma vez, nunca mais machucá-la.

- Para com essa gratidão. [...]


- Isso é o que você diz. Uma mulher com filhos e sem marido é o quê?
- Eu.
Mama balançou a cabeça.
- Lá vem você de novo, Ifeoma. Você sabe o que quis dizer. Como uma mulher pode
viver assim? [...]
- Nwunye m, às vezes a vida começa quando o casamento acaba. (ADICHIE, 2011,
p.83)

Embora a maioria dos leitores não concorde com a volta de Beatrice ao lar, é a partir
desse episódio que começamos a presenciar o declínio da saúde de Eugene. Suores frios,
mãos trêmulas e feridas cheias de secreções começam a surgir no seu corpo. Sempre cansado,
ele acredita que é a tensão por conta do assassinato do diretor do seu jornal que está fazendo-o
mal. Contudo, depois de aparecer morto sobre a mesa de trabalho, sabemos que os sintomas
de Eugene não eram psicológicos. Beatrice e sua empregada Sisi estavam o envenenando
pouco a pouco através do chá que Eugene bebia diariamente. “Comecei a colocar o veneno no
chá dele antes de ir para Nsukka. Sisi arrumou-o para mim; o tio dela é um curandeiro
poderoso.” (ADICHIE, 2011, p. 305). Liberta dos grilhões da violência, Beatrice não calculou
bem o que poderia acontecer pós-morte do marido. Depois de uma investigação do governo e
da descoberta que a causa mortis não foi natural e sim através do uso de veneno, a polícia
chega a residência disposta a prender alguém, e a pessoa que assume a autoria, para proteger a
mãe, é Jaja.
Bourdieu em A Dominação Masculina (2002) aborda o comportamento violento do
homem como uma imposição da sociedade, que o cobra constantemente a respeito da sua
virilidade. Se caso não o pratica, corre o risco de ser nomeado de “mulherzinha”, “delicado”,
“veado”, dentre outras categorizações que o inferiorize. Quando essa suposta virilidade é
contra sua companheira, Bourdieu não se atem em maiores comentários. Reserva-se a dizer
que é mais uma amostra do poder simbólico e que o ciclo intermitente de atos violentos contra
as mulheres é por conta de sua passividade e confortável lugar de vítima que as mulheres se
submeteram. Constância Lima Duarte refuta o francês ao dizer que o tal poder simbólico nada
mais é o machismo em seu maior grau, o patriarcalismo que acredita ser dono dos corpos

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femininos, violentando-o de forma física e emocional. “Ao invés de buscar a explicação da


conduta agressiva no próprio agressor, e o porquê das categorias sociais estarem tão
assimiladas ao masculino, parece mais fácil vitimizar, mais uma vez, a vítima.” (2010, p. 229)
Há uma ideia da natureza maléfica da mulher, a qual Bourdieu compactua
discretamente ao criticar o modo sorrateiro que muitas mulheres utilizam para causar
violência ao homem – sem recorrer à violência física ou simbólica – através de magia,
mentira, passividade. Essa suposta astúcia feminina não é interpretada pelo francês como a
solução de “fácil” acesso que a mulher oprimida tem ao alcance para se desvencilhar do
agressor, é tida como covardia e uma colaboradora ao imaginário popular de que toda mulher
tem uma Eva dentro de si.
O ponto de vista de Bourdieu, tão controverso, serve para atentarmos para a
necessidade de mais mulheres acadêmicas terem voz em meio a crítica literária e outras áreas.
Pois só uma mulher, companheira dos infortúnios do patriarcalismo, saberá um pouco sobre a
dor silenciada. Já dizia Virgínia Woolf que “mesmo que os homens sejam os melhores juízes
dos homens e as mulheres das mulheres, há uma faceta de cada sexo que só é conhecida pelo
outro sexo” (2012, p.30). Contudo a personagem Beatrice, de Chimamanda, não é apenas um
exemplo de uma mulher negra, pós-colonial, que sofre os abusos domésticos; ela é todas as
mulheres em si que são mortas por seus companheiros, que são espancadas, trancafiadas,
vendidas. É através do silêncio de Beatrice que Chimamanda dá voz a milhares de mulheres.

Referências Bibliográficas

ADICHIE, Chimamanda N. Meio Sol Amarelo. Tr. Beth Vieira. 1ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.

_____________. Hibisco Roxo. Tr. Julia Romeu. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.

_____________. Americanah. Tr. Julia Romeu. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tr. Maria Helena Kühner. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BRASI, Lei nº 11.340, de 07.08.2006, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher. Lex – Coletânea de Legislação e Jurisprudência: Edição Federal.

DUARTE, Constância L. Gênero e violência na literatura afro-brasileira. Falas do outro:


literatura, gênero, identidade. Belo Horizonte: Nandyala, 2010, p. 229-234.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
91

GOMES, Carlos M. Marcas da violência contra a mulher na literatura. Revista Diadorim /


Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 13, p. 01-11, Rio de Janeiro,
Julho 2013.

PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tr. Ângela M. S. Corrêa. 2ª ed. São Paulo:
Contexto, 2016.

SAFFIOTI, Heleieth I.B. Gênero, Patriarcado e Violência. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Tr. Sandra Regina G. A., Marcos Pereira F. e
André Pereira F.. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tr. Bia Nunes de Souza. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

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92

OS BLOGS E A PRÁTICA DA ESCRITA DE AUTORIA FEMININA EM ESPAÇO


DIGITAL20

Ma. Naiana Pereira de Freitas (UFBA)


Naiana_freitas@hotmail.com

O COMPUTADOR, A INTERNET E OS BLOGS

Segundo André Lemos (2010), a pós-modernidade inicia-se na segunda metade do


século XX, com o surgimento da sociedade de consumo e a ruptura dos paradigmas
difundidos na sociedade moderna como a História, razão e o progresso. Ainda conforme o
autor, o termo pós-moderno aparece pela primeira vez em 1934, na crítica literária, em uma
antologia de poesia espanhola e hispano-americana de Federico de Osnis. É, a partir desde
momento, que se pode perceber o contraste entre a modernidade e a pós-modernidade, pois,
enquanto na primeira, o tempo que predomina é o linear, já que progresso e história
caminham de mãos dadas; no segundo, a noção de história e progresso sofre uma ruptura,
tornando o tempo sem linearidade. André Lemos (2010, p.66), ao ler E. Subirats (1986),
argumenta que

[...] o pós-modernismo não olha mais o passado sob o signo da paródia, mas sob o
rótulo do pastiche. Desta forma, a cultura pós-moderna não se prende à dimensão
histórica do futuro, mas ancora-se no presente revisitando o passado. Espírito da
época, a arte da pós-modernidade é a arte do “aqui e agora”, performática,
participativa, aproveitando os objetos do dia a dia.

Nota-se que é, no contexto da pós-modernidade, em meados da década de 70 do século


XX, que a microinformática surge e, em consequência, a cibercultura. Conforme André
Lemos (2010), em 1975 surge o primeiro microcomputador, em Albuquerque, no Novo
México. A partir deste momento, a microinformática passa a ser considerada como um
processo que auxilia na aquisição de informação pelos usuários ao mesmo tempo em que
garante o acesso de forma mais igualitária aos dados, já disponíveis e ao arquivamento de
dados pelos usuários. Como assegura André Lemos (2010, p.105-106),

20
Este artigo é baseado em partes do capítulo três da dissertação de mestrado intitulada: Por uma lírica além
do papel: o traço da memória em Ângela Vilma (2016), cuja orientadora foi à professora Drª Nancy Rita Ferreira
Vieira (UFBA)).

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93

[...] A democratização dos computadores vai trazer à tona a discussão sobre os


desafios da informatização das sociedades contemporâneas, já que estas não só
devem servir como máquinas de calcular e de ordenar, mas também como
ferramentas de criação, prazer e comunicação; como ferramentas de convívio. A
microinformática, base da cibercultura, é fruto de uma apropriação social. Como
sabemos, a sociedade não é passiva à inovação tecnológica, sendo o nascimento da
microinformática um caso exemplar, mostrando a apropriação social das tecnologias
para além de sua funcionalidade econômica ou eficiência técnica.

É importante destacar deste trecho como o microcomputador paulatinamente passa a


adquirir a função de facilitador da criatividade para seus usuários, ele deixa de ser apenas um
objeto lógico para funcionar como instrumento para a evasão da criatividade. Com o auxílio
da rede mundial de computadores, o computador torna-se ainda mais imprescindível na
sociedade. Acrescente-se a isso, o uso dos blogs que aos poucos tornou possível modificar
todo um circuito literário. Aliando em seu bojo, a criatividade e a liberdade de seus usuários.
Neste suporte, o (a) "blogueiro" (a) pode tornar seu diário íntimo público, criar uma nova
história para si mesmo, desafiar as leis da Física, já que pode estar em dois locais ao mesmo
tempo.
De acordo com Fabiana Komesu (2004), o nome blog deriva da abreviação do termo
weblog. Esta ferramenta surgiu em agosto de 1999 através da utilização do software Blogger.
O programa visava ser uma nova opção para a publicação de textos online sem demandar do
usuário conhecimentos profundos acerca do funcionamento de um computador. Assim, “[...]
A facilidade para a edição, atualização e manutenção dos textos em rede foram, - e são – os
principais atributos para o sucesso e a difusão dessa chamada ferramenta de auto expressão.”
(KOMESU, 2004) 21.
A popularidade alcançada por este instrumento possibilitou alterar o funcionamento
básico da comunicação, pois atuam simultaneamente no espaço da blogosfera, a mensagem, o
receptor e o interlocutor. Ao disponibilizar um texto na rede, o autor poderá ser comentado
naquele exato momento, revisar o texto e até mesmo desistir de publicá-lo. Nas palavras de
Luiza Lobo,
[...] a comunicação do blog se dá numa rede de escritores e leitores que atuam
simultaneamente sobre um número infinito de textos, rompendo o eixo da
comunicação pessoal e inaugurando uma era de intercomunicação coletiva,
simultânea e hipertextual.(2007, p.16).

Conforme Pierre Lévy (1993), hipertexto é um emaranhado de dados ligados por


rápidas conexões. Estes elementos são palavras, imagens, sons que podem ser lidos pelo
leitor, sem a mesma linearidade de um texto impresso, por isto é um texto dinâmico, em

21
Publicação online, sem número de páginas.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
94

constante movimento. O hipertexto “[...] retoma e transforma antigas interfaces da escrita”


(LÉVY, 1993, p.34), pois se difere e se aproxima do texto em papel simultaneamente. Ele
difere do impresso, seja na formatação das páginas, na movimentação do olhar sobre o escrito,
seja na infindável rede que pode mostrar em um único clique, ao mesmo tempo em que
permite a manutenção de estruturas já sedimentadas em suporte impresso, como por exemplo,
o uso de sumários, índices e legendas.
Como assinala Lucia Santaella (2011), o aperfeiçoamento digital favoreceu a
“convergência das mídias”. Os quatro principais meios de comunicação humana foram
reunidos em um mesmo campo, como por exemplo, o texto escrito, o som e a imagem, o
telefone e a informática, tornando possível o acesso rápido e a reprodução com baixos custos.
Por esta razão, o hipertexto converge em sua natureza uma plasticidade que permite a sua
dobra e desdobra como expõe Pierre Lévy (1993).
O blog abriga um misto de permanências e rupturas em sua constituição. A imbricação
de elementos tanto da cultura escrita tradicional, quanto da cultura digital em um ambiente
hipertextual, colaborou para transformar o texto do (a) blogueiro (a) em uma potência de
possibilidades para o autor, leitor e crítica. Esta ferramenta está em um constante jogo, que
ora o remete a traços que o identificam com os diários das sufragistas do século XIX22, ora o
considera como uma produção exclusiva de nossa época tecnológica.
Embora, Fabiana Komesu (2004) enfatize, que não se deve esquecer a heterogeneidade
presente em cada gênero, e justifica a aproximação entre o diário manuscrito e o digital a
partir do uso que o escrevente faz de sua imagem pessoal. Assim diz,

22
Essa expressão refere-se às mulheres pioneiras na luta pelo acesso a participação política através do voto na
Inglaterra. Segundo informa Mônica Karawejczyk (2013), as militantes da mais antiga associação de luta
feminina por direitos iguais, a National Union of Women’s Suffrage Societies-NUWSS (União Nacional das
Sociedades de Mulheres pelo Sufrágio), surgida na Inglaterra em 1897, foram popularmente conhecidas como
suffragettes. Este termo buscava distinguir as participantes desta organização em relação às demais, pois mesmo
lutando pelas mesmas causas, as suffragettes utilizavam-se de estratégias mais contundentes, como por exemplo,
passeatas, intimidações públicas a políticos, incêndio a caixas de correio e a quebra de janelas e de vitrines.
Devido a estas ações, muitas militantes foram presas por perturbação à ordem, execradas por meio da opinião
pública. A partir de 1908, as ações dessa associação de mulheres tornaram-se ainda mais organizadas, para isto,
recorreram ao uso das cores: violeta, branco e verde para identificá-las em espaço público. O NUWSS a partir
de 1912 inicia o apoio ao Partido Trabalhista inglês (Labor Party) dando um novo direcionamento ao
movimento, entretanto com o surgimento da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918) as alianças entre as
sufragistas e outras instâncias políticas foram desfeitas. Em 1917, foi apresentado um projeto garantindo as
mulheres maiores de 30 anos o direito ao voto, somente a partir de 1918 esse projeto de lei foi sancionado. A
campanha pelo voto persistiu até 1928, quando homens e mulheres tiveram igualmente acesso ao voto aos 21
anos. No Brasil, uma importante sufragista foi Bertha Lutz (1894- 1976) fundadora em 1922 da Liga para
Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM) e da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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[...] Quem escreve sobre si, para narrar acontecimentos íntimos, insere-se na prática
diarista. O aparecimento dos blogs é ainda bastante recente; como atividade humana,
apoia-se em gêneros relativamente estáveis, já consagrados, para sua composição.
Pode-se, assim, identificar traços do gênero diário na constituição dos blogs.
(KOMESU, 2004).

A discussão acerca das particularidades do blog enquanto produção escrita suscita


diversos desdobramentos, entretanto, que interessa nesta ocasião é trazer algumas das
inovações que conferiram um caráter híbrido aos blogs. É evidente que os blogs não podem
ser considerados apenas reproduções dos diários tracionais, pois eles surgem em um contexto
marcado por tempo e espaço distintos dos períodos passados. As mulheres, que escreviam em
seus papéis secretos, condensavam em si as funções de leitora, narradora e escritora, ou seja,
seus escritos tinham a característica de serem feitos de si para si. Como afiança Luiza Lobo
(2007, p.17),
[...] Não há tempo nem vontade para traçar um longo histórico de vida que recupere o passado, no período pós-
moderno em que vivemos. Esse era o anseio da era do manuscrito em papel em que a escritora se comunicava
consigo mesmo em um monólogo narcisístico e especular, ainda derivado do sentido quase religioso da escrita.
Cada escritora vivia em seu próprio mundo, isolada dos outros; dessa forma, era a única narradora e única
receptora no momento da escrita e seu discurso revertia para si própria.

É certo que a escrita íntima de autoria feminina exposta no blog Aeronauta obedece a
funções diferentes daquelas que existiam nos diários tradicionais. As blogueiras não visam
mais a desenhar o passado com eloquência, já que o próprio momento histórico vivido impede
essa recuperação, mas busca-se no blog tornar a escrita plural e não linear como antigamente.

OS BLOGS DE MULHERES NO BRASIL: O BLOG AERONAUTA

No primeiro capítulo de Segredos públicos: os blogs de mulheres no Brasil, Luiza


Lobo (2007) tece algumas considerações sobre os aspectos inovadores dos blogs em relação
aos diários tradicionais. Entre eles, o espaço de escrita livre de borrões, a interatividade
devido às inúmeras vozes que o perpassam, a presença de comentários, a hipertextualidade
entre outros. A reunião destas características em um único recurso possibilitou tanto o
rompimento com o suporte livro, quanto com a crítica literária que a cada momento necessita
se remodelar para abarcar as diversas modalidades de textos em jogo no ambiente literário.
Para Beatriz Resende (2008), o espaço virtual tornou acessível à publicação de textos a todos
que desejam. Desse modo, a web torna-se um local privilegiado para a escrita e para a
circulação de textos por uma diversidade de autores.
Beatriz Resende (2008) aponta ainda dois fatores que ajudaram a promover a fratura
com os paradigmas presentes no processo de recepção dos textos pela crítica especializada e

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
96

da publicação de textos no período anterior ao digital. Para ela, a reunião de diversos autores
no ciberespaço permite o estabelecimento de uma rede de legitimação para outros autores. Em
consequência, a crítica literária não pode mais desconhecer este movimento, como também as
editoras de papel sofrem uma mudança de padrão para a edição de textos. Nas palavras de
Beatriz Resende (2008, p.136-137),

1. A crítica literária não pode mais ignorar o fenômeno, mesmo porque os próprios
autores passam a exercer o papel de críticos, comentando uns aos outros. 2. As
editoras tradicionais, aquelas que continuam produzindo livros em papel, descobrem
que podem pescar na rede novos autores, perceber novas tendências, avaliar com
facilidade novas práticas literárias e, ao mesmo tempo, verificar a repercussão que
textos e autores têm junto a esse novo tipo de leitor, o que recebe de imediato, em
casa, a qualquer momento, um produto literário similar ao que elas levam tanto
tempo em preparar, imprimir, divulgar, lançar e vender.

No entanto apesar de o termo blog ter sido formulado há quinze anos, ele ainda
permanece no campo da desconfiança, tanto por parte da crítica literária, dos editores, como
também por parte dos leitores. Segundo Angela Guida (2011), esse olhar enviesado conferido
ao “diário de rede”, deve-se a sua própria definição durante o seu surgimento. Conferir-lhe
apenas o título de substituto do diário íntimo tradicional limitou a sua potência enquanto
hipertexto. Assim, ela afirma que na atualidade não se pode limitar a prática de escrita do
blog apenas ao relato de experiências diárias, pois agora ele reúne tanto as reflexões pessoais
quanto às reflexões de uma coletividade. Para Angela Guida (2011, p.61),

[...] há muito que os blogs deixaram de ter essa tradução limitada e se transformaram
também em um espaço para reflexões de importantes intelectuais e pesquisadores,
bem como para a produção poética de muitos escritores e poetas, sobretudo os da
nova safra, conforme já o dissemos. É claro que por seu caráter democrático e
interativo, há aqueles que utilizam-no para o relato de experiências cotidianas sem
grande relevância para reflexões literárias ou de qualquer outra ordem.

Desta forma, os “diários virtuais”, bem como outras modalidades de mídias digitais,
passaram a incluir no cânone literário novas trajetórias de escrita que permitiram o surgimento
de novas práticas de literatura, como também possibilitou a inscrição de um contemporâneo
conceito de literatura. E, assim como o diário íntimo, permitiu o exercício e legitimação de
escrita para as mulheres, como afiança Michele Perrot (2012), o blog fortaleceu esta prática,
não apenas pela inclusão das mulheres no campo literário, mas também por convocar vozes de
outras categorias que foram silenciadas em épocas anteriores.
Como assinala Luiza Lobo (2007), a literatura publicada nos blogs de mulheres visa
transmudar a convenção entre a imitação da realidade e a sua representação. É função de esta

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ferramenta romper com estes elos já estabelecidos. E, por este motivo, percebe-se como a
escrita íntima se metamorfoseou neste espaço virtual, já que o estatuto de verdade foi
quebrado entre as narrativas reais e ficcionais. E, neste novo lugar de literatura as narrativas
“artificiais e naturais” estão amalgamadas. Como informa Umberto Eco (1994), o
estabelecimento das linhas limítrofes entre uma narrativa real e artificial são muito próximas e
emaranhadas. Em certa medida, o exercício de escrita nos blogs contribuiu para embaralhar as
características ficcionais e reais, por isso, o blog mostra-se relevante para o aparecimento e
sedimentação da escrita de autoria feminina, pois

[...] os blogs são importantes para substituir essas fórmulas arcaicas e repetitivas que
visam a castrar e controlar o comportamento da mulher. Eles representam um tipo de
conhecimento da escrita criativa de uma nova lei ou écritude (segundo Barthes) que
se baseia na reflexão, e não no reflexo e na repetição de verdades como no
fonocentrismo, segundo vozes, tradições, crenças, que se ecoam e se eternizam, sem
necessidade de verificação racional de sua veracidade. (LOBO, 2007, p.66).

A literatura contemporânea, conforme Karl Erik Schollhammer (2009) apresenta-se


como intempestiva, já que ela capta a inadequação de seu tempo e concomitantemente
harmoniza-se com ele. Nesta direção, o (a) autor (a) da literatura contemporânea busca
aproximar-se da sua realidade histórica e, simultaneamente, sabe que é impossível representá-
la na totalidade do seu presente. Nas palavras de Schollhammer (2009, p.12),

[...] Se o presente modernista oferecia um caminho para a realização de um tempo


qualitativo, que se comunicava com a história de maneira redentora, o presente
contemporâneo é a quebra da coluna vertebral da história e já não pode oferecer nem
repouso, nem conciliação.

É em meio a esta atmosfera que novas experiências de leitura e escrita são elaboradas,
reformulando os paradigmas que definem estas ações. Assim, Schollhammer (2009) afirma
que novas tendências são oportunizadas pelas novas tecnologias, como os blogs, promovendo
a circulação e publicação de textos. Como diz ainda Schollhammer (2009, p.13),

Com essas novas plataformas de visibilidade da escrita surgiu um inédito espaço


democrático e foram criadas condições para um debate mais imediato em tomo de
novas propostas de escrita. Existem casos de escritores que iniciaram seus
experimentos aí e só depois foram integrados às editoras, como, por exemplo, Ana
Maria Gonçalves (Ao lado e à margem do que sentes por mim, 2002), Ana Paula
Maia (Entre rinhas de cachorro e porcos abatidos, 2009), Daniel Galera (Dentes
guardados, 2001) e Clarah Averbuck (Máquina de Pinball, 2002).

Portanto, observa-se na citação acima que entre os nomes de escritores que se


lançaram no mercado editorial através de seus escritos disponibilizados na internet, a presença
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de três mulheres: Ana Maria Gonçalves, Ana Paula Maia e Clarah Averbuck. Este exemplo
evidencia como o acesso ao “espaço democrático” da internet possibilitou a inserção de
mulheres no campo do fazer literário brasileiro. Desta forma, podemos refletir em que medida
estas novas práticas de escrita favoreceram o desenvolvimento e/ou ascensão de uma escrita
de autoria feminina no Brasil.
Segundo Beatriz Resende (2008), os doze capítulos que compõem o livro Entre rinhas
de cachorro e porcos abatidos, ficaram disponibilizados no blog da autora Ana Paula Maia,
durante uma temporada e mostrou que não precisava de editoras para encontrar seu público
leitor. Após vigorosa circulação na rede e resenhas publicadas, o folhetim eletrônico de Ana
Paula Maia ganhou publicação impressa. As novas tecnologias e, em especial, o suporte
digital blog, possibilitou reconfigurar o circuito autor, obra e público. Além de incluir no
espaço literário, novas vertentes de escrita que embaralharam o pensamento essencialista que
dita o que próprio para as escritoras escreverem.
Nesta direção, pode-se formular que o suporte blog, abriga, em sua constituição, um
misto de permanências e rupturas. A permanência corresponde à manutenção de algumas
fórmulas literárias já conhecidas, como por exemplo, o blog de Ana Paula Maia recorre à
publicação de capítulos diariamente, como se fossem os antigos folhetins do século XIX,
publicados em jornais. E, por outro lado, percebe-se a ruptura com estes mesmos modelos,
alguns exemplos para isso são: a ausência de papel, a inserção de mulheres entre outros
grupos marginalizados no fazer literário, a elaboração de novos formatos estéticos, como a
proliferação de textos autoficcionais. A imbricação de elementos tanto da cultura impressa
escrita, quanto da cultura digital em um ambiente hipertextual, colaborou para transformar o
texto produzido nos blogs em um manancial de possibilidades para o autor, leitor e crítica.
Em certa medida, constata-se no blog Aeronauta, mantido pela escritora baiana Ângela
Vilma, uma espécie de estabilidade que remete aos elementos evidenciados na literatura
canônica e, por outro lado, apresentam esse fazer literário contemporâneo, que elabora novos
gêneros de escrita, como a autoficção. É possível perceber como o conceito de literalidade,
formulado no início do século XX, pode ser aplicado aos textos da escritora. O blog
Aeronauta faz largo uso de elementos que indicam que os textos publicados nesse espaço,
possuem alguma característica que o aproximam do conceito de literalidade. No elucidativo
trecho abaixo,
[...] Vida sem exagero é coisa sem graça. Vida sem metáfora é leitura de jornal. [...]
Como viver sem imagens, sem escavar o imaginário e de lá tirar uma casa, toda feita
de chocolate? Ah, tantas casas tenho. Invento vestidos vermelhos, culpas que não
nasceram, verdades inatingíveis e ocultas. Aqui tudo é de brinquedo, ainda guardo
muitas cédulas, e meu pé de carambola nunca morre. (VILMA, 2009).

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Após a leitura deste trecho, qualquer leitor, seja ele mais ou menos sofisticado,
consegue identificar se esta passagem pode ser considerada literatura ou não. É evidente que o
sentido de literalidade empregado aqui não pretende aludir ao engessamento do conceito
formulado pelos formalistas russos23. Esta concepção é muito mais ampla, abrange as
particularidades presentes na literatura sem enclausurá-las em um modelo universal de fazer
literatura. Como assinalado acima, a literatura contemporânea caracteriza-se pela
descontinuidade e falência do que chamamos universal, coadunando-se com as ideias
desconstrucionistas de negação a “essência primeira”. Neste momento, falar em literalidade, e
em conceito de literatura pode soar contraditório, e esta não é a intenção. Literalidade e
literatura assumem aqui um caráter didático e fornecem as bases para a exemplificação do que
pode ser entendido como literatura hoje.
Por outro lado, o blog de Ângela Vilma desestabiliza a mesma configuração de
literalidade, no sentido em que promove a reunião em um mesmo texto de ações fatuais
rebaixadas pela “alta literatura” através da produção da autoficção. Neste gênero textual,
mesclam-se o escritor de carne e osso, e o escritor ficcional abrindo espaço para um novo
posicionamento do leitor perante a leitura desta forma de texto. Assim, o leitor é
constantemente levado a esse jogo entre presenças e ausências na escritura, pois, nem o texto,
nem a escritora indicam caminhos para encontrar a veracidade ou o embuste. Como ensina
Derrida (1995, p.248),
[...] o jogo é sempre jogo de ausência e de presença [...] é preciso pensar o ser como presença ou ausência a partir
da possibilidade do jogo e não inversamente. Ou seja, nenhuma interpretação pode estar fixada em determinado
centro, gerida pelos binarismos já consolidados pelo pensamento metafísico ocidental.

Pode-se acrescentar a discussão à produção em blog da escritora baiana Renata


Belmonte24 que marcou seus textos com este acentuado jogo entre a ficção e a realidade.
Segundo a pesquisadora Núbia Peixoto Barreto (2013) construir uma ficção permeada pela
23
De acordo como verbete do E-Dicionário de Termos Literários, o termo literariedade pode ser definido como
uma propriedade intrínseca da literatura constatada pelos formalistas russos no início do século XX. Existem
argumentos a favor e contra esta definição. Os argumentos positivos garantem que existem características
universais, como o predomínio da linguagem conotativa, polifonia, sonoridade, que manifestadas em uma obra
particular podem definir um texto literário como tal. Por outro lado, aqueles que contra- argumentam sugerem
que estas características não podem ser encontradas no texto e sim fora dele. Pois, são características emitidas e
reconhecidas pelo contexto social-político em determinada época.
24
Renata Belmonte nasceu em Salvador em 1982, é escritora e advogada. Publicou os livros: Femininamente,
Prêmio Braskem de Cultura e Arte (2003); O que não pode ser, Prêmio Banco Capital (2006); Vestígios da
senhorita B.(2009). Participou de antologias como: Outras moradas (2007), Antologia Sadomasoquista da
Literatura Brasileira (2008). Foi colaboradora de diversas revistas literárias como, por exemplo, Rascunho, e o
Verbo 21. Entre os anos de 2007 a 2010 manteve o blog Vestígios da senhorita B.

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realidade é uma das características da escrita produzida em blogs. É possível verificar este
caráter fictício-realista tanto nas postagens da escritora Ângela Vilma quanto nas de Renata
Belmonte. A diferença talvez esteja no modo como ambas as escritoras se comportam diante
da superexposição em seus respectivos blogs.
Para Núbia Peixoto Barreto (2013) um motivo que contribuiu para o encerramento das
atividades, do blog Vestígios da senhorita B, foi a incapacidade de convívio entre a
personagem fictícia do blog, a senhorita B, e a personagem real chamada Renata Belmonte.
Segundo a leitura realizada pela pesquisadora, a senhorita B, seria um alter ego da escritora
em questão, já que a letra B corresponde ao sobrenome Belmonte. Devido a este conflito entre
a fantasia e a realidade que a “Senhorita B” deixa de publicar em seu blog,

[...] Belmonte, aos poucos, demonstra certo incômodo e cansaço pela


obrigatoriedade da atualização exigida pelo blog. Os leitores iniciam uma cobrança
pela sua presença, seu pai critica a monotonia dos registros, e ela se vê obrigada a
justificar as ausências. Diante desse cenário, Belmonte inicia um processo de
despedida, alegando que precisa se sentir mais livre sem a presença do alter ego. A
construção do fechamento da página começa a ser feita via a ficção, Belmonte diz se
sentir invadida pela imagem de Senhorita B, como se esta lhe tirasse o brilho dos
olhos, como se roubasse sua vida. Responsabilizando um alguém indefinido,
justifica a decisão da eliminação da persona, portanto é o momento do
encerramento da página. (BARRETO, 2013, p.47)

O que se pode verificar é que a escritora Renata Belmonte vê-se impelida a abandonar
o blog, visto que os intrometimentos desta senhorita tornaram impossível a convivência entre
a vida empírica da blogueira e a vida fantasiada. Por outro lado, quando se trata da escritora
em estudo percebe-se que ela escolhe para seu “outro eu” um nome que remete ao universo
literário não a sua vida pessoal. Talvez, por isso, a autoexposição da escritora Ângela Vilma
aparente ser mais uma literária-exposição de sua imagem, e esta artimanha a proteja mais
neste campo incisivo chamado blogosfera.
Ao tensionar o objeto de estudo, ora aproximando a conceitos da tradição, como a
literalidade e ora a experiências de escrita contemporâneas como a autoficção promove-se
uma busca pela “técnica de interpretação” indicada por Foucault (1997), diante dos signos e
significantes. Nela, todos os sentidos são originários de uma significação anterior, e assim
sucessivamente, por isso elimina-se qualquer ponto de interpretação única. E neste caminho,
também se pode pensar como este capítulo apresenta-se como uma espécie de bricolagem de
acordo com a noção derridiana (1995), na qual ao ler Lévi-Strauss afirma que o bricoleuré
aquele que experimenta formulações teóricas de campos diversos em um mesmo objeto,
alterando-os com a finalidade de encontrar possibilidades de pensamento.

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Em meio a esta atmosfera viável para a reflexão, pode-se argumentar que o suporte
blog, apresenta-se nesta leitura como uma espécie de suplemento à literatura impressa
produzida por mulheres na contemporaneidade. Nessa linha de raciocínio, deduz-se que tanto
a literatura impressa quanto a virtual configuram-se como elementos que não se excluem.
Logo, nem o primeiro nem o segundo podem assumir posição de superioridade em detrimento
do outro. Pensa-se assim como a noção de suplementaridade faz parte do que se chama de
Estudos Culturais e como esta conceituação não poderia passar despercebida neste estudo, já
que o próprio de conceito de leitura resulta da interação entre o autor, leitor e texto. De
acordo com Derrida, a suplementaridade só pode ser alcançada através do jogo de
significações que ocorre dentro da linguagem, é nesta relação que se fundamenta o
suplemento. Nas palavras de Derrida (1995, p 245), “[...] o movimento da significação
acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas essa adição é flutuante porque
vem substituir, suprir uma falta do lado do significado.”.
A literatura produzida no Aeronauta não nega a tradição literária impressa, bem como
fornece elementos que não funcionam dentro desta mesma literatura, estabelecendo assim,
uma cadeia de suplementos, um remete ao outro e assim sucessivamente, pois eles podem se
substituir, mas sempre na presença do outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na relação entre ausências e presenças, é que o blog acontece, enquanto objeto


literário, que difere do impresso, porque é fruto de outro contexto que jamais poderá ser igual
ao primeiro. E, no chamado deste ou daquele objeto, reside à inexistência do centro tornando
relevante quaisquer partes. Por exemplo, para compreender o significado de Romeu, no
enredo shakespeariano necessita-se da presença de Julieta. Em uma brincadeira interminável,
os signos e significantes se repelem e se aproximam, e, ao mesmo tempo, eles só podem
existir a partir dessa cadeia. É como o blog Aeronauta e a literatura, eles podem ser estudados
separados um do outro, entretanto, juntos, é que se inscrevem na diferença potencializando os
seus significados.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Núbia Peixoto. Montes de escrituras, montes de leituras: a escrita diarista e


virtual de Renata Belmonte e Alfredo Belmonte. Salvador, 2013. 105f. Dissertação

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REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO NAS PERSONAGENS FEMININAS EM O


MATADOR, DE PATRÍCIA MELO

Naira Suzane Soares Almeida¹


nairasuzane1@hotmail.com

Algemira de Macedo Mendes²


ajemacedo@ig.com.br

INTRODUÇÃO

No livro “Sexo Gênero e Sociedade” (1972) de Ann Oakley, o gênero está associado
às diferenças anatômico-fisiológicas e gênero ao feminino e masculino relacionado
socialmente as diferentes culturas. O termo ‘gênero’ transforma-se ao longo da história se
diferenciando do termo ‘sexo’ e vai deixando de ser considerado como biológico, passando
assim a se levar em conta as relações sociais, políticas, econômicas, culturais sujeitas a
mudanças. As concepções de gênero foram criadas a partir da união de vários teóricos:
ideólogos da “revolução sexual”, teoria crítica da sociedade, construtivistas sociais,
existencialistas ateus e feminismo de gênero. Os ideólogos da ‘revolução sexual’ Theodor
Adorno e Max Horkheimer criticaram a sociedade burguesa, bem como ao marxismo-
leninismo dogmático, propondo um comunismo aberto para torna-se conhecido Ocidente –
Europa e América. Em seu uso mais atual gênero está associado ao substantivo mulheres,
entretanto não possui a carga política que este leva. Enfatizando que falar de gênero não se
restringe a falar apenas de mulheres.
O movimento feminino começou a ser fortalecido desde o século XIX, e já passou por
enumeras conquistas no século, porém não é por essa razão que o movimento se acomodou,
pelo contrário, em pleno século XXI há passeatas, palestras, mesas redondas, atos públicos de
nudez e muitas outras ações com a finalidade de reivindicar a igualdade de direitos para todos
e todas. A revolução francesa foi o pontapé inicial para que as mulheres reinvidicassem o
direito ao voto e conseguissem o sufrágio. O movimento feminista brasileiro apenas se
consolidou como movimento de massa a partir de 1970, no contexto da luta com a ditadura
militar, antes havia se pouco espaço para as escritoras brasileiras. Antes a literatura feminina
era pouco explorada pela história da literatura. A mulher como escritora representa uma
ruptura dos modelos sociais propagados na década de 40, assim deixando de ser o Outro e
passando a ser sujeito em sua própria história, história essa que outros haviam escrito e que

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foi preciso coragem para dar voz a algo silenciado e ‘naturalizado’, saindo da condição de
subalternidade e passando desta maneira a sujeito de sua própria história.
Na literatura contemporânea brasileira pode-se destacar Clarice Lispector, escritora
feminista que teve destaque na década de 40, que inseriu em suas obras um caráter
psicológico e denso, falando assim sobre a mulher, as relações desta com o espaço, as
relações de poder, a miséria, dentre outros temas. Começou sua carreira jornalística no Jornal
Correio da Manhã escrevendo na coluna “Correio Feminino”. Já na década de 60 trabalhou no
Diário da Noite com a coluna “Só Para Mulheres”. Já no século XXI pode-se deixar a
escritora Patrícia Melo que, de acordo com uma entrevista concedida para a Entrelinhas, é
escritora romancista e argumentista, contudo iniciou sua carreira como roteirista e
dramaturga. É seguidora do estilo literário de Rubem Fonseca que retrata a violência e as
mazelas sociais. Publicou Acqua Toffana (1994), O matador (1995), Elogio da mentira
(1998), Inferno (2000), Valsa Negra (2003), Mundo perdido (2006), Jonas, o copromanta
(2008), Ladrão de cadáveres (2010) e Escrevendo no escuro (2011).
Seu romance O matador foi indicado ao Prix Femina, um dos mais prestigiosos
prêmios literários da França e conquistou o também francês Deux Océans. Em 2003, virou
filme com o título de O homem do ano, com roteiro de Rubem Fonseca e direção de José
Henrique Fonseca. Esses elementos colaboraram positivamente para escolha do objeto de
análise proposto.
A obra em análise tem narração marcada por forte determinismo e certa ideia de
fatalidade perseguindo os personagens. Possui orações curtas lembrando aos diálogos
fílmicos. E tem como pano de fundo o rapper, o uso de linguagem simples, permeada de
onomatopeias, segue uma sequência cronológica da narração, e tem uma gama de
personagens para representar a classe pobre do subúrbio, a classe média com policiais e a
classe alta com advogados, políticos e empresários.
O romance O matador, de Patrícia Melo, é composto de 40 partes, publicado em 1995.
Trata-se de um romance policial que é narrado em primeira pessoa por Máiquel, uma espécie
de anti-herói, morador do subúrbio na cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo. A
narrativa mostra a transformação do mesmo a partir de uma aposta de futebol em que seu time
perde. Em seguida há uma série de acontecimentos: um erro no salão que, por conseguinte o
deixa loiro, uma briga de bar levando-o a um duelo no dia seguinte, e uma dor de dente.
Assim ele mata o primeiro homem e torna-se respeitado no bairro em que habita.
O objetivo geral da pesquisa é apontar a representação de gênero nas personagens
femininas em O Matador, de Patrícia Melo, através das personagens Cledir e Érica,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
105

mostrando os estereótipos femininos presente nestas, na década de 90. Destacam-se aqui dois
pontos: a obra foi escrita nos anos 2000, mas retratam os anos 90, naquela época no Brasil o
movimento feminista estava em processo de afirmação, estruturando-se em organizações não
governamentais e governamentais, paralelamente aliada ao CNDM conseguiu aprovar 80%
das propostas, incluindo licença maternidade de 120 dias a criação de uma licença-
paternidade, benefícios sociais e direitos trabalhistas para empregadas domésticas, direito ao
divórcio, além de artigos garantindo a igualdade entre mulheres e homens independentes de
cor/raça. Foi só na década de 90 que os estudos de gênero ganharam o horizonte que possui
atualmente nas universidades brasileiras.
Algumas perguntas foram norteadoras para nossa pesquisa: Como são representadas as
abordagens históricas do termo gênero? Por que Cledir pode ser relatada como sendo o
Outro? E como se pode comprovar que a personagem Érica deixa de ser o Outro e passa a ser
sujeito? A metodologia aplicada é a análise da narrativa em questão com análise descritiva
dos dados.

2 MARCO TEÓRICO

Este estudo apoia-se nos proposto teórico de Adichie (2015), Beauvoir (2016), Butler
(2010), Bourdieu (2010), Chauí (2004), Foucault (1987), Hall (2002), Lauretis (1994),
Saffioti (2004), Scott (1995), dentre outros (as).
No texto A tecnologia do gênero: tendências e impasses, de Teresa de Lauretis (1994),
ela mostra como era representado o conceito de gênero como diferença sexual nas décadas de
60 e 70. Por conseguinte criaram espaços “gendrados” (marcados pela particularidade de
gênero), provocando um enquadramento e criando estereótipos. Primeiro afirma-se que não se
pode reduzir a uma mera oposição biológica entre a mulher e o homem como ambos
universalizados. Segundo que deve se sair de um molde epistemológico radical do
pensamento feminista tornando a mulher como elemento oposto ao homem imaginando-a
como produto secundário de uma sociedade patriarcal, portanto a autora defende que precisa
ser desconstruída a imbricação de gênero. Concluindo este pensamento (LAURENTIS, 1994,
p. 211) “gênero representa não um indivíduo e sim uma relação, uma relação social; em outras
palavras, representa um indivíduo por meio de uma classe”.
O gênero representa também um grupo de indivíduos através da sua ideologia, é o caso
do machismo na personagem Máiquel que neste fragmento revela bem esta ‘cultura’ sua e de
sua família, Melo (2005, p. 21):

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Na minha família, os homens não costumam chorar. Não por causa de machismo, embora
sejamos machistas. Não choramos porque também não rimos, não abraçamos, não beijamos e não
dizemos palavras gentis. Não mostramos nada do que acontece embaixo da nossa pele. Isso é
educação. Meu avô era assim, meu pai era assim e meus filhos serão educados dessa maneira. Nunca
chorei na frente de ninguém, exceto naquele dia. Chorei, solucei, eu matei um homem, chame a
polícia, eu vou me entregar.
Ser homem não implica em não mostrar suas emoções e ser autoritário, mas de acordo
com a visão da personagem da década de 90, o homem era quem detinha o poder de opressão
e a fragilidade estava (e ainda está) intimamente relacionada ao comportamento das mulheres.
Entende-se que o homem jamais poderia demonstrar educação, gentileza e amor.
No livro O Segundo Sexo (2016) de Simone Beauvoir, as discussões na década de 40
ainda são muito atuais, a mulher não deixa de ser o Outro, o segundo sexo, vista como objeto
ou padrão estético de beleza. A autora defende que a mulher não se reduz à fêmea, pois está
muito além da mera reprodução. Ao contrário do que Aristóteles imaginava que o feto era
gerado pelo encontro do mênstruo com o esperma, a mulher era apenas uma matéria passiva,
sendo o homem representante da vida. Essa teoria se propagou desde a Idade Média até à
época moderna.
A afirmação que o mundo sempre pertenceu aos machos pode ser explicada, pois de
certa forma os homens conseguiram dominar, porque não é dando a vida como a mulher, e
sim arriscando-a que o homem tem sua superioridade, já que apenas eles tinham o direito de
participar das expedições. (BEAUVOIR, 2016, p. 338) “sendo a mulher um objeto,
compreende-se a maneira pela qual se enfeita e se veste modifica seu valor intrínseco. (...) É
para se vestir que muitas mulheres se prostituem ou arranjam que ‘as ajude’.”.
Na obra O matador a personagem Érica perde a sua fonte de sustento que é Suel, seu
namorado, e vai atrás de Máiquel, o seu assassino, em busca de abrigo e dinheiro para que ele
‘a ajude’.
O marido é quem tem que trabalhar, Suel dizia isso. Eu não sei fazer nada. Tenho quinze anos
e nunca trabalhei, o Suel cuidava de mim. ...A mãe do Suel... Ela me botou para fora de casa... Você
que tem que me sustentar. Tem que me aguentar. Tem que dar comida, roupa, o que eu precisar.
(MELO, 2009, p. 47)
A personagem é uma mulher jovem, pobre, sofrida e submissa. E enxerga sua posição
como “natural”. Seu namorado Suel possuía uma visão antropocêntrica quando ele afirma
“que o marido tem que trabalhar”, e Érica tinha apenas que cuidar dos afazeres domésticos da

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casa. Beauvoir afirma que a mulher é o outro, na posição de subalternidade, essas relações de
poder que são postas na teoria antropocêntrica como naturais.
Através de um estudo de caso, visto que as mulheres eram tratadas como o outro, no
livro Todos devemos ser feministas (2015), da escritora feminista Chimamanda Ngozi
Adichie, faz uma série de denúncias sociais sobre a discriminação de gênero com enfoque na
mulher, as relações hierárquicas dos homens sob as mulheres e a não aceitação disto como
‘normalidade’, e o alerta que autora faz na forma de criação dos filhos homens que não se
deve reprimir o medo, a fraqueza e a vulnerabilidade. (ADICHIE, 2015, p. 29) “quanto mais
duro um homem acha que deve ser, mais fraco será seu ego”. E completa que feminista é a
mulher ou o homem que assume que ainda hoje há problemas de gênero e que todos devem
melhorar.
No livro A dominação masculina (2010), de Pierre Bourdieu, o autor coloca seu ponto
de vista sobre gênero, manifestando sua opinião que as mulheres devem fazer uma ação
política em conjunto com os (as) homossexuais através do movimento social para lutar contra
a discriminação simbólica tendo força para desestabilizar as instituições, estatais e jurídicas,
que ajudam a massificar sua subordinação. O autor afirma que o homem é também produto da
dominação.
Conforme (BOURDIEU, 2010, p. 18) “A visão androcêntrica impõe-se como neutra e
não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Apresentando sua
opinião que as relações de sociais e as divisões de trabalho, baseado na anatomia entre o
corpo masculino e o corpo feminino, são atribuídas como natural a diferencia social
constituída pelo gênero, quando na verdade é algo construído. Desta maneira a arbitrariedade
é convertida de norma social a algo essencial. Assim na obra em análise a personagem
Máiquel ver sua superioridade como algo naturalizado em relação à mulher. Ele não sabia que
Cledir era virgem e, mesmo se soubesse, não faria diferente. O que conhecia sobre as
mulheres era apenas a visão distorcida que elas gostavam de ser dominadas e pediam ou
imploram por isso.
“Perguntem o que elas querem e elas vão dizer: foda-me. Faça meu coração doer. Faça eu
gritar. Faça alguma coisa. Vão dizer: espremam a fruta e tirem o suco. É isso. Mulheres gostam de
tropas, cavalos, lanças, coisas que invadem e conquistam. Coisas que dominam e trazem paz. Coisas
que ocupam e deixam marcas. Mulheres, Cledir, desculpe.”(MELO, 2009, p. 42)
A posição de dominador a Maiquel como sujeito do sexo masculino não tem a
necessidade de nenhuma justificativa social, pois já é passada pela dominação simbólica como
algo natural e por ser natural não precisa ser legitimada. Desta maneira a teoria dialoga com a

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obra literária quando Bourdieu (2010) explica que a oposição sobre os sexos se dá desde a
Idade Média. Em varias relações, como exemplo, ele cita o direito civil e o ato sexual, onde se
é pensado no principio da masculinidade, onde “ser homem” implica ser superior e não
mostrar os sentimentos, ser mais forte, ser ativo; e “ser mulher” resulta em ser frágil, passiva,
submissa e honrada.

ANÁLISE DA PERSONAGEM CLEDIR COMO SENDO O OUTRO

Cledir uma mulher branca, com cabelos negros tinha apenas vinte quatro anos, uma
bela morena. Quando o conheceu fazia um curso de datilografia e trabalhava no Mappin fazia
apenas dois meses. Ela se apaixona pelo rapaz quando ele lhe diz (MELO, 2009, p. 58) “que a
vida sem amor era muito triste”.
A personagem sofre violência sexual. Este episódio na obra é mostrado quando a moça
vai ao apartamento dele e com carinho tira a blusa e a saia e lhe dá um beijo no rosto, mas ele
com dor de dente não retribui o gesto, então a moça começa a chorar e aí é que ele sente seu
desejo aumentar, é quando o mesmo força a moça a fazer sexo de forma violenta e sem deixar
nenhuma opção para ela. Veja o relato abaixo:
Cledir, eu gosto de você. ...Não vai embora, vou sim, não vai, não. Empurrei-a no chão, tentou
se levantar, puxei-a pelos pés, ela caiu, bateu a cabeça, começou a chorar e isso me deu mais vontade
de entrar na caverna, o abismo, a floresta, ela travou as coxas, gritou, eu tapei sua boca com almofada,
abri suas pernas com meus joelhos, meti meu pau na floresta, parece que tinha uma parede dentro da
boceta dela, derrubei a parede e gozei. (MELO, 2009, p. 32-33).
A moça é estuprada sem nenhum escrúpulo por seu namorado, e é apenas depois do
ato que se percebe o enorme erro que cometeu quando o mesmo vê seu falo todo
ensanguentado, se dando conta que Cledir era virgem. Mesmo se ela não fosse virgem, que
direito ele possuía de machucar aquela jovem? Pode-se concluir que nenhum, pois o nosso
direito acaba quando o do outro começa.
Assim como na ficção no âmbito social a vítima de estupro geralmente são mulheres
(crianças, jovens e idosas), infelizmente foi descoberto que estupro ocorre com mais
frequência do que se imagina e geralmente o homem é o agressor, e esse pode ser um
estranho, mas majoritariamente são parentes (pai, marido, irmão, tio e etc.). De acordo com
Saffioti (2003) as mulheres representam cerca de 90% do total das vítimas, e os homens como
vítimas apenas 10% desde total. Esses dados são de 1992, que compreende o contexto
histórico da obra.

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A violência sexual é em grande medida violência doméstica. Na obra em análise a


vítima é Cledir uma mulher de 22 anos cheia de sonhos. A mulher é vista como objeto de
prazer, pois a sociedade corrobora para a cultura do estupro, levando para a obra alguns
espectadores iriam se perguntar com que roupa Cledir estava, aonde ela estava, porque estava
sozinha, e certamente de vítima seria transformada em réu. No fragmento abaixo a vítima
confronta o agressor:
Tenho duas coisas importantes para te dizer: a primeira é que eu te amo. A segunda que você é
um filho da puta miserável, ela disse. Grávida, eu estou grávida. ...você teve que estragar tudo. Teve
que me magoar, me jogar no chão e me estuprar, sim, senhor, aquilo foi um estupro, coito forçado...
Eu era virgem. Eu queria ter me apaixonado pelo Odair. (MELO, 2009, p. 58)
A personagem é estuprada e engravida do namorado, o agressor, mas mesmo com toda
a violência sofrida, a mesma perdoa seu namorado e logo após alguns dias volta a aquele
apartamento para contar que está grávida dele. E ele a pede em casamento como uma forma
de compensação. Ela o leva depois para fazer o pedido da sua mão para sua mãe.
Eu queria pedir Cledir em casamento, mas meus olhos grudaram no quadro que estava do lado
da janela, Cristo numa cruz espacial caindo no mar, o mar que era também o planeta Terra. ...As duas
me olhavam, duas mulheres descentes, de mãos dadas, a casa cheirando a cera, os móveis sem pó, as
camas arrumadas, o bolo de chocolate, as cervejas, as panelas lavadas, os armários de fórmica,
comecei a chorar ali mesmo, na frente das duas. (MELO, 2009, p. 67)
Lembrando que a escritora Saffioti (2004) afirma que as mulheres possuem a
capacidade de superar sofrimentos psicológicos e de suportar violências. A personagem pode
ser comparada com Maria, a mãe de Jesus, tendo características como: santa, pura e fiel. “E
Cledir me esperando para jantar. Criando o meu filho dentro da barriga, cozinhando, uma
coisa pura, sincera, certa. (...) Cledir nunca iria me trair.” (MELO, 2009, p. 102). A virgem,
rainha do lar, preparando a comida, limpando a casa e cuidando do bebê que ainda ia nascer.
Trabalhando no Mappin sustentando as despesas da casa. Vestida com roupas recatadas,
inspirando confiança.
Acreditar que todas as mulheres devem ter esses estereótipos de rainha do lar, a fiel, a
submissa, a paciente, a que desiste de seus sonhos para agradar o marido e permanecer no
casamento, são modelos sociais que vem de sociedades patriarcalistas. Desta maneira, pode-se
desconstruir esse pensamento sobre uma identidade unificada na modernidade, pois Stuart
Hall (2006) defende que:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos

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confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2006, p. 13)
Pode-se afirmar que Hall (2006) defende múltiplas identidades e não apenas uma
como assertiva, pois as sociedades modernas mudam rapidamente e constantemente. Essa é a
principal diferença entre as “sociedades tradicionais” e as “sociedades modernas”. Encontra-
se a figura do individuo isolado e alienado em meio à multidão, exemplo claro é do
protagonista Máiquel que se torna inicialmente uma marionete para os poderosos eliminarem
os “bandidos” (estupradores, ladrões, assassinos, e etc.). (MELO, 2009, p. 103) “Os caras me
transformaram num kamikaze, um kamikaze ignorante que não sabia que o avião iria
explodir. Hoje eu sei quem são os filhos da puta, os inventores de pilotos-suicidas, só de olhar
para o sapato desses caras...”.
Continuando com essa reflexão Chauí (2004) afirma que em quanto houver separação
entre o trabalho material e o trabalho intelectual haverá ideologia, pois o trabalhador
simplesmente não saberá ‘pensar’ e o intelectual continuar aquele que não trabalha, a
ideologia se perpetuará.
Cledir é morta por Máiquel depois que Érica pede para que ele mate sua esposa e
justifica para ele que pessoas toda hora desaparecem com motivo ou sem motivo. Ele
simplesmente mata a esposa sem pensar, totalmente drogado, havendo sim a intenção em
matá-la.
...Cledir começou a bater na porta, abra, abra a porta, abra essa porta, abra essa porta, abra essa
porta, abra essa porta, abri, ela começou a berrar comigo, eu ouvia tudo, entendia tudo, ela estava
assustada, o ódio começou mesmo na boca e explodiu nas minhas mãos e eu apertei o pescoço de
Cledir, apertei, apertei, apertei e só parei quando ouvi o osso do pescoço se partir. (MELO, 2009, p.
137)
Nesse trecho acima narra a violência domestica contra a mulher, ela que já sofria o
descaso total do marido, que não dava a menor atenção à filha Samanta, porque só havia
tempo para pensar em Érica e se drogar. Ela que já sofrido violência sexual quando for
estuprada por este sujeito que dizia gostar dela, sofria violência psicológica em seu dia a dia e
foi vítima de violência física quando for estrangula por Máiquel seu agressor, tratando-se de
um feminicidio Trançando um paralelo da ficção com o contexto social a escritora Saffioti
(2004) afirma em seu livro Gênero, patriarcado e violência que quase a metade das
investigadas brasileiras admitem ter sofrido algum tipo de violência por parte de homens.

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ANÁLISE DA PERSONAGEM ÉRICA COMO SUJEITO

Érica tinha apenas quinze anos, e já conhecia várias cidades através das viagens que
fazia com seu pai caminhoneiro, gostava de estudar, se interessava por dicionários e
almanaques. Há entre Máiquel e Érica um envolvimento amoroso. Ele se apaixona pela jovem
e a partir daí ela passa a ser vista como uma representação do seus desejos e fantasias, uma
mulher objeto. E, além disso, Érica passa ser a vista como representação do “mal” para ele.
Pode-se compará-la com Eva, a traidora, a dissimulada, a representação da tentação. “Érica
era uma garota inteligente, e cada vez mais eu gosta dela. (...) Érica era sacana e iria me trair,
Iria me trair, eu sentia isso em cada palavra que saía de sua boca.” (MELO, 2009, p. 102).
Como afirma Hall (2006) a identidade está sempre sendo formada, então não é algo
estática, mas sim algo construído a partir das experiências de cada individuo. Costurando com
a descrição de Érica, ela deixa de ser o Outro, quando morava com Suel seu ex namorado,
para se tornar sujeito impondo que Máiquel a sustente, já que o mesmo havia matado o seu
financiador. A adolescente é considerada a frente de seu tempo em virtude de conhecer vários
tipos de bebidas, drogas e pelo gosto a leitura.
Chauí (2004, p. 39) afirma que “o papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a
dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta
deve ser aceita”. A personagem não mede esforço para fugir de casa quando se dá conta de
que se ficasse com Máiquel também seria morta, Melo (2009, p. 189) “...nascer e morrer,
foder e morrer, enganar e morrer, fugir e morrer, trabalhar e morrer, criar e morrrer...”. Érica
escreve estes versos, pouco depois que Máiquel a ameaça dizendo que se ela o deixasse sairia
de casa apenas morta.
Érica aproveita que Máiquel vai receber o prêmio de Cidadão do ano e pega o dinheiro
que está no cofre e leva Samanta e a empregada com ela, agindo desta forma como sujeito
diferentemente da esposa que foi estrangulada por ele. A narração (MELO, 2009, p. 197):
“Levei a Samanta porque ela é minha filha e porque você não dá a mínima para ela. Peguei
vinte mil dólares que estavam no cofre, sinto muito, mas eu tinha que fazer isso. Você está
sem empregada, ela foi comigo”. A personagem vai embora e ainda leva Samanta, como no
determinismo. Ela sabia que se ficasse ia morrer, utiliza do seu livro arbítrio para fugir. É
quando ela se torna apoderada.

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CONCLUSÃO

Pode-se afirmar que o objetivo da pesquisa foi alcançado. A análise das personagens,
Cledir que pode ser relatada como sendo o Outro, conseguiu comprovar que a personagem
Érica deixa de ser o Outro e passa a ser sujeito apresentando os estereótipos femininos que as
sociedades patriarcalistas ditam como ‘naturais’. Cledir comparada a Maria, pura, fiel e
trabalhadora, não seria capaz de trair a confiança de Máiquel em oposição a Érica, comparada
a Eva, astuta, sedutora e instruída, que já seria capaz de traí-lo.
Érica na obra O matador, de fato deixa de ser o Outro e passa a ser o sujeito, obtendo
desta maneira voz e vez, assim se apoderando sobre os acontecimentos, tendo sua liberdade
de volta ao final quando foge com Samanta e não aguarda ser morta por Máiquel. No entanto,
Cledir não se dava conta de como realmente era seu marido. Estava ‘vendada’. Esse rapaz por
quem se apaixonou nunca existiu. Aquela frase que ele havia dito no dia em que a conheceu
no Mappin foi só para conquistá-la. Ao final, se dá conta disso, porém paga caro pelo erro
com sua própria vida.
Culler em seu livro Teoria Literária (1999) nos fala que a teoria e escrita pós-colonial
se transformaram numa possibilidade de intervir na construção da cultura e do conhecimento,
a fim que todos conheçam o lado do oprimido e não apenas a versão do opressor, apesar de
saber que Culler defendia o patriarcalismo. Pode-se concordar com a afirmação que se deve
dar voz e vez para o oprimido.
A obra literária é uma forma de denúncia social e uma grande ferramenta para se dar
voz aos oprimidos. Este romance contemporâneo possui inúmeros vieses, podendo ser
abordados e discutidos, a violência, o poder, as relações de gênero e muitos outros, não se
propondo aqui o esgotamento destas discussões, mas sim apenas a contribuição para
enriquecer com os debates em torno da mulher e suas transgressões.
Esse trabalho é indicado a todos (as) que se interessam pela teoria feminista
envolvendo a literatura contemporânea como forma de denúncia dos abusos de poder em
sociedades patriarcalistas. As personagens Érica e Cledir de acordo com as comprovações de
fragmentos da obra são consideradas ora como Eva e ora como Maria. Porém, as identidades
como afirma Hall (2006) são frutos de modificações constantes, não podendo assim ser fixas.
Pode-se concluir que é impossível ditar apenas dois padrões de identidades femininas, em
vista que existe uma pluralidade de mulheres, e mais, alguém pode nascer com o sexo
feminino, mas ter desejo pelo menos sexo. Deve-se levar em conta as relações sociais, a raça,
o credo, a etnia e opção sexual, na formação de diversas identidades.

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REFERÊNCIAS

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Sampaio. 1. ed. Alfragide – Portugal: D. Quixote, 2015.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. Vol. 1.

BOURDIEU, Pierre, 1930-2002. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena


Kühner. – 9ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrnad Brasil, 2010. p. 12-67.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução de


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 1980. Revisor José E. Andrade. Data da digitalização:
2004.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos.


São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.


10ª ed.

LAURETIS, T de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. de. Tendências e


impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MELO, Patrícia. O matador. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

OAKLEY, Ann. Sexo e gênero. Traduzido por Claudenilson Dias e Leonardo Coelho.
Revista Feminismos. Bahia: v. 4, n.1, p. 64-71, Jan/Abr, 2016.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2004.

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Porto Alegre: v. 2, n. 20, p.71-99, Jul/Dez, 1995.

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SHOWALTER, Elaine. A Crítica feminista no deserto. In. Ana Gabriela Macedo (Org).
Género, identidade e desejo: Antologia crítica do feminismo contemporâneo. Lisboa: Cotovia,
2002. p. 37-74.

VAZ, Glaucia Mirian Silva. Função enunciativa em O matador e Mundo perdido, de


Patrícia Melo: constituição de posições-sujeito em enunciados sobre criminalidade. 1986-
Dissertações (Mestrado em Letras). Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, 2013.

ZOLIN, Lúcia Osana. O matador, de Patrícia Melo: gênero e representação. Revista Letras,
Curitiba, UFPR, n. 71, p. 53-63, jan./abr. 2007.

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A ESCRITA FEMININA DE AUTOBIOGRAFIAS NA


CONTEMPORANEIDADE: UMA ANÁLISE DE NÃO SOU UMA DESSAS, DE
LENA DUNHAM

Paula Janay (UFBA)25


E-mail: paulajanay@gmail.com

"No teatro da memória, as mulheres são sombras tênues".


(Michelle Perrot)

Introdução

Há um expressivo número de biografias e autobiografias de mulheres publicadas no


mercado editorial contemporâneo26. Na literatura, narrar a si mesmo não é um fenômeno
novo. Registros de relatos autobiográficos datam do século IV, com as Confissões, de Santo
Agostinho (ANDERSON, 2001, p. 19), multiplicando-se a partir do fim do século 18,
juntamente com o crescimento da burguesia e da popularização da escrita, mais notadamente
com as Confissões, de Rousseau, um dos primeiros a se distanciar do modelo cristão de
autobiografia e consolidar o modelo de autobiografia como a expressão da individualidade
do Romantismo (ANDERSON, 2001, p. 43). Os primeiros registros autobiográficos eram de
personalidades célebres, a maioria homens, que olhavam em retrospecto as suas vidas para
avaliá-las e narrar as suas conquistas.
Apesar do crescimento de publicações de autobiografias escritas por mulheres, não
podemos deixar de lado que há ainda historicamente uma defasagem desse gênero entre
autores femininos e masculinos. O mundo público era destinado aos homens, e é este mundo
que produzia os "homens célebres honrosos" interessados em registrar suas vidas através da
palavra escrita, outra origem e símbolo de poder. Neste presente artigo, consideramos como
parte do interesse por relatos de si a profusão de autobiografias e biografias publicadas nos
últimos anos,observando com curiosidade a crescente publicação de autobiografias de
mulheres, sujeitos historicamente subestimados pelo mercado editorial.

25
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade
Federal
da Bahia.
26
Em 2012, convidado a falar sobre a autobiografia nas "novas tecnologias", Philippe Lejeune afirma que com
a crescente popularização da internet, o número de autobiografias, diários e correspondências depositados na
APA (Association pour l'autobiographie et le patrimoine autobiographique), organização que o pesquisador
mantém na França para conservar este tipo de escrita, vêm crescendo ao longo do tempo, apesar da descrença no
interesse por este tipo de publicação depositada depois da popularização da internet (LE JEUNE, 2013, p. 10).

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Neste artigo, fizemos um breve mapeamento do fenômeno no mercado editorial


brasileiro, em uma amostragem das autobiografias de brasileiras e de mulheres estrangeiras
publicadas no Brasil. Analisamos com mais detalhamento a autobiografia Não sou uma dessas,
da escritora e diretora Lena Dunham, mais conhecida por seu trabalho na série televisiva Girls.
Sem pretensão de abarcar todo o fenômeno, relacionamos as publicações a uma crítica feminista
interseccional que entende que, apesar do potencial das narrativas de si de grupos
historicamente menosprezados, um debate de raça, classe e geopolítica é necessário quando se
trata de anunciar que há uma profusão de vozes e imagens de mulheres participando do cânone
autobiográfico atual. Antes de qualquer diagnóstico, precisamos analisar com cuidado quais são
essas "vozes" que estão sendo publicadas na contemporaneidade.

A escrita das mulheres

A existência de narrativas autobiográficas está longe de ser novidade. Segundo


Figueiredo (2013), a palavra "autobiografia" foi registrada pela primeira vez em 1779, em
alemão, e em 1809, em francês. As memórias e autobiografias se tornaram comuns
principalmente com a consolidação da burguesia no século 19, apesar de existirem registros já
no século 18. A maioria das autobiografias publicadas eram feitas por homens, que narravam
suas aventuras e grandes feitos (FONTES, 1998, p.391). Principalmente nas últimas décadas
do século 19, houve crescimento do número de autobiografias lançadas por homens, envolvidos
no poder político e econômico, que se consideravam a serviço da comunidade e com a tarefa de
preservar a tradição e a história nacional através dos seus relatos (LOBO, 2015, p. 132).
Philippe Lejeune é um autor citado tanto por Figueiredo (2013), Perrot (2009) e
Anderson (2001) em sua definição clássica de autobiografia: uma "narrativa retrospectiva que
uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em
particular a história de sua personalidade" (LEJEUNE apud FIGUEIREDO, 2013, p. 26).
Anderson (2001) afirma, no entanto, que nem mesmo Lejeune estava satisfeito com essa
definição por não traçar diferenças entre a biografia e a ficção (ANDERSON, 2001, p. 2).
Segundo Lejeune, alguma espécie de unidade ou conciliação com as instâncias do narrador, da
autoria e do personagem deveria existir para que uma obra fosse classificada como
autobiografia (LEJEUNE apud ANDERSON2001, p. 2).

Segundo Linda Anderson (2001), apesar das disputas e da falta de consenso sobre a
implicação da vida do autor em sua obra na ficção, a autobiografia vem sendo reconhecida
enquanto gênero desde o século 18, e suscitando debates na teoria crítica sobre diversos

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assuntos como autoria, expressão da identidade, e a dicotomia entre verdade e ficção


(ANDERSON, 2001, p. 1). Em se tratando do recorte apresentado nesse artigo, acompanhamos
Anderson quando ela defende que a discussão ao redor das autobiografias não deveria ser
simplesmente uma busca por uma definição de qual gênero ela se encaixaria, aspecto que toma
muito espaço na discussão sobre o tema, mas no esforço necessário para legitimar escritos
autobiográficos de alguns autores em detrimento de outros (ANDERSON, 2001, p. 9).
As narrativas testemunhais sempre estiveram à margem do cânone literário, na
dualidade entre ser ou não literatura. Por serem marginalizadas da cultura hegemônica, a escrita
de mulheres e, principalmente, a escrita testemunhal de mulheres sofrem um duplo golpe em
sua legitimidade. Para Fontes (1998), o gênero autobiográfico, por se basear em relatos
pessoais, pressiona um deslocamento do sistema literário que desestabiliza o cânone porque as
autoras femininas "ousam" sair dos ambientes privados para o domínio da linguagem pública.
Segundo a autora, a narrativa testemunhal ou autobiográfica feminina está atrelada
historicamente ao apartamento das mulheres da vida pública. Quando relegadas ao isolamento
da casa e apartadas dos assuntos públicos e dos gêneros comumente escritos por homens, as
mulheres se dedicaram a narrar as suas subjetividades (FONTES, 1998, p.398).
A historiadora Michelle Perrot se dedicou ao estudo do que ela chamou de "excluídos
da história", dando atenção aos relatos da vida cotidiana dos operários, dos prisioneiros e das
mulheres da classe trabalhadora. Perrot (2009) afirma que, para além das razões históricas que
apagam os rastros femininos ao longo dos anos, como a ausência da vida pública, a troca de
sobrenome em razão do casamento, a destruição de documentos pessoais de mulheres anônimas
em detrimento de seus companheiros ou familiares famosos27 e a linguagem que silencia o
feminino ao transformar o plural em "eles", há ainda a autocensura que queima, literalmente,
muito da história pessoal de mulheres.
"Convencidas de sua insignificância, muitas mulheres, estendendo ao seu passado o
sentimento de pudor que havia lhes sido ensinado, destruíam - e destroem - seus papéis
pessoais ao final de suas vidas28" (PERROT, 2009, p. 14).

À ausência das mulheres nos relatos públicos e documentos formais contrapõe-se a


presença e a autoria de relatos no ambiente privado (PERROT, 1989, p. 11). Ao falar das
autobiografias como fontes históricas das vidas das mulheres, juntamente com as
correspondências pessoais e os diários íntimos, Perrot afirma que a abundância desses escritos

27
A autora cita como exemplos a manutenção das cartas de Tocqueville para o seu amigo Gustave de Beaumont e
a destruição das cartas escritas por ele para suas esposas (PERROT, 2009, p. 15).
28
Tradução nossa para:"Convencidas de su insignificancia, muchas mujeres, extendiendo a su pasado el
sentimiento de pudor que se les había inculcado, destruían -y destruyen- sus papeles personales al final de sus
vidas".
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feitos por mulheres está relacionada à função da escrita em suas vidas: "uma escrita privada,
íntima inclusive, ligada à família, praticada à noite, no silêncio do seu quarto, para responder
ao correio, manter o diário e, em casos mais excepcionais, contar a própria vida29" (PERROT,
2009, p. 21). A autora não considera que a autobiografia, a correspondência e o diário como
gêneros intrinsecamente femininos, mas reconhece que são gêneros que se abrem às mulheres
por seu caráter privado.
No momento de lançamento de Minha História das Mulheres, a autora diagnostica a
falta de autobiografias escritas por mulheres e diz que o gênero comercialmente é uma atividade
pouco feminina. Ela justifica essa ausência com o fato de que olhar de forma introspectiva para
a própria vida para fazer um balanço da própria existência é mais comum em personagens
públicos (PERROT, 2009, p. 21). George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile
Dupin, é um marco entre as autobiografias publicadas por mulheres. Escrita entre 1847 e 1854
é tida por Perrot como inovadora pois relata a história da sua família em três gerações,
juntamente com a história de sua vida, com o entendimento de que toda individualidade é um
produto do tempo e das transformações pelas quais passaram a sua própria ambiência familiar
(PERROT, 2009, p. 14). O cenário iria mudar de figura assim que mais mulheres entrassem na
esfera pública e nos espaços de poder, com o desenrolar do século 20. No entanto, continua a
seleção de que tipos de escritas autobiográficas de mulheres são preservados: mulheres com
acesso à educação, ou, pelo menos, alfabetizadas (PERROT, 2009, p. 23).
A passagem da profusão da escrita "única" de homens para a profusão de narrativas
autobiográficas de mulheres é resultado de uma gradual transformação dos espaços ocupados
pelas mulheres na sociedade. Harris (2015) diferencia o conceito tradicional de biografia de
"práticas autobiográficas contemporâneas", especialmente produzidas por mulheres. Usando os
conceitos de Philippe LeJeune e George Gusdorf ela considera a autobiografia tradicional como
um "gênero literário associado à narrativa ocidental de caráter retrospectivo, focalizando o
indivíduo, em geral masculino e europeu, que tem autoridade e autorização para representar-
se" (HARRIS, 2015, p. 332). Ela enquadra as práticas autobiográficas femininas como de uma
capacidade de autorepresentação conquistada por indivíduos historicamente marginalizados.
Figueiredo (2013) faz, em seu livro Mulheres ao Espelho: Autobiografia, ficção e
autoficção, uma compilação de seus estudos sobre como diferentes gerações de mulheres, da
década de 1970 até os dias atuais, se põe em cena em seus textos. Destacadas exceções
históricas e constantemente ligadas às esferas de poder, o argumento principal sobre a escrita

29
Tradução nossa para: "De manera general, la presencia de las mujeres en estos archivos está en función del uso
que ellas hacen de la escritura, una escritura privada, íntima incluso, ligada a la familia, practicada por la noche, en
el silencio del dormitorio, para responder el correo, mantener el diario y, en casos más excepcionales, contar la
propia vida."
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
119

autobiográfica feminina, para Figueiredo (2013), seja ela explicitamente ficcional ou não, é de
que as escritoras francesas que publicaram sobre suas vidas nas décadas de 1970 e 1980
possibilitaram o surgimento de novas gerações que ousaram mais, sobretudo em relação à
escrita sobre o próprio corpo e a própria sexualidade (FIGUEIREDO, 2013, p. 84).
A entrada das mulheres no espaço público e a presença delas entre o rol de autores que
publicavam autobiografias não significou uma mudança de seu status no cânone, segundo
Anderson(2001). A autora afirma que a dualidade de tratamento entre as autobiografias escritas
por mulheres e homens é denunciada pela crítica feminista desde, mais notadamente, a década
de 1980: "um cânone que, como nós já vimos, dá centralidade aos textos ‘confessionais’ de
Santo Agostinho e Rousseau" (ANDERSON, 2001, p. 86). A autora defende que o problema
do reconhecimento não é causado pela ausência de obras (ANDERSON, 2001, p. 86).
Na contemporaneidade, quando temos gêneros como autoficção e romances
autobiográficos amplamente escritos por homens e por mulheres, Figueiredo (2013) observa
uma dualidade na crítica sobre esse tipo de escrita, especificamente quando a autoria é feminina.
Quando algo que é tomado como aspecto da sociedade atual, como as escritas de si, é realizado
por mulheres escritoras, o status muda de figura. "Por isso, a crítica masculina francesa tem
demonstrado, com certa frequência, menosprezo pelo gênero, como se atualmente fosse
domínio do feminino" (FIGUEIREDO, 2013, P. 72).
Em contrapartida, em parte da crítica literária feminista, práticas autobiográficas de
mulheres têm sido apresentadas como uma potência de transformação e desestabilização do
cânone (HARRIS, 2015). Faz parte do movimento feminista como um todo, em seu trabalho
nas ciências e na produção do conhecimento, entender que a teoria é suspeita de reproduzir as
condições de desigualdade opressoras, vinculadas a uma divisão do trabalho que opõe
hierarquicamente homens e mulheres (RICHARD, 1996, p. 733) e, consequentemente, é
necessária uma produção artística e de conhecimento que tente equilibrar essa desigualdade. As
autobiografias entrariam, nesse processo, como uma ferramenta para que as mulheres possam
se transformar em sujeitos de suas próprias histórias.
A autobiografia tem agora o potencial de ser o texto dos oprimidos e dos deslocados,
forjando um direito de falar tanto individualmente quanto para o coletivo. As pessoas
que são minorias de poder – mulheres, negros, classe trabalhadora - começaram a
inserir-se na cultura através da autobiografia, através da afirmação de uma "voz
pessoal" que fala além de si mesma6 (SWINDELLS apud ANDERSON, 2001, p. 104)

Apesar de afirmar a potencialidade da autobiografia com a politização do sujeito,


Anderson (2001) argumenta que este tipo de autobiografia não "resolve o problema da
diferença" (ANDERSON, 2001, p. 104). A autora afirma que autoproclamar-se como
representante de um gênero ou grupo político ou social específico é sempre problemático. No
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
120

momento em que uma representatividade através de uma autobiografia escrita por uma mulher
é assumida, é possível, sim, que haja uma identificação. Ao mesmo tempo, sentir-se
representado em questões de gênero pode ocultar diferenças em questões como classe e raça
(ANDERSON, 2001, p. 104).

Um fenômeno editorial

Para discorrer sobre o que consideramos um fenômeno editorial na publicação de


autobiografias de mulheres, vamos fazer um breve apanhado das recentes publicações de
autobiografias no Brasil, tanto de autoras brasileiras quanto de autoras estrangeiras traduzidas.
Dentro das limitações deste trabalho, pretendemos também citar recentes publicações de
autobiografias de mulheres que tiveram destaque na imprensa internacional. Os números
recentes tanto de publicação quanto de venda de autobiografias de mulheres no Brasil apontam
dois grandes sucessos editoriais. O mais novo é o lançamento de Rita Lee, uma autobiografia,
publicada em 2016, vendeu mais de 43 mil exemplares30 no primeiro ano. Somente em 2017, já
vendeu mais de 41 mil exemplares, estando em maio deste ano em primeiro lugar na lista de
mais vendidos na categoria não-ficção. Este exemplo, configura a autobiografia em que uma
personalidade reconhecida por seu trabalho olha em retrospecto para a sua trajetória e se engaja
no trabalho de contá-la ao público.
O fenômeno de vendas de 2015 foi o livro Muito mais que 5inco minutos, da youtuber
e atriz Kéfera Buchmann, de 24 anos. Um fenômeno em sua área de atuação, com um canal
com mais de 10 milhões de inscritos, a atriz e vlogger está em sétimo lugar entre os maiores
canais brasileiros. Em 2016, vendeu mais de 104 mil exemplares, repetindo os bons números
de 2015, ano de lançamento, quando o livro vendeu mais 197 mil exemplares. O livro é uma
autobiografia centrada no seu trabalho na internet, relacionamentos, moda e histórias de humor,
característico do trabalho da atriz. Outra youtuber ao se aventurar no domínio da autobiografia
foi Julia Tolezano, de 25 anos, mais conhecida como Jout Jout, com o livro Tá todo mundo mal,
que ficou no 11º lugar entre os mais vendidos.
Na literatura de língua inglesa, temos uma profusão recente de autobiografias como A
Poderosa Chefona (2013), de Tina Fey, Yes Please (2014), de Amy Poehler, #GirlBoss (2014),

30
Tradução nossa para: Autobiography now has the potential to be the text of the oppressed and the culturally
displaced, forging a right to speak both for and beyond the individual. People in a position of powerlessness –
women, black people, working-class people – have more than begun to insert themselves into the culture via
autobiography, via the assertion of a ‘personal’ voice, which speaks beyond itself.
7
Os dados de vendas são do site PublishNews, que recebem uma amostragem dos livros em dados enviados pelas
livrarias. Disponível em: http://www.publishnews.com.br/ranking/anual/13/2015/0/0. Acesso em 06 de mai. 2017.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
121

de Sophia Amoruso, O ano em que eu disse sim (2015), de Shonda Rhimes, A garota da banda
(2015), de Kim Gordon. Lançados nos Estados Unidos, a tradução e publicação desses livros
em editoras nacionais mostram o alcance midiático e os efeitos da globalização na proliferação
dessas narrativas. Em sua maioria, são autoras que conquistaram sucesso em suas áreas de
atuação profissional, e que desenvolvem seus livros em um tom que mistura autobiografia e
autoajuda, com conselhos direcionados para mulheres que gostariam de conquistar o sucesso
profissional em uma sociedade que apresenta oportunidades desiguais para mulheres.
Por conta das limitações do trabalho, vamos concentrar a nossa análise da autobiografia
Não sou uma dessas: uma garota conta tudo o que "aprendeu", de Lena Dunham, lançada no
Brasil em 2014. Os direitos autorais de publicação do livro chegaram aos 3,7 milhões de dólares
quando foram comprados em 2012. Nesse momento, matérias na imprensa questionaram se as
memórias de uma jovem diretora valiam o montante31. Para compreender a autobiografia de
Lena Dunham, é necessário lançar o olhar para a sua trajetória enquanto roteirista de televisão
e diretora de cinema. O contexto de lançamento de sua autobiografia está interligado ao sucesso
de crítica e de público sua série Girls, seriado criado quando Dunham tinha apenas 26 anos. A
artista era frequentemente anunciada como "a voz de sua geração"32, uma referência a uma fala
cômica de sua personagem e alter-ego Hannah Horvath.
Figueiredo (2013) traz Madeleine Ouellette-Michalska para afirmar que a autoficção
feminina em sua maioria é de caráter profanatório pois as autoras costumam fazer um balanço
de "tudo o que atomiza, despejando perdas e traições, feridas e frustrações" (FIGUEIREDO,
2013, p. 72). Para a autora, a obra pode ser considerada de autoficção sempre que a narrativa
indiciar qualquer tipo de inspiração em fatos da vida do autor (FIGUEIREDO, 2013, p. 66).

Segundo esta autora, a linguagem da autoficção feminina é frequentemente de extrema


crueza. É assim também definido o primeiro filme produzido por Lena Dunham, Tiny
Furnuture, em que o cotidiano de uma jovem privilegiada de Nova York é contado sem
nenhuma mistificação idealizadora, em que aventuras sexuais e relacionamentos são narrados
muitas vezes para demonstrar a confusão da personagem e causar aversão do público. No caso
de Lena Dunham, a inspiração a fatos ocorridos em sua vida é uma das apostas mais frequentes
em sua ficção, tanto em seus filmes quanto na série Girls. A autobiografia, precoce para alguns
críticos, viria confirmar esse aspecto do trabalho da artista.

31
Ver discussão em: http://www.huffingtonpost.com/jason-pinter/lena-dunham-book-advance_b_1954689.html.
Acesso em 09 de maio de 2017.
32
A série recebeu muitas críticas positivas de grandes veículos de imprensa norte-americanos, como The New York
Times e New Yorker. Ver em: http://www.newyorker.com/culture/richard-brody/girls-talk. Acesso em 6 de maio de
2017.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
122

O posicionamento feminista de Lena Dunham é um dos temas de seu livro e uma das
facetas de sua figura pública. Após o sucesso da série, também tida como feminista, a autora
lançou, juntamente com sua colega de produção de Girls, Jenni Konner, uma newsletter
declaradamente feminista33. Não sou uma dessas: uma garota conta tudo o que aprendeu está
em diálogo com a literatura historicamente direcionada para mulheres. No trecho em que ela
discorre sobre a autora que seria uma das inspirações para a escrita da autobiografia, Dunham
cita Helen Gurley Brown, personalidade controversa no meio feminista estadunidense, chefe de
reportagem da revista Cosmopolitan, conhecida por ditar regras e padrões sobre ser mulher,
principalmente seus conselhos para padrões de comportamento e consumo. A capa e o título,
que remete a arquétipos femininos de virtude, jogam ironicamente com os livros de boas
maneiras escritos tradicionalmente para mulheres. Podemos dizer que este livro está filiado a
este tipo de literatura, mesmo que o faça por um uso irônico de suas marcas. Lena Dunham
pontua essa contradição na introdução: "Apesar de suas teorias dementes, que não se encaixam
nem um pouco na minha criação fervorosamente feminista, aprecio a forma como Helen
compartilha sua história cheia de constrangimentos" (DUNHAM, 2014, p. 16).
Um dos temas mais presentes no livro é a relação entre o trabalho criativo de mulheres
e o ambiente masculino machista e com desigualdade de oportunidades entre os
gêneros. O tema das autobiografias de mulheres e a importância dada à vida das mulheres na
sociedade contemporânea faz parte do posicionamento feminista de Lena Dunham.

Não há nada mais corajoso para mim do que uma pessoa anunciar que sua história
merece ser contada, sobretudo se essa pessoa é uma mulher. Por mais que tenhamos
trabalhado muito e por mais longe que tenhamos chegado, ainda existem muitas forças
que conspiram para dizer às mulheres que nossas preocupações são fúteis, que nossas
opiniões não são relevantes, que não dispomos do grau de seriedade necessário para
que nossas histórias tenham importância. Que a escrita pessoal feminina não passa de
um exercício de vaidade e que nós deveríamos apreciar esse novo mundo para
mulheres, sentar e calar a boca (DUNHAM, 2014, p. 17).

O próprio fazer autobiográfico é um tema de seu trabalho. Ao falar sobre um antigo


relacionamento, primeiramente Lena Dunham o descreve como mais um dos seus episódios
sexuais vergonhosos e vexatórios da sua experiência sexual. Em seguida, ela questiona a sua
função como narradora e dá um exemplo de como as autobiografias são relatos de si, seleções
de acontecimentos e ficcionalizações da própria vida.

Sou uma narradora nada confiável. Porque acrescento detalhes inventados a quase
toda história que conto sobre minha mãe. Porque minha irmã afirma que todas as

33
"Feminismo, estilo, saúde, política, amizade e tudo mais por Lena Dunham and Jenni Konner " é a descrição
dos assuntos da publicação. Ver em: http://www.lennyletter.com. Acesso em 06 de maio de 2017.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
123

memórias que "compartilhamos" foram fabricadas por mim para impressionar as


pessoas. [...] Mas sobretudo porque em outra parte deste livro descrevo um encontro
sexual com um universitário republicano bigodudo como a escolha angustiada porém
educacional de uma novata no sexo quando, na verdade, senti que não havia escolha
alguma (DUNHAM, 2014, p. 72).

Ao mesmo tempo em que discute o fazer autobiográfico, Lena Dunham relata o estupro
que sofreu e as consequências físicas e emocionais do episódio violento. O tema do assédio
sexual, dessa vez no ambiente de trabalho, é novamente tematizado juntamente com o que se
pode ou não contar sobre a própria vida no capítulo "Eu não transei com eles, mas eles gritaram
comigo". "Esse é o título das memórias que vou escrever quando tiver oitenta anos. Sabe como
é, quando todo mundo que conheci em Hollywood tiver morto" (DUNHAM, 2014, p. 227).
Neste capítulo, ela narra encontros constrangedores, misoginia e as muitas vezes em que
colegas homens e artistas que ela admirava subestimaram o seu trabalho por ela ser mulher.
Em nosso entendimento, a autobiografia utiliza ironicamente de recursos utilizados
historicamente em publicações orientadas para mulheres, mas ao mesmo tempo, repete
conselhos e define um certo padrão do que é ser uma "mulher feminista e bem sucedida no
trabalho". Sem parecer ser o seu objetivo, acaba criando um modelo de mulher, uma "garota
universal", um modelo pouco atento às contradições, multiplicidades de vidas que as mulheres
vivem ao redor do mundo, e também dentro do próprio Estados Unidos, seu ponto de partida.
Já estou prevendo a vergonha que sentirei por ter pensado que tinha algo a oferecer,
mas também uma glória futura, caso eu evite que você experimente um desses sucos
detox caríssimos ou que pense que é culpa sua quando a pessoa com quem você está
saindo se afasta de repente, intimidada com a clareza de sua missão pessoal aqui na
Terra. [...] Sou uma garota com um grande interesse em ter tudo o que quero e, nas
próximas páginas, apresento relatos das linhas de frente dessa batalha. (DUNHAM,
2014, p. 18).

A justificação dos "conselhos" que Lena Dunham dá sobre amor próprio, autoimagem e
relações desiguais no trabalho, enfatizados em sua autobiografia, acabam a esquadrando em
uma versão de feminismo bem específica. Lena Dunham é frequentemente classificada como
parte de uma "quarta onda de feminismo"34. De acordo com Householder (2015), as feministas.

A da quarta onda são conscientes dos conflitos internos do feminismo, mas não-

34
As ondas são um modelo utilizados por autoras feministas para categorizar o movimento e ordenar
cronologicamente os progressos sociais, políticos e econômicos sob a perspectiva das lutas das mulheres.
primeira onda teria acontecido no século XIX, com a reivindicação feminina para o direito ao voto. A segunda
seria a era da liberação feminina a partir dos anos 1960, com a consolidação do "pessoal é político" como frente
de batalha. A terceira onda é descrita como um movimento a partir dos anos 1990 que continua a brigar por
desigualdades estruturais, mas também nega as definições essencialistas de gênero da segunda onda, acusando
uma ênfase nas experiências das mulheres de brancas de classe média no período anterior. A quarta onda está
definida como um movimento auxiliado pela popularização da comunicação digital, como as redes sociais e blogs,
e personalidades públicas de grande alcance na defesa do feminismo, além da presença das pautas das mulheres
transexuais e da discussão sobre a inclusão de homens no feminismo (HOUSEHOLDER, 2015, p. 20).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
124

resolvidas sobre coisas como se depilar as pernas é uma escolha pessoal ou constitui uma
lavagem cerebral do patriarcado, ou no conflito entre admitir o desejo de casar e ter filhos ao
invés de se dedicar a uma carreira. Consideramos como homogeneizante a classificação do
feminismo em ondas, por não se aplicar a diversidade das situações das mulheres ao redor do
mundo, mas a ideia vai nos servir para contextualizar a posição feminista de Lena Dunham, os
discursos que ela faz sobre si mesma e sobre o feminismo em sua autobiografia. Seguimos
Householder (2015) ao entender que as pautas feministas de Dunham estão mais relacionadas a
um tipo de feminismo de classe média branca americana, em que as pautas são centradas em
questões como violência sexual, desigualdade de salários no trabalho e diferenças de
tratamentos das mulheres em ambientes criativos, profissionais e de poder de prevalência
masculina.

Considerações finais

Nossa análise sobre o fenômeno da publicação de autobiografias de mulheres na


contemporaneidade nos levou a concluir que as publicações de mais destaque no mercado
editorial brasileiro estão concentradas nas histórias de mulheres, a sua maioria ligadas a setores
artísticos, com trajetórias profissionais consideradas bem sucedidas em seus segmentos.
Entendemos que, apesar da profusão de autobiografias, elas repetem um modelo de tratamento
de autobiografias de mulheres no cânone e não podem simbolizar, em essência, uma melhoria
nas narrativas si de todos os setores historicamente marginalizados. Ainda há o questionamento
sobre a validade das narrativas de si feitas por mulheres. Embora termos como autoficção e
romances autobiográficos estejam no centro das discussões da crítica atual, muitas dessas
autobiografias de mulheres sofrem o duplo rebaixamento da crítica: diminuídos pelo seu caráter
autobiográfico e, ainda mais, por se tratar de uma narrativa feminina, muitas vezes consideradas
como publicações de nicho ou de menor importância do que as trajetórias dos homens.
Consideramos o avanço da profusão de autobiografias publicadas por autoras, mas
entendemos que muitas dessas mulheres são de setores privilegiados, da classe alta, a maioria
brancas, e, mesmo no caso das autobiografias publicadas no Brasil, são autoras provenientes de
centros geopolíticos como os Estados Unidos. Na nossa amostra, não percebemos mulheres
provenientes de outros países da América Latina, por exemplo, ou de países do continente
africano. Até mesmo autoras inglesas e francesas, presentes historicamente no cânone literário
internacional, não foram traduzidas no Brasil em grande escala entre as autobiografias
percebidas por nossa amostragem. Reconhecemos, no entanto, as limitações da nossa amostra,
e apontamos que seja necessária para futuras pesquisas metodologias e amostragens diversas.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
125

Acompanhamos Helene Cixous no entendimento de que a cada história que é contada


outra não o será. A autobiografia de Lena Dunham é um exemplo que expressa as contradições,
avanços e conquistas ainda necessárias ao feminismo, enquanto lugar de demandas
controversas. É um fenômeno considerável uma autobiografia de uma jovem diretora ser
comprada por mais de 3,7 milhões de dólares. Em sua narrativa, Lena Dunham representa a
expressão de sujeitos que foram historicamente marginalizados e que ainda lutam por
oportunidades de trabalho, misoginia em relacionamentos, pressões estéticas e cobranças em
relações ao corpo e comportamentos, além de serem as maiores vítimas de violências sexuais.
Apesar de ter o potencial de desestabilizar o cânone, relatos de mulheres como Lena
Dunham fazem parte da construção de uma certa identidade "feminina", pautada na busca de
sucesso profissional e amor próprio nos relacionamentos. Essa identidade deve ser considerada
também como uma construção sociológica específica derivada de metáforas cotidianas
burguesas que devem ser evidenciadas em uma análise. Anderson (2001) defende que as
posições discursivas e materiais estão interligadas, sem formar uma conexão necessariamente
absoluta e imutável entre essas duas dimensões (ANDERSON, 2001, p. 114). Esta questão de
dar ares de neutralidade e universal à experiência da mulher branca, ocidental e de classe alta é
um debate antigo no feminismo interseccional e se apresenta também na crítica literária
feminista. Segundo Anderson (2001), é comum que as especificidades de classe sejam
eliminadas nos discursos teóricos dominantes, ao utilizar a "identidade" e a
autobiografia.
Por uma perspectiva de crítica feminista interseccional percebemos que por ocupar um
lugar geográfico, geopolítico e econômico, Dunham expressa as contradições do que está sendo
chamado de "feminismo de quarta onda", em uma metáfora, as filhas das ondas anteriores do
feminismo, que comemoram avanços e ainda buscam por mudanças. Localizada
geograficamente em um ambiente em que as conquistas por direito ao trabalho e à educação já
foram estabelecidas, mas privilégios de raça e classe persistem. Percebemos que, apesar de
parecidas com as demandas femininas globais, as demandas do feminismo de quarta onda não
estão "acessíveis" para todas as mulheres, muitas ainda preocupadas com preconceitos raciais,
problemas de ordem econômica, ou até o acesso à educação.
Entendemos, desse modo, que aspectos de raça, transexualidade, desigualdades de
classe devem ser considerados antes de uma conclusão que comemore esse aparente
desdobramento do cânone de obras feitas por mulheres. Se não o fizermos, corremos o perigo
então de definir com imprecisão que a autobiografia é uma forma de libertação para as
mulheres, ao mesmo tempo, que repetimos - sem contextualizá-lo como um valor cultural
historicamente localizado - o caráter universalizante que o modelo masculino de autobiografia,
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
126

centralizado nos valores de autonomia, autorrealização, autenticidade e transcendência


construiu desde o Romantismo (ANDERSON, 2001, p. 4).

Referências

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DUNHAM, Lena. Não sou uma dessas: Uma garota conta tudo que "aprendeu". Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2014.

FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Rio de


Janeiro: EdUERJ, 2013.

VIEIRA, Nancy Rita Ferreira. Uma narrativa testemunhal: as memórias de Anna Ribeiro.
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HARRIS, Leila A. Discurso, autoria e representação: práticas autobiográficas nas literaturas


contemporâneas em língua inglesa. In: KAMITA, Rosana C.; FONTES, Luísa C. S. (Org.)
Mulher e Literatura: Vozes Consequentes. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015. p.
325 - 340.

HOUSEHOLDER, April K. Girls, Grrrls, Girls: Lena Dunham, Girls, and the Contradictions of
Fourth Wave Feminism. In: TRIER-BIENIEK, Adrienne. Feminist Theory and Pop Culture.
Rotterdam: Sense Publishers, 2015. p. 19-34.

LEJEUNE, Philippe. A autobiografia e as novas tecnologias de comunicação. Darandina:


Revisteletrônica, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 1-13, jun. 2013. Disponível em:
http://www.ufjf.br/darandina/files/2013/08/Philippe-Lejeune-A-autobiografia-e-as-novas-
tecnologias-de-comunica%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 08 de mai. 2017.

LOBO, Luiza. Juana Manso: Uma exilada em três pátrias. In: KAMITA, Rosana C.; FONTES,
Luísa C. S. (Org.) Mulher e Literatura: Vozes Consequentes. Ilha de Santa Catarina: Editora
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PERROT, Michelle. Mi historia de las mujeres. Buenos Aires: Fondo Cultura Económica,
2009.

. Os Excluídos da História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

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18, ago/set. 1989.

RICHARD, Nelly. Feminismo, experiencia y representacion. In: Revista Iberoamericana,


Santiago/Chile, v. LXII, n. 176-177, p. 733-734 , jul./dez. 1996. Disponível em: <http://revista-
iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/6256/6432> Acesso em 06
mai. 2016.

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SÃO TODAS MARIAS: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

EM DESESTERRO, DE SHEYLA SMANIOTO

Paula Queiroz Dutra


Doutoranda em Literatura (UnB)
E-mail: qpaulad@gmail.com

“We think we tell stories,


but stories often tell us,
tell us to love or to hate,
to see or to be blind”.
Rebecca Solnit

Introdução

A persistência da violência contra a mulher35 é um dos principais problemas do mundo


contemporâneo. Independente de idade, classe social, raça/etnia e cultura, as mulheres
continuam sendo alvo de uma violência desmedida, pautada na desigualdade de gênero
(SAFFIOTI, 2015, p. 87). Em pesquisas recentes realizadas no Brasil pelo DataSenado, o
relatório “Violência doméstica e familiar contra a mulher”, de junho de 2017, aponta um
aumento significativo do percentual de mulheres que declararam ter sido vítimas de algum tipo
de violência provocada por um homem (29%) se comparado ao resultado de pesquisa idêntica
realizada em 2015 (18%). O mesmo relatório indica que a percepção das mulheres é de que a
violência tem aumentado (69%), ao passo que a totalidade das entrevistadas informou conhecer
a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), o que revela a importância de toda a discussão sobre a
temática da violência de gênero nas diversas frentes em nossa sociedade, lideradas pelo
movimento feminista, tanto para encorajar as mulheres a reconhecer e denunciar a violência
sofrida, quanto para instruí-las sobre o que fazer para combatê-la.
Enquanto as principais instituições de direitos humanos do mundo trabalham para obter,
a cada ano, dados mais precisos sobre a violência contra as mulheres, algo que ainda dificulta
até mesmo o desenvolvimento de políticas contra a violência, os discursos sexistas que
alimentam a estrutura patriarcal diariamente são veiculados na TV, nas artes e na mídia de
forma geral. Por conta disso, faz-se necessário refletir sobre o modo como esses discursos
persistem no imaginário popular, reforçando estereótipos que acabam por influenciar a visão de

35
A Organização das Nações Unidas define violência contra mulheres como “qualquer ato de violência baseado no
gênero do qual resulte, ou possa resultar, danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para mulheres,
incluindo a ameaça de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, que ocorra, seja na vida pública ou na
vida privada”. (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1993).
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128

mundo da população e que dificultam a desconstrução de padrões de subserviência e


passividade diante das opressões.
Como importante meio onde circulam ideias e discursos, a literatura é um terreno fértil
para refletirmos sobre as bases dessa violência, assim como um importante instrumento para a
educação e formação de cidadãos mais preparados para viver em um mundo menos desigual.
Como observa Michel Foucault em A ordem do discurso (2013), imaginar que qualquer
discurso, seja ele falado ou escrito, seja neutro e corresponda a uma “verdade” é uma
idealização, pois todo discurso carrega em si uma carga ideológica. Estendendo esta reflexão
para o texto literário, cito a afirmação de Thomas McLaughlin em Critical Terms for Literary
Study (1995, p.6) que situa autores e leitores no sistema cultural em que se inserem:

Literature is a formation within language, which is the prime instance of the


cultural system. The production of literature always occurs within a complex
cultural situation, and its reception is similarly situated. Authors and readers are
constituted by their cultural placement. They are defined inside systems of
gender, class, and race. They operate inside specific institutions that shape their
practice. They have been brought up inside powerful systems of value, especially
powerful because these systems present values inevitable rather than as
ideological. As a result, acts of reading are always culturally placed, angled at
the text from a specific point of view.36

Motivados por essas reflexões, analisaremos neste artigo o romance Desesterro (2015),
da escritora paulista Sheyla Smanioto. Romance de estreia da autora e livro vencedor do Prêmio
SESC de literatura em 2015, Desesterro tem como tema central a violência contra as mulheres,
sua perpetuação em diferentes gerações de uma família e a invisibilidade dessa violência que
mata mulheres diariamente, principalmente (mas não apenas) nas camadas mais pobres da
população brasileira. A escolha desse romance se justifica por se tratar de um romance recente,
premiado, sobre o qual ainda há pouca fortuna crítica, e por ser um livro escrito por uma autora,
o que possibilitará que esse lugar de fala, sob a perspectiva de uma mulher, seja levado em
consideração em nossa análise. Para embasar essa discussão, recorreremos ao conceito de
perspectiva social proposto por Iris Young que, em sua análise sobre representação política,
identidade e minorias define a perspectiva social como o fato de que “pessoas diferentemente
posicionadas têm diferentes experiências, histórias e compreensões sociais, derivadas daquele

36
A Literatura é uma formação dentro da linguagem, que é a primeira instância do sistema cultural. A produção da
literatura ocorre dentro de uma situação cultural complexa, e sua recepção é similarmente situada. Autores e
leitores são constituídos por seu posicionamento cultural. Eles são definidos dentro de sistemas de gênero, classe e
raça. Eles operam no interior de instituições específicas que modelam sua prática. Eles foram criados dentro de
sistemas poderosos de valor, especialmente poderosos porque esses sistemas apresentam valores mais inevitáveis
que ideológicos. Como resultado, os atos de leitura são sempre situados culturalmente, direcionados no texto a
partir de um ponto de vista específico. (tradução minha)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
129

posicionamento” (YOUNG, 2006, p. 162). A partir desses posicionamentos sociais diferentes as


pessoas também compreenderão o mundo, seus eventos sociais e suas consequências de forma
singular. Para a autora, as perspectivas sociais derivam das construções sociais que fazemos de
nós mesmos e também de outras pessoas, em situações e contextos diferentes. Ou seja, cada
posicionamento, ou melhor, cada perspectiva social, implica em uma capacidade distinta de
“interpretar de modos diferentes o significado de ações, regras e estruturas” (YOUNG, 2006, p.
162).

O Desesterro dos sonhos

O cenário do romance é Vilaboinha, lugar “lá para as bandas do norte” (SMANIOTO,


2015, p. 9), e também Vila Marta, em São Paulo, mas esta história poderia se passar em
qualquer cidade do Brasil. A imprecisão do tempo, já que a narrativa não é linear, e do espaço,
que oscila entre esses dois lugares, faz com que a narrativa ecoe as muitas vozes de mulheres,
ou seus silêncios, que são personagens do enredo.
Já nas primeiras páginas somos apresentados à figura de Maria da Penha ou Vó Penha,
mãe de Maria Aparecida e Maria de Fátima, e proprietária de um dos poucos cachorros da
região. A referência à Lei Maria da Penha no nome da personagem já sinaliza para a temática do
romance, e a presença do “Maria” no nome de todas as personagens femininas indica, como
mencionado no romance, demonstra a tentativa de proteção com base na fé religiosa.
A violência contra os animais, descrita como habitual em Vilaboinha é o motivo de
haver poucos cães no local. Assim sabemos que Tonho, diminutivo de Antônio, não gosta do
barulho dos animais e tem prazer em infligir-lhes sofrimento, muitas vezes matando-os a
pauladas. Só Penha tem um cachorro, uma fêmea chamada Magrela, e ensina às netas e ao
animal a ficarem quietos como estratégia de sobrevivência, aprendida há anos vivendo na
cidade, também chamada por Penha de “essa cachorra”:

Penha sabe do que Vilaboinha é capaz, por isso ensinou também as netas a
levarem a vida quietinhas, dentro do silêncio, escondidas. Disfarça, Maria de
Fátima, baixa esses olhos, menina. Não inventa, ou vai acabar espantando a vida.
(SMANIOTO, 2015, p. 10)

A animalização das personagens, cujas condições de vida e sobrevivência se equiparam


às dos cães na narrativa, coloca em questão a violência provocada pelos homens, aqui
representada pela figura de Tonho, marido de Maria de Fátima, cujos atos violentos também são
animalizados já que “é o cão que bate, não pode ser Antônio”:
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
130

Foi o cão, Tonho sempre diz. Não foi Tonho chegando arrancando a roupa de
Fátima, claro que não, Tonho é homem bom. Fátima até quis perguntar pra
Tonho o que é isso de um cão latir dentro da gente, ela não sabe, de repente se
Tonho explica o cão de Fátima late. Perguntar ela até quis, mas não perguntou
foi nada, ficou é quieta bem quietinha, coitada: o Tonho com seu cão beirando os
olhos faz a gente ficar assim diante dele, sem palavra. (SMANIOTO, 2015, p.
173)

Enquanto se preparam para encenar o dia do batizado de uma das netas de Penha para
uma fotografia, uma lembrança que Penha quer reconstituir, a ausência de Tonho consta não
apenas nas fotos, mas na tensão pela constante espera e apreensão das personagens em relação à
sua chegada. O fotógrafo que chega à cidade para fotografar a família e descreve o que vê:

Antes de o sol ir embora ele vai tirar o retrato em silêncio, escondido, a casa
cúmplice, vai tirar um retrato não da família, mas da espera, ele constata. Entre a
mulher com criança e a menina, um espaço. Nada de pedir para elas irem um
pouco mais para o lado. Entre a mulher com a criança e a menina, o Tonho vai
estar sempre quase chegando. (SMANIOTO, 2015, p. 29)

Na família de Maria da Penha, são todas Marias: suas duas filhas, Maria Aparecida e
Maria de Fátima, carregam não apenas o nome, mas o peso de um destino aparentemente já
traçado e marcado pela violência e pela opressão. Maria Aparecida morre no momento do parto,
não sem antes dar a luz à uma menina, que será cuidada pela avó e que carregará para sempre o
peso da morte da mãe. A menina, conhecida apenas como neta de Penha até o final do romance,
quando passa a ser a Maria Menina, é alvo constante de agressões verbais tanto por parte da avó
quanto da irmã, violência simbólica que se reproduz de geração para geração, pois Penha trata
as filhas sem demonstrar carinho ou afeto, apesar do sentimento que sente por elas,
simplesmente porque em sua vida também não recebeu afeto da mãe, além de carregar a
amargura por todas as tragédias que ocorreram em sua vida: a morte da família em um incêndio,
o abandono do marido, deixando-a grávida para cuidar das duas filhas sozinha.
No momento em que Cida falecia, não resistindo ao parto, ocorre um eclipse e a cidade é
tomada pela escuridão. No mesmo instante, Maria de Fátima, ainda uma menina, é estuprada
por Tonho, deixando para trás a sua infância. O estupro é narrado na perspectiva de Tonho que
justifica suas ações como algo incontrolável da natureza dos homens, como uma resposta à
“provocação” que a menina exercia sobre ele, com afirmações como “eu falei para ela não se
incomodar, eu ia ser rápido, ela ia acabar gostando, mas a rapariga se debatia, então ficou tendo
o que mereceu. Só podia mesmo ser seu jeito cadela de me querer ainda mais” (SMANIOTO,
2015, p. 112).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
131

Na longa descrição de toda a cena, carregada de violência, é possível perceber o ponto de


vista do agressor, que não julga estar fazendo mal – apesar de a menina estar chorando, se
debatendo e dizendo não – e das frequentes afirmações de que a menina passará a gostar dele, o
que evidencia as concepções de gênero que estão por trás de suas atitudes. Como observa Flávia
Biroli:
A negação da realidade do estupro decorre amplamente do fato de que a validade
do consentimento dos indivíduos é distintamente considerada se são homens ou
mulheres – e isso se agrava quando se leva em consideração a posição de classes
dessas mulheres e possíveis “desvios” em sua vida sexual em relação aos
códigos morais predominantes. (MIGUEL e BIROLI, 2014, p. 112)

Já no ensaio da antropóloga Lia Zanotta Machado, intitulado Masculinidade,


sexualidade e estupro (1998), vemos uma discussão sobre a masculinidade e a construção da
virilidade, problematizando como certas concepções de gênero veiculadas pelo imaginário
popular transformam completamente a ideia que se tem de estupro. O discurso dos apenados por
estupro entrevistados pela pesquisadora demonstra o enraizamento de uma cultura do estupro e
destaca como a linguagem é um meio perigoso de veiculação de certas representações que
perpetuam a violência contra a mulher, reforçando o caráter sacrificial de seus corpos.
Quando pensamos na representação literária do estupro e quando se trata de representar a
dor do outro, muitos questionamentos são pertinentes principalmente quanto à ética dessas
representações. Como observado por Zöe Thompson e Sorcha Gunne (2010, p. 3), a necessidade
de se discutir o problema do estupro, que foi uma das principais pautas da segunda onda do
feminismo, já ultrapassou o questionamento de se devemos ou não falar sobre isso, e o que deve
ser questionado é como isso deve ou não ser feito. As autoras problematizam a importância do
tema, já que a discussão sobre o estupro e a violência sexual passa por uma discussão sobre
gênero e construção de identidades, uma vez que estamos imersos nos discursos e nas
representações que nos cercam, de diferentes formas, em nossa sociedade. Falar sobre estupro e
violência de gênero é falar sobre as estruturas construídas em nossa cultura, que se perpetuam
principalmente por meio da linguagem. Assim, é fundamental considerar a literatura como meio
importante no qual esses discursos circulam e, muitas vezes, reiteram e mascaram a violência
contra a mulher, mas também apresentam formas importantes de resistência e subversão. Ao
teorizar sobre o estupro e a violência sexual, afirmam Thompson e Gunne, “pretendemos indicar
como as narrativas podem trabalhar para subverter e transcender as hegemonias dominantes,
refutando a categoria de vítima”37 (THOMPSON e GUNNE, 2010, p. 17).

37
“we intend to gesture to how narratives can work to subvert and transcend dominant hegemonies, refusing the
category of victim” (tradução minha)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
132

No romance, além da violência sofrida, Maria de Fátima ainda se casa com Tonho, seu
estuprador, pois, com a mãe de Fátima morta, Tonho não mais a considerava como filha dele e
julgava-se um “homem bom” para com ela se casar. Assim, ele procura a avó Penha para propor
o casamento:
Fui bem direto: ela não dá mais pra homem certo, comi até o cu dela. A Penha
dizem que é louca, mas é mulher boa, disse pra mim, Tonho, faça o que for
preciso, só deixe a menina da Cida comigo. Parece que a Cida morreu tendo
filha. Acredita? Vou casar, minha tia. (SMANIOTO, 2015, p. 114)

O casamento de Maria de Fátima, consentido pela avó, é uma legitimação do estupro de


uma menor — prática vigente em diversos países, incluindo Brasil, que tem o maior número de
casamentos infantis da América Latina e o 4º mais alto do mundo, representando 36% do total
de mulheres dessa faixa etária casadas. Segundo dados das Nações Unidas38, no mundo,
anualmente, 15 milhões de meninas se casam antes de completar 18 anos, o que as torna mais
vulneráveis à violência doméstica e ao estupro marital.
O destino da personagem Maria de Fátima é marcado, portanto, por uma sucessão de
violências e, apesar de prometer a si mesma que não teria um filho de Tonho, ela engravida e dá
a luz a Scarlett Maria, que “brotou feito verruga” e que foi recebida com certa indiferença por
Fátima, algo menor diante do sofrimento maior que sentia: “Fátima sabe apanhar. Era outra
coisa que doía, maior que verruga, maior muito maior” (SMANIOTO, 2015, p.171). Com o
nascimento da filha e as contínuas surras que recebia do marido, Maria de Fátima começa a
nutrir o desejo de ir embora e a alimentar a coragem de deixar Tonho e sair dali, o que
demonstra sua capacidade de resistência. Como observa Saffioti (2015, p. 84):

A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de
regra, intervenção externa. Raramente uma mulher consegue desvincular-se de
um homem violento sem auxílio externo. Até que este ocorra, descreve uma
trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela. Este
é o chamado ciclo da violência. [...] Mesmo quando permanecem na relação por
décadas, as mulheres reagem à violência, variando muito as estratégias.

Outro aspecto abordado no romance é o impacto da violência doméstica na vida das


mulheres e de seus filhos, que constantemente presenciam a violência. Como observa Lenore
Walker em The Battered Woman Syndrome (2009), a passividade diante da situação de
violência também é uma estratégia psicológica inconsciente de sobrevivência diante da ameaça
eminente contra sua vida e dos seus filhos. No caso de Maria de Fátima, a personagem se
preocupa com a filha, e teme que ela compreenda a violência doméstica como algo natural,

38
Disponível em: https://nacoesunidas.org/brasil-tem-maior-numero-de-casamentos-infantis-da-america-latina-e-o-
4o-mais-alto-do-mundo/ Acesso em 22/06/2017.
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133

chegando ao ponto de desejar que a filha aprendesse com o pai para que mantivesse sua
capacidade de agência, como vemos no trecho a seguir:

Ela olhava a criança e apanhava, quieta ela apanhava quietinha, mais uma vez
não implorava para viver, mais uma vez não dizia nada. Era o corpo quem sofria,
não ela, o corpo dela era de Tonho, não dela. Ela só olhava a criança torcendo
para que os gritos do pai a surra toda para que nada disso acordasse, na filha, a
vontade de ser que nem a mãe. O pai pelo menos batia (SMANIOTO, 2015, p.
183-184).

Apesar de apanhar quieta, como descrito no trecho acima, Maria de Fátima está sempre
planejando a sua fuga para sair de Vilaboinha e ficar livre dos abusos e surras de Tonho. Um dia
arruma as malas e ao invés de sair antes do Tonho chegar, levando a filha como havia planejado,
ela o espera chegar, pois quer finalmente confrontá-lo. Sem aceitar o posicionamento de Fátima,
Tonho tenta estrangulá-la, pois jamais permitiria que ela partisse: “O golpe na cabeça de Tonho
rompe o sangue. O sangue nas mãos de Fátima rompe seu silêncio” (p. 204). Pensando que
Tonho estivesse finalmente morto, Fátima então começa a dizer tudo o que manteve em silêncio
durante todos os anos. São as palavras, no entanto, que alimentam a fúria de Tonho, que
desperta do golpe com a panela e, com muita violência, acaba com a vida de Fátima. Herdada
com o nome, a violência persegue a segunda Fátima, a menina que sem ter recebido um nome,
se apropria do nome, documentos e sonho de fuga de Fátima. No entanto, isso também a coloca
como vítima potencial de violência, o que acaba ocorrendo quando Tonho volta e julga que ela é
a mulher que ele havia estrangulado anos antes e sobrevivera.
Ao terminar com um feminicídio, o romance destaca toda a normalização e
invisibilização da violência presentes em nossa sociedade: “Engraçado como em Vilaboinha
ninguém nunca viu nem nada, mas todo mundo sabe bem onde encontrar a pá e a enxada”
(SMANIOTO, 2015, p. 39). O descaso da polícia e a falta de interesse em investigar o corpo
encontrado na escavação de um terreno próximo à casa de Fátima indica o que Judith Butler
(2015) nomeia de precariedade da vida: o fato de que algumas vidas, como as vidas das
mulheres, não são tidas como vidas, não são passíveis de luto. A narradora do romance então
nos lembra que também é um crime esquecer ou não ver a violência sistêmica que continua
tirando a vida de mulheres, diariamente ao afirmar: “Mal sabem os escavadores que o
esquecimento é um crime sem corpo” (p. 197). E, por abordar tantas formas de violência contra
a mulher, confrontando-nos, através do texto literário com um problema que precisa ser cada
vez mais discutido, Desesterro nos mostra a importância de dizer e não silenciar, pois “Tem
coisa que é bom de a gente dizer, pra modo de olhar bem de frente o que diz” (SMANIOTO,
2015, p. 291).
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Referências

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política. São Paulo: Boitempo, 2014.

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Open Road Media, 2013.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e
Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 23. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Trad.
Laura Fraga de Almeida Sampaio.

GORDON, Linda. Heroes of Their Own Lives: The Politics and History of Family Violence.
New York: Penguin, 1988.

GUNNE, Sorcha; THOMPSON, Zöe (Eds.). Feminism, Literature and Rape Narratives:
violence and violation. New York and London: Routledge, 2010.

LENTRICCHIA, Frank; MCLAUGHLIN, Thomas (Eds.). Critical Terms for Literary Study.
2nd edition. Chicago and London: The Chicago University Press, 1995.

MACHADO, Lia Zanotta. Masculinidade, sexualidade e estupro: as construções da virilidade.


Cadernos Pagu, São Paulo: Unicamp, v.11, 1998, p. 231-273.
MIRANDA, Adelaide C. Memória e cidade na narrativa brasileira contemporânea de autoria
feminina. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virginia (Orgs.). Espaço e Gênero na
literatura brasileira contemporânea. Porto Alegre: ZOUK, 2015. p. 85-115.

SCHRAIBER, L. B. et al. Violência dói e não é direito: A violência contra a mulher, a saúde e
os direitos humanos. São Paulo: Unesp, 2005.

SMANIOTO, Sheyla. Desesterro. São Paulo: Record, 2015.

WALKER, Lenore E. A. The Battered Woman Syndrome. 3rd edition. New York: Springer
Publishing, 2009.

YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova, São Paulo, 67:
139-190, 2006.

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135

TECENDO O ENTRELAÇAMENTO DE GÊNERO E RAÇA: UMA REFLEXÃO


SOBRE A ESCRITA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Tailane de Jesus Sousa (PPGNEIM/UFBA)


E-mail: tailane.sousa@hotmail.com

Resgate
Sou negra ponto final
Devolvo-me
a identidade
rasgo a minha certidão
Sou negra sem
reticências
Sem vírgulas
Sem ausências
Sou negra balacobaco
(Alzira Rufino)

Enquanto mulher negra, feminista e amante de literatura, refletir sobre a escrita literária
de mulheres negras, além de despertar um sentimento de encantamento, realiza em mim um
momento de comunhão [ou re-encontros] com a minha própria história. Assim, a leitura da
produção literária afrofeminina regeu uma série de mudanças sobre minhas percepções de
identidade, racismo e literatura, bem como suscitou uma discussão sobre o meu lugar na
produção acadêmica e os caminhos me direcionaram ao estudo da escrita afrofeminina.
A escrita literária afrobrasileira de autoria feminina explora uma gama de temas que
tangenciam as experiências de vida da população negra e, em especial, das mulheres negras.
Ciente da complexidade dessas questões, proponho nesta comunicação uma breve análise sobre
a escrita literária de Conceição Evaristo, ressaltando o entrelaçamento de gênero e raça na
produção de um discurso das/para as mulheres negras. Por intermédio da construção de figuras
femininas negras que regem a fala em suas narrativas, a autora discute a invisibilização das
identidades das mulheres negras.

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136

INTRODUÇÃO

Enquanto feminista e inserida no contexto da universidade, compreendo a importância


de se colocar diante (e dentro) da pesquisa acadêmica, reconhecendo que a minha fala é fruto de
um conjunto de atravessamentos históricos. Desse modo, localizo meu corpo e(m) minha
pesquisa.
Num primeiro momento, o contato com a produção literária de algumas escritoras negras
ressoou na minha trajetória com um verdadeiro [re]encontro. Após um redirecionamento da
proposta do meu anteprojeto, foi na leitura urgente dos livros de Conceição Evaristo que
encontrei ferramentas para construir minha pesquisa e minha identidade política de mulher
negra, moradora de uma região periférica de Salvador e que busca, na pós-graduação, se
desdobrar sobre uma questão que me acompanha desde o ensino médio: mulheres escrevem
literatura?
Portanto, as reflexões provenientes desse movimento de imersão na escrita de Conceição
Evaristo e, posteriormente, de outras intelectuais negras, têm me direcionado aos discursos de
escritoras negras que produzem um texto combativo e que discutem a condição de
marginalização imposta aos corpos negros, à história e às memórias das pessoas em/na diáspora.
Rejeitando o cenário construído pela literatura “canônica”, a escrita empreendida por
autores e, principalmente, autoras negras atualiza as representações dos corpos negros na
literatura, proferindo um discurso que confere estatuto de sujeito, não de objeto/corpo, a essas
mulheres. É contra a reprodução de estereótipos negativos calcados no imaginário que elas e
eles constroem seus objetos artísticos.
A literatura de autoria feminina negra negocia diferentes construtos identitários e
subverte signos até então compreendidos dentro de uma lógica da exploração sexual.
Dialogando com a historiografia literária, revelam uma autoconsciência da poetisa/escritora que
reivindica o seu lugar de enunciação na produção literária. Contudo, não se trata de exigir sua
inserção no cânone, mas a necessidade de criar outros imaginários que comportem essas novas
identidades.
Assim, construir modelos positivos das identidades de mulheres negras na literatura, sem
contudo silenciar suas experiências históricas, é a proposta de textos como os de Conceição
Evaristo, por exemplo
O texto engendrado por Conceição Evaristo revela-se a [r]existência de vozes-mulheres
propulsoras de suas narrativas, encenando um processo de contar-se, construindo uma história
apagada, a narrativas dos seus. Agentes de produção de discurso, personagens que traçam uma

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
137

trajetória para si: a busca da sua herança, o caminho a partir do qual sua história deve ser
contada.

A ESCRITA LITERÁRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Conceição Evaristo nasceu na capital mineira em 1946, numa favela localizada no alto
da Avenida Afonso Pena, área que posteriormente foi desocupada pelo governo, acontecimento
que marcou profundamente a autora. Após concluir o curso Normal, mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde foi aprovada em concurso municipal para magistério, e depois ingressou no curso
de Letras da Universidade Federal daquele Estado. Concluiu o mestrado em 1996 pela PUC-
Rio, e o doutorado em Literatura Comparada pela UFF.
Autora de poemas, contos e romances, a escritora é também pesquisadora acadêmica e
sua produção versa principalmente, sobre Literatura negra e a escrita literária de mulheres
negras. Sua forma de estar e vivenciar as experiências de vida subscreve a sua produção literária
de tal modo que a autora recorre a um neologismo para expressar seu “estar-em-si” no mundo, a
escrevivência.
Evaristo sinaliza o jogo de resistência empreendido pela escrita de mulheres negras que,
ao narrar suas experiências, desestabiliza a narrativa hegemônica e rasura o continum da
tradição que projetou a mulher negra como o não-sujeito:

Assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder falo-cêntrico branco, as


escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma auto-
representação. Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo
vivido. A escre (vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras
de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada,
mulher e negra. (EVARISTO, 2005, p.6)

Adotar a escrevivência no texto literário constitui uma atitude política de resgatar uma
identidade negra estilhaçada por um sistema racista de base colonial. A busca por uma memória
ancestral, bem como a necessidade de valorizar os traços culturais que subscrevem uma
identidade coletiva negra agem contra o discurso racista que pregava (ainda prega) a
inferioridade da população negra.
Assim, produz uma escrita que transcreve as dificuldades vividas pelo povo negro: o
descaso social com o corpo do/da jovem negro/a, os abusos de autoridade policial, a ineficácia
do Estado para tratar do racismo estrutural, a ineficiência do poder público diante da pobreza
extrema, a violência contra a mulher negra, a relação da mulher com seu corpo e a maternidade
compulsória, o tensionamento dos casos de violências contra a população das comunidades...

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
138

temas que abarcam o cotidiano da população negra e evidencia a articulação dos vetores de raça,
classe e gênero no modelar dessas vidas.
Conceição Evaristo traça um discurso que denuncia a condição de não-sujeito em que as
pessoas negras são colocadas na sociedade brasileira. Também na sua escrita, a autora evidencia
os modos de resistências (e resiliências) dessas personagens, priorizando a construção de vozes-
mulheres insubmissas: “Na voz da minha filha recorre todas as nossas vozes em si [...] Na voz
da minha filha se fará ouvir a ressonância. O eco da vida-liberdade”(EVARISTO, 2017, p.25).
Construindo vozes-mulheres que assumem a enunciação da sua história, a autora desloca
a representação da mulher negra do contexto de objeto-corpo para a autorrepresentação
enquanto sujeito-agente. Confrontando a representação canônica construída em torno da
imagem dessas mulheres, coloca em debate, inclusive, a construção do imaginário.
A partir da ótica branca, a mulher negra escravizada (ou proveniente de um processo de
escravidão) representava um produto para consumo do homem branco:

A leitura de vários exemplos da textualidade brasileira, literária ou não, aponta para


uma percepção do corpo da mulher negra como este objeto do prazer sem culpa para os
homens brancos, do prazer primitivo, prazer livre das amarras da tradição judaico-
cristã no qual a mulher negra figura apenas como objeto de consumo e de satisfação do
homem. [...]Das índias às africanas e afrodescendentes, as mulheres no Brasil foram
assim representadas e assim “consumidas” por uma tradição patriarcal, sexista e
racista. (SOUZA, 2008, p. 105-106).

Contrapondo uma literatura que perpetua uma representação hipersexualizada da mulher


negra, o texto engendrado por Conceição Evaristo discute a autorrepresentação, destacando as
opressões provenientes do entrecruzamento de diferentes identidades (raça, classe, gênero,
sexualidade, geração). Agente do seu contexto, a mulher negra assume o discurso sobre seu
corpo, suas afetividades, suas dores, suas identidades e busca uma identidade racial coletiva, por
exemplo, para falar dos processos de violência que passam a comunidade negra. Desse modo, a
materialidade da escrita da mulher negra é também eixo temático do fazer literário da autora.
Na escrita de Conceição Evaristo surgem personagens, narradoras, cenas, diversos
elementos oferecem uma discussão sobre a articulação do racismo e do sexismo como
instrumentos de normatização (e violação) das histórias e vivências das mulheres negras.
No conto Rose DusReis, por exemplo, presente no livro Insubmissas lágrimas de
mulheres (2016), a bailarina relata à narradora, já na sua dança final, como um último ato de
resistência, o dificultoso processo para que ela alçasse a categoria de bailarina clássica.
Rose, uma menina negra e pobre, órfã de pai, filha de lavadeira, sentia-se impelida ao
mundo da dança: “eu nasci com o pendor da dança, embora para minha família não significasse
nada”(EVARISTO, 2016, p.107). Estudante de uma escola pública da cidade, a menina sempre
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139

fora encantada com o curso de balé de uma escola particular, mas foi preterida, diversas vezes,
por sua condição de menina pobre e negra.
Há um recorte racial, de gênero e de classe muito delimitado no episódio, quando a
menina é preterida para o papel da bonequinha preta que cantava e dançava, em uma festinha da
escola, mesmo depois de ensaiar semanas seguidas e ser elogiada, sendo substituída por uma
menina branca pintada de preto. Cena que marca sua infância e que descortina a sucessão de
obstáculos vividos pelas mulheres negras desde terna idade.
Em conto do mesmo livro, “Natalina Soledad”, a autora revela outras insubmissões
necessárias às mulheres negras em seus contextos. Assim como Rose DusReis, Natalina precisa
insurgir e resistir. Vitima de misoginia ao nascer: “Natalina Soledad, tendo nascido mulher, a
sétima depois dos seis filhos homens, não foi bem recebida pelo pai e não encontrou acolhida no
colo da mãe” (EVARISTO, p.19), a personagem recebe da família o nome de ‘Troçaléia”.
Rejeitando o nome, ela também rejeita a sua família e a condição que lhe era imposta, ou seja,
um único modo de existir, aceitando aquela premissa como verdadeira.
Quando finalmente modificou o pré-nome, pode construir sua narrativa. A “mulher que
escolheu seu próprio nome” construiu para si uma história só sua, mas que também de todas as
outras. Sujeito agente da produção de discurso e consciente dos processos de silenciamento da
sua trajetória enquanto mulher e negra, a personagem traça uma nova trajetória para si: ela é a
fundação da sua própria herança, o caminho a partir do qual sua história será contada. Ao agir
desse modo, rejeita uma condição pré-estabelecida para sua vivência – o troço, aquela que não é
homem, que não carrega a família – para assumir que a sua tradição vem de outro caminho, uma
ancestralidade que mora no seu corpo. De mesmo modo, as escritoras negras dialogam com uma
tradição historiográfica ocidental que rejeitou sua participação na genealogia da escrita literária.
Insubmissas... (2016), livro de contos que contém as histórias de Natalina e Rose,
apresenta as narrativas de treze mulheres e suas trajetórias permeadas pelo entrecruzamento das
dimensões de classe, raça, gênero, sexualidade e geração. Nesse contexto de múltiplas mulheres
atravessadas por ancestralidades, as personagens-títulos de cada conto revelam para a narradora
suas histórias mais íntimas, identificando-se como sujeitos de produção de um discurso.
Assim, temos Aramides Florença, Isaltina Campo Belo, Shirley Paixão... diferentes
mulheres resilientes que narram as pedras pontiagudas que guardam nas suas histórias para uma
narradora curiosa. O desejo de contar e colher narrativas dos seus é um tema recorrente na
produção de Conceição Evaristo: : seja representada na figura de Maria-Nova, no romance
Becos da Memória (2006), que deseja contar a história dos seus, velhos e novos: “Pensou,
buscou lá dentro de si o que poderia fazer [...] O pensamento veio rápido e claro como um raio.

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140

Um dia ela iria tudo escrever” (EVARISTO, 2013, p. 225); seja no desejo de recolher histórias
da narradora do livro Insubmissas... (2016).
Assim, Conceição Evaristo, atenta às necessidades de discussão do seu papel de mulher
na sociedade contemporânea, propõe, no interior de sua escrita literária, uma narrativa que
convoca as personagens a narrarem suas vivências, compreendendo que, por meio da
representação dessas vozes no texto literário, tornasse possível a recuperação da história e da
cultura dos sujeitos historicamente marginalizados,
Já a narrativa de Becos da Memória (2006) se inscreve na lembrança dos becos e vielas
de uma favela que não existe mais. Acompanhamos as histórias e desventuras de personagens
como Vó Rita, Cidinha-Cidoca, Negro Alírio, várias pessoas-personagens de uma favela em
processo de desocupação. Vidas colocadas à margem. No epílogo da favela, cada morador tece
mais um capítulo doloroso de suas vidas e a menina Maria-Nova, que gostava de ouvir histórias,
principalmente histórias tristes, aprende a colher e guardar as dores dos outros.
Assim, no procedimento de escuta executado pela narradora (Maria-Nova), o leitor ou
leitora conhece a história de Tio Totó, “filho” do Ventre-Livre, e dos seus, vitimados pela
escravidão. Transcorre também as histórias de Maria-Velha, da luta de Negro Alírio com os
operários por melhores condições de trabalho, as lembranças de guerra do Tio Tatão. Histórias
de banzo que se repetem, por outros caminhos, nas vielas da favela que agora habitam.
Histórias que são ouvidas, colhidas, são de cada uma daquelas personagens, mas também
são de todas que habitam o universo da obra. Deslegitimando o discurso hegemônico, parte da
perspectiva do dominado para recontar a história dos negros.
Cientes dessa história a ser recontada, a partir da perspectiva da mulher negra, autoras
como Conceição Evaristo constroem histórias em que há a valorização da ancestralidade. Além
de tema da escrita, alguns elementos e tradições diluídas na cultura popular e, muitas vezes,
marginalizadas, ressurgem para encaminhar a discussão sobre identidade política negra. Assim,
tanto em Becos da Memória (2006) quanto em Insubmissas... (2016), sentar-se para ouvir as
histórias do mais velhos sobre tempos distantes e partilhar aquela narrativa é um sentimento que
mobiliza as narradoras dos livros.

CONCLUSÃO

O texto engendrado por Conceição Evaristo possui uma dimensão que perfaz a
interconexão entre raça, gênero e classe social. Revela-se, desse modo, a consciência das
diversas interfaces das opressões sofridas por mulheres. Os mecanismos sociais que tentam

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
141

inviabilizar a permanência desses sujeitos nos espaços de resistência são abordados sob a ótica
do sujeito atravessado pelas opressões da raça, classe e gênero.
O desejo de contar suas histórias revela, em cada personagem representada na obra da
autora, o deslocamento a que se propõe escrita literária de mulheres negras: rasurar a
representação tradicional encenada na literatura brasileira.
Apoderar-se da fala é um ato de rebeldia e, para escritoras negras, vítimas do racismo
gendrado/sexismo racializado, reivindicar uma linguagem que se apropria e rasura os códigos
hegemônicos é assumir a postura de uma intelectualidade que lhe foi negada.
Fazer soar os gritos abafados desde os porões dos navios negreiros e que continuaram (e
continuam) ecoando por séculos nas lavouras, nos presídios, nas Senzalas-Favelas. Deixar se
cumprir uma herança ancestral, num tempo que não é tempo do ocidente, no cabelo, na escrita,
nas casas de asé. Compromisso assumido por Maria-Nova, mas que também faz parte do ato
político da escrita empreendida por Conceição Evaristo.
A escritora propõe, no interior de sua escrita literária, uma discussão sobre as identidades
das mulheres negras, a partir do poder de agência dos seus corpos e falas, das suas histórias e
memórias relegadas, historicamente, à condição de marginalizadas. Mulheres que narram suas
escre-vivências (como a personagem Maria-Nova, por exemplo) e tornam possível a releitura da
História.

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143

DIÁSPORA E HIBRIDISMO: O RETORNO A UMA ANTÍGUA DESCONHECIDA EM


MY BROTHER, DE JAMAICA KINCAID
Walter Cruz Caminha (UERJ)
E-mail: waltercaminha@gmail.com
Leila Assumpção Harris, Ph.D (UERJ)
E-mail: laharris@uol.com.br

O desejo de retorno ao lar é um tema recorrente nas obras escritas por autores
diaspóricos ou que retratam sujeitos em trânsito. A ideia de voltar à terra natal é abordada e
problematizada por teóricos como Stuart Hall, Anh Hua e Avtar Brah, tendo em vista que ela
aparece na literatura de diferentes formas, seja como desejo real de retorno ou como intenção de
não voltar ao país de origem. Anh Hua fala sobre esse desejo ao discutir em seu artigo
“Diaspora and cultural memory” (2008) algumas considerações do professor indiano
Rajagopalan Radhakrishnan sobre este tema. Radhakrishnan (1996 apud HUA, 2008) afirma
que o sentimento de “nostalgia acrítica” pela terra natal pode levar o sujeito diaspórico a ignorar
as circunstâncias que motivaram seu deslocamento geográfico e as mudanças e desdobramentos
decorrentes da passagem do tempo em seu país de origem.
É através desta ótica que faço uma análise da tensão criada entre a narradora e sua
família e país de origem em My Brother, memoir publicado em 1997 pela autora antiguana
Jamaica Kincaid. My Brother (1997) é um relato crítico sobre os diversos retornos da narradora
em um curto período para visitar seu irmão mais novo, Devon, que sofre com as complicações
da AIDS. Estas visitas ocorrem após décadas sem que Jamaica, a narradora, voltasse a Antígua
depois de sua migração para os Estados Unidos, e o relato demonstra claramente o
distanciamento não apenas geográfico mas também emocional que pode ser encontrado entre
um sujeito diaspórico e sua terra natal. Na leitura de My Brother (1997), somos apresentados a
detalhes da vida da narradora e de suas famílias – uma distinção que ela reforça entre a família
do lugar onde ela cresceu na ilha caribenha e a família que ela construiu nos Estados Unidos –,
detalhes estes que aparecem e reaparecem através dos comentários de Jamaica sobre a geografia
de Antígua e episódios específicos de sua infância e adolescência antes de mudar-se para os
Estados Unidos. Este memoir não é sobre a morte do irmão da narradora, mas sobre a
reconstituição da vida dele, uma vida com a qual a narradora teve pouco contato devido à sua
migração. É uma tentativa de conhecer seu irmão que acaba de morrer, já que ela só teve contato
com Devon nos três primeiros anos de vida dele.

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144

A identidade do sujeito diaspórico

Susan Stanford Friedman aborda a questão da identidade no capítulo “‘Routes/Roots’:


Boundaries, Borderlands, and Geopolitical Narratives of Identity”, em Mappings (1998), através
da oposição das imagens de raízes e rotas. Essa oposição, como Friedman ressalta, já havia sido
previamente discutida por teóricos como James Clifford, Paul Gilroy e Alex Haley. Ela afirma
que “muitas vezes, a identidade demanda algum tipo de deslocamento - literal ou figurado - para
tornar-se um processo consciente” (FRIEDMAN, 1998, p.151, tradução minha)39, e que a
oposição entre os dois termos traz a ideia de que uma viagem seria o uso de rotas para transitar
entre dois pontos enraizados - remetendo à imagem das raízes. A teórica resume a diferença
entre rotas e raízes como “dois lados da mesma moeda: raízes, significando uma identidade
baseada em estabilidade e continuidade; e rotas, sugerindo uma identidade baseada em
deslocamento, mudança e ruptura” (FRIEDMAN, 1998, p.153, tradução minha)40. Friedman
também recorda a defesa que Gayatri Spivak propõe da ideia de desenraizamento, em oposição
ao enraizamento, já que a teórica indiana - sendo ela também um sujeito diaspórico - caracteriza
o primeiro como estar “sempre em movimento” (Spivak apud FRIEDMAN, 1998, p.151,
tradução minha)41. Em paralelo, podemos lembrar também das reflexões de Avtar Brah, em
Cartographies of Diaspora: Contesting Identities (1996), que evoca a imagem de raízes em
relação a diáspora propriamente dita: “jornadas diaspóricas são, em sua essência, sobre
estabelecer-se, colocar suas raízes em outro lugar” (BRAH, 1996, p.182, tradução minha)42.
A analogia das rotas como caminhos entre dois pontos enraizados, fixos, sugere
“viagens, deslocamentos físicos e psíquicos no espaço, que por sua vez incorporam o
cruzamento de fronteiras e o contato com a diferença” (FRIEDMAN, 1998, p.151), e é neste
contato com a diferença que a identidade do sujeito diaspórico é moldada e transformada de
maneira constante. Em A identidade cultural na pós-modernidade (1997), Stuart Hall acrescenta
que a identidade na pós-modernidade deixa de ser percebida como “unificada e estável”, e que o
sujeito pós-moderno “está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (HALL, 1997, p.11).
Em My Brother (1997), Jamaica - a narradora, que compartilha o nome com a autora -
apresenta Antígua através da descrição de lugares da ilha conforme lembra como eles eram
quando ela era criança, e como eles estão - ou simplesmente não estão mais - no período de
39
"identity often requires some form of displacement — literal or figurative — to come to consciousness"
(FRIEDMAN, 1998, p.151)
40
"two sides of the same coin: roots, signifying identity based on stable cores and continuities; routes, suggesting
identity based on travel, change, and disruption" (FRIEDMAN, 1998, p.153)
41
"always on the run" (apud FRIEDMAN, 1998, p.151)
42
"diasporic journeys are essentially about settling down, about putting roots 'elsewhere'" (BRAH, 1996, p.182)
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145

suas visitas ao irmão doente. A narrativa flui como se a narradora estivesse mapeando a Antígua
que ela conhecia e comparando ao lugar que ela retorna como visitante depois de décadas longe.
A identidade da narradora vai sendo revelada através de seus comentários ácidos sobre os
detalhes de sua infância e de sua família, em especial sua mãe, principalmente quando a
narradora enfatiza que seu marido e seus filhos, que moram em Vermont, nos Estados Unidos,
são quem ela de fato considera como família. Sua cartografia pessoal de Antígua revela que o
estado de conservação da ilha piorou desde que Jamaica mudou-se de lá - apesar da narradora
nunca descrever o local como algo bom no passado, apenas menos pior do que no período de
suas visitas:

Estava em um carro alugado e passei (...) pelo lugar onde ficava o necrotério (uma
pequena estrutura em forma de cabana onde ficavam armazenados os defuntos até que
suas famílias viessem retirá-los), mas que não está mais lá; foi demolida quando ficou
deteriorada e não conseguia mais conter o cheiro dos corpos. E então cheguei a um
grande cruzamento onde há um sinal de trânsito, mas estava quebrado e assim estava
há muito tempo; não podia ser consertado porque as peças para reparo não são mais
fabricadas em lugar nenhum no mundo - o que não me surpreende, já que em Antígua é
assim mesmo: as peças para qualquer coisa não são mais fabricadas em lugar nenhum
no mundo; em Antígua, não se fabrica nada. (KINCAID, 1997, p.23-24, tradução
minha)43

Sinais da decadência da ilha são exaustivamente descritos por Jamaica e nada nas
descrições da narradora parece estar em pleno funcionamento ou em bom estado de
conservação, o que nos leva a lembrar dos “legados do Império”, que Stuart Hall descreve como
a pobreza, o subdesenvolvimento e a falta de oportunidades (HALL, 2003, p.28). Como muitos
dos elementos apresentados na narrativa são de cunho autobiográfico, esse mapeamento feito
pela narradora em My Brother (1997) pode ser percebido como parte de um álbum de família da
autora, Jamaica Kincaid.
No artigo “‘Beyond the frame’: Writing a Life and Jamaica Kincaid’s Family Album”, a
teórica Susheila Nasta (2009) compara as obras de Kincaid a um álbum de retratos de família,
no qual a cada história escrita pela autora, o leitor é apresentado e reapresentado a detalhes de
vidas muito parecidas com a de Kincaid:

(...) as múltiplas invenções de si e retratos de família que ela criou podem muito bem
ser vistos como um projeto literário dinâmico, performático e de vários gêneros, que
evita ser finalizado e resiste à necessidade de apresentar elementos discretos de

43
I rode in a hired car and it took me past (…) the place where the Dead House used to be (a small cottage-like
structure where the bodies of the dead were stored until their families came to claim them), but it is not there
anymore; it was torn down when it grew rotten and could no longer contain the smells of the dead. And then I came
to a major crossing where there was a stoplight, but it was broken and had been broken for a long time; it could not
be fixed because the parts for it are no longer made anywhere in the world — and that did not surprise me, because
Antigua is a place like that: parts for everything are no longer being made anywhere in the world; in Antigua itself
nothing is made. (KINCAID, 1997, p.23-24)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
146

verossimilhança, ou o que chamamos de autênticas verdades autobiográficas. (NASTA,


2009, p.65, tradução minha)44

Nasta também ressalta que Kincaid demonstra um “desejo persistente de revisitar,


remoldar e reimaginar as ‘verdades’ enterradas” de sua história pessoal, tendo em vista que seus
textos apresentam similaridades, familiaridades entre si. Como afirmado por Leigh Gilmore,
“não é que Kincaid esteja escrevendo o mesmo livro diversas vezes; na verdade, ela está
adicionando volumes a uma série de histórias” (GILMORE, 2001, p.100, tradução minha)45.
Essa intertextualidade que encontramos nos elementos apresentados nas obras de Kincaid:

(...) pode ser lida como uma rede crescente de associações que se expande em múltiplas
direções e produz a estranha sensação de que já vimos ‘aquilo’ antes. Esse ‘aquilo’
pode ter sido vislumbrado em um outro texto, e não há a necessidade de confirmar sua
ligação com a vida de Kincaid para entender seu entrelaçamento com o autobiográfico.
(GILMORE, 2001, p.116, tradução minha)46

Diáspora e Hibridismo

O “projeto de representação de si” (GILMORE, 2001) composto pelas obras de Kincaid


evidencia o hibridismo ao qual o sujeito diaspórico está sujeito. De acordo com o dicionário Key
concepts in post-colonial studies (1998), editado por Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen
Tiffin, hibridismo “comumente se refere à criação de novas formas transculturais na zona de
contato que é produzida pela colonização” (ASHCROFT et al, 1998, p.118, tradução minha)47.
Como descrito no dicionário de conceitos, é onde Homi Bhabha chama de “terceiro espaço”
(idem, tradução minha)48 que a identidade cultural se forma, tornando impossível a ideia de uma
hierarquia de culturas baseada em “pureza”.
A obra My Brother (1997) traz diversas evidências que mostram como o hibridismo
influencia a identidade da narradora como sujeito diaspórico. Jamaica constantemente lembra o
leitor de sua família em Vermont, o grupo de pessoas que ela de fato considera como “família”
conforme ela ressalta exaustivamente durante a narrativa. Ao dizer “uma vez, há alguns anos,
quando visitava minha família - isto é, a família na qual fui criada” (KINCAID, 1997, p.8,
44
(…) the multiple self-inventions and family portraits she has created can most usefully be seen as a dynamic,
performative and cross-genre literary project, which resists closure and the need to present discrete portraits of a
life linked to verisimilitude, or what we might call authentic autobiographical truths. (NASTA, 2009, p.65)
45
"it is not that Kincaid is writing the same book over and over; rather, she is adding volumes to a series"
(GILMORE, 2001, p.100)
46
(…) can be read as this growing network of associations which expands in multiple directions and produces the
uncanny sense that we have been "here" before. The ”here” may well have been first glimpsed in another text, and
we need not confirm its source in Kincaid’s life to grasp its intrication within the autobiographical. (GILMORE,
2001, p.116)
47
"commonly refers to the creation of new transcultural forms within the contact zone produced by colonization"
(ASHCROFT et al, 1998, p.118)
48
"third space" (ASHCROFT et al, 1998, p.118)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
147

tradução minha)49, a narradora busca ressaltar a distância emocional, além da distância física,
que há entre ela e sua família na Antígua. Questões emocionais não resolvidas, especialmente
em relação a sua mãe, aliadas às marcas deixadas pelo colonialismo em Antígua e seus
habitantes levam esta narradora a distanciar-se de sua terra natal e buscar um lar e uma família
longe dali.
Outra evidência dos efeitos do hibridismo e desse distanciamento é a influência de sua
diáspora no seu sotaque ao falar inglês, que após décadas tornou-se bem diferente do sotaque de
sua mãe e irmãos. Jamaica menciona esta característica diversas vezes, como na passagem:

I told him to protect himself from the HIV virus and he laughed at me and said that he
would never get such a stupid thing (“Me no get dat chupidness, man”). (…) I no
longer spoke the kind of English he spoke, and when I said anything to him, he would
look at me and sometimes just laugh at me outright. You talk funny, he said.
(KINCAID, 1997, p.8, grifo meu)50

Para seu irmão Devon, que nunca tinha vivido fora da ilha caribenha, o sotaque
estadunidense que Jamaica havia adquirido e se habituado soava “engraçado”, conforme
podemos ver na passagem acima. A narradora afirma que sente dificuldade entender o inglês
como os antiguanos falam por ter passado tanto tempo longe da ilha.
Sendo um produto da percepção da narradora de sua família e terra natal depois de
décadas vivendo em outro país, o memoir traz um relato crítico da vida em Antígua e dos
parentes que não estiveram presentes em sua vida durante a maior parte dela. É possível
relacionar Jamaica Kincaid, a autora, a que Elleke Boehmer chama de “escritor pós-colonial
comum”, apesar de Boehmer se referir aos escritores dos anos 2000: mais “extra-territoriais”,
viajantes culturais, do que nacionalistas e ligados a sua terra (BOEHMER, 2005). Boehmer
descreve esses autores como “nascidos em ex-colônias, culturalmente interessados no Terceiro
Mundo e cosmopolitas em todo o resto” (BOEHMER, 2005, p.227, tradução minha)51. Pelos
detalhes autobiográficos e obras de Kincaid, podemos ver que ela não é nascida em uma ex-
colônia pois nasceu ainda durante o governo imperial do Reino Unido e pode vivenciar a
suposta independência de Antígua e Barbuda. Entretanto, Kincaid se encaixa nas outras
características descritas por Boehmer já que escreve sobre sua terra natal – uma ex-colônia,
ainda afetada pelas práticas coloniais – na posição de sujeito diaspórico que vive em um país
hegemônico.

49
"once, a few years ago when I was visiting my family — that is, the family I grew up in" (KINCAID, 1997, p.8)
50
Opto aqui por manter o texto na língua inglesa para demonstrar a maneira como Jamaica Kincaid transcreve a
fala de Devon, ressaltando a diferença no inglês falado pela narradora e aquele falado por seu irmão.
51
"ex-colonial by birth, 'Third World' in cultural interest, cosmopolitan in almost every other way" (BOEHMER,
2005, p.227)
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A narradora e sua relação com a família e a terra natal

O tom crítico adotado em My Brother (1997) pode ser abordado através das reflexões de
Stuart Hall (2003) e Anh Hua (2008) sobre retorno e nostalgia. Hall, em seu artigo “Pensando a
Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior”, menciona o desejo por um chamado “retorno
redentor” que a diáspora pode despertar em sujeitos diaspóricos. O sociólogo afirma que a ideia
de um retorno que “circula de volta a restauração de seu momento originário, cura toda ruptura,
repara cada fenda” (HALL, 2003, p.29) tornou-se uma espécie de mito fundador para o povo
caribenho.
Entretanto, tendo em vista que My Brother (1997) é um relato das memórias da
narradora, não podemos ignorar o efeito da memória na História, especialmente quando se trata
do campo de estudos de diáspora. Como ressaltado por Ahn Hua em “Diaspora and Cultural
Memory” (2008), ao estudar a memória como objeto de pesquisa, devemos observar a
“ausência, distância, testemunho, depoimento, tradição, nostalgia e esquecimento” (HUA, 2008,
p.197, tradução minha)52 que permeiam a mesma. Hua afirma que a memória é gendrada,
apropriada, politizada, nacionalizada, patologizada e esteticizada (idem) e, assim, funciona
como um importante complemento da História, permitindo que outros pontos de vista sejam
registrados. Ahn Hua traz em seu artigo as ideias do professor indiano Rajagopalan
Radhakrishnan sobre nostalgia para abordar o sentimento acrítico que podemos encontrar em
algumas narrativas diaspóricas:

Radhakrishnan (1996) também nos alerta sobre a nostalgia acrítica encontrada em


algumas narrativas diaspóricas sobre a terra natal. Às vezes, quando estamos
insatisfeitos com o local para onde migramos e sua relutância em subverter as
injustiças dominantes, voltamos nosso olhar para a terra natal. (HUA, 2008, p.196,
tradução minha)53

Radhakrishnan afirma, conforme observado por Hua (2008), que esse “olhar nostálgico e
acrítico” não leva em consideração as circunstâncias que levaram o sujeito à sua diáspora.
“Cultiva-se a memória de uma pátria idealizada” (HUA, 2008, p.196, tradução minha)54, uma
visão que ignora completamente a situação contemporânea da terra natal, considerando as
mudanças, os motivos de sua diáspora e a condição política, social e econômica do local.

52
"one should pay attention to absence, distance, witness, testimony, tradition, nostalgia, and forgetting" (HUA,
2008, p.197)
53
Radhakrishnan (1996) also warns against the uncritical nostalgia found in some diasporic narratives about the
home country. Often when we are dissatisfied with the place of settlement and its unwillingness to change the
dominant injustices, we turn our gaze back to the homeland. (HUA, 2008, p.196)
54
"One may cultivate a memory of an idealized homeland" (HUA, 2008, p.196)
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O referido “olhar nostálgico e acrítico” (HUA, 2008) não é percebido nas obras de
Jamaica Kincaid. Suas críticas a Antígua e aos processos de colonização e descolonização são
evidentes durante toda a narrativa, ao passo que a narradora comenta sobre diversos aspectos de
sua vida em Antígua e sua família caribenha. Parte de sua crítica é voltada ao lugar físico que
chamamos de “lar”. Jamaica, a narradora, enfatiza que Antígua não é seu lar ao dizer “eu estava
tão feliz em chegar em casa, isto é, a casa que eu conquistei para mim, a minha casa na vida
adulta” (KINCAID, 1997, p.98, tradução minha)55. Ao visitar seu irmão no hospital pela
primeira vez, Jamaica afirma:

Às vezes quando estava sentada com ele, nos primeiros dias encontrando-o pela
primeira vez depois de tanto tempo, vendo-o apenas deitado, morrendo mais rápido que
o normal, eu só queria sair correndo, gritando dentro da minha cabeça, o que estou
fazendo aqui, quero ir pra casa. Sentia falta dos meus filhos e do meu marido. Sentia
falta da vida que eu conhecia. Quando eu estava sentada com meu irmão, a vida que eu
conhecia se tornava meu passado, um passado que não fazia eu sentir como se estivesse
caindo em um buraco, uma neblina de tristeza me consumindo. (KINCAID, 1997,
p.22-23, tradução minha, grifo meu)56

A narradora sente falta de sua casa, mas não a casa de sua família em Antígua, lugar que
ela não considera como seu lar. Jamaica sente falta de Vermont e da vida que construiu lá,
conforme ela reitera ao narrar um episódio que ocorreu durante uma viagem de Miami para
Vermont, previamente mencionado: “eu estava tão feliz em chegar em casa, isto é, a casa que eu
conquistei para mim, a minha casa na vida adulta” (KINCAID, 1997, p.98, tradução minha)57.
Jamaica também critica a situação política em Antígua ao culpar o governo por
abandonar seu irmão - e todas as pessoas com AIDS:

Mas não foi o racismo que deixou meu irmão deitado em uma cama de hospital
morrendo de uma doença incurável, no país onde nasceu; foi o fato de viver em um
lugar onde o governo, constituído de pessoas com a mesma cor de pele que a dele, sua
própria raça, era corrupto e não dava a mínima se as pessoas como ele viviam ou
morriam. (KINCAID, 1997, p.49-50, tradução minha)58

55
"I was so happy to reach my home, that is, the home I have now made for myself, the home of my adult life"
(KINCAID, 1997, p.98)
56
Sometimes when I was sitting with him, in the first few days of my seeing him for the first time after such a long
time, seeing him just lying there, dying faster than most people, I wanted to run away, I would scream inside my
head, What am I doing here, I want to go home. I missed my children and my husband. I missed the life that I had
come to know. When I was sitting with my brother, the life I had come to know was my past, a past that does not
make me feel I am falling into a hole, a vapor of sadness swallowing me up. (KINCAID, 1997, p.22-23)
57
"I was so happy to reach my home, that is, the home I have now made for myself, the home of my adult life"
(KINCAID, 1997, p.98)
58
But it was not racism that made my brother lie dying of an incurable disease in a hospital in the country in which
he was born; (…) it was the fact that he lived in a place in which a government, made up of people with his own
complexion, his own race, was corrupt and did not care whether he or other people like him lived or died.
(KINCAID, 1997, p.49-50)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
150

Outro alvo constante de críticas na narrativa é sua família ou, como afirmado e reforçado
pela narradora diversas vezes, a família na qual ela foi criada. Há vários trechos que mostram
situações que parecem mal resolvidas, como quando Jamaica se questiona se ama seu irmão
Devon ou divaga sobre a forma com que sua mãe criou os filhos. Sobre seu irmão, a narradora
afirma que ele era muito pequeno quando ela mudou-se para os Estados Unidos e, por isso, ela
não conviveu com ele o suficiente para nutrir qualquer sentimento por Devon, como vemos no
trecho abaixo:

Quando saí de casa aos dezesseis, ele tinha três anos de idade. Não lembro de sentir
nenhum afeto em específico ou sentimento de repulsa por ele. Nossa mãe conta que eu
preferia meu irmão do meio entre os três, mas isso me parece ser invenção dela. Vejo
meus irmãos como filhos da minha mãe. (KINCAID, 1997, p.20, tradução minha,
grifo meu)59

É possível perceber que Jamaica se distancia não só de seu irmão mais novo como
também de seus outros dois irmãos, que são brevemente mencionados em My Brother (1997).
Se fizermos uma leitura da obra como uma tentativa da narradora de conhecer seu falecido
irmão a partir das memórias que tem de um passado distante e de suas visitas recentes,
perceberemos que ela reconhece não alcançar este objetivo plenamente. Jamaica se pergunta
“Quem é ele? Fico me perguntando. Quem é ele? Como ele se sente sobre si mesmo, o que ele
quis na vida?” (KINCAID, 1997, p.69-70, tradução minha)60, como se levantasse a possibilidade
de que nem Devon conhecia plenamente a si mesmo. Esse questionamento surge devido ao fato
de que ele tinha 33 anos e, segundo a narradora, não havia conquistado quase nada em sua vida:
Devon era um homem solteiro que ainda vivia com sua mãe, tentava emplacar uma carreira de
cantor, fazia uso intenso de maconha, já havia sido preso e agora enfrentava as consequências de
uma doença sexualmente transmissível.
A narradora é bem clara sobre as dificuldades que encontra para entender seus próprios
sentimentos em relação ao seu irmão doente. De volta aos Estados Unidos após uma de suas
visitas a Devon no hospital, Jamaica se vê pensando se o ama ou não:

Mas eu não acho que o amo; ali, quando eu não estava mais com ele, eu não achava
que o amava. O que me fazia falar sobre ele, pensar sobre ele, não era amor, era
alguma outra coisa, mas não amor; já que amor era o que eu sentia pela minha família,
aquela que eu tenho hoje, mas não sentia por ele ou pelas pessoas que vem de onde eu
venho, não era amor, mas um sentimento tão arrebatador quanto, não amor. Minha fala
era repleta de dor, cheia de infelicidade, tomada pela raiva, não havia paz na minha
voz, havia tristeza, mas não paz. Como eu me sentia? Não sei como me sentia. Era

59
When I left our home at sixteen years of age, he was three years of age. I do not remember having particular
feelings of affection or special feelings of dislike for him. Our mother tells me that I liked my middle brother best
of the three of them, but that seems an invention on her part. I think of my brothers as my mother’s children.
(KINCAID, 1997, p.20)
60
"Who is he? I kept asking myself. Who is he? How does he feel about himself, what has he ever wanted?"
(KINCAID, 1997, p.69-70)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
151

uma combustão de sentimentos. (KINCAID, 1997, p.50-51, tradução minha, grifo


meu)61

Mais uma vez, Jamaica reitera que sua família - a família que ela ama - é a família que
ela tem em Vermont. Já que não faz parte desse núcleo que ela considera como família, Devon
não é amado por ela. Como a narradora afirma, essa “combustão de sentimentos” é uma mistura
de dor, infelicidade, raiva e tristeza (KINCAID, 1997). Ela também se pergunta o que poderia
ter acontecido caso ela encarasse sua relação com a família de maneira diferente, como no
trecho “E começo de novo (...) a me perguntar como teria sido minha vida hoje caso eu não
tivesse sido tão fria e impiedosa com minha família, agindo apenas em meu favor quando era
mais jovem” (KINCAID, 1997, p.68-69, tradução minha, grifo meu)62.
Jamaica também é assertiva em relação a sua mãe, que parece ser o principal motivo de
sua rejeição a Antígua, sua família e sua infância. Sra. Drew, como Jamaica a chama, é retratada
como alguém que se importa com os outros apenas quando estes dependem dela:

Minha mãe ama seus filhos, digo, a seu modo! E isso é verdade, ela nos ama à sua
maneira. É o seu jeito. Nunca me ocorreu que a maneira de amar dela talvez não seja a
melhor maneira pra gente. Nunca me ocorreu que a maneira de amar dela sirva melhor
a ela do que a nós. E por que deveria? Quem sabe todo amor seja em causa própria.
Não sei, não sei. Ela nos ama e compreende quando estamos fracos e indefesos e
precisamos dela. (KINCAID, 1997, p.16, tradução minha, grifo meu)63

Jamaica é assertiva ao afirmar que quando os filhos da Sra. Drew estão “fracos e
indefesos” (idem), são dignos de seu amor e atenção. Entretanto, se um de seus filhos, como
Jamaica fez, tenta tornar-se independente, a mãe não fará nada além de reclamar e criticar suas
decisões. A narradora ilustra essa observação ao contar o episódio de sua mudança para Nova
Iorque e suas tentativas iniciais de viver da escrita. Sra. Drew é retratada como uma mãe
impiedosa quando seus filhos tentam agir como adultos:

Seu amor por seus filhos quando são crianças é espetacular, inigualável na História.
Mas é quando seus filhos estão tentando ter responsabilidade - adultos - que a
engrenagem do seu amor por eles para; é quando eles estão vivendo em um

61
But I did not think I loved him; then, when I was no longer in his presence, I did not think I loved him. Whatever
made me talk about him, whatever made me think of him, was not love, just something else, but not love; love
being the thing I felt for my family, the one I have now, but not for him, or the people I am from, not love, but a
powerful feeling all the same, only not love. My talk was full of pain, it was full of misery, it was full of anger,
there was no peace to it, there was much sorrow, but there was no peace to it. How did I feel? I did not know how I
felt. I was a combustion of feelings. (KINCAID, 1997, p.50-51)
62
"And I began again (…) to wonder what my own life would have been like if I had not been so cold and ruthless
in regard to my own family, acting only in favor of myself when I was a young woman" (KINCAID, 1997, p.68-
69)
63
My mother loves her children, I want to say, in her way! And that is very true, she loves us in her way. It is her
way. It never has occurred to her that her way of loving us might not be the best thing for us. It has never occurred
to her that her way of loving us might have served her better than it served us. And why should it? Perhaps all love
is self-serving. I do not know, I do not know. She loves and understands us when we are weak and helpless and
need her. (KINCAID, 1997, p.16, italics added by the author)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
152

apartamento gelado em Nova Iorque, famintos e sem um tostão porque decidiram ser
escritores, escrevem a ela buscando simpatia, uma palavra encorajadora, amor, que a
engrenagem do seu amor por eles para. A resposta dela para uma de suas crianças que
estava em tal situação foi ‘bom pra você, você está sempre tentando fazer coisas que
você sabe que não consegue fazer’. Essas foram exatamente suas palavras. (KINCAID,
1997, p.17, tradução minha)64

Mesmo quando Jamaica tenta dialogar com sua mãe, buscando um pedido de desculpas,
Sra. Drew é resoluta dizendo “eu nunca estou errada, não tenho que me desculpar, tudo que eu
fiz àquela época foi por um bom motivo” (KINCAID, 1997, p.27, tradução minha)65.
Jamaica demonstra repetidamente o distanciamento que mantém de sua família em
Antígua principalmente por sentir que Vermont é seu verdadeiro lar. Os sentimentos que nutre
por sua família em Antígua frequentemente flutuam entre desprezo e raiva. Quando a narradora
diz “No mundo onde vivo, minha família está morta para mim. Não falo deles” (KINCAID,
1997, p.118, tradução minha)66, ela está negando sua mãe, seus irmãos e seu padrasto, pessoas
com quem ela conviveu até os dezesseis anos de idade. Em alguns trechos, Jamaica embarca em
reflexões longas, com frases complexas e repetitivas, em uma tentativa de aumentar o
distanciamento entre ela e seus parentes antiguanos. Um desses trechos refere-se a uma
comparação que a narradora tece entre a mãe de um amigo na época de infância e sua própria
mãe:

Ela era tão diferente da mãe do meu irmão (minha mãe); ela parecia tão aberta,
acolhedora, quase neutra (mas isso é impossível); a mãe do meu irmão (minha mãe)
era exatamente o oposto de tudo isso, e era exatamente essa a questão: a mãe do meu
irmão (minha mãe) só sabia julgar, nunca acolher, tinha opiniões inflexíveis; ela era
(é, porque ainda é) inteligente, sua inteligência era como uma arma, que a destruiu, que
destruiu alguns de seus filhos: seu caçula, meu irmão, estava morrendo. (KINCAID,
1997, p.147-148, tradução minha, grifo meu)67

Essa repetição de palavras, frases, detalhes, situações, que frequentemente aparece nas
críticas da narradora em relação a sua família e sua terra natal é, como Leigh Gilmore (2001)
ressalta, o que causa a estranha sensação de que já nos deparamos com aquela história antes, não
apenas em My Brother (1997) como também nas outras obras de Jamaica Kincaid.
64
Her love for her children when they are children is spectacular, unequaled I am sure in the history of a mother’s
love. It is when her children are trying to be grown-up people — adults — that her mechanism for loving them falls
apart; it is when they are living in a cold apartment in New York, hungry and penniless because they have decided
to be a writer, writing to her, seeking sympathy, a word of encouragement, love, that her mechanism for loving falls
apart. Her reply to one of her children who found herself in such a predicament was “It serves you right, you are
always trying to do things you know you can’t do.” Those were her words exactly. (KINCAID, 1997, p.17)
65
"I am never wrong, I have nothing to apologize for, everything I did at the time, I did for a good reason"
(KINCAID, 1997, p.27)
66
"In the world I lived in then, my old family was dead to me. I did not speak of them" (KINCAID, 1997, p.118)
67
She was so different from my brother's mother (my mother); she seemed so unjudging, accepting, almost without
thought (but that isn't possible); my brother’s mother (my mother) was the exact opposite of all those things, and
that was the thing: my brother’s mother (my mother) only judged, never was accepting, had many thoughts; she
was (is, for she still is) intelligent, her intelligence is like a weapon, and it has destroyed her, it destroyed some of
her children: her son, my brother, was then dying. (KINCAID, 1997, p.147-148)
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153

Ao longo da narrativa, o leitor é apresentado a afirmações similares ao trecho acima


sobre as pessoas da família de Jamaica, a vida em Antígua e a relação da narradora com as
pessoas da ilha. O que Hall chama de “retorno redentor”, que “circula de volta a restauração de
seu momento originário, cura toda ruptura, repara cada fenda” através dele (HALL, 2003, p.29),
tem um outro significado neste memoir. Em My Brother (1997), o leitor mergulha em uma
espiral de memórias que não representam cura ou reparação. Na melhor das hipóteses,
representa talvez um acerto de contas em relação a assuntos que não haviam sido tocados
durante décadas de sua vida.
Podemos então concluir que o desejo de retorno ao lar, que muitas vezes permeia
narrativas diaspóricas, não é um tema encontrado em My Brother (1997). O “olhar nostálgico,
acrítico” que Hua (2008) nos apresenta através das reflexões de Radhakrishnan não aparece na
narrativa já que a mesma não nos apresenta uma Antígua idealizada. Através da narradora, o
leitor viaja no tempo e no espaço para uma Antígua que representa para Jamaica uma infância
de dor, sofrimento, raiva e tristeza, principalmente em relação a sua mãe.
É possível ver que, por motivos delicados e complexos, a identidade diaspórica de
Jamaica privilegia sua experiência nos Estados Unidos em detrimento de sua infância em
Antígua. Ao falar de suas memórias dos anos vividos na ilha caribenha, a narradora
constantemente reafirma sua preferência pela vida que construiu longe de seus parentes
antiguanos, longe de sua terra natal. Jamaica se sente deslocada ao ter dificuldade em entender a
variante da língua inglesa falada na ilha, a mesma variante que ela falava até, pelo menos, seus
dezesseis anos.
Em suma, as evidências demonstradas ao longo desta discussão mostram que My Brother
(1997) apresenta Antígua através da visão crítica da narradora como um sujeito diaspórico que
não se vê influenciado por um olhar nostálgico e acrítico - olhar este muitas vezes encontrado
em obras de autores diaspóricos - devido à relação complexa e complicada que mantém com sua
família e sua terra natal.

Referências bibliográficas

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Lamparina, 2015 [1997].

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HUA, Ann. Diaspora and Cultural Memory. In: AGNEW, Vijay (ed.). Diaspora, Memory and
Identity: A search for home. Toronto: University of Toronto Press, 2008, p.191-208.

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NASTA, Susheila. ‘Beyond the frame’: Writing a Life and Jamaica Kincaid’s Family Album.
In: Contemporary Women’s Writing. Volume 3, number 1, 2009. Oxford: Oxford University
Press, 2009, p. 64-85.

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AUTORIA FEMININA, RESGATE E HISTÓRIA

PARTICIPANTES: ADEÍTALO MANOEL PINHO; ANGELA MARIA RODRIGUES LAGUARDIA;


ANTONIA ROSANE PEREIRA LIMA; BEATRIZ AZEVEDO DA SILVA; JANILE PEQUENO
SOARES; LAILLA MENDES CORREIA; MÁRCIA MARIA DA SILVA BARREIROS; MARLI
TEREZINHA WALKER; RITA DE CÁSSIA MENDES PEREIRA; SUELLEN CORDOVIL DA SILVA.

JÚLIA LOPES DE ALMEIDA E AMÉLIA CAROLINA DE FREITAS BEVILAQUA:


ENTRE O ALMANAQUE BRASILEIRO GARNIER (1903-1914) E A ACADEMIA
BRASILEIRA DE LETRAS

Dra. Angela Maria Rodrigues Laguardia (CLEPUL/LETRAS DE MINAS-UFMG)


Email: angelamrl@gmail.com

Nosso trabalho é a extensão de uma pesquisa sobre a autoria feminina no Almanaque


Brasileiro Garnier (1903-1914), com publicações de artigos em andamento. Neste trabalho
refletimos sobre duas autoras e colaboradoras do Almanaque: Júlia Lopes de Almeida (1862 -
1934) e Amélia Carolina de Freitas Bevilaqua (1863-1946), cujos nomes, além de dividirem o
mesmo espaço literário, também possuem em comum uma “pretensa” candidatura à Academia
Brasileira de Letras.
Partimos da reflexão sobre a publicação de um índice do Almanaque Brasileiro Garnier
(1903-1914) e a seleção de seus “Autores - Colaboradores do Almanaque”, como foi intitulado
por suas organizadoras, Solange Balbi Mendes e Marlice Seixas de Andrade, sob a direção de
José Honório Rodrigues. Este índice pertence à Coleção Temas Brasileiros, volume 16,
publicado pela Editora Universidade de Brasília,em 1981, em conjunto com o índice da Gazeta
Litterária (1883-1884), organizado por Diana Zaidman.
Nele encontramos apenas 12 nomes de mulheres, na extensa lista de seus 310 autores e
colaboradores, diferença significativa que motivou nossa indagação sobre a presença da autoria
feminina neste Almanaque, cuja história está ligada à Livraria e também Casa Editorial Garnier
do Brasil, com a publicação de seu primeiro exemplar em 1903. As publicações que estenderiam
até 1914, foram interrompidas apenas em 1913, com o falecimento de Hippolyte Garnier.
A Livraria Garnier, instalada no Rio de Janeiro, capital da República e em plena Rua do
Ouvidor, era espaço de encontro da intelectualidade da época. Ali se reuniam escritores já
consagrados, publicados pela casa e em atuação na Academia Brasileira de Letras, a exemplo de
Machado de Assis, e que também participa do Almanaque.

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156

Populares desde a segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX
no Brasil, almanaques de diferentes tipos e origens circulavam no país; uma variedade composta
de almanaques estrangeiros, luso-brasileiros, ou inteiramente nacionais, com títulos que muitas
vezes identificavam seus estados ou cidades. Em suas diferentes tipologias, que englobavam
também os almanaques distribuídos pelos farmacêuticos, comerciantes ou donos de jornais, eles
encerravam sua dimensão pedagógica.
A criação do Almanaque Garnier, no contexto da Primeira República também teve seu
propósito. E antes de falarmos de sua origem, nos reportamos ao século XIX e ao Rio de
Janeiro, quando a cidade passa por grandes transformações em sua paisagem cultural, entre
impressores, editor e livreiro estrangeiros. Neste período, a Livraria Garnier também se tornou
a mais importante casa editorial brasileira entre outras ali existentes. Era a principal editora de
livros escolares e editora de traduções de obras célebres de escritores, como Jules Verne,
Flammarion e outros nomes relevantes da literatura francesa e estrangeira. E, principalmente,
editava e comprava os direitos autorais de importantes nomes literatura brasileira do século
XIX, dentre os quais, Domingos de Magalhães, Joaquim Manoel Macedo, José de Alencar,
Taunay e outros nomes que omitimos aqui.
As atividades da Livraria Garnier no Rio de Janeiro e a impressão das edições brasileiras
são iniciadas em 1844, com a chegada de Baptiste Louis, irmão de Hippolyte Garnier,
proprietário da Livraria e Editora Garnier Frères de Paris. Em 1852, com o rompimento da
sociedade entre os irmãos, Baptiste Louis continua à frente da livraria no Brasileo comércio dos
livros brasileiros em Paris e vice-versa não é interrompido. Após 47 anos de sua chegada ao
Brasil e com seu falecimento,em 1893, Hippolyte Garnier retoma a livraria, que novamente
volta ser uma filial da Garnier Frères de Paris. Ele a reinaugura em 1901 e nomeia um francês,
Julien Lansac, para gerente. Este contrata dois consultores, Ramiz Galvão e João Ribeiro,
importantes intelectuais que fariam parte desta nova fase da livraria e seriam responsáveis pela
direção do Almanaque Garnier.
Na virada do século, após a Abolição e a República, muitos escritores, comprometidos
com a afirmação da nacionalidade brasileira e com a formação política e social da nação,
pertencentes à geração de 1870, inicialmente articulados em torno da escola de Recife, se
encontrariam no Rio de Janeiro, e se juntariam a outros intelectuais, atuantes na Academia
Brasileira de Letras, no Colégio Pedro II, e em torno do Barão do Rio Branco, figura destacada
no Ministério das Relações Exteriores e importante intelectual da época.
Os textos destes homens das letras seriam publicados no Almanaque Garnier, como
Lúcio de Mendonça, Silvio Romero, Araripe Júnior, Graça Aranha, Clóvis Bevilaqua, o crítico
José Veríssimo, e outros nomes que também participaram da fundação da Academia Brasileira
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
157

de Letras .Estes “autores e colaboradores” exerciam suas atividades nos setores da educação,
diplomacia e jornalismo, com diplomas ou passagens por escolas de Medicina, direito,
engenharia. E, apesar do descontentamento com os rumos da República, esta rede intelectual,
em sintonia com sua perspectiva nacionalista, ia ao encontro do projeto político de seus editores,
principalmente quando João Ribeiro passa a atuar no Almanaque, em 1907.
Coerente com os critérios da Academia Brasileira de Letras, e sem romper com a fase
anterior de suas publicações, o projeto era ampliado e aprofundado. E, segundo Eliana de Freitas
Dutra, estudiosa do Almanaque Garnier:

Essa ampliação vai assegurar também a autoridade intelectual do


Almanaquenodomínio das letras – porquanto sua participação no sistema de
legitimação da Academia Brasileira de Letras será marcante – e seu raio de
atuação, no que toca aoalcance de público. A sua vocação pedagógica se
aprofunda, de um lado, dada a disposição de instruir e organizar um amplo
conjunto de assuntos válidos numa pequena biblioteca portátil, atualizada a
cada ano com os grandes eventos e o movimento científico e cultural do
mundo (DUTRA,2005:35).

Com grande variedade de seções, além da temática que caracteriza o gênero,


comoocalendário, a cronologia, a estatística, a geografia, a história, e outras informações,o
Almanaque atualizava seus leitores “com resenhas de livros e listas de lançamentos
bibliográficos do ano, incluindo as várias obras com as obras didáticas editadas e/ou importadas
pela livraria, bem como sua lista de livros para venda na Garnier” (DUTRA,2005:35). As seções
bibliográficas ainda informavam e traziam indicações pertinentes aos livros didáticos em geral,
endereçadas aos diferentes cursos, além de recomendações de obras pedagógicas e outros de
utilidade para o leitor.
Denominadas de “O Anno Litterario” ou “O Anno Litterario e bibliographico”, de
acordo com o ano de publicação do Almanaque, as seções traziam uma extensa e diversificada
lista de publicações de obras da época, um quadro ilustrativo, com seus variados temas e
origens, que sugerem a preocupação com a formação de um público leitor.
De acordo com Eliana de Freitas Dutra, o papel do Almanaque ultrapassa seu sentido de
utilidade, podendo substituir o livro quando este não fosse acessível:

Num país carente de livros, de leitores, de livrarias, onde a elite intelectual lutava por
se estabelecer e parte dela acreditava que a nação ainda estava que a nação ainda estava
por se fazer - daí ser necessário ampliar a instrução - e onde a escola formal ainda era
para poucos, essa estratégia editorial do Almanaque Garnier não pode ser
menosprezada (DUTRA, 2005:35).

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Deste modo, ao mergulhamos nesta relação entre autores, editores e leitores do


Almanaque, no contexto de sua temporalidade histórica, como instrumento difusor da leitura, e
instrumento de “uma pedagogia da nacionalidade”, retornamos à questão da autoria feminina, e
aos nomes das mulheres que fizeram parte de suas edições.
Seguindo a ordem cronológica e maior participação nos Almanaques, temos Amélia
Carolina de Freitas Beviláqua, que publica em 1903, 1904, 1905, 1906, 1908, 1909, 1910 e
1914; Alexina de Magalhães, em 1908 e 1910; Prisciliana Duarte de Almeida, em 1904 e
1906; Ignez Sabino, em 1909 e 1910; Auta de Souza, em 1904; Ruth Fonseca, em 1904; Júlia
de Almeida, Julieta Maisonnette, Horacina V.Kesting Maisonnette e Úrsula Garcia, em
1908; Rosália Sandoval, em 1910 e Laura da Fonseca e Silva, em 1914.
Dos nomes citados, não encontramos nenhuma informação sobre Julieta Maisonnete,
Horacina Maisonnete e Ruth Fonseca. E retornamos às protagonistas desta comunicação,
Júlia Lopes de Almeida (1862 -1934) e Amélia Carolina de Freitas Bevilaqua (1863-1946),
escritoras que participaram do Almanaque Brasileiro Garnier e dos bastidores da história da
participação feminina na Academia Brasileira de Letras.
Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeidanasceu no Rio de Janeiro, em 24 de
setembro de 1862. Foi contista, romancista, cronista e dramaturga, com vasta produção, que
também inclui a literatura infantil. Apesar disto, seu nome não teve o reconhecimento
merecidona história da literatura brasileira como importante escritora do final do século XIX e
início do século XX, resgate que vem sendo feito pela crítica feminista.
Sua trajetória de vida pessoal e literária teve ligações com Portugal, para onde se muda
em 1886, e publica Contos Infantis, com sua irmã Adelina Lopes Vieira, em 1887. No ano
seguinte, ela se casa com o poeta e jornalista português Filinto de Almeida e publica o segundo
livro de contos, Traços e Iluminuras.Em 1888, de volta ao Brasil, lançaseu primeiro romance,
Memórias de Martha.
Júlia L. de Almeida colaborou em muitos jornais e revistas, como A Semana, Jornal do
Comércio, O Paiz e outros. E naqueles destinados ao público feminino, como O Sexo Feminino
(1875), A Família (1888) e A Mensageira (1897), entre outros, utilizando, por vezes em seus
textos, os pseudônimos Julinto e Ecila Worms.
O seu primeiro romance, Memórias de Martha, foi escrito entre 1885-1886, em forma de
folhetim (1888), assim como várias de suas obras, como: A Família Medeiros, em 1891,
publicado em folhetim na Gazeta de Notícias (RJ) e, depois, em volume (1892); e outros como,
A Intrusa (1905), Cruel Amor (1908); Correio da Roça (1909-1910), publicados também mais
tarde em forma de volumes. A Casa Verde foi publicada no Jornal do Comércio, no Rio de
Janeiro, em parceria com Filinto de Almeida, (1898-1899), com o pseudônimo de A. Julinto, e
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ainda, no mesmo jornal, A Silverinha (crônica de um verão), em 1913, e publicada em livro, em


1914.
Além de outras obras, omitidas aqui, Júlia Lopes de Almeida escreveria também para
teatro, em uma época que o teatro de autoria feminina era bastante incomum.
No Almanaque Garnier, ela publica “Flamboyants”, em 1908. Mas seus livros já
participavam das seções literárias, entre eles, Ânsia Eterna, livro de contos que aparece no
primeiro Almanaque (1903), editado pela Garnier. Outros títulos de suas obras foram listados
no Almanaque até o seu término.
É no Almanaque de 1907, anterior a publicação de Júlia l. de Almeida, que encontramos
o texto “A Tres Julias”, de Lúcio Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de
Letras, datado em março de 1897, no mesmo ano de fundação da Academia, da qual Júlia Lopes
de Almeida fazia parte com outros intelectuais da época, mas teve seu nome preterido por ser
mulher, ocupando sua vaga, seu marido, o poeta Filinto de Almeida.
O texto, que “homenageia” Júlia Lopes de Almeida, Julia Cortines e Francisca Júlia,
descortina o olhar masculino em relação às mulheres escritoras: “[...] observemos que há nas
três uma feição commum – a índole máscula de seu talento. E’ observação antiga que em cada
escriptora perde a humanidade uma mulher” (Almanaque Brasileiro Garnier para 1907, p.285).
Faz elogios à escritora, e ao seu Livro das Noivas, como prova de “perfeita mãe de família”.E
retorna ao final da apresentação: “Disse, porém, e mantenho, que as tres Julias, se assemelham
profundamente pela feição varonil do seu espírito” (ibidem).
Lúcio Mendonça compara as escritoras: “Das tres, a que tem conquistado mais vasta
reputação literária é a prosadora, é Julia Lopes de Almeida. Também é a mais edosa das três e a
que tem mais produzido” ( Almanaque Brasileiro Garnier para 1907, p.286), e continua seu
texto,com uma crítica literária de parte das obras de Júlia para justificar, finalmente, a
exclusãode Júlia L. de Almeida e das mulheres da Academia:

Para concluir, uma nota de tristeza. Na fundação da Academia de Letras, era idéia de
alguns de nós, como Valentim Magalhães e Filinto de Almeida, admittirmos a gente do
outro sexo; mas a idéia chaiu, vivamente combatida por outros, irreductiveis inimigos
das machonas, segundo a brutal denominação de um nosso ilustre confrade, cujo
desembaraço lhe rendeu dissabores que conhecem, Com tal exclusão, ficamos
inhibidos de offerecer a espírito tão firmemente literarios como das três Julias o
scenário em que podiam brilhar a toda luz”(Almanaque Brasileiro Garnier para 1907,
p. 286).

No discurso de recepção da acadêmica Dinah Silveira de Queiroz, proferido por


Raymundo Magalhães Júnior, em abril de 1981, o acadêmico descreve parte do percurso e
conquista das mulheres no século XIX, com significativas referências a mulheres ilustres, entre
elas, Nísia Floresta, referendada em texto de Machado de Assis, na década de 1860, para, depois
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160

,em minucioso resgate, descrever a exclusão de Júlia Lopes de Almeida, com citações do artigo
de Lúcio Mendonça publicado em O Estado de São Paulo, em 1896,onde consta o nome de
Júlia Lopes de Almeida como futura ocupante de uma vaga entre os futuros fundadores da
Academia Brasileira de Letras,e a menção do nome de Francisca Júlia como acadêmica
correspondente.Alguns trechos do texto “A Tres Júlias” também corroboram esta descrição.
No mesmo discurso, em referência às mulheres escritoras e a Academia, outro nome se
destaca, Amélia Carolina de Freitas Bevilaqua, primeira mulher a se candidatarà Academia
Brasileira de Letras, em 1930.
Primeira e única mulher a estrear no Almanaque Garnier, em 1903, com seu texto em
prosa, “Para o álbum de Florisa”, Amélia Carolina de Freitas Beviláqua (1860-1946) foi
também sua maior colaboradora.
Ela nasce em Jurumenha, Piauí. Filha de um Juiz de Direito, passa pelo Maranhão e
termina seus estudos em Recife, onde casa, em1883, com o jurista Clóvis Beviláqua, “[...]
discípulo de Tobias Barreto e um dos famosos representantes da Escola do Recife e sua filosofia
positivista” (COELHO, 2002: 47), Clóvis Beviláqua foi seu grande incentivador. Amélia
Beviláqua teve seus textos publicados na imprensa do Recife, São Paulo, Teresina e Rio de
Janeiro.
Em 1902, estreia com um livro de contos, Alcione. No mesmo ano, com outras
intelectuais, passa a integrar a redação e a dirigir O Lyro, em Recife, primeira revista feminina
no nordeste. Segundo Algemira Mendes, estudiosa da obra Amélia, o periódico “[...] defendia a
educação das mulheres e a igualdade de direitos [...]”, sob a direção de Amélia, mas, com a
colaboração estreita de Úrsula Garcia, sua “redatora-secretária”, circulou por mais de dois anos
(MENDES, in REIS e BEVILAQUA: 2007, p.157).
Entre as colaboradoras da revista, Ana Nogueira (Pernanbuco), Alba Valdez (Ceará),
Francisca Isidora (Pernambuco), Edwiges de Sá Pereira (Pernambuco), Maria Clara da Cunha
Santa (Rio de Janeiro), Rosália Sandoval (Alagoas), Inês Sabino (Bahia), além de outras que
omitimos aqui.
Segundo, ainda, Algemira Mendes, “A revista foi importante elo entre as mulheres
intelectuais da época, contribuindo para estabelecer uma fina rede de sororidade”( ibidem ).E,
dentre os nomes citados, confirmamos que Úrsula Garcia, Rosália Sandoval e Inês Sabino
também participam do Almanaque Garnier e do Novo Almanaque de Lembranças Luso-
Brasileiro.
Amélia Beviláqua escreveu crônicas, ensaios, contos, poesias e romances, dentre os
quais, Através davida, editado pela Livraria Garnier, em 1906. A secção de colaboradores do

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Almanaque Garnier,de 1905, trouxe sua fotografia, acompanhada por uma biografia escrita por
Laudelino Freire, e também anunciava o romance que se encontrava no prelo.
Outros romances, como Silhouettes (1906), Vesta (1908) e Angústia (1913),pertencem a
este período, em que ela colabora no Almanaque, além de outras publicações, como Aspectos
(1905); Instrução e Educação na Infância (1906) e Literatura e Direito (1907).
Em 1911, Amélia Beviláqua, junto como marido, funda a revista Ciências e Letras,
Literatura e Direito,no Rio de Janeiro.
Em sua última colaboração para o Almanaque de 1914, escreveu “Reminiscências”,
artigo dedicado a poeta Úrsula Garcia,amiga e companheira de redação, um relato sobre suas
impressões e saudades. E menciona a coincidência de encontrar no Almanach das Senhoras de
1905, menos de um mês após o falecimento de Úrsula Garcia,em 1905, um poema que a amiga
dedicou a ela, por ocasião de seu aniversário. E conclui o artigo com a reprodução deste poema
da amiga.
Amélia Beviláquaocupa acadeira 23 da Academia Piauiense de Letras, em 1921,é
patrona da cadeira 48 da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, no Ceará.Em 1930,
através da apresentação de uma carta, elas solicitou à Academia Brasileira de Letras, a aceitação
de sua candidatura, para concorrer a uma vaga naquela instituição. Este feito gerou grande
polêmica entre os acadêmicos, os quais, a partir do regimento institucional da Casa ,se dividiram
entre os que interpretavam que apenas os literatos do sexo masculino poderiam se candidatar e
aqueles que apoiavam a inclusão de mulheres, desde que possuíssem obras de valor literário.E
este debate prosseguiu por algumas sessões, com o pedido de reconsideração de Laudelino
Freire e inclusão de um requerimento com de dois pareces jurídicos, inclusive de Clóvis
Beviláqua.
Em apoio a Amélia Clóvis Beviláqua, se desliga da Academia Brasileira de Letras. Autor
do Código Civil Brasileiro, seu artigo de estreia no Almanaque Garnier,em 1903, se intitulava
“A mulher perante o projeto do código civil brasileiro”.
O episódio e a insatisfação gerada pela postura misógina dos imortais foram descritos
por Amélia Beviláqua em sua obra A Academia Brasileira de Letras, publicada em 1930.
Precursoras de uma batalha que seria vencida apenas em 1977, com a eleição de Rachel
de Queiroz, primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, Júlia
Lopes de Almeida e Amélia Carolina de Freitas Bevilaqua atravessaram o tempo, para nos
encontrar no século XXI, quando a Academia Brasileira de Letras, através da Ana Maria
Machado, iniciou um ciclo de conferências, denominado “Cadeira 41”, em julho do corrente
ano, referindo-se ao fato de a Academia ter 40 cadeiras e aos autores que deveriam ter entrado

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na ABL. Júlia L. de Almeida foi escolhida como tema de abertura deste ciclo, com a conferência
de Luiz Ruffato: “Todos contra Júlia”. Vamos aguardar por Amélia Bevilaqua....

REFERÊNCIAS

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras (1711-2001). São Paulo:
Escrituras Editora, 2002.

DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes literários da República: história e identidade nacional no


Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

MENDES, Algemira Macêdo. Tese de Doutorado. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua
na história da literatura brasileira: representações, imagens e memórias nos séculos XIX e
XX. Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Porto Alegre (RS), 2006.
Disponível em: http://tede.pucrs.br/tde_arquivos/16/TDE-2007-06-20T155835Z-
693/Publico/390035_p1_282.pdf

MENDONÇA, Lúcio. “As Tres Julias”. Almanaque Brasileiro Garnier para 1907. Anno V1.
Rio de Janeiro, p.285-286.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=348449&pasta=ano%20190&pesq=As%2
0Tres%20julias

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LUTAS DO CORAÇÃO DE INÊS SABINO: A INSERÇÃO FEMININA NA TEIA


LITERÁRIA BRASILEIRA

Mestranda Antonia Rosane Pereira Lima (UEFS)


E-mail: antoniarosane@hotmail.com
Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho (UEFS)
adeitalopinho@gmail.com

Durante muito tempo a mulher ficou de fora dos espaços e representações sociais que
sempre fizeram parte da rotina masculina, fato que tornaram necessárias suas lutas por igualdade
de direitos ao redor do mundo, sendo o acesso à educação e aos direitos políticos alguns dos
seus principais objetivos. Em relação ao Ocidente, ocorreram diversas mudanças nas
organizações sociais, e a Revolução Francesa, no século XVIII, foi um desses episódios, visto
que ela contribuiu para a formação de uma nova sociedade, conforme aponta Ívia Alves (2012),
cujos padrões burgueses eram disseminados, juntamente com a difusão de instituições como a
família constituindo unidade central na sociedade. Nesse contexto, a literatura também sofreu
influências, abandonando os padrões tradicionais cuja inspiração advinha da Grécia e de Roma,
surgindo em cena o romance, gênero que, posteriormente, alcançou popularidade entre os
leitores, principalmente por tratar os temas de maneira individualizada, o que tornava mais
próxima a relação obra-leitor.
Conforme esclarece Norma Telles (2012, p. 401), o romance foi um dos principais
produtos culturais responsáveis pela “cristalização da sociedade moderna”, tendo em vista que,
através das personagens, os leitores tomavam conhecimento dos modos de vida e costumes
burgueses, sendo sua ascensão ocorrida no século XIX.

O século XIX é o século do romance. Na Inglaterra, no século XVIII, surge o romance


moderno coincidindo com a ascensão da sociedade burguesa. Enquanto as formas de
ficção anteriores tinham um direcionamento coletivo, o romance substitui essa tradição
por uma orientação individualista e original (TELLES, 2012, p. 402).

Contudo, cabe salientar que, mesmo estando vigentes valores de liberdade e igualdade,
estes não eram alcançados pela maioria das mulheres em suas expressões artísticas. Para driblar
esse empecilho, elas deveriam alcançar, antes de tudo, acesso à escolarização, já que esta foi
uma atividade por muito tempo negada a elas. E essa situação se mantinha no século ainda no
século XIX.

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No Brasil, as transformações sociais foram impulsionadas, sobretudo, pela chegada da


família Real portuguesa, que possibilitou mudanças nas formas de vida das mulheres
oitocentistas, principalmente, visto que sua educação era baseada nos conhecimentos
domésticos, e esse cenário foi sendo aos poucos modificado, conforme afirma Eliane
Vasconcellos (2003). Muitas mulheres passaram a frequentar os eventos sociais, a terem uma
educação mais ampla, se comparada ao modelo anterior em que eram submetidas.
Assim, superando a falta de instrução, muitas mulheres inseriram-se no cenário de
escrita literária, porém suas obras não obtinham o reconhecimento que era dado àquelas escritas
por homens. Além disso, era difícil para elas auferirem rendimentos com a comercialização de
seus escritos, fato que obrigou-as, na maioria das vezes, a assinarem suas produções utilizando
pseudônimos masculinos, e assim escaparem da censura, conforme afirma Zilda Freitas (2002).
Destarte, para driblar tal empecilho, muitas obras continham em suas capas ou prefácios a
descrição de que a renda oriunda da venda dos livros destinar-se-ia a obras de caridade
(ALVES, 2005).
Em relação à circulação de obras publicadas e assinadas com o próprio nome, Sinéia
Silveira (2014) aponta que, em pesquisas voltadas para as preferências entre os leitores da
época, não se notava a indicação de um livro sequer de autoria feminina. Tal fato é
compreendido se for levado em conta que o ambiente artístico era dominado pelos intelectuais
do sexo masculino, e, sendo assim, as obras escritas por mulheres eram consideradas sem muito
valor, fato que contribuiu para que tais escritos passassem “despercebidos” pela maioria dos
leitores da época.
Devido a esses motivos, diversos estudos demonstram uma quantidade imensa de textos
que ficaram esquecidos pela historiografia literária brasileira, o que reforça a exclusão em que
as mulheres eram submetidas, tendo em vista que, mesmo conseguindo escrever seus textos e
publicá-los, sua circulação era comprometida. Nesse sentido, um trabalho muito importante de
resgate de nomes e obras, em sua maioria desconhecidos do grande público, é a antologia
organizada por Zahidé Lupinacci Muzart, intitulada Escritoras Brasileiras do Século XIX, que já
conta com alguns volumes.
Dentre as inúmeras mulheres que figuram como escritoras listadas na respectiva
antologia, encontra-se Maria Inês Sabino Pinho Maia (assinava suas obras como Inês Sabino),
nascida em Salvador, em 1853, falecida em 1911. Exerceu as atividades de romancista, poetisa,
biógrafa, memorialística e contista. Dentre suas obras de maior destaque, encontra-se uma
coletânea de biografias, Mulheres ilustres do Brasil (1899), cujo conteúdo constitui-se de
histórias de vida de mulheres que se destacaram no país, seja por atos em favor da nação, seja
através da literatura. Nele, a autora aponta os motivos de tê-lo escrito:
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Eu quero resuscitar, no presente, as mulheres do passado que jazem obscuras, devendo


ellas encher-nos de desvanecimento, por ver que bem raramente na humanidade, se
encontrará tanta aptidão civica presa aos fastos da historia.
Faço, outrossim, salientar as que mais sobresahiram nas letras, a fim de que se conheça
que houve alguem que amou a arte e viveu pelo talento, tirando-as, como as outras, da
barbaria do esquecimento, para fazel-as surgir, como merecem, á tona da celebridade
(SABINO, 1996, p. IX, grafia original).

Tal obra contribui para os estudos relacionados à escrita de autoria feminina, pois elenca
diversos nomes de brasileiras que se destacaram e, sem esse trabalho de preservação da
memória literária e histórica, muitas informações não seriam acessíveis aos estudiosos de hoje,
em relação a essas mulheres. Conforme se depreende a partir do estudo de Muzart (2000),
Sabino recebeu do pai excelente educação, fato incomum para as mulheres da época, tendo
estudado inclusive na Inglaterra, onde fora para aperfeiçoar-se nas letras. Porém sua estadia por
lá durou pouco, devido à morte de seu progenitor. Preocupava-se em retratar a figura feminina e
seus dramas psicológicos, além de se engajar pela luta em favor dos indivíduos marginalizados
social e economicamente, principalmente dos escravos. Prova disso é que seu livro de estreia na
literatura, intitulado Aves libertas, lançado em 1887, constitui-se como uma obra de poesia de
cunho abolicionista.
Em prosa publicou os livros: Contos e lapidações (1891), composto por contos e
poemas, e Lutas do coração (1898), romance. Em relação ao primeiro, Sabino se autoprefacia,
dispensando a necessidade de algum homem apresentá-lo aos leitores. Intitulado A quem ler, ela
justifica o fato de não haver prefácio escrito por outra pessoa como um receio de incomodar
alguém para que escrevesse sobre a sua “modesta individualidade litteraria meia duzia de linhas
de recommendação sómente por defencia a ser eu uma senhora, apresento-me só” (SABINO,
1891, p. 1, grafia original).
Alegando receio em lançar ao público seu livro de contos e poesia, de maneira modesta,
adjetiva seus textos como “pobres [...], simples, modestos, despretensiosos” e afirma que eles
foram moldados a partir de um estilo trivial, alguns um pouco humorísticos, outros compostos
de reflexões e descrições de costumes da classe operária e campestre, o que ressalta sua
consciência em relação ao ato de escrever, cuja razão consistia, conforme se percebe, em fazer
um retrato do Brasil oitocentista à luz de figuras marginalizadas da sociedade. Consciente de
que era pouco conhecida no Rio de Janeiro (uma das cidades onde residiu), Sabino escreve:

Sou ainda pouco conhecida na litteratura d’esta capital, cuja Imprensa tem publicado
apenas um ou outro trabalho meu, devendo aliás á Gazeta de Notícias a honra da
publicação da minha Andaluzia com que estreei aqui, escrevendo uma ou outra vez n’O
Paiz que noticiou o livro que agora apresento, e transcreveo-lhe um topico e em outros
jornaes que embora benignos para com a minha humilde personalidade, comtudo não

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
166

me conhecem bem para fundar sobre mim um juízo decidido (SABINO, 1996, p. 2-3,
grafia original).

Desse modo, apesar de sua modéstia em julgar-se uma humilde escritora, sua produção
jornalística, segundo Susan Quinlan (1998), foi variada e compreendeu os estados de
Pernambuco, São Paulo, Alagoas e Rio de Janeiro, tendo publicado inclusive em Portugal. Essa
experiência de morar em diversas capitais brasileiras e cidades portuguesas é apontada pela
professora norteamericana como razão para a aquisição de grande sensibilidade política e serviu
de informação para a construção de Mulheres ilustres do Brasil, bem como da investigação
psicológica que se empenha em Lutas do coração (que será analisado mais adiante). Nas
palavras de Maria da Conceição P. Araujo (2008):

Ignez Sabino foi uma das escritoras brasileiras que mais publicou na imprensa do
século XIX no Brasil: Alagoas (A União Acadêmica); Bahia (Diário da Bahia);
Pernambuco (Revista da Sociedade Ave Libertas do Recife); Rio Grande do Sul
(Corymbo e Escrínio); Rio de Janeiro (Almanaque Brasileiro Garnier, Echo das
Damas, A Estação, Jornal do Brasil, A Semana, O Tempo); São Paulo (A Mensageira).
Fundou, juntamente com Josefina Álvares de Azevedo, o jornal A Família (RJ).

Em Lutas do coração, Inês Sabino apresenta, a partir de uma rica descrição,


características do Brasil em fins do século XIX, com suas ricas paisagens e cenários urbanos do
Rio de Janeiro, em meio às mudanças que os acontecimentos políticos (Proclamação da
República, abolição da escravatura) causaram na vida das pessoas residentes no país. A forma
como tais mudanças refletiam na vida das personagens pode ser notada no trecho a seguir em
que Angelina conversa com a mãe, que sustenta o título de baronesa de Santa Júlia, e é possível
notar uma preocupação com o fim da Monarquia e a consequente perda de certos privilégios:

Desde a implantação da República deixou a baronesa de freqüentar o Cassino e nunca


mais aceitou convite para qualquer festa, a não ser que fosse de pessoa muito sua
íntima.
[...]
– Precisamos, mamã – dizia Angelina um tanto convencida, – aceitar as coisas como
elas são... Se já não temos império, o que devemos fazer? Suicidar-nos?
A fidalga cerrava os olhos, não deixando passar a frase sem um protesto, e soltava um
suspiro que se perdia na atmosfera, seguindo para a Europa (SABINO, 1999, p. 117).

Em relação ao enredo, o romance tem sua narrativa centrada em três personagens


femininas que se apaixonam pelo mesmo homem, Hermano Guimarães, fato que evidencia a
fuga aos modelos convencionais de narrativas, com tramas desenvolvendo-se em torno de um
triângulo amoroso, ou até mesmo com a ausência dele. Conforme Quinlan (1999), essa espécie
de quarteto amoroso serve para a autora investigar o universo psicológico das figuras femininas

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167

em relação ao seus relacionamentos individuais com Hermano. Aborda-se, nessa obra, as


convenções que norteiam o casamento na sociedade brasileira, sob a ótica feminina.

O romance Lutas do coração, de Inês Sabino, faz uma análise psicológica da mulher
brasileira, que atravessa as classes sociais. Enfoca os efeitos freqüentemente severos
decorrentes da ausência de direitos políticos, econômicos e sociais da mulher numa
sociedade classista (QUINLAN, 1999, p. 7).
Lutas do coração concretiza a intenção de Inês Sabino de examinar a mulher brasileira
à luz de sua contribuição na formação da sociedade. Apesar de manter a atitude
essencialista típica de sua época [...], demonstra ousadia em enfrentar assuntos
escatológicos tanto em ficção quanto na vida real. E esta faceta se revela das mais
importantes em sua contribuição às letras brasileiras: sua visão franca e sensível em
relação às possíveis razões pelas quais certas mulheres se mostram incapazes de se
enquadrar nas normas sociais (QUINLAN, 1999, p. 12).

A professora norteamericana enfatiza que a importância desse romance se dá não porque


a autora atribua tais desvios em relação às normas de conduta a problemas de ordem histórica ou
genética, mas àqueles referentes ao meio social e à cultura em que as mulheres estão inseridas.
Nessa mesma linha, Silveira (2014) afirma que, apesar de o contexto da obra ser retratado por
um ambiente patriarcalista, ligado a relações socioculturais que não possibilitavam, muitas
vezes, a emancipação feminina, há no romance uma espécie de protagonismo de forma
implícita, de maneira a representar, a partir da visão feminina, a mulher heterogênea, isto é,
diferente da homogeneização com que eram abordadas as personagens femininas nas obras de
autores masculinos.
Angelina é a primeira personagem feminina que surge na narrativa, é prima de Hermano
e filha única do barão de Santa Júlia. É caracterizada como a menina virgem educada para o
casamento: “[...] sobressaía na sua simplicidade de trajar e encantava pela reconhecida bondade
angélica e singeleza do todo” (SABINO, 1999, p. 127). É apresentada como uma menina boa e
alegre que encantava a vida de seus pais por seu jeito de ser. Sua instrução baseava-se nas
prendas domésticas, música e catecismo e era determinada pelo pai, que selecionava aquilo que
ela poderia ter acesso, como se vê no excerto a seguir:

Com referência à educação, não a deram à filha nem muito à antiga, nem muito à
moderna [...]. Era afável, muito alegre mesmo e educada com suficiente instrução para
não parecer tola. O barão não quis que ela tivesse mais estudos pelo motivo de não
gostar de mulheres eruditas (SABINO, 1999, p. 117).

Já Matilde é uma figura diferente de Angelina, por não se adequar aos modelos sociais
os quais lhe eram impostos. Casada com seu irmão adotivo, não se comporta conforme as regras
sociais impõem às mulheres. “Vaidosa, cheia de si, enamorada da sua pessoa, da sua voz,
egoísta, julgava todas as outras pessoas abaixo dos seus merecimentos” (SABINO, 1999, p.

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168

127). Como não queria abrir mão da vida de festas e de sua beleza, recusa a maternidade, o que
entristece seu esposo que sonha com um herdeiro. Nas palavras de Susan Quinlan (1999, p. 18):

Para a autora, Matilde representa a mulher cujo erro é duplo: não escolhe uma carreira
nem a maternidade. Como logo se verá, Matilde representará a frustração de mulheres
que não querem agir construtivamente. […] Sabino opta por demonstrar o destino de
mulheres que não tomam a iniciativa em sua própria vida. Matilde se torna vazia e
narcisista. Menospreza as qualidades sólidas e constantes do marido, não se prestando a
concretizar seu desejo de paternidade.

A rotina dela baseava-se em frequentar festas, apresentar-se em saraus nas reuniões da


família (possuía dotes para a música), além de realizar visitas a cartomantes, na tentativa de
saber sobre seu destino. Ao saber que Angelina interessava-se por Hermano passou a desejá-lo
também, mais por disputa do que por paixão. Após ter suas tentativas frustradas em conquistá-
lo, é acometida por tuberculose e morre nos braços dele, depois de sua última investida. O fim
trágico de Matilde representa uma espécie de castigo por ela não ter seguido os ditames da
sociedade.
A terceira e última personagem que figura o quarteto amoroso na trama é Ofélia.
Inicialmente chamava-se Antonieta, era pertencente a família de poucas posses e foi levada
pelas família a contrair matrimônio com o rico comendador Bernardes, homem bem mais velho
que ela. Em seu casamento, a contragosto, o narrador descreve a cena atribuindo às
conveniências sociais a responsabilidade pelo ato infeliz que ela estava a cometer, conforme se
observa a seguir:

E a alma, ao mando do império psicológico, emudeceria, em razão da responsabilidade


assumida ao ceder às leis das exigências sociais, calando-se, empedernindo-se,
sepultando-se no pélago das conveniências, quando não o mundo, a moral, a família, os
filhos, o marido, a apontariam como adúltera, como uma barregã, desbragadamente
ruim e perjura, se destruísse com o menor gesto ou ação o concerto que à roda de si
havia se formado. [...]
Ao dar o sim sacramental, chorou. Casava sem amor, somente para satisfazer a
família... (SABINO, 1999, p. 101).

O casamento sem amor foi apenas um dos muitos percalços que ela ainda teria que
superar. Foi abandonada grávida pelo esposo, após este contrair falência, conheceu um rico
inglês que a levou para a Europa, tornando-a única herdeira após seu falecimento. Ao retornar
ao Brasil resolveu abandonar sua identidade de Antonieta e assumir outro nome, e,
consequentemente, outra história de vida. Ela sabia que a sociedade não a aceitaria por ser uma
mulher separada. Com a nova identidade, abriu as portas de sua casa, no Rio de Janeiro,
realizando saraus e conversações sobre diversos assuntos pertinentes à época. Ela também se
envolveu com Hermano, tiveram um amor correspondido, mas foram impedidos de assumirem
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
169

um romance, visto que o casamento entre ele e Angelina já havia sido arranjado pela família da
noiva.
O último retorno de Ofélia à Europa representa uma nova etapa em sua vida e outra
forma de abandonar aquilo que não lhe servia mais. Encontrando-se grávida de Hermano e sem
poder constituir família com ele, viu-se novamente diante da necessidade de despedir-se de uma
vida construída no Brasil para tornar-se senhora do seu próprio destino. Essa personagem retrata
a busca por uma identidade própria, diferente daquela em que a sociedade esperava que a
mulher fosse, e, apesar de, a princípio, ter se casado contra sua vontade, ela adquiriu consciência
de que deveria buscar sua própria satisfação, em detrimento dos modelos pré-estabelecidos de
conduta feminina em que deviria se adaptar.
Em vista disso, com esse romance Sabino aborda mais intimamente a identidade
feminina para além da visão simplista e homogênea em que era apresentada a mulher no
romance oitocentista. De acordo com Quinlan (1999), apesar de Sabino, em Lutas do coração,
tratar de assuntos tradicionais como os casamentos por conveniência, os acordos políticos e
profissionais sendo feitos única e exclusivamente pelos homens, dentre outros temas, ela foi
além e abordou assuntos mais voltados para o universo feminino, como a dificuldade em se
enquadrar nos modelos previamente elaborados, a frustração por não seguir os instintos e dons,
por não se inserir profissionalmente na sociedade, por ter que constituir família quando queria se
ser livre.
Inês Sabino destaca-se, em Lutas do coração, por ter construído suas personagens de
modo que representam as diversas faces femininas, desde mulheres de comportamentos
tradicionais – que se enquadram aos padrões sociais – àquelas que conseguem se desprender das
normas de conduta. Desse modo, Angelina foi construída de forma a caracterizar o primeiro
grupo descrito, da mulher bem vista pela sociedade, filha de família tradicional, abastada,
educada sob os moldes patriarcalistas. Matilde representa aquela que, embora seja dotada de
senso crítico e certo posicionamento contrário a algumas regras, não consegue transpor as
barreiras impostas socialmente, tornando-se frustrada e doente e tem um fim trágico. Já Ofélia
constitui-se como a última instância, no romance, de emancipação dos padrões sociais que tanto
restringiam as mulheres nele retratadas.
Tal escritora, que já conta com uma importante fortuna crítica a respeito de sua obra,
merece tê-la mais difundida e pesquisada, por contribuir para a literatura brasileira ao apresentar
diversas temáticas importantes e ter colaborado para que muitas mulheres não ficassem
esquecidas (ao publicar a biografia Mulheres Illustres do Brazil) na história do país, bem como
por impulsionar a mulher oitocentista a reivindicar seus direitos por igualdade em relação aos
homens.
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Referências Bibliográficas

ALVES, Ivia. Suaves, mas resistentes. In: CUNHA, Helena Parente (org.). Desafiando o
Cânone (2): ecos de vozes femininas na literatura brasileira do século XIX. Rio de Janeiro:
Faculdade de Letras da UFRJ, 2001.

__________. Interfaces: ensaios críticos sobre escritoras. Ilhéus: Editus, 2005.

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VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
171

JACINTA PASSOS E INGRID JONKER: SOLIDARIEDADES POÉTICA,


BIOGRÁFICA E POLÍTICA

Me. Beatriz Azevedo da Silva (UFBA)


E-mail: biattriz23@hotmail.com

A poetisa, periodista e militante política Jacinta Passos (1914-1973) foi um expressivo


nome entre os anos de 1940 e 1950 na Bahia. Contribuiu de forma significativa para a literatura
produzida por mulheres bem como para a cobertura da participação das mesmas na Segunda
Guerra Mundial no jornal O Imparcial (1918- 1947) e também com a atuação política de
esquerda no referido estado no jornal O Momento (1945-1957). Pretende-se aqui estabelecer
então, uma relação de diálogos na literatura e na vida entre a nossa poetisa e a sul-africana
Ingrid Jonker (1933-1965).
Esta última foi também uma mulher importante para a poesia da África do Sul em um
período político e social extremamente cruel por conta do apartheid (1948-1994), cuja trajetória
pessoal se apresentou de forma bastante conturbada, culminando com seu suicídio em 1965.
Para proceder à comparação das trajetórias de vida e literárias, estabeleceremos aqui
alguns pontos de convergência entre as referidas escritoras e, além disto, demonstraremos, a
partir de alguns de seus poemas, a luta pela criação de uma sociedade mais justa, uma vez que
ambas entenderam o fazer literário como uma “plataforma” de defesa de seus ideais políticos.
Embora tendo atuado em contextos históricos diferentes — Passos trabalhou em meio à
cobertura da Segunda Guerra Mundial, e Jonker, por seu turno, via-se em meio à sociedade sul-
africana dos anos 1950, cuja maior chaga foi o regime que separava negros e brancos―, estas
escritoras deixaram um importante legado a ser ainda analisado.
A escritora Ingrid Jonker (1933-1965) nasceu em uma fazenda na zona rural de Douglas,
na Cidade do Cabo e desde muito jovem começou sua trajetória na poesia. Segundo VILJOEN
(2012), Jonker começa a escrever poemas aos seis anos, cuja primeira coletânea intitulada
Depois do Verão foi publicada em 1946, quando tinha apenas treze. “Além de dois volumes de
poesia publicados em sua vida e um volume publicado a título póstumo, deixou apenas algumas histórias
curtas, uma peça de teatro e uma dispersão de outros textos.”68

Assim como Passos, Jonker passou por reveses em várias fases de sua vida, começando
com a separação de seus pais, seus turbulentos relacionamentos afetivos na fase adulta, o

68
VILJOEN, Louise. Ingrid Jonker: Poet under apartheid. Ohio University Press. 2012.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
172

alcoolismo e um dado que sua biógrafa sinaliza como um dos mais marcantes: a rejeição de sua
obra por parte de seu pai, Abraham Jonker, que foi um dos principais membros do Partido
Nacional, responsável pelo Ministério da Cultura e pela censura de obras diversas na África do
Sul naquele período. A poetisa fez também parte de um círculo de escritores e amigos
considerados boêmios, o que contribuiu para sua inserção no meio literário:

Como parte de um círculo boêmio de amigos com valores liberais na Cidade do


Cabo, ela se identificou com o ideal de uma sociedade em que a liberdade de
expressão e a associação foram reconhecidas. Sua vida também estava
estreitamente entrelaçada com o trabalho dos Sestigers, que estavam ocupados
reescrevendo a história e a literatura do Afrikaner, enfrentando o
estabelecimento político e literário do contexto histórico. (VILJOEN, 2012, p.
49).

Em 1953 é publicado Fumaça e Ocre, em que é possível verificar que a poetisa lança
mão do verso livre, sendo aclamada pela crítica especializada. Esta coletânea, escrita
originalmente em africaner69, foi traduzida para o inglês e mais recentemente para o espanhol
pelo escritor Agustin B. Sequeros70. É perceptível em um dos poemas, que a escritora possuía
um lirismo libertário, desnudo de preciosismo:

Te revejo71

Te revejo sem começo nem fim


rever seu corpo
o dia tem uma sombra estreita
cruzes amarelas e noite
a paisagem não conta
e a humanidade é uma fileira de velas
enquanto eu te vejo
com os meus seios
que imitam a cavidade de suas mãos.
Ingrid Jonker (1963)72

Neste exemplar é perceptível a maneira como o eu lírico refere-se ao seu par, de forma
sensual, em que se tem a noção da claridade da humanidade “lá fora” e das sombras que
compõem a paisagem daquele momento, não importando nada, apenas as sensações. A poesia
de Jonker tem bastante em comum com a de Passos, uma vez que ambas escritas trazem ao
leitor uma linguagem simples sem perder o lirismo, e, neste caso, um apelo ao aspecto sensorial,
69
Pertencente ou relativo às pessoas brancas da áfrica do Sul, cujos ancestrais eram holandeses.
70
Licenciado em Letras, professor de língua e cultura espanholas no antigo Departamento de Estudos de Literatura
e Língua da Espanha e América Latina, foi também o tradutor de Fumo e Ocre para o espanhol.
71
Este poema foi traduzido do espanhol, cujo título é Te repasso. Foi publicado no livro Humo Y Ocre, uma
tradução do africáner, do escritor Agustín B. Sequeros em 2015.
72
Tradução do livro Humo y Ocre, de Augustín B. Sequeros.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
173

à referência lúcida e ao mesmo tempo onírica em relação ao par que a acompanha, o que será
possível identificar em um poema de Jacinta Passos que será visto posteriormente.
Um dos poemas mais significativos, extremamente sensível e ao mesmo tempo forte, foi
escrito por Jonker após presenciar o assassinato brutal de uma criança negra por um soldado do
Exército Nacional em Nyanga, na Cidade do Cabo. A poetisa, segundo sua biógrafa, Louise
Viljoen (2012), ficou perplexa, profundamente tocada com tamanha insensatez do regime
político de segregação racial e escreve então,

A criança morta de Nyanga


A criança não está morta!
Ela levanta os punhos junto à sua mãe.
Quem grita África ! Brada o anseio da liberdade e da estepe,
dos corações entre cordões de isolamento.

A criança levanta os punhos junto ao seu pai.


Na marcha das gerações.
Quem grita África! Brada o anseio da justiça e do sangue,
nas ruas, com o orgulho em prontidão para luta.

A criança não está morta!


Não em Langa, nem em Nyanga
Não em Orlando, nem em Sharpeville
Nem na delegacia de polícia em Filipos,
Onde jaz com uma bala no cérebro.

A criança é a sombra escura dos soldados


em prontidão com fuzis sarracenos e cassetetes
A criança está presente em todas as assembleias e tribunais
Surge aos pares, nas janelas das casas e nos corações das mães
Aquela criança, que só queria brincar sob o sol de Nyanga, está em toda parte!

Tornou-se um homem que marcha por toda a África


O filho crescido, um gigante que atravessa o mundo
Sem dar um só passo.

Em inglês o poema está sob o título The dead Child of Nyanga,e é seu escrito mais
conhecido mundialmente. O também ativista sul-afriacano Nelson Mandela (1918-2913) leu
este poema quando da abertura do primeiro parlamento democrático daquele país em 1994,
quando inicia o processo de redemocratização do país.
Percebe-se logo na primeira estrofe que o eu lírico traz uma assertiva: “A criança não
está morta!”, ou seja, há ali um desejo muito forte de transformação da morte física em luta:
“Ela levanta os punhos junto à sua mãe”/Quem grita África!”, numa tentativa de resistir ao
sistema separatista que causa tanta dor e sofrimento ao povo africano, que não se cansa, mesmo
diante da morte de um ser inocente.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
174

O poema apresenta uma simbologia forte, “a criança não está morta”, como os olhos
testemunham, mas está sim viva no sentimento de justiça junto a toda uma nação: “A criança
levanta os punhos junto ao seu pai /[...] Brada o anseio de justiça e do sangue nas ruas/com
orgulho em prontidão para a luta”. Há a perda da inocência desta criança, à qual é atribuído
simbolicamente a função de um adulto: lutar pela sua liberdade e de seu povo, tornando-se
assim, também um soldado.
Este “retrato” que Ingrid Jonker faz do contexto histórico e político em que viveu, traz
ao leitor uma potência através do lirismo em torno da luta por uma sociedade em que negros e
brancos vivessem com os mesmos direitos e deveres, o que não pôde testemunhar em vida, já
que se suicidou aos 32 anos.
São vários os pontos em comum entre Jacinta Passos e Ingrid Jonker, mas o que mais as
aproxima seja talvez a entrega e a intensidade de suas existências; e a literatura que advém de
tamanha intensidade deixou marcas importantes a serem ainda rastreadas.
Percebe-se que o caminho percorrido por estas poetisas foi, muitas vezes, entremeado
pelas mesmas dores e desafios, elas, por exemplo, tiveram episódios de internações
psiquiátricas73, por sofrerem de um mal que seria equivalente hoje ao transtorno bipolar, mas
que à época, a ciência médica não apresentava um tratamento humanitário, nem medicamentoso,
muito menos de acompanhamento psicoterápico.
Propomos um estudo que entende que a prática literária destas poetisas se relaciona com
o que Silviano Santiago (2002) chama de “literatura anfíbia”, ou seja, o ofício do escritor (a)
não se descola de suas práticas políticas, ainda que a literatura em si não esteja restrita a este
tipo de posicionamento. Alguns escritores podem, todavia, transcender a ideia “da arte pela arte”
e fazer com que sua obra adquira uma face mais voltada para a realidade que o circunda, “para
seu tempo e o seu lugar”, como Machado de Assis nos alertava.

A atividade artística do escritor não se descola da sua influência política; a


influência da política sobre o cidadão não se descola da sua atividade artística.
O todo se completa numa forma meio que manca na aparência, apenas na
aparência. (SANTIAGO, 2002, p. 15).

Para Jacinta Passos e Ingrid Jonker, o ofício literário não fora apenas meio de vida ou
meramente um o exercício de um trabalho intelectual sem maiores comprometimentos. Assim

73
Segundo a historiadora Janaína Amado, Jacinta Passos esteve inúmeras vezes em clínicas psiquiátricas. Já a
biógrafa de Ingrid Jonker, Louise Viljoen, coloca que a poetisa sul-africana foi internada apenas uma vez, em 1961.
Este dado, no entanto, não diminui a importância de suas obras em seus contextos: Jacinta Passos, por exemplo,
produzia bastante em seus períodos internada. Conseguiu até a publicação do livro Poemas Políticos (1951) todo
elaborado em um desses momentos de “crise”.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
175

como no poema de Jonker, é possível encontrar na narrativa da autora uma afinidade com as
questões sociais e políticas que só são vistas em escritores que entendem que a literatura está
para além de uma forma de arte, bem como o ser humano estaria para além de sua existência
cotidiana vazia, sem nenhuma expressão de indignação com o mundo à sua volta. Nota-se no
exemplar que segue o compromisso de Jacinta Passos com acontecimentos históricos
importantes em seu tempo:

A guerra

Eu sou a humanidade que sofre.


As minhas raízes profundas mergulham no ventre da terra,
o meu espírito como uma antena prodigiosa domina o espaço e capta
todas as vibrações, as mínimas vibrações trazidas pelos ventos que
sopram de todos os lados.

Eu sou a humanidade que sofre.


Experimento no meu espírito e na minha carne este instante de dor
universal.
Sinto a realidade sangrenta dos campos de guerra, o lívido pavor diante
da morte que ronda sinistra nas grandes aves metálicas, nos monstros de
ferro, nos peixes fantásticos do mar.

Clarões que se abrem, gritos alucinados, balas que silvam, explosão de


bombas, corpos que tombam.
É a trágica destruição do homem pela máquina poderosa que a sua
inteligência criou.

Caminho pelas cidades transformadas em trincheiras.


Choro com as mulheres a saudade dos lares vazios, a perda dos filhos –
o próprio ser mutilado.
Jacinta Passos (1940)

O eu lírico apresenta ao leitor o sofrimento quase universal a - Segunda Guerra Mundial.


“Eu sou a humanidade que sofre /Experimento no meu espírito e na carne este instante de dor
universal”, estes dois versos, trazem a universalidade da dor que várias sociedades no mundo
sofriam naquele momento e, no decorrer do poema, é perceptível a preocupação com esta dor
compartilhada entre muitos, uma preocupação com o coletivo, característica esta que se repete
em outros poemas da escritora. “As grandes aves metálicas” são a imagem das aeronaves
utilizadas para bombardeios; “peixes fantásticos do mar” podem ser lidos como os submarinos,
utilizados, por exemplo, pelas Marinhas Norte-Americana e Soviética.
O seguinte trecho do poema Canção da Partida revela sua lucidez e atenção no tocante à
questão da escravidão no Brasil, já que, quando morava em Cruz das Almas presenciara

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
176

situações análogas à forma como os negros e negras eram tratados durante a vigência oficial do
sistema escravocrata:
[...] -Traga logo o meu cavalo
- Está pronto, meu patrão.
Benedito tem cem anos:
negro duro! cem anos de escravidão.
Cadê Princesa Isabel
que a liberdade inventou?[...].

Passos apresenta em seus escritos uma sensibilidade extrema com questões que eram
injustas, desumanas. Isto, à luz da proposta deste artigo, a torna uma escritora com um
diferencial, característica esta também perceptível em Ingrid Jonker. No trecho seguinte
percebem-se semelhanças na forma de escrita:

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti [...]
Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.

Relâmpago depois repouso


sem memória, noturno.

Aqui também é possível verificar o apelo aos sentidos e o uso de algumas metáforas que
o eu lírico utiliza para referir-se ao seu par: para amá-la, (entendemos aqui que esta é uma voz
feminina), seu parceiro deve despir-se de todo o peso de suas pré-concepções, que entendemos
que estão colocadas como “a crosta feita de escamas de pedra e limo”.
O ato de amor é também um ato de autoproclamação de liberdade: “Agora teu corpo é
fruto/Peixe e pássaro”, os dois se entregam em uma espécie de “dança”, que confere beleza a
este ato de amor, de amar: o corpo do amante agora é “madeira e água deslizante/fuga aí
rija/Cintura de potro bravo”, este é um dos exemplares em que verificamos o diálogo entre

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
177

Jacinta Passos e Ingrid Jonker justamente por este apelo ao universo mais sensorial, que confere
uma atmosfera de sonho.
O resgate de obras produzidas por mulheres tanto na modernidade quanto na
contemporaneidade tem sido um dos principais focos nas áreas de Letras. Isto ocorre porque,
como se constata, os discursos das minorias étnicas, de gênero e raciais estiveram sob a égide do
silenciamento, que ainda é reforçado em nossa história, sendo que, para as mulheres, a esfera
pública lhes fora negada por um longo período:

A invisibilidade das mulheres, segundo esta perspectiva, se deve a que a


ideologia das esferas separadas as definiu como seres exclusivamente privados,
negando assim sua capacidade de participar da vida política. Tão grande tem
sido o poder de poder da ideologia que ainda quando trabalhem ou tenham uma
atuação política, suas atividades são vistas como extraordinárias ou anormais e,
por isso, alheias ao âmbito da política autêntica ou séria. A desvalorização das
atividades da mulher (como fonte de mão-de-obra barata no mercado e de
trabalho livre no lar) desvalorizou também a visão das mulheres como sujeitos
históricos e como agentes de mudança. (SCOTT, 1992, p.48)

Esta invisibilidade ―e a carga simbólica que ela traz consigo ― ainda deixa visíveis
marcas nas sociedades atuais. Resgatar a escrita de mulheres (compreendendo a diversidade que
compõe esse grupo maior) nos possibilita reinserir esses sujeitos históricos nos campos da
produção de conhecimento e na própria historiografia literária.
Como dito no início do texto, a atuação de Jacinta Passos não se deu apenas no ofício
literário. Ela foi entre os anos de 1940 a 1950 colaboradora de periódicos de grande circulação
na Bahia: o jornal O Imparcial (1918-1947), que foi um veículo importante na cobertura da
Segunda Guerra Mundial e o jornal O Momento, periódico de propriedade do Partido Comunista
Brasileiro. No primeiro, Jacinta Passos contribuiu com a participação feminina na retaguarda de
guerra, ou seja, na produção de insumos bélicos e outros para os países envolvidos diretamente
no conflito e aqui no Brasil a participação feminina na Legião Brasileira de Assistência74.
Como periodista Jacinta Passos possibilitou a uma determinada camada letrada da
sociedade baiana da época75, outra versão da atuação de mulheres no mundo do trabalho.
Naquele pequeno espaço que lhe era concedido e de forma semanal, ela e suas colaboradoras
mostraram, através de fotografias e artigos, que mulheres ao redor do mundo estavam

74
A LBA foi criada com o objetivo de prestar assistência aos soldados mobilizados e seus familiares, tinha sede no
Rio de Janeiro e fez parte de sua estruturação a existência de postos de atendimento nas capitais e cidades
brasileiras, administrados pelas primeiras-damas.
75
Entendemos que o trabalho sobre estas escritoras é um recorte que defendemos pelo viés de suas posturas
enquanto feministas, mas reconhecemos que estes não se configuram na atualidade como uma voz unívoca na luta
de mulheres nem na produção literária por elas feitas.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
178

trabalhando na retaguarda de guerra, produzindo insumos bélicos e outros materiais que


abasteciam o confronto.
Uma, dentre outras tantas publicações da Página Feminina76, trata da participação de
mulheres nas fábricas que produziam projéteis e outros artefatos bélicos, bem como mostra o
desempenho de funções antes apenas masculinas “como engenheiras, supervisoras de produção
e motoristas de caminhão”.77
Enquanto diretora da Página Feminina, Jacinta Passos se preocupava em destacar este
tipo de notícia em detrimento de outras, inseridas nas seções intituladas Puericultura, Moda e
Beleza, Cuidados do Lar etc. Estas temáticas, ao que parece, estavam na página muito mais por
conta de uma espécie de negociação entre esta emancipação do pensamento das mulheres à
época do que por uma escolha pessoal em tratar de temas que na verdade não se espelhavam à
sua conduta mais combativa e militante.
Na edição de 26 de março de 1943, a Página feminina traz a manchete “As mulheres
conquistam a vitória” com o seguinte texto:

As mulheres, em todos os países livres do mundo, pelo trabalho diário, pela


participação real no esforço de guerra, conquistam a vitória contra o fascismo.
As mulheres sabem que a “Nova Ordem”, tirania universal de um povo, a sua
posição é ser escrava dos homens. Na própria Alemanha e nos países
dominados, a experiência da mulher tem sido a mais dolorosa. Mas com esta
experiência ela tem, hoje, a certeza de que o fascismo é o seu maior inimigo e
por isso luta contra ele78, com todas79 as suas energias femininas.80

Como foi mencionado, a Página Feminina buscava ser o mais plural que podia, dentro
daquele contexto histórico em que as poucas mulheres que liam, eram, em sua maioria, donas de
casa, e, além de querer saber sobre a política da época também estavam interessadas em outros
temas, por isto a negociação de que antes falamos.
Nesta mesma edição há uma chamada para uma palestra que Jacinta Passos faria no rádio sobre
a Semana de Propaganda da Legião Brasileira de Assistência- LBA, da qual era defensora e
divulgadora.

76
A Página Feminina foi editada de 1942 a 1943 no Jornal O Imparcial.
77
NOGUEIRA, Natânia. A participação feminina na segunda Guerra Mundial. História Hoje.com.Acesso
13.mai.2017.
78
Na matéria original o pronome pessoal vem acentuado, obedecendo a norma ortográfica da época. Aqui atualizou
a ortografia.
79
O mesmo acontece com o verbete /todas/. Atualizamos a ortografia para a vigente.
80
O artigo que vem após a manchete não está assinado, isto era muitas vexes recorrente na Página Feminina.
Durante a pesquisa não foi possível identificar o por quê.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
179

A matéria segue mostrando a atuação feminina em vários países, inclusive no Brasil,


81
que- ainda que este fato seja desconhecido do grande público-, tiveram uma participação nos
cuidados de enfermagem prestados aos soldados que vinham da guerra. De acordo com o
jornalista Frederico Rosas, do El País- Brasil,

O Brasil entrou no conflito em agosto de 1942, com a declaração de guerra à


Alemanha nazista e à Itália fascista após a morte de 607 pessoas em seguidos
ataques do Eixo a navios brasileiros situados em uma área do Atlântico que vai
da costa leste norte-americana ao Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da
África. O então presidente brasileiro, Getúlio Vargas, vivia a sua primeira era
no poder (1930-1945) e havia declarado neutralidade no conflito em 1939, após
chegar a flertar com o fascismo. A guerra contra o Japão seria declarada pelo
Brasil apenas em junho de 1945. (ROSAS, 2014)82

Com o envio destes soldados à guerra, o trabalho da LBA era fundamental para a
manutenção da assistência dos que voltavam e o apoio às suas famílias de diversas formas,
desde auxílios mais materiais até suporte psicológico e Passos, como dito, reforçava este
trabalho de maneira que mais mulheres aderissem ao voluntariado.
É, como foi salientado anteriormente, muito difícil imprimir em apenas um artigo
científico todas as frentes nas quais esta mulher atuou e citá-las detalhadamente, a proposta aqui
é justamente tentar estabelecer o diálogo entre ela e sua longínqua e ao mesmo tempo tão
próxima colega de ofício.
A análise aqui empreendida tem como uma de seus pilares teóricos a área da Teoria
Literária. De acordo com NITIRINI (1994), esta área de estudo, inicialmente intitulada Teoria
Literária e Literatura Comparada “começou a integrar o curso de Letras em 1961[...]” e
continua:

Em 1962 Teoria da Literatura passou a se chamar Teoria Literária e Literatura


Comparada , [...] por iniciativa de Antonio Candido , então seu único
responsável, para assegurar o estudo das literaturas estrangeiras e um espaço
institucional para a Literatura Comparada. 83

Esta área de estudos torna-se então fundamental para que se possa estabelecer vínculos
entre escritoras e escritores ao redor do mundo de modo que esta análise se faça dentro do que

81
O Brasil entrou no conflito em agosto de 1942, com a declaração de guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista
após a morte de 607 pessoas em seguidos ataques do Eixo a navios brasileiros situados em uma área do Atlântico
que vai da costa leste norte-americana ao Cabo da Boa- Esperança, no extremo sul da África.
82
Por se tratar de referencia de artigo jornalístico do site do jornal El País- Brasil, não houve a possibilidade de
precisar o número da página.
83
NITRINI, Sandra (1994).
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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preconiza este campo de estudos e assegurando os laços de similaridades literárias observados


em nossas poetisas. Este campo de estudos se estabelece e

[...]um dos princípios adotados por Antônio Cândido nos primeiros cursos de
Teoria Literária da década de 60, ou seja, trabalhar com textos de autores
contemporâneos se solidificou também na pós-graduação, chegando a criar
uma espécie de tradição na área de Teoria Literária e Literatura Comparada.
84 85
[...] “nesta área” .

Outra preocupação quando da criação desta área de estudos no Brasil por Antonio
Candido é o que NITIRNI (2012) chama de um “princípio relacionado a uma atitude de
tratamento do texto, evitando teorizar demais e valendo-se dos conceitos como instrumentos de
análise , o que se torna uma “tendência da Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH86
da USP”.87 Para NITRINI, estabelecer um conceito fechado para a literatura comparada não é
algo trivial, assim propõe que

Uma definição clara e sucinta, [...] de literatura comparada é formulada por


Henry H. H. Remak, no artigo que tem por título “Comparative Literature, Its
Definition and Function” e no qual procurou definir o que ele chamava de
“escola americana”.Literatura comparada é o estudo da literatura, além das
fronteiras de um país particular, e o estudo das relações entre literatura, de um
lado, e outras áreas do conhecimento, e da crença, tais como as artes (ex.:
pintura, escultura, arquitetura, música), filosofia, história, ciências sociais,
religião etc., e a comparação da literatura com uma outra ou outras, e a
comparação da literatura com outras esferas da expressão humana.88

Esta definição de literatura comparada alinha-se à proposta deste trabalho, pois


ultrapassa a fronteira de nacionalidades e enseja um diálogo entre poetisas de realidades
históricas diferentes, mas que como vimos, guardam similaridades tão singulares que
atravessam o tempo e as “nações” aos quais pertenceram.
Há ainda uma proposta de definição complementar à de NITRINI. Como advertimos
antes, a definição de Literatura Comparada não se faz a partir de um conceito fechado, concluso,
é antes um conjunto de outros conceitos importantes, que, por força do restrito espaço
concedido a este tipo de publicação não é possível elencar. É também complexo entender qual
seja de fato o objeto desta ciência, ainda que a própria teoria busque conhecê-lo, não há
possibilidade de exaurir esta temática em um artigo, no entanto,

84
Grifo meu.
85
Idem.
86
Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da USP.
87
Idem
88
Entendemos que este artigo traz a definição de literatura comparada de forma sucinta, não sendo assim, pois
intenção esgotar a teoria que existe em torno desta temática vasta quanto polêmica, mas que também não dispõe de
conceitos fechados e vasta bibliografia a seu respeito como adverte NITRINI, 2015.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
181

Seu objeto parece múltiplo como o mundo e perpetuamente fugidio. De que


trata a literatura comparada?Das relações literárias entre dois, três, quatro
domínios culturais, entre todas as literaturas do globo?Tal é hoje seu feudo
natural, sem contestação. (BRUNEL; PICHOIS;ROUSSEAU, 2012, p. 139)

Assim, é possível identificar pontos de convergência entre as trajetórias biográficas e


literárias entre Jacinta Passos e Ingrid Jonker fundamentalmente porque, em primeiro lugar,
entendemos a importância de Passos em seu contexto histórico por conta de sua militância
política e sua atuação como feminista, uma vez que reconstrói um novo lugar de enunciação
para algumas mulheres e de igual maneira entendemos que Ingrid Jonker se constituiu numa
importante voz poética e política para a África do Sul durante o apartheid através de sua
dedicação à literatura, de maneira que esta pudesse ser sua contribuição na construção de um
projeto de mundo menos desigual.

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VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
182

A DISTOPIA DE MARY SHELLEY EM THE LAST MAN: IMPRESSÕES SOBRE


PIONEIRISMO FEMININO DISTÓPICO NO SÉCULO XIX (REVISAR
FORMATAÇÃO)

Ma. Janile Pequeno Soares (PPGL-UFPB)


E-mail: janile_soares@yahoo.com

Considerações iniciais

“[...] o horror das distopias é que elas sempre nos recordam algum
aspecto sombrio da realidade”.
Lucia de La Rocque

Analisar um romance como The Last Man (1826) é algo tão complexo quanto instigante
e prazeroso. Em um primeiro contato com a obra conseguimos sentir toda a carga de crítica
social do modelo pós-apocalíptico que molda sua história. Quando nos debruçamos sobre o
texto, e a história começa a tomar forma, passamos a perceber e a compreender melhor muitos
aspectos do mundo que nos cerca, das pessoas, das relações humanas, suas intencionalidades,
dos nossos medos, do outro, de nós mesmos, da problemática que envolve a vontade de poder
humana sempre em tom de discussão, sejam em tempos modernos ou não.
E isso faz com que o nosso sangue gele e acelere os batimentos do nosso coração, tal
qual tencionava a escritora desse romance. É quando percebemos que o que temos em mãos é
bem mais que uma história, é um diálogo com quem a escreveu, com o seu tempo, com suas
influências e com seus personagens. Quanto mais lemos mais percebemos que o viés de leitura
que nos sentimos tão confortáveis em optar, assim como qualquer outro, pode parecer tanto
enriquecedor quanto limitado diante de sua densidade. Mas essas leituras precisam ser feitas,
pois ascendem ainda mais a beleza desta obra e dialogam com sua fortuna crítica.
Após a leitura do romance, até mesmo o leitor mais desatento é tomado pela sua
realidade de desespero e privação que, apesar de ficcional/imaginária, nos transborda para um
espaço não comum, e que desnuda aquilo que há de mais próximo tanto do seu contexto de
produção quanto do nosso momento, tão atual ainda se faz a sua discussão. O mundo dominado
pelo caos com uma estrutura dubitável de formação social, alimentada pela cede de poder e
egoísmo de indivíduos sem amor e com atitudes monstruosas em relação ao outro, leva,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
183

paulatinamente, à dissipação da humanidade através das atitudes do próprio homem no


romance. Assim, The Last Man é uma distopia feminina, onde as linhas forjadas pela sua
escritora nos incitam a refletir sobre o conceito mais elementar da natureza e as consequências
de sua má estruturação: a natureza humana. E tal discussão não deve ser deixada na sombra do
cânone literário, é preciso ter espaço, ser exibida e analisada, este, portanto, um dos objetivos
deste trabalho, além da discussão sobre o pioneirismo da escritora ao ser a única mulher a
escrever e publicar literatura pós-apocalíptica distópica (tradicionalmente masculina) no início
do século XIX na Inglaterra.

Mary Wollstonecraft Shelley: além de Frankenstein

Shelley era filha de Mary Wollstonecraft, uma das fundadoras do movimento de


emancipação feminina na Inglaterra no século XVIII, escritora de A Vindication of the rights of
woman e William Godwin, um influente filósofo radical liberal que escreveu Political Justice, e
ainda era esposa de Percy Bysshe Shelley, um filósofo, poeta, ateu radical, discípulo de Godwin
e dentre sua rede de amigos, o controverso e sombrio Lord Byron, poeta Romântico. A vida toda
Mary Shelley respirou num ambiente de livres pensadores e as influências do ambiente familiar
não poderiam deixar de fazer com que ela compreendesse a vida sob um ponto de vista
racionalista ou crítico (FLORESCU, 1998).
Assim como Lionel Verney, seu personagem principal em The Last Man, a vida de
Shelley foi cercada por séries de perdas e sobrevivências: a começar por seu nascimento que
custou a vida de sua mãe89; entre o tempo que ela escrevia seu romance aqui em questão, três
dos seus quatro filhos tinham falecido, seu marido, Percy Shelley tinha se afogado em um
naufrágio, e Lord Byron, seu grande amigo, tinha acabado de morrer na Grécia. Aos vinte e seis
anos, ela possivelmente se considerava a última relíquia de uma raça extinta de provocadores
críticos (JOHNSON, 2014).
Amplamente conhecida como a escritora de Frankenstein, após assumir a escrita do
romance em sua Introdução à segunda edição em 183190, Mary Shelley e sua carreira como

89
Dez dias após o nascimento de Mary Shelley, sua mãe morre de febre pós-parto aos trinta e sete anos de idade.
Shelley fica, então, ao encargo do pai, William Godwin, para ser criada e educada juntamente com sua meia irmã
Fanny Imlay.
90
A primeira publicação de Frankenstein ou o moderno Prometeu, é feita anonimamente em 1818. Após muitas
tentativas por parte do marido de Mary Shelley, Percy Bysshe Shelley, que, compreendendo as circunstâncias da
época em relação à credibilidade autoral de mulheres, envia os manuscritos sem assinatura de sua esposa, na
tentativa de que a história seja comprada e não seu autor. No entanto, quando indagado, afirmava que os
manuscritos pertenciam a um ‘amigo’ que não se encontrava em Londres, e que a ele pedira ajuda. (FLORESCU,
1998)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
184

escritora, ironicamente, permanecem obscurecidas diante da popularização de seu romance mais


proeminente (FISCH; MELLOR; SCHOR, 1993). Em muitos casos sendo esquecida enquanto
escritora e, em outros, lembrada apenas como autora de um único e canônico texto. No entanto,
o que pouco se sabe é que existe uma Mary Shelley além de Frankenstein.
A escritora inglesa que teve sua vida cercada de grandes personalidades e um ambiente
doméstico sempre cheio da efusão de ideias e discussões sobre as mais diversas categorias e
temas, deles sempre obteve grande inspiração para desenvolver a sua própria personalidade de
maneira forte e genuína, tanto como mulher quanto como escritora.
Apesar de sentir-se constantemente responsável pelo destino fatal de sua mãe, que lhe
parecia ser uma mulher formidável e cuja companhia desejava ardentemente, não deixou de ser
influenciada pela genialidade e transparência dos trabalhos que lia e relia sentada às margens do
túmulo de sua mãe. E nestes momentos lhe parecia que seus sentimentos, pensamentos e ideias
deveriam escorrer através da pena para serem lidos por outras pessoas, assim como o trabalho de
sua mãe, que ela mantinha sempre consigo. Mary era uma mulher extremamente independente e
curiosa sobre as mais diversas áreas do conhecimento, o que a levou a escrever sobre temas os
mais diferentes.
Durante os sete turbulentos anos de parceria com Percy Shelley, que envolveram
escândalos (devido sua tranquilidade em se envolver em um relacionamento aberto), muitas
viagens para fora do continente, e severas tensões conjugais91, Mary continuou sua carreira
como escritora, já que era sua mais verdadeira paixão. Escreveu um livro de viagem baseado na
sua fuga do país com Percy: History of a six weeks tour through a part of France, Switzerland,
Germany and Holland (1817); dois romances, Frankenstein (1818) e Valperga (1823); um
romance histórico situado na Itália do século XIV; dois dramas mitológicos Proserpine e Midas
(1820); e Mathilda (1819).
Por volta de 1819 seu terceiro filho, Percy Florence, nasce e é o único a sobreviver até a
idade adulta92. Alguns poucos anos após a alegria de ter a companhia da presença do filho, Mary
passa por uma quase fatal hemorragia advinda de um aborto espontâneo em Junho de 1822;
quase três semanas passadas desse terrível acontecimento, Percy Shelley morre afogado no mar
juntamente com seu amigo Edward Williams. Mary fica devastada e resolve, relutantemente,
voltar para Londres com seu filho, Percy Florence em 1823, e um ano depois, já em 1824
publica The Phostumous Poems of Percy Bysshe Shelley.

91
À época em que se apaixona e inicia seu romance com Mary Shelley, Percy ainda era casado com outra mulher
chamada Harriet, que pouco depois comete suicídio; então, Mary e Percy finalmente se casam em 30 de Dezembro
de 1816.
92
Mary e Percy ainda tiveram outros dois filhos, Clara em 1818 e William em 1819, no entanto, eles não
sobreviveram à infância.
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185

A recepção por parte do seu sogro não é boa, e ela passa a sofrer muito com sua ira, e
concorda em não publicar mais do trabalho de Percy Shelley. Mas não é apenas a rejeição de seu
sogro que a incomoda em seu retorno à Inglaterra: “Chegando a Londres no final de agosto de
1823, sob céus brancos lavados por um vento ocidental perfurante, ela sentiu-se como se tivesse
entrado em uma cidade do futuro93” (SEYMOUR, 2000: 329). Seu amado, a pessoa que sempre
a confortou, acompanhou, apoiou em tudo na vida não podia mais fazer parte de seus dias; a
esse respeito, em seus diários, Shelley pontuou que “[...] se sentia como uma exilada, a última
relíquia de uma raça amada retornando para um país que ela não conhecia mais94” (SEYMOUR,
2000: 330). O senso de ser uma sobrevivente era muito triste e forte ao mesmo tempo em Mary
Shelley durante esses primeiros tempos de retorno; Williams e Shelley tinham morrido, Polidori
(grande amigo de Byron e assim também de Mary) havia cometido suicídio, o próprio Byron
falecido no campo de batalha de guerra na Grécia. Apenas ela estava viva.
O sentimento de solidão só a fez adentrar ainda mais profundamente em sua escrita,
caminhando pelas ruas de Londres na esperança de se encontrar, neste lugar que já a não
pertencia porque nele não havia mais quase nenhum daqueles que faziam aquele lugar ser seu
lar, ela passa a ver Londres como que através dos olhos de um turista confuso.
Neste tempo a ideia para um novo romance começa a tomar forma, desencadeada pela
percepção de si mesma como uma estranha nos destroços de uma grande cidade. Uma pintura de
John Martin, amigo de seu pai, intitulada The Seventh Plague (1823), lhe deu uma ideia
demasiada atrativa para uma escritora assombrada pela sensação de seu isolamento.
Pensamentos tais como a possibilidade de a população do mundo ser devastada por uma praga
como sugere o quadro de John Martin fosse possível, como e de qual tipo seria, eram ideias que
começaram a fazer sentido a Mary durante suas primeiras semanas em Londres (SEYMOUR,
2000). Em 1826 ela publica The Last Man, seu segundo romance, e que viria a ser um dos mais
ambiciosos, desafiadores, imaginativos já feitos.
Durante os próximos dez anos ela escreveu outro romance histórico, The Fortunes of
Perkin Warbeck (1830), e dois romances domésticos: Lodore (1835) e Falkner (1837). Escreveu
mais de 22 contos publicados pelos periódicos The Keepsake, The Bijou e Forget-me-not. Entre
os anos de 1835 e 1840 ela escreveu95 cinco volumes para a então famosa coleção de biografias
Cabinet Encyclopedia de Dionysius Lardner. Em 1839, com a permissão de Timothy Shelley,

93
Arriving in London at the end of August 1823, under skies washed white by a piercing east wind, she felt as
though she had stepped into a city of the future. (SEYMOUR, 2000:329) Tradução nossa.
94
[…] she felt like an exile, the last relic of a beloved race returning to a country she no longer knew”
(SEYMOUR, 2000: 330). Tradução nossa.
95
Foram 38 autores contribuintes (outros não identificados), dentre eles Mary Shelley foi a única mulher
contribuinte e a oitava mais produtiva (SOARES, 2014:4).
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seu sogro, Mary publica uma edição de quatro volumes de poemas de Percy Shelley e uma
edição de um volume (1840), também de poemas; em 1840 publica uma edição de dois volumes
Essays, Letters from Abroad, Translations and Fragments, cartas, ensaios fragmentos e
traduções também feitas por Percy Shelley.
No período de seus últimos anos Mary Shelley esteve acometida de recorrentes sintomas
de um tumor cerebral, somente diagnosticado em 1850, que viria a ser a causa de sua morte no
ano seguinte. Sua última publicação, assim como a sua primeira, foi um livro de viagem
intitulado Rambles in Germany and Italy in 1840, 1842 and 1843 (1844). Após 1844, Mary
Shelley e seu filho Percy Florence, que a essa época já tinha se formado em Cambridge, herdado
o título e posses de seu avô e se casado, já podiam aproveitar uma modesta melhoria no que se
refere a conforto e calmaria financeira. Depois de meses sofrendo ela morre em Londres em 1º
de fevereiro de 1851 e foi enterrada ao lado dos corpos de seus pais no cemitério de St Pancras.
Todo esse percurso apenas para elucidar um pouco mais sobre os caminhos tortuosos
pelos quais Mary Shelley teve de percorrer, essa uma mulher à frente de seu tempo, assim
considerada, por vários motivos, dentre os quais: a falta de interesse em seguir os padrões de
comportamento feminino de sua época; por escolher escrever como profissão e daí sustentar os
homens de sua vida: pai e filho até quase antes de morrer; por viver intensamente sua paixão
com o homem que amou perdidamente; por escrever e assumir suas ideias em um tempo onde a
maioria das mulheres que buscavam participar do meio literário utilizavam pseudônimos, e
principalmente, para pontuar que Mary Shelley foi uma escritora com ideias audaciosas e que
escreveu sobre temas os mais diversos dos sentimentais aos científicos. Shelley foi uma pioneira
em vários aspectos, acima de tudo, não foi apenas a autora de Frankenstein, mas uma grande
mulher de visão quase previdente.

A distopia de Mary Shelley em The Last Man: pioneirismo feminino distópico no século
XIX

The Last Man (1826) é o segundo romance mais proeminente da escritora inglesa Mary
Shelley, amplamente conhecida, já mencionado mais acima, como a autora de Frankenstein ou
o Moderno Prometeu (1818), obra que a colocou nos holofotes da literatura gótica de horror, por
instaurar uma nova forma de escrever o gótico, pois em seu enredo deixa para trás o elemento
gótico tradicionalmente centrado no lado espiritual passando a focar na esfera psicológica e
social. A discussão social é tema que envolve também o seu segundo romance mais popular,
corpus de nosso trabalho em questão, assim como a discussão sobre a maldade e egoísmo
humanos que transformam homens em lobos de si mesmos. O ambiente que envolvia a

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escritora, ao passo que escrevia o romance, estava inundado pelas dúvidas e questionamentos
sobre a maldade humana e as consequências de atos extremos associados sempre à sua vontade
de poder exacerbada e à falta de amor.
O romance é produto de um período de desolação, Mary Shelley coloca sua obra
apocalíptica juntamente com as de seus contemporâneos para exibir sua visão sobre os horrores
das revoluções, principalmente da Revolução Francesa, a subsequente carnificina das guerras
napoleônicas e as incertezas metafísicas e culturais sobre os ataques da era-romântica em
direção às questões comportamentais, políticas e sociais do contexto inglês, tanto em relação à
estrutura social carregada de pressões direcionadas a quem podia ou não fazer parte dos espaços
públicos, quanto à opressão e desvalorização da mulher na camada política, pública, social, a ela
respeitado apenas o espaço doméstico. A obra de Shelley aparece nesse cenário como precursor
do estilo denunciador-crítico-apocalítico-filosófico sob a escrita de autoria feminina, já que seus
contemporâneos e/ou antecessores foram todos homens, a escritora presenteia o espaço temático
com a visão feminina da situação e da formação textual.
Le Dernier Homme (1805) (O Último Homem) de Jean Baptiste Cousin de Grainville é
conhecido como o precursor desse modo/gênero pós-apocalíptico revolucionário, seguido por
The Last Man (1823) de Thomas Campbell, dentre outros. No entanto, o The Last Man (O
Último Homem) de Mary Shelley tem sua particularidade que o distingue dos modelos
anteriores, já que é o primeiro a destacar um herói solitário em meio à devastação humana sob
as lentes da escrita de autoria feminina. O romance de Shelley aparece num momento de
devastação vivido pela sociedade inglesa densamente inundada pelas mudanças e ideias
advindas das revoluções, como dito logo acima, consequentemente, a sensação de incompletude
e solidão faz com que muitos escritores sintam com densidade a solidão em meio a uma
humanidade que se destrói paulatinamente.
O romance de Shelley não segue a linha do lugar comum da visão destruidora sobre o
homem através de vestígios advindos da natureza como haviam se padronizado as histórias pós-
apocalípticas, mas levanta a questão da transformação do homem pela sua desestrutura
individual inspirada pela vontade de poder que sobrepõe todos os outros impulsos humanos de
amor, compaixão, generosidade e justiça. Como atesta uma das falas de Lionel Verney:

Onde estavam a dor e o mal? Não no calmo ar ou encapelado oceano; não nas
florestas ou nos campos férteis, nem entre os pássaros que fizeram as árvores
ressoarem com música, nem nos animais que em meio à fartura expuseram-se
ao brilho do sol. Nosso inimigo, como a Calamidade de Homero, percorreu
nossos corações e nenhum soído foi ecoado de seus passos. (SHELLEY, 2007:
337-338) Grifo nosso.

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188

The Last Man conta a história do filho de um nobre que perde toda sua fortuna em jogos
de azar, Lionel Verney, que se tornará o último homem restante na terra quando a humanidade é
destruída por uma praga no século XXI, ele, imune a essa praga, vê a dissipação do mundo
como conhecia. Mas a praga que destrói a humanidade no romance de Shelley não aparece
misteriosamente para assolar o homem, ela é desenvolvida e posta à vida pelo próprio homem, e
ele nos aparece como lobo de si mesmo. Vejamos estas duas outras passagens onde essa crítica
se faz presente no romance de Shelley:

[...] agora é o homem o senhor da criação? Olhe para ele – ah! Vejo a peste!
Ela atacou a sua carne, emaranhou-se com seu ser e cega seus olhos, que
perscrutam o céu. Deite-se, Oh homem, na terra salpicada de flores; abra mão
de toda reivindicação de sua herança , tudo o que você pode um dia possuir
dela é a pequena célula que o morto exige. A peste é a companheira da
primavera, do brilho do sol e da fartura. Não mais lutamos com ela.
Esquecemo-nos do que fazíamos quando ela não existia. [...] Os homens
fizeram jornadas periclitantes para possuir esplêndidas bugigangas da
terra, gemas e ouro. [...] Agora a vida é tudo o que cobiçamos; que este
autômato de carne deve, com juntas e peças em ordem, desempenhar suas
funções. [...] Éramos, com efeito, suficientemente degradados. (SHELLEY,
2007:338). Grifo nosso.

Tudo está acabado, agora. Ele está solitário; como os nossos primeiros pais,
expulsos do Paraíso, ele olha para trás, na direção da paisagem que abandonou.
[...] Como nossos primeiros pais, toda a terra está diante dele, um vasto deserto.
[...] A posteridade já não é mais; a fama, a ambição e o amor, são palavras
vazias de sentido [...] (SHELLEY, 2007: 344-345). Grifo nosso.

Mais que envolvida pela sagacidade da visão feminina que Shelley atribui a uma história
‘futurista’, onde os vícios e monstruosidades humanas são exacerbados de modo a criticar o
momento de seu lugar de produção, The Last Man tem um valor transcendental quando
atualizamos seu plote para o nosso século XXI, idealizado pela escritora em 1826, ano de sua
publicação, e percebemos como a nossa individualização está do mesmo modo comprometida e
que os conceitos e ideais construídos pela modernidade apenas diluem o homem, saindo do
centro e se perdendo dentro de si.
The Last Man evoca uma discussão que está bem além de sua época de produção quando
avaliamos os pormenores conceituais ainda atuais acima citados, é um romance que celebra a
capacidade criadora de Mary Shelley ao escrever um tema conceitualmente masculino (ficção
científica pós-apocalíptica-filosófica), de modo exemplar e pioneiro sob a pena feminina.
Considerando a construção de uma sociedade imaginária futurista envolta nas mazelas
desenvolvidas pela vontade de poder e egoísmo dos indivíduos que a formam, mostrando de
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189

modo exacerbado o momento da sociedade de seu tempo de produção, a história do romance


nos incita a estudar, a partir das narrações de seu personagem principal, Lionel Verney, a
formação filosófica da praga que assola a humanidade através do conceito de distopia e neste
ponto, o pioneirismo de Shelley se mostra ainda mais presente.
Distopia é um conceito de formação de uma sociedade fictícia, geralmente retratada
como existente em um tempo futuro, onde as condições de vida são extremamente ruins devidas
à privação, opressão ou terror dos indivíduos em suas relações entre si e o sistema que os rege.
Distopias são frequentemente descritas como avisos, ou como sátiras, mostrando as tendências
atuais extrapoladas a uma conclusão de pesadelo. A vida dos personagens do romance é
apresentada em um contexto no qual os interesses pessoais e domésticos são substituídos pelas
exigências políticas, e estas suplantadas por uma praga incontrolável que engolfa toda a espécie
humana, assim, nos parece contundente compreender a estrutura da sociedade fictícia onde
habita o último homem de Mary Shelley, compreendendo concomitantemente, as relações e
estruturas/desestruturas da sociedade de seu tempo de produção, assim como também a nossa
realidade através da ideia de distopia, de uma sociedade longínqua idealizada exibida de modo
negativo, para exacerbar as incongruências de uma sociedade próxima, viva, atual, presente.
Sobre literatura imaginativa/distópica Booker (1994) diz ser um dos mais importantes
meios através dos quais qualquer cultura pode investigar novas formas de definir a si mesma e
de explorar alternativas políticas e sociais de status quo. Ele ainda afirma que:

Literatura distópica é especificamente aquela literatura que se situa em


oposição direta ao pensamento utópico, alertando sobre consequências
potencialmente negativas de utopianismo errante. Ao mesmo tempo, literatura
distópica generalmente constitui também uma crítica das condições sociais
existentes ou sistemas políticos, através de examinação crítica de premissas
utópicas sob as quais aquelas condições e sistemas são baseados ou através da
imaginação extensiva daquelas condições e sistemas dentro de contextos
diferentes que mais claramente revelam suas falhas e contradições96.
(BOOKER, 1994:3) – Tradução nossa.

Ao tecer considerações a respeito dos vários temas que The Last Man levanta nas
estrelinhas de sua história, Lokke (2003) afirma que:

96
Dystopian literature is specifically that literature which situates itself in direct opposition to utopian thought,
warning against the potential negative consequences of errant utopianism. At the same time, dystopian literature
generally also constitutes a critique of existing social conditions or political systems, either through the critical
examination of the utopian premises upon which those conditions and systems are based or through the imaginative
extension of those conditions and systems into different contexts that more clearly reveal their flaws and
contradictions. (BOOKER, 1994:3)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
190

O agonizante curso do romance, de fato, demonstra que a mente humana está


acima de toda origem do mal que é universalmente sofrido. E o cruel progresso
da praga mostra a natureza incontrolável e inescrutável que é qualquer coisa
menos o ministro do homem97. (p. 125) – Tradução nossa.

Logo no início do romance nos deparamos com a presunçosa afirmação de Lionel sobre
a vasta pequena superioridade da Inglaterra diante de outros países até mais populosos, uma
superioridade enraizada na vontade egoísta de poder, mesmo que inicialmente territorial. Ele
afirma “tão verdadeiro isso é, que a mente humana sozinha criou tudo o que é bom ou grande
para o homem, e que a Natureza em si foi apenas seu primeiro ministro” (SHELLEY, 2007:15).
Tal presunção afirma o potencial do mal existente na mente do homem que em seguida irá
construir os ideais e padrões sociais para a sociedade em que vive ser um pouco mais
acomodada com os seus desejos e conveniências, e quando nos referimos à vontade de poder do
homem, nos referimos ao sujeito social diferente da mulher, posto que aquele sobreponha e
ditatoriza seus ideais em detrimento desta. Importante lembrar que a preferência intelectual da
tomada de decisões em uma sociedade está habitualmente nas mentes racionais dos homens,
principalmente no contexto social de produção de The Last Man. E assim, Lionel nos conta a
história de como os homens criaram seus abismos e os dos demais à sua volta, se tornando
monstros de si mesmos de um modo geral.
Quando Shelley publica The Last Man em 1826, o conceito de distopia ainda não tinha
sido sequer ponderado, no entanto a sensação caótica do futuro já fazia parte de seus
pensamentos. O termo foi usado pela primeira vez por John Stuart Mill em 1868, durante um
debate parlamentar (CLAEYS, 2010), e, em seguida, o termo foi modificado e discutido
demasiadas vezes até nossos dias, o que o torna um termo, que se tornou gênero literário, já da
época moderna. No entanto, o texto de Shelley já traz alguns pontos e ideias distópicas que,
curiosamente, se popularizaram somente muito tempo depois, como, por exemplo, o
pensamento de que a realidade é tão ruim que a felicidade mais fácil de construir é a da pretensa
alegria das diversões. Vejamos o exemplo disso nestas passagens do texto:

Durante os meses mais frios, houve uma corrida para Londres em busca de
diversão – os laços da opinião pública afrouxaram-se; muitos eram ricos, e,
agora, pobres – muitos tinham perdido pai e mãe, os guardiões da sua moral,
seus mentores e seus limites. Teria sido inútil opor bandeiras contra esses
impulsos [...] Os teatros estavam abertos e lotados, a dança e os festivais da
madrugada eram frequentados – em muitos destes violava-se o decoro e os
males, até então aderidos a um estado avançado de civilização, redobravam-se.

97
The agonizing course of the novel, in fact, demonstrates that the human mind is above all the source of the evil
that is universally suffered. And the relentless progress of the plague shows uncontrollable and inscrutable nature to
be anything but the minister of man. (LOKKE, 2003:125).
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O estudante deixou seus livros, o artista, seu estudo: as ocupações da vida


esvaíram-se, mas as diversões permaneceram [...] (SHELLEY, 2007, p 291).
Grifo nosso.

Vagueei, oprimido, distraído por dolorosas emoções – de súbito, encontrei-me


diante do teatro Drury Lane. A peça era Macbeth – o primeiro ator idoso estava
lá para exercitar seus poderes de drogar com a irreflexão a audiência [...] e
rendíamo-nos com todas as almas à influência da ilusão cênica. (SHELLEY,
2007, p. 300). Grifo nosso.

Nessas passagens podemos perceber a forma como o personagem Lionel Verney se


refere às anteriormente normais ocupações da vida, sendo tragadas e modificadas pela opressão
da realidade em que se encontram imersos os cidadãos de uma Londres assombrada por uma
praga invisível, e que acomete em primeiro lugar aqueles de caráter duvidoso e assim vai
tomando uma forma incontrolável. A falta de objetivos e de perspectiva de futuro diante do caos
se mostra de modo quase violento ao longo dos últimos anos dos quais é acometida a sociedade
de Lionel, vista sob seus olhos e sentida em suas relações a cada dia. Mais adiante seguiriam
essa ideia trabalhos, hoje canonizados, tais como: “Admirável Mundo Novo” de Huxley (1932),
“1984” de Orwell (1949), “Laranja Mecânica” de Burguess (1962), “Fahrenheit 451” de
Bradbury (1953), dentre outros.
The Last Man de Mary Shelley revela uma visão da natureza humana governada pela
vontade de poder, falha de caráter e ambição que superam todos os impulsos humanos de amor,
compaixão, generosidade e justiça. O texto não transparece esperança no futuro; não há a ideia
de prosperidade, mas o pesadelo diante do porvir, advindo da continuidade das falhas de caráter
dos sujeitos, a monstruosidade de suas intenções. A peste na história de Shelley está no ar; é
invisível; toma de conta dos sujeitos de maneira sutil e os dilacera. É mais fatal naqueles cujas
resoluções, mais aparentes, se centram na necessidade de salvarem a sua própria ambição a
despeito dos que estejam à sua volta. A peste está alojada nos homens; é preciso dizimar a
humanidade para encontrar os humanos. Esse é o distopismo do texto de Shelley, que apresenta
ideias tão familiares aos olhos dos sujeitos dos tempos modernos, mas que foram já ponderados
por uma mulher de vinte e seis anos na fria e opressiva Londres no início do século XIX.

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FISCH, Audrey; MELLOR, Anne; SCHOR, Esther. The Other Mary Shelley. New York:
Oxford University Press, 1993.

FLORESCU, Radu. Em busca de Frankenstein: o monstro de Mary Shelley e seus mitos.


Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Mercuryo, 1998.

JOHNSON, Barbara. A life with Mary Shelley. Stanford: Stanford University Press, 2014.
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http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ct/article/view/21544. Acesso em: 08/02/2017.

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CATHERINE MORLAND E OS PAPÉIS DE GÊNERO EM JANE


AUSTEN: UMA LEITURA CRÍTICA DE A ABADIA DE
NORTHANGER (REVISAR FORMATAÇÃO)

Mestranda Lailla Mendes Correia (UESB)


E-mail: laillamendess@hotmail.com
Orientadora: Profª Drª Rita de Cássia Mendes Pereira (UESB)
E-mail: ricamepe@hotmail.com

Introdução

Até o início do século XX, o acesso à educação formal no mundo ocidental esteve
condicionado a homens de determinadas categorias sociais, que recebiam educação fora de
casa, nas chamadas gramar schools, enquanto as mulheres aprendiam as letras no ambiente
familiar, juntamente com outros saberes e técnicas como a pintura, o bordado e a música,
como pontua Chartier (2001).
O autor também pondera que os homens sempre assinaram mais que as mulheres,
podendo chegar a uma vantagem que variava, aproximadamente, entre 25% a 30%. Ainda
que essa diferença pudesse exemplificar que as mulheres participassem menos do universo
da escrita, o mesmo não se poderia dizer sobre uma capacidade desigual da leitura, pois
existiria, em toda a sociedade do Antigo Regime e ainda no século XIX, uma alfabetização
feminina reduzida apenas à leitura, de acordo com uma representação comum, que não é
unicamente popular, do que deveria ser a educação das moças.
A defesa da educação feminina voltada para aspectos da vida privada (e dedicada ao
atendimento das necessidades do homem) está presente em pensadores clássicos, a exemplo
Rousseau (1995, p. 445):

A educação das mulheres deveria ser sempre relativa à dos homens.


Agradar-nos, ser-nos úteis, fazer-nos amá-las e estima-las, educar-
nos quando jovens e cuidar-nos quando adultos, aconselhar-nos,
consolar- nos, tornar nossas vidas fáceis e agradáveis. Estas são as
obrigações das mulheres durante todo o tempo, e também o que elas
devem aprender na infância.

O pensamento de Rousseau acerca da educação das mulheres pontuava que haveria


uma diferença crucial no que se diz respeito às questões de gênero pois, ainda que a leitura
para mulheres pudesse ser destacada, e de alguma forma até encorajada, os temas dessas
leituras eram delineados por diferentes aspectos, denotando haver inferioridade ao que
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pudesse ser lido pelas moças. Enquanto ao masculino assuntos como economia e política
pudessem ser destacados como usuais, às mulheres destinavam-se leituras ligadas ao campo
dos bons costumes, da tradição e do rito familiar, perpetuando a mentalidade de que a
educação das moças devesse ser diferente da dos homens por tratarem, quase que
exclusivamente, de assuntos relacionados ao lar.

Jane Austen: um olhar sobre o romance e questões de gênero em A Abadia de


Northanger

Na contramão do que seria a educação da mulher proposta por Rousseau, destaca-se,


na passagem para o século XIX, a figura de Jane Austen (1775-1817), considerada a
primeira romancista moderna da língua inglesa e em cujos textos a mulher ocupa posição de
centralidade. Originária da baixa nobreza, mais precisamente da classe dos gentis, Austen
desenvolve suas narrativas no interior de propriedades rurais, em balneários e salões em que
se realizavam os bailes e aconteciam os encontros românticos, além de outros cenários que
remetesse à atmosfera do ambiente rural inglês. Suas personagens femininas são ricamente
caracterizadas, e embora suas personagens masculinas e secundárias também obtivessem
características dignas de nota, são as suas protagonistas – que Austen toma por heroínas –
que ditam o tom de suas narrativas e determinam a inclusão dos seus escritos no gênero
romance:

Pois o que impressiona em Austen é justamente que só as heroínas são de


fato capazes de se desenvolver e surpreender: são os únicos personagens
que possuem consciência, os únicos personagens a quem se vê pensar com
alguma profundidade, e elas são heróicas, em parte, precisamente porque
possuem o segredo da consciência. [...] Os personagens secundários
pertencem a certa fase da sátira teatral; as heroínas pertencem à forma
emergente e complexa do romance. (WOOD, 2014, p.113)

Dentre essas personagens ricamente caracterizadas, podemos evidenciar Catherine


Morland, protagonista do romance A Abadia de Northanger. Sendo a quarta dentre dez filhos
de um clérigo do vilarejo em Wiltshire, Inglaterra, Catherine é caracterizada de forma a se
destacar seu espírito aventureiro ainda quando criança, como bem se apreende dessa
passagem:

Tinha uma figura delgada e canhestra, uma pele pálida e descorada, cabelos
negros e lisos e feições fortes, isso quanto à aparência; e sua mente parecia
não mais propensa ao heroísmo. Adorava todas as brincadeiras de meninos
e preferia em muito críquete não só às bonecas, mas às mais heroicas
delicias da infância, como cuidar de ratos silvestres, alimentar canários ou
regar roseiras. (AUSTEN, 2012, p.4)

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195

O que buscamos propor através desse estudo é observar esses textos sobre uma ótica
feminista, que se adequa à constituição de uma crítica feminista que se apresenta como um
processo de desconstrução de leituras consagradas. Elódia Xavier (p.16, 1999) resume bem essa
proposta:

A pluralidade de enfoques feministas, às vezes mal interpretada como


miscelânea teórica, decorre da riqueza de abordagens num momento hostil à
rigidez conceitual. Daí,a crítica feminista não se constituir num modelo
explicativo homogêneo e monolítico, mas sim num complexo de visões e
práticas articuladas em torno de um ponto de vista comum: a contestação do
patriarcado.

A crítica feminista permite observar aspectos que amplificam a análise textual, como
as determinações de gênero que são destaque logo no início da obra. Essas determinações
dão a entender que ainda que houvessem demarcações sobre o que seriam as brincadeiras de
menino e as brincadeiras de menina, Jane Austen subverte essa lógica ao imprimir em
Catharine aspectos que a distanciassem de uma caracterização homogênea:

Que personagem estranha, inexplicável! Pois com todos os sintomas de


dissipação aos dez anos de idade, tinha bom coração e bom temperamento,
raramente se mostrava teimosa, e poucas vezes até briguenta, e muito gentil
com os pequenos, com poucos intervalos de tirania; era, ademais, barulhenta
e sapeca, odiava o confinamento e a limpeza, e não havia nada de que
gostasse mais do que rolar o declive gramado nos fundos da casa.
(AUSTEN, 2012, p. 13)

Ao crescer e tornar-se adolescente, Catherine se imagina em aventuras sombrias em


castelos e mosteiros de arquitetura gótica, influenciada por leituras de romances góticos que
ela destaca no próprio texto. Uma vez imersa nesse universo, a heroína acredita poder viver
uma dessas aventuras quando é convidada a frequentar a Abadia de Northanger e torna-se
próxima de Henry Tillney, filho do proprietário. O encontro entre o par dá-se durante um
baile em que foram apresentados por um mestre de cerimônias, com o consentimento do Sr.
Allen, homem responsável pela moça na ausência de seu pai.
Os papeis de gênero aqui estão claramente delimitados, pois ainda que moças
solteiras pudessem frequentar bailes, as convenções sociais ditavam regras que
determinavam que o encontro entre os diferentes sexos deveria ser intermediado por um
mestre de cerimônias e, no caso das moças, haveria de obter o consentimento seja do pai ou
do responsável na ocasião, condicionando mulheres a estar sempre abaixo da autoridade
masculina.
Ainda que se possa notar esses aspectos que demarcam a temporalidade da trama – o
texto de A abadia de Northanger fora finalizado em 1803 - o hábito de ler romances é
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196

constantemente invocado na trama, denotando ser uma prática costumeira para as jovens,
como bem se observa:

O progresso da amizade entre Catherine e Isabella foi tão veloz quanto fora
caloroso o seu início, e elas passaram tão rápido por todas as gradações de
crescente ternura, que logo não havia mais nenhuma prova de amizade
recíproca que pudessem dar aos amigos ou a si mesmas. Chamavam-se pelo
primeiro nome, estavam sempre de braços dados quando caminhavam,
erguiam a cauda do vestido uma da outra para a dança e não queriam ser
separadas enquanto dançavam; e se uma manhã chuvosa lhes tirasse toda
outra diversão, estavam decididas a se encontrar, apesar da água e da
sujeira, e se trancavam no quarto para lerem romance juntas. (AUSTEN,
2012, p.42)

A leitura, assunto de conversas de Catherine com amigos, não é apenas motivo para
papos descontraídos, mas está imbuída de índices de valor. Nas suas relações com Henry
Tillney, a moça constrói o seu olhar para o personagem a partir do que ele pensa e fala sobre
romances. Se antes era visto apenas como uma companhia agradável, o moço torna-se, por
força das suas experiências como leitor, o seu companheiro dileto. Num dos muitos diálogos
entre o par, o assunto é novamente invocado quando Catharine pergunta a Henry se ele seria
um leitor de romances, e quando questionada por qual razão o fizera essa pergunta,
Catherine responde: “Por que eles não são inteligentes o bastante para o senhor.. Os homens
leem livros melhores.”, mas é surpreendia pela resposta do rapaz:

-Aquele que, homem ou mulher, não sente prazer na leitura de um bom


romance deve ser insuportavelmente estúpido. Li todas as obras da sra.
Radcliffe, e a maioria delas com grande prazer. Quando comecei a ler Os
mistérios de Udolpho, não conseguia larga-lo; lembro-me que li em dois
dias.. de cabelos arrepiados o tempo inteiro. [...] Como vê, srta. Morland,
suas suspeitas eram injustas. Cá estou eu, em minha impaciência de ir em
frente na leitura, recusando-me a aguardar por cinco minutos a minha irmã,
quebrando a promessa feita de lê-lo em voz alta e mantendo-a em suspense
num ponto dos mais interessantes da história, por fugir com o livro, o qual,
como a senhorita há de observar, era dela, só dela. Sinto orgulho a refletir a
esse respeito, creio que isto fortalecerá a boa opinião que a senhorita tem de
mim. (AUSTEN, 2012, p. 67)

Em se tratando de Jane Austen, é preciso destacar as marcas de ironia presentes em


sua literatura, e ainda que fosse esperado das moças não ter “opinião formada”, ela quebra
essa lógica de maneira sutil e eficaz. Austen observa, contundentemente, que essa tendência
em graduar o romance como um “gênero de menor valor” parte de premissas que dizem
respeito ao próprio fazer do gênero, denotando práticas que, de forma ou de outra,
influenciam categoricamente em sua recepção.

Deixemos aos críticos insultar à vontade tais efusões de imaginação, e a


cada novo romance lançar seus surrados ataques contra o lixo que hoje faz
gemerem as prensas. Não abandonemos uns aos outros; somos um corpo
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ferido. Embora a nossa produção tenha proporcionado mais amplo e


autêntico prazer do que as de qualquer outra corporação literária do mundo,
nenhuma espécie de composição foi mais vituperada. Por orgulho,
ignorância ou moda, nossos inimigos são quase tantos quantos nossos
leitores. E enquanto o talento do nongentésimo compilador da História da
Inglaterra ou do homem que reúne e publica num livro algumas dúzias de
linhas de Milton, Pope e Prior, com um artigo do Spectator, e um capítulo
de Sterne, são elogiados por mil plumas, há um desejo quase universal de
vilipendiar e desvalorizar o trabalho do romancista, e rebaixar obras que têm
apenas o gênio, a inteligência e o bom gosto para recomendá-las.
(AUSTEN, 2012, .p.42)

O romance teria, portanto, uma destacada importância nas práticas de uma leitura que
aqui denominaremos de ‘leitura feminina’. Surgidos num contexto em que a leitura
individual e silenciosa expandia-se consideravelmente, o romance pôde abarcar esse público
que, como já nos adiantou Guglielmo e Chartier, estaria ligado ao campo dos bons costumes,
da tradição e do rito familiar, e por essa razão seriam o público ideal desse gênero em
ascensão.
Embora as mulheres não fossem as únicas leitoras de romances, elas eram
consideradas o principal alvo da ficção romântica e popular. A feminização
do público leitor de romances parecia confirmar os preconceitos dominantes
sobre o papel da mulher e sua inteligência. Romances eram tidos como
adequados para as mulheres por serem elas vistas como crianças em que
prevalecia a imaginação, com capacidade intelectual limitada, frívolas e
emotivas. O romance era a antítese da literatura prática e instrutiva. Exigia
pouco do leitor e sua única razão de ser era divertir pessoas com tempo
sobrando. Acima de tudo, o romance pertencia ao domínio da imaginação.
Os jornais, com reportagens sobre eventos públicos, pertenciam geralmente
ao domínio masculino; os romances, que tratavam da vida interior, eram
parte da esfera privada à qual eram relegadas as mulheres burguesas do
século XIX. (CHARTIER, GUGLIELMO, p.168)

Ainda que a leitura entre as mulheres estivesse em progressiva expansão, é evidente


que havia um direcionamento para os assuntos que deveriam ser de interesse das moças. A
própria Jane Austen denuncia, por meio das falas de Catherine, a tendência dominante à
diminuição do valor do romance por conta de seu aspecto “lúdico”. A imaginação, matéria
prima dos romances, é atributo de inferioridade, corrente de pensamento contra a qual se
insurge a autora.
Jane Austen invertia a lógica de o romance ser uma literatura menor por trazer para a
sua escrita uma ironia pouco explorada dentre escritoras num ambiente predominantemente
masculino. Apesar de a figura da mulher estar sempre presente nas páginas dos livros - de
Helena a Madame Bovary, de Anna Karenina a Lolita – esse textos eram, em sua imensa
maioria, escritos sob a ótica masculina. Para as mulheres, escrever sempre foi o resultado de
uma luta árdua pelo direito à expressão; (PERROT, 1997 p. 97), e até o século XVII eram
poucas as que tinham acesso ao sistema de escrita. Quando tinham, estavam restritas à
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produção de correspondências ou a atividades relacionados à contabilidade de empresas


familiares.

Considerações Finais

Trazendo nas páginas dos seus livros olhares acurados sobre a sociedade que
conhecia, mais precisamente a aristocracia rural inglesa, e, mesmo inserida no contexto do
romance enquanto entretenimento, Jane Austen não reduzia o gênero a essa característica,
apesar de não desconsiderá-la:

‘Não sou um leitor de romances… Raramente folheio romances… Não vá


imaginar que leio muitos romances… Para um romance, está muito bom.’
Essa é a cantilena de sempre. ‘E o que anda lendo, Senhorita…? ‘Ah! É só
um romance!’, responde a mocinha, enquanto larga o livro com afetada
indiferença ou momentânea vergonha. ‘É só Cecília ou Camilla ou Belinda’;
ou, em suma, só alguma obra em que se exibem as maiores faculdades do
espírito, emque o mais completo conhecimento da natureza humana, o mais
feliz traçado de suas variedades, as mais vivas efusões de inteligência e
humor são oferecidos ao mundo na linguagem mais seleta. (AUSTEN,
2012, .p.42-43)

Aqui podemos destacar a sutileza da crítica de Jane Austen tanto aos costumes da
sociedade a que pertencia quanto a questões relativas ao romance, que, enquanto leitora, e
também autora – revelava práticas do que poderíamos chamar de uma escritura feminina do
século XIX.
Ora, estivesse a mesma mocinha entretida com algum número do Spectator
em vez de com tal obra, com que orgulho ela teria mostrado o livro e
pronunciado o seu título; embora seja mais provável que ela não esteja
ocupada com nenhuma parte dessa volumosa publicação, cujo conteúdo e
estilo não devem repelir uma jovem de bom gosto: consistindo tantas vezes a
substância de seus artigos na descrição de circunstâncias improváveis,
personagens pouco naturais e temas de conversação que não mais interessam
a uma pessoa viva; e a linguagem é também tão vulgar, que não passa uma
ideia muito favorável da época que a tolerou. (AUSTEN, 2012, .p.43)

Por mais que uma visão “rebelde” não seja a comumente associada a seus escritos,
Jane Austen constrói, de forma sutil, imagens de mulheres que rompem com o estigma de
confinamento ao espaço privado e à submissão. Suas protagonistas, a exemplo de Catherine
Morland, não exercem poder ou autoridade sobre os homens, mas são capazes de realizar
escolhas, rejeitando ou reconceituando padrões vigentes. Acompanhada por outras autoras
do universo literário inglês, como as irmãs Brontë e Virgina Woolf, Jane Austen e essas
escritoras superaram os limites dos livros de cozinha, manuais de pedagogia e contos
recreativos ou morais, e seriam responsáveis pela projeção de um novo modelo de
comportamento feminino que incorporasse a educação e a prática da escrita como
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características essenciais, e cujos desdobramentos perpetuam até hoje.

Referências Bibliográficas

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CAVALLO, Guglielmo.; CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental 2.


São Paulo: Ática, 1999.

CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. São Paulo: Estacção da Liberdade, 2001.

PERROT, Michelle. A minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007 .

ROUSSEAU, Jean Jaques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Bertrand,1995.

XAVIER, Elódia. Para além do Cânone. In: RAMALHO, Cristina. (Org.). Literatura
e feminino. Propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999.

WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naif, 2014.

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AS CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA FEMININA PARA A (RE) ESCRITA DA


HISTÓRIA DA BAHIA

Dra. Márcia Maria da Silva Barreiros (UNEB- CAMPUS I)


E-mail: mmbarreiros@yahoo.com.br

A Literatura e a fundação das Nações

O conceito de Romance de Fundação possui uma certa plasticidade e, portanto, ele não
vai assumir uma forma muito rígida frente à diversidade de ficções que emergiram a partir e,
fundamentalmente, nos oitocentos, em várias nações da América. Para Sommer, os romances
nacionais do século XIX marcaram época para as gerações de leitores: O conceito de romance
nacional quase não precisa ser explicado na América Latina; é frequentemente um livro de
leitura obrigatória no ensino médio como fonte de história local e orgulho literário (SOMMER,
2004, p. 18).
Esta repercussão e circularidade cultural do romance nacional sofre grandes variações de
acordo com as circunstâncias históricas, o local em que foi produzido e o significado cultural
dado a ele. Um romance irresistível, na expressão da referida autora, que desafiou a tradição de
uma geração centrada em seus valores estéticos e canônicos, a geração do Boom no cenário
literário, nos anos de 1960, representada por Gabriel Garcia Marquez, Carlos Fuentes, Mario
Vargas Llosa e Júlio Cortázar. A geração fazia crítica afirmando que pouco havia na ficção
latino-americana anterior (século XIX) que valia ser lido. Os escritores alegavam indiferença em
relação à tradição. Na tese de Sommer a negação aparece como sintoma de uma dependência
não resolvida. Era óbvio que os romances de fundação/nacional tiveram o seu valor e sentido
histórico e político para o contexto em que foram elaborados. Era uma narrativa que falava da
fundação da nação, dos estados nacionais e das nacionalidades latino-americanas e, indo muito
além, falava dos sentimentos e do imaginário daquelas sociedades. Eram romances sentimentais
que produziram enredos e dramatizaram a construção das comunidades nacionais modernas e a
constituição/formação de seus cidadãos. A política e a ficção eram inextricáveis na história da
construção nacional.
Romances com clássicos exemplos de intensas histórias de amantes perseguidos pelas
desgraças e infortúnios, representando regiões, raças, classes, gêneros, partidos, ideologias e
interesses econômicos, unindo sexualidade e política na fundação de diversas nações latino-
americanas, entre elas o Brasil. A paixão e o sentimento nacionalista são dois lados de uma

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mesma moeda. Nas escritas dos romances do período há uma nítida relação entre ficção e
história, onde o método narrativo na história vai ganhando importância dos próprios autores
locais, já que não há pretensão de objetividade no discurso e a “ciência histórica” com os seus
métodos e técnicas, ainda caminhava em construção. Não foram poucos os latino-americanos
que produziram a legitimação da narrativa na história e chegaram a considerar a narrativa – com
todo os seus excessos da imaginação - como sendo história, conclamando “a ação literária como
parte da campanha pela construção da nação”. O cânone do século dezenove fala literalmente do
investimento passional dos indivíduos no nacionalismo. Não é à toa, que há um ensejo em
promover a produção de romances para a construção da nação por toda a América.
No Brasil, é bom lembrar dos esforços do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
para a produção de obras e romances nacionais. José de Alencar (1829-1877) em “O Guarani” e
“Iracema”, sintetiza o projeto de escrever uma nação e uma literatura nacional caracterizada por
uma narrativa que levava em conta a realidade diversificada – com sua imensa extensão
geográfica – do país. Esses dois romances de Alencar reforçam o “equilíbrio da poética
indianista com o modelo de narrativa histórica do romantismo” (CASTELLO, 1999, p.264). O
painel traçado pela escrita alencariana relacionou em vários momentos e, em outras obras, o
indianismo e o nacionalismo romântico, estimulando uma literatura brasileira com “cor local” e
uma identidade nacional (BORGES, 2006, p. 89). A ideia de nação, tão premente, para a
América discursiva dos oitocentos engendrou uma conexão entre as paixões privadas e políticas,
porque o erotismo e o nacionalismo acabaram por se referir um ao outro nas ficções. O amor
romântico e o patriotismo, presentes na maioria dos enredos – não são naturais – mais
construções elaboradas pelos romances que parecem apenas representá-los, também em
metáforas. O continente americano precisava de histórias edificantes, elogiosas e autônomas, na
perspectiva das elites intelectuais, não poderia haver vida nacional “inteligente” sem uma
literatura nacional. O romance, em particular, se torna o estilo nacional literário por excelência,
delineando essa literatura de fundação. Neste sentido, Benedict Anderson chama a atenção para
as continuidades entre a construção nacional e as comunidades de leituras formadas em torno de
jornais (imprensa) e romances. Os escritores deveriam escrever e os leitores deveriam ler ... e ler
com ardor. Os livros que se mostraram “(...) tão sedutores para os leitores pertencentes à elite,
cujos desejos privados coincidiam com os desejos das instituições públicas, poderiam
reinscrever para cada cidadão futuro os desejos de fundação (naturais e irresistíveis) do/para o
governo no poder” (SOMMER, 2004, p. 48).
Para Anderson o sentimento nacional tem uma história, tem uma história moderna cuja
dinâmica começa com as independências republicanas nas Américas e que se “ (...) vincula a
fenômenos aparentemente tão díspares quanto a luta de classes, a ascensão das línguas
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vernáculas e do romance, o fim dos impérios coloniais e a emergência da impressão e da


imprensa moderna” (ANDERSON, 2008). É importante pensar a ascensão do sentimento
nacional – que forma as chamadas comunidades imaginadas e não simplesmente imaginárias -
para analisar como o fenômeno do nacionalismo absorve e expressa anseios e esperanças reais
originados nas tensões e conflitos sociais (ANDERSON, 2008). Nesta perspectiva, as nações
não são inventadas, mas imaginadas no processo de construção de solidariedades, mostrando o
apego afetuoso que os povos tem às suas imaginações e, aonde, por sua vez, os símbolos
mostram a sua eficácia no interior da comunidade de sentidos. No campo de saber da
antropologia propõe-se o conceito de nação como uma comunidade política e imaginada por
seus membros que dão a sua legitimidade emocional. Logo, a nacionalidade/nacionalismo ou a
condição nacional são entendidos como produtos culturais específicos (ANDERSON, 2008,
p.30). O romance e o jornal seriam formas de criação imaginária que criariam meios técnicos
para (re) presentar a comunidade imaginada da nação (Idem, p. 5). Para Edward Said os
romances de fundação se constituem enquanto elementos de destaque na construção coletiva de
um passado e de um “nós” comum e identificado (SAID, 2007).

Anna Ribeiro e o seu Romance de Fundação Helena: literatura, memória e história

O romance Helena, de autoria da escritora baiana Anna Ribeiro de Goes Bittencourt


(1843-1930)98, pode ser considerado em parte, um Romance de Fundação (ou romance
nacional/histórico), levando-se em conta as diferenças e peculiaridades comuns às narrativas
ficcionais redigidas na América Latina no século XIX e início do XX, tão bem documentadas no
estudo de Doris Sommer, que em conjunto receberam essa definição. Em Helena (1901),
publicado em forma de folhetim no periódico A Bahia, que circulava no contexto em estudo,
encontra-se uma produção literária que persegue o filão documentário da terra, derivada do
modelo romântico, como propõe Antonio Cândido, mas há uma evidente preocupação da autora
em problematizar as discussões acerca da fundação da nação brasileira, recuperando

98
Filha de uma família tradicional de proprietários rurais do Recôncavo baiano, Anna Ribeiro nasceu em 1843, na
fazenda Retiro, Vila de Itapicuru. Seus pais foram o fazendeiro Mathias de Araújo Goes e Anna Maria de
Anunciação Ribeiro Goes. O seu avô materno, o major Pedro Ribeiro de Araújo, teve extensa participação nas
campanhas da Independência da Bahia. Anna “viveu sucessivamente em dois engenhos da família até casar-se, em
1865, cumprindo o roteiro típico das mulheres de seu meio social. Cedo começou a preocupar-se com questões
práticas e metafísicas: a dependência das mulheres e a sua dificuldade de sobreviver fora da tutela masculina, as
condições de vida dos escravos, o livre arbítrio e o pecado original, a presença de deus na eucaristia”. Ver LEITE,
Márcia Maria da Silva Barreiros. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e escritas femininas na Bahia
(1870-1920). Salvador: Quarteto, 2005, p. 60-61. A citação é de BITTENCOURT, Maria Clara Mariani.
“Introdução”. In BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Góes. Longos Serões do Campo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1992, v.1. p.5.

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emblematicamente o mito da Independência Baiana e a data cívica do 2 de Julho, em um


referendo explícito à memória histórica do estado.
Na escrita de autoria feminina, faz-se necessário destacar as mulheres que, a exemplo de
Anna Ribeiro, mesmo que em um discurso epigonal, no que diz respeito à Bahia, não ficaram
imunes ao nacionalismo marcante nas letras oitocentistas. O resgate, a identificação e à análise
do folhetim Helena relaciona-se à importância histórica, documental, política e social de uma
obra que nos fala muito, e de modo peculiar, sobre a constituição da nacionalidade brasileira,
marcando sobremodo a voz feminina nos assuntos e espaços ditos masculinos do poder e da
política institucional e, também, da escrita de uma memória histórica. É importante
compreender como Anna Ribeiro - era assim que ela assinava as suas produções literárias -,
produziu representações discursivas sobre a sociedade na qual se encontrava inserida, bem como
reconstituiu uma história social que abrangia, ao mesmo tempo, a sua trajetória pessoal e
biográfica como autora, educada e instruída dentro das possibilidades de letramento e
socialização dos códigos de cultura vigentes, e a trajetória de formação/emancipação e/ou
fundação de uma nação.
A escritora de larga experiência intelectual registrou uma memória coletiva acerca das
relações entre os sexos no contexto em que vivia e, mais do que isto, produziu um discurso
político sobre o seu país, a sua nação, nos tempos pretéritos de constituição e consolidação de
uma “identidade nacional”. A narrativa Helena se enquadra no tipo de romance épico
caracterizado por tramas patrióticas comuns às ficções que emergiram a partir do século
dezenove na América Latina, ao qual nos referimos no item anterior. Seguindo a tradição de
romances históricos e nacionais, a sua narrativa diz respeito à constituição e/ou fundação do
Estado Nacional num claro exercício de interação entre política e ficção. Para um dos seus
admiradores, Anna Ribeiro “trazia nas veias o sangue dos libertadores, que, à custa de bravura e
sacrifício, tornaram a pátria independente” (MACHADO, 1952, p. 15). Neste modelo, a
literatura assumia a função (lugar) da história, ao produzir discursos pedagógicos para formar,
instruir e ensinar ao povo, bem ao gosto de uma história cívica exemplar embasada no
pensamento positivista dos oitocentos (SOMMER, 2004, p. 15-46). Esta literatura não fazia a
distinção entre a política ética e a paixão erótica – ao versar sobre o amor -, entre o sentimento
nacionalista épico e sensibilidade íntima, por isso dava origem aos romances de ficção e de
fundação simultaneamente (SOMMER, 2004, p.41-43).
A análise qualitativa do romance Helena motivou a recomposição de um passado baiano,
mas também de uma escrita feminina significante, que teimosamente expôs à sociedade local
uma mulher que ousou incursionar no mundo das letras, ajudando a romper círculos viciosos e a
inscrever o seu nome na história. O folhetim Helena como muitos outros ainda inéditos, tem
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
204

agora a oportunidade de sair de uma longa hibernação. Na área da História essas questões são
importantes porque tratam de vivências femininas em temporalidades específicas e dinâmicas. A
produção intelectual de Anna Ribeiro, selecionada para o presente estudo, trouxe à tona uma
vida cultural da Bahia do final do século XIX ao início do século XX, na denominada República
das Letras, inaugurada no país nas primeiras décadas dos novecentos (Machado Neto, 1973).
Deu ainda visibilidade à cidade, não como pano de fundo, mas enquanto palco de tensões com
os seus atores sociais constituindo novas práticas culturais num jogo de acomodação entre o
antigo e o moderno.
Como roteiro de um tempo a ser investigado, que nos remete ao mundo da escrita
feminina na Bahia, Helena, grosso modo, demarca um período de transição das estruturas do
Império para a República, onde na primeira década do século XX os desdobramentos das
mudanças sociais da antiga ordem senhorial-patriarcal como – a abolição da escravidão, a
proclamação da República e os projetos de modernização dos centros urbanos – se faziam
presentes. Para a vida das mulheres pertencentes às elites sociais, outras mudanças se tornaram
perceptíveis, como a crescente escolarização formal, a fundação de jornais femininos, a
publicização dos seus escritos, as campanhas em favor da educação pelo país e as experiências
assistencialistas e filantrópicas de uma hierarquizada sociedade, marcada pelas diferenças de
classe, gênero, geração e raça/etnia.
Na tradição das letras baianas, nota-se a retomada da data cívica do 2 de Julho de 1823
como símbolo de luta pelos ideais de Independência política e não subjugação dos interesses dos
dominadores portugueses, traço identificado como sinônimo da não aceitação dos autores ao
modelo literário da Corte Imperial. Esse traço aparece reencenado em produções por todo o
século XIX e, também, pelo século XX: A flor do deserto, lenda nacional de Agrário de
Menezes (1858), na peça Os tempos da Independência, drama histórico (1861) de Constantino
do Amaral Tavares, Mestra e mãe de Amélia Rodrigues (1898), Sargento Pedro: tradições da
Independência (1910) de Xavier Marques ou, ainda mais recentemente, em Viva o povo
brasileiro de João Ubaldo Ribeiro (1982). Na literatura baiana, é possível, então, assinalar a
emergência dos discursos de nacionalidade comuns à tradição latino-americana do século XIX,
a contrapelo do modelo romântico oficial. Enquanto nesse, nota-se o compromisso em fixar as
imagens conciliatórias entre portugueses e brasileiros, naquele se distingue uma unidade
discursiva pautada no registro da história da Bahia.
Uma história da Bahia contada, narrada e (re) vivida no romance Helena que segundo a
sua neta, uma das descendentes do extenso clã familiar de Anna Ribeiro, ela o reputava como o
seu melhor romance “no qual introduzira os fatos da Guerra da Independência, narrados por sua
mãe” (BITTENCOURT, s/d). A capacidade de memorização e de dar forma às lembranças dos
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
205

seus antepassados e do passado histórico da sua terra natal, era um traço marcante que
individualizava a escritora desde os primeiros momentos do exercício da sua escrita. Não só os
familiares, mas amigos e intelectuais, incluindo os críticos da literatura, foram enfáticos ao
caracterizar e descrever a sua forma e estratégia de narrar e/ou de se colocar no texto.
O antropólogo Thales de Azevedo ao comentar o livro de memórias da autora intitulado
Longos serões do campo, redigido quando a mesma tinha quase oitenta anos e já havia escrito a
sua prosa, incluindo Helena, sinaliza para a capacidade mnemônica e de narração da romancista:
ela associa recordações, relatos, descrições, notícias, detalhes, precisões à capacidade de
observação e julgamento, qualidades segundo Azevedo, de um “arguto pesquisador social”. Ele
avalia que o referido livro de memórias é “uma contribuição preciosa à etnografia e à sociologia
da vida interiorana, do melhor que se tem produzido no Brasil” (AZEVEDO, 1993, p. 121).
Antonio Loureiro de Souza destaca o viés “impressionista” à escritura de Anna Ribeiro “que
soube tecer as suas obras com arte, dando-lhe um colorido vivo” (SOUZA, 1973, p.149). Por
sua vez, Augusto Alexandre Machado, pontua a “riqueza de imaginação” como sendo um
elemento importante da autora ao escrever. De sua mãe ela herdou “aquela ânsia de tudo saber,
indagar e perquerir” (MACHADO, 1952, p. 16).
Em que pese o tom elogioso de alguns comentários acerca da forma de escrita dos
inúmeros enredos e tramas que Anna Ribeiro construiu a longo da sua carreira, é importante
salientar, nessas falas, o entendimento da pesquisadora Nancy Fontes que estudou o conjunto da
sua obra literária e, destaca de igual maneira, a capacidade que ela tinha de narrar através da
memória, os fatos, os acontecimentos e os episódios que ouviu de sua mãe e membros da sua
família na infância e na juventude na fazenda onde residia. Lembranças, vestígios e
reminiscências que guardou e ressignificou, tempos mais tarde, na fase adulta, para a sua escrita.
Para Fontes, Anna Ribeiro produziu uma ficção bem ao gosto do público naquele contexto,
privilegiando a escrita de romances - de estética romântica - para um público feminino, através
do modelo de folhetim – publicação nos rodapés de jornal -, onde procurou se debruçar sobre as
“questões femininas, em torno de suas protagonistas e, a construção de um romance feminino de
formação, um Bildungsroman” (FONTES, 1998, p. 72).
Aceita pela crítica local, Fontes destaca o modo como essa autora documenta e registra
as mudanças sociais do seu tempo (a abolição da escravatura, a decadência da aristocracia rural
e a proclamação da República), bem como a mesma se volta ao passado para contar o processo
político de lutas pela Independência da Bahia. Numa construção mais elaborada da crítica
literária “ (...) há marcas de uma escritura híbrida em que circulam temas e estrutura românticos,
mesclados a um tom realista, somados às peripécias do romance gótico inglês e que se
conjugam, ainda, ao caráter regionalista e/ou histórico” (FONTES, 1998, p.75). Como vertente,
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
206

em todos os seus romances, estavam presentes “ os aspectos que caracterizavam a época e que
representavam a Bahia” a fim de que “a narrativa pudesse servir como documento de uma
época”. Em seus romances há “referências relevantes à história da Bahia”. Em Helena a história
da Bahia e a construção de uma nação fazem a diferença.
Anna Ribeiro e o ficcionista Xavier Marques (1861-1942), seu contemporâneo e também
baiano, se enquadram no movimento das letras baianas, o Regionalismo, que desde o primeiro
quartel do século XIX pensa os fatos históricos da sua própria terra, perseguindo o “filão
documentário da terra derivada do modelo romântico” (FONTES, 1998, p.77).
Na sua produção extensa e diversificada de romances e contos e vivendo a agitação
cultural e literária da cidade de Salvador - seja nos intensos e concorridos salões festivos bem
descritos por Warderley Pinho ou girando em torno das discussões científicas da Faculdade de
Medicina da Bahia que mobilizavam a capital -, Anna Ribeiro lança, em 1901, o que seria o seu
segundo romance gótico: Helena. O primeiro romance da escritora que antecede Helena, foi O
Anjo do Perdão, lançado também em formato de folhetim no ano de 1885. Tanto um quanto o
outro são classificados como romances profanos em uma contraposição nítida aos outros
romances produzidos por Anna Ribeiro na vertente religiosa.
A chamada narrativa gótica se constituiu em uma marca comum às mulheres escritoras
do século XIX, apresentando em seus enredos: mistérios, locuras, assassinatos, mortes, traições,
medos, dores, sofrimentos, vinganças, honras, calúnias, ambições, intrigas, venturas,
desventuras, paixões proibidas e isolamentos. Esse tipo de narrativa gótica segue de modo
criterioso ao modelo dos folhetins franceses e ingleses. Zahidé Muzart chama a atenção para a
estética gótica no romance feminino muito comum à Europa oitocentista e mostra como o estilo
atraiu sobremaneira as escritoras brasileiras, é claro, com as necessárias adaptações das
histórias, personagens e ambientes a um país tropical.
De qualquer modo, o didatismo, o sentimentalismo, a doutrinação, o trágico, o sonho, a
fantasia e o ensinamento moral estavam presentes nas práticas escriturais femininas. As
mulheres vislumbravam esse romance como possibilidade de evasão e de refúgio em um tempo
passado, haja vista a dificuldade que elas tinham de se colocar e de se expor, tecer estórias no
tempo presente, a partir das suas experiências e vivências pessoais. A imaginação e a fuga do
real eram os meios pelos quais elas podiam exercer o seu estro (MUZART, 2008).
O romance Helena apresenta uma história recheada de eventos, mesclando fatos
históricos, dados familiares/biográficos e aventuras românticas e fantasiosas na antiga província
da Bahia. Para Anna Mariani Bittencourt Cabral, neta da escritora, na narrativa Helena a sua avó
repetiu o que ouviu dos antepassados. O romance Helena veio à público em capítulos diários no
período de 20 de junho de 1901 a 29 de outubro de 1901, no já citado jornal A Bahia (FONTES,
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
207

1998, p. 65). Ele é uma narrativa contada em dois atos: a primeira parte que a autora chama de
Prólogo e se inicia no ano de 1822 e, a segunda parte, que começa no ano de 1846. A história
fala do amor impossível entre dois jovens, Fernando e Beatriz, protagonistas da trama que se
desenrola na cidade de Salvador, Província da Bahia, no ano de 1822, e que tem como pano de
fundo o contexto histórico das lutas políticas pela Independência da Bahia.99 Anna Ribeiro
organiza a narrativa sempre centrada nas mulheres. Esse é um traço marcante que perpassa toda
a sua obra: o compromisso de produzir uma literatura pedagógica repleta de sentimentos
religiosos e morais para atingir o seu público de leitoras, que como ela, também foi educada
para ler romances.
Em que pese o compromisso da escritora com os valores da sua classe social e com a sua
orientação ética-religiosa, há uma consciência de gênero que aparece no seu texto acerca das
diferenças e limites que separa os homens e as mulheres na sociedade. O seu discurso ora
transgride para pensar em outros espaços para as suas interlocutoras – mulheres e leitoras -.
Espaços da leitura, da escrita, de direito à formação e educação e ao exercício de uma profissão,
no caso, o magistério. Crítica do feminismo radical, Anna Ribeiro não deixou de defender o
lugar da mulher para exercer mais do que as prendas domésticas no lar, mas para se sustentar
caso algum imprevisto a deixasse necessitada (o caso da personagem Helena). Daí o magistério
ser aceito e indicado enquanto uma ocupação honrosa para mulher de posição social elevada.
O seu pensamento se coaduna por um lado, com os objetivos da primeira fase do
feminismo corrente no Brasil, que incluía mulheres de classe social elevada e católica, como na
Bahia, tendo a educação como uma bandeira histórica do movimento. Por outro lado, é um
discurso que transige com o status quo dominante da época, denunciando a impropriedade de
comportamentos, de atitudes e de leituras perniciosas às mulheres das camadas elevadas da
sociedade. Um discurso de limites, interdições e vigilâncias principalmente no campo de
formação intelectual.
A partir dos oitocentos, em todo o país, a escrita feminina teve um amplo crescimento,
contudo, em alguns momentos ela reforçou os padrões de divisão de gênero vigentes. Talvez

99
As lutas pela Independência na Bahia assumiram especificidades, considerando que nesse estado grassaram
muitos conflitos armados (e sangrentos) entre os baianos e os portugueses. Para Rinaldo Leite os “baianos travavam
uma disputa pela hegemonia simbólica nos fatos referentes ao processo de emancipação política do Brasil” com
vistas a constituir-se “em versão oficial da fundação da nacionalidade brasileira”. Ver LEITE, Rinaldo Cesar
Nascimento. A rainha destronada: discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia nas
primeiras décadas republicanas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012. Os trechos aspeados encontram-se nas
páginas 81 e 82. O fim das lutas pela Independência na Bahia é comemorado no 2 de Julho que é a maior festa
cívica do estado. Nela se comemora a expulsão das tropas portuguesas da Bahia. A data se fixou como reverência e
tradição patriótica dos baianos e anualmente é festejada com saudações aos batalhões e aos heróis do passado.
Posteriormente, acrescentaram ao ritual cívico as figuras simbólicas do caboclo e da cabocla. Ver o estudo de
DIAS, Luis Henrique. História da Bahia. Salvador: Correio da Bahia, 2000, p. 173.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
208

uma estratégia para ser referendada, haja vista ser a escrita literária um campo praticamente
exclusivo do sexo masculino no século XIX. Não foram poucas as obras de literatura feminina
que precisaram da “aquiescência” dos pais, filhos, maridos, amigos (dos homens da família), e
das rodas literárias que lhe franqueavam como uma concessão. Muitas mulheres permaneciam
inibidas e retraídas no seu exercício do fazer literário. Estavam sempre resolvidas “(...) a
pedirem uma espécie de salvo-conduto para que vissem as suas produções aceitas. Havia uma
necessidade que as acompanhava o tempo todo como característica marcante da história da
tradição literária do ocidente” (LEITE, 2005).
Em que pese o reconhecimento pela crítica especializada da qualidade do texto e estética
da escritora Anna Ribeiro, a mesma, em sua trajetória, também teve que recorrer a diversas
estratégias para escrever e ver aceita a sua escrita. Na perspectiva de alguns autores, a escritora
baiana não necessitaria exagerar, por exemplo, no excesso de modéstia presente nos prefácios
ou introdução dos livros que redigia. Ela iniciou a sua vida literária com o patrocínio do Dr.
Inocêncio Góes, político importante da região e amigo da família.
Contudo, os chamados paratextos das mulheres escritoras falavam muito da modéstia, da
simplicidade e do limite de quem escrevia.
A produção literária e a presença constante em jornais e revistas femininas, com textos
não-literários, contribuíram para que Anna Ribeiro se fixasse no cenário literário como a
primeira mulher na Bahia a publicar romances e ter reconhecimento de público e de crítica. Ao
lado do escritor Xavier Marques, marco inicial da ficção na terra, ela será a referência da prosa
local do século XIX e início do XX. De fato, a escritora baiana foi reconhecida como prosadora
e literata.
Com o romance Helena podemos ampliar esse reconhecimento e credenciá-la também
como uma romancista que teve uma preocupação especial com a memória histórica do seu
estado. Seria uma forma de percebê-la mais do qu e uma simples escritora romancista. Os temas
históricos da Bahia foram muito caros e recorrentes na sua escrita. Produziram um efeito
diferenciador a uma mulher que escrevia romances, dentro de uma ética romântica e com alguns
aspectos já do realismo (descrição detalhada). É no próprio romance Helena que encontramos
características peculiares da escritora que se volta à história da Bahia, contada através da
memória dos fatos que vivenciou (in loco), mas, fundamentalmente, contada pelo que reteve das
lembranças dos fatos narrados por sua mãe.
Não é à toa que Anna Ribeiro escreve também na primeira pessoa, interferindo e se
colocando na narrativa como autora – não a narradora passiva -, mas a que se intromete, emiti
opiniões e juízos de valor. Ela deixa a voz narrativa em terceira pessoa e entra em contato direto
com o seu público leitor, as mulheres, falando na primeira pessoa. Cria uma cumplicidade para
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
209

que a sua mensagem chegue de modo rápido. No texto ficcional encontramos muito do pessoal,
do biográfico e do social. Talvez por esse motivo a ficção de Anna Ribeiro esteja tão próxima
de uma análise da sociedade. Não raro, os seus romances profanos, constituíram uma crítica
social acerca dos costumes e da cultura. Com o desejo de tudo documentar, a baiana ampliou a
concepção de romance e estendeu o seu olhar para além da fantasia e da evasão, compromisso
que os romances do período tinham e não podiam abandonar, sob pena de não serem mais lidos.
Em um artigo para a revista ela advertia: “O romance não é mais uma fantasia de imaginação
para divertimento das damas, porém sim uma obra séria, cujos detalhes são documentados, e na
qual os investigadores do século próximo irão encontrar escrita, dia a dia a história do nosso
século” (BITTENCOURT, 1916, p. 91).
Com aguda sensibilidade para o detalhamento e a descrição comparou e percebeu as
mudanças na vida rural e urbana na província da Bahia. A sua escrita era dotada de pontos de
vistas e enquanto narradora assumia o seu discurso e se posicionava. É nítida a relação entre os
seus textos ficcionais e os seus artigos/opiniões que escreveu para as revistas A Paladina do Lar
e A Voz, ambas de inclinação moralista, que circularam em Salvador na primeira metade do
século XX. Há ainda a hipótese de que Anna Ribeiro impôs quebras e fraturas no modelo
romântico oficial – que idealizou a mulher em torno do amor – tendo consciência dessa
construção social que em muito limitou a condição feminina.
Na escrita de mulheres aparece o contradiscurso comum das primeiras feministas do
século dezenove quando há evidências de “situações em que a ficção se amalgama com o sujeito
da enunciação” (NANCY, 1998, p.82). Para Sara Guardia, uma das principais características da
escrita feminina é “a forma direta de interpelar os discursos hegemônicos, criticar e reinterpretar
a tradicional cultura latino-americana” (GUARDIA, 2013, p. 15). Em parte, Anna Ribeiro
produz essa interpelação quando interroga a condição de gênero “passiva” das mulheres de
outros tempos. Quando critica o casamento e as escolhas autoritárias dos cônjuges que os pais
insistiam em fazer para as suas filhas, quando advoga o direito das mulheres se instruírem e
quando solicita o acesso à educação formal. Sem dúvida e de sua forma, a escritora baiana
dialogou com o feminismo histórico do período.
Longe de classificá-la com o estereótipo de “escritora burguesa” ou “escritora de
sinhazinhas”, faz-se necessário pensar Anna Ribeiro como uma representante da escritura
denominada de feminina. Escritura essa ligada à construção de memórias sociais variadas,
inclusive na sua dimensão de gênero. Assim descrita e caracterizada, a narrativa Helena é
produto cultural de uma escrita feminina preocupada com três dimensões: a memória histórica
de um momento do passado baiano (as lutas pela Independência e a autonomia de uma nação), a
memória de um grupo social (a aristocracia dos engenhos escravocratas) e a memória das
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
210

relações entre os gêneros (os lugares das mulheres e dos homens na sociedade). Nesta
perspectiva, de construção de um romance nitidamente autoral, no sentido de um discurso de
mulher feito para mulheres, encontramos a consciência de gênero, mesmo que tímida e atrelada
aos códigos culturais vigentes, aos cânones instituídos e aos interesses de classe da escritora.
Paradoxalmente, uma escrita que aprisiona às subjetividades femininas aos ditames da religião,
mas também as liberta quando outras possibilidades são sugeridas. A literatura feminina
apresentou o problema e junto com a história colocou uma crítica social.
Uma aprendizagem cultural em um contexto de desigualdade entre os sexos. Se tornar
escritora, falar de um tema histórico-político (a nação), escolher um público (as mulheres),
escrever no modelo do cânone hegemônico (o romance), mas com fissuras, porque é um
romance de tonalidade épica e típico da escrita masculina, se constituem razões para
demarcarmos a particularidade da narrativa de Anna Ribeiro e pensar que ela está entre muitas
“(...) vozes que emergem do silêncio para desenhar novos mapas discursivos na reconstrução da
memória e da ficção, o que também significa uma linguagem própria, um espaço de liberação
(GUARDIA, 2013, p. 15). O romance Helena diz muito de uma escrita feminina que deve ser
pensada a partir dos interesses tanto da área da crítica literária e da literatura feminina quanto da
história cultural, que buscam o reconhecimento da história das narrativas femininas, nos séculos
XIX e XX, para habilitar sujeitos sociais e memórias até então excluídas e silenciadas. É
importante pensar como as produções textuais das mulheres – cujas vivências remontam os
tempos passados - dialogaram com a sua época e como estabeleceram relações com a literatura
dominante do período e a história de seu tempo... a história das diferenças entre os gêneros.100

Referências

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nacionalismo. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.

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BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Góes. Contos. Prefácio de Anna Mariani Bittencourt Cabral.
Salvador: CEDOC – Fundação Clemente Mariani (texto avulso, s/d).

100
Para a discussão acerca dos estudos sobre a literatura feminina na perspectiva contemporânea ver as referências
bibliográficas ao final do texto.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
211

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LETRA DE MULHER: TRANSGRESSÕES, EXCLUSÕES E REAÇÕES EM MATO


GROSSO

Dra. Marli Terezinha Walker (IFMT)


E-mail: marli.walker@cba.ifmt.edu.br

O século XIX marca o início da participação da mulher na literatura produzida em Mato


Grosso. No que tange à produção lírica, embora tenham publicado em menor escala que os
escritores homens, o registro de poemas publicados por Elisa Alberto, no século XIX, traz
notícias de que essa produção foi esquecida ou ignorada nas historiografias que desenham o
mapa da poesia no Estado no decorrer de três séculos. O silêncio em torno dessa participação,
no entanto, não apenas evidencia toda e qualquer produção masculina, como relega ao
esquecimento escritoras que produziram e participaram ativamente da vida cultural em Mato
Grosso. O empenho de pesquisas revisionistas vem desencadeando, porém, alterações
substanciais nesse mapa, deslocando ou redesenhando o cânone já instituído.
Sob o olhar de cunho revisionista, verifica-se que em Mato Grosso, semelhante ao que
ocorreu em todo o Brasil, a presença da mulher na literatura nos séculos XIX, XX e início do
século XXI é contada de modo parcial nas pesquisas realizadas, sobretudo, por homens. O
trabalho de resgate empreendido por pesquisadoras mulheres traz à tona, porém, uma produção
mais numerosa e promissora do que aquela registrada por pesquisadores homens.
Note-se que o historiador, romancista, ensaísta e poeta Rubens de Mendonça publicou,
em sua História da literatura mato-grossense, em 1970, a literatura produzida no Estado desde
o século XVIII, no entanto, a ausência de escritoras mulheres é um fenômeno que deve ser posto
em relevo. Embora não se questione o valor da obra, o silêncio em torno das produções
femininas é latente, configurando a história da literatura mato-grossense desse pesquisador
como uma história da literatura mato-grossense produzida por homens.
Na História da Literatura do Mato Grosso: Século XX (2001), a professora e
pesquisadora Hilda Magalhães preocupa-se em trazer à baila alguns nomes que considera
lamentavelmente esquecidos no que se refere a apoio e incentivos de políticas de fomento à arte
literária para reedição de obras basilares da literatura produzida no Estado. É curioso, no
entanto, que o espaço destinado à produção de mulheres, na história da pesquisadora, esteja
visivelmente disforme em relação à criação masculina. Embora lamente, em conclusão à
pesquisa, que o esquecimento “mais implacável tem sido com a produção feminina”,
(MAGALHÃES, 2001, p. 314), não houve cuidado ou preocupação em mapear a produção das
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
214

mulheres que fundaram o Grêmio Júlia Lopes101 (1916) e, com ele, a revista A Violeta102
(1916/1950), cuja duração e veiculação foi a mais longa entre as organizações literárias surgidas
no Estado. Apenas a produção lírica de Arlinda Pessoa Morbeck, poetisa que publicou na
primeira metade do século XX, é citada na pesquisa, quando há vários outros registros de
publicações de mulheres em Mato Grosso no período mapeado por Magalhães. No 1ºXX, os
registros dão conta de pelo menos outras seis poetisas além de Morbeck, a saber: Maria de
Arruda Müller, Antídia Coutinho, Guilhermina de Figueiredo, Benilde Moura, Maria da Glória
Novis e Maria Santos Costa Gehre.
É curioso verificar que mesmo uma pesquisadora de fôlego, cuja proposta é escrever a
história da literatura do século XX em Mato Grosso tenha preterido a produção feminina das
primeiras décadas desse século. Fato ainda mais curioso é constatar que em 1993 a pesquisadora
Yasmin Nadaf publicou o resultado de sua dissertação de mestrado, Sob o signo de uma flor,
cujo texto traz à tona toda e qualquer produção feminina publicada em 274 dos 309 exemplares
da revista Violeta. Ainda assim, as autoras que escreveram e publicaram no primeiro XX,
mapeadas por Nadaf, não são mencionadas no texto de Magalhães.
Nesse contexto, pelo viés do olhar revisionista, vale ressaltar que, no 1º XX, o Grêmio
Literário Júlia Lopes e a Revista Violeta, veículos criados por mulheres para divulgar a criação
artística feminina em Mato Grosso, podem ser problematizados sob a perspectiva de que o
ingresso tardio da mulher no universo da criação literária, via agremiação feminina, constitui-se
um ato político – mesmo que não intencional – que antecipa a busca dessa mulher por espaço e
emancipação.
Seja no exercício da escrita ou na tomada de consciência da sua diferença em relação ao
homem no modo de pensar, sentir, amar e combater, a forma como essa mulher se organizou e
divulgou sua produção artística, seus anseios e sentimentos, converge para a ideia de fusão entre
vida e literatura, situando essas ações no âmbito de movimentos transgressores e reativos frente
a exclusões impostas historicamente. Organizadas à margem do espaço literário masculino,
essas mulheres demarcaram seu lugar na história da escrita no Estado e consolidaram, desde o
início século XX, o terreno da diferença por meio da construção de esferas separadas.
Assim, a discussão sobre o ato político das mulheres escritoras de Mato Grosso reside na
recusa ao silêncio que fora imposto a elas pela hegemonia masculina no meio artístico,
sinalizando uma reação conjunta à exclusão do domínio público, ao acesso aos recursos
públicos, à participação ativa na vida social, cultural e política, limitando seu espaço ao privado,
101
O Grêmio Literário Júlia Lopes, conforme Nadaf, foi “uma entidade cultural que atuou nas mais diversificadas
áreas e constituiu-se na maior e mais duradoura entidade do gênero no Estado” (2004, p.17).
102
A Violeta foi uma importante revista com publicação do Grêmio Literário Júlia Lopes que circulou em Mato
Grosso, entre os anos 1916 e 1950.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
215

instância que implica, historicamente, privações de toda ordem. Dessa forma, organizadas como
minoria à margem do sistema canônico instituído, as mulheres escritoras protagonizaram, em
Mato Grosso, um ato político de resistência e transgressão.
A transgressão desse conjunto de vozes consiste na recusa em permanecer no espaço
destinado a elas, o privado, uma vez que suas atividades femininas a ele se restringiam. O
ambiente público, exclusivamente masculino até então, constituía um território reservado ao
fazer do homem, tanto no campo político, artístico, como no econômico, fator não menos
importante e até mesmo fundamental para a criação e difusão da arte. Nesse contexto, o Grêmio
Literário Júlia Lopes e a revista A Violeta foram instrumentos que deram voz à minoria situada
às margens do processo irradiador de arte e cultura no Estado. Segregadas a esse entre-lugar, as
mulheres balbuciaram seu discurso num gesto de reação ao sistema exclusionário, transgredindo
os limites do espaço a elas imposto.
Ao falar da concepção de entre-lugar Hugo Achugar (2006) traz à tona a reflexão da
latino-americanidade como o lugar de ser perifericamente Outro, e discute em que medida o
sujeito inserido nesse espaço da enunciação manifesta seu discurso balbuciante. O balbucio
consistiria na articulação de uma resposta à qualificação desse sujeito como deslocado, como
alguém que fala do lugar do desprezo e do não-valor. A resposta surgiria, então, como discurso
elaborado por “aqueles que falam da periferia ou desse lugar que alguns entendem como espaço
de carência” (ACHUGAR, 2006, p. 14).
A partir dessa concepção, olha-se para a historiografia e a interpretação literária,
revisando o cânone a partir das vozes femininas excluídas do contexto literário. Esse aspecto
possibilita, então, pensar a trajetória da literatura de autoria feminina pelas vias do balbucio, de
Achugar, e do entre-lugar, de Bhabha. Ora, se a estrutura teórica elaborada pelas primeiras
pesquisadoras feministas partiu de ferramentas emprestadas à história, à psicanálise e à
sociologia para desvendar as coerções sociais que pesam sobre as mulheres e se, num segundo
momento, centradas nas obras escritas por mulheres, as pesquisadoras observaram as estratégias
utilizadas por elas para burlar o controle social, então o estudo de gênero transita pela margem
do sistema literário instituído, isto é, pelas vias do balbucio. Esse cenário balbuciante modula as
vozes silenciadas e marginais, elaborando conceitos próprios para pensar a participação, a
exclusão, o apagamento do sujeito mulher na produção literária do centro hegemônico.
Conforme reflexão de Schmidt (1996), a polarização cânone/contra-cânone implica uma
afirmação da autoridade do centro na medida em que a negação dos seus paradigmas de
referência, condição de existência da retórica contra-canônica, implica o reconhecimento do
centro como referencial, o que acaba alimentando e reforçando o seu poder de perpetuar os
paradigmas de valor em função dos quais certas obras são canonizadas e outras relegadas.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
216

Então, é essa a lógica que precisa ser desconstruída sob pena de o discurso crítico construir suas
próprias periferias. Para que isso não ocorra há de se pensar as próprias margens, porque elas
são complexas, irredutíveis à categoria unidimensional do outro.
Essa concepção é abordada também por Cíntia Schwantes quando discute a questão da
literatura como representação da sociedade. Segundo a autora, “no que toca à representação de
minorias, aos extratos da sociedade que alcançam, por motivos variados, pouca
representatividade política e, de maneira correlata, habitam as margens da representação
literária, a situação se complica um pouco mais” (2002, p.193). Schwantes adverte que o
princípio do qual parte para pensar a questão é “o de que a literatura nos fornece sinais indiretos,
muito mais do que diretos, sobre a sociedade na qual circulou, ou circula” (2002, p. 193).
Ora, a concepção da academia – do centro – de que a arte elaborada por aqueles que falam
desses espaços de carência ou do lugar do desprezo e do não-valor constitui-se como uma
produção literária de valor periférico frente ao cânone instituído deve, então, pensar essa arte
como a resposta, o balbucio que surge do entre-lugar e se faz ouvir, manifestando seu discurso e
seus valores. Compagnon (2006) lembra da impossibilidade em se definir racionalmente um
valor e, por isso, diz, se temos de um lado os defensores tradicionais do cânone e, de outro, os
teóricos que lhe contestam a validade, será, pois, pela via acadêmica que o periférico construirá
seu valor e seu lugar no centro.
Considera-se, então, que o entre-lugar, de Bhabha, e o lugar do desprezo e do não-valor,
de Achugar, atribuem à periferia, ao Outro, à margem, ao marginal e ao marginalizado a
produção do balbucio. Nesse contexto, ou, nesse entre-lugar, os grupos sociais, assim como as
identidades individuais de classe e de gênero, constituem-se perifericamente no interior da
nação, produzindo e consagrando o seu discurso, isto é, seus valores, suas individualidades e
identidades. Desse modo, ao falar de lugar, fala-se de uma posição construída e simbólica, uma
vez que, no entender de Achugar (2006, p. 22), “todos os lugares são construções metafóricas,
mas enquanto algumas não necessitam ser justificadas, outras sim, pois são como planetas sem
boca”. Problematizando ainda mais a questão, a autora diz que a tradição está pautada no
processo de reprodução do mesmo, pois a força homogeneizadora que atua sobre a seleção
reafirma as identidades e afinidades e exclui as diferenças incompatíveis com um todo uniforme
e coerente em termos de padrões estéticos de excelência. Assim, os valores ditos universais
constituem um cânone que é, na base, uma decorrência do poder de discursos críticos e das
instituições que os abrigam. No entanto, conceitos como diferença e alteridade colocaram sob
suspeita os pressupostos fundacionais, a questão da representação e os critérios de valor que
embasam a sua construção.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
217

O número de mulheres que atuaram e escreveram nos tempos do Brasil Império e, no


caso do Mato Grosso, até o início da República, é maior do que as nossas histórias da literatura
registraram e, por isso, outras histórias estão sendo escritas. Não se trata de apenas julgar se a
literatura feminina é melhor ou pior que a masculina, pois, conforme aponta Coelho (2000, p.
105), nessa época “as mulheres mal ensaiavam os primeiros passos no sentido de se
autodescobrirem e, obviamente, o faziam através da única óptica cultural ao seu alcance: a
óptica masculina”. Ainda sobre essa questão, Cíntia Schwantes lembra, em seu texto Espelho de
Vênus: questões da representação do feminino, que as primeiras tentativas de investigação sobre
a escrita da mulher esbarraram

na impossibilidade de se investigar tanto a escrita de mulheres quanto as imagens


femininas veiculadas na literatura com os aportes teóricos disponíveis, todos marcados
pela convicção de que o gênero é irrelevante – porque só existe um gênero passível de
investigação, o masculino, é claro. A primeira tarefa que se impôs, portanto, foi a
elaboração de um arsenal teórico que possibilitasse o estudo desse objeto, o feminino,
no âmbito da literatura (SCHWANTES, 2009, p.194).

Em esfera nacional, é no período romântico que a história literária registra presenças


femininas atuantes, não apenas no campo do fazer literário, mas também no do questionamento
da situação desigual em que vivia a mulher em relação ao homem. Quanto à produção literária
feminina do século XIX, atribui-se ao aperfeiçoamento das máquinas impressoras e à
consequente expansão do mercado editorial, a conquista de novos leitores e, principalmente,
leitoras, configurando a abertura de um espaço de fácil acesso às mulheres com vocação ao
exercício das letras. No entanto, o universo feminino permanecia sob a censura explícita ou sob
o olhar complacente do mundo masculino, que via o exercício da escritura como apenas mais
um capricho feminino e, mais grave, uma ameaça aos bons costumes. É no período
entresséculos (1880-1920), que se torna mais evidente o confronto entre o antigo e o novo
devido à persistência de uma literatura mimética, paralelamente ao surgimento de vozes
inovadoras.
Nesse contexto, a condição da mulher escritora em Mato Grosso não diverge da
realidade observada nas esferas nacional ou civilizacional. A literatura produzida por mulheres
em Mato Grosso, em conformidade com o que ocorreu no país, apresenta uma produção ainda
marcada pelo protagonismo masculino no âmbito da literatura, da cultura, da sociedade e da
política. Dentre outros aspectos, este é um dos fatores que caracteriza as autoras mulheres como
um grupo de escritoras colocado à margem da historiografia literária do Estado de Mato Grosso
em determinados períodos.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
218

Retoma-se a reflexão, novamente, a partir das concepções de Homi Bhabha (1998) e


Hugo Achugar (2006), para quem as minorias constituem parte integrante de totalidades sociais
postas como coesas e uniformes, norteiam e embasam a noção de balbucio, termo forjado para
pensar as vozes que se articulam nos espaços considerados o entre-lugar, aquele lugar de onde
as minorias balbuciam seu discurso e seu valor como grupo constituinte de um todo. Embora,
por diversas vezes, deslocado do cenário academicamente autorizado, o som que emana dessas
vozes minoritárias reverbera, deslocando o ritmo instituído para orquestrar uma suposta
composição, grave e agudamente masculina. Nesse contexto, a retomada das vozes femininas
preteridas denota a presença da mulher como uma parcela das minorias a que os modernos
estudos de gênero se referem.
Rita Schmidt (1997) problematiza essa questão no âmbito de um discurso crítico latino-
americano que possa se construir como um projeto orgânico e dinâmico de intervenção nas
práticas acadêmico-culturais, de modo a não nos rendermos e repetirmos o discurso hegemônico
pautado na ótica da colonização e tampouco nos apropriarmos, de forma mecânica, do discurso
do outro, pois é preciso muita cautela com esse horizonte exegético da diferença construído pelo
olhar etnocêntrico, tradicionalmente investido do poder da representação/poder da significação.
Porquanto, é no horizonte do comprometimento com a desconstrução de valores totalitários
hegemônicos e seus discursos de legitimação que o investimento no poder de
interpretação/significação perfaz o circuito da teoria e da práxis na configuração de dois grandes
eixos de investigação: resgate e revisionismo.
Sobre esse aspecto, Rita Schmidt adverte para as tensões que a formalização de um
espaço da mulher na literatura possam gerar aos meios acadêmicos, pois esse lugar se situa sob
o olhar vigilante das instituições – a literária e a acadêmica – e se constitui num gesto político
no sentido de reivindicar a visibilidade e a legitimidade da mulher como sujeito produtor de
discursos e de saberes na leitura da produção, recepção e circulação de objetos literários,
particularmente no contexto que a historiografia e o discurso crítico construíram como tradição
literária.
Esse modelo de uma cultura das mulheres tem conexões com e implicações para a teoria
literária feminista em voga, já que os conceitos de percepção, silêncio e silenciar são tão centrais
nas discussões sobre a participação das mulheres na cultura literária. Ora, se os grupos
silenciados devem mediar suas crenças por meio das formas permitidas pelas estruturas
dominantes, e se toda a linguagem é a linguagem dominante, e as mulheres, se falarem, devem
falar através dela, então a expressão por meio da arte é a via mais promissora para fazê-lo, muito
embora essa linguagem possa se aproximar de uma entrevoz em busca de uma voz.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
219

Entende-se, desse modo, que o descompasso verificado na produção literária de homens


e mulheres no Estado não se deve apenas ao processo tardio de escolarização da mulher e de sua
participação menos ativa na produção cultural de seu meio, mas, sobretudo, a maior divulgação
da literatura produzida por homens, tanto na capital como no interior. Esse é um dos fatores
centrais que justifica as parcas publicações efetivadas por mulheres naquele período. A
participação da mulher na literatura produzida em Mato Grosso traz registros desde o século
XIX, quando a escrita feminina já figurava entre as manifestações literárias. Embora tenham
publicado em menor escala que os escritores homens, as mulheres deixaram registros
significativos na história da escrita mato-grossense, produziram e criaram veículos próprios para
publicar e divulgar sua Literatura.
O Grêmio Literário Júlia Lopes e a revista A Violeta constituem, portanto, ato político
que reside na recusa ao silêncio que fora imposto a elas no meio artístico, pois sinaliza uma
reação conjunta à exclusão do domínio público, ao acesso aos recursos públicos, à participação
ativa na vida social, cultural e política, limitando seu espaço ao privado, instância que implica,
historicamente, privações de toda ordem.
Assim, a discussão sobre o ato político das mulheres escritoras de Mato Grosso reside na
recusa ao silêncio que fora imposto a elas pela hegemonia masculina no meio artístico, pois
sinaliza uma reação conjunta à exclusão do domínio público, ao acesso aos recursos públicos, à
participação ativa na vida social, cultural e política, limitando seu espaço ao privado, instância
que implica, historicamente, privações de toda ordem. A mulher poetisa, em Mato Grosso,
foi e é partícipe expressiva da literatura produzida no Estado. A ausência de boa parte das
poetisas nas historiografias locais denuncia uma espécie de pressão silenciosa no interior de um
processo ocorrido em períodos de emancipação e libertação. Ora, os desdobramentos
equivocados de pesquisas parciais, que se definem como história ou historiografia da literatura
produzida no Estado demarcaram e demarcam, para a lírica de autoria feminina, os limites de
uma historiografia do silenciamento.
Retomar textos escritos no século XIX e no decorrer da primeira metade do XX implica
em reinscrever nesse passado o lugar enunciativo das ausências, desestabilizando a fixidez de
sentido e o efeito de totalidade da memória, tal como se inscreve no cânone. À produção da
lírica feminina, já reconhecida da segunda metade do século XX e do início do XXI, soma-se a
do 1ºXX e do XIX. É a partir desse contexto que se inicia a história da poesia produzida em
Mato Grosso e, com ela, a participação ativa da mulher no processo social e cultural do Estado
no decorrer de três séculos.

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220

Referências

COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000.

COMPAGNON, Antonie. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de


Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. História da literatura de Mato Grosso: século XX.
Cuiabá: Unicen Publicações, 2001.

MENDONÇA, Rubens de. História da literatura mato-grossense. 2. ed. Especial. Cáceres: Ed.
Unemat, 2005.

NADAF, Yasmin Jamil. Presença de mulher: ensaios. Rio de Janeiro: Lidador, 2004.

_____. Sob o signo de uma flor. Estudo de “A Violeta”, publicação do Grêmio Literário Júlia
Lopes - de 1916 a 1950. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1993.

_____. Literatura mato-grossense de autoria feminina: séculos XIX e XX. In:______. Anais do
VI Seminário Nacional Mulher e Literatura. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
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SCHMIDT, R. T. (Org.). Mulheres e literatura: (trans)formando identidades. Porto Alegre:
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_____. Cânone/contra cânone: nem aquele que é o mesmo nem este que é o outro. In:______.
CARVALHAL, Tânia Franco (Org.). O discurso crítico na América Latina. Porto Alegre: IEL,
1996, p. 115 a 121.

_____. Centro e margens: notas sobre a historiografia literária. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea. 2008. v. 32, p. 127-141.

SCHWANTES, Cíntia. Espelho de Vênus: questões da representação do feminino. In:______.


XVII Encontro Nacional da ANPOLL, 2002, Gramado. Boletim do GT A Mulher na Literatura.
Florianópolis: EdUFSC, 2002. v. 9, p. 193-197.

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221

O FEMININO E O FANTÁSTICO EM A RAINHA DO IGNOTO DE EMÍLIA DE


FREITAS

Suellen Cordovil da Silva (UFSM/UNIFESSPA)


E-mail: sue_ellen11@yahoo.com.br

Introdução

Nesse artigo elaboramos uma leitura da obra A Rainha do Ignoto: romance psicológico, de Emília
Freitas, sob o viés metodológico da estética da recepção de Hans Robert Jauss em A história da
literatura como provocação a teoria literária (1994). Observamos os elementos na narrativa que
retratam a condição da mulher conforme os estudos de Elaine Showalter em seu livro Anarquia sexual
(1985) e, além disso, ressaltamos a importância da autoria feminina e características de gênero fantástico
destacando o espaço da mulher no enredo.
A autora da obra A Rainha do Ignoto, Emília Freitas (1855-1908), foi uma poeta e
romancista cearense que, aolongo de sua obra, discutiu a obra a questão da mulher na sociedade
patriarcal. Neste artigo, trabalharemos com os estudos da recepção de Jauss, uma vez que esses
autores privilegiam o papel do leitor para uma melhor compreensão da obra literária,
relacionando-os à abordagem de Elaine Showalter.
A obra de Emília Freitas é uma literatura de caráter fantástico. Os leitores preocupam-se
com o efeito ou estranhamento incitado em uma primeira leitura “desinteressada”, como
defendido com Todorov em Introdução à literatura fantástica (1975). Todorov defende o
fantástico como uma construção de hesitação que promove uma integração do leitor no
ambiente dos personagens. A hesitação atrai o leitor por meio de uma afeição com um
personagem. Com isso, os estudos de Todorov em relação ao gênero de narrativa fantástica
foram cruciais para um melhor entendimento das estruturas do enredo. Observamos a
necessidade de encontrarmos o espaço da mulher brasileira como escritora desse gênero de
literatura.
Ao longo de muitos anos a história da literatura não apresentava um devido valor para as
autoras femininas brasileiras. A História da Literatura Brasileira, de 1882, foi uma obra
desenvolvida por Sílvio Romero que não tinha nenhum critério para selecionar as autoras
femininas. Então, assim como Virginia Woolf escreveu Um teto todo seu (1929), que propunha
destacar e selecionar trabalhos femininos, Zahidé Muzart, organiza seu livro de três volumes
intitulado Escritoras brasileiras do século XIX desenvolveu informações sobre mulheres
brasileiras desconhecidas da história literária nacional. Nesse documento, verificamos da página
723 à 727 um apanhado sobre Emília Freitas. Constancia Lima Duarte, autora do capítulo, cita

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222

outras obras de Emília Freitas: Canções do lar (1891), O renegado (1890) e suas colaborações
desde 1973 nos jornais Libertador, Cearense, O Lyrio e A brisa, de Fortaleza, e o Amazonas
Commercial e revolução, de Belém do Pará.
A protagonista é confrontada com um pensamento do patriarcado no enredo, conforme o
diálogo dos dois personagens masculinos, Probo e Dr. Edmundo, que serão analisados ao longo
deste artigo. Além disso, a mulher doente teria que ser condicionada a situações silenciosas e
afastadas do contexto social. O fantástico propõe reavaliar a realidade por meio de
questionamentos da identidade das personagens.

Teorias feministas e as relações com o fantástico: uma releitura crítica da obra A rainha do
Ignoto

Elaine Showalter, em seu trabalho A literature of their own: British women novelists
from Brontë to Lessing (1977), apresenta três fases das escritas femininas: a fase feminina
(1844-1880), a fase feminista (1880-1920) e a fase da mulher (1920-1960). A primeira fase
“copia” os modelos privilegiados na tradição masculina dominante e manifesta as relações
sociais por meio da arte ou literatura. A segunda fase apresenta ações de justiças contra os
valores pré-estabelecidos socialmente que instiga uma necessidade de autonomia. A terceira fase
é da mulher que se entende por ser um momento de autoconhecimento individual. A Rainha do
Ignoto encontra-se entre a primeira fase e a segunda.
Para Elaine Showalter existem três fases sobre os estudos literários feministas. A Rainha
do Ignoto está no limiar da primeira e segunda fase, porque a autora é uma mulher que traz
elementos do protofeminismo em personagens femininos nesta obra. A autora aborda a questão
da ginocrítica em seu ensaio sobre “A crítica Feminista no Território Selvagem” (1994). Essa
proposta, ginocrítica, desenvolve um estudo sobre as mulheres como escritoras e suas escritas
criativas, como, por exemplo, o uso de técnicas de enredo de personagens com uma intensa
habilidade psicológica. Há uma busca feminina por descobrir novos horizontes de expectativa
em suas leituras, para que houvesse uma reformulação sobre alguns conceitos cristalizados pela
sociedade. Então, as críticas feministas são importantes para que haja um despertamento da
mulher diante dos estudos literários, justamente, assim como por muitos anos a imagem
feminina ficou sem uma atenção devida.
Um exemplo de exclusão da historiografia literária foi Emília Freitas, dentre outras
autoras. Existe um legado deixado pelo patriarcado de exclusão das autoridades femininas que
se reflete nos estudos literários. A autora depois do falecimento do pai, em 1869, estudou
Francês, Inglês, Geografia e Aritmética em uma renomada escola particular, ou seja, ela se
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dedicou aos estudos. Nosso desafio se encontra em conhecer o limite dado às mulheres pelo
patriarcado no enredo literário, e com isso iremos realizar uma leitura atenta da obra promover
um reconhecimento das mulheres esquecidas. A sociedade patriarcal está cada vez mais
ameaçada diante da proposta de intervenção da crítica feminista ao influenciar as articulações de
movimentos feministas, em prol de reformulações políticas e educacionais.
Rita Schmidt (2000), em seu artigo “Mulheres reescrevendo a nação”, critica a maneira
de construção da identidade cultural brasileira e as marcas da exclusão da autoria feminina no
século XIX. Com o acúmulo relativamente grande de números de autores da literatura nacional
ao longo dos anos, o cânone literário não se atentava para as questões de gêneros nos seus
processos históricos e formação da literatura nacional. Ela aborda essa relação da construção da
identidade cultural brasileira e entende esse processo que gerou uma exclusão da autoria
feminina no século XIX, conforme alega:

Pelo viés da ótica feminina, nacionalizar o nacional, o que soa aparentemente como um
despropósito, significa, justamente, questionar a matriz ideológica do paradigma
universalista que informou o princípio do nacionalismo brasileiro, responsável pela
constelação hegemônica de forças políticas, sociais e culturais presentes na formação e
no desenvolvimento da nação como narração (SCHMIDT, 2000, p. 89).

Rita Schmidt, em seu artigo “A história da Literatura tem Gênero? Notas do tempo (In)
acabado de um projeto”, retoma a importância dos debates sobre expressões culturais, literárias
e histórias das literaturas nacionais em torno o questionamento se a literatura tem um gênero
especifico. A problemática apresentada por Schmidt sugere novas observações com relação às
limitações geradas pelas reflexões sobre as questões de gênero e a literatura, pois não se criou
um objeto de estudo que averiguasse de modo preciso o cânone e suas exclusões de outras
escrituras marginalizadas. Além disso, discutimos sobre a autoria feminina ao longo da história
da literatura que não houve uma inclusão pelo cânone, com isso a cultura literária masculina
imperou no regime elitista literário. A sexualidade em relação à construção da cultura literária
foi extremamente patriarcal sobre o ponto de vista da autora conforme constata que “não basta
afirmar que a sexualidade é historicamente construída mas também, reconhecer que a história,
ela mesma, é sexualmente construída” (SCHMIDT, 2015, p. 3).
As metáforas centradas na hegemonia masculina se tornaram enraizadas na cultura social
que parecem de modos sutis ecoar na atualidade. Desde o texto Política, de Aristóteles, observa-
se uma certa exclusão das mulheres e a superioridade masculina, ele caracteriza as mulheres e os
escravos como corpo com almas menores e irracionais como descrito por Rita Schmidt. Os
binarismos, como, por exemplo razão versus emoção, alma versus corpo e substância versus
matéria criam um processo de exclusão das mulheres o que as limitam suas atividades
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cotidianas. A influência paterna prevaleceu na história da literatura que cuidou do mercado


editorial viabilizou a recepção e a própria canonização das obras literárias masculinas. Com os
surgimentos dos críticos verificamos uma contribuição para uma nova análise e inserção dos
estudos de gêneros na historiografia literária. Esse resgate da recepção crítica sobre a autoria
feminina em obra de literatura com personagens feministas racham as estruturas do poderio
masculino.
As leitoras femininas passam a repensar seu papel socialmente com as aberturas na
literatura por escritoras femininas. Dessa forma, os engajamentos em atos de resistência
oriundos dos escritos libertários feministas contribuem para novas possibilidades de quebras
com o patriarcado. A importância do papel do leitor nas teorias da Estética da Recepção abrem
novos horizontes de expectativas.
Outro ponto interessante é o gênero fantástico destacado na obra abordada neste artigo.
No ensaio de Gustavo Czekster, “Escrever Literatura Fantástica no Brasil do século XXI”
(2017), apresenta uma problemática sobre o universo de literatura fantástica e traz uma reflexão
sobre a literatura ser algo de entretenimento como também algo sério. Além disso, ele menciona
atividade acadêmicas que tratam do assunto bem, como o Congresso Internacional Vertentes do
Insólito Ficcional e um mapeamento literário do fantástico na literatura brasileira em formato de
exposição organizado por Bruno Matangrano (USP) e Enéias Tavares (UFSM) com o título
“Fantástico Brasileiro: O insólito literário do Romantismo à contemporaneidade”. Essa
exposição mencionou Emília Freitas como uma escritora de narrativa fantástica brasileira dentre
outros autores. Elenara Quinhones que trabalhou na sua dissertação sobre a autora em “Entre o
real e o imaginário: configurações de uma utopia feminina em A rainha do Ignoto, de Emília
Freitas” participou da exposição na UFRG em 2017, e publicou uma resenha na revista Scripta
Uniandrade sobre sua experiência na atividade expositiva acadêmica de pesquisa e extensão do
“Fantástico Brasileiro: O insólito literário do Romantismo à contemporaneidade”.
Diante das pesquisas mencionadas anterior sobre o fantástico na literatura brasileira,
verificamos no artigo de Aline Oliveira intitulado “A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas: do
fantástico à utopia” (2014) que o fantástico na obra de Emília é descrito pelo enigma da
personagem ao longo da narrativa, além do espaço noturnos e densos em ondulações com os
sentimentos de medo e curiosidade dos personagens, como afirma a autora:

Podemos dizer, resumidamente, que a literatura fantástica desse período se caracteriza


por uma intromissão, no universo tido como cotidiano, de eventos ou seres que põem
em xeque a suposta estabilidade do mundo, pelo menos segundo um entendimento
amplamente aceito e reiterado na sociedade. Em outras palavras, ela provoca,
essencialmente, uma crise no mundo tal qual se acredita conhecê-lo, despertando

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explicações diversas e excludentes entre si para os fenômenos que geram estranheza.


(OLIVEIRA, 2014, p.143)

Nos “Contos fantásticos do século XIX O fantástico visionário e o fantástico cotidiano”


(2004) de organização de Ítalo Calvino que trata sobre questões da interioridade do indivíduo e
a simbologia coletiva as quais são presentes no enredo de Emília de Freitas. No artigo de
Anselmo Alós intitulado “O estranho e a crítica ao patriarcado: resgatando o romance Rainha do
Ignoto de Emília Freitas” (2015) trabalha com o estranhamento situando que:

o romance não foge ao script narrativo da época, e a heroína paga sua afronta -
sociedade patriarcal duplamente - a Rainha não apenas fecha seu coração ao amor
(mostrando assim a impossibilidade de conciliação entre a realização sentimental -
esfera privada e a realização social e política, esfera pública), mas também termina
dando cabo sua própria vida, suicidando-se no final do romance (2015, p. 117)

Os textos narrativos literários estão compostos em uma dinâmica entre história e


discurso, e, neste processo, o personagem se insere por ações as quais “Essas ações decorrem ao
longo de tempo e são vividas por determinadas personagens, cuja importância relativa se irá
definindo ao longo da narrativa” (REIS, 1995, p. 346). Dessa forma, a personagem protagonista
apresenta-se com diversas configurações dentro da obra. Ele assume um papel diferenciado por
ter uma concepção antropomórfica da personagem numa concentração de significados pré-
estabelecidos. A rainha do ignoto utiliza uma diversidade de máscaras ou personas. Ela poderia
ser quem ela fosse com o poder de uma hipnose que destacaremos como um elemento do
fantástico na obra. Com isso, a persona permeia em um interior da prosa literária e do teatro,
além de serem os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos em um
determinado espaço.
A Rainha do Ignoto é uma personagem complexa na narrativa, porquanto está dentro de
uma situação marcada pelo contrário ao pré-estabelecido socialmente. A personagem convive
como os demais personagens, isso promove uma unidade construída gradualmente pela obra. A
personagem feminina foi desenvolvida por elementos facultados sobre o ser feminino, ou seja,
essas características facultadas do ser feminino não são consideradas importantes na sociedade
patriarcal.
A autora Emília Freitas propõe uma defesa do abolicionismo e sua personagem a Rainha
do Ignoto segue essa atuação. Por isso, o modo fantástico na narrativa é uma estratégia de dar
voz ao feminino que outrora era proibido pela sociedade patriarcal. Não se pode perder de vista,
a sua relação com o mundo manifestando uma contra ideologia da sociedade da narrativa dentro
de um plano do discurso. Esse discurso descreve uma linguagem hipócrita do patriarcado. No
enredo a personagem Rainha transmite uma vida entre a realidade e a ficção, o que de fato
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226

ocorre por suas ações e reconhecimento de seus valores e descrições o que contribui para a
formação de um enredo.
De acordo, com as características do personagem em um determinado enredo constata-se
que o primeiro elemento não é solto em uma narrativa, e, sim relembra uma relevância quanto a
conduta, mesmo sabendo que não são seres vivos. Partindo, disso, o crítico Candido menciona
um personagem que é mais lógico, obviamente, não tão mais fácil do que um ser-vivo. De certa
maneira, são claramente delimitáveis e pelas suas ações são facilmente caracterizados; por outro
lado, podem ser complicados e problemáticos, no que tange aos pontos profundos dos
desconhecidos e dos mistérios dentro de um enredo.
Essa aproximidade de ações dos personagens com seres humanos se relacionam com a
sétima tese de Hans Robert Jauss que a literatura abarca elementos de uma vida prática cotidiana
do leitor dentro de uma experiência estética. Dessa forma, esse processo de experiência estética
irá contribuir para uma reflexão social, ética, psicológica, entre outros contextos sociais. Ele
estabelece uma relação entre literatura e sociedade, conforme a sociologia tradicional que era
limitada e superficial, porque estabelece uma realidade pré-estabelecida. A função social da
literatura só pode ser plena por meio da experiência do leitor, e, isso se repercute no horizonte
de expectativa de sua vida prática.
O personagem doutor Edmundo passa a reconhecer e a depender do Outro (feminino
como alteridade) ao longo de sua investigação em busca de respostas decorrentes de sua história
de sedução sobre a personagem feminina Funesta. O doutor encantou-se com as palavras
poéticas da personagem feminina. A personagem atingiria uma validade universal,
consequentemente, devido a uma concretização individual da Rainha do Ignoto.
O autor Jauss trabalha com o método hermenêutico diante das obras literárias. Jauss
acreditava que para compreender a narrativa literária necessitamos ter uma leitura histórica de
outras experiências literárias de leitura da obra. Essas experiências literárias podem libertar o
leitor de confrontos na sua vida prática. As teses de Jauss trabalham sobre os pontos de
recepções críticas das obras literárias que sofreram represálias sociais, como, por exemplo, na
obra literária Madame Bovary. Ele retomou as perguntas sobre a práxis da vida nessas obras tão
importantes esteticamente. A literatura tem uma proposta de nos libertar das nossas opressões e
adotar novas experiências por meio do poder criativo da mesma.
Observamos que a dissertação intitulada ‘Entre o real e o imaginário: configurações de
uma utopia feminina em A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas’ (2015) apresenta a narrativa
como uma tentativa de surgimento de um protofeminismo e um novo modelo de mundo
conforme Elaine Showalter defende. Logo, os espaços e as personagens femininas causam um
estranhamento para as personagens masculinas. Notamos essa imagem de incapacidade
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227

feminina no discurso das personagens masculinas, conforme descrito no trecho quando o Dr.
Edmundo encontra-se com Probo no palácio da Rainha:

- Oh! Exclamou o Dr. Edmundo, mas por que tanta inquietação? Julga-se cercada de
perigos? Tem muitos amigos?
- Nada, disse o velho, é que ela é a força centrífuga dessa sociedade de malucas...
- Por que chama de malucas?
- Porque são mesmo. Não vê o senhor uma fortuna como esta tão mal empregada em
benefícios que só elas conhecem. Vivem errantes, obscuras, perdidas no seio da
humanidade como areias no fundo do oceanos, no seio das vagas! Quando podiam
gozar de tudo que é dado na vida ao poder do outro! (FREITAS, 2003, p.196-197)

Essa visão, descrita na obra, contempla a percepção de que o poder financeiro feminino
não deve ser desenvolvido ou adquirido, conforme expresso no trecho: “Este tesouro acumulado
na mão deste diabo deve ser considerado um crime” (FREITAS, 2003, p.197). A capacidade
feminina representada pela Rainha ajuda-nos a compreender a condição feminina de
desenvolver o dom de proteger as classes menos favorecidas socialmente, devido à violência
física e psicológica, no contexto atual, diante de um sistema pré-estabelecido que ignora as
personagens marginalizadas. Ela também restaura uma ideia de liderança feminina de modo
organizado, ao passo que valoriza sua condição outrora subjugada pelo patriarcado, tendo em
vista a ideia anterior descrita observamos uma desestabilização da “trindade” que seria o direito
de propriedade aos senhores, a monarquia e a religião:

- O senhor a de ver o que eu tenho visto. Olhe aqui na ilha não há templo católico nem
de religião alguma, há somente sessões espíritas, na biblioteca, onde ela possui todas as
obras de Alan Kardec, de Flammarion e outros malucos como ela. Enfim, o senhor
verá. (FREITAS, 2003, p.198)

Nesse trecho se ecoam as metáforas centradas na hegemonia masculina as quais estão


enraizadas na cultura social. O diferente ou a alteridade passa a ser desconsiderado pela
sociedade. De acordo com obra, as personagens masculinas afirmam que as ações das
personagens femininas de liderança são uma subversão social. A representação dos binarismos
se reflete no discurso do personagem Probo. A liderança masculina monárquica sente-se
ameaçada diante do poderio da Rainha, já que com uma política unívoca existe uma maior
possibilidade de manipulação do sistema. Porém, ela proporciona uma abertura para viabilizar o
poder feminino em todas as instâncias sociais na obra literária. Os posicionamentos da Rainha
são misteriosos, mas se desenrolam ao longo da narrativa.
A visão de uma mulher que cuida de outras e desenvolve habilidades místicas as quais
provocam um incomodo na sociedade pré-estabelecida, conforme a personagem afirma “É das
trevas que se pode contemplar a luz” (FREITAS, 2003, p.250). Os sentimentos da personagem
também passam uma ideia de experiência e sofrimento, visto conforme na visão da Rainha
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228

afirma que: “O amor nem sempre é absoluto como erradamente pensa a mocidade” (FREITAS,
2003, p.390). A personagem Rainha tem na obra vários papeis sociais ou “máscaras”. Ela pode
ser Funesta, Diana, Blandina Malta, Zuleica Neves e Zélia. Ressaltamos que os personagens
femininos da Rainha carregam informações que desestabilizam os cenários sociais, como por
exemplo, no trecho sobre Funesta: “Dizem que, por onde aparece, é desgraça certa. Chamam-na
A Funesta – Deus me livre de encontra-lá.” (FREITAS, 2003, p.33).
Esses discursos de superstições, no início da obra, deixam Dr. Edmundo curioso pela
personagem feminina. Dr. Edmundo admirava a beleza exterior das personagens femininas e
suas ações valorosas com o passar da obra. Sua admiração foi se tornando de maneira gradativa
uma espécie de investigação pela personagem da Rainha do Ignoto. Doutor Edmundo encontrou
um poema na gruta quando ia se aproximar da misteriosa mulher e estava escrito:

- Eu busco, nesse espaço dilatado,


O caminho do céu... de outro planeta
Para onde meu ver vá transportado,
Quando quebrar da vida esta grilheta.

Se eu pudesse sofrer de nostalgia...


Que pátria? Que nação seria a minha?
Se tudo neste mundo me enfastia...
Que afeto posso ter que me definha? (FREITAS, 2003, p.76)

O personagem doutor Edmundo lê o poema e considera a Funesta, uma poetisa. Ela a


partir do poema permite criticar o contexto social vivido, porque procura um espaço dilatado,
não patriarcal. Além disso, tem um não lugar de pertencimento, conforme visto no trecho “Que
pátria? Que nação seria a minha?” propõe uma incerteza de suas origens diante de suas
indignações sociais. Por isso, a obra está relacionada entre a primeira fase e a segunda fase da
autora apresentada pela crítica de Showalter. Então, Edmundo começa a entender mais sobre os
ideais femininos da narrativa.
No capítulo XI intitulado “Deusa” observamos a questão da felicidade apontada por
Diana, outro nome da Rainha. Ela afirma que não existe felicidade. Nesse mesmo capítulo
apresenta a sua relação com a natureza como sagrada. Ela afirma o seu sentimento angustiado
no seguinte trecho “Minha alma é uma harpa eólica onde vibram toda as harmonias da natureza;
mas se perdem com elas nas solidões do espaço!” (FREITAS, 2003, p.86).
A autora descreve que a felicidade é passageira e foi experimentada na adolescência,
portanto na idade da razão, como chama idade de adulta, a felicidade não é completa. Dessa
forma, para ela não se tem mais a felicidade. O título do capítulo Deusa transmite a
característica reconhecida pelas personagens femininas por meio dos discursos de Diana. O
poderio feminino da personagem é demonstrado nos seus discursos de profunda tristeza e de
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229

uma autoridade admirável como descrito por outros personagens, como por exemplo: “― Esta é
uma criatura sublime! Uma fada! Uma deusa.” (FREITAS, 2003, p.89). Apesar de ser uma
Deusa, ela segue um fim doloroso.
A Rainha do Ignoto traz características universais em suas ações. Porquanto, ela é uma
heroína. Emília de Freitas trouxe uma personagem feminina que ameaça o equilíbrio de
narrativas criadas por homens de personagens heroicos masculinos. Talvez, seja, por esse
motivo que a autora ainda não esteja reconhecida no cânone, por desafiar uma consciência
cristalizada do patriarcado no âmbito literário. A personagem feminina transforma mulheres e
torna-as livres socialmente. A preocupação da Rainha com o bem estar alheio traz uma imagem
superior de serviço para o bem de todos. Verificamos o lema da Rainha, no trecho escrito em
uma folha na gruta que o doutor Edmundo leu:

Sou filha da natureza, noiva do infinito!


Senhor, não olheis para a voragem!...
Ao pé de vós existe um lago azul, tranquilo
Como a luz dos olhos de um recém-nascido,
Navegai por ele que encontrareis
O porto da bonança, e não velejai por esses
Mares da visão.
Funesta (FREITAS, 2003, p.140)

O personagem Edmundo se assunta com o poema encontrado na gruta. Ele começa a


reconhecer que ela é “o diabo”. Em suas andanças com o personagem Probo, o caçador de
onças, Edmundo pergunta para Probo numa tentativa de saber quem era a Rainha, mas logo
Probo admite “― Nem eu, nem ninguém no mundo sabe!” (FREITAS, 2003, p.157). Além
disso, Probo foi contratado pela Rainha para algumas atividades e ele afirma que em suas
experiências ao trabalhar para ela:

As Paladinas do Nevoeiro nunca lhe viram o rosto, porque só tira a máscara para os
estrangeiros, fora do Ignoto, conforme o papel que ela quer representar no mundo: ora
é filha do caçador de onças e Funesta ou fada da gruta do Areré, como tem sido neste
burgo, de outra vez é modista, é marquesa, é diabo! É tudo! Até alma! (FREITAS,
2003, p.160)

As diversas máscaras de interpretação da Rainha incomodam Dr. Edmundo. Ele passa


desde o início da obra a ser um estudioso das mulheres representadas no enredo de modo que o
deixa de certo modo mais sensível. Ele traça o contraponto do que é verossímil do que não é.
Essa investigação de Dr. Edmundo parece estar entrelaçada com a evolução de espírito no
enredo. A narrativa se relaciona com o pensamento Kardecista. No capítulo XXVI intitulado
“Maravilhas sobre maravilhas” o doutor Edmundo se veste como se fosse uma paladina para
verificar o ritual da Rainha do Ignoto:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
230

Probo vestiu-lhe um hábito novo com a cruz vermelha dos templários, pôs-lhe também
uma máscara igual à que trazia Odete, e disse:
-Vamos, o senhor está exatamente como ela: tem a mesma altura, e até o mesmo
tempo. (FREITAS, 2003, p.177)

Esse momento de se travestir como uma mulher paladina para o Dr. Edmundo
desenvolver uma abertura para o conhecimento do outro. Ele procura conhecer a imparcialidade
do governo com a sociedade da Rainha, porque de acordo com o discurso de Probo a riqueza
que conferia a Rainha é algo diabólico e um crime para o governo. Porém, observamos uma
sociedade no enredo insatisfeita pelos benefícios oferecidos pela Rainha. Ela ajudou muitas
pessoas que precisavam, no caso em especial os escravos, conforme Probo afirma:

Ela não podia explorar as minas da ilha e explora; não contente com isso, funda com
nomes imaginários casas comerciais, fábricas, engenhos, centros de lavoura e grande
criação de gado; de forma que tem em todas ou em quase todas as províncias do Brasil,
um rendimento fabuloso! E para quê? Para desperdiçar em fantasias loucas! Em
benefícios extravagantes! Em fazer mal à propriedade alheia; pois rouba ao senhor para
dar ao escravo. Que absurdo! É abolicionista! (FREITAS, 2003, p.197)

O discurso de Probo apresenta um tom de que uma mulher jamais poderia acumular bens
ou ajudar outros. A proposta abolicionista requer um incomodo por parte dos senhores de
escravos que não admitem as ações da Rainha. A narrativa transpõe os limites do enredo pré-
estabelecido e propõe uma crítica social em formas de discursos masculinos na obra que
oprimem as classes de pessoas marginalizadas socialmente. O doutor Edmundo reflete sobre
ações da Rainha e verifica que existe algo de positivo sobre uma possibilidade de república
futura. Porém, Probo ainda critica as atitudes da personagem feminina reconhecidas por ele
como subversivas pela condição de leitora de textos de Alan Kardec, e por ela realizar sessões
espíritas na ilha do Ignoto. Essas sessões na obra retratam características fantásticas de
narrativas, conforme descritas nos discursos ao longo da história:

- Negros mortos de fome, esfarrapados, com o rosto e as costas cheias de vergões! Uns
trazem grilhões nos pés, outros estão amarrados aos troncos! Vejo negras tão magras
como esqueletos, aleitando criancinhas esfaimadas que em vez de leite encontram o
sangue que verte do seio de sua mãe açoitada de pouco... (FREITAS, 2003, p.214)

A visita espírita da médium Odete em um engenho de açúcar em Pernambuco descreve


uma parcela de escravos no Brasil que passavam por diversas condições precárias de vida. Por
isso, a obra transmite problemas vividos de personagens socialmente marginalizados para alertar
um período que precisa ser retomado em memória.

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231

Considerações finais

Os estudos da estética da recepção nos permitem metodologicamente compreender,


interpretar e aplicar por meio de uma leitura atenta sobre a visão feminista da obra A Rainha do
Ignoto. Verificamos uma relação de crítica social desprendida ao longo da obra. Observamos a
situação da autoria feminina que é de suma importância para a história literária brasileira.
Emília de Freitas elaborou uma narrativa ímpar e com críticas sociais.
Averiguamos também que a autora da obra escreveu elementos importantes dando
destaque para uma presença de empoderamento feminino, já que a obra é complexa pelas
nuances das ações das personagens femininas da narrativa. Por muito tempo as obras literárias
eram conhecidas por personagens masculinos como protagonistas. A Rainha vai se
desenvolvendo ao longo do enredo, como uma espécie de heroína que ajuda aos necessitados e
marginalizados oprimidos por uma sociedade patriarcal.
O doutor Edmundo observa a intensa influência da Rainha diante da Ilha e em sua
aventura à procura da verdade encontra injustiças que mereciam ser estudadas com cautela. Ele
como um estudioso de Direito fez uma investigação constante sobre a vida da Rainha ao longo
da obra. Isso, demonstra uma curiosidade latente sobre o desconhecido presente e ocultado pela
sociedade patriarcal.
Não podemos deixar de relacionar a ideia do fantástico presente na narrativa, pois as
características do espiritismo são desenvolvidas ao longo da obra. A rainha retorna em forma de
espírito e Probo não consegue fazer a queixa para destruí-la, pois afirma que ela tem uma
sombra de ocultismo terrível (FREITAS, 2003, p.384).

Referências

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TESE, Crítica Literária, outras Artes e Mídias, Belo Horizonte, v. 20, n. 3, set.-dez., 2014.

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FREITAS, Emília. A Rainha do Ignoto: romance psicológico. Fortaleza: Typografia Universal,


1899.

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CZEKSTER, Gustavo Melo. Escrever Literatura Fantástica no Brasil do século XXI. In:
PORTELA, Adriano; AMABILE, Luiz Roberto; TENÓRIO, Patrícia Gonçalves ET al. (Org.:
Patrícia Gonçalves Tenório). Sobre a escrita Criativa. Recife- PE: Raio de Sol, 2017.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio
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JAUSS, Hans Robert. O texto poético na mudança de horizonte de leitura. Trad. Marion S.
Hirschman. In: LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da Literatura em suas fontes. 2.ed. ver. Rio de
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QUINHONES, Elenara Walter. Entre o real e o imaginário: configurações de uma utopia


feminina em A rainha do Ignoto, de Emília Freitas. Dissertação de mestrado - Universidade
Federal de Santa Maria, Centro de Artes e Letras, Programa de Pós-graduação em Letras, RS,
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SHOWALTER, Elaine (Ed.). The New Feminist Criticism: essays on women, literature, and
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SOARES, Maria Goretti Moreira. A Rainha do Ignoto: um romance fantástico? Revista da


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TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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233

SUBVERSÕES E RESISTÊNCIAS EM NARRATIVAS DE MULHERES

PARTICIPANTES: FERNANDA NERY; FLAVIA VIANA PONTES; FLAVIANE GONÇALVES


BORGES; JIRLAINE COSTA DOS SANTOS; MÁRCIA COSTA; MARIA CLARA SANTOS;
RAQUEL NUNES.

FEMINISMO E REPRESENTAÇÃO EM NAWAL EL SAADAWI

Fernanda Nery (UFBA)


E-mail: fernanda_nery@hotmail.com

"The creation of the female art feels like the destruction of the female

body" Susan Gubar, “The Blank Page” and the Issues of Female

Creativity

A epígrafe que dá início a esse artigo coloca-se como um prelúdio da proposição desse
trabalho: a importância da representação desenvolvida por uma criação artística dita feminina
e feminista e suas respectivas reverberações nos corpos e igualmente na coletividade
feminina. Propõe-se então a análise da obra Woman at Point Zero (2008) da escritora egípicia
Nawal El Saadawi, para a elucidação da violência masculina, aspecto que está presente no
cerne da masculinidade, culturamente marcado no Ocidente e no Oriente. De maneira mais
abrangente, intencionamos a investigação acerca da representação dessa violência na narrativa
e se ela proporciona o reforço no imaginário coletivo da violência do homem árabe, ou sob
uma perspectiva feminista a obra pretende criar um sentimento uno entre as mulheres de
repúdio ao sistema patriarcal.
Primeiramente, faz-se importante contextualizar a criação artística da obra e igualmente
da crítica literária que abordaremos no trabalho. Até os anos 1960, pouco se dava atenção aos
questionamentos das mulheres sobre sua posição na sociedade e, em especial, na literatura. O
papel da mulher era, de certa forma, estratificado e exigia-se delas que tivessem suas emoções
e sua sexualidade reprimidas. Esse comportamento era transposto para o campo literário, fato
visível por meio da constatação da existência de poucas escritoras e igualmente de poucas
críticas da literatura. Mesmo nesse cenário é importante observar alguns trabalhos importantes
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234

realizados por mulheres, sendo o mais famoso feito por Virginia Woolf em Um teto todo seu
(2005), um ensaio de cunho feminista que enfatiza a necessidade da independência financeira
das mulheres para o desenvolvimento da expressão livre de seu pensamento na literatura.
Com a explosão dos movimentos em favor das minorias na década de 1960, novas
perspectivas foram tomadas no que diz respeito à escrita e à crítica literária feita por
mulheres. A partir de então, a crítica feminista tem mostrado que "as escritoras, partindo de
suas experiências pessoais, e não mais dos papéis sexuais atribuídos a elas pela ideologia
patriarcal, debruçam-se progressivamente sobre a sexualidade, identidade e angústia
femininas, bem como sobre outros temas especificamente femininos" (ZOLIN, 2005, p. 194).
Nesse contexto de questionamento e transformação de pensamento, está situada a autora alvo
deste trabalho, Nawal El Saadawi.
Nawal El Saadawi é uma escritora, psiquiatra e feminista radical egípcia. É conhecida
como a Simone de Beauvoir do mundo árabe por suas posições vanguardistas no que concerne
aos direitos das mulheres. Foi durante o tempo em que trabalhava como médica que pode
acompanhar de perto o sofrimento de várias mulheres que passavam pela mutilação genital.
Para essa autora, tal sofrimento seria explicado, sedimentado e reverberado pelo sistema
patriarcal em que todas as mulheres estão enredadas. Toda sua obra consiste em uma
abordagem monotemática: as questões de gênero. Não sendo diferente, uma de suas obras-
primas, o livro que se pretende abordar neste trabalho traz as relações de poder entre os
gêneros, as submissões e as violências a que as mulheres estão, de maneira geral, assujeitadas.
Para além desses respectivos assujeitamentos também é possível ver germinar nessa obra a
força da mulher, quando despertada, mostrando-nos as possibilidades de engendramentos de
tais questões no imaginário social, através da representação. São essas possíveis vinculações
da literatura ao imaginário social feminino que sustentarão esse trabalho, ensejando
aprofundar na construção da imagem do homem árabe e suas possíveis reverberações no
imaginário coletivo feminino, mostrando-nos até que ponto podemos enxergar a influência do
gênero e da ideologia no romance.
Woman at Point Zero (2008) é um romance em dois capítulos que narra a história de
Firdaus, uma prisioneira que está à espera da consumação de sua condenação à pena de morte.
O primeiro capítulo se trata da chegada de uma médica à prisão que fica particularmente
interessada em conhecer Firdaus pela forma como o médico presente fala a seu respeito "Você
nunca vai conhecer ninguém como ela dentro ou fora da prisão" (p. 1, 2008, tradução minha).
O segundo capítulo é escrito em primeira pessoa e Firdaus narra sua vida e os acontecimentos
que a levaram àquela situação desde a sua infância até a sua prisão. A história de Firdaus diz

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respeito a uma espécie de "odisseia" do mundo feminino em relação as possíveis


subjulgações, pois desde a infância ela experiencia eventos traumáticos como a relação do pai
e da mãe, onde o pai bate na mãe frequentemente e quando ela sofre a mutilação genital, fato
incentivado pela mãe que leva uma pessoa para praticar o ato. "Então ela trouxe uma mulher
que carregava uma pequena faca ou talvez uma lâmina. Elas cortaram um pedaço de carne do
meio das minhas pernas." (p. 12, 2008, tradução minha). Quando os pais de Firdaus morrem,
ela vai morar com o tio, que a abusa, mas Firdaus ainda não é capaz de enxergar o ato como
um abuso por ser uma pessoa da família e pela sua idade: ela estava no início da adolescência.
Depois o tio se casa e juntamente com a esposa propõem a Firdaus que se case com um
homem muito mais velho, onde ela sofre humilhações físicas e psicológicas, até que um dia
consegue sair de casa e passa a vaguear pelas ruas, onde recomeçam os abusos, de todas as
formas, e por vários homens diferentes, culminando na sua prisão, quando ela está forte o
suficiente para enfrentar a subjugação masculina.
A questão da masculinidade se porta como um eixo para o respectivo trabalho.
Partimos do pressuposto de que a masculinidade é um comportamento socialmente
construído, incentivado na maioria das culturas e caracterizado por aspectos como a "força",
"rejeição a comportamentos mais emotivos" por indicarem níveis de fraqueza, "sentimento de
dominação", dentre outros. Acreditamos que na masculinidade a violência é projetada para a
manutenção de sua respectiva hegemonia. Falaremos mais sobre violência ao longo do
trabalho. Essa violência pode ser exercida de várias maneiras pelo mundo, algumas mais
radicais do que a outra. Não ensejamos propor que a situação dos homens e mulheres no Egito
se dão de forma idêntica ao Brasil, mas pela força comparativa, acreditamos que é possível
traçar um paralelo entre os aspectos nocivos da cultura patriarcal por se tratar de uma
subjugação que é capaz de abarcar as mulheres em geral, por ser uma violência
institucionalizada na maioria dos lugares. O paraelelo traçado entre o contexto do Brasil e do
Egito pode então indicar semelhanças e também um sentimento de unicidade em relação a
esse sistema que oprime e mata.
No artigo intitulado Feminsit discourse between art and ideology (1997), Ouyang
define a narrativa de Saadawi como um "romance de ideias", tal romance é caracterizado pela
força das ideias nas personagens, sendo a ideologia do autor sua verdadeira estrutura. Esse
aspecto é muito importante por enxergamos a literatura como motor fundamental da sociedade.
Para contextualizar a importância ideológica literária podemos citar um clássico canônico:
Terry Eagleton. No livro Teoria da Literatura: Uma introdução (2001), o autor chama a
atenção para o fato de que a teoria literária está intimamente ligada a valores ideológicos e

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aspectos políticos e contribui, seja de forma consciente ou não, para a manutenção ou


repressão de ideologias vigentes. E igualmente está a literatura. Partimos do pressuposto de
que a crítica e literatura tradicionais serviram de instrumento para a manutenção do status quo
da sociedade, sob o pretexto de estar enaltecendo apenas o aspecto "literário" do objeto. Nessa
esteira, faz-se importante o conceito de literatura menor de Deleuze e Guattari, “uma literatura
menor não é a de uma língua menor, mas sim aquela que uma minoria faz em uma língua
maior”, e, por isso, nas literaturas menores, “tudo é político” (DELEUZE & GUATTARI,
1975, p. 38-39).
Ao longo da obra é possível observar um desconforto, revolta, consciência e a sensação
de libertação da clausura, ao final, por parte das mulheres. Tal construção temática pode estar
aliada à retração feminina ligada a opressão proporcionada pelo sistema androcêntrico,
fazendo com que a voz no romance deseje um escape diante desse respectivo cenário. Esse
aspecto é refletido se observamos como é delineada a imagem masculina na obra, enredando
as mulheres no sistema patriarcal, que as sufoca.
Para exemplificar essa relação, observemos um recorte de Woman at Point Zero
(2008), onde a personagem Firdaus se posta perplexa ao ser indagada pela primeira vez na
vida acerca de sua preferência entre duas frutas:

Você prefere laranjas ou tangerinas?" Eu tentei responder, mas minha voz falhou.
Ninguém tinha me perguntado antes se eu preferia laranjas ou tangerinas. Meu pai
nunca nos comprou frutas. Meu tio e meu marido costumavam comprar sem me
perguntar o que eu preferia. Na verdade, eu mesma nunca pensei se preferia laranjas
a tangerinas ou tangerinas a laranjas (p. 50, 2008, tradução minha).

Podemos observar que a personagem nunca havia tido escolha antes, sua vontade em
relação a situações corriqueiras, como a preferência de uma fruta, nunca havia sido
considerada. Nem ela própria pensava sobre isso, tamanha a naturalização desta questão. Se
levarmos em consideração o conceito de dominação masculina como uma forma de violência
simbólica é possível elucidar sobre como esse tipo de violência é passível de ser estendido a
todas as mulheres que coabitam o sistema patriarcal. Mesmo em circunstâncias diferentes, em
sistemas mais radicais ou não, a passibilidade de estar exposta à violência é lugar-comum na
conjuntura feminina.

Acreditamos que a relação entre mulheres e homens é balanceada por certos níveis de
violência que legitimam a dita "dominação masculina" proporcionada pelo sistema em que
vivemos. Como Bordieu preconiza no livro A Dominação Masculina (2002), tal dominação
não tange apenas o aspecto físico, mas igualmente diz respeito à forças simbólicas. A
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237

dominação masculina seria então caracterizada como um tipo de violência simbólica. Ao


longo do livro é possível ver essa dominação, inclusive através desse simbolismo, sendo
exercida. Como, por exemplo, quando Bayoumi questiona Firdaus se ela prefere laranja ou
tangerina.

Violência simbólica, violência suave, insensível, invisível as suas próprias vítimas,


que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do
conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento, ou
em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária
oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida
em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante
quanto pelo dominado (2000, p. 7-8).

Para falar da imagem masculina na obra de Saadawi e de seus possíveis efeitos nas
mulheres em geral é importante direcionarmos para o fato de que críticos ao redor do mundo
têm apontado para os perigos que rodeiam as representações dos homens árabes que são
criadas pela autora. Os perigos concernem ao fato de que tais representações poderiam
significar a manutenção de aspectos que são reforçados pelo orientalismo, nesse caso seria o da
violência do homem árabe. No que concerne a esse característica do orientalismo, podemos
vê-la corroborada no livro Orientalismo (1990) de Said quando ele afirma que as publicações
que não são consoantes com a realidade árabe só ajudam a reforçar um certo imaginário
negativo no que diz respeito a essa comunidade.

O guia dos cursos de 1975 publicado pelos estudantes do Columbia College disse, a
respeito do curso de árabe, que urna de cada duas palavras nessa língua tem a ver
com violência, e que a mente árabe, tal como é "refletida" pela língua, é
incansavelmente bombástica. Um artigo recente de Emmett Tyrrell na revista
Harper's era ainda mais injurioso e racista, afirmando que os árabes são basicamente
assassinos, e que a violência e a trapaça estão nos genes árabes. (1990, p.292)

Essa questão também é respaldada no artigo Framing Nawal El Saadawi: Arab


Feminism in a Transnational World (2000) quando a autora Amal Amireh afirma que as obras
de Saadawi são consumidas pelo ocidente em um contexto onde há a saturação de
estereótipos. É essa questão ambivalente no que diz respeito a representação masculina de
homens árabes que nos interessa por acreditarmos que Woman at Point Zero (2008) se trata da
opressão do sistema patriarcal de maneira generalizada, não dizendo respeito apenas a um
grupo fechado dentro do gênero masculino, ou seja, aos homens árabes, mas sim, de maneira
mais abrangente, à comunidade masculina.

Para além das inúmeras violências simbólicas sofridas por Firdaus ao longo do livro,
podemos citar as violências físicas, como indicado no trecho abaixo, onde a personagem narra
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
238

os eventos que se sucederam após Bayoumi, que ela acreditava ser um amigo, passou a
violentá-la sistematicamente de forma psicológica, física e simbólica.

Ele passou a me trancar no flat antes de sair. Eu passei a dormir no chão do


outro quarto. Ele voltava no meio da noite, batia no meu rosto e se jogava em
cima de mim com todo o seu peso. Eu mantinha meus olhos fechados e
abandonava o meu corpo, que ficava ali embaixo dele, sem movimento,
esvaziado de todo desejo ou prazer, ou mesmo de dor.
Sem sentir nada. Um cadáver sem vida. Como um pedaço de madeira, ou uma
meia vazia ou um sapato. Então uma noite seu corpo parecia mais pesado do
que o normal e sua respiração também parecia diferente. Eu abri meus olhos.
O rosto em cima de mim não era o de Bayoumi.
"Quem é você?", perguntei. "Bayoumi", ele
respondeu.
Eu insisti, "você não é Bayoumi. Quem é você?" "Que
diferença isso faz? Bayoumi e eu somos um só".
Então ele perguntou "Você sente prazer?" "O que você
disse?" eu perguntei. "Você sente prazer?" ele repetiu.
Eu tive medo de dizer que eu não sentia nada então eu fechei meus olhos mais
uma vez e disse "sim".
Ele cravou os dentes no meu ombro e me mordeu várias vezes no peito e em
seguida, na minha barriga. Enquanto ele me mordia não parava de repetir
"puta, cadela". Então ele começou a insultar minha mãe com palavras que eu
não era capaz de compreender. Mais tarde, quando tentei pronunciá-las, não
consegui. Mas depois daquela noite eu passei a escutá-las constantemente de
Bayoumi e dos amigos dele. Então eu me acostumei com seu som. Aprendi a
usá-las ocasionalmente quando eu tentava abrir a porta e ela estava trancada.
Eu batia na porta e gritava: "Bayoumi, seu filho da ...", quase a ponto de
insultar sua mãe do mesmo jeito, mas eu segurava as palavras na minha boca,
percebendo que isso seria errado. (SAADAWI, p. 30, 2008, tradução minha)

Ao longo do trecho é apresentado uma série de violências sofridas por Firdaus.


Primeiramente a violência psicológica caracterizada pelo fato de Firdaus ficar trancada no
flat, como um animal ou um objeto destinado ao prazer masculino. Em segundo lugar, a
violência física ocasionada pelo abuso e violações de seu corpo. Em terceiro lugar, a violência
simbólica que se faz presente através dos xingamentos proferidos para insultar o seu gênero
de forma geral, abrangendo, inclusive, a figura da mãe. Nesse trecho pode-se perceber a
importância do crivo reflexivo feminino capaz de filtrar as informações que nos são passadas
culturalmente desde o momento do nosso nascimento. Ao perceber que os insultos proferidos
por aqueles homens eram destinados à todas as mulheres, Firdaus percebe que não seria
correto usar do mesmo artifício em momentos de raiva. Seria se insultar. Seria insultar o grupo
que ela faz parte e que foi secularmente colocado à margem. Acreditamos que essa percepção é
passível de ser estendida às mulheres e de certa maneira, unificada, como um sentimento
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239

grupal, capaz de engendrar mecanismos de defesa que ajudem a evitar os danos causados pela
violência simbólica que nem sempre se faz evidente. No contexto brasileiro essas formas
representativas são muito importantes, principalmente se levarmos em conta dados como os
que foram publicados pela ONU em 2016 que afirmavam que o Brasil está na quinta
colocação mundial quando o assunto é feminicídio.
Partindo dos aspectos listados ao longo desse artigo, consideramos que para além de
estereótipos relacionados à cultura árabe, Woman at Point Zero (2008) se configura como
uma obra que seria, de fato, destinada às mulheres, de forma generalizada. Não se trata de uma
narrativa que descreve o gênero masculino de forma estritamente regional, mas que é capaz
de evocar um sentimento uno nas mulheres ao redor do mundo que estão, seja de maneira
mais radical ou não, submetidas a algum tipo de violência. Através de aspectos
representativos desenvolvidos na obra temos uma forma de reinvindicação aos direitos
femininos.

A resistência feminina através da arte é uma forma de resistência não-violenta. É a


recusa de morrer em silêncio de forma passiva e resignada, como nos mostra Firdaus durante
toda a obra. É a certeza de que se a morte e intempéries da vida são, de alguma forma, o
destino feminino, que isso não vai ser aceitado, não de forma passiva e de que não haverá
silenciamento. A resistência feminina é sobretudo uma resistência que diz respeito à vida,
sobre a esperança de dias melhores, em respeito à todas as mulheres que sofreram das formas
mais cruéis nesse sistema que nos mata diariamente.

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O MODERNO E O MARGINAL: CLARICE LISPECTOR E ANA CRISTINA CESAR


NA SUBVERSÃO DO MODELO TRADICIONAL DE MULHER

Flávia Viana Pontes Pós-graduanda (UPM)


E-mail: fvianapontes@gmail.com

INTRODUÇÃO

A “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã”, feita após a Queda da Bastilha por
Olympe de Gouges é marco do feminismo, pois instituiu que as mulheres possuem direitos
naturais e podem participar do poder legislativo. No período anterior ao da Revolução Francesa,
não é possível falar sobre feminismo, pois antes não existiam classes sociais, o sangue
determinava mais as relações de poder do que o gênero, e não existiam espaços de produção
público e privado (doméstico), então ocorriam apenas discussões literárias, científicas e
filosóficas a respeito das limitações da mulher e de sua capacidade intelectual, como o fez
Poulain de la Barre, filósofo racionalista, o primeiro a propor que o ser humano é um projeto
social, não havendo nada de inato, iniciando a discussão sobre igualdade, que seria
veementemente discutida no século XVIII.
No século XIX, com a mudança no panorama social, surgiram movimentos de mulheres
na Inglaterra que reivindicavam direito ao voto, ao acesso à instrução e a uma profissão, além de
igualdade jurídica. Esse movimento sufragista pode ser considerado o marco do movimento
feminista fincado na igualdade de direitos entre homens e mulheres, que foi tomando corpo e
voz e ultrapassando a barreira dos séculos até alcançar o século XX e as duas grandes guerras,
que significou um retrocesso na luta do movimento, pois, mesmo após a conquista do voto, do
direito à educação e de seu lugar no mercado de trabalho, principalmente pela necessidade de
mão de obra com a ida de força masculina para os campos de batalha, com o fim da guerra,
ocorreu um reforço à ideologia da diferenciação dos sexos e da visão da mulher própria para o
ambiente doméstico, uma “volta ao lar.
No fim da década de 1940, Simone de Beauvoir lança “O Segundo Sexo” e reacende a
luta do movimento feminista nos anos 1960 que, nesse momento, buscava algo além da
emancipação e igualdade, o objetivo era a liberdade, principalmente do próprio corpo. Entrava
em crise o modelo tradicional de “ser mulher” construído, como afirmou Beauvoir, pelo
discurso falocêntrico.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
242

Essa luta das mulheres para que suas vozes fossem ouvidas marcou a literatura brasileira
no século XX, pois nos séculos anteriores sua voz era quase, para não dizer, nula. A partir do
Movimento Modernista de 1922, elas começaram a levantar as penas, pinceis e outros
instrumentos para evidenciar sua subjetividade e exigir seu espaço. Lucia Miguel Pereira,
Raquel de Queiroz, Cecília Meireles no movimento de 1930 ganharam a visibilidade merecida,
mas foi Clarice Lispector que fez de uma das bases de sua literatura a representação de
personagens femininas. Desde então, vê-se um movimento de consolidação de uma “literatura
feminina”, que marca um dos temas recorrentes da literatura contemporânea que tem, entre
outros nomes, Ana Cristina Cesar, poeta presente no movimento de poesia marginal dos anos
1970.
O presente trabalho busca traçar uma linha que liga Clarice Lispector à Ana Cristina
Cesar, uma linha que une o pensamento a respeito da emancipação e libertação do modelo
tradicional do feminino criado no século XIX. Para isso, serão usadas as teorias de Simone de
Beauvoir, Hélène de Cixous, Luce Irigaray e Judith Butler para analisar os fragmentos dos
contos “Amor” e “Feliz aniversário” de Clarice Lispector e os poemas “samba-canção”, “ameno
amargo” e “toda mulher” de Ana Cristina Cesar.

QUATRO MULHERES À FRENTE DE SEU TEMPO

O livro “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir é considerado um dos pontos de


partida para a chamada Terceira Onda do Feminismo, que começa na década de 1960, pois, pela
primeira vez, a mulher é colocada como o centro de um pensamento filosófico.
A filósofa escreveu sua tese sobre o papel da mulher na sociedade ocidental com base
em três pressupostos: a ideia de servo e patrão de Hegel; a corrente existencialista de Jean-Paul
Sartre e da própria Beauvoir; e o princípio antropológico da alteridade recíproca e o absoluto
outro sem reciprocidade. As mulheres são colocadas no lugar do servo, cuja identidade é o
reflexo do seu amo, patrão, que as legitima como igual ou outro (no caso, sempre o outro) e
apenas por meio da autoconsciência é possível retirar de si da alcunha de escravo ou servo,
passando para oprimido. O pensamento de Hegel é usado para explicar porque a mulher é, em
uma sociedade patriarcal, sempre o reflexo do homem e colocada, desde os primeiros passos, no
papel de escrava, sem autonomia, como esse “outro” não reconhecido como igual, sendo o
intermediário dentre os iguais ao homem (outros homens) e a natureza. A filosofia
existencialista entra em ação quando, ao contradizer ao conceito de subordinação biológica do
homem, ela afirma que o sexo, e a situação da mulher como escrava, é uma construção social,
não sendo inato.
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243

Essa estrutura patriarcal limita a mulher ao papel único de esposa e mãe, fazendo com
que ela dependa do homem tanto legal quanto emocionalmente. Sua existência resume-se a
cumprir a meta do amor e do matrimônio. Beauvoir busca mostrar, de acordo com Lucia Guerra
(2007), o tecido que está por baixo da relação entre homem e mulher, fundamentada em uma
estrutura econômica e de poder que reflete drasticamente em sua existência. Nessa relação, o
home é o sujeito e o absoluto, e a mulher é o outro sem reciprocidade, menos humanas e, assim,
passível de qualquer tipo de subjugação, subalternidade e violência. O homem tem o poder da
palavra e oferece à mulher a identidade criada dentro da antítese binária.
Como um marco no pensamento filosófico, as conclusões de Beauvoir, juntamente com
o movimento de Maio de 1968 na França, são importantes por mostrar a persistência do
pensamento falocêntrico dos homens mesmo entre aqueles com ímpetos revolucionários,
influenciaram outras autoras que, também utilizando uma base epistemológica construída por
teóricos homens, contribuíram para reflexões sobre o papel da mulher na sociedade. Uma delas
é Hélène Cixous, teórica argelina erradicada na França que buscou estabelecer uma
especificidade da escrita feminina. Com base no binarismo proposto por Jacques Derrida,
Cixous expõe que esse binarismo esconde outro, aquele que associa o homem à escrita, à
história e à arte, em oposição à natureza sempre associada à mulher. É necessário, segundo a
autora, que a mulher escreva seu próprio corpo, que ressurja e supere, por meio da escrita, o
discurso falocêntrico e que, ao mesmo tempo, corra às margens de toda teorização. Segundo
Guerra, “sua legitimação do corpo feminino como corpo da escrita desatou as mordaças da
autocensura e motivou a exploração de uma topografia corporal inédita, que contribuiu para a
criação de um discurso que, com contadas exceções, havia permanecido imerso no vazio e no
silêncio” (2007, p. 50). A escrita de seu próprio corpo é uma forma da mulher construir sua
própria identidade.
A belga Luce Irigaray também é fruto dos anos 1960 e de uma contestação de um
teórico, no caso Sigmund Freud e Lacan. Ela utiliza a imagem do speculum (espelho e
instrumento ginecológico) para mostrar como a imagem da mulher é construída. O sujeito
masculino destrói tudo aquilo que não é semelhante, todas as diferenças, para refletir e projetar
o masculino. A mulher deixa de ser o outro absoluto masculino – como afirmou Simone de
Beauvoir – e sim no outro como reflexo negativo, com atributos rejeitados pelo sistema
falocêntrico. A mulher torna-se, com o verbo utilizado por Beauvoir, a ausência e o negativo. A
mulher, assim, está atada a uma rede de construções culturais que não a representam, tendo de
recorrer à mímica ou ao uso de máscaras que são as características determinadas por esse
sistema. Há um exílio em seu próprio corpo, pois estão incorporadas a uma economia e cultura
que não lhes pertencem e com a qual não se identificam. O resultado dessa exclusão é a
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244

participação do desejo sexual do homem. Como afirma Irigaray, “o sistema simbólico as divide
em dois. Nelas, a ‘aparência’ permanece como algo externo e alheio ao natural. Socialmente,
elas permanecem amorfas, experimentando impulsos que estão fora de toda representação”
(1985, p. 189 apud GUERRA, 2007, p. 63).
Uma parte importante de sua teoria diz respeito à sexualidade feminina conceituada a
partir dos preceitos masculinos. É importante repensar na constituição do órgão sexual feminino
e como ela é eliminada quando é visto apenas como órgão atrofiado (como apresenta as teorias
de Lacan e Freud) e recipiente do órgão sexual masculino. Segundo a autora, a mulher extrapola
a ideia de unidade, pois é um volume que não admite contorno, sendo sinônimo de
multiplicidade e fluidez com uma topografia vasta e complexa.
A análise de Beauvoir sobre a construção social do sexo, juntamente com a Teoria
Desconstrutivista, desenvolvida a partir das postulações do teórico Jacques Derrida, a crítica
genealógica de Michel Foucault e as postulações de Monique Wittig e Luce Irigaray foram as
bases para a construção de Judith Butler a respeito da representação e identidade do sujeito do
feminismo e a heterossexualidade compulsória.
A americana propõe uma concepção de identidade construída juntamente com a
identidade de gênero, pois as pessoas se tornam inteligíveis a partir do momento em que são
postas em gêneros em conformidade com os padrões já estabelecidos e conhecidos. Partindo
desse pressuposto, então, a identidade de uma ‘pessoa’ não é concebida somente pela noção
filosófica que estabelece características internas que permanecem no decorrer do tempo. A
identidade é constituída por práticas reguladoras que formam e dividem o gênero e a noção
inteligível de identidade. Dessa forma, é impossível pensar na ideia de um sujeito uno e estável,
fora de contexto, pois como afirma a autora,

se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo que o esse alguém é; o termo não
logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da ‘pessoa’
transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre
se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e
porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas,
sexuais e regionais de identidade discursivamente constituídas. (BUTLER, 2017, p.
21)

Assim como é necessário, segundo a autora, problematizar a ideia de unidade da


identidade feminina, o é também problematizar a ideia de sexo e gênero, que marca uma divisão
dentro dessa identidade feminina aparentemente estável. Não se pode entender o gênero como
resultado do sexo, ou seja, o sexo reflete o gênero e é por ele refletido. Essa é a base, que
também será contestada, do binarismo, pois acreditando-se que o gênero reflete o sexo, só é

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245

possível haver dois. O gênero torna-se flutuante, independente do sexo, pois até mesmo o
próprio sexo é um constructo culturalmente produzido. Tem-se, então, o objetivo de eliminar a
ideia pré-discursiva de sexo e culturalmente concebida de gênero.
Esse gênero inteligível será aquele que manterá relações de coerência e continuidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Tudo que desvirtuar dessa linha progressista será
proibido pelas próprias leis que buscam determinar uma “ligação entre sexo biológico, gênero
culturalmente constituído e ‘expressão’ ou ‘efeito’ de ambos na manifestação do desejo sexual
por meio da prática sexual” (BUTLER, 2017, p. 44). Dessa maneira, é possível afirmar que a
ideia de identidade edificada a partir dessa ligação é um efeito de uma prática reguladora
exercita por uma heterossexualidade compulsória. Em outras palavras, a visão de gênero como
substância faz parte de uma sociedade regida pelo discurso da heterossexualidade, uma pessoa
só pode ser um gênero e não outro, limitando o gênero dentro do par binário.
Vê-se a inviabilidade do “homem” e da “mulher” como substâncias permanentes, pois se
essa substância, uma construção fictícia, é uma ordenação de atributos em sequência de gêneros
coerentes, ela é questionada quando aparecem atributos que não se enquadram aos modelos
sequenciais ou às causas de inteligibilidade. Esses traços de gênero tidos como substanciais
nada mais são do que atributos regulados segundo linhas de coerência culturalmente
estabelecidas. Nasce a concepção de gênero como performance, pois a identidade de gênero não
é uma substância nem a união de atributos flutuantes, e sim “expressões” (que Butler coloca
entre aspas) tidas como resultado do gênero, mas que são, na verdade, a sua origem.

O MODERNO E O MARGINAL

Ana Cristina Cesar era leitora e crítica de Clarice, e isso pode ser visto na peça de museu
que se tornou a edição anotada e analisada de “A Legião Estrangeira” publicada pela Editora do
Autor em 1964 e pertencente à Ana Cristina. Dessa relação, juntamente à relação com Sylvia
Plath e Emily Dickinson, tirou seu intimismo tenso e intenso que apresenta uma revelação
despudorada do Eu, segundo a crítica Joana Matos Frias.
Ana Cristina Cesar lendo Clarice Lispector evidencia o que Antônio Cândido considera
como literatura madura, quando a literatura de um país passa a ler e influenciar a si mesma, seja
para confirmar ou para contradizer. A literatura contemporânea dos anos 1970 busca
desenvolver ou contrair a obra dos antecessores imediatos, as gerações de 1930 e 1940 e, desse
último decênio, nasceu o primeiro romance de Clarice Lispector, “Perto do Coração Selvagem”,
que foi um marco na representatividade feminina significativa na literatura brasileira, além de

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
246

inaugurar uma escrita dentro o espírito e da técnica de James Joyce e Virginia Woolf, como
afirmou o crítico Álvaro Lins.
A obra de Clarice Lispector manter-se-á firme à convicção e ao estilo inicial, que, como
afirma Bosi, apropria-se do “uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo da
consciência, a ruptura com o enredo factual” (2015, p. 452). Sua obra se preocupará, antes de
tudo, com a elaboração da linguagem a serviço de uma exarcebação do momento interior que
provocará uma crise na própria subjetividade. A busca pelo equilíbrio desse “eu” só será
alcançada quando esse “eu” reconhecer, assim como em todas as religiões, a existência de um
ser que transcende a alma. Seus romances e contos esmiúçam uma crise da personagem-ego, da
fala narrativa, agora marcada pelo tom ensaístico, e, principalmente, da função documental da
prosa romanesca.
Clarice abriu as portas para a consolidação de uma chamada “literatura feminina”, que
precisou de uma grande antecessora, mas também de um momento histórico propício, com o
aumento do número de mulheres no mercado de trabalho e na busca de uma educação superior
(que, no Brasil, foi o resultado direto do investimento na industrialização e modernização) e a
consolidação dos movimentos de libertação feminina que acontecia em todo o mundo, que
foram essenciais para o questionamento de todas as formas de poder, inclusive a própria
marginalidade feminina e o conceito de inferioridade da mulher. Assim, “por meio da literatura
que produzem, as mulheres tentam, enfim, resgatar sua própria história, reivindicando para si a
condição de sujeito” (PELLEGRINI, 2002, p. 361).
O sujeito mulher dessa literatura feminina, seja da poesia ou da prosa, apresenta uma
consciência crítica e um questionamento dos modelos femininos de submissão fincados por uma
sociedade patriarcal que via seu valor apenas na esfera privada. Assim, além do retrato de “si
mesma”, essa mulher vai almejar o outro, o ser humano em crise dos novos tempos. Esse ser
feminino revela-se cada vez mais como uma voz coletiva com problemas que, antes de serem
apenas femininos, são universais. A escritora tenta romper essa esfera privada e passar para a
esfera pública, na qual reina as contradições que compõem todo ser humano.
Dentre esses novos nomes da literatura feita por mulheres dos anos 1960 e 1970 está Ana
Cristina Cesar. A poeta carioca é um dos nomes da chamada Poesia Marginal, um movimento
literário que nasceu como forma de resistência aos limites de todas as ordens impostos pelo
regime ditatorial em que vivia o país. O grupo de poetas foi chamado de marginal pela
dificuldade na edição de suas composições, também denominada “geração mimeógrafo”, pelo
olhar enviesado do academicismo e pela sua circulação em meios alternativos. Essa poesia,
“desenvolvida sob a mira da polícia e da política dos anos 70, foi uma manifestação de denúncia
e de protesto, uma explosão de literatura geradora de poemas espontâneos, mal-acabados,
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247

irônicos, coloquiais, que falam do mundo imediato do próprio poeta, zombam da cultura,
escarnecem a própria literatura” (CAMPEDELLI, 1995, p. 10).
Os antecedentes históricos dessa geração de poetas são os tropicalistas, que emanavam
uma rebeldia, uma denúncia e uma defesa a um comportamento não convencional, a chamada
“beat generation” de escritores norte-americanos (como Jack Kerouac e Allen Ginsberg) que
deu à poesia marginal uma atitude existencial excessiva e irreverente de libertação sexual,
consumo de drogas e de debate teórico. E todo esse pensamento refletia-se em uma poesia e
prosa livre de qualquer norma métrica, sintática ou lexical.
Esse panorama da Poesia Marginal mostra-se palpável na composição poética de Ana
Cristina Cesar, marcada por um “lirismo do cotidiano e a garra crítica, a confissão e a
metalinguagem [que] se cruzavam em zonas de convívio em que a dissonância vinha a ser um
efeito inerente ao gesto da escrita” (BOSI, 2015, p. 522). Seu tom intimista, a incorporação do
cotidiano na literatura e utilização do tom coloquial ecoam na preferência da autora por uma
produção em forma de diário e cartas.
A poesia de Ana C., como era chamada, foi influenciada principalmente pela literatura
inglesa e norte-americana, por Walt Whitman, Emily Dickinson, pelo ritmo improvisado e
polifônico do jazz, pela poesia orgânica e pelo blues. O verso fragmentado é a materialização na
poesia do sentimento fragmentado que afetou essa geração e o mundo.
É possível afirmar, assim, que há uma proximidade na temática, e até na linguagem
literária, nos escritos das duas autoras, na reflexão crítica sobre a vida feminina no século XX e
as contradições que marcam a natureza humana.
Os contos de Clarice que serão aqui mencionados não tratam de questões femininas
como manifesto ou panfleto, utilizam as personagens como porta-vozes de problemas
universais, de questionamento do “eu”, porém, ao mesmo tempo em que são trazidas à tona
temas como o casamento e a maternidade, é possível refletir a respeito deles e questioná-los.
Isso pode ser visto, inicialmente, no texto “Amor”, que apresenta Ana, uma mulher que cuida da
casa e dos filhos, possuindo uma vida rotineira a qual se adaptou pois “sempre tivera
necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera” (p. 20). Ana,
dessa forma,
por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber
como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os
filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe entranha
como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também
sem felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis,
que viviam como quem trabalha – com persistência, continuidade, alegria. O que
sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação
perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca
algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.
(1998, p. 20-21)
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
248

Ana caiu em um destino de mulher, ou seja, o destino de casar e ter filhos, e entendendo
destino como uma fatalidade a qual todos os homens estão sujeitos, é possível visualizar o
conceito da construção social e como algo inevitável para toda mulher. A vida dentro do lar,
vida de adulto, é controlada, contínua, direita e sem felicidade. Tão imersa nessa vida que
“suplantara a íntima desordem” (1998, p. 20), ela tomava cuidado em certa hora do dia e cada
membro da família estava em suas respectivas funções, “quando os móveis limpos, seu coração
se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura
pelo seu espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam
transmitido” (1998, p. 21). Com esse trecho, é possível entender que a personagem esconde sua
subjetividade e o questionamento de sua realidade, enterrando-os sob afazeres domésticos que
ela escolheu.
A situação muda quando ela, do bonde depois de fazer compras, vê um cego mascando
chicles, e ela, em uma vida rotineira e metódica, tem de lidar com as contradições do mundo e
de si mesma, como nos mostra o trecho

ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha
tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram
claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite –
tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma
despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea
doce, até a boca. (1998, p. 24)

Ana, após a incursão pelo Jardim Botânico, volta à realidade da vida doméstica como se
algo tivesse se partido dentro dela, mas sem ter consciência plena de tudo o que tinha vivido
naquela tarde. Ao fim do conto, depois do jantar que fez para os irmãos, “ela continuou sem
força nos braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara (...). Num gesto que não era
seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás,
afastando-a do perigo de viver” (1998, p. 31). Nesse fragmento, entende-se o marido e,
consequentemente, a vida do casamento, como aquele que vai afastar Ana do “perigo de viver”,
das ambiguidades da vida, do próprio espanto, do cego mascando goma de mascar e vai mantê-
la controlada, sua vida e seu interior.
No conto “Feliz Aniversário”, há algumas personagens femininas: a dona da casa Zilda,
a aniversariante de 89 anos, a nora de Olaria e Cordélia. Zilda é a dona da casa em que ocorre a
festa, “única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos,
tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante” (1997, p. 226). Nesse excerto, é possível ver a

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
249

filha mulher como aquela que cuidará da mãe ao envelhecer, uma predestinação, a única que
pensou em dar uma festa para a mãe e que não recebeu ajuda de nenhum dos irmãos.
A senhora de 89 anos é colocada na cabeceira da mesa, lugar de honra, dando ares de
importância à senhora descrita apenas como “mãe”, sem nome. O narrador descreve que “os
músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia
saber se ele estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra,
imponente e morena. Parecia oca” (1997, p. 227). Além de ser vista apenas como aquela que
deu à luz e cuidou dos filhos pelos próprios filhos, ela é vista por sua velhice, já inútil e próxima
da morte, como no trecho que descreve os presentes que ganhou: “alguns não haviam trazido
presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de
fantasia, um vasinho de cactos – nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si
mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar”
(1997, p. 228).
Além de Zilda e da mãe, a nora de Olaria é a mulher preocupada com a própria roupa e
de suas crianças, e quem fica julgando a vestimenta alheia, como em “de sua cadeira reclusa, ela
analisava crítica aqueles vestidos em nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de
usar vestido preto com colar de pérolas” (1997, p. 232), e Cordélia é a nora mais jovem, a qual o
narrador se refere como “E Cordélia?”, como é possível ler em “e Cordélia? Cordélia olhava
ausente, como um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo”. Essa introdução pode
lembrar uma pergunta feita quando alguém está ausente, assim, é possível pensar em uma
personagem que está a margem de toda a festividade, sempre espantada. Ela é a única, entre
todos os presentes, que pensa a respeito da velhice, que pensa na brevidade da vida e da vida
doméstica e materna que deve ser deixada de lado para que se tenha uma chance de viver, como
apresente o trecho

Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz
nora que sem remédio amava talvez pela última vez: é preciso que se saiba. É preciso
que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta. (...) Porque a verdade era um
relance. Cordélia olhou-a estarrecida (...) enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante,
puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou
para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto
dilacerante, enfim agarra a sua derradeira chance e viver. (1997, p. 233).

A mãe, tão mencionada pelos filhos (homens), está distante do modelo de mãe
tradicional, o que aproxima a obra da falsa ideia de instinto materno que é um constructo social
da heterossexualidade compulsória, como é possível observar nos fragmentos “E como a
presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os
piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho”
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
250

(1997, p. 230), pensando em “carne de joelho” como uma penitência, carne que sofre a dor do
corpo quando se ajoelha, e “Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! Como tendo sido tão
forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte,
que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente,
ela respeitara” (1997, 230). A ideia de maternidade como sagrada e da mãe como aquela que
sente o maior amor do mundo é virada do avesso, pois o tom é de rancor, de arrependimento, de
repulsa e de sufocamento, assim como a presilha.
Dessa maneira, nos dois textos da Clarice, é possível reconhecer um retrato do
pensamento da heterossexualidade compulsória que construiu a mulher ocidental para ser o
modelo tradicional de mulher, a mãe que tem um amor sobrenatural pelos filhos, a dona de casa
perfeita e aquela responsável por cuidar dos pais ao envelhecerem. Esse é modelo de mulher de
classe média, assim, vê-se ainda a influência de outros fatores que estabelecem uma interseção
com a questão do gênero. Mostrar a experiência da mulher também é uma forma de escrever o
corpo feminino na literatura
Os poemas de Ana C. buscam discutir o próprio ato de escrever, além de abordar temas
livres das amarras da censura, desde elementos políticos até a liberdade do corpo. Um poema
em que se pode ver isso é “ameno amargo”, adicionado à coletânea “Poética”. Aqui, é possível
observar o eu-lírico em voz coletiva, representado pelo “nós”, além de mencionar “do mesmo
sexo”, podendo ser o feminino. O tema do poema pode remeter à masturbação feminina,
principalmente por mencionar “coçamos amenidades, / a tensão dos ângulos distantes” e “com
muitos dedos”, já que um dos sentidos de coçar é friccionar e “amenidades”, com o sentido de
delicado. Além disso, os versos finais “Os sonhos não circulam / o jogo está suspenso por
decreto” remetem à solidão, pois o fato de os sonhos não circularem e o jogo estar suspenso
pode expor uma ausência de troca. O título do poema é contraditório, já que ameno denota algo
agradável e amargo, algo desagradável e triste, e a comunhão das duas palavras pode representar
esse toque que é agradável, prazeroso, contudo solitário. O poema remete aos escritos de
Irigaray sobre a sexualidade feminina e a satisfação do prazer independente do homem, trazendo
para a literatura a sexualidade feminina, a descoberta da mulher como sujeito de seu próprio
desejo. Isso também pode ser percebido no poema “toda mulher”. Nesse poema, presente no
livro “Inéditos e Dispersos: poesia/prosa”, coloca o homem apenas como pronome oblíquo em
“o preocupava” e a mulher como objeto de estudo, como apresenta o verso “era o estudo de
mulher”, diferentemente do que seria de fosse “estudo da mulher”. Em tal trecho, observa-se a
mulher como objeto, como afirma Simone de Beauvoir. E a mulher do estudo é a “dos quinze
aos dezoito”, sendo os quinze anos de uma adolescente é o “debut”, momento celebrado com
um baile para mostrar à sociedade que ela está se tornando uma mulher e os dezoito é a idade do
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
251

começo da vida adulta, ou seja, apenas a juventude. A última estrofe apresenta o eu-lírico em
primeira pessoa “não sou mais mulher” e, em seguida, “Ela quer o sujeito”, que pode expressar
o desejo feminino de sair do papel de objeto para ganhar o papel de sujeito. O verso “não sou
mais mulher” pode se referir a uma ideia de Fernando Pessoa da fragmentação do eu, como no
poema do heterônimo Alberto Caeiro “Dizes-me: tu és mais alguma coisa”, além de “mais
mulher” como predicado da frase e não sujeito, já que o sujeito é o “eu”. Assim, o poema é uma
reflexão sobre elementos da linguagem e sobre o papel da mulher na sociedade, sua tomada de
consciência a respeito de sua existência.
Por fim, a ligação entre linguagem/composição poética e o papel feminino são aliados no
poema “samba-canção”. O poema, incluso no livro mais conhecido da poeta “A teus pés”, é a
expressão de busca pela melhor expressão do seu próprio “eu” por meio da linguagem poética.
A iniciar pelo título, ele remete ao popular e isso fica claro quando o eu-lírico em primeira
pessoa cita “tantos poemas que perdi/ tanto ouvi, de graça,/ pelo telefone”, a fala cotidiana
valorizada pelos marginais como material poético. No trecho seguinte, “eu fiz tudo pra você
gostar, / fui mulher vulgar, / meia-bruxa, meia-fera, / risinho modernista /arranhado na garganta,
/malandra, bicha, / bem viada, vândala, / talvez maquiavélica”, busca mostrar um eu-lírico
procurando seu “eu” literário, um eu-lírico feminino, vulgar (popular), metade mística (bruxa),
metade instinto (fera) que seu voltou ao modernismo, sem ter sido bem aceito (o risinho
arranhado denota a algo desconfortável) e a apropriação de uma marginal em “malandra, bicha /
bem viada, vândala”. É interessante, no que compete a análise feita aqui a respeito posição da
mulher como sujeito, pensar nesse eu-lírico feminino que busca sua melhor forma de expressão
através de referências também femininas.
Ao fim do poema, o eu-lírico mudou a estratégia, “vali-me de mesuras / (era uma
estratégia), / fiz comércio, avara”, inseriu-se em moldes, adquiriu uma polidez e cordialidade,
emburrou-se (aqui no sentido de estagnar-se ou até de tornar-se ignorante), apenas “querendo a
glória, a outra / cena à luz de spots, / talvez apenas teu carinho”, ou seja, um espaço longe da
marginalidade, a inclusão em uma cena ou nos holofotes sociais. Um trecho final a ser
destacado é “porque inteligente me punha / logo rubra, ou ao contrário, cara / pálida que
desconhece / o próprio cor-de-rosa”, no qual o eu-lírico aponta que, quando inteligente
(compreendendo o próprio ato de escrever e a vida) ela se punha rubra (vermelha, a cor do
comunismo, da raiva, do enervação) ou desconhecia o próprio cor-de-rosa (a cor comumente
associada à feminilidade da cultura ocidental), assim, quando o eu-lírico adquiria consciência,
ela se enervava ou até levantava a bandeira da esquerda ou desconhecia o papel feminino
construído socialmente.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
252

CONCLUSÃO

Com os exemplos de textos de Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar, foi possível ligar
duas gerações da literatura brasileira: a geração do modernismo dos anos 1940 e da poesia
marginal que emerge nos anos 1970. Ambas estão ligadas pelo questionamento do papel
tradicional da mulher na sociedade ocidental. Clarice põe o feminino dentro do casamento e da
constituição de família e busca atingir a transcendentalidade e Ana C. aborda temas como o sexo
e desejo da mulher, de uma voz coletiva.
As duas escritoras têm como objetivo mostrar a mulher como sujeito de sua própria vida,
como almeja Beauvoir, mesmo que seja, ainda, um retrato de uma mulher de classe média, que
influencia na concepção do gênero e em sua representatividade, como busca discorrer Butler.
Além disso, por meio da escrita do corpo e das experiências femininas (desejos, família,
subjetividade) na literatura, elas mantêm a discussão a respeito desse papel dado à mulher por
um discurso enraizado pela heterossexualidade compulsória. Apenas por meio da prática
discursiva é possível quebrar os conceitos cristalizados e a literatura é uma das principais
formas de se fazer isso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros/artigos/teses

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro:


Civilização Brasileira, 2017. 285 p.

BOSI, Alfredo (org). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix, 1997. 293
p.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 2015. 567
p.

CAMPEDELLI, Samira Youssef. Poesia Marginal dos anos 70. São Paulo: Editora Scipione,
1995. 71 p.

CANDIDO, Antonio. A Nova Narrativa. In: CANDIDO, Antonio. A Educação pela noite. Rio
de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. cap. 12, p. 241-260.
_________________. Literatura e Subdesenvolvimento. In: CANDIDO, Antonio. A Educação
pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. cap. 12, p. 169-196.

CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 503.

LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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MÉNDEZ, Natalia Pietra. Com a palavra, O Segundo Sexo: Percursos do pensamento


intelectual feminista no Brasil dos anos 1960. Dissertação de doutorado. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. 2008.

PELLEGRINI, Tânia. A ficção de hoje: os caminhos da cidade. Revista de Filología Românica,


2002, 19, 355-370.

Sites
ALMEIDA, Elizama. Ana Cristina Cesar lê Clarice. Blog do IMS.
http://blogdoims.com.br/ana-cristina-cesar-le-clarice-por-elizama-almeida/. Acesso dia 17 de
junho de 2017

Aula
“Livro da vez: O Segundo Sexo”, de Carla Cristina Garcia, realizada no dia 19 de junho de 2017
no Centro de Pesquisa e Formação.

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254

ANAWE MULHERES INDÍGENAS NO BRASIL: LITERATURA DE


AUTORIA/AUTONOMIA

Flaviane Gonçalves Borges (UFBA)


E-mail: flavi_ane16@hotmail.com

A iniciar a apresentação desta proposta, observo a necessidade de pontuar o título


desta pesquisa: Anawe mulheres indígenas do Brasil: imagens literárias de
autoria/autonomia. A expressão Anawe vem da língua tupi dos omágua/kambeba e significa
“salve”. Ela foi retirada de uma música de Márcia Wayna Kambeba103, uma das mulheres a
serem estudadas nesta pesquisa. A música se apresenta: Anawe akangatara / Piranga
pirassissawa / Anawe anawe anawe he he he, sendo traduzida por Márcia como: Salve o meu
cocar de penas vermelhas.
E, vale pontuar que o termo “anauê” foi erroneamente apropriado pela Ação
Integralista Brasileira, movimento político e fascista criado em outubro de 1932. Esse grupo
foi idealizado pelo escritor modernista Plinio Salgado que, por sinal, participou da Semana de
Arte Moderna de 1922. E, a expressão “anauê” foi adotada como cumprimento entre os
integrantes do grupo. Nesse contexto, o termo em tupi significava “você é meu irmão”,
ressignificado por esse grupo fascista em defesa do nacionalismo.
Em contraste com a expressão fascista, a composição e melodia Kambeba apresenta,
para além da letra impressa, uma reivindicação simbolicamente manifestada no cocar de
penas vermelhas. Nesse caso, entendo o símbolo do cocar como dispositivo para se alargar
aos elementos da cultura identificatória dos indígenas em panorama material. Além disso, o
cocar de penas vermelhas pode ser substituído por povo indígena como dado biológico,
contrapondo o genocídio dos povos aldeados e os preconceitos do imaginário social; e, esse
cocar pode ser também pensado como código espiritual que envolve as tradições indígenas,
possivelmente respondidas na poesia de autoria/autonomia de Márcia apresentada em trecho:

Sou filha da selva, minha fala é Tupi / Trago em meu peito, as dores e as alegrias do
povo Kambeba / e na alma, a força de reafirmar a nossa identidade, / que a tempo
fico (sic) esquecida, diluída na história. / Mas hoje, revivo e resgato a chama
ancestral de nossa memória. (KAMBEBA, 2013, p. 25).

Nessa poesia de título “Ser indígena – Ser omágua”, podemos notar que há provável
correlação em salvar o cocar de penas vermelha. Que seria representado no resgate da tradição

103
Nasceu em 1979 na aldeia Belém do Solimões. Etnia Omágua/Kambeba. Povo Tikuna.
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255

ancestral e das memórias dos Omágua/Kambeba. A partir dessa rápida contextualização de


anawe presente no título desta pesquisa, cabe seguir para as demais socializações propostas.

Com discurso de reivindicação, petição, esperança, denúncia e auto-apresentação,


mulheres indígenas têm dessacralizado o projeto estético e ideológico104 da literatura
brasileira desde os anos 1970 e usado as diversas formas de expressões corporais e
performáticas para apresentarem as vivências individuais e coletivas das comunidades. Tais
rupturas se materializaram na inserção da arte produzida pelas indígenas no cenário da
produção brasileira contemporânea. Conforme se apresenta Mikay de Arissana Pataxó
(2009)105, no misto de realidade e ficção dessa literatura expandida:

Mikay, escultura em cerâmica – 60 cm

Mikay significa “Pedra que corta”, e a obra expõe a frase “O que é ser índio pra
você?” cravada em um simulacro que é o facão feito em cerâmica que permite diversas
formas de releituras. Essa frase foi dita à Arissana por um sujeito que tentou formatar os
indígenas em rótulo, sendo entendida por Pataxó como exposição do preconceito. Para além,
na frase pode-se notar a presença da expressão “ser” exposto na linguagem verbal. Apresenta-
se ao que Judith Butler (2015, p. 16) defende numa perspectiva ontológica:

O „ser‟ do corpo [...] é um ser que está sempre entregue a outros, a normas, a
organizações sociais e políticas que se desenvolveram historicamente a fim de
maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros. [...]
ser um corpo é estar exposto a uma modelagem e uma forma social, e isso é o que
faz da ontologia do corpo uma ontolologia social.

104
João Luiz Lafetá (2000) conceitua projeto estético enquanto as modificações ocorridas na linguagem, e projeto
ideológico relacionado ao pensamento (cosmovisão) da época que o discurso é anunciado.
105
Arissana Pataxó – Nasceu em 1983, em Porto Seguro – BA. Vive na comunidade Pataxó em Santa Cruz
Cabrália.
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256

Os corpos humanos transitam entre público e privado, estando propícios às diversas


formas de leituras e enquadramentos. Por muito tempo, as(os) indígenas foram
apresentadas(os) sobre a perspectiva de enquadramentos hegemônicos, sendo desmistificados
pela literatura opaca (GARRAMUÑO, 2012) e expandida (PATO, 2012) de autoria indígena.
Neste caso, Mikay (2009) permite a possibilidade de encontrar em outras artes performáticas,
possíveis respostas à pluralidade das etnias indígenas do Brasil. Dentre as manifestações
artísticas a serem localizadas, se destacarão: escrita literária em distintos gêneros, artes
plásticas, artes cênicas e fotográficas.
Quanto à literatura opaca e à expandida, Florencia Garramuño (2012) conceitua
literatura opaca e infere sobre projetos da literatura contemporânea que competem à
interelação de experiência e narração nos textos e na reflexão106. Para a experiência, temos a
exploração tátil e visual da realidade que pode ser relacionada à literatura de autoria indígena:
“A escrita aparece mais próxima de uma ideia de organismo vivo, irracional, que respira, do
que uma construção acabada ou de um objeto concluído que seria exposto, incólume e
soberano, diante do olhar dos outros”. (GARRAMUÑO, 2012, p. 27). E, isso faz as narrativas
se afastarem dos padrões estruturalistas e formalizantes, aproximando-as da opacidade
proposta em correlação com experiência que não está aliada à representação que pressupõe
distância dos corpos.
Em possível consonância, Ana Pato (2012) conceitua literatura expandida partindo
do pressuporto da materialização dos vieses da apropriação de imagem autoral e da citação
apoderada que referencia a fonte ponto de partida. Para Pato (2012) essa literatura é uma
espécie de arquivo e mapa com códigos atemporais. Mais uma forma de entender essa
narrativa performática que se integra à realidade ao mesmo tempo em que parte da tradição
oral vivenciada por essas mulheres.
Suzane Lima Costa (2011) apresenta:

Nos territórios indígenas, escrever sobre si, dentro da lógica da autoficção, é


produzir inventário das coisas, dando nome aos acontecimentos como forma de
arquivá-los, de torná-los memória, de apreendê-los no tempo. Isso porque „o nome é
o que decide o ter tido lugar‟ das coisas. (COSTA, 2011, [s/p]).

Na contemporaneidade, não cabe mais “A morte do autor” de Roland Barthes (1968),


a necessidade é dar nomes às narrativas para entendê-las dentro do espectro da experiência,
seria a literatura-assinada dada por Graça Graúna (2013) à literatutra de autoria indígena.

106
Essa literatura compartilha dos estudos culturais, que é praxis e orgânica.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
257

Uma experiência assinada que está embasada ao que infere Olívio Jekupé (2009, p. 17): “A
história oral sempre foi importante, mas com a escrita podemos ser mais fortes eu acredito
porque, através dela, podemos registrar muitas histórias e com isso elas não se perderão de
vista”.
A história oral é um dispositivo base que impulsiona a construção da escrita das
narrativas-experiências indígenas. Como as escritas de “Metate Cara, Metade Máscara” de
Eliane Potiguara (2004), “O meu lugar no mundo” de Sulami Katy (2005), “Com a noite veio
o sono” de Lia Minápoty (2011) e “Ay kakuyri Tama: eu moro na cidade” de Márcia Wayna
Kambeba (2013), dentre outras obras a serem estudadas que, por vezes, expõem
entrecruzamento com a história oral, bem como o interstício (ou entre-lugar).
Partindo da ideia de entre-lugar re-apresentado por Eneida de Souza (2002), observa-
se que a literatura de autoria/autonomia indígena se constitui em alteridade de discurso
relativizado pelos grupos étnicos que inscrevem, em ato performático, as suas respectivas
histórias. Para ilustrar, têm-se o livro “Trioká Hahão Pataxi: Caminhando pela história
pataxó” de Katão Pataxó (2004), o qual apresenta o primeiro contato dos Pataxó com os
europeus, frente a percepção da comunidade.
A literatura de autoria-autonomia étnica é documentada a partir dos anos 1970,
quando os indígenas passam a ocupar o espaço da literatura brasileira e a divulgar essas
literaturas para acesso também dos não-indígenas. Assim, as mulheres étnicas passam a usar o
corpo para decretarem a resistência das comunidades: “As mulheres indígenas, em nossos
dias, estão tomando também posse da escrita (...). A literatura, para essas mulheres, também é
mais um instrumento de luta pelo lugar a que têm direito numa sociedade que as marginalizou
desde sua formação”. (KAUSS; PERUZZO, 2012, p. 35-36).
E, nas produções representativas da literatura, como: “Metate Cara, Metade
Máscara” de Eliane Potiguara (2004), “O meu lugar no mundo” de Sulami Katy (2005), “Com
a noite veio o sono” de Lia Minápoty (2011), “Ay kakuyri Tama: eu moro na cidade” de
Márcia Wayna Kambeba (2013), escritos que por meio da coletividade indígena, das
representação e memórias fundamentam, em certos pontos, discursos que se entrecruzam. O
que facilita tecer diálogos com “Mikay” de Arissana Pataxó (2009)5, no misto de realidade e
ficção dessa literatura expandida107.
Mikay expõe a frase “O que é ser índio pra você?” cravada em um simulacro que é o
facão feito em cerâmica. Neste caso, compactuando com Foucault (1988), o real se separa de
sua representação. Isto não é um facão, mas uma manifestação artística esculpida com ideia

107
Arissana Pataxó – Nasceu em 1983, em Porto Seguro – BA. Vive na comunidade Pataxó em Santa Cruz
Cabrália.
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258

comunicativa que se contrapõe ao imaginário social.


Foucault (1988), ao tratar da representação separada de real vs realidade, faz certo
incentivo à criação dos artistas que outrora estariam limitados à visão de mímesis colocada
por Platão e Aristóteles, em imitação verossímil. Essa ressignificação daria aos artistas
liberdade para transformar o real em ficção, sem precisar relacionar arte e signo, ou sem
imitar exatamente o real.
Kamilla Coelho (2011) infere:

[O] nascimento da representação, de maneira desligada do real, pode ser percebido e


exemplificado na obra Isto não é o cachimbo, momento em que o autor explica o
seu conceito de representação. [...]. A imagem não necessariamente teria que se ligar
à legenda e ao signo que busca afirmá-la, poderia, pelo contrário, assumir o papel
oposto. Uma atitude como esta possibilita à obra de arte ser admirada como não
detentora de uma única verdade, enriquecendo e valorizando seu conteúdo.
(COELHO, 2011, p. 103)

À arte é dada a devida valoração, afastando-a de apreensões unilaterais (semelhança),


permitindo amplas possibilidades interpretativas (similitude) e representativas. Nesse caso,
em Mikay o objeto não possui relação direta com a frase, mas permite diversas formas de
releituras. Na frase pode-se notar a presença da expressão “ser” exposto na linguagem verbal.
O que relembra Butler (2015) e a transição do corpo entre público e privado propício às
diversas formas de violência, leituras e enquadramentos. Mikay seria o que Trinh Minh-ha
(apud BUTLER, 2015) propõe sobre a necessidade de enquadrar o enquadramento para
desenquadrar o corpo. Ao traduzir108 e citar Arissana, Aline Takashima apresenta:

A arma representa os primeiros contatos entre os povos indígenas e ocidentais e a


frase remete aos estereótipos que a artista escutou. „Cada pessoa tem um índio
fictício na cabeça. Essa imagem é construída pelos livros de literatura, pelas escolas,
pela mídia. Mas nós somos um povo que vive na floresta e também na cidade. É
uma diversidade muito grande. É um erro considerar que índio é tudo igual‟, explica.
Obra „Mikay‟, de Arissana Pataxó questiona a figura do índio no imaginário popular
ocidental. (TAKASHIMA, 2016, [s/p]).

Por muito tempo, a história e literatura do Brasil foram apresentadas sobre a


perspectiva hegemônica. O que não representa a pluralidade. Com o surgimento dessa nova
forma de representar identificações, há quem alegue que os escritos de autoria/autonomia
indígena não são considerados literatura. Porém, reiterando cautelosamente sobre a mímesis,
devido o posicionamento estruturalista de Lima (2000):

108
Tradução (Hall, 2003): descreve a formação de identificação que interseccionam as fronteiras naturais.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
259

A mímesis aristotélica ensina algo que a ciência dos primeiros princípios, a obra em
que ele mais se empenharia, não se permitia ensinar: que é preciso aprender a viver
sobre dupla via e não sobre via única da verdade alcançada pelo pensamento.
(LIMA, 2000, p. 32).

Entre essas duas vias, uma se refere ao “engano poético” outra considera que cada
mímema (produto da mímesis) provoca dor e prazer que instigam, diferente da realidade viva e
vivida. E, conforme Moisés (2004): a mimese de Aristóteles envolve a imitação da natureza
ao mesmo tempo que é a representação da própria realidade quando se realiza em apresentar
uma obra por meio da arte, conforme acontece em Mikay de Arissana Pataxó. A faca sozinha
seria apenas um instrumento de corte, a frase sozinha é apenas um discurso comunicativo;
ambos juntos em uma foto postada em um blog, criado por um corpo indígena, se formam em
arte. Então, a escrita e oralidade de autoria/autonomia indígena que transitam na
representação literária, se expande em literatura.
Quanto a autoria/autonomia étnica, América Lúcia Cesar (2011) ressignifica essas
expressões como necessidade de se entender os diversos códigos de resistência das
comunidades indígenas. O que implica em promover deslocamentos teóricos que se
constroem embasados na prática, viabilizando o enfrentamento dos corpos indígenas que
constantemente são atentados a enclausurar-se.
Para Cesar (2011), autoria se inscreve em produção do gesto da fala que se deslocam
do poder instituído; construção coletiva e política que envolve a interação e enunciação.
Diferente da proposta escolar, desvincula a língua escrita e língua oral; produz deslocamentos
nas posições subalternas; representação e produção de contradiscursos autorizados, para além
de periféricos. Sobre autoria, Burke (apud CESAR, 2011) apresenta que estudiosos da história
ocidental a trata de forma periférica com ênfase nas questões teórico-estéticas ligadas às
dicotomias expressão vs inscrição, mímesis vs criação. Porém, precisam retomar autoria em
dimensão política:

Tanto no modelo mimético quanto no inspiracional, o autor torna-se aquele que


concebe a obra, mas como um sujeito inteiramente receptivo, através do qual uma
verdade impessoal é registrada. A imitação, por exemplo, tal como percebida na
Poética de Aristóteles, refere-se aos sistemas, regras e convenções a que estão
submetidos poetas e dramaturgos (...)
Mesmo sem advogar uma teoria geral sobre autoria. [Com um tratamento político]
procurei entender como sujeitos potencializam a capacidade de articulação
discursiva – que é antes de tudo política – e se autorizam como produtores de
discursos. (CESAR, 2011, p. 85-87. Grifos da autora).

Nessa perspectiva de ressignificar, Cesar (2011) apresenta que autonomia se


configura em: projeto político; superação das diferenças heteronômicas, ou alienação; se

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
260

concretiza no plano da construção coletiva; práxis que se torna prática e consciência crítica.
Ambas, autoria/autonomia, são formas de conceituar resistência indígena.
Em diálogos com outras obras partícipe dessa literatura, Mikay lembra o conto “É
índio ou não é índio?” de Daniel Munduruku (2010, p. 34), ao mesmo tempo em que lembra
as poesias Brasil e Terra Cunhã de Eliane Potiguara109 apresentadas em trechos:

Brasil
O que faço com a minha cara de índia? / E meus cabelos / E minhas rugas / E minha
história / E meus segredos? [...] E minha luta / E nossos filhos? / Brasil, que faço
com minha cara de índia? / Não sou violência / Ou estupro / Eu sou história / Eu sou
cunhã / Barriga brasileira / Ventre sagrado / Povo brasileiro. (POTIGUARA, 2004,
p. 34-35)
Terra Cunhã
Mulher indígena! / Que muito sabes deste mundo / Com a dor ela aprendeu pelos
séculos / A ser sábia, paciente, profunda, [...] Mas luta, raiz forte da terra! / Mesmo
que te matem por ora / Porque estás presa ainda / Nas garras do PODER e da
história. (POTIGUARA, 2004, p. 74-75. Grifo da autora)

Em Brasil, nota-se as indagações feitas pelo eu-lírico, que no sentido da


Escrevivência de Conceição Evaristo (2005), torna-se a própria Potiguara, ela problematiza o
que seria esse “ser indígena” em auto-identificação, frente ao constructo do imaginário social.
E, em Terra Cunhã, o corpo do “ser” mulher indígena é traduzido frente ao poder binário que
está enraizado em ideologias formadas historicamente desde o período de colonização. Ambas
poesias, apresentam no projeto ideológico códigos endógenos representativos.
Paralelamente a Potiguara, tem-se Márcia Wyana Kambeba110 que escreveu “Ay
kakuyri Tama: eu moro na cidade” (2013), dentre as poesias apresenta-se com título
homônimo do livro: “Ay kakuyri tama. / Ynua tama verana y tana rytama. / Ruaia manuta
tana cultura ymimiua, / Sany may-tini, iapã iapuraxi tanu ritual”. (KAMBEBA, 2013, p. 23).
Essa poesia, com representação linguística em tupi dos Omágua/Kambeba, traduz o
preconceito passado pela comunidade Omágua/Kambeba (de Amazonas) que dispersa
moradia na cidade. A tradução inicial desse poema apresenta: “Eu moro na cidade / Esta
cidade também é nossa aldeia, / Não apagamos nossa cultura ancestral, / Vem homem branco,
vamos dançar nosso ritual”. (KAMBEBA, 2013, p. 23). Os omágua, assim como outras etnias
indígenas, atravessam preconceitos por morarem na cidade. E, como sinal de coletividade e
interseccionalidade, o eu-lírico convida o não-indígena para também compartilharem
vivências.

109
Eliane Potiguara - Nasceu em 1950, no Rio de Janeiro - da comunidade Potiguara.
110
Márcia Kambeba – Nasceu em 1979 na aldeia Belém do Solimões. Etnia Omágua/Kambeba. Povo Tikuna.
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261

Potiguara e Kambeba inserem possibilidades de respostas à pergunta “O que é ser


índio pra você?” concretizada em um contexto étnico-racista de desconhecimento das
multiplicidades das comunidades indígenas que possuem suas línguas, identificações,
histórias orais, ligação direta com a natureza, dentre outras formas de vivências. Ambos casos,
os poemas devem ser encarados pelos estudos literários, para além de catálogo, enquanto
corpos viventes, assim como sugere José Lezama Lima (1988). E, em mais diálogos com as
obras já apresentadas, os escritos de Lia Minápoty111 se debruçam em responder a frase em
Mikay.
Minápoty se inscreve na prosa em “Com a noite veio o sono” (2011), que narra a
comunidade Maraguá quando ainda não conheciam a noite. Essa narrativa constitui
representação em releitura do universo por distintas visões. Eis trecho da visão Maraguá sobre
o surgimento da noite:

A noite ainda não era conhecida pelos homens. Somente Anhãga, o espírito do mal,
e outras entidades da floresta a conheciam, e usavam-na para seu proveito, por isso a
escasseavam mantendo-a guardada e presa para que ninguém, além deles, pudesse
usá-la. [...] Dessa maneira viviam cansados e sem vontade de trabalhar. Não havia o
que lhes ajudasse ou os incentivasse. A falta de escuridão lhes tirava o ânimo e
assim ficavam preguiçosos. [...]
Certo dia, um velho malyli, desses que conhecem os segredos do mundo e
conversam com os espíritos da floresta, aquém se dá o nome de çakaka, lhes contou
que próximo ao lago Waruã, havia dois kamuty112 guardados, pelo demônio Bikoroti.
Esses kamuty, além de serem pintados com grafismos de origem, eram brilhosos por
fora e estavam cheios de escuridão. (MINÁPOTY, 2011, p. 7-8).

A partir dessa introdução, Minápoty apresenta como a noite surgiu a partir da quebra
de um desses potes, o específico. Uma narrativa que alimenta a tradição oral sobre o
surgimento para comunidade. Comprovando a diversidade identificatória das etnias indígenas.
É similar o que faz Kanátyo Pataxó, quando apresenta a narrativa do surgimento dos Pataxó
em “Txopai e Itôhã” (2000), e a narrativa de como surgiram os cães na escrita de Daniel
Munduruku (2010, p. 33-35). Esses casos se consolidam, a partir da escrita da tradição oral,
enquanto formas de auto-afirmação dos indígenas que se divergem enquanto sujeitos de
etnias.
Assim, abordar as especificidades das etnias indígenas não é trata-las enquanto
grupos dispersos que trabalham somente pela própria etnia (grupo), mas trabalham também
pela representação das diversas comunidades (geral). A especificidade étnica se faz
necessária, pois cada comunidade constrói o corpo indígena de uma maneira distinta. Essas

111
Lia Minápoty – Nascida na aldeia Yãbetue‟y. Povo Maraguá, Amazonas.
112
Kamuty – tradução para pote de barro, moringa.
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262

comunidades grupais interagem entre si (grupo) e entre as outras etnias (geral), constituindo
a coletividade que é natural nas vivências das comunidades.
O corpo indígena produz arte. O corpo cria imagens concretas de acontecimentos e
memórias-histórias, além de ser a própria performance. No panorama da literatura expandida
de autoria/autonomia indígena, essas mulheres ressignificam a literatura brasileira e se
apresentam na luta que se perfaz nesses corpos. Conforme se apresenta Sulami Katy113 em
“Meu lugar no mundo” (2005), no qual ela relata várias histórias em uma mesma narrativa
que envolve sonhos fenomenológicos, rituais sagrados, histórias da tradição oral e relações
coletivas entre os potiguara da aldeia localizada no litoral da Paraíba:

Na aldeia, quando cai a noite, a paisagem muda totalmente.


Durante o dia, as crianças correm para todo lado, é tanta brincadeira, conversa,
risada, homens chegando com pesca, mulheres fazendo beiju. (KATY, 2005, p. 7).
Desde criança eu sentia muita vontade de conhecer novos lugares, de saber como
viviam as pessoas nas cidades grandes.
Mas esse desejo logo passava quando eu ouvia falar na violência, nas doenças, na
falta de liberdade e de segurança que ronda as metrópoles. (...)
- Você é louca, Katy, cidade grande não é coisa boa para jovens índias. Lembre-se
do Albino, minha neta! Essa gente não compreende nossa maneira de ser. (KATY,
2005, p. 51).

O corpo de Katy, constrói também uma forma de arquivar a tradição oral, que fazem
essas criações escritas serem compartilhadas com leitores-espectadores-internautas de
diversos locais. Ao iniciar a narrativa, ela apresenta “Conversa de sonho”, relatando um dia
em que várias pessoas da comunidade sonharam com a morte. Sobre sonho, Lima (1988) o
coloca como casualidade mágica que se manifesta em forma de domínio pela
superconsciência.
Destarte, o conhecimento afasta o pré-conceito. Diferente das anteriores escrituras,
Katy usa a narrativa em próprio relato para representar a comunidade potiguara da Paraíba. E,
essas produções expostas nesse corpus, contribuem para que a representação indígena na
literatura nacional seja modificada e devidamente apresentada. Uma quebra de paradigmas.
Com esses recortes de teorias, observa-se a montagem que leva a perceber como
essas formas (opacidade, experiência, arquivo, assinatura e oralidade) estão interligadas à
literatura produzida por essas mulheres. Esses modos é o que se constitui no projeto estético
dessas narrativas performáticas que se entende, se apresenta e se contempla. Com cautela,
adverte-se: As expressões artísticas estão constantemente presentes no cotidiano das-os
indígenas. A arte indígena tem profundas relações com a espiritualidade e com códigos

113
Sulame Katy – Nasceu em 1978. Aldeia potiguara, no litoral da Paraíba.
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263

identificatórios dos povos (geral e grupal), que se deslocam e se inscrevem numa data, num
espaço e local de entremeio.
A luta de se inscrever a partir da perspectiva do corpo da mulher indígena, é também
uma forma de valorização coletiva (grupal-individual), que fazem essas criações se tornarem
uma opacidade de acesso para melhor conhecimento dos leitores-espectadores-
114
internautas sobre a mulher de etnia. Essas produções, além de favorecerem a compreensão
sobre as culturas e histórias das diferentes comunidades.
As prováveis respostas levantadas com base no corpus desta pesquisa por Eliane
Potiguara, Márcia Kambeba, Lia Minápoty e Sulami Katy, frente à pergunta “O que é ser
índio pra você?” em Mikay, se constitui enquanto resistência e desmistificação de estereótipos
que negativizam os indígenas. Mulheres indígenas têm dessacralizado na arte brasileira e
usado das diversas formas de expressões performáticas para representarem as vivências
coletivas das comunidades por meio de rupturas promovidas no âmbito da arte. Tais rupturas
se materializaram na inserção da arte produzida pelas-os indígenas no cenário da arte
brasileira contemporânea. Nesse quesito, a literatura representativa se torna um mecanismo de
ocupação apropriada para apresentar essas manifestações artísticas.
A partir desses pressupostos histórico e político de homogeneização e
universalização das culturas, as vias usadas para fazerem circular e preservar as culturas
indígenas têm o intuito de representação e contracultura pela desmistificação do ideal
imaginário que promoveram e tem promovido o etnocídio; vulgarização da mulher indígena;
redução das tradições orais à folclore; transplantação cultural; dentre outras práticas iniciadas
pelos europeus que se perdurou na construção do projeto de identidade nacional.
Isto é, o que se acreditou por muito tempo sobre a identidade do Brasil na literatura,
sobretudo no Romantismo, não passam de um jogo perverso de poderes que tentaram adequar
uma cultura excepcionalmente heterossexual e etnocentricamente europeia, às vivências da
população brasileira sob tentativa de silenciar as etnias indígenas. O que têm impulsionado
que os indígenas, assim como os demais povos marginalizados, construam projetos que visem
circular os discursos endógenos. Neste caso, discurso de entre-lugar, indígenas falando sobre
indígenas em território intersticial, diversos elementos que ressignificam as etnias, raça e
cosmovisão indígena(s), outrora coisificadas.

114
Expressão criada por Néstor García Canclini (2008).
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264

REFERÊNCIAS

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VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
266

MADRES EN LUCHA: A REPRESENTAÇÃO DO CONFLITO ARMADO INTERNO


DO PERU EM ROSA CUCHILLO (1997), DE OSCAR COLCHADO LUCIO

Jirlaine Costa dos Santos (UFBA)


E-mail: jirlainefeliz@gmail.com

“Eu lhes dizia que juntas, não nos matariam. Somos


muitas mães e unidas seremos fortes”. 115
(Mama Angélica)

O Peru foi palco de inúmeros episódios de violência entre os anos de 1980 e 2000,
período posteriormente denominado como Conflito Armado Interno (CAI). Esses
acontecimentos marcaram profundamente a história do país e consequentemente a vida daqueles
que foram afetados por seus efeitos. Famílias foram devastadas, houve mortes em grande escala.
Órfãos, viúvas e mulheres violentadas e muitos jovens foram sequestrados e assassinados.
Segundo dados da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru, (CVR), divulgado em 2003,
“dezenas de milhares de vítimas foram assassinadas, desaparecidas, torturadas – incluindo
estupros e esterilizações forçadas – e detidas de forma arbitrária”. (CVR 2013: Tomo I, 70). O
Conflito Armado foi um período de grande violência e o conflito de maior duração de toda a
história do país. Mais de 69. 000 peruanos e peruanas morreram. Destes, sua maioria pertenciam
as zonas rurais, principalmente da cidade de Ayacucho, que registra a maior quantidade de
vítimas de todos os territórios afetados.
Tendo como palco inicial as comunidades camponesas de Ayacucho, o partido
Comunista do Peru ou Sendero Luminoso (SL), como também o Movimento Revolucionário
Tupac Amaru (MRTA), apresentaram de modo impositivo, em algumas situações, aos
camponeses dessas regiões, seus ideais políticos com o objetivo de conseguir apoio em suas
empreitadas guerrilheiras contra o governo e para sedimentar um projeto revolucionário. Por
outro lado, a polícia e as forças armadas do Estado peruano combateram de forma violenta
aqueles que se associaram ou simpatizavam com esses partidos, de modo que parte da
população civil ficou no meio do fogo cruzado sofrendo as piores atrocidades possíveis. Jovens
foram recrutados pelo SL e os que tentavam resistir eram levados à força. Quando lutavam ao
lado do Sendero eram perseguidos indiscriminadamente pelas Forças Armadas, sendo detidos,

115
Citação disponível em: <https://www.icrc.org/es/document/peru-dia-mujer-mama-angelica-simbolo-lucha-
fortaleza>. Acesso em: 17 set. 2017.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
267

sequestrados e executados sumariamente. Com isso, as mulheres se tornaram as maiores


prejudicadas com a perda de seus filhos e maridos, tendo que conviver num ambiente hostil em
que seus corpos eram coisificados como objeto sem nenhuma possibilidade de resistência.

O Conflito representado em Rosa Cuchillo

Esse momento histórico está representado em várias produções artísticas de autores


peruanos que trazem à memória o momento de violência vivido em seu país. Dentre eles,
destaco o livro Rosa Cuchillo (1997), de Oscar Colchado Lúcio, no qual a violência sofrida
pelas mulheres e mães é tratada de forma marcante como um elemento traumático e doloroso.
Destaco neste momento a importância da literatura representando a história e resgatando a
memória e a cultura andina.
Escrito por Oscar Colchado Lucio, o romance Rosa Cuchillo narra o testemunho
ficcional de uma mãe, Rosa Wanka, que sai à procura do filho levado pela guerra. Como
símbolo de resistência, a personagem vaga pelo mundo dos mortos a procura de Libório, seu
primogênito, que foi levado de Ayacucho pelo Exército e não mais foi visto. Rosa é uma mulher
valente que representa também as mulheres que conviviam num ambiente vulnerável no qual
corriam riscos a todo o momento. Assim, seu sobrenome cuchillo (do espanhol, faca) era o
instrumento de defesa que ela encontrou para escapar da violência:

Às noites, dormia com uma faca ao alcance de minha mão, bem plantada ao
centro de uma cruz desenhada no chão, tal como uma vez escutei dizer que era
bom para espantar aos maus espíritos, como também para conter aos homens
que várias vezes tentaram assediar-me. (LUCIO, 1997, p. 38, 39. Tradução
nossa).

Com este romance, Oscar Colchado Lucio traz à memória o período do conflito armado e
simboliza com seu livro a luta de mulheres pela sobrevivência de si mesmas e de suas famílias.

Resistência feminina no Peru: ANFASEP

Quando falo de resistência feminina no Peru, pensando no contexto pós CAI, refiro-me,
neste artigo, à criação da ANFASEP- Associação Nacional de Familiares de Sequestrados,
Detidos e Desaparecidos do Peru, com mães que persistiram na procura de seus filhos e maridos

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mesmo correndo riscos. Um grupo formado por 5 mulheres criaram em 2 de setembro de 1983 a
ANFASEP.
Assim como a personagem Rosa Cuchillo, essas mulheres resistiram aos perigos a fim de
encontrar respostas sobre o paradeiro de seus familiares. Luta e resistência são as palavras que
as definem. A ANFASEP possui atualmente cerca de 200 membros e deu-se início a partir da
criação de um refeitório para os órfãos durante o conflito, pois enquanto suas mães buscavam
por seus familiares desaparecidos, as crianças ficavam sem assistência, já que a condição das
famílias era precária. Uma das mulheres afetadas durante o conflito, Máxima Tenorio de
Palomino, membro da ANFASEP, relata o momento que teve a sua casa invadida:

Em 27 de setembro de 1983, quando estávamos dormindo, aproximadamente


às 10 da noite, escutei que gritavam em minha porta: “Levante-se terruco116”.
Bateram e abriram a porta, que estava fechada com cadeado. Eram os sinchis e
os cabitos117, encapuzados, levavam botas e roupa de cor verde escuro. Os dois
nos jogaram ao chão, dizendo ao meu esposo: “Levante-se terruco.” Puxaram
meu esposo à forca, ele estava vestido com uma calça jeans velha com a qual
sempre dormia e eu vestia uma camisola; a mim me jogaram ao chão da
cozinha, eram duas pessoas, um sinchi e um cabito, logo me violentaram, me
ameaçando: “se você gritar, vamos te matar.” Logo escapei para um canto da
cozinha, toda maltratada, e me perguntava preocupada se me iam matar, não
importa ainda que me matem, dizia. Eles se foram deixando-me na cozinha,
segurando a porta com arame, e eu não vi o que mais fizeram com meu esposo
(ANFASEP, 2015, p. 119.Tradução nossa).

Membro da ANFASEP, Máxima representa dezenas de mulheres que encontraram na


Associação uma forma de luta e resistência às perdas que sofreram durante o conflito. Lideradas
até pouco tempo atrás por Angélica Mendonza, a Mamá Angélica, essas mulheres exigem do
governo Peruano através da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) uma resposta sobre o
paradeiro de seus filhos e esposos mortos e desaparecidos. Diante da constante violência, as
mulheres andinas do Peru foram as mais afetadas durante o conflito. Muitas mães perderam seus
filhos, além de sofrerem abusos sexuais e estupros coletivos. Elas eram tratadas como objetos e
não tinham nenhum controle sobre seus corpos. Segundo Alcalde,

A Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru constatou que entre 1980 a


2000, houve uma violência sexual generalizada contra as mulheres. O Exército
e a polícia foram responsáveis pela grande maioria das violações (83%) e o
Sendero Luminoso, aproximadamente por 11% delas (ALCALDE, 2014, p.
127. Tradução nossa.)

116
Terruco: expressão usada pelo Exército peruano para referir-se aos habitantes de Ayacucho.
117
Sinchis e cabitos: expressão usada para referir-se aos soldados peruanos.
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269

Entre o medo e o clima de tensão em que viviam houve também o desejo de resistência dessas
mulheres desde a criação da ANFASEP na qual elas decidiram quebrar o silêncio, abrindo mão
do bem mais valioso que possuíam: suas vidas. Se no romance Rosa Cuchillo, a mãe que é
personagem principal não cessa sua busca após a própria morte: “Bem abraçada a Wayra, que
dava braçadas dificultosamente, pude chegar por fim a outra margem, sempre deixar de pensar
em meu Libório, morto recentemente nos enfrentamentos da guerra, e por quem de dor eu
também morri”. (LUCIO, 1997, p. 10 – Tradução minha), no cotidiano dessas mulheres da
ANFASEP, elas seguem também na luta, reivindicando reparações no âmbito jurídico, mas
sobretudo reparação simbólica, com no mínimo, o direito de enterrar um familiar desaparecido.
Essas mulheres conseguiram através da ação de seus corpos, na práxis política, mobilizar
a sociedade de seu país, mostrando-lhes que mesmo sendo elas pessoas comuns, pobres e
falantes da língua quéchua, carregavam consigo uma grande potência capaz de dar visibilidade
as suas demandas frente ao Estado peruano (organização em grande parte responsável pelas
perdas e mortes ocorridas durante o conflito, já que em muitos casos os jovens eram levados e
executados pelas forças armadas do governo peruano). Elas renunciaram o perigo ao se expor
ante essa realidade com o intuito de chamar a atenção de todos, trazendo à memória esse fato
lamentável e cruel vivenciado em seu país. Seus corpos fragilizados pela dor, pelo luto e
incerteza diante do futuro, conseguiram ganhar forças, resistindo bravamente diante de tudo.
Deixando visível em seus corpos “uma força de resistir face ao sofrimento". (PELBART, 2003,
p. 48)

A constante luta de Mamá Angélica

O exemplo mais significativo dessa luta é o caso de Angélica Mendoza e seu filho
Arquímedes Alcarza. Primeira presidenta e uma das fundadoras da ANFASEP, Angélica
Mendoza, carinhosamente chamada de Mama Angélica foi quem deu início ao movimento, a
partir de sua experiência de luta incansável e busca por seu filho Arquímedes Ascarza Mendoza,
desaparecido desde 1983, levado de casa durante o período de conflito em Ayacucho. As
mulheres na mesma situação se encorajaram com seu testemunho e passaram a acompanhá-la,
elegendo-a como sua representante. As mulheres da zona rural, falantes do quéchua que se
expressavam com dificuldade em espanhol, sentiam-se vulneráveis e encontraram na Mamá
Angélica uma porta-voz, para juntas seguirem em busca de seus familiares.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
270

Imagem: Mama Angélica com foto de seu filho Arquimedes Ascarza. Disponível em: Google Imagens.
Acesso em: 19 Out. 2017.

Como uma mulher forte e corajosa, ela investiu na busca de respostas sobre o paradeiro
de seu filho até o fim da vida. Em 28 de agosto deste ano, Mamá Angélica faleceu em Lima, aos
88 anos de idade e sua luta não foi perdida, pois, após a confirmação de que seu filho foi uma
das 109 vítimas desaparecidas durante o período do conflito armado interno, no último dia 17 de
agosto de 2017 – 11 dias antes de seu falecimento – Pedro Edgar Paz Avendaño, chefe dos
soldados responsáveis pela execução do jovem Arquimedes Ascarza e de outros jovens foi
condenado a 23 anos de prisão.

Considerações finais

Diante disso, percebemos a importância da voz dessas mulheres em nome de um desejo,


anseio de verdade e justiça no qual suas vozes foram ouvidas trazendo à memória um fato triste
ocorrido em sua história e que as afetou de forma marcante. Não fosse esse movimento de
resistência e a história certamente teria sido esquecida nas gerações posteriores ao conflito.
Infelizmente, esse momento violento marcou negativamente a história do Peru, porém é
necessário que esse período esteja presente na memória de seu povo para que não mais seja
repetido entre eles. “A história "efetiva" faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de
único e agudo” (FOUCAULT, 2000, p. 19). Assim, o intuito aqui é de recordar para não
esquecer, rememorando os efeitos do conflito armado como um acontecimento cruel e de uma
violência sem limites.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
271

O relato das mulheres sobre o que vivenciaram durante o conflito também produzem um
conjunto de saberes, testemunhos de dor em forma de denúncia como testemunhas que formam
hoje a ANFASEP. Além de narrar os fatos ocorridos naquela época elas estão produzindo
conhecimento, contribuindo com a história do país mesmo que indiretamente. Esse saber
provêm aqui de pessoas comuns, mulheres camponesas, humildes que apenas sabiam se
comunicar em língua quéchua (não sabiam ler nem escrever em espanhol) e que por isso
poderiam ter seu relatos desconsiderados. Sobre isso afirma Foucault ser esse tipo de saber
tomado diante da história oficial por "saberes sujeitados",

Eu entendo igualmente toda uma serie de saberes que estavam desqualificados


como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados:
saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível
do conhecimento ou da cientificidade requeridos (FOUCAULT, 2002, p.12).

Porém, vemos que esses saberes sujeitados despertaram uma grande força que potencializa a
história não somente com a voz dos que detém o poder, com a história oficial, mas com todos os
seus agentes, independentemente de sua classe social e etnia. Os testemunhos dessas mulheres
deu início a um grande resgate da história do Peru, pois a Associação da qual fazem parte
conserva um museu da memória onde estão apresentados todos os detalhes do conflito, como
também elas disponibilizam no site da ANFASEP livros e materiais onde estão registrados todos
os acontecimentos e episódios sangrentos do conflito vivenciados por essas mulheres. Tudo isso
está disponível para aqueles que desejam conhecer um pouco mais dos fatos históricos de seu
país a partir da perspectiva dos afetados por eles e não só pelo que conta a história oficial do
Peru.

REFERENCIAS

ALCALDE, M. Cristina. La mujer en la violencia: pobreza, género y resistencia en el Perú.


Lima: IEP; PUCP, 2014. (Perú Problema, 39).
ANFASEP - Asociación Nacional de Familiares de Secuestrados, Detenidos y Desaparecido del
Perú. Disponível em: <http://anfasep.org.pe/>. Acesso em: 30 set. 2017.
COMISSÃO da Verdade e Reconciliação do Peru. Disponível em:
<https://anistia.org.br/noticias/comissao-da-verdade-e-da-reconciliacao-dez-anos-depois-ainda-
nao-ha-justica-verdade-nem-reparacao-peru/>. Acesso em 17 set. 2017.

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272

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder.


Organização e tradução de Roberto Machado. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p.15-37.

FOUCAULT, Michel. Aula de 7 de janeiro de 1976. In: Em defesa da sociedade. Trad. Maria
Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.3-26.
LUCIO, Oscar Colchado. Rosa Cuchillo. Santillana: Lima, 1997. (Serie Roja – Alfaguara)
MENDOZA, Angélica. Disponível em: <https://www.icrc.org/es/document/peru-dia-mujer-
mama-angelica-simbolo-lucha-fortaleza>. Acesso em: 17 set. 2017
PAJUELO, Renato. Los Cabitos: Estas fueron las sentencias que recibieron los acusados. La
Republica. Lima, 17 ago. 2017. Disponível em:<http://larepublica.pe/politica/1075115-los-
cabitos-pj-dicta-sentencia-esta-tarde-contra-militares-por-las-53-victimas>Acessoem: 17 set.
2017.
PELBART, Peter Pál. Parte 1: A vida em comum. In: Vida capital: ensaios de biopolítica. São
Paulo: Iluminuras, 2003, p. 17-51.

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273

NARRAR E RECONTAR: A NARRATIVA DE PAULINA CHIZIANE COMO FORMA


DE LIBERDADE E RESISTÊNCIA

Mestranda Márcia Neide dos Santos Costa (UEFS)


E-mail: marcianeide@gmail.com
Dra. Tércia Costa Valverde (UEFS)
E-mail: tecaverde05@outlook.com

INTRODUÇÃO

Este trabalho, que tem como título Narrar e recontar: A narrativa de Paulina
Chiziane como forma de liberdade e resistência, busca discutir o modo de narrar da
personagem Rami, protagonista do romance Niketche- uma história de poligamia (2004), da
escritora moçambicana Paulina Chiziane. O romance Niketche narra a história de Rami, mulher
educada numa religião cristã, casada com Tony, um homem polígamo. Chiziane, através da
protagonista, discute a poligamia no Sul e Norte de Moçambique, a cultura imposta pelos
colonizadores, bem como a mulher submissa ao marido.
Sobre as obras de Chiziane, Ana Maria Novais e Katia Avelar afirmam que:

Os provérbios, frequentes nas obras dessa escritora, têm também um papel importante
pelo caráter pedagógico-social que apresentam, uma vez que permitem uma reflexão
sobre a maneira como as personagens se enquadram culturalmente. (NOVAIS;
AVELAR, 2013, p. 80)

Portanto, os provérbios, que no Dicionário representam frases ou ditados curtos de


origem popular, que resume um conceito moral, uma norma social, é também uma estratégia
narrativa utilizada por Chiziane para mostrar não apenas as tradições, culturas e a sabedoria dos
povos, mas instigar reflexões e provocações a partir desses provérbios que, segundo Novais e
Avelar, apresentam um caráter pedagógico-social.
Em Niketche, a narradora principal toma posse da linguagem simples com marcas da
tradição oral, se aproximando das contações de histórias narradas pelos mais velhos ao redor das
fogueiras. Segundo Cândido Rafael:

Niketche: uma história de poligamia, as reflexões e os questionamentos sobre as


tradições culturais moçambicanas funcionam como o mote central da narrativa.
Seguindo as linhas de Paulina, somos apresentados a uma estrutura poligâmica
organizada por Tony, marido de Rami, protagonista e narradora principal da obra.
Cinco mulheres, enfrentam os costumes de uma tradição que persiste de modo
reformulado e hipócrita na sociedade moçambicana. (RAFAEL, 2009, p. 15)

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274

Niketche não é apenas um romance contemporâneo. Ele reúne um conjunto de itens que
faz dele um livro importante para representação e afirmação da literatura moçambicana. A obra
exibe um modo de narrar que representa, também, a resistência e liberdade da mulher na
sociedade e do povo moçambicano, que, por mais que tenham conquistado a independência
colonial em 1975, ainda busca derrotar o neocolonialismo que impera. Niketche traduz um modo
de refletir sobre a conquista real da independência moçambicana.
O primeiro item que faz de Niketche uma obra relevante para representação e afirmação
da literatura moçambicana, é o fato de ser um romance pós-colonial que, de acordo com
Inocência Mata:

O pós-colonial, termo que remonta aos anos 1970, só adquire, enquanto noção,
substância conceptual a partir dos anos 1980 [...] e apesar de não existir uma teoria pós-
colonial, o que parece aproximar as várias percepções deste campo de estudos é a
construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos na
análise cultural, sendo porventura a mais importante mudança a assinalar no campo dos
estudos culturais (e literários) a análise das relações de poder, nas diversas áreas da
atividade social caracterizada pela diferença: étnica, de raça, de classe, de gênero, de
orientação sexual […]. (MATA, 2014, p. 27)

A literatura pós-colonial presente em Chiziane representa uma (re)construção de


identidade, de nação moçambicana. Rita Chaves também contribui para as discussões em torno
do pós- colonialismo. Portanto ela afirma:

Sem entrar nas polêmicas abertas em torno das teorias da pós- colonialidade, interessa-
nos apenas discutir aspectos da realidade que se abre após a independência, e sobretudo
quando o tempo se marca pelo desencanto. Assim chegamos aos anos 90 que viriam
consolidar a sensação de perplexidade diante da inviabilidade do projeto acalentado. A
continuidade da guerra, as imensas dificuldades no cenário social, o esvaziamento das
propostas políticas associadas ao estatuto da independência, a incapacidade de articular
numa concepção dinâmica a tradição e a modernidade compuseram um panorama
avesso ao otimismo. Novamente, regressa-se ao passado, a várias dimensões do
passado, para se tentar compreender o presente desalentador. (CHAVES, 2014, p. 156)

O segundo item presente em Niketche, que revela um texto de resistência e


representatividade é o protagonismo feminino. Ou seja, esse protagonismo faz com que elas
mesmos possam expor suas histórias, dores e conquistas. Laura Cavalcante Padilha afirma:

Sempre com o absoluto protagonismo feminino [...] a autora não escamoteia o fato de
usar figuras de mulher para por elas metonomizar a face mais sofrida da nação sofrida,
para além de insistir em toda a sua pluralidade cultural de base [...] desde o pacto pré-
textual, a figura da mulher diz presente através da voz epigráfica de um provérbio
zambeziano: “Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz. Estamos, assim,
frente a frente com o mesmo quadro em que a mulher ocupa um absoluto primeiro
plano. (PADILHA, 2013, p. 170-171)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
275

A protagonista Rami se vê na busca da identidade feminina, numa sociedade ainda


patriarcal. É essa busca que faz com ela procure no espelho a imagem de uma mulher
independente, livre, uma mulher que ela estar disposta a ser e não àquela que a sociedade lhe
impõe. O diálogo com o espelho é frequente: “Vou ao espelho tentar descobrir o que há de
errado em mim.” (CHIZIANE, 2002, p. 16).
O terceiro item, trata-se de um romance híbrido, que: “usa os recursos da paródia e
entrecruza-os com pequenas historietas que, africanamente compõem o tear da narrativa,
reinventando a tradição oral.” (RAFAEL, 2013, p. 107).
O quarto, é um romance que reconta e reconstrói a história colonial moçambicana que,
segundo Linda Hutcheon, não seria uma “imitação nostálgica do passado, mas uma repetição
com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON, apoud,
ARNAUT, 2008, p. 207-208). Esses itens faz com que Niketche seja uma obra de resistência,
militância, subversão e liberdade. É uma narrativa leve, refletindo/repensando sobre os
discursos produzidos pelo outro, o colonizador. O modo de narrar da personagem Rami nos
ajuda a compreender essa obra de resistência e reflexão sobre cultura, religião e processo de
colonização. Na passagem seguinte, Rami expressa sua fala a respeito da poligamia:

Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos sem memória.
Conheço um povo sem poligamia; o povo macua. Este povo deixou as suas raízes e
apoligamou-se por influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo
aproveitaram a ocasião e converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder,
porque é bom ser patriarca e dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o
meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à
poligamia. Cristianizou-se [...]. A pratica mostrou que com uma só esposa não se faz
um grande patriarca [...] (CHIZIANE, 2004, p. 92)

Quando Rami afirma que a poligamia é o destino de tantas mulheres [...]:

Tais mulheres são a representação da face cultural poliédrica de Moçambique. Elas


metonimizam o encontro das culturas do norte, do sul e do centro do país. Uma vez
mais se mostra que a mulher é um duplo da terra. Assim, se a terra é um múltiplo
cultural, também é necessário propor uma múltipla figuração das imagens femininas
para com ela reforçar o peso da diversidade. (PADILHA, 2013, p. 172)

Rami fala sobre como os povos assimilaram a cultura do outro, do “dominador”. E, em


alguns momentos, ela consegue ser crítica e polêmica. Por isso, Rami diz:

Todo o problema parte da fraqueza dos nossos antepassados. Deixaram os invasores


implantar os seus modelos de pureza e santidades. Onde não havia poligamia,
introduziram-na. Onde havia, baniram-na. Baralharam tudo, os desgraçados!
(CHIZIANE, 2004, p. 93).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
276

Essa fala nos remete a ideia de que toda imposição religiosa e cultural do colonizador se
deu pela “fragilidade”, “permissividade” dos antepassados. Mas em verdade, Chiziane, através
das expressões enfáticas da personagem, busca demonstrar a força dos ancestrais que se
orgulham dos seus costumes e tradições. É essa força ancestral que traduz as transformações e
conquistas de um país que, mesmo marcado pelo passado de guerras, dores, se reinventa e luta
continuamente pela liberdade de um país recém independente.
A protagonista do romance, Rami, se apresenta no início do livro como uma mulher
frágil, obediente ao marido, sem expectativas de vida. Isso porque o discurso ocidental de que a
mulher deve sempre ser inferior ao homem, lhe foi imposta. Porém, no decorrer da história,
Rami se mostra firme, segura de seus atos, dos seus comportamentos e consciente do seu poder
de libertação. Dessa forma, ela explana:

Interrompemos a dança e seguimos em procissão, pela estrada fora. O nosso canto


penetra na esfera das nuvens, e colonizamos o céu com as nossas vozes. Chegamos à
lua [...]. A cantar e a dançar, construiremos escolas com alicerces de pedra, onde
aprenderemos a escrever e a ler as linhas do nosso destino. (CHIZIANE, 2004, p. 293)

Assim é a prosa poética de Paulina Chiziane, bem como os seus personagens:

Ela nos seus textos encara os tabus de frente, segue em frente com as suas falas e sem
receios. Nos seus textos vejo a própria Paulina, simples, amiga e, sobretudo, com um
abraço de mãe e mulher. Vejo também a sabedoria das velhas história: é como se
revisse nela as mulheres mais velhas e o seu conhecimento. (TOMÉ, 2013, p. 343)

No depoimento de Tânia Tomé, é possível perceber a intensidade dos textos de Chiziane,


e mesmo sendo uma literatura moçambicana, atinge o ser humano de modo universal. Por meio
da sua abordagem, ao narrar temas fortes, históricos e sociais, o leitor consegue se envolver nos
fatos narrados. Chiziane, como afirma Tomé, encara os tabus de frente, segue em frente com as
suas falas e sem receios. Portanto, Paulina Chiziane não teme em abordar temas polêmicos e
críticos da sociedade a qual ela convive. Chiziane subverte o sistema político, social, opressor,
pois este a incomoda e lhe inquieta. Por isso é que se faz necessário seus textos, suas obras,
como é Niketche, por exemplo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar a literatura moçambicana de Paulina Chiziane é debruçar-se num universo rico


de linguagens, culturas e tradições, além de poder refletir sobre os processos de colonização,
guerras, independência moçambicana, mulher, sistema patriarcal e outros temas que Chiziane
apresenta para o leitor. Ela nos oferece um olhar atento e crítico sobre como Moçambique é
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
277

pensado numa visão de fora, do outro. Os discursos femininos presentes nas obras dessa
escritora é uma tentativa de mostrar a fala e os ideais daqueles que foi colonizado, explorado,
tendo suas falas e seus direitos violados. É uma escrita de resistência, militância e subversão.
Portanto, o trabalho se debruçou na análise do livro Niketche- Uma história de poligamia de
Paulina Chiziane nessa perspectiva: de elencar e evidenciar os aspetos do livro em que é
possível perceber a força da narrativa de Chiziane. Uma narrativa pós- colonial que apresenta o
protagonismo feminino, com recursos híbridos, que utiliza os recursos da paródia para contar/
recontar, repensar e desconstruir uma história oficial, narrada pela visão ocidental, do
colonizador. Rami, que conta as histórias da mulher inserida num sistema poligâmico e
patriarcal. Isso é narrado por meio de uma linguagem poética sutil, metafórica e com marcas da
oralidade do povo moçambicano. O estudo foi relevante porque apresentou a forma pela qual
Chiziane, através da personagem Rami, narra a história do seu país como símbolo de resistência
e luta. O trabalho também contribuiu para ampliar as pesquisas em torno das obras de Chiziane,
bem como discutir sobre a mulher na sociedade moçambicana e o processo de colonização no
país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAVES, Rita. O passado presente na literatura africana. N. 7. São Paulo: Via atlântica,
2004.

HUTCHOEON, Linda. Teoria e Política da Ironia. Trad. Júlio Jeha. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2000.

MATA. Inocência. Estudos pós-coloniais: Desconstruindo genealogias eurocêntricas. V. 14 n.


1. Porto Alegre: Civitas, 2014.

NOVAES, Ana Maria Pires; AVELAR, Katia. A oralidade e o entrecruzamento dos discursos:
uma leitura do feminino em “As cicatrizes do amor” de Paulina Chiziane. In: MIRANDA,
Maria Geralda de.; SECCO, Carmem Lúcia Tindó. (Orgs.). Paulina Chiziane: Vozes e rostos
femininos de Moçambique. Curitiba: Appris, 2013.

RAFAEL, Candido. Xiboniboni: a metáfora dos espelhos em Niketche, de Paulina Chiziane.


Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

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278

PADILHA, Laura Cvalcante. Capulanas e vestidos de noiva leitura de romances de Paulina


Chiziane. In: MIRANDA, Maria Geralda de.; SECCO, Carmem Lúcia Tindó. (Orgs.). Paulina
Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique. Curitiba: Appris, 2013.

TOMÉ, Tânia. A Paulina Chiziane é para mim uma escritora que representa a força da mulher.
In: MIRANDA, Maria Geralda de.; SECCO, Carmem Lúcia Tindó. (Orgs.). Paulina Chiziane:
Vozes e rostos femininos de Moçambique. Curitiba: Appris, 2013.

SITES
Disponível em: https://www.dicio.com.br/proverbio/ Acesso em 10/09/2017

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DISCUSSÕES SOBRE MOBILIDADE E SUBVERSÃO DA IDENTIDADE


EM RECOLLECTIONS OF MY LIFE AS A WOMAN, DE DIANE DI
PRIMA

Ma. Maria Clara Dunck Santos (UnB)


E-mail: mdunck@gmail.com

Na autobiografia Recollections of my life as a woman: the New York years, Diane di


Prima legitima uma busca que perpassa toda sua produção literária: as “possibilidades de ser
uma mulher” (DI PRIMA, 2011, p. 6, tradução minha). Do registro da infância no Brooklin à
velhice em San Francisco, suas memórias apresentam a vivência de um sujeito que transgrediu
as normas sociais de uma época ao refutar o destino traçado às mulheres norte-americanas no
período pós-Segunda Guerra Mundial: conseguir um diploma, esquecê-lo em uma gaveta,
formar uma família, criar as/os filhas/os e curar suas próprias frustrações e depressões no
consumismo.
Como registra Betty Friedan em A mística feminina, as mulheres inseridas neste contexto
da classe média estadunidense eram definidas a partir de pressupostos reacionários, se
comparados aos da primeira metade do século XX. Nas revistas femininas, por exemplo,
enquanto nos anos 1930 as mulheres eram frequentemente representadas como heroínas
confiantes e independentes, que possuíam uma carreira, nas décadas de 1950 e 1960, as
mulheres eram representadas como donas de casa dedicadas à criação dos filhos e aos cuidados
do marido. Na contramão da cultura, Friedan identifica que apesar de as mulheres se adequarem
à expectativa da sociedade da época, a grande parcela de mulheres que se declarou infelizes
dentro do casamento e da maternidade persistiu.

Todos afirmavam que seu papel era procurar realizar-se como esposa e mãe. A voz da
tradição e da sofisticação freudiana dizia que não podia desejar melhor destino do que
viver a sua feminilidade. [...] Aprendiam a lamentar as infelizes neuróticas que
desejavam ser poetisas, médicas ou presidentes. Ficavam sabendo que a mulher
verdadeiramente feminina não deseja seguir carreira, obter educação mais aprofundada,
lutar por direitos políticos e pela independência e oportunidades que as antigas
feministas pleiteavam. (FRIEDAN, 1971, p. 17).

Nascida em 1934, no Brooklin, Estados Unidos, Diane di Prima está inserida neste
contexto de virada reacionária. Ao considerar todas as instituições uma prisão, seja a família, a
universidade ou as relações insistentes entre as pessoas, que as deixavam impotentes para
“mudar os detalhes de suas próprias vidas” (DI PRIMA, 2001, p. 93, tradução minha), di Prima
se desvia da “mística feminina” ao abandonar a faculdade, partindo, então, em busca de seu
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próprio destino. “Parecia não haver onde ficar naquele lugar. Nenhuma maneira de gastar mais
três anos lá. Anos de mentiras” (DI PRIMA, 2001, p. 94, tradução minha).
Quando decide seguir o próprio caminho, a série de andanças que se sucede é ao mesmo
tempo uma busca e uma forma de resistência que está intrinsicamente ligada ao gênero, algo que
se percebe logo no início da narrativa: “Meu primeiro sentido sobre o que significa ser uma
mulher eu aprendi da minha avó, Antoinette Mallozzi” (DI PRIMA, 2001, p. 1, tradução
minha). E que se legitima ao registrar que ser mulher significa estar inserida em sistemas de
abuso.
Eu posso me recordar ajudando na cozinha, quando não era alta o suficiente para
chegar à panela no fogão, sendo queimada pelo óleo derramado e sendo informada que:
as mulheres tiveram de aprender a suportar a dor mais do que os homens. Era apenas
como elas eram feitas. Mulheres, mamãe passou a contar ao meu pequeno eu intrigado,
têm regras, têm bebês; mesmo cozinhando e limpando elas se machucam mais. [...] Ela
ansiava por essa armadura como uma coisa boa: ela descreveu como uma bênção. (DI
PRIMA, 2001, p. 26, tradução minha).

O discurso de que é “natural” que a mulher sofra mais que o homem di Prima não
encarou como restrito ao seu círculo familiar. Ela está certa de que todos de sua geração já
ouviram, muitas vezes, que “o trabalho do homem é de sol a sol/ O trabalho da mulher nunca
termina” (DI PRIMA, 2011, p. 27, tradução minha). Porém, foi nas viagens e passeios à casa
das/os tias/os e avós que experienciou possibilidades que “apontavam para outros caminhos”
(DI PRIMA, 2001, p. 27, tradução minha). Tal constatação deflagra uma fúria e obstinação que
a levarão a se deslocar para outros contextos: “Ninguém tem direito a um minuto da minha vida,
não mais, nunca mais. A não ser que eu queira. Estou certa disso. Estou certa em minha própria
ira. Algo que a minha família nunca havia visto” (DI PRIMA, 2001, p. 99, tradução minha).
Denílson Lopes (2002, p. 88) traz a questão da viagem como uma “busca de ir ao
estrangeiro para encontrar um outro lar, romance, companheirismo ou sexo”. Num contexto
geral, a geração beat identificou no deslocamento espacial um estilo de vida que buscou se
afastar dos seus locais de origem. Os escritores chamados beatniks, imbuídos por uma
consciência política contrária ao discurso hegemônico do american way of life, migraram dos
bairros de classe média dos quais eram oriundos para se instalar em guetos e submundos
urbanos, onde estavam classes sociais marginalizadas, a fim de experimentar vivências fora da
vigilância dos pais e do policiamento do Estado. Em Bomb Culture, Nuttall (1970) identifica
esse comportamento subversivo como consequência de um conflito de gerações, cujo ponto de
ruptura é uma espécie de histeria pós-bomba atômica, e que será posteriormente absorvido pela
cultura de massas. Os personagens “rebeldes sem causa” do cinema hollywoodiano é um
exemplo.

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281

Guacira Lopes Louro (2004, p. 24) vai além ao relacionar a viagem do sentido literal à
do metafórico, descrevendo os “viajantes pós-modernos” como aqueles que “saboreiam
intensamente o inesperado, as sensações e as imagens, os encontros e os conflitos, talvez por
adivinharem que a trajetória em que estão metidos não é linear, nem ascensional, nem
constantemente progressiva”. E chama a atenção para a inscrição dessas aventuras nas
dimensões dos gêneros e da sexualidade; “afinal, essas são tidas como ‘essenciais’, ‘seguras’ e
‘universais’ – que, supostamente, não podem/não devem ser afetadas ou alteradas” (LOURO,
2004, p. 24).
A geração beat “viajou” seja por meio da vivência migrante seja ao trazer para o plano
da representação as relações homoafetivas, subvertendo o desejo heterossexual compulsório,
que é uma das matrizes de inteligibilidade de gênero. Para Judith Butler (2003, p. 38),
“[g]êneros inteligíveis são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. Ao transgredir as
fronteiras de gênero e sexualidade, a geração beat subverte as essencialidades, e, nesse processo,
propõe uma representação de gênero a partir de sua desconstrução, utilizando aqui os termos de
Teresa de Lauretis (1994). Ao conceituar gênero como representação de uma relação, e não
como algo que existe a priori nos seres humanos, a literatura, sendo uma das tecnologias que
produzem os conceitos de gênero, também é terreno que contribui para promover seu
redirecionamento.

Relações entre mulheres

Apesar de a literatura beat dar visibilidade a grupos sociais subalternizados, como


homossexuais, negras/os, pobres e minorias étnicas, uma revisão crítica feminista denuncia que
a irmandade beat invisibilizou as relações entre mulheres, como registra Ann Douglas (1999, p.
xvi): “uma literatura de homens que se relacionavam com homens ou de homens que
imortalizaram outros homens”, em que as mulheres são apenas alegorias, personagens nos
papéis de esposas ou groupies.
As relações entre mulheres na geração beat aparecem apenas na autoria feminina, mas
esta foi historicamente negligenciada. Apesar de as mulheres estarem diretamente envolvidas
em toda a movimentação beat, desde a escrita à edição dos livros, suas obras foram menos
publicadas, pouco traduzidas e bem menos resenhadas e criticadas, portanto, condenadas a um
ostracismo editorial.
No Brasil, por exemplo, os únicos livros traduzidos de autoria feminina beat é Memoirs
of a beatnik, de Diane de Prima, lançado originalmente em 1969, publicado aqui em 1998 como
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Memórias de uma beatnik pela editora Veneta, e a miniantologia Meninas que vestiam preto de
2016 pelo selo Demônio Negro, com poemas de Anne Waldman, Elise Cowen, Diane de Prima
e Marie Ponsot, ao passo que os livros escritos por homens possuem toda sorte de traduções e
numerosas edições.
Em Recollections of my life as a woman, Di Prima narra suas experiências afetivo-
sexuais com mulheres, chamando a atenção para a força de seu relacionamento com Bonnie.
“Bonnie foi a primeira mulher com quem tive um caso real. Talvez a primeira pessoa de
qualquer gênero, vim a pensar nisso. Um caso de amor, não apenas uma aventura causal.
Completo com todas as armadilhas do amor humano” (DI PRIMA, 2011, p. 191, tradução
minha).
Ao descrever seu relacionamento com Bonnie, a frustração amorosa está ligada a um
desencantamento quanto a estereótipos heteronormativos, visto que, mesmo dentro de um
relacionamento homossexual, padrões de heterossexualidade colaboram para reforçar práticas
institucionalizadas e coercitivas. “Por heteronormatividade entende-se a reprodução de práticas
e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade
conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s))” (FOSTER, 2001, p. 19).
O início do relacionamento com Bonnie parecia se diferenciar de tudo que di Prima
havia vivido em comparação às relações anteriores, principalmente com homens, em que se
instauram relações de poder historicamente enraizadas: “Um mundo de mulheres. Seguro e
amoroso – maleável – como só um mundo de mulheres pode ser” (DI PRIMA, 2001, p. 195,
tradução minha). Já o fim da relação se dá assim que di Prima se percebe inserida em um drama
romântico: quando Bonnie não aparece determinada noite como prometido, e sim ao raiar do
dia, com um buquê de rosas e lhe implorando perdão:

Demorei um tempo para acordar e entender que eu deveria perdoá-la por uma suposta
infidelidade que havia acontecido naquela mesma noite, da qual eu nem saberia se ela
não tivesse falado, e que eu nem sabia se precisava de perdão. [...] Cada músculo do
meu espírito se rebelou naquela noite. Além disso, eu não acreditava que as pessoas
precisassem de perdão ou permissão para fazer amor. E então ela assumindo que eu
poderia reclamar disso fez eu me sentir barata e desprezível. (DI PRIMA, 2001, p. 208,
tradução minha).

A descrição desta cena destoa das outras experiências sexuais-afetivas narradas por di
Prima em suas memórias, e o estranhamento é crucial para o rompimento da relação. Porque,
apesar de se tratar de uma relação entre mulheres, a cena descrita dialoga com a tradição,
evocando a representação de um lugar-comum da heteronormatividade: o “drama romântico”,
que cita Foster (2001, p. 19).

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283

Além disso, os lugares que compartilha com Bonnie representam a impossibilidade de


romper fronteiras, estão presos a “essencialidades”, que cita Louro (2004). “Para Bonnie, a
aventura era tudo dentro do estúdio ou na cama. Drogas existiam apenas para melhorar o já
conhecido, para fortalecer seu controle sobre o mundo que já conhecia, não estender os limites
desse mundo de alguma forma” (DI PRIMA, 2001, p. 212, tradução minha).
Di Prima busca a possibilidade de tensionar limites, sempre que possível, seja por meio
da experiência com drogas, deslocamento espacial ou subvertendo padrões de sexualidades, que
vão além do gênero: “O risco era o coração do meu amor pelo mundo. [...] E continuo à procura
do explorador destemido em cada companheira/o” (DI PRIMA, 2011, p. 212-213, tradução
minha). Atraída pela possibilidade de expandir as fronteiras metafóricas, di Prima está sempre
em movimento, e quando, durante toda a narrativa, volta se perguntar “onde, diabos, você está,
Diane di Prima?”, é como se se perguntasse: “quem sou eu, agora?”.

Identidades em deslocamento

Susan Stanford Friedman (1998), ao propor uma crítica feminista mais focada nos locais
onde as diferenças são negociadas e transformadas, considera a alegorização geográfica como
constituinte da identidade, o que chamou de discurso da situcionalidade. Afinal, no contexto da
globalização e das formações culturais em constante transformação, emergem entre as pessoas
fronteiras baseadas em combinações ou diferenças, onde se estabelecem relações de poder e
impotência que se refletem nos desdobramentos das identidades. Identidade, aqui, pensada
como uma dialética entre igualdade e diferença, considerando que essa noção depende
principalmente de sistemas binários de “nós versus elas/es” (FRIEDMAN, 1998, p. 19, tradução
minha).
Assume-se, então, que as identidades resistem à fixidez, e a cada mudança de cenário o
constuinte mais significativo da identidade pode se alterar.

Enquanto a identidade da pessoa é o produto de muitas posições do sujeito, os eixos da


identidade não estão igualmente em primeiro plano em cada situação. Mude a cena, e o
constituinte mais relevante da identidade aparece. Os outros eixos da identidade não
desaparecem; eles apenas não estão tão salientes na cena em particular. (FRIEDMAN,
1998, p. 23, tradução minha).

Dentro da proposta de uma nova geografia da identidade, alia-se ao discurso da


situacionalidade o da opressão múltipla, cujo foco é a opressão como o principal constituinte da
identidade, com base em questões de raça, classe, religião, nacionalidade, e ao que Friedman

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(1998) chama de fórmula “et cetera e assim por diante”, referindo-se a várias formas de
opressões.
Desde muito jovem, Diane di Prima decidira se tornar poeta e, assim como outros
escritores da geração beat, acreditava que parte do trabalho era vivenciar tudo quanto pudesse.
Inspirada por um provérbio latino – “sou humana, portanto nada é estranho a mim” – criou seu
próprio voto: “Não há nada que eu não possa experimentar, enquanto humana em um corpo
feminino, que eu não vá experimentar. Nada que eu tente evitar. Nenhuma parte da vida humana
à qual eu vire as costas” (DI PRIMA, p. 161, tradução minha). E se tornar mãe, acreditava, seria
parte de viver todas as experiências possíveis como mulher. Dentre elas, a série de situações que
evidenciam o quanto ser mãe fora do casamento a inscreve em situações de opressão.
É preciso lembrar que a maternidade é assunto que atravessa as histórias de muitas
mulheres, que podem se encontrar diante de contradições frequentemente insuperáveis, e,
portanto, também atravessa a história dos comportamentos na evolução das relações mulher-
homem, como lembram Françoise Collin e Françoise Laborie (2009, p. 133): “A maternidade
constitui, ao mesmo tempo, uma especificidade valorizada – o poder de dar a vida –, uma
função social em nome da qual reivindicar direitos políticos ou direitos sociais, e uma das fontes
de opressão”.
Ainda em Recollections of my life as a woman, Di Prima registra que quando anuncia
aos pais sobre a gravidez, mesmo advertidos pelo médico da família de que não havia chances
de que um aborto àquela altura poderia ser feito sem risco de morte a ela, seu pai insiste que o
procedimento deve ser levado adiante, a fim de zelar pela reputação da família. “Quando tudo é
passado e esquecido, ainda há isso entre nós. Que ele preferiria me ter morta do que a si mesmo
desonrado. Melhor me ter morta do que a mim e minha criança prosperando fora do código de
ética" (DI PRIMA, 2011, p. 175, tradução minha).
Além de ser rejeitada pela família, que corta relações com a filha, sua melhor amiga
Susan O’Reilley deixa bem claro que o bebê também seria um incômodo para ela, e di Prima é
obrigada a se mudar do apartamento que dividam. Ela, então, inicia uma série de deslocamentos
em decorrência da gravidez, e se dá conta de que a nova vida a deixara frágil e desamparada,
além de estar mais suscetível a outras formas de opressão.
Quando entra em trabalho de parto, di Prima narra a violência que sofreu do caminho do
hospital até o período de resguardo, quando os assistentes sociais tomaram conhecimento do seu
estado civil e tentaram convencê-la a dar o bebê para adoção, pois “havia uma escassez de bebês
brancos” e muitas pessoas ficariam mais ansiosas para aliviá-la de seu fardo (DI PRIMA, 2001,
p. 169, tradução minha). Diante da pressão e bombardeada por uma série de perguntas durante a
internação, Diane di Prima entra em estado de paranoia pelo medo de ter seu bebê levado contra
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285

sua vontade enquanto estivesse hospitalizada, assim como já havia acontecido com amigas e
conhecidas. Portanto, decide não tomar os medicamentos para dor que a deixaria inconsciente;
mas, ainda contra sua vontade, teve os braços e pernas amarrados em uma maca enquanto dava à
luz.

A raiva e a sensação de violação continuaram comigo durante os cinco dias no


Gouverneur Hospital. [...] Várias mulheres, de todos os tamanhos e cores, em
diferentes estágios do trabalho de parto, chorando e gemendo e gritando sob a luz fraca.
Todas sozinhas, já que naqueles tempos nenhum companheiro ou amigos eram
autorizados a entrar na sala de parto – apesar de às vezes enfermeiros andarem entre
nós. Raios, aquilo era mais esquisito do que qualquer coisa em Dante. [...] Minhas
companheiras de enfermaria eram algumas das pessoas mais pobres de Nova York. Eu
aprendi muito sobre o quão pobre aquilo era, e quão difícil e assustador as coisas
podem ficar. (DI PRIMA, 2011, p. 169-171, tradução minha).

O fato de Diane di Prima ser uma mulher pobre e mãe solo a inscreve em situações de
opressão que a levam a ser excluída do convívio familiar, romper laços de afetos e sofrer
violências institucionalizadas e moralizantes durante todo o período de gestação e concepção da
criança. Quando Friedman (1998) argumenta que definir a identidade unicamente em termos de
gênero reinscreve as formas de opressão, tornando-as invisíveis, se refere às opressões que estão
além da questão de gênero, mas sem perdê-lo de vista, como as questões de classe e estado civil,
que colaboram para inscrevem as mulheres em situação de violência, a exemplo do relato de di
Prima em suas memórias.
Friedman (1998) também propõe uma análise dialética, em que a multiplicação da
opressão cria sua antítese, ou seja, quando o poder e a força de superação estão justamente
centralizados nessa diferença. Di Prima, ao reconhecer as limitações impostas pela sociedade
diante da sua condição de mãe solo, descobre aí uma força transformadora.

O mistério e a força da gravidez por si só – todas as variedade de emoções e energias


que meu corpo estava passando – ultrapassam qualquer e todos os caprichos das/os
minhas/meus amigas/os e relações. Quanto mais a gravidez avançava, mas eu gostava;
mais revigorada e positiva eu me sentia. [...]

Eu percebi o quão além de qualquer julgamento viável e censura a maioria das vidas é
realmente vivida. A maioria das vidas pobres, especialmente. A mulher que é acusada
de homicídio culposo quando deixa o filho sozinho para ir ao trabalho, ir à loja ou ao
médico e a casa se incendeia, está fazendo o que fez mil vezes antes, o que teve de
fazer. Em um mundo em que a sociedade não a deixa nenhuma opção. Eu via isso
agora. Esse foi o começo, para mim, de um novo tipo de radicalização. (DI PRIMA,
2001, p. 175, 178, tradução minha).

Ao narrar sua segunda experiência de gravidez, Di Prima confronta novamente a


possibilidade do aborto, dessa vez, sugerida pelo pai da criança: “A razão para não ter o bebê foi
simples: Roi não quis. E apesar de eu não querer nem esperar nada dele, nem suporte ou apoio
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moral para ir em frente e tê-lo, mesmo assim, não havia chances de eu me ver indo contra suas
vontades” (DI PRIMA, 2011, p. 231, tradução minha). Por amar este homem, di Prima se sentia
fadada a assumir as consequências de um ato que julgava errado, sem se contrapor: “Isso era,
apesar de tudo, o código que eu havia aprendido, o código da mulher italiana: fazer o que ele
queria e tomar as consequências” (DI PRIMA, 2011, p. 231, tradução minha, grifo da autora).
Ela mesma reconhece que existe uma relação de dominação em seu relacionamento, uma
dominação de um gênero sobre o outro, historicamente enraizada. Em ambos as relações aqui
analisadas, seja na homoafetiva, com Bonnie, ou na heteroafetiva, com LeRoi, di Prima está
inscrita em padrões heteronormativos; porém, com LeRoi, percebe-se um problema gendrado a
partir de sua descrição do espaço de compartilhamento afetivo: seguro entre mulheres, inseguro
com homens.

O que eu esperava? Já havia visto uma mulher ser bem tratada? Tratava como deveria?
Não em minha casa, certamente, não entre meus pais, os seus parentes, os seus amigos.
Não entre meus próprios amigos, em seus muitos formatos de casais. Sem espaço para
falar abertamente. Para a mulher falar suas verdades e ser ouvida. E estar segura. (DI
PRIMA, 2001, p. 237, tradução minha).

Di Prima tem consciência de que sua busca por uma identidade própria pressupõe
desafiar ordens institucionalizadas: “nesse ponto da minha vida, apesar de ter feito tantas coisas
que parecem esquisitas e estranhas, e até erradas para outras/os, não tenho feito nada de errado
para mim mesma” (DI PRIMA, 2001, p. 231, tradução minha, grifo da autora). Porém, a
obstinação de seguir um caminho todo próprio significa, até mesmo, experimentar trair suas
próprias convicções:

A parte de mim que pensei ser a parte artista, sensitiva – não, sabia – tinha de
experimentar ser a traidora de mim mesma, fazer algo errado, o qual eu jamais poderia
justificar ou me sentir certa disso, se eu quisesse entender as pessoas à minha volta,
estar próxima o suficiente para continuar a escrever e ser ouvida. (DI PRIMA, 2001, p.
231, tradução minha).

Ao trair as próprias convicções – referindo-se aqui à decisão de realizar um aborto contra


a sua vontade a pedido do homem que ama –, di Prima reflete sobre a contingência das relações
afetivas e seus efeitos sobre a visão que tem de si mesma, ou seja, sobre a sua identidade, e
considera as opressões como parte do ofício de ser mulher e a subversão da identidade como
parte do ofício de ser escritora.

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287

Considerações finais

Quando Simone de Beauvoir afirmou, em 1949, que “ninguém nasce mulher, torna-se
mulher”, a filósofa estabelece que “a mulher não é definida nem por seus hormônios nem por
instintos misteriosos, mas pela maneira pela qual ela recupera, por meio de consciências alheias,
seu corpo e sua relação com o mundo” (BEAUVOIR, 2016, p. 11; 511). Butler (2016, p. 69)
expande essa ideia posteriormente: “mulher é um termo em processo, um devir, um construir de
que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática
discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e ressignificações”.
Em Recollections of my life as a woman: the New York Years (2001), Diane di Prima
registra em suas memórias o que aprendeu sobre ser mulher e o que experimentou sendo mulher
a partir de diferentes contextos, visto que o deslocamento se tornou um estilo de vida. “Escrevi
este livro para tentar entender as mensagens que recebi sobre ser uma mulher. O que é isso.
Como fazer isso. Ou atravessar isso. Ou suportar. Ou brilhar como gelo sob os pés” (DI
PRIMA, 2001, p. 27, tradução minha). Consciente dos abusos aos quais as mulheres estão
submetidas enquanto inseridas em sistemas opressores e ligações afetivas heteronormativas,
propõe uma desconstrução do gênero a partir de vivências que transgridam as fronteiras
estabelecidas para as mulheres de sua época. A literatura se apresenta, então, como lugar de
representação de gênero, nos termos de Lauretis (1997), em que o ofício da escrita se torna
mecanismo de resistência a opressões e de superação de assimetrias.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet. 3. ed. v. 2.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

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Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

COLLIN, Françoise; LABORIE, Françoise. In: HIRATA, Helena; SENOTIER, Danièle;


LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène (Org.). Dicionário crítico do feminismo. Tradução
de Vivian Aranha Saboia. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

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DI PRIMA, Diane. Memórias de uma beatnik. Tradução de Ludimila Hashimoto. São Paulo:
Veneta, 1998.

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Penguin Books, 2001.

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Joyce. Minor characters: a young woman’s coming of age in the beat orbit of Jack Kerouac.
Nova York, US: Penguin Books, 1999.

FOSTER, David. Consideraciones sobre el estudio de la heteronormatividade em la literatura


latinoamericana. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 22, jan.- jun. 2001.
FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Tradução de Áurea B. Weissenberg. Petrópolis, RJ:
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LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. Tradução de Susana Borneo Funck. In:
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LOPES, Denílson. Entre homens, entre lugares. In: _____. O homem que amava rapazes e
outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

LOURO, Guacira Lopes. Viajantes pós-modernos. In: _____. Um corpo estranho: ensaios sobre
sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MENDONÇA, Vanderley (Org.). Meninas que vestiam preto. Tradução de Vanderley


Mendonça. São Paulo: Selo Demônio Negro, 2016.

NUTALL, Jeff. Bomb culture. London, EN: Paladin, 1968.

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289

OPRESSÃO E RESISTÊNCIA NO ENTRE-LUGAR


NO CONTO THE ARRANGERS OF MARRIAGE

Ma. Raquel D´Elboux Couto Nunes (UFAL)


Email: rdelbouxnunes@gmail.com

“My new husband took me to the mall […]. Inside the mall, the floors gleamed, smooth
as ice cubes […]. I felt as though I were in a different physical world, on another planet. The
people […] wore the mark of foreignness, otherness on their faces”. (ADICHIE, 2010, p. 176).
Chinaza chega aos Estados Unidos, após um casamento arranjado em Lagos, Nigéria, sentindo-
se absolutamente estranha. Seu sentimento de falta de pertencimento é notado pelo uso das
palavras foreigness e otherness, que representam o sentido de estar fora de lugar, como em outro
planeta. O local traz a marca da frieza, do estrangeiro – o chão assemelhava-se a cubos de gelo.
Essa estranheza também é percebida na referência de Chinaza a seu esposo – “my new
husband”, que não é nomeado. Ao longo do texto, a protagonista continua se referindo a ele
dessa forma. Essa recorrência indica que ele ainda é para ela um estranho. Ao ser questionada
pela vizinha Nia, Chinaza demonstra ter consciência desse distanciamento: “‘You never say his
name, you never say Dave. Is that a cultural thing?’ ‘No.’ I wanted to say that it was because I
didn’t know his name, […] I didn’t know him” (ADICHIE, 2010, p. 185).
No casamento arranjado pelas famílias, Chinaza sentia-se, na casa do esposo, como um
móvel que fora transportado e despejado por acaso em um lugar desconhecido, tal qual o sofá.
Ela e o marido eram como as paredes – desconfortáveis na presença de um com o outro:

[…] in the living room, where a beige couch sat alone in the middle, as though dropped
there by accident […]. The smaller bedroom had a bare mattress lodged in one corner.
[…]. Both rooms lacked a sense of space, as though the walls had become
uncomfortable with each other […]. (ADICHIE, 2010, p. 167-168)

Desde sua chegada aos Estados Unidos, Chinaza sente-se rejeitada em suas práticas
culturais: “The officer had examined my foodstuffs as if they were spiders, her gloved fingers
poking at the waterproof bags of ground egusi and dried onugbu leaves and uziza seeds, until
she seized my uziza seeds. She feared I would grow them on American soil” (ADICHIE, 2010,
p. 168). Assim como as sementes foram confiscadas, ela sente-se confiscada de suas origens, e
parece-lhe que os Estados Unidos recusam o acolhimento de sua cultura, o que é um paradoxo,
visto que o país foi constituído por várias culturas diferentes.
O marido tem um papel significativo nessa confiscação, e parece que ele passivamente,

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290

sendo também nigeriano, incorpora a imposição da superioridade da cultura estadunidense118:


“‘This is not like Nigeria, where you shout out to the conductor’, he said, as though he was the
one who had invented the superior American system” (ADICHIE, 2010, p. 172). Para o esposo
de Chinaza, a cultura nigeriana deve ser apagada pela cultura estadunidense, considerada como
padrão, como modelo a ser copiado.
Quando o marido diz a Chinaza que ela tem que gostar de pizza – “‘We’ll get the pizza
first […]. It’s one thing you have to like in America’” (ADICHIE, 2010, p. 176) – percebe-se
que talvez ele não se dê conta de que a pizza não é originalmente um prato dos Estados Unidos.
Para ele, a incorporação da pizza como produto estadunidense a ser apreciado deve ser aceita,
como uma “obrigação” (verbo – have to), provavelmente pela hegemonia europeia dominante e
duradoura, em relação às colônias. É possível também que ele não tenha essa informação e que
enxergue a pizza como produto estadunidense. Tampouco o marido parece enxergar os Estados
Unidos como colônia europeia, que também absorveu costumes do continente europeu e de
outros lugares. A formação dos Estados Unidos, tal como os conhecemos, foi tão heterogênea
em termos culturais, por conta da colonização, bem como do fluxo de imigrantes, que se torna
difícil delimitar em que exatamente consiste a cultura local.
Quando Chinaza diz não gosta muito da pizza, pois os tomates não são bem cozidos, o
marido refuta: “‘We overcook food back home and that is why we lose all the nutrients.
Americans cook things right. See how healthy they look?’” (ADICHIE, 2010, p. 176). Nessa
fala novamente o esposo de Chinaza expressa sua crença na superioridade da cultura
estanudiense, e na inferioridade de sua própria cultura. Ao observar o marido comer, ela sente
um estranhamento e um distanciamento, quando não se identifica com o costume e com o
alimento: “He held the hamburger with both hands and chewed with a concentration that
furrowed his eyebrows, tightened his jaw, and made him look even more unfamiliar”
(ADICHIE, 2010, p. 178).
O marido de Chinaza relega à alteridade sua própria cultura, toda vez que ele quer
obrigar a esposa a modificar seus hábitos, seu nome e sua linguagem. Ele parece envergonhar-se
de suas origens: “‘I’m not called Ofodile here, by the way. I go by Dave. […] The last name I
use here is different, too. Americans have a hard time with Udenwa, so I changed it […] You
have to use your English name here’”. (ADICHIE, 2010, p. 172). O nome escolhido para a
esposa é Agatha Bell, diante do qual Chinaza demonstra surpresa e indignação: “’Bell? That’s
not even close to Udenwa’ […] I’ve been Chinaza Okafor my whole life’”. (ADICHIE, 2010, p.
172).

118
Optou-se aqui, pelo termo “estadunidense”, como forma também de “resistir” à dominação dos EUA
como únicos a serem denominados “americanos”, excluindo assim as outras “Américas”.
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291

O nome está fortemente ligado à identidade. Mudar o nome de outrem é uma questão de
afirmação de poder e de subjugação. No romance I Know Why the Caged Bird Sings, da
escritora afroamericana Maya Angelou, a protagonista tem seu nome modificado pela patroa –
“a senhora recusa-se a chamá-la de “Margaret”, por ser um nome longo demais, e passa a
referir-se a ela como ‘Mary’”, e a outra criada negra, cujo nome era Hallelujah, passa a ser
chamada de Glory pela patroa. (NUNES, 2011, p. 92).
Na relação de poder afirmada pela mudança de nomes, a renomeada é vista como
inferior culturalmente, e também como propriedade, como objeto. No conto de Adichie, quando
conhece a vizinha Nia, a protagonista se apresenta: ‘[…] I’m Chinaza…. Agatha’. Surpreende-
se quando a vizinha relata a mudança de seu nome: “‘[…] Nia is a Swahili name. I changed my
name when I was eighteen […]’. […] I shook my head; she, a black American, had chosen an
African name, while my husband made me change mine to an English one” (ADICHIE, 2010, p.
180). Ao apresentar-se a Nia por seus dois nomes, Chinaza parece não recusar a cultura
estadunidense, mas ressente a obrigatoriedade de ter que esconder suas origens.
Pela colonização europeia, a língua inglesa aprendida em Lagos tinha características do
inglês britânico. Por várias vezes, o marido de Chinaza a repreendia, por conta de diferenças
lexicais entre o inglês dos EUA e o inglês britânico. Assim, ele presume a superioridade da
cultura estadunidense, até mesmo em relação ao império colonizador: “’Busy. Americans say
busy, not engaged’” (ADICHIE, 2010, p. 170).
Ao buscar algo familiar no supermercado – “‘Can we buy those biscuits? I asked. The
blue packets of Burton’s Rich Tea were familiar; I did not want to eat biscuits but I wanted
something familiar in the cart’” (ADICHIE, 2010, p. 174) – novamente o esposo lhe impõe a
adequação à linguagem: “‘Cookies. Americans call them cookies’” (ADICHIE, 2010¸ p. 174). O
marido de Chinaza também encara com desprezo os imigrantes que ainda persistem em sua
língua e costumes:
‘Look at the people who shop here; they are the ones who immigrate and continue to
act as if they are back in their countries’. He gestured, dismissively, toward a woman
and her two children, who were speaking Spanish. ‘They will never move forward
unless they adapt to America […]’” (ADICHIE, 2010, p. 175).

Em outra passagem, o esposo fica envergonhado ao perceber que Chinaza não está
agindo de acordo com os hábitos locais, quando ela pergunta se há elevador: “‘Biko, don’t they
have a lift instead?’ […] ‘Speak English. There are people behind you, he whispered, pulling me
away […]. ‘It’s an elevator, not a lift. Americans say elevator’” (ADICHIE, 2010¸p. 177).
Chinaza utiliza o inglês britânico que aprendeu na Nigéria. Utiliza o termo africano Biko,
e não descarta a palavra britânica quando utiliza o termo estadunidense: “‘He led me to the lift
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
292

(elevator) […]’”. Dessa maneira, ela utiliza o léxico recomendado pelo esposo, mas deixa entre
parênteses a opção com a qual está acostumada. Os parênteses podem indicar um certo
apagamento, uma importância menor. Podem também, porém, indicar a resistência à erradicação
de seus costumes e de sua linguagem. A mescla de linguagens e de culturas pode ser
relacionada à noção de multiplicidade das identidades na diáspora, na qual há “forças
centrípetas” (HALL, 2003, p. 27) – em que as identidades emergem. Nessa emergência, culturas
diferentes coexistem.
Com o tempo, Chinaza passa a falar somente em inglês com o esposo, mas mantém para
si sua própria linguagem, i.e., para ela a cultura nigeriana deve coexistir com a estadunidense:
“We spoke only English now; he did not know that I spoke Igbo to myself while I cooked, that I
had taught Nia how to say ‘I’m hungry’ and ‘See you tomorrow’ in Igbo” (ADICHIE, 2010, p.
182).
A resistência de Chinaza para manter sua linguagem e sua cultura pode ser relacionada à
resistência representada no poema “Colonization in Reverse” de Louise Bennet:

I feel like me heart gwine burs


Jamaica people colonizin
Englan in Reverse
[…]
Wat a devilment a Englan!
Dem face war an brave de worse,
But me wondering how dem gwine stan
Colonizin in reverse.

Nesse poema, a própria forma representa a resistência a elementos estruturais


padronizados do inglês, como “me heart gwine burs” (“my heart is going to burst”); “me
wondering how dem gwine stan” (“I am wondering how they are going to stand”). Ao recusar o
inglês “padrão” da Inglaterra, e ao imprimir elementos particulares à pronúncia e à ortografia, a
jamaicana imigrante resiste à imposição da linguagem do colonizador. No conto de Adichie em
análise, Chinaza resiste à imposição da linguagem, ao mesclar palavras de sua língua africana e
elementos do inglês britânico, e ao mostrar indignação com a mudança de seu nome.
Essa perspectiva da colonização “no sentido inverso” de Louise Bennet relaciona-se com
o processo de “zona de contato”, de Mary Louise Pratt, processo que causa uma mútua
influência entre colonizado e colonizador:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
293

um termo que invoca a “co-presença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente


isolados por disjunturas geográficas e históricas (...) cujas trajetórias se cruzam. Essa
perspectiva é dialógica, já que é tão interessada em como o colonizado produz o
colonizador e vice-versa: a “co-presença, interação, entrosamento das compreensões e
práticas [...] no interior de relações de poder radicalmente assimétricas (HALL, 2003,
p. 31).

Ao recusarem a erradicação de sua cultura, Chinaza e o eu lírico de Louise Bennet


modificam, por seus próprios meios, a cultura hegemônica. Desse modo, as culturas não podem
ser “perfeitamente encurraladas dentro das fronteiras nacionais. Elas transgredem os limites
políticos. [...]”, e os laços são afrouxados entre a cultura e o lugar. (HALL, 2003, p. 35-36).
Na incorporação de elementos da cultura estadunidense, que se dá ao mesmo tempo que
elementos da cultura de origem são mantidos, a identidade de Chinaza é construída na “tensão
entre o apelo do enraizamento e a tentação da errância”, que supera a “aporia fundamental
encerrada pela questão identitária: afirmar-se e excluir o outro (ou seja, a afirmação das
identidades passa pela negação das alteridades) [...]”. (HANCIAU, 2005, p. 129). No mundo
pós-moderno, segundo Hanciau (2005), “o fenômeno da mistura tornou-se realidade cotidiana
[...]. Multiforme e onipresente, associa seres e formas”. A autora trata nesse trecho
especificamente da mestiçagem do mundo “heterogêneo e imprevisível”, onde “a expansão
colonial misturou o que não estava misturado” e, nessa mistura, os elementos díspares “se
ajustam entre si, reorganizam-se, conferindo-lhes um novo sentido” (HANCIAU, 2005, p. 131).
A identidade de Chinaza, portanto, é construída na tensão das culturas, entre o enraizamento e a
errância. Ela nega a alteridade que lhe é imposta pela hegemonia estadunidense, mas incorpora
elementos locais, que se misturam com elementos de sua cultura original.
Segundo Eagleton (2003, p. 38), no mundo pós-moderno, homens e mulheres ainda
precisam de um senso de pertencimento, pois “não há nada retrógrado a respeito de raízes”.
Chinaza valoriza suas raízes ao preservar seus costumes no modo de falar e na maneira de
cozinhar. Segundo a definição do autor, o pós-moderno refere-se ao “pensamento
contemporâneo que rejeita totalidades, valores universais, grandes narrativas históricas [..]”, e
“tende ao relativismo cultural e celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade”
(EAGLETON, 2003, p 27).
Quando Chinaza resiste à imposição da língua e da cultura, ao mesmo tempo que tem
que incorporá-la de alguma forma, ela negocia a articulação da diferença, de modo a autorizar
um hibridismo cultural que emerge em momentos de transformação (BHABHA, 2010). Nesse
cruzamento de culturas, ocorre um vaivém, que recusa a ideia de uma identidade fixa para a qual
se deve retornar.
Nessa perspectiva, a ideia de essencialismo também é refutada. Chinaza não deve
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
294

recuperar sua identidade nigeriana essencial, que foi perdida. Seu passado é reconfigurado no
espaço novo, um espaço do entre-lugar. Sua identidade é construída na articulação das
diferenças no cruzamento das culturas. Bhabha (2010) cita a metáfora da escada para o
movimento de vaivém entre identificações culturais. Hanciau (2005, p. 134) também menciona
um “ir-e-vir”, “não apenas de lugar, mas, também, de situação ou época”. Esse movimento de
escada dilui polaridades:
The stairwell as liminal space, in-between the designations of identity, becomes the
process of symbolic interaction, the connective tissue that constructs the difference
[…]. The interstitial passage between fixed identifications opens up the possibility of a
cultural hybridity that entertains difference without an assumed or imposed hierarchy
[…]. (BHABHA, 2010, p. 5)

Ao recusar a superioridade da cultura estadunidense incorporada pelo esposo, Chinaza


coloca-se no entre-lugar, o lugar da diferença, que não aceita uma hierarquia. Ela é capaz de
identificar as diferenças culturais, sem considerar sua cultura hierarquicamente inferior à cultura
do colonizador, como o marido faz, e, assim, desmistifica o imperialismo.
Hanciau (2005), a respeito da desmistificação dos imperialismos, em estudo do crítico
literário e teórico Silviano Santiago, ressalta a importância de se evitar as polaridades, para que
se busque a constituição das histórias nos entre-lugares, por meio de uma “dialética rarefeita”
(HANCIAU, 2005, p. 126). A teórica cita a “zona de contato” de Mary Louise Pratt, como um
espaço onde culturas díspares se encontram, se chocam, “se entrelaçam frequentemente em
relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação” (HANCIAU, 2005, p. 134).
Esse lugar, também denominado terceiro espaço119, nega o binarismo, pois “não pretende ser
apenas um terceiro termo, mas um entre-lugar que o engloba e o ultrapassa, uma dimensão que
se abre para além da inversão dos termos opositivos” (HANCIAU, 2005, p. 138).
Na diluição das polaridades, dilui-se também a sincronia entre o passado e o presente.
Segundo Bhabha (2010), essa não-linearidade, na qual não há uma forma sequencial na história,
refere-se a estar no “além”:
Being in the ‘beyond’, then, is to inhabit an intervening space, as any dictionary will
tell you. But to dwell ‘in the beyond’ is also, as I have known, to be part of a
revisionary time, a return to the present to redescribe our cultural contemporaneity: to
reinscribe our human, historic commonality […]. In that sense, then, the intervening
space ‘beyond’ becomes a space of intervention in the here and now. (BHABHA, 2010,
p. 10)

119
Hanciau (2005, p. 127) esclarece as diferentes terminologias: “Entre-lugar (S. Santiago), lugar intervalar (E.
Glissant), tercer espacio (A. Moreiras), espaço intersticial (H. K. Bhabha), the thirdspace (revista Chora), in-
between (Walter Mignolo e S. Gruzinnski), caminho do meio (Z. Bernd), zona de contato (M. L. Pratt) ou de
fronteira (Ana Pizarro e S. Pesavento), o que para Régine Robin representa o hors-lieu, são algumas, entre as
muitas variantes para denominar, nesta virada de século, as “zonas” criadas pelos descentramentos [...]”.
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295

Dessa forma, não há linearidade entre o passado e o presente. O passado não é


meramente relembrado com um precedente ou como uma causa. O ambiente fronteiriço do
entre-lugar renova o passado, que é reconstruído120. Esse lugar é de conflito, de mobilidade.
Estar no “além” é “habitar um espaço intermediário, nem um novo horizonte, nem um abandono
do passado […]. Residir no “além” é ser parte de um tempo revisionário, que retorna ao
presente para redescrever a contemporaneidade cultural, reinscrever a comunidade humana,
histórica [...]. Nesse sentido, “o espaço intermédio ‘além’ torna-se um espaço de intervenção no
aqui e no agora” (HANCIAU, 2005, p. 136-173).
Em The Arrangers of Marriage há uma intervenção “no aqui e no agora”, quando o
marido de Chinaza a leva para a praça de alimentação do shopping center. Indignada com o
cenário que se lhe apresenta, ela reflete sobre a cultura: “Uncle Ike would be horrified at the
thought of eating here; […]. There was something humiliatingly public, something lacking in
dignity, about this place, […] too many tables and too much food” (ADICHIE, 2010, p. 176).
Na rejeição desse cenário e na lembrança de seu tio, Chinaza encena seu passado e
recusa acesso a uma identidade “pronta”. Essa encenação do passado, segundo Bhabha (2010),
refere-se a uma tradição, e remete a uma forma parcial de identificação:
The recognition that tradition bestows is a partial form of identification. In restaging
the past it introduces other, incommensurable cultural temporalities into the invention
of tradition. This process estranges any immediate access to an originary identity or a
‘received’ tradition (BHABHA, 2010, p. 3).

Uma vez em contato com a cultura diferente, Chinaza, embora invoque seu passado e
sua tradição, passa por transformações no cruzamento de culturas. Nesse sentido, não há um
continuum entre o passado o presente. O passado não é meramente um precedente; ele é
reconfigurado como um espaço contingente do entre-lugar, que interage com o presente. É o
“além”.
Nesse entre-lugar, nesse “além”, Chinaza traz sua cultura para o novo espaço. Quando
prepara um arroz de côco, prato típico de seu local de origem, o marido parece gostar. Porém,
no dia seguinte, ele traz a ela um livro de receitas tipicamente estadunidenses (ADICHIE, 2010,
p. 179):
My new husband came back half an hour later and ate the fragrant meal I placed before
him, even smacking his lips like Uncle Ike sometimes did to show Aunty Ada how
pleased he was with her cooking. But the next day, he came back with a Good
Housekeeping All-American Cookbook, thick as a Bible. ‘I don’t want us to be known
as the people who fill the building with smells of foreign food’ […]. ‘I know you’ll
soon master how to cook American food’ […].
Dessa forma, o marido resiste à integração entre as culturas, buscando apagar as origens
120
Essa reconstrução, diferente de “reconstituição” (“reprodução”), implica em mudança, em coisas novas.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
296

nigerianas.
Hall (2003, p. 62) menciona que há uma tendência, entre as minorias étnicas, a preservar
costumes e práticas sociais “sobretudo nos contextos familiar e doméstico”, de modo a manter
os “elos de continuidade com seus locais de origem”. Porém, no novo espaço, no entre-lugar, há
transformações e releituras da cultura e do passado. Nesse sentido, há um paradoxo na posição
do marido de Chinaza. Ele incorpora a cultura estadunidense, mas essa incorporação se dá “da
porta de casa para fora”. Dentro de casa, ele ainda age conforme sua cultura local machista, a
mesma que o levou a um casamento arranjado. Ele constantemente submete a esposa aos
costumes e à linguagem estadunidenses, não respeitando os hábitos dela, desmerecendo as
origens nigerianas. Segundo o sonho americano que ele tanto defende, todas as pessoas têm as
mesmas oportunidades e devem ser respeitadas.
Ao ser questionado por ela sobre o motivo pelo qual se casara, ele assume a cultura
original: “‘I wanted a Nigerian wife and my mother said you were a good girl, quiet. She said
you might even be a virgin’. He smiled. […] ‘I probably should tell her how wrong she was’
[…]” (ADICHIE, 2010, p. 184). Nessa passagem, fica claro que ele queria uma mulher
submissa, que não questionasse suas exigências. Caso tivesse de verdade assumido a cultura
estadunidense, teria por certo rejeitado um casamento arranjado.
O sentimento de posse que o marido tem sobre Chinaza atinge seu ápice na relação
sexual, na qual ela é subjugada: “My husband woke me up by settling his heavy body on top of
mine. […] He grunted, a sound that might have been a response to my greeting […]”
(ADICHIE, 2010, p. 168). O ato sexual tem o peso de um direito a ser cobrado pelo esposo. O
sexo se configura praticamente como um estupro. O esposo age como se fosse dono do corpo da
esposa, tornando-se até desumanizado para ela, que tem dificuldade para entender o som que ele
emite, que mais parece o grunhido de um animal – “he grunted”.
Nessa passagem, ela é colocada na posição de subalternidade em vários níveis. É mulher,
esposa e imigrante. O homem figura como autoridade ainda maior na profissão de médico –
representante do colonizador. Essa superioridade do homem é reforçada pela própria família de
Chinaza, que reflete posturas machistas culturais. Segundo a família, Chinaza deveria sentir-se
feliz com o casamento: “A doctor in America! It is like we won a lottery for you!” (ADICHIE,
2010, p. 170). Segundo a família e o marido, os Estados Unidos eram o modelo, cuja língua e
cultura deveriam se sobrepor a outras. E o esposo, embora nigeriano de origem, impõe à esposa
o peso da cultura estadunidense, do machismo e de seu corpo: “When he finally stopped
thrusting, he rested his entire weight on me, even the weight of his legs. […] The sticking
between my legs itched” (ADICHIE, 2010, p. 168).
No romance epistolar The Color Purple, de autoria da afroamericana Alice Walker, há
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297

uma passagem semelhante, quando o marido de Celie faz sexo com ela, e o ato é comentado por
Shug, uma mulher mais independente e experiente. No diálogo entre elas, Shug percebe que o
ato sexual subjuga Celie: “‘He just climb on top of me and do his business’. ‘Do his business?
You sound like he going to the toilet on you’. ‘That's what it feel like’” (WALKER, 1985). No
romance de Ferreira (2003, p. 35), Antonia, cujo casamento com o tio lhe fora arranjado,
também vivencia a violência no ato sexual, um ato de posse do marido sobre ela:
Lembrava o peso do corpo sobre ela, e como a mão, que antes timidamente lhe
acariciara os cabelos, levantara de um golpe a saia da camisola que a cobria. Nenhum
beijo, nenhuma palavra, mas de súbito algo parecera lhe cortar as entranhas. Lançara
um pequeno grito, ele lhe cobrira a boca com a mão, enquanto se agitava sobre ela.
Visões de animais em coito lhe vieram ao espírito […]. Não ousara se mexer, nem
poderia, o corpo prisioneiro daquele homem que muito vagamente lembrava o tio
conhecido. […] Os instantes pareceram longos, tivesse coragem diria tio, por favor
acaba logo […].

Assim como no conto de Adichie e no romance de Walker, o marido de Antonia lhe é


desconhecido. Há um distanciamento. Culturalmente, para os homens, as esposas nada mais
eram do que propriedades, e seus corpos lhes pertenciam por direito. A imagem da violência no
ato sexual é reforçada pelo vocábulo “peso” em Adichie e pelo vocábulo “golpe” em Ferreira,
em cujo texto aparece também a imagem das “entranhas cortadas” pelo ato sexual. Nota-se que
a literatura de autoras de origens diversas denuncia essa opressão.
O ato do estupro, em Letter to my daughter, de Maya Angelou, é descrito como um ato
para o qual não há remissão: “We must call the ravening act of rape, the bloody, heart-stopping,
breath-snatching, bone-crushing act of violence, which it is. [...] Let us call it a violent
unredeemable sexual act” (NUNES, 2011, p. 48). Há, portanto, uma semelhança nesses escritos
das mulheres, que, nas narrativas, protestam contra a dominação masculina.
Assim como resiste à imposição da linguagem e dos costumes, em The Arrangers of
Marriage Chinaza não se curva diante da dominação, apresentando, o tempo todo, resistência.
Seu desejo de emancipação torna-se evidente mediante a indignação que sente quando fica
sabendo que o marido já havia se casado antes, para obter o visto permanente, o green card. Ao
questionar se sua documentação para trabalhar estava pronta, descobre que o esposo já tivera
uma outra esposa, o que lhe causa surpresa e inquietação, impulsionando mais questionamentos
e seu desejo de libertação:
You were married before?’ I laced my fingers together because they had started to
shake. […]. I pulled the pile of coupons toward me and started to rip them in two, one
after the other. ‘Ofodile, you should have let me know this before now’ […] I stared at
him in silence, shredding the coupons into smaller and smaller bits; broken-up pictures
of detergents and meat packs and paper towels fell to the floor […] ‘Why did you
marry me?’ I asked. (ADICHIE, 2010, p. 183).
O ato de rasgar os cupons é representativo da recusa de manter o casamento. É como se
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
298

Chinaza estivesse também, rasgando sua certidão de casamento. Nesse momento ela chama o
marido pelo nome – Ofodile, mas é o nome de origem africana, não o nome inglês (Dave). O
marido justifica sua escolha por ela: “‘I was happy when I saw your picture […] you were light-
skinned. I had to think about my children’s looks. Light skinned blacks fare better in America’”
(ADICHIE, 2010, p. 184). Pensando nos futuros filhos e nas futuras filhas, ele demonstra a
preocupação em esconder a etnia. Chinaza gosta de seus costumes, de suas origens. Recusa-se a
escondê-los. Admira a aparência de Nia, que parece não gostar do próprio cabelo:
‘Your hair is beautiful,’ I said, and she touched it and said, ‘Oh, this’, as if she did not
think anything of it. It was not just her hair, held up on top of her head in a natural Afro
puff, that I found beautiful, though, it was her skin the color of roasted groundnuts, her
mysterious and heavy-lidded eyes, her curved hips” (ADICHIE, 2010, p. 181).

Rasgando os papéis e desejando romper com o marido, Chinaza sonha com a


independência financeira: “[…] I wanted to take the JAMB exam again and try for the
university […]” (ADICHIE, 2010, p. 170). Ao conversar com Nia, sabendo da possibilidade de
trabalhar na loja Macy’s, Chinaza tem esperança de se libertar do casamento opressor:
“Something leaped inside me at the thought, the sudden and new thought, of earning what
would be mine. Mine” (ADICHIE, 2010, p. 181).
Ao final da narrativa, Chinaza ainda nutre seu desejo de separação, mas depara-se com a
dificuldade de ainda não ter os documentos que a habilitem para o trabalho. Nia aconselha a
amiga a aguardar os documentos. Há um toque de pessimismo na espera, mas há também um
toque de esperança, um desejo de mudança:
“I stood up to look out the window. The world outside seemed mummified into a sheet
of dead whiteness. The sidewalks had piles of snow the height of a six-year-old child.
‘You can wait until you get your papers and then leave,’ Nia said. ‘You can apply for
benefits while you get your shit together and then you’ll get a job and find a place and
support yourself and start afresh. This is the U.S. of fucking A., for God’s sake.’ Nia
came and stood beside me, by the window. She was right, I could not leave yet. I went
back across the hall the next evening. I rang the doorbell and he opened the door, stood
aside, and let me pass” (ADICHIE, 2010, p. 185-186).

A narrativa tem um final aberto. A esposa volta para casa, mas permanece nela o desejo
de libertação, que é um prelúdio para a concretização do desejo. Ao mesmo tempo que valoriza
sua cultura, ela também não rejeita a cultura estadunidense, quando quer conquistar o sonho
americano, por meio da independência financeira. Quando sonha com essa autonomia, e com a
possibilidade de libertar-se de um casamento arranjado, as polaridades entre as diferentes
culturas se diluem. Seu espaço torna-se, conforme Hanciau (2005, p. 127), uma zona “criada
pelos descentramentos, quando da debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e
autenticidade, que vêm testemunhar a heterogeneidade das culturas [...]”. A autora analisa

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
299

especificamente o contexto da referência europeia. Porém, no conto em discussão, pode-se


considerar a cultura estadunidense como padrão, no olhar do colonizador, no imperialismo
norte-americano, em relação à cultura nigeriana.
Chinaza mantém elementos de sua cultura, gosta de suas origens, seu cabelo, sua cor,
mas não recusa o sonho de emancipação pregado pelo sonho americano. De certa forma, ela
também se descoloniza de sua cultura original, a qual prega casamentos arranjados e a
submissão das esposas. O esposo, por sua vez, exerce o papel de colonizador em casa, ao impor
comportamentos culturais e linguísticos à esposa, mas comporta-se, no mundo exterior, como
colonizado do imperialismo estadunidense.
O final aberto do conto deixa possibilidades para reflexão a respeito do mundo em que
vivemos – um mundo de identidades fragmentadas, móveis, multi-facetadas e em constante
reconstrução, num processo constante de revisão e questionamentos, propiciados também, pela
interação entre elementos globais e locais que são, ao mesmo tempo, conflitantes e integradores,
e que fazem do mundo um local tão rico, fascinante e fértil para discussões críticas da cultura.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The arrangers of marriage. In ADICHIE, Chimamanda Ngozi.


The thing around your neck. New York: Archor Books, 2010, p. 167-186.

ANGELOU, Maya. I know why the caged bird sings. New York: Random House, 1969.

ANGELOU, Maya. Letter to my daughter. New York: Random House, 2009.

BENNET, Louise. “Colonization in Reverse”, The New Black Magazine,


<http://www.thenewblackmagazine.com/view.aspx?index=1377>, acesso em 30/06/16.

BHABHA, Homi. The location of culture. New York: Routledge, 2010.

EAGLETON, Terry. Depois da Teoria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FERREIRA, Luzilá Gonçalves. No tempo frágil das horas. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades de mediações culturais. Tradução de Adelaine Resende


et al. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

HANCIAU, Nubia. “Entre-lugar”. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.) Conceitos de literatura e


cultura. Juiz de Fora; Niterói: EdUFIJF/EDUFF, 2005, P. 125-142.

NUNES, Raquel. Maya Angelou: Gênero, Autobiografia, Violência E Agenciamento Em I


Know Why The Caged Bird Sings. 2011. 113 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – UFAL,
Maceió, 2011.

WALKER, Alice. The Color Purple. New York: Pocket Books, 1985.
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
300

VOZES FEMININAS, ECOS COLONIAIS: O EXISTIR E O RESISTIR NOS ROMANCES


DE ANITA DESAI

Sandra de Jesus dos Santos121(UFBA)


E-mail: irmasandra19@hotmail.com

Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair.


Conforme o chão de um é feito para o futuro
e o de outro é rabiscado para sobrevivência.
Mia Couto (2009)

Anita Desai apresenta, em seus romances, o “dentro” de uma Índia pós-colonizada e o


interior de mulheres subalternizadas duplamente, tanto pela metrópole britânica quanto pela
colônia patriarcal. Sendo uma mulher diaspórica, cuja escrita parte do centro, mas cria tensões
contra hegemônicas, a autora traz personagens híbridos, os quais oscilam entre a tradição
milenar védica e o neocolonialismo do mundo globalizado. Segundo Abraham (2006, p. 144
tradução minha122): “Através de seus temas, caracterização e imagens, Desai tentou levantar
questões pertinentes sobre o status e o papel das mulheres na sociedade”. Dentro da literatura
indiana em inglês, a escritora é destaque ao representar, dentre seus contemporâneos, o
feminino sob uma perspectiva psicológica e visceral, isto é, o leitor tem acesso não só ao que
essas mulheres dizem, mas ao que elas pensam, temem, desejam e, até mesmo, as razões, as
motivações e as imposições por trás do silêncio tão presente quanto eloquente na sociedade
indiana pós-colonial.
As vozes literárias contemporâneas, a partir das décadas de 60 e 70, apontam para o que
pode ser vista como a ruptura maior com a expressão artística canônica. Ao mesmo tempo, no
qual o sujeito contemporâneo deseja se afirmar, cresce, concomitantemente, uma literatura
“menor” e periférica, segundo os termos deleuzianos (DELEUZE; GUATTARI, 1977 p.25 -27),
uma literatura que desterritorializa a língua, é política em forma e conteúdo e parte sempre de
uma coletividade em detrimento de uma individualidade moderno eurocêntrica. Os estudos pós-
coloniais (SAID, 1990; BHABHA, 1998; SPIVAK, 2010), por exemplo, cresceram,
exponencialmente, na segunda metade do século XX como reflexo do quadro político-social de
descolonização de colônias africanas e asiáticas e, sobretudo, pela efervescência das rupturas
epistemológicas fomentadas e debatidas por intelectuais em vários campos como, por exemplo,
nos estudos culturais (HALL, 2003) e nos estudos subalternos (GUHA; SPIVAK, 1988;
CHAKRABARTY, 2000). Neste contexto, a escritora e intelectual contemporânea, Anita Desai,

121
Aluna de Mestrado na pós-graduação do Programa em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.
122
“Through her themes, characterization and images, Desai tried to raise pertnent questions regarding the
status and role of women in society”.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
301

produz obras ficcionais, as quais apontam para a instância sócio-cultural da Índia pós-
independência, mediante uma narrativa anglófona, psicológica e em terceira pessoa.
É importante salientar que há, também, as vozes femininas indianas, as quais, pouco
provavelmente, serão ouvidas no Ocidente, pois produzem literatura em Telugu, em Hindi,
em Urdu, em Tamil, ou em qualquer outra língua local. Existe, todavia, tanto uma motivação
política na produção ficcional em línguas nativas, contrapondo-se à língua do colonizador,
quanto existe o caráter político e subversivo em artistas e intelectuais, os quais optam por
escrever na língua da metrópole, a fim de desterritorializá-la e de descentrá-la, como visto em
Anita Desai. Agora, na contemporaneidade, a visão, baseada no exotismo, sobre culturas
africanas, asiáticas e americanas pelo olhar europeu, perde lugar para a visão intelectual,
política e artística do Outro, o qual pode falar de si e reescrever sua história sobre as ruínas da
colonização.
Há uma instigante presença/ausência de mulheres na obra da autora indiana Anita
Desai, a qual começa sua escrita literária logo após a independização da índia e produz muitas
obras ficcionais na segunda metade do século XX e no início do século XXI, retratando os
desafios e os hibridismos da Índia pós-colonial. A Índia luta, atualmente, para combater o
infanticídio feminino praticado mediante o aborto seletivo. Há mais homens do que mulheres
no território indiano pelo fato de que ter um filho homem é muito mais desejável do que ter
uma mulher, a qual dá despesa com dotes e não perpetua o nome da família. Portanto, existir
enquanto mulher, na Índia, já é uma resistência. Aqui se pretende estudar a representação
feminina em dois romances desta intelectual em diáspora, sendo eles In Custody (1984),
traduzido no Brasil por Sob Custódia (1988) e Fasting Feasting (1999), o qual foi traduzido
em Portugal por O jejum e a festa (1999).
Sob Custódia narra o conflito entre a língua Hindi e a língua Urdu no quadro político-
social indiano. Tendo, pois, como protagonistas, personagens masculinos, o professor Deven e
o poeta Nur; no entanto, a escritora traz à tona, também, mediante algumas personagens
femininas, as camadas de subalternidade, as quais as envolviam e suas formas, às vezes
escassas, de resistir à estrutura patriarcal e falocêntrica. O romance O jejum e a festa, por
outro lado, conta a história de Uma, uma mulher subjugada ao querer da família e às
demandas da tradição, cuja subjetividade vai se revelando ao leitor à medida que a narrativa
avança. Este romance possui duas histórias imbricadas em um enredo único, pois enquanto na
primeira parte, tem-se acesso às inquietações de Uma e de várias mulheres indianas, as quais
são oprimidas pela família e pela sociedade, na segunda parte do livro, aparecem os conflitos
existenciais de Arun, irmão de Uma, o qual está estudando nos Estados Unidos e, a todo o

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
302

momento, vê-se obrigado a comparar e contrastar o mundo oriental e o mundo ocidental. É,


pois, nesta segunda parte da narrativa que há também um olhar para as mulheres norte-
americanas, as quais experimentam outras formas de subalternidade, talvez menos evidentes,
mas não menos cruéis.
Pode-se ver, através das histórias supracitadas, um cenário, no qual aparece a mulher
na literatura indiana de Língua Inglesa. O artigo, portanto, tem como primeiro objetivo
analisar os corpos femininos que atravessam ambos os romances de Anita Desai ao apontarem
para a subestimação vivenciada por mulheres em várias partes do mundo e objetiva, também,
vê-las enquanto metáforas (PENNICOOK, 2002 p.61) de uma Índia múltipla pós-
independente, cuja meta iminente é se libertar do patriarcado britânico e descolonizar sua
história.
No romance Sob Custódia, as personagens femininas aparecem de modo sutil, mas
com uma grande força discursiva, até mesmo, com seu silêncio. A figura da mulher em uma
literatura pós-colonial é, inevitavelmente, uma metáfora da colônia, subalternizada pela
metrópole, como elucida Bonnici (2012, p. 195): “Como o poderio masculino tenta impor sua
vontade sobre a mulher sem pedir o seu consentimento, objetificando-a e tentando anular a
sua identidade, o poder colonial inglês tem a mesma intenção e os meios para fazer o mesmo
[...]”. Desse modo, todas as representações femininas dos romances de Desai podem ser
metáforas da Índia, ainda em processo de descolonização, às vezes subjugadas, às vezes
silenciadas, às vezes coaptadas pelo sistema patriarcal, e como seu país precisam de
estratégias de descolonização. Sobre as personagens de Desai, acentua Mohan:

As personagens de Desai não são projetadas como representativos de uma categoria


homogênea: elas testemunham a heterogeneidade da experiência familiar e a
necessidade de reconhecer as situações de todos os quadros de opressão, bem como
todos os modos de resistência. (MOHAN 2015, p. 427 tradução minha3)

A extensão do presente artigo não permite falar de todas, por isso, algumas representações
femininas foram selecionadas para este trabalho, em detrimento de outras. Sarla é a esposa do
professor de Hindi, Deven, o qual é um indivíduo frustrado com sua vida. Sarla só é descrita
com maiores detalhes no quarto capítulo da narrativa, quando o narrador descreve:

Sarla era filha do amigo de uma das tias, morava na mesma rua dessa tia, elas a
observavam há anos e achavam que era a mulher adequada em todos os sentidos:
feia, econômica e pessimista de nascença. O que não suspeitavam era que Sarla,

3
“Desai's characters are not projected as representative of a homogeneous category: they testify to the
heterogeneity of female experience and the need to recognize the situations of all frames of opression as well as
all modes of resistance”.

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303

como jovem e como recém-casada, tinha suas aspirações particulares [...]. (DESAI,
1988 p. 66).

O casamento de Sarla é arranjado como a maioria dos casamentos indianos e recebe


adjetivos depreciativos da boca de outras mulheres da sociedade, as quais são influenciadas,
também, pelo pensamento patriarcal de sua tradição, através do qual, a mulher é apenas uma
propriedade do marido, cuja existência não pode gerar grandes decepções ou grandes despesas
para os homens. No entanto, Sarla carrega, em si, o contraste entre seus desejos de casamento
de revista, de bens materiais e a vida simples de esposa e mãe, a qual é proporcionada por seu
marido professor em uma cidadezinha da Índia. Casada com um homem frustrado, Sarla
carrega, também, uma amargura por se ver presa àquela vida sem grandes perspectivas.
Enquanto Deven é uma vítima do sistema colonial, herdado pela instituição educacional, na
qual leciona, Sarla é uma vítima duas vezes, pois além de estar em uma condição de sujeito
pós-colonial, ela é uma mulher em uma sociedade com valores patriarcais. Por isso, neste
trecho do romance, vê-se esta situação: “Uma vítima não procura ajuda em outra vítima;
procura alguém que a liberte. Deven pelo menos tinha sua poesia; Sarla não tinha coisa
alguma, portanto nela a acusação e a amargura eram maiores”. (DESAI, 1988 p. 67).
Desde o primeiro capítulo, o nome de Sarla é mencionado por seu marido, o qual
nunca fala com carinho, mas sempre salientando que o fato de estar casado com ela e ter
constituído família são os grandes entraves de vida, os quais o levaram a abandonar a poesia
urdu para ser professor de hindi. Mas é no quarto capítulo, em que é mostrado o encontro de
Deven e Sarla, após ele ter passado a noite em Delhi, sem comunicar a Sarla, para entrevistar
o poeta Nur. Quando o professor desponta no portão, vê sua esposa conversando com a
vizinha viúva, Sra. Bhalla, da qual ele não gostava e ao entrar, “[...] as mulheres ergueram as
cabeças e olharam para ele como se fosse um estranho, um intruso”. (DESAI, 1988 p. 65).
Nesta cena, é nítida a sintonia e empatia compartilhadas por aquelas mulheres, as quais
poderiam compreender os sofrimentos uma da outra, embora uma fosse casada e a outra uma
das figuras mais marginalizadas na Índia, a viúva, a qual até pouco tempo, era obrigada a
morrer queimada junto ao corpo do marido no ritual religioso, chamado Sati, analisado por
Spivak (2010) em seu famoso texto Pode o subalterno falar?
A Sra. Bhalla, talvez por sua experiência ou por sua idade faz uma advertência a
Deven por ele não ter dado satisfação à sua mulher, a qual ficara em casa aflita, esperando-o.
E, depois, despede-se, como narra esse trecho: “- Sorriu bondosamente para Sarla. – Accha,
irmã, já vou – suspirou e desapareceu na esquina, arrastando seus pés de viúva”. (DESAI,
1988 p. 65). E sentindo-se encorajada por sua amiga, Sarla entra em casa, sem dizer uma

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304

palavra, mas em uma performance de resistência, “segurando a dobra do sari com firmeza
sobre a cabeça como se estivesse de luto ou em uma cerimônia religiosa” (DESAI, 1988 p.
65). Deven, então, percebeu a forma de protesto de sua mulher, o qual duraria algum tempo.
Tendo em vista que o silêncio também é estratégia de resistência em alguns casos, Anna
Beatriz Paula pontua (2017 p. 8): “É nessa atitude silenciosa de resistência e existência que a
mulher indiana sustenta seu significado em sua cultura. Sua inscrição no mundo é profunda e
verdadeira. Está no terreno das não-palavras: o que não precisa ser dito, porque é”.
No quinto capítulo de Sob Custódia, surge uma personagem irreverente e ousada,
declamando poesia urdu para mulheres e homens na casa do famoso poeta Nur. Sua presença
bela e jovial contrasta com a aparente decadência daquele espaço e da própria língua urdu.
Devem fica surpreso ao ver aquela mulher no lugar sagrado de portadora da poesia e uma
passagem do trecho descreve a poeta:

[...] no centro do divã [...] uma criatura empoada e pintada, vestida de negro e prata,
faceira sob um véu brilhante que segurava sobre a testa, enquanto virava a cabeça
para a direita e para a esquerda, captando os sorrisos da audiência, a argola em seu
nariz cintilando alegremente com o movimento. Sentou-se confortavelmente com as
pernas cruzadas sobreo tapete, os dedos dos pés pintados remexendo-se de prazer
com o cenário do qual ela era, indubitavelmente, a figura principal. (DESAI, 1988 p.
78).

Imtiaz Begum, na condição de poeta e patrocinada por Nur, tem a oportunidade que poucas
mulheres indianas chegariam a ter, a possibilidade de fazer ecoar a sua voz. Nos detalhes da
descrição de Begun, a autora mostra elementos importantes para as mulheres na sociedade
indiana como, por exemplo, as pinturas nos pés, as quais também podem ser feitas nas mãos
de noivas às vésperas do casamento e a argola no nariz, a qual só era permitida para mulheres
de castas mais elevadas, mas atualmente, mulheres de várias idades e castas usam. Este
piercing no nariz é um dos símbolos mais antigos da tradição védica, a qual diz que a mulher
que usa a argola no lado esquerdo do nariz será aliviada de dores da menstruação e do parto,
também usada na noite de núpcias para que o marido a retire, juntamente com a virginadade,
portanto este é um adereço, simbolicamente, feminino e, cujo uso é proibido às mulheres
viúvas.
Deven também era poeta e amante da poesia urdu, porém precisou prescindir de seu
sonho para sustentar sua família e, em sua mente, era um absurdo aquela mulher está
recebendo aplausos de uma audiência vibrante por causa de seus versos. O narrador mostra o
que o professor pensa de Begun: “Ela não merecia ser ouvida, não queria ouvi-la, não estava
ali para isso, resmungou”. (DESAI, 1988 p. 81). Mas em outro trecho, afirma o narrador: “Se

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305

a plateia aplaudia e gritava „oh! Oh! ‟ era porque a voz frequentemente parecia se partir com
aquele som „autêntico‟ de sofrimento profundo, considerável indispensável nas artes da
música e da poesia”. (DESAI, 1988 p. 81). Desse modo, percebe-se, de um lado, a resistência
de Deven em ouvir a poesia daquele corpo feminino e de outro, o desejo de libertação dos
versos de Begun, nos quais, ela afirmava: “que estava em uma gaiola de passarinho, que
queria voar, que seu amado esperava por ela. Dizia que as grades que a prendiam eram cruéis
e injustas [...]”. (DESAI, 1988 p. 81). Anita Desai, com destreza, coloca nos lábios dessa
personagem um grito de socorro, o qual tantas mulheres emitem por estarem subjugadas ao
domínio cultural de um machismo consolidado.
No romance O Jejum e a Festa , há várias representações de mulheres indianas, cada
uma, na sua particularidade, carrega o fardo de ser mulher em uma sociedade que a
marginaliza direta ou indiretamente. Mas neste artigo, apenas algumas figuras femininas serão
analisadas, Uma, a protagonista da primeira parte do livro, sua prima Anamika e a
estadunidense, Melanie. E cada personagem da obra de Desai, de acordo com Agrawal
(AGRAWAL apud PRASAD; PAUL, 2006 p. 153 tradução minha4): “sofre intensamente de
sua fútil tentativa de encontrar contato emocional, resposta e compreensão e tenta escapar dos
muros tirânicos [...]”.
Uma envelheceu na casa dos pais, servindo-os e anulando sempre a sua vontade. Viu
sua irmã mais nova se casar, ter filhos e ser bem sucedida, pois Aruna sempre foi mais
ousada, mais irreverente, jamais ficaria, eternamente, na casa dos pais. Uma viu, também, a
chegada gloriosa do seu único irmão do sexo masculino, Arun, tão desejado pela família e,
também, presenciou sua partida para os estudos universitários na América do Norte. Embora a
família de Uma tivesse vários empregados, o pai sempre dava ordens à mãe e a mãe dava
ordens à Uma, a qual, por sua vez, manda o cozinheiro providenciar o que o pai havia pedido.
Tudo gira em torno da vontade do pai. No terceiro capítulo há todo um ritual para dar frutas,
devidamente, cortadas ao pai, assim como descrito nesta passagem:

-Laranja- ordena. Uma não pode continuar a fingir ignorar as necessidades do Pai,
os modos do Pai. Afinal de contas, serve-os há quase 20 anos. Escolhe a maior
laranja da taça e passa-a à Mãe, que a descasca e depois a divide em gomos. Cada
gomo é depois limpo de caroços, pele e fios até a laranja ficar reduzida aos mais
perfeitos glóbulos de sumo, que são depois colocados, um a um, na beira do prato do
Pai. (DESAI, 1999 p. 29)

4
“Desai's character suffer intensely of their futile attempt to find emotional contact, response and understanding
and to escape from the tyranical walls […]”.

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306

E este ritual de perfeição repetia-se, cotidianamente, no lar desta família. Uma se refugiava no
colégio de freiras, mas foi por pouco tempo, pois quando seu irmão Arun nasceu, mesmo
tendo a babá, os pais acharam melhor ela ficar em casa, ajudando a cuidar do irmão e
esperando o dia do casamento, o qual seria arquitetado pelos pais.
Houve várias tentativas de fazer Uma casar, porém nunca deu certo, mas houve um
episódio, em especial, mais traumatizante para a moça. Em um dos trechos do romance, o
desejo da mãe de casar a filha é evidente: “A Mãe fazia esforços árduos para se livrar de Uma,
mandava a fotografia dela para toda a gente [...]”. (DESAI, 1999 p. 93) Após algumas
tentativas frustradas, no oitavo capítulo do romance, aparece um pretendente, atraído pelos
anúncios de Uma em colunas matrimoniais do jornal. Um homem mais velho, que já fora
casado e era um caixeiro viajante. A fim de que não houvesse desistência, o pai organizou
toda a festa de casamento sem, ao menos, os noivos se encontrarem antes. E no dia do
casamento, os noivos trocaram mais olhares de desinteresse do que de afeto. Para explicitar o
humor do noivo, o narrador descreve:

A cerimónia desenrolou-se no seu ritmo lento. A certa altura o lúgubre noivo


interrompeu e disse bruscamente ao sacerdote „ande lá com isso, já chega‟. O
sacerdote mostrou-se ofendido, e Uma ficou mortificada. Se ele nem conseguia
suportar a cerimónia, como ia suportar o próprio casamento? (DESAI, 1999 p. 96)

Após a festa de casamento, Uma seguiu com o marido e seus familiares de comboio para a
cidade, na qual viveriam e chegando à casa da família: “Uma foi entregue às parentes do sexo
feminino do marido – uma mãe com ar duro [...] examinou Uma com um olhar semicerrado e
perspicaz, as mulheres dos irmãos dele e as respectivas filhas.” (DESAI, 1999 p. 98) e, logo
em seguida, sem uma expressão de carinho e sem consumar o casamento, o marido disse para
Uma que precisava viajar a trabalho. Uma não entendeu, pois imaginava que algo especial
devesse acontecer após o ritual, mas aceitou e passou longos meses sendo maltratada e
explorada pelas cunhadas e pela sogra.
Depois dessa longa espera, o Pai chegou indignado à casa de Uma em busca da filha,
pois eles haviam sido enganados. Harish, o marido, era casado em outra cidade e tinha quatro
filhos, só se casou novamente para pegar o dote e investir nos negócios da família. Ao ouvir a
notícia, Uma sente uma enorme tristeza, como narrado neste trecho:

A cena que se seguiu foi certamente única e memorável, mas a forma como Uma
reagiu a ela foi não só fechar os olhos e tapar os ouvidos – foi para o quarto, fechou
a porta e sentou-se na cama com o sari enrolado por cima da cabeça, à volta dos
ouvidos, da boca e dos olhos até está tudo terminado -, mas também fechar a mente,

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307

por forma a bloquear uma recordação com a qual não aguentaria viver. (DESAI,
1999 p. 100)

A escrita de Desai conduz o leitor aos sentimentos mais íntimos de seus personagens, como
salienta Hossain (2014 p. 223 tradução minha5): “A situação atual de sua protagonista por
vários fatores é sua principal questão em seu romance. Desai nos faz conhecer as motivações
inconscientes da psique humana [...]”. Há várias cenas, nas quais podem ser percebidos os
sonhos e frustrações de Uma e, sempre é possível ouvir seu interior, mediante seus
questionamentos e seu comportamento, explicitados pelo atento narrador onisciente dos
romances de Desai.

Já Anamika era a prima linda, inteligente e meiga de Uma. Sobre Anamika diz-se:
“Onde ela estivesse havia paz, satisfação, bem-estar”. (DESAI, 1999 p. 73). Ela era muito
bonita, mas também, uma grande estudiosa como visto neste trecho: [...] acabou os exames
finais [...] ganhou uma bolsa de estudo em Oxford. [...] os pais de Anamika nem sequer iam
considerar a hipótese de ela ir estudar [...] exatamente quando estava na idade de casar”.
(DESAI, 1999 p. 74-75). Na tradição indiana, poucas mulheres tem acesso à educação durante
o século XX, e quando algumas de classe média alta tinham essa oportunidade, às vezes a
perdiam por causa da valorização do casamento. Sobre este cenário, Uddin (2014 p.107
tradução minha6) afirma: “Através da situação de Anamika, [...] Desai explora o impacto da
opressão patriarcal na psique indiana. Isso exige muita força e coragem para rasgar o véu da
representação: casamento para mulheres, ensino superior para homens”.
Os pais de Anamika buscaram um marido para a filha, o qual também tinha muitos
diplomas e medalhas. Mas ao casar, o inferno da jovem começou, pois convivia com a família
do marido, a qual a odiava, pois ela, com seus estudos, era superior, até mesmo, alguns
homens da casa. Anamika se tornou escrava da família, vivia na cozinha e comia as sobras
nas panelas antes de lavá-las e era espancada sempre pela sogra com a permissão do marido.
Anamika passou tantos maus tratos que já não podia ter filhos e, sua família, ficava
receosa de que sua filha fosse devolvida, pois ela seria imperfeita, “uma mercadoria com
defeito” (DESAI, 1999 p. 77). Anamika não aparecia mais em nenhuma festa da família, pois
os parentes do marido não permitiam. E um dia, inesperadamente, chegou, à família de Uma,

5
“Existencial predicament of her protagonist by various factors is her main issue in her novel. Desai makes
know to us the unconscious motivations of human psyche […]”.
6
“Through Anamika's predicament, [...] Desai explores the impact of the patriarchal oppression in Indian
psyche. It the requires a lot of strength and courage to tear the veil of representation: marriage for women, higher
education for men”.

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a notícia de que Anamika havia morrido. E a notícia se propagou como um suicídio, como a
sogra havia narrado à família e à polícia:

Anamika se tinha levantado da cama às 4 da manhã, apenas um pouco mais cedo do


que costumava levantar-se [...]. Se alguém a ouviu, não pensou nada de especial por
ela andar pela casa àquela hora, era normal. O que ela fez a seguir não era normal.
Desligou a bilha de gás que usavam para cozinhar. Encheu uma lata com óleo de
querosene. [...] foi para a varanda. [...] Lançou fogo a si própria. [...] Às 5 da manhã
a sogra acordou e ouviu um gemido. [...] Foi lá fora e descobriu Anamika,
carbonizada a morrer. (DESAI, 1999 p. 156-157)

Através da narrativa detalhada e psicológica de Desai, tem-se acesso ao que Uma pensou ao
contemplar o vaso com as cinzas de Anamika, pois ela refletiu sobre, praticamente, a mesma
idade que ambas tinham e que o mesmo tempo de vida, o qual sua prima passou casada, ela
passou solteira, no entanto parecia que a tragicidade havia encontrado as duas e o narrador
revela o sentimento de Uma: “[Anamika] agora está morta e reduzida a um pote de cinzas.
Uma a agarrar os joelhos, sente que ainda é de carne, e não de cinzas. Mas sente-se como se
fosse de cinzas – cinzas frias, sem cor, sem movimento”. (DESAI, 1999 p. 158). Talvez Uma
tenha sentido certo alívio por não ter tido êxito nas tentativas matrimoniais, pois ela,
diferentemente, da bela Anamika ainda tinha o direito de existir e de resistir, embora também,
marcada pela dor de outros sempre decidirem seu destino.
Na segunda parte do romance O Jejum e a Festa, há duas mulheres com as quais Arun,
o irmão de Uma, conviveu durante as férias da Universidade nos Estados Unidos. A Sra.
Patton parecia ser o estereótipo de uma mãe e dona de casa ocidental, a qual tinha a
responsabilidade de deixar sempre a dispensa cheia para seu marido e filhos e encontra, em
um consumismo exacerbado, seu refúgio existencial. Embora Arun estivesse do outro lado do
mundo, percebia que o patriarcado também existia e se impunha na figura do Sr. Patton, o
qual se colocava como o provedor da casa e ao qual todos deviam satisfações. E sob essa
máscara de suprema autoridade, ausentava-se perante as reais necessidades de seus dois filhos
jovens, Rod e Melanie.
Melanie é uma adolescente de poucas palavras e, normalmente, recusa-se a fazer as
refeições com a família e Arun acha estranho o fato de encontrá-la sempre com um saco
grande de amendoins, chocolates ou devorando um pote de sorvete vorazmente. E cada vez
que o jovem indiano tenta estabelecer qualquer tipo de comunicação com ela, Melanie diz,
categoricamente: “Vai-te embora. [...] Desaparece.” (DESAI, 1999 p. 197). No entanto, as
palavras da moça não parecem corresponder às intenções de suas atitudes, as quais apontam

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309

para um tipo de comportamento, o qual clama por ajuda e atenção. Arun constata que Melanie
não está normal quando se depara com a seguinte cena:

Melanie está de joelhos, debruçada sobre a sanita, com um pijama branco com
desenhos de lábios pintados, a vomitar lá para dentro. Ou o ouviu, ou viu a sombra
dele, e volta-se assustada. O seu rosto está coberto de gotas de suor e tão branco
quanto um filete de peixe no supermercado [...] Melanie afasta o cabelo da testa
pegajosa e lança-lhe um olhar irado. (DESAI, 1999 p. 197).

Após aquela cena digna de compaixão, na qual Melanie provocava seu vômito após comer
várias guloseimas, Arun tentava sinalizar para a família da jovem que ela estava doente e
precisando de cuidados afetivos e profissionais. Com as personagens norte-americanas, Desai
mostra formas de opressão as quais muitas mulheres estão submetidas como a ditadura da
beleza e a ditadura da magreza, cujos efeitos podem desencadear distúrbios como a bulimia, a
anorexia ou a depressão. Outra questão tratada no romance é a grande indiferença e o enorme
descaso, dos quais Melanie é vítima por estar em uma sociedade profundamente individualista
e capitalista.
Arun tenta falar com Rod sobre a condição de Melanie e o jovem se mostra
incompreensível e despreocupado com a questão:

- Essa miúda envenena-se [...] com tantos chocolates! Não come nada a não ser
chocolates. Qualquer pessoa ficaria doente. – Emite um som que exprime ao mesmo
tempo o seu distanciamento e um certo divertimento. – Quer ficar magra. [...] É para
isso que servem as raparigas, sabes. Não são como os rapazes. São demasiado
preguiçosas para mexerem o rabo e irem fazer jogging ou jogarem um bom bocado
de bola. (DESAI, 1999 p. 214).

Através de sua fala, Rod reforça a ideia, culturalmente, construída de que a mulher é o sexo
frágil e, por isso, mais suscetível às enfermidades e a diversos problemas. Ele, no entanto, não
percebe o quanto ele também é vítima desta opressão do corpo perfeito, pois sempre está
treinando, praticando algum esporte, não só por uma qualidade de vida, mas para ter um corpo
atlético e sarado como o padrão de beleza determina e, portanto, não consegue olhar para
além de seu próprio umbigo em busca, também, do corpo perfeito. Arun tenta falar sobre
Melanie com a Sra. Patton, mas desiste quando percebe que ela não está querendo ver.
Melanie está cada vez mais pálida e se recusa a comer qualquer coisa, exceto seus doces para,
em seguida, trancar-se no banheiro e vomitar tudo. O Sr. Patton apenas pergunta, uma vez ou
outra, para a esposa se Melanie está fazendo algum esporte, pois a vê muito parada.
Um dia ao encontrar Melanie na cozinha, comendo avidamente um pote de sorvete,
Arun se recorda das carências de sua própria irmã Uma e vê, naquela situação, algo de

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familiar, mas, também, não entende porque aquela cena, de algum modo, se repete já que o
ocidente deveria ser o espaço da festa, da abundância:

Arun descobre então uma semelhança com algo que já conhecia: uma semelhança
com o rosto contorcido de uma irmã enraivecida [...]. Que estranho encontrar isso
aqui, pensa Arun, onde tanto é dado, onde existe ao mesmo tempo tanta
permissividade e fartura. Mas o que é a fartura? O que é a ausência de fartura?
Como é possível saber a diferença? (DESAI, 1999 p. 223).

As questões de Arun, em sua condição diaspórica nos Estados Unidos, aludem para o próprio
título do romance, como se o jejum, fosse a privação e a festa, fosse a abundância presentes
em toda e qualquer cultura, em toda e qualquer existência, mas, sobretudo, fossem realidades
inerentes a corpos subalternizados como os corpos de mulheres, silenciados e esquecidos pelo
sistema patriarcal. Os pais de Melanie só a colocaram em uma clínica de tratamento quando a
encontraram desmaiada sobre o próprio vômito, ou seja, esperaram a situação limite para
agirem. No entanto, esta jovem ainda tinha a chance de se reconstruir, ao contrário da indiana
Anamika, a qual teve seus sonhos, sua vida e seu corpo transformados em cinzas.

REFERÊNCIAS

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0484
(Online). Vol 4. Nº 21, 2014.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
312

CORPO, DESEJO E EROTISMO NA ESCRITA DE MULHERES

PARTICIPANTES: ANA CRISTINA DOS SANTOS; RENATA DE SOUZA SPOLIDORO; GABRIELA


SIMONETTI TREVISAN; MARCELLA DE PAULA CARVALHO; MIRIAN CRISTINA DOS SANTOS;
NATÁLIA AFFONSO; PALOMA DO NASCIMENTO OLIVEIRA; RENATA DE MELO GOMES;
RENATA CRISTINA SANT’ANA.

A MÉNAGÈRE E A BACANTE: CORPO E DESEJO EM JÚLIA LOPES DE


ALMEIDA

Gabriela Simonetti Trevisan (Unicamp)


E-mail: trevisan.gabriela@gmail.com

Ernestina Simões esforçava-se diariamente para ser uma “ménagère exemplar”, como
escreve Júlia Lopes de Almeida em A viúva Simões (1897). Ainda enlutada pela morte do
marido, vivia de sua grande fortuna com sua filha Sara, de dezoito anos. Com cinco criados,
sua vida consistia em administrar os afazeres domésticos que resguardavam a mansão
herdada. Pouco saía para passear, respeitando o luto, e era rigorosa com as tarefas dos
empregados como ninguém. Aos poucos, ganhou fama de modelar dona-de-casa, de “Anjo do
lar”, como chama Virginia Woolf, referindo-se aos comportamentos de abnegação, cuidado e
doçura esperados das mulheres (WOOLF, 2012: 11).
A imagem perfeita do comportamento de Ernestina, porém, não permanence até a
segunda página. A viúva logo é apresentada pelo(a) narrador(a) como uma mulher entediada,
infeliz com a posição que ocupa. Mais do que isso, também sente falta da mocidade, das
paixões e das emoções, de uma vida “mundana”:

Estava num dos seus momentos de melancolia; almejava qualquer coisa que
ela mesma não sabia definir. Era a revolta surda contra a pacatez da sua vida sem
emoções, contra aquele propósito de enterrar a sua mocidade e a sua formosura
longe dos gozos e dos triunfos mundanos (ALMEIDA, 1999: 38).

Também é de forma sexual que o homem por quem se vê apaixonada – um antigo


amor da adolescência que retorna da Europa assim que Ernestina se torna viúva – se refere à
personagem. Pensando-a como alguém que já não é mais pura, por já ter experimentado o

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313

sexo em um primeiro casamento, Luciano entende que deseja Ernestina mais do que pensa em
ter com ela um relação matrimonial. Descrevendo seu corpo, erotizando sua aparência, o
homem a vê, então, como uma bacante, um fruto de perdição:

Não era positivamente como marido que ele queria beijar a boca pequena e
rubra da viúva Simões! O corpo esbelto e ondeante da moça, o negro azulado do seu
cabelo farto, a doçura dos seus olhos rasgados e úmidos, o moreno quente da sua
pele rosada, acendiam-lhe no coração, não o amor puro e casto que o homem deve
dedicar à companheira eterna, mas o fogo sensual de uma paixão violenta e
transitória. Ele amava-a, amava-a, sim; tinha ciúmes do passado, era sincero na sua
cólera, odiava o Simões, e a filha do Simões, porém à sua imaginação o vulto de
Ernestina aparecia, teimosamente, engrinaldado de pâmpanos e de taça em punho,
como uma bacante!” (ALMEIDA, 1999: 117-118).

Complexas são, portanto, as questões subjetivas de Ernestina, que se encontra dividida


entre uma atitude de recato, esperada dela pela sociedade em que vivia, e os sentimentos de
tédio, a vontade de implodir seu modo de vida doméstico e repetitivo. Além disso, encontra-
se também em constante julgamento de seu corpo pelo próprio homem que ama. Esse
desajuste entre uma norma sobre as vidas das mulheres e as suas experiências muitas vezes
desgostosas no cuidado do lar permeia toda a obra A viúva Simões, assim como outros escritos
de Júlia Lopes de Almeida, a exemplo do conjunto de ensaios Eles e elas (1910). Em um
desses textos, intitulado “Há de ter muita graça...”, a narradora afirma que “uma só alma em
dois corpos é uma metáfora inventada pelo diabo em hora de ironia” (ALMEIDA, 1910: 103).
Ela se queixa, portanto, das expectativas colocadas sobre o matrimônio, o qual é posto como
motivo de realização pessoal feminina, alegando que se trata de uma ilusão: ao invés de uma
vida perfeita, o que se encontra, para ela, é submissão e falta de companheirismo por parte dos
homens.
No mesmo momento em que Júlia publicava suas obras e apresentava essas narrativas,
a ideia de que existia uma natureza feminina diretamente ligada à inferioridade, à maternidade
a o casamento ganhava espaço na ciência moderna. Como destaca Fabíola Rohden,
especialmente a partir do século XIX, “é a partir das funções diferenciadas na reprodução que
se prescreve papéis sociais muito distintos para homens e mulheres” (ROHDEN, 2002: 115).
Isso significa que o mundo privado e o mundo público teriam sido generificados de acordo
com a biologia dos corpos femininos e masculinos, ideia esta que relegava as mulheres,
portanto, ao lugar de mães, esposas e guardiãs do lar.

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314

Cesare Lombroso, um importante nome da frenologia, ao estudar as “degeneradas


natas”, as criminosas, argumenta em favor da menor inteligência e força das mulheres, além
de sua necessidade frágil de realizar “o instinto maternal e ser protegida, sem o qual a
existência das mulheres é incompleta”123 (LOMBROSO, 2004: 60). No Brasil, o Dr. João
Amarante, em 1927, defende a existência de uma “essência feminina”, uma vez que meninas,
ainda crianças, possuiriam “grande sensibilidade, emotividade, facilidade de chorar e de rir,
timidez e... faceirice”, ao contrário dos meninos, detentores de um “caráter de mando”.
Segundo ele, “a menina em tudo manifesta sua aspiração a ser a rainha de um lar”
(AMARANTE apud RAGO, 2014: 113).
Trata-se de alguns exemplos de um discurso consolidado por esses homens cientistas e
que se incorporam na sociedade, chegando até mesmo a campos da esquerda, como o
exemplo do movimento operário: em uma assembleia trabalhista de 1919, como mostra
Margareth Rago, foi possível ouvir que “o papel de uma mulher não consiste em abandonar
seus filhos em casa e ir para a fábrica trabalhar, pois tal abandono origina muitas vezes
consequências lamentáveis” (apud RAGO, 2014: 95-96).
A reprodução e o matrimônio, portanto, foram consideradas funções sociais das
mulheres por variadas teses médicas e jurídicas do Ocidente que, com pretenção de verdade,
se justificavam a partir de estudos da anatomia humana, muito influenciados – vale ressaltar –
por uma moral cristã. Nesse modelo de feminilidade normativo, não havia espaço para o
corpo, para o desejo ou para a subjetividade feminina, sua complexidade e multiplicidade.
Falas dos personagens masculinos e patriarcais de Júlia Lopes de Almeida são
exemplos também das ideias que os homens na virada do século XIX para o XX reproduziam
em seu convívio familiar, tratando de suas esposas e filhas. É o caso de Francisco Teodoro, do
romance A falência, de 1901, que comenta sobre as diferenças de moralidade entre os sexos:

Suponhamos, por exemplo, que a nossa [dos homens] honestidade é um


casaco preto e que a das senhoras é um vestido branco. Tudo é roupa, têm ambos o
mesmo destino, mas que aspectos e que responsabilidades diferentes!
Assim, o nosso casaco, ora o vestimos de um lado, ora de outro,
disfarçando as nodoazinhas. O pano é grosso, com uma escovadela voa para longe
toda a poeira da imundície; e ficamos decentes. A honestidade das senhoras é um
vestido de cetim branco, sem forro. Um pouco de suor, se faz calor, macula-o; o
simples roçar por uma parede, à procura da sombra amável, macula-o; uma picadela
de alfinete, que só teve a intenção de segurar uma violeta cheirosa, toma naquela
vasta candidez proporções desagradáveis... Realmente, deve ser bem difícil saber

123
Tradução livre de “the maternal instinct and be protected, without which women’s existence is
incomplete”.

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defender um vestido de cetim branco que nunca se tire do corpo. Eu não sei como
elas fazem, e, francamente, não me parece que a vida mereça tamanho luxo
(ALMEIDA, 2003: 133-134).

Com a metáfora das roupas, Francisco Teodoro expõe como os desvios morais
masculinos – e aqui subentendendem-se as práticas sexuais fora do casamento – são
praticamente imperceptíveis aos olhos da sociedade, enquanto a vida das mulheres se torna
permanentemente marcada ao terem os mesmos comportamentos que pouco importariam para
a imagem social de um homem. Além disso, como no caso da roupa, o corpo se mostra um
ponto central dessa normatização. Como Foucault observa, há emergência de um dispositivo
da sexualidade no século XIX, momento este em que o sexo se torna central como
constituinte das identidades do sujeitos, classificando-os entre normais e anormais. De acordo
com as práticas sexuais – medidas e comprovadas pelo corpo e pela biologia – as mulheres
seriam, então, categorizadas enquanto o modelo da Mãe ou, então, patologizadas, processo
este que Foucault denomina de histerização dos corpos femininos.
Desvios, trangressões e outros modos de ser, porém, permeavam os cotidianos
femininos, como bem percebido nas obras de Júlia Lopes de Almeida. Ernestina é um
exemplo das contradições encontradas pelas mulheres diante do lugar que se esperava delas
que ocupassem. Dividida entre o mundo materno e o desejo de uma vida mais erótica que se
constrói em sua imaginação, mostrava-se insatisfeita com a renúncia de suas diversões em
nome de uma imagem pública de recato: “no trato comum era calma, e tinha sempre o
cuidado de não trair as suas horas de desfalecimento, em que lhe passavam pela mente desejos
idílios irrealizáveis...” (ALMEIDA, 1999: 37).
Se os corpos das mulheres são objeto do poder, não deixam também de atuar
ativamente sobre ele, moldando e sendo moldados pelas práticas normativas. Como destaca a
foucaultiana e feminista Margaret McLaren (2016), a subjetividade é corporificada e esse fato
é algo conhecido das mulheres, uma vez que é pelo corpo que uma série de violências e
transgressões se constituem em suas vidas, afinal,

O que, além de corpos, pode resistir? É meu corpo que marcha em


protestos, meu corpo que vai às eleições, meu corpo que frequenta reuniões, meu
corpo que boicota, meu corpo que faz greve, meu corpo que participa em operações
tartaruga, meu corpo que se lança em desobediência civil. Corpos individuais são
requisito para ação política coletiva. Seja engajando na macropolítica da luta
coletiva ou na micropolítica da resistência individual, são os corpos que resistem
(McLAREN, 2016: 152-153).

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Dessa forma, McLaren chama atenção para aquilo que podemos observar também nas
obras de Júlia Lopes de Almeida: se nos corpos se encontram uma série de capturas, também
é nele que está o erotismo, as trangressões e as outras práticas possíveis. Se Fracisco Teodoro,
em A falência, argumenta em favor de uma moral rígida sobre as mulheres, não é essa a
experiência que encontramos ao vermos os sentimentos de sua própria esposa, cuja vida é
permeada pelo desejo sexual com o amante, fora do casamento e da realização da
maternidade:

E assim se passaram poucos meses, até que chegou um dia em que o olhar
de Camila, irradiando, se trocou com o dele num fulgor de desejo. O fogo abafado
pelas cinzas da tristeza irrompia subitamente, como uma labareda de fragoa. Ele
espantou-se, ela conteve-se envergonhada, e separaram-se ambos inquietos e
torturados (ALMEIDA, 2003: 333).

Mila, portanto, revela-se deslocada diante das identidades fixas femininas pensadas
por um dispositivo da sexualidade: ela não é a Mãe, totalmente abnegada e assexual, mas
também não é patologizada ao longo da narrativa, vista como histérica por possuir desejos
eróticos. Trata-se de pensar, portanto, como a vida dessas mulheres não é contemplada dentro
das categorias da norma, que exclui sua diversidade de ações e sentimentos. A viúva
Ernestina é também um caso como Mila, pois, ainda que dela se espere o recato do luto e o
cuidado com a filha, resolve abandonar muitos dos estigmas que a paralizavam em um ideal
materno em nome de viver a paixão da qual foi privada na adolescência, entregando-se para
as relações sexuais prazerosas que Júlia Lopes de Almeida descreve com muita sutileza:

Ernestina, meio oculta pela cortina de renda preta, deixava-se abraçar,


amolecida, tonta, sem forças para resistir; o busto vergado para Luciano, os braços
pendentes, o corpo trêmulo.
Nas paredes cinzentas da sala, os arabescos de ouro cintilavam, como se
os milhares de gafanhotos que estampavam no papel as suas asas agudas e as duas
pernas finíssimas, se embaralhassem numa dança endiabrada!
O gás a toda força chamejava no cristal do espelho, amornando a
atmosfera e fazendo uma bulha de sopro surdo, como riso abafado!
Toda a energia da viúva tinha fugido. A luz? que lhe importava a luz?! Ela
não via, não pensava, resvalava sem pena nem cuidado, sentindo-se feliz, mais nada!
(ALMEIDA, 1999: 103).

Nas tramas de Júlia, nas quais conflitos e desvios femininos se fazem presentes, a
experiência do envelhecimento também ganha espaço. O corpo que já não é mais jovem, que
já experimentou o sexo, a gravidez e as dores do parto, traz suas marcas para essas

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317

personagens que se veem diante do espelho e se deparam com a realidade de uma juventude
que se esvai. Essa sensação dialoga com a situação da viuvez, do luto que cai sobre esses
corpos que ainda sentem desejos e muito fulgor de vida, pesando sobre eles a marca de uma
introspecção esperada pela sociedade. É o que se evidencia em A viúva Simões, quando
Ernestina comenta sobre a ânsia em usar novamente roupas claras: “vestia-se devagar,
demoradamente. A lã preta do luto repugnou-lhe; aquele traje áspero e triste não era o que o
seu corpo desejava. A pele bem tratada queria seda, um contacto macio que caísse sobre ela
como uma carícia...” (ALMEIDA, 1999: 81).
Sentimento parecido revela Mila após a morte de seu marido, Francisco Teodoro, em
A falência. Afastando-se de seu amante, Dr. Gervásio, durante o período do luto, ela anseia
abandonar essas regras sociais e satisfazer novamente os desejos que anda contendo. O
símbolo dessa renúncia do erótico é, assim como para Ernestina, a roupa preta:

Invadia-a uma grande tristeza, um desejo vago de fugir, de sumir-se na


transformação de uma essência diversa. A sua alma amorosa crescia-lhe dentro do
peito na ânsia do calor do abraço e o sabor do beijo. Não podia mais, as roupas
negras sufocavam-na. (...)
A sua carne forte acordava de um longo tempo de letargo com frêmitos de
mocidade, capaz de todos os prodígios (ALMEIDA, 2003: 336).

Ernestina e Mila, portanto, revelam o peso do estigma que recai sobre elas. A
linguagem com que são tratadas por quem as circunda - “dona”, “senhora” - revelam a idade
que tentam encobrir para si mesmas. O desejo, porém, não se esvai. O envelhecimento, em
conjunto com a permanência do erotismo, gera um conflito subjetivo nessas mulheres, o que,
em A viúva Simões, é satirizado por Luciano, amante de Ernestina, que a vê como uma alma
jovem presa a um corpo envelhecido: “E Ernestina? Parecera-lhe nesse dia um pouco
avelhantada, medrosa de expansão. E teve pena daquela alma de criança, fechada em um
corpo já em decadência...” (ALMEIDA, 1999: 143).
Como pontua Tania N. Swain, o corpo velho só o é em relação a um referente, o corpo
jovem, relação binária que é cultural e histórica, não natural. Para essa historiadora feminista,
a juventude feminina na modernidade é definida a parte da desirabilidade dos corpos, isto é, o
medo do envelhecimento para as mulheres seria relacionado à tensão de vir a tornar-se um
corpo que não mais agrada, que não é mais desejado. Dessa forma, não se trata apenas de uma
pressão externa sobre os corpos, mas também “uma autorepresentação constitutiva do corpo-
em-mulher, idealizado” (SWAIN, 2003: n.p.). Ernestina, por exemplo, não é apenas

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318

comparada por Luciano com a própria filha, muito mais nova, mas também vê a si mesma em
competição com ela, especialmente depois de perceber que seu amante sentia interesse
amoroso pela garota. Perto de Sara, a viúva se sente velha, deixada de lado, e luta contra esse
sentimento:

A rivalidade com a filha exacerbava isso. A mocidade de Sara era a sua


tortura. Invejava aqueles dezoito anos, aquela alma primaveril, aquele rosto fresco e
tranquilo. Estremecia com medo da velhice, da sua fatal e terrível decadência que
sentia já perto, muito perto! (ALMEIDA, 1999: 164).

Essas mulheres são vistas como envelhecidas por um discurso que entende a função
materna como o objetivo último das vidas femininas e produzem nas subjetividades dessas
mulheres o sentimento da decadência. Ainda assim, elas lidam com o peito cheio do fulgor da
juventude, que se dá de forma diferente da adolescência: há menos ilusões e sonhos
românticos e mais a materialidade de um corpo que aqui e agora necessita do toque, do
carinho, do arrepiar da pele. São corpos que sabem se movimentar melhor entre as redes de
poder e que buscam concretizar com menores receios sua realização, ansiando continuar a
experimentar a vida.
Mila e Ernestina são algumas das personagens de Júlia que se encontram em
complexos dilemas diantes de seus corpos e suas existências. De certa forma, elas
constantemente questionam os discursos médicos e jurídicos da época que defendem a
realização pessoal das mulheres apenas a partir do casamento e da maternidade. A própria
escrita dessa autora mostra-se transgressora, pois, nessas obras, as personagens trazem ares
mais múltiplos do que as categorias essencializantes e biológicas.
Cabe ressaltar como um outro olhar sobre as obras de Júlia se dá a partir de uma
epistemologia feminista, evidenciando os pontos de deslocamento em sua escrita, em especial
sobre as experiências femininas. Como defende Margareth Rago, a ideia de uma produção do
conhecimento ligada ao feminismo desafia uma série de pressupostos da ciência moderna
hegemônica, defendendo que as mulheres trazem uma diferença cultural – e não natural – em
relação ao mundo masculino e normativo, expressando-se, muitas vezes, como um
contradiscurso, uma linguagem outra que abarca aspectos até então marginalizados da vida e
dos sujeitos, como as subjetividades, os desejos e os afetos (RAGO, 1998: 3).
Não se trata, portanto, de essencializar novamente as mulheres, mas de justamente
romper com a ideia de unicidade dos sujeitos femininos, percebendo, porém, as

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especificidades das suas experiências diante da cultura hegemônica, como no campo da


literatura. Desde os anos 1970, pesquisadoras feministas fizeram emergir novamente uma
série de autoras silenciadas pelos cânones literários, como a própria Júlia Lopes de Almeida.
Como destaca Norma Telles, o ato da escrita, para as mulheres, encontra o obstáculo
de ver-se pelo olhar masculino, isto é, uma “imagem-máscara”, marcada pela inferioridade
intellectual (TELLES, 2012: 62). Para escrever, é necessária, portanto, a “morte do Anjo do
Lar”, como escreve Virginia Woolf, isto é, o abandono da figura angelical, doce e maternal
construída pela ciência do século XIX sobre as mulheres e audácia de se colocar enquanto
mente criadora (WOOLF, 2012: 11-12). Essa morte é sofrida, dolorosa e quase sempre traz
consigo um fantasma, responsável por questionar as atitudes incisivas ou inteligentes demais,
cobrando uma postura mais “feminina”.
Júlia, como a própria Telles comenta, caminhou entre a criação literária e a imagem de
cuidado com a família, criando um espaço de respeito e aceitação e vivendo de sua profissão
(TELLES, 2012: 449). Em suas narrativas, as mulheres vagueiam entre diversos caminhos e
por vários ao mesmo tempo, muitas vezes abandonando esse “Anjo do lar” que tanto se
esperava das mulheres. Entre a ménagère e a bacante, está Ernestina, Mila e muitas outras
personagens dessa escritora que extrapolam identidades normativas, abrindo-se para uma
narrativa outra sobre a existência das mulheres.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Júlia Lopes de. A viúva Simões. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. 1ª
publicação em 1897.

_______. Eles e Elas. Rio de janeiro: Francisco Alves & C.A., 1910.

_______. A falência. Florianópolis: EDUNISC/Editora Mulheres, 2003. 1ª publicação em


1901.

LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. Criminal Woman, the Prostitute, and the
Normal Woman. Durham/Londres: Duke University Press, 2004. Tradução de Nicole Hahn
Rafter e Mary Gibson.

McLAREN, Margaret. Foucault, feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016.


Tradução de Newton Milanez.

RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: PEDRO, Joana;


GROSSI, Miriam (orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, 1998.

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_______. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e resistência anarquista, Brasil


1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014, 4ª edição.

ROHDEN, Fabíola. “Ginecologia, gênero e sexualidade na ciência do século XIX”.


Horizontes Antropológicos Porto Alegre, 2002, ano 8, nº 17. Pp. 101-125.

SWAIN, Tania N. “Velha? eu? autoretrato de uma feminista”. Labrys: estudos feministas. Nº
4, ago/dez 2003. Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys4/textos/anahi1.htm. Acesso
em 18 out 2017, às 22h15.

TELLES, Norma. Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX. São
Paulo: Intermeios, 2012.

WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre:
L&PM, 2012. Tradução de Denise Bottmann.

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ESPIRAL DO CORPO: AUTOFICÇÃO COMO RESISTÊNCIA EM DOMINGO DE


REVOLUCIÓN DE WENDY GUERRA

Marcella de Paula Carvalho (PUC-Rio)


E-mail: pcarvalhofdl@gmail.com

Os questionamentos que impulsionaram o desenvolvimento deste artigo surgiram a


partir da leitura de certas obras da escritora cubana Wendy Guerra: Nunca fui primera dama
(2017), Posar nua em Havana (2012) e Domingo de Revolución (2016). Percebemos, então,
como os processos de subjetivação em Cuba são estimulados pelo projeto revolucionário, o
qual não foi uniforme entre gerações. Constatamos, ainda, como a ilha pode ser um
verdadeiro labirinto burocrático e simbólico, cuja experiência coletivista foi implementada no
âmbito político e cultural. Porém, o indivíduo pôde/pode sentir-se negligenciado, abafado ali.
Tal situação intensifica-se inclusive do ponto de vista das mulheres, pois, se existe uma
paridade financeira graças ao regime socialista, elas não possuem o mesmo espaço no cenário
ideológico e político, tipicamente restrito a uma revolução de barbudos (ÁLVAREZ, 2016).
Para estabelecer uma apreciação pelo ângulo da resistência, inicialmente refletiu-se
sobre o cuidado de si (FOUCAULT, 2010), mecanismo de edificação da própria subjetividade
(FOUCAULT, 2010). Contra a ideia de somente teorizar, buscou-se investigar ferramentas de
práticas de si -a partir de Foucault (2010) e outros pensadores- que tentassem desmontar os
dispositivos de poder (FOUCAULT, 1984). Considerando a capilaridade microfísica deste,
percebemos a importância de pesquisar a relação entre corpo e resistência na autoficção de
Guerra.
O gênero autoficção (KLINGER, 2012), de mais a mais, possui uma relação muito
particular com o corpo, pois este é essencialmente performático (KLINGER, 2012, p.47). Há
uma superposição de subjetividades entre a narradora e a autora, que por sua vez está sempre
performando em fotos, entrevistas, redes sociais etc.
O último romance de Wendy Guerra foi escolhido como corpus literário: Domingo de
revolução (2016), em sua atualidade, representa um momento de transição de Cuba, marcado
pela renúncia de Fidel Castro e sua posterior morte.
O objetivo do artigo é investigar como a escuta do próprio corpo da protagonista Cleo é em si

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um processo de resistência à repressão e à homogeneização do regime socialista machista,


sem o devido pioneirismo feminino.
Sua relevância para os estudos literários se deve ao fato de não ter sido encontrado um
estudo crítico sobre a referida obra da autora. Embora ela tenha se apresentado à FLIP em
2010, não foi verificado também nenhum estudo brasileiro sobre Wendy Guerra. Em uma
entrevista a O GLOBO, admite: “Cuba ainda não foi totalmente descoberta pelo mundo.”
(2010). Por isso, estudá-la não apenas nos ajudará a entender a complexidade de Cuba, como
também da contemporaneidade ali existente, cheia de peculiaridades. Em Guerra, podemos
refletir justamente sobre a própria contemporaneidade, por meio de sua autoficção. A
motivação é, mormente, trazer a literatura como plataforma estética privilegiada de vivências
que apontem meios de resistir diante da complexidade de opressões da contemporaneidade,
mais especificamente, aquelas sofridas pelas mulheres.
O livro Domingo de Revolución (GUERRA, 2016) nos apresenta a vida da escritora
Cleo, alterego da autora, famosa por usar seus cabelos no estilo “Cleópatra”. A protagonista
enfrenta o luto da morte de seus pais –como Guerra– após um suspeito acidente de carro, no
qual, possivelmente, o governo cubano teria silenciado a voz desse casal de cientistas, depois
de irem contra as determinações burocráticas de utilizar da medicina para controlar a
população. Deprimida, ela passa dias trancada em casa, suas únicas visitas são oficiais do
governo, cujo controle é exercido de maneira tão forte que Cleo recebia em casa aquilo que
precisava. Sua necessidade era descoberta por espionagem. (GUERRA, 2016). A vigilância
começa a exercer uma força ainda maior quando ela ganha um concurso de poesia com uma
obra feita a partir da tristeza na qual vivia. O governo então deu o recado de que aquela vitória
era financiada pelo imperialismo (GUERRA, 2016).
A paranoia começa a tornar-se mais aguda, seja do governo castrista ou de exilados
em relação a ela; estes últimos pensavam que ela fosse infiltrada do governo, já que
permanecia lá, mesmo podendo sair. Acontece que ela perdeu sua família, seus amigos e
conhecidos estavam todos exilados. Sua relação com Cuba era seu consolo, sua maneira de
estar no mundo, de pertencer.
Cleo conhece um ator hollywodiano que objetivava fazer um filme sobre sua vida. Por
meio dele, descobre que o pai que a criou não era seu verdadeiro pai. Os dois começam a
fazer um levantamento de dados e testemunhos de pessoas para contar a história do pai
biológico de Cleo, que foi um espião. Após o filme ficar pronto, foi exibido em Cannes, sem

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que Cleo tivesse visto sua versão final. Ironicamente, muitas imagens do filme vieram de
câmeras de espionagem em sua própria casa. Ademais, no final, há uma angustiante frase de
que tudo o que ocorreu era apenas ficção.
Tal desfecho vertiginoso retira o chão de certezas e põe o cotidiano de Cuba como um
surrealismo contínuo. Sarcástica é, inclusive, a existência do filme como metonímia da
autoficção escrita por Guerra, tornando tal gênero exemplar para a reflexão da realidade ou
hiper-realidade (BAUDRILLARD,1981) cubana. No fim corrosivo do livro, Cleo é proibida
de aterrissar em seu país, o que a aniquila, pois “sin Cuba no existo” (GUERRA, 2016).
A realização da análise do corpus pretendido é efetuada a partir do embasamento de
alguns teóricos. Primeiramente, precisamos analisar o contexto histórico e político da
Revolução Cubana. Miskulin (2003) explicita todo o processo de euforia e posterior
fechamento do encarte Lunes de Revolución, produzido às segundas-feiras no jornal
Revolución. Segundo ela, Cuba passava por um momento muito rico cultural e politicamente.
O suplemento era o grande exemplo disso. Grandes artistas cubanos e estrangeiros – como
Picasso e Hemingway– participaram dele.
Para a historiadora, o discurso de Fidel Castro em 1959 não possuía uma ideologia
definida, mas a “defesa pela justiça social, com princípios democráticos e humanos”
(MISKULIN, 2003, p. 32). Com a reforma agrária em 1960 e as expropriações de empresas,
Cuba vai se afastando do capitalismo. Depois do episódio de invasão na Baía dos Porcos,
Cuba se vê fragilizada em plena Guerra Fria. Há, então, a intensificação da mudança para o
socialismo e o alinhamento à URSS, com sua maneira particular de entender tal regime. O
país que queria fugir do colonialismo espanhol e do imperialismo americano, terminava por
submeter-se à influência soviética. Doravante, a censura contra opositores começa a ser
praticada. É emblemático o discurso Palabras a los intelectuales (CASTRO, 1961), logo após
a referida invasão, à Playa Girón:

Esto significa que dentro de la Revolución, todo; contra la Revolución, nada. Contra
la Revolución nada, porque la Revolución tiene también sus derechos; y el primer derecho de
la Revolución es el derecho a existir. Y frente al derecho de la Revolución de ser y de existir,
nadie —por cuanto la Revolución comprende los intereses del pueblo, por cuanto la
Revolución significa los intereses de la nación entera—, nadie puede alegar con razón un
derecho contra ella. Creo que esto es bien claro.
¿Cuáles son los derechos de los escritores y de los artistas, revolucionarios o no
revolucionarios? Dentro de la Revolución, todo; contra la Revolución, ningún derecho
(APLAUSOS).
Y esto no sería ninguna ley de excepción para los artistas y para los escritores. Esto es
un principio general para todos los ciudadanos, es un principio fundamental de la

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Revolución. (…) ¿Quién pudiera poner en duda ese derecho de un pueblo que ha dicho "i
Patria o Muerte!", es decir, la Revolución o la muerte, la existencia de la Revolución o nada, de
una Revolución que ha dicho "¡Venceremos!"? (..) una revolución no es ni puede ser obra del
capricho o de la voluntad de ningún hombre, cuanto que una revolución solo puede ser obra de
la necesidad y de la voluntad de un pueblo. Y frente a los derechos de todo un pueblo, los
derechos de los enemigos de ese pueblo no cuentan.

Este fragmento é como uma foto de época do governo, mas que antecipa como será,
a datar de então, a problemática da censura e do exílio em Cuba. Desde o momento em que se
rejeita um espaço para a heterogeneidade de formas de pensar, porquanto, literalmente, ou há
pátria ou há morte, Cuba determina um estado de exceção (AGAMBEN, 2009), no qual as
pessoas podem, subitamente, entrar na categoria de homo sacer (AGAMBEN, 2010). Este
conceito, que o filósofo italiano resgatou do direito romano, serviu para que ele criasse toda
uma teoria política sobre a modernidade. De modo que a condição de matável estaria na base
da do surgimento dos nos estados modernos (LOWY apud AGAMBEN, 2010, p. 117).
O campo de concentração seria, portanto, o paradigma do estado moderno
(AGAMBEN, 2010, p. 116-176). O biopoder (AGAMBEN, 2010) possui um olhar
desumanizante, já que visa obter o controle da população por meio dos corpos, submetidos ao
conhecimento científico. O nazismo foi justamente a exacerbação da biopolítica, o qual
colocou suas vítimas em um estado de desaplicação das leis, brecha presente na história do
direito desde o homo sacer (AGAMBEN, 2010).
O poder soberano antes da modernidade era caracterizado por deixar viver e fazer
morrer (AGAMBEN, 2010), matando quem fosse contra o rei e apenas permitindo que o resto
das pessoas vivesse, sem haver uma infraestrutura de assistência à saúde. Depois, esta
composição foi substituída por: deixar morrer e fazer viver (AGAMBEN, 2010). Facilmente
entendemos essa lógica no neoliberalismo, dado que deixa morrer os pobres com seu estado
mínimo, mas possui um cuidado excessivo com aqueles que são mercado consumidor, como o
fato de mantê-los em um aparelho de maneira artificial ou fornecer os mais caros tratamentos
de estética e rejuvenescimento.
No entanto, estamos analisando um país socialista, em vista disso, é preciso investigar
outro funcionamento do biopoder (AGAMBEN, 2010). Uma hipótese nossa é que talvez, em
Cuba, opere outro par de expressões, não mencionado por Agamben. Considerando o slogan
“contra a revolução, nada” (CASTRO, 1961) citando anteriormente, o governo castrista
estabelece um fazer morrer do antigo estado soberano, devido à ditadura. Contudo, mantém

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325

um fazer viver com outra acepção, tendo em conta o investimento na saúde, educação, na
reforma agrária.
Voltando ao Lunes de Revolución, Guerra, no título, Domingo de Revolución
constitui uma intertextualidade (KRISTEVA, 2012) muito simbólica. O encarte foi produzido
na “segunda-feira” da revolução, no seu início, pleno de liberdade e vivacidade. Hoje, temos
notícia de vários fuzilamentos ao longo da história revolucionária (PÉREZ-STABLE, 2003).
Os artistas ainda sofrem repressão, Guerra, por exemplo, não pode publicar em seu próprio
país. Então o título do livro pode sugerir um processo de perda ou decadência dos ideais
revolucionários, com a estabilização do regime, compreendido em um eclipse, expresso na
seguinte citação do romance (GUERRA, 2106): “sobrellevando lo poco que nos queda de
aquella utopía nacida en los años sesenta”. Tal referência metafórica de um domingo ao longo
do fio de uma semana, evidenciando uma etapa concluinte, também pode relacionar-se à
transferência do poder para Raul Castro, em um movimento de transição. É oportuno
compreender domingo, ainda, como um prenúncio de um recomeço, como um voto de
esperança.
Em seguida, devemos traçar um mapa dos dispositivos de poder (FOUCAULT, 2012),
que configuram tecnologias do eu e práticas políticas (AGAMBEN apud FOUCAULT, 2010,
p.13). O primeiro gera processos de subjetivação, por exemplo, pelas mídias. Uma cena muito
interessante, alegórica quanto ao procedimento de formação do cubano, é a presente no filme
Cuerda al aire (2011). Ela mostra um menino cantando muito alto uma música, com tal
devoção que pensamos ser de amor. Cria-se no espectador a impressão de uma cena
comovente. Em sequência, descobrimos o que ele canta, e sabe de cor, com um zoom na tela
da televisão. É uma propaganda do governo, com a dramaticidade e politização da arte
(BENJAMIN, 1994, p.196) dos seus slogans.
Também no romance Nunca fui primera dama (2017) de Guerra se anuncia: “No
puedo seguir intentando ser como el Che, heredar la pureza de Camilo, poseer la valentía de
Maceo, el arrojo de Agramonte, el coraje de Mariana Grajales, el espíritu aún errante y
creativo de Martí, el estoico silencio de Celia Sánchez”. A protagonista Nadia Guerra não
admite mais o forjamento da sua subjetividade pelo regime castrista, presente desde a infância
nas canções de escola (GUERRA, 2017).
Além disso, os discursos de Fidel, como o anteriormente citado, são transcritos pelo
Departamento de Versiones Taquigraficas del Gobierno Revolucionario. Tal órgão nos

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326

mostra todo drama e performatividade – a força ilocucionária (MAINGUENEAU, 1996, p.7)


– dos discursos, como em Palabras a los intelectuales (CASTRO, 1961), cheio de risos e
aplausos apaixonados do público, mesmo quando o governante declara a censura.
Já as práticas políticas (AGAMBEN apud FOUCAULT, 2010, p. 13) seriam as
medidas efetivas de policiamento e de repressão. Cleo é espionada ao longo do tempo
narrativo, os oficiais instalam câmeras e escutas em sua casa, levam seu computador e seus
poemas. Não somente os funcionários do governo a vigiam, como a própria população
cubana, que introjeta este mesmo padrão de controle, o que pode ser verificado no seguinte
fragmento: “Sus amigos estaban descontentos y entonces empezaron a usar técnicas de
totalitarismo: sembrar la sospecha, dividir con pistas falsas, vencer con ayuda del rumor. (…)
Si releemos sus verdaderas biografías vemos los entrenados que estaban” (GUERRA, 2016).
Todavia, notamos em tal aliciamento para a praxe de controle uma articulação com a
modelagem do eu, a técnica antes especificada.
A vulnerabilidade do dissidente se insere na condição de homo sacer (AGAMBEN,
2010) e, juntamente, na de não-pessoa (ESPOSITO, 2017), pois deixa de ser útil ao sistema.
Em termos geopolíticos, o país Cuba pode ser reputado como vida nua (AGAMBEN, 2010)
similarmente, pois o bloqueio econômico prejudicou muito a economia da ilha e a qualidade
de vida do povo.
Precisamos fazer aqui um adendo. No que concerne ao estudo das ferramentas de
controle, apoiamo-nos em Foucault e Agamben. No obstante, uma melhor análise das
tecnologias do eu nos permitiu entender a necessidade de estudar também a espetacularização
(DEBORD, 2005) da vida e da política e a transformação da realidade nacional em um
simulacro (BAUDRILLARD, 1981), como pode ser exemplificado em Domingo de
Revolución (GUERRA, 2106): “Estaba perdiendo la perspectiva. Todo era irreal, malévolo.”
Essa disputa e fabricação do real pode ser depreendida pela ótica da partilha do sensível
(RANCIÈRE, 2000), como pode ser aclarada nesta passagem: “Essa estética (...) é um recorte
dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao
mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência”
(RANCIÈRE, 2000 ,p.16). O isolamento em sua geografia física, no Caribe, bem como na
relação entre os Estados, intensifica esse recorte apartado do tempo e do lugar em Cuba.

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327

O título do artigo alude ao labirinto ao qual está submetido o cubano e seu corpo. Em
uma referência ao mito do minotauro, as redes microfísicas de poder (FOUCAULT, 2015) e o
insulamento engendram uma espiral metafórica em seu corpo, como pode ser conferido em
muitas obras do artista Humberto Castro, ex-marido de Wendy Guerra, como estas a seguir:

Pintura 1-Laberinto en escaleras Pintura 2- In a inner tube Pintura 3- Traversée

Fonte: Fonte: Fonte:


http://www.virginiamiller. http://www.virginiamiller.com/artists/H http://www.virginiamiller.com/artists/H
umbertoCastro/reviews.htm (2000)
com/artists/HumbertoCast umbertoCastro/reviews.htm (1990)

Pintura 4-New cities Pintura 6- Escape


Pintura 5-La lección de Anatomía

Fonte:galeriearichi.com/arti
Fonte:humbertocastro.com/Exhi Fonte:virginiamiller.com/artists
stes_i=humberto_castro
bitions_2008_Solo_AllenShepp /HumbertoCastro/reviews.htm
ardGallery.html (2008)

Em Laberinto en Escaleras, o minotauro caminha pelo labirinto e ele mesmo sustenta


outro, uma espiral. Em Traversée, há também uma espiral, dessa vez acoplada às costas, como
uma herança do nascimento e da vivência em Cuba. Já em In a inner tube, percebemos o
caráter isolacionista desse país, assim como em Escape e New cities. Estas exibem a

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328

problemática do exílio: em uma, as asas simbolizam o desejo de sair do casulo, na outra, o


labirinto ganha a forma de uma serpente formada por malas. Essa temática está presente em
todo Domingo de Revolución (GUERRA, 2016), como no fragmento: “Únicamente que me
case con un de los oficiales de guayabera, aquí ya no me queda nadie”. A pressão para a saída
do país é uma forma de biopoder, pelo controle de quem pode ou não ficar lá.
Lección de anatomia é uma explanação sobre o biopoder (AGAMBEN, 2010) em
Cuba. Internamente ao corpo -em posição de passividade- está o mapa cubano. Dele saem
escutas e espirais voltadas para si, verdadeiros símbolos dos processos de subjetivação
(FOUCAULT, 2016). Sai também uma espécie de coroa, exprimindo um pertencimento
daquele corpo. Este e o cenário são vermelhos, cor emblemática da revolução. A única forma
de não ter uma correspondência unívoca com o governo é criar uma máscara (ou
procedimento de dessubjetivação). Para Guerra, tal máscara é a própria autoficção, única
possibilidade de sobrevivência na ilha. O corpo recebe todos os dispositivos de poder
(FOUCAULT, 2012) da nação cubana. Esse conceito não é uma definição ontológica, mas
uma investigação dos modos de funcionamento. A partir da compreensão dessa maneira de
operagem, é possível produzir plataformas concretas de resistência.
Segundo Foucault (1984, p.13), “O ser constitui historicamente como experiência, isto
é, como podendo e devendo ser pensado“. Por isso, devemos pensar quais são os jogos de
verdades (FOUCAULT, 2016, p. 181) que perpassam o sujeito enquanto escritora, mulher e
cubana. Tal raciocínio é importante, pois, para Foucault (2013), o poder é, sobretudo,
produtivo. A repressão é apenas a ponta do iceberg, são seus limites. O fragmento a seguir é
uma confirmação do discernimento foucaltiano, mas pelo ponto de vista de Guerra (2016):
“Em realidad el verdadero micrófono, tras años de hablar bajo y de renunciar a decir lo que
piensas, el verdadero artefacto ,ya vive dentro de ti”. Logo, no livro dela, acompanhamos todo
um processo de assujeitamento, ainda que na estruturação de subjetividade. Por outro lado, há
na obra dela uma construção de estratégias de antagonismo, como no fragmento a seguir, no
qual a protagonista identifica o biopoder (AGAMBEN, 2010) e se recusa a ir ao médico:

No, no voy al médico en Cuba porque desde niña intuí que en el laboratorio de mi
padre inyectaban veneno a personas sospechosas o incómodas al sistema, también
pienso que a ellos les quitaron los frenos para que se desaparecieran en el aire,
llevando consigo esos secretos de envenenamiento farmacológico que habían
amenazado con hacer públicos si los seguían presionando.

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329

Sabemos que a figura mítica de Minos pode ser uma alegoria (VILAS-BOAS, 2003)
para o lado não racional do homem, que a civilização ocidental reprimiu. É necessário
recuperá-lo para inseri-lo novamente na esfera humana, aliás, verdadeiro escopo deste
trabalho: a reconexão com o corpo, consoante a este excerto de Domingo de Revolución:
“cuando se trata de mover el cuerpo , de tocarse o tocar, atrás quedan todas las sospechas , y
es que el único espacio de libertad que hemos tenido los cubanos em estos años es ése, el
cuerpo.” (GUERRA, 2016).
Nessa citação, identifica-se, talvez como um caráter identitário, a maneira
presumivelmente livre do povo cubano na relação com o corpo, se comparada a outros redutos
da vida, ainda cerceados. É o que Guerra (2011) demonstra em uma palestra, Promiscuidad:
memoria coletiva, na qual desenvolve tal perspectiva. Sendo o corpo ali também comunitário,
Cuba não possui um olhar essencialmente acusatório para a poligamia. Segundo Guerra
(2011), a única maneira de conquistar uma individuação em Cuba é pelo desenvolvimento da
sexualidade. Guerra inclusive (2011) diz que o momento no qual sentiu pulsar sua
individualidade foi quando posou nua, quando houve um foco único em seu corpo.
Para Cleo, “mi espacio personal se volvió un espacio público” (GUERRA, 2016). Em
meio à perda de um espaço seu, por causa da vigilância, é fundamental o cultivo da Epimeleia
heautou (cuidado de si) (FOUCAULT, 2016). Conforme tal prática da Antiguidade, é
necessário voltar-se para si mesmo e aprimorar-se. Fazia parte dela também o conhecimento
de si (FOUCAULT, 2016), famoso pela máxima délfica. No período platônico, há uma
valorização do conhecimento de si como forma de acesso à verdade (FOUCAULT, 2010, p.
71), cujo reflexo se daria no pensamento ocidental de busca de um racionalismo. Foucault
atribui o momento cartesiano (2010, p.21) como aquele no qual há uma tentativa de apagar o
sujeito, interpretado como um empecilho à verdade.
Segundo Foucault, o cuidado de si como parte da procura pela verdade permaneceu,
ao longo da história, como uma estrutura de espiritualidade (FOUCAULT, 2010, p. 72),
presente inclusive em alguns filósofos do século XIX. Neste arcabouço, há um ser que se
modifica a cada aprendizado. Portanto, podemos ponderar uma relação prolífica entre
epimeleia heautou e a autoficção. Enquanto se escreve, se transforma. Não é uma obrigação
de autoconhecimento (BUTLER, 2015), é uma construção contínua (KLINGER, 2016). Como
exemplo de autocuidado proveniente do diário ficcional, observamos as seguintes frases:
“Todo va a salir bien, me digo. Soy mi propia enfermera, mi psicóloga, mi curandera. Suelo

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330

calmarme, suelo agitarme, debo cuidarme sola.” (GUERRA, 2016). O relato serve também
como denúncia, como crítica, tal qual a feita ao machismo e à uniformização em:

Ese desprecio, esa glorificada y perenne postura verde olivo colectiva patenta lo
“macho” y lo uniforme , personifica el “to’s tenemos” que nos diluye en la masa
fortaleciendo nuestro ideal de vida guerrillera aplastando así cualquier atisbo de
individualidad, delicadeza, toque personal o guiño de independencia visual.

Na passagem do romance estudado de Guerra (2016) “Todo ese tiempo viví


entretenida en la otra política, la política del cuerpo, enfrascada en el arte de ofrendarlo como
único espacio de libertad”, temos a ideia de oferenda do corpo como forma de libertação.
Além do corpo da própria autora, a autoficção é um instrumento de performance de si
(KLINGER, 2012), bem como do próprio gênero feminino exposto (BUTLER, 2016, p.9). De
acordo com Foucault (1984, p. 318), “é a mulher e a relação com a mulher que irão marcar os
tempos fortes da reflexão moral sobre os prazeres sexuais.”. Posto isso, salientamos a
necessidade de refletir sobre o gênero feminino, já que este é carregado de instrumentos de
controle. A discussão fortalece a luta contra o machismo.
Podemos aplicar a definição de khrêsis (FOUCAULT, 2010, p. 51) para pensar o uso
dos corpos pela performance. Em Alcebíades (FOUCAULT, 2010, p. 51), o si do cuidado de
si é explicado por Sócrates como aquilo que se utiliza da linguagem e do corpo. A khrêsis é
apontada pelo filósofo a Alcebíades para que entendesse que existe um sujeito. (FOUCAULT,
2010, p. 51). Não haveria uma dualidade “alma-substância”, mas uma composição “alma-
sujeito” por meio da palavra khrêsis, não definidora de um uso, mas de um comportamento,
no caso, vinculado ao servir-se de si, à ação de um sujeito. A khrêsis pode ser empregada a
um uso de si na autoficção, ocupando-se, servindo-se da própria vida. É uma forma, também,
de utilização de si, dentro dessa hipótese nossa, uma resistência pelo testemunho. Esta assume
um risco, como pode ser evidenciado na pergunta inicial de Domingo de Revolución
(GUERRA, 2016), Cleo ressalta que “sujará” o livro com aquilo que não poderia ser
mencionado: “¿Cómo contar esto todo sin ensuciar mis páginas?”.
A disposição do próprio corpo como um artifício de superação pode ser identificada,
ademais, em várias cenas, como estas que vamos mencionar (GUERRA, 2016). Em uma, em
meio à espionagem, há um apagão. Cleo decidiu masturbar-se, pois as câmaras e escutas não
estariam funcionando com a queda da energia. É um dos episódios de evidente libertação.
Cleo, além disso, tem uma relação especial com o mar de Havana. Mergulhar e boiar lá são

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331

um cuidado de si (GUERRA, 2016), é refazer-se, é integrar-se à terra cubana. Por último,


assinalamos um momento particular no qual Cleo sente que algo diferente estava ocorrendo.
A maneira de conectar-se com seu corpo é, na maioria das vezes, unir-se à Cuba, uma
vinculação telúrica. Assim, aguçar a percepção e abrir os sentidos a permitirão, depois,
descobrir um momento histórico. As pessoas na rua ouviam o discurso de Obama, em
espanhol, sobre os problemas do bloqueio econômico. Situamos, então, a ativação do corpo
de Cleo para o que sucede ao seu redor:

La Habana Vieja, bañándonos de una realidad que ahora nos poseía de pies a cabeza.
Tambores, llantos infantiles, carcajadas, el coro de la escuela, malas y buenas
palabras, carros que intentan arrancar, motos que se pierden distancia, reggaetón,
noticias a todo dar, un teléfono que suena (...) huele a gas urbano, a frito y petróleo,
creolina para baldear, perfume de puta enmarañado con pastelitos de guayaba (...)

Em meio ao interdito (BATAILLE, 2017), ao desconforto diante da rigidez do regime


castrista, ao biopoder (AGAMBEN, 2010) - que converte os indivíduos em estatística - uma
possibilidade interessante de resistência é a tessitura de um erotismo (BATAILLE, 2017).
Este seria justamente a superação da mera sexualidade da biopolítica. O espírito da Revolução
Cubana (MISKULIN, 2003) demandou do coletivo todo o esforço, controle e economia
entendidos como necessários para construir uma nação socialista tão próxima dos EUA. No
entanto, o erótico não é veiculado pela contenção, mas pelo desperdício (BATAILLE, 2017),
pelo excesso. Segundo Bataille (2017), a relação entre seres navega na descontinuidade da
vida. O impulso erótico quer construir uma continuidade, logo tenta uma fusão impossível
com o outro. Essa aproximação do autoaniquilamento mostra como o erotismo afirma a vida a
partir da morte.
Este trabalho pretende, dessa forma, assimilar também a contribuição de Bataille, para
compreender uma política dos corpos na obra de Guerra, explicitando o papel do erotismo na
relação Cleo com Cuba, já que busca fusionar-se com sua nação, como explicitado na última
página do romance: Cuba soy yo (GUERRA, 2016). Ela procura religar-se ao seu país, mas as
dificuldades ali existentes a arrebatam. Para Bataille (2017), o erotismo é uma experiência
potente de vida, paixão e contemplação poética. Associado à arte, constrói-se uma ferramenta
que plasma novos espaços internos e externos de liberdade. Tais âmbitos serão desenvolvidos
em um trabalho futuro, incrementados às contribuições de Agamben e Foucault, antes
referenciadas. Busca-se, portanto, ampliar a perspectiva do corpo como resistência.

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332

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CORPO DE MULHER NEGRA: INFÂNCIA E MATERNIDADE ROUBADAS, EM


CONCEIÇÃO EVARISTO E CRISTIANE SOBRAL124

Ma. Mirian Cristina dos Santos (UFJF/CAPES)


E-mail: cristinamirian@yahoo.com.br

Em suas obras, Cristiane Sobral pontua aspectos relevantes acerca da “vivência” da


população negra no país. A carioca também tem sido bastante lembrada devido ao conteúdo
“libertário” de suas publicações. Em seus livros de poemas, e também na sua produção
contística, Sobral tem trazido para a discussão um assunto bastante caro à mulher negra:
autoviolência física e mental devido à filiação a padrões estéticos eurocêntricos para uma
aceitação nos meios sociais.
Já a escritora Conceição Evaristo busca na memória o alicerce para suas obras. Em
entrevistas, palestras, assim como em sua produção literária, a escritora apresenta uma visão
crítica da contemporaneidade, principalmente no que tange à condição e representações da
população negra. Em um dos seus artigos, por exemplo, ao fazer a releitura de algumas obras
canônicas da literatura brasileira, Evaristo reconhece que em hipótese nenhuma o negro é
associado à gênese brasileira, constituindo-se apenas como “um corpo escravo” (EVARISTO,
2009, p. 21-22). A escritora ainda aponta a referência constante dos negros enquanto
analfabetos e destituídos de linguagem, em muitas das obras, como fator complicador para o
não reconhecimento do texto literário escrito por negros.
Dessa forma, observa-se que, em seus livros, Conceição Evaristo e Cristiane Sobral
abordam as principais demandas da mulher negra na contemporaneidade, dão visibilidade às
culturas africanas e afro-brasileiras, denunciam a condição marginalizada e subalternizada do
negro e fazem da literatura negro-brasileira escrita por mulheres local de força, resistência,
afirmação e denúncia. Sendo assim, este trabalho tem como objetivo analisar a representação
da maternidade e da infância nos contos negro-brasileiros “Maria” (2014) e “Bife com batata
frita” (2016), das escritoras supracitadas.
Sobre a atmosfera de violência que perpassa os textos, de acordo com as pesquisadoras
Edinilsa Ramos de Souza e Maria Helena Prado de Mello Jorge, “considera-se como violência

124
Este artigo representa um recorte de uma discussão mais ampla que será apresentada quando da defesa da tese
Intelectuais negras: prosa negro-brasileira contemporânea, que se encontra em andamento, orientada pela Profª.
Dra. Márcia de Almeida, no Programa de Pós-graduação em Letras-Estudos Literários da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF).

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336

social todas as formas de relações, de ações ou omissões realizadas por indivíduos, grupos,
classes, nações que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e espirituais a si próprio ou
aos outros” (SOUZA; MELLO JORGE, 2016, p. 24). Mediante tal reflexão, a aproximação
entre os dois contos é possível a partir de nuances de violência social, uma vez que o espaço
público e, igualmente, o espaço privado tornam-se ambientes hostis para as mulheres negras
dos contos. No texto de Evaristo, Maria, mãe e empregada doméstica, é linchada no ônibus a
caminho de casa; enquanto em Sobral, a infância da menina Ióli é roubada mediante a morte
da mãe.
Outro aspecto a ser observado relaciona-se à formação da prole negra. Em “Mulheres
Marcadas: literatura, gênero, etnicidade” (2010), o professor e pesquisador Eduardo de Assis
Duarte observa a esterilidade de personagens negras na literatura brasileira canônica:

De Gregório de Matos Guerra a Jorge Amado e Guimarães Rosa, a personagem


feminina oriunda da diáspora africana no Brasil tem lugar garantido, em especial, no
que toca à representação estereotipada que une sensualidade e desrepressão. “Branca
para casar, preta para trabalhar e a mulata para fornicar”: assim a doxa patriarcal
herdade dos tempos coloniais inscreve a figura da mulher presente no imaginário
masculino brasileiro e a repassa à ficção e à poesia de inúmeros autores (DUARTE,
E., 2010, p. 24).

Ao questionar tal realidade, Duarte ressalta que a esterilidade afrodescendente


perpassa questões de discriminação e necessidade de “apagamento da contribuição africana
presente em nossa história e cultura” (op. cit., p. 31). No entanto, diferentemente de outras
obras, fazendo o movimento contrário, o corpo estéril na obra de Conceição Evaristo e
Cristiane Sobral já não é uma realidade. Muito pelo contrário, as mulheres engravidam, têm
filhos e assumem as consequências desse ato.

Maternidade roubada, em Conceição Evaristo

Diferentemente da literatura oficial (Cf. DALCASTAGNÈ, 2012), percebe-se que no


conto há uma proposta de redirecionamento da discussão, de forma a figurar a mulher negra
fora de estereótipos negativos, mas a partir de nuances “de luta e resistência, e de sua
afirmação enquanto sujeitos” (DUARTE, E., 2010, p. 34). No conto de Evaristo, Maria, mãe
de três filhos, empregada doméstica, volta para a casa depois de mais um dia de serviço:
“Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
337

estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz.
Daria para comprar também uma lada de Toddy” (EVARISTO, 2014, 39-40).
Contudo, trazer para o texto literário a representação da mulher negra requer revisitar
de forma crítica histórias das diferenças e das desigualdades, tão comum na realidade
brasileira, a exemplo da personagem Maria e seus filhos.

No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa
os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas
e uma gorjeta. O osso, a patroa ia jogar fora. [...] As frutas estavam ótimas e havia
melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos iriam gostar de
melão? (EVARISTO, 2014, 39-40).

Toda a narrativa se passa dentro do ônibus, que surge, com poucos passageiros,
enquanto possibilidade de descanso. No entanto, a recorrência da expressão “faca a laser corta
até a vida” (EVARISTO, 2014, p.40) prenuncia a violência. Os filhos, apesar de estarem em
casa, ocupam a memória da mulher, que já direciona o uso da gorjeta e dos restos dos
alimentos ganhados da patroa em prol da subsistência dos mesmos. Conforme excerto, o ato
de levar para casa os “restos” aponta uma realidade cruel, que seleciona, inclusive, o alimento
que é possível colocar à mesa. Uma realidade social desigual que separa aqueles que têm e
desperdiçam daqueles que não têm. A desigualdade é ainda enfatizada na repetição da palavra
melão, uma vez que os filhos de Maria nunca tinham comido essa fruta, que iria para o lixo.
No entanto, essa narrativa de Evaristo não traz a representação de Maria somente
enquanto mãe e empregada doméstica. Dentro do ônibus, a mulher encontra com o pai do seu
primeiro filho: “O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem
deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que
todos diziam gêmeos, e da alegria dele” (EVARISTO, 2014, p. 40). A partir da fala do
mesmo, por meio de um fluxo de consciência, Maria devaneia, e tem-se a representação da
mulher em outra face, mulher-mulher: “Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém
também. Ficava, apenas de vez em quando, com um ou outro homem. Era tão difícil ficar
sozinha! E dessas deitadas repentinas, loucas, surgiram os dois filhos menores” (EVARISTO,
2014, p. 40).
No entanto, aquele homem que acabara de falar “de dor, de prazer, de alegria, de filho,
de vida, de morte, de despedida. Do buraco-saudade no peito dele” (EVARISTO, 2014, p. 41)
saca a arma e junto com o seu parceiro anuncia um assalto. E dessa vez é a mulher-mãe que
teme a vida: “O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
338

seus filhos?” (EVARISTO, 2014, p. 41). Questionamento esse que fica com o leitor no final
do texto: “a violência explode na sequência de gestos, atos e palavras, e se paralisa na imagem
da mulher linchada sem direito à defesa” (DUARTE, C., 2010, p. 231). Maria foi poupada do
assalto, “mas também por isso tornou-se o alvo da vingança dos demais passageiros” (op.
cit.). E a “faca a laser que corta até a vida” metaforiza os gestos violentos dos passageiros que
interrompem uma corrente de afetividade: “Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha
saudades de seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem havia
segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para
transmitir o recado” (EVARISTO, 2014, p. 42).
Fernanda Figueiredo (2009), ao analisar contos dos Cadernos Negros, observa como a
violência, em suas diferentes nuances, se faz recorrente nas narrativas negro-brasileiras, fato
também observado em Conceição Evaristo. De acordo com a pesquisadora, “as cenas,
personagens e enredos carregam a dor e a amargura entrelaçadas às malhas do texto, num
movimento constante, revelando as marcas que o preconceito deixa na história individual”
(FIGUEIREDO, 2009, p. 44). Tais fatos, bastante pertinentes, revelam, através do texto
literário, a realidade vivida por milhares de brasileiros, que carregam a mancha de séculos de
escravidão.
Nesse sentido, a violência em “Maria” é entendida, não apenas como a agressão física
culminada no linchamento da mulher, mas também como aquela perpetrada contra aqueles
que pouco tem. No conto, o espaço ocupado pela “mulher-negra-mãe-solo” diz muito sobre
isso.

Para essas pessoas, ocupar um espaço é sinônimo de se contentar com os restos – as


favelas, a periferia, os bairros decadentes, os prédios em ruínas. Mesmo o trânsito
por determinados lugares e ruas lhes é vetado, como se houvessem placas, visíveis
apenas para elas, dizendo ‘não entre’ (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 120, grifo da
autora).

Aqui, a violência social se faz presente e o espaço público e privado são igualmente
hostis para a mulher negra: na falta de segurança, na impossibilidade de locomoção, nas
migalhas que são colocadas na mesa e na violação ao direito da maternidade: “Quando o
ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher estava todo dilacerado, todo
pisoteado” (EVARISTO, 2014, p. 42).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
339

Maternidade e Infância roubadas, em Cristiane Sobral

Já em “Bife com batata-frita”, da escritora Cristiane Sobral, tem-se um barraco


permeado pela falta, onde uma espécie de “violência social”, sustentada pela ausência de
assistência de órgãos governamentais, faz-se candente:

A menina rechonchuda, pela péssima dieta repleta de pães, macarrão e arroz, mas
desnutrida, pois raramente digere frutas e legumes, artigos de luxo em famílias
pobres alimentadas com cestas de caridade e leite de programas de alimentação do
governo, usa roupas doadas por estranhos, provenientes de vários templos da fé onde
na maioria das vezes é possível encontrar um enorme contingente de pobres de
espírito, com armários abarrotados de peças de roupa de grife. Ióli vive em um
bairro ocupado por moradores de baixíssima renda, com inúmeras igrejas de
diferentes denominações, e nenhuma agência bancária (SOBRAL, 2016, p. 17).

Nota-se que apesar de ganhar doações de outras pessoas, a família da menina não
parece receber uma ajuda efetiva do Estado, situação que fica também nítida quando se depara
com a descrição da casa de Ióli: “dois quartos e um enorme quintal de terra batida, paga em
parcelas durante trinta anos” (SOBRAL, 2016, p. 18), através do trabalho da mãe, “que
sempre se desdobrou atuando como empregada doméstica em duas residências” (op. cit.).
Ademais, o conto desenvolve-se a partir de uma atmosfera de angústia e medo que circula em
torno do sumiço da mãe “inesperadamente desaparecida após uma ida ao hospital” (op. cit.), o
que também sinaliza uma atmosfera de negligência estatal.
A figura da mãe no conto é crucial nesta narrativa negro-brasileira, diferentemente do
que acontece em grande parte da literatura canônica, em que impera “a ausência de
representação da mulher negra como mãe, matriz de uma família negra” (EVARISTO, 2005,
p. 53). Aqui, a mãe trabalha e cuida dos filhos:

Naqueles dias, ninguém almoçou, ninguém jantou, nem tomou banho. Era assim
quando a mãe não estava por perto. Todo mundo ficava meio perdido, meio filho
desmamado, meio cachorro criado em casa, sem rumo nas ruas. Ióli vestia o mesmo
short rosa e a camiseta de alcinhas listradas havia vários dias, e infelizmente aquela
roupa era inadequada, justamente num dia em que fazia muito frio naquela cidade
onde quase todos os dias eram de verão (SOBRAL, 2016, p. 19).

Nota-se que apesar de ausente, na narrativa perpassa um modelo de mãe protetora, que
se sacrifica em prol dos filhos: “Lembrou-se de uma de suas festas de aniversário de não sabe
que ano. Naquela ocasião, sua mãe confeitou o bolo reaproveitando um saco de leite de vaca.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
340

Lembrou-se dos vestidos bonitos costurados pela mãe” (SOBRAL, 2016, p. 20). Além disso,
Ióli ainda usa botas ortopédicas, compradas com o dinheiro do trabalho da mãe.
Seguindo essa perspectiva de mãe cuidadora da casa e dos filhos, no conto é possível
observar que a protagonista Ióli, ainda criança, já começa a seguir os passos da matriarca.
Sobre isso, no início do conto, o narrador já anuncia um futuro pouco promissor para a
menina: “brinca com um travesseiro que é sua boneca preferida, na sua interminável tentativa
de criança que deseja ocupar o papel de mãe pelo puro exercício de organizar seu mundo”
(SOBRAL, 2016, p. 17). Por fim, com a morte da mãe, a menina de sete anos e oito meses,
que há pouco não tomava banho sozinha, nem escolhia suas roupas, despede-se da infância.
Acerca dessa catequização de Ióli, a contribuição dos estudos de Beauvoir (1990) é de
suma importância: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”
(BEAUVOIR, 1990, p. 09). A constatação da formação da mulher a partir da construção
cultural e não de dados biológicos fomenta reflexões, uma vez que as responsabilidades da
casa são aproximadas das personagens femininas. Constata-se que na ausência da mãe, a casa
não funcionou, conforme apontado no excerto anterior.
Após a notícia trágica, a menina “decidiu pela primeira vez tomar banho, sem mãe,
sozinha. Abriu o chuveiro e deixou a água cair na sua cabeça cheia de pensamentos nublados,
eu já sei tomar banho sozinha, mamãe ensinou” (SOBRAL, 2016, p. 20, grifo da autora).
Dessa forma, além de cuidar de si, a menina reafirma o “mito de feminilidade” (Cf.
BEAUVOIR, 1990), permeado pelas funções de zelar e amparar os outros membros da
família: “Ficou a pensar na volta para a casa, nos seus três irmãos, na necessidade de
organizar as coisas, porque na sua casa havia muito tempo ninguém almoçava, ninguém
jantava nem tomava banho” (SOBRAL, 2016, p. 22).
No conto, observa-se que a violência social do espaço público reflete diretamente no
espaço privado, onde a falta de perspectiva futura de Ióli apenas reflete a continuidade da
“função” da mãe. Nesse processo, até mesmo seus sentimentos são controlados pelo irmão.
Note:

Onde estaria a sua mãe? No seu momento mais dramático, Ióli apertou a bonequinha
improvisada e abraçou o seu corpo macio procurando sentir o cheiro da mãe. Fez
isso enquanto empurrava discretamente uma lágrima de saudade para o cantinho do
olho, porque seu irmão mais velho estava por perto e não lhe havia concedido
autorização para chorar (SOBRAL, 2016, p. 19).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
341

A submissão da menina é mais um aspecto pontuado pela história de desigualdade,


visto que o irmão mais velho aparece duas vezes no texto exercendo controle. Dessa forma,
um modelo patriarcal, onde o homem manda e a mulher obedece, rege uma hierarquia de
gênero que sustenta a relação de poder. Nessa perspectiva, o medo e a insegurança são
elementos essenciais para a manutenção e controle, e o consentimento à violência por parte da
sociedade ratifica a pedagogia da violência (SAFFIOTI, 2015). Afinal, “Ióli era uma menina
obediente” (SOBRAL, 2016, p. 19).
Outro aspecto a ser observado, relaciona-se a descrição das personagens centrais.
Conforme afirmado anteriormente, os textos de Cristiane Sobral são atravessados pela questão
da estética negra, e em “Bife com batata-frita” essa perspectiva também se faz presente. Ao
longo do texto, o narrador denuncia a situação de subsistência daquela família negra. Os
termos cabelo crespo, cor de azeviche, cor de chocolate ao leite e boneca negra atravessam o
texto na descrição de Ióli, ao mesmo tempo em que os traços do irmão mais velho como de
um rapaz de “cabelo grande e crespo despenteado e suas pernas pretas magras foscas”
(SOBRAL, 2016, p. 19) não aparecem de forma gratuita, uma vez que o combate ao racismo é
um aspecto candente em Sobral. Dessa forma, violência social, desigualdade e preconceito
caminham juntos, e a protagonista de sete anos e oito meses, que acabara de perder a mãe, é
vítima do racismo:

Mesmo em um dia trágico como aquele a garota pegou um pedaço de Bombril e


ficou a comparar com o cabelo de Ióli que pensava em reagir, em vão. Sua infância
acabara de ser sequestrada com a morte da mãe. Nenhuma das maldades da neta
estagiária do empreendimento de atrocidades da avó poderiam furar a espessa
redoma de dor e dúvidas daquela garotinha (SOBRAL, 2016, p. 21).

Nesse sentido, a despedida da infância e o racismo sofrido pela menina dialogam


diretamente com o título “Bife com batata-frita”, uma vez que a desigualdade é um aspecto
marcante no texto, e o corpo faz parte desse processo: “o corpo é um símbolo explorado nas
relações de poder e de dominação para classificar e hierarquizar grupos diferentes” (GOMES,
2008, p. 230). Dessa forma, é possível compreender que a vizinha Verônica demarca um
espaço hierárquico ao humilhar Ióli.
Ao aproximar essa narrativa de um realismo social, pode-se perceber uma crítica à
cruel realidade de muitas famílias negras. Nesse processo, a figura da “mãe-solo”, esteio da
família, sempre ausente de casa, trabalhando como doméstica para sustentar seus filhos é
recorrente nas histórias de desigualdades. Sendo assim, os espaços ocupados pelas mulheres
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
342

negras aparecem enquanto lugares de marginalização. Aqui, a família negra surge ocupando
um bairro do subúrbio e sobrevivendo a partir de doações de terceiros, embora a mãe
trabalhasse em duas residências para sustentar a casa, o que sinaliza a baixa remuneração
recebida.
De fato, “as cidades, então, muito mais que espaços de aglutinação, são territórios de
segregação” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 120) e a desigualdade social aparece enquanto
denúncia no texto de Sobral também em forma de ironia: “a quermesse bem-intencionada
preocupada em oferecer algum conforto aos pobres” (SOBRAL, 2016, p. 17) ou os “pobres de
espírito com armários abarrotados de peças de roupa de grife” (op. cit.).
Por fim, percebe-se que Cristiane Sobral através da literatura negro-brasileira
empreende uma crítica à desigualdade social. Desigualdade essa que começa em princípios
básicos: alimentação e moradia. Assim, o título do texto “Bife com batata-frita” já sinaliza um
imaginário de alimentação infantil, que dialoga diretamente com a dúvida de Ióli se
conseguiria sobreviver sem a proteção da mãe e com o questionamento final do conto: “Como
seria a vida das crianças que têm mãe e pai e comem bife com batata frita?” (SOBRAL, 2016,
p. 22).

Considerações Finais

De acordo com Florentina da Silva Souza, os intelectuais afro-brasileiros desejam


“investir contra um dos principais móveis ideológicos do pensamento ocidental: a
discriminação e a exclusão” (SOUZA, 2010, p. 184). Tal questionamento necessário e
legítimo dos intelectuais negros, de forma geral, certamente leva a discussão para questões
mais amplas, uma vez que o espaço restrito ocupado e reservado ao negro na sociedade
brasileira fica em evidência. Assim, em torno dessa questão, temas como alfabetização,
emprego, moradia, representação e autorrepresentação afloram na literatura negro-brasileira.
Em Conceição Evaristo e Cristiane Sobral, essas temáticas também se fazem
presentes. Nos textos analisados, tem-se a representação da mulher negra enquanto “mãe
solo” e empregada doméstica, o que é sintomático na literatura negro-feminina brasileira. No
entanto, no conto “Maria, o texto é narrado a partir da perspectiva da mãe, que é linchada
dentro do ônibus a caminho de casa.” O texto também é marcado por um discurso sobre a
diferença, uma vez que a empregada doméstica leva os restos de alimentos da patroa para
serem aproveitados em casa, o que surge enquanto expressão de contradição de nossa

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
343

sociedade: enquanto uns desperdiçam, outros passam fome. Nesse contexto, é possível
também visualizar uma crítica aos espaços ocupados pela mulher negra, onde o direito à
moradia, ao transporte, à alimentação e à locomoção é negado a uma parcela da população.
Já em Cristiane Sobral, a violência também se faz presente. Em “Bife com batata-
frita” tem-se a representação de uma família negra vivendo à margem da sociedade, a partir
de doações de terceiros e do trabalho da mãe. No conto, a desigualdade social é tema candente
e viola o direito à maternidade e à infância. Nesse processo, mãe e filha são vítimas de uma
mesma violência social que interrompe vidas, roubando futuro e a oportunidade de viver com
dignidade. Aqui, a miséria humana também se atualiza no formato do preconceito racial,
social e da desigualdade de gênero, de forma que, um desejo aparentemente tão pequeno, de
ter pai e mãe e um “bife com batata-frita” sinaliza o tamanho do caos.
Dessa forma, observa-se que Conceição Evaristo e Cristiane Sobral trazem para a
literatura uma crítica a situação de subsistência da mulher negra na sociedade brasileira.
“Escrever para essas mulheres é ‘ultrapassar’ uma percepção única da vida, é construir
mundos e neles apreender, discutir, apontar” (FIGUEIREDO, 2009, p. 105). Em uma
aproximação possível entre os dois contos, tem-se mãe e filha tendo seus direitos violados.
Enfim, a semelhança com um realismo social é clara. Logo, a partir da atmosfera de
desigualdade, reproduzida pelas escritoras, percebe-se que comer “bife com batata-frita”,
juntamente com pai, mãe e irmãos, ainda será por muito tempo uma utopia para milhares de
“Iólis” espalhadas pelo país.

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado.


Vinhedo: Editora Belo Horizonte, 2012.

DUARTE, Constância Lima. Gênero e Violência na literatura afro-brasileira. In: DUARTE,


Constância Lima; DUARTE, Eduardo de Assis; ALEXANDRE, Marcos Antônio (Orgs.).
Falas do Outro: Literatura, gênero, etnicidade. Belo Horizonte: Nadyala; NEIA, 2010, p. 226-
233.

DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres Marcadas: literatura, gênero, etnicidade. In:


DUARTE, Constância Lima; DUARTE, Eduardo de Assis; ALEXANDRE, Marcos Antônio

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(Orgs.). Falas do Outro: Literatura, gênero, etnicidade. Belo Horizonte: Nadyala; NEIA,
2010, p. 24-37.
EVARISTO, Conceição. Da representação a autorepresentação da mulher negra da mulher
negra na literatura brasileira. Revista Palmares: Cultura Afro-brasileira, n. 1, ago. 2005.

______. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. In: Scripta, n.25: p.63-78,
Belo Horizonte, 2009.

______. Maria. In: ______. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014, p.39- 42.

FIGUEIREDO, Fernanda Rodrigues de. A mulher negra nos Cadernos Negros: autoria e
representações. Dissertação de Metrado ao Programa de Pós-Graduação em letras. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2009.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Expressão Popular:


Fundação Perseu Abramo, 2015.

SOBRAL, Cristiane. Bife com batata-frita. In: ______. O tapete voador. Rio de Janeiro:
Malê, 2016.

SOUZA, E. R.; MELLO JORGE, M. H.; LIMA, C. A. Impacto da violência na infância e


adolescência brasileiras: magnitude da morbimortalidade, biblioteca digital,
http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books-MS/06_0315_M.pdf , acesso em
05 de março de 2016.

SOUZA, Florentina. Autorrepresentação e intervenção cultural em textualidades afro-


brasileiras. Revista da ABPN, n. 2: p. 183-194, Bahia, julho-outubro de 2010.

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(AC)CURSED AFFECTIONS: LESBIAN EXISTENCE IN NICOLE DENNIS-BENN’S


HERE COMES THE SUN

Natália Affonso de Oliveira Assumpção (UERJ)


E-mail: profnataliaaffonso@gmail.com

i am not yours

i did not make the long hard journey through

and across the spirit world

to

be a man’s ocean.

my body is not yours.

my water is not yours.

nothing i am belongs to you.

nayyirah waheed125

Nicole Dennis-Benn’s debut novel Here Comes The Sun (2016) was chosen as
“Notable Book of the Year” by The New York Times126. The Jamaican-born writer revealed in
an interview to the New York Times in July, 2016 that she had moved to the United States at
seventeen to pursue an academic career, but first and foremost because of “the class structure.
[Her] family was working class and it’s very hard to move up. On top of that, with being a
lesbian in a homophobic place, the U.S. seemed the best choice” (DENNIS-BENN, 2016c). In
the book Diasporic Dis(Locations): Indo-Caribbean Women Writers Negotiate the “Kala
Pani” (2004), Brinda J. Mehta, professor of Women’s, Gender and Sexuality Studies explains
that “diasporic communities reconfigure themselves around issues of gender, where by the
community maintains its cultural identity through migrating notions of gender-role

125
Excerpt of the poem “-birthmarks” from salt. (2013) by nayyirah waheed.
126
From the author’s website http://www.nicoledennisbenn.com/aboutNicole2.html [access: August, 10th, 2017]

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
346

conformity” (MEHTA, 2004, p. 209). Moreover, theoretician Anh Hua in her article Diaspora
and Cultural Memory (2008) refers to Singh, Skerrett, and Hogan’s work to show that,
traditionally, the experiences and sexuality of queer subjects have no place in the
configuration of diasporic communities, since the reality of invisibility and exclusion from
nation-building agendas is mirrored in the context of diaspora. These subjects have a hard
time developing a sense of belonging both in the country where they were born and in the
country where they currently live. Hence, it comes as no surprise that in an article called
Who’s Allowed to Hold Hands?, published in 2017, Dennis-Benn confesses she thought she
would have more freedom to be a lesbian in the United States but found hostility in many
places, which came from different people, including Jamaicans who are part of the Jamaican
diaspora in that country.
Additionally, knowing that the breath-taking beach scenery, people’s hospitality and
reggae as an unengaged movement of weed-smokers were the pictures that came to mind
when outsiders heard the name of her home country, Dennis-Benn took upon herself to write
a novel that would provide other perspectives and other alternatives to the single story127 most
foreigners had of Jamaica. In another New York Times interview in May, 2016 the writer said
that “[she] wanted readers to see the other side of paradise; [she] wanted them to see the real
people behind the fantasy life advertised in commercials” (DENNIS-BENN, 2016b).
The task of creating a universe of multiple multi-sided characters whose stories allow
the questioning of common stereotypes is most certainly a daunting one. In the 2016 article
Breaking Taboos and Loving the Characters We Fear Dennis-Benn admits that she had a hard
time giving life to the character “Margot”. Going through the creative process of writing the
novel, the author was obligated to face her own fears and insecurities of writing and was also
forced to put aside much of her own judgment to be able to create a Jamaican lesbian
character, giving literary form to what she calls Jamaica’s biggest taboo—homosexuality.
Turning her attention to works by Jamaica Kincaid and Toni Morrison made possible for her
to overcome some of her internal conflicts. Dennis-Benn states that “their beautiful literary
work documenting sexuality, especially female sexuality, gradually gave me permission to
write my own” (DENNIS-BENN, 2016d). The author had to work on what she called her

127
The concept of the “single story” comes from Nigerian writer Chimamanda Ngozi Adichie’s 2009 talk “The
Danger of a Single Story” in which she illustrates how dehumanizing one-sided stories, which end up producing
widely spread out stereotypes, can be. The writer sheds a light on the need to allow for other narratives—other
than the ones created by whoever had the power to do so—to be told and heard.

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347

internalised homophobia, paired with the fear of how the Jamaican audiences would react to a
book which portrayed Jamaican women who live out their lesbian sexuality. The novel was
very well received in The United States by both specialised critics and the audience; and,
since it came out, the author has won and been nominated to many prizes. In Jamaica, in spite
of the fact that she has not won any major prizes yet, many young Jamaicans who have
identified with the novel have contacted the writer. Additionally, according to a review of the
book launch in Kingston by Tanya Batson-Savage, the writer was received as a “literary start”
and read excerpts from her book to an attentive audience in her home country.

(Ac)cursed affections

Here Comes the Sun (2016) is set in 1990s Jamaica. The island is being furiously
taken over by luxury hotels which are build where small villagers used to stand, as hotel
owners and their investors get richer, the life conditions of working-class citizens deteriorate.
The plot is built around the lives of four black women: Margot, who works in one of these
hotels during the day and, at the same place, is a sex worker by night; Delores, Margot’s
mother, a stall holder who, together with her elder daughter, lives to support her young
teenage daughter, Thandi; and Verdene, a neighbour who is considered by many to be a witch
and who also happens to be Margot’s secret lover. They all live in the small village of River
Bank, which is under treat because of real state developments.

In the book Bread Out of Stone (1994) Caribbean-Canadian writer Dionne Brand
writes a chapter called The Body For Itself. Inspired by her perceptions at a conference of
Caribbean literature taking place in Canada and an analysis of many acclaimed Caribbean
texts, the author proposes a brief but valuable analysis of how racialized women are usually
represented in contemporary Caribbean literature. Brand observes that, frequently, black
women characters – many of whom are created and analysed by male writers and critics – are
present in narratives as an illustration of the dichotomy coloniser–colonized: “their approach
to the Black female body is as redeemer of the violated, and builder of the binary pedestal”
(BRAND, 1994, p. 35). The author also points out that, in other instances, the female body
becomes the space for anti-colonial struggle. These characters bodies are written as a
metaphor to the islands after the colonial regime ends, in a nationalistic project of promoting

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
348

new postcolonial identities where “the female is made for a man, carnally knowledgeable in
the essential female body but young hapless, inexperienced, waiting for inevitable control or
ownership” (BRAND, 1994, p.35). Brand goes on to affirm that, at times, attempts not to
reproduce the colonizers’ stereotypical constructions of the exotic oversexualized black
Caribbean body might have hindered women characters from having depth and sexuality. The
inevitable conclusion is that these characters hardly ever represent the actual women and that
the presence of racialized women characters are suppose to be allegorical, therefore, writing
and locating alternative representations within literary Caribbean texts becomes a hard but
fundamental task to be undertaken.
Dionne Brand, then, analyses the work of Antiguan-American novelist, Jamaica
Kincaid. In novels and short-stories by Kincaid, Brand argues that these women characters
are represented not in accordance to any moralising agenda. The author states that “the texts
reject these conventions and talk about what we really are concerned with in our daily lives:
not only external, the encounter with ‘whiteness’, but the ongoing internality” (BRAND,
1994, p. 44, author’s emphasis). According to Brand, women writers who dare to create
characters who experience sensuality and sexuality for themselves - not to satisfy a man’s
desires or for any other ulterior motive – do not simply want to establish new paradigms, but
are in the business of “unfixing the fixed” (BRAND, 1994, p. 45) by questioning these
broadly accepted and reproduced forms of representation. Furthermore, the Caribbean-
Canadian author explains that “for [her] the most radical strategy of the female body for itself
is the lesbian body confessing all the desire and fascination for itself” (BRAND, 1994, p. 46).
The idea is that when a black female character is not built around the perceptions of a male
character, nor following the standards imposed by society, nor only representing archetypes of
motherhood or innocence, this characters has the potential to display complexity, depth and
bodily experiences which outreach the fixed forms. However, as Literary Scholars Jenny
Sharpe and Samantha Pinto mark in The Sweetest Taboo: Studies of Caribbean Sexualities; A
Review Essay(2006), “[t]he acceptance of a queer person within a given community […] is
contingent not just on the invisibility of his or her particular sexual practice but also on the
absence of any political activism around his or her sexuality” (SHARPE and PINTO, 2006, p.
259).
Not by chance, the lesbian body existing for itself is a rare finding. American
philosopher Adrienne Rich, in her 1980 article Compulsory Heterosexuality and Lesbian

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
349

Existence, undertakes the task of exploring why and how compulsory heterosexuality affects
women’s lives in societies which are part of the Capitalist system. The author is keen on
examining why women’s relationships and alliances are perpetually obliterated. In addition,
Rich also addresses the absence of the lesbian subjectivity in most contemporary theories,
including Feminist thought. To this analysis, there are three points in Rich’s work that are
fundamental, the author explains that

lesbian existence has been written out of history or catalogued under disease; partly
because it has been treated as exceptional rather than intrinsic; partly because to ac-
knowledge that for women heterosexuality may not be a "preference" at all but
something that has had to be imposed, managed, organized, propagandized, and
maintained by force, is an immense step to take if you consider yourself freely and
"innately" heterosexual. Lesbian existence comprises both the breaking of a taboo
and the rejection of a compulsory way of life. It is also a direct or indirect attack on
male right of access to women. But it is more than these, although we may first
begin to perceive it as a form of nay-saying to patriarchy, an act of resistance. It has
of course included role playing, self-hatred, breakdown, alcoholism, suicide, and
intrawoman violence (RICH, 1980, p. 649).

Considering that Jamaica used to be under colonial ruling, it is important to bear in


mind the role compulsory heterosexuality played during this process. As Maria Lugones
outlines, a part of the colonial project was to enforce the heterosexual norm by criminalising
and obliterating any sort of behavior marginal to it, disseminating the idea that “[t]he
behaviors of the colonized and their personalities/souls were judged as bestial and thus non-
gendered, promiscuous, grotesquely sexual, and sinful” (LUGONES, 2010, p. 743).
Connected to this mandate was the strategy called witch hunting. Silvia Federici, when
recounting the history of the persecution of women who were labelled as “witches”, reveals
that in Europe
The witch-hunt deepened the divisions between women and men, teaching men to
fear the power of women, and destroyed a universe of practices, beliefs, and social
subjects whose existence was incompatible with the capitalist work discipline, thus
redefining the main elements of social reproduction (FEDERICI, 2014, p. 165).

This practice was also exported to the so called “New World” also in the hopes of
suppressing and dismantling groups which resisted the growth and imposition of the colonial
ruling. Federici further exposes that

the global expansion of capitalism through colonization and Christianization ensured


that this persecution [witch hunting] would be planted in the body of colonized
societies, and, in time, would be carried out by the subjugated communities in their
own names and against their own members (FEDERICI, 2014, p. 237).

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350

Whole communities and societies have been indoctrinated to assimilate this order. Any
attempt to unfix categories and mindsets which have been created and enforced over
centuries, or by strong political movements, requires a wider perception of (in)humanity.
Nicole-Dennis Benn’s reality of being a queer diasporic subject is tangible in her novel. The
characters’ subjectivities are constructed throughout the story from different angles and
perspectives. One of the examples is the character Verdene Moore, Margot’s lover. In River
Bank, she is treated as a “sexual deviant” of the norm. Villagers are afraid to cross her path
and fear having their image associated with her. Out of the main characters, she is the only
one to experience diaspora. In Verdene’s case, returning from her forced exile to River Bank
cannot be understood as coming back home to the warmth of her community. England is
theoretically a country in which homophobia is not as overt; even so, Verdene does not
succeed in living fully as a lesbian while there. The woman lives with her aunt, who is very
religious, and is convinced to marry a man. About the union, we are told that “[i]n her first
marriage, Verdene failed miserably. Not because she didn’t love the man— a nice devout
Catholic from Guyana her aunt handpicked for her— but because she could never pretend to
be that kind of a woman (DENNIS-BENN, 2016a, l. 1021-1023). Whilst married to him,
Verdene sleeps with other women, living a double life. Her sexual pleasure would only come
to life clandestinely, while she is performing the role of the wife married to a man. Coming
back to the village, she notices that having lived abroad gave her a status which she refers to
as “foreign privilege”. It is stated “[a]s a foreigner, or rather, a returning resident, she is
untouchable” (DENNIS-BENN, 2016a, l. 875-876). Her British accent arouses people’s
curiosity, but not to the point where they want to be near her.
As the narrative unravels, it is revealed that Margot—a child born out of the abuse of a
teenage Delores—and her mother have always had an unstable and violent relationship. 10-
year-old Margot shares with her mother that another girl—Verdene—had called her pretty,
which makes Delores’ blood boils. Delores tells her daughter she should never take
compliments from anyone else in her life, especially from a woman. Margot ignores her
mother’s warning and keeps on going to Miss Ella’s—Verdene’s mother’s—house. When
Verdene leaves for London Margot is in shock, the girl even stops talking momentarily and
people start to think something is wrong with her. Delores, then, starts giving the girl constant
bathes hoping to wash the evil out of her daughter. She is convinced Margot is possessed. Her
neighbor Miss Gracie advises her to bathe the child with Guinea bush in order to cure her.

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351

Delores ends up taking Margot to an obeah woman, who, in Margot’s words, used “black
magic” as an attempt to restore her “health” (DENNIS-BENN, 2016a, l. 4145).
The reason for Verdene’s departure is that she had been found in bed with another
woman, her university roommate Akua, by the responsible for the hall of residence. At
university, she shares a feeling of sisterhood she had never experienced before with the other
girls who study there. With Akua, the relationship takes an unexpected turn, which to Verdene
feels truly natural and pleasing for the first time. The hall director, however, thought them to
be “no different from witches warranting public execution (DENNIS-BENN, 2016a, l.
1450)”. Once the news reaches River Bank, Delores is worried Verdene might have taken
advantage of her daughter. Miss Ella decides to send the girl away. Verdene’s mother is
overcome by shame but she is still worried about her daughter’s well-being. Akua does not
have the same luck. Back to her hometown, she is gang-raped and left for dead. By chance, a
passer-by sees her lying there and she begs him to leave her be, which he refuses to do. Years
later, Verdene was to receive a letter from Akua, which included a photo of her five children
posing next to her and her husband. Akua tells her she had become an important member of
her church and ends the letter saying: “May God be with you, always. He works miracles”
(DENNIS-BENN, 2016a, l. 1467, author’s emphasis). Verdene’s family also think she is sick.
She marries a man in London and hears from the priest that “God had intervened and healed
her. Made her whole.” (DENNIS-BENN, 2016a, l. 2482). Here, it is clear how the norm is
enforced both through the violation and subjugation of the rebel body and through the
discourse of the hegemonic religion.
When Miss Ella dies, Vederne decides to go back to Jamaica and move into the pink
house she inherited. Thandi is near the woman’s house and it is from her perspective that we
are introduced to the way Verdene is seen in the village. The woman is described as “the
Antichrist, the snake every mongoose should have hauled off the island and eaten alive; the
witch who practices obscene things too ungodly to even think about” (DENNIS-BENN,
2016a, l. 355-357). As we come to discover, there had been four dead dogs left in Verdene’s
yard. Thandi decides to run as fast as she can to reach Miss Gracie’s house, a neighbour
known to be a woman of God in spite of her alcohol abuse. On one occasion, the message
“The blood of Jesus upon you!” had been written with blood on the walls of Verdene’s house.
That sentence is the same said by Miss Gracie whenever she meets Verdene. The owner of the

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352

pink house finds it very strange that the first canine is left on her property on the first time
Margot spends the night there.
In one of the last chapters, Thandi remembers the full-moon night when she found her
mother and Miss Gracie carrying a bucket filled with goat’s blood to Verdene’s house and
writing the bloody message on her wall. The older women claim they had seen the owner of
the house killing the dog. Nevertheless, the teenager also recollects seeing Delores and Miss
Gracie together on many other nights disposing dead dogs at Verdene’s. Nicole Dennis-Benn
creates this plotline filled with irony which exposes and illustrates the hypocrisy of it all.
Margot not being at home the first night it happened gave her mother more freedom to come
and go. On top of that, the Delores who displays concerns as to whether her daughter had
been taken advantage of is the same one who will later consent and make profit out of the
teenager’s abuse by men who paid to do it. To these villagers, it seems, the witch-hunt is not
about being a law-abiding citizen, as they trespass and vandalise someone else’s property. It is
not about making use of alternative knowledge and resorting to non-Catholic religious
traditions, as both of them do. It is not about protecting the innocence of children, at least in
Delores case. It is about reinforcing the heteronorm by creating an atmosphere of terror.

It is Always the Darkest before the Dawn

A crucial moment to the narrative is when Margot and Verdene meet for the first time.
It is possible to catch a glimpse of the effect of the affection of the woman she loves.

From where she stands, the woman appears to be sailing toward her like an angel,
the nightgown hugging her womanly curves. And Margot sails toward her, no longer
cognizant of the steps taken over the cobblestone path or the fears hammering inside
her chest. When she arrives at the foot of the steps, she looks up into the face of the
woman; into those eyes that hold her gaze steady. She can never get them out of her
mind, for they’re the only ones that see her. Really see her— not her figure or the
nakedness she so willingly offers to strangers, but something else— something
fragile, raw, defenseless. The kind of bareness that makes her shiver under the
woman’s observation (DENNIS-BENN, 2016a, l. 173-178).

Verdene’s eyes are the ones to see her from a different perspective. Verdene does not
wish to exploit Margot for her body or her money. Their relationship is far from stable but in
the moments when they get to passionately experience and express their bodies, we get to see
them unleashing a supressed side of their subjectivity, allowing them to come to life. Verdene

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353

and Margot’s story does not end following the classical worn out happy ending model. It is of
the utmost importance to state that, overall, the novel and mostly of what has been analysed
here is about the crushing effects of the heteropatriarchal neo-colonial Capitalist system the
characters are inserted in. However, I argue that, in the novel, there are brief moments of
resistance and discovery in which some of the women characters are able to enjoy and live out
their lesbian affections, as proposed by Adrienne Rich (1980) and Dionne Brand (1994).
Nicole Dennis-Benn’s novel ethically portrays queer characters, which, undoubtedly, is a
breath of fresh air to subjects who have been misrepresented, silenced and treated virtually as
inexistent for so long.

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Bookophilia. In: Susumba. Kingston, 2017. Retrieved from: <http://www.susumba.com
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355

A MÍSTICA DO DESEJO: A POESIA MUNDANODIVINA DE ADÉLIA PRADO

Ma. Paloma do Nascimento Oliveira (UFPB)


E-mail: palomaoliveira03@gmail.com

Considerações Iniciais

Se pensarmos que no medievo muitas mulheres recebiam o nome de místicas por abrir
mão da Igreja enquanto instrumento de contato com o Sagrado, veremos que há muito a
produção feminina literária já encontrava caminhos para sua expressão individual. A ausência
de intervenção eclesiástica era uma afronta à instituição religiosa e ao lado disto havia um
grupo que mulheres que escreviam sobre Deus e a relação de amor que mantinham com Ele.
Marguerite Porète foi um exemplo dessa transgressão, seu destino foi justificado por
suas proposições heréticas e, ao contrário de muitos que se viam sob pressão, ela não negou
suas convicções diante do tribunal de inquisição e teve sua vida ceifada na fogueira. Outras
mulheres também provocaram a ira da Igreja, a exemplo de Beatriz de Nazaret, Hadewijch de
Amberes e Teresa D’Ávila; elas inspiraram muitos outros a sentir o mistério da experiência
com o divino sem amarras institucionais. Adélia Prado, se contemporânea a essas mulheres,
compartilharia dessa linha de pensamento, pois, além de fazer referência a alguns místicos (a
exemplo de São João da Cruz, Santa Teresa D’Ávila e Eckhart), dá ao seu discurso poético
um tom de experiência profunda, interna, espiritual. E, apesar de trazer muitos dos ritos
católicos para sua escrita, ela não demonstra ser necessária a intervenção de terceiros nos seus
diálogos teologais.
Sabendo disto, a proposta deste trabalho é fazer o estudo do que chamamos de mística
do desejo na poesia adeliana, lugar em que ela se coloca em sua incompletude corporal entre
as sensações de sua cosmovisão cristã e seu modo particular de perceber um mundo além da
religião. Vale ressaltar que esse desejo não é restrito ao caráter erótico, mas se estende a todas
as percepções que seu corpo captar a partir do contato com o sagrado. Durante as discussões
traremos algumas leituras de autores como Certeau (2015), Maçaneiro (1995), Teixeira
(2012), entre outros.

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356

A mística do desejo

Antes de pensar numa mística do desejo é importante entender o que é mística. Há


muitas implicações para este termo, mas primariamente pensamos nela como o encontro do
homem com a figura divina, sem interposições institucionais, através da contemplação, do
mistério, daquilo que não se pode expressar. Contemplação e mistério, por sinal, são termos
recorrentes nos estudos sobre o tema, é através disso que o humano busca a plenitude com o
divino. Contemplar aquilo que não se pode explicar, passar por momentos em que as
sensações são a única direção que lhe norteia, é nesse contexto que a mística floresce.
Podemos pensar na contemplação mística a partir da analogia que Maçaneiro (1995, p.
38) faz com a descoberta do novo pela criança: “Diante do belo que extasia ou do novo que
assusta, a criança se maravilha sem restrições. Anterior aos sofisticados dribles da razão, o
maravilhar-se infantil é um ato de coração. Quase místico. Rápido, Intenso”. Maravilhar-se na
contemplação, que é desafiadora, leva o místico a se abandonar em nome do Outro, a criar
percepções do indizível, coisa que seria impossível sem essa ligação profunda.
Esse elo sugere uma intimidade amorosa entre homem e divindade que particulariza o
contato desses dois seres. Assim surge a ideia da mística do desejo que tem direta relação com
o fin’amour, ou amor cortês, originando a mística cortês. Essa relação de amor entre humano
e divino acontece inversamente à tradição do fin’amour, quando o homem se tornava servo da
sua amada. Nos caminhos místicos, Deus é o suserano e a mística é sua vassala que passa por
dores e desejos na esperança de atingir a comunhão total com seu Amado.
Na mística o amor arrebata a alma, há um processo de desconstrução do eu para uma
reconstrução de um novo modelo de si. Um modelo que permita o desnudamento do ego, a
doação do corpo e do cerne para o Amor maior. De acordo com Certeau, a mística:

[...] destaca o desafio do único. Sua literatura tem, pois, todos os traços do que ela
combate e postula: ela é prova pela linguagem da passagem ambígua da presença a
ausência; ela atesta uma lenta transformação da cena religiosa em cena amorosa, ou
de uma fé em uma erótica; ela conta com um corpo “atingido” pelo desejo e
gravado, ferido, escrito pelo outro, substitui a palavra reveladora e que ensina.
(CERTEAU, 2015, p. 06)

É do corpo que partem as percepções indizíveis da carne e essa ausência de palavras


direciona, na maioria das vezes, para a incompreensão da experiência mística. Dessa forma a
literatura é o suporte que mais se aproxima do relato desses religiosos e comporta as imagens

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357

e símbolos que configuram o discurso de uma densa união. Literatura e mística lidam com a
variedade sensorial, com os mil sentidos da palavra e nem sempre são compreendidas em suas
peculiaridades. Essa dificuldade que se tem de internalizar aquilo que ambas difundem insere
no poeta, no místico e no leitor um processo interpretativo do mundo, de entendimento de si.
As mulheres são maioria nesses escritos e desde a Idade Média, período inicial das
produções, apresentaram uma rica produção de conhecimento do Outro. De acordo com
Tabuyo (1999, p. 8), elas, “[...] mestras de experiências e amigas de Deus, souberam unir
liberdade e beleza em um extraordinário caminho de conhecimento, ao mesmo tempo,
caminho de divinização”. Em seus registros elas revelam a relação esponsal com Deus.
Embebidos de desejo, os textos apresentam a face do erotismo sagrado e representam uma
emancipação da voz feminina na Idade Média.
Com autonomia, essas mulheres construíram, através de seus escritos, uma imagem de
Deus em sua onipotência, mas tão próximo que pode ser confundido com um humano; Ele é
amor, mas também é amável, amado e amante. O desejo conduz a mística ao encontro com
Deus, há uma força de atração exercida pelo Amado, “dizer Deus é dizer desejo”
(MAÇANEIRO, 1995, p. 62). O desejo, portanto, faz parte da relação com o divino; ele é o
combustível de que o místico necessita para saciar suas incompletudes humanas; é ele que
ateia o fogo no caminho espiritual a ser percorrido; é seu calor o responsável por alimentar as
vontades de que apenas o Outro poderá realizar. O desejo é experiência de Deus.

Quando o cosmos se une ao sagrado

Desde 1976, Adélia Prado envolve sua poesia dessa mística cristã do desejo de que
falamos anteriormente. Em Bagagem (1976), seu livro de estreia, a poetisa inaugura uma nova
forma de falar de/com Deus e traz nos seus escritos marcas uma aliança que perduraria por
todos os seus livros.
O modo de escrever/falar com Deus em Adélia é fruto da vivência espiritual que a
mineira acumula em seus 81 anos de vida. A cidadã de Divinópolis é uma mística de nosso
tempo, ela desvela os mistérios de Deus, do desejo e do cotidiano. De acordo com Maçaneiro,
o misticismo é praticado de forma muito natural, há uma vivência do lugar comum:

[...] a experiência dos místicos é um fenômeno pé-no-chão: redimensiona e torna


mais exigente seu próprio cotidiano. A oração, vida, a justiça, a missão e a própria

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358

personalidade – tudo é assumido como autenticamente humano. O místico vive no


coração do mundo e de seu tempo, porque nele pulsa o coração de Deus, do Deus da
história. (MAÇANEIRO, 1995, p. 62)

Dessa vivência pé-no-chão, nasce uma poesia acessível a todos, ligada às coisas
palpáveis do cotidiano. A escrita de Adélia Prado é um instrumento de renovação do discurso
teológico, não se pensa mais numa mística que se comunica com a heresia, que flerta com o
proibido. Há uma comunicação epifânica, que se manifesta a partir de um discurso teopático.
De acordo com Campos (2014, p. 261), essa linguagem “[...] vem exprimir uma experiência
de pathos, de paixão. (...) A linguagem teopática é mística, (...) paixão como a capacidade de
sair de si e sentir a vida”.
De fato, Adélia sai de si e mergulha no mundo através da poesia; enxerga em Deus os
questionamentos e as respostas para os mistérios da vida; conversa com Ele; sofre e recria o
divino projetado em seu corpo. No poema “Um homem doente faz a oração da manhã”, do
livro Bagagem, o eu lírico se fixa na dor do corpo e reconhece um Deus ambivalente em
sentimentos: ira e amor. Vejamos:

Livrai de lançar contra Vós


a tristeza do meu corpo
e seu apodrecimento cuidadoso.
Mas desabafo dizendo:
que irado amor Vós tendes.
Tem piedade de mim,
tem piedade de mim
pelo sinal da Vossa Cruz,

(PRADO, 2015, p. 42)

O eu reconhece no corpo uma tristeza indigna do seu Senhor. Pede que o livre de
lançar um sentimento que não está à Sua altura. Desse corpo que apodrece, Deus parece não
ter piedade. O amor lançado é carregado de ira. Aqui encontramos a linguagem teopática de
que falamos anteriormente: há paixão, dor, Cruz e uma comunicação com Outro através dessa
experiência corporal que sai de sua da sua agonia para pedir piedade.
Em seu livro Oráculos de maio há uma série de poemas que evocam Deus nas
sutilezas do cotidiano e que dialogam com a concepção mundanodivina de Adélia Prado.
Vejamos isto na leitura do poema que segue:

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Staccato

1. Uma formiga me detém o passo,


2. aonde vais, celerado, que não me ajudas?
3. Mas não é dela a voz,
4. é dele, interceptando-me,
5. o deus carente.
6. Se não lhe disser Vos amo,
7. sua dor nos congela.

(PRADO, 2007, p.17)

Em alguns anos de análises de poemas, fui confirmando, nas leituras, o que alguns
teóricos e professores alegavam: a proposição de que toda palavra colocada no poema é uma
escolha pensada e refletida. Ao se deparar com um título como “Staccato”, se não sabemos a
definição do termo, é óbvio o incômodo causado à compressão do vitral construído por Adélia
Prado nesse texto. Sua escolha, imagino, foi muito bem articulada. Antes que se possa
entender a situação em que o eu lírico se depara, é importante saber que staccato é a
articulação na qual notas e motivos das frases musicais devem ser executadas com
interrupções entre elas. É um momento cuja cessação da música é necessária, para que a
melodia seja plena. Por definição:

Notas de staccato são curtas, com pleno espaço entre elas. Por favor, note que isto
não significa que o tempo (seção 1.2.8) ou o ritmo (seção 2.1) são mais rápidos. O
tempo e ritmo não são afetados pela articulação; as notas de staccato soam mais
curtas que escritas apenas por causa do espaço extra entre elas. (SCHMIDT-JONES
& JONES, 2007, p. 66) 128

Assim atua o staccato, ele entra em consonância com as palavras que melhor
descreveriam a construção poética em questão: suspensão/interrupção. Esta suspensão
acontece desde o primeiro verso quando o eu lírico encontra-se numa caminhada e uma
formiga lhe detém o passo. Na interrupção de uma ação corriqueira o ser minúsculo questiona
a onipotência humana e o acusa: “aonde vais, celerado, que não me ajudas?”. Primeiro
observemos a simbologia que a formiga traz tanto do ponto de vista bíblico quanto literário.

128128
Tradução livre de: Staccato notes are short, with plenty of space between them. Please note that this
doesn't mean that the tempo (Section 1.2.8) or rhythm (Section 2.1) goes any faster. The tempo and rhythm
are not aected by articulations; the staccato notes sound shorter than written only because of the extra space
between them.

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360

Na Bíblia a formiga é bastante utilizada como metáfora para ensinar aos homens
determinados comportamentos e dar exemplos de organização e sapiência. De acordo com o
site Mundo Cristão (2016) um dos ensinamentos bíblicos que traz o inseto como modelo para
o homem está em Provérbios 6. 6 – 9 e diz: “Preguiçoso, observe bem as formigas, olhe os
seus caminhos e seja sábio. Elas não têm nem supervisor, nem oficial, nem governante para
dar ordens, e, mesmo assim, trabalham durante todo o verão, ajuntando provisão para o
inverno”. Na literatura, nas fábulas de Esopo recontadas por Jean de La Fontaine, a formiga é
um ser trabalhador e organizado. Ela vive harmonicamente em comunidade e dá exemplo de
perseverança. Durante o verão, ao contrário da cigarra, ela junta seu alimento prevendo a
tormenta que sua ausência poderá lhe causar com a chegada do inverno. Apesar de chacoteada
pela colega cigarra, a formiga mostra-lhe, ao fim, que é a cautela e o bom senso que lhe dá
sobrevivência.
A imagem da formiga, criatura pequena e ínfima, detendo o passo do ser humano,
parece algo impossível, mas é sua pequenez que o toma de surpresa e lhe suspende,
colocando-lhe em contato imediato com o sagrado. O terceiro e quarto versos deixam muito
claro que a o animal é um instrumento de comunicação místico: Mas não é dela a voz,/ é dele,
interceptando-me,”. Não é um chamado ou uma anunciação, o eu é interceptado. Seu ritmo é
mais que pausado, é quebrado, para chamar sua atenção.
A força dessa construção direciona a um ato abrupto, forte, porque no verso seguinte o
poema apresenta o sujeito que pratica a ação: “o deus carente”. Verifiquem que a forma como
a palavra ‘deus’ está grafada não é um erro de digitação. O deus desse poema tem sua
diminuição a partir de uma adjetivação que é própria do humano, ele é carente. A carência,
distante da autoridade absoluta, minusculiza o divino, o traz para perto do profano. A imagem
de um deus carente tira seu poder de cena, desfaz a imagem cristalizada de um deus distante
da humanidade; ele é mundanodivino e faz jus à criação do homem como sua imagem e
semelhança.
A humanização do deus é colocada aqui como uma forma de estreitar seu contato com
características própria do homem. O ‘Se’ do verso seis aponta para a natureza egoísta própria
do ser humano, a conjunção sinaliza que a ausência da declaração do amor por parte do eu
lírico vem carregada de punição: “Se não lhe disser Vos amo,/ sua dor nos congela”. Como
uma criança mimada ou uma parte de um relacionamento há a necessidade da verbalização do
sentimento do outro. Neste caso, o silêncio refletirá em consequências; ao contrário da dor

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361

humana que só atinge a si mesmo, a dor divina é capaz de congelar àquele que não se doa e
não declara o seu amor.
Há também um outro poema de Adélia Prado, do livro Miserere (2014) que mostra o
desejo do eu lírico de estar feliz ao lado do Seu Amado, mas o que temos é um retorno
inverso, do amor vai-se à treva e ao frio. Como vemos abaixo:

Previsão do tempo

1. O espírito de rebelião
2. também chamado de tristeza e desânimo
3. começou de novo sua ronda sinistra.
4. Sua treva e seu frio são de inferno.
5. Por causa de maio, esperava dias felizes;
6. e ensolarado até agora só o recado de Albertina,
7. escolhida para cantar Jesus é o pão do céu.
8. Pão sem manteiga, Albertina,
9. é bom que o saiba.
10. É com ervas amargas que o comemos.

(PRADO, 2014, p. 27)

O poema previsão do tempo sugere no título um tempo distinto do que estamos


habituados no senso comum. Este tempo transcende à contagem das horas e às possibilidades
de mudanças climáticas do ambiente; aqui há um tempo do ser, do seu interior, que se
transforma diante do contato com o sagrado. Eis que nos versos que seguem ao título a
previsão é de nuvens pesadas de insatisfação.
Há desde as primeiras palavras a presença da mística que tomamos como
mundanodivina na poesia adeliana: de um lado o espírito é de rebelião (que vem do latim
rebellio –re “contra” + bellus “guerra” – fazer guerra contra), é revolto, é forte e é etéreo em
seu contato com o Outro sagrado; de outro, o espírito rebelde e questionador partilha
características do mundo puramente humanas (a tristeza e o desânimo). Nesses dois
substantivos há uma espécie de encadeamento sonoro que produz o efeito de uma única
palavra, o que dá mais força semântica a elas. Uma formação neste sentido:
“tristezedesânimo”, que dialoga com versos de Terra de Santa Cruz “que o choque de uma
palavra abre na outra” (PRADO, 1981, p. 19). Com as ausências de sentimentos como alegria
e do ânimo, o eu lírico observa a passagem do espírito em meio a uma atmosfera ameaçadora,
assustadora.

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362

No quarto verso há três palavras dispostas numa imersão isotópica: tristeza – frio –
inferno. Apesar da representação do inferno ser diretamente associada ao fogo, o frio em
excesso tem o mesmo potencial de dor na pele que o fogo do inferno relatado na Bíblia. O
espírito chega com “Sua treva e seu frio”, a escuridão gera ausência de visão e ao lado do frio
deságua num dos sentimentos mais incontidos do humano: o medo. É possível sentir o vento
gelado em meio às trevas pelas sibilantes: Sua treva e seu frio são de inferno. As alveolares
trazidas pelo S podem ser associadas ao som do vento produzido pelo frio/trevas, ao passo que
as labiodentais V e F, à sensação de frio que este vento produz.
O espírito traz em sua ronda uma carga semântica pesada, negativa:
rebelião/tristeza/desânimo/sinistra/treva/frio/inferno. Com exceção de ‘sinistra’, todas as
palavras são substantivos, são elas que constroem os sentidos que o poema carrega e, apesar
de ser considerada “inominável e corisca (a) poesia” (op. cit., 1981, p. 19) são esses nomes
que (sobre)carregam a construção da leitura de “Previsão do Tempo”.
Apesar do mau presságio que o espírito traz, no verso cinco é possível ver que a
expectativa do eu lírico era distinta. Ele acreditava que o oposto aconteceria, “dias felizes”, e
sua explicação é o mês de maio. Para a Igreja católica ocidental esse mês representa o
renascimento da terra, é em maio que acaba o período invernal e as flores e campos começam
a renascer, é o início da primavera na Europa. Apesar de escrita no hemisfério sul, cujo
movimento climático é inverso, nenhum outro fator textual aponta a localização do eu lírico,
no Brasil há locais em que o inverno é quase inexistente; portanto, podemos pensar no maio
das flores e clima quente e ensolarado. Foi por conta desse clima que maio se tornou há
séculos o mês mariano: uma época em que a Igreja celebra sua santa mais importante e a
coroa com as flores primaveris. Tempo de esperança, da vinda do sol e sementes germinando
a boa nova.
No verso seis fica claro que esse maio não vem com luz, Albertina, detentora do
recado celeste, é a única que se veste de sol para afirmar no verso seguinte que “Jesus é o pão
do céu”. Albertina é escolhida, não se convoca, mas seu canto é um chamado, talvez por isso
seu recado seja ensolarado. Seu nome é uma versão feminina de Alberto que, por sua vez, é
uma variante de Adalberto. De origem germânica, segundo o Dicionário dos nomes próprios
(2008) “Adalberto surgiu através do nome germânico Adalbert composto pela união das
palavras adal, significa ‘nobre’, e berth, quer dizer ‘ilustre’ ou ‘brilhante’ e significa ‘nobre

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363

brilhante, ilustre nobre”. Apenas a nobre e brilhante Albertina, portanto, seria a portadora
escolhida para cantar o divino.
O recado pode ser entendido como um sinal de que o eu lírico não deveria perder a
esperança de uma alegria vindoura; mas seu contato com o espírito, desde os primeiros
versos, está envolvido por uma atmosfera amarga, de desilusão, de modo que nem o recado de
Albertina é capaz de iluminá-lo. Não à toa o eu lírico afirma no oitavo verso que é “Pão sem
manteiga, Albertina”.
As imagens do pão e da manteiga remetem a uma característica muito presente na
escrita adeliana, o cotidiano em forma de poesia. Na maioria de seus escritos a comida, a vida
na casa e a cozinha são trazidas para os versos: “um esgoto de cozinha a céu aberto/ a água de
sabão meio azulada” (PRADO, 2014, p. 81); “Quantos sacos de arroz já consumi?” (PRADO,
1981, p. 15); “Minha mãe cozinhava exatamente:/ arroz, feijão roxinho, molho de batatinhas”
(PRADO, 1978, p. 29); “O rapaz acabou de almoçar/ e palita os dentes na coberta” (p. 56).
Nesses versos oito e nove é do pão sem manteiga que o eu extrai a dura lição; há um
eu consciente de que essa representação do divino, que no ritual da comunhão adentra o corpo
do homem, nem sempre é prazerosa. De acordo com Certeau, “Enquanto a eucaristia [...] fazia
do corpo uma efetuação da palavra, o corpo místico deixa de ser transparente ao sentido, ele
se torna opaco, torna-se a cena muda de um ‘não sei o quê’ que altera, um país estranho aos
sujeitos falantes e aos textos de uma verdade” (CERTEAU, 2015, p. 08). Sua mística com o
espírito nesse poema é advertidamente dolorosa. No verso final há um fechamento dessa
reflexão em que o eu come o pão em seu sofrido sabor: com ervas amargas.

Palavras Finais

No senso comum a mística cristã ainda é pouco conhecida e quase nada discutida.
Muito disso se deve ao escamoteamento, de mulheres e homens místicos, praticado por
muitos anos pela Igreja Católica. Com a inquisição na Idade Média e o silenciamento dessas
pessoas nos séculos subsequentes, o termo “mística” se tornou tão misterioso quanto sua
definição e quase nada se sabia entre os leigos.
Graças à retomada dos estudos medievais na academia e ao resgate de nomes que
ficaram por séculos perdidos hoje é possível refletir sobre a mística de modo mais denso. As

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364

experiências com o sagrado são postas à mesa e inúmeras são as possibilidades de conhecer o
Outro através da sensibilidade humana.
Hoje podemos concluir que os escritos místicos estão cada vez mais acessíveis e perto
da nossa realidade. Adélia Prado, por exemplo, vem nos mostrar a existência de uma mística
contemporânea que funde o mundo e a religião. Sua escrita não se afasta dos afazeres
domésticos e das sensações que uma mulher comum sente ao pensar em Deus, portanto, busca
criar uma mística da simplicidade, das coisas miúdas que fazem diferença na experiência de
vida.
Pensar, assim, numa construção poética atual que nos remeta ao encontro com o
divino, sem formalidades, sem intervenções institucionais, permite-nos adentrar num universo
que beirará o misterioso, mas que sempre nos possibilitará a reflexão sobre o indizível, o
inexplicável.

Referências

CAMPOS, Monica B. Mysterium tremendum e fascinans na poética de Adélia Prado. In:


CABRAL, Jimmy Sudário; BINGEMER, Maria Clara (orgs). Finitude e mistério: mística e
literatura moderna. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Mauad, 2014.

CERTEAU, Michel de. A fábula mística séculos XVI e XVII: volume I. Tradução Abner
Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

MAÇANEIRO, Marcial. Mística e erótica: um ensaio sobre Deus, Eros e Beleza. 2 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

PRADO, Adélia. Miserere. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2014.

______. Oráculos de maio. Rio de Janeiro: Record, 2007.

______. Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1981.

______. O coração disparado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1978.

SCHMIDT-JONES, Catherine; JONES, Russel. Understanding Basic Music Theory.


Connexions: Houston, 2007. Disponível em : <http://cnx.org/content/col10363/1.3/ >. PDF.

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365

TABUYO, María. Introducción. In: AMBERES, Hadewijch. Visiones. Traducción María


Tabuyo. Barcelona: Medievalia, 2005, p. 7 – 45.

S/A. Dicionário de nomes próprios – significado dos nomes, Dicionário de Nomes Próprios,
Disponível em <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/albertina/>, Acesso em 03
Out. 2017.

S/A. Formigas – Você vai se surpreender, Mundo Cristão, Disponível em:


<http://www.mundocristao.com.br/conteudo/675/%22Formigas%22---voc%C3%AA-vai-se-
surpreender!>, Acesso em 20 Out. 2017.

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FILHA, MÃE, AVÓ E PUTA: A HISTÓRIA DE UMA MULHER129

Mestranda Renata de Melo Gomes (UESC/Capes)


E-mail: renata.melogomes@gmail.com

Introdução

O presente artigo discorre sobre Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que
decidiu ser prostituta (2010) de Gabriela Leite (1951-2013) em depoimento a Márcia
Zanelatto e faz uma discussão da obra a partir de estudos de Simone de Beauvoir (1908-1986)
e Elisabeth Badinter (1944). Buscamos realizar tal análise nos atendo mais especificamente à
prostituição e à maternidade, problematizando os significados e valores culturais que
constroem o imaginário social acerca do papel da mulher na sociedade. A obra
autobiográfica em questão retrata a vida de Gabriela Leite, prostituta brasileira de grande
expressão devido às suas lutas em favor dos direitos das prostitutas. Percebendo o quanto a
prostituição possuía uma representação que “permitia” e corroborava para a violação de
direitos dessas profissionais, ela passa a lutar pela categoria.

Inicialmente através da participação em eventos nacionais e internacionais de


prostitutas e mobilização da categoria, Gabriela Leite acaba por realizar diversas ações como
a fundação da ONG Davida em 1990 e a criação da grife Daspu em 2005. Atualmente, o
projeto de lei n° 4.211/2012 encampado pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL),
conhecido como “Lei Gabriela Leite” por se tratar de luta travada por ela durante sua vida,
está parado na câmara e enfrenta um Congresso conservador. No entanto, suas lutas
continuam atuais e pertinentes, o que justifica um trabalho de busca inquietante por
compreender e analisar a vida e obra dessa mulher inovadora que teve uma vida dedicada à
busca pela liberdade e pelos direitos das prostitutas.

Filha, mãe, avó e puta: a história

Ao acompanharmos a vida de Gabriela Leite relatada em sua obra autobiográfica e em


algumas de suas declarações à mídia, percebemos que ela foi atravessada pelo rompimento

129
O presente trabalho foi realizado sob a orientação da Profª Dr. Marlúcia Mendes Rocha e coorientação da
Profª Dr. Sandra Maria Pereira Sacramento.

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367

das amarras simbólicas que limitavam sua liberdade. Apesar de viver contradições, já que
afrontou valores sociais já há muito enraizados, ela optou por uma vida autêntica e singular.
Filha do capataz de uma fazenda, sua mãe – Mathilde – foi obrigada a casar com o filho do
patrão – Oswaldo. Este, crupiê boêmio, é sempre condescendente com os sonhos de liberdade
da filha Gabriela, construindo com ela uma relação de admiração mútua e afetividade.

Sou de um tempo em que as meninas não tinham liberdade para nada, e, no entanto,
ele sempre teve uma grande compreensão dos meus problemas. Entendia minha
vontade de alçar voos, meus planos de futuro e meu desejo secreto de ser bonita e
alta. (LEITE, 2010, p. 15)

A mãe Mathilde, em contrapartida, tinha uma tendência a se subordinar aos valores


tradicionais e educava as filhas de forma rígida e distante. Morando com os avós paternos
durante parte da infância e adolescência num casarão da família, na Vila Mariana, e tendo o
pai ausente em boa parte do tempo, viajando para cassinos em todo Brasil; Gabriela já
demonstrava, desde criança, ser diferente do esperado pela mãe, o que tornava a relação entre
as duas bastante conturbada. A mãe desejava que a filha se casasse e tivesse filhos cumprindo
com o esperado para as mulheres da época, mas Gabriela tinha outros objetivos. Segundo
Leite (2010, p. 21), “Claro que o desejo de minha mãe era que eu fizesse o curso de
normalista para ser professora da escola pública e esperar o noivo e o casamento. Mas meu
objetivo era estudar literatura, porque queria conhecer melhor os livros, meus companheiros
de solidão”.

Sendo muito diferentes, pai e mãe tinham uma relação delicada, marcada por
constantes desentendimentos que acabaram resultando na separação. Mas, ainda que às
escondidas, Gabriela manteve a relação com o pai – por quem nutria amor e admiração. Em
contrapartida, a relação com a mãe foi marcada por gestos “educativos” violentos, como
indica Leite (2010, p. 19 e 20), “Minha mãe tinha uma vara de marmelo que trouxera do
interior para ‘nos educar’. Apanhamos muito. Ainda tenho mágoas por aquela e por outras
surras: vara de marmelo, fio de ferro e cinto de couro com fivela.” Ainda que com tantas
contradições, Gabriela compreende as dificuldades da mãe, percebendo as cobranças e
adversidades familiares, econômicas e sociais pelas quais passavam:

Por um lado, reconheço a incompreensão de uma menina construindo sua


personalidade. Por outro, sei o quanto minha mãe, por sua própria educação e por
medo de falhar, bloqueou qualquer camaradagem e preferiu jamais confiar nos
nossos sonhos.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
368

Sei que, assim como foi difícil para mim, também foi muito difícil para ela
viver com uma filha que nunca concordava com suas regras e ordens, que tinha
vergonha do seu modo caipira de falar e raiva do seu jeito de ser. (LEITE, 2010, p.
20)

Em algumas partes do livro, a autora demonstra, além de certa compreensão pelas


atitudes da mãe, uma admiração, já que ela criou as filhas praticamente sozinha, chegando a
costurar para sustentá-las em função das ausências do pai. Segundo Leite (2010, p. 18), “Por
saber costurar muito bem, minha mãe tinha muitas freguesas, e foi assim que, muitas vezes, –
quando meu pai desaparecia por meses – ela conseguiu manter nossa casa em pé sem nunca
faltar nada”. O sofrimento da mãe por viver na casa da sogra e ser maltratada por ela também
é retratada pela autora. A relação abusiva é atravessada por diferenças de classe social, que
eram o mote para os maus-tratos infligidos pela sogra nas duas noras, desprezadas e
consideradas inferiores. No entanto, Mathilde, ainda que muito tímida, se rebela contra a
sogra e se muda com a família para a garagem da casa. Essa atitude é descrita como heroica
pela autora, apesar de ter trazido consequências difíceis para a família, já que a mãe tornou-se
ainda mais dura e inflexível. A autora sinaliza esse momento como o que marcou o início de
uma relação realmente difícil com a mãe:

Dona Mathilde, a caipira indígena e analfabeta, conseguiu mostrar para aquela


família aristocrática que era uma mulher forte e dona do próprio nariz. Vovó passou
a ter enorme respeito pela força de minha mãe, chegava inclusive a ter receio de
levantar a voz com ela. Apesar de nossa própria casa, do quartinho de brinquedos e
da comida fenomenal, nossa vida de crianças ficou muito mais difícil. Minha mãe se
tornou uma pessoa rígida, de poucas palavras e olhares repressivos, o que até então
não tinha se manifestado com tanta força para nós. Embora eu ainda tivesse 10 anos,
começava o estranhamento mútuo que viveríamos até o dia em que saí de casa.
(LEITE, 2010, p. 19)

Embora seja subordinada aos valores hegemônicos, é possível verificar que Mathilde não se
adequa completamente aos valores tradicionais tendo, ela mesma, que enfrentá-los em
situações limite. Ainda assim, a mãe mantém as cobranças de que as filhas se moldem ao
esperado pela sociedade e não rompe com valores essenciais. Nesse sentido, a relação entre
Gabriela Leite e a mãe continua conflituosa, à medida que a filha amadurece e não se adequa
ao que é esperado pela mãe e pela sociedade.

Com a morte da avó, a família se mudou para um bairro de periferia de classe média
baixa de São Paulo, mas as filhas continuaram estudando na mesma escola. Tal fato propiciou
uma maior independência para Gabriela que, apesar do forte controle exercido pela mãe, se
rebelou e passou a ter um pouco mais de liberdade:

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369

Um dia me cansei e resolvi enfrentá-la. [...] Cheguei em casa tarde e com muito
medo da reação de minha mãe. [...] Foi minha primeira grande desobediência, e a
partir daí não tinha um dia em que eu não fizesse alguma coisa para afrontar minha
mãe. Perdi uma parte de meu medo e resolvi que seria feliz. Estava com 14 anos,
tinha muitos sonhos e vontade de conhecer a vida. (LEITE, 2010, p. 20-21)

A educação tradicional de Mathilde não condizia com os valores de Gabriela. Após


concluir o ginásio, não sem resistência familiar, Gabriela começou a estudar à noite e
trabalhar durante o dia, dando seguimento aos seus objetivos. Em seu primeiro emprego, foi
assediada por duas vezes pelo patrão, motivo que a levou a mudar de trabalho. Sua mãe ficava
com todo o seu salário, sob a justificativa de que ela não saberia administrá-lo. Como só
ficava com o dinheiro para a condução, não podia comprar as roupas e sapatos que gostava, e
seu cigarro, já que começou a fumar. Devido a um imenso complexo por ser baixa, Gabriela
passa a fazer trabalhos avulsos de datilógrafa para custear suas despesas e comprar sapatos de
salto para disfarçar sua baixa estatura.

Na escola, levava uma vida comum de estudante, apesar de não ser muito assediada e
se sentir feia em relação às demais garotas da sua idade. Saía pouco com os colegas e não teve
muitos namorados. Quando terminou o clássico, conseguiu uma bolsa num cursinho
preparatório para entrar na universidade, por ter tirado boas notas numa prova de seleção.
Assim, dedicava grande parte do seu tempo vago estudando e se preparando para o vestibular.
Nessa época, começa a passar algumas noites fora de casa, o que lhe causa ainda mais
desgaste na relação familiar “Comecei a enfrentar mais abertamente minha mãe e a não voltar
todos os dias para casa. Ficava na casa de amigas que moravam mais perto e estudava a noite
toda.” (Leite, 2010, p. 26)

Quando passou no vestibular, ainda em boa colocação, não teve a aprovação da mãe,
que achava que esse não era o melhor caminho a ser seguido por uma mulher. Já seu pai,
como de costume, encarou a conquista com orgulho:

Passar em segundo lugar no vestibular era um luxo e coroação de um esforço sobre-


humano, mas dona Mathilde não recebeu a notícia com efusão, pelo contrário.
Achava que mulher não precisava estudar tanto e a universidade, com a sua
permissividade comunista, tirava as boas meninas do bom caminho e as fazia
descrentes dos ensinamentos de Deus. Seu sonho era ver todas as filhas normalistas
e, depois de terminados os estudos, casadas, boas esposas e mães.

Já seu Oswaldo, quando soube, ficou muito feliz e começou a me apresentar a todos
os seus amigos como ‘minha filha universitária da USP’. (LEITE, 2010, p. 27)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
370

Após cursar Filosofia durante um ano, Gabriela muda para o curso de Sociologia. Em
plena ditadura militar, quando o movimento estudantil fervilhava, ela conviveu com militantes
de referência na política brasileira, mas não se adequava aos pensamentos dos marxistas e
comunistas. Segundo Leite (2010, p. 28):

Entre uma rodada e outra de pingue-pongue tentava-se realizar a revolução socialista


no Brasil. Brigas e desavenças entre maoístas, trotskistas, stalinistas e outros “istas”
eram cotidianas, gerando inimizades em nome de um espaço político na diretoria do
Centro Acadêmico. Eu achava tudo aquilo um saco e nunca aceitei participar de
treinamentos para a luta armada. Apesar do pouco conhecimento de política,
percebia que tudo era entusiasmo de estudantes e meu idealismo não chegava ao
ponto de ter como horizonte a prisão e a tortura. (LEITE, 2010, p. 28)

Gabriela Leite percebe que sua identificação era com uma turma que acreditava numa
revolução sexual e se aproxima deles. Apesar dessa identidade, ela ainda era virgem,
inexperiente e tinha muito medo de engravidar. Para se adequar, fingia ser experiente e
possuir uma vida sexualmente ativa:

Era um fardo ser virgem no meio dos modernos. Eu e minhas amigas do Redondo
falávamos muito sobre a maravilha de poder transar sem ficar grávida. E dizíamos
aos quatro ventos que tomávamos o comprimido milagroso. Mas era mentira. A
gente sequer transava de verdade. Eu tinha que dar um jeito naquilo, e rápido.
(LEITE, 2010, p. 30)

Enfim, a autora tem sua primeira relação sexual com um diretor de teatro à época. Mas, em
sua primeira vez, Gabriela não foi tratada como gostaria. O homem foi frio e ainda
ridicularizou a moça por ter percebido que ela, diferente da imagem que passava, era virgem e
inexperiente:

As pessoas sempre diziam que a primeira vez doía, e não senti nada além da
violência de ser possuída com frieza e descaso. Depois sobrou somente aquele
líquido viscoso escorrendo pelas minhas pernas. Só isso. Foi o que restou de
recordação da minha primeira vez. (LEITE, 2010, p. 31)

No dia seguinte, Gabriela volta ao bar que frequentava com os companheiros de “revolução
sexual” e percebe que todos já estavam sabendo do ocorrido. Além da frustação da primeira
vez, teve que lidar com o preconceito daqueles que julgava que fossem seus amigos. Nesse
momento, a autora percebe que não se adequava a nenhum movimento político, nem
tampouco ao movimento com o qual acreditava guardar mais familiaridade:

Eu não conseguia mais me ver na esquerda tradicional. Ficou claro para mim toda a
sua caretice, a falta de coragem de se assumir e lutar contra preconceitos milenares
e, principalmente, o desejo que tinham de formular verdades absolutas, o que os
fazia iguais aos seus rivais.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
371

Do meu jeito, fiz a minha revolução e fui em frente. (LEITE, 2010, p. 31)

Gabriela continua sua vida dedicada ao trabalho e aos estudos, e a vida econômica
familiar começa a ficar um pouco mais confortável. Sua irmã, Gina, também estava
trabalhando e estava noiva, e a relação familiar ficou mais tranquila já que a mãe estava
menos insegura quanto ao futuro das filhas. A autora afirma ter passado um tempo sem se
relacionar com homens e associa tal fato ao trauma de sua primeira experiência sexual:
“Homens, nem pensar: ainda estava muito traumatizada, apesar de negar isso a mim mesma.”
(Leite, 2010, p. 33) Depois de algum tempo, conhece aquele que seria o pai de sua primeira
filha, João: “Não foi o homem que mais amei. Foi o primeiro homem que me tratou como
mulher, fez com que eu me visse frente a frente com os meus preconceitos, principalmente o
racial [...]” (Leite, 2010, p. 34) Foi com esse namorado que venceu os traumas de sua primeira
relação: “[...] Sem nenhuma experiência sexual, encontrei um homem que tinha muita
paciência comigo e me fazia gozar. Provavelmente foi por isso que eu superei o trauma da
primeira vez com o Rodrigo. Era um sexo simples, somente de penetração, mas ele era um
bom amante.” (Leite, 2010, p. 34)

Ao engravidar, Gabriela expõe todas as suas contradições. Supostamente moderna,


não se protegia contra uma gravidez que não desejava. Também não frequentava médicos e,
ao descobrir que estava grávida, ainda que não desejasse manter a gravidez, não teve coragem
de abortar. Dessa maneira, percebemos como Gabriela, apesar de seus valores e sonhos de
liberdade, também tinha suas contradições e não conseguia romper completamente com os
valores hegemônicos. Ela relata que:

Ironicamente, a mulher moderna que queria mudar o mundo nunca usou


anticoncepcional, o verdadeiro revolucionário da década de 70 e da sexualidade
feminina. Transei muito com João, descobrindo os segredos do meu próprio corpo.
Mas não tomei sequer um dos comprimidos mágicos. Fiquei grávida. Nunca fui de
frequentar consultórios médicos, e minha mãe, por vergonha ou falta de hábito,
nunca havia me levado ao ginecologista, como é de praxe na adolescência. Me deu
um medo, mas um medo que até hoje só de pensar fico assustada outra vez. Tinha
que agir, fazer alguma coisa, mas não tinha a menor ideia do quê. [...] Cheguei a
pensar em fazer um aborto, mas foi só um pensamento. A minha modernidade era
tão capenga que eu sequer sabia aonde ir e a quem procurar. (LEITE, 2010, p. 35)

Tal fato não é estranho e já havia sido colocado por Beauvoir. Em nossa sociedade, a mulher
é, de tal forma, direcionada a reproduzir o esperado culturalmente que, ainda que tenha
diversas características que a distingam do previsto pela sociedade patriarcal, facilmente é

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372

coagida a se enquadrar. Dessa forma, a maternidade é quase uma obrigatoriedade. De acordo


com Beauvoir (1949):

Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se pode fazer
é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída; a lei ou os
costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas anticoncepcionais, o aborto
e o divórcio (BEAUVOIR, 1949, p. 79).

Durante os nove meses, Gabriela escondeu a gravidez de todos e se afastou do pai do


bebê, porém seu sentimento em relação à filha – Alessandra – foi de afeto, como ela mesma
relata:

Fiquei muito emocionada quando me levaram aquela bonequinha linda e saudável,


pesando 2,9 quilos, com 51 centímetros. Era uma vitoriosa, tinha conseguido ficar
escondida, apertada pela cinta por nove meses, e agora saía perfeita, ilesa de todas as
inconsequências de uma jovem imbecil. (LEITE, 2010, p. 36-37)

Sua mãe impôs uma série de condições para que ela e a filha continuassem morando na casa
da família:

Ela iria cuidar da Alessandra durante o dia, e como eu saía do trabalho às seis horas
da tarde, deveria estar em casa, devido à distância, todos os dias até as oito horas e
nem um minuto a mais. Faculdade, nem pensar. Segundo ela, tudo o que me
acontecera tinha a ver com as más companhias e ideias comunistas que me
colocaram na cabeça naquele antro de gente perdida. Agora eu era mãe e teria que
assumir minhas responsabilidades. Se tudo desse certo e eu trilhasse o caminho do
bem dali em diante, poderia até acontecer de algum homem se compadecer de mim e
se casar comigo, assumindo a paternidade da Alessandra. (LEITE, 2010, p. 39)

Mais uma vez, podemos perceber os valores tradicionais que permeavam a família de
Gabriela, e o quanto, para ela, não era simples romper com eles. Além disso, devido ao
impacto da gravidez, Gabriela afirma que não se sentia em condições de contestar o que lhe
estava sendo imposto. Dessa forma, passa um tempo se dedicando à filha e seguindo as
ordens de sua mãe. Segundo ela, a relação com a mãe tornou-se mais tranquila, mas ela
sempre se lembrava da universidade e dos seus sonhos que havia deixado para trás. Sua mãe
traz ideias da educação feminina semelhantes às dominantes até o início do século XIX,
quando apenas as preciosas tiveram acesso a uma educação intelectual. Nesse tempo, era
negado às mulheres todo conhecimento que não estivesse relacionado à religião ou aos
afazeres domésticos. Badinter (1985), ao descrever a trajetória das preciosas, define bem a
educação da época:

Para melhor avaliar o caminho percorrido por algumas dessas mulheres [as
preciosas], é preciso lembrar que toda educação propriamente intelectual lhes era
proibida. Na escola, em casa ou no convento, evitava-se desenvolver esses espíritos.
E mesmo se houve, aqui e ali, pequenas modificações de programa, o conteúdo do

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373

ensino das meninas foi de uma mediocridade espantosa até a primeira metade do
século XIX, pois a finalidade era sempre a mesma: fazer delas esposas crentes,
donas-de-casa eficientes.

Num internato ou num convento do século XVII, ensinava-se mais ou


menos a ler e escrever, mas o essencial do ensino se dividia entre os trabalhos de
agulha e os cursos de religião. (BADINTER, 1985, p. 109, grifo nosso)

Todas as sextas-feiras, a equipe do trabalho saía para se divertir e Gabriela nunca participava
até que, um dia, resolve sair com os colegas e fica até às 3h da manhã. Recebida pela mãe,
que já havia feito suas malas, podia pedir perdão ou ir embora. Gabriela decide ir, deixando
sua filha para trás. Ela opta pela liberdade:

[...] abriu a porta e colocou a minha mala do lado de fora: “Eu te avisei que tudo
mudou desde o nascimento da Alessandra. Não quero ter na minha casa uma filha
malfalada pela vizinhança e dando maus exemplos para a própria filha. Ou age como
eu quero ou não mora mais aqui.” E fechou a porta novamente. [...] Eu tinha duas
opções: ir embora de vez deixando minha filha ou então bater de novo na porta e
pedir perdão por ter me atrevido a um pouquinho de divertimento. [...] Com o dia
claro, resolvi ir embora. [...] Minha filha já estava com quase um ano. Foi muito,
muito difícil renunciar a ela. Mas naquela hora não encontrei outra saída. Eu estava
vivendo uma situação falsa e não me considerava uma mulher sem futuro. Por que
deveria renunciar à minha juventude e aos meus sonhos, que a essa altura eu nem
sabia mais quais eram? [...] Decidi ir atrás de mim mesma e assumir o egoísmo e o
risco de ser uma mulher livre, sem saber ao certo o que era liberdade. (LEITE, 2010,
p. 40-41)

Gabriela não se via como uma mulher sem futuro semelhante às que viveram até o século
XIX, seguindo uma vida destinada ao lar e a família, seguindo as determinações de sua mãe.
No entanto, ainda que tenha optado pela liberdade, rompendo com as amarras simbólicas que
prendem as mulheres à maternidade e aos valores dominantes com os quais, muitas vezes, não
compactuava, Gabriela finaliza sua fala afirmando que decidiu “assumir o egoísmo”. Mais
uma vez, fica evidente a contradição vivida por ela ao optar por um caminho que não era o
socioculturalmente esperado. De acordo com SACRAMENTO (2011): “Enquanto a mulher
ocupava o espaço da invisibilidade, ‘mulher-mãe, guardiã dos lares, mãe extremosa’, deixava
o espaço público livre para que o homem transitasse” (SACRAMENTO, 2011, p. 35), mas
Gabriela não desejava o espaço da invisibilidade.

Ao sair de casa, Gabriela retomou sua vida social, a graduação e procurou não se
lembrar da filha: “Tentava não lembrar de minha casa e de minha filha para não sofrer.”
(Leite, 2010, p. 41) Em alguns momentos ela tenta retornar à casa da mãe para ver a filha,
mas é impedida, como narra no trecho a seguir: “Uma ou outra vez eu faltava o trabalho e ia
na casa da minha mãe tentar ver minha filha. Mas eles formavam uma verdadeira barreira

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374

para me impedir de vê-la, e com o tempo eu fui entregando os pontos.” (Leite, 2010, p. 63)
Nessa mesma época ela começa a fazer diversos questionamentos relacionados às diferenças
entre o masculino e o feminino, entre as possibilidades e caminhos que eram destinados, pela
sociedade, a um e a outro, principalmente no que tange à sexualidade:

Passei a ir sempre ao Redondo para poder conversar com mais liberdade sobre a
vida e as mudanças da época. Precisava de novos ventos e novos papos. Eu tinha
fome de entender a complexidade de uma formação baseada em valores católicos, e
por isso conversava muito. Queria fazer sexo e exercer minha sexualidade sem
culpa. Queria abraçar, beijar, conhecer melhor o corpo masculino, seus desejos e
suas fantasias. Queria ser uma mulher desejável, usar calcinhas e sutiãs vermelhos,
sentir os homens em meu corpo, transar muito e nunca me fartar. Não queria casar
nem viver junto com ninguém. Somente ver e sentir muitos homens me desejando.
Por que eu não poderia viver como eles, que sempre estavam com mulheres
diferentes? Por que nós, mulheres, tínhamos que nos contentar em ter um único
homem ao longo de toda a vida? Eu queria ter a liberdade sexual deles e não sabia
por onde começar. (LEITE, 2010, p. 42)

Ao mesmo tempo, o mundo da prostituição passa a chamar sua atenção:

Entre o bar Redondo e o luxuoso hotel Hilton havia uma boate de prostituição
extremamente chique: La Licorne. Ela teve seu auge nos anos 70 e 80, quando
reunia homens riquíssimos e as prostitutas mais bonitas do Brasil. A movimentação
das mulheres começou a me chamar a atenção. Elas chegavam nos melhores carros,
com vestidos longos muito sensuais, bem maquiadas e perfumadas, com a aura das
divas do cinema de Hollywood. Entravam na boate e eu ficava imaginando o que
acontecia lá dentro. [...] comecei a me imaginar como elas, saindo de um carro,
elegante e perfumada, dando tchauzinho para os meus amigos do Redondo e
entrando maravilhosa na boate para atender meus homens. Percebi que, se eu
quisesse, poderia mudar radicalmente de vida. (LEITE, 2010, p. 44)

É possível observar que seu interesse pela prostituição inicia quando ela começa a pensar em
seus desejos sexuais e a percebê-los incompatíveis à sociedade, semelhante às matronas que
não podiam se entregar às suas fantasias mais devassas e acabavam por se tornar prostitutas,
em fins do século I e início do II, em Roma, como foi descrito por BEAUVOIR: “Mas há
muitas mulheres que se opõem à maternidade e multiplicam os divórcios; as leis continuam a
proibir o adultério: algumas matronas chegam a inscrever-se entre as prostitutas para não
serem perturbadas em suas devassidões.” (Beauvoir, 1949, p.117)

No entanto, o primeiro cliente desperta os valores dominantes internalizados por


Gabriela e ela pensa em desistir:

Sentei na cama e fiquei olhando para o homem sem saber o que fazer. Ele me
perguntou se eu era nova na casa. Expliquei que era minha primeira vez na zona e
ele, meu primeiro cliente. “Todas dizem a mesma coisa”, disse ele, rindo e já
começando a tirar a roupa. Eu continuava sentada sem saber o que fazer, e foi aí que
ele constatou a minha total inexperiência. Só de cueca, sentou-se ao meu lado e me
abraçou. Instintivamente, me afastei com nojo e comecei a chorar. Ele viu que, de

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375

fato, eu não estava mentindo. Vestiu a roupa me olhando, tirou um dinheiro do bolso
e me deu: “Vá pra casa, aqui não é lugar pra você!”

Naquele dia fiquei profundamente comovida com aquele desconhecido que


estava preocupado comigo, e até cheguei a pensar que, de fato, ali não era meu
lugar. (LEITE, 2010, p. 46)

Aquele homem trouxe à tona o pensamento dominante de mulher casta e pura, pensamento
com o qual foi educada e que se apresenta como um simbolismo difícil de romper. Não foi
apenas na primeira vez que a autora demonstrou sua dificuldade em se desvencilhar das
amarras socioculturais. Isso ocorreu em outros momentos, como relatado por ela:

Mas apesar de toda a disposição para trabalhar na prostituição, eu ainda enfrentava


muitas contradições internas. Estava muito difícil encarar o significado da minha
opção radical de vida. Ainda me sentia perdida, sem saber se continuava ou não. Me
deparei com meus próprios preconceitos e estigmas. Apesar de estar ganhando
dinheiro, me sentia suja e envergonhada pelo que estava fazendo. (LEITE, 2010, p.
47)

Tal sentimento da autora em relação à prostituição não é gratuito, já que a prostituição é


carregada de significados negativos desde seu surgimento. Beauvoir resgata parte dessa
representação no trecho abaixo:

Em Paris, as mulheres de petit gouvernement trabalhavam em lupanares a que


chegavam pela manhã e deixavam à noite após o toque de recolher; residiam em
certas ruas de que não tinham o direito de se afastar. Na maioria das outras cidades,
as casas de tolerância situavam-se fora dos muros. Como aos judeus, obrigavam-nas
a usar vestimentas e insígnias distintivas. Na França, a mais geralmente empregada
era uma agulheta de determinada cor suspensa a um dos ombros; comumente a seda,
as peles, os adornos das mulheres honestas eram-lhes vedados. (BEAUVOIR, 1949,
p. 127)

No entanto, o desejo de Gabriela Leite de tornar-se prostituta foi mais forte do que as amarras
sociais:

[...] Percebi que se continuasse sentada na cama olhando feito uma boba um homem
se despir, eu não seria uma boa prostituta. Ora, estava ali para transar e tinha que
transar. [...] Sequei as lágrimas e voltei à porta para aquela multidão de homens
subindo e descendo escadas enquanto as mulheres diziam: “Vem cá, meu benzinho.”
[...] O segundo cliente foi mais fácil. (LEITE, 2010, p. 46)

Dentro daquele novo universo de experiências, Gabriela se depara com os mistérios da


prostituição:

[...] Ele veio para cima de mim e gozou. Depois me pagou, mas disse que não tinha
gostado, que eu era muito fria e sequer tinha gozado. Meu Deus, como é que eu iria
gozar com um homem que nunca tinha visto mais gordo e de quem sequer sabia o
nome? Era difícil ser puta, não bastava abrir as pernas e pronto, estava tudo
resolvido. Longe disso. Havia mais e eu queria aprender. (LEITE, 2010, p. 46)

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Ela afirma que alguns homens procuram prostitutas para realizar fantasias exóticas: “Tem uns
caras na zona que passam a ser conhecidos das mulheres por serem frequentadores assíduos.
Especialmente quando têm uma fantasia.” (Leite, 2010, p. 60) E revela o quanto a prostituição
é utilizada pelos homens como um espaço em que ele realiza os desejos que acredita que não
devem ser realizados com suas esposas por elas serem mulheres dignas:

Normalmente esses homens são casados e passam a vida inteira com uma mulher
que jamais conhece esse outro lado da sua personalidade. Muitas vezes perguntei a
eles: “Você faz essas coisas com a sua mulher?” E me respondiam sempre: “Não,
minha mulher é a mãe dos meus filhos. Eu respeito ela.” A relação entre um homem
e uma mulher, principalmente as antigas, pode cair num poço de solidão. E o mundo
das fantasias, que é imenso, pode ser um antídoto para o problema. (LEITE, 2010, p.
60)

Esse paralelo entre esposa e prostituta pode ser observado desde tempos remotos. Aos olhos
da sociedade, as esposas devem ser respeitadas e, com elas, não se devem realizar desejos e
fantasias, que são considerados como desrespeitosos de serem praticados com a “mãe de seus
filhos”. Para isso serviam as prostitutas. Nesse sentido, podemos perceber como tende a ser o
imaginário social em relação à maternidade e ao casamento: oposto à prostituição. Enquanto a
maternidade é, de certa forma, sacralizada, a prostituição é profanada. Em Beauvoir, temos
que “[...] o casamento tem como correlativo imediato a prostituição” (Beauvoir, 1949, p. 323).
Essa autora cita Montaigne, quando ele conta que os reis da Pérsia levavam as esposas às
festas, mas quando o vinho aguçava seus apetites sexuais desregrados, estes ordenavam que as
esposas voltassem aos lares e que as prostitutas, mulheres que não eram dignas de respeito,
fossem satisfazê-los. Esse imaginário que contrapõe a representação da esposa e da prostituta
é tratado nas palavras Beauvoir:

É preciso que haja esgotos para assegurar a salubridade dos palácios, diziam os
Padres da Igreja. [...] a existência de uma casta de "mulheres perdidas" permite tratar
as "mulheres honestas" com o mais cavalheiresco respeito. A prostituta é o bode
expiatório; o homem liberta-se nela de sua turpitude e a renega. Quer um estatuto
legal a coloque sob a fiscalização policial, quer trabalhe na clandestinidade, é ela
sempre tratada como pária. (BEAUVOIR, 1949, p. 323)

Simone de Beauvoir cita prostitutas que, apesar do valor diferenciado, não gostavam
de realizar as fantasias dos homens: “[...] Marie Thérèse tinha horror à ‘fantasia’, embora
fosse tabelada muito mais caro do que o coito simples e não raro exigisse menor fadiga da
mulher”. (Leite, 1949, p.333) Mas também fala de outras que preferiam realizar essas
fantasias, por serem mais rentáveis: “[...] Certas prostitutas, entretanto, especializam-se na
‘fantasia’, porque rende mais”. (Leite, 1949, p.333) Essa autora, ao traçar um histórico sobre a

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377

prostituição, ratifica a visão da prostituta como uma espécie de profissional que mantém os
casamentos tradicionais “salvos” das fantasias, consideradas como nocivas para a manutenção
dos valores dominantes.

Relegadas hipocritamente à margem da sociedade, as prostitutas desempenham


papel dos mais importantes. O cristianismo despreza-as mas as aceita como um mal
necessário. "Suprimi as prostitutas, diz Santo Agostinho, e perturbareis a sociedade
com a libertinagem." E posteriormente Santo Tomás — ou o teólogo que assinou
com esse nome o livro IV do De regimine principium — declara: "Eliminai as
mulheres públicas do seio da sociedade, e a devassidão a perturbará com desordens
de toda espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca
num palácio; suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto." [...] A
organização da sociedade tornava a prostituição necessária. "As prostitutas, dirá
pomposamente Schopenhauer, são os sacrifícios humanos no altar da monogamia."
E um historiador da moral europeia, Lecky, formula a mesma ideia: "Tipo supremo
do vício, são a guarda mais ativa da virtude". (BEAUVOIR, 1949, p. 127-128)

Além de ter que lidar com todas essas contradições, Gabriela relata a realidade com a
qual a prostituta se depara, durante a convivência com outras profissionais em seus locais de
trabalho, como a competitividade:

É muito difícil que uma profissional ensine a outra os macetes da prostituição. Parte-
se do princípio de que todo mundo sabe o que é e sabe fazer. De mais a mais,
ensinar a outra significa perder clientes, e o mundo da prostituição é extremamente
competitivo. (LEITE, 2010, p. 46)

A marginalidade, a violência e as drogas:

O número 623 da avenida Rio Branco era um espaço dedicado totalmente à


marginalidade: havia garotas maltratadas pelos caminhos da vida, muitas drogas e
cafetões, um bando de covardes que só sabia tirar dinheiro de mulher e se fingir de
malandros. (LEITE, 2010, p. 47)

A relação com a polícia:

Mas às vezes a Rota, uma polícia especial de São Paulo, entrava no prédio com a
prerrogativa de “caçar” bandidos. Parava aqueles operários que só tinham ido ao
prédio para ter uma satisfação sexual e tirava todo o dinheiro deles, chamando-os de
otários para baixo. (LEITE, 2010, p. 48)

E, explicando a diferença entre cafetina e cafetão, descreve as armadilhas em que uma


prostituta pode cair em razão de estar exercendo uma profissão insegura e com alto índice de
periculosidade:

Apesar do nome, o cafetão não tem nada a ver com a chamada cafetina, que seria
preferível chamar de empresária da prostituição. [...] Há muitas décadas o gigolô
reinava como uma espécie de parasita, que se aproveitava da fragilidade, do medo,
da solidão da mulher que trabalhava na noite para explorá-la. Em troca de
“proteção”, muito entre aspas, elas sustentavam esses homens. Na verdade, a maior

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parte do dinheiro que ganhavam não era delas. Ficavam apenas com o suficiente
para suas despesas.

O fato é que ainda hoje muitas vezes as prostitutas são seduzidas a ter um
cafetão, sobretudo por causa do preconceito a que estão sujeitas. Muitas garotas
passaram anos e mais anos trabalhando na prostituição e acabaram sem nada graças
a eles. (LEITE, 2010, p. 53)

A segunda gravidez de Gabriela Leite também não foi planejada. Mais uma vez ela
cogita a possibilidade de interrompê-la e, mais uma vez, não tem coragem. Ela própria
consegue perceber o quanto pode ser perturbador ir a contrapelo dos valores socioculturais e,
sobretudo, cristãos:

Fiquei grávida. Minha primeira reação foi ir direto para uma clínica de aborto, mas
não sei por que carga-d’água não passei da porta, desisti. Não era preconceito, mas
talvez o efeito da educação católica fosse profundo demais para eu segurar aquela
onda sozinha. Ingenuamente, subestimei a importância de levar uma amiga que
pudesse me dar apoio moral. (LEITE, 2010, p. 67-68)

Quando foi contar ao namorado, ouviu a tradicional frase: “Que filho meu, o quê! Filho de
puta não tem cara.” (Leite, 2010, p. 68) Depois do nascimento da filha, após uma proposta de
um casal de lésbicas com o qual convivia, Gabriela volta a trabalhar, visitando a filha duas
vezes por semana, como relata:

Quando acabou o período do resguardo, voltei para a zona. A minha filha ficou
morando com a Terezinha e a Ana, e aquilo era um alento para mim. As duas
adoravam a menina, a tratavam com tanto amor e carinho que eu não tinha a menor
preocupação. Duas vezes por semana eu passava no supermercado, me munia de
dezenas de potinhos Nestlé e atravessava São Paulo inteira de ônibus até
Brasilândia. (LEITE, 2010, p. 69)

Em Badinter, conseguimos perceber essa multiplicidade de possibilidades de funcionamento


das necessidades e da construção do amor materno, diferentemente do que as diferentes
sociedades tentam instituir como uma verdade única e universal. Nela, percebemos que as
mulheres podem desejar muito uma gravidez e uma convivência diária com o bebê, realizando
a amamentação, os cuidados básicos, como também, outras podem preferir que seus bebês
sejam cuidados por outras mulheres, não ter nenhuma vontade de amamentar e até podem,
simplesmente, não desejar ser mães. Segundo Badinter:

O amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento,


é incerto, frágil e imperfeito. Contrariamente aos preconceitos, ele talvez não
esteja profundamente inscrito na natureza feminina. Observando-se a
evolução das atitudes maternas, constata-se que o interesse e a dedicação à
criança se manifestam ou não se manifestam. A ternura existe ou não existe.
As diferentes maneiras de expressar o amor materno vão do mais ao menos,
passando pelo nada, ou o quase nada (BADINTER, 1985, p. 22 e 23).

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Assim, a maneira como Gabriela conviverá e sentirá afetos e necessidades relacionados à


maternidade, sofrerá diferentes influências e poderá causar diferentes efeitos sobre ela. Em
algumas situações ela alega sentir falta da filha e afirma que não podia visitá-la por proibição
da avó:

De vez em quando eu ia a São Paulo ver se algum milagre tinha acontecido. O


milagre seria minha mãe reverter sua opinião sobre eu visitar a minha filha. Ia na
casa da Gina e ela me dizia que não adiantava eu insistir, minha mãe não queria nem
ouvir o meu nome. Alessandra crescia e ia para a escola, e eu não estava observando
esse período da vida dela. Ficava deprimida e jurava que jamais voltaria a
Guarulhos, cidade onde minha família passara a morar. (LEITE, 2010, p. 105)

No entanto, ela relata que, apesar de não haver proibição, não visitava mais a segunda filha:
“Minha segunda filha já estava com seus 5 ou 6 aninhos. Eu já não ia mais a São Paulo mas
tinha notícias dela por parte das minhas amigas Terezinha e Ana Maria”. (Leite, 2010, p. 115)
A autora conclui que não foi uma boa mãe e não queria ter tido filhos, mas acabou cedendo às
pressões sociais. Afirma ser uma boa “quase-mãe” para o enteado, mas lamenta a maternidade
em sua vida, vendo-a como ruim para si e para as filhas. Em suas palavras:

Eu não devia ter tido filhos. Não tenho vocação nenhuma para ser mãe e acabei
cedendo às pressões, à imposição de que a mulher tem que ter filhos. Isso não quer
dizer que eu esteja maldizendo minhas filhas. Elas são boníssimas pessoas e, a bem
da verdade, nunca foram um fardo para mim. Eu é que sou um fardo para elas, tenho
certeza. Sei que não sou boa mãe. Não sou a mãe que ninguém desejaria ter.
Embora, sem imposições, eu seja uma quase-mãe muito boa para o Rafael. Eu
pensei o tempo todo sobre isso durante a minha vida. Como mãe, eu, que agora
também sou avó, nunca consegui ser nem metade do que pude ser para os outros.
Fico triste por ter me imposto como mãe para minhas filhas. É estranho isso, mas é
verdade. (LEITE, 2010, p. 156)

O fato de ceder às pressões sociais, sendo, em algumas situação, seduzida por elas, não só
pode ser observado em sentimentos relacionados à maternidade, como também no que se
acredita por realização pessoal e felicidade. Quando a autora é pedida em casamento pelo pai
de sua filha, essa influência dos modelos sociais de felicidade é perceptível. Ela, mais uma
vez, sustenta o quanto pode ser difícil fugir das amarras simbólicas impostas pelos valores
culturais dominantes:

[...] me fez uma proposta impressionante. Era muito simples. O primeiro passo era ir
morar com ele. [...] Uma vez aceita essa proposta, bastava que eu deixasse a zona
para todo o sempre. Uma vez deixando a zona, bastava esquecer definitivamente
meu passado, passando uma borracha na mancha que havia em minha vida. E nunca,
nunca mais falaria sobre isso com quem quer que fosse. Assim eu ganharia o prêmio
de me tornar imediatamente uma mulher de respeito, a mãe da filha dele.

Sim, era um absurdo. Acontece que toda pessoa sonha em ter alguém. Ter
alguém, uma vida junto, uma família feliz. Ainda por cima, ele me acenava com

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uma real possibilidade de, uma vez mudando de vida, ter o perdão da minha mãe e a
minha primeira filha de volta.

Passei a sonhar com tudo isso e aceitei. Aceitei feliz como uma Cinderela.
Toda mulher tem um dia de Cinderela. É difícil fugir da nossa cultura o tempo todo.
[...] Liguei para minha irmã, pedi que ela contasse para minha mãe. E sonhei,
sonhei, sonhei. Como a mais pobre mortal, acreditei que era a mulher mais feliz do
mundo. (LEITE, 2010, p. 73)

Porém, após descobrir uma traição, Gabriela desiste completamente desse modelo e segue sua
vida de prostituta. Passando por Belo Horizonte e, em seguida, fixando residência no Rio de
Janeiro, onde passa o resto de sua vida dedicando-se à prostituição, Gabriela viverá as mais
diversas experiências e seguirá uma trajetória de trabalho e luta em prol dos direitos da sua
categoria profissional, profissão que escolheu, ainda que essa escolha tenha sido permeada
por dificuldades e contradições.

A escolha e o prazer pela profissão é uma marca da autobiografia da autora. Em


diversos momentos ela fala da felicidade em ser prostituta. Frases como: “Eu andava pela
Mimosa completamente hipnotizada e pensando que ali eu iria trabalhar.” (Leite, 2010, p. 92)
ou “Cheia de gás, andei vagarosamente pela rua avaliando as casas.” (Leite, 2010, p. 94)
exemplificam bem isso. Sua busca pela liberdade parece ter relação com a profissão escolhida
por ela e com a satisfação sentida em exercê-la. Vários trechos de sua autobiografia
demonstram que ela abdica de amigos, filhos e família, em busca desse bem maior, como:
“Existe uma [...] coisa que eu prezo muito. Talvez seja a que mais prezo, aliás. É a liberdade.
Liberdade de pensar diferente, de vestir diferente, de se comportar diferente...” (Leite, 2010,
p. 9) “Eu havia saído do conforto e da segurança da casa de minha mãe justamente para ser
dona do meu nariz e tomar minhas próprias decisões!” (Leite, 2010, p. 104)
Em relação à Gabriela Leite, é inegável que os ganhos financeiros influenciaram sua
escolha profissional. Ela afirma que em seu primeiro dia de trabalho deparou-se com os
ganhos econômicos da prostituição e os define como um dos lados bons da profissão: “[...]
naquele dia voltei para o pensionato na Amaral Gurgel, onde morava, com um bom dinheiro.
Num único dia ganhei o que ganhava por mês no meu emprego na Shell.” (Leite, 2010, p. 46)
No entanto, em vários trechos do livro, a autora afirma que a prostituição é uma escolha que
está relacionada ao prazer em exercer uma atividade laboral. Ao passar pela experiência de
atender um cliente portador de deficiência, Gabriela relata:

Nunca teria vivido uma experiência assim se não fosse prostituta. [...] Essas pessoas
se tornam importantes para nós. Toda prostituta tem clientes assim. Nem todas
percebem que esse é um privilégio da nossa profissão, que é uma das suas partes

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mais nobres, esse aprendizado da solidariedade, da quebra de preconceitos tão


enraizados na sociedade, que cultua o belo e exclui a diferença. (LEITE, 2010, p. 61)

Além disso, quando a autora começa a se interessar pela luta pelos direitos de sua
categoria profissional, ela demonstra como não só ela tinha prazer em ser prostituta, apesar da
representação social negativa que a profissão possuía na sociedade:

Eu ficava pensando num modo de organizar politicamente as putas para lutar contra
o estigma, a violência policial, o descaso das cafetinas e muitas outras questões que
envolvem nosso trabalho. Vera ouvia atentamente, mas reagia, dizendo que eu era
uma sonhadora e que seria impossível alterar a ordem natural das coisas. Puta é,
desde todos os tempos, o ralo da sociedade, e não há nada que se possa fazer para
mudar isso: “Estou na vida porque gosto de sexo e também não conseguiria o que
consegui tendo outra atividade, mas sei que para a sociedade sou apenas uma mulher
que não presta. Pensar diferente disso é lutar contra os moinhos como Dom
Quixote.” (LEITE, 2010, p.107)

A autora critica a imagem que permeava o imaginário social de que só se tornava


prostituta aquela pessoa que não soubesse exercer nenhuma outra atividade, desconsiderando
que a prostituição pode ser uma escolha de quem a exerce. Nesse sentido ela fala sobre a
maneira como os religiosos ligados à igreja católica tentavam ensinar atividades artesanais
para as prostitutas, no intuito de criarem uma alternativa para que elas abandonassem a
profissão:

Tinha também uma mulher que insistia em oferecer umas aulas de artesanato para as
prostitutas, sem nenhum êxito. A grande ideia dela era ensinar as meninas a pintar
florzinha em pote de maionese Hellmann’s e colocar babado naquela tampa laranja.
E diziam que aquilo era uma alternativa de renda para a puta! Elas partiam do
princípio de que a prostituta é uma vítima que não teve chance nenhuma, nem de
pintar vidro de maionese. (LEITE, 2010, p. 117-118)

Em entrevista para Marília Gabriela no programa De frente com Gabi publicada no dia
03/11/2011, Gabriela Leite afirma: “Enquanto a gente viver nessa sociedade que tem
dificuldades pra viver a sua sexualidade, a prostituta vai existir.”130, defendendo que a
prostituição está mais relacionada à sexualidade do que a questões econômicas. Nessa mesma
entrevista ela, inclusive, afirma não acreditar que existam pessoas que não tenham nenhuma
opção. Ela acredita que as mulheres optam pela profissão de prostituta, mas a sociedade tem
dificuldade em encarar essa verdade.

Ou pra tentar esconder um pouquinho, né? [...] medo. O seu medo. É. [...] eu...
depois de tantos anos vivendo todas estas questões, eu acho que o que incomoda
muito é saber que existem mulheres que transam por dinheiro, né? E transam com
todos os homens. Isso... isso faz mal pros homens principalmente. E pras mulheres

130
Entrevista dada a Marília Gabriela no programa De frente com Gabi, SBT Online, publicado em 03/11/2011
(6:07-6:15 min.)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
382

também, né? [...] São ameaças. É. [...] para os dois. [...] E, no entanto, eles precisam
da existência dessa prostituta, né? É tão contraditório. [...] senão já tinha acabado.
(informação verbal131)

Em entrevista anterior, publicada em 21/04/2011, no programa Provocações, a autora


afirma para o entrevistador Antônio Abjumra que:

Até porque Marx, ele... ele trabalha a história do... do lumpesinato, que as prostitutas
são lumpem e tal, né? Ele nunca conseguiu. Porque pra se explicar a prostituição
tem que entrar na discussão sobre a sexualidade, não na... não na questão
econômica. O econômico é uma bobagem perante tudo isso”. (informação verbal132)

Gabriela demonstra indignação por não ser respeitada: “[...] as pessoas não aceitavam meu
modo de vida e minha profissão”. (Leite, 2010, p.105) e relata o quanto discorda dos valores
dominantes: “Não aceito a visão moralista de que uma mulher séria é aquela que tem um
único homem e passa a vida recatadamente cuidando dos filhos”. (Leite, 2010, p. 106) Ela
relata que a prostituta era rotulada como uma mulher que vivia em meio à violência e a
doenças venéreas e que, quando voltou a trabalhar após ter feito uma cirurgia, os clientes
achavam que as sequelas pós-operatórias eram marcas de violência física sofrida por ela
devido à profissão:

Voltei a trabalhar, agora tendo que explicar aos novos clientes o que era aquela
imensa cicatriz. Eles sempre achavam que era resultado de uma facada. Sim, porque
puta, além de doença venérea, não tem outras doenças, somente sequelas de brigas.
Assim pensam as pessoas, é esse o estigma. (LEITE, 2010, p. 112)

Beauvoir (1949) afirma que, em 1857, Parent-Duchâtelet escreveu que a principal


causa da prostituição é a falta de trabalho. Mas a autora também cita um inquérito em que o
Dr. Bizard associa a prostituição a mulheres que se entregaram ao primeiro homem que lhes
apareceu, “Muitos inquéritos concordam a esse respeito: há muitas mulheres que se deixam
deflorar pelo primeiro que aparece e que acharão em seguida natural entregar-se ao primeiro
que surgir”. (Leite, 2010, p. 328) Em outro momento da mesma obra, a autora cita outra
associação entre prostituição e falta de opção, a terem perdido a virgindade e sido
abandonadas e a problemas econômicos, como notamos no trecho a seguir:

Em 1857, Parent-Duchâtelet verificara que, em 5.000 prostitutas, 1.441 tinham sido


influenciadas pela pobreza, 1.425 seduzidas e abandonadas, 1.255 abandonadas e
deixadas sem recursos pelos pais. Os inquéritos modernos sugerem mais ou menos
as mesmas conclusões. A doença leva muitas vezes à prostituição a mulher

131
Entrevista dada a Marília Gabriela no programa De frente com Gabi, SBT Online, publicado em 03/11/2011.
(9:18-10:01 min.)
132
Entrevista dada a Antônio Abujamra no programa Provocações, TV Cultura Digital, publicado em
19/04/2011. (3:14-3:34 min.)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
383

incapacitada para um trabalho verdadeiro, ou que perdeu seu lugar; ela destrói o
equilíbrio precário do orçamento, obriga a mulher a inventar apressadamente novos
recursos. (BEAUVOIR, 1949, p. 327)

No entanto, quando fala das hetairas é que BEAUVOIR (1949) parece se aproximar
mais do que defende LEITE (2010). Quando fala dessas mulheres que exercem sua profissão
para atingirem sua máxima liberdade, equiparando-se aos homens e tornando-se sujeitos, é
que BEAUVOIR desvenda o que parece ser o verdadeiro significado da prostituição para
Gabriela Leite. Segundo BEAUVOIR (1949):

Na França, a mulher que se nos afigura mais virilmente independente é talvez Ninon
de Lenclos. Paradoxalmente, essas mulheres que exploram ao extremo sua
feminilidade criam para si uma situação quase equivalente à de um homem; partindo
desse sexo que as entrega aos homens como objeto, reencontram-se como sujeitos.
Não somente ganham a vida como os homens, mas ainda vivem em uma companhia
quase exclusivamente masculina; livres de costumes e de propósitos, podem elevar-
se – como Ninon de Lenclos – à mais rara liberdade de espírito. (BEAUVOIR, 1949,
p. 337)

Tal fato vai tornando-se ainda mais evidente quando Gabriela passa a falar o que pensa e a
defender sua categoria profissional. Percebemos isso no primeiro evento do qual a autora
participou, e falou:

O caso é que bem no finalzinho do encontro, já encerrando a plenária, a Ângela


Borba veio até nós e perguntou se não queríamos falar. As minhas duas colegas não
se sentiram à vontade e eu, num ímpeto, sem saber que aquela era só a primeira das
minhas centenas de plenárias, levantei e fui lá para a frente, morrendo de medo,
claro. ‘Meu nome é Gabriela, eu sou prostituta da Vila Mimosa. (Pausa.) Aqui do
lado.’ Aí foi um rebu. A prostituta falou. Parece incrível, mas o tabu perdurava
mesmo ali, entre mulheres conscientes: prostituta não fala. Falei. Seguindo o modelo
das outras mulheres, expliquei como eram as condições da prostituta na Vila, nossas
dificuldades, os problemas que costumávamos enfrentar. (LEITE, 2010, p. 113-114)

O que se percebe, é que ser livre para falar o que pensa; exercer a profissão que lhe dá prazer
– lidando com homens, que a autora afirma adorar “Adoro os homens. Gosto de estar com
eles, e não conheço homem feio. Todos são bonitos: cada um com seu cheiro característico,
seu andar, seu modo de olhar.” (Leite, 2010, p. 8) e; falar o que pensa – tornando-se,
verdadeiramente, sujeito – como o são os homens – é o que faz com que Gabriela Leite opte
pela prostituição.

Conclusão

A vida de Gabriela Leite, retratada em sua obra, descreve uma mulher que, a
contrapelo dos valores tradicionais, viveu em busca da realização de seus sonhos. Assim,
mesmo tendo duas filhas, por não ter conseguido romper com algumas amarras simbólicas,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
384

ela nunca teve a maternidade como centro. Seu foco era a sua realização pessoal, ainda que
isso tenha lhe feito ir de encontro com o que se espera de uma mulher de seu tempo. Ela
trilhou seu caminho lidando com as três coisas que mais gostava, como cita no início de sua
obra: homens, falar o que pensa e liberdade. Associando esses três elementos, ela, mesmo
depois de aposentada, lutou por diversas frentes, para conquistar os direitos da profissão que
escolheu para exercer durante toda sua vida, seja tornando-se candidata a cargos político-
partidários, participando de instituições ou fundando a ONG Davida e a grife Daspu.

Referências

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução:


Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução: Sérgio Milliet. 4ª Ed.
Difusão Europeia do Livro. São Paulo, 1970.
LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser
prostituta/Gabriela Leite em depoimento a Marcia Zanelatto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

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385

“THANK YOU, BARBIE!”: O NÃO-LUGAR DO CORPO VELHO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA

Renata Cristina Sant’Ana (Doutoranda - UFJF)


recsantana2013@gmail.com

Em um contexto sociocultural que supervaloriza a cultura da imagem, pautada no


narcisismo exacerbado, no culto ao corpo e que associa as ideias de felicidade e beleza à ideia
de juventude, resta ao corpo velho o lugar do apagamento de sua imagem e do silenciamento
de sua voz. O modelo de existência preconizado e difundido por esta cultura, distancia-se
muito da realidade que a natureza, em seu ciclo vital, oferece aos indivíduos, fazendo com
que, invisibilizado e emudedecido, o corpo velho passe a não existir no sentido de seu
reconhecimento como tal. Frente a esta condição, o lugar reservado ao corpo velho é o do
preconceito, da exclusão, da submissão e das perdas que chegam junto com a velhice, ou seja,
é o do não-lugar. Resta então ao corpo velho a tarefa de reposicionar-se em um espaço-tempo
que insiste em negá-lo, conforme demonstra Beauvoir ao dizer que “na velhice, sob a ótica da
impossibilidade do fazer pela perda dos sentidos, muda nossa relação com o corpo, há um
desconforto quando este de instrumento passa a ser obstáculo” (BEAUVOIR, 1990, p. 389).
Assim, além do exercício de ter que adaptar-se às mudanças no corpo físico que o tempo
naturalmente se encarrega de operar, a pessoa, ao envelhecer, depara-se também com os
obstáculos impostos por uma cultura que deprecia e nega a subjetividade, a liberdade e a
autonomia do indivíduo em sua velhice. De acordo com Lima (2008), quando se trata do
envelhecimento das mulheres esse processo agrava-se, pois o apelo à permanência da
juventude como preservação da beleza é palavra de ordem numa sociedade em que o
imperativo é ser bela e jovem. Deste modo, “a possibilidade de se estar bem nesse espaço
passa pelo corpo antes de tudo” (LIMA, 2008, p. 28).
Pensar o corpo no contexto da análise literária aqui proposta implica em situá-lo em
espaços de conflito relacionados à juventude e velhice, riqueza e pobreza, forma e conteúdo,
pois o objeto literário foco deste estudo apresenta como elementos constituintes de sua
estrutura uma narradora-protagonista velha, migrante, ex-professora, que tendo sua vida
revirada de cabeça pra baixo em função de uma mudança forçada, acaba vivenciando a
experiência da miséria dos que vivem em situação de rua. Como elemento fundamental dessa
análise tem-se o fato de que esta narradora-protagonista do romance, ironicamente, tem como
sua interlocutora, presente ao logo de toda a narrativa, uma boneca Barbie, símbolo do

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
386

consumismo, da juventude eterna, ícone de um padrão de beleza inatingível e absolutamente


incondizente com a diversidade social e estética característica do que é vivo e humano.
Assim, este estudo parte de um olhar crítico sobre a condição feminina na velhice frente à
tirania dos padrões não só estéticos, mas também comportamentais, que impõem de modos de
viver pautados no consumo desmedido de objetos ditados pela moda e propagandeados pela
mídia, que acabam determinando além dos formatos dos corpos, os lugares sociais que eles
podem ou devem ocupar, operando o apagamento das subjetividades e fazendo dos corpos
que se diferem do modelo preconizado, corpos indesejados e por isso, invisíveis e silenciados.

II - Velhice e literatura

O romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende (REZENDE, 2014) é uma das
poucas narrativas da literatura brasileira contemporânea que tem como narradora e
protagonista da história a figura de uma mulher velha. Segundo Lima (2008), não é só na
sociedade que a velhice é marginalizada, ela também é excluída quando não aparece nos
textos literários, visto que, personagens velhas são pouco presentes na literatura brasileira,
especialmente como protagonistas133. De acordo com as pesquisas de Lima (2008) e
Dalcastagnè (2011), nos textos narrativos que abordam a velhice, a voz narrativa quase nunca
é do velho e quando se trata da voz feminina, o quadro agrava-se. Frente a esta questão, o
romance de Maria Valéria Rezende (2014) assume uma posição importante por trazer à cena
literária contemporânea uma narradora-protagonista velha, o que permite compreende-lo
“como uma tentativa de minimizar o preconceito e a exclusão da mulher velha em nossa
sociedade” (LIMA, 2008, p. 82). Nesse sentido, o romance se apresenta como uma forma de
denúncia da condição marginalizada que se produz da mulher na velhice, ao mesmo tempo em
que apresenta novos olhares e posturas em relação a esta condição, na medida em que revela a
percepção que a própria mulher velha tem de si mesma, sendo narrada a partir de sua própria
voz, sob a sua própria ótica em relação ao processo de envelhecimento e à velhice.
O romance Quarenta Dias (REZENDE, 2014) aborda a trajetória de Alice, narradora-
personagem que ao ser pressionada pela filha, acaba se mudando, contra sua vontade, do
nordeste para o sul do Brasil. Em seguida, após a mudança, a filha embarca para o exterior,

133
Consultar a pesquisa sobre personagens na literatura brasileira contemporânea, realizada por Regina
Dalcastagnè na UNB e apresentada na Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 26.
Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/2123/1687

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
387

em função de uma oportunidade de trabalho surgida, e Alice, em meio a dor de ter tido sua
vida recortada, acaba por lançar-se solitária pelas ruas da cidade desconhecida de Porto
Alegre, a procura de Cícero Araújo também migrante nordestino, desaparecido a um ano,
após ter sido levado como mão-de-obra (barata) por uma construtora para trabalhar na capital
gaúcha. Ao longo de sua busca pelo rapaz, Alice se entrega às ruas vivendo um processo que a
transforma em moradora de rua, vivendo quarenta dias como andarilha, perambulando pelos
“sucessivos buracos, frestas, rachaduras na superfície da cidade” (REZENDE, 2014, p. 102).
Ao tratar de personagens simbólicos, a exemplo de Alice e de Cícero Araújo, que
representam a corrida do desejo em direção a busca por objetos ausentes, a obra apresenta a
brutalidade da esperança mutilada de pessoas que em meio ao percurso de suas vidas
vivenciam o processo de decomposição social que se dá a partir da colisão entre o universo da
metrópole moderna e o mundo da precariedade social.
Por tratar de perdas, o romance trata também de procura, procura por si mesmo,
procura por pessoas que foram embora e nunca mais deram notícia, e principalmente, da
procura por sentidos da existência humana que se perderam no âmbito dos interesses
individualistas proeminentes nas sociedades modernas que emergiram do capitalismo. A esse
respeito, Walter Benjamin (1987) em seu ensaio “Experiência e pobreza”, afirma que “as
experiências (acumuladas pelos homens e pelas coletividades ao longo da história) estão em
baixa”, na medida em que o processo de desenvolvimento desenfreado da técnica avança
sobre a tradição, avança sobre a memória coletiva através da qual os indivíduos se constituem
como seres sociais e de cultura. Recorro a crítica de Benjamin, visto que no momento em que
a personagem Alice é levada a abandonar os objetos de sua história particular para adentrar o
mundo novo que Norinha, sua filha lhe oferece, uma vitrine de objetos novos, sinônimos de
modernidade invade o seu espaço de maneira a sufocá-la em sua natureza e em seus afetos.
Nesse sentido a nova condição de Alice faz dela um ser humano empobrecido em
experiências culturais e identitárias, pois, conforme o questionamento de Benjamin, “qual o
valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?”
(BENJAMIN, 1987, p. 115).
No âmbito do romance, é importante ressaltar que para a realização de um desejo da
filha, e para suprir uma necessidade também da filha, Alice teria que se mudar para o Sul a
fim de se tornar uma avó cuidadora, em uma nova casa, com nova rotina e novos convívios,
que não faziam parte dos seus planos:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
388

[...] eu não havia de largar tudo o que custei tanto a conquistar, meus velhos amigos,
os alunos que se tornavam novos amigos, a praia, o Atlântico todinho na minha
frente, planos de viagens e atividades que tinha tido de adiar até então, mas ainda em
tempo de realizar, uma vida que eu considerava feliz, apesar das cicatrizes.
(REZENDE, 2014, p. 27)

É essa a tônica que traça o fio condutor responsável por conduzir as reflexões em
torno das questões que subjazem a condição feminina na velhice, a partir do olhar para a
personagem Alice, que de repente, se vê diante das artimanhas da filha para fazer da vida
dela, aquilo que julga ser natural para uma senhora como ela, ou seja, torná-la uma “avó
profissional”.
Segundo Lima (2008) “há um estigma social que ainda persiste na imagem da mulher
velha como avó. As velhas que fogem a esse imaginário são vistas com reservas. Mas há uma
nova modelagem hoje nos modos de estar no mundo para as idosas e muitas delas vão ao
encontro dessas outras possibilidades” (LIMA, 2008, p. 95), como é o caso de Alice, a
protagonista da trama que, definitivamente, não estava disposta a se mudar de cidade para se
tornar avó profissional, como podemos observar no fragmento em que ela diz: “ – Em
resumo, o certo pra ela (a filha) era que eu (a mãe), afinal, já tinha chegado ao fim da minha
vida própria, agora o que me restava era reduzir-me a avó. Eu, de cara, disse não, eu não
queria me mudar pra Porto Alegre” (REZENDE, 2014, p. 26).
Em relação às observações acerca da representação literária do envelhecimento e da
velhice, Lima (2008) revela em sua pesquisa o quanto há conflitos entre as gerações, ainda
que na maioria das vezes com o intuito de fazer o melhor para o outro. “Os mais velhos não
podem optar por aquilo que os faz mais felizes porque os mais novos racionalizam suas vidas.
[...] Os velhos, quando podem, tentam resistir” (LIMA, 2008, p.82). Assim, considerando as
relações de poder no âmbito familiar, tem-se em Norinha, a filha, uma representação
simbólica dos valores instituídos pela ordem patriarcal, que ao longo da história encarregou-se
de designar os papeis sociais, atribuindo às mulheres as funções de um trabalho subserviente,
a serviço das necessidades e dos desejos alheios.
Sob forte insistência e chantagens emocionais, Alice resistiu enquanto teve força para
não ceder às determinações de sua filha: Você vai pra Porto Alegre, sim, e não se discute mais
isso, todo mundo vê que é o melhor, é sua obrigação acompanhar sua filha única, só você é
que não aceita (...). Eu cedi, vergonhosamente. Foi isso. O resto é consequência (REZENDE,
2014, p.34).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
389

Vencida pelo cansaço e sucumbida à pressão, Alice veio então a migrar para o sul,
iniciando um processo de desconstrução da solidez de um modo de viver que de uma só vez
foi deixado para traz. Alice foi-se embora deixando para trás muito de si. Muitas coisas se
perderam dela em meio ao percurso da viagem, outras poucas, ela conseguiu salvar.

Enquanto ali se desmontava minha cabeça, minha casa, minha vida, cá no Sul,
Norinha montava, à maneira dela, ao gosto dela, o que eu havia de ter e ser no futuro
próximo. [...] Vida nova!, essa velharia fica toda aqui e a senhora embarca comigo
no fim de julho (REZENDE, 2014, p. 37).

Alice expressa sua revolta por ter cedido à pressão da sua filha Norinha, que em uma
atitude autoritária, tratou de determinar a razão, quando e como se daria a mudança dela de
João Pessoa para Porto Alegre, como demonstra o fragmento: “ – Já vou marcar a passagem,
dia 22 de setembro a senhora parte daqui e ponto final. [...] Eu vim, no dia marcado pelos
outros [...] entrei no avião, feito um zumbi, o tempo todo, até chegar ao destino, à fatalidade
final” (REZENDE, 2014, p. 38).
Se pensarmos no percurso histórico da condição feminina ao longo do
desenvolvimento da sociedade modernas ocidentais, nos deparamos com uma trajetória de
cerceamento das vontades que na velhice só se faz aumentar, visto que, no imaginário cultural
criado em torno da figura da pessoa idosa, esta não teria mais a capacidade de agir de acordo
com suas próprias vontades e convicções. Em A velhice, Beauvoir (1990) diz que é de
maneira dissimulada que o adulto tiraniza o velho tanto em relação às questões de ordem
prática, quanto às de ordem moral, pois, de acordo com a filósofa “queremos que os velhos se
conformem à imagem que a sociedade faz deles” (BEAUVOIR, 1990, p.590). Como forma de
reagir contra às imposições dos mais novos, em geral dos filhos, os velhos se rebelam,
desobedecem as regras estabelecidas como forma de expressar descontentamento e de
reivindicar a autonomia que lhes foi tirada. É, portando, como forma de manifestar sua recusa
aos padrões de comportamento determinados pelo controle social, representado no romance
Quarenta Dias pela figura de Norinha (a filha), que Alice se lança no submundo das ruas de
Porto Alegre, e faz através da escrita o seu desabafo.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
390

III – Entre silêncios e diálogos: Barbie e Alice

No romance a narradora-protagonista se agarra a um caderno velho que tem como


estampa em sua capa a imagem de uma boneca Barbie, e faz da escrita registrada em folhas
amareladas, sua tábua de salvação, um “limbo tranquilizante” (REZENDE, 2014, p. 59), em
meio à atmosfera áspera, de desencanto e revolta, em que a boneca, ironicamente, é sua única
confidente:
[...] pequei o caderno, procurei uma caneta, joguei a bolsa e os sapatos por aí,
desabei no sofá branco que eu detesto com você, Barbie, no colo, apoiada numa
almofada roxa de babados que eu também detesto, mas Norinha adorou, comprou e
até combina com você, “my dear friend” (REZENDE, 2014, p. 13).

Diante de perturbações internas e da necessidade de desabafar toda a sua angústia,


Alice faz da escrita, uma tentativa de exorcizar os males que a atormenta:

E aqui vou vomitando nestas páginas amareladas os primeiros garranchos com que
vou enche-las até botar tudo pra fora e esconjurar toda essa gente que tomou conta
de mim e grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri
e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e
se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar (REZENDE, 2014, p. 13-14).

Alice faz da boneca, que é símbolo da mulher plástica e da padronização de uma


estética feminina idealizada e inatingível, sua interlocutora que percorre toda a narrativa
contrapondo-se à condição de um corpo feminino real, envelhecido, cansado, de uma mulher
que se dá conta de sua descontinuidade em meio a um processo de conflito identitário. Assim,
na tentativa de subtrair um pouco da dor que sente, Alice faz da escrita um alento, um gesto
que a transporta para um ambiente um pouco mais familiar:

Um alívio, uma tarefa e coisas familiares para a antiga professora, uma fresta por
onde respirar e deixar entrar alguma luz, voltar a pensar com certa clareza,
reencontrar as palavras, minhas velhas ferramentas de trabalho. Me tranquiliza.
“Thank you Barbie!” (REZENDE, 2014, p. 14).

Em uma narrativa entrecortada por fragmentos de memórias e simultaneamente por


ações que transcorrem em um tempo presente, tem-se na figura irônica da boneca, um
elemento contraditório que representa ao mesmo tempo incômodo e alívio para as tormentas
de Alice. Incômodo pela artificialidade, incomunicabilidade e ausência humana que a boneca
representa, e alívio por ser este o objeto, sobre o qual Alice descarrega sua aflição e sua

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
391

revolta, e faz dele, sua “dear friend” para quem poderá “contar a mim mesma, tim-tim por
tim-tim, o que me anda acontecendo, desabafar com a boneca loira e o papel pautado, moucos
e calados” (REZENDE, 2014, p.14).
Ao se questionar sobre a natureza de se possuir vontade própria sem que isso pudesse
significar egoísmo Alice se dirige a Barbie, estabelecendo uma aproximação entre as duas no
sentido do apagamento das vontades, da ausência da autonomia, como se a condição de
passividade e de submissão da mulher viesse a se agravar na velhice. Alice se dirige a boneca
perguntando: “Diga-me, Barbie, você que nasceu pra ser vestida e despida, manipulada,
sentada, levantada, embalada, deitada e abandonada à vontade pelos outros, você é feliz
assim? Você não tem vergonha?” (REZENDE, 2014, p. 42). Percebe-se no fragmento, a
construção de uma crítica aos comportamentos automáticos de corpos/objetos, controlados,
induzidos, em que a vontade própria é obliterada, e há somente comandos a serem
obedecidos. Alice manifesta um sentimento de culpa simplesmente por sentir vontade de ter
uma vida que verdadeiramente seja sua, e não uma vida programada e submetida a vontade
dos outros, seja pela sua condição de mulher velha, numa perspectiva particular, ou seja numa
condição mais aberta, de ser social imerso em uma cultura construída para controlar e
dominar os indivíduos a partir da neutralização ou uniformização dos gostos e das vontades.
Nesse ponto, tem-se, de um lado, a figura da boneca como um elemento representativo das
subjetividades que são aniquiladas em função de modelos de comportamentos e também de
padrões estéticos pré-estabelecidos por órgãos reguladores da cultura (religião, mídia, sistema
político, o direito, a escola, a família etc), que através de mecanismos poderosos determinam
modos de ser e de viver. E de outro lado, Alice, representando o rompimento com estes
valores.
A esse respeito, desenvolve-se no romance uma crítica à alienação sobre os modos de
funcionamento desse processo de apagamento coletivo das subjetividades, através da alusão a
cegueira da boneca – “ [...] prefiro você (Barbie) que certamente não vê nada, com esses seus
olhos de tinta e papel” (Idem, p. 46). Pode-se compreender a alusão à ausência da visão, como
ausência da percepção dos modos de agenciamento do controle sobre os indivíduos, que por
não se darem conta das forças que os governam, são mais fáceis de controlar, e por isso
seguem obedientemente o fluxo das determinações sociais.
A crítica anticapitalista que emerge do romance nos remete ao ensaio – “O capitalismo
como religião”, em que Walter Benjamin afirma que o capitalismo não é somente uma

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
392

formação condicionada pela religião, mas sim um fenômeno essencialmente religioso,


apontando traços da estrutura religiosa presentes no capitalismo. A inserção da crítica de
Benjamin ao capitalismo no âmbito desta análise, se faz em razão da condição em que a
narradora-personagem se encontra, pois esta, ao ser chamada a seguir “o rebanho”, o nega, e
reluta por seguir na contramão, sendo lançada no limbo do sistema, simbolizado na obra pela
vida invisibilizada e esquecida da população miserável em situação de rua, posta de frente à
requinte das mercadorias e das confortáveis facilidades oferecidas pelo mercado àqueles que
podem pagar por isso. A protagonista Alice, perdida dentro do novo apartamento preparado e
oferecido a ela pela filha (que, posteriormente a abandona), e esvaziada de si mesma, acaba
por lançar-se no espaço da ausência de posses, representado na obra pelo espaço da rua e por
aqueles que nela se encontram.
Ao fazer uso da boneca Barbie como o objeto escolhido para descarregar toda mágoa e
ressentimento acumulados, a protagonista Alice acaba elaborando a crítica contida no
romance aos comportamentos que caracterizam as massas alienadas, em que a boneca,
compreendida como “o ícone da domesticação fetichista do que se pretende como ‘o
feminino’, incluindo comportamentos e uma aparência física que só pode existir por meio de
manipulação cirúrgica” (MONTE, 2014), é um elemento crucial. Nesse sentido, a boneca
como interlocutora da protagonista, é o elemento responsável por permitir o contraponto que
se estabelece e percorre toda a narrativa que é o entrechoque de elementos antagônicos que se
contrapõem tanto em termos espaciais se considerarmos o luxo e a miséria que coabitam nas
cidades modernas, como em termos identitários referentes a classe social, gênero, etnia e até
faixa etária dos indivíduos, categorias determinantes no processo de segregação e
estigmatização dos indivíduos, em função de suas diferenças e das condições em que cada um
pode viver. De um lado, a Barbie em sua artificialidade, indiferente e alheia a qualquer mal-
estar porque inanimada:
Já tomei café, mal, com o pensamento das coisas embrulhando meu estômago,
ainda... Sorte sua que não tem estômago, Barbie, não é possível que caiba algum
órgão aí por dentro dessa sua cintura inumana. Então você pode muito bem aturar
impassível o que eu vou lhe contar agora” (REZENDE, 2014, p. 81).

De outro lado, Alice em sua natureza e com as marcas do viver:


[...] Ninguém reparava em mim, talvez efeito dos meus cabelos que teimo em deixar
grisalhos apesar da incansável insistência da Elisete, Credo, Alice, que desleixo!,
nem parece que você é uma mulher inteligente e estudada, acha certo parecer uma
velha bem antes mesmo de entrar nos sessenta? [...] Pra ela, Barbie, todas seríamos

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como você, que já tem a minha idade, não é?, e não mudou de cara esse tempo
todo... (Idem, p. 99).

Compreendida como um elemento simbólico situado no interior do romance, a boneca


Barbie ilustra a padronização das subjetividades a partir do consumo alienado de imagens
característico da cultura narcísica que se desenvolve no cenário das espetacularizações
sociais. Em contrapartida, Alice, a narradora-protagonista, apresenta-se como elemento
transgressor, que subverte a ordem estabelecida ao trazer à tona o desconforto causado pelas
imposições culturais que acarretam a exaltação de um eu estetizado, a sobrevalorização do
culto ao corpo e da concepção de belo como sinônimo de juventude. As situações pelas quais
a personagem Alice transita no romance, nos levam a refletir sobre a necessidade de se recriar
valores e ambientes mais decentralizados, que permitam às pessoas se reconhecerem em sua
natureza orgânica, diversa e livre de culpas.

Para o filósofo Guy Debord (1997), a representação e a ilusão tomaram o espaço da


realidade fazendo com que através da utilização excessiva de imagens surjam as
representações responsáveis por constituir a espetacularização do ser e da vida em sociedade
de modo geral. Para este filósofo, o espetáculo não se constitui apenas por um conjunto de
imagens e sim através do estabelecimento da relação social entre pessoas, mediada por
imagens que atuam de maneira manipulada, falsa e abstrata na vida e na consciência humana.
Em sua concepção de espetáculo, Debord considera que o predomínio de imagens, levam ao
surgimento de relações que se constroem a partir da aparência, ou seja, relações que se
pautam no parecer e não no ser. Neste tocante, do “parecer”, reside a crítica de Debord à
imagem e à representação que afastam a vida social de sua autenticidade, aproximando-a da
alienação, de modo que a consciência e o pensamento dos indivíduos passam a ser submetidos
a um conjunto de influências que lhes chegam pela via da celebração do espetáculo. Para
Debord:
O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o
projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real,
um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as
suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo
direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida
socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na
produção, e o seu corolário é o consumo (DEBORD, 1997, p. 15).

O espetáculo assim é compreendido como um tipo de estratégia de dominação da


sociedade e como uma forma de reforçar as “escolhas” já determinadas no ato de produção,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
394

sendo o consumo uma mera consequência previamente elaborada. De acordo com Debord, o
espetáculo se realiza a partir da afirmação da aparência, de modo que somente os aspectos
positivos e dignos de apreciação deverão ser apresentados, visto que o desejo de consumo só
pode ser despertado diante do que é “bom”. Tem-se assim, a indução à aceitação passiva por
parte do expectador, pois o espetáculo “nada mais diz senão que: ‘o que aparece é bom, o que
é bom aparece’. Será esta ideia, somada ao apelo à aparência, que irão promover indivíduo à
categoria de objeto fetichizado, figura central na sociedade do espetáculo, surgido do
rompimento dos vínculos entre o expectador e sua própria existência, em função da alienação
generalizada e seus agravantes como a perda da identidade, a uniformização e o controle
social.

Há uma passagem no romance em que Alice, cansada de escrever, se põe a dialogar


com a boneca sobre sua consciência de estar envelhecendo, se auto-referenciando como uma
professora de meia-idade, por sentir as mãos doloridas de tanto escrever, talvez acometida por
uma artrose. A partir daí Alice segue falando sobre suas impressões sobre a velhice e sobre
como as palavras e expressões pertencentes a este campo semântico, o da velhice, também
envelhecem, ficam fora de moda e caem no desuso, como o termo “meia-idade” que virou
“melhor-idade”, por exemplo. Em meio a suas divagações, Alice toca no ponto que diz
respeito ao não envelhecimento da boneca:

[...] já ninguém mais diz isso, meia-idade, fica-se jovem até ser promovida a velha
avó, mesmo sem netos, e olhe lá! A idade adulta sumiu, comprimida entre a
juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade. Melhor só se
for pra você, Barbie, que já tem quase sessenta e fica sempre igual... [...] Velhice e
caduquice também não existem mais, é terceira idade, idoso e Alzheimer... (Idem, p.
55).

Em um diálogo bem afinado com as ideias de Eliane Brum134 (BRUM, 2012), para
quem que a velhice tem submetido não só o corpo, mas também a linguagem à cirurgia
plástica, pois, de acordo com a jornalista, eufemismos como - casa de repouso ao invés de
asilo, terceira idade ou melhor idade ao invés de velhice - são a expressão da desvalorização
não só das palavras que pertencem ao campo semântico da velhice, mas da desvalorização da
própria velhice. Para a jornalista, eufemismos desse tipo soam bem intencionados, mas na

134
BRUM, Eliane. Me chamem de velha. Revista Época, 02, fev. 2012. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/02/me-chamem-de-velha.html . Acesso em:
30/08/2017.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
395

verdade “são os bonitinhos mas ordinários da língua”, porque o que fazem é arrancar o
conteúdo das letras que expressam a vida. Assim, diante da experiência e da memória
acumuladas, e também da energia que vibra em uma vida em movimento, vimos na figura da
protagonista Alice em diálogo com a imagem da boneca Barbie, uma metáfora de corpos em
conflitos na disputa por lugares sociais que os permitam existir, corpos que se confluem em
suas semelhanças e diferenças, representados em formato que só palavra escrita é capaz de
traduzir.

IV – Considerações finais

A análise do romance Quarenta Dias desenvolvida neste trabalho a partir do


questionamento sobre a função e o lugar social da mulher velha na sociedade contemporânea
coloca em evidência a condição desconfortável a que essas mulheres são submetidas tanto em
relação ao seu papel social construído no âmbito familiar, quanto em relação à associação da
imagem do corpo envelhecido à ideia de apatia, dependência e degradação. O romance, como
vimos, expõe o conflito geracional que atravessa as relações familiares e sociais, e suas
nuances de preconceito e autoritarismo responsáveis por empurrar as mulheres velhas para as
margens da sociedade na medida em que anulam-se suas vontades, abafam sua voz e apagam
sua imagem. Frente a essa condição, a escrita atua na vida da narradora e protagonista Alice
como uma possibilidade de grito contra o estado de coisas que a sufoca e a favor da livre
expressão e manifestação da subjetividade inerente ao que é humano. Não por acaso, é para a
imagem da boneca Barbie - um objeto inanimado, mas representativo dos ditames culturais
estéticos e comportamentais de uma sociedade que se constrói e também se destrói, pautada
em valores fundamentalmente econômicos - que Alice se volta, a fim de descarregar sua
aflição e revolta. Como sintoma de uma mal-estar social, surge a decisão de Alice por
desaparecer do mapa familiar, ainda que temporariamente, e os registros de suas impressões
no caderno velho estampado com figura de uma Barbie, não trata de outra coisa, senão um
grito de protesto a favor da liberdade de fazer suas próprias escolhas e do reconhecimento das
subjetividades. Ao se lançar pelas ruas dos subúrbios da cidade grande, Alice está na verdade
dizendo não aos padrões de comportamento determinados pelo controle social, negando
assim, as determinações do patriarcado e do capitalismo, que com eficácia têm operado sobre

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
396

os corpos, moldando suas formas, controlando suas ações e definindo os lugares em que cada
um pode ou não ocupar.
Por fim, resta dizer que procuramos através deste trabalho apresentar o modo como a
escrita de Maria Valéria Rezende (2014) faz surgir uma possibilidade de repensarmos a
velhice feminina para além dos estereótipos e preconceitos existentes, na medida em que
rompe com estruturas socioculturais e discursivas dominantes. Nesse sentido, ao narrar
situações e descrever as impressões de uma mulher e velha, a escritora faz ecoar um tipo de
voz contra-cultural, capaz de produzir novos valores e novas formas de pensar o feminino e a
velhice, bem como novas configurações tanto no plano social, quanto no literário. Instaurar a
presença feminina nos espaços que lhe são negados é o desafio assumido pelas mulheres
escritoras, que como Maria Valéria Rezende vêm trabalhando no sentido de se descontruir
enquanto objeto do discurso alheio e se reafirmar enquanto sujeito da própria enunciação.

Referências bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução: Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

__________ O capitalismo como religião. Revista Garrafa, 2011. Disponível em


http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa/garrafa23/janderdemelocapitalismocomo.pdf
Acesso: 27/09/2016.

DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004.


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, [S.l.], n. 26, p. 13-71, jan. 2011. ISSN
2316-4018. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/2123/1687>. Acesso em: 10 jun.
2017.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo: comentários à sociedade do espetáculo. Rio


de Janeiro: Contraponto, 1997.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
397

LIMA, Susana Moreira de. O outono da vida: trajetórias do envelhecimento feminino em


narrativas brasileiras contemporâneas. 2008. 194f. Tese (Doutorado em Literatura
Brasileira) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília. 2008.

REZENDE, Maria Valéria. Quarenta Dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

MONTE, Alfredo. MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte, 2014. Disponível em :


https://armonte.wordpress.com/2014/04/08/destaque-do-blog-quarenta-dias-de-maria-valeria-
rezende/#_ftnref2

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
398

“UN PASAJE A OTRA DIMENSIÓN”: DESLOCAMENTOS E IDENTIDADES EM


LA VIRGEN CABEZA, DE GABRIELA CABEZÓN CÁMARA

Renata de Souza Spolidoro (UERJ)135


E-mail: renata.spo@gmail.com
Dra. Ana Cristina dos Santos (UERJ/UVA) 136
E-mail: anacrissuerj@gmail.com

O seguinte trabalho tem como objetivo refletir sobre os deslocamentos físicos e


identitários na narrativa latino-americana contemporânea, especificamente na obra La virgen
cabeza, da escritora argentina Gabriela Cabezón Cámara. São delineados aspectos do livro,
que suscitam debates sobre as novas configurações sexuais e familiares propostas pela autora
e pelas personagens principais em um contexto heteronormativo.
No livro, as personagens Cleópatra, travesti, prostituta e moradora de uma villa
miseria137 em Buenos Aires e Qüity, uma jornalista policial de classe média, narram capítulos
sobre a história de amor entre elas, a violência, as opressões e as rupturas para com as normas
estabelecidas. Cleo, como é chamada, começa a conversar com a Virgem Maria. A partir
dessa comunicação, ela é capaz de mudar o contexto social e econômico do lugar onde vive.
Qüity é levada à villa por sua vontade de escrever sobre os acontecimentos recentes na vida
de Cleo – a conversa com a Virgem -, com o intuito de ganhar um prêmio. No entanto, ela
passa a viver o cotidiano da travesti, tornando-se uma villeira. No decorrer da narrativa, um
relacionamento afetivo, sexual e familiar se desenvolve entre as duas.
No percurso do livro, as personagens transitam por Buenos Aires e outras cidades fora
da Argentina. Porém, elas não se deslocam somente no sentido geográfico. As rupturas
ideológicas e afetivas propostas por elas são relevantes para a análise proposta. Para Toro, na
época contemporânea, a humanidade vive essa nova “condição” permanente a partir de “los
desplazamientos políticos, militares, económicos que han hecho posible el surgimiento
diaspórico de una nueva cultura cargada de nuevos sentidos” (TORO, 2010, p. 11).

135
Graduada em Comunicação Social (PUC-Rio), Mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada
(UERJ). Contato: renata.spo@gmail.com.
136
Professora Associada do Doutorado e do Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada e do
Departamento de Letras Neolatinas (Português/Espanhol) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professora Adjunta do Curso de Letras da Universidade Veiga de Almeida. Membro do GT ANPOLL “Vertentes
do Insólito Ficcional”. Contato: anacrissuerj@gmail.com.
137
O termo é empregado para se referir às moradias precárias em terrenos planos na Argentina. Uma tradução
possível para a língua portuguesa seria a palavra favela. No entanto, para que sejam consideradas as
características específicas do lugar, mantém-se, nesse trabalho, o termo villa.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
399

De modo que serão analisados os deslocamentos das personagens para além dos
físicos, já que o transitar de Cleo e Qüity está relacionado a outros lugares (de identidade, de
gênero, de sexualidades e de família) que elas passam a ocupar. Nesse percurso, como indica
Ianni “[...] há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o
mesmo que regressa” (IANNI, 2003, p.31). A trajetória descrita por Cabezón Cámara
transforma as personagens e suas vidas. Além disso, descentra narrativas ao propor novos
olhares sobre os padrões estabelecidos pela sociedade heteronormativa.
São apontadas duas passagens cruciais presentes na narrativa, em ordem cronológica,
que propõem uma subversão das dinâmicas heteronormativas e patriarcais em que estão
inseridas as personagens do livro de Cabezón Cámara. Em primeiro lugar, a identidade de
gênero de Cleo e, em seguida, o relacionamento que se estabelece entre o casal de
protagonistas. A forma como elas deslocam os gêneros e as sexualidades ocorre por meio de
um questionamento contínuo sobre o que é concebido como “normal” na sociedade. Esses
deslocamentos propostos pela escritora são postos em cena pelas personagens marginalizadas
que vivem felizes suas vidas de maneira trivial, apesar da violência externa que cerca a villa -
provando que o “normal” é apenas o convencionado como tal. Há possibilidade de mudar, de
transformar o que se acredita e até mesmo o que se é em determinado momento.
As identidades das duas personagens do livro da escritora argentina estão
“constantemente em processo de mudança e transformação” (HALL, 2013, p. 108). No
primeiro capítulo, Qüity divaga sobre a possibilidades de as rochas serem iguais umas às
outras. Ela narra:
No investigué el tema, pero seguramente no hay una roca igual a otra. [...] Y no veo
cómo atenuaría el dolor de esta roca saber que quizás, alguna vez, hubo otra igual en
la desmesura del tiempo, que no hay, lo que hay es el acontecer de la materia, la
inquietud fundamental de los elementos. (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 10)

O trecho “inquietude fundamental dos elementos” funciona como prólogo do que será
descrito pelas protagonistas ao longo da narrativa: as mudanças constantes que ocorrem tanto
pelo ir e vir nos espaços físicos como em suas identidades.
A história é dividida em 25 capítulos e um epílogo. Em sua maioria, esses capítulos
são narrados por Qüity. Contudo, também há a voz de Cleo em outros momentos,
contrapondo-se à visão de Qüity sobre os fatos. De modo que cada uma delas aborda o seu
próprio ponto de vista em relação aos acontecimentos passados que tiveram a villa como
palco.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
400

O fato de a personagem Cleo, que se refere a si mesma como uma travesti, contar a
sua história e, muitas vezes, contradizer a versão narrada por Qüity é relevante para a
narrativa, se pensamos sobre a presença da voz de pessoas consideradas como marginais na
sociedade. O livro de Cabezón Cámara se insere em um contexto em que travestis138 e tantas
mulheres “fora da norma” e periféricas relatam suas histórias, têm voz ativa; enfim, tornam-se
sujeitos de suas próprias histórias. Segundo Almeida, “Tais narrativas desestabilizam os
relatos hegemônicos e descentram o centro, demarcando as várias possibilidades de
construção desse outro heterogêneo e multifacetado” (ALMEIDA, 2013, p. 71).
Em muitos momentos, ao contestar o relato de Qüity, Cleo cita narrativas clássicas
como as de autoria de Homero. Esse fato impressiona Qüity, que comenta, com um tom
malicioso: “¿cómo podía citar la Odisea casi letra a letra? No podía haberla leído en su pobre
puta vida. ¿De dónde mierda sacaba cosas como esa? ¿Existirá la Virgen y le dará por los
clásicos y las putas pobres?” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 17). Cleo responde às
provocações da outra e afirma: “tengo derecho a hacerme escuchar” (CABEZÓN CÁMARA,
2009b, p. 25). O uso da palavra por parte de Cleopatra faz com que ela se posicione também
como autora de sua própria narrativa de vida.
A diferenças - até mesmo as diversidades entre Qütiy, mulher cisgênera139 de classe
média e Cleo, travesti, negra e moradora de uma villa - e uma multiplicidade de identidades
estão presentes ao longo da obra. Ao estudar sobre literatura lésbica contemporânea produzida
no Brasil, Facco destaca a “existência de vários modelos com quem as pessoas possam se
identificar, cada uma com suas particularidades.” (FACCO, 2004, p. 133). Gabriela Cabezón
Cámara, apesar de argentina, se aproxima dessa constatação de Facco. A autora propõe uma
ruptura no modelo hegemônico e heteronormativo no qual os sujeitos marginais não têm voz,
ao escrever sobre uma travesti que possui falas como: “Este es mi turno, y yo te voy a seguir
grabando mis comentarios, Qüity, que vos escribís todo y yo quiero contar mi verdad
también” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 24).
Uma das verdades narradas por Cleo é: “La verdad es que no fui nunca un macho,
querida mía” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 22). A personagem rompe com as fronteiras

138
Jaqueline Gomes de Jesus, no livro Orientações sobre identidades de gênero: conceitos e termos, indica que
travestis são “as pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou
como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um não-gênero. É importante ressaltar que
travestis, independentemente de como se reconhecem, preferem ser tratadas no feminino” (JESUS, 2012, p. 9).
Portanto, há uma necessidade de especificar os termos travesti e mulheres.
139
“Conceito ‘guarda-chuva’ que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado
quando de seu nascimento” (JESUS, 2012, p. 14).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
401

rígidas de gênero. Assim como o discurso de Cleo, como foi mencionado, e os deslocamentos
geográficos de Qüity de um bairro de classe média para a villa, a sexualidade das duas
também rompe com o que é esperado para cada uma delas, ou seja, o que a norma
heterocêntrica estabelece. Podemos dizer que elas se inserem em um entre-lugar, “uma
dimensão que se abre para além da inversão dos termos opositivos (sujeito/objeto; dito/não-
dito; sentido/não-sentido)” (HANCIAU, 2005, p. 138). Nessa fronteira entre o que é
permitido de acordo com os padrões e o que não é aceitável, Cleo e Qüity quebram as
obrigatoriedades para com seus corpos e afetos.
A partir do relacionamento amoroso e sexual que se desenvolve entre as protagonistas
de La virgen cabeza, é possível refletir sobre a fragilidade de ideias cristalizadas na
sociedade, como a concepção de que orientação sexual de travestis deve ser sempre
direcionada a homens. Além disso, a narrativa de Cabezón Cámara também suscita uma
discussão sobre a possibilidade de um casal lésbico ser composto por uma mulher cisgênera e
uma travesti. Dessa forma, ela aponta tal identidade/afeto lésbicos como ruptura da
heterossexualidade compulsória140, do patriarcado e da noção de família nuclear gerida por
um homem. A existência lésbica, de acordo com Rich,

inclui tanto a ruptura de um tabu quanto a rejeição de um modo compulsório de


vida. É também um ataque direto e indireto ao direito masculino de ter acesso às
mulheres. Mas é muito mais do que isso, de fato, embora possamos começar a
percebê-la como uma forma de exprimir uma recusa ao patriarcado, um ato de
resistência. (RICH, 2010, p. 36)

A travesti afirma: “Lesbiana resucité, me parece” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b,


p.141), após o início de seu relacionamento com Qüity. Dessa forma, ela reivindica sua
identidade e se aproxima do termo “lésbica”, definido por Wittig. Segundo a autora, a lésbica
é “el único concepto que conozco que está más allá de las categorías de sexo (mujer y
hombre), pues el sujeto designado (lesbiana) no es una mujer ni económicamente, ni
políticamente, ni ideologicamente” (WITTIG, 2006, p. 43).
Preciado reflete a partir do pensamento de Wittig e afirma que “trata-se não somente
de apontar o caráter construído do gênero, como também, mais ainda, de reclamar a
possibilidade de intervir nessa construção” (PRECIADO, 2014, p. 94), como fazem as
personagens de La virgen cabeza. Portanto, a ideia de “normalidade” é confrontada. Afinal,
140
Conceito de Adrienne Rich: “Instituição política que retira o poder das mulheres, “um meio de assegurar o
direito masculino de acesso físico, econômico e emocional a elas” (RICH, 2010: 34).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
402

há diversos modelos de gêneros e sexualidades, mas somente um determinado é tido como


aceitável pela sociedade.
O casal de protagonistas desafia a tecnologia social heteronormativa, o que Preciado
descreve como “conjunto de instituições tanto linguísticas como médicas ou domésticas que
produzem constantemente corpos-homem e corpos-mulher” (PRECIADO, 2014, p. 28) A
partir da lógica normativa e binária, o lugar que Cleo e Qüity ocupam não seria possível. No
entanto, na narrativa, até mesmo a Virgem Maria aprova a relação das duas, subvertendo o
que seria esperado por parte do discurso religioso. Após se comunicar com a Virgem, Cleo
relata que a santa “está contenta, bendice nuestro amor y dice que ya tengo edad de formar
una família” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p.141).
A partir do movimento de ruptura das expectativas normativas, Cabezón Cámara
demonstra ter consciência do potencial de resistência e de subversão que há em sua obra. Ao
ser questionada sobre essas múltiplas possibilidades de gênero e sexuais que são retratadas no
livro, a escritora enfatiza que

no hay ningún mandato de cómo deben ser las sexualidades. Así como las mujeres
no estamos obligadas a coger con hombres, las travestis tampoco. Me parece que
todos podemos hacer lo que se nos dé la gana y que el abanico de posibilidades es
muy amplio, incluso más de lo que tradicionalmente se reclama en el movimiento
Glttbi, porque no hay ningún reclamo de parte de una pareja formada entre travestis
y travestis lesbianas (que si bien sabemos de pocos casos, seguramente debe haber
muchos más). Implica, entonces, desarmar una vez más la heteronormatividad.
(CABEZÓN CÁMARA, 2009a).

As personagens cruzam as fronteiras das categorias fixas. Cleo e Qüity não são
pautadas por tais enunciações imutáveis, elas criam e vivenciam uma outra lógica possível.
Qüity descreve a interação das duas: “‘No me arrepiento de este amor…’ Me despertó la voz
de Cleo y su aura matutina, el olor a tostadas. Era la mañana después de nuestra primera
noche de amor” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p.145). O afeto lésbico entre elas, como
descrito, não é visto por elas como abjeto ou fora dos padrões. Elas demonstram um
estranhamento inicial que não soa como uma preocupação relacionada diretamente ao gênero
ou à sexualidade da parceira. Neste fragmento, Qüity relata a fala de Cleopatra,
Que nunca se le había dado antes por el lesbianismo pero que me adoraba y que
íbamos a ser felices para siempre, siguió hablando con la boca llena de tostada. Yo
le dije que sí, que para siempre y que a mí me había aflojado el pánico: en ese
momento solo tenía miedo y ganas de seguir cogiendo. (CABEZÓN CÁMARA,
2009b, p.145)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
403

O casal de protagonistas ainda se desloca de um padrão patriarcal e heteronormativo


rumo a uma nova configuração familiar. Existe uma aliança entre elas que não é baseada no
modelo de família considerado como tradicional: um homem chefe de família, a mulher e os
filhos. Ao discutirem sobre as complexidades familiares das histórias bíblicas, as personagens
apontam para um pensamento pautado em modelos familiares diversos. Qüity narra: “Porque
a las complejidades filiales de la santísima trinidad Cleo las tenía, y las tiene, más o menos
resueltas; por lo que cuenta, dios viene a ser el papá de la Virgen. ‘¿Y de Jesús también,
Cleo?’, le preguntaba entonces” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 10). A resposta de Cleo é
simples: “Jesús es hijo de la Virgen sola” (CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 11), apontando
para a existência de uma variedade de relações possíveis entre as pessoas, que divergem do
que é aceito comumente como único exemplo possível.
Na lógica de Cleo e Qüity, não é parentesco ou relações consanguíneas que
determinam o elo entre elas. Tal fato pode ser observado na narrativa, quando o casal adota
um menino da villa chamado Kevin. Essa adoção se dá de uma forma afetiva, sem burocracia
ou necessidade de aprovação do Estado. Ainda há uma filha biológica das duas, Cleopatrita,
que não fora planejada, mas também é inserida em um contexto de bastante afeto. Em
entrevista, Cabezón Cámara aponta a subversão proposta pelas personagens: “Bueno, muchas
familias como la de mi novela, formadas por mujeres biológicas y travestis, no hay. En este
caso la familia no se constituye por un mandato sino por puro amor” (CABEZÓN CÁMARA,
2009a).
Tal relação afetiva entre uma travesti prostituta e uma mulher cisgênera compõe uma
dinâmica fora do que é entendido como “natural”. Elas rompem paradigmas e subvertem os
padrões, especialmente quando Qüity engravida de Cleo. Cabezón Cámara ironiza o modelo
familiar tradicional, retirando uma espécie de noção de sagrado que paira em relação ao
padrão patriarcal e inserindo elementos julgados como vulgares e obscenos, como o discurso
coloquial de Cleopatra ao se referir a sexo. Em determinada passagem, Cleo descreve a
relação das duas, dirigindo-se à Qüity: “[...] creo que sí, te enamorastes de mí vos también,
me querés, a tu manera. Y ya ves, te conseguistes la mejor historia, la mejor mina y la
poronga más grande del conurbano bonaerense todo por el mismo precio, mi pajarita”
(CABEZÓN CÁMARA, 2009b, p. 78).
A multiplicidade, os deslocamentos presentes na obra da escritora argentina são bem
descritos por Qüity ao refletir sobre as rochas. A inquietude dos elementos, como sugere a

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
404

personagem, desloca, transforma e faz emergir uma diversidade de rochas, de identidades, de


modelos familiares, de gêneros e sexualidades possíveis. Na introdução de The Transgender
Studies Reader 2, Stryker afirma que “o fenômeno transgênero convida os estudos queer, e as
comunidades gays e lésbicas a repensar a maneira como veem as muitas formas como os
corpos, identidades e desejos podem se entrelaçar141” (STRYKER, 2013, p. 8). A obra de
Gabriela Cabezón Cámara desconstrói padrões, subverte a ordem, sugere novas
configurações, retrata personagens que reivindicam suas identidades fora da norma. Cabezón
Cámara tenta promover uma espécie de mudança no olhar, como sugere Stryker.
A presença de tais personagens em obras latino-americanas contemporâneas,
especialmente no atual contexto político e social de países como Argentina e Brasil, é
importante para os estudos literários. Segundo Leandro Colling (2013),

na prática, cada pessoa é influenciada por características das outras, o que gera uma
variedade de combinações em todas as identidades, inclusive no campo das
sexualidades e dos gêneros. Um homem, por mais másculo que seja, possui algo do
gênero feminino, e vice-versa. Isso gera uma variedade de combinações, ou seja,
existem tantos gêneros quanto nossa criatividade tiver condições de produzir
(COLLING, 2013, p. 411)

O livro de Gabriela Cabezón Cámara se insere na esteira de obras que propõem


discussões pertinentes e necessárias em relação à representação dessas mulheres, dessas vidas
que não importam, que são massacradas e morrem todos os dias, seja no Brasil ou na
Argentina. Dessa forma, o romance promove debates sobre os entrelaçamentos genéricos, os
trânsitos identitários, as lógicas familiares “desviantes” e o lugar de mulheres fora das normas
sistematicamente violentadas na sociedade. A escritora argentina rompe com paradigmas e
convenções que machucam, oprimem e calam mulheres como Cleo e Qüity. Afinal, elas
também têm vozes próprias.

Referências

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CORPO E EROTISMO NA POÉTICA COLASANTIANA: QUESTÕES DE GÊNERO


E LITERATURA

Dra. Tássia Tavares de Oliveira (UFCG)


E-mail: tassiatavares@gmail.com

Considerações iniciais

O presente trabalho enfoca a produção poética da escritora brasileira contemporânea


Marina Colasanti. Partimos do pressuposto de que a produção literária de autoria feminina foi,
ao longo de séculos, parcialmente silenciada pela tradição cultural patriarcal, o que justifica
nossa proposta de apresentar um trabalho que se alie com os movimentos de reconhecimento
da produção de escritoras contemporâneas no contexto nacional, vinculados aos estudos sobre
mulher e literatura, proposta que percebemos como ainda necessária, apesar dos avanços
alcançados.
Adotamos o entendimento de que a voz lírica nos poemas colasantianos selecionados
evidenciam as relações e as tensões que se estabelecem no campo cultural marcado por um
sistema de gênero que prioriza o masculino, onde um eu lírico se apresenta pela perspectiva
das mulheres. Elegemos, nesse sentido, o corpo como categoria de análise para tratar dos
poemas selecionados, a crítica cultural e feminista como nossa principal fundamentação
teórica, ao discutir o corpo gendrado, e não neutro. Além disso, analisamos como estão postas
as representações do corpo e do erotismo do sujeito feminino e a construção de novas
identidades culturais em relação ao sexo.
Nossa metodologia de pesquisa consiste na discussão de algumas teorias de gênero e
autoria feminina, da história do corpo e da literatura erótica, bem como da leitura analítica dos
poemas selecionados, que buscam evidenciar o corpo feminino erotizado ou não,
reconhecidamente um tema recorrente na poética colasantiana, também apontando a poesia
lírica de Colasanti como uma forma de ruptura com a interdição sobre a interlocução erótica e
os tabus que rondam os corpos das mulheres.

Erotismo e feminismo na literatura: dupla transgressão

Pensar sobre a relação entre as mulheres e a temática erótica nos traz diversas
reflexões feministas, não só pela crítica que se faz necessária à apropriação comercial que o

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corpo da mulher sofre cotidianamente, como também pela subversão que o prazer feminino
ainda representa. Tal ambiguidade é diariamente alimentada pelas práticas sociais machistas
de nossa sociedade, reforçadas seja através da mídia, da religião, da publicidade, da educação
familiar tradicional, etc.
Michelle Perrot (2003) discute como o silenciamento do corpo da mulher é um dos
maiores pesos sobre a sua voz na história, primeiramente porque ele é imediatamente
associado à função da reprodução e o pudor que o encobre é considerado uma marca da
própria "feminilidade". Nota-se que sua representação é recorrente, porém o corpo feminino
exposto continua silencioso, “objeto do olhar e do desejo, fala-se dele. Mas ele se cala”
(PERROT, 2003, p. 13). Sobre essa ambiguidade, a autora observa a presença de um corpo
privado que deve permanecer oculto e de um corpo público que é exibido, apropriado e
carregado de significação. Citando Pitágoras, para quem “uma mulher em público sempre está
deslocada” (apud PERROT, 2003, p. 14), ela observa como a moda e a obrigação da beleza a
permanecem da função de cabide, prêmio que glorifica a virilidade do homem, e vai buscar
exemplos na história cultural de elementos que comprovem tal aspecto; como é o caso do
pudor sobre determinadas partes do corpo – pernas, tornozelo, cintura – cada uma objeto de
censura que traduzem obsessões eróticas de uma época; ou ainda o caso da publicidade, que
sempre atrelou a imagem da mulher à do produto, tornando o corpo feminino o seu principal
suporte.
Contrário a esse uso apelativo do corpo público e objetificado está a tentativa de
silenciamento dos corpos singulares, amenizando as suas particularidades até se alcançar um
modelo impessoal. A sociedade impõe às mulheres que sejam discretas, “a mulher decente
não deve erguer a voz. O riso lhe é proibido. Ela se limitará a esboçar um sorriso” (PERROT,
2003, p. 15). Há também o silêncio sobre as etapas de transformação do corpo feminino, que
fazem com que, por exemplo, a experiência da primeira menstruação seja marcada pelo medo
e vergonha, Perrot (2003, p. 16) chama atenção para a “assimetria entre a glória do esperma
viril e a mancha do sangue feminino”. No outro extremo do ciclo, a menopausa ocorre numa
semi-clandestinidade em sociedades patriarcais, já que quando a mulher perde a função
reprodutora essa fica privada, aos olhos públicos, também da sedução, perdendo o status de
mulher e tornando-se algo indefinível atrelado aos adjetivos velha/assexuada/desnecessária.

A vida sexual feminina, cuidadosamente diferenciada da procriação, também


permanece oculta. O prazer feminino é negado, até mesmo reprovado: coisa de
prostitutas. A noite de núpcias é a tomada de posse da esposa pelo marido [...]Daí o

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fato de tantas noites de núpcias se assemelharem a estupros. [...] Daí também o fato
de essa sexualidade coagida ser um ‘dever’ (o famoso ‘dever conjugal’) ao qual
algumas procuram se subtrair por meio de uma centena de artifícios [...]. Fala-se em
‘frigidez’ feminina como se fosse um fato da natureza, e não resultado de práticas
sociais. (PERROT, 2003, p. 16-17)

Daí a necessidade de as mulheres se apropriarem delas, de lutarem pelo conhecimento


e pela autonomia de seu corpo, grande bandeira do feminismo contemporâneo. Pela primeira
vez, o corpo foi o centro das lutas públicas das mulheres. “Nosso corpo, nós mesmas”:
direitos do corpo, conhecimento do corpo, livre disposição do corpo na procriação e na
relação amorosa. O silencio vencido. Uma forma de revolução em suma. Em muitos aspectos:
nós vivemos uma revolução” (PERROT, 2003, p. 26). Não é a toa que um dos lemas do
feminismo contemporâneo seja: comece uma revolução, ame o seu corpo.
A história do feminismo como movimento social organizado inclui uma série de
narrativas que convergem no sentido de ampliar as discussões e direitos reivindicados pelas
mulheres na sociedade patriarcal. São, portanto, diferentes pautas que estão sendo postas à
mesa. Dentre elas, a questão do corpo sempre foi central, seja nas reivindicações pela
legalização do aborto nos países influenciados pela moral cristã em que ainda é uma prática
clandestina, seja nas políticas de combate à violência doméstica, ou nas reivindicações, muito
presentes em movimentos como a Marcha das Vadias, por exemplo, em que se problematiza a
cultura do estupro e a autonomia da mulher sobre o próprio corpo. Com isso, queremos
demonstrar que o discurso sobre o erotismo presente na poesia de autora feminina cumpre
também um papel político na pauta feminista.

Durante séculos, esse corpo foi tema de discursos masculinos, objeto dos mais
variados saberes, lugar de uma fala abundante, relegando a voz feminina ao silêncio.
Hoje, as mulheres apropriaram-se dele, lutando pelo conhecimento e pela autonomia
de seu corpo, grande bandeira do feminismo contemporâneo. (XAVIER, 2008, p.
22)

O corpo é um agente da cultura. A forma com que nos cuidamos, vestimos e


alimentamos funcionam como poderosas formas simbólicas em que uma cultura se inscreve e
se reforça através da linguagem corporal (BORDO, 1997). O corpo, portanto, é também lugar
de controle social. “Nossos corpos são treinados, moldados e marcados pelo cunho das formas
históricas predominantes de individualidade, desejo, masculinidade e feminidade” (BORDO,
1997, p. 20). As mulheres, particularmente, gastam muito tempo com o tratamento e a
disciplina de seus corpos, como facilmente podemos constatar no nosso convívio e

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experiência. As mulheres aprendem desde meninas a controlar a sua aparência e a


submeterem-se ao que é apresentado na sua cultura como sendo o ideal de feminilidade.
Susan Bordo, portanto, defende que o disciplinamento e a normatização do corpo
feminino historicamente funcionam como uma estratégia durável e flexível de controle social.
Por isso a necessidade de um discurso político eficaz sobre o corpo feminino, que retome o
discurso feminista dos anos 1960/1970 sobre o corpo. Tal discurso encontra ressonância na
obra das escritoras que lidam com seu próprio poder e eficácia erótica, numa tentativa de
reimaginar sua própria sexualidade (O’NEILL, 1997).
É relevante observarmos como o discurso médico higienista cumpriu um papel
importante na repressão à sexualidade e aos prazeres ao longo dos tempos. “O cientificismo
imperante nesse período permitiu aos médicos expandir o controle sobre a vida de homens e
mulheres, normatizando os corpos e os procedimentos, disciplinando a sociedade, ordenando
a sexualidade e os prazeres” (MATOS, 2003, p. 109). E à mulher, como mãe, recaiu a maior
responsabilidade e disciplinamento.
Dessa forma, as restrições impostas quanto ao pleno e livre desempenho de sua
sexualidade foram mais acentuadas em relação à mulher, vista como um ser passivo em
relação à vivência erótica e sexual masculina. A sexualidade feminina foi condicionada ao
instinto materno, que corresponderia ao instinto sexual no homem. A virgindade torna-se
elemento identificador da pureza de sangue, perpetuação do nome e da propriedade familiar,
garantia da saúde da prole e distância dos perigos das doenças venéreas (MATOS, 2003).
“Surgem mais duas representações estereotipadas da natureza da mulher: a passiva e
sexualmente inocente e a mulher perigosa sexualmente, identificada com a prostituta”
(MATOS, 2003, p. 117). Tal dualidade estereotipada, como sabemos, permanece no
imaginário machista de nossa sociedade atual, que comumente distingue as mulheres entre
aquelas castas e aptas para o casamento e as mulheres experientes, vividas, a quem só se
destinam as aventuras sexuais descompromissadas. As primeiras seriam o exemplo da
“mulher de valor”, e as segundas, por sua prática sexual ativa fora do matrimônio, são tidas
como vadias, mulheres de “segunda categoria” e portadoras de menos direitos.
Ou seja, atrelou-se, sob os ditames da moral cristã e com a legitimação da medicina, a
prática sexual com a questão reprodutiva. Além disso, assumia-se que o homem era o
indivíduo por natureza forte, agressivo e inteligente, capaz de impor o desenvolvimento da
civilização urbana, enquanto a mulher possuía natureza passiva e fecunda, e por isso deveria

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perpetuar a civilização através da maternidade. Ao destacar as potências masculinas em


relação às femininas, o discurso médico também foi responsável por legitimar o domínio do
homem sobre a mulher em nossa sociedade (MATOS, 2003).

Finalmente, podemos começar a ver como o erótico pode ser usado também na luta
pessoal como política. Uma inabilidade de expressar facilmente vários aspectos de
nossa sexualidade, através das palavras e imagens correntes, ilustra as possibilidades
epistemológicas do erótico. Ele pode insinuar as lacunas e os vazios, os silêncios
dentro de nossos discursos sexuais. (O’NEILL, 1997, p. 81)

É por romper com os interditos sobre a sexualidade feminina, usualmente taxadas


como assexuadas, que o erótico de autoria feminina cumpre sua função política. Além disso,
ao inverter o papel da mulher na literatura erótica, comumente a posição passiva de ser
contemplada, reivindica também o direito a se expressar sobre o sexo e a sua liberdade como
agente sexual ativo. Angélica Soares (2000) observa como desde a década de 1980 aumenta o
número de escritoras que trazem o erotismo como temática de seus escritos. A professora
avalia que, não por acaso, a questão da sexualidade vem sendo uma pauta na luta pela
emancipação feminina desde a década anterior.

O grande investimento poético no erotismo pelas mulheres parece-me ter muito a


ver com esse momento de intenso trabalho de conscientização da necessidade de
ruptura dos paradigmas repressores. Ao radicalizar os modos libertários de vivenciar
o desejo, o poema acena com uma via de construção identitária e de
redimensionamento das relações entre homem e mulher. (SOARES, 2000, p. 119)

Outro aspecto destacado por Soares (2000) é o fato de a autoria feminina realizar uma
inversão nos papéis representados na poesia erótica tradicional. Ao remeter a relações
heterossexuais, a voz feminina dos poemas dirige-se ao amado do sexo masculino, criando
assim novas representações do corpo masculino como objeto de desejo.

Mudando a perspectiva vigente ditada pelo modelo masculino dominante, a fala


feminina marca uma de suas diferenças na apresentação do homem como objeto de
desejo, ressaltando-lhe a beleza, que é intensificada pela participação ativa da
mulher no ato amoroso. A atuação transformadora da mulher é indício, no poema, de
outro modo de rompimento da tradição opressiva. (SOARES, 2000, p. 122-123)

De acordo com Silvana Carrijo Silva (2008), há dois pesados interditos que recaem
sobre a mulher e que ainda resultam num terceiro: o interdito à palavra, o interdito ao
exercício pleno de sua sexualidade e o interdito à enunciação sobre a sexualidade. Tal
silenciar envolve tanto questões relativas ao ato erótico propriamente dito, quanto às que
dizem respeito às representações do corpo feminino e do corpo masculino (SILVA, 2008).

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Mas a própria autora afirma que “a uma interdição prossegue uma transgressão” (SILVA,
2008, p. 160). Assim, concordamos que os poemas de Colasanti aqui apresentados realizam
essa tripla transgressão: do silêncio, da sexualidade e da enunciação erótica.

“Corpo adentro”: a lírica erótico-amorosa colasantiana

A presença de eros na poética de Colasanti dialoga com a tradição da poesia erótica,


no entanto, rompe com o lugar comum que nega voz às mulheres para enunciarem sobre sua
sexualidade. Analisaremos dois poemas, que diferem na maneira como o erotismo se
apresenta. No primeiro, temos o que chamamos de lírica erótico-amorosa. É um poema
erótico que aproxima sexo e amor, isso é revelado, por exemplo, na interlocução afetiva entre
a voz lírica feminina e o parceiro sexual, que também se apresenta como companheiro de
vida. É um aspecto interessante pois dentro da lírica colasantiana não encontramos o que
poderíamos chamar de poemas amorosos, numa perspectiva romântica ou de amor cortês. A
temática amorosa surge sempre relacionada com a temática erótica, revelando alto grau de
intimidade entre os parceiros.
Em vários dos poemas colasantianos sobre sexo há a presença de um interlocutor, o
homem amado com quem a voz lírica feminina dialoga sobre o sexo. Está enquadrado,
portanto, no que Chacham & Maia (2004) apontam como a norma cultural de que o sexo tem
que ocorrer em condições bem determinadas para merercer o título de “normal” e “reflete o
quanto as relações sexuais legítimas estão atravessadas pelo mito do amor romântico e pelo
valor da reprodução na relação sexual, se não mais como finalidade principal, pelo menos
como potencialidade” (CHACHAM & MAIA, 2004, p. 79).
Se por um lado identificamos uma relação heterossexual monogâmica, percebemos
também a transgressão em falar sobre sexo com o parceiro. Os casais não costumam
conversar sobre sua vida sexual, o que costuma gerar desinteresse e frustração, e notadamente
às mulheres, principalmente as mais velhas, sofrem grande tabu para falar sobre sua
sexualidade. O que percebemos no poema a seguir é que a voz lírica feminina que enuncia
sobre o sexo, tem conhecimento sobre seu corpo, sobre o corpo do parceiro, sobre sexo e o
que dá prazer. Percebemos que esse diálogo é fundamental para uma vida sexual saudável e
prazerosa para ambos.

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A enunciação erótica no poema de Marina Colasanti é marcada tanto pela naturalidade


com que evoca a questão sexual, como também pela inversão que provoca ao representar o
corpo masculino como objeto do desejo feminino, uma figura literária pouco usual. “Por
instaurar o corpo feminino como território não somente desejado, mas também desejoso, a
poesia de Marina Colasanti convida a um (re) pensar o papel estabelecido para os sujeitos do
ato amoroso em seus (des) encontros” (SILVA, 2008, p. 160). Vejamos como a construção
dessa imagem metaforizada é bem trabalhada no poema “Corpo adentro”.

Corpo adentro

Teu corpo é canoa


em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo


de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu


pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.

(COLASANTI, 1993, p. 60)

Nesse poema não há a marca de gênero que nos permita afirmar com mais exatidão o
sexo da voz lírica. No entanto, dadas as representações simbólicas da penetração sexual (“me
afio e enfio”; “teu corpo é pele exata para o meu”, além do próprio título “corpo adentro”)
podemos supor que o eu lírico agora é masculino. Essa é a leitura feita por Silva (2008, p.
163): “A ideia um tanto óbvia de que é o homem que adentra no corpo da mulher é atestada
na segunda estrofe, pelo vocábulo expresso em gênero masculino, “invasor””. Não
concordamos necessariamente com tal “obviedade” apontada, até porque há outras
modalidades sexuais, e nem podemos excluir as relações homossexuais; além disso,
analisamos que o vocábulo “invasor”, no masculino, pode referir-se ao vocábulo também
masculino “corpo”, e o corpo pode ser masculino ou feminino. Apesar de tal ressalva,
corroboramos que tal leitura é, sim, legítima e será aqui tomada.

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Os pronomes relativos à segunda pessoa (“Teu corpo”) se fazem presentes, marcando


a interlocução entre os amantes. Tais pronomes aparecem em constante interação com
pronomes e marcas verbais da primeira pessoa (“Teu corpo é canoa / em que desço / [...] me
entregando à deriva”; “Teu corpo é casulo / [...] onde fio / me afio e enfio”; “Teu corpo é pele
exata para o meu”). “Assim, o eu se deleita com o tu, adentrando no corpo do outro,
valorizando-o como cenário em que o desejo se realiza, por meio da expressão anafórica “Teu
corpo”, no decorrer do poema” (SILVA, 2008, p. 163).
A figura de linguagem mais explorada é a metáfora, elas são diversas: “Teu corpo é
canoa”; “Teu corpo é casulo”; “Teu corpo é pele exata para o meu”. “O erotismo produz algo
que vai além da mecânica da sexualidade animal e se torna significado, torna-se metáfora, rito
e cerimônia a expressarem a ação humana que supera a prática sexual” (SILVA, 2008, p.
166).
Silva (2008, p. 163) destaca que a imagem da canoa reflete a sensação de aconchego e
intimidade, associada à ideia de movimento e imprevisão, ressaltados pelos termos deriva e
naufrágio. Nesse navegar “entregue às sensações do deleite, o amado renuncia à qualquer
controle racional das emoções, embalado pelo doce deslizar-se no corpo da amada”,
procurando o naufrágio e se entregando à deriva. Nessa mesma estrofe destacamos também a
relação entre Eros e Tânatos (da psicanálise de Freud, o impulso vital e o impulso para a
morte) presentes na antítese “vida abaixo / morte acima”. Tal relação nos remete também ao
eufemismo francês utilizado para designar o orgasmo: la petite mort (pequena morte), que
mais uma vez se associa ao naufrágio e à deriva, a completa perda dos sentidos decorrentes da
sensação pós o ápice sexual do gozo.
Na segunda estrofe, além da metáfora do casulo, símbolo de fechamento e proteção, o
emprego dos versos “invasor recebido / com licores” sugere “uma espécie de valorização das
secreções naturais do órgão genital feminino por meio da comparação com licores: as delícias
dos licores correspondem às delícias da intimidade” (SILVA, 2008, p. 163). Mais uma vez
acreditamos que os licores não necessariamente emanam apenas do corpo feminino, podendo
referir-se também ao esperma masculino e aos líquidos pré-orgásticos. A terceira estrofe
coroa as metáforas da penetração sexual prazerosa com imagens de elementos da natureza
(pena de garça, brilho de romã, aurora boreal), tal recorrência de imagens indica a busca de
intimidade, de doce aconchego proporcionado pelo corpo do outro.

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Ao escrever poemas eróticos sob uma perspectiva feminina, ressaltando características


da experiência sexual feminina, Marina Colasanti rompe com a repressão exercida por muitos
anos a sufocar a voz das mulheres e inibindo o seu direito de expressar-se sobre o sexo. Tal
repressão é ainda exercida atualmente, e reproduzida por piadas e jargões que visam a
inferioridade da mulher “vulgar” e a super valoração da virgindade feminina.
A expressão “abrir as pernas”, por exemplo, é extremamente pejorativa quando se
aplica às mulheres que cedem ao desejo e praticam sexo. Por séculos o mundo da cultura
tentou dividir as mulheres entre as que “abrem as pernas” (possuem vida sexual ativa e/ou
vários parceiros) e as que “abrem os livros” (resistem aos impulsos sexuais e restringem-se à
atividade intelectual, numa dicotomia ultrapassada entre corpo e mente, como se uma
atividade excluísse necessariamente a outra). Colasanti subverte esse significado no poema
“Essa amplidão”, pois as pernas abertas passam a significar uma experiência transcendental
de autoconhecimento e libertação espiritual em comunhão com a natureza.

Essa amplidão

Abertas pernas neste fim de tarde


Não é apenas teu corpo que me invade
Deitado sobre o meu.
Essa amplidão lá fora entre montanhas
O ouro dos ipês, as quaresmeiras,
O chamar-se dos cães, os
Sons distantes
Tudo me adentra e lambe
Como água
Tudo me acaricia
tudo me expande.

(COLASANTI, 2009, p. 121)

Há um paralelismo entre o ato sexual conotado nos versos “Abertas pernas neste fim
de tarde / Não é apenas teu corpo que me invade / Deitado sobre o meu.” e a presença da
natureza selvagem dos versos seguintes (“Essa amplidão lá fora entre montanhas / O ouro dos
ipês, as quaresmeiras, / O chamar-se dos cães, os / Sons distantes”.). As aliterações e
assonâncias nasaladas em destaque reforçam uma sensação de eco decorrente da amplidão do
lado de fora e seus sons distantes. Os elementos da natureza evocados (montanhas, árvores,
animais) que estão lá fora são apropriados pela voz lírica da mesma forma que o órgão
masculino a penetrar por entre as pernas abertas na intimidade do casal. Dessa forma, a
“invasão” do corpo masculino não é tida como algo ruim ou a ser evitado, pelo contrário, essa
invasão é capaz de promover o encontro com o que há de sublime na natureza, como se, ao

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abrir as pernas, a mulher experienciasse a amplidão dos sentidos, a expansão de sua própria
natureza. Os verbos adentrar, lamber, acariciar e expandir reafirmam a conotação erótica
libertadora. Aqui ao abrir as pernas a mulher não estaria perdendo nada, pelo contrário, ela
adquire um poder advindo da natureza capaz de expandir a sua existência.
Neste terceiro poema, temos um erotismo que não implica em relação amorosa,
portanto, que poetiza o sexo em si, desvinculando-o de um parceiro amado. A diferença aqui
seria a ausência da interlocução erótica; o sexo é tratado numa perspectiva pessoal, porém,
continua feminista e libertadora.

Sim, pode-se

Pode-se abrir as pernas


Com a mesma firmeza
De uma quilha que avança.
Abrir-se à alheia entrada
E ser aquele que aproa.
Pode-se porto ser
E navegante.

(COLASANTI, 1998, p. 76)

Neste curto e belo poema temos algumas das metáfora já abordadas anteriormente.
Destacamos o primeiro verso “Pode-se abrir as pernas”, em que já problematizamos na
análise do poema “Essa amplidão” como Marina Colasanti subverte o significado da
expressão pejorativa às mulheres. No poema “Sim, pode-se” essa subversão fica ainda mais
evidente, pois ela problematiza a própria noção de ativo e passivo na relação sexual. Tem-se
na heteronormatividade uma concepção de sexo muito centrada na penetração vaginal pelo
pênis, de modo que considera-se o masculino como polo ativo, o que penetra, e o feminino
como polo passivo, como se seu papel se limitasse a “abrir as pernas”. O poema colasantinao,
no entanto, afirma que “Pode-se abrir as pernas / Com a mesma firmeza / De uma quilha que
avança.”, ou seja, “abrir as pernas” não é um gesto meramente passivo, mas um gesto de
firmeza, de avanço. Ao comparar com um quilha que avança, Colasanti aponta para a
possibilidade de abrir mares, desbravar. Ser porto e ao mesmo tempo navegante,
apontandando a multiplicidade de sentidos que o ato sexual abarca, a mulher é a que acolhe e
é também a que desbrava, mais uma vez o sexo é visto como um ato de libertação.

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Considerações finais

Defendemos aqui que Marina Colasanti em seus poemas eróticos expressa sua
subjetividade lírica a partir de um olhar feminista e questionador, rompendo com as amarras
que circunscreviam o horizonte de expectativas feminino sobre o sexo e o corpo, limitando-os
ao casamento e à maternidade. Há em seus poemas eróticos a manifestação do prazer
feminino, expresso como parte da natureza humana, e, por isso, a autora se insere na tradição
de poesia erótica de autoria feminina iniciada no Brasil com Gilka Machado.
Compreendemos que o desnudamento para falar sobre o corpo e o sexo é um
mecanismo de resistência feminista muito bem representado na lírica colasantiana. A mulher
que assume a perspectiva de uma conhecedora de seu corpo e do corpo do outro se demonstra
capaz de assumir as rédeas de seu próprio prazer – o prazer das mulheres que outrora era algo
negado. Com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sendo ampliados (mesmo que
ainda encontrem grande resistência conservadora, vide exemplo o tabu sobre aborto e a
cultura do estupro), a própria vivência e imaginação sobre o sexo das mulheres se expandiu.
Isso altera a noção do senso comum sobre a falsa ideia de que as mulheres não falam nem se
interessam por sexo (antes apenas estimulada e reconhecido quando vinculada ao matrimônio
e à maternidade). O recurso do erotismo na lírica colasantiana representa a ruptura, bem como
a consagração do seu direito de gozar do (e com o) próprio corpo e emitir impressões,
opiniões, construindo imagens sobre esse território antes proibido.
Neste trabalho evidenciamos uma preocupação recorrente da poetisa com as questões
do corpo e sexualidade, pois as representações de Eros se repetem como uma manifestação de
conhecimento sobre o corpo feminino e sobre o corpo do outro, afinados com uma
experiência quase mística de libertação do prazer feminino e de compreensão ou aceitação da
passagem do tempo, em interlocução erótica com o parceiro. Analisamos tais características
nos poemas em consonância com as mudanças vivenciadas pelas mulheres na modernidade
tardia graças ao feminismo. O processo de transformação da intimidade nas sociedades
modernas alterou significativamente o papel feminino na esfera privada, de modo que não
podemos pensar em revolução sexual sem imaginar as pautas feministas sobre o direito ao
próprio corpo e prazer.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
417

Referências

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mulher na literatura contemporânea. Brasília: UnB, 2008. p. 19-34.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
418

REPRESENTAÇÕES FEMININAS NO TEATRO E NO CINEMA

PARTICIPANTES: ALEN DAS NEVES SILVA; ALESSANDRA APARECIDA MUNIZ DORNELAS;


DÉBORA DE SOUZA; ISABELA ARAÚJO CALMON; LOUISE PINTO; LUIZ SOUZA; MARCOS
VINÍCIUS DAS NEVES; RENATA DE MELO GOMES; ROSA BORGES DOS SANTOS

María Antonia: Transgredir é morrer fisicamente, porém sobreviver na memória

Alen das Neves Silva (UFMG)142


E-mail: litneves@yahoo.com.br
Marcos Antônio Alexandre (UFMG-CNPq)143
E-mail: marcosxandre@yahoo.com

Para se pensar sobre o que é transgressão, tem-se que compreender que as sociedades
criam diversas regras e ditames para que se mantenha a ordem. Quando se diz, que tal ato ou
fato é transgressivo, isso se dá porque há uma ruptura destas esferas preestabelecidas.
Partindo desta definição de transgressão, a análise da mesma dentro de uma instituição social
é bastante profícua. A presente comunicação se apoia, em um primeiro momento, na Religião.
Delimitada a instância para se observar como ocorre a transgressão, uma questão é bastante
pertinente: a partir de qual aresta estamos observando a noção de religião? Sobre esta questão,
faz-se necessária a busca por um conceito de religião, assim nos apoiamos aos argumentos de
Eliane Moura da Silva (2004) que assevera que “A definição mais aceita pelos estudiosos,
para efeitos de organização e análise, tem sido a seguinte: religião é um sistema comum de
crenças e práticas relativas a seres sobre-humanos dentro de universos históricos e culturais

142
Alen das Neves Silva; aluno de pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Letras da UFMG. Área de Concentração: Mestrado em Literaturas Modernas e Contemporâneas e
linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural.
143
Marcos Antônio Alexandre é Doutor em Letras pela Faculdade de Letras – UFMG. Professor Associado na
Faculdade de Letras da UFMG. É Bolsista do CNPq, Coordenador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares
da Alteridade da FALE-UFMG. Realizou pós-doutorado com pesquisa em Teatro Negro no Instituto Superior de
Arte, Havana, Cuba, e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA (2008-2008); e pós-doutorado
com pesquisa em Performance no Instituto Hemisférico de Performance e Política na NYU (2017).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
419

específicos.”144. A formulação de Silva, em seu texto “Religião, Diversidade e Valores


Culturais: conceitos teóricos e a educação para a Cidadania” (2004), será o norte para refletir
sobre a peça María Antonia de Eugenio Hernández Espinosa. A obra foi escrita em 1964 e
montada pela primeira vez em 1967. Neste texto dramatúrgico é apresentada a história de
María Antonia que é uma bela mulata, ou como ela mesma se considera (uma negrona), que
provoca nos homens os mais impetuosos desejos e nas mulheres certa inveja e desprezo. A
peça trata não apenas da questão sexual que ela expele por onde caminha, mas sim de uma
ruptura com os padrões femininos que imperavam na sociedade cubana dos anos 60.
A autora María Antonia Miranda Gonzáles (2007), em seu texto “No solo ennegrecer
el feminismo… también feminizar la negritud: fragmentos de vida de una escritora cubana”,
comenta sobre a sociedade cubana da época e esclarece:
(…) En este momento se debate mucho el tema racial en Cuba. Pero en él no abunda
el enfoque de género. La mujer afrodescendiente aprovechó las oportunidades que
ofreció la Revolución, están en el sector de la educación, la salud, la ciencia, la
cultura... Pero, por otra parte, se ha popularizado otra imagen de ella. Con la
apertura del turismo, por ejemplo, en carteles al efecto, aparece la mulata como un
atractivo más junto a las playas o el ron, incluso hay un Ron Mulata. Se está
vendiendo la imagen de la mujer afrodescendiente como objeto sexual. Por otra
parte, en la televisión es notable su poca presencia tanto en la programación
dramática como en los posts educativos y otros”. (Inés María Martiatu). De esta
forma se sigue reproduciendo la visión de la mulata como mujer-cuerpo, hiper-
sexualizada, como ya expresó Verena Stolke (1991) en su artículo, “O enigma das
interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade, reaparece: “O ditado cubano do século
XIX: “No hay tamarindo dulce, ni mulata señorita” (não existe tamarindo doce nem
mulata virgen). [Stolcke, 1991, p. 38]. (GONZÁLES, 2004. p. 15-16)145

Assim, com toda esta carga preconceituosa e inferior, a respeito das mulheres,
impregnada na sociedade cubana pós 1959, a peça María Antonia, para Duke Daw (2012), é

144
SILVA, Eliane Moura da. Religião, Diversidade e Valores Culturais: conceitos teóricos e a educação para a
Cidadania. In: Revista de Estudos Religiosos. 2004. Disponível em:
http://www.pucsp.br/rever/rv2_2004/p_silva.pdf
145
(...) Neste momento se debate muito o tema racial em Cuba. Mas nele não abunda o enfoque de gênero. A
mulher afrodescendente aproveitou as oportunidades que a revolução ofereceu, estão no setor da educação, a
saúde, a ciência, a cultura...Mas, por outra parte, popularizou-se outra imagem dela. Com a abertura do turismo,
por exemplo, em cartazes para efetuar aparece a mulata como um atrativo mais junto à praia o ao rum, inclusive
há um Rum Mulata. Se está vendendo a imagem da mulher afrodescendente como objeto sexual. Por outra parte,
na televisão é notável sua pouca presença tanto na programação dramática quanto nos post educativos e outros.
”(Inés María Martiatu). Desta forma segue reproduzindo a visão da mulata como mulher-objeto, hiper-
sexualizada, como já expressou Verena Stolke em seu artigo; “O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo,
sexualidade, reaparece: “O ditado cubano do século XIX: “No hay tamarindo dulce, ni mulata señorita” (não
existe tamarindo doce nem mulata virgen). [Stolcke, 1991, p. 38]. (GONZÁLES, 2004, p. 15-16)145

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
420

Un drama cargado y polémico, reconocido como la mayor tragedia cubana, María


Antonia nos ofrece la oportunidad de contemplar teatro negro durante su primer
estreno en los años sesentas, época ideológicamente menos dispuesta a tolerar tal
producción por su fijación en la religiosidad yoruba y el eje más que sugestivo de la
marginación del pueblo negro. La puesta en escena de esta obra teatral se hizo
posible por su enfoque en la comunidad negra prerrevolucionaria, intención que
apoyaba la ideología del momento de condenar la condición de la sociedad antes de
1959. (DAW, 2012, p. 25)146

Sendo uma mulher à frente de seu tempo, observa-se que a personagem María Antonia
rompe com vários estereótipos (o feminino, o negro etc.) e, ao mesmo tempo, se submete a
eles devido ao amor que nutre por Julián. Retomando a definição de religião de Silva (2004),
observa-se que a protagonista a transgride, uma vez que joga com a mesma. Na peça, María
Antonia exterioriza seu total descaso pela crença que, de certa forma, compartilha. Ao
demonstrar que ser mulher (e negra), esta (s) questão (ões) não irá (ão) determinar sua
condição de sujeito, pois, como protagonista, rompe com as barreiras físicas e espirituais.
Neste sentido, falar de María Antonia é estar em contato com a transgressão em seu estado
bruto, pois mesmo no campo religioso quanto no sociocultural ela será a experiência e o
experienciar controverso aos moldes.
A negação religiosa de María Antonia se nota no momento em que ela não se sente
parte da religião, de sua madrinha. Na conversa entre Batibo, Madrina e ela, o diálogo (ou a
discussão) dos sujeitos demonstra sua fé, mas o triângulo conversacional é composto por
María se opondo a Batibo e a Madrina, pois estes expõem que María Antonia está
desrespeitando a Orulá, eles a recordam que foi ela quem o buscou. Ao ser inquirida por
Batibo, que já a julga como alguém que tem medo da situação religiosa que se encontra, ela
assevera que “Yo no le tengo miedo a nadie. Si tuviera miedo no estaría frente a Ifá.”
(ESPINOSA, 2005. p. 268); ao ouvir tais palavras o pai de santo continua seu ritual até
quando a questiona sobre ser filha de Oxum. A protagonista apresenta novamente a
transgressão à crença, pois o responde, “Yo no conocí madre.” (ESPINOSA, 2005, p. 269).
Essas palavras ressoam nos quatro cantos do ambiente sagrado, o peji (local onde são

146
Um drama carregado e polémico, reconhecida como a maior tragédia cubana, María Antonia nos oferece a
oportunidade de contemplar o teatro negro durante sua primeira apresentação nos anos sessenta, época
ideologicamente menos disposta a tolerar tal produção por sua fixação na religiosidade Iorubá e o eixo más que
sugestivo da marginação do povo negro. A encenação desta obra teatral se fez possível por seu enfoque na
comunidade negra pré-revolucionária, intenção que apoiava a ideologia do momento de condenar a condição da
sociedade antes de 1959. (DAW, 2012, p. 25)146

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
421

executadas as consultas com as energias), abalando as noções de pertencimento à


religiosidade.
Em relação ao pertencer à religião, a protagonista serpenteia de acordo com suas
necessidades. Assim, María Antonia partilha das questões da religião, de matriz africana,
quando lhe traz algum benefício; nota-se tal estratégia em seu diálogo com Yuyo (homem que
a deseja como fêmea):
YUYO. Lo que te había prometido no va a poder a ser.
MARÍA ANTONIA. ¿A mí? Será a madrina y a Ochún, que no es lo mismo.
Y lo que se promete a Ochún...
YUYO. Pero, figúrate, la vida se está poniendo de yuca y ñame pa’l pobre.
No puedo regalar las viandas.
MARÍA ANTONIA. (Echándole – devolviéndole – las viandas en la
carretilla.) No me llores más miseria. Lo que pasa es que tienes a otra.
YUYO. (Echándole las viandas en su jaba.) De sobra sabes que el cráneo que
tengo contigo. Los sesos se me hacen agua pensando nada más en ti. No, no,
no te burles. Mirá cómo tiemblo sólo de tocarte. (La agarra y ella se le
escapa. Violento) ¡Me gustas mucho!
MARÍA ANTONIA. (Distante de él. Violenta) Esa frutabomba me gusta a
mí. (Yuyo se la echa en la jaba.) Y esos anones. (Se los echa.) Y áquel melón.
(Se lo echa. La entrega la jaba.) Cuando yo le digo: no hay en la tierra un ser
más bueno que tú. (Yéndose.) ¡Que Elegguá te proteja y te abra todos los
caminos! (ESPINOSA, 2005, p. 283-284)147

Já que conseguiu suprir suas necessidades, o uso de sua fé se corporificou nas linhas
acima, porém é perceptível a transgressão que ocorre, uma vez que ela mesma não se aceita
filha de santo, mas quando existem vantagens, mesmo não se enxergando e nem se
compreendendo como parte da sociedade religiosa de matriz africana, o fará porque deste
modo solidifica sua capacidade de caminhar no ser e não ser.
Com esta exposição do transgredir executado pela protagonista, as palavras de Michel
Foucault (2006) corroboram que María Antonía está sempre no limiar em todas as situações.

147
YUYO. O que te havia prometido não poderá ser.
MARÍA ANTONIA. A mim? Será a madrinha e a Oxum, que não é o mesmo. E o que se promete a Oxum...
YUYO. Mas, imagine-se, a vida se põe de aipim e inhame para o pobre. Não posso te presentear com as
comidas.
MARÍA ANTONIA. (Retirando-os – devolvendo-os – na banca.) Não chore miséria. O que passa é que tem
outra.
YUYO. (Colocando os alimentos na sacola.) De sobra sabe que o crâneo que tengo contigo. O cérebro me faz
água quando penso em ti. Não, não, não te engane. Olha como tremo somente de te tocar? (A agarra e ela escapa.
Violento). Gosto muito!
MARÍA ANTONIA. (Distante dele. Violenta). Essa bomba de fruta eu gosto. (Yuyo se la echa en la jaba.) E
estes anones. (Lança-os.) E aquele melão. (Os lança. E a entrega sacola.) Quando te digo: não há na terra um ser
mais bondoso que você. (Indo-se.) Que Elegguá te proteja e abra todos seus caminhos! (ESPINOSA, 2005, p.
283-284)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
422

Foucault (2006, p. 33) diz que “transgressão leva o limite até o limite de seu ser: ela o conduz
a atentar para a sua desaparição iminente, a se reencontrar naquilo que ela exclui (mais
exatamente talvez a se reconhecer aí pela primeira), a sentir sua verdade positiva no
movimento de sua perda.”. Pensando na noção de limite exposta por Foucault no trecho
acima, a protagonista demonstrará que o alcançou quando viola a transgressão religiosa. Ou
seja, como o raio de Iansã que rasga as noites tempestuosas, María Antonia retorna ao solo, a
seu solo: aceitar-se como filha de Oxum, que negava veementemente. Desta maneira,
Hernández Espinosa (2005) apresenta o regresso transgressivo em uma conversa entre María
Antonia e sua madrinha, tal ato é marcado linguisticamente pela descrição da ação que a
personagem estará quando do aceite de ser filha de santo:
MADRINA. Hija de Ochún, alégrate con nosotros, muévete, reina, para que tus días
sean tranquilos, mujer; suerte para tu espíritu y bendición para tu eleddá148.
MARÍA ANTONIA. (Cayendo de rodillas ante ella)149 ¡Ampárame y guíame! Lava
mi espíritu con tu bondad y limpia mi vergüenza con agua fresca, madre mía. Hazme
nueva, como el primer día que vi tus ojos llenos de compasión, mi madre.
(ESPINOSA, 2005, p. 297)150

Pelos caminhos tortuosos que María Antonia nos faz caminhar, nesta busca intensa em
compreender-se, apenas com o auxílio dos elementos semióticos que se alcança entender
melhor sua transgressão à religião, que se perfaz quando Foucault (2006) escreve que ela (a
transgressão lato sensu – aqui deslocada à religiosa),

(...) não opõe nada a nada, não faz nada deslizar no jogo da ironia, não procura
abalar a solidez dos fundamentos: não faz resplandecer o outro lado do espelho para
além da linha invisível e intransponível. Porque ela, justamente, não é violência em
um mudo partilhado (em um mundo ético) nem triunfa sobre limites que ela apaga
(em um mundo dialético ou revolucionário), ela toma, no âmago do limite, a medida
desmesurada da distância que nela se abre e desenha o traço fulgurante que a faz ser.
(FOUCAULT, 2006, p. 33).

148
Elédda: tradução para o espanhol da palavra em iorubá, eledá, que faz referência ao ser ultraterreno que
protege o iniciado (filho de santo), ou seja, no Brasil pode ser compreendida com a união entre o dono da cabeça
(Olori – em iorubá) e o protetor (Elemi – em iorubá) do iniciado.
149
Grifo meu – para indicar o de maneira linguística o transpor e o retorno ao limite que expõe Foucault.
150
MADRINA. Filha de Oxum, alegra-te com nós, mova-se, rainha, para que teus dias sejam tranquilos, mulher,
sorte para teu espírito e bendição para teu eleddá.

MARÍA ANTONIA. (Cai de joelhos diante dela) ampara-me e guia-me! Lava meu espírito com tua bondade e
limpa minha vergonha com água fresca, minha mãe. Faz-me nova, como o primeiro dia que vi teus olhos cheios
de compaixão, minha mãe. (ESPINOSA, 2005, p. 297)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
423

Os referidos elementos semióticos estão expostos nas linhas de Espinosa (2005, p.


298-299), pois o ritual do transe se desenha pela mescla das palavras, sons e materiais físicos
(instrumentos musicais, cores que remetem à Oxum e dança) que é materializado no texto
dramatúrgico pela alternância entre a fala da personagem principal e das indicações cênicas.
Vejamos:
María Antonia entra al río junto con las Iyalochas. Cae una posesa de Ochún. Se
enfrenta a María Antonia. Con los gestos característicos de esta danza151, la invita
a bailar, a reír, a cantar, a imitarla en su alegría y sensualidad. (ESPINOSA, 2005,
p. 298)152
La danza va in crescendo. El Akpwón153 canta persistentemente sobre María
Antonia, que está a punto de caer en trance. Para precipitar la posesión hace sonar
la campanilla de metal amarillo. María Antonia trata de escapar, pero las
Iyalochas y la Ochún le hacen un cerco, El Akpwón le conversa al oído. María
Antonia da un grito y violentamente rompe el cerco. Huye (ESPINOSA, 2005, p.
299, grifos meus)154
MARÍA ANTONIA. Mi cabeza no le pertenece a nadie. ¿Viste cómo me la quisieron
robar? Por un minuto creí perderla. Ochún no encuentra cabeza y me busca, pero no
se la voy a dar, aunque en ello me vaya la vida. Anoche, antes de que tú llegaras, Ikú
vino a verme; Ikú viene a verme todos los días; me persigue. (ESPINOSA, 2005, p,
299)155

Quando se está diante das linhas que reproduzem as falas de María Antonia, nota-se
que a eleição do tipo de fonte é para delimitar o que é (será) a voz da personagem, já nas
linhas em itálico as sensações, trejeitos e demais ações performáticas das personagens. Será
dentro deste extrato que se notará como os elementos semióticos compõem e conferem
plasticidade à cena. Desta maneira, as estruturas linguísticas em negrito demonstram
respectivamente como a transgressão ocorre. “Con los gestos característicos de esta danza”,
“campanilla de metal amarillo”, “grito” e “Huye”; consegue-se entrar na dinâmica cênica,
pois o gestual da dança compõe um imaginário específico deste orixá e, assim fornecendo

151
Grifo meu.
152
María Antonia entra ao rio junto com as Iyalochas. Caem uma possuída de Oxum. Enfrenta-se a María
Antonia. Com os gestos característicos desta dança, a convida a dançar, a rir, a cantar, a imitar a sua alegria e
sensualidade. (ESPINOSA, 2005, p. 298)
153
Akpwón pode ser lido aqui como Ogam, um participante que coordena os cânticos e as músicas nos rituais do
candomblé.
154
A dança vai crescendo. O Akpwón canta persistentemente sobre María Antonia, que está a ponto de cair em
transe. Para precipitar a possessão se faz soar o sino de metal amarelo. Maria Antónia trata de escapar, mas as
Ialorixá e a Oxum a cercam, o Akpwón lhe fala ao ouvido. María Antonia grita y rompe violentamente a
barreira. Foge. (ESPINOSA, 2005, p. 299)
155
MARÍA ANTONIA. Minha cabeça não pertence a ninguém. Viu como a quiseram me roubar? Por um minuto
acreditei perde-la. Oxum não encontra cabeça e me busca, mas não a irei dar a ninguém, ainda que nisto me vá a
vida. Ontem à noite, antes que você chegasse, Ikú veio me ver, Ikú vem me ver todos os dias, persegue-me.
(ESPINOSA, 2005, p, 299)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
424

maleabilidade à cena. A este momento, soma-se a presença deste sino que além de ditar a
canção específica (no caso a do Orixá Oxum) carrega a coloração amarela que é o elemento
visual desta energia, por meio deles ela se fará presente no ritual. Por fim, o grito e huye que
são a materialidade semiótica da transgressão, pois é com eles que María Antonia, como um
obé156 rompe sua prisão dentro desta religião.
María Antonia, como as águas dos rios, rompe quaisquer obstáculos que se apresentam
em seu caminho. Observando esta personagem, a transgressão exala de seu corpo, o
questionar é uma de suas características primordiais, é necessário encaminhar os olhares para
os outros campos da vida da protagonista do texto de Hernández. O relacionamento entre
María Antonia e Julián é bastante conturbado, disto quem lê a obra não tem dúvida, pois
ambos com personalidades fortes (pensando nos mitos iorubás acerca da vida de Oxum, pode-
se perceber algumas, ou melhor, várias similitudes)157 a tensão será a força motriz deste casal.
A este relacionar, as palavras de Espinosa (2005) escancaram que o embate será o fio
condutor, e mantenedor, dos amantes até o trágico fim. Assim, o diálogo entre Julián e María
Antonia já se inicia com uma desconfiança e ela o questiona:

MARÍA ANTONIA. ¿Cuál de tus putas te amaró como un perro? (Se la arranca del
cuello)
JULIÁN. Estate quieta. (Ríe)
MARÍA ANTONIA. Contéstame, Julián, ¿con qué mujer estabas?
JULIÁN. (Evasivo.) ¿Eh? Solo. (Burlón) Jugueteando con los recuerdos.
MARÍA ANTONIA. No sabes mentir. Para mentir hay que tener la risa bien
escondida.
JULIÁN. (Con alarde.) Nací riéndome. Mi madre me lo dijo: ese día el cielo, la
tierra y las aguas bailaron y rieron. Yemayá sacudió sus sayas y las penas se
convirtieron en risa y se agitaron como cascabeles. (Tomándola por la cintura.) Ese
día también vino Ochún y se bañó en mi boca y convertimos la vida en miel.
MARÍA ANTONIA. (Ha palpado las tarimas) Estás hirviendo como si se hubieran
revolcado contigo. ¿Con qué mujer has estado?
JULIÁN. (Violento) ¿Acaso un hombre no puede estar solo?
MARÍA ANTONIA. (Enfrentándosele) Sí, pero no un hombre que lleva la roña por
dentro...
JULIÁN. ¡Qué sabes tú lo que llevo por dentro!...

156
Obé: Espada que a Orixá Oxum carrega.
157
Quando se diz das similitudes entre Oxum e a personagem María Antonia, refere-se à sedução, ao ciúme e ao
desejo de posse. No mito é relatado que Oxum chega ao reino de Oyó, onde Xangô é rei, e se apaixona por ele,
não mede forças para atingir seu objetivo, obter o amor de Xangô. Sendo conhecedora do prato favorito deste rei,
o amalá, um preparado de quiabo, o prepara para ele. O nobre fica extasiado com o sabor e se envolve com
Oxum. Este rei é possuidor de uma beleza, força e justiça enorme e, deste modo despertava o desejo de outras
mulheres, como Oiá. Que ao perceber a felicidade que o casal; Oxum e Xangô viviam decidi perguntar a ela o
que fez para ser assim tão feliz. Devido à sagacidade de Oxum, ela ensina a Oiá o amalá, porém diz que
necessita colocar um elemento especial: orelha. Prontamente Oxum é atendida por Oiá. Ao servir para Xangô,
este por sua justiça se irrita com a atitude de Oxum, que agiu pelo ciúme, e por entender ser dona dele, e a
abandona. Assim, os elementos deste mito, aqui contado, estão espelhados nas figuras dos protagonistas da peça.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
425

MARÍA ANTONIA. ... no un hombre que le tiene miedo al silencio y a su propia


voz cuando no grita.
JULIÁN. ¿Cuánto vale hasta ahí? (Pausa) ¿Qué te pasas? Antes no hablabas así.
MARÍA ANTONIA. Por eso me has abandonado.
JULIÁN. Julián no abandona nunca a María Antonia. Soy tu dueño y tuyo.
(ESPINOSA, 2005, p. 289-290)158

Sempre permeado pela desconfiança vão mantendo este relacionamento. Julián se


mostra como um dependente do amor de María Antonia, porém, de uma maneira clara declara
que a ela pertence e as demais mulheres que por um acaso tenham passado por suas pernas,
braços, boca e sexo jamais se comparariam a ela. Como uma metáfora, ele expõe seu desejo
por ela. Esta escrita de Espinosa performará o trágico fim deste amor. Espinosa (2005) coloca
na voz de Julián que
JULIÁN. Me gusta como cocinas el carnero.
MARÍA ANTONIA. Ve mañana a comerlo a casa de Madrina.
JULIÁN. ¿El carnero nada más?
MARÍA ANTONIA. ¡Con tantas sazones que has probado!
JULIÁN. Pero la tuya es la más sabrosa. (ESPINOSA, 2005, p.
290)159

158
MARÍA ANTONIA. Qual de tuas putas te amarou como um cachorro? (Se arranca do pescoço)

JULIÁN. Fique quieta. (Ri)

MARÍA ANTONIA. Responda-me, Julián, com que mulher estava?

JULIÁN. (Evasivo.) Eh? Sozinho. (Sarcástico) jogando com as lembranças.

MARÍA ANTONIA. Não sabe mentir. Para mentir tem que manter o riso bem escondido.

JULIÁN. (Com alarde.) Nasci rindo. Minha mãe me disse: esse dia o céu, a terra e as águas dançaram e riram.
Yemayá sacudiu suas saias e as penas se converteram em sorriso e agitaram como sinos. (Agarrando-a pela
cintura.) Esse dia também veio Ochún e se banhou em mina boca e convertermos a vida em mel.

MARÍA ANTONIA. (Apalpando os estrados) está fervendo como se houvesse transado contigo. Com que
mulher esteve?

JULIÁN. (Violento) Por acaso um homem não pode estar sozinho?

MARÍA ANTONIA. (Enfrentando-o) sim, mas não um homem e que leva a sujeira por dentro...

JULIÁN. Que sabe você o que levo por dentro!...

MARÍA ANTONIA. ... não um home que tem medo ao silêncio e a sua própria voz quando não grita.

JULIÁN. Quanto vale até lá? (Pausa) O que te passa? Antes não falava assim.

MARÍA ANTONIA. Por isso me abandonou.

JULIÁN. Julián não abandona nunca a María Antonia. Sou tu dono e teu. (ESPINOSA, 2005, p. 289-290)158

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
426

O questionar de Julián confirma que, metaforicamente, a deseja e que tal desejo


sobressai a qualquer possível mulher que se coloque diante dele. Porém, a María Antonia
(assim como a Oxum) o extremo é o menor caminho para que se esteja com o ser amado. A
dúvida sobre o amor que Julián tem por ela, a atormenta tanto que já apresenta a possibilidade
de que ela pode ir ao extremo, a morte, para que não sofra neste relacionamento. Por mais que
ela saiba que para Julián qualquer envolvimento carnal, não significa nada além de pura
necessidade masculina, a machuca saber que, mesmo sua beleza (e sexualidade) sendo objeto
de desejo de todos os homens, a ele ainda pode ser (e é) necessário estar com outras mulheres
para satisfazê-lo sexualmente. Desta maneira o diálogo prossegue e nos deparamos com as
falas abaixo:
JULÍAN. (Acariciándola). Madrina puede esperar.
MARÍA ANTONIA. ¿Y tú no?, ¿eh? Me dijeron que me apartara de ti.
MADRINA. (Afuera, lejana) ¡María Antonia!
JULÍAN. ¿Y lo vas a hace?
MARÍA ANTONIA. No estés tan seguro.
JULÍAN. (Inseguro) ¿Serías capaz de dejarme?
MARÍA ANTONIA. (Con rabia) Sería capaz de matarte.
JULÍAN. ¡Mátame! (ESPINOSA, 2005, p.290)160

Não restam dúvidas de que o amor dos protagonistas é intenso e que a luta para o
manter será levada ao máximo, pois a personalidade forte de María Antonia requer um “jogo
de cintura” e, apenas um bom lutador (de boxe no caso) será possuidor e saberá como desviar
para vencer e alcançar o grande prêmio: amar e ser amado. Em relação ao ato de ser amado e
amar, Julián é o expoente, mas neste trajeto sempre há desvios que se perfazem das mais
distintas formas. Na vida de María Antonia, Carlos será este desvio, ou seja, para muitos pode
ser a bebida, o jogo, o sexo, as drogas etc.; porém a negra se embriagará com o amor. Este
será diferente ao que nutre pelo boxeador. Com Carlos, no princípio, viverá o amor infantil,
aquele que se apoia nos sentimentos e não mais nas formas do corpo e na sexualidade. Em
María Antonia, não se nega que, como argumenta Kauss & Belchior (2013), esta peça “reflete
a mulher e a sua busca por si mesma, por sua voz, seus sentimentos e valores que irão
permitir-lhe encontrar sua real identidade, que será construída, muitas vezes, na transgressão

160
JULÍAN. (Acariciando-a). Madrinha pode esperar.
MARÍA ANTONIA. E você não?, Eh? Disseram para me afastar de ti.
MADRINA. (De fora, distante) María Antonia!
JULÍAN. E o vai fazer?
MARÍA ANTONIA. Não esteja tão seguro.
JULÍAN. (Inseguro) Seria capaz de me deixar?
MARÍA ANTONIA. (Con rabia) Seria capaz de matar-te.
JULÍAN. Mata-me! (ESPINOSA, 2005, p. 290)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
427

para chegar a si mesma. ” (KAUSS & BELCHIOR, 2013, p. 118). Com este pensamento,
Espinosa (2005), por meio de suas palavras, descortina que a voluptuosidade de María
Antonia será subjugada por um sentimentalismo, que ela negava a outro homem que não fosse
Julián. O dramaturgo esculpe esta relação:

MARÍA ANTONIA. Eres fuerte. Hace calor, ¿por qué no te quitas la camisa?
(Carlos obedece. Ella lo ayuda.) Algún día tendrás una esposa que te haga esto, te
preparé el agua para bañarte, la comida. Te casarás con ella, ¿verdad? (Se deja caer
de rodillas ante él.) Tendrás muchos hijos, jimaguas, llenará tu casa de alegría y
Dios te los bendecirá. Serás feliz. (Carlos la besa. Rehuyendo.) Yo no podría
retenerte. Soy una porquería.
CARLOS. (De rodillas.) Tú estás llena de amor.
MARÍA ANTONIA. Un hombre me lo ha robado, muchacho, como se lleva un perro
a trozo de carne.
CARLOS. Te he apresado en mis sueños y te palpaba en mi memoria, y te
acariciaba. Te veía correr, bailar, reír, y te esperaba aquí.
MARÍA ANTONIA. Déjame. No quiero más líos de los que tengo. Tú eres distinto a
los demás. Ya es tarde.
CARLOS. Mírame.
MARÍA ANTONIA. Me da pena.
CARLOS. ¿Por qué? No importa, entonces yo también cerraré los ojos. Dale
permiso a mi cuerpo para que te encuentre.
Juntos, de rodillas, sus cuerpos se buscan con los ojos cerrados. Se abrazan.
(ESPINOSA, 2005, p. 289-290)161

Neste momento, María Antonia se depara com uma forma de amor, que se pode
nomear como o amor puro; que não havia recebido de qualquer outro homem, nem mesmo
Julián, mas que ela oferecia sem qualquer vergonha a ele. Já que eles (os homens) sempre a
viam apenas pela beleza, sensualidade, carne e sexo; seu contato com Carlos não se apoiará na
voluptuosidade que suas cadeiras desenham por onde caminha, a ela será descortinado uma

161
MARÍA ANTONIA. É forte. Faz calor, por que não tira a camisa? (Carlos obedece. Ela o ajuda.) Algum dia
terá uma esposa que te faça isto, prepare a água para o banho, a comida. Casará com ela, verdade? (Deixa-se cair
de joelhos diante dele.) Terá muitos filhos, gêmeos, encherão sua casa de alegria e Deus te abençoará. Será feliz.
(Carlos a beija. Esquivando-se.). Eu não podia te segurar. Sou uma porcaria.
CARLOS. (De joelhos.) Você está cheia de amor.
MARÍA ANTONIA. Um homem o roubou de mim, garoto, como se leva um cachorro, com um pedaço de carne.
CARLOS. Em meus sonhos te capturei e em minha memória te apalpava, e te acariciava. A via correr, dançar,
rir, e te esperava.
MARÍA ANTONIA. Deixe-me. Não quero mais problemas além dos que já tenho. Você é diferente dos demais.
Já é tarde.
CARLOS. Olhe-me.
MARÍA ANTONIA. Me dá pena.
CARLOS. Por que? Não importa, então também fecharei os olhos. Darei permissão a meu corpo que te encontre.
(Caem juntos, de joelhos, seus corpos buscam-se como os olhos fechados. Abraçam-se. (ESPINOSA, 2005, p.
289-290)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
428

forma de amor que dentro da ótica de Terry (2007), no texto “La pasión según María
Antonia”162, a bela negra o experimentará

Cuando llega el amor limpio, María Antonia está condenada, arrastra demasiadas
culpas para albergarlo. La desgracia es inminente. Su destino, regido por los dioses,
tocó fondo. Pero si la existencia de la mujer es dura, sobre todo si es pobre y es
negra, la del hombre no lo es menos. Él está condenado a un rol y debe cumplirlo,
aunque en ello le vaya la vida. María Antonia se enfrenta a un campeón de boxeo,
pero es un hombre joven y casi puro quien la última. (TERRY, 2007, p. 4)163

A relação de María Antonia e Carlos atinge um estado. O amor como o seu mal, que
irá promover todos os demais atos transgressivos que esta mulher executará até atingir o
ápice; morrer para viver na memória dos seus e produzir neles, em especial em Julián, o
sentimento da culpa pelo fim que a protagonista terá

María Antonia despliega un papel que contiene unos polvos. Sin que él se dé cuenta,
lo echa en un jarro de chequeté. MARÍA ANTONIA. (Acercándosele.) ¿Ves?
Todavía estoy buena, ¿verdad?
JULIÁN. Más buena que nunca.
MARÍA ANTONIA. (Sensual.) Arráscame la espalda. Suave, suave, más suave, mi
negro. Ya estoy de nuevo alegre. ¿Ves? (Ríe extendiéndole el jarro.) Toma.
JULIÁN. (Con un ligero temblor en la voz.) ¿Qué es eso?
MARÍA ANTONIA. ¡Chequeté! Te lo mandó Madrina. Ella sabe que a ti te gusta
mucho el chequeté.
JULIÁN. (Cogiendo el jarro.) ¿No le habrás echado algún daño pa’ que me rompa?
MARÍA ANTONIA. (Arrebatándole el jarro.) Si tienes miedo, lo boto pa’ que la
tierra se envenene.
JULIÁN. (Arrebatándole el jarro. Violento.) Yo le tengo miedo a eso.
MARÍA ANTONIA. (Burlona) No te hagas el guapo. Estás temblando.
JULIÁN. ¿Yo?
MARÍA ANTONIA. Tus ojos me lo dicen.
JULIÁN. Un abakuá no le tiene miedo a la muerte.
MARÍA ANTONIA. Cuando la cree muy lejos, pero cuando siente que le pisa la
sombra, tiembla como un niño chiquito… Y tú tiemblas, no mientas.
JULIÁN. ¡Toma un poco y echámelo en la boca!
MARÍA ANTONIA. (Llevando el jarro a la boca.) No. Hoy quiero que seas tú, mi
negro santo.
Julián se lleva el jarro a la boca. Ella se lo apresura.
JULIÁN. ¡Qué amargo!

162
TERRY, María Inés Martiatu, 2007. La pasión según María Antonia. In: Blog INES MARÍA MARTIATU -
LITERATURA AFROCUBANA, Nov. / 2006. Disponível em:
http://inesmartiatu.blogspot.com.br/2007/03/la-pasin-se gn-mara-a ntonia.html. Acesso
em 30 de agosto de 2017 às 11:09.
163
Quando chega o amor limpo, María Antonia está condenada, arrasta muitas culpas para sustenta-lo. A
desgraça é iminente. Seu destino, regido pelos deuses, a tocou profundamente. Mas se a existência da mulher é
pesada anda mais se é pobre e negra, a do homem não é menos. Ele está condenado a um papel e deve cumpri-lo,
ainda que nele lhe vá a vida. María Antonia enfrenta-se a um campeão de boxe, mas é um homem jovem e quase
puro quem a derrota. (TERRY, 2007, p. 4)

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429

MARÍA ANTONIA. Es la naranja agria, mi negro. Esta vez a Madrina se le fue


mano.
JULIÁN. (Doblándose con espanto) ¿Oíste?
MARÍA ANTONIA. Parece que Ikú ha salido esta noche a recoger a los espíritus
traviesos.
JULIÁN. No, no. Es el tambor de Nkrikamo. Nkrikamo habla por Ékue. Y Ékue está
muy ofendido por que le han envenenado a un monina. ¿No oyes? (Sus piernas
flaquean. Cae de rodillas. Como un rezo.) Oteyo bienyaroko ot eteyobían yandín sún
ecobio sankén bire ekekorikó.
MARÍA ANTONIA. ¡Destapa el muerto, Julián! Es por ti que rezas. Tu muerte ha
llegado, monina Julián. Es por ti que llora Ékue.
Julián se yerguee, dan un grito. Cae muerto. Riendo y bailando alrededor del
cadáver.
MARÍA ANTONIA. ¡Vamos a reír, a gozar, a bailar! ¡Vamos! ¡Rómpete de alegría
como yo! (Cae sobre el cadáver de Julián) ¡Baila, campeón, baila! (Transición)
¿Ves? Hay cosas que no podemos cambiar, aunque queramos. (con un prolongado
gemido) ¡Juilán! (Se abraza al cadáver. Silencio profundo.) Qué silencio. Si
hubiéramos podido vivir. (ESPINOSA, 2005, p. 355-356)164

164
María Antonia traz um papel que contém um pó. Sem que ele se dê conta, atira nele um jarro de chequeté.
MARÍA ANTONIA. (Aproximando-se.) Olha? Ainda estou boa, verdade?
JULIÁN. Mais boa do que nunca.
MARÍA ANTONIA. (Sensual.) Arranha minha costa. Suave, suave, mais suave, meu negro. Já estou alegre de
novo. Percebe? (Ri levantando o jarro.) Toma.
JULIÁN. (Com um ligeiro tremor na voz.) O que é isso?
MARÍA ANTONIA. ¡Chequeté! Madrinha que mandou para você. Ela sabe que você gosta muito o chequeté.
JULIÁN. (Pegando o jarro.) Não há feito nada para que me prejudica.
MARÍA ANTONIA. (Arrebentando o jarro.) Se tem medo, jogue na terra para que ela se envenene.
JULIÁN. (Arrebentando o jarro. Violento.) Tenho medo disto.
MARÍA ANTONIA. (Sarcástica) Não faça o inocente. Está tremendo.
JULIÁN. Eu?
MARÍA ANTONIA. Teus olhos me dizem.
JULIÁN. Um abakuá não tem medo da morte.
MARÍA ANTONIA. Quando crê que ela está distante, mas quando a sente pisando em tua sombra, treme como
um bebê… E você treme, não minta.
JULIÁN. Tome um pouco e me dê de sua boca!
MARÍA ANTONIA. (Llevando el jarro a la boca.) Não. Hoje quero que seja você, meu negro santo.
Julián leva o jarro à boca. Ela o apresa.
JULIÁN. Que amargo!
MARÍA ANTONIA. É a laranja amarga, meu negro. Desta vez Madrinha errou a mão.
JULIÁN. (Virando-se com espanto). Ouviu?

MARÍA ANTONIA. Parece que Ikú saiu esta noite a recolher os espíritos travessos.

JULIÁN. Não, não. É o tambor de Nkrikamo. Nkrikamo fala por Ékue. E Ékue está muito ofendido por que
envenenaram a um querido. Não escuta? (Suas pernas bambeiam. Cai de joelhos. Como uma reza.) Oteyo
bienyaroko ot eteyobían yandín sún ecobio sankén bire ekekorikó.

MARÍA ANTONIA. Revele o morto, Julián! É por ti que rezam. Tua morte chegou, querido Julián. É por você
que Ékue chora.

Julián se levanta, dá um grito. Cai morto. Rindo e dançando em volta do cadáver.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
430

Podemos demonstrar que María Antonia transgride o ato de amar, pois a possibilidade
de perder seu amor (Julián) para outras mulheres a “obriga” ir ao extremo do amor; dar fim ao
amado já que não conseguirá viver este amor. Porém, ao cometer esta atrocidade, seu destino
ligado ao mesmo fim de Julián. O envolvimento entre María Antonia e Carlos produzirá a
tragédia de sua vida. Após ser rejeitado pela negra o jovem deflagra sua fúria; mesmo diante
de total demonstração de ódio, María Antonia mantém seu caráter transgressor, porém este se
apresenta não apenas como um repúdio ao seu novo homem, mas ao ato de amar que se pode
ler como a figura de Carlos. Defronte deste cenário, Espinosa expõe que se envolver,
amorosamente, com María Antonia possui apenas um fim e este momento é verbalizado,
poética e plasticamente, nas linhas abaixo:

CARLOS. (Sacando el cuchillo.) ¡María Antonia!


La gente trata de aguantarlo.
MARÍA ANTONIA. ¡Déjenlo, que ése no tiene paso para mí! (ESPINOSA, 2005,
p.366)
MARÍA ANTONIA. ¡Nunca saque un arma si no vas a usarla!
Carlos, desesperadamente, la abraza.
MARÍA ANTONIA. ¡Dale!
Carlos, con violencia, e hunde el cuchillo en su sexo. María Antonia contiene un
grito. Se besan. Se desprende de él. Gira dando un grito. Ochún la ha poseído. Cae
muerta. Silencio. Cumachela aúlla. Atraviesa la escena.
TINO. (Desde afuera) ¡Mataron a María Antonia! ¡Tremenda puñalá! ¡un bárbaro el
tipo! ¡La pilló con otro; ella estaba enyerbá y empezó a bailar! Le fue p’arriba. El
socio hasta le rogó, pero ella lo desprestigió gritándole que no era hombre; se
arrancó el vestido: ¡dale! Una sola y no hizo el cuento. Un mantial de sangre. ¡El
macho la rajó en dos! (Ríe burlón.) (ESPINOSA, 2005, p. 367-368)165

MARÍA ANTONIA. Vamos a rir, a gozar, a dançar! Vamos! Alegre-se com eu! (Cai sobre o cadáver de Julián)
Dança, campeão, dance! (Transição) Nota? Há coisa que não podemos mudar, por mais que desejemos. (com um
prolongado gemido) Julián! (Se abraça ao cadáver. Silêncio profundo.) Que silêncio?! Se pudéssemos ter
vivido. (ESPINOSA, 2005, p. 355-356)
165
CARLOS. (Tirando a faca.) María Antonia!
A gente trata de barrá-lo.
MARÍA ANTONIA. Deixem-no, que esse não tem passagem para mim! (ESPINOSA, 2005, p.366)
MARÍA ANTONIA. Nunca tire uma arma se não a vai usar!
Carlos, desesperadamente, a abraça.
MARÍA ANTONIA. Vamos!
Carlos, com violência, afunda a faca em seu sexo. María Antonia contém um grito. Beijam-se. Desprende-se
dele. Gira dando um grito. Ochún a possuiu. Cai morta. Silencio. Cumachela uiva. Atravessa a cena.
TINO. (De fora) Mataram a María Antonia! Tremenda punhalada! Um bárbaro o moço! A encontrou com outro;
ela estava drogada e começou a dançar! Foi para cima. O parceiro até rogou, mas ela o desprestigiou gritando
para ele que não era homem; a arrancou o vestido: Vamos! Uma sozinha não fez o conto. Um manancial de
sangue. O macho a rasgou em dois! (Ri sarcástico.) (ESPINOSA, 2005, p. 367-368)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
431

Dizer sobre o se relacionar com esta bela mulher é retornar ao conceito de transgressão
de Michel Foucault (2006). A protagonista mesmo após sua morte comove por todo o trajeto
que a levou ao fim trágico. Durante o ato de Carlos, Espinosa não deixa de expor as
características de María Antonia, o desprezo pelas regras sociais impostas em Cuba, o
questionar perene (como o rio que seu orixá comanda) de todas as situações de sua vida e
pensando neste jeito peculiar de María Antonia, uma justificativa, se podemos utilizar este
termo, é a ideia que Dawn (2002) expressa sobre o texto de Espinosa é que, o autor

trae a escena una elaboración compleja, María Antonia revela lo socioeconómico, lo


etnorracial y lo afrorreligioso en una representación escénica que abre la puerta para
una crítica alrededor de la forma de visualizar y retratar a la mujer afrocubana en
roles impuestos como portadora de la herencia religiosa, figura emocionalmente
inestable, objeto sexual y sensual, retrato vinculado a la herencia del mulataje y,
finalmente, en asociación con la violencia y la resistencia. Así es que María Antonia
emerge, protagonizada en una esfera volátil, violenta, en un espacio comunitario
donde la privacidad es un lujo. (DAW, 2002, p. 25-26)166

Com todas estas características apresentadas, o que se pode dizer é que a obra e sua
protagonista consegue fazer-se memória entre os seus. Todos estes traços que perpassaram o
texto dramatúrgico de Hernández Espinosa que promovem uma reflexão a respeito do que e
como se quer (e consegue) se fixar em uma sociedade, María Antonia, nem ao ser morta, não
congrega uma situação de certo modo comum; poderia ser esfaqueada no peito, mas como o
sexo, e o carnal, são uma marca desta mulher seu assassino a finaliza por eles. Ou seja, o que
a conferiu certa notoriedade em vida perdurará rendendo-lhe “fama”, ou melhor, esta filha de
Oxum se converterá em memória para esta sociedade que sempre a julgou e subjugou como o
transgressivo em vida. A esta fama, podemos trazer à conversa as palavras de Kauss &
Belchior (2006) que definem a nova mulher, ou seja, o “eu-femenino”; representado por
María Antonia que
(…) de maneira explicita, a sexualidade feminina e todos seus tabus, o prazer tão
duramente negado e subjugado e que, agora, se torna uma realidade na vida desta
nova mulher que surge, confrontando seu passado de negligência e silêncio,
recriando este novo “eu feminino” e todos seus novos desafios. (…) de maneira
explicita, a sexualidade feminina e todos seus tabus, o prazer tão duramente negado

166
traz à cena uma complexa elaboração, María Antonia revela o socioeconómico, o etnorracial e o
afrorreligioso numa representação cênica que abre a porta para uma crítica em torno da forma de visualizar e
retratar à mulher afro cubana funções(rol) impostas como portadora da herança religiosa, figura emocionalmente
instável, objeto sexual e sensual, retrato vinculado à herança da mulatagem e, finalmente, em associação com a
violência e a resistência. Assim é que María Antonia emerge, protagonizada em uma esfera volátil, violenta, em
um espaço comunitário onde a privacidade é um luxo. (DAW, 2002, p. 25-26)

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432

e subjugado e que, agora, se torna uma realidade na vida desta nova mulher que
surge, confrontando seu passado de negligência e silêncio, recriando este novo “eu
feminino” e todos seus novos desafios. (KAUSS& BELCHIOR, 2013, p. 116)

A escrita de Hernández Espinosa pode estar apoiada em uma sexualidade e


sensualidade, porém tal fato demonstra que estes assuntos se tornam tabus, mesmo sendo tão
corriqueiros a todas as sociedades. Assim, não transformar María Antonia em memória rompe,
ou melhor, transgride com a hipocrisia que comanda a humanidade, já que dar voz a uma
mulher, negra, afrodescendente e sem quaisquer pudores é escancarar as mazelas que ser
marginal (estar à margem) carrega em si. Fazer este sujeito representar metafórica e
metonimicamente a memória individual e coletiva de uma sociedade é demonstrar que esta, a
memória, é uma imagem do abebé de Oxum que reluz como o ouro desta Orixá, mas que
também é traiçoeiro como as águas doces por ela governadas.

Referências Bibliográficas

DAW, Duke. La mujer negra y el popularismo cubano en María Antonia de Eugenio


Hernández Espinosa. IN.: Revista de Lenguas Modernas - N° 17, 2012 / 23-39/ ISSN: 1659-
1933. Disponível em: https://studylib.es/doc/8208499/la-mujer-negra-y-el-popularismo-
cubano-en-maría-antonia-de. Acesso em 03 de setembro de 2017.

ESPINOSA, Eugenio Hernández. 2005. Maria Antonía. Editora Letras Cubanas.

FOCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema/ Michel Foucault;


Organização e seleção de textos, Manoel Barros da Motta: tradução, Inês Autran Dourado
Barbosa. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

GONZÁLEZ, María Antonia Miranda. No solo ennegrecer el feminismo… también feminizar


la negritud: fragmentos de vida de una escritora cubana. 2004. Disponível em:
http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/17redor/17redor/paper/download/168/78. Acesso
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KAUSS, Vera Lúcia Texeira. & Roberta Oliveira, BELCHIOR. 2013. Daiana Caçadora: o
ato de transgredir na construção do sujeito feminino pós-moderno. In.: Revista Ártemis, Vol.
XV nº 1; jan-jul, 2013. p. 111-122. Disponível em:
file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/16642-28911-1-SM.pdf. Acesso em 09 de
setembro de 2017.

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433

SILVA, Eliane Moura da. Religião, Diversidade e Valores culturais: conceitos teóricos e a
educação para a Cidadania. In: Revista de Estudos Religiosos. 2004. Disponível em:
http://www.pucsp.br/rever/rv2_2004/p_silva.pdf. Acesso: 25 agosto de 2017 às 12:40.

TERRY, María Inés Martiatu, 2007. La pasión según María Antonia. In: Blog INES MARÍA
MARTIATU-LITERATURA AFROCUBANA, Nov./2006.Disponível em:
h t t p : / / i n es m art i at u . bl o gs p o t . co m . b r/ 2 0 0 7 / 0 3 / l a-p as i n -s e gn -m ara-
an t o n i a. h t m l . Aces s o em 3 0 d e a go s t o d e 2 0 1 7 às 11 : 0 9 .

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
434

ENGRAVIDEI, PARI CAVALOS E APRENDI A VOAR SEM ASAS – A


REPRESENTAÇÃO DA MULHER NEGRA NO TEATRO BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO

Mestranda Alessandra Aparecida Muniz Dornelas (UFJF)


E-mail: alessandradornelas7@gmail.com

A peça, escrita por Cidinha da Silva, Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem
asa foi encenada, pela primeira, por seis atrizes da companhia de teatro Os Crespos em 2013,
na cidade de São Paulo, com a direção de Lucélia Sérgio e Sidney Santiago Kuanza. Em
2016, a peça se transformou em um monologo, no qual a trajetória de cinco mulheres negras
em condições diferentes de vida é contada. Os dramas vividos por essas mulheres as
interligam a um eixo em comum, todas sofrem preconceitos social, racial e de gênero, porém
nem sempre de forma explícita, por vezes a violência sofrida se dá de maneira velada. As
personagens não possuem nomes, porém são identificadas através de seus papéis social.
A primeira personagem que entra em cena é a “A dona do salão de beleza”. Ela
representa a mulher bem sucedida, pois fez pós- graduação na Argentina e é dona de três
salões de beleza. Na infância, foi uma criança que teve uma boa educação e pode fazer de
tudo o que queria: viagens, aulas de natação e balé. Por conta da dança ela teve que alisar o
cabelo cacheado, se não o fizesse, não poderia fazer o coque igual aos das amigas. Um pouco
mais velha, o pai percebeu que a menina deveria se consultar com psicólogos, pois gostar de
meninos e meninas poderia ser sinais de cabeça confusa. Filha de mãe branca com pai negro,
a mãe sempre lhe dizia que ela era quase branca, e por isso ela não teria problemas se se
envolvesse com homem branco. Com o intuito de embranquecer a família, a mãe a estimulava
a ter paciência com um namorado usuário de drogas, dizia a ela que a família dele a aceitaria
melhor se ela o ajudasse,

Eu perguntei “como assim”? Além de realizar o desejo de minha mãe de


clarear a família, eu era quase branca, por que a família dele teria
dificuldades para me aceitar? Foi aí que vi na minha mãe o olhar
determinado e prático da advogada pra dizer: “os brancos sempre sabem que
é negro; negro é que se confunde”. Aquilo ficou dias [...] na minha cabeça.
Eu fui deixando de alisar meu cabelo. Quando ele encrespou mesmo, meu
pai abriu um sorriso grandão, me abraçou e disse que eu estava linda. Esse
dia foi muito esquisito pra mim. Se meu pai me achava tão linda negra por
que ele gostava tanto de mulher branca? [...] (SILVA, p. 117, 2014).

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435

A próxima a se apresentar ao público é a “A puta”, que tem sua trajetória marcada por
abusos e maus tratos por parte de seus familiares. Aos quinze anos de idade ela foi entregada
pelo pai ao marido, homem que deveria lhe acolher, mas que a espancava, e que fez como o
seu pai, abandonou-a para viver com uma vizinha branca. Ainda quando casada era espancada
periodicamente, ao questionar o porquê das agressões, o marido dizia que havia pagado por
ela um dote de uma escrava e não de uma esposa. Depois que o esposo fugiu com a vizinha
branca, ela se perguntava se ele também batia nela, mulher branca, como a batia. Ao ser
abandonada e entregue a mercê da sorte aos 32 anos de idade, com oito filhos para cuidar e
sem conseguir emprego decente, a prostituição foi que lhe havia restado como meio de vida,
foi
O trabalho que me deu dignidade. Pela primeira vez em muitos anos, desde
que me casei, meu nome próprio voltou a fazer algum sentido. Eu era uma
esperança com um machado às mãos que me permitiria cortar a lenha,
comprar o pão e alimentar meus filhos. (SILVA, p. 119, 2014).

Na sequencia temos a “A princesa do carnaval” que sonhava em mudar de vida através


da beleza. Queria sair da favela, queria estudar e sonhava em ser como as moças das novelas.
Sempre se relacionava com homens negros, pois os brancos que ela se deparava não eram
bonitos. Porém, em um ensaio da escola de samba, conheceu um branco lindo, metido a poeta,
achou que ele era diferente e se envolveu com ele. A princípio, tudo caminhava bem no
relacionamento, até que ela engravidou. Uma vez que a criança não havia sido planejada e
nem desejada, “A princesa” não a queria. Afinal de contas, ela “nunca foi do tipo que ia casar
e ter mil filhos. A irmã é que era assim, ela não! E filho atrapalharia tudo. Ela não ia ter tempo
para estudar, estrelar um programa infantil, ser rainha do carnaval e ainda ser mãe.
Nananinanão!” (SILVA, p. 110). Enquanto que o branco, metido a poeta, dizia a ela que tinha
de deixar uma “sementinha” no mundo, que era para ela não tirar a criança, pois ela tinha
sorte de ter um filho com homem branco. Ele a deixou tempos depois de saber da gravidez,
ela juntou todo o dinheiro que podia e tirou o bebê em uma clínica clandestina, teve medo de
ser punida e, por consequência da pouca higiene da clínica, teve infecção por conta do aborto.
“A alcóolatra” se apresenta narrando os abusos que sofreu quando pequena. Ela era
estuprada pelo pai e, quando o abuso acabava, era espancada pela mãe, para que não falasse
nada e nem sentisse raiva do agressor. Para aliviar a angustia que sentia, usava drogas, o
efeito delas anestesiava o seu corpo fazendo com que a dor parasse. Com muito custo e depois

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436

de se apaixonar por uma mulher, deixou o vício de lado, mas a vergonha e o medo de se
envolver com uma pessoa do mesmo sexo a fez se entregar para o álcool e para um homem,
com o qual teve uma filha e foi abandonada. Sem apoio e sozinha, foi violentada na hora do
parto, como tantas outras mulheres negras que são mal tratadas em hospitais por conta de sua
cor:
Fiquei sozinha, com você. A barriga crescendo. Quando você nasceu senti
dor demais. Me cortaram até o cu, me costuraram sem anestesia. Eu me senti
um bicho sangrando no matadouro. Sofri demais, mas aquela coisinha tão
linda que saiu de mim era meu tesouro, minha força pra viver. (SILVA, p.
115, 2014).

Por fim, temos “A moradora de rua” que se registra aos quinze anos com o nome de
Darlene Glória, “igual a estrela do cinema”. Ainda muito nova Darlene e sua irmã foram
deixadas, pela mãe, com a avó na Bahia. Sonhando com uma vida melhor, a mãe partiu para
São Paulo, onde se casou e, anos depois, foi buscar as duas filhas. Sem a mãe ou pai para
protegê-la, Darlene, com nove anos, era molestada pelo tio pouco mais velho que ela. Após
voltar a morar com a mãe, passou a ser estuprada pelo padrasto.
Darlene queria ter um filho, e teve, para ser seu companheiro, e para alimentá-lo pedia comida
na rua. Certo dia um homem branco, com cara de bom, os levaram para a casa dele dizendo
que lá teria comida, porém antes de comer ele estuprou a personagem. O homem falou para
que ela ficasse na casa, pois tinha comida, mas em troca ela teria que ficar a disposição dele.
Depois de aguentar muito abuso, do tio, do padrasto e do homem branco, ela o mata, como se
estivesse matando porco, como sua avó fazia.
Além das cinco personagens apresentadas acima temos a DJ, que se faz presente ao
longo de todo o espetáculo através de pequenas intervenções – no início do espetáculo, entre
uma fala e outra, e no final da peça. Não podemos considerá-la uma personagem, mas uma
persona que além de ser um apoio técnico, é uma figura de protesto que não contém apena a
sua voz, mas a voz de todas as mulheres que estão sendo representadas na peça.
Ao analisarmos o cenário no qual Cidinha da Silva insere suas personagens,
percebemos que a ambientação reflete a fragmentação da sociedade. As personagens além de
não terem nomes, o que as tornam imperceptíveis para o social, elas, mesmo estando
próximas, não interagem umas com as outras, elas estão sozinhas, mesmo que cercada por
pessoas que compartilham experiências parecidas. Dialogando com essa questão, o cenário da
peça ilustra muito bem o isolamento imposto a mulheres negras. Temos em cena um prédio de

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
437

dois andares, com alguns apartamentos, um salão de beleza e um bar, que funcionam como
uma alegoria da cidade de São Paulo, lembrando que a cidade, a rua, é o lugar comum a
todos, onde muitos se cruzam, mas não se tem interação. Ao pensarmos o espaço da narrativa,
temos que levar em consideração que os grandes centros urbanos, como São Paulo, são
espécies de vitrines que nos estimula, a todo o momento, ao consumo, no mesmo instante em
que nos revela as desigualdades que a modernização desenfreada das grandes cidades,
juntamente com a globalização, provocou nesses lugares.
As cinco mulheres que têm suas vidas contadas na trama, sofrem com a imposição dos
padrões de beleza, sofrem pelos parceiros que elas não conseguem ter, pela vida tranquila que
são vendidas pelas novelas, pela televisão que está presente em cada apartamento que o
cenário reproduz. Por vezes, as mudanças de cenas são feitas com trechos de novelas
nacionais famosas, que vendem estereótipos de relacionamentos perfeitos, que são espécies de
acalanto para aquelas que imaginaram vivenciar um amor que não fosse abusivo:
2º movimento
(Discotecagem com músicas de bossa nova. Todas as TVs são ligadas, nelas
vemos cenas de beijos em telenovelas nacionais. No cenário, a seguinte
inscrição:
O beijo da novela nos restitui a humanidade, o desejo. Não é ópio, é sonho
de padaria, espelho de realidade forjada que não nos reflete. O beijo na
novela é o doce que se pode comprar clicando o power da TV. [...]).
(SILVA, p.114, 2014).

No decorrer de quatro atos as trajetórias de vida de cada personagem são contadas por
elas mesmas. E em alguns momentos, como o que foi citado acima, a trama conta com
projeções de textos curtos que falam sobre a dor e a resistência da mulher negra. Há, também,
a intervenção da DJ, aqui já citada, que é quem conversa com o público e que é dona da voz
centralizadora da peça, a voz dela é a voz de todas as mulheres:

Várias mulheres vivem em mim. Uma mulher que sabe da sua condição no
mundo, e que muitas vezes está alheia a isso; uma mulher que agarra tudo
que vem à sua frente, outra sem paradeiro; uma mulher sufocada, uma
mulher desgostosa da vida com muita sede de viver; uma fêmea
extremamente vulnerável e triste, algumas vezes conformada, outras
revoltadas, às vezes até feliz; sábia, determinada, forte; uma mulher carente
de amor, que ama. (SILVA, p.108, 2014).

Ao contrário das outras, que contam as suas narrativas, a Dj aparece como uma porta
voz das outras mulheres, é a que contêm todas as dores e esperanças, é a que fala por todas,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
438

para dizer que mesmo no silêncio e no anonimato a luta da mulher negra pode ser solitária,
mas não é individual, ela é coletiva. Não ser nomeada e não ter sua história contada sugere
que as questões de que trata a peça podem ser vistas como inerentes a toda a classe que Dj
representa e não apenas a ela. Além disso, a ausência de particularizações evidencia o fato em
si, dando destaque para a luta feminina.
Além da representação coletiva, a falta de nomes nos alerta para outra questão: o
silenciamento e a ausência da mulher nas narrativas. Quando não nomeamos algo, ou, no caso
da história, alguém, tiramos a identidade desta pessoa, o a faz singular no mundo. Aqui se faz
uma crítica a coisificação da mulher, que é vista como “aquela que faz/fez/é aquilo” ou
“fulana filha/esposa de alguém”, mas quase nunca como sujeito de sua história.
Na literatura brasileira percebemos que a produção literária – mesmo com o advento
dos Estudos Culturais, da Literatura de Minoria e do Movimento Negro no país–, ainda é
majoritariamente de autoria masculina, branca e de classe média alta, e com personagem de
iguais características. Segundo a pesquisadora Regina Dalcastagnè, em seu livro Literatura
brasileira contemporânea: um território contestado, a presença masculina é superior que a
feminina, até mesmo, entre os personagens. O que se agrava ainda mais quando se trata de
escritoras e/ ou personagens femininas negras, que quando personagens, quase nunca são
retratadas como as protagonistas e/ ou narradoras, a maioria são personagens secundários. O
que revela e comprova a ausência, o silêncio, a omissão da literatura para com a nossa
história.
Tanto quanto na literatura, o teatro é um espaço de ausências e exclusão. Abdias do
Nascimento percebendo o não lugar do negro (a) em nossa sociedade e, principalmente, nas
artes, funda em 1944 o Teatro Experimental do Negro, o TEN,

que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da


cultura negro-africana, degradados e negados por uma sociedade dominante
que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação
metropolitana europeia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a
inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização
social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da arte.
(NASCIMENTO, p. 210, 2004).

O TEN teve um importante papel social na sociedade da época, não só pela


visibilidade que deu ao ator negro, mas por ir além do teatro em si. Antes de começarem a
ensaiar qualquer peça, o grupo ofereceu aulas de alfabetização e de cultura geral, cerca de 600

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
439

pessoas se inscreveram nos cursos. A grande preocupação do TEN era denunciar os


“equívocos e da alienação dos chamados estudos afro-brasileiros e fazer com que o próprio
negro tomasse consciência da situação objetiva em que se achava inserido” (NASCIMENTO,
p. 211, 2004). Assim como TEM, ao longo das décadas de sua existência, os grupos de teatro
negro são importantes meios de propagação da cultura afro-brasileira, de discussão, debate e
resistência. Os espaços mistos, comuns a brancos e negros, são de extrema importância por
serem meios de troca e construção coletiva com o outro, de troca de experiências diferentes
que podem ser discutidas, além de estar trabalhando com um setor com outras necessidades,
que no somatório pode um apoiar o outro em lutas diversas, sem que um diminua ou fale pelo
outro. Por outro lado, é no espaço exclusivo – como o espaço do TEN no século XX, da Cia.
Os Crespos e Teatro das Oprimidas, atualmente–, que se tem a identificação e o
reconhecimento das identidades, é o local que se reconhecem as histórias, é nesse espaço que
se discute e se pode perceber que as opressões do dia-a-dia são parecidas dentro daquela
comunidade, e que juntos o grupo pode se fortalecer e lutar dentro de uma coletividade, contra
o seu opressor.
Percebendo a importância do espaço exclusivo Cidinha da Silva nos apresenta cinco
trajetórias de vida que foram inspiradas na vivência de cerca de 60 mulheres, que participaram
de uma série de entrevista feita pela a equipe da companhia de teatro Os crespos, com
objetivo de construir uma peça voltada para o cotidiano e a privacidade de mulheres negras. A
partir desta experiência pôde-se explorar, criticamente, questões que dizem respeito a
determinados aspectos da vida social e particular dessas mulheres que são comuns a elas, mas
que se diferenciam das outras, mulheres brancas. A peça tem o claro objetivo de dar voz
aquelas mulheres que não tem sequer nome para o sistema vigente. Sobre a perspectiva de
explorar e dar visibilidade a essas mulheres que a autora traçou perfis psicológicos
independentes uns dos outros, mas igualmente atacados pela ordem social excludente.
É preciso ressaltar que ao optar por escrever uma peça para uma companhia de teatro,
Os crespos, cuja característica primordial é a militância contra o preconceito racial, e com
histórias de mulheres negras, Cidinha da Silva denuncia não só as violências contra mulheres
e/ ou por causa da cor, ela dá visibilidade para mulheres negras, que ao longo da história do
feminismo brasileiro foram silenciadas. Temos que lembra sempre que

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
440

As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o


discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim
como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão
sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras.
(CARNEIRO, 2011)

Ao falar de questões femininas, temos que nos questionar sobre quais mulheres
estamos falando, pois a reivindicação da mulher branca não será a mesmo da mulher negra.
Sueli Carneiro ao falar da condição da mulher negra na América Latina e sobre a ótica do
feminismo negro, nos alerta sobre para essa questão:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou


historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que
mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um
contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca
reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como
frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam
durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras,
quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as
feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!
Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto.
Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados.
Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de
mulatas tipo exportação. (CARNEIRO, 2011)

As cinco histórias resumidas no inicio do texto, são as histórias mais recorrentes nas
entrevistas feitas para a produção da peça, logo não podemos dizer que se tem uma história de
uma única mulher, mas sim de mulheres. O que há em Engravidei, pari cavalos e aprendi a
voar sem asas, são vozes de um coletivo que através da luta, da militância, tomou a posição
de sujeito de sua história, assumindo a sua trajetória que durante muito tempo foi contada por
terceiros, de forma estereotipada e pejorativa, deixando a cultura e a identidade do negro de
lado, como se houvesse verdade única e que obedecesse a um senhorio responsável por traçar
o seu destino. A autora perpassa por questões de âmbito social e denuncia da ordem vigente,
se posicionando como sujeito político que tem o controle de sua história, liberta das amarras
sociais que ainda insistem em dizer qual é o papel da mulher, do negro e do pobre na
sociedade, problematizando dessa forma, teorias engessadas, identidades fixas e lugares pré-
estabelecidos.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
441

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2010.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América


Latina a partir de uma perspectiva de gênero. 2011. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/375003/mod_resource/content/0/Carneiro_Feminism
o%20negro.pdf. Acesso em: 30 ago. 2017.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território


contestado. São Paulo: Editora Horizonte, 2012.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid


Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: UCM, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik.


Tradução Adelaine La Guardia et al. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da
UNESCO no Brasil, 2003.

NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Estudos


Avançados, São Paulo, v. 18, n.50, p. 209-224, 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019. Acesso
em: 30 ago. 2017.

SILVA, Cidinha da. Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas. Legítima Defesa,
São Paulo, ano 1, n. 1, p. 105-128, 2014.

SILVA, Cidinha da. Engravidei, pari cavalos e aprendi a olhar salões populares de beleza com
ternura. Geledes Instituto da Mulher Negra, São Paulo, 2014. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/engravidei-pari-cavalos-e-aprendi-olhar-saloes-populares-de-
beleza-com-ternura-por-cidinha-da-silva. Acesso em: 30 ago. 2017.

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442

NIVALDA COSTA: “PARA RASGAR UM SILÊNCIO”


(ESCRITA SUBVERSIVA E PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA)

Me. Débora de Souza (UFBA)


E-mail: deboras_23@yahoo.com.br

Dra. Rosa Borges dos Santos (UFBA)


E-mail: borgesrosa6@yahoo.com.br

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nivalda Silva Costa (04/05/1952 – 09/07/2016) tomou a educação, o conhecimento,


como principal meio de transformação social e a arte como instrumento de denúncia e de
resistência, exibindo, em diferentes projetos e enunciações, um posicionamento engajado, de
reivindicação estética e política, no qual assumiu, por estratégia de produção e de atuação, a
imagem da rebelde e a representação da mudança, causando, muitas vezes, desconforto,
estranhamento e descentramento na sociedade baiana, sobretudo, no período de 1970 a 1990.
Sua escritura subversiva e híbrida, desenvolvida nos campos do teatro, da literatura e
da televisão, é atravessada por práticas de leitura, pesquisa e estudo, bem como pela
necessidade de (re)escrita da história e da memória afrodescendente, de construir espaços de
visibilidade/audibilidade, de autoria da própria memória, passando a (a)representar a si
mesmo, em uma política de ação. Esse movimento é contemplado também no ato de
arquivamento do eu, prática de intervenção e de construção de determinada memória.
Para dá a conhecer esta mulher e sua escritura, a partir do estudo de
documentos/testemunhos/monumentos, toma-se a Filologia como procedimento de leitura
crítica, no qual se inter-relacionam instâncias material, sociopolítica e histórico-cultural. No
lugar teórico da Filologia, em diálogo com outros campos do saber, propõe-se, portanto, tecer
uma leitura crítico-filológica dos/e nos documentos pertencentes ao Acervo Nivalda Costa
(ANC), fundo Textos Teatrais Censurados (TTC-ILUFBA), Arquivo Textos Teatrais
Censurados (ATTC), no que concerne à atuação da baiana Nivalda Costa – como
leitora/pesquisadora, intelectual, dramaturga e diretora teatral – e à sua produção artística.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
443

2 A FILOLOGIA COMO PROCEDIMENTO PARA LEITURA CRÍTICA

No âmbito do Grupo de Edição e Estudo de Textos, Equipe Textos Teatrais


Censurados (ETTC), coordenada pela Profa. Dra. Rosa Borges (UFBA), tem-se organizado o
ATTC, a partir de sistematização, catalogação e inventariação dos documentos virtuais,
digitalizados, que compõem mais de sessenta acervos de dramaturgos baianos e pessoas que
viveram e produziram na Bahia, no período da ditadura militar. Esses acervos integram o
fundo TTC-ILUFBA, a partir do qual se têm desenvolvido pesquisas e estudos de natureza
diversa, conforme pressupostos metodológicos da crítica textual, crítica genética e crítica
sociológica167, na graduação e na pós-graduação, permitindo-se difundir parte da produção
dramatúrgica realizada na Bahia, naquele período.
O fundo TTC-ILUFBA reúne, segundo Borges (2016), mais de 200 textos teatrais,
documentos da imprensa, da censura, do espetáculo, dentre outros, arquivados em diferentes
instituições. Na práxis editorial com os textos teatrais censurados, tem-se preparado edições
(fac-similar, crítica, crítico-genética, genética, histórico-crítica, sinóptico-crítica,
eletrônica/digital), estudos filológicos e arquivos hipertextuais, a partir dos quais se têm
colocado em rede documentos que testemunham a história do teatro baiano e trazido, à cena,
manifestações histórico-culturais e políticas de diferentes sujeitos/artistas, que atuaram de
forma significativa no teatro e na sociedade baiana, da época (BORGES, 2012).
Os documentos, no ATTC, tomados em seu contexto de produção, transmissão e
recepção, são entendidos como prova histórica e testemunho escrito, que, após o crivo do
pesquisador, pode vir a tornar-se monumento, e remeter ao passado (LE GOFF, 1994). Os
mesmos são substancialmente relevantes no desenvolvimento de diversificados estudos,
principalmente, na Filologia, no que tange aos trabalhos de edição e estudos crítico-
filológicos; na Literatura, no processo de (re)construção da literatura dramática produzida na
Bahia; na História, para tratar sobre o período ditatorial e seu impacto na sociedade baiana; e
no Teatro, ao propor uma leitura da dramaturgia baiana, daquele contexto (SANTOS, 2012).
As pesquisas e os estudos com fontes primárias, em arquivos, têm contribuído para
repensar e revisitar os estudos literários, propiciando-se a revitalização da história da
literatura, o redimensionamento da crítica biográfica e a consolidação da crítica genética, uma

167
Santos (2015, p. 45), ao tratar do diálogo entre abordagens críticas, na prática editorial, entende a crítica
sociológica como “[...] aquela que discute como a forma material dos textos determina seus significados e
também como sua reprodução, reedição e releitura produzem significados diferentes.”

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
444

vez que se problematizam as principais categorias/instâncias dos estudos literários (texto,


autor, obra, valor estético) e se promove uma dinâmica transdisciplinar entre os saberes,
aprofundando-se a crise do paradigma moderno (MARQUES, 2007).
A Filologia, nesse contexto, tem sido convocada a “[...] problematizar a tradição
ocidental [...] e recepcionar todas as possibilidades de crítica humanística, fruto [...] dos
movimentos feministas, negro, latino-americanos, asiáticos e de outras tradições [...]”
(BORGES; SOUZA, 2012, p. 58). A análise filológica, crítica, inerentemente, política, “[...]
permite colocar em evidência características da escrita que tinham escapado a outros tipos de
leitura” (ZANCARINI, 2008, p. 11). Zancarini (2008) explica em que sentido tem adotado a
expressão “Filologia Política”:

[...] ‘filologia’ porque partimos de uma leitura [...] lenta e minuciosa que procura re-
estabelecer os laços, os ecos, os distanciamentos no interior de uma obra ou entre
uma obra e outra; ‘política’ [...] porque, para nós, a abordagem crítica dos textos e a
reflexão sobre o sentido das palavras utilizadas na linguagem têm um valor
eminentemente político, qualquer que seja o período histórico visado (ZANCARINI,
2008, p. 11).

A prática filológica dá-se como espaço descentrado, no qual é possível fazer circular
discursos condizentes com o lugar movente dos diferentes agentes/mediadores sociais, que
participam do processo de construção de sentido dos textos e da produção/legitimação de
saber. Essa leitura, enquanto crítica político-ideológica, faz da Filologia um instrumento de
ruptura que se inter-relaciona com os estudos pós-modernos e pós-coloniais.
Warren (2003) propõe o uso do termo “pós-filologia” para evidenciar um
procedimento de leitura crítico-filológica que dialoga, direta ou indiretamente, com estudos
pós-modernos e pós-coloniais, os quais estão interligados por crises de identidade relativas a
condições históricas e estéticas. Filologia,

[e]tymologically, […] designates a potentially infinite range of activities conducted


for ‘the love of language’. Disciplinarily, the range is only slightly less broad, and
includes historical linguistics, textual editing, literary analysis, and the study of
national cultures. In practice, usages that limit philology to a set of technical
engagements functions in tension with this virtually limitless epistemological
potential168 (WARREN, 2003, p. 20, grifo do autor).

168
Tradução nossa: “[e]timologicamente, [...] designa uma gama potencialmente infinita de atividades
conduzidas pelo ‘o amor à linguagem’. Disciplinarmente, a escala é somente ligeiramente menos larga, e inclui
linguística histórica, edição textual, análise literária, e o estudo de culturas nacionais. Na prática, determinados
usos, que limitam a filologia a um conjunto de engajamentos técnicos, funcionam em tensão com esse potencial
epistemológico praticamente ilimitado” (WARREN, 2003, p. 20, grifo do autor).

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445

Esse exercício pós-filológico dá-se no viés da diversidade, da fragmentação e do


simulacro, na qual o editor-filólogo afasta-se da busca de origens, desarticula a ideia de centro
privilegiado e investe nas instâncias sócio-históricas e nas relações dinâmicas de poder que
atravessam os textos (texto, em sentido amplo). O mesmo, sujeito historicamente incidido,
promove reavaliações em relação às implicações ideológicas e epistemológicas das diferentes
edições, as quais são perpassadas por múltiplas mediações.
Gumbrecht (2007 [2003], p. 17), por sua vez, evidencia o teor pedagógico e a
consciência histórica, inerentes à Filologia, caracterizando-a como “[...] una constelación de
habilidades académicas orientadas a ocuparse del cuidado de textos históricos […]”169
(GUMBRECHT, 2007 [2003], p. 14). O referido autor aponta a crítica textual como
importante metodologia na identificação e preparação de objetos de estudo, a partir dos quais
se possa desafiar e convidar os discentes a arriscar sentidos, a promover outros modos de
leitura, propiciando-se a formação de leitores críticos (GUMBRECHT, 2007 [2003]).
Nesse sentido, cabe ao editor-filólogo, de acordo com Gumbrecht (2007 [2003]), as
práticas/habilidades de: i) identificar fragmentos, enquanto objeto materialmente presente; ii)
editar textos; iii) escrever comentários históricos, como exercício e discurso inconclusos, a
partir dos quais se fornece conhecimento suplementar e promove mediação entre distintos
contextos culturais; iv) fazer história, prática e atitude de historiar, que se dá a partir da
disposição do observador em reconhecer épocas e culturas distintas; e v) ensinar, partindo-se
do pressuposto de que todo componente curricular é, em sua natureza, interdisciplinar,
integrador e dialógico.
Nesse labor, inevitavelmente, há uma proliferação de papeis de autor, editor e leitor. O
editor-filólogo adota diferentes papeis de autor e de leitor, o que implica diferentes tipos de
construções subjetivas, de (inter)mediações culturais, de estilos de prática filológica. Logo,
“[...] no podemos involucrarnos con un texto editado […] sin comenzar a preguntarnos quién
habrá sido el editor y qué principios habrá seguido al establecer el texto”170
(GRUMBRECHT, 2007 [2003], p. 41); a edição de textos é, por excelência, produção de
significado.

169
Tradução nossa: “[...] uma constelação de habilidades acadêmicas orientadas a ocupar-se do cuidados de
textos históricos [...]” (GUMBRECHT, 2007 [2003], p. 14).
170
Tradução nossa: “[...] não podemos tomar um texto editado [...] sem começar a nos perguntar quem terá sido
o editor e quais princípios terá seguido ao estabelecer o texto” (GRUMBRECHT, 2007 [2003], p. 41).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
446

No seio dessa crítica contemporânea, há um movimento de renovação da prática


editorial filológica, condizente com aquela reformulação epistemológica dos saberes, de base
pós-estruturalista. Desde fins do século XX, a Filologia tem-se desenvolvido a partir de um
reposicionamento crítico quanto aos paradigmas de cientificidade, em efervescência, nos
séculos XVIII e XIX. Essa crítica filológica, “[...] configura-se a partir da leitura do ‘devir’
textual, entre fendas de rasuras que abrem espaço para a produção do texto, mas também do
não-texto [...]” (BORGES; SOUZA, 2012, p. 59). A mesma deve ser compreendida “[...]
como uma atitude crítica, de leitura concebida [...] como um espaço de produção histórica,
linguística, sócio-cultural e política” (BORGES; SOUZA, 2012, p. 46-47).
A Filologia, portanto, leitura humanística (SAID, 2007 [2004]), em interação com
diversos saberes, propicia o conhecimento da história do texto e a revisão de narrativas e
discursos, a partir da pesquisa em arquivos e acervos; do estudo dos contextos de produção,
transmissão, circulação e recepção; da investigação dos sujeitos, mediadores, envolvidos
nesses processos; enfim, da crítica do documento. Nessa perspectiva, na qual se promovem
outros modos de ler o mundo, inscreve-se o estudo sobre Nivalda Costa e sua produção
artística.

3 NIVALDA COSTA E SUA PRODUÇÃO: NOS MEANDROS DO ACERVO


NIVALDA COSTA

Neste lugar dos estudos filológicos, que faz interagir as práticas editoriais e
arquivísticas, valendo-se das ferramentas informáticas, tem-se organizado o Acervo Nivalda
Costa (ANC), no qual se reúnem, até o momento, 326 documentos acerca da produção e da
atuação de Nivalda Costa, sobretudo, no que tange ao período da ditadura militar, na Bahia.
Esses documentos digitalizados foram catalogados, por séries e subséries, conforme proposta
apresentada por Borges (2016), no VIII Seminário de Estudo Filológicos, considerando-se a
especificidade dos mesmos.
Em Produção intelectual, têm-se textos teatrais, poemas, contos, projetos televisivos
e depoimentos (entrevistas); em Publicações na imprensa e em diversas mídias,
publicações sobre o autor e suas produções, publicação autoral, divulgação dos espetáculos e
entrevista (com o autor); em Documentação censória, solicitação/requerimento, ofício, texto
teatral censurado, parecer, memorando, radiograma, relatório, ficha de protocolo e Certificado

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
447

de Censura; em Esboços, notas e rascunhos, folhas soltas sobre dados da encenação dos
textos teatrais, marcações cênicas, personagens, elenco, profissionais envolvidos na produção
e desenhos de objetos a compor cenário; em Documentos audiovisuais e digitais, fotografias
digitais de Nivalda Costa, reprodução digital de fotografias de atores durante ensaios e fac-
símile de programas, cartazes, ingresso e panfleto, de alguns espetáculos; em Estudos,
produções acadêmicas sobre Nivalda Costa e sua produção; e em Varia, convite de
lançamento de livro, registro de espetáculos, termos de contrato de espaços, carteira
profissional, currículo lattes e moção de pesar (SOUZA, 2017).
Esses documentos encontram-se dispersos em diferentes arquivos/acervos, o que faz
refletir tanto sobre a história de tais documentos, ao longo do tempo e espaço, considerando-
se os diferentes produtores e gestores dos mesmos, quanto sobre os lugares de atuação e de
circulação da referida artista, Nivalda Costa, que se utilizou da educação como instrumento
para produção de conhecimento e difusão de saberes, ao planejar, coordenar, dirigir e
ministrar projetos, oficinas, cursos, peças teatrais171, programas televisivos, ciclos de debates,
dentre outros172, em diferentes espaços, para um público heterogêneo.
O material reunido no ANC é parte significativa da produção artístico-intelectual de
Nivalda Costa, e configura-se, em seu conjunto, como documento/testemunho estético e
histórico, e como manifesto, na construção de espaços de visibilidade e de audibilidade, de
autoria da própria memória, perpassada por subjetividades e interpretações. Nesses
documentos, há informações e/ou críticas quanto à elaboração dos textos teatrais, à
preparação dos elementos cênicos, à estreia e temporada da peça, ao processo de censura do

171
Devido a ativa participação de Nivalda Costa no que diz respeito ao desenvolvimento de um teatro negro, na
Bahia, seu nome está fixado na “Linha do tempo do Teatro Negro na Bahia” elaborada por Márcio Meirelles, em
comemoração aos vintes anos do Bando de Teatro Olodum, que homenageou o Teatro negro da Bahia, traçando
um breve panorama com nomes de artistas, atores, grupos e eventos que, de alguma forma, contribuíram para a
construção desse teatro no estado. Disponível em: <http://bandodeteatro.blogspot.com/2010/11/linha-do-tempo-
do-teatro-negro-na-bahia.html>. Acesso em: 21 nov. 2010.
172
Nivalda Costa atuou no Centro de Culturas Identitárias e Populares, da Secretaria de Cultura do Estado da
Bahia (CCPISECULT/BA), como antropóloga, de 2012 até, pelo menos, 2014; na Sociedade Amigos da Cultura
Afro-Brasileira (AMAFRO), cujo principal projeto foi a instalação, em Salvador-Ba, do Museu Nacional da
Cultura Afro-Brasileira, em 2009, como coordenadora pedagógica da “Expo Internacional ‘Benin Está Vivo
Ainda Lá: ancestralidade e contemporaneidade’”, em 2008, como produtora e coordenadora do Projeto
"Diálogos Afro-Brasileiros", em 2007, como coordenadora pedagógica do Projeto "Êres do Museu"; na
Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT/BA), em 2008, como coordenadora pedagógica do curso
"Capoeira: Educação para a Paz", apoiado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC); na Fundação
Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), de 1994 a 1996, como coordenadora e Professora do Centro de
Cultura de Cajazeiras Núcleo de Difusão Cultural Ulysses Guimarães (NDCUG), “[...] objetivando o resgate da
cidadania e a integração social [...]” (COSTA, 2014, currículo lattes).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
448

texto, ao entrosamento do grupo teatral e à perspectiva estético-ideológica de Nivalda Costa,


no que tange a atividades artísticas e socioculturais (SOUZA, 2017).
Em especial, esse material contribui para o processo de reescrita da história do teatro,
na Bahia, no período da ditadura militar, uma vez que dão a ler vestígios da repressão e dos
movimentos de resistência. Por conseguinte, esse exercício filológico, em diálogo com a
arquivística, provoca uma reflexão sobre o inacabamento do teatro e o status do arquivo. Para
Grésillon, Mervant-Roux e Budor (2013, p. 393), “[o] inacabamento do teatro é tal que ele
torna seu arquivamento ao mesmo tempo muito mais necessário que nas outras artes, mas,
também, bem mais problemático [...]”, provocando, em diferentes pesquisadores e artistas, ao
mesmo tempo, “[...] desejo de arquivo e respeito pelo vivido.” (GRÉSILLON; MERVANT-
ROUX; BUDOR, 2013, p. 395).
A partir dos/e nos documentos, podem-se construir leituras sobre Nivalda Costa, sua
atuação e produção, nos campos do teatro, da literatura e da televisão, relacionando questões
de biografia, gênero e raça, a partir da noção de “espaço autobiográfico” (LEJEUNE, 1975) e
da concepção de “[...] articulação indissociável entre o eu e o nós, os modos como as diversas
narrativas podem abrir, para além do caso singular e da ‘pequena história’, caminhos de
autocriação, imagens e identificações múltiplas [...]” (ARFUCH, 2010, p. 100). A trajetória de
Nivalda Costa, de vivência da negritude, de militância da causa negra e de estudos e
pesquisas, esteve atrelada à necessidade de (re)escrita da história e da memória
afrodescendente, à luta contra o racismo e a discriminação racial, assim como a movimentos
de resistência, sobretudo vinculados à comunidade negra, que se configuraram, no Brasil, a
partir da década de 1970, como o Movimento Negro Unificado (SOUZA, 2017).
Em diferentes projetos e produções, a intelectual buscou reivindicar a posição do
negro na sociedade. No teatro, selecionou atores negros para apresentar personagens clássicos
e abordou temas relacionados à cultura e à resistência dos afrodescendentes, o que provocou,
muitas vezes, reações adversas. Em Anatomia das feras, por exemplo, encenada em 1978, faz-
se alusão à Revolta dos Malês, movimento contra o governo organizado por africanos
muçulmanos escravizados, em 1835, durante o período regencial, em Salvador-Ba; em 1979,
apresentou-se um rei negro, interpretado pelo ator Kal Santos, na encenação do texto Pequeno
Príncipe: aventuras, uma adaptação livre de O Pequeno príncipe, de Exupéry; e, em 1980, na
encenação Paixão – Caminho do ressurgir da Catedral ao Pelourinho, adaptação textual de

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
449

Luiz Marfuz e direção de Nivalda Costa, Nossa Senhora era apresentada por Vera Pita, uma
atriz negra, e o Cristo, por Fredy Ribeiro, um ator mulato.
Além disso, salienta-se que, ao longo de sua vida, Nivalda Costa arquivou, em sua
residência, diversos documentos (textos teatrais, recortes de jornais, materiais sobre
encenação de espetáculos, cartazes, fotos, contratos, programas, desenhos/plantas de cenários,
cópia de certificados de Censura, roteiros televisivos, poesias, contos, folhas manuscritas e
datiloscritas, dentre outros) e objetos, tais como revistas, livros e discos. O gesto de
arquivamento de diversos documentos vinculados à militância teatral e negra, nas décadas de
1970 a 1990/2000, por Nivalda Costa, em sua residência, é próprio do intelectual militante.
Conforme Said (2004, p. 40) é papel de todo intelectual engajado “[...] tornar público e
elucidar de maneira dialética e oposicionista o conflito [...], desafiar e derrotar tanto um
silêncio imposto quanto a quietude normalizada do poder invisível [...]”.
O movimento de produção de conhecimento e de apresentação de narrativas é
contemplado também neste ato de arquivamento do eu, prática de resistência, constituindo-se
como mais uma forma de intervenção e de articulação com o passado, além de construção de
determinada memória. De acordo com Artiéres (1998, p. 31),

[a]rquivar a própria vida, [sic] é simbolicamente preparar o próprio processo: reunir


as peças necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a representação
que os outros têm de nós. Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a
justiça dos homens assim como o trabalho do tempo.

O Arquivo Pessoal de Nivalda Costa (APNC) é tomado, a partir do crivo desta


pesquisadora, em três perspectivas que se entrecruzam, considerando-se os documentos, a
prática de arquivamento e o arquivo em si, como fonte de pesquisa, “figura epistemológica”
(MARQUES, 2007); como instância de produção de imagens de si (ARTIÈRES, 1998); e
como artefato crítico, construto sócio-político, prática de resistência (ARTIÈRES, 1998). O
APNC configura-se como parte de uma crítica sócio-histórica assumida por Nivalda Costa,
em diferentes momentos, na sociedade baiana.
No APNC, e, consequentemente, no ANC, encenam-se inúmeras imagens de Nivalda
Costa. São figurações e funções, que se inter-relacionam em suas produções e enunciações,
como escritora (poetisa, contista, dramaturga, roteirista (na criação de roteiros de especiais e
programas televisivos)), diretora, assistente de direção, atriz, autora, leitora, pesquisadora,
antropóloga, intelectual, professora (de roteiro e de arte cênica), coordenadora pedagógica (de
projetos de extensão e de centros culturais), assessora de Comunicação Social, videomaker,
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450

redatora de publicidade, produtora executiva e consultora de programa televisivo (COSTA,


2014, currículo lattes). Dentre essas imagens, destacam-se as figuras da leitora/pesquisadora
ativa, inquieta, entrelaçada à intelectual engajada, estrategicamente marginal, que se
transveste, muitas vezes, em dramaturga-diretora ou diretora-dramaturga, substancialmente,
criativa e ousada (SOUZA, 2017).
Faz-se pertinente tratar sobre a possibilidade de encenar-se a partir de um personagem
transmutado (neste caso, um poeta, artista ou comunicador), que transita e atravessa os textos,
e pode ser interpretado como imagens de Nivalda Costa construídas no âmbito da própria
escritura teatral. São figurações do poeta revolucionário, anarquista, militante, que se
encenam no teatro de intervenção proposto. O processo de construção dos personagens
constitui-se a partir de um jogo de imagens que se dá no viés da mudança, todavia, em sentido
de permanência. O movimento de repetição, próprio da arte e da linguagem, pode ser lido, de
acordo com Deleuze (2006 [1968]), não sob o crivo da semelhança, mas como força e
potência criativa, devir que cria uma singularidade, pois traz em si a diferença.
Há ainda que se considerar a imagem de Nivalda Costa construída pelos órgãos de
Censura que põe em cena o perfil engajado e militante da dramaturga, da diretora e da
intelectual. Nos documentos censórios, sobretudo, nos pareceres e relatórios, esboça-se uma
artista subversiva, astuciosa e estrategista que, através de simbolismo, articulava e proferia
ideias e pensamentos, incitando o público a uma reflexão. De acordo com a legislação em
vigor, naquela época, suas produções teatrais foram avaliadas como ofensivas, por apresentar
temática político-ideológica contra o regime, sendo vetadas, parcialmente, com cortes de
natureza social, política e/ou moral; outras liberadas com restrição quanto à temporada e ao
local de encenação, e algumas interrompidas e proibidas.
Lê-se também a imagem da rebelde, figurada, sobretudo, em entrevistas, de alguém
que assumiu, muitas vezes, o risco da ousadia e da marginalidade, provocando desconforto,
estranhamento e descentramentos. O termo “marginal”, modernamente, segundo Faria, Penna
e Patrocínio (2015), tem sido utilizado como elemento unificador e de construção identitária,
diferentemente da concepção predominante nos estudos literários tradicionais, quando é usado
em oposição ao conceito de “cânone”. Pode-se vincular aquele à apresentação e representação
de sujeitos/personagens marginais ou à forma de construção de uma identidade artística e
formal, considerando-se que, em diferentes épocas, o mesmo teve reelaborações.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
451

Nas décadas de 1960 e 1970, esse termo estava diretamente relacionado à postura e à
proposta de radicalização estética e de reivindicação política, como ato subversivo, opção
estética, estratégia de produção e de atuação. Nivalda Costa e os demais membros do Grupo
Testa, grupo criado e liderado por a mesma, em 1975, definiam-se como “guerrilheiros”
(COSTA, [1975]), integrantes de um grupo de ação, amador, marginal. Buscavam,
declaradamente, denunciar injustiças sociais, promover uma renovação estética e reivindicar a
posição do negro no teatro e na sociedade (QUATRO..., 15 e 16 jun. 1975, p. 11), em um
teatro de intervenção, subversivo, de guerrilha.
Nessa perspectiva, há, na atuação e na produção de Nivalda Costa, um movimento de
desarticulação da representação estética e política, no qual se deixa de ser objeto representado,
passando-se a representar a si mesmo, em uma política de ação, de construção. Para tanto, a
busca de conhecimento foi primordial para tecer narrativas, construir outros modos de leitura
e participar, efetivamente, em diferentes frentes, das relações de poder. Conforme lembra
Oliveira (2004, p. 56), o intelectual torna-se “[...] um produtor de conhecimento
independente: a finalidade da produção do conhecimento é conhecer [...], revolução profunda
nas formas mediante as quais o conhecimento se colocava a serviço dos mecanismos de
dominação”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa filológica, dos e/nos documentos-indícios do ANC, possibilita construir


narrativas, análises e leituras alternativas, desarquivando-se/deslocando-se, ainda que
indiretamente, a história oficial, pois, conforme afirma Carneiro (2011, p. 335), “[c]ada
documento é uma marca e, como tal, oferece versões e ‘versões’, dependendo de quem os
produziu e, agora em tempo presente, os interpreta.”
Nivalda Costa posicionou-se ativamente no que concerne a questões sócio-políticas e
culturais, na Bahia, sobretudo na década de 1970. Esse posicionamento é notório nos
documentos consultados, nos quais se verificam seu envolvimento em projetos, cursos e
oficinas, de cunho artístico e sociocultural. Desse modo, em diferentes documentos, figura-se
a imagem da escritora/dramaturga engajada, militante revolucionária, que, como intelectual
“múltiplo” (HOISEL, 2012) e “amador” (SAID, 2004), transitou por diferentes campos, em
busca de conhecimento, promovendo interlocuções, diálogos, debates, interferindo na esfera
pública, produzindo saber e problematizando relações de poder.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
452

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Lyon, ANR -Triangule; Campinas: RG, 2008. p. 7-20.

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454

LEITURAS DE UM FEMININO SUBVERSIVO NA DRAMATURGIA BAIANA DOS


ANOS SETENTA

Isabela Araújo Calmon (UFBA)


E-mail: isabela_antares@hotmail.com
Profa. Dra. Rosinês de Jesus Duarte (Orientadora – UFBA)

E-mail: rosiart20@yahoo.com.br

ABRINDO AS CORTINAS

Hoje sou apenas uma mulher! Uma mulher que se desnuda diante de vocês como a
fêmea se despe lentamente diante do seu macho, sentindo o ante-gozo do coito, à
espera que ele venha cobri-la, fungando em seu ouvido, machucando teus lábios,
roçando seus seios, colando o corpo rijo e suado em seu corpo frágil e esperando
que ele diga que a ama! Que a ama como o momento supremo de todos os
momentos. Quero ser uma mulher! Uma mulher capaz de parir mesmo que seja
estéril. Que se angustia quando seu homem não vem, que sinta medo de perdê-lo.
Uma mulher que chore, ria, odeie, recorde e deseje amar e ser amada para sempre!
Não quero a atriz blefando de mulher realista que não quer se iludir!
(RODRIGUES, 1973, p. 3.)173

Ao dirigir essas palavras à plateia, Yumeire Rodraigues, persona de Yumara


Rodrigues, mostra-se permeada pelo Eros – através da máscara de Tânatos - ao celebrar uma
pulsão de morte em meio ao cômico. A comunicação entre a atriz e os espectadores é
nitidamente erótica, andrógina e é dada através da melancolia diante da incompletude de si.
Ao tentar buscar rasurar tal incompletude na arte, o indivíduo embarca numa relação de
alteridade sensual e sensorial, pois apenas esta, a arte – numa concepção nietzscheana- será
capaz de dar-lhe o que este não possui e nem poderá ser. A personagem concebe-se então
enquanto sujeito multifragmentado por uma androginia que a coloca em posição de não ser
“apenas mulher!”

A arte, assim como o feminino, se circunscreve no domínio de Eros e, portanto, de


acordo com Castello Branco (2004) sustenta a realização “do gozo estético, ou do gozo
erótico, como fins em si.” Por tal motivo, a arte, bem como o artista, se encontram “de alguma
forma, sempre à margem da ordem social”. Assim, ao colocar-se em posição de atividade, o

173
Os trechos aqui mencionados de Uma Alegre Canção Feita de Azul estarão em itálico.

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455

artista é concebido como o ser desajustado ou em estado de exceção, pois a arte “carrega a
possibilidade de completude, de ‘androginia’” que desestabiliza a relação masculino e
feminino e “é, portanto, poderosa e subversiva”, podendo, a qualquer momento, ameaçar a
ordem social. (CASTELLO BRANCO, 2004, p. 12)

Não é de admirar que o monólogo autobiográfico em questão integre o conjunto de


textos teatrais de autoria de dramaturgas baianas que foram censurados durante o período da
ditadura militar no Brasil. Estamos, aqui, a tratar de Uma Alegre Canção Feita de Azul ou
Minha Piteira, onde está minha Piteira? Buscar-se-á, no presente artigo, fazer uma leitura
deste monólogo autobigráfico escrito por Yumara Rodrigues em 1973, no Rio de Janeiro. Este
trabalho fará uma breve leitura sobre a potencialidade niilista que se presentifica na peça em
meio ao riso. Porém, antes, far-se-á necessário apresentá-la em seu contexto e traçar um
rápido percurso sobre como esse texto dialoga com as teorias do drama emergentes nas
décadas que o precederam. O texto datiloscrito e monotestemunhal encontra-se no acervo do
espaço Xisto Bahia e, para a realização deste trabalho, utilizaremos um fac-símile em formato
digital. Referir-nos-emos à peça, aqui, como Uma Alegre Canção Feita de Azul.

UMA ALEGRE CANÇÃO FEITA DE AZUL E SEU CONTEXTO NAS TEORIAS DO


DRAMA

Desafiando as barreiras entre atriz / autora e personagem ficcional, Yumara


Rodrigues, nessa performance solo, busca uma auto-afirmação que problematiza a identidade
de um sujeito feminino fragmentado, de modo a contrariar caracterizações sedimentadas. O
leitor que se debruça sobre este monólogo é capaz de perceber como as referências saltam do
texto através de uma densa orquestração arregimentada, muitas vezes, por um complexo jogo
de ruptura e descontinuidade. A dramaturga bebe, destarte, da fonte de diversos autores
trazendo inúmeras referências bem como passagens de sua vida para que as tramas desse texto
possam ser bordadas com densas meadas.

Esse caráter nitidamente fragmentário, de acordo com José da Costa (2009),


caracteriza uma vertente específica da produção teatral no Brasil, “aquela cuja dramaturgia se
constrói como teatralização de textos de outras modalidades discursivas (romances, cartas,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
456

poesias, narrativas historiográficas, relatos jornalísticos etc.). ” Assim, por conta dessa
fragmentação, os textos e os espetáculos tendem a se apresentar com múltiplas fraturas e
conteúdos temáticos diversos ou incertos, “significações instáveis ou ambíguas, bem como
personagens episódicos e pouco definidos em termos individuais, figurando em enredos
esboçados, frequentemente, de modo muito tênue.” (COSTA, 2009, p.27).

Para o autor, dar-se-á isso a partir dos anos 1960, com o experimentalismo que porá
em cheque diversas questões que permeavam, até então, o fazer teatral. Antes disso, do início
do século XX até a década de 1960, apesar da influência de nomes como Antonin Artaud (que
problematizou o esquema de primazia do texto literário), por exemplo, o teatro brasileiro não
será efetivamente engendrado por tais questões. Uma dessas questões concerne às etapas do
processo dramatúrgico que se pautavam numa linearidade hierárquica sequencial, na qual o
autor expõe as diretrizes iniciais, para que em seguida o encenador traga sua concepção geral.
Só então, numa terceira etapa, os atores viriam à tona. Isso passou a ser contestado por conta
das criações coletivas que, inevitavelmente, questionavam essas autoridades dentro das
relações hierárquicas. Além disso, obras como este monólogo, no qual a própria dramaturga é
quem dirige, produz e atua, mostram-se prontas também para contestar e lançar por terra essas
caracterizações. Tais questionamentos são discutidos diretamente com o público através duma
representação escancarada que, rasurando essas autoridades tradicionalmente demarcadas,
explicita um papel que também se estende à plateia:

“É como uma mulher que agora lhes digo: nós estamos enganando vocês! Não
somos artistas coisa nenhuma! Os papéis estão trocados! São vocês os artistas.
Quem mexe os cordéis? Quem diz como deve ser? Quem abre a cortina? Quem a
fecha? Quem determina o fracasso? Quem aplaude o sucesso? Quem faz o mito? E
quem o destrói? Vocês! Vocês que se comportam como espectadores e não veem
que estão em cena! Vamos, gente! [...] Palco e plateia, vamos comungar juntos o
teatro! Tal é a lei. E sem embargo não somos nem o ator nem o espectador.”
(RODRIGUES, 1973, P. 4)

Outra característica que passa a se fazer presente no construto do teatro nacional é


uma dramaturgia de caráter fragmentário onde os textos desestabilizam o próprio conceito de
referência por apresentarem em sua tessitura numerosas citações. Essa é uma das
características daquilo que Costa (2009) chamará de “teatro narrativo-performático”, uma vez
que “os textos dos dramaturgos são muitas vezes teatralizações de obras narrativas de outros
autores, teatralizações” para as quais há uma exploração intensa da capacidade performática
individual dos intérpretes. Assim, nessas peças, o processo de construção, que se dá através de

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
457

fragmentos textuais de diferentes tipos, não é disfarçado, mas se explicita a cada momento ao
longo do espetáculo. Desse modo, o espectador consegue perceber, mesmo que não seja capaz
de apreender todas as referências, que está diante “de uma escrita que remete todo o tempo a
outras escritas. ” (COSTA, 2009, p. 51) Em entrevista a Lasserre (2013), ao discorrer sobre
Uma alegre canção feita de Azul Yumara Rodrigues diz:

“Eu queria muito fazer um espetáculo, mas não encontrava o texto para expressar o
que precisava dizer naquele momento. Então comecei a pesquisar coisas de Carlos
Drummond de Andrade, Waly Salomão, de autores desconhecidos, e vim costurando
tudo isso com textos meus. Eu pretendia que fosse autobiográfico, mas não de uma
forma direta, perceptível para qualquer um. Eu sei é que fui juntando essas coisas e
cheguei a um monólogo.” (LASSERE, 2013, p. 120)

De modo a se reconhecer como certas influências atuaram no construto dessa peça,


faz-se mister mencionar a importância do teatro que havia sido produzido no Brasil em
décadas anteriores. A Peça “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, encenada em 1943,
representou uma ruptura que anunciava o teatro moderno brasileiro. De fato, sem pudor de
explicitar sua complexidade, diria o dramaturgo: “Por que a obra de arte há de ser uma
transparência burríssima? Até um soneto parnasiano tem o mínimo de mistério, de solidão.”
Também, grupos como o Teatro Arena (de Augusto Boal) e o Teatro Oficina foram
ferramentas-chave para se repensar o fazer estético e ideológico do jogo teatral nacional. Com
a influência de Brecht, mudanças substanciais ocorreram na concepção do teatro moderno
brasileiro. O distanciamento trouxe a possibilidade de uma representação descoberta, desnuda,
não ilusória e anti-naturalista que já passava a ser concebida de forma fragmentária. Como
afirma Roubine (2003), o teatro Brechtiano “ultrapassa o teatro ancorado na palavra,
explorando a expressividade dos gestos, a composição visual das cenas e as possibilidades
significantes, através da dialética semiológica introduzida por Brecht” (ROUBINE, 2003, p.
69).

Há também, de acordo com Rosenfeld (1994), a presença da “agressão”. E esta é uma


das características do teatro brasileiro na década de 1970. Essa agressão “pode manter-se
dentro dos limites do palco, atacando o público de um modo indireto, pelo palavrão, a
obscenidade [...]. (ROSENFELD, 1994, p.45). Esse fator presentifica-se contundentemente
em Uma Alegre Canção Feita de Azul de forma velada ou não. Ao comentar sobre a estreia
do espetáculo no Clube Asa, em Botafogo, Lasserre (2013) comenta que Yumara propõe um
deslocamento ao abandonar os eixos de espaços comumente utilizados pela classe média para

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458

esse tipo de espetáculo. Apesar do estranhamento, a novidade atraiu muitos intelectuais para a
plateia. O público, então, é “provocado do primeiro ao último minuto da encenação e muitos
embarcam junto” e acabam interagindo com a personagem que, por exemplo, passa o chapéu.
O celebrado crítico Yan Michalski também vai ao Clube Asa e escreve uma crítica
comparando Yumara Rodrigues a um menestrel medieval. Ela afirma: “Era uma concepção
muito variada, eu fazia vários personagens. Criei um espetáculo mutante, no qual sempre
cabia muito improviso.” (LASSERRE, 2013, P. 121)

A agressão reside também no uso de uma linguagem considerada inadequada, pois de


acordo com Rosenfeld (1994), “no uso do palavrão” reside “o desejo de abalar convenções
tidas como ultrapassadas, de revoltar-se contra as repressões institucionalizadas e contra a
censura interna e externa.” (Ibidem) O monólogo em questão possuiu 13 cortes, sendo estes
em sua maioria de cunho moral. Palavras consideradas inadequadas foram vetadas, conforme
é possível verificar nas imagens abaixo:

Imagem 1 (RODRIGUES, 1973, p. 3) Imagem 2 (RODRIGUES, 1973, p. 12)

Podemos constatar que expressões como merda, puta que pariu, canalha e bunda não
escaparam do olhar censório. Porém, esses cortes devem ser lidos criticamente, pois há nestes
um silenciamento que implica presença ou uma ausência-presença potente, imbuída de
significação. Para Orlandi (2010, p.14) certos sentidos são proibidos na tentativa de impedir
que o sujeito ocupe “certos lugares, certas posições.” Assim, o uso do vocabulário grotesco
configura-se como uma agressão enquanto representação duma vontade escancarada de
liberdade. É um ato político. Porém, Yumara Rodrigues recusa-se em classificar seu teatro e,
ironicamente, diz ao espectador:

“Eu não quero defender nada! Já fui defensora do teatro acadêmico, do realista, do
simbolista, do moderno, do político, do vanguarda, do autor, do diretor, do ator, do
lixo, do sexo, do nexo, sem nexo, complexo. Hoje defendo a vida. Descobri que

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459

teatro não existe! É ilusão de uns loucos! E que o artista não tem função ou
significação alguma.” (Ibidem, P. 4)

Contudo, o texto é todo o tempo permeado pela presença de uma resistência artística
que é, de alguma forma, engajada. Também, o fato do mesmo não ter saído ileso do crivo da
censura, inclusive com cortes de natureza política, é, no mínimo, curioso. Em sua famosa obra
O Teatro do oprimido e Outras Poéticas Políticas, Augusto Boal (1991) defende que “todo
teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o
teatro é uma delas. Os que pretendem separar o teatro da política, pretendem conduzir-nos ao
erro [...]”. (BOAL, 1977, p. 17). Assim, valendo-se da ironia, Yumara critica uma
determinada elite e o teatro intelectualizado ao dizer que pretende fazer naquele momento:

“Um espetáculo sem golpes, sem engodo, sem mistificação, sem jogar sujo com
vocês, sem ser atriz, sem querer carregar o mundo em minhas costas, hastear a
bandeira dos que tem um dever a cumprir com o público, porque faço parte de uma
classe intelectualizada – (aqui pra nós, muito “por fora) e como membro dessa elite
tenho de discriminar os que fazem televisão, teatro comercial, porque isso é fazer
concessão, (mas se pagarem bem eu faço a concessão) porque teatro só é de
símbolos e mensagem!” (Ibidem, P.3)

ENTRE MACBETH, NIETZSCHE E O NIILISMO EM UMA ALEGRE CANÇÃO


FEITA DE AZUL

Como já fora aqui discutido, o monólogo foi gestado num processo de costura que se
utilizou de inúmeros retalhos referenciais. Um desses retalhos, que, nesse momento, capturará
especialmente nossa atenção, diz respeito à famosa fala do personagem Macbeth -
protagonista da tragédia mais curta escrita por William Shakespeare - em seu último
monólogo. Assim, já derrotado, o personagem shakespereano, enquanto sujeito decadente que
transborda desordem interior, prostra-se diante da frágil chama da existência ao reconhecer
que:

“ Life’s but a walking shadow, a poor player,


That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing. (SHAKESPEARE, 2007, 882).174

174
“A vida não é nada além de uma sombra andarilha, um pobre ator que gagueja e vacila, que corre de um
lado a outro no palco, e então não é mais ouvido. É um conto narrado por um idiota, cheio de som e de fúria,
significando nada.” (Tradução nossa).

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460

Em Uma Alegre Canção Feita de Azul, essa passagem nos é apresentada numa espécie de
gradação que, sendo matizada em meio aos devaneios da personagem, se desenvolve ao longo
do texto de modo a receber proporções diferenciadas. Ela surge pela primeira vez ainda
começo da peça, logo após a segunda mutação:

“Amanhã, e amanhã, e amanhã chegando no passo impressentido de um dia após um


dia até a última sílaba do tempo registrado! A vida é apenas uma sombra que
caminha. Um pobre ator que gagueja e vacila a sua hora sobre o palco e, depois,
nunca mais se ouve.” (Ibidem, p. 4)

Pouco antes disso, dirigindo-se aos espectadores, a personagem estende-lhes o seu papel e
com eles se funde ao dizer, numa passagem que já fora aqui citada, que os espectadores são
também os artistas e que, muitas vezes, estes não percebem que também estão em cena. Ela
acrescenta: ”E sem embargo não somos nem o ator nem o espectador.”(Ibidem)

Desse modo, ao provocar o público, Yumara assume um compromisso com a vida.


Esse ator que corre no palco, já não mais se encontra naquele espaço do teatro físico. O palco,
no qual a personagem atua, estende-se ao palco da vida que passa a ser configurada como uma
representação teatral. E, neste, os espectadores são também errantes que vacilam, gaguejam,
gritam e nem sempre são ouvidos. É o local onde cada qual representa o seu papel. Onde,
unidos, “palco e plateia” comungam um grande espetáculo íntimo, pois, em suas respectivas
representações interiores, utilizando-se diversas máscaras, cada qual sofre, assim, as suas
tragédias em silêncio. Em Fanny e Alexander (1982), filme de Ingmar Bergman, o
personagem dirá que a sua tragédia foi ter possuído apenas uma máscara na vida. Uma única
máscara colada em seu rosto quando, inevitavelmente, a vida exige que se tenham várias
máscaras, várias personas. Tem-se, então, um sujeito que assume o seu eu-estilhaçado. Assim
como o fez Shakespeare, Yumara Rodrigues anuncia que no palco da vida, diante do
esvaziamento, resta a cada um ser ator, utilizar as máscaras, de modo a tornar a vida possível.
Seria uma delas a máscara do cômico? O riso? Caberia então tentar encontrá-lo? Poderia a
vida ser também uma canção alegre e azul? Afinada com Nietzsche, Yumara dirá: “Aqui
também encontra-se um tranquilo posto de observação diante de um cenário em que as
pessoas estranhas representam estranhas comédias.” (Ibidem, p. 5)
Na página 9, novamente referindo-se aos espectadores, ela repete: “A vida é apenas
uma sombra que caminha. Um pobre ator que gagueja e vacila a sua hora sobre o palco, e
depois, nunca mais se ouve...” (Ibidem) Novamente, a potência dionisíaca da vida é

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461

ressaltada. E esta, que não apenas obriga o indivíduo a usar muitas máscaras, é também “cheia
de som e de fúria”, de modo a significar “nada”, como aparece, finalmente, na terceira e
última menção da passagem macbethiana:

“A vida é apenas uma sombra que caminha, um pobre ator que gagueja e vacila a
sua hora sobre o palco e depois nunca mais se ouve. É uma estória contada por um
idiota, cheia de som e fúria, significando NADA.” (RODRIGUES, Ibdem, p.15)

A palavra “nada” ganha notoriedade na terceira menção dessa passagem. Agora, a


famosa fala do personagem trágico consegue completar o seu percurso de modo a anunciar o
caráter niilista da existência. Assim, nota-se que nada se destaca por apresentar-se em letras
maiúsculas sublinhadas. Nesse momento, a materialidade textual mostra-se importante para a
compreensão do sentido que a atriz imprime ao vocábulo. A ênfase capaz de abalar a plateia
pode quase ser sentida pelo leitor. Nada aparece no texto, destacado, em letras maiúsculas e
sublinhada quatro vezes. Lê-se, afirmando-se uma espécie de eterno retorno: “... É. As coisas
vem e voltam. E ao voltarem perdem o sentido a sua ida. E continuam indo. E continuam
voltando. Voltando sempre... ao NADA.” (Ibidem, p. 8) “O tédio como epidemia nos tempos
da dança macabra. A última vontade – morrer! Atmosfera de manicômio e hospital! A
vontade do NADA! (Wally Salomão)” (Ibidem, P.9)

Assim, o niilismo é enfatizado diversas vezes em Uma Alegre Canção Feita de Azul.
A expressão niilismo vem do latim nihil e significa “nada”. Schopenhauer (2007) pode
melhor ajudar-nos a compreender este conceito. Em Metafísica da Morte, ele diz:

Pois um homem sensato só pode considerar-se imortal na medida em que também se


considera sem início, eterno e, no fundo, atemporal. Por outro lado, quem considera
que surgiu do nada também deve pensar que ao nada voltará: pois sustentar que uma
eternidade se iniciará e, ao longo dela, nunca deixaremos de existir é uma ideia
monstruosa. (SCHOPENHAUER, 2007, P. 28)

Na errância da existência, o sujeito que se encontra diante da incerteza, encara o nada


enquanto vítima eterna da miserável experiência do existir que, então, se pauta na dor. Nesse
âmbito, o niilismo nietzscheano, que conduz a peça, difere da visão pessimista de
Schopenhauer, na qual a vontade seria ensandecida e caótica. É possível, para o autor de A
Gaia Ciência, produzir um desvio em relação ao que poderia nos matar. E o principal modo
de lidar com a decadência encontra-se na arte. Precisamos atravessar o sofrimento, mas este
não representa a totalidade da vida.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
462

Ao anunciar a morte de Deus, no aforismo 125 do título supracitado, Nietzsche


anuncia, consequentemente, a decadência da moral cristã e a angústia diante da ruína do
mundo metafísico. O homem louco que, com o despontar d’alvorada, grita por Deus, tem o
seu comportamento ridicularizado através do riso sócio-punitivo daqueles que o observavam.
O homem põe-se a gritar que Deus está morto. Ora, diz ele,

“[...] Somos todos seus assassinos! Não vagamos como que através de um nada
infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não
anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o
barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? –
também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os
matamos! [...] O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de
Deus?” (NIETZSCHE, 2007§ 125.)

Para o filólogo, ao morrer, Deus leva para o túmulo os questionamentos dos valores da moral
cristã de modo a extinguir verdades eternas e imutáveis. Todo sentido é ilusório e inventado.
Assim, como consequência do niilismo, essa decadência moral traz consigo a angústia diante
da ruína do mundo metafísico. Em outros dois momentos do monólogo, a atriz chegará a
conclusões similares. Dirá então: “Vergonha! Cruel infância da humanidade. O doentio
moralismo que ensinou o homem a se envergonhar dos seus instintos.” (Ibidem, p.10) Após
conceber o moralismo como “doentio”, ela questiona o conceito de verdade: “Ora, dane-se
que a sua verdade não é a minha. O que é a verdade? O que é a mentira? Você pode
determinar até onde as coisas são verdadeiras ou falsas? O absurdo existe apesar de
absurdo. Não tem essa de moral ou imoral coisa nenhuma! Tudo é relativo [...]” (Ibidem,
p.12)

5 PALAVRAS NO DESFINAL
“ E criança ainda entreguei a minha vida a arte de representar. Desde então tenho
representado tanto que já não sei onde termina a atriz e começa a mulher ou onde
termina a mulher e começa a atriz.” (RODRIGUES, Ibidem, p.3)

A intensidade do ritual de representação presente em Uma Alegre Canção Feita de


Azul transgride as estruturas impostas pela dramaturgia tradicional. Yumara declara: “[...]
tenho representado tanto que já não sei onde termina a atriz e começa a mulher [...].” A atriz
/ personagem reivindica uma liberdade narrativa que, tecida em ambiguidades, acentua o jogo
obscuro que rege o monólogo. Há, nesse jogo, uma potencialidade niilista que, num embalo

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463

dionisíaco, presentifica-se num absoluto que se constrói e se desfaz simultaneamente, num


momento fugidio. Assim, o sujeito, destituído do absoluto, embala o seu eu- estilhaçado e
encontra afinidade com o quase-lá e o não-ainda.

Como em Macbeth, no monólogo cômico de Yumara Rodrigues, o bem é mal, o mal é


bem. A ambivalência nos permite compreender que a alegria vem pela dor e a sondagem do
abismo existencial se dá no nível da presença dessa dor. Em suas leituras shakespereanas,
Nietzsche retira toda a noção de moralidade e nos mostra que a vida não é para ser levada a
sério. Percebe-se, então, o niilismo potente que reside na comédia. O cômico não se opõe ao
trágico - mas ao sério - e carrega essa potencialidade ética. Ora, dirá então a nossa
personagem: “A vida chega a ser uma piada! Uma piada sórdida, não desconfio... Mas não a
levemos a sério. ” Uma piada sórdida pode fazer-nos rir. Porém, rir é também uma forma de
chorar. Quando questionado a qual filósofo - Demócrito que ria ou Heráclito que chorava -
pertencia à alcunha de sábio, o padre Antônio Vieira, em Sermões concluiria que:

“Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso. Chorar com
lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; chorar
com riso é sinal de dor suma e excessiva. […] A ironia tem contrária significação do
que soa: o riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas ironicamente, porque o
seu riso era nascido da tristeza, e também a significava: eram lágrimas
transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas […].
Heráclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca. O pranto dos olhos
é mais fino, o da boca é mais mordaz, e este era o pranto de Demócrito [...]”.
(VIEIRA, 1968, P. 79)

Diante dos risos possíveis, talvez estejamos condenados a essa oscilação que instaura feridas
em nossa subjetividade diante do humor melancólico enquanto registro constante do estar a
morrer. Fiquemos, portanto, com a opinião de Nietzsche que, no prefácio de O Nascimento da
Tragédia, admoesta-nos: “Vós deveríeis aprender primeiro a arte do consolo deste lado de cá
– vós deveríeis aprender a rir, meus jovens amigos, se, todavia, quereis continuar sendo
completamente pessimistas [...]” (NIETZSCHE, 2007, P. 20)

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1977.

COSTA, José da. O Teatro Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro:7 Letras, 2009

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
464

DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto de menos; O esgotado. Rio de Janeiro:


Zahar, 2010.

LASSERRE, Luiz. Yumara Rodrigues: Uma Alegre Canção Feita de Azul. (Biografia),
Salvador: SS Produções: 2013

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva – Da utilidade e desvantagem


da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

.___________. . O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo:


Companhia das Letras: 2007.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. São Paulo: Unicamp,
2007.

RODRIGUES, Yumara. Uma alegre canção feita de azul, ou Minha piteira, onde está minha
piteira. Rio de Janeiro: Acervo do espaço Xisto Bahia, 1973.

RODRIGUES, Nelson. O Óbvio Ululante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2016.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2003.

ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. 3. Ed.São Paulo: Perspectiva, 1994

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PAVIS, P. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.

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465

SERÁ QUE ELA VOLTA? UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A REPRESENTAÇÃO


DO FEMININO E DO MATERNO NAS OBRAS CINEMATOGRÁFICAS LARANJA
MECÂNICA (1971) E QUE HORAS ELA VOLTA? (2015)175

Mestranda Louise Emilie Nascimento Marques Pinto (UESC/Capes)


E-mail: louise_marques@hotmail.com
Mestranda Renata de Melo Gomes (UESC/Capes)
E-mail: renata.melogomes@gmail.com

O presente trabalho visa estabelecer um diálogo entre os conceitos de feminino e


maternidade a partir das representações de mães interpretadas nas obras cinematográficas
Laranja mecânica (1972), dirigido por Stanley Kubrick (1928-1999), e Que horas ela volta?
(2015), dirigido por Ana Muylaert (1964), tomados como corpus de análise. Partiremos de
referenciais teóricos que embasam a maternidade enquanto construção ficcional e
sociocultural e o cinema como arte mestiça e opaca. A mestiçagem entra pela possibilidade de
imbricamento artístico-estético de outras vozes convergindo na produção fílmica e a
opacidade como mecanismo de simulação que provoca um efeito de evidência e transparência
sobre as posições discursivas interpretadas e dispostas em tela. A sétima arte também
funciona atravessando os sujeitos e interpelando-os em espectadores, como Ismail Xavier
(2014) propõe. Os principais nomes, além do já citado, são: Marcel Martin (1926-2016),
Christian Metz (1931-1993), François Laplantine (1943) e Alexis Nouss, Guy Debord (1931-
1994), Elisabeth Badinter (1944), Simone de Beauvoir (1908-1986) entre outros.
O objeto de análise versa por confrontar as personagens mães quando simbolizadas em
um universo doméstico, familiar, econômico e profissional nas ficções em questão. Os
cuidados com a criança são impostos à mulher e pouco recorridos à figura do pai, o que
implica em um movimento desigual na organização estrutural de divisão social do trabalho
doméstico e afetivo, de maneira que essencializa a representação do feminino como se a
mulher fosse “naturalmente” o ser responsável pelo cuidar, biologizando-o.
As obras trabalhadas correspondem a universos culturais e cronológicos distintos, o
que pode permitir uma confrontação discursiva do cinema como mecanismo ideológico de
significação e ressignificação de problemáticas sociais e históricas simbolizadas no real aqui e

175
O presente trabalho foi aceito para publicação como capítulo no livro Representações Maternais no Cinema,
em 30/08/2017, sob a orientação da Profª Dr. Marlúcia Mendes Rocha.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
466

agora. As mulheres e mães, biológicas ou não, são vistas e narradas pelos tons de outros
personagens, resultando em um ofuscamento de suas vozes, que são sempre em primeira
instância mães, ocupando lugares já ditados e pré-estabelecidos.

Feminismo e Maternidade

O feminismo é um movimento que surge a partir de questionamentos das mulheres


acerca das relações de poder existentes na sociedade. Até seu surgimento, a posição social de
inferioridade que ocupavam, sendo consideradas como “outro” e segundo dos pares, era
justificada por argumentos biologizantes e essencialistas. Tais argumentos giravam em torno
de um dualismo psicofísico que vinha desde a Antiguidade, em que mulheres eram associadas
à essência, ao corpo e à natureza – e, por isso, inferiores – e os homens à existência, ao mundo
das ideias e à transcendência – sendo assim, superiores. Como bem expõe Valcárcel (2012
[1997]):

El sexo feminino comienza a ser ‘el outro’, el ‘algo outro’. Esse ‘otro’ del que se
afirma la continuidade com la naturaliza. Pero para todo ello hay que esencializar, es
decir, hay que comenzar a explicar y definir a ‘la mujer’ como algo distinto de lo
humano em general. El naturalismo tiene que deducir uma esencia, no le queda más
remédio que hacer esencia. Y llega tan lejos esta manía de caracterizar qué sea o em
qué consista ‘lo mujer’ que acaba por romper com la propia continuidade de la
espécie dentro de sí.
Nada de extraño tiene que el siglo XIX haya llegado a teorizar la cuestíon del
sexo como uma variable tal que realmente rompe a la especie humana, puesto que se
llegan a hacer afirmaciones como la siguiente: la continuidade genérica del sexo
feminino es tal que está por encima de cualquier especie. Es decir, las especies
animales todas, incluida la especie humana em lo que tenga de espécie animal,
tienen em ‘lo hembra’ uma continuidade mucho mayor entre sí que la que existe
entre la mujer y el varón dentro de la especie humana. (VALCÁRCEL, 2012 [1997]
p. 60 e 61).

O movimento feminista foi dividido em três momentos, cada qual com suas lutas e
reivindicações específicas. Num primeiro momento, denominado Primeira Onda, que vai do
século XIX até aproximadamente a primeira metade do século XX, o feminismo questiona a
posição hegemônica masculina, em que as mulheres ocupam posição de desvantagem. Trava-
se uma luta pela igualdade entre homens e mulheres, justificando esse momento ser também
conhecido como Feminismo da igualdade. Na Segunda onda, cujo ápice ocorreu
principalmente entre as décadas de 1960 e 1980, o feminismo se centra em lutas por direitos
iguais entre homens e mulheres, ainda que sejam reconhecidos como diferentes e que a

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
467

eliminação das diferenças não seja um lema. Já, a Terceira onda, também conhecida como
Pós-feminismo, vai do fim do século XX até os dias atuais. Nesse momento, busca-se romper
com formulações teóricas que acreditavam na existência de um sexo pré-discursivo e
marcaram o movimento até então. Tais proposições acabaram por manter o binarismo de sexo
e gênero. Nas palavras de Butler (2003):

Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz
sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não
deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num
sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são
estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo
para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a
‘natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como
‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra
sobre a qual age a cultura (BUTLER, 2003 [1990], p. 25).

É necessário salientar que a necessidade de rompimento com o essencialismo é uma


constante nas lutas feministas. Desde seu início, a liberdade da mulher, que não deve ser
definida de acordo com sua construção biológica e assim determinada, é uma das discussões
centrais do feminismo. Dessa maneira, a maternidade como um dado naturalizado e
inconteste, também é alvo de problematizações. Badinter (1985) afirma que o amor materno –
sua existência, significado e valorização – variam histórica e culturalmente. Podemos inferir,
assim, que não se trata de um dado instintivo ou de confirmação de normalidade. Querer ou
não ter filhos, amá-los ou não, são construções socioculturais. Toda forma de afeto e
participação na vida dos filhos é também ditada pela dinâmica econômica e a nova inserção
da mulher ao mercado de trabalho.
De acordo com Badinter, são aos valores arraigados no modelo social consolidado no
ocidente, de maneira geral, que consideram a mulher como “naturalmente” criada para ser a
cuidadora dos filhos, caso a mãe biológica, por qualquer razão, não tenha como criá-los, tal
tarefa é automaticamente transferida à outra mulher. Isso é questionado pela autora:

O amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento,


é incerto, frágil e imperfeito. Contrariamente aos preconceitos, ele talvez não
esteja profundamente inscrito na natureza feminina. Observando-se a
evolução das atitudes maternas, constata-se que o interesse e a dedicação à
criança se manifestam ou não se manifestam. A ternura existe ou não existe.
As diferentes maneiras de expressar o amor materno vão do mais ao menos,
passando pelo nada, ou o quase nada (BADINTER, 1985, p. 22 e 23).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
468

Semelhante ao defendido por Badinter, Beauvoir (1949) afirma que a maternidade torna-se
imperativo para a mulher. Ainda que a sociedade possa afirmar o contrário, a maternidade é
vista como uma consequência natural e se espera que toda mulher “normal”, mais cedo ou
mais tarde, deseje a maternidade como uma necessidade inata de cumprir com sua
determinação essencial. No entanto, é objetivo o questionamento da autora acerca dessa
necessidade biológica do cuidar. Ao contrário, a maternidade é assumida por ela quase como
uma obrigatoriedade disfarçada:

Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se
pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única
saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas
anticoncepcionais, o aborto e o divórcio (BEAUVOIR, 1949, p. 79).

Análise Fílmica: De Laranja Mecânica (1971) a Que horas ela volta (2015)

Muito teóricos se debruçaram sobre as possibilidades realísticas que o cinema desperta


no espectador. A relação entre sons, músicas, imagens e movimento consistem em um
“mistério” dinâmico possibilitado pelas máquinas filmadoras. É o processo de identificação
de quem assiste com a representação ensaiada e projetada em tela, que dá o tom de realidade à
ficção. São os “sentimentos de realidade” que Marcel Martin vai considerar em sua obra A
Linguagem Cinematográfica (2005). Falamos, pois, de uma realidade subjetivada pela
apreciação de outros.
Para além do processo de identificação do espectador com as personagens, o cinema
consiste em um tipo de arte que abarca um conjunto de fatores externos, correspondente a
outras modalidades artísticas anteriores a ele. Uma arte agregadora, privilegiada pela
possibilidade de diálogo sonoro e imagético, que contempla uma fotografia movimentada,
dinamizada em uma lógica espaço-temporal. É a exemplicação da mestiçagem citada por
Laplantine e Nouss (2016) que não se trata de negar o passado ou estabelecer uma
originalidade pura à obra artística, mas realiza uma imbricação resultando na construção de
um novo composto por diversas partes que se fundem, dialogam e convivem em constante
tensão:

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compreende-se, assim, porque razão a epistemologia e a moral clássicas


hostilizam tanto a mestiçagem, que seria a arte dos compromissos. Os que
dela se reclamam, podendo afirmar uma coisa e o seu contrário, são tidos por
trair sempre alguém: traidores ao pai, à mãe, à pátria, ao grupo
(LAPLANTINE, NOUSS, 2016, p. 87).

O espectador novamente rouba a cena, quando subjetiva emocional e perceptivamente a


narrativa cinematográfica, por meio dos indícios de realidade expostos e construídos na
história dramática cinematográfica. Para Christian Metz (2014), “[...] uma reprodução
bastante convincente desencadeia no espectador fenômenos de participação – participação ao
mesmo tempo afetiva e perceptiva – que contribuem para conferir realidade à cópia” (p. 19).
Portanto, todo processo de significação do cinema envolve as formas narrativas dispostas na
trajetória temporal da história e a recepção interpretativa do público.
Traremos para análise dois longas-metragens ambientados em espaços e tempos
distantes e divergentes, mas que trazem representações de mulheres e mães que mantêm
padrões e, inversamente, burlam as categorias biologizantes marcadas pela ordem
sociocultural. Em ordem cronológica, tratamos do filme Laranja Mecânica (1971), dirigido
pelo cineasta estadunidense Stanley Kubrick (1928-1999) e Que horas ela volta? (2015),
dirigido pela cineasta brasileira Anna Muylaert (1964). Em palavras breves, Laranja
Mecânica é uma obra de releitura, baseada no livro de nome original A Clockwork Orange
(1962), do autor Anthony Burgess. Ambientado em uma sociedade inglesa futurista, marcada
pelo rigor clássico e uma brutalidade juvenil compreendida nas figuras de Alex e seus droogs.
Em meio a um caos urbano revelado pela sujeira nas ruas, corrupção e jogadas políticas, a
Leiteria é o espaço agregador e permissivo, que oferece um cardápio clássico e aparentemente
único, o leite-com (ou leite com drogas). Em poucos e significativos momentos, aparece o
núcleo familiar de Alex (Malcolm McDowell) – é a partir dele que todo o enredo é narrado e
que por vezes chama o espectador para testemunhar. No seu restrito núcleo, está o pai,
chamado de P (Philip Stone) e a mãe, que também só recebe uma letra como nome próprio, M
(Sheila Raynor). É na personagem M e seu envolvimento com os pares, que focaremos a
atenção, ainda que seja sempre vista pelos olhares de Alex.
Em Que horas ela volta? o principal cenário é o Brasil de 2015, em uma São Paulo,
como um mundo de possibilidades, representada por uma família de classe média alta e uma
empregada nordestina, Val (Regina Casé), considerada como membro integrante “da família”.
Desde muito cedo, Val cuida do filho, Fabinho (Michel Joelsas) dos patrões, Bárbara (Karine

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470

Teles) e José Carlos (Lourenço Mutarelli). A criança parece se aproximar mais afetivamente
de Val, que deixou sua filha no nordeste sob os cuidados de outros. Toda a trama é
reorganizada quando sua filha, Jéssica (Camila Márdila), pretende fazer vestibular em uma
universidade de renome em São Paulo e se hospeda na casa dos patrões da mãe. É esse olhar
que vem de fora, que apresenta as condições e os desalinhos sociais e afetivos entre a família
e a empregada. É em torno dessas duas mães, uma patroa e outra empregada, que serão
verificadas as formas narrativas dispostas pelo jogo de imagens, uma vez que o filme não
apresenta um narrador direto e presente.
Montados os ambientes das obras, partiremos para uma análise mais detalhada, com
cenas e referenciais centrados no cinema e na maternidade. São pelos “indícios de realidade”
recortados pelos filmes que estabeleceremos elos com os conceitos de maternidade vistos a
partir das teóricas acima citadas sobre o espaço social ocidental. Verifica-se, no cinema
dirigido por Stanley Kubrick, uma predominância no estilo de enquadramento, que privilegia
o ponto de fuga em referência as pinturas renascentistas e movimentação de câmera em estilo
travelling, pautado no cuidado com os cenários que demostram um olhar especial para o
design de interiores dos anos 1970. É a imagem manipulada que imprime sobre a tela
determinada significação e atravessa o espectador posicionando-o ideológica e moralmente.
Desta maneira, o primeiro recorte de cena elencado, refere-se à organização familiar de uma
sociedade do futuro, mas que responde a um padrão e um núcleo de família centrado na figura
de pai (homem), mãe (mulher) e o filho. Nada se desvencilha no futuro da cultura inglesa. Em
plano médio, por volta dos 19 (dezenove) minutos de filme, somos apresentados aos pais de
Alexander deLarge – narrador de sua odisseia.
As características psicológicas e comportamentais de Alex e seus droogs são expostas
em cenas em uma perspectiva um tanto quanto infantilizada, embora estejam em idade de
responder por si. Pela manhã, na hora da escola, Alex é chamado pela mãe para que se
organize e vá à escola. Ele insinua que seu gúlliver (cabeça) esteja doendo e precisa de
repouso para melhor responder aos outros dias de aula. A troca de nomes oficiais dos
membros do corpo, por signos neologistas é um tipo verbal marcante no personagem.
Representa um tipo de comportamento predominante em crianças, principal na fase de
significação do meio social que as cerca e no qual estão submersas.

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471

Figura 1 – Tempo: 20:13


FONTE: Print Screen do filme Laranja Mecânica (1971)
(Pai e Mãe conversando no café da manhã. Fala da Mãe)

O trato entre os integrantes da família também representa a mesma forma


infantilizada, forma essa desconfigurada dentro da linguagem padrão dos adultos, conforme a
Figura 1. Seus personagens parecem destoados dos papéis sociais que lhe são postos. Embora
narrem uma preocupação ou um desconhecimento com as ausências do filho, isso não parece
afetar a conjuntura familiar. A gaveta de relógios e dinheiros espalhados, as noites perdidas e
as faltas na escola, não mais tomam o tempo da narração além dos 19 minutos filmados.
A tutela do rapaz não se limita aos pais, ele é interpelado pelo agente de
condicional que tem a obrigação de estar atento as suas atividades extraoficiais. O que entra
em jogo na sequência narrativa discursiva e imagética é um jovem inconsequente que se
droga em uma Leiteria, rouba um carro e pilota sem contar com os obstáculos. Como um jogo
de videogame, pilota de maneira inconsequente porque o que importa é que quanto mais
obstáculos são derrubados, mais pontos são adquiridos. O personagem de Alex contracena
com outros sujeitos que junto com ele deturpam a ordem. Nessa linha, a própria ordem social
é regida por um autoritarismo repressivo, a polícia mantenedora da ordem, e uma distopia
agressiva, regada de leite-com.
Em um breve salto temporal, chagamos ao momento do assassinato da “mulher dos
gatos”, onde Alex é também traído por seus droogs e então encaminhado à prisão. A primeira
cena chegando à prisão apresenta um ângulo onde não aparece a figura de Alex, nem da
família, mas sua fala chama atenção.

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Figura 2 – Tempo: 46:02/46:05/46:08


(Narração feita por Alex ao chegar na prisão)

Alex sugere um posicionamento da mãe e um instinto afetivo característico a sua


condição de mãe. Ele se refere a uma condição biológica de perda de sua prole, não mais
resguardada em seu ninho, uma característica de mãe identificada ao seu papel social e
aparentemente fisiológico. Contudo, para Beauvoir (1970),

[...] diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores. Os
dados biológicos revestem os que o existente lhes confere. [...] A ligação
íntima da mãe com o filho será para ela fonte de dignidade ou de
indignidade, segundo o valor, que é muito variável, concedido à criança;
essa própria ligação, disseram-no, será reconhecida, ou não, segundo os
preconceitos sociais (BEAUVOIR, 1970, p. 57)

A sequência imagética até a prisão, não permite inferir uma participação efetiva de M
sobre o encarceramento do filho e um sofrimento materno pelo horror social que o filho
provocou. Não denota um desejo latente em prostrar-se à “dor” de um filho. Apoiada a análise
em Beauvoir, todo o processo relacional entre mãe e filho corresponde às conjunturas sociais
de uma dada época, não há uma complementariedade psíquica, emocional e orgânica entre o
sujeito mãe e o sujeito filho. Para bem e para mal, como propunha as interações no cinema
kubrickiano, uma relação dual, Alex encontra-se imerso em um meio social dependente e não
autônomo, que anseia sempre pela proteção e o olhar observador de outro.
Na prisão, todas as figuras joviais também apresentam comportamentos
infantilizados, brincadeiras, zombeteiras e uma sexualidade sempre flagrante. É o freio

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473

agressivo e sexual que o Tratamento Ludovico176 pretende acionar, castrando a aparente


sociopatia de Alex deLarge. O tratamento tira de Alex sua pura paixão quase sagrada e
refúgio, a idolatria por Ludwig Van Beethoven. Ouvi-lo, passa a causar mal-estar, o caminho
encontrado pelos médicos para uma eficaz ressocialização.
Sua volta ao mundo adulto implica em uma nova realidade doméstica. Alex encontra
seu quarto repaginado, descaracterizado de seus objetos e na sala-de-estar, seus pais leem no
jornal sobre a saída da prisão do filho e a eficácia do novo tratamento, junto ao espaço, está o
novo integrante, um inquilino (Joe) que aluga o quarto vago de Alex. O que se encontra é uma
nova família com o filho “adotivo” e participativo nas atividades ociosas do lar. Joe não só
ocupa um quarto, ele é o defensor dos pais massacrados pelo egoísmo agressivo do filho
biológico. Por sua vez, Alex invadido pelo sujeito estranho em seu lar, tenta revidar com
violência, mas é impedido pelo enjoo que o tratamento causa e por M, que não admite que os
meninos briguem na sala. A voz da mãe é ouvida nesse único momento, o representante das
decisões do lar é a figura do pai, que não aceita expulsar Joe, uma vez que ele já havia pagado
o aluguel do mês seguinte. Melancolicamente, Alex sem seus pertences e sem um quarto, foi
com uma sutil imposição expulso de casa.

Figura 3 – Tempo: 1:31:58


(Pai e Joe [inquilino] consolando Mãe, após a “expulsão” de Alex de sua casa)

A representação afetiva e ativa de M sobre os integrantes de casa é mínima e


dramatizada. M, frente às catástrofes do filho, apresenta um choro performático e alto,
sempre atrai atenção dos ouvintes. M, como apresenta a figura 3, é acalentada pelos homens,
quase como posta em uma redoma que protege o objeto frágil. É um espetáculo a sua dor por
um filho reformado socialmente, onde as notícias eram acompanhadas só pelo jornal. A

176
Consiste em um tratamento fictício e envolve a exposição forçada de imagens cinematográficas de intensa
violência ao sujeito destoado dos padrões sociais e culturais, causando repulsa aos atos dramatizados nas
imagens fílmicas.

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474

“adoção” de filho economicamente ativo, que paga aluguel e ajuda na renda, configura uma
relação familiar organizada no investimento lucrativo, a materialidade financeira, que o
herdeiro biológico ou não, pode apresentar.
Tomando emprestada a formulação teórica de Guy Debord (1997) em seu décimo
sétimo ato e trazendo-o também para o espetáculo familiar,

A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na


definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em
ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados
acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em
parecer, de que todo o "ter" efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua
função última (DEBORD, 1997, p. 24).

Em Que horas ela volta? de Muylaert, percebemos duas mães que carregam
similaridades e diferenças. Val (Regina Casé), a empregada doméstica deixou sua filha com o
pai, em Pernambuco, aos cuidados de outra mulher, para poder trabalhar em São Paulo. Ela
paga as contas da filha, enviando dinheiro mensalmente, mas o contato entre elas é esporádico
e a relação marcada por distanciamento e pouca afetividade. Percebemos que a mãe, para
conseguir conversar com a filha pelo telefone, precisa de muita insistência porque a filha a
evita e, quando se encontram em São Paulo – quando Jéssica (Camila Márdila) vai prestar
vestibular, a relação entre elas é marcada por estranhamento e pouca afetividade. A Jéssica
causa muitos transtornos profissionais para Val, por ser uma pessoa que não se adequa ao
tratamento dado pelos patrões a ela e à mãe, enquanto Val está completamente adequada,
provavelmente porque sua estabilidade econômica, consequência desse trabalho, a impele a se
adequar a tal situação.
Essa relação entre mãe e filha tem uma forte semelhança com a relação entre Bárbara
(Karine Teles) e seu filho Fabinho (Michel Joelsas). Sempre trabalhando muito, a mãe deixa o
filho aos cuidados da empregada e mantém uma relação distante e também marcada por pouca
afetividade. Em algumas situações, percebemos que são as discussões e conflitos que marcam
a relação, como na cena a seguir em que, após sofrer um acidente, Bárbara discute com o filho
e lhe cobra uma afetividade que não foi verdadeiramente construída entre os dois:

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475

Figura 4
Fonte: Print Screen da cena do filme Que horas ela volta? Tempo: 1:02:15
(Bárbara xinga Fabinho e diz que ele não lhe dá atenção enquanto ele tenta se explicar)

Os cuidados maternos de Fabinho são, na realidade, desempenhados pela empregada,


que o protege, acoberta e mantém com ele uma relação marcada por muito afeto e carinho,
como podemos perceber na cena abaixo. Nesse momento, Val brinca com Fabinho no colo
fazendo brincadeiras infantis:

Figura 5
9:19 (Val brinca com Fabinho falando: janela, janelinha, porta, campainha)

Notamos que a relação entre a empregada e o filho dos patrões se assemelha a uma
relação maternal: Val acoberta e protege Fabinho, o acolhe em momentos de dificuldade e
chega a dormir com ele em algumas situações. Essa proximidade é evidenciada em várias
cenas. Ao analisarmos essas relações – entre Val e Fabinho e entre Val e Jéssica –
percebemos o afirmado por Beauvoir (1949, p. 277 e 278) de que “não existe instinto
materno: a palavra não se aplica em nenhum caso à espécie humana. A atitude da mãe é
definida pelo conjunto de sua situação e pela maneira por que a assume”. Assim, diferente do
que afirmam os valores da sociedade ocidental, que tendem a essencializar a relação entre
mães e filhos, Beauvoir ratifica sua teoria de que o biológico não é o destino e o quanto o
feminino e as relações maternais são construtos socioculturais.

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476

Percebemos na trama analisada que as mães biológicas não construíram uma relação
de maternagem com seus filhos. A hipótese é de que o distanciamento físico parece ter
ocasionado um consequente distanciamento afetivo como também ocorreu entre Val e Jéssica.
Tal fato só reafirma o significado sociocultural da relação de maternidade, como afirma
Beauvoir (1949):

É pela maternidade que a mulher realiza integralmente seu destino


fisiológico; é a maternidade sua vocação ‘natural’, porquanto todo o seu
organismo se acha voltado para a perpetuação da espécie. Mas já se disse
que a sociedade humana nunca é abandonada à natureza. E, particularmente,
há um século, mais ou menos, a função reprodutora não é mais comandada
pelo simples acaso biológico: é controlada pela vontade. Certos países
adotaram oficialmente métodos precisos de birth-control; nas nações
submetidas à influência do catolicismo, esse controle realiza-se
clandestinamente: ou o homem pratica o coitus interruptus ou a mulher
expulsa os espermatozóides do corpo após o ato amoroso. [...] o aborto.
Igualmente proibido nos países que autorizam o birth-control, tem muito
menor número de oportunidades de se propor. Mas na França é uma
operação a que numerosas mulheres se vêem obrigadas a recorrer [...]
demonstrando que essencializar a relação mãe e filho(a) como instintiva, é
um equívoco. (BEAUVOIR, 1949, p. 248)

Ao contrário de ser consequência de uma relação biológica e naturalizada, o que


percebemos no filme é que a convivência entre Val e Jéssica, conversas sobre a relação e uma
maior proximidade e cumplicidade entre elas foi o que ocasionou o estreitamente dessas
relações e a reconfiguração de laços afetivos. Essa mudança é evidenciada quando, no fim da
obra de Muylaert, Jéssica chama Val de mãe, como não havia chamado desde o início dessa
relação conflituosa, fato que chegou a ser motivo de discussão entre elas. Isso é confirmado
pela distante relação entre Bárbara e o filho, que se mantém até o final.

Será que elas voltam?

É importante estabelecer com clareza a diferença entre os conceitos de Maternidade


(condição de ser mãe, laço de parentesco que une mãe e filho, exclusividade da condição da
mulher) e de Maternagem (ser maternal, afetuoso, dedicado e carinhoso). A maternidade é
uma característica exclusivamente feminina de consequências físico-biológicas e a
maternagem é uma escolha pessoal, um desejo do sujeito de exercer a função de mãe, que
independe da questão de gênero. A curiosa relação de mães e filhos nas trajetórias de
personagens nas obras cinematográficas em questão delineou o aspecto sociocultural e
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econômico de envolvimento entre os parentes consanguíneos e “adotados” pela conveniência


financeira ou afetiva. Toda a maternidade exposta no desenvolvimento imagético proposto
pelos filmes foi construída em decorrência do tempo convivido com os filhos. O jogo social
que determinava uma mãe modelo, dedicada ao lar, aos filhos e marido é burlado pelas
protagonistas que sempre escapam à dinâmica essencialista materna, embora apresentem
breves retornos de compensação pela ausência do papel que lhe designaram: ser mãe.
Percebemos, então, que essas mães ficcionais ratificaram e exemplificaram a desnaturalização
da relação materna em que o ter filhos torna-se e se reafirma como uma escolha e amar os
filhos ou não, é consequência de construções socioculturais e não de dados biológicos. Mas,
em outro sentido, há uma manutenção da ordem social, expondo uma organização familiar
pautada na presença de pai, mãe e filho, onde o cuidado dessa criança se mantém sobre o
olhar e o zelo da figura feminina. Assim, o discurso cinematográfico configura uma
linguagem opaca, em que os sentidos, e as interpretações das artes, estão sempre remetidos as
condições históricas de suas produções.

Referências Bibliográficas

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução:


Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução: Sérgio Milliet. 4ª Ed.
Difusão Europeia do Livro. São Paulo, 1970.
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de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Ed. Civilização brasileira, 2003.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Livros da Arte da Revolta, 1997.

DUNCAN, Paul. Stanley Kubrick: a filmografia completa. Tradução: Carlos Sousa de


Almeida. Teletraduções, Ltda. Lisboa, 2003.

LAPLANTINE, François; NOUSS, Alexis. A mestiçagem. Tradução: Ana Cristina Leonardo.


Instituto Piaget. Lisboa, 2016.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução: Lauro Antônio e Maria


Eduarda Colares. Dinalivro. Lisboa, 2005.

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METZ, Christian. A significação no cinema. Tradução: Jean-Claude Bernardet. Perspectiva.


São Paulo, 2014.

VALCÁRCEL, Amelia. La política de las mujeres. Madrid: Ediciones Cátedra (Grupo


Anaya, S.A.), 1997, 2012.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 6ª Ed. Paz e


Terra. São Paulo, 2014.

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479

HITCHQUOTES

Luiz Souza

Inicialmente, a proposta da presente comunicação, Hitchquotes, havia me parecido


interessante, mas a execução da ideia deixou a desejar, confesso. Uma série de neologismos
ou trocadilhos em função do nome de Alfred Hitchcock talvez tenha começado com a
intervenção do próprio diretor cinematográfico, com sua insistência em ser chamado de
“Hitch, sem o cock”, como ele costumava a dizer, com o detalhe de que, cock, em inglês, é
um termo popularmente usado como referência a pênis (TRUFFAUT, 2004). A ausência do
cock provocou a substituição deste termo por palavras as quais variavam em função da
perspectiva de quem propõe o neologismo. Assim, o livro de entrevistas de Hitchcock ao
jornalista, realizador e crítico cinematográfico, François Truffaut, passou a se chamar, por
conta da sua magnitude, HitchBook, apenas para ficar no exemplo mais emblemático da
tendência.
HitchQuotes, o nosso presente neologismo, parte da perspectiva de se fundir o
apelido do diretor, Hitch, com o jarguão Quotes, usado em redes sociais como referências a
citações literais de comentários de internautas. No contexto dos aficionados por cinema, os
Quotes significam a citação literal de frases marcantes de filmes de sucesso, como o Sempre
teremos Paris, em Casablanca (xxxx, xxxx) ou They don’t commite mistakes, frase presente
na franquia Bourne (xxxx, xxxx).
Hitchquotes, portanto, tenta significa citações ao trabalho de Alfred Hitchcock
constantes de filmes lançados recentemente, em especial os thrillers. Considerando a morte do
diretor, no ano de 1981, e a sua carreira, que envolve os filmes lançados desde a década de
1920, até meados dos anos 1970, os HitchQuotes seriam frutos tardios e, quiçá, estranhos, da
filmografia hitchcoquiana.
Na delimitação dos limites destes HitchQuotes entra o material produzido por jovens
cineastas, os quais, muito provavelmente, estudaram a filmografia hitchcoquiana, a qual
influenciou a sua as suas produções de maneira definitiva. Neste conjunto amplo e quase sem
fronteiras de filmes de suspense, investigamos, especialmente, as produções veiculadas pela
Internet. Em torno dessas produções, se agregam milhões de aficionados por thrillers em todo
o mundo. Estes fãs se encontram a partir da Internet, em especial na plataforma de
compartilhamento de vídeos You Tube.

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Para além de compartilhar gostos por slash movies, o público disperso pelos quatro
cantos do globo e agregados em comunidades virtuais perfazem o caminho apontado por Levy
(1999), no sentido da proposição de comunicações transversais, interativas e cooperativas. Há
que se considerar os vetores que impelem estes sujeitos a estarem juntos em constante diálogo
nas redes sociais como um capítulo do hedonismo e do impulso ao ‘estar junto’, como uma
forma de construção de subjetividades e laços de solidariedade e conflito no âmbito do
ciberespaço – definido por Levy (1999, p. 15/16) como:

[o] ciberespaço (que também chamarei de "rede") é o novo meio de


comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo
especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas
também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os
seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao
neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais
e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores
que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.

O livro Cibercultura, lançado pelo intelectual francês há cerca de 20 anos é iniciado


com a citação bíblica do dilúvio, como metáfora para que se possa dar conta do turbilhão de
informações no ciberespaço, em sua natureza exponencial, explosiva e caótica. Porém, o
tráfego neste espaço não se delineia de maneira caótica, aleatória, mas os internautas
procedem por afinidades, as quais compõem nichos de gostos, opiniões e cultura, os quais
agregam pessoas que compartilham de determinados valores. A imagem subsequente ao
dilúvio é a da arca, na qual se guarda algo a ser preservado, resgatado do que seria um
turbilhão potencialmente destrutivo.
As imagens hitchcoquianas, ou seus ecos, seriam algo componente de uma gama de
desejos e pulsões profundamente misóginas e inseridas no âmbito de uma produção
audiovisual que ainda elege as mulheres como vítimas de violências diversas, inclusive a
sexual – ou, antes, não se poderiam colocar fronteiras estanques entre as diversas formas de
violência as quais ainda se abatem sobre as mulheres nas telas, pois tratam-se de agressões
profundamente sexualizadas.
A narrativa paradigmática dos slashers movies pode ser encontrada na franquia O
Massacre da Serra Elétrica, filme construído a partir de imagens chocantes nas quais jovens
mulheres são agredidas – agressões estas, muito frequentemente ligadas ao comportamento
sexual das vítimas. São narrativas nas quais se insere uma hierarquia informal entre as

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mulheres, determinadas em função da sua sexualidade – na qual as mulheres de sexualidade


pujante costumam ser as primeiras vítimas de agressões. seguindo os roteiros tradicionais,
estas agressões se dão mediante facadas.
Numa análise do pensamento derridiano, Wolfreys (2009) contempla a presença, nos
textos da literatura e da cultura, de um quê resistente ao entendimento: “A diferença que fica
sem tradução é sempre aquela que permanece para ser lida” (WOLFREYS, 2009, p. 77). O
desafio em relação à leitura das imagens perpassa o seu aspecto polissêmico – assim: “toda
imagem é polissêmica e pressupõe, subjacente a seus significantes, uma ‘cadeia flutuante’ de
significados, podendo o leitor escolher alguns e ignorar outros” (BARTHES, p. 32). A seleção
das imagens neste capítulo dá-se em função e tendo como pressuposto um olhar obediente aos
limites da interpretação, mas constitutivo no sentido de se detectar as semelhanças
determinantes das perspectivas de análise constitutivas de se estabelecer um parentesco entre
sequências cinematográficas separadas por décadas. Porém: “Não podemos ler seja na direção
de uma verdade final, ou seja, na direção de um significado central último. Nem podemos
retroceder a um texto até chegarmos a um texto supostamente originário” (WOLFREYS,
2009, p 83).
Kristeva (2005) considera o texto como numa relação dialógica com o que ela chama
de real, mas, considerando o texto como constitutivo deste – numa superação quanto ao
raciocínio binário que tende a rebaixar e excluir a ficção em comparação com a realidade
empírica. Antes, a estudiosa considera o texto como parte de um vasto processo do
movimento material e histórico, não se limitando a seu autodescrever ou a fantasmáticas
subjetivas, mas como algo vivo, em movimento, participante das modalidades e das
transformações do real. Pois este real torna-se ele mesmo um texto e, conforme Kristeva
(2005, p. 68): “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto”.
Algumas estratégias nas quais houve o pioneirismo de Alfred Hitchcock podem ser
perceptíveis numa gama de filmes de suspense [thrillers], lançados nos primeiros anos desta
década de 2010. Selecionamos alguns filmes deste período, os quais se caracterizam pelo
baixo orçamento, inclusive em sua divulgação, o que os faz circular em comunidades de
aficionados pelo gênero. A plataforma de compartilhamentos de vídeos You Tube torna-se
estratégica como vetor gregário destas comunidades, ou antes cibercomunidades, as quais
compartilham o gosto pelo bizarro, pela a obsessão por imagens de violência, as quais

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482

repetem, décadas depois, a fórmula hitchcoquiana do torture as mulheres, como forma de


potencializar a participação afetiva do espectador mediante o pathos gerado pelo sofrimento
delas.
Um destes filmes que nos chamaram atenção, nos quais podem ser percebidas
estratégias narrativas possivelmente influenciadas pelo cinema hitchcoquiano é o
estadunidense All I Need, com roteiro e direção do hindu-estadunidense Dylan K. Narang. No
You Tube está disponível no canal Johnny Dawson e contava em 09/08/2017 com 1.366.666
visualizações. A narrativa conta é composta por duas histórias paralelas, mas ligadas pelo
assassinato em série de jovens mulheres. O filme foi um lançamento da Girls and Corpses
[garotas e cadáveres], produtora especializada no gênero slash movies. A jovem Chloe
(Caitlin Stasey) foi sequestrada por um serial killer, sedada e confinada numa casa na qual
outra dezena de mulheres compartilham da mesma sorte infeliz. Desesperada, ela tenta fugir
do cativeiro e apenas aumenta as suas chances de sobrevivência quando decide enfrentar o seu
algoz.
Este, por sua vez, é um homem atormentado por suas angústias e por sua ex-mulher
que o impede de conviver com a filha do casal, em função de dívidas relacionada ao
pagamento da pensão da menina. O sofrimento dele mobiliza a compaixão do espectador, que
tem os seus afetos divididos entre a jovem a lutar pela vida e o seu algoz, um homem branco
predador, este, por sua vez, vítima do desemprego. A manutenção desta tensão narrativa entre
as duas histórias depende da manutenção do suspense em torno do retardo no encontro entre
os dois protagonistas da trama. A perspectiva de se manter a simpatia pelo agressor consiste
em, através do uso da linguagem cinematográfica, escamotear a presença do agressor, durante
os momentos da sua fúria assassina.
Nas sequencias iniciais do filme, Chloe acorda no chão de um quarto imobilizada e
amordaçada por tiras de peno e cordas. Uma sua companheira de infortúnio a desamarra, a
fim de que, juntas, possam se libertar do cativeiro. Porém, em instantes chegaria ao local o
agressor, que frustraria o plano, violentamente. A primeira aparição da jovem decorre após
um fade in [gradual iluminação da tela], seguida de um movimento circular da câmera, em
torno do próprio eixo, que nos faz perceber a imagem inicial estava desenquadrada. Para
adentrarmos ao universo ficcional o qual estamos prestes a descortinar, necessitamos de uma
pausa, dada pelo fade in e seguido pelo desenquadramento, operações realizadas sem a
intervenção de som extrediegético.

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483

Na primeira aparição do agressor no ambiente no qual as mulheres estão confinadas,


as imagens são feitas por debaixo da cama. Vemos apenas os seus pés. Após cortes
sincopados nos quais vemos os rostos das duas jovens, há um plano de sequência filmado a
partir de debaixo da cama, com a duração de pelo menos 14 segundos. Não há nenhum
personagem ao qual se possa atribuir a visão captada por esta câmera subjetiva, então, somos
levados a crer que este lugar é ocupado pelo espectador – somos a audiência colocados ali,
como a compartilhar o cativeiro com estas mulheres. Há um pressuposto de desumanização
em marcha, na caracterização do agressor. Quando ele puxa uma das vítimas pelas pernas e a
arranca para fora do quanto, sob o olhar estupefato de Chloe, há um suave, mas determinante,
fast-forward [aceleração da imagem], algo que confere ao personagem uma aura não humana,
monstruosa.
Há a deflagração de uma culpa deste homem que se deixa subjugar por este estado de
coisas, pois o serial killer mata em nome dessa mulher poderosa, mas um concomitante
desejo de se colocar neste lugar de opressão, um lugar constituído pelas narrativas como
feminino. Ainda assim, somos convocados a nos solidarizar ao agressor, por um interessante
ardil narrativo que consiste em colocar-lhe uma máscara enquanto age de maneira brutal com
as cativas. Há um duplo que se insere na narrativa como a desvincularmos do pobre homem
desempregado, impedido de pagar a pensão da filha, do assassino monstruoso e cruel. Nas
sequencias finais do filme, ainda descobriremos uma hostilidade em relação aos ricos, em
algo semelhante ao que acontece no hitchcoquiano Estalagem Maldita (1939). Porém, aquela
que ocupa o lugar de quem se beneficia vampirescamente do sangue das jovens mulheres é
uma mulher de meia idade – uma rica capitalista. Na fantasia desta personagem, banhar-se no
sangue das vítimas dos assassinatos colaboraria para manter a sua juventude.
Mesmo a imagem típica dos filmes hitchcoquianos, o estrangulamento, a lenta
sufocação mecânica ganha outra perspectiva em All I Need. Este não mais seria um meio de
provocar dor e sofrimento às mulheres, mas ao agressor, colocado na posição de vítima da
agressão e tortura – ainda que Chloe assim tenha agido em legítima defesa. Ela improvisa
uma armadilha na qual seu agressor ficou dependurado e sufocou lentamente, numa atmosfera
masoquista, na perspectiva a qual Deleuze (2001) empresta ao termo:

Pertenece esencialmente al masoquismo una ex-periencia de la espera y del


suspenso. Las escenas masoquistas incluyen auténticos ritos de suspensión
física, atadura, enganche, crucifixión. El masoquista es moroso, pero aquí la
palabra morose califica primero el retraso o la dilación. A menudo se ha

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484

señalado que el complejo placer–dolor no alcanzaba para definir al


masoquismo; pero tampoco alcanzan la humillación, la expiación, el castigo,
la culpa. Se niega justificadamente que el masoquista sea un ser extraño que
encuentra su placer en el dolor.

A perspectiva de uma reação das agressões a mulheres, demonstrada pelo revide de


Chloe, se coloca num momento de ascensão dos movimentos feministas, ou, pelo menos, da
contraposição às correlações sociais de força determinantes da opressão das mulheres. Na
filmografia hitchcoquiana, embora as mulheres nunca sejam apresentadas como submissas ao
patriarcado, apenas Margaret, de Disque M para Matar (1954) e Alice, de Chantagem e
Confissão (1939) se colocam dentre as raras protagonistas dos filmes do diretor que reagem
com agressão física às agressões de mesma natureza perpetradas contra si.
Interessa-nos investigar alguns dos pressupostos destas reações de mulheres à
violência misógina, sobretudo em narrativas perpassadas pelo masoquismo. No seu
Presentación de Sacher-Masoch, Deleuze (2001, p 96) havia traçado um panorama das
narrativas nas quais homens obtém prazer na dor provocado por torturas impostas por
mulheres. Porém, para além de compor um quadro de acordo com o qual elas sejam capazes
de provocar dor e sofrimento em proporções iguais, mas aponta um caminho ambíguo para
que se possa entender narrativas lastreadas em torno do masoquismo masculino:

El contrato masoquista excluye al padre y traslada a la madre el cuidado de


hacer valer la ley paterna y de aplicarla. Sin embargo, esta madre es severa,
cruel. Pero el problema no se plantea así. En verdad, la misma amenaza que,
considerada desde el punto de vista del padre y ligada a la imagen de padre,
tiene la función de prohibir el incesto, lo hace en cambio posible y asegura
su éxito cuando es confiada a la madre y asignada a su imagen.

A dissertação de Deleuze traça paralelos de mulheres insubmissas ao universo


simbólico androcêntrico, pois empreendem ações no sentido de se instabilizarem-se laços
verticais e patrilineares. Na mitologia bíblica, o pensador cita o episódio do nascimento de
Caim, momento no qual Eva saldou o recém-nascido com gritos de alegria, algo a prenunciar
o destino do infante como agricultor, colocado ao lado da figura materna. No nascimento do
seu outro filho, Abel, Eva não manifesta o mesmo entusiasmo, sendo este colocado ao lado do
pai, seguindo a sua profissão, de pastor de rebanhos. “El preferido de la madre llegó al crimen
para romper la alianza del padre con el otro hijo: mató la semejanza del padre, e hizo de Eva
la diosa–madre” (DELEUZE, 2001, p. 99).

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485

Antes de chegar a tal perspectiva de raciocínio, Deleuze (2001) pondera em relação


às susceptibilidades dos lacanianos, ao considerar que haveria um motivo de estranhamento
em relação às perspectivas psicanalíticas de se vincular ao nome do pai a instauração da
ordem simbólica. Diante de tal pensamento, Deleuze pergunta, de maneira retórica: não
implicaria tal perspectiva uma insistência na ideia, singularmente pouco analítica, de que a
mãe seria a natureza, ao passo em que o pai representaria o único princípio de cultura e
representação da lei? – a questão se intersecciona a um racismo implícito na consagração da
lei como fundada pelo pai e numa hostilidade em relação às famílias homoafetivas, as quais se
constituem em bases divergentes quanto à divisão socialmente sancionada dos seres humanos
em gêneros. A ambiguidade trazida por Deleuze (2001), porém, se refere ao fato de que,
embora esta mulher seja alçada ao status de representante da lei, o seu papel nas narrativas
masoquistas seja o de infligir dores e sofrimentos como formas de fazer valer a lei paterna e
aplicá-la.
A narrativa de All I Need, em alguma perspectiva cumpre o roteiro demarcado por
Deleuze em relação a narrativas masoquistas, tendo em vista que a misteriosa mulher que
ordena os assassinatos e tortura o faz sob a chancela de um homem rico e poderoso. Ela não
aplica os sofrimentos às mulheres, mas trata X com sarcasmo e ironia. A postura de
superioridade da senhora, que impele X à obediência e à súplica são antecedentes do
estrangulamento nas sequencias finais do filme.
Podemos encontrar um personagem bastante similar a Norman Bates num recente
filme estadunidense, Decay (2015). O jovem Y mora sozinho na casa da família, com a qual
herdou depois da morte da mãe – vítima de um suicídio, num incêndio provocado por ela. A
cena na qual o garoto encontra o corpo carbonizado e tenta apagar o incêndio um recipiente
contendo água retirada de uma banheira. O percurso do jovem evoca a história de Ed Gein,
em sua necrofilia – apenas lembramos a história de Gein como aquela a que originou o
romance Psicose, a partir do qual foi adaptado o filme. A necrofilia hitchcoquiana, perceptível
especialmente nos personagens John Scottie Ferguson, de Um Corpo que Cai e o Norman, de
Psicose, ganha seus tons mais nítidos em Decay.
O suicídio na casa dos X fez com que a residência na qual se passou o sinistro seja
visitada por uma série de pessoas, que desfrutam da triste história da família como uma lenda
urbana. Duas jovens invadem a casa e perambulam pelos seus corredores sem que,
inicialmente, sejam percebidas por X. Porém, uma das jovens é surpreendida na invasão e,

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486

assustada, tropeça, cai e se acidenta fatalmente. Quando chega ao cômodo no qual ocorreu o
sinistro, uma segunda jovem vê a amiga morta, diante do rapaz proprietário da casa – e supõe-
na assassinada. Ela corre e morre atropelada, diante do olhar apavorado de X. A questão do
olhar parece reger a cena, pois, nas sequências iniciais do filme, se entrevê uma reversão na
economia narrativa tradicional, na qual aquele a deter o olhar é o personagem masculino. Kaja
Silverman (1988) refere-se a um procedimento segundo o qual após o close-up do rosto de um
personagem, há um plano subjetivo do que ele vê, o que enseja uma cumplicidade entre o
personagem e a audiência, algo definido por Mulvey (2009) como olhar masculino,
dispositivo regente do prazer escópico determinante das narrativas cinematográficas.

Referências

LEVY, Pierre. Cibercultura. Editora 34 Ltda. (edição brasileira), 1999


WOLFREYS, Julian. Compreender Derrida. Trad. Caesar Souza. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2009
TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas. São Paulo: Editora Companhia das
Letras, 2004
DELEUZE, Gilles. Presentación Sacher-Masoch: lo Frío y lo Cruel. Trad.: Irene Argoff
Amorrortu Buenos Aires, 2001
SILVERMAN, Kaja. The acoustic mirror: the female voice in psychoanalysis and cinema.
Bloomington and Indianapolis (EUA): Indiana University Press, 1988
MULVEY, Laura. Visual Pleasures and other pleasures. New York: Palgrave Macmillan,
2009.

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487

THELMA & LOUISE177

A figura da morte e os discursos prescritos do feminino

Marcos Vinícius da S. Neves178 (UFBA)


E-mail: camerra@gmail.com

A partir de tal perspectiva, o objeto de análise desta proposta se mostra enquanto


enunciado concreto (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009), por meio de sua materialidade
(textual, visual e sonora) de Thelma & Louise. Devemos compreender este conceito cujo
cerne é ocupado pelo dialogismo, ou seja, as relações dialógicas que tal estrutura estabelece
com outras existentes, citando-as direta ou indiretamente, determinando sua constituição;
portanto, um elo da cadeia discursiva “só faz sentido se, de algum modo, responde ao que o
precedeu” (BRAIT, 2014, p. 14). O filme de que tratamos compreende um elo de uma cadeia
discursiva (BAKHTIN, 2011), pois nos liga a outros enunciados que o precedem, bem como é
analisado neste trabalho (que pode ser compreendido como um elo que sucede a obra
analisada). Os elementos constituintes do objeto/sujeito compõem sua materialidade, através
da qual outros discursos podem estar presentes explicitamente, ou diluídos nos sentidos
acionados pelo enunciado analisado, pois “o tema de cada enunciado resulta de uma relação
indissolúvel entre seu conteúdo, sua forma, seu material e as posições autorais do criador e do
observador” (SILVA, 2012, p.2).
Thelma e Louise saem em viagem, tendo como destino a casa de campo do chefe de
Louise, onde passariam algum tempo longe das suas rotinas. Esta introdução pode ser
compreendida como algo – ainda que muito discretamente – sobre o desejo latente de
experienciar outra possibilidade de existir, diferente daquela realidade que lhes era comum.
Uma viagem como esta, ainda que se apresente como uma perspectiva de mudança
momentânea, representa uma incipiente demonstração da necessidade de distanciamento das
personagens em relação às suas vidas nos moldes como estavam cimentadas. Leva-se,
portanto, algum tempo sem que o horizonte das duas amigas seja alterado, mantendo-se sob a
forma de como a viagem havia sido programada.

O rumo previsto é apenas o prólogo de outra viagem que somente se inicia a partir do

177
Artigo resultante da pesquisa realizada sob orientação da Prof.ª Dr.ª Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva.
178
Mestrando no Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura

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488

momento em que elas se veem frente ao perigo iminente da violência ao corpo (de Thelma),
exercida pela figura do masculino (Harlam, o agressor).
Instaura-se, desse modo, o momento de decisão sobre qual dos caminhos deveriam
seguir a partir de então: (a) aceitar o fato incidental e tentar solucioná-lo nos moldes da lei,
como proposta mais adequada, segundo os padrões morais daquela sociedade ou; (b)
abandonar a cena do crime, refutando a possibilidade de ver aquele fato se colocar contra elas
(ainda que, aos olhos do espectador, sejam elas as vítimas). Sobre este segundo caminho,
havia apenas o receio frente ao desconhecido.
A jornada realizada pelas personagens ilustra metaforicamente a vida destas duas
mulheres: partem de um lugar estável e chegam a um destino diferente do que se espera no
início da história: a viagem conturbada e repleta de incidentes parece não ser nada além de
uma necessidade subjacente de mudança e autonomização. Para isso, precisam enfrentar o
ônus de contrapor discursos de poder patentes no contexto em que estão inseridas, ao passo
que, durante o trajeto, algumas formas de poder se interpõem à dupla no decorrer da narrativa.
Representados por personagens masculinos, esses poderes têm papel importante nos
acontecimentos que desviam o rumo das vidas de Thelma e Louise, e cuja influência é
revelada a partir do discurso que ali se constroi – verbal e não verbal. Todavia, tal observação
deve não cometer o deslize de atribuir aos personagens contrapostos – homens – a
potencialidade das atitudes tomadas pelas duas mulheres. Os homens da narrativa
correspondem à materialização simbólica do discurso ao qual elas se impõem e se opõem,
afinal, o dialogismo deve ser tomado como traço fundamental para a dinâmica constitutiva de
qualquer discurso.
O aspecto geográfico merece atenção, considerando o histórico de costumes
conservadores e rígidos do sul dos Estados Unidos, onde estão localizados estes estados.
Durante a fuga, as duas pretendem chegar ao México. Contudo, entre o lugar de onde partem
e o destino desejado está localizado o estado do Texas, região emblemática, carregada de
signos exaustivamente explorados pelas artes, com destaque para o cinema. A imagem do
caubói americano, as paisagens áridas e o famigerado conservadorismo contribuem, neste
cenário, para a valorização da figura do masculino, que determina os padrões de conduta
moral daquele contexto social. Em alguns momentos do filme, a rigidez texana é citada pela
fala de Louise, quando a personagem demonstra o receio de voltar àquele lugar e o quanto a
sua situação seria mais problemática caso o assassinato de Harlam tivesse ocorrido no

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
489

mencionado estado. Fica subentendido, então, que um fato ocorrera a Louise naquele estado
sulista (possivelmente uma agressão sexual). Por este motivo, a dupla decide não cruzar as
terras texanas, a fim de chegar ao México. Seria necessário, portanto, percorrer um trajeto
desviante, ao longo do qual os atos cometidos – motivados pelo acaso179 – desencadeariam
outros que seriam cometidos, em um primeiro momento, com estranhamento e resistência.
Isto ocorre porque estes acontecem impulsionados pelo assassinato não planejado, mas
que se mostram necessários em vias da violência contra Thelma, por parte da figura
masculina. Esta morte literal é transformada numa morte simbólica, que as acompanha
durante toda a fuga, se revela nos momentos de dúvida, desespero e atos de defesa. A viagem,
portanto, mostra-se como catalisador do processo de emancipação destas duas mulheres,
tendo a morte como figura determinante neste processo. Deste modo, considerar tais aspectos
do filme roteirizado por Khalie Kouri é situá-lo num contexto que excede os limites dos seus
elementos composicionais e “significa tomar os elementos dialógicos como fonte de
compreensão ativa e científica” . (SOUZA, 2002, p. 73), ao compormos esta análise, que se
coloca frente à obra analisada através de uma relação dialógica.
Considerando o hipotético segmento de uma linha horizontal progressiva, sobre o qual
ocorre a trama, quanto mais próximas do momento inicial, as atitudes tomadas pela dupla
parecem ser arbitrariamente postas pelas circunstâncias. Por outro lado, quanto mais distantes
do espaço e tempo onde/quando ocorre o ato abusivo do agressor (Harlam), mais estas
atitudes parecem ser tomadas de maneira consciente (a partir de uma avaliação das situações
enfrentadas e do lugar que ocupam naquele contexto). É capital, portanto, levar em conta a
relação espaço-temporal que se desenvolve no horizonte das personagens centrais. Neste
sentido, esta linha horizontal e progressiva se mostra como configuração da viagem e do
processo de autonomização de Thelma e Louise. Assim, a extremidade esquerda e inicial
representa o tempo e o espaço onde se localiza um arquétipo de existência possível, do qual
elas tendem a se distanciar e no qual se insere o fato que as impulsiona para o abismo/morte.
Este, enquanto alegoria, seria entendido como a impossibilidade de saber o que haverá à
frente, tornando-se constante durante o trajeto e sendo materializado na extremidade oposta
(final do filme) da linha horizontal e progressiva, proposta aqui. Compreendemos, então, a
imagem 01 como diagrama que se propõe a sintetizar o cronotopo presente na narrativa

179
Seria produtivo, neste momento, revisitar aspectos do cronotopo de aventura, delineado por Bakhtin.
Contudo, compreendemos a complexidade da abordagem, não cabendo instituir tal discussão, devido aos limites
deste trabalho.

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490

estudada:

Figura 01

Thelma e Louise entregam-se metaforicamente a este abismo/morte, de modo que a


certeza sobre os fatos futuros é personagem ausente durante grande parte da sua história, pois
a cada fato que ocorre e que precisa ser sobreposto, ultrapassado a fim de que a viagem tenha
curso, é preciso tomar decisões embasadas em valores que se reconstroem ao longo do trajeto.
Inicialmente, esta inclinação ao abismo, ou ao desconhecido, (ou, mais precisamente, à
morte) surge como uma alternativa possível, devido à dificuldade imposta pela situação do
assassinato. Porém, ao longo da trama (progredindo na linha da qual falamos acima), as
decisões passam a ser tomadas por meio de reflexões e escolhas que se opõem à estabilidade
percebida nos momentos iniciais da história: a vida estável, mas insatisfatória, mostrada antes
da viagem se opõe frente à possibilidade de existência inicialmente amorfa (a incerteza, o
abismo/morte), mas que as satisfaria enquanto sujeitos. Neste momento da narrativa, não
devemos ignorar o uso do termo poder, verbo modalizador que exprime a possibilidade
deôntica (NEVES, 2000), que materializa discursiva e verbalmente a certeza a respeito
daquilo que a personagem afirma não ser de possível realização. Isto surge em alguns
momentos da trama, ganhando expressão por meio de diálogos entre as protagonistas, a
exemplo desse que segue, iniciado no minuto 116’10’’, e transcrito livremente abaixo:
Thelma: Tem motivos para voltar atrás, como o Jimmy.
Louise: Jimmy não é uma opção.
Thelma: Mas.. não sei, sabe… Algo bateu de repente e não posso voltar atrás. Não poderia
viver.
Louise: Eu sei. Entendo o que diz. Enfim, não quero acabar no maldito Geraldo’s show180.

180
Geraldo foi um talkshow apresentado por Geraldo Rivera, que teve início em 1987 e durou onze
anos. O programa ficou famoso por seu caráter sensacionalista e pela teatralidade dos casos nele
apresentados.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
491

Thelma: É.
Diversos aspectos têm suas feições alteradas ao longo da viagem, nesta linha
horizontal progressiva. O signo da viagem reafirma seu caráter de provedor de mudanças ou
de rito de passagem a partir da instabilidade, própria do fato de não se conhecer o que estaria
por vir. Este aspecto, próprio do gênero road movie, em Thelma & Louise ganha outros
contornos ainda mais definidos e assume forma física, materializado nas cenas finais da
caçada à beira do abismo.
Em outro momento, enquanto fogem da polícia e parece não haver saída e qualquer
dúvida acerca do destino que escolheram, Thelma diz não se arrepender de ter acompanhado
Louise. A afirmação de Thelma, ao relatar sua felicidade, nega a realidade anterior, sobreposta
pelo abismo/morte que as acompanha. Portanto, a linha horizontal progressiva proposta aqui é
de grande utilidade para assentar o conceito de carnavalização, desenvolvido por Bakhtin.
Isto porque os fatos que se colocam em progressão sobre esta linha dialogam intimamente
com o conceito do teórico russo tratado neste item.
Recorremos à carnavalização e seus aspectos constituintes, verificando o modo como
dialogam com cenas de Thelma & Louise. Com este objetivo, é necessário dizer que a
carnavalização consiste, segundo Bakhtin, uma característica própria das manifestações
populares da Idade Média, quando os padrões da rotina comum eram desconstruídos ou
reinventados momentaneamente. Durante os festejos, as formas de ser eram exercidas de
modo que deslocavam o modus operandi daquela sociedade, sendo diluídos os limites entre as
classes sociais, entre a dualidade do feio e do belo, do proibido e do permitido. Todavia, o
autor afirma, também, como aspecto importante da carnavalização, o fato de seu caráter de
desconstrução representar a possibilidade do novo; a desconstrução de um parâmetro daria
origem a outro, inteiramente reformulado.
Este é, portanto, o ponto de partida de uma análise que pretende dar relevo aos
aspectos que evidenciam uma relação estreita (ao nosso ver) entre a narrativa de Thelma &
Louise e o conceito teórico carnavalização como processo de nascimento por meio da
destruição do que está posto, dando, assim, origem a algo novo. Esta noção dialoga com o
enunciado concreto que corresponde à obra fílmica da qual tratamos aqui: as protagonistas são
levadas a dissolver valores aos quais estavam subjugadas, bem como dissolvem a ideia que
possuíam a respeito de suas próprias subjetividades. Concomitantemente a esta dissolução,
ocorre a gestação de novos modelos que somente poderiam surgir a partir da derrocada dos

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492

antigos padrões. Assim, os arquétipos apresentados nas sequências iniciais do filme (e com os
quais as protagonistas dialogam e citam durante toda a trama) são questionados e destruídos,
ao passo que as amigas descobrem uma nova maneira de viver e de compreender a si mesmas
enquanto sujeitos sociais autômos. Esta forma inaugural contém, em si, a forma antiga (que
abandonam violentamente conforme seguem estrada) somente como uma referência daquilo
que não desejam voltar a ser.
Bakhtin aponta imagens grotescas, ambivalência, destronamento e temporalidade
como aspectos próprios deste processo e aos quais iremos recorrer, a seguir, relacionando-os
com elementos da obra fílmica estudada. Tais traços não são aspectos independentes, pois as
fronteiras que delimitam suas feições não são estanques: as quatro características da
carnavalização bakhtiniana se entrecruzam. Sua análise se dará separadamente com o único
objetivo de facilitar a compreensão das relações percebidas neste trabalho.
Ao longo da estrada percorrida por Thelma e Louise, compreenderemos de que modo
tais características acompanham as protagonistas da obra fílmica que as amigas protagonizam.
A imagem grotesca seria um dos elementos centrais da carnavalização. Este tipo de imagem,
com suas formas inacabadas e oponentes à ideia do belo, “caracteriza um fenômeno em estado
de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do
crescimento e da evolução.” (BAKHTIN, 2013, p. 21). Em seus aspectos estéticos externos,
as imagens de Louise e Thelma não condizem com o que se considera grotesco, restritamente.
Assim, ao utilizarmos, neste item, o termo imagem ao se referir à dupla de amigas, estaremos
nos referindo à sua construção como personagens e sujeitos representados numa obra de
ficção.
Esclarecemos que o que aproxima as protagonistas das imagens grotescas está no que
as caracteriza subjetivamente. Comparar a constituição das personagens no início da história
com o que vemos se construir ao longo da estrada nos faz lembrar que “as imagens grotescas
conservam uma natureza original, diferenciam-se claramente das imagens da vida cotidiana,
preestabelecidas e perfeitas” (BAKHTIN, 2013, p. 22). Além disso, deve-se compreender que
as imagens do grotesco negam a estaticidade, bem como a alternância, a contradição e o
caráter regenerador agem na direção da redefinição de valores (DISCINI, 2006).
É importante perceber de que modo o inacabamento181 é um traço relevante das

181
Aqui, não utilizamos como um termo contrário ao conceito acabamento, de Bakhtin, que trata da relação
estética entre autor e personagem, ao considerar que o acabamento é o delineamento da forma estética que
somente pode ser dada pelo outro. Somente a consciência do autor (externa) poderia dar acabamento ao todo do

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personagens principais da obra fílmica aqui analisada. Nos momentos em que se aproximam
da extremidade esquerda da linha horizontal progressiva, apresentada anteriormente, as
imagens das personagens sugere um acabamento, ou seja, perfis bem definidos quando o que
caracteriza as personagens: a dupla é apresentada de modo polarizado, sendo que Louise nos é
mostrada como uma mulher organizada e decidida, enquanto Thelma parece ser uma dona de
casa não adaptada ao contexto doméstico, o que é ilustrado pela desorganização regente em
seu lar. A partir do fato que altera a rota a ser percorrida pela dupla de amigas, os perfis
propostos nos momentos iniciais do longa-metragem são diluídos gradativamente. Isto nos
leva a notar traços das imagens grotescas na constituição subjetiva das personagens.
O desequilíbrio de forças aparece em diversos momentos do filme. Tão latente quanto
na cena da caçada final, as discrepâncias entre as forças que tensionam os conflitos da trama
aparecem, também, na sequência iniciada em 108’40”, quando Louise e Thelma atiram o
caminhão dirigido por um homem que também havia tentado exercer o poder masculino, por
meio de atitudes que referenciam o ato sexual. O terceiro personagem desta sequência aparece
em momentos precedentes, ao longo da estrada. Em todos eles, o caminhoneiro faz gestos
obscenos, sugerindo interesse sexual pela dupla de mulheres, que se sentem ofendidas por esta
atitude. O exagero se mostra, então, através das dimensões das figuras que se opõem na tela, e
representam os polos masculino e feminino: de um lado, um imponente caminhão-tanque,
conduzido por um homem; do outro, duas mulheres conduzem um carro conversível,
consideravelmente menor que seu oponente.
Considerando as relações indissolúveis entre signo e ideologia, lembramos que
“Nenhuma ideologia pode aparecer fora dos signos, e nenhum signo está despido de
ideologia” (BRAIT, 2006, p. 22). Assim, imponência evidenciada por meio do aparato de
grande porte (o caminhão-tanque), conduzido pela figura masculina dialoga, sob a perspectiva
deste trabalho, com hegemonia do poder exercido pelo homem na sociedade patriarcal, que
subjaz ao signo do falo. Neste sentido, Thelma e Louise destroem o símbolo deste poder,
mostrado pelo exagero das formas.
Mais adiante, na sequência final, através de um plano panorâmico, vemos o carro
conversível das amigas sendo perseguido por um grupo de viaturas, num terreno plano e
árido, em que os veículos desenham os caminhos já percorridos com um rastro de poeira. O

personagem. Do mesmo modo, não o estamos mencionando ao utilizar o termo acabamento ao longo deste item.
Neste caso, referimo-nos estritamente a uma completude formal e estética, enquanto elemento constituinte da
narrativa.

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494

exagero e a desproporção de um único veículo, ocupado por dois sujeitos, sendo perseguido
por diversos automóveis oficiais, conduzidos por homens da polícia armados, podem
reafirmar outra forma do grotesco emergindo neste filme. Entendemos que a discrepância
evidenciada na construção da cena é notada no âmbito do conhecimento ético (BAKHTIN,
2011), se concordarmos a respeito da não necessidade de um aparato policial tão potente,
frente aos objetivos de sua ação (capturar Thelma e Louise).
Considerando as particularidades da situação, não devemos perder de vista que a
condição feminina é mostrada hiperbolicamente como uma força menor, em oposição à
potência notadamente superior do masculino. Nas duas cenas comentadas acima, mais
evidentemente, identifica-se o destonamento, outro aspecto próprio da carnavalização. Neste
sentido, a inversão de posições (ou a posse do trono por parte de quem oficialmente não o
ocupa) é posta como parte fundamental para este processo. Desta forma, o destronamento
executado pelas protagonistas da obra fílmica analisada se dá por meio da destruição do
símbolo do poder atuado pela figura do homem.
Podemos considerar como determinante o aspecto da não completude dos atos
protagonizados pelas figuras de poder masculino. Isto porque, se a jornada das amigas (tal
como somos apresentados no decorrer da trama) se inicia a partir ato sexual violento não
realizado (graças à intervenção da bala prateada de Louise), algo semelhante ocorre nas duas
cenas analisadas nesta seção. Assim, é possível compreender que, ao destruir o caminhão,
Louise e Thelma novamente abortam o coito pressuposto pelo caminhoneiro. O ato sexual por
ele desejado não ocorre. Muito além da frustração de suas expectativas, o homem assiste à
dissolução do símbolo ideológico do poder fálico, representado pelo caminhão-tanque,
destruído por uma única bala de revólver disparada por uma mulher.
Na caçada final, assistimos ao abortamento das expectativas do poder masculino, por
parte da ação das protagonistas: diversos carros de polícia perseguem o veículo conduzido
pelas duas mulheres, que jamais são alcançadas. Aqui, nota-se uma possível metaforização do
processo biológico da fecundação, em que diversos espermatozóides buscam atingir um óvulo
para que, assim, uma nova vida seja gerada. Desta forma, o conversível conduzido pela dupla
de amigas, tal qual um óvulo, é perseguido por diversas viaturas, dirigidas por homens, tais
quais gametas masculinos em busca da fertilização – leitura que se dá a partir de observações
particulares à perspectiva da análise aqui desenvolvida, considerando que o diálogo figura,
também, o “ponto de vista que instaura um objeto de estudo”. (BRAIT, 2014, p. 13).

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
495

Entretanto, as vidas destas duas mulheres, enquanto novos sujeitos sociais diferentes daqueles
apresentados no início da trama, não foram geradas a partir deste encontro de gametas
simbólicos, mas, sim, por sua negação.
Quanto à ambivalência, descrita por Bakhtin como fundamental para noção da
carnavalização, é preciso rememorar que “A degradação cava o túmulo corporal para dar
lugar a um novo nascimento. Por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas
também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação.”
(BAKHTIN, 2013, p.19). Em Thelma & Louise, a ambivalência se mostra no todo da obra,
que abrange a constituição subjetiva das personagens centrais. Os fatos protagonizados pelas
amigas contribuem para as transformações destes dois sujeitos femininos que atravessam as
paisagens áridas que emergem na tela.
Isto se relaciona com o acabamento anteriormente mencionado, visto que os perfis das
protagonistas, como apresentados nas cenas introdutórias, não se sustentam ao longo da
trama. Arriscamos dizer que a ênfase dada nestas cenas tem a função de evidenciar as
mudanças ocorridas às duas mulheres que conduzem o conversível azul. Assim, a partir do
fato que abre uma fenda na trajetória de Louise e Thelma, os perfis iniciais iniciam seu
processo de derrocada: tornam-se quebradiços; áridos, como os cenários visitados pela dupla
de amigas. Ao se partirem gradativamente, estes perfis não dão espaço para o vazio resultante
do que seria uma destruição monovalente. Contrariamente, suas fissuras revelam feições
inteiramente novas, que são construídas a partir da autodescoberta que somente se torna
possível em detrimento das feições anteriores (iniciais). Portanto, a destruição das figuras de
duas mulheres inseridas no contexto e nas funções que se apresentam no prólogo da viagem
tem caráter genitor ou gerador do novo: a dona de casa e a garçonete dão vida a duas
mulheres que recusam veementemente os papeis sociais que exerciam antes de pegarem
estrada. Aqui, a morte se mostra presente, considerando que as feições iniciais das
personagens já não vivem, pois deram lugar às formas que vemos nascer ao longo da estrada.
Segundo Bakhtin, o processo de carnavalização é estruturado sobre o parâmetro da
ambivalência. Durante este mesmo processo, os valores comuns são reconfigurados ou
invertidos por meio do destronamento, num contexto em que têm lugar de destaque as
imagens grotescas. A carnavalização se mostrava como o momento em que o povo poderia
experienciar um diferente estado de coisas, para além daquele já conhecido em dias comuns.
Contudo, o carnaval teorizado pelo autor russo se instaurava por um tempo delimitado: não se

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
496

sobrepunha à rotina permanentemente. Portanto, a temporalidade seria o quarto traço


estruturante da carnavalização, como processo que tem um fim definido. Contudo, ainda que
não se instaurasse permanentemente, é fundamental compreender que a ordem cotidiana
retomada já não poderia ser idêntica àquela que precedeu o carnaval: a inversão
experimentada durante festa popular não permaneceria como um novo parâmetro, mas
alteraria as estruturas da vida para além do carnaval.
Aqui, a temporalidade tem especial importância: enquanto as imagens grotescas, a
ambivalência e o destronamento são percebidos, sob nossa perspectiva, nos elementos da
narrativa, a temporalidade bakhtiniana é negada por Thelma e Louise. A carnavalização que
se instaura na narrativa analisada não tem um fim, pois os antigos padrões não estariam
imunes às vivências deslocadas pela carnavalização. Todavia, não acontece a volta à rotina na
qual as personagens poderiam vivenciar o que haveria mudado após os fatos ocorridos durante
a viagem. As duas mulheres optam por não retornar e, assim, perceber aquilo que
possivelmente o processo carnavalizante que protagonizam teria alterado: a carnavalização de
Thelma & Louise é perenizada pela decisão que determina o desfecho da viagem. Deste
modo, só existem dois destinos ao fim do trajeto: o retorno à vida como conhecida antes da
viagem (considerando as alterações que esta jornada teria causado à antiga rotina e a elas
mesmas) e o abismo/morte que se impunha à frente do conversível por elas conduzido.
Retornar significaria abdicar da consciência e autonomia que somente conquistaram
sobre a estrada. Para isso, voltariam a assumir os papeis e o lugar sociais que ocupavam até o
momento da partida. Contudo, certas de manter o que haviam conquistado, decidem seguir
rumo ao abismo/morte, reafirmando a negação daquilo que lhes era anteriormente imposto.
Assim, a temporalidade carnavalesca é recusada, enquanto o estado de carnavalização se
mantém, cristalizado na imagem estática do carro no ar, ao final do trajeto. Portanto, o
desfecho revisita os aspectos mencionados acima, pois a dupla de protagonistas “renasce e se
renova com a morte” (BAKHTIN, 2013, p. 11). É por meio desta morte ambivalente que
Thelma e Louise reafirmam a vida simbolicamente.
Abordamos, neste trabalho, o dialogismo entre alguns aspectos de Thelma & Louise,
arquétipos da sociedade patriarcal e conceitos trazidos pelo pensador russo Mikhail Bakhtin.
Assim, dedicamo-nos a compreender as relações dialógicas possíveis neste contexto, no qual
compreendemos que a figura da morte assume significações distintas, se considerarmos as
diversas feições que este signo apresenta, ao longo da estrada percorrida pelas protagonistas.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
497

Por outro lado, consideramos que a decisão final das personagens, de seguir ao encontro do
abismo, apresenta-nos a morte como possibilidade de negação à realidade que se impunha
para estas duas mulheres. Assim, concluímos que morrer, no contexto apresentado no
desfecho da narrativa, mostra-se ambivalente: finda o corpo físico de Thelma e Louise, mas
carrega consigo a potência da decisão pela possibilidade de autonomia para as protagonistas,
num contexto de opressão naturalizada e estruturante para os acordos tácitos do patriarcado.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006;

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de


Rabelais. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins fontes, 2011;
BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 15ª ed. São
Paulo: Hucitec, 2009;

BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 9-32;

BRAIT, Beth. Uma palavra sobre dialogismo. In: BRAIT, Beth; MAGALHÃES, Anderson
Salvaterra (Orgs.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. p. 13-15;

DISCINI, Norma. Carnavalização. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. São
Paulo: Contexto, 2006. p. 53-94;

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do Português. São Paulo: Editora
UNESP, 2000;

SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero.


Labrys - estudos feministas. Nº 1-2, jul./dez. 2002.
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf> Data de acesso: 24 de outubro de 2015;

SILVA, A. P. P. F. É já citação: uma análise de uma obra de Cerith Wyn Evans. In: 2ª
Jornada Internacional de Estudos do Discurso e 1º EIID - Encontro Internacional da
Imagem em Discurso, 2012, Maringá, Paraná. 2º JIED - ANAIS 2012. p 1-12;

SOUZA, Geraldo Tadeu de. Introdução à Teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin
/ Volochinov / Medvedv. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
498

VOZES FEMININAS NA DRAMATURGIA BAIANA SOB CENSURA: CLEISE


MENDES, JUREMA PENNA E NIVALDA COSTA

Dra. Rosa Borges (UFBA)


E-mail: borgesrosa66@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

No período da ditadura militar na Bahia (1964-1985), a produção dramatúrgica foi


submetida ao crivo dos censores que, conforme lei de censura (5.536/60) e decretos
(20.493/46 e 1.077/70), deixavam nos textos as marcas de sua intervenção. Recorto, aqui,
acervos do Arquivo Textos Teatrais Censurados (ATTC) de três escritoras e dramaturgas
para, a partir de informações extraídas da massa documental de cada um deles e dos trabalhos
acadêmicos por mim orientados (MATOS, 2011 e 2014; ALMEIDA, 2011 e 2014; SOUZA,
2012 e tese em andamento), esboçar um perfil de Cleise Mendes (1948-), Jurema Penna
(1927-2001) e Nivalda Costa (1952-2016), dando voz a estas mulheres, considerando suas
experiências no teatro baiano sob censura.

2 MULHERES E PRODUÇÃO DRAMATÚRGICA CENSURADA

No Arquivo Textos Teatrais Censurados182, destaco os acervos de mulheres, a saber:


Aninha Franco, Cilene Guedes Martins, Cleise Mendes, Denise Santos dos Santos, Emília
Biancardi Ferreira, Haydil Linhares, Jurema Penna, Lia Robatto, Lúcia Di Sanctis, Mabel
Veloso, Maria da Conceição Paranhos, Nilda Spencer, Nivalda Costa, Rô Reis, Yumara
Rodrigues. A massa documental que compõe cada acervo é variada (textos teatrais, matérias
de jornal, documentação censória, entrevistas, etc.) e resulta da pesquisa iniciada em 2006
com os textos teatrais produzidos no período da ditadura militar na Bahia. Dentre tais acervos,
selecionei três nomes da cena dramatúrgica baiana para dar voz às suas produções e, ao
mesmo tempo, falar de aspectos sociais, políticos, culturais, entre outros, trazidos pelos textos
teatrais censurados de Cleise Mendes, Jurema Penna e Nivalda Costa.

182
Arquivo digital que estamos organizando em nosso Grupo de Pesquisa para divulgar a produção
dramatúrgica produzida no período da ditadura militar na Bahia.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
499

Os trabalhos, dissertações e teses, orientados por mim, relacionados no quadro a


seguir, trazem informações que melhor caracterizam o perfil e a atuação das
escritoras/dramaturgas baianas, bem como suas produções e as interlocuções que
empreenderam em um cenário político de repressão e cerceamento da liberdade de expressão
nos “anos de chumbo” (consultar os trabalhos no site <http://repositorio.ufba.br>).

Quadro 1- Trabalhos acadêmicos


Trabalhos acadêmicos Título/Autoria Edições/Estudos (Crítica
filológica)

Três fios do bordado de Jurema Crítica e interpretativa em


Penna: leituras filológicas de suporte papel e digital
uma dramaturgia baiana, por
Isabela Santos de Almeida Processo de construção do texto
(2011) teatral por Jurema Penna, a
partir da leitura das variantes e
do uso da citação como
operador de intertextualidade

Dissertação Os manuscritos de Cândido ou Genética


O Otimismo – o herói de todo
caráter, uma adaptação de Estudo do processo criativo
Cleise Mendes: leituras do
processo de criação e proposta
de edição genética, por Eduardo
Silva Dantas de Matos (2011)

Aprender a nada-r e Anatomia Crítica e fac-similar em suporte


das feras, de Nivalda Costa: papel e digital
processo de construção dos
textos e edição, por Débora de Estudo do processo de
Souza (2012) construção dos textos

O manuscrito autógrafo e suas Genética


rasuras: autoria, subjetividade
e edição, por Eduardo Silva Estudo teórico acerca dos papéis
Dantas de Matos (2014) do editor (as escolhas do
filólogo produzem outras
edições e outras facetas/imagens
Tese do sujeito autor)
A crítica filológica nas Crítica, sinóptica, fac-similar e
tessituras digitais: arquivo digital
hipertextual e edição de textos (Arquivo hipertextual)
teatrais de Jurema Penna, por Estudo das práticas de edição
Isabela Santos de Almeida em suporte eletrônico e edições
(2014) digitais: crítica filológica nas
tessituras digitais

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
500

Tese em andamento Série de estudos cênicos sobre Crítica, interpretativa e


poder e espaço, de Nivalda sinóptica em suporte digital
Costa: edição e estudo crítico- (Arquivo hipertextual)
filológico, por Débora de Souza
Estudo sobre a relação poder e
espaço nos textos selecionados,
delineando a atuação da
dramaturga

2.1 CLEISE MENDES (ENTRE LITERATURA E TEATRO)

Cleise Furtado Mendes é escritora de múltipla atuação e de muitas encenações: poeta,


contista, teórica, ensaísta, professora universitária, dramaturga, membro da Academia de
Letras da Bahia, onde, desde 2004, ocupa a cadeira número 6. Nasceu no Rio de Janeiro, mas
veio para a Bahia desde 1966. Atua na literatura e no teatro, com a mesma dedicação. Em
2003, estreou a coleção Dramaturgia da Bahia, com a publicação de dois volumes. No
primeiro, estão as peças Lábaro Estrelado, Bocas do Inferno, O bom cabrito berra; no
segundo, os textos de Castro Alves, Marmelada: uma comédia caseira e Noivas. Além destes,
outros textos dramáticos foram produzidos pela escritora, dentre os quais, destacamos As
Feministas de Muzenza (1990), em coautoria com Haydil Linhares; A Conspiração dos
Alfaiates e Canudos – A Guerra do Sem Fim (1992 e 1993, respectivamente), em coautoria
com Aninha Franco e Paulo Dourado; A Casa de Eros (1996) etc. No ATTC, tem-se o
registro de 14 peças de Cleise Mendes. Sua produção inclui originais, roteiros e adaptações.
Na Coordenação Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal, no fundo Divisão
de Censura de Diversões Públicas (COREG-AN-DF (DCDP)), encontram-se arquivadas as
seguintes peças teatrais: 1) CÂNDIDO OU O OTIMISMO, original de Voltaire (adaptação
de Cleise Mendes), 1971; 2) O BOM CABRITO BERRA, 1976; 3) TODO LOBO É
BOBO OU QUEM CANTA CORRIGE O CONTO, 1976; BOCAS DO INFERNO,
adaptação de Cleise Mendes, Deolindo Checcucci e Carlos Sarno, 1978; 4) NOIVAS, 1980;
5) A TERCEIRA MARGEM, adaptação de Cleise Mendes e Paulo Dourado,1981; 6) A
SAGRAÇÃO DO AMOR, 1982; 7) NO GALOPE DO RISO, IMPROVISO, adaptação de
Cleise Mendes e Roberto Wagner Leite, 1987.
No que tange à dramaturgia censurada, a temática relativa à mulher aparece em No
galope do riso, improviso, que traz textos adaptados da literatura de cordel, explorando, para
além de outras questões relativas ao povo nordestino, a mulher vista sob a ótica da região; e
em Noivas (1980), considerada por alguns um manifesto feminista. Na peça teatral Noivas, ao

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501

discutir a temática do casamento, trata-se da condição feminina, da opressão exercida por


mães e maridos, por instituições e convenções sociais, o que leva a personagem Dora "à
descoberta de sua própria identidade" (PARECER 3895/80). Questiona-se a “falta de
segurança, iniciativa, vontade própria e liberdade das mulheres, em decorrência do
condicionamento cultural por ela sofrido.” (PARECER 127/86).
Noivas foi submetida à Censura, pela primeira vez, em 26 de novembro de 1980 por
Deolindo Checcucci, quem dirigiu o espetáculo. A classificação etária foi de 14 anos, com
validade até 26 de novembro de 1985. Em 1986, nova solicitação para encenação da peça foi
feita pelo colombiano Rubén Darío. Um texto com anotações manuscritas foi entregue para
julgamento censório. Desta vez, a validade se estende até 26 de novembro de 1991. O prazo
de validade é de cinco anos. O enredo traz a história de uma jovem de 20 anos, Dora, que vai
com seu noivo, Augusto, a uma costureira para encomendar o vestido de noiva e lá se depara
com Lia, a costureira, que levanta uma série de questões, provocando a reflexão de Dora em
relação ao noivo, à família (sobretudo na figura da mãe) e a si mesma. Noivas traz um texto
bastante atual e que continuou a ser encenado ao longo dos anos.
A literatura e a dramaturgia de Cleise Mendes trazem à reflexão questões sociais como
o preconceito, a condição da mulher na sociedade, questões sociais e culturais, realizando um
encontro entre literatura e teatro com maestria.

2.2 JUREMA PENNA (EM DEFESA DA CULTURA POPULAR)

Jurema Gonçalves Penna fez o Bacharelado em Direito, um desejo de seu pai. Foi
aluna da primeira turma da Escola de Teatro da UFBA, dirigida por Martim Gonçalves. Seu
primeiro espetáculo foi O Auto da Graça e Glória da Bahia, de Godofredo Filho, em 1949,
por ocasião das festas pelo 4º centenário da cidade de Salvador. Com Leonel Nunes, Reinaldo
Nunes e Sóstrates Gentil, fundou a Companhia Baiana de Comédias (CBC). Foi criada na
década de 1960, a partir do desejo de se fazer um teatro profissional na Bahia, que também se
ocupasse de levar a arte a lugares desfavorecidos, como periferias e penitenciárias. A CBC
promovia diversas palestras acerca dos temas abordados em cada espetáculo, no intuito de
fazer um teatro político. Em 1966, encenou Cocteau' 66, espetáculo composto por dois textos
de Jean Cocteau: Voz humana e Belo indiferente.

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502

Destaca-se ainda sua participação nas NOVELAS: Verão vermelho (1969), de Dias
Gomes; Irmãos Coragem (1971) e Selva de Pedra (1972), de Janete Clair; nos LONGA-
METRAGENS: Mandacaru vermelho (1961), de Nelson Pereira dos Santos; O Pagador de
promessas (1961), de Anselmo Duarte; Tocaia no asfalto (1961), de R. Schindler; Seara
Vermelha (1963), de Alberto D'Aversa; Os pastores da noite (Odília da Bahia) (1975), de
Marcel Camus; Tenda dos milagres (1977), de Nelson Pereira dos Santos; nas
MINISSÉRIES: A tenda dos milagres (1985), de Jorge Amado; O pagador de promessas
(1988), de Dias Gomes, dentre muitos outros trabalhos.
Produziu peças destinadas ao público infantil, como A Orquídea azul da bela
adormecida (1974) e Alice no País das maravilhas, dos sonhos e dos encantados (1984), e
também destinadas ao público adulto. Suas produções exploraram aspectos étnico-culturais a
partir de temáticas relativas à comunidade baiana caracterizada por sua herança
afrodescendente: Abre alas para o Major Cosme (1975), Na feira de São Joaquim (s.d),
Natal do Nordeste (1980), Natal na Feira de São Joaquim (s.d), Bahia Livre Exportação
(1975/1976), Yemanjá, Rainha de Ayocá / A moça dos cabelos verdes ou nos Verdes cabelos
de Yemanjá (1972/1980); e também o tema dos relacionamentos interpessoais, versando
sobre as dificuldades e prazeres dos relacionamentos humanos amorosos ou não, entre
pares diversos: Negro amor de rendas brancas (1972/1973), Dona Clara Clareou
(1981/1982), Procurando Maria (1988/1989). No ATTC, tem-se um total de 25 peças de
Jurema Penna.
Em 1977, ao assumir a diretoria da Divisão do Folclore de Salvador, Jurema Penna
conseguiu implantar, de 1983 a 1986, os projetos Colméia e Penitenciária, em Salvador, e o
Projeto Chapéu de Palha, em quarenta e cinco municípios baianos, com o intento de
despertar a comunidade, através do teatro para sua identidade cultural, para as manifestações
culturais regionais, submetidas a uma progressiva homogeneização de suas formas e relegadas
ao esquecimento. Seu último trabalho foi no espetáculo Os fuzis da Senhora Carrar, de
Berthold Brecht, em 2000, no teatro ICBA, sob a direção de Cecília Raiffer. Em 20 de
setembro de 2001, vítima de um acidente vascular cerebral, Jurema Penna deixou o palco da
vida após 52 anos de carreira.
São muitas as “Juremas” e seus papéis. Orlando Senna (1963) afirma, ao concluir sua
matéria para o Jornal Estado da Bahia sobre Jurema Penna, que

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503

[e]sta é a Jurema conhecida. Existe ainda a Jurema doutora: advogada e alta


funcionária. Existe a Jurema caseira […] Existe a Jurema do amor: onde entra o
príncipe Jaques Kaubourian. Existe a Jurema escritora […] Existe a Jurema snob
[…] Ou a política que discute exaltada a situação da política nacional. Vocês não
imaginam quantas Juremas existem.

Em relação à dramaturgia censurada de Jurema Penna, têm-se, na Coordenação


Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal, no fundo Divisão de Censura de Diversões
Públicas (COREG-AN-DF (DCDP)), arquivadas as seguintes peças teatrais: 1) NEGRO
AMOR DE RENDAS BRANCAS, 1972; 2) NO MUNDO DO FAZ DE CONTA OU A
ESTÓRIA DO BOMBEIRINHO VALENTE, 1974; 3) BAHIA, LIVRE EXPORTAÇÃO,
1975; 4) A MOÇA DOS CABELOS VERDES, 1975; 5) ABRE ALAS PARA O MAJOR
COSME, 1976; 6) A ORQUÍDEA AZUL DA BELA ADORMECIDA, 1976; 7)
BONEQUEIRO VITALINO OU NADA É IMPOSSÍVEL AOS OLHOS DE DEUS E
DAS CRIANÇAS, 1977; 8) MISTERIOSO SEQUESTRO DO PRÍNCIPE NÃO SEI,
1977; 9) DONA CLARA CLAREOU OU SIMPLESMENTE DESTROÇOS, 1982; 10)
PEDRO E O LOBO, 1982; 11) ALICE NO PAÍS DOS ENCANTADOS, 1983; 12) OS
SUPER HEROIS NO PAÍS DA BELA ADORMECIDA, 1984.
Dentre os textos teatrais censurados, a temática que envolve a mulher foi explorada em
Negro amor de rendas brancas, de 1972, e em Dona Clara clareou ou Simplesmente
destroços, de 1982. Na primeira peça, problematizam-se as relações inter-raciais. Narra a
história de um casamento entre um arquiteto negro e jovem, Paulo, e uma atriz branca, de
meia idade, Juliana. A relação entre os dois se complica no momento em que Paulo enfrenta
um desafio profissional e Juliana interfere no sentido de beneficiá-lo. Paulo se sente
inferiorizado com a situação e começa a questionar a validade do relacionamento. Na
segunda, narra-se a história de Lucas, um "jovem bissexual [que] amasia-se com uma
professora primária aposentada, [Clara], a qual encoraja-o a assumir, sem medo, o seu caráter
de homossexualista. [sic]" (PARECER 604/82). A justificativa para a classificação da faixa
etária, maiores de 18 anos, deve-se aos temas: homossexualismo e incentivo à prostituição.
Na referida peça, problematiza-se o relacionamento amoroso entre Clara e Lucas, ele vinte
anos mais novo que ela. A narrativa é permeada pelo drama de Clara, que perdeu seu filho,
vítima da repressão militar. Por sua vez, Lucas tem como principal objetivo passar no
vestibular e, como não trabalha, é sustentado por Fernando, com quem também mantém
relacionamento amoroso.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
504

Como sujeito de seu tempo, Jurema Penna estava atenta às questões políticas e sociais
que perpassavam a vida na Bahia de meados do século XX. Sua personalidade e postura
foram fundamentais para estabelecer uma resistência a essas imposições e assumir um
comportamento de insubordinação às regras postas. Em entrevista a Vieira Neto, Jurema
Penna afirma:

Toda minha vida, você sabe, foi só de reivindicações pelos direitos da mulher. Tudo
o que enfrentei nas minhas atitudes, no meu ser, fumar em público (um escândalo
naquela época), ir saborear as deliciosas batidas do Mercado Modelo, com tira-gosto
de lambreta; entrar para a faculdade de Direito, quando as mulheres quase que não
tinham acesso à ela, não era de “bom tom” mulher pensar em advocacia. Basta dizer
que quando entrei para a Faculdade, só tinha duas colegas. Tudo isso já era uma luta
visceral, minha, em prol dos direitos da mulher, quando ainda nem se sonhava em
organizar movimentos feministas (VIEIRA NETO, 1980).

Esta é a Jurema que se fez vibrante e atuante em seus propósitos, sobretudo quando
deixou a carreira de atriz na Globo e regressou à Bahia para aqui defender suas causas e lutar
por elas, comprometida com questões de sua cultura, sendo uma educadora, fazendo um teatro
político e de grande alcance.

2.3 NIVALDA COSTA (LUTA, RESISTÊNCIA E MILITÂNCIA)

Cursou um ano de psicologia, fez o curso de Direção na Escola de Teatro da UFBA


(1978), especialização em Ciências Sociais (1984) e Antropologia na UFBA (1986) e
especialização em Relações Públicas na UNEB (2001). Escritora/dramaturga, diretora teatral,
atriz e intelectual, Nivalda Silva Costa desempenhou, na Bahia, em diferentes campos (teatral,
literário e televisivo), importantes funções sociais, papeis e imagens que se entrecruzam em
seus discursos e enunciações. Adotou a arte como ferramenta de luta, de resistência e de
militância política, teatral e negra, perspectivas que se confundem, se enlaçam, naquele
contexto sócio-histórico da ditadura militar na Bahia.
No ATTC, listam-se 12 peças de Nivalda Costa. Quanto às peças teatrais submetidas à
avaliação censória, encontram-se, no Arquivo Nacional em Brasília, na Coordenação
Regional (COREG), no fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), os textos
de cinco delas: 1) APRENDER A NADA-R, 1975; 2) VEGETAL VIGIADO, 1977; 3)
ANATOMIA DAS FERAS, 1978; 4) GLUB! ESTÓRIA DE UM ESPANTO, 1979; 5)
CASA DE CÃES AMESTRADOS, 1980.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
505

Por meio de diversos projetos artísticos e de atuação em centros culturais, Nivalda


Costa (re)constrói espaços de visibilidade e de audibilidade, apresenta narrativas alternativas e
provoca descentralizações, inserindo sua produção intelectual nos movimentos de
contracultura, enquanto parte constituída e constituinte dos mesmos. Em entrevista, Costa
(2010) comentou:

[...] eu era uma rebelde [...], estudante da Escola de Teatro com uma série de
rebeldias, com uma série de resistências [...] ao aprendizado que se tinha por lá, [...]
ao bom comportamento excessivo que se tinha por lá, que significava a ausência de
atividade. [...] Esse bom [...] comportamento era absolutamente sem criatividade,
[...] era uma elegia [...] ao teatro tradicional que me interessava somente como
aprendizagem, como pesquisa, mas não [...] como ação, como elemento de criação
[...] (informação verbal)183.

Em suas peças, buscou problematizar relações de poder, no contexto ditatorial. No


período de 1975 a 1980, Nivalda Costa desenvolveu uma série de estudos cênicos, produção
polifônica, híbrida e experimental, composta por seis textos teatrais, nos quais se discutem, a
partir dos dispositivos “poder” e “espaço”, questões sociopolíticas, étnico-raciais e estéticas.
São eles os textos: Aprender a nada-r [COSTA, 1975]; Ciropédia ou A Iniciação do príncipe,
O Pequeno príncipe (COSTA, 1976); Vegetal vigiado [COSTA, 1977]; Anatomia das feras
[COSTA, 1978]; Glub! Estória de um espanto [COSTA, 1979] e Casa de cães amestrados
[COSTA, 1980].184
Para produzir e encenar tais textos, considerados por Souza (2017) textos-peças-
manifestos teatrais, Nivalda Costa criou e fundou, em 1975, o Grupo de Experiências
Artísticas, Grupo Testa, formado, inicialmente, por estudantes que almejavam – conforme
leitura crítica de diferentes documentos reunidos no Acervo Nivalda Costa (ANC) e de
depoimento da própria Nivalda Costa (1999 apud DOUXAMI, 2001) – denunciar injustiças
sociais, promover uma renovação estética e reivindicar a posição do negro no teatro e na
sociedade. Aquele projeto artístico faz parte de uma prática de dessacralização tanto da obra
de arte, em um gesto de contestação à concepção de propriedade artística, quanto do teatro
clássico, em uma proposta de revalorização da teatralidade.
Muitos dos textos pertencentes à referida série, quando submetidos a exame censório,
foram vetados, parcialmente, com cortes de natureza social, política e/ou moral, sendo a
encenação liberada com restrição para apresentação em determinados dias e locais, somente

183
Informação obtida em entrevista concedida a Débora de Souza por Nivalda Costa, em out. 2010, na
Biblioteca do Centro de Estudos Afro-Orientais – CEAO, da Universidade Federal da Bahia, em Salvador-Bahia.
184
Objeto de tese de doutoramento de Débora de Souza (em andamento).

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no estado da Bahia. Nos documentos dos processos censórios, relativos aos mesmos, figura-se
uma imagem de Nivalda Costa como dramaturga, diretora e autora estrategista, astuciosa e
subversiva cuja produção apresenta temática político-ideológica contrária ao regime.
Nivalda Costa participou ainda de dois projetos televisivos intitulados Fêmea (1987) e
Afro-Memória (1988-1992), ambos produzidos pela TV Educativa da Bahia (TVE Bahia), em
âmbito local e nacional, respectivamente, recomendados pela crítica jornalística da época
como programas pioneiros, instigantes e criativos. No primeiro, com vários quadros
relacionados à mulher, destacando e valorizando talentos emergentes da Bahia, atuou como
uma das diretoras; no segundo, voltado para a história e a memória afrodescendente, com foco
em aspectos ligados à cultura, arte e realidade social, a mesma atuou como roteirista, diretora
e autora.
Este projeto televisivo, Afro-Memória, possivelmente, tem relação direta com um
projeto de pesquisa maior desenvolvido e coordenado por Nivalda Costa, de 1988 a 1992,
intitulado Afro Memória: 100 Anos de Abolição. Nesse projeto, composto pelos integrantes
Eliana Ornelas, Lívia Calmon, Sergio Brandão e Wanda Cavalieri, tinha-se

[...] como objetivo o resgate, a identificação e a catalogação das manifestações


culturais de origem negro-africana no Estado da Bahia para, em seguida, produzir
material audiovisual capaz de subsidiar o ensino de disciplinas que tratavam de
assuntos concernentes ao estudo das etnias negras no Brasil (COSTA, 2014,
currículo lattes).

Sobre o Movimento Negro, Nivalda Costa diz:

[...] havia uns setores assim muito radicais dentro do movimento negro, que
achavam, por exemplo, que eu deveria concentrar todos os meus trabalhos,
especificamente, com personagens negros, causas negras, enfim, criar uma supra-
realidade [...], dentro de um contexto absolutamente [...] negro; [...] essa limitação,
não chamaria de limitação, mas, digamos assim, esse toque. Mas só que as minhas
crenças enquanto antropóloga, [...] vão de constatações, [...] antes de sermos negros,
pertencemos [...] a uma raça pressupostamente humana, [...] o homem é quem cria
os preconceitos, as formas sociais, o domínio de um homem sobre o outro, [...] as
invasões, as escravizações. [...] eu parto do homem em seu estado de liberdade,
então, isso é um princípio que de maneira alguma eu desprezo, eu passo por cima
disso, antes de ser negra e mulher, eu sou um ser humano. [...], bem, então,
discutimos muito isso com o movimento negro [...]. Todas as questões ligadas à
conscientização racial eu acho que parte, antes de mais nada, por uma célula
chamada educação, isso aí é essencial [...] (informação verbal).

Em Ciropédia ou A Iniciação do príncipe, O Pequeno príncipe, Nivalda Costa traz um


rei negro:

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507

– Um rei negro porque, em geral, toda a visão que se dá à criança de reinado e


impérios é sempre colonizadora.
Os contos infantis sempre apresentam reis loiros de olhos azuis, que apesar de real
para algumas regiões, para a região latina é utópico. Pretendo mostrar com isso que
haviam [sic] outros impérios onde existiam mais negros[;] o que fica mais próximo
da nossa realidade.
Com isso ela [Nivalda Costa] diz que pretende mostrar que no mundo infantil não
existe o preconceito que é incutido na criança pelo próprio adulto. ‘Ela pode ficar
curiosa com relação a [sic] cor de um ser diferente da outra mas o preconceito é o
adulto quem coloca. Pelo planeta ser infantil, não haveria essa separação por raça,
religião ou mesmo valores. Como reforço visual coloquei neste planeta crianças de
três raças diferentes (O PEQUENO..., 01 nov. 1979, p. 1).

Em 1980, na montagem Paixão – Caminho do ressurgir da Catedral ao Pelourinho,


adaptação textual de Luiz Marfuz e direção de Nivalda Costa, no Pelourinho, encomendada
pela prefeitura, “Nossa Senhora [interpretada pela atriz Vera Pita] era negra e o Cristo
[interpretado pelo ator Fredy Ribeiro], mulato, representava todos os oprimidos e morria de
três formas: flechado, chicoteado e fuzilado, para mostrar a atualidade da paixão de Cristo no
regime ditatorial” (DOUXAMI, 2001, p. 348). Luiz Marfuz, durante o Seminário Vozes do
teatro em tempos de ditadura militar: Equipe Textos Teatrais Censurados, em 2016,
confirmou tais informações, e, além disso, atribuiu à Nivalda Costa a “ousadia” (em suas
palavras), tanto em relação à escolha dos atores quanto às maneiras de execução do
personagem Cristo. Marfuz comentou ainda sobre a recepção conservadora e preconceituosa
do público baiano, àquela época.
Em 8 de julho de 2016, Nivalda Costa sai dos palcos terrenos para outros palcos. O
Deputado Leur Lomanto Júnior fez uma Moção de Pesar datada de 3 de agosto de 2016, “pelo
falecimento da líder religiosa e intelectual de grande influência nos estudos da cultura, arte e
religiosidade africana, atriz, poetisa, diretora teatral, dramaturga e contista Nivalda Costa.”
(MOÇÃO Nº 19.587/2016).
Mulher atuante na sociedade baiana no combate ao racismo, na discussão de temas
voltados por mais justiça social, Nivalda Costa desempenhou papel expressivo através de sua
arte (poesias, contos, textos teatrais, roteiros televisivos), resultante de estudos e pesquisas.
Sua trajetória esteve atrelada à necessidade de (re)escrita da história e da memória
afrodescendente, à luta contra o racismo e a discriminação racial, assim como a movimentos
de resistência, sobretudo vinculados à comunidade negra, que se configuraram, no Brasil, a
partir da década de 1970, como o Movimento Negro Unificado (MNU).
Nesse sentido, em diferentes momentos, antecipando-se quanto a propostas e
posicionamentos críticos, em uma política de ação e de construção, Nivalda Costa, ao longo

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
508

de sua vida, utilizou-se da arte para produção de conhecimento e difusão de saberes,


planejando, coordenando, dirigindo e ministrando projetos, oficinas, cursos, exposições, peças
teatrais, programas televisivos, ciclos de debates, dentre outros, em espaços diversificados,
para um público heterogêneo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trouxe aqui três vozes femininas para uma pequena demonstração de suas práticas e
experiências em um contexto de repressão, de tentativas de calar as vozes de uma sociedade
sufocada pelos afazeres da ditadura militar. Em suas produções dramatúrgicas, cada uma a seu
modo, provocou a reflexão sobre problemas de toda a ordem, políticos, sociais, culturais, e,
em especial, sobre a condição da mulher na sociedade, fosse ela branca, índia ou negra. Cleise
Mendes, carioca, mas que se naturalizou baiana, promoveu um feliz encontro entre literatura e
teatro. Jurema Penna defendeu suas raízes, a cultura popular, e atuou no lugar de educadora,
através do teatro. Nivalda Costa, aquela que sempre disse o que pensava, que defendia suas
causas, seu lugar no mundo, que não se calava, que provocava a reflexão através de um teatro
político e de militância. As vozes destas três mulheres ainda ecoam nos dias atuais com
grande força para falar de questões várias que envolvem nossa sociedade.
Cleise Mendes, Jurema Penna e Nivalda Costa foram testemunhas das várias etapas
pelas quais o teatro passou, das lutas no contexto da ditadura militar, da cultura de resistência,
do fim da ditadura e do processo de redemocratização. Por meio de sua arte, tais mulheres
defendiam diversas causas, atuando através de uma política que transforma, que se volta para
os problemas sociais e desenvolve uma reflexão sobre nossas ações enquanto sujeitos dessa
história. A literatura e o teatro foram lugares de encenação de sujeitos ativos e críticos que
pensam a arte como ação política para a construção de saberes. A cultura e a política são
formas de pensar a transformação de uma sociedade, voltando os olhos para aqueles que, na
maioria das vezes, estiveram à margem da história.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Isabela Santos de. A crítica filológica nas tessituras digitais: arquivo
hipertextual e edição de textos teatrais de Jurema Penna. 2014. 321 f. 2 v. (um volume em
site). Tese (Doutorado) – Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

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509

ALMEIDA, Isabela Santos de. Três fios do bordado de Jurema Penna: leituras filológicas de
uma dramaturgia baiana. 2011. 246 f. + CD. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras,
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2011.

COSTA, Nivalda Silva. Currículo lattes. 06 maio 2014. Disponível em:


<http://lattes.cnpq.br/3278285296716471>. Acesso em: 18 ago. 2015.

COSTA, Nivalda Silva. Série de estudos cênicos sobre poder e espaço: depoimento [out.
2010]. Entrevistador: Débora de Souza. Salvador, 2010. 1 CD. Entrevista concedida ao Grupo
de Edição e Estudo de textos teatrais produzidos na Bahia no período da ditadura.

DOUXAMI, Christine. Teatro negro: a realidade de um sonho sem sono. Afro-Ásia, Salvador,
Centro de Estudos Afro-Orientais, 2001. p. 313-363. Disponível em:
<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf>. Acesso em: 27 nov. 2010.

O PEQUENO Príncipe: fantasia e realidade na obra de Exupery. Jornal da Bahia, Salvador,


p. 1, 01 nov. 1979. Arquivo pessoal de Nivalda Costa.
PARECER 127/86. [Brasília, 1986. Ministério de Justiça/Departamento de Policia
Federal/DCDP].

MATOS, Eduardo Silva Dantas. O manuscrito autógrafo e suas rasuras: autoria,


subjetividade e edição.2014. 202f. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras, Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

MATOS, Eduardo Silva Dantas. Os manuscritos de Cândido ou O Otimismo – o herói de


todo caráter, uma adaptação de Cleise Mendes: leituras do processo de criação e proposta de
edição genética. 2011. 208f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras, Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

MOÇÃO Nº 19.587/2016. Salvador, 3 de agosto de 2016.

PARECER 3895/80. [Brasília, 1980. Ministério de Justiça/Departamento de Polícia


Federal/DCDP].

PARECER 604/82. [Brasília, 1980. Ministério de Justiça/Departamento de Polícia


Federal/DCDP].

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Federal/DCDP].

SENNA, Orlando. O jornal dos espetáculos. Estado da Bahia, Salvador, 6 mar. 1963.

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510

SOUZA, Débora de. Série de estudos cênicos sobre poder e espaço, de Nivalda Costa: edição
e estudo crítico-filológico. 2017. Exame de qualificação ao doutorado. Instituto de Letras,
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia, 2017.

SOUZA, Débora. Aprender a nada-r e Anatomia das feras, de Nivalda Costa: processo de
construção dos textos e edição. 2012. 251 f. + CD. Dissertação (Mestrado) – Instituto de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2012.

VIEIRA NETO. Após 30 anos de atividades, Jurema questiona: “Será que valeu a pena?” A
Tarde, Salvador, 20 fev. 1980. Caderno 2.

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511

REPRESENTAÇÕES FEMININAS

PARTICIPANTES: ANA CLAUDIA AYMORÉ MARTINS; ANA RITA SANTIAGO; ANDRÉA


ANDRADE OLIVEIRA PRADO; GABRIELA DE SOUSA COSTA; HELENIARA AMORIM
MOURA; JOSÉ ROSA DOS SANTOS JÚNIOR; JULIANA RIBEIRO CARVALHO; MÔNICA
CARDOSO SILVA; SARAH PINTO HOLANDA; THAÍLA MOURA CABRAL; THALITA
GADÊLHA; YASMIN MENESES SILVA LIMA

A METAMORFOSE DE FLORA:
MITO E HISTÓRIA EM NA PRAIA, DE IAN McEWAN

Dra. Ana Claudia Aymoré Martins (Ufal)


E-mail: ana_aymore@hotmail.com

Em 1971, num escrito fundador da crítica feminista contemporânea (recentemente


traduzido para o português no volume Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas)
a poeta e ensaísta norte-americana Adrienne Rich, ao refletir sobre a condição feminina em
seu próprio tempo, escreve: “É emocionante viver numa época em que a consciência desperte;
mas pode também ser confuso, desorientador e doloroso.” (RICH, 2017, p. 66)
O “breve século XX” de que nos fala Eric Hobsbawm (HOBSBAWM, 1997), era dos
extremos em tantos campos da vida pública, política e social - entre avanços democráticos e
explosões totalitárias, imperialismo e descolonização, guerras globais e avanço de ideários
igualitários e pacifistas - foi (sobretudo em sua segunda metade) contexto de uma sequência
de avanços e contenções dos movimentos feministas e de rupturas revolucionárias e retrações
conservadoras da consciência crítica acerca da condição feminina e do papel social da mulher.
A própria Rich, algumas páginas adiante no mesmo ensaio, nos alerta sobre o fato de que,
após e numa reação à primeira onda do feminismo dos anos 20 aos 40, os anos 50 e 60 foram
tempos em que “mulheres de classe média viam a perfeição doméstica como uma carreira”
(RICH, 2017, p. 75) - sobrecarregadas de afazeres cotidianos e banais, acumulando, entre os
cuidados do lar e dos filhos, o vazio e o silêncio de suas frustrações. E, seguindo numa
reflexão que tem muito de autobiográfica, a escritora norte-americana lembra que, ao publicar
seu segundo livro de poemas, elogiado exatamente por sua “delicadeza”, foi tomada pelo

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
512

sensação ambivalente de insatisfação com seus escritos - reflexo de um sentimento mais


amplo de insatisfação com sua vida privada - e culpa por se julgar “ingrata, insaciável, talvez
um monstro.” (RICH, 2017, p. 75)
Então, como frequentemente ocorre na escrita feminina ao falar de si (ou, no geral
sobre a condição histórica da mulher na sociedade), uma poderosa forma de expressão se
encontra nos seus deslizamentos metafóricos para o movimento marinho de fluxo e refluxo -
ou mesmo da desorientação e embriaguez da deriva.

O que me assustava era a sensação de estar à deriva, de ser levada por uma
corrente que se autotintitulava de meu destino, mas na qual eu parecia estar
perdendo contato com a pessoa que eu tinha sido, com a jovem que tinha sentido
sua própria vontade e energia às vezes quase com êxtase […] (RICH, 2017, p. 75)
[grifos meus]

Assim, um “despertar de consciência” que o tempo exige para as mulheres da geração


de Rich emerge sob os sentimentos da incerteza e da ambiguidade, sob a tensão de ver a si
mesma como monstruosa, abissal ou terrível - ou seja, sob o signo do mar, do balanço
incessante das ondas, do ir-e-vir das marés, este transfigurando, como nos mostram Chevalier
e Gheerbrant no Dicionário de símbolos, “um estado transitório entre possibilidades ainda
informes [e] as realidades configuradas” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2005, p. 592) ou,
ainda, “a extensão incerta, cuja travessia perigosa condiciona a chegada à costa”
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2005, p. 650).
Na praia (On Chesil beach), romance do ficcionista inglês Ian McEwan publicado
originalmente em 2007, tem, como se pode supor pelo título, o mar como cenário onde se
desenrola o enredo, mas também é este o mais ostensivo emblema, na construção da narrativa,
da emergência complexa e permeada de obstáculos da autoconsciência feminina diante de
uma sociedade falocêntrica, nas últimas décadas do século passado. Em uma das primeiras
passagens da narrativa, a natureza circundante da praia de Chesil, à beira do Canal da
Mancha, é descrita de forma a antecipar o confronto calcado nas divergências de vontades,
desejos e expectativas entre homem e mulher, que no fragmento apresentado aqui aparecem,
respectivamente, como o jardim sensual e a névoa tênue:

A vegetação do jardim erguia-se sensual e tropical em sua profusão, um efeito


realçado pela luz branda e cinzenta e pela névoa tênue que vinha do mar, cujo
movimento regular de avanço e retração produzia leves estrondos que se

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513

dissipavam num súbito assobio contra os seixos. (McEWAN, 2007, p. 9) [grifos


meus]

A fábula do curto romance de McEwan (que se conduz ao longo de pouco mais de


cem páginas) é, a princípio, simples: no início dos anos 1960, numa estalagem à beira-mar em
Chesil, na Inglaterra, a lua de mel de um jovem casal, Florence e Edward, é abalada pela
crescente tensão entre, por um lado, a urgência masculina de satisfação sexual, reprimida pela
ainda marcante presença de um moralismo oitocentista que seria contestado pelos
movimentos libertários do final da década, e a angústia da protagonista a respeito da
consumação do que socialmente se assumia como seu “dever de esposa” que, na economia do
texto, não decorre somente das convenções coletivas da época acerca do recato feminino, mas
de uma apatia sexual que se constitui, na realidade, de um traço imanente da sua
individualidade (note-se que o autor não opta, nesse romance, por tentar explicar a
assexualidade da personagem em termos de ser resultante de algum trauma ou qualquer
desordem psíquica). Assim, a noite de núpcias, ao mesmo tempo expectativa de desenlace das
paixões represadas e ritual de passagem para a vida adulta, acaba por não realizar o
desempenho socialmente instituído, aquele semantizado, na aurora da modernidade, por Jan
Van Eyck no célebre retrato do casal Arnolfini, onde as imagens convencionais do homem
como instrumento penetrante e da mulher como receptáculo encontra-se representado na
postura das mãos de cada personagem. Em ambas as representações - o romance de McEwan
e o quadro de Van Eyck - esse momento crucial é simbolizado pela cama de dossel, entrevista
ao fundo e à direita do quadro e na terceira frase do romance: “No quarto adjacente, visível
através da porta aberta, ficava uma cama de dossel, mais para estreita, cuja colcha era de um
branco puro e espantosamente liso, como se não estivesse sido esticada por mãos
humanas.” (McEWAN, 2007, p. 7) [grifos meus] No plano histórico do romance de McEwan,
a presença da cama de dossel branca pura, lisa e de caráter quase sobrenatural - o “altar da
vida conjugal” vitoriana de que nos fala a historiadora francesa Michelle Perrot (PERROT,
1991, p. 115) -, assim como da própria estalagem que remonta à era georgiana, constitui-se
como marca da permanência de uma mentalidade sexualmente conservadora, e, à medida em
que as exigências do ritual vão aproximando o casal do aposento íntimo, Florence percebe que
se encontra diante de uma normatização historicamente constituída e respaldada pela tradição,
como um antigo direito medieval:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
514

Enquanto esperava que esse momento particular passasse, com as mãos apoiadas
por convenção nos quadris de Edward, Florence se deu conta de que havia topado
com um lugar-comum, bastante evidente em retrospecto, tão primitivo e antigo
quanto danegeld [um antigo imposto territorial] ou droit de seigneur [um direito
medieval do senhor feudal em ter relações sexuais com a noiva de seu vassalo na
noite de núpcias], e cuja definição era quase tão elementar: ao decidir casar-se, foi
exatamente isso que ela aceitou. Tinha concordado que era certo fazer isso, e que
isso fosse feito com ela. Quando ela e Edward e seus pais seguiram em fila para a
lúgubre sacristia depois da cerimônia, para assinar o registro, foi nisso que puseram
seus nomes, e todo o resto […] era só uma distração educada. Se não gostasse, a
responsabilidade era só dela, uma vez que todas as suas escolhas ao longo do ano
anterior convergiram para isso, e agora ela realmente achava que ia vomitar. (p. 28)

A quase total ausência de diálogos ao longo do romance, e a incessante alternância do


olhar do narrador entre os fluxos de consciência discordantes e assimétricos de Edward e
Florence mimetiza, na construção textual, o regime de silêncio a que a voz - feminina,
sobretudo - submetia-se pela força da tradição, inscrevendo-se, como rubrica, desde a frase de
abertura do romance - “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de
núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era
completamente impossível” (McEWAN, 2007, p. 7) - para se desenvolver, progressiva e
dramaticamente, ao longo dos dois primeiros terços da narrativa. Numa dessas passagens, a
total dissonância entre os desejos e os medos das duas personagens revela não apenas os
lugares-comuns a que a imposição moralizante de uma sociedade repressora conduzem, mas
também a sobrecarga de uma normatividade compulsória sobre a mulher, que faz com que os
sentimentos negativos (de insegurança, temor e inquietação) sejam também amplificados pela
culpa. E o resultado dessa pressão social não poderia ser senão a náusea - outro leitmotiv da
narrativa de McEwan (como se pode observar no fragmento anterior e no seguinte) que se
associa de forma fundamental à experiência marítima.

Do alto dessa nova condição, eles podiam ver claro, mas não descrever um para o
outro certos sentimentos contraditórios: separadamente, preocupavam-se com o
momento […]. Por mais de um ano, Edward esteve enfeitiçado pela perspectiva de
que numa determinada noite de julho sua parte mais sensível habitaria, ainda que
por um breve momento, uma cavidade naturalmente formada no interior dessa
mulher bela, jovial e de uma tremenda inteligência. Como isso devia ser alcançado,
sem maiores absurdos ou decepções, atormentava-o. Sua inquietação específica
[…] dizia respeito à excitação excessiva, ao que ouvira alguém descrever como
“chegar antes da hora” […].
As angústias de Florence eram mais sérias [….]. Mas o que a atormentava era
inexprimível […]. Enquanto ele sofria apenas do nervosismo convencional da
primeira noite, ela experimentava um horror visceral, uma náusea irremediável, tão
palpável quanto um enjoo no mar […]. Num manual moderno e antecipatório,
supostamente útil para jovens noivas, escrito em tom estimulante, com pontos de
exclamação e ilustrações numeradas, ela deparou com frases ou palavras que por

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515

pouco não lhe deram ânsia de vômito […]. Outras frases ofenderam sua
inteligência, em particular aquelas que diziam respeito a entradas […]. Quase tão
frequente era uma palavra que não lhe sugeria nada além de dor, de carne cortada
por faca: penetração. […]
Florence suspeitava que houvesse alguma coisa profundamente errada com ela,
achava ter sempre sido diferente e que enfim seria desmascarada. Seu problema, ela
pensava, era maior e mais profundo do que a simples repulsa física; todo o seu ser
se rebelava contra a perspectiva do contato e da carne; sua tranquilidade e
felicidade essencial estavam para ser violadas. […] (McEWAN, 2007, pp. 10-11)
[grifos meus]

Sem qualquer possibilidade de compartilhar suas angústias - pois “a época os retinha”


(McEWAN, 2007, p. 19) - os preâmbulos sexuais dos recém-casados se dão em um silêncio
quase total, apenas raramente rompidos pelas “óbvias três palavras” (McEWAN, 2007, p. 82),
até que, após uma tentativa frustrada de abrir o vestido de Florence, Edward resolve
abandonar as carícias preliminares e se lançar à conquista do território interdito no corpo da
mulher, “batendo e socando repetidamente à entrada e ao redor da sua uretra” (McEWAN,
2007, p. 84) - a óbvia associação entre a penetração do pênis e a conquista militar tão
frequente no senso comum é, no romance de McEwan, ainda sublinhada pelo fato de Edward
ser um historiador, cuja ambição fora um dia analisar em detalhes as biografias de “indivíduos
vigorosos” (McEWAN, 2007, p. 15) como Júlio César, Carlos Magno ou Napoleão. Mas seus
temores se concretizam: ele ejacula em Florence antes de penetrá-la, e ela, “incapaz de conter
o nojo original, o horror visceral de estar encharcada daquele fluido” (McEWAN, 2007, p.
85), foge da alcova e das promessas matrimoniais ditas na igreja - “com meu corpo eu te
venero”. Finalmente, na praia vazia, onde o brilho difuso da lua projeta sombras
melancólicas, se dá o confronto final entre as personagens. Afastada do cenário artificial da
estalagem, preparado para o cumprimento de uma sexualidade compulsória, Florence inicia
sua metamorfose, que também é o início de sua libertação.
Segundo Junito Brandão, há todo um rol de figuras femininas presentes nos mitos
gregos - deusas, ninfas, musas e mulheres humanas - que correspondem ao que ele chama de
arquétipo das vulneráveis (BRANDÃO, 1987, p. 344), sujeitas - na maior parte das vezes
como consequência do arrebatamento passional de deuses masculinos, que não raro converte-
se em violência - à anulação de suas vontades e à perda da liberdade. Entre elas, mitos como
os de Core/Perséfone/Prosérpina, de Dafne ou de Clóris/Flora (e, no caso desse último, há que
se notar a aproximação entre o nome da ninfa da primavera e a personagem do romance de
McEwan) convergem, entre si e com a construção narrativa de Na praia, em dois pontos
principais, sendo o primeiro e mais evidente deles a própria dinâmica assédio/fuga (Hades-

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516

Perséfone, Apolo-Dafne e Zéfiro-Flora), ressemantizada por McEwan no final do capitulo 3,


como foi mencionado acima.
O segundo ponto recorrente no mito, e revisto pelo ficcionista inglês, é a presença do
que poderíamos chamar de elemento mediador: em meio à tentativa de fuga do que se
afigura para a personagem feminina “vulnerável" seu destino determinado pela
vontade/desejo masculino, aquilo, aquele ou aquela que se constitui como refúgio ou socorro.
No mito, frequentemente o elemento mediador são as figuras paterna ou materna: Deméter
socorre a filha Perséfone e consegue sua libertação parcial dos domínios sombrios do Tártaro;
Dafne é transformada em loureiro pela ação mágica de seu pai, o deus-rio Peneu. Na
economia do texto de McEwan, faltam a Florence os verdadeiros laços de uma união familiar:
sua família, como tantas famílias burguesas do contexto do pós-guerra, é permeada por
relações apenas convencionais e pouco afetuosas. Portanto, isolada (espacial e
essencialmente) de qualquer possibilidade de refúgio familiar, o elemento mediador de
Florence acaba sendo uma árvore (tão cara ao mito de Dafne) caída na praia:

[…] Era ela e somente ela. Estava encostada numa grande árvore caída,
provavelmente derrubada na praia por uma tempestade, com o córtex descascado
pelo poder das ondas e a madeira acetinada e endurecida pela água salgada. Estava
confortavelmente encravada no ângulo de um galho, sentindo no delgado das
costas, através da circunferência maciça do tronco, o calor residual do dia. Assim
teria ficado um recém-nascido, aninhado com segurança na dobra do braço da mãe,
embora ela não acreditasse que alguma vez pudesse ter se aninhado em Violet […]
(McEWAN, 2007, p. 109)

Sabemos que a árvore é um dos temas simbólicos mais ricos e difundidos em diversas
culturas, podendo representar a própria vida, ou fecundidade, ou a manifestação divina. Mas,
atém disso, no que se refere à simbologia dos sexos é, talvez, um dos signos mais
ambivalentes pois, segundo Chevalier e Gheerbrant, “o tronco erguido em direção ao céu,
símbolo de força e de poder eminentemente solar, diz respeito ao Falo, imagem arquetípica
do Pai. Ao passo que a árvore oca, da mesma forma que a árvore de folhagem densa e
envolvente onde se aninham os pássaros e que periodicamente se cobre de frutos, evoca, por
sua vez, a imagem arquetípica lunar da mãe fértil […].” (CHEVALIER E GHEERBRANT,
2005, p. 88) Não podemos deixar de observar que a árvore em que Florence busca refúgio é
uma árvore derrubada. Portanto, mais do que a efetiva mediação ou refúgio, é o emblema
do lento mas irreversível desmoronar da família tradicional burguesa, desnudando sua
insuficiência no/para o desenvolvimento de novas e mais transgressoras formas de identidade

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
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e sociabilidade. Na praia de Chesil, Florence está irremediavelmente só, podendo apenas


contar consigo mesma na afirmação de sua liberdade: a superação do sentimento de culpa por
seu comportamento, o desejo, enfim verbalizado ao homem com quem se casara, de viverem
juntos uma relação sem sexo. Ofendido e indignado com a proposta, Edward reage com a
definição taxativa: “Frígida, aquela palavra terrível - ela compreendeu como se aplicava a si.”
(McEWAN, 2007, p. 121)
Desse momento em diante, nas poucas páginas que restam ao desfecho do romance, o
narrador subitamente perde de vista a vida interior de Florence. Quarenta anos se passam, e
estamos diante de um Edward que, depois de experimentar intensamente (pelo menos sob o
ponto de vista da sexualidade) aquela “década tão celebrada […] - a súbita exaltação do
prazer sensual sem culpa, a disposição descomplicada de tantas belas mulheres […]”
(McEWAN, 2007, p. 123), chega aos sessenta anos como um ser banal, mesquinho e
acomodado. Não procura saber mais acerca de Florence, apesar de ter notícias esparsas acerca
do respeito que ela atinge como violinista clássica. Completa-se, então, a última metamorfose
de Florence - a esfinge jamais decifrada por Edward (cujo nome evoca, em sua língua
original, a sonoridade de Édipo). Para Edward, a compreensão de seus sentimentos e atitudes
naquela noite fatídica serão sempre parciais e equivocadas - há um momento, durante os anos
da revolução sexual que ele chega a pensar na proposta de Florence, que incluía a aceitação de
que ele poderia se relacionar sexualmente com outras mulheres, como “liberada e à frente do
seu tempo” (McEWAN, 2007, p. 124) - restando a ele, por fim, apenas o devaneio vazio, o
clichê romântico-burguês: a família socialmente aceita, “as crianças que poderiam ter tido, a
menininha com um arco na cabeça que poderia ter se tornado sua filha querida” (McEWAN,
2007, p. 128) se, na praia de Chesil, tivesse gritado o nome de Florence. Mas ela segue, afinal,
como na última imagem esboçada pelo narrador e que encerra o romance: desaparecendo, em
“seu avanço difícil” (McEWAN, 2007, p. 128), entre a areia e as ondas, mas sem precisar
escolher, necessariamente, entre velhos e novos papeis destinados às mulheres - livre para,
como a personagem expressa em umas de suas últimas falas, “apenas ser” (McEWAN, 2007,
p. 112).

Referências

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Volume III. Petrópolis: Vozes, 1987.

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CHEVALIER, JEAN E GHEERBRANT, Alan. Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva et al. 19ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX 1914-1991. Trad. Marcos
Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

McEWAN, Ian. Na praia. Trad. Bernardo Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PERROT, Michelle. Funções da família. In: (org.). História da


vida privada. Vol. 4: Da revolução Francesa à Primeira Guerra. Trad. Denise Bottmann e
Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

RICH, Adrienne. Quando da morte acordamos: a escrita como re-visão. Trad. Susana Bornéo
Funck. In: BRANDÃO, Izabel et al. (org.). Traduções da cultura. Perspectivas críticas
feministas (1970-2010). Maceió/Florianópolis: EdUfal/EdUFSC, 2017. pp. 64-84.

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(DES) AFETOS EM POÉTICAS DE (RE) EXISTÊNCIAS


DE RITA SANTANA E SÓNIA SULTUANE

Dra. Ana Rita Santiago (UFRB)


E-mail: anaritasilva@ufrb.edu.br

Algumas Palavras Iniciais

A reflexão, aqui apresentada, entende as relações amorosas, em dicções literárias,


dissociadas de relações conjugais, matrimoniais etc. e associadas às afetivas que produzam
satisfação, convívio, sonhos, prazer etc. Como ato de amar, de tais afinidades, por vezes,
advêm, inclusive, desafetos, desamores, solidão, ambivalências, separações e desilusões.
Compreendem-se (des) afetos, desse modo, como experiências de afeições que estão sujeitas
às transgressões em se tratando de amor romântico, comumente, cantado e narrado em obras
literárias. Além disso, se baseiam em vivências e contextos diversos, e não são tão somente
oriundos e imaginados pela heteronormatividade.
Este texto constrói-se a partir do entendimento de múltiplas possibilidades de amar e
de postulações sobre o amor do filósofo Nicolas Grimaldi (2011), em Metamorphoses de
l’amour. Tem como objetivo principal tecer algumas considerações sobre recorrências de
(des) amores na poética de Rita Santana, em Tratado das veias (2006), e Sónia Sultuane, em
No colo da lua (2009).
Rita Santana é escritora negra da Bahia, atriz e professora da educação básica. Ela já
recebeu, em 2004, o Prêmio Braskem de Cultura e Arte – Literatura pelo livro de contos
Tramela (Fundação Casa de Jorge Amado). Além de integrar antologias, como Mão Cheia
(2005). Publicou os livros de poemas Tratado das Veias (As Letras da Bahia – 2006) e
Alforrias, (Editus – 2012). Já Sónia Sultuane é natural de Maputo-Moçambique, membro da
Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO). É artista plástica com participações
individuais e coletivas nacionais e internacionais em exposições e instalações. Publicou, por
um ano, semanalmente, contos eróticos, em um jornal local, além das seguintes obras:
Sonhos, Poesia (AEMO, 2001); Imaginar o Poetizado, Poesia (Ndjira, 2006); No Colo da
Lua, Poesia (Edição da autora, 2009); e Roda das Encantações, Poesia (Fundação Fernando

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Leite Couto, 2016); e as obras de literatura infantil: A lua de N’Weti (Editorial Novembro,
2014) e Celeste. A boneca com olhos cor de esperança (Editorial Novembro, 2017).
O enfoque discursivo deste texto parte de inferências e compreensões de que relações
amorosas, em tessituras dessas escritoras, também se inserem em processos de invenções de si
(nós) e assenhoramento da existência, logo como exercícios de resistências e de se travestirem
de diversos modos e experiências. Assim, leituras e interpretações de alguns de seus poemas
realizaram-se acompanhadas de proposições filosóficas sobre o amor.

(Des) afetos em palavras poéticas de Rita Santana e Sónia Sultuane

Ao se pensar em relações afetivas, em cenas literárias, para além das tradições


românticas e longe de conceito unidimensional e de experiência única, necessário se faz
compreender o amor como um sentimento multifacetado, bem como construção discursiva e
prática humana relacionada, intrinsecamente, a outros sentimentos e vivências, tais como
atenção, liberdade, afeto, doçura de estar junto, carinho, sonhos, partilha de vida,
tranquilidade, prazer, entrega, encanto, reciprocidade etc. como ilustra os versos de Flutuo, de
Sónia Sultuane.

Como um ritual mágico acendes duas velas e incenso


pões a tocar uma música mística
com sons das paisagens profundas da Índia
pedes-me que me deites vestida
e de olhos fechados fiques tranquila
deixo-te entrar na minha alma,
tuas mãos transformam-se em chamas ardente
onde a minha vergonha contente
faz-me corar ao ser descoberta
flutuo numa imensidão de encantamento
pela corrente da vida
deixo cair pelas mãos
as pétalas que fragilmente me cobriam
no meu beijo entrego-te o meu corpo menino.
(SULTUANE, 2009, p. 15)

O amar também ocorre em meio a outras sensações e ambivalências, por isso seu ato
pode se reverberar em solidão, agonia do apartamento, ódio, ciúmes, inveja, sofrimentos,
crimes, vingança, desilusões etc. Esses elementos operam e se configuram em tempos,
contextos e modos distintos quando se ama e (ou) se é amado (a).

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Em Praia, de Rita Santana, a voz poética, à beira da praia, diante da imensidão do


mar, lamenta, com sua experiência amorosa, a pequenez criatura em que se tornara.

Os passos fincam na areia,


e eu, transitória, passo.
Transito dispersa, alheia,
cansei-me, meu ser é lasso.
Lancei minha rede ao mar,
E ela rasgou-se na âncora.
Do rasgo que a sede dá.
O mar não enche uma ânfora.
Quero morar numa concha.
Sem sustos de imensidade.
Na juventude, quis tudo!
O mundo deu-me a saudade.
Pequena, diante das águas,
eu penso no quanto sou triste,
eu trago trouxa de mágoas,
meu sonho não mais existe.
Aqui, à beira do mar,
recordo a mulher que fui:
doei-me ao Amor e ao Amar,
perdi o esplendor e a luz.
(SANTANA, 2006, p. 17)

A praia torna-se um espelho d’água de uma voz feminina que reflete sua face marcada
por correntezas e tempestades enfrentadas para nela chegar ou, quiçá, colocar-se a caminho do
outro lado. É ainda uma espécie de máquina do tempo com a qual anda pela areia e fica à
deriva dela mesma. Parece, inclusive, um divã terapêutico em que se permite desaguar seu
curso de vida e escorrer as ondas bravias e insossas de sua existência para, talvez, encontrar
uma concha, à beira do mar, para abrigar-se e suas lembranças guardar.
A voz feminina pensa, diante das águas, sobre sua dedicação ao amor e ao seu amado
como um escrever de si para si, marcada por cansaço, desencanto e mágoas. Como práticas
discursivas, suas memórias se forjam afastadas de linearidades e totalidades, mas adjacentes
de fragmentações e lembranças de circunstâncias que lhe arrebataram o direito de sonhar e
transitar intensa, e não transitória e lassa. Desiludida e sem ânimo, resta-lhe um fiapo de
esperança: morar no recôndito de uma concha, sem o incômodo de exposições.
A exaustão é o que resta do Amor e do Amar. Triste, sem vontades e sem brilho no
viver, recorda-se de si, como amante. Por conta dessa experiência da imaginação, presumimos
que amar pressupõe (des) amar e, quiçá, odiar; estar com e estar sozinho (a), por vezes.
Podemos, pois, reconhecer que amar é experimentar encontros, (des) afetos, (des) amores,

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(des) ilusões e abandonos, tal como encenam os versos de Silêncio nocturno, de Sónia
Sultuane.
A esperança acaba quando a luz da memória
Se acende no final do caminho iniciado
Com um suspiro de despedidas, o nó do sufoco na garganta “tanto amei”
O mistério do desconhecido aperta o peito
Um dia, duas ilusões, dois corações, dois corpos,
Encheram-se as noites longas
Bebidas de dor no cálice do silêncio nocturno.
(SULTUANE, 2009, p. 55)
Amar, inclusive, requer escolhas e autoconhecimento; práticas de sair de cena como
atos de (re) existências. Donzela, puta e desanimada, com aparência de rainha inculta e bela, a
voz feminina de Perdição, de Rita Santana, deseja se esquecer de si mesma para alçar outros
voos. Como peculiaridade da memória, o esquecimento aparece, nesses versos, em um
ambiente e momento de afastamento, ornado e abluído por vinho, adornos, embriaguez,
comida e tecidos. Há de se deixar o passado para seguir adiante.

Permita que a respiração tome conta do vinho


Enquanto eu beijo a linha do teu lábio,
Alinhavo adornos para o meu corpo parecer
Menos perecível, menos afetado pelas horas.

Quando a embriaguez afetar meus sentidos,


Hei de acometer desmaios em minha carne,
Desmaio de sorriso, de epiderme, de tudo que, em mim,
Pode ser mortal, infinito.

Depois é o resto lento, ensopado de sopros, suspiros


E pingos de ira adormecida.
O meu maior milagre é sobreviver ao inferno do fim,
Do ido, mesmo que doida e doída.

Permita a marmita na precisa hora em que a fome surja,


Preparo temperos para teu descaso sério,
Teço bordados, franjas, babados
Para que teu ouvido ausculte o meu mistério de gata parida.

Mas nem o vinho tinto, de uvas pretas, de pés suados,


Nem o vinho divinizado pelos filhos do filho de Deus
Pode abrandar minhas maleitas de amor,
Pois que morro em febre, em desânimos,
Pois que trago sonhos de donzela, sendo eu tão puta,
Tão acometida por miragens de rainha inculta e bela.

Quero a voragem do esquecimento para o meu consolo,


A volição necessária para ser senhora.
Quero esquecer de mim por instantezinhos de nada,
E aparecer em canto onde eu caiba, onde eu saiba a felicidade.
Aprender a alegria, pois que tanto só sangro.
Permita que eu me derrame na boca da tua garrafa,
E o mar me engula pra outros destinos.
(SANTANA, 2006, p. 90-91)

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523

O ato de recordar para a puta, rainha, nessa direção, é narrar cisões de si, por ela
provocadas, revitalizando o que lhe interessa no presente e trançando esparsas recordações,
aparentemente lineares, mas que são tão somente ocasionais e cortantes lembranças.
Desanimada, doida e doída mediante as intempéries, advindas do fim de uma relação de
afetos, ela tenta forjar modos para sobreviver e encontrar consolo. Constitui, ainda, para ela,
ao ser enlevada pelo mar e conduzida a outros caminhos, a oportunidade de se reinventar,
eternizando o presente e distanciando-se daquilo que sangra. Assim, com seus sonhos e
miragens de donzela, rainha inculta e bela, deseja seguir, ainda que por instantezinhos, por
outros destinos, com um mínimo de gozo e felicidade.
O amor reside onde há pessoas, ritos e vida em sociedade, como nesse poema, e se
insere em meio as suas idiossincrasias e inerências da existência e sua sociabilidade. O chão e
o palco do amor são também o aqui e o agora. Neles se realizam suas performatividades e
memórias de (des) afetos vividos, ficcionalizados ou poetizados. Neste ínterim, por um lado, a
ausência do amor pode ser atribuída a não aceitação de diferenças e, por conseguinte, ao não
exercício da alteridade. Por outro, amar pode implicar também estar submerso às fragilidades
humanas e imbricado aos padrões estéticos e socioculturais, como nos confessa a voz poética
de Ai de mim, também de Rita Santana.

Deu de abrir comissuras na minha pele,


Porque ele partiu.
E nunca mais voltou pra minha alcova,
Pro meu convento de moça,
Pra minhas paúras,
Pra minhas pioras de noiva,
Pros meus pinceis de Almodóvar,
Pra minha cova roxa.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!

Deu de abrir fissuras na minha boca,


Porque ele partiu,
E eu fiquei oca,
Fiquei seca,
Virei louça,
Vivi morta.
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós mulheres tortas!

Deu de abrir fendas no amor,


Porque ele partiu,
E nunca mais voltou.
Eu sucumbi ao sol:
Comi calêndulas,

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524

Girassóis feridos,
Flores de abóboras,
Serpentes de vidro.
Abri a porta e gritei:
Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas!
(SANTANA, 2006, p. 23)

O amor, pela linguagem, parece resistir e se sobrepor também aos preconceitos e


convenções, como se denota em Sagapo meu amor, de Sónia Sultuane, em que até os seus
versos se apresentam distantes de marcas e normas da língua e da construção poética.

Encosta a tua cabeça no meu coração


cobre-me com os teus cabelos brancos de sabedoria
deixa-me beijar a alma com paixão
para que me dês o teu amor profundo no calor do teu aconchego

deixa-me fazer-te novamente menino


embala a minha alma com a música ternurenta da
paixão
cala-me a voz do preconceito que me atormenta
com o silêncio do teu amor

faz-me perder o medo das convenções


para que não tenha medo do teu amor
sagapo¹ meu amor.

Palavra grega que significa amo-te. (Nota da autora)


(SULTUANE, 2009, p. 21)

O amor, neste sentido, sugere repensar sobre significados de existências, haja vista que
sugere exercícios de (re) autoconhecimento e de abertura ao (a) outro (a), tornando-se
imprescindível uma permanente invenção de si e de quem se ama. E, mais ainda, é uma
oportunidade de imaginar o (a) outro (a), bem como outras maneiras de amar e de traduzi-las
em ternura e afeto. Neste sentido, a literatura e a filosofia têm nos provocado a pensar que o
ato de amar implica em (re) invenções permanentes de quem ama e do (a) amado (a) e em
criações efetivas e imaginárias de relações afetuosas.
Nesta perspectiva, ciente de vicissitudes humanas e socioculturais, bem como da
finitude do amor, Grimaldi (2011) assevera que o (a) amado (a) é uma construção da
imaginação do (a) amante. Para ele, o principal paradoxo do amor é fazer provar como
necessário o que é mais contingencial e incomparável a mais banal das pessoas, como se fosse
especial. Neste sentido, o amor não transfigura a pessoa amada, mas ele faz o (a) amante

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525

imaginar a existência transfigurada por ele (a). Trata-se de uma imaginação sem imagem. Os
(as) amantes inventam mundos para si mesmos (as) e também para seu (sua) amado (a).
Em Obra de arte, de Sónia Sultuane, a voz poética salienta a árdua ação da
imaginação para esculpir o amor que é único e singular por seu estilo e tonalidade.

Obra de arte
esculpida pelo pensamento e pela emoção
o amor é o resultado final
dos contornos profundos da imaginação,
De que a alma precisa para esculpir
Com perfeição o coração.
(SULTUANE, 2009, p. 31)

Segundo esse filósofo, o amor é a obsessão mais comum e experiência menos


explicável, como exercício da imaginação, visto que o acaso de um encontro é suficiente para
justificar e fixar a disposição de uma pessoa para amar outra. É isso que torna todos os amores
parecidos sem que algum jamais, ao mesmo tempo, possa ser parecido com outros. Para ele,
nada é mais improvável e mais fantasmático do que esperar de outra pessoa a musicalidade da
vida. A imaginação ilude, porque se ignora a quem se diz amar, uma vez que não a conhece,
desconhecem-se seus gostos, caráter, temperamento etc.
Em Na mercearia dos prazeres, de Sónia Sultuane, a voz enunciadora “compra” itens
raros e, ao mesmo tempo, comuns e especiais afins aos prazeres. Mas o amor da amante,
entretanto, só encontrara na prateleira da ilusão.

Encontrei as especiarias do amor lacradas com fita


dourada
as palavras dobradas nas asas de borboletas,
os beijos tinham todos os gostos e cores,
encontrei na mercearia dos prazeres
os desejos pesados a ouro,
a felicidade bordada com diamantes
encontrei na mercearia do prazeres
o teu amor escondido na prateleira da ilusão.
(SULTUANE, 2009. p. 73)

Para Grimaldi, inventa-se e encanta-se quem se ama como um ser especial, sem
conhecê-la. Em todo amor, há um enfeitiçamento, espécie de encantamento, fascínio e mito da
predestinação do amor. Nos versos de Com asas de liberdade, também de Sónia Sultuane,
passeiam traços de magia e encantamento quando o sujeito poético é beijado pelo seu amor.

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526

Quando me beijas ardentemente no coração


sinto o gosto dessa magia
que me faz percorrer sem fim luz
olho pela janela do céu,
vejo a dança calma do mar nocturno
onde as gaivotas falam a mesma linguagem, livres,
e com asas de liberdade das amarras da paixão

palavra pequena, palavra inteira


dita na porta dos teus lábios
dita na porta dos teus desejos
quando me beijas calando fundo
o ardor do meu amor.
(SULTUANE, 2009. p. 69)

Talvez, por isso, o amor, para esse filósofo, sobrevive ao enigma da resistência, pois é
caracterizado como aquele sentimento que tudo suporta, inclusive, as mais tenazes
experiências de sofrimento e até de morte. Por conta disso, ele (a) cria idólatras, ou seja,
amados (as) e amantes obcecados (as).

Vi lágrimas de amor
carregados de emoção,
na dor das minhas palavras
brotam poemas
que me rasgam o peito,
dispo o meu olhar
da dor que me carrega para que para que possa enxergar
novamente a vida por inteiro.
(SULTUANE, 2009. p. 81)

Ama-se sem encontros, sem toque e sem aproximação e, ao mesmo tempo, os (as)
amantes não podem viver separados (as). O amor, ainda, leva a confiar mais no (a) outro (a)
do que em si mesmo (a). A vivência do amor faz descobrir a destreza de não ser amado (a).
Nos versos de Dançarino misterioso, igualmente de Sónia Sultuane, desejo, prazer,
intimidade, encontro, emoção, externalizaçoes, ou não, do amor, se alternem, se mesclam ou
talvez se hibridizem com encontros proporcionados pelo amor e pela imaginação.
,
Arrebata-me o teu corpo contorcido,
as tuas mãos suadas passeando pela minha perna desnuda.

colo-me ao teu ventre de veludo,


os teus dedos percorrem a pele
que me cobre o corpo ávido de desejo,

o teu cheiro desperta em mim sensações inesperadas,


a tua cara mascarada dança em mim
a música dos sentimentos,

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
527

ouço-te suspirar palavras mudas, eróticas,


escorre-me por dentro o mel dos desejos perpétuos
nos meus lábios guardados de sonhos, entrego-me,

danço o desejo embriagado em ti,


danço o tango das emoções únicas.
(SULTUANE, 2009. p. 9)

O amor é tudo e o seu contrário; nada se compara ao amor. Não há algo mais atroz do
que amar e não ser amado (a); não há razão para amar. Não se ama por isso ou por aquilo:
apenas ama-se, garante N. Grimaldi. Em Catares, de Rita Santana, diferentemente da
enunciadora de Dançarino misterioso, uma voz saudosa e experiente parece pouco satisfeita,
amorosa e sexualmente, ao “narrar” suas andanças, modos de (re) existências, aprendizagens e
desaprenderes em prol do seu amor.

Catei conchas na praia,


Deixei-as ali na areia.
Preguiça de carregar pedras e falanges de cores.
Arrependi-me e veio coisa de saudade,
Vontade de ir buscá-las, as conchas e as pedras.
Anteontem o mar, de carrego, levou tudo.
Resta eu aqui com meu homem velho,
Aprendendo desaprenderes de ciranda,
Fazendo de tudo pra o amor dar certo,
Desafiando o pano de crochê,
Querendo virar princesa dele.
O vento perfuma de silêncio o quarto.
A rede dança serenidade
E palafitas enfiadas em meus olhos,
Fazem moradia de vontades
(SANTANA, 2006, p. 41)

Novamente o mar cumpre o seu destino de levar para longe tudo o que vivera e
deixara na praia. Sem conchas e sem pedras, por preguiça, ou talvez, por não desejar carregar
e guardar consigo mesma reveses eventos e cenas da sua existência, ela segue destecendo-se e
reinventando-se. Igualmente ao poema Praia, resta à voz enunciadora a saudade do amor
vivido, impossível de ser revivido, mas passível de invenção e de recriação pela linguagem.
Restam-lhes também suas vontades de reconstruir aquilo que, movido por sonhos, afeições e
desejos, parece eterno e perene, mas é tão efêmero e fugaz quanto o existir.
Ainda, segundo Grimaldi, o amor é um fato que recusa toda contestação, haja vista
que o amor encontra na pessoa amada o segredo da sensibilidade. Ser amado (a) é se sentir
reconhecido (a) por uma pessoa, pelo que se é em verdade, pois se ama a pessoa e menos a

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
528

sua beleza, desejos e sensações. O contrário disso distancia-se do ato de amar como assegura
a voz poética de Arrefecimento, de Rita Santana.

Mário bateu à porta na primeira noite.


Beijou-me a mão, sorriu-me desajeitado
E calou.
Abri, acendi a vela, aqueci o guarda-chuva
Que ficou armado, duro, firme.

Na segunda noite, Mário só entrou, sem bater,


Sem cerimônia, sem requintes de fineza ou timidez.
Fiquei azeda, apaguei o fogo guardado,
Apaguei meus olhos molhados de uma esperançazinha boba,
Não mandei que sentasse
Deixei o guarda-chuva num canto,
Mole como entrou.
Mário virou uma batata e nunca mais me fez visitas.
É uma pena!
Quando arrefeço é assim.
(SANTANA, 2006, p. 30)

O amor não garante as qualidades que se reconhecem em quaisquer pessoas e faz uma
sorte de encontro inocente; não há necessidade de se conhecer a pessoa para amá-la. A doçura
de estar junto por si só justifica o ato de amar. O amor tende a isolar e a formar seu próprio
mundo, pois, sem a devida compreensão, os (as) amantes criam outra existência, independente
da primeira, inspirados (as) pelo amor que não admite nem limites nem pendências.
O amor cede à morte e invade a vida dos (das) amantes sem que eles (as) se conheçam.
O amor frenético precede todo conhecimento e o seu furor suscita a necessidade de
conhecimento, o que parece irrealizável. Nesse aspecto, desejo, gozo e satisfação sexual, esse
nem sempre vivenciado plenamente, apresentam-se, por vezes, amalgamados com
experiências amorosas. Os versos de Tendas do desejo, de Sónia Sultuane, desenham
iniciativas sedutoras oriundas do anseio por prazer pela voz enunciadora que denotam
intimidade, espera e encontro, mas também inferem separação e solidão.

Banhei o meu corpo com pétalas de rosas vermelhas,


o cheiro exótico do deserto e o óleo da sedução,

entrei na tenda dos desejos


cheirando a rosas e a incenso da imaginação,

entreguei-me, no meu leito coberta de sedas,


tão leves como a ilusão,

no meu ventre as pétalas escreveram

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529

o vazio da separação

senti o cheiro da comunhão


chorámos juntos lágrimas com sabor a união.
(SULTUANE, 2009. p. 87)

Com todas as suas ambivalências, nos adverte Grimaldi, a expectativa gera encontros,
identificações e construções de identidades pautadas em semelhanças, diferenças,
singularidades e integração. Nisso consiste, para ele, uma experiência original que é a
consciência de que a espera é o princípio da vida e é incorporada por outro (a). A sexualidade,
nessa perspectiva, é a expressão da espera do outro, ao mostrar que se tem identidade na
alteridade, o que torna a espera e a solidão indissociáveis.
De acordo com ele, a solidão, pois, é intolerável ao campo do amor e com ele não se
coaduna, porque ela é uma provação e uma maledicência. Ademais, com ela, o corpo separa
uma pessoa de todas as outras, excomungando-a. O amor, ao contrário, une uma pessoa à
outra. O contrário da solidão é o contato, visto que a intimidade dos corpos a afasta e revoga-
a. Segundo ele, a vivência do amor se opõe à experiência da solidão.
Vozes poéticas de Rita Santana (2006) e Sónia Sultuane (2009), quiçá, se apresentam,
entretanto, na contramão dessa proposição. Não raro, em seus versos, aparece a solidão como
resultado de relações de (des) afetos e ou como alternativa às experiências amorosas já
esgarçadas e sem encanto. Em Mar, de Rita Santana, inclusive, uma voz poética feminina
dialoga com o mar, num tom solitário e quase desolador, apresentando-se, embora livre, à
deriva e sem ancoradouro.

Sou livre e voo com tuas águas,


Enquanto o principado das conchas
Anuncia seu lilás em máscaras,
Serpente solidão, feita de ondas.
Quero crer em castelos de areia,
Para neles erguer as minhas pontes,
Singrar meus rios, tecer minhas teias,
Quem sabe, assim, terei horizontes.
Não tenho além de ti, bravio mar.
Não sou sereia, senhora ou amante,
Não tenho ancoradouro, nem barco,
Não sou daqui. Nem vim doutro lugar,
Sou náufraga no vazio da vazante,
Flecha esquecida em busca do seu arco.
(SANTANA, 2006, p. 67)

Descrente, sem barco e âncora, sem origem, passado ou destino, a voz feminina
confessa ao mar sua solidão e desesperanças. O mar bravio é apenas o que lhe resta. Assim, o

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530

signo mar, além de nomear o poema, desfila, a um só tempo, nesses versos, como um lócus de
encontro da voz poética consigo mesma e como uma possível companhia para seguir e
reinventar-se.
Livre, como desejam tantas vozes e outras tantas almejam em poemas de Tratado das
veias e No colo da lua, a voz da náufraga e solitária de Mar se quer ecoar no vazio da vazante
e ressoa em também quer voar com as águas do mar e tecer novas possibilidades de afetos e
de (re) existências.
Com essas breves considerações sobre metamorfoses e várias faces do amor,
consideramos que recorrências de (des) afetos em poéticas de Rita Santana e Sónia Sultuane
nem sempre se resguardam, se tatuam ou se travestem de postulados como amor perfeito,
amor para sempre, amor para casar, amor eterno, amor incondicional etc.

Mais algumas Palavras

As relações afetivas de vozes poéticas, em versos de Tratado das veias e No colo da


lua, são demasiadamente humanas: são intensas, fervorosas e, a um só tempo, são cantadas
associadas às vivências de desafetos, desamores e solidão, como ausência de amor e afeto,
mas também de exercícios de (re) existência. Assim, as reflexões, aqui apresentadas, poderão,
quiçá, sinalizar algumas trilhas temáticas concernentes ao amor, aos seus encontros e
realizações, mas também aos seus dissabores e apartamentos em palavras poéticas delas e de
outras autoras negras daqui (Brasil) e de lá (Moçambique).

Referências

GRIMALDI, Nicolas. Métamorphoses de l’amour. Paris: Bernard Grasset, 2011.


SANTANA, Rita. Perdição. In. Tratado das Veias. Salvador: Secretaria de Cultura e
Turismo; Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006. (As Letras da Bahia).

________, Rita. Praia. In. Tratado das Veias. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo;
Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006. (As Letras da Bahia).

_________, Rita. Catares. In. Tratado das Veias. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo;
Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006. (As Letras da Bahia).

_________, Rita. Arrefecimento. In. Tratado das Veias. Salvador: Secretaria de Cultura e
Turismo; Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006. (As Letras da Bahia).

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531

_________, Rita. Mar. In. Tratado das Veias. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo;
Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006. (As Letras da Bahia).

________, Rita. Ai de mim. In. Tratado das Veias. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo;
Fundação Cultural do Estado, EGBA, 2006. (As Letras da Bahia).

SULTUANE, Sónia. Silêncio nocturno. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora, 2009.

__________, Sónia. Flutuar. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora, 2009.

__________, Sónia. Obra de arte. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora, 2009.

__________, Sónia. Com asas de liberdade. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora,
2009.

__________, Sónia. Na mercearia dos prazeres. In: No colo da lua. Maputo: Edição da
autora, 2009.

__________, Sónia. Tendas do desejo. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora, 2009.

__________, Sónia. Sombra. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora, 2009.

__________, Sónia. Sagapo meu amor. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora, 2009.

__________, Sónia. Dançarino misterioso. In: No colo da lua. Maputo: Edição da autora,
2009.

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532

RACHEL E DÔRA: SEMELHANÇAS E/OU DESSEMELHANÇAS ENTRE


CRIADORA E CRIATURA

Mestranda: Andréa Andrade Oliveira Prado (UESB)


E-mail: andreaao21@hotmail.com
Orientadora: Profª Drª Adriana Maria de Abreu Barbosa (UESB)
E-mail: amabarbosa@uesb.edu.br

Muitas ações são realizadas na luta pelo fim da hegemonia de uma cultura branca,
patriarcal, ocidental. Na literatura se busca há tempos a visibilidade da mulher, não como
tema, mas produtora do texto. A partir de uma nova historiografia, questiona-se tradição e
cânone, dentro e fora das academias. São as mulheres colocando novos olhares sobre textos
velhos.
Como aponta Rita Therezinha Schmidt, uma das fundadoras do grupo de trabalho “A
mulher na literatura”, em Curitiba185, no ano de 1986, é a “possibilidade de revisar a história
literária, [...] reconceptualizar o próprio conceito de identidade e literatura nacional, e mesmo,
dilatar a própria rede conceitual e crítica que define o literário”. (1999: p.27)
Adriana Barbosa (2001) chama de “arqueologia” essa construção de métodos,
pressupostos e estratégias da crítica feminista e informa que há riscos em seguir por esse
caminho, pois há dúvidas, contradições e paixões. Acrescenta-se ainda o explícito
preconceito, imposto pelos intelectuais homens às que se propõe “falar de mulher”. Sabe-se
que a constituição de um cânone é institucionalizada pela cultura vigente, reproduzindo os
discursos do poder patriarcal ainda imperante. Ao revisar, revisitar, a historiografia literária, a
crítica feminista instaura um novo modo de ver o mundo, sob a ótica da mulher.
Este trabalho faz parte do processo de “inventariar” (BARBOSA, 2011) a obra de
Rachel de Queiroz à luz dos estudos de gênero. Analisamos aqui a personagem/narradora
Dôra, do romance Dôra, Doralina (1975), mulher que caminha pelo rural e urbano, sobras de
felicidades e tragédias angustiantes, reproduções do patriarcalismo dos anos trinta aos anos
cinquenta (tempo onde se situa a história) e uma consciência limitada de maneira proposital
pela autora. Por outro lado, nos debruçamos sobre a mulher/autora/nordestina através de sua

185
Em 1986 aconteceu em Curitiba o I Encontro Nacional da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em
Letras e Linguística, onde o GT “A mulher na Literatura” foi criado.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
533

autobiografia, traçando possíveis paralelos e/ou disparidades entre criadora e criatura que nos
levem ao universo de Rachel em sua escrita.
Rachel de Queiroz, dentro da história da literatura brasileira, foi uma mulher que
rompeu barreiras através de sua vida, de sua escrita e de suas personagens. Falava e escrevia
de um jeito incrivelmente livre, o que lhe rendia elogios e críticas. Não gostava de rótulos,
nem de estereotipia, mas não se furtava à discussão. Debruçar-me sobre essa mulher/
escritora/ nordestina é viajar por um mundo ainda insuficientemente explorado. E como
afirma Heloísa Buarque de Hollanda (2016), “estudar a mulher no Brasil e na literatura
brasileira sem passar por Rachel de Queiroz é, no mínimo, imprudência”.

O ROMANCE

Dôra, Doralina foi publicado pela primeira vez em 1975, 45 anos depois do livro de
estreia de Rachel de Queiroz na literatura, O Quinze. Dividido em três partes, O Livro de
Senhora, O Livro da Companhia e O Livro do Comandante, tem a personagem principal, que
dá nome à obra, como narradora.
O primeiro livro tem o sertão cearense como cenário e a narração da vida de Dôra na
fazenda Soledade, localizada no fictício município de Aroeiras, onde mãe e filha enfrentavam
um relacionamento marcado por frieza, mágoa e certa concorrência. É nesse livro também que
a protagonista se casa com Laurindo, engravida, perde o bebê e enviúva. O segundo livro traz
os relatos de suas aventuras com a Companhia de Comédias e Burletas Brandini Filho. Após
abandonar a vida no campo e mudar-se para uma pensão na cidade, Dôra passa a conviver
com atores de teatro e acaba se tornando atriz da Companhia, viajando pelo país. Numa dessas
viagens conhece o Comandante, que se tornará tema do terceiro e último livro.
Sucesso de crítica, traduzido para o francês, inglês e polonês, Dôra, Doralina foi
adaptado para o cinema186 em 1982, cinco anos depois de Rachel de Queiroz tornar-se a
primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Dôra, Doralina apresenta “a
mulher brasileira, nordestina, sertaneja, confrontada com desafios existenciais que tendem,
invariavelmente, a subjuga-la, a mantê-la presa a um trágico destino” (GURGEL,1997: p.47)
Rachel deixou inúmeras crônicas, entrevistas e algumas memórias que servem para
que tentemos desvendar um pouco do seu universo. Partindo do romance Dôra, utilizamos

186
Dôra, Doralina, filme de Perry Salles, tendo a atriz Vera Fischer no papel principal.

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534

principalmente seu livro de memórias, Tantos Anos, escrito com sua irmã, Maria Luiza de
Queiroz, publicado em 1998; a entrevista concedida ao Programa de Televisão Roda Viva187,
da TV Cultura de São Paulo, em 1991 e o Presença de Rachel – Conversas informais com a
escritora Rachel de Queiroz188, do historiador e jornalista Hermes Rodrigues Nery (2002).
Pretendemos identificar o quanto de si Rachel de Queiroz apresenta em sua obra através da
protagonista Dôra e um pouco das contradições entre o seu discurso nas memórias,
entrevistas e na sua escrita.
Conceição Evaristo, escritora e professora mineira, cunhou um termo para seu modo
de escrever, escrevivência:

As escolhas temáticas, o vocabulário, as personagens, os modos de construção das


mesmas, o enredo, nada nasce imune ao que sou, às minhas experiências, à minha
vivência. Escrevo uma vivência, que pode ser ou não, a real, a vivida por mim, mas
que pode se con(fundir) com a minha. [...] São memórias ficcionalizadas. Vivência
como sumo da própria escrita. Escrevivência. (EVARISTO, 2017: p.6)

Buscamos estão traços de uma certa escrevivência de Rachel em Dôra, Doralina. E


sendo eu, mulher, nordestina, sertaneja, historiadora, atrevendo-me a ler e escrever sobre
literatura, certamente parto de um lugar de vivências num mundo fronteiriço entre a cidade e
o campo, o real e o ficcional, a história e as letras.

RACHEL E DÔRA

Miridan Knox Falci (2017), historiadora e escritora, conta a história das mulheres do
sertão nordestino, ao longo do século XIX, mais especificamente nas, então, províncias do
Piauí e Ceará.
Mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres ou escravas
do sertão. Não importa a categoria social: o feminino ultrapassa a barreira das
classes. Ao nascerem, são chamadas “mininu fêmea”. A elas certos
comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos, mas também
viveram o seu tempo e o carregaram dentro delas. (p.241)

Essas mulheres viveram numa sociedade fundamentada no patriarcalismo, em


hierarquias rígidas e onde terras, riqueza e cor serviam de baliza para o reconhecimento e
aceitação social. O que perdurou até as primeiras décadas do século XX.

187
Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/407/entrevistados/rachel_de_queiroz_1991.htm
188
O livro é resultado de oito anos – 1988 a 1996 – de encontros/entrevistas do autor com Rachel de Queiroz.

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535

Rachel e Dôra habitam esse lugar.


Rachel nasceu nessa sociedade altamente estratificada e patriarcal. Mesmo tendo pais
intelectuais, que lhe oportunizaram uma biblioteca dentro de casa, não deixou de viver
determinadas situações inerentes a sua condição de mulher daquele tempo e lugar. Só pôde
frequentar a escola dos oito aos quinze. Foi chamada de “louca e cega” pelo pai ao tentar
dirigir, o que a fez nunca mais sentar-se ao volante. Teve medos e receios comuns às
mocinhas da época, como quando recusou ser acompanhada por um médico, na hora do parto:
“era toda pudica, não queria homem no meu quarto” (QUEIROZ & QUEIROZ, 2010: p.62).
“Mininu fêmea” que para garantir respeito em meio a tantos homens, escrevia de maneira
rígida, feito “homem barbado”, como afirmou Graciliano Ramos189. “O estar no mundo é
muito penoso. São apreensões, idas e vindas, inseguranças e incertezas: aquela sensação de
estar permanentemente sob o fio da navalha.” (QUEIROZ apud NERY, 2002: p.95)
Dôra, fruto da mesma sociedade, foi criada para ser a sinhazinha. Estudou o suficiente
para casar e “criar menino”. Fazia renda, costurava, rezava. “Ocupações de moça branca”.
Casou-se a primeira vez por conveniência e vivia sob o julgo da mãe, viúva autoritária que se
arrependia de ter gastado dinheiro com os estudos da filha.
Rachel teve com sua mãe uma relação completamente diferente da que existia entre
Dôra e Senhora. Mas como afirmou em entrevista a Nery (2002), sua inspiração veio das
inúmeras famílias que conheceu: “Muitas de minhas amigas viviam dramas assim. Tive sorte
de crescer numa família mais aberta e descontraída. Mas o peso da opressão era a tônica em
grande parte das famílias que conheci.” (p.111)
Sabe-se que, em nome da verossimilhança, há proximidades e distanciamentos entre o
ser vivo e o ficcional, sobretudo no que diz respeito a interpretação que estabelecemos sobre
ambos. A depender do tempo, do lugar, do estado de espírito, realizaremos variadas
interpretações sobre o real. No romance, graças a coerência do escritor, é possível delimitar
essa interpretação, nos aproximando ainda mais do contexto narrativo. A personagem
apresenta uma lógica, não necessariamente simples, que os seres vivos não possuem.
Antônio Cândido (2007, p.64) afirma que uma das funções principais da ficção “é a de
nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento
decepcionante e fragmentário que temos dos seres.” Graças ao romancista, através da arte
literária ficcional somos capazes de um domínio absoluto do conhecimento. Viajamos pelo
189
Quando Rachel publicou O Quinze muitos duvidaram ser de autoria de uma mulher. Graciliano Ramos foi um
deles, que chegou a dizer ser “pseudônimo de homem barbado”. (HOLLANDA, 2016)

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536

interior das personagens, entendendo cada um dos seus sentimentos e emoções. O que nunca
é possível na vida real.
Por isso mesmo, apesar de não ser essencial ao romance, a personagem, como afirma
Cândido (2007), é a maior responsável pela sua eficácia: “[...] representa a possibilidade de
adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção,
transferência, etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos.” (p.54)
Consequentemente, não há como uma realidade ser aplicada de maneira integral à
ficção. Além de ser impossível, deixaria de ser arte. O real é apenas um modelo em que o
autor acrescenta seus enigmas aos das pessoas representadas no texto. Ainda assim, a
precisão, a lógica e a complexidade das personagens nos levam à admiração e deleite.
Cândido (2007) categoriza as personagens de acordo aos modos de invenção próprios de
cada autor. Em se tratando de Rachel de Queiroz, poderíamos usar o que ele chama de
“personagens transpostas projetada”:

Personagens transpostas com relativa fidelidade de modelos dados ao romancista por


experiência direta, – seja interior, seja exterior. O caso da experiência interior é o da
personagem projetada, em que o escritor incorpora a sua vivência, os seus
sentimentos, como ocorre no Adolfo, de Benjamin Constant, ou do Menino de
Engenho, de José Lins do Rego [...].” (p.71)

Seguindo essa perspectiva é que julgamos ser a personagem Dôra, uma das projeções
de sua criadora, pois Rachel de Queiroz não se ocupa de qualquer mulher, mas da mulher
sertaneja, de elite, instruída e ansiosa por liberdade, assim como ela própria.
Dentre os muitos exemplos que poderíamos abstrair da afirmação acima, nos atemos
aqui a um traço fundamental das personagens de Rachel, o pessimismo. Na entrevista ao Roda
Viva (1991), Rachel foi questionada pelo apresentador sobre sua visão pessimista em relação
à vida, no que ela respondeu: “É, porque ser pessimista é bom. [Se] Você é pessimista,
quando vêm as coisas ruins, você já esperava; quando vêm as coisas boas, você tem uma
surpresa agradável”. Esse pessimismo conduziu-a na construção de personagens carregadas de
desgostos.
Em Dôra, Doralina, o primeiro parágrafo da história já nos apresenta esse estado de
espírito que rondará toda a obra: “Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. Só não
dói depois de morto, porque a vida toda é um doer.” (2014: p.13) E apesar de algumas
conquistas e momentos de alegria ao longo da trama, é a dor o destino final da protagonista:

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537

“Para mim havia só a horrível solidão, o vazio e o desespero; um vácuo por onde eu sentia
rolando, desabando sem encontrar fundo. E a carne esfolada me sangrando.” (ibidem: p.410)
Rachel imprime dor desde o nome da personagem, “Maria das Dores”, representando
as angústias e os reveses que sua vida dá ao longo da trama. Nome, aliás, que a dona dele
odiava e só tolerava o apelido dado pelo pai, “Doralina”.
A autora reafirma sua posição quando diz que “as minhas personagens sempre são
para baixo realmente. A vida eu acho que ensina surrando... Não sou uma pessoa que... Nunca
acredito em final feliz, nunca vi final feliz para nada.” (QUEIROZ em Roda Viva, 1991)
Tristeza, morte, angústia, desilusão, dor, são sentimentos muito presentes em todos os
romances de Rachel. Em Dôra eles são tão latentes que, como leitores, chegamos a concordar
com a autora, quando diz que a morte muitas vezes é a solução. “A morte é a grande
companheira, é esperada, tomara que já chegue.” (IBIDEM)
A morte do primeiro marido Laurindo (que lhe traiu com a própria mãe), por exemplo,
significou para Dôra sofrimento e liberdade, dor e transformação. “Porque tem os que vão
embora e só deixam aquele alívio, imagine se eles ficassem eternamente, graças a Deus se
foram e alguns até mesmo já se foram tarde.” (QUEIROZ, 2014: p.15) A morte de sua mãe
também significou muito menos dor que as dores que a convivência entre as duas
proporcionaram.
Pois a mesma Senhora, que eu pensei que ia carregar comigo, encravada em mim
pelos séculos dos séculos, nem precisou morrer para ir passando, foi morrendo
para mim cada dia um pouco, e quando veio a notícia da morte de verdade quase
dei um suspiro aliviada, agora estava tudo certo, nossas contas quites. (QUEIROZ,
2014: p.16)

De onde vem tanta dor? As dores de Dôra, de Rachel e de tantas mulheres partem
quase sempre de um mesmo ponto: ser mulher numa sociedade patriarcal. Submissão, pouca
ou nenhuma educação escolar, fragilidades físicas, dependência, opressão.

Convivi com trezentas e tantas colegas e senti os seus ambientes, os seus


sofrimentos e infelicidades. Aquilo me tocava, porque lá em casa as coisas não eram
assim. Eu pensava: ‘Mas, porque tanta neurose, tanta aporrinhação? Não pode isso,
não pode aquilo’. [...] Eu vivia numa sociedade feudal. (QUEIROZ apud NERY,
2002: p.115)

Rachel adentrou o mundo dos homens, mas não sem dificuldades. Realizar essa
“travessia” (OLIVEIRA, 1992) por territórios masculinos gerou muitas vezes estranheza e
solidão. Por outro lado, também oportunizou esclarecimento e lucidez, traduzidos em sua

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538

escrita. Suas personagens femininas, viveram dores que muitas mulheres reais também
viveram. Mas em nenhum momento foram heroínas vitimizadas e sensíveis; assim como as
mulheres do nordeste brasileiro, assim como Dôra, que sempre achava um jeito de recomeçar,
mesmo que a dor fosse eterna: “A sorte era o trabalho. Tudo pra começar de novo, a casa por
remendar e caiar, suja, deteriorada, as cercas arrombadas e os roçados abertos.” (QUEIROZ,
2014: p. 412)

DESSEMELHANÇAS: ENTRE O DITO E O FEITO

Não gostava de rótulos, nem de estereotipia, mas não se furtava à discussão. Preferia
tiranos a políticos populistas. Conseguiu ser comunista e tão próxima dos militares a ponto de
apoiar o Golpe de 1964. Adorava cozinhar e era fã de Mike Tyson. Dizia não gostar de
escrever, mas sentia-se satisfeita com o que fazia. Esses são apenas rasos exemplos dos
paradoxos que compunham a pessoa Rachel de Queiroz.
Como todo ser humano, prometeu coisas que não cumpriu, defendeu certezas que não
tinha.
Jayme Martins: A senhora me disse outro dia que jamais apareceria num programa
como esse, porque parece, assim, uma metralhadora giratória.
Rachel de Queiroz: E não é?
Jayme Martins: No entanto, a senhora aqui está novamente se contradizendo como
um bode numa canoa. Como é que se explicam todas essas incoerências e
contradições?
Rachel de Queiroz: Pergunte ao Shakespeare, ele que define mulher como
“inconsistência, teu nome é mulher” [na verdade, o príncipe de Elsinor, Hamlet,
desgostoso com o casamento da mãe com seu tio, disse "Fragilidade, teu nome é
mulher!", generalizando, estendendo o caráter da mãe para todo o gênero feminino]
coisa parecida assim. [risos] (RODA VIVA)

Por outro lado, o que muitas vezes pareceria contraditório para um desatento,
evidenciava sua clareza de pensamento, quando por exemplo, não se considerava uma
escritora engajada, pois dizia não ser esta a função da literatura.

Acho que literatura serve para ser literatura. Não sou engajada. Acho, pelo contrário,
que a obra de arte engajada se abastarda; o escritor não tem direito de ser engajado.
Se ele tem aquela convicção e se ele dá um testemunho do que viu e do que sente,
muito bem. Mas se faz uma literatura com visgo de propaganda, engajado numa
ideologia, porque é a ideologia dele, então ele ajeita a obra de arte dele a serviço
daquela ideologia, não respeito essa obra de arte e não respeito esse estilo do artista.
Naturalmente, se o [Pablo] Picasso fez Guernica é porque a Guernica não era uma
obra engajada, era um testemunho terrível daquele acontecimento também terrível,
então isso... está tudo bem. Mas, se o Picasso começasse a pintar retratinho do

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539

[fulano] porque o sujeito era libertador, foi libertário, dentro de qualquer ideologia, a
serviço de qualquer ideologia, sou contra. Acho que a gente tem que dar o
testemunho fiel do seu tempo e da sua gente e as conclusões que sejam
tiradas. (RODA VIVA)

E de fato ela não precisou levantar bandeiras para descrever a realidade nordestina.
Sua escrita fala por si só. Nada mais fiel que o testemunho da vida nordestina, da mulher
nordestina, das dores e delícias190 de seu tempo.
Mas, aqui, a maior questão a ser levantada é a veemente negação ao feminismo.

Não sou feminista. Acho que a sociedade tem que crescer em conjunto. A
associação mulher e homem é muito boa e acho um grande erro combater o homem.
Aquela brincadeira que a gente diz, “que o homem foi feito para servir a mulher”...
foi mesmo [risos], de forma que nunca fui feminista, sempre discordei das
feministas. [...] Só que me dedico mais a histórias femininas, na verdade, os meus
personagens principais são sempre mulheres. (RODA VIVA)

Por que essa rejeição? Ou talvez devêssemos perguntar: qual feminismo ela rejeitava?
E mais: Como analisar suas personagens senão por uma ótica feminista?
Rachel de Queiroz já havia lançado quatro romances e uma série de crônicas quando
surgiu a terceira onda do feminismo, influenciada pelas ideias de Simone de Beauvoir, a partir
dos anos de 1960. As norte-americanas foram as pioneiras no que passou a ser denominado de
“feminismo radical”. Manifestações, marchas, protestos, sabotagens, desobediência civil:
ações simbólicas e extremamente subversivas que logo ganharam adeptas em todo o mundo.
“Queriam trazer à luz todos os mecanismos que ajudavam a manter a opressão feminina e que
continuavam ocultos”, afirma, Carla Garcia (2011: p.88), socióloga e escritora.
As conquistas desse período são indiscutíveis, entretanto, discordâncias internas
trouxeram à tona fragilidades. A maior delas foi perceber que era impossível negar a
diversidade das mulheres. Classe, cor, lesbianismo, tornaram-se polêmicas que provocaram a
divisão do movimento em dois: de um lado estavam as “políticas”, do outro as “feministas”.
As “políticas”, ligadas aos movimentos de esquerda, acreditavam que a opressão
feminina, assim como todas as outras formas de opressão, derivavam do capitalismo. Já as
“feministas” eram contra a “subordinação à esquerda”, pois eram homens que estavam à
frente, exercendo papéis de liderança. Segundo Garcia, havia entre as “políticas” um certo
receio de que os companheiros homens, detentores do poder simbólico e real, “interpretassem
um movimento só de mulheres como reacionário e liberal” (2011: p.92), o que foi

190
Referência a música de Caetano Veloso, Dom de iludir (1986).

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540

determinante para a separação definitiva entre os movimentos femininos, e então, “o nome


feminismo radical passou a designar os grupos e as posições teóricas das ‘feministas’”
(ibidem).
Sendo Rachel de Queiroz membro do partido comunista, depois assumindo-se
trotskista, somos levados a acreditar que ela negava esse feminismo radical e, de alguma
maneira, talvez pudéssemos incluí-la no que hoje conhecemos como “feminismo da
diferença”, teoria que se iniciava na Europa – França e Itália – nos anos de 1980 e chegaria ao
Brasil mais tarde.
Essa nova teoria pregava que a diferença não significava desigualdade e reivindicava a
igualdade entre homens e mulheres. “Suas militantes protagonizaram duros enfrentamentos
com o ‘feminismo’, alguns tão fortes como participar de manifestações com panfletos ‘Fora o
feminismo’” (GARCIA, 2011: p.98)
Quando Rachel afirma que “a associação mulher e homem é muito boa e acho um
grande erro combater o homem” ela se aproxima da proposta das feministas que surgiriam
mais tarde, e que acreditavam na diferença sem desigualdade, reconciliando homens e
mulheres. “Eu acho o feminismo um movimento mal orientado. Por isso sempre tomei
providências para não servir de estandarte para ele.” (QUEIROZ apud IMS, 1997: p.26)
Como afirma Rosiska Darcy de Oliveira, escritora e jornalista, nos últimos anos do
século XX, as feministas começaram a demonstrar orgulho, ao invés de rancor, ressaltando a
diferença entre os sexos. Anunciavam que “as mulheres não são inferiores aos homens mas
também não são iguais a eles e que essa diferença, longe de representar uma desvantagem,
contém um potencial enriquecedor de crítica da cultura” (1992: p.71).
Beneficiar-se desse potencial é romper barreiras e adentrar um mundo antes permitido
apenas aos homens. E Rachel soube fazer isso muito bem. Na vida real e ficcional.

Podem escandalizar-se os sociólogos e toda gente mais: para o século XXI, eu


prevejo a vitória social das mulheres. As mulheres deixarão de ser o elemento
secundário na sociedade e na família para assumir a vanguarda de todos os atos e de
todos os acontecimentos. (…) Como já salientei, tudo indica essa evolução
sensacional: as mulheres penetrando em todos os setores da atividade masculina.
(…) E eu só queria viver mais 100 anos para ver a reabilitação definitiva das
mulheres, tão certo como 3 e 3 são 6. (QUEIROZ apud HOLLANDA, 2006)

Suas personagens impunham, de certa forma, essa reabilitação. Dôra, por exemplo, à
sua maneira, rebela-se a todo momento contra sua condição. Questiona seu nome, ignora a

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mãe, acolhe um andarilho, não veste-se de viúva, torna-se atriz mambembe, amasia-se. “O
que meu coração pedia era conhecer o mundo”. (QUEIROZ, 2014: p.114)
A própria Rachel admitia o poder de suas criações. “Minhas mulheres são danadas não
são?”, disse a autora em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira
Salles (1997: p.26).
Dôra, não obstante suas dores, transgrediu as regras. Desde as pequenas convenções,
como recusar-se a pedir a bênção da mãe ou a ser chamada de sinhazinha, até as decisões
mais importantes, escolhas que mudaram para sempre sua vida: “O meu é onde eu disser que
é meu.” (QUEIROZ, 2014: p.69)
Dessa forma, mesmo não se filiando à causa feminista, sua escrita e sua postura diante
do mundo nos convidam a fazer uma leitura feminista de suas obras, identificando nelas
denúncia da sociedade patriarcal e diferentes formas de resistência da mulher contra essa
sociedade.
Nunca participei de nenhum movimento feminista. Acompanho com muito interesse
todas estas transformações. Quando falo que não sou feminista é porque sempre
estive em defesa da liberdade humana, de um modo geral, sem me deter a este ou
aquele grupo. [...] Antes, os maridos tinham poderes absurdos em relação às
mulheres, podiam até matar em nome da legítima defesa da honra. Hoje, a sociedade
não aceita esses excessos. É bom que não aceite. Não sou feminista. Acho que o
homem e a mulher possuem naturezas distintas. Mas nunca concordei com excessos,
principalmente os que tolhem a liberdade individual, seja do homem, da mulher, de
quem for. (QUEIROZ apud NERY: 2002, p.48)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rachel de Queiroz foi pioneira ao desbravar um universo permitido apenas aos


homens. É com ela “na prosa da ficção, que a fala da mulher ingressou no campo social,
abandonando os salões de chá para narrar a áspera tragédia da seca nordestina.” (BARROSO,
2008, p. 46)
Não é a seca, mas a mulher que se destaca em sua narrativa. Rachel escreve sobre
mulher, fala sobre mulher, dá voz, poder, protagonismo à mulher em todos os seus romances.
“O approach do José Lins era de menino do engenho, de senhor do engenho. O meu nunca foi
o da sinhazinha. É o da mulher totalmente integrada na vida nordestina. [...] Realmente, meu
angulo é feminino, é pessoal.” (QUEIROZ apud HOLLANDA, 2016)
E é aí, sobretudo, que Rachel de Queiroz torna-se interessante à crítica feminista.
Resgatar a autoria feminina sob a perspectiva da crítica feminista continua sendo fundamental

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542

para uma possível correção de toda uma história de exclusão da mulher/escritora e o seu
merecido reconhecimento enquanto produtora ativa de conhecimento e cultura.
A Desconstrução matou o autor, dando ao leitor toda a responsabilidade sobre a obra.
Mas para os estudos de gênero é preciso sim ressaltar a autoria, particularmente a autoria
feminina, dando voz e visibilidade a quem nunca as teve. “Ler um texto com seu gênero [...] é
reivindicar para o texto a presença de sujeitos sociais nos dois polos: na produção e na
recepção.” (BARBOSA, 2011: p.93)
Nesse trabalho iniciamos uma discussão, sobre Rachel e Dôra, criadora e criatura, que
pretendemos continuar, pois ainda há muito o que se explorar dessa obra literária que a autora
considera como a melhor que escreveu e, também há muito do que se absorver dessa escritora
de extrema importância para a literatura brasileira e, sobretudo, para a literatura de autoria
feminina, buscando, por meio de pistas deixadas em seus escritos, um pouco da sua
escrevivência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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UESB, 2011.

BARROSO, Maria Alice. A mulher na literatura brasileira. In: Seminário de Literatura


Brasileira – ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. Disponível em
http://www.poscritica.uneb.br/revistaponti/arquivos/volume2-n1/vol2n1-204-216.pdf. Acesso
em: 05/09/2016.

CANDIDO, Antônio, et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.

EVARISTO, Conceição. “Escrevivência”: a escrita que nasce da vivência. Revista


Conexão Literatura, 2017, nº 24, p. 5-10, junho de 2017. Entrevista concedida a Ademir
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Queiroz. Setembro de 1997. Número 4.

NERY, Hermes Rodrigues. Presença de Rachel: conversas informais com a escritora


Rachel de Queiroz. Ribeirão Preto, SP: FUNPEC-Editora, 2002.

QUEIROZ, Rachel de. Dôra, Doralina. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014.

QUEIROZ, Rachel de. Roda Viva. TV Cultura, São Paulo: 01/07/1991. Disponível em:
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/407/entrevistados/rachel_de_queiroz_1991.htm.
Acesso em 02/04/2017.

QUEIROZ, Rachel de & QUEIROZ, Maria Luiza de. Tantos Anos. Rio de Janeiro: José
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Brasiliense, 1992.

SCHMIDT, Rita Therezinha. Recortes de uma história: a construção de um fazer/saber.


In: RAMALHO, Christina (org.). Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões
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544

A CONSTRUÇÃO DE BERTOLEZA DE O CORTIÇO A PARTIR DAS


INTERSECCIONALIDADES DE RAÇA, GÊNERO E CLASSE

Ms. Gabriela de Sousa Costa (Doutoranda- UFC)


E-mail: gabrielacosta.letras@gmail.com

Introdução

A estética realista-naturalista tem seu marco inicial no Brasil a partir da publicação de


O Mulato- obra de transição entre a escola romântica e essa nova vertente - de Aluísio
Azevedo em 1881. Entretanto, a obra considerada pela crítica como sua melhor expressão do
realismo-nauralismo - tanto pela temática, como pela construção estética- é O Cortiço (1890)
(CASTELLO, 1953).

O Cortiço (1890) traz a moradia popular e o crescimento populacional como ponto de


partida para a construção da narrativa. É nesse lugar, ainda hoje estigmatizado191, em que os
personagens são construídos, segundo Castello (1953) como indivíduos assujeitados e
vencidos pelo meio social em que estão inseridos.

A partir das influências do romance naturalista e experimental de Émile Zola, que as


obras realistas-naturalistas, ainda hoje, são vistas essencialmente como

Uma transposição direta da realidade, como se o escritor conseguisse ficar diante


dela na situação de puro sujeito em face do objeto puro, registrando (teoricamente
sem interferência de outro texto) as noções e impressões que iriam constituir o seu
próprio texto (CÂNDIDO, 1991, p.111).

Desta forma, os personagens e situações levantadas dentro dessas narrativas são


percebidas em uma relação direta com a realidade empírica, construindo, assim, para a
sociedade determinados significados e representações sobre classes sociais, etnias, raças e
relações de gêneros. Essas representações, na maioria das vezes, não rompem com discursos
hegemônicos-normativos, mas os enaltecem a medida que (re)constroem perjortivamente ou
de maneira esteriotipada a imagem de grupos marginalizados de nossa sociedade.

Tendo como argumentação as observações laboratoriais de determinados grupos ou


espaços sociais como um processo precedente à escrita realista-naturalista-, cria-se a
concepção que essas representações construídas são, ideológica e politicamente, neutras.

191
Digo hoje porque os cortiços ainda existem sobre outras configurações: vilas, comunidades, morros, etc.

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545

Contudo, conceber a linguagem a partir dos estudos bakhtinianos, nos permite compreender a
natureza conflituosa da linguagem. Isso porque, segundo essa percepção, a palavra servirá de
arena “para o choque e o cruzamento de acentos sociais diferentemente orientados”
(VOLOCHÍNOV apud CLARK, 2004, p. 240), sendo, assim, a arena da luta de classes. O
filósofo nos esclarece que a palavra vista como monovalente ou desvinculadas dos índices de
valor ou disputas nela travada é uma forma da classe dominante de ocultar a importância de
seu caráter ideológico (BAKHTIN, 2004).

Partindo dessa concepção de linguagem, que esse artigo se propõe analisar a


construção da personagem Bertoleza em O Cortiço de Aluísio Azevedo (1890). Colocá-la no
foco das análises é uma busca por fazer emergir vozes não hegemônicas na composição dos
estudos literários, sobretudo, a voz ou o silenciamento de uma mulher negra, pobre e
escravizada192. A medida que descobrimos quem é essa personagem, compreendemos e como
ela como as categorias de raça, gênero e classe e suas discriminações interseccionais
(CRENSHAW, 2002) atravessam sua constituição identitária, como deixam marcas em sua
trajetória de vida, nas suas interações sociais e exclusão social.

Interseccionalidade de gênero, raça e classe

Na busca pela compreensão da constituição da personagem estudada, torna-se


necessário trazermos a discussão da discriminação interseccional ou interseccionalidade
proposta por Crenshaw (2002). Isto porque, para pensarmos como Bertoleza nos é apresenta
na obra, devemos compreender os cruzamentos de categorias sociais - de gênero, raça e
classe- que atravessam sua identidade e como essas legitimam a discriminação sofrida por ela
dentro da narrativa e na maneira como é descrita por Aluísio Azevedo.

Crenshaw (2002), tendo como ponto de partida situações de racismo e discriminação


de gênero as quais vivenciou, questiona as discussões sobre a violação dos direitos humanos,
que muitas vezes, percebem certas circunstâncias a partir de relações raciais ou a partir das
relações de gênero. Entretanto, a autora nos esclarece que esses elementos não são
excludentes nos atos discriminatórios e que:

192
Utilizarei o termo escravizada pois termo escravo traz significações naturalizadoras para essa condição a qual
os negros eram submetidos, tirando o poder assim de agência dos escravocratas.

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546

Um dos problemas é que as visões de discriminação racial e de gênero partem do


princípio de que estamos falando de categorias diferentes de pessoas. A visão
tradicional afirma: a discriminação de gênero diz respeito às mulheres e a racial diz
respeito à raça e à etnicidade. Assim como a discriminação de classe diz respeito
apenas a pessoas pobres. Há também outras categorias de discriminação: em função
de uma deficiência, da idade, etc. A intersecionalidade sugere que, na verdade, nem
sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos
(CRESHAW, 2002, p.9)

Destarte, as discriminações sofridas, são vivenciadas de forma diferentes entre homens


e mulheres, entre pessoas de nacionalidades diferentes, por exemplo, pois são formas
discriminatórias divergentes que se combinam, “criando complexas conexões onde se juntam
dois, três ou mais elementos” (LANGA, 2016, p. 343).

Quijano (2009), por mais que não utilize o termo interseccionalidade, vai ao encontro
dessa perspectiva a pensar que a colonialidade do poder como “o entrelaçamento- já que não
podem ser concebidas separadamente- das múltiplas hierarquias de dominação sexual, étnica-
racial, de gênero, epistêmica, econômica, religiosa, linguística dos povos europeus sobre os
não-europeus” (COSTA, 2014, p. 46). Logo, essas múltiplas discriminações que se
sobrepõem regulam as relações sociais e de poder, assim como a produção do conhecimento.

A medida que analisamos Bertoleza a discriminação interseccional de raça, gênero e


classe ou formas hierárquicas de discriminação emergem nas situações de interação com
outros personagens, como veremos nos próximos tópicos. Sua condição de mulher negra,
pobre e escravizada faz com que sua vivência e posição social dentro da narrativa seja
diferente de outros personagens negros, como por exemplo, Firmo ou de personagens brancos
como Jerônimo e João Romão.

A construção do personagem no romance: por uma “epistemologia do sul”

Ao abordar a construção do personagem na literatura, Rosenfeld (2014) acredita que é


“a personagem que com maior nitidez torna patente a ficção” (p.21). O autor explica que
alguns romances podem ser confundidos no primeiro momento com uma carta, um diário ou
com obras históricas, entretanto é com o nascimento de um ser humano (ou ser humanizado,
antropomórfico) que o caráter fictício do texto se torna evidente. Ou seja, é a partir do
momento que o narrador se identifica com o personagem, trazendo sua perspectiva ou se
colocando dentro dele que o caráter fictício da obra nos salta aos olhos.

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547

De certo, se um historiador, por exemplo, passa a narrar alguém ao invés de narrar


sobre alguém, conhecendo sua intimidade de dentro, como nos esclarece o autor supracitado,
esse pesquisador sofrerá a pena de transformar a pessoa em personagem. Logo, segundo os
autores apresentados, pensar na construção de personagens na literatura não é o mesmo que
refletir sobre a construção de pessoas reais.
A construção do personagem se faz diferente de pessoas reais à medida que surge na e
pela palavra, nascendo, consequentemente, de uma construção esquemática do autor, tanto o
que se refere a sua forma física como psíquica. É apenas na ficção que se pode dizer que os
seres humanos se tornam “transparente”, ou seja, podemos conhecê-los a fundo, sua
intimidade, seus pensamentos (ROSENFELD, p. 35). Isto se torna possível por se
desenvolverem a partir de uma construção verbal, havendo, consequentemente, limitações de
possibilidades de interpretação desses personagens, mesmo quando o autor tem um empenho
na construção estética no sentido de tornar possível a leitura dele- personagem- sobre diversas
perspectivas. Contudo, até as variações de possibilidades são construídas com o
direcionamento que o escritor dar ao nosso olhar para determinados aspectos os quais foram
selecionados sobre o personagem, seja da aparência física, de comportamento ou de
pensamentos.
Indo ao encontro dessa perspectiva, Candido (2014), ao discutir a construção da
personagem, afirma que “no romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida
pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na
vida, o conhecimento do outro” (p.58). Porém, não significa que o personagem seja menos
profundo que uma pessoa real, mas que a sua profundidade está visível aos nossos olhos a
partir do texto que o autor nos oferece. Algumas vezes, a criação literária é tão bem elaborada
que chega a nos dar a impressão de que o personagem construído é um ser ilimitado,
contraditório, infinito na sua riqueza, entretanto ao fazermos uma análise mais profunda
compreendemos que, ainda assim, trata-se de um todo coeso e lógico, diferentemente, das
pessoas reais (CANDIDO, 2014).
Os autores supracitados apesar da preocupação em separar a constituição de
personagens e pessoas reais, admitem as relações que essas estatelem entre si, e que “a
personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo” (ibid, p.65).
Contudo, essa relação não é por eles analisadas mais profundamente, tonando-se,
assim, insuficiente basearmos nosso estudo apenas a luz desse debate. Principalmente, porque

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548

os grandes críticos e teóricos literários em suas investigações vêm, ao longo dos anos,
negligenciando as significações e representações que emergem dessa relação e as ideologias
que as atravessam.
Contrariamente a isso, a partir da perspectiva da ecologia dos saberes, proposta por
Santos Sousa (2006), que ao considerar a diversidade epistemológica e recusar uma
epistemologia hegemônica, traz para os campos dos estudos sociais outras vozes e outros
saberes que foram excluídos historicamente. O autor reconhece as contribuições para inclusão
dessas vozes por “perspectivas feministas, pós-coloniais, multiculturais e pragmáticas” (apud
GOMES, 2009, p.419) ao procurarem traçar uma linha epistemológica alternativa entre a
ciência convencional e outros saberes.
Pensar em uma epistemologia alternativa à ciência moderna que leve em consideração
outros saberes, também se trata de questionar a neutralidade da ciência, que historicamente foi
vista como objetiva e “imparcial”, segundo Gomes (2009). Desta maneira, ela defende que
toda investigação não é neutra e tem relação com o contexto histórico, social e cultural em
que está inserida.
Nessa mesma perspectiva caminha Rajagopalan (2006) ao criticar a posição da
Linguística que, assim como as outras ciências, está deixando em segundo plano ou
complemente esquecidas questões essenciais para a práxis, como a discussão sobre política e
ética. Isso porque, essa discussão envolve valores, indo de encontro com a visão “canonizada”
de ciência como aquela que lida com fatos, ou seja, valores e fatos não se misturam.
Rajagopalan (2006) apresenta como exemplo desse tipo de “fazer ciência” o linguista
Bloomfield, que durante as suas pesquisas com nativos de uma determinada região, não
levava em consideração as intervenções feitas por eles sobre linguagem, isso por considerá-las
leigas, superstição e sem fundamento científico. Logo, os 50 nativos eram percebidos apenas
como “objeto” de estudo, mas não como sujeitos capazes de terem e produzirem
conhecimento.
É nesse contexto de relação desigual de epistemologias hegemônicas e contra
hegemônicas que os intelectuais negros e negras, gays, lésbicas e travestis, sobretudo
brasileiros, estão inseridos. Então, compreender a perspectiva da ecologia dos saberes é
essencial para podemos entender os desafios, as lutas e conquistas desses intelectuais.
Atualmente, a questão racial vem encontrando mais lugar nas discussões acadêmicas. Gomes
(2009, 2008) esclarece que isso não é só resultado do olhar da ciência que começou a se

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renovar, mas sim da pressão dos movimentos sociais e de seus sujeitos (negros, negras,
indígenas, mulheres, homossexuais, lésbicas e travestis) sobre o campo de produção
científica.
Desta maneira, aos poucos esses sujeitos começaram a se inserir nas universidades,
consequentemente, nas discussões acadêmicas como pesquisadores e pesquisadoras com uma
nova maneira de ver e produzir conhecimento. São intelectuais que “tem como objetivo dar
visibilidade a subjetividades, desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a
determinados grupos sócio-raciais e suas vivências” (GOMES, 2009, p. 421).
Apesar dessa mudança na forma que se perceber a construção do conhecimento
científico em algumas áreas do conhecimento, assim como a percepção da necessidade de
inclusão no cenário acadêmico de outras vozes, vozes marginalizadas ou as “vozes do Sul”
(SANTOS, 2000), o mesmo não acontece nos textos e estudos literários. Há uma resistência,
ao se “apagarem a defesa de que a arte é universal” (EVARISTO, 2009), deixando submerso
questões essenciais a práxis.
Indo de encontro com essa realidade, a pesquisa desenvolvida por Dalcastagnè (2011)
sobre o romance brasileiro contemporâneo traz uma reflexão importante para pensarmos essas
questões e questionarmos como as narrativas literárias estão reafirmando posições
hegemônicas e intensificando posicionamentos discriminatórios para com as minorias.
Ao analisar a construção de personagens em 258 romances, publicados de 1990 a
2004, em três grandes editoras brasileiras, totalizando um número de 1.245 personagens,
quase 80% eram brancos, na maioria das vezes, ocupavam papéis secundários e suas
“ocupações” normalmente não eram de prestígio: empregado doméstico (12,2%),
bandido/delinquente (20%) ou escravo (9,2).
Desses números e alguns outros apresentados pela autora, conclui-se que a literatura
produzida no Brasil é branca, masculina e heterossexual, ou seja, não contempla as vozes
sociais emergentes de diversos grupos sociais existentes em nossa sociedade. Os sujeitos não
se reconhecem nem nas cores de peles dos personagens, nem nas tramas e inquietações
apresentadas.
Quando esses sujeitos são contemplados nos textos literários, são construídos a partir
de inúmeros estereotípicos, segundo Evaristo (2009). Nesse cenário surge Gregório de Matos
com a erotização do corpo da mulher negra – imagem ainda muito perpetuada na atualidade,
Josué Montello com o desejo de branqueamento da sociedade brasileira, até mesmo o próprio

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Aluísio Azevedo com a imagem da mulher negra erótica, sensual e “destruidora de lares” –
como é o caso de Rita Baiana, e com Bertloza uma mulher escrava, “burro de carga”,
animalizada.
A partir dessa necessidade de se pensar o texto literário sob uma perspectiva crítica e
de se considerar esses personagens, por muitos, silenciados, animalizados e estereotipados
que nos colocamos diante de Bertoleza e de suas circunstâncias.

Bertoleza: um sonho de alforria

A personagem ao longo da história tem aparições rápidas ou menções à ela durante


algumas passagens, isso nos evidência um pouco as questões descritas por Evaristo (2009) e
Dalcastagnè (2011) sobre a posição dos personagens negros dentro dos romances. Entretanto,
é interessante ressaltar que Bertoleza tem seus maiores momentos de tensão no início da
história e ao final, assim, ela é responsável por abrir e encerrar a narrativa.

O romance se inicia contando sobre a vida que levava João Romão, seu desespero para
enriquecer e de como seu destino cruzou com de Bertoleza. Logo na primeira página, ela é
descrita:

Crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada


com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade[...]
Trabalhava forte e pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês e apesar
disso, tinha quase o necessário para a alforria (AZEVEDO, 2016, p.11, grifo nosso)

Essa descrição nos faz indagar algumas hipóteses importantes para compreendermos
essa mulher que vai sendo tecida nas palavras de Azevedo. A primeira, quanto a utilização do
termo crioula ao invés de negra ou preta – muito comum na época-Teles dos Santos nos
esclarece que nesse período o termo:

Se tratava do escravo que nascia em casa do senhor, significando também o animal,


cria, que nascia “em nosso poder” Termo que trazia uma ambiguidade tanto de cor
quanto do nascimento local. [...] Entretanto, trata-se menos de uma exclusividade do
escravo nacional, e mais um designo social de cor. (2016, p.11)

Desse modo, percebe-se que o termo se encaixa muito bem para a forma em que ela
será constituída na narrativa: não apenas como uma escrava que sempre foi domínio de um
senhor, mas também esse animal, essa cria que nasceu já no poder de um outro. Essa imagem
de Bertoleza como cria ou animal é muito presente na narrativa, desde suas primeiras
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aparições ao ser descrita como alguém que trabalha forte - como um animal de sol a sol, que
não tem o poder das palavras – detentora de uma não-linguagem, até o momento de sua morte
“esfocinhando moribunda numa lameira de sangue” (p. 306).
Outra coisa que pode ressaltar da descrição de Bertoleza, é a construção, assim como
Josué Montello, do desejo de branqueamento da sociedade ao mostrar as relações da
personagem sempre com homens brancos e de origem portuguesa: primeiro com um
português que não é mencionado o nome e depois com João Romão. Esta ideia de fascínio do
negro pelo português ou do escravizado pelo seu senhor branco é sempre retomada nas
narrativas literárias, construindo uma idealização de imagem - branca- a ser alcançada pelo
negro.
Contudo, essa aproximação deve ser mantida até certo ponto e sempre questionada,
como é o caso de Bertoleza e João Romão, que mesmo vivendo e até dormindo várias vezes
juntos, ela jamais é descrita como companheira dele, mas sempre como amante ou amigada193
Nesse contexto, podemos citar Pacheco (2013) que fala da solidão das mulheres
negras em nossa sociedade que muitas vezes são usadas como flerte rápido, momentos de
envolvimento sexual, mas não amoroso ou afetivo. Assim, retomamos o envolvimento de
João Romão e Bertoleza que se tratava mais de uma extensão ou obrigação da personagem
com seu patrão, do que um relacionamento afetivo.
Como vimos anteriormente, desde o início do romance, Bertoleza trabalhava para
pagar sua carta de alforria, porém nunca alcança esse objetivo tão duro. Souza (2014) acredita
que esse caminho tortuoso era praticamente impossível de se concluir e “por isso, a
manumissão194 funcionava como instrumento ideológico. A expectativa da liberdade
favorecia o senhor no controle e na manutenção de uma mão de obra ordeira, obediente e
morigerada, engajada na obtenção de pecúlio para a tão sonhada alforria” (p.106). E mesmo
que o escravizado tivesse o dinheiro necessário, era preciso a efetivação por parte do
proprietário.
Logo, percebe-se que esse sonho atravessa a vida de Bertoleza, suas ações de trabalho
intenso e seu comportamento diante das situações. Sabendo disso, João Romão com o intuito
de garantir a força de trabalho dela e se apropriar das economias juntadas ao longo de muitos
anos, ele forja uma carta ou manumissão com um selo oficial de uma carta roubada de uma
forro e alega o consentimento de seu proprietário. Deste dia em diante, Bertoleza trabalha
193
Nos termos de hoje, seria aqueles que vivem juntos “amancebados” na expressão popular.
194
Alforria legal de um escravizado.

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ainda mais, agora não mais pelo desejo de alforria, mas pela gratidão por João Romão ser o
intermediador dessa conquista
.
Bertoleza: um problema mudo

Após João Romão conseguir construir o cortiço, se relacionar com pessoas


importantes e ascender socialmente, Bertoleza não se faz mais necessária em sua vida, ele não
poderia ter sua imagem associada a de uma “preta imunda”, como encontrar uma solução para
aquele problema? Nesse momento, ele começa a imaginar inúmeras formas de matá-la ou
mandá-la para longe, tudo nela começa a incomodá-lo: o cheiro, o jeito que ela dormia, ele
começa a vê-la semelhante a um animal intruso.
No momento em que Bertoleza se torna descartável, os termos utilizados para
descrevê-la transformam-se, antes crioula, agora preta imunda, negra, nódoa, mancha negra.
A própria personagem começa a tomar consciência dessa nova situação diante da trama:

Estranhava a transformação do amigo. Ele mal se chegava para ela, e quando o fazia,
era com tal repugnância, que antes não fizesse. [...] Chorava em segredo, sem ânimo
de reclamar seus direitos. Na sua condição de animal de trabalho, já não era amor
o que a mísera desejava, era somente confiança no amparo de sua velhice, quando
de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. [...] Escondia-se de todos [...]
envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste por ser quem
era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade
brilhante e clara. No entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional
das caboclas do Amazonas pelo branco que a escravizam” (AZEVEDO, 2016, p.
244)

Morais Silva (apud Teles, 2013) nos esclarece que a terminologia negro tratava-se não
apenas do homem preto forro ou cativo, mas o indivíduo desgraçado, triste e infausto.
Justamente, nesse momento de mudança terminológica na narrativa que a desgraça, tristeza e
infelicidade de Bertoleza começa a emergir não apenas nos acontecimentos, mas nos próprios
sentimentos da personagem.
A partir da tomada de consciência como essa nódoa na branquitude de João Romão
que ela é ainda mais destituída da fala “gesticulava e mexia com os lábios, monologando, sem
pronunciar as palavras. Parecia indiferente a tudo, a tudo que a cercava” (ibid, p. 245). 195

195
Evaristo (2009) analisa em seu texto uma lista de obras, inclusive cita O Cortiço, em que os personagens
negros são destituídos desse poder de fala, transformando-os em algo mais próximo de animais.

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Agenciamento e morte

Bertoleza presencia na espreita uma conversa de João Romão sobre o possível


casamento dele com filha de Miranda, mas Botello o aconselha a encontrar logo uma maneira
de se livrar da crioula, pois ela poderia arruinar seus planos. Nesse momento, Bertoleza ganha
um poder de fala, de agenciamento diante da situação e se coloca:

Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você
precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e agüentar a sua casa
com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais
nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda!
Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em
que meti muito suor do meu rosto?... Quer casar, espere então que eu feche
primeiro os olhos; não seja ingrato!

Percebe-se que Bertoleza tem consciência de tudo que fez por João Romão e se impõe
como a mulher que teve o corpo usado não apenas para os serviços domésticos, mas para
atividades sexuais. Concretiza-se aqui a discussão de Pacheco (2013) sobre a solidão da
mulher negra, vista não como aquela digna de casar e ser “apresentada” para sociedade como
parte da família do homem branco, mas como um caso passageiro e ilícito, o qual pode ser
rompido a qualquer momento.
Bertoleza passa a ser cuidadosa com tudo que comia e bebia por medo de ser
envenenada; trancava-se ao se deitar por medo de ser morta enquanto dormia, entretanto o
golpe fatal sai de suas próprias mãos, mostrando, assim, o loucura e violência da mulher
negra, capaz de tudo, inclusive de se suicidar de forma tão brutal.
O desfecho de sua morte se inicia quando ela percebe a farsa de sua alforria ao chegar
os herdeiros de seu antigo senhor - agora já falecido - para reivindicar sua propriedade a João
Romão, o qual diz que pensou se tratar de uma negra forra e autoriza a entrada dos policiais
em sua residência. Nesse instante, Bertoleza rasga o ventre de um lado a outro com a faca que
utilizava para escamar peixe, e assim sua vida chega ao fim: em uma poça de sangue,
misturada com escamas e cheiro de peixe.

Conclusão

Ao analisarmos a personagem a partir das indagações e teorizações dos autores citados


ao longo do texto, compreendemos algumas motivações ideológicas que norteiam e nortearam

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as escolhas para a composição de Bertoleza, seja na utilização de terminologias ou adjetivos


específicos, seja das situações vivenciadas por ela.
Trazer a voz ou a “não-linguagem” apresentada por Aluísio Azevedo na construção
dessa mulher negra, escravizada e desprezada faz emergir no contexto contemporâneo não
apenas os debates sobre a posição no negro na literatura brasileira, como também a posição do
negro como o subalterno que não pode falar ou precisa de permissão para tal (SPIVAK,
2010).
Espera-se que as problematizações e questionamentos apresentados no decorrer de
nossa pesquisa possibilitem germinar novas inquietações diante de outras muitas Bertolezas
camufladas por trás da ascensão social de outros tantos Joões.

Referências

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556

A CONSTRUÇÃO DE BERTOLEZA DE O CORTIÇO A PARTIR DAS


INTERSECCIONALIDADES DE RAÇA, GÊNERO E CLASSE

Ms. Gabriela de Sousa Costa (Doutoranda- UFC)


E-mail: gabrielacosta.letras@gmail.com

Introdução

A estética realista-naturalista tem seu marco inicial no Brasil a partir da publicação de


O Mulato- obra de transição entre a escola romântica e essa nova vertente - de Aluísio
Azevedo em 1881. Entretanto, a obra considerada pela crítica como sua melhor expressão do
realismo-nauralismo - tanto pela temática, como pela construção estética- é O Cortiço (1890)
(CASTELLO, 1953).
O Cortiço (1890) traz a moradia popular e o crescimento populacional como ponto de
partida para a construção da narrativa. É nesse lugar, ainda hoje estigmatizado196, em que os
personagens são construídos, segundo Castello (1953) como indivíduos assujeitados e
vencidos pelo meio social em que estão inseridos.
A partir das influências do romance naturalista e experimental de Émile Zola, que as
obras realistas-naturalistas, ainda hoje, são vistas essencialmente como

Uma transposição direta da realidade, como se o escritor conseguisse ficar diante


dela na situação de puro sujeito em face do objeto puro, registrando (teoricamente
sem interferência de outro texto) as noções e impressões que iriam constituir o seu
próprio texto (CÂNDIDO, 1991, p.111).

Desta forma, os personagens e situações levantadas dentro dessas narrativas são


percebidas em uma relação direta com a realidade empírica, construindo, assim, para a
sociedade determinados significados e representações sobre classes sociais, etnias, raças e
relações de gêneros. Essas representações, na maioria das vezes, não rompem com discursos
hegemônicos-normativos, mas os enaltecem a medida que (re)constroem perjortivamente ou
de maneira esteriotipada a imagem de grupos marginalizados de nossa sociedade.
Tendo como argumentação as observações laboratoriais de determinados grupos ou
espaços sociais como um processo precedente à escrita realista-naturalista-, cria-se a
concepção que essas representações construídas são, ideológica e politicamente, neutras.
Contudo, conceber a linguagem a partir dos estudos bakhtinianos, nos permite compreender a

196
Digo hoje porque os cortiços ainda existem sobre outras configurações: vilas, comunidades, morros, etc.

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557

natureza conflituosa da linguagem. Isso porque, segundo essa percepção, a palavra servirá de
arena “para o choque e o cruzamento de acentos sociais diferentemente orientados”
(VOLOCHÍNOV apud CLARK, 2004, p. 240), sendo, assim, a arena da luta de classes. O
filósofo nos esclarece que a palavra vista como monovalente ou desvinculadas dos índices de
valor ou disputas nela travada é uma forma da classe dominante de ocultar a importância de
seu caráter ideológico (BAKHTIN, 2004).
Partindo dessa concepção de linguagem, que esse artigo se propõe analisar a
construção da personagem Bertoleza em O Cortiço de Aluísio Azevedo (1890). Colocá-la no
foco das análises é uma busca por fazer emergir vozes não hegemônicas na composição dos
estudos literários, sobretudo, a voz ou o silenciamento de uma mulher negra, pobre e
escravizada197. A medida que descobrimos quem é essa personagem, compreendemos e como
ela como as categorias de raça, gênero e classe e suas discriminações interseccionais
(CRENSHAW, 2002) atravessam sua constituição identitária, como deixam marcas em sua
trajetória de vida, nas suas interações sociais e exclusão social.

Interseccionalidade de gênero, raça e classe

Na busca pela compreensão da constituição da personagem estudada, torna-se


necessário trazermos a discussão da discriminação interseccional ou interseccionalidade
proposta por Crenshaw (2002). Isto porque, para pensarmos como Bertoleza nos é apresenta
na obra, devemos compreender os cruzamentos de categorias sociais - de gênero, raça e
classe- que atravessam sua identidade e como essas legitimam a discriminação sofrida por ela
dentro da narrativa e na maneira como é descrita por Aluísio Azevedo.
Crenshaw (2002), tendo como ponto de partida situações de racismo e discriminação
de gênero as quais vivenciou, questiona as discussões sobre a violação dos direitos humanos,
que muitas vezes, percebem certas circunstâncias a partir de relações raciais ou a partir das
relações de gênero. Entretanto, a autora nos esclarece que esses elementos não são
excludentes nos atos discriminatórios e que:

197
Utilizarei o termo escravizada pois termo escravo traz significações naturalizadoras para essa condição a qual
os negros eram submetidos, tirando o poder assim de agência dos escravocratas.

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558

Um dos problemas é que as visões de discriminação racial e de gênero partem do


princípio de que estamos falando de categorias diferentes de pessoas. A visão
tradicional afirma: a discriminação de gênero diz respeito às mulheres e a racial diz
respeito à raça e à etnicidade. Assim como a discriminação de classe diz respeito
apenas a pessoas pobres. Há também outras categorias de discriminação: em função
de uma deficiência, da idade, etc. A intersecionalidade sugere que, na verdade, nem
sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos
(CRESHAW, 2002, p.9)

Destarte, as discriminações sofridas, são vivenciadas de forma diferentes entre homens


e mulheres, entre pessoas de nacionalidades diferentes, por exemplo, pois são formas
discriminatórias divergentes que se combinam, “criando complexas conexões onde se juntam
dois, três ou mais elementos” (LANGA, 2016, p. 343).
Quijano (2009), por mais que não utilize o termo interseccionalidade, vai ao encontro
dessa perspectiva a pensar que a colonialidade do poder como “o entrelaçamento- já que não
podem ser concebidas separadamente- das múltiplas hierarquias de dominação sexual, étnica-
racial, de gênero, epistêmica, econômica, religiosa, linguística dos povos europeus sobre os
não-europeus” (COSTA, 2014, p. 46). Logo, essas múltiplas discriminações que se
sobrepõem regulam as relações sociais e de poder, assim como a produção do conhecimento.
A medida que analisamos Bertoleza a discriminação interseccional de raça, gênero e
classe ou formas hierárquicas de discriminação emergem nas situações de interação com
outros personagens, como veremos nos próximos tópicos. Sua condição de mulher negra,
pobre e escravizada faz com que sua vivência e posição social dentro da narrativa seja
diferente de outros personagens negros, como por exemplo, Firmo ou de personagens brancos
como Jerônimo e João Romão.

A construção do personagem no romance: por uma “epistemologia do sul”

Ao abordar a construção do personagem na literatura, Rosenfeld (2014) acredita que é


“a personagem que com maior nitidez torna patente a ficção” (p.21). O autor explica que
alguns romances podem ser confundidos no primeiro momento com uma carta, um diário ou
com obras históricas, entretanto é com o nascimento de um ser humano (ou ser humanizado,
antropomórfico) que o caráter fictício do texto se torna evidente. Ou seja, é a partir do
momento que o narrador se identifica com o personagem, trazendo sua perspectiva ou se
colocando dentro dele que o caráter fictício da obra nos salta aos olhos.

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559

De certo, se um historiador, por exemplo, passa a narrar alguém ao invés de narrar


sobre alguém, conhecendo sua intimidade de dentro, como nos esclarece o autor supracitado,
esse pesquisador sofrerá a pena de transformar a pessoa em personagem. Logo, segundo os
autores apresentados, pensar na construção de personagens na literatura não é o mesmo que
refletir sobre a construção de pessoas reais.
A construção do personagem se faz diferente de pessoas reais à medida que surge na e
pela palavra, nascendo, consequentemente, de uma construção esquemática do autor, tanto o
que se refere a sua forma física como psíquica. É apenas na ficção que se pode dizer que os
seres humanos se tornam “transparente”, ou seja, podemos conhecê-los a fundo, sua
intimidade, seus pensamentos (ROSENFELD, p. 35). Isto se torna possível por se
desenvolverem a partir de uma construção verbal, havendo, consequentemente, limitações de
possibilidades de interpretação desses personagens, mesmo quando o autor tem um empenho
na construção estética no sentido de tornar possível a leitura dele- personagem- sobre diversas
perspectivas. Contudo, até as variações de possibilidades são construídas com o
direcionamento que o escritor dar ao nosso olhar para determinados aspectos os quais foram
selecionados sobre o personagem, seja da aparência física, de comportamento ou de
pensamentos.
Indo ao encontro dessa perspectiva, Candido (2014), ao discutir a construção da
personagem, afirma que “no romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida
pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na
vida, o conhecimento do outro” (p.58). Porém, não significa que o personagem seja menos
profundo que uma pessoa real, mas que a sua profundidade está visível aos nossos olhos a
partir do texto que o autor nos oferece. Algumas vezes, a criação literária é tão bem elaborada
que chega a nos dar a impressão de que o personagem construído é um ser ilimitado,
contraditório, infinito na sua riqueza, entretanto ao fazermos uma análise mais profunda
compreendemos que, ainda assim, trata-se de um todo coeso e lógico, diferentemente, das
pessoas reais (CANDIDO, 2014).
Os autores supracitados apesar da preocupação em separar a constituição de
personagens e pessoas reais, admitem as relações que essas estatelem entre si, e que “a
personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo” (ibid, p.65).
Contudo, essa relação não é por eles analisadas mais profundamente, tonando-se,
assim, insuficiente basearmos nosso estudo apenas a luz desse debate. Principalmente, porque

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560

os grandes críticos e teóricos literários em suas investigações vêm, ao longo dos anos,
negligenciando as significações e representações que emergem dessa relação e as ideologias
que as atravessam.
Contrariamente a isso, a partir da perspectiva da ecologia dos saberes, proposta por
Santos Sousa (2006), que ao considerar a diversidade epistemológica e recusar uma
epistemologia hegemônica, traz para os campos dos estudos sociais outras vozes e outros
saberes que foram excluídos historicamente. O autor reconhece as contribuições para inclusão
dessas vozes por “perspectivas feministas, pós-coloniais, multiculturais e pragmáticas” (apud
GOMES, 2009, p.419) ao procurarem traçar uma linha epistemológica alternativa entre a
ciência convencional e outros saberes.
Pensar em uma epistemologia alternativa à ciência moderna que leve em consideração
outros saberes, também se trata de questionar a neutralidade da ciência, que historicamente foi
vista como objetiva e “imparcial”, segundo Gomes (2009). Desta maneira, ela defende que
toda investigação não é neutra e tem relação com o contexto histórico, social e cultural em
que está inserida.
Nessa mesma perspectiva caminha Rajagopalan (2006) ao criticar a posição da
Linguística que, assim como as outras ciências, está deixando em segundo plano ou
complemente esquecidas questões essenciais para a práxis, como a discussão sobre política e
ética. Isso porque, essa discussão envolve valores, indo de encontro com a visão “canonizada”
de ciência como aquela que lida com fatos, ou seja, valores e fatos não se misturam.
Rajagopalan (2006) apresenta como exemplo desse tipo de “fazer ciência” o linguista
Bloomfield, que durante as suas pesquisas com nativos de uma determinada região, não
levava em consideração as intervenções feitas por eles sobre linguagem, isso por considerá-las
leigas, superstição e sem fundamento científico. Logo, os 50 nativos eram percebidos apenas
como “objeto” de estudo, mas não como sujeitos capazes de terem e produzirem
conhecimento.
É nesse contexto de relação desigual de epistemologias hegemônicas e contra
hegemônicas que os intelectuais negros e negras, gays, lésbicas e travestis, sobretudo
brasileiros, estão inseridos. Então, compreender a perspectiva da ecologia dos saberes é
essencial para podemos entender os desafios, as lutas e conquistas desses intelectuais.
Atualmente, a questão racial vem encontrando mais lugar nas discussões acadêmicas. Gomes
(2009, 2008) esclarece que isso não é só resultado do olhar da ciência que começou a se

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561

renovar, mas sim da pressão dos movimentos sociais e de seus sujeitos (negros, negras,
indígenas, mulheres, homossexuais, lésbicas e travestis) sobre o campo de produção
científica.
Desta maneira, aos poucos esses sujeitos começaram a se inserir nas universidades,
consequentemente, nas discussões acadêmicas como pesquisadores e pesquisadoras com uma
nova maneira de ver e produzir conhecimento. São intelectuais que “tem como objetivo dar
visibilidade a subjetividades, desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a
determinados grupos sócio-raciais e suas vivências” (GOMES, 2009, p. 421).
Apesar dessa mudança na forma que se perceber a construção do conhecimento
científico em algumas áreas do conhecimento, assim como a percepção da necessidade de
inclusão no cenário acadêmico de outras vozes, vozes marginalizadas ou as “vozes do Sul”
(SANTOS, 2000), o mesmo não acontece nos textos e estudos literários. Há uma resistência,
ao se “apagarem a defesa de que a arte é universal” (EVARISTO, 2009), deixando submerso
questões essenciais a práxis.
Indo de encontro com essa realidade, a pesquisa desenvolvida por Dalcastagnè (2011)
sobre o romance brasileiro contemporâneo traz uma reflexão importante para pensarmos essas
questões e questionarmos como as narrativas literárias estão reafirmando posições
hegemônicas e intensificando posicionamentos discriminatórios para com as minorias.
Ao analisar a construção de personagens em 258 romances, publicados de 1990 a
2004, em três grandes editoras brasileiras, totalizando um número de 1.245 personagens,
quase 80% eram brancos, na maioria das vezes, ocupavam papéis secundários e suas
“ocupações” normalmente não eram de prestígio: empregado doméstico (12,2%),
bandido/delinquente (20%) ou escravo (9,2).
Desses números e alguns outros apresentados pela autora, conclui-se que a literatura
produzida no Brasil é branca, masculina e heterossexual, ou seja, não contempla as vozes
sociais emergentes de diversos grupos sociais existentes em nossa sociedade. Os sujeitos não
se reconhecem nem nas cores de peles dos personagens, nem nas tramas e inquietações
apresentadas.
Quando esses sujeitos são contemplados nos textos literários, são construídos a partir
de inúmeros estereotípicos, segundo Evaristo (2009). Nesse cenário surge Gregório de Matos
com a erotização do corpo da mulher negra – imagem ainda muito perpetuada na atualidade,
Josué Montello com o desejo de branqueamento da sociedade brasileira, até mesmo o próprio

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Aluísio Azevedo com a imagem da mulher negra erótica, sensual e “destruidora de lares” –
como é o caso de Rita Baiana, e com Bertloza uma mulher escrava, “burro de carga”,
animalizada.
A partir dessa necessidade de se pensar o texto literário sob uma perspectiva crítica e
de se considerar esses personagens, por muitos, silenciados, animalizados e estereotipados
que nos colocamos diante de Bertoleza e de suas circunstâncias.

Bertoleza: um sonho de alforria

A personagem ao longo da história tem aparições rápidas ou menções à ela durante


algumas passagens, isso nos evidência um pouco as questões descritas por Evaristo (2009) e
Dalcastagnè (2011) sobre a posição dos personagens negros dentro dos romances. Entretanto,
é interessante ressaltar que Bertoleza tem seus maiores momentos de tensão no início da
história e ao final, assim, ela é responsável por abrir e encerrar a narrativa.
O romance se inicia contando sobre a vida que levava João Romão, seu desespero para
enriquecer e de como seu destino cruzou com de Bertoleza. Logo na primeira página, ela é
descrita:
Crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada
com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade[...]
Trabalhava forte e pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês e apesar
disso, tinha quase o necessário para a alforria (AZEVEDO, 2016, p.11, grifo nosso)

Essa descrição nos faz indagar algumas hipóteses importantes para compreendermos
essa mulher que vai sendo tecida nas palavras de Azevedo. A primeira, quanto a utilização do
termo crioula ao invés de negra ou preta – muito comum na época-Teles dos Santos nos
esclarece que nesse período o termo:

Se tratava do escravo que nascia em casa do senhor, significando também o animal,


cria, que nascia “em nosso poder” Termo que trazia uma ambiguidade tanto de cor
quanto do nascimento local. [...] Entretanto, trata-se menos de uma exclusividade do
escravo nacional, e mais um designo social de cor. (2016, p.11)

Desse modo, percebe-se que o termo se encaixa muito bem para a forma em que ela
será constituída na narrativa: não apenas como uma escrava que sempre foi domínio de um
senhor, mas também esse animal, essa cria que nasceu já no poder de um outro. Essa imagem
de Bertoleza como cria ou animal é muito presente na narrativa, desde suas primeiras

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aparições ao ser descrita como alguém que trabalha forte - como um animal de sol a sol, que
não tem o poder das palavras – detentora de uma não-linguagem, até o momento de sua morte
“esfocinhando moribunda numa lameira de sangue” (p. 306).
Outra coisa que pode ressaltar da descrição de Bertoleza, é a construção, assim como
Josué Montello, do desejo de branqueamento da sociedade ao mostrar as relações da
personagem sempre com homens brancos e de origem portuguesa: primeiro com um
português que não é mencionado o nome e depois com João Romão. Esta ideia de fascínio do
negro pelo português ou do escravizado pelo seu senhor branco é sempre retomada nas
narrativas literárias, construindo uma idealização de imagem - branca- a ser alcançada pelo
negro.
Contudo, essa aproximação deve ser mantida até certo ponto e sempre questionada,
como é o caso de Bertoleza e João Romão, que mesmo vivendo e até dormindo várias vezes
juntos, ela jamais é descrita como companheira dele, mas sempre como amante ou amigada198
Nesse contexto, podemos citar Pacheco (2013) que fala da solidão das mulheres
negras em nossa sociedade que muitas vezes são usadas como flerte rápido, momentos de
envolvimento sexual, mas não amoroso ou afetivo. Assim, retomamos o envolvimento de
João Romão e Bertoleza que se tratava mais de uma extensão ou obrigação da personagem
com seu patrão, do que um relacionamento afetivo.
Como vimos anteriormente, desde o início do romance, Bertoleza trabalhava para
pagar sua carta de alforria, porém nunca alcança esse objetivo tão duro. Souza (2014) acredita
que esse caminho tortuoso era praticamente impossível de se concluir e “por isso, a
manumissão199 funcionava como instrumento ideológico. A expectativa da liberdade
favorecia o senhor no controle e na manutenção de uma mão de obra ordeira, obediente e
morigerada, engajada na obtenção de pecúlio para a tão sonhada alforria” (p.106). E mesmo
que o escravizado tivesse o dinheiro necessário, era preciso a efetivação por parte do
proprietário.
Logo, percebe-se que esse sonho atravessa a vida de Bertoleza, suas ações de trabalho
intenso e seu comportamento diante das situações. Sabendo disso, João Romão com o intuito
de garantir a força de trabalho dela e se apropriar das economias juntadas ao longo de muitos
anos, ele forja uma carta ou manumissão com um selo oficial de uma carta roubada de uma
forro e alega o consentimento de seu proprietário. Deste dia em diante, Bertoleza trabalha
198
Nos termos de hoje, seria aqueles que vivem juntos “amancebados” na expressão popular.
199
Alforria legal de um escravizado.

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ainda mais, agora não mais pelo desejo de alforria, mas pela gratidão por João Romão ser o
intermediador dessa conquista.

Bertoleza: um problema mudo

Após João Romão conseguir construir o cortiço, se relacionar com pessoas


importantes e ascender socialmente, Bertoleza não se faz mais necessária em sua vida, ele não
poderia ter sua imagem associada a de uma “preta imunda”, como encontrar uma solução para
aquele problema? Nesse momento, ele começa a imaginar inúmeras formas de matá-la ou
mandá-la para longe, tudo nela começa a incomodá-lo: o cheiro, o jeito que ela dormia, ele
começa a vê-la semelhante a um animal intruso.
No momento em que Bertoleza se torna descartável, os termos utilizados para
descrevê-la transformam-se, antes crioula, agora preta imunda, negra, nódoa, mancha negra.
A própria personagem começa a tomar consciência dessa nova situação diante da trama:

Estranhava a transformação do amigo. Ele mal se chegava para ela, e quando o fazia,
era com tal repugnância, que antes não fizesse. [...] Chorava em segredo, sem ânimo
de reclamar seus direitos. Na sua condição de animal de trabalho, já não era amor
o que a mísera desejava, era somente confiança no amparo de sua velhice, quando
de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. [...] Escondia-se de todos [...]
envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste por ser quem
era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade
brilhante e clara. No entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional
das caboclas do Amazonas pelo branco que a escravizam” (AZEVEDO, 2016, p.
244)

Morais Silva (apud Teles, 2013) nos esclarece que a terminologia negro tratava-se não
apenas do homem preto forro ou cativo, mas o indivíduo desgraçado, triste e infausto.
Justamente, nesse momento de mudança terminológica na narrativa que a desgraça, tristeza e
infelicidade de Bertoleza começa a emergir não apenas nos acontecimentos, mas nos próprios
sentimentos da personagem.
A partir da tomada de consciência como essa nódoa na branquitude de João Romão que
ela é ainda mais destituída da fala “gesticulava e mexia com os lábios, monologando, sem
pronunciar as palavras. Parecia indiferente a tudo, a tudo que a cercava” (ibid, p. 245). 200

200
Evaristo (2009) analisa em seu texto uma lista de obras, inclusive cita O Cortiço, em que os personagens
negros são destituídos desse poder de fala, transformando-os em algo mais próximo de animais.

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Agenciamento e morte

Bertoleza presencia na espreita uma conversa de João Romão sobre o possível


casamento dele com filha de Miranda, mas Botello o aconselha a encontrar logo uma maneira
de se livrar da crioula, pois ela poderia arruinar seus planos. Nesse momento, Bertoleza ganha
um poder de fala, de agenciamento diante da situação e se coloca:

Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você
precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e agüentar a sua casa
com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais
nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda!
Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em
que meti muito suor do meu rosto?... Quer casar, espere então que eu feche
primeiro os olhos; não seja ingrato!

Percebe-se que Bertoleza tem consciência de tudo que fez por João Romão e se impõe
como a mulher que teve o corpo usado não apenas para os serviços domésticos, mas para
atividades sexuais. Concretiza-se aqui a discussão de Pacheco (2013) sobre a solidão da
mulher negra, vista não como aquela digna de casar e ser “apresentada” para sociedade como
parte da família do homem branco, mas como um caso passageiro e ilícito, o qual pode ser
rompido a qualquer momento.
Bertoleza passa a ser cuidadosa com tudo que comia e bebia por medo de ser
envenenada; trancava-se ao se deitar por medo de ser morta enquanto dormia, entretanto o
golpe fatal sai de suas próprias mãos, mostrando, assim, o loucura e violência da mulher
negra, capaz de tudo, inclusive de se suicidar de forma tão brutal.
O desfecho de sua morte se inicia quando ela percebe a farsa de sua alforria ao chegar
os herdeiros de seu antigo senhor - agora já falecido - para reivindicar sua propriedade a João
Romão, o qual diz que pensou se tratar de uma negra forra e autoriza a entrada dos policiais
em sua residência. Nesse instante, Bertoleza rasga o ventre de um lado a outro com a faca que
utilizava para escamar peixe, e assim sua vida chega ao fim: em uma poça de sangue,
misturada com escamas e cheiro de peixe.

Conclusão

Ao analisarmos a personagem a partir das indagações e teorizações dos autores citados


ao longo do texto, compreendemos algumas motivações ideológicas que norteiam e nortearam

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as escolhas para a composição de Bertoleza, seja na utilização de terminologias ou adjetivos


específicos, seja das situações vivenciadas por ela.
Trazer a voz ou a “não-linguagem” apresentada por Aluísio Azevedo na construção
dessa mulher negra, escravizada e desprezada faz emergir no contexto contemporâneo não
apenas os debates sobre a posição no negro na literatura brasileira, como também a posição do
negro como o subalterno que não pode falar ou precisa de permissão para tal (SPIVAK,
2010).
Espera-se que as problematizações e questionamentos apresentados no decorrer de
nossa pesquisa possibilitem germinar novas inquietações diante de outras muitas Bertolezas
camufladas por trás da ascensão social de outros tantos Joões.

Referências

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568

AS MANIFESTAÇÕES DO FLUXO DE CONSCIÊNCIA EM A PAIXÃO SEGUNDO


G.H. DE CLARICE LISPECTOR

Dr. José Rosa dos Santos Júnior (UNEB)


E-mail: juliteratta@gmail.com

Eu... é curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental como de
família, tudo complicado, e escrevi A paixão..., que não tem nada a ver com isso.
(Clarice Lispector)

Segundo Nádia Battella Gotlib, no livro Clarice: Uma vida que se conta (1995),
Clarice Lispector faz essa afirmação que nos serve de epígrafe numa entrevista nos anos 70,
lembrando-se das circunstâncias em que escreveu A Paixão Segundo G.H., no ano de 1963, e
em pouco menos de um ano. Mas, reconsiderando a afirmação de que o livro nada teria a ver
com sua experiência pessoal, admite que algo o livro trazia, algo que talvez tenha fugido o seu
controle: “É, fugiu do controle quando... eu de repente percebi que a mulher G.H. ia ter que
comer o interior da barata, eu estremeci. De susto!”. (CLARICE apud GOTLIB, 1995, p.358).
Também ao comentar a leitura que Benedito Nunes fez de sua obra, deixa transparecer
que o livro traduzia algo de muito profundo e muito seu: além de manifestar sua admiração
pelo crítico, porque “ele me esclarece muito sobre mim mesma. Eu aprendo sobre o que
escrevi”, comenta: “O Benedito disse que A Paixão Segundo G.H. tinha a náusea sartriana,
especialmente devido à cena da barata. Não é bem isso. É uma náusea que a gente sente diante
de uma coisa viva demais”.
A Paixão começa e termina com seis travessões; entre eles a narrativa, cujas primeiras
palavras indicam busca: “- - - - - - estou procurando, estou procurando”; e as últimas
significam adoração diante da vida que lhe é dada, sem que tenha podido compreendê-la: “E
então adoro - - - - - -“ (Lispector, 1998, p. 179).
De acordo com Olga de Sá (1979), a paixão de G.H. é o sofrimento para alcançar a
despersonalização da mudez; a paixão segundo G.H., o sofrimento de narrar essa experiência
vital. Se a protagonista faz da barata o seu foco de meditação é porque querendo atingir a
matéria-prima da vida, escolhe um inseto que existe na terra, há milhões de anos. Depois de
ter construído uma personalidade de artista amadora, G.H. percebe que a missão de sua vida é,
humildemente, assumir a própria mudez: “É exatamente através do malogro da voz que se vai
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pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a
possível linguagem”. (Lispector, 1998, p. 175).
Viver essa condição é a paixão, é a dor não como um acontecimento fortuito, mas
como a própria natureza do homem:

Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço de voz. Minha voz é o modo
como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como
um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar
saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que a procura, mas
como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o
mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria antecede o corpo, e
por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio (Lispector, 1998,
p. 175-6).

Se tomarmos as duas proposições extremas dessa cadeia, que passa pela epifania
(como o mar antecede a visão do mar), temos de constatar que se arma a seguinte equação: a
realidade está para a voz (linguagem) como a linguagem (voz) está para o silêncio.
A narradora sabe que para possuir as coisas é preciso nomeá-las. Mas a sua longa e
original aprendizagem ensinaram-lhe o paradoxo de que, apesar disso, a linguagem trai o ser;
porém ela é o único esforço possível ao homem, o único modo de se atingir o que jamais se
consegue dizer, isto é, o indizível. O indizível é, finalmente, a posse do silêncio pela
linguagem:

Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas
eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-
prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do
buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente
reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e
por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só
me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a
construção, é que obtenho o que ela não conseguiu (Lispector, 1998, p. 176).

Os pragmáticos poderão dizer: mas para que tantos itinerários? Por que dilacerar-se
nessa tentativa de dizer o que não é possível dizer? Porque esta é a paixão do homem, a sua
via- crucis, a matéria de sua vida:

A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando


se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a
desistência. A desistência? Tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais
sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória
própria de minha condição.
A desistência é uma revelação (Lispector, 1998, p.176).

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570

Mais uma vez se constata que o paradoxo é uma das chaves deste estilo, que mimetiza
as contradições do ser e da linguagem. Neste livro, Clarice Lispector usa um recurso técnico
original: começa um capítulo com a última frase do capítulo anterior. Dá assim à sua
introspecção um aspecto de ininterrupta continuidade e à voz de sua narrativa, uma tonalidade
de canção, como as velhas cantigas medievais. Este processo ao nível do enunciado, que
desenha uma linha curva e contínua ao longo da narrativa, confere ao discurso um traçado,
que graficamente significa uma trajetória. E a trajetória é, segundo G.H., o que um homem
não pode deixar de viver.
Em linhas gerais, A Paixão segundo G.H. trata-se de uma narrativa que tem
personagem de nome incógnito, indiciado pelas letras iniciais, que, como frequentemente
ocorre nos escritos de Clarice, representa a questão do “nomear” e do trajeto que se conhece
nessa busca do “nome” ou da própria identidade. Esse percurso doloroso e prazeroso, espécie
de via-sacra que se chama paixão, é desdobrado até um ponto máximo, na aderência efêmera
entre o “eu” e o “outro” (no nosso caso a empregada Janair e a barata).
Como personagem, apenas uma: ela, que narra a alguém o que lhe ocorreu no dia
anterior. Institui um interlocutor fantasmático como recurso mister que lhe dê força de
empreender esse relato. Ele é o que ouve. E quem é ele? O amado que se foi? O analista? O
leitor? De qualquer forma, pela palavra e pelo discurso da memória, reconstitui – ou inventa –
o que lhe aconteceu.
A história parece bem simples: A escultora, de classe alta, que mora num apartamento
de cobertura de um edifício no Rio de Janeiro, decide arrumar o aposento da empregada, que
se fora. Ao tentar arrumar a casa ou, como artista que é, dar forma à sua casa, conjetura que o
quarto de empregada, que recebe a classe mais baixa, seja o cômodo mais sujo do seu
apartamento. Verifica que não é verdade: o quarto é claro e límpido. Lá entre tantas
experiências desmitificatórias, passa por uma que é crucial: ao abrir a porta do guarda-roupa,
vê-se diante de uma barata, que ela, com muito custo, mata e come.
Desse modo, a caixa minúscula localizada nos fundos do apartamento, aonde a
personagem chega por meio de um corredor e vendo a espiral do fosso do prédio, revela-se
uma “caixa de surpresas”, que se abre numa série de representações, apólogo de um processo
de embates: concomitantemente encontro com o outro, consigo mesmo e, no sentido mais

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geral, encontro com o “outro sentido” das coisas201. G.H. está sozinha, adentrar “os fundos”
desse espaço é encarar o vazio dessa vida solitária, no que tem de mais sofrida, e que nesse
enfrentamento se lhe revela no seu “outro lado”, uma espécie de felicidade difícil, mediante o
alívio que traz a experiência da libertação.
A estrutura arquitetônica, o edifício com o apartamento de cobertura e o apartamento
na sua divisão interna, funciona como o suporte do desenho dessa viagem interior, com sala,
corredor, área de serviço e... o quarto de empregada, cenário principal transfigurado, entre
tantas outras imagens, em “minarete”, espaço sagrado, ou em regiões recônditas e
inexploradas. Dentro do quarto, há o “inesperado mural”, com o contorno da mulher, do
homem e do cachorro, das três “múmias”, também um registro a ser traduzido: “O desenho
não era um ornamento: era uma escrita”.
G.H. é a personagem-mulher: “quero encontrar em mim a mulher de todas as
mulheres”. A outra, a barata, é uma barata entre baratas, há 350 milhões de anos povoando os
porões das nossas construções. A mulher e a barata, essas duas espécies arcaicas, refletem-se
mutuamente naquilo que têm de jóia rara, ornamentos luxuosos, nesta civilização do inútil. E
de matéria neutra, sumo vital – “o meu verdadeiro caldo de cultura” -, a resistir, intenso, entre
os escombros dessa nossa civilização.
Nesse “desabamento” gradativo, “cavernas calcárias subterrâneas... ruíam sob o peso
de camadas arqueológicas estratificadas”. E mergulha-se no limbo: “era uma lama onde se
remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade”. E a personagem segue o
seu caminho: “eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entrar no inferno da matéria
viva. Ou então: “É que um mundo todo vivo tem a força de um inferno”.
No quarto, como numa espécie de urna sagrada, depositam-se os sinais de um vazio,
tesouro que está tanto dentro das valises como no interior do contorno das figuras arcaicas
desenhadas na parede ou no escuro do guarda-roupa de onde emerge a barata. Prosseguindo
nessa desbravação de sinais, em certo momento da narrativa G.H. descobre a barata,
redescobrindo a sua infância pobre: “com percevejos, goteiras, baratas e ratos, era de como
um meu passado pré-histórico, eu já havia vivido com os primeiros bichos da terra”. Dessa

201
Corroborando com tal afirmação, Luiza Lobo em Crítica sem Juízo (1993, p.31) nos diz: “é no quarto da
empregada, dentro de um armário úmido e imerso em sombra, que a patroa encontra a sua ascese mística do ser
no encontro com a barata – ascese que também pode ser vista do ângulo político-social de rito de passagem da
mulher burguesa e rica no encontro com o outro: a empregada”.

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forma, G.H. traz a tona o que Auerbach, em A Meia Marrom, chama de “consciência
rememorante”.
A escolha desse caminho do “crime” – o assassinato – e a incorporação da matéria do
“outro” – o de dentro da barata – são mais uma figuração da selvagem luta pela vida: “um
modo de nos vermos e nos sermos e nos termos, assassinato onde não há vítima nem algoz,
mas uma ligação de ferocidade mútua. Minha luta primária pela vida”. Cuja ética é já também
“outra”, a do segredo: “ a solução tinha de ser secreta. A ética da moral é mantê-la em
segredo. A liberdade é um segredo”. E sem culpa: “É preciso ser maior que a culpa”.
Ao tentar comer a massa branca da barata, ritual de “manjar antropofágico” necessário
e transgressor, a personagem tem vertigem, vomita, cospe, rejeita-se. Lembra-se do
Apocalipse: “Porque não és frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha
boca”.
Finalmente, num último estágio de aproximação do objeto, come a massa branca da
barata e atinge o estágio máximo desse caminho de paixão, “ao preço de atravessar uma
sensação de morte”. Aí, não há palavras: apenas o branco ou o vazio da página. Nesse ponto
de reversão do percurso, de amor em paixão, de vida em morte, o eu é o outro. “Quem vive
totalmente está vivendo para os outros”. Pois, conclui a narradora, “a vida não é um estado de
felicidade, é um estado de contato”.
O isolamento explicita-se como função iniciática de aproximação, reintegrando-se não
pela razão, mas pela difícil experimentação do ser, destituindo-se da máscara, do “individual
inútil”, pela despersonalização: “pela perda de tudo o que se possa perder, e ainda assim, ser”.
Ou, segundo Benedito Nunes (1989), o encontro da consciência com a realidade última, mas
já integrada num universo social e coletivo.
Em A Paixão Segundo G.H., persiste o sentido maior de um reiterado “escape do
convencional”, até no próprio tipo de “argumento” do romance. De acordo com Gotlib
(1995), talvez seja mais fácil aceitar o absurdo da Kafkiana metamorfose do homem em inseto
do que o grotesco dessa necessária crueldade existencial, a da mulher que come a massa
branca de dentro da barata. Porque essa desautomatização do instituído, do já dito, só pode ser
consumada pela aderência, até a perfeita identificação com a coisa mesma no que há de mais
marginal e ínfimo.
Mais uma vez a narradora, e de outro modo tão singular, dá voz ao sujo, feio, cruel,
difícil. Mia uma vez essa representação reverte a leitura em mal estar e desconforto. Porque

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mais uma vez a narradora comete o atrevimento maior de levar o leitor para o pior de si
mesmo: “eu fizera o ato proibido de tocar o imundo”. E mais: “Não quero a beleza: quero a
identidade”. Em seu nome, em nome da procura dessa identidade, a personagem, a certa
altura, perde os limites entre o que lhe aconteceu mesmo ou não: “Não sei mais do que estou
falando. Acho que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me
aconteceu, quem me garante que também não inventei toda a minha vida anterior a ontem?”
A trajetória de G.H. “termina no silêncio e no vazio, na desistência da linguagem,
como forma de adesão ao ser. G.H. se despersonaliza, perde sua dimensão humana, para
chegar à maior exteriorização possível, à maior objetivação”. (Sá, 1979, p. 260). Deixando de
ser ela mesma, vive do que não se pronuncia mais. A missão secreta de sua vida é essa
“deseroização” de si mesma. Não há mais heróis da narrativa. Perdendo o próprio nome, G.H.
identifica-se com todos os seres.
Por meio do “malogro da voz” (depois de ter construído uma escritura), é que G.H.
ouvirá a própria mudez e aceitá-la-á como a possível linguagem do ser humano, que assume
sua paixão. Só depois disso é que a natureza humana de G.H. será reconhecida também, com
a dor como condição. Viver a dor dessa desistência é a paixão do homem. “A condição
humana é a paixão de Cristo”. (Lispector, 1998, p.175).
Eliminada a palavra, resta o silêncio. O itinerário de G.H. acaba no vazio, contra suas
próprias expectativas. O silêncio que se instaura depois de G.H. suportar a experiência de
comer da massa branca da barata e a paixão de descrevê-la está do lado da imanência, não da
transcendência. A personagem chegara na imanência total, na qual Deus, o “eu” e o mundo
são uma coisa só. Chegara ao insosso da matéria, ao osso do ser. “Eu chegara ao nada, e o
nada era vivo e úmido”.
Vale ressaltar, que a unidade da narrativa é fornecida por apenas uma ocorrência
externa que envolve G.H.: o ato de tentar narrar o que lhe havia acontecido no dia anterior.
Toda a narrativa, a partir daí, trata-se, preponderantemente de movimentos internos, isto é, de
movimentos que se realizam na consciência da personagem. Podemos notar em A Paixão
segundo G.H.o que Erich Auerbach (1971) sinalizou em O Passeio ao Farol de Virgínia
Woolf: tais narrativas requerem muito mais tempo para serem contadas do que durariam na
realidade.
O caminho percorrido pela reverberação da consciência de G.H. é completado, por
vezes, muito mais rapidamente do que a linguagem é capaz de reproduzir. O que ocorre

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574

dentro de G.H. assim como em Mrs. Ramsay, personagem protagonista de Passeio ao Farol de
Virgínia Woolf, não tem em si nada de enigmático; são as representações, por assim dizer,
normais, que surgem de sua vida cotidiana. Contudo, “por mais simples e corriqueiras que
sejam as séries de representações que surgem na consciência de tais personagens, tanto mais
essenciais são elas, simultaneamente”. (Auerbach, 1971, p.484).
Aqui, como em Woolf apud Auerbach (1971), o escritor, como narrador de fatos
objetivos, desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo
na consciência das personagens do romance. Não parece existir uma realidade objetiva
diversa do conteúdo da consciência das personagens. É o que podemos chamar de fluxo de
consciência que nada mais é que “a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se
passa na consciência de um ou mais personagens”. (Carvalho, 1981, p.51).
O que é essencial é que um acontecimento exterior insignificante libera ideias e cadeia
de ideias, que abandonam o seu presente para se movimentarem livremente nas profundidades
temporais. Com isto, fica também nítida a estreita relação entre o tratamento do tempo e a
representação da consciência. Cabe pontuar que nem sempre as representações da consciência
estão presas à presença do acontecimento exterior, pelo qual foram liberadas.
Segundo Carvalho (1981), a crítica literária apropriou-se do termo “stream of
consciousness”, criado pelo psicólogo William James, para exprimir a continuidade dos
processos mentais, cuja representação tem sido buscada por alguns ficcionistas. William
James criou esse termo para indicar que a consciência não é fragmentada em pedaços
sucessivos, não há junturas, mas sim um fluxo contínuo.
Frequentemente as denominações fluxo de consciência e monólogo interior tem sido
usadas como sinônimas. Scholes e Kellog apud Carvalho (1981), entretanto, advertem que,
enquanto a primeira é propriamente antes um termo psicológico que literário, a segunda é, de
fato, um termo literário, sinônimo de solilóquio não falado. Luciano Rodrigues Lima em
Clarice Comparada (2007) nos diz que a expressão “fluxo de consciência” é uma designação
imprecisa e, às vezes injustificável. Para o autor, o termo é usado para escrever o que lhe vem
à mente, torrencialmente, como se as palavras não passassem pelo crivo da racionalidade, ou
da gramaticalidade. Em alguns casos, talvez fosse mais apropriado chamar esse estilo de
“fluxo de inconsciência”, se se quiser valer o nominalismo, tão ao gosto de alguns críticos,
afirma.

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Auerbach nos diz que o florescimento da representação da consciência se deu durante


a após a Primeira Guerra Mundial, numa Europa demasiado rica em massas e pensamentos e
em formas de vida descompensadas, insegura e grávida de desastre. É nesse contexto, que
escritores distinguidos pelo instinto e pela inteligência encontram um processo mediante o
qual a realidade é dissolvida em múltiplos e multívocos reflexos da consciência. Para
Auerbach, o surgimento do processo nesse momento do tempo não é difícil de entender202.
Clarice, ao assumir um ritmo pessoal de narrativa, permeando-a de uma nota poética
imprevista, rompe com a linearidade do romance tradicional, cria uma estilística das
sensações, um dicionário imagético pessoal, articula uma ordenação estrutural de seus contos
e romances, capaz de questionar concretamente as concepções naturalistas do gênero e de
situá-la na mesma linhagem renovadora da literatura universal: de Virginia Woolf, de Joyce
que ainda trazem outros elementos comuns, como o fluxo de consciência, manifesto no
monólogo interior, em que a linguagem flui sem preocupação de ordem lógica.
O grande tema de Clarice é a estupefação e o momento da revelação, o choque, o
autoconhecimento, com a subsequente percepção crua de um novo tipo de realidade. Nesse
aspecto, a obra de Clarice é mais existencial do que ideológica ou social. Esse processo de
autoconhecimento, em Clarice, sempre chega através da percepção sensorial e penetra fundo
no âmago do ser.
De acordo com Luciano Lima (2007), a obra de Clarice Lispector contém uma ética e
um projeto ambicioso de um viver mais poético e mostra-se afortunada e aberta às diferentes
leituras, sobretudo as mais desconstrutoras. Os vazios, os silêncios, as interrogações e espaços
abertos da escritura clariceana parecem pedir, desafiadoramente, novas leituras, sempre mais
acuradas e críticas que vão além da tentativa de autorrepresentação feminina através da
narrativa. Ainda, segundo o autor, é das síncopes da linguagem que brota esse universo
humanamente doloroso e estranho, mas vivificante da ficção de Clarice Lispector.
Em A Paixão Segundo G.H., o tipo de linguagem que a autora adota surge apenas
como uma tentativa de adequação dos meios à matéria narrada, ou seja, a lógica não consegue
bem representar as sensações, as emoções, o inconsciente e o indefinido da personagem. Daí a

202
Luiza Lobo (1993) também acredita que somente após a Primeira Guerra Mundial, é que se criou a
consciência de uma ruptura com a técnica do romance a ponto de o fluxo da consciência se cristalizar como um
posicionamento não linear da narrativa. A postura não-diretiva do narrador/autor, a colocação de múltiplos
pontos de vista a partir de diversos personagens, o discurso colado à introjeção e à narração de estados de
consciência e inconsciência passam a constituir-se na marca do romance da primeira metade do século XX até a
atualidade.

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opção pelo lírico, traindo a afirmação da natureza racional da prosa, pois a sua narrativa está
muito mais preocupada em acompanhar o tempo lógico da mente e não apenas o frenético
movimento exterior da imagem.

REFERÊNCIAS

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NARRADOR E PERSONAGEM: UM BREVE ESTUDO SOBRE A VOZ DA


MULHER NO TEXTO LITERÁRIO

Esp. Juliana Ribeiro Carvalho (UFS)203


E-mail: julianaf1984@yahoo.com.br

Este artigo é resultado de algumas reflexões realizadas com o objetivo de, primeiro,
levantar diferentes perfis de narrador caracterizados por alguns críticos em literatura – como
Walter Benjamin e Silviano Santiago -, percebendo de que forma ele pode atuar na economia
da narrativa; segundo, observar como é construída a voz do personagem no texto; terceiro,
confrontar estes integrantes do texto literário a fim de compreender o funcionamento da
relação entre narrador e personagem na narrativa.
Para melhor elucidar uma compreensão dos papéis do narrador e da personagem (ou
do narrador-personagem) no texto literário e efetivar a percepção de como a personagem pode
– ou não – falar no decurso da narrativa, selecionamos dois contos brasileiros, escritos entre
as décadas de 70 e 80, a saber: Sem enfeite nenhum, de Adélia Prado e I love my husband, de
Nélida Piñon. Nos dois contos nos deparamos com a figura de duas mulheres de família, duas
donas de casa, duas vozes que se manifestam de formas distintas, as quais serão melhor
apresentadas no decorrer do artigo.
Como linha basilar e condutora da nossa argumentação neste trabalho, adotamos o
texto Pode o subalterno falar?, de Gayatri Spivak. Com uma escrita pós-estruturalista, pós-
colonialista e feminista, Spivak demonstra que o termo subalterno descreve “as camadas mais
baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da
representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato
social dominante” (SPIVAK, 2010). Sendo assim, fazemos, neste artigo, uma relação entre as
figuras do narrador e da personagem no texto, estabelecendo-se um processo de
subalternidade entre eles, o que nos permitirá uma discussão a respeito da possibilidade de o
narrador ser um criador de espaços propícios à fala das personagens.

203
Mestranda em Letras/ Estudos Literários pela Universidade Federal de Sergipe.

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O narrador

O narrador clássico pode ser compreendido, a partir da leitura de escritos de Walter


Benjamin (1994), como um indivíduo experiente, porta-voz de determinado conhecimento,
pois, conforme palavras do próprio autor a respeito da verdadeira narrativa:

Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática,
seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um
homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1994, p. 200)

Para Benjamin, porém, a narrativa e este narrador que sabe dar conselhos entram em
declínio com o advento do Capitalismo porque, a partir da ascensão da burguesia, a
informação se configura como a nova forma de comunicação (BENJAMIN, 1994). Neste
sentido, o referido autor diferencia a atuação do narrador e a do que ele denomina de
narrador-jornalista, afirmando que a importância deste se faz inferior à do primeiro, visto que,
enquanto a narrativa se pauta em aspectos que podem ser desenvolvidos mesmo depois de
muito tempo, a informação vive o tempo do seu ineditismo e da sua originalidade.
O narrador clássico, então, ocupa em Benjamin (1994) um lugar privilegiado do
mestre ou sábio, para o qual a fala é concedida e ele se faz como representante de um
determinado grupo ou povo, pois não é sua “tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência -
a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único? ” (BENJAMIN,
1994). Ou, como ele ainda afirma sobre a narrativa:

Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p. 205)

Nesta perspectiva percebemos, portanto, a relevância dada por Benjamin à voz e à


função representativa e autêntica exercida pelo narrador, que para ele ocupa uma posição
privilegiada de conhecimento e poder de fala.
Ao partirmos, por outro lado, para a discussão desenvolvida por Silviano Santiago
(2002) a respeito do narrador pós-moderno, nos deparamos com a noção de autenticidade
posta em questão, pois o autor desenvolve a sua argumentação a partir do seguinte

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
579

questionamento: “Quem narra uma história é quem a experimenta ou quem a vê? ”


(SANTIAGO, 2002).
Santiago percorre um caminho distinto ao de Benjamin ao trazer à tona o fato de que o
narrador pós-moderno fundamenta sua narrativa a partir do olhar sobre o outro e sua
experiência; o espetáculo de ver o outro é que torna a ação representação. Ao contrário do
sábio e mestre narrador clássico, na narrativa pós-moderna:

A vivência do mais experiente é de pouca valia. Primeira constatação: a ação pós-


moderna é jovem, inexperiente, exclusiva e privada da palavra – por isso tudo é que
não pode ser dada como sendo do narrador. Este observa uma ação que é, ao mesmo
tempo, incomodamente autossuficiente. O jovem pode acertar errando, ou errar
acertando. De nada vale o paternalismo responsável no direcionamento da conduta.
A não ser que o paternalismo se prive de palavras de conselho e seja um longo
deslizar silencioso e amoroso pelas alamedas do olhar. (SANTIAGO, 2002, ps. 53 e
54)

Enquanto Walter Benjamin dá menor importância ao narrador-jornalista, Silviano


Santiago afirma o caráter jornalístico do narrador pós-moderno, pois a narrativa deste se inicia
com a experiência do olhar; é a palavra que nasce da imagem, do ver. Sendo assim, podemos
dizer que as fronteiras do narrador pós-moderno são borradas pelo outro, este outro que é ele
também.
Neste ponto torna-se oportuno abordar um pouco da discussão desenvolvida por
Gayatri Spivak, no seu livro intitulado Pode o subalterno falar? No prefácio do mesmo,
escrito por Sandra Regina Goulart Almeida, há o seguinte fragmento:

Segundo Spivak, a tarefa do intelectual pós-colonial deve ser a de criar espaços por
meio dos quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça,
possa ser ouvido (a). Para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se
trabalhar ‘contra’ a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se
articular e, como consequência, possa também ser ouvido. (SPIVAK, 2010, p.14)

Adotando como pressuposto o fato de que o narrador pós-moderno exerce a


experiência do olhar lançado ao outro – aqui entendido como subalterno – para construir sua
narrativa, é possível concluir que este narrador pode trabalhar contra a subalternidade? Se o
narrador pós-moderno atua a partir do olhar, se desloca do centro, é repórter e focaliza a ação
do outro, ele pode também ofuscar-se e dar lugar de voz ao subalterno porque, conforme
afirma Santiago, o mais experiente é aquele que consegue “subtrair-se para fazer valer”

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580

(SANTIAGO, 2002). E estas palavras ecoam com as de Spivak, quando ela afirma que “Os
intelectuais pós-colonialistas aprendem que seu privilégio é sua perda. ” (SPIVAK, 2010)
A crítica ao sujeito homogêneo e monolítico, realizada por Spivak, encontra lugar
propício neste narrador que se descentra e cujo anseio notável é o de se afirmar através do
olhar que lança à sua volta.
Neste sentido, acredita-se, portanto, que o narrador pós-moderno se subtrai ao
proporcionar espaços de fala ao outro, e neste movimento ele se amplia, já que assume, a
partir daí, identidades múltiplas, heterogêneas, híbridas. Ao narrador torna-se possível o
silêncio, a fim de que a voz da personagem – o outro, subalterno – possa falar. O desejo de
fala do subalterno se encontra com o interesse por esta fala, apresentado pelo narrador, o qual
dispõe do poder necessário para que essa mesma fala seja ouvida.
Quando partimos para o que se refere à construção de uma personagem, consoante
algumas das ideias desenvolvidas por Mieke Bal no seu livro Teoria de la Narrativa (1990),
somos levadas à compreensão de que a relação do narrador com a(s) personagem(ens), a
identidade do primeiro, bem como as escolhas estéticas realizadas, conferem ao texto o seu
caráter específico e constituem o que chamamos de narração. (BAL, 1990)
Podemos, então, pensar que a construção de uma personagem se faz também a partir
da observação e de influências oriundas do mundo externo ao escritor, mas a sua eficiência,
eficácia e possibilidade de voz se efetivam através da elaboração estético-textual e dos
recursos de linguagem dos quais dispõe o autor.
Passemos à análise dos contos, com o objetivo de melhor efetivarmos a discussão. O
primeiro se intitula “Sem enfeite nenhum”, foi escrito por Adélia Prado em 1979 e novamente
publicado em 2001, na coletânea organizada por Italo Moriconi, Os cem melhores contos
brasileiros do século. Narrado em terceira pessoa pela filha da personagem principal - "A mãe
era desse jeito..." (PRADO, 2001, p. 349) -, o texto é em grande parte descritivo; a "mãe" não
tem nome no conto, é alguém simples e sua vida se resumia aos afazeres da casa e às práticas
religiosas, por isso toda a trama se passa nestes tipos de ambiente. A protagonista não fala,
somente a narradora, que descreve a mãe, dentre outras palavras, desta forma: "Era a mulher
mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada" (PRADO, 2001, p. 350).
Em todo o texto há uma nítida marcação do espaço entendido como o pertinente à
mulher: o espaço da casa, do lar, e, no caso desta personagem, o ambiente da igreja, visto que,
segundo as palavras da narradora-testemunha, a “mãe” era uma mulher religiosa que: “Vivia

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
581

repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia
era isto: meu Jesus, misericórdia...A senhora tá triste, mãe? Eu falava. Não, tou só pedindo a
Deus para ter dó de nós” (PRADO, 2001, p. 349). A “mãe” tinha horror da “perdição eterna”,
o que lhe proporcionou bastante preocupação diante da iminência de morte da sua vizinha
Ricardina: “Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma
vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela
ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina” (PRADO, 2001, p. 349).
No posicionamento da “mãe”, então observado pela filha, é perceptível um embate de
vozes: sagrado x profano, essência x aparência. A mulher, que se vê imbuída da
responsabilidade pela vida do lar, guardiã e transmissora dos valores sagrados – equiparada à
pureza ou à inocência de Maria – é também aquela que se mostra interessada pelo
investimento nos estudos da filha:

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava de que eu
tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira,
caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela
teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido para sair.
(PRADO, 2001, p. 350).

Ou: “Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava
com a maior rapidez” (PRADO, 2001, p. 350). O curioso, entretanto, é notar o silenciamento
da narradora, que focaliza esta possível “contradição” no comportamento da personagem, mas
se cala sobre ela. Conforme Rocha-Coutinho (1994), a mulher da metade do séc. XX vive
uma situação ambígua: querer a libertação das suas filhas, por meio dos estudos e profissão e
conviver com a ideia de que o lugar da mulher era em casa dedicando-se aos seus.
O título do conto nos remete ao fato de que a “mãe” gostava de acessórios discretos,
“sem enfeite nenhum”, e de cores neutras; tal realidade acaba possibilitando o surgimento de
alguns conflitos entre a “mãe” e o “pai”, já que ele demonstra maior gosto por “cor regalada”.
O comportamento desta mulher, a todo tempo observado e narrado pela filha – narradora-
testemunha - sugere uma vida neutra, sem grandes acontecimentos ou realizações. Essa
observação nos leva a pensar na existência aparentemente abnegada desta mulher, de uma
dona de casa que vive em prol dos outros, dos membros da sua família.
A sua morte, porém, narrada ao final do conto, parece ser a sua libertação. O seu
momento de profundo silêncio se revela, talvez, como o instante em que a personagem fala
mais alto (daí se dá a importância de atentar para o silêncio presente nestes textos):
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
582

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a
maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente. Fiquei
hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa, de quem sente dor
forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo
festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe. O Senhor
te abençoe e te guarde, volva a ti o Seu rosto e se compadeça de ti, o Senhor te dê a
Paz. Esta é a benção de São Francisco que foi abrandando o rosto dela, descansando,
descansando, até como ficou, quase entusiasmado. Era raiva não. Era marca de dor.
(PRADO, 2001, p. 351).

O segundo conto, chamado “I love my husband”, foi escrito por Nélida Piñon em 1980
e também publicado em 2001 na coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século,
organizada por Italo Moriconi. Ele é narrado em primeira pessoa por uma mulher - sem nome,
sem identidade – e essa narrativa se passa no ambiente da casa, onde mais uma vez temos
marcado o espaço da mulher, que é o privado, enquanto o do homem é a rua e o trabalho. “Eu
amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café”; ou:

“Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por
cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e
ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo
esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis” (PIÑON, 2001, P. 451).

Nesse texto temos uma narradora-personagem e ela se apresenta como um sujeito


anônimo, esquecido de si em função do outro – “E é por isto que sou a sombra do homem que
todos dizem eu amar” (PIÑON, 2001, P. 451); é um “eu” que se apresenta fragmentado,
misturado à imagem de uma mulher-objeto-tragável: "Não quero meu esforço confundido
com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana..." (PIÑON, 2001,
P. 451). Esse sujeito fragmentado, então, parece se dividir entre a percepção do casamento
como uma possibilidade de ascensão, felicidade e ostentação social e o questionamento dos
valores ilusórios alicerçados através desta perspectiva, e toda a trama do conto gira em torno
da ironia que permeia estes questionamentos.
O título, sugestivamente escrito em inglês, permite-nos refletir sobre três acepções ou
leituras distintas: a mulher que, enquanto subalterna, assim como a nação, é subjugada ao
discurso do Outro; a utilização da língua estrangeira como marca de dissimulação e
distanciamento, pois o uso do idioma materno geralmente denota maior intimidade; e, por
fim, a possibilidade de apropriação do discurso dominante, já que o uso do inglês pode
proporcionar maior alcance e visibilidade perante as camadas sociais mais elevadas da época.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
583

No decorrer do conto é perceptível a localização do homem na posição de alguém


equivalente a Deus (criador, provedor) e a da mulher como o indivíduo que se enxerga através
do olhar dele; o casamento é o espaço de ajuste e encaixe perfeito destes posicionamentos, o
lugar da prometida e ansiada realização da mulher:

Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de
atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe
traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras
inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são
aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um
vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.
(PIÑON, 2001, P. 455)

É possível escutar, no texto, a voz da narradora que fala, todavia, a voz do poder
masculino – aqui representado pelas figuras do pai e do marido da personagem – de alguma
forma a sufoca ou lhe deixa confusa e fragmentada: “Assim fui aprendendo que a minha
consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu
marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar
às vezes, ir ao fundo do mar em busca de esponjas” (PIÑON, 2001, P. 455).
Toda esta fragmentação e confusão absorvidas no texto são lidas, entretanto, como um
provável artifício da construção narrativa porque o discurso de denúncia e desmascaramento
de uma sociedade superficial e patriarcal é fortemente percebido no decurso de todo o conto.
O discurso romântico ou bonito do amor em nada combina com a limitação ou a
impossibilidade da mulher em “invadir” os espaços ocupados pelo homem e nem com as
afirmações grotescas ou enfatuadas que dão continuidade aos parágrafos, aspecto que destaca
a elaboração narrativa da autora inteiramente pautada na ironia: "Eu amo meu marido. De
manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida
e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com
raiva e vocifero com aflição" (PIÑON, 2001, P. 451).
A afirmativa que dá título ao texto literário, portanto, é então vista como uma
estratégia de sarcasmo ou, talvez, uma tentativa irônica, por parte da personagem, em
convencer-se a lembrar de amar o seu marido, como se o acontecimento do amor se
configurasse num exercício diário cansativo e desgastante:

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo ainda que
sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
584

de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca
seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que
me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem
reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos
declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido. (PIÑON, 2001, P. 456)

Considerações finais

A construção textual dos contos analisados, bem como os aspectos como escolha do
espaço, posicionamento das narradoras e personagens e a construção do discurso nos
permitem perceber a posição de subalternidade ocupada pela mulher nestes textos. As
personagens apresentam uma fragmentação de ideias e, ao "ouvirmos" seus pensamentos,
parece-nos haver um fluxo desordenado da consciência, característica marcante do narrador
pós-moderno.
O fato de os textos lidos terem sido escritos por mulheres – Adélia Prado e Nélida
Piñon – nos faz acreditar na possibilidade das personagens serem frutos das suas memórias
e/ou das suas próprias vivências enquanto mulheres, todavia, não podemos ser inocentes em
deixar de visualizar toda uma economia narrativa conduzida de forma a pensar e eleger
minuciosamente o enredo, os lugares, os termos utilizados, as falas representadas e os
silenciamentos apresentados nos contos. A narração neles, então, se faz através de todas as
escolhas estéticas realizadas pelas autoras.
Segundo o conceito de Santiago (2004), em nossa percepção os dois contos são de
escrita anfíbia, pois é perceptível a preocupação com o rigor estético - há beleza nos textos e
critério na escolha do vocabulário, da estrutura e do espaço -, mas há também a denúncia, o
desmascaramento da posição desprivilegiada e subalterna da mulher nos anos 80 e o seu
desajuste diante dos avanços sociais e tecnológicos, em contraste com os costumes e hábitos
da época. Percebe-se, portanto, a relevância do texto literário por ser “indispensável para uma
prática politizada, pois devemos ter uma mirada no adiante e estar preocupados com o poder
que circula nas representações literárias” (GOMES, 2014, p.136)
Nesses textos podemos observar a posição do narrador que perdeu a inocência e
percebe as rasuras do mundo que lhe cerca, seja pelo olhar da narradora em “Sem enfeite
nenhum”, que enxerga, mesmo que sem compreender por inteiro, o sofrimento da sua mãe;
seja pelo relato irônico da narradora em “I love my husband”.
Apesar das formas distintas, a dor é exposta nestes contos e ela não tem uma face
específica, ela é a dor da humanidade, é a dor da mulher. Neste sentido, o olhar da narradora
VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
585

em “Sem enfeite nenhum” parece-nos exercer bem o “subtrair-se” levantado por Santiago
(2002) na sua descrição do narrador pós-moderno, visto que ela não fala de si, mas o seu olhar
e a sua voz abrem espaço para o desvendar da experiência do outro; não há conselhos ou
posição privilegiada de saber, há apenas informações que são fruto da observação. Já a
narradora do conto de Piñon, apesar de falar de si, por ser uma narradora-personagem,
apresenta uma fala entrecortada por dúvidas, rasuras e questionamentos; a sua fragmentação
parece-nos refletir bem o perfil “inexperiente” (SANTIAGO,2002) do narrador pós-moderno,
cujo privilégio se constitui no ato de diminuir-se para, dessa maneira, se multiplicar. Sendo
assim, a mulher, que no conto é um indivíduo específico, perde um pouco dessa
individualidade e, devido também ao fato não ter nome próprio, acaba se tornando qualquer
outra mulher e, ao mesmo tempo, todas elas juntas.
A construção dos textos com narradora-testemunha – que também é uma mulher - e
narradora-personagem nos permite perceber um trabalho "contra a subalternidade" (SPIVAK,
2010) e a denúncia contra o poder da voz masculina. As personagens falam, mas são
cerceadas pela voz de um "deus-homem" ou um "deus-religião" e, apesar deste cerceamento,
podemos considerar que elas se subtraem, dedicando seu olhar a outras experiências,
multiplicando-se em tantas outras mulheres. Nas suas inquietações de mulheres "sem rosto",
podemos ver focalizadas e ecoadas as indagações de tantas outras mulheres, fato que permite
e motiva ao passo, à luta e à busca por superação.

REFERÊNCIAS

BAL, M. Teoria de la Narrativa. (Uma Introducción a la Narrativa) 3ª ed. Madrid: Catedra,


1990.

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:___. Magia e


técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 197-221.

GOMES, Carlos Magno. Ensino de Literatura e Cultura: do regate à violência doméstica.


Jundiaí, Paco editorial: 2014.

LEITE, S. Mulheres em contos: travessias no século XX. 2008. Tese de Doutoramento.


Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000129216.
Acesso em 24 de junho de 2017.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
586

PIÑON, N. I love my husband. In: MORICONE, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros
do século. (Org.). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, P. 451-456.

PRADO, A. Sem enfeite nenhum. In: MORICONE, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros
do século. (Org.). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, P. 349-351.

RCOHA-COUTINHO, M.L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações
familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

SANTIAGO, S. O narrador pós-moderno. In: SANTIAGO, S. Nas malhas da letra: ensaios.


Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

SANTIAGO, S. Uma literatura anfíbia. In: ______. O Cosmopolitismo do pobre. Crítica


literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004. P. 64-76.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
587

REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM A MURALHA DE DINAH QUEIROZ

Mônica Cardoso Silva204


Profa. Algemira de Macedo Mendes

O presente trabalho tem como objetivo analisar a representação das personagens femininas no
romance A Muralha de Dinah Silveira de Queiroz, publicado em 1954 cujo enredo é narrado a
partir da perspectiva da personagem feminina. A narrativa segue uma ordem temporal
cronológica e é dividida em três capítulos: “Descoberta da Terra”, “A Madama do Anjo” e
“Canção de Margarida”. A ação se passa nos espaços compreendidos pela Fazenda Lagoa
Serena, localizada na então Vila de São Paulo do Campo de Piratininga; e pelo Sertão,
inseridas aí as regiões a serem desbravadas pelos paulistas, nas capitanias de São Paulo, Bahia
e Minas Gerais. É nesse cenário que se desenrola a história das personagens da família, com
destaque para as mulheres que ganham relevante espaço e são descritas de modo peculiar, a
diferenciá-las, por exemplo, das mulheres do Reino lutando muitas vezes sozinhas por sua
sobrevivência, já que os homens passam longos meses no Sertão. É nesse cenário que se
desenrola a história das personagens da família, com destaque para as mulheres que ganham
relevante espaço e são descritas de modo peculiar, a diferenciá-las, por exemplo, das mulheres
do Reino lutando muitas vezes sozinhas por sua sobrevivência, já que os homens passam
longos meses no Sertão. Nesse contexto social que realizamos a pesquisa, analisando como
se dá a constituição dos lugares sociais de onde enunciam essas mulheres, os papéis que lhes
são atribuídos, considerando as condições sociais, históricas e de linguagem. Para tanto as
questões enunciativas do texto serão abordadas a partir dos pressupostos teóricos de
HIGONNET (1991), SAMARA(1989), DEL PRIORE ,(2004) dentre outros.

Palavras- chave: A Muralha. Representação. Feminino. História. Ficção.

A literatura acompanha o desenvolvimento das atividades humanas desde os


domínios iniciais da escrita. Esses registros contam histórias de determinadas pessoas,
comunidades ou, até mesmo, de nações que utilizam essa representação simbólica a fim de
serem ouvidas, reconhecidas e compreendidas pelas demais. Ao longo do tempo, os estudos a
respeito da atividade literária dividiram-se em segmentos diversos, motivando pesquisas
variadas.
A escritora Dinah Silveira de Queiroz, em A Muralha, reconta a história de um Brasil
colônia em época dos bandeirantes à procura de ouro e outros metais preciosos, abrindo uma
análise possível sob a perspectiva feminina e possibilitando uma visão renovada dos
acontecimentos. Isso porque expõe fatos e personagens até então não citados nos relatos
oficiais ou mesmo ficcionais de modo tão particular, principalmente se considerada a época

204
Acadêmica do Mestrado em Letras/UESPI
Professora do Mestrado de Letras/UESPI/UEMA

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588

retratada quando ainda não era admitido qualquer questionamento acerca da figura masculina
ou das práticas sociais existentes.
Objetivamos com este estudo analisar a representação das personagens femininas no
romance A Muralha de Dinah Silveira de Queiroz, publicado em 1954 cujo enredo é narrado a
partir da perspectiva das personagens que não foram para guerra, mas que são representadas
através desta obra o que também caracteriza a maioria das obras de Dinah Silveira de Queiroz
re-contar a história pela perspectiva do perdedor ou daqueles que ficam.
A autora, na obra em estudo, parte de um fato histórico real: A Guerra dos
Emboabas, confronto travado entre os bandeirantes paulistas e os portugueses (emboabas) de
1707 a 1709 pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas de ouro na região de
Minas Gerais.

Um matriarcado disfarçado

O romance A Muralha conta a história de lutas, conquistas e massacres do povo


paulista, entre o final do século XVII e início do século XVIII, e é dividido em três capítulos:
Descoberta da Terra, A Madama do Anjo e Canção de Margarida.
A Muralha é considerado um romance de formação, embora haja algumas
transgressões feitas ao gênero. Trata-se de uma narrativa que se passa no início da era
colonial brasileira. O narrador volta os olhos sobre a condição da mulher que fica cuidando da
casa e da terra enquanto os homens desbravam o sertão em busca de riquezas e como esta
mulher se comporta ao longo do texto.
De acordo com Cintia Schwantes A Muralha conta com os seguintes elementos:
presença de uma mãe como modelo e continuidade do patriarcalismo, educação informal,
ligação da mulher com a natureza, experiência amorosa mal sucedida, momentos de epifania.
A história ocorre nos espaços compreendidos entre a Fazenda Lagoa Serena, situada
na então Vila de São Paulo do Campo de Piratininga, localizada na serra de Paranapiacaba, no
interior da capitania de São Vicente, e o Sertão; essas eram as regiões a serem desbravadas
pelos paulistas, nas capitanias de São Paulo, Bahia e Minas Gerais (BORGES, 2011)
Todas as mulheres da narrativa se ocupam dos serviços domésticos na fazenda. De
acordo com Priore, em seu livro História das Mulheres no Brasil, o trabalho doméstico era
importante para o sustento da casa:

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
589

A atuação feminina foi também marcante na chefia dos domicílios. [...] Se para a
Igreja a atuação feminina em determinadas funções domésticas parecia ultrapassar os
limites desejáveis da moral cristã, é necessário situar a importância da associação
entre o trabalho feminino e a economia doméstica. (Priore 2004, p.178)

No inicio da colonização, a família de acordo com Coutinho (1994) era praticamente


inexistente no Brasil o casamento pelo menos na forma como se entendia na Europa não
existia. Homens e mulheres viviam em concubinato, amaziados, ou sob diversas outras
variantes da vida em comum. Ainda no século XVIII, o índice de concubinatos era altíssimo:
alcançava 80% dos casais na Bahia, mais de 70% no Rio de Janeiro e em torno de 50% em
São Paulo. Apenas entre as classes mais abastadas havia casamento convencional, que
mantinha intacto o patrimônio da família e assegurava proteção às filhas após deixarem a casa
paterna. Fora dessa minoria absoluta, ninguém casava mesmo. Somente com a concessão das
sesmarias e o início do cultivo da terra, que a família começou a ganhar força existia um
núcleo central, legalizado, composto pelo casal branco e por seus filhos legítimos e um núcleo
periférico nem sempre bem delineado, constituído de escravos e agregados, índios, negros e
mestiços.
Isolados geograficamente por suas fazendas o poder dos patriarcas eram ampliados, o
pater famílias autoritário exercia seu poder rodeados de escravas e / ou concubinas, dominava
tudo: e economia, a sociedade, a política, seus parentes, seus filhos e sua esposa submissa que
de acordo com Coutinho (1994) tinha o comportamento que variava conforme a classe social
para Hahner (2003) “nem todas as mulheres eram confinadas à esfera privada do lar e
excluídas das esferas pública, entregue aos homens, como no caso de viúvas ativas que
dirigiam fazendas “ (p.28)
Este papel de matriarca é bem desempenhado por Mãe Cândida que exerce o mando
patriarcal quase com o mesmo vigor de D. Braz até mesmo com mais energia do que seu
marido mostrando que o regime de opressão da mulher devia-se não somente ao sexo.
Percebe-se na obra A Muralha a mão forte feminina quando a Lagoa Serena é
atacada por índios:

... Mãe Cândida tomou o arco do escravo, e ela, que se havia adestrado até mesmo
nessa arte, disse:
- então... deste eu tomo conta!
Empurrando Basília, se expôs na porta, retesando o arco. A flecha partiu e o índio foi
alcançado no ventre, caindo de borco, no meio da palavra de guerra. (QUEIROZ
2000, p. 202)

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590

Gilberto Freyre observa que:

[...] através de toda época patriarcal, houve mulheres, em quem explodiu uma energia
social, e não simplesmente doméstica maior que a do comum dos homens. Energia
para administrar fazendas como a donas Joaquinas do Pompeu, energia para dirigir a
política como as Donas Franciscas do Rio Formoso; energia guerreira, como a das
matronas pernambucanas que se distinguiram durante a guerra contra os holandeses...(
Gilberto Freyre 2013, p. 256)

Mesmo com a atuação destas matriarcas, o papel da mulher na sociedade se manteve


inalterado a função delas mesmo a frente da fazenda era de patriarca e não de matriarca e sua
forma de domínio continuava patriarcal e não matriarcal assim assinala Gilberto Freyre:

[...] matriarcas houve, no Brasil patriarcal, apena como equivalentes de


patriarcas, isto é, considerando-se matriarcas aquelas mulheres que, por
ausência ou fraqueza do pai ou do marido, e dando expansão a predisposições,
ou característicos masculinóides de personalidade, foram às vezes os “homens
de suas casas” (Freyre 2013, p 86-87)

Isso prova que o a força do pater famílias não anulou completamente o poder e com
sua influência a mãe assim, transforma-se em símbolo da honra familiar e da solidariedade
moral do grupo.
À época, as mulheres, arraigadas à sociedade patriarcal, machista e preconceituosa,
eram consideradas menos inteligentes que o homem e que tinham como única obrigação
cuidar da casa e dos filhos, o que repercutia de forma negativa na inserção das mulheres na
sociedade, interditando-as de participar de outras atividades sociais, além do lar. A mulher
continuava a ocupar posição secundária, inferior e distinta daquelas ocupadas pelos homens.
Este confinamento doméstico de acordo com Coutinho (1994) só começa a se
verificar historicamente a partir da ascensão da burguesia e do aparecimento da sociedade
industrial e do capitalismo:

Tal confinamento nos parece estar intimamente ligado à nova ideia de família que tem
no amor romântico o pivô para a sua conformação e que é relativamente recente na
história da humanidade. Acreditamos que ao contrário do que supunham os que
associavam o conceito de família a valores eternos, atemporais e imutáveis, a
universalidade desta - parece não existir cultura que não tenha alguma forma de
família reconhecida e legitimada socialmente- não é natural, mas sim inerente à ordem
cultural que homens e mulheres instauraram sobre a natureza. ( Coutinho 1994, p. 27)

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
591

No que diz respeito ao sistema patriarcal e ao comportamento sexual feminino,


Albornoz (1985 p. 17) diz que:

Nos moldes patriarcais, há grande tolerância em relação ao comportamento sexual


masculino e grande rigidez em relação ao comportamento sexual feminino: a mulher é
considerada a “depositária da honra da família”. A mulher considerada infiel é
facilmente “condenada” pela moral familiar (Albornoz 1985, p. 17)

Na obra em questão, fato de Isabel estar grávida e não ser casada era um grande
motivo de desonra, fato que acarretou uma sucessão de desgraças sobre toda a família já que
as mulheres casadouras do período colonial deviam se abster de qualquer espécie de
experiência sexual antes do casamento. O homem, ao contrário, devia ter a vida sexual agitada
antes do casamento mantendo relações que na maioria das vezes, continuavam após a união
conjugal, geralmente com mulheres de camadas sociais pobres (escravas, empregadas,
prostitutas).
A situação da mulher era sempre de subserviência ao pai e, depois do casamento, ao
marido. Havia uma dupla moral que regia a sociedade de acordo com Samara (1989):

A mulher deveria permanecer virgem até o casamento e depois de casada se manter


fiel ao marido; já do homem não se exigia virgindade antes do casamento e a
sociedade era conivente com a infidelidade masculina. A infidelidade conjugal
masculina e a iniciação da vida sexual em prostíbulos ou com as escravas era motivo
de orgulho com isso o homem atestava a sua virilidade. (Samara 1989, p. 125)

Ao falar da condição da mulher na sociedade colonial, vemos que diversas obras


apenas enfocam a supremacia determinada por uma sociedade de traço patriarcal. De fato,
grande parte das mulheres estava subordinada ao mando de seus pais e maridos. Muitos
documentos descreviam episódios de agressão, clausura e perseguição.

Entre flores e jaguatiricas

A situação feminina como podemos perceber era frágil na sociedade colonial, no


entanto, devemos também revelar a participação das mulheres de outras formas que escapam
da lógica da dominação como algumas mulheres de A Muralha a começar por Cristina que
deixa sua família e Portugal para casar-se com Tiago em terras desconhecidas brasileiras
enfrentando uma longa viagem da Europa para o Brasil transforma-se de doce, esperançosa e
romântica em corajosa e descrente do amor. A Muralha metaforiza a mudança das mulheres

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
592

da Lagoa Serena e principalmente de Cristina antes uma menina frágil e sonhadora, no fim
uma mulher forte e áspera criara nela uma muralha intransponível.
Formas distintas de comportamento feminino podem ser observadas dentre as quais
Margarida e Isabel.
Casada com Leonel, filho de Dom Braz, Margarida é descrita como uma mulher
linda, delicada, frágil e admirada por todas as mulheres da fazenda. Era amante das letras,
gostava de escrever poemas enquanto o esposo estava nas longas viagens com o pai em busca
de metais preciosos. O desejo de ser mãe sempre esteve em seu coração, mas nunca conseguiu
e isso a entristecia. Sua casa era aconchegante e em seu quintal ela cultivava um jardim cheio
de flores. Margarida ganha destaque entre as demais pela sua paixão por poesias o que de fato
é exceção o fato o ato de ler e escrever deve ser considerado, já que as mulheres do período
colonial recebiam uma educação voltada para a formação moral e valorização dos bons
costumes da sociedade. A orientação tinha como principal objetivo a formação para governar
a casa, educar os filhos e cuidar do marido. Observa

Margarida era realmente diferente das outras mulheres de Lagoa Serena: delicada,
sensível e culta. Amava seu marido e era correspondida. Vivia em uma casa enfeitada, com
rosas e um papagaio. Margarida pode ser considerada uma personagem com características
anacrônicas para o momento histórico que o livro procurava retratar, especialmente por ser
nascida na colônia, em Taubaté.

Foi esta, entre todas, a mais assombrosa das admirações de Cristina. Encontrar ali
mulher letrada, e com aquela simplicidade e aquela travessura! Imediatamente, toda a
simpatia e a proximidade que a figura de Margarida lhe parecia significar, se
desvaneceu. A amiga, que procurava nessas lonjuras, poderia ser essa mulher que
fazia versos?(Queiroz, 2000. p.55)

Assim que soube da gravidez de Isabel levantou desconfianças a respeito da


paternidade da criança e passou a ter delírios imaginando que o filho poderia ser de Leonel
seu esposo; isso despertou nela uma grande tristeza. A falta de filhos aponta Priore (1988) era
problema exclusivo da mulher; a infecundidade jamais decorria do homem. Como se não
bastasse a ideia de criar o filho de outra mulher a amedrontava já que as mulheres da colônia
acostumaram-se, sem problema algum, a criar os próprios filhos e os de seu marido com
outras mulheres, tanto quanto os filhos de outros homens com outras mulheres. “O que
importava era a rede de solidariedade estabelecida entre a mulher e a sua prole”, explica a

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593

historiadora Mary Del Priore (2004). A incerteza da paternidade do filho de Isabel gerou
dúvidas sobre a fidelidade de Leonel à Margarida, agravando os problemas de saúde que a
levaram à morte.
Do outro lado temos Isabel a mais valente das mulheres e por passar muito tempo ao
lado de homens, em muitos aspectos se assemelhava a eles. Ela estava sempre ao lado do tio
Dom Braz em todas as viagens. Era arisca, ficava sempre longe de todos, pois, preferia estar
em companhia dos bichos que das pessoas. Sua companheira fiel é a jaguatirica Morena.
Isabel gostava de beber uma bebida alcoólica preparada pelos índios conhecida como cauim o
que não era comum entre as outras mulheres. Guardava consigo um amor pelo primo Tiago,
com quem depois de uma noite de embriaguez, tem uma relação mais íntima e engravida,
porém a relação de Isabel com o filho mais uma vez difere das demais, pois não nutre afeto
algum pela criança, ao contrário, para ela aquele ser era feio e lhe obrigava a ficar de fora das
viagens em busca de ouro na companhia dos homens da casa.
Para Badinter (2003) em seu estudo a respeito do mito do amor materno o
comportamento de Isabel é totalmente compreensível:

Ao se percorrer a história das atitudes maternas nasce a convicção de que o


instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e
necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus
sentimentos, segundo sua cultura, ambições ou frustações. (Badinter 2003,
p.367)

Em decorrência da naturalização das funções femininas, passou a ser demarcada uma


série de características femininas de acordo com Coutinho (1994) quase todas elas vinculadas
àquelas características necessárias a uma “boa mãe”, levando muitas vezes a se identificar
feminilidade e maternidade.
Isabel rompe com os paradigmas estabelecidos as mulheres da colônia e após a morte
de sua companheira, a jaguatirica Morena, decide deixar o filho sob os cuidados de Mãe
Cândida e aventura-se sertão adentro a fim de encontrar com o grupo de D. Braz.
As outras mulheres estavam mais próximas da descrição efetuada por Margarida num
diálogo com Cristina: Mãe Cândida no comando da fazenda e da família; Basília, a filha mais
velha, solteira e descrita como uma mulher feia, que ajudava à mãe e, no decorrer do livro
herda características dela em atitudes e postura. Rosália, a caçula, é mais romântica e
sonhadora e dedicava-se à atividade no comércio.

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594

Considerações finais

As mulheres do período colonial enfrentavam grandes descriminações praticadas por


uma sociedade machista, eram vistas como meras donas de casa, objetos de desejos sexuais, e
que não possuía inteligência o suficiente para estudar, as negras e índias eram vistas como
símbolo do pecado dos colonos pois tinham liberdades que as colonas não possuíam.
Podemos perceber que o período colonial do Brasil gerou a formação de uma
sociedade, na qual a mulher era sempre submissa vistas em segundo plano na sociedade
afetando com isso sua imagem durante muitas décadas, vemos que até hoje as mulheres são
minimizadas por sua condição de “sexo frágil”.
Do Brasil colonial para cá muitas coisas tem mudado em relação às mulheres. Nas
últimas décadas assistimos a uma alteração do papel social da mulher decorridos das
transformações politicas, econômicas e sociais, no entanto, a pesar da profundidade das
mudanças as desigualdades entre homens e mulheres ainda não foram totalmente erradicadas.

REFERÊNCIAS

ALBORNOZ, Suzana. Na Condição de Mulher. Coord. de Suzana Albornoz. Colab. de Maria


da Conceição de Araújo Carrion, Miriam Grossi, Sônia Pilla e Rosa Casaccia. Faculdades
Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

BADINTER, Elisabeth Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno. Rio de Janeiro:


editora Nova fronteira S/A, 2003.

BORGES, Samantha. Teoria lukacsiana e o “herói medíocre” na obra A Muralha. UFSM.


Estação Literária Londrina, Vagão-volume 8 parte B, p. 151-157, dez. 2011.

COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas
relações familiares. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1994

DEL PRIORE, Mary. A Mulher na História do Brasil. São Paulo, SP: Editora Contexto, 1988.

______. História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo, SP: Editora Contexto, 2004.

FREYRE, Gilberto Casa-grande & Senzala - 52ª São Paulo, SP Global, 2013

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HIGONNET, Anne. Mulheres e Imagens: aparências, lazer, subsistências. In: Duby,


Georges, Perrot, Michelle (org.) História das Mulheres no Ocidente– Séc. XIX. Porto:
Afrontamento, São Paulo: Ebradil, 1991.

HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil
1850-1940. Trad. Eliane Tejera Lisboa, Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC 2003.

MAAS, Wilma Patrícia. O Cânone Mínimo- O Bildungsroman na história da literatura. São


Paulo. Editora UNESP, 2000.

QUEIROZ, Dinah Silveira. A Muralha. 3ª tiragem. Rio de janeiro, RJ: Editora Record, 2000.

SCHWANTES, Cíntia. Interferindo no Cânone: a questão do “Bildungsroman” feminino


com elementos góticos. Tese de doutoramento em letras. Ano de obtenção:1998. Universidade
federal do rio Grande do Sul, UFRGS, Brasil.

SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São Paulo, século XIX. São
Paulo: Editora Marco Zero / Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989

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596

O VERTIGINOSO PULSAR DA VIDA: VERÃO DOS INFIÉIS (1968), DE DINAH


SILVEIRA DE QUEIROZ, UMA HISTÓRIA DE SEU TEMPO

Ms. Sarah Pinto de Holanda ( UFC )


E-mail: sarahholanda97@gmail.com
Dra. Edilene Ribeiro Batista ( UFC )
E-mail: ribeiroedilene@yahoo.com.br

1 A mulher na múltipla obra de Dinah Silveira de Queiroz: uma introdução

Nascida em São Paulo, no ano de 1911, em uma família intimamente ligada aos livros
e à arte, Dinah Silveira de Queiroz dedicou sua vida à literatura. Segunda mulher a ingressar
na Academia Brasileira de Letras, é autora de seis romances, diversos livros de contos, peça
teatral, biografia, literatura juvenil e centenas de crônicas publicadas diariamente durante
quase quatro décadas. Além da multiplicidade de gêneros, a obra de Dinah surpreende pela
variedade temática: foi uma das precursoras do Romance Histórico no Brasil; ousou ao
escrever ficção científica, figurando também como uma das pioneiras no gênero; enveredou
pelo fantástico e o mágico em um dos livros mais intrigantes de nossa literatura, o
inclassificável Margarida La Rocque; debruçou-se na temática religiosa com a autobiografia
romanceada de Cristo em Eu venho, Memorial do Cristo I e Eu, Jesus, Memorial do Cristo,
que lhe renderam louros da crítica e do Vaticano. Sua obra de estréia, Floradas na Serra, de
1939, esgotou-se das livrarias em vinte dias, tendo sucessivas reedições nos anos seguintes;
além disso, virou filme rodado pela Vera Cruz e estrelado por Cacilda Becker nos anos 50. O
romance A muralha também ganhou diversas adaptações para o teatro e para a televisão, a
mais recente versão é de 2000, lançada no formato de minissérie pela Rede Globo.
Nem o sucesso de público conquistado pela extensa, múltipla e inovadora obra de
Dinah Silveira de Queiroz lhe garantiu um espaço nos terrenos da crítica, solo
predominantemente masculino. Apesar de ter participado ativamente da vida intelectual de
nosso país, o nome de Dinah nem sempre é mencionado nos compêndios de literatura.
Volumosos manuais que descrevem escolas, autores e livros representativos de nossa prosa
não citam sua obra.

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Nelly Novaes Coelho, na introdução feita para a coletânea A literatura feminina no


Brasil contemporâneo, reacende o debate, nunca esgotado, sobre as especificidades de uma
escrita feita por e sobre mulheres, tais discussões, como afirma Nelly, foram tomando
contornos mais densos a partir da década de 70, período de reflexão acerca da produção de
artistas colocadas por muito tempo à margem do cânone:

Muito mais que simples moda, esse triplo interesse (produção literária das mulheres,
literatura infantil e a da ‘negritude’) arraiga um fenômeno cultural mais amplo: a
inegável emergência do diferente; das vozes divergentes; a descoberta da alteridade
ou do Outro, via de regra, sufocadas ou oprimidas pelo sistema de valores
dominantes. (COELHO: 1993, p. 11)

As polêmicas questões em relação às possíveis propriedades de uma ‘escrita feminina’


são evocadas na presença da obra romanesca de Dinah Silveira de Queiroz. Com todas as
discordâncias acerca das diferenças e semelhanças entre os gêneros e perpassando as teorias
biológicas e psicanalistas, parece-nos claro, hoje, que a representação do gênero é, em
primeira instância, resultado ideológico e social, sendo reacionário classificar ‘literatura de
homem e de mulher’, ‘temas femininos e masculinos’, ‘jeito’ de escrever de um e outro
gênero, mesmo que particularidades existam. Sobre os impasses acerca de definições e
esclarecimentos das peculiaridades e diferenças entre os gêneros, Teresa de Lauretis em seu
texto A tecnologia do gênero, reafirma que as esferas ideológicas e sociais giram em torno
desta discussão:
[...] se o sistema de sexo-gênero (que prefiro chamar simplesmente de gênero para
conservar a ambiguidade do termo, tornando-o eminentemente suscetível ao alcance
da ideologia, e também da desconstrução ) é um conjunto de relações sociais que se
mantém por meio da existência social, então o gênero é efetivamente uma instância
primária da ideologia, e obviamente, não só para as mulheres. [...] A construção do
gênero é o produto e o processo tanto da representação quanto da auto-
representação. ( LAURETIS, 1994 p.216-217)

Obviamente, se formos percorrer a trajetória da mulher na sociedade, com as


privações e castrações impostas pelos homens ao longo dos séculos, perceberemos alguns
princípios que nortearam e especificaram as produções de mulheres, como a inclinação aos
textos confessionais e ao universo familiar. Foi com o lento e penoso acesso da mulher ao
espaço público que essa literatura foi se modificando. Com o tempo, a mulher rompe com
essa identidade única e passa a se conhecer e a se (re) configurar. Nesse caminho de
autoconhecimento, os romances de Dinah apresentam-se como um acervo que redimensiona a
complexidade feminina traduzida em seus personagens

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598

Dinah ficcionaliza os fatos históricos ou os dramas de seu tempo dando às figuras


femininas o lugar que lhes fora subtraído. A autora, no contínuo exercício de alteridade
essencial à boa literatura, lança-se ao século XIV, revestindo-se de uma aura espectral, para
adentrar no espírito feminino de então ou penetra na alcova das esposas dos vilões e retira
deles a carga de humanidade que os vitoriosos lhes negaram. Em quarenta anos de
composição narrativa, DSQ percorreu séculos, mares, serras, sertões, tempos submersos,
investigando, adentrando, esfacelando a alma feminina sedenta por um olhar cúmplice.

2 Um mergulho no instante: Verão dos Infiéis

Lançado em 1968, Verão dos Infiéis é um romance de seu tempo. Influenciado pela
técnica do noueve roman francês, reflete a efervescência cultural, social e sexual de
Copacabana dos fins dos anos 60, captando o conturbado momento político vivido pelo país
que está prestes a mergulhar num estado de exceção. As confluências de perspectivas
narrativas dos integrantes de uma família envoltos em suas crises existenciais se interligam à
tensão de uma cidade que se contorce em três dias de chuvas torrenciais que detonam os
conflitos sociais e políticos do país: atentados, prisões, perseguição política, manifestações de
protesto, liberdade sexual feminina, crise da Igreja Católica...:

... eles apareceram, os intelectuais que vinham lançar seu protesto. Traziam cartazes
e se diria que se rissem uns com os outros. Eles estavam alegres, sim, alegríssimos.
Nesse instante, saía de frente do hotel o longo cadilaque do embaixador. Os
manifestantes se aproximaram, houve algumas palavras que a moça não pôde
escutar, e todos aqueles indivíduos postados à frente das lojas fizeram um círculo
rápido e negro, no qual o grupo de manifestantes foi tragado e como que silenciado.
[...] Não contava com a demora para esclarecer sua posição sobre o encontro com o
grupo de intelectuais que levariam ao embaixador americano o protesto contra a
guerra no Vietnã e a infiltração na Amazônia. (QUEIROZ, 2011, p 41)

Desta forma, quatro personagens dividem o protagonismo da trama: A mãe Valentina,


que se oculta em seus remédios, isolando-se da casa; o filho mais velho, Geraldo, que vive em
crise moral, pois não tem convicção política; o filho do meio, Aloísio, católico entusiasta que
rejeita o diálogo entre as religiões cristãs, apesar de se relacionar amorosamente com uma
protestante, o que provoca o desequilíbrio de sua fé; e Carminho, a caçula, uma jovem que
encarna o processo de rompimento com as regras morais/sexuais impostas à mulher. O enredo
se desenrola no verão de 1967, o bairro carioca, devassado pelas fortes chuvas de verão que

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599

causaram transtornos à cidade, é o cenário do pulsar vertiginoso da vida e de seus vícios, seus
desejos, seu descontentamento:

Todo o movimento da Avenida Copacabana fluía, abafado, como torrente


subterrânea. Valentina andava, caminhando pela praça e tentando forçar a passagem,
entre poças d’água, tolhida por uma pesada mulher grávida que ia empurrando um
carro de criança. (...)
Valentina ia atrás e continuava a dizer-se:
‘ Eu trago meus mortos. Eles são meus, eles me pertencem como os filhos a essa
mulher. Ninguém sabe que eu estou grávida de mortos. Eu sou a nau dos mortos.
(QUEIROZ, 2011: 19, 20)

Os quatros personagens que compartilham a casa mal dividem as cenas, cada um está
preso em seus dilemas individuais. O único diálogo possível, para Valentina, se dá com seus
mortos. Visceralmente ligada ao passado, a matriarca, após o suicídio do marido, vê-se
impossibilitada de segurar as rédeas da família, refugiando-se em drogas para aliviar a solidão
e a incomunicabilidade com os filhos. O alheamento ao presente, o vínculo com os
antepassados e a perplexidade diante dos novos costumes fazem dessa personagem uma
mulher deslocada no tempo e no espaço. Afetada por uma doença incurável, que procura
esconder, a mãe recorre, no início do romance, ao cunhado Domingos, que está fora e que
precisa tomar o lugar de chefe da família. Valentina pertence à estirpe de mulheres que
viviam à sombra dos homens e que, sem eles, via seu destino ruir. Esse conflito de gerações
provoca o distanciamento entre mãe e filha:

Quando Valentina chegou do médico, ainda dolorida pelo exame, pretendeu trocar
com Carminho algumas palavras. Mas, ao passar pela porta do quarto da filha,
ouviu, num tom rangente que se desdobrava até o paroxismo, uma canção beat.
Carminho era assim; às vezes se enrodilhava na cama a ouvir música e parecia que
só então se acomodava depois de qualquer perturbação interior; enchia-se de bobs de
todos os tipos que lhe davam um ar desumanizado de pequena fúria e deixava
escorrer a vaga das músicas de ‘protesto’. (QUEIROZ, 2011, p.145)

Carminho, sua filha, com todas as suas dúvidas e curiosidades, figura como metonímia
da emancipação feminina que se instaura na década de 60 a partir da intensificação do
Movimento Feminista que ganha força no período. A mulher começa a integrar de forma mais
efetiva o mercado de trabalho e o ensino superior; o interdito da virgindade e da nudez
começa a ser rompido, o casamento deixa de ser necessidade e passa a ser opção. Neste
romance, encontramos a mulher entrando em cena, entoando sua voz, decidindo seu destino:

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600

– É verdade. Muita gente... tem horror às virgens. A virgindade é suportável só na


sua idade... depois, com franqueza, é praticamente a desmoralização. (...)
- Não vá me dizer que você me faz um favor!
Ele voltou-se. Ria, escarninho:
- Não, nem sua mãe, nem seus irmãos, talvez nem mesmo suas amigas diriam isso...
mas é um favor, sim. Amanhã você terá superado esse idiota do Almir. Escolherá
seus amigos, dentro de um senso de equilíbrio – é claro que você não irá entregar-se
a qualquer cafajeste... e quer saber mais? Se der certo com alguém – poderá casar...
Acabou o tabu da virgindade.
Voltou para ela com sede brusca. Tomou-lhe as mãos agora quase frias, beijou-as,
abriu a blusa, descobriu-lhe depois o ventre liso e aquecido. Sentiu súbito uma
lágrima a deslizar pelo próprio rosto.
- Você não quer?
- Quero, sussurrou Carminho em prantos. Depois foi o escuro, a descoberta da dor,
um mar de delícias não alcançado, mas entrevisto como se fosse de muito, muito
longe, a repetição de tudo, daí a minutos de abandono e, por fim, o banheiro dos
homens a acolheu. (QUEIROZ, 2011, p. 98 e 99)

Impulsionada pelas tempestades, a descoberta sexual de Carminho se dá numa noite


chuvosa. Era preciso ser inundada por uma nova vida para cumprir o ritual de passagem da
nova mulher. Entregando-se ao amigo do irmão mais velho, mais por curiosidade do que por
desejo, a jovem trava contato com a “impureza” masculina. – E até hoje não entendo por que
desde pequenininha, mal entrasse um homem no banheiro de nossa casa... mamãe vinha
desinfetar tudo em seguida. Ela sempre dizia: ‘ os homens são uns sujos, minha filha. Todos
os homens.’ (QUEIROZ, 2011 p. 80). Criada para enojar o homem e, por conseguinte, o ato
sexual, vendo na relação conjugal apenas um contrato social de procriação, Carminho
desobedece aos preceitos da mãe. Mesmo que a iniciação amorosa traga mais dor que prazer,
ela antevê um mar de delícias proporcionado pela liberdade do corpo feminino. No entanto,
paira sobre ela um sentimento de culpa que se manifesta no pressentimento da tragédia que
abalará sua família. O rompimento com a imagem de mulher socialmente construída por
séculos provoca o aniquilamento de uma geração de mulheres - esposas /domésticas/ mães.
Valentina é reminiscente de uma velha dinastia agora superada, dessa forma, coube a ela, no
desfecho do romance, o encontro definitivo com seus mortos:

Carminho, fora da conversa, reparou numa estranha embarcação: rotunda, de vela


única e na qual – o carro passava bem junto – estava uma família. Havia uma
senhora de trajes mais antigos, um senhor de cabelos retos e negros e duas
menininhas enfeitadas com peles (... ) Com quem se pareciam mesmo as duas
crianças? Ah, com um retrato muito velho, meio desbotado, da mãe e da tia quando
eram pequeninas, em pose, ao lado da avó e do tio-avô. Sim, pareciam muito. Só ela
pudera ver a nau dos mortos. Mas como poderia saber? Carminho nada contou aos
irmãos sobre o festivo encontro que se esfumava agora, para trás. (QUEIROZ, 2001,
p.196)

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601

A família escolhida por Dinah para dar vida a este romance pertence à classe média
aparentemente estável às voltas com seus conflitos previsíveis. Na agilidade narrativa na qual
a trama é construída, nos deparamos com um final arrebatador: entre muitos dramas urbanos,
noticiados todos os dias nos jornais, a família de Valentina sofrerá sua tragédia: o
desabamento do prédio em que moravam causará a morte da mãe e da tia. Só a Carminho é
revelada a partida da mãe na embarcação inefável. Ao final do livro, sua maldição de mulher,
mesmo que uma mulher renovada, é selada. Só ela poderá ler as entrelinhas da vida, seu olhar
será do Eu para o Mundo.
Os dilemas dos homens da família, os irmãos Geraldo e Aluízio, também comungam
com a vida social do país. Em 1967, o Brasil, governado pelo General Costa e Silva, vive o
momento mais delicado da Ditadura Militar. No ano seguinte será decretado o AI 5, este Ato
Institucional suspenderá o mandato de parlamentares contrários aos ditadores, fechará órgãos
de imprensa, implementará a censura... Neste período, as perseguições políticas cresciam.
Pessoas contrárias ao Regime foram perseguidas, torturadas e mortas. As músicas de protesto
estouravam na boca dos jovens, a militância contra a repressão e os militares se tornava mais
ostensiva:
(...) o grupo de intelectuais que levariam ao embaixador americano o protesto contra
a guerra no Vietnã e a infiltração na Amazônia. (...) eles apareceram, os intelectuais
que vinham lançar seu protesto. Traziam cartazes e se diria que se rissem uns com os
outros. Eles estavam alegres, sim, alegríssimos. Nesse instante, saía de frente do
hotel o longo cadilaque do embaixador. Os manifestantes se aproximaram, houve
algumas palavras que a moça não pôde escutar, e todos aqueles indivíduos postados
à frente das lojas fizeram um círculo rápido e negro, no qual o grupo de
manifestantes foi tragado e como que silenciado. (QUEIROZ, 2011, p. 37 - 40)

O contexto mundial em fins de 1967 é marcado pela instabilidade. Vários movimentos


sociais se solidificam, outros surgem: Feminismo, Movimento Negro, Movimento Hippie,
Contracultura, Defesa do Meio Ambiente...
O Brasil não foge dessa agitação política/social. Geraldo, o filho mais velho de
Valentina, é um jovem muito influenciado por um velho professor marxista, que fora seu
mentor intelectual na faculdade. Ele vive seu drama de consciência: ao mesmo tempo em que
flerta com a luta dos manifestantes contra o sistema vigente, tem medo de sair de sua posição
estável de jornalista de classe média. Falta-lhe a coragem de pensar por si e de construir suas
próprias convicções. Convocado pelo professor Santana a participar do paralisação contra os
americanos, Geraldo recua, abandona seu mestre. Seguindo o conselho do colega de
faculdade, o influente Sérgio Silva, o irmão de Carminho assiste do apartamento do amigo os

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602

manifestantes serem agredidos pelas forças policiais. Presos, seus colegas e o Professor
sofrerão as humilhações destinadas aos “subversivos”. Sérgio, que não se deixa tomar pelo
espírito ideológico da época, assim define o Brasil:

– cheguei a uma conclusão: o Brasil, menino, só tem dois partidos. E não são
ARENA nem MDB. (...) O Brasil tem dois partidos mesmo: o Exército, que está
organizado até no meio da indiada brava, e a Igreja... com sua organizaçãozinha
supranacional, que vai até o Xingu e adjacências. O resto é besteira, nem adianta
pensar... (QUEIROZ, 2011: p.42)

Diferente de Geraldo, que está dividido entre a estabilidade e a luta, Aloísio, o filho do
meio, que foi criado na fé cristã tendo no Padre Augusto um substituto para o pai e um guia
espiritual, era um católico fervoroso. Nos anos 60 o Brasil era um país de esmagadora
maioria católica, mas as igrejas protestantes começavam a ganhar corpo e o embate entre as
religiões era freqüente:
- Você ainda não resolveu nada com a ‘doidinha’, não é? Desculpe, quero dizer a
‘crente’...
Aloísio olhou para a mãe com muita dureza:
- Eu vou casar com ela, já disse.
Valentina cerrava os lábios. Queria proibir-se de dizer alguma coisa além de tudo
que já houvera dito. Aloísio continuava:
- Não posso compreender como é que nestes tempos – hoje! – alguém ainda veja
dificuldade num casamento de católico com protestante...
- Num casamento misto como se diz agora. Eu não vejo nenhum mal nesses
casamentos.
A face de Aloísio se fazia sarcástica:
- Até que enfim! Bendita hora!
Valentina prosseguiu inflexível:
- Não vejo nada de mal do ponto de vista comum, isto é, dos outros. Mas você, meu
filho, que sempre foi tão intransigente, agarrado na batina do padre Augusto, você
que rolava no chão brigando com Geraldo por motivo de religião, que vivia me
perseguindo e à irmã por ter perdido missa? Você, francamente, não pode ser feliz,
não está certo.
Ela o fixava duro, quase como a um inimigo.
- Sabe muito bem que um casamento assim não pode dar em família unida... É nos
filhos que se deve pensar. (QUEIROZ, 2011, p.63)

Aloísio vê seu equilíbrio religioso abalado quando se envolve com uma moça
protestante, extremista na defesa de sua fé. A abertura do filho de Valentina à religião de sua
amada é também a abertura da Igreja Católica para o diálogo com outras religiões cristãs. O
personagem está inserido em um momento de transformação do catolicismo após o Concílio
do Vaticano II entre 1961 e 1965, no qual a Igreja se abre para refletir as suas doutrinas e suas
relações com a sociedade.

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603

No romance Verão dos Infiéis, a história privada, das relações individuais de seus
personagens, está intimamente ligada à história coletiva. Dinah Silveira de Queiroz instaura,
desta forma, uma maneira peculiar de “narrar” os acontecimentos históricos do Brasil.

3 Literatura e História: uma discussão sobre o Passado

Remontando a Aristóteles, quando em A Poética, traça as diferenças entre Heródoto


e Homero, encontramos a pertinente relação entre o poeta e o historiador. Este, ocupado com
a “verdade”; o outro, com a possibilidade. Contudo, nem sempre é fácil definir os lugares
dessas ciências irmãs, tampouco desconstruir equivocados discursos que estabelecem
“dívidas” ou “fidelidades” entre elas.
A despeito de seu nascedouro comum – a arte de contar – Literatura e História
buscam, em sua função mais elementar, uma compreensão do mundo e dos homens. Os
narradores do passado anterior à escrita tomavam para si, através da oralidade, o ofício de
perpetuação da cultura e da história de sua comunidade. Sendo assim, os limites entre o
acontecido e o inventado eram difíceis de definir. Com a evolução da linguagem e o
surgimento das cidades, os historiadores foram se especializando e se afastando da prática
narrativa. Hoje, passado o afã separatista, as disciplinas retomam o diálogo inicial. A
Literatura Comparada, nas pegadas dos estudos da Teoria e Crítica Literária, provocou a
abertura desse entrecruzar de ciências, de signos, de perspectivas:

Os estudos interdisciplinares em literatura comparada instigam a uma ampliação dos


campos de pesquisa e à aquisição de competências. [...] Assim compreendida, a
literatura comparada é uma forma mais específica de interrogar os textos literários
na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão
cultural e artística. (CARVALHAL, 2006, p. 74)

Nessa fronteira entre disciplinas, cujos limites e compromissos de cada uma delas
parecem tênues, é lícito afirmar que a literatura não faz “pactos” com a “verdade”
comprovada, os acordos que ela trava são com a fantasia, a imaginação e a subjetividade do
leitor, sendo improcedente qualquer leitura que tenha como único fim a “fidelidade histórica”.
Na obra Entre a Literatura e a História, Alfredo Bosi coloca:
O outro lado, dentro desse campo teórico, seria o romancista. Por mais que o
romancista inclua fatos que ele pode atestar, no caso do romance histórico, ou do
romance realista do século passado, nós sabemos que aqueles fatos estão sendo
trabalhados por uma corrente subjetiva, filtrados, transformados. Ainda que o
quantum de real histórico seja ponderável, o modo de trabalhar, que é essencial, é

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604

ficcional. Nessa perspectiva o romancista não mente nunca, porque ele efetivamente
está mexendo com representações da imaginação que podem, ou não, ter um
conteúdo empírico historicamente atestado. Mesmo que maciçamente seja
documentado, o fato que ele está contando, o regime do texto no seu conjunto é de
ficção. (BOSI, 2013, p. 224)

Sem exceção, os romances de DSQ contêm a vivência da história, pois todo enredo
traz sua temporalidade particular, articulada a seu drama e aos seus seres. Torna-se mais
simples perceber o componente histórico em romances como A muralha e Os invasores que
trazem em seu bojo um acontecimento de extração histórica: a Guerra dos Emboabas e a
Invasão Francesa, respectivamente. Contudo, tão pertinente quanto às tramas voltadas ao
passado é a observação histórica do presente, como acontece em Verão dos Infiéis, obra que
transpira a tensão social contemporânea à autora no momento da escrita. Todavia, para
muitos, equivocadamente, só o distanciamento temporal torna um fato realmente histórico,
mas acaso não vivemos e fazemos a história no presente? Não reconhecemos um
acontecimento político ou social de manchete de jornal como um episódio da História com
consequências posteriores? Diante dos romances históricos de Dinah, nós nos deparamos com
uma nova roupagem da História já catalogada; quando lemos, décadas depois, os romances de
seu tempo, temos um testemunho de uma época que, para nós, já se tornou passado histórico.
No caso do livro analisado, já ultrapassamos o Golpe Militar e vivemos a
redemocratização; o Brasil já superou seus conflitos religiosos em grande parte, tendo no
sincretismo de crenças uma de suas mais peculiares características. Com passos lentos, a
mulher vem conquistando seu espaço como sujeito social; hoje, os estudos sobre gênero e
sexualidade vão ganhando terreno nas Ciências Humanas. As dificuldades enfrentadas por
Carminho, Geraldo, Valentina e Aloísio num país confuso e incerto adquirem outra dimensão
para o leitor de hoje, uma dimensão que cabe no plano do pretérito.
Debruçar-se sobre o contemporâneo é arriscar-se em território movediço. Não se tem a
estabilidade do passado nem o delírio do futuro. O presente é um ponto cego no qual se
arrisca analisar de dentro da tempestade, sentindo e intuindo mais do que refletindo. Verão
dos Infiéis é um romance que percebe o instante cotidiano como fato histórico. Não há
respostas para as agitações sociais e políticas esboçadas na obra, o que persiste e move a
intriga são as horas incertas medidas em cada capítulo, é a desordem do agora, espaço
desconhecido e misterioso.

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605

4 Considerações finais

As artes plásticas, o cinema, a música e a literatura diversas vezes apresentaram a


mulher como tema e motivo de suas produções, muitos perfis femininos foram desenhados
com originalidade e genialidade, contudo, durante muito tempo, a mulher só foi inscrita na
sociedade através da pena criadora do homem. Recentes e inesgotáveis pesquisas acerca da
produção literária de autoria feminina vêm demonstrando a necessidade de resgatar os textos
de escritoras silenciadas pelo cânone patriarcal instituído por séculos em nossa cultura.
Muito ainda precisa ser dito sobre a literatura de Dinah Silveira de Queiroz. Em uma
pesquisa nos acervos das principais universidades do país, rara são as teses e dissertações
sobre sua obra. O presente artigo buscou, timidamente, contribuir para a divulgação e análise
da obra de tão importante escritora de nossas letras.
Entre tantas questões afloradas pela leitura de Verão dos Infiéis, como a condição da
mulher, perseguições políticas e os dilemas da fé, este romance provoca uma analogia com o
instável Brasil de 2017. Acaso a História não é construída em minutos? A divisão do tempo
em eras milenares nos reduz a espectadores dessa mesma história da qual, acredita-se, nem
fazemos parte. Dinah mostra que a História se constrói, também, na individualidade dos lares,
no anonimato das relações, no empoderamento dos sujeitos que tecem suas, aparentemente
insignificantes, narrativas.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2005.

BANDECCHI, Brasil. História e Ficção na Poesia e no Romance. São Paulo: Pannartz, 1985.

BANDITER, Elizabeth. Rumo Equivocado. O feminismo e alguns destinos. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2005.

BOSI, Alfredo. Entre a Literatura e a História. São Paulo: Editora 34, 2013.

BRANCO, Lúcia Castello e BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
Lamparina Editora, 1994.

BRANCO, Lúcia Castello. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

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CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006.

LAURETIS, Teresa. A tecnologia do gênero. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de (org).


Tendências e impasses: o feminino como crítica da cultura. Rio de janeiro: Rocco, 1994.

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

LOBO, Luiza. Guia de escritoras da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2006.

LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.

QUEIROZ, Dinah Silveira. Verão dos Infiéis. Rio de Janeiro. Mobile, 2011.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Papirus, 1994

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607

REPRESENTAÇÃO DA MULHER REPRIMIDA NO CONTO


“SENHOR DIRETOR” DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Thaíla Moura Cabral (UEFS)205


E-mail: thaila.mouracabral@gmail.com

INTRODUÇÃO

A literatura caminha por diversas veredas de temas, dependendo da época, do contexto


e de assuntos que interessam/borbulham dentro do universo social/cultural que a humanidade
possa estar inserida. Assim, a arte da palavra escrita tenta explicar (por meio do
entretenimento, da fantasia contextual e da verossimilhança) a formação e a identidade de
uma sociedade.
Neste olhar, no presente artigo, buscar-se-á delinear a capacidade que o texto literário
tem de elucidar os moldes de viver humano que compõem nossa sociedade. Para isso, será
apresentado o arcabouço do modo como foi composto a personagem central do conto “Senhor
Diretor”, contido na obra Seminário dos Ratos de Lygia Fagundes Telles, Maria Emília, de
codinome Mimi, como indivíduo que reflete uma sociedade marcada pela repressão feminina
e pelas mudanças comportamentais que surgiram a partir de 1960.
Lygia Fagundes Telles (1923) é uma mulher que desde a juventude esteve à frente de
seu tempo. Formou-se em Direito e Educação Física simultaneamente, ambos pela
Universidade de São Paulo - USP -, em uma época que os bancos universitários eram
preenchidos em sua maioria por homens (LAMAS, 2002). Seu primeiro romance foi
publicado em 1954, Ciranda de pedra, antes disso, já tinha publicado uma reunião de contos
no período universitário. Daí por diante segue com diversas publicações de romances e
contos. Até então, sua última obra foi publicada foi em 2012, O segredo, livro de ficção.
Seminário dos Ratos, obra publicada no ano de 1977, traz um conjunto de quatorze
contos lygianos. “Senhor Diretor”, em especial, ainda exerce fascínio sobre o leitor dos dias
de hoje. Mesmo tendo sido construído em outro contexto, os assuntos que permeiam a

205
Mestranda em Estudos Literários - Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Especialista em
Estudos Literários – UEFS.

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608

história, temas da estrutura e facetas da conjuntura da mulher na sociedade da época,


continuam contemporâneos, haja vista que a condição feminina é sempre assunto de debate no
que se refere a sua afirmação no meio social.
Os anos 70 no Brasil foram marcados por atenção as questões feministas, revoltas
operárias, passeatas de estudantes, dentre outros, tudo isso, inspirado do maio francês de
1968, movimento de revolução comportamental (PAES, 2004). Todavia, década também
caracterizada pela censura, e falta de liberdade, majoritariamente a estudantes, intelectuais e
artistas que iam de encontro ao regime militar instalado no país. Telles fez parte do grupo que
em 1973 levou até o governo federal o “Manifesto dos mil”, documento com mil assinaturas
contra a ditadura militar206.
A literatura de Lygia Fagundes Telles, de maneira introspectiva, não deixa de retratar
o roteiro de mudança social que é alterado em ritmo cada vez maior e com profundas
modificações na sociedade e no comportamento do sujeito. Assim, como aponta Julio
Cortázar (2006), o escritor traz “sua carga de valores humanos e literários, com sua vontade
de fazer uma obra que tenha sentido [...]” (p. 156), não ocorrendo de forma diferente na
reflexão lygiana.
Ainda para Julio Cortázar (2006), o romance está para o cinema, assim como o conto
para a fotografia, isto é, o conto tem um tempo abreviado para empregar sentido e enredar o
leitor ao texto. No conto em estudo, em particular, da primeira à última linha, o indivíduo é
convidado a ficar conhecedor das transformações comportamentais pela visão assustada da
personagem Maria Emília.

MARIA EMÍLIA, A CONSTRUÇÃO DE UMA MULHER REPRIMIDA

No conto “Senhor Diretor”, Lygia Fagundes Telles nos expõe Maria Emília,
personagem na medida dos paradoxos pós-modernos. A narrativa descreve as modificações
comportamentais que a figura central do enredo vê diante dos olhos. Transformações estas,
que ao mesmo tempo as percebe com o olhar crítico, principalmente com relação a visão do
corpo da mulher como mero objeto, mas também rejeita e reprime as manifestações femininas
de independência e liberdade. A história se configura na tentativa de Maria Emília em

206
Entrevista de Lygia Fagundes Telles ao programa Roda Viva da TV Cultura. Em 07/10/1996. Disponível em:
<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/101/entrevistados/lygia_fagundes_telles_1996.htm>. Acesso em: 28
Ago. 2014.

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609

escrever uma carta direcionada ao “Senhor Diretor” do Jornal da Tarde, elencando suas
observações e queixas a respeito das ditas depravações sexuais que ela percebia na mídia, na
publicidade, nas manifestações artísticas e ao caminhar pelas ruas da cidade de São Paulo.
A narração é conduzida por dois tipos de narradores. Em grande parte dela temos a
protagonista Maria Emília como condutora, “Quis disfarçar, mostrar que não estava chocada
mas quando dei conta de mim, estava aplaudindo mais do que todas, sempre acontece que por
timidez, por medo do palco, acabo entrando no próprio” (TELLES, 1998, p. 21). Outrora é
percebido um narrador em terceira pessoa: “No fim do quarteirão, um cinema menor exibia
cartazes com cenas de caçadores num safári. Interessou-se pela foto da loura sendo atacada
por um crocodilo” (TELLES, 1998, p. 25), este, menos preponderante no enredo.
Maria Emília é apresenta como uma mulher de sessenta e um anos de idade, paulista e
professora aposentada. A todo tempo no conto, ela se auto afirma com essas características e
acrescenta ainda mais: “antes e acima de tudo, quero me apresentar, professora aposentada
que sou. Paulista. Virgem. Fechou os olhos, virgem, virgem verdadeira, não é para escrever
mas não seria um dado importante?” (TELLES, 1998, p. 26). Além disso, reprimida, solitária
e deslocada em meio as torrenciais mudanças sociais.
Questionamento social é fator presente na literatura lygiana. Em “Senhor Diretor”, por
exemplo, é observado aspectos negativos das diversas mídias, em que a figura da mulher é
estereotipada por suas formas corporais numa espécie de exaltação erótica pejorativa. Nota-se
na passagem que se segue:

Ficou olhando, crispada, o homem de cabelos emplastrados que se aproximou para


examinar de perto o pôster colorido preso no varal inferior da banca. Ele usava
brilhantina e mesmo sem ver-lhe a cara podia adivinhar a cupidez dos olhinhos
ramelosos (deviam ser miúdos, ramelosos) colados ao biquíni vermelho da ruiva
montada de frente numa cadeira, empinados os bicos dos seios duros. Botas, chapéu
de cowboy, um revólver em cada mão. E o biquíni tão ajustado entre as pernas que
se via nitidamente o montículo de pêlos [sic] aplacados sob o cetim, mais expostos
do que se estivessem sem nada em cima. Olha aí, Senhor Diretor. A imagem da
mulher-objeto, como dizem as meninas lá do grupo feminista (TELLES, 1998, p.
20).

Assim, conforme Mary Del Priore (2011), a partir dos anos 70 “[...] a publicidade
erotizava comportamentos para vender qualquer produto” (p. 179). Ainda, do ponto de vista
do trecho do conto acima citado, pode-se inferir a dualidade de Maria Emília. Ao passo que
aponta para o repúdio quanto ao tratamento dado a mulher, contesta a liberdade proposta pelo
movimento feminista. Nota-se na citação abaixo:

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610

Meninas inteligentes, cultas, quase todas de nível universitário. Mas meus Céus, se
ao menos fossem mais moderadas. Mais discretas. Reivindicar tanta coisa ao mesmo
tempo, tanta mudança de repente não pode ser prejudicial? Um abalo nas nossas
raízes, acho que estão correndo demais. Com a idade delas eu nem pensava, por
exemplo, nessa palavra, prostituta. E a própria se levanta e começa a defender a
profissão, pensei que não estivesse entendendo direito, profissão? (TELLES, 1998,
p. 20-21).

Toda essa negação da personagem contra mudanças comportamentais, principalmente


no que tange a liberdade feminina, tem explicação no modo como Maria Emília e as mulheres
de sua época eram educadas. Criadas para o matrimonio e por conseguinte procriação da
espécie humana, ou então solteirona e “mãe” de várias crianças ao exercer a profissão de
professora. Sobre a mulher solteirona na sala de aula, Guaciara Lopes Louro discorre:

Essa representação de professora solteirona é, então, muito adequada para fabricar e


justificar a completa entrega das mulheres à atividade docente, serve para reforça o
caráter de doação e para desprofissionalizar a atividade. A boa professora estaria
muito pouco preocupada com seu salário, já que toda energia seria colocada na
formação de seus alunos e alunas. Esses constituiriam sua família; a escola seria seu
lar e, como se sabe, as tarefas do lar são gratuitamente, apenas por amor. De certa
forma essa mulher deixa de viver sua própria vida e vive através de seus alunos e
alunas; ela esquece de si (LOURO, 2007, p. 466) [Grifos da autora).

Percebe-se então, a origem da baixa remuneração, desvalorização da docência e o


quanto as mulheres estavam condicionadas, direta ou indiretamente, a maternidade. Sem o
direito a outras perspectivas de possibilidades para a condução de suas vidas, já que
precisavam de algo que lhes garantissem o sustento, não havendo casamento, o magistério era
a solução miseravelmente “digna” para o sexo feminino.
Mimi, como a figura central do enredo era chamada por sua amiga Mariana, formou
desde cedo a ideia do sexo como obrigação da mulher casada, sem a chance de lhe possibilitar
satisfação e prazer. Essa definição é formada devido a condição de sua genitora, “Fiquei
deprimida, pensando na mamãe que não fez a tal incisão mas que nunca sentiu o menor
prazer. E teve oito filhos. Oito. Quarenta anos de casamento sem prazer: um agulheiro calado”
(TELLES, 1998, p. 22), sendo este, um dos motivos que levam a professora paulista a uma
vida reprimida e solitária.
O medo do sexo, segundo Maria Emília, herdado da mãe, era uma recorrente angústia
de mulheres de outras épocas, uma vez que, o tema era considerado altamente constrangedor e
pecaminoso, até mesmo para as casadas, ou seja, tabu que hoje vem sendo quebrado e até
exacerbadamente exposto. A historiadora Mary Del Priore (2011) explica:

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[...] A inocência e ignorância de muitas [mulheres] era contrabalanceada pela


violência e a brutalidade de outros tantos. Os tabus eram vários: não se falava na
palavra ‘menstruação’; só se usava metáforas: ‘estou de chico’ ou ‘naqueles dias’.
Falava-se menos ainda do que aconteceria na noite e núpcias, quando a noiva
deveria ser obrigatoriamente virgem. O primeiro contato sexual podia ser desastroso
para o resto da vida de um casal” (p. 116).

Provavelmente, o desastre que trata Del Priore no fragmento a cima sobre a noite
nupcial, foi o que supostamente tenha levado a figura materna de Mimi ao repúdio sexual e,
passar tal condição para a formação reprimida da filha. A essas jovens, como se diria,
“casadoiras”, a felicidade conjugal consistia em aprender a ter relações sexuais regradas e
comprimidas a função de ter filhos, já mais se pensava em prazer e satisfação sexual da
mulher.
É ao longo da década de 70 que as questões sobre as mulheres, relacionadas ao sexo,
começam a mudar seus contornos. O lado misterioso e até mesmo grotesco da sexualidade
passa a ser transformado. O orgasmo, antes privilégio masculino, começa a ter significado
feminino também, “[...] O orgasmo simultâneo passou a medir a qualidade das relações e
significava o reconhecimento da capacidade da feminina de gozar igual aos homens.”
(PRIORE, 2011, p. 179). Com isso, e também com o advento da pílula como opção confiável
para escolher ter ou não filhos, o sentido do ato sexual entre os casais é alterado. Apesar de
tais mudanças, Maria Emília cresce e envelhece reprimida, por ter sido criada por pais que
vieram de um contexto altamente controlador, sobretudo no que diz respeito a sexualidade
feminina e, ainda mais, a personagem não consegue transgredir e desmistificar tais
concepções na vida adulta e posteriormente na velhice.
Ao longo de toda a narrativa do conto, durante o curto espaço de tempo que esse
gênero literário permite, é possível notar o quanto a personagem em questão observa de modo
perplexo as mudanças comportamentais ocorridas diante dos olhos a sessenta e um anos em
atividade. Seu embaraço é ainda maior ao analisar que suas contemporâneas, diferentemente
dela, são adeptas aos novos modismos e não se “portam” a maneira de uma senhora na casa
dos sessenta anos de idade. Vejamos a seguinte passagem:

[...] tico vigilante (aprumou-se, levantou a cabeça) para não acontecer comigo o que
aconteceu com a Mariana, tão fina, tão prendada. Família tradicional, de um dos
melhores troncos paulistas, olha aí a Mariana. Viagem jóia. Fiz compras lindas mas
está na hora de voltar porque minha calça já perdeu o vinco, escreveu no cartão que
me mandou de Manaus. A calça perdeu o vinco e ela, a vergonha. Sessenta e quatro
anos e meio. Quem visse podia pensar, é uma jovem que foi fazer contrabando.
Espera, jovem não, que jovem não se importa com vinco de calça, postal de uma
velha mesmo e com medo de parecer desatualizada. Então conta bandalheiras, me

VIII Seminário Internacional XVII Seminário Nacional Mulher e Literatura: Transgressões, Descentramentos, Subversão
612

diz ôi! no telefone e usa calça grudada no derrière. Só falta usar aquelas camisetas
com coisas escritas nas costas (TELLES, 1998, p. 16) [Grifos da autora].

Frente a isso, nota-se a desconfiança e pouco entusiasmo da personagem em relação


àquele mundo novo imerso de transformações comportamentais. Outro fator que contribui
para o alarde das mudanças no comportamento social das pessoas, foi o crescimento dos
meios de comunicação de massa, principalmente da televisão, ao que Maria Emília diz:
“Televisão é outro foco de imoralidade. Anúncios mais sujos, uma afronta” (TELLES, 1998,
p. 16). Conforme Mary Del Priore, o número de residências urbanas com aparelho de TV,
passou de 9,5% na década de 60, para 40% nos anos 70, funcionando assim, como elemento
disseminador do novo modelo de vida.
Apesar dos movimentos de valorização da mulher, mudanças nos rumos da
sexualidade, entre outros, serem amplamente difundidos entre os anos 60-70, foram também
anos de falta de liberdade, censura e perseguição, principalmente a estudantes, intelectuais e
artistas (PRIORE, 2011, p. 178). Maria Emília, em seu tradicionalismo supremo, defende:
“Filme nacional? Nacional, claro, se tem cama, mulher com cara de gozo e homem em trajes
menores, só pode ser cinema brasileiro, uma verdadeira afronta, incrível, como a censura
permite?” (TELLES, 1998, p. 24), nesta via, Mimi se configura como retrato da sociedade
brasileira conservadora e elitista da época.
Lygia Fagundes Telles, traz a personagem Maria Emília como defensora da moral e os
bons costumes. Entretanto, com desejos escondidos em seu mais profundo íntimo, o que se
pode notar na seguinte confissão: “Eu tinha inveja da sua vida inquieta, imprevista, rica de
acontecimentos, rica de paixão - era então inveja? Olha que você pintou e bordou, eu lhe disse
outro dia e ela riu e seu olhar ficou úmido” (TELLES, 1998, p. 28). Com isso, infere-se a uma
mulher com vontades e inquietações escondidas nos enlaces do pensamento e de suas
recordações, isto, devido a uma construção nos encalques da repressão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em “Senhor Diretor”, consegue-se voltar o olhar para a figura de uma mulher marcada
pelas intempéries de uma criação volvida pela opressão e a falta de liberdade do sexo
feminino, ao passo que se coloca em destaque seus anseios e desejos ocultados. Repressão

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613

esta, que transforma Maria Emília em um indivíduo escandalizado diante das mudanças
comportamentais ocorridas em sua época, principalmente em relação à sexualidade feminina.
Fator tal, que desde a juventude foi podado pela mãe nos moldes do medo e da
obrigação de uma mulher casada. A protagonista, fragilizada por sua criação, não consegue
transgredir na vida adulta e transformar o temor transmitido pela genitora em outro tipo de
perspectiva. Prefere trancar-se na tradicional e solitária existência.
Por fim, aos poucos a nossa personagem feminina central vai deixando cair por terra o
discurso contido e fechado no receio a tudo que sugira erotismo. E, confessa a nós, leitores,
que existem desejos camuflados em seu íntimo. O que é possível fazer refletir o quanto que a
construção do ser mulher foi e ainda é hoje, em menor grau, conduzida pelas amarras de uma
sociedade repressora e machista. Elucidações tais, de seu tempo e sociedade, que a escritora
Lygia Fagundes Telles, magistralmente, testemunha e grava-as em suas narrativas ficcionais.

REFERÊNCIAS

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GREGÓRIO DE MATOS E SOROR JUANA INÉS DE LA CRUZ: O PERFEITO


INVERSO BARROCO

Ms. Thalita Gadêlha (UFPB)


thalitartg@hotmail.com

Neste artigo possibilitamos um aprofundamento teórico sobre as características


estruturais dos estudos de gênero na poesia de Gregório de Matos e Soror Juana Inés de La
Cruz analisando os poemas Engrandece el hecho de Lucrecia e A uma dama, que mandando-
a o poeta solicitar lhe mandou dizer que estava menstruada, a fim de que possamos discutir a
visão da mulher por um homem e a visão do homem por uma mulher, isto é, a forma como a
mulher colonial é representada e apresentada em óticas distintas, particularmente nestes
poemas através da simbologia do sangue feminino – este que carrega fortes concepções de
mistério e repulsa. De forma crítica, esta análise buscará interpretar o modo de vida da mulher
colonial e, não só a forma como ela é vista através da visão masculina, mas também, a forma
como ela se coloca frente à condição de inferioridade em contrapartida ao perfeito inverso na
obra de Soror Juana, isto é, como uma mulher com a oportunidade da escrita descreve o
homem seiscentista revelando suas angústias e insatisfações. É possível observar de forma
precisa como os poetas trabalhados seguem opostos extremos: enquanto Juana Inés busca, de
forma inovadora na América, não se calar diante de uma imensidão de preconceitos formados
acerca da figura feminina, Gregório de Matos, ao contrário, contribui para o fortalecimento da
opressão da mulher numa sociedade patriarcal. Para fundamentar este trabalho, utilizamos as
contribuições teóricas de Scott (1992), (1990), Nicholson (2000), Butler (2015), Wolff
(2014), Showalter (1994), Bosi (2006), Hansen (2006), Paz (1985), Priori (2013), que foram
utilizados com ênfase na relação entre os estudos de gênero e os poemas barrocos propostos;
estes que são um importante arquivo sociocultural da literatura colonial.
Palavras-chave: Gregório de Matos. Soror Juana Inés de La Cruz. Poesia barroca.
Representações de gênero. Literatura colonial.

Introdução

Amparada inicialmente pela religiosidade imposta aos habitantes da América, a


estética barroca logo toma grandes proporções devido à semelhança de suas tendências com o
modo de vida do povo das colônias. A literatura, junto com outros campos artísticos,

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consegue representar o modo de vida de uma sociedade desigual, cheia de vícios e costumes
de várias etnias unidas num mesmo espaço, proporcionando um vasto campo de análise não
só literária, mas também, socio-cultural.
Para tanto, o poeta brasileiro Gregório de Matos e a poetisa mexicana Soror Juana Inés
de La Cruz são dois importantes representantes deste período que retratam largamente as
características não só do barroco, mas também, reproduzem em seus poemas as questões
político-sociais de suas colônias, tornando-se dois poetas de máxima importância para o
entendimento da época. Se no Brasil encontramos um poeta envolvido com as imposições
patriarcais, revelador e contribuinte para a subalternização feminina, no México os poemas
barrocos mais famosos do século XVII são construídos de forma contrária: uma monja
transgressora que avalia a postura da mulher de forma diferente defendendo ampla liberdade e
independência de gênero para uma sociedade mais justa.
O curioso em trabalhar com estes dois poetas está justamente nas ideias
completamente opostas que os dois possuem em relação à mulher vivendo na mesma época.
Os dois são barrocos, os dois possuem semelhanças na escrita por serem contemporâneos, os
dois viveram em colônias exploradas, os dois são irreverentes e extravagantes, entretanto, a
maneira como cada um vê e representa a mulher em suas literaturas os põe em lados
completamente distintos: ele, homem dominante que faz uso do patriarcado para descrever as
mulheres que, ao seu dizer, são inferiores, e ela, mulher que não se rende frente a condição de
subordinação e inferioridade femininas do século XVII.

Estudos de gênero, História das Mulheres e Crítica literária feminista: alguns conceitos

O termo “suplemento”, ao qual fazemos alusão neste trabalho foi empregado por Joan
Scott para se referir à História das Mulheres, com o significado de “adição”, quanto de
“substituição” na construção de uma nova História. Empregamos aqui no sentido de
ferramenta importante na construção de um novo cânone literário, isto é, como uma categoria
necessária para a reestruturação da história da literatura. Consideramos significante, antes de
tratar da crítica literária feminista, discorrer brevemente acerca da História das mulheres, seus
principais conceitos, sua incursão na Academia e a utilização de gênero como categoria de
análise histórica, proposta pela pesquisadora Joan Scott. A história das mulheres inicia seu
percurso tanto como adição, pois seria o acréscimo necessário para a história da humanidade,

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atribuindo uma potencial força política às mulheres, como também a substituição para o que
está ausente, o que sempre esteve incompleto, mas precisa resistir para integrar o que nunca
devia ter sido excluído:

[...] O suplemento é uma dessas “indefinições”. Na França, como na Inglaterra, ele


significa tanto a adição, quanto uma substituição. É algo adicionado, extra,
supérfluo, acima e além do que já está inteiramente presente; é também uma
substituição para o que está ausente, incompleto, carente, por isso requerendo
complementação ou integralidade. [...] Ele é supérfluo e necessário, perigoso e
redentor (SCOTT, 1992.p. 76).

Assim, a História das Mulheres surge para fazer a devida modificação da “história”
questionando não só o modo como o termo foi escolhido, mas também, questionando a
prioridade relativa dada à “história do homem” expondo a hierarquia implícita e o jogo de
dominação e poder masculinos em variados relatos históricos (SCOTT, 1992.p. 76).
Para Linda Nicholson o termo “gênero” tem suas raízes frente à construção social. “O
corpo é visto como um tipo de cabide em pé no qual são jogados diferentes artefatos culturais,
especificamente ou relativos à personalidade e comportamento” (2000, p. 3). Para a
pesquisadora, as mulheres são oprimidas pelo sexismo e algumas, além disso, pelo racismo
devido a questões sociais e raciais. Diante disso, o corpo deve se tornar uma variável da
concepção feminista, não uma constante, pois a população humana difere constantemente
dentro de si mesma, logo, precisamos abandonar o determinismo biológico a fim de que
entendamos as variações sociais como uma não estereotipação (NICHOLSON, 2000, p. 6).
No século XXI, vê-se intensificar os estudos sobre gênero, cujo interesse se voltam em
especial para a sexualidade, a exemplo das teorias de Judith Butler. Para a pesquisadora as
mulheres assumem, então, uma identidade política invariavelmente ligada aos estudos social,
cultural, geográfico, econômico, racial, sexual, libidinal... na luta contra a supremacia
masculina. Nesta perspectiva, o falocentrismo207 e a heterossexualidade compulsória são duas
instituições definidoras que acabam por interferir na postura e comportamento social dos seres

207
Esse termo, criado em 1927, pertence ao vocabulário freudiano e se apoia na tradição greco-latina, segundo a qual as
diversas representações figuradas do órgão masculino organizavam-se num sistema simbólico. Ele remete à teoria
freudiana da sexualidade feminina e da diferença sexual e designa uma doutrina monista, em cujos termos só existiria
no inconsciente uma espécie de libido de essência viril. Essa doutrina foi criticada por Melanie Klein, Ernest Jones e a
escola inglesa de psicanálise, que lhe opuseram uma teoria dualista da diferença sexual. Depois da Segunda Guerra
Mundial, com o desenvolvimento do movimento feminista, a palavra falocentrismo adquiriu uma significação
pejorativa, na medida em que foi assimilada a uma doutrina decorrente da “falocracia”, isto é, de um modo de poder
sexista, baseado na desigualdade e na dominação das mulheres pelos homens. (ROUDINESCO, Elizabeth; PLON,
Michel. Dicionário de Paicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco
Antonio Coutinho Jorge. — Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 221).

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humanos contribuindo para a desigualdade entre homens e mulheres. Compreendidos como


regimes de poder/discurso (BUTLER, 2015, p.10) reagem frequentemente de maneiras
divergentes às questões centrais de discurso de gênero. O feminino, como grande resistente,
não pode se caracterizar como o único termo exclusivamente representativo para a mulher.
Como escritora, Woolf relata a mulher vista na ficção escrita por homens como
heroica e cruel, esplêndida e sórdida, infinitamente bela ou horrenda ao extremo, tão
grandiosa como um homem, todavia, na realidade esta mesma mulher é trancada, espancada e
jogada de um lado para o outro (2014, p. 65-66). Para ela, as escritoras dos séculos anteriores
ao XIX viveram num eterno conflito consigo mesmas e com uma sociedade incapaz de aceitar
a mulher como capaz de produzir e consumir literatura. A exemplo, Juana Inés, uma
verdadeira produtora e consumidora de textos literários que em pleno século XVII, e com a
grande proteção do hábito, não se calou frente aos impropérios do patriarcado.
Para tanto, o compromisso dos estudos feministas são com a denúncia da ideologia
patriarcal – que permeia a crítica tradicional e determina a constituição do cânone literário – e
o resgate do trabalho feminino silenciados na história da literatura recuperando a identidade
feminina e afastando-se da ideia de sensibilidade contemplativa ou linguagem imaginativa ao
se tratar de escrita feminina. Portanto, a crítica feminista se apresenta como um ato de
resistência, uma confrontação necessária com os cânones e julgamentos existentes, uma ação
intelectual libertadora (SHOWALTER, 1994, p. 11-12).

Tabu e desmistificação: um duplo olhar do sangue feminino

Desde a Idade Média, com a consolidação do pensamento da mulher como fonte do


pecado através de Eva (LINS, 2012, p. 49), o sangue da mulher foi visto como algo sujo e
assustador, sendo, portanto, sempre evitado. Em especial, o sangue menstrual tornou-se um
tabu também na América colonial e, como visto no primeiro capítulo, tornou-se alvo ao
mesmo tempo de repulsa e curiosidade. Os poetas Gregório de Matos e Juana Inés de La
Cruz desenvolveram poemas voltados para a questão do sangue feminino em óticas opostas:
enquanto ele apresenta o sangue como algo totalmente desprezível e sujo, ela desmistifica
essa ideia desconstruindo o pensamento seiscentista do sangue como fruto do pecado e do
pacto da mulher com o mal transformando-o numa fonte natural de bravura e resistência
feminina.

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O poema A huma dama que mandando-a o poeta solicitar-lhe mandou dizer que
estava menstruada de Gregório de Matos pode ser classificado como um dos mais intrigantes
de sua vasta produção. Beirando a galhofa, o poeta descreve sua verdadeira repugnância ao
menstruo, considerado impuro e extremamente negado na sociedade do século XVII. O poeta
barroco possui, inclusive, alguns poemas voltados para a temática do sangue menstrual, o que
demonstra sua total repulsa e ao mesmo tempo sua extrema curiosidade para com os mistérios
do corpo feminino.
Era necessário abafar a sexualidade feminina a fim de não ameaçar o equilíbrio
doméstico nem a segurança da condição social masculina, portanto, questões relacionadas à
menstruação, amamentação ou qualquer outra atividade biológica tipicamente feminina era de
total repulsa e mau querença. O atraso da medicina da época, ainda baseados nos rasos
conhecimentos da Idade Média, fizeram com que a colônia interpretasse o sangue menstrual
como sujo, impuro e fruto do pecado original (PRIORE, 2013, p. 110). O simples
desconhecimento acabava prejudicando, por vezes fatalmente, a saúde da mulher. Se na
contemporaneidade o sangue menstrual ainda é desconfortável aos olhos de uma maioria, no
século XVII a abominação era total. Daí a repugnância do poeta Gregório descrita no poema
que segue.
O poema não foi dividido em estrofes fixas e aparenta tratar-se de uma narração de um
eu-lírico bastante preconceituoso e escrachado sobre um encontro que foi barbaramente
impedido pelas regras da jovem relatada. Possui algumas rimas pobres intercaladas, bem
como trocadilhos, metáforas e antíteses tão frequentes da produção barroca. De forma
bastante abusiva e costumeira da produção satírico/erótica do poeta, o texto revela não só o
pensamento de um poeta bastante conservador e sexista, mas também, a visão da sociedade
colonial perante questões intimamente femininas como o sangue menstrual.

A huma dama que mandando-a o poeta solicitar-lhe mandou dizer que estava
menstruada

O teu hóspede, Catita,


Foi muito atrevido em vir
A tempo que eu ei mister
O aposento para mim.
Não vou tomar-me com ele,
Porque havemos de renhir,
E há de haver por força sangue,
Porque é grande espadachim.

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Tu logo trata de pôr


Fora do teu camarim
Um hospede caminheiro
Que anda sempre a ir, e vir.
Um hospede impertinente
De mau sangue, vilão ruim:
Por mais que Cardeal seja
Vestido de carmesim.
Despeje o hóspede a casa,
Pois não lhe custa um ceitil,
E a ocupa de ordinário
Sem pagar maravedi.

Não tenhas hóspede em casa


Tão asqueroso, tão vil,
Que até os que mais te querem
Fujam por força de ti.
Um hospede aluado,
E sujeito a frenesis,
Que em sendo quarto de lua
De fina força há de vir.
Que diabo há de sofrê-lo
Se vem com tão sujo ardil,
A fazer disciplinante,
Quem foi sempre um serafim?

Acaso o teu passarinho


É pelicano serril,
Que esteja vertendo sangue
Para os filhos, que eu não fiz?
Vá-se o mês, e venha o dia,
Em que eu te vá entupir
Essas cruéis lancetadas
Com lanceta sutil.
Deixa já de ensaguentar-te,
Porque os pecados que eu fiz,
Não é bem, que pague em sangue
O teu pássaro por mim.
(GREGÓRIO, 2010. p. 864 - 866)

O poema é iniciado já indicando o sangue menstrual como hóspede, aquele que se


abriga em outro, aquele que está no outro, sendo, portanto, bastante atrevido em abrigar-se
naquele momento oportuno. A senhora a quem o eu-lírico se dirige é classificada como uma
jovem elegante e bonita pelo próprio eu-lírico. Já nos primeiros versos é declarada a
insatisfação da presença da menstruação, pois, o eu-lírico desejava encontrar-se com a jovem
e fora impedido por este. Fica explicita uma espécie de travamento entre o eu-lírico e o
sangue menstrual bem como a clara vantagem que este tem sobre o eu-lírico, pois é bem mais
forte e imbatível.
O eu-lírico se expressa de forma imperativa ordenando que a jovem ponha pra fora o
hospedeiro indesejado. Gregório usa expressões como “hóspede impertinente”, “mau sangue,
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vilão ruim”, “a ocupa de ordinário”, para classificar o indesejado menstruo. Aquele que era
tomado como sujo e fruto do pecado é tomado em total repugnância em todo o texto. O eu-
lírico exige o fim do sangue que sempre vai e volta, tornando sua relação com a jovem
insustentável. O sangue, visto como impertinente, mau e vilão, é sem sombra de dúvidas
apresentado no poema como algo que possui laço com o mal. O Brasil católico do século
XVII tinha esta concepção amplamente negativa sobre o sangue menstrual e o poema
descreve perfeitamente o pensamento patriarcal da época.
O eu-lírico ainda completa que, por mais fundamental e necessário que seja a
menstruação mensal, e por mais que ele venha a ser vermelho forte, brilhante e profundo
como o carmesim, é necessário que o hospede indesejado seja despejado, pois, além de ser
ordinário, ele não custa um centavo, não vale nada. Através da poesia, o eu-lírico descreve
uma discreta beleza poética ao adjetivar o sangue como “cardeal” e “carmesim”. Todavia, tais
descrições não são suficientes em vista de todo o poema que não economiza no desprezo, no
nojo e no desejo de livrar-se do sangue tido como maldito.
O eu-lírico prossegue com as mais variadas classificações torpes e asquerosas ao se
dirigir ao sangue que o impede de se encontrar de forma íntima com a devida jovem.
Asqueroso e vil são mais dois adjetivos dado pelo eu-lírico ao menstruo. Ainda que o sangue
menstrual seja desejado, seja pela certeza da saúde feminina ou pela confirmação mensal da
não concepção, ainda assim, o sangue menstrual é motivo de fuga por força maior, sempre
pautado no conceito do mau, do sujo, do pecado.
Há ainda a indicação da relação entre o menstruo e o frenesi, isto é, o entusiasmo
delirante de quem vive o período menstrual, ou ainda, a personificação da própria
menstruação como alguém que delira. Acreditava-se no poder do útero e de sua íntima relação
com a vida da mulher, seu comportamento e suas emoções. O frenesi segue empregado junto
a uma das fases da lua no intuito de esclarecer a excitação feminina. O poeta aproxima a
mulher e suas emoções à lua e a magia que a lua representa na vida das mulheres. Além disso,
existe também a crença vinda dos gregos de que a mulher estaria ligada a lua enquanto o
homem estaria ligado ao sol, sendo, portanto, o homem um ser ativo e a mulher um ser
passivo. Logo, a aparente beleza do verso na verdade pode estar escondendo a postura sexista
do poeta barroco, e não apenas alegar o misticismo feminino.
Em seguida, o eu-lírico questiona a disciplina obrigatória que tem que passar em
consequência do sangue menstrual, pois, a mulher estando menstruada, ele não poderia ter

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621

relações sexuais com ela devido a impureza menstrual instituída socialmente. No último verso
o eu-lírico se compara a um anjo por se fazer obrigado a não praticar sexo no início do ciclo
menstrual das mulheres. Nos últimos versos o eu-lírico compara a vagina da jovem a um
passarinho. Esta comparação é recorrente, inclusive em outros poemas satírico/eróticos de
Gregório de Matos. Como um pássaro que voa livre, assim deveria ser também a jovem e seus
desejos, porém, ela é impedida, pois, está vertendo sangue. O eu-lírico ainda afirma ser o
sangue inútil já que ele é a prova de que um filho não foi gerado entre o casal.
Em seguida, Gregório de Matos capricha no erotismo e nos convida a imaginar o dia
em que finalmente a menstruação da jovem irá embora para que o rapaz possa entupi-la com
cruéis lancetadas, isto é, o dia em que o jovem descontará os dias perdidos com um sexo
intenso, que ora beira a crueldade, ora a sutileza. Observa-se que em nenhum momento há a
conquista, tampouco o aparente interesse em saber se a jovem está disposta e deseja este sexo
no futuro próximo. O que existe é uma afirmação por parte do homem que possuí-la sem a
confirmação do desejo recíproco.
Um poema intrigante que revela o posicionamento do povo na colônia. A mulher
aparentemente se faz passiva e responde totalmente aos desejos masculinos esquecendo os
seus próprios. A figura masculina se apresenta como dona de toda a situação; é aquele que
conduz não só um relacionamento, mas também, se atreve a querer conduzir e exigir o que
não pode em relação ao ciclo menstrual da mulher. Uma sociedade machista e conservadora
que valoriza variados conceitos religiosos e faz questão de esquecer a importância da mulher
em sociedade. Ao contrário, o poema nos faz pensar que estamos de frente para uma
sociedade que faz questão de calar a voz da mulher ignorando-a e tornando-a apenas um
objeto de reprodução sem desejos, prazeres ou escolhas próprias.
Num curioso contraste ao poema de Gregório de Matos, o poema Engrandece el hecho
de Lucrecia de Soror Juana Inés de La Cruz estabelece um extremo oposto ao pensamento
preconceituoso de Gregório aniquilando o mistério do sangue feminino, engrandecendo-o e
transformando-o numa figura de dignidade para a construção da luta do papel da mulher em
sociedade. O soneto apresentado encontra-se dividido como regra geral em quatro estrofes,
sendo as duas primeiras de quatro versos e as duas últimas de três versos cada. Possui versos
construídos em decassílabos e rimas emparelhadas em A B B A A B B A C D C D C D, ora
rica, ora pobres e perfeitas. Aqui a temática do sangue feminino e totalmente desconstruída
ganhando uma outra perspectiva por Juana Inés. Enquanto no poema anterior de Gregório de

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Matos o sangue feminino é tratado como desprezível e sujo, Juana Inés quebra tabus e
reconstrói a imagem da mulher guerreira: aquela que bravamente põe fim aos verdadeiros
males exaltando a nobreza do sangue de resistência e dignidade da mulher.

Engrandece el hecho de Lucrecia

¡Oh famosa Lucrecia, gentil dama,


de cuyo ensangrentado noble pecho
salió la sangre que extinguió, a despecho
del rey injusto, la lasciva llama!

¡Oh, con cuánta razón el mundo aclama


tu virtud, pues por medio de tal hecho,
aun es para tus sienes cerco estrecho
la amplísima corona de tu fama!

Pero si el modo de tu fin violento


puedes borrar del tiempo y sus anales,
quita la punta del puñal sangriento

con que pusiste fin a tantos males;


que es mengua de tu honrado sentimento
decir que te ayudaste de puñales.
(LA CRUZ, 1988. p. 281)

Estuprada, Lucrécia comete suicídio para provar sua dignidade. Através da figura de
Lucrécia, o eu-lírico apresenta a resistência da mulher ao estupro e à violação da dominação
masculina. Neste soneto o eu-lírico trata também do sangue feminino, mas, numa outra
perspectiva. Aqui o sangue de sujo e rejeitado passa a ser representação de bravura e força da
mulher que não se cala frente às condições a que é imposta. Um rei despeitado que não
reconhece a bravura e a nobreza de Lucrécia agora é obrigado a reconhecer a virtude desta
nobre e gentil dama. Para tanto, o mundo aclama a virtude de Lucrécia. Lucrécia pode
representar através deste soneto, então, o arquétipo feminino e todas as virtudes declaradas à
mulher. O eu-lírico reconhece a fama de Lucrécia com o “tal feito”, isto é, nos apresenta a
popularidade de Lucrécia após o suicídio e ao invés de menosprezá-la, exalta-a mesmo a
decorrência de tal feito. Ao tirar a própria vida, Lucrécia se revela uma mulher forte
transgredindo as leis patriarcais, pois, em vida, seria transformada numa mulher suja e
desprezível assim como seu sangue. Entretanto, Lucrécia escolhe a morte para transformar o
significado não só de seu sangue, mas, dela própria em sociedade.
O eu-lírico completa, em conclusão, que o fim violento de Lucrécia não manchará seu
virtuoso registro histórico e sua importância para as sociedades futuras. O sangrento punhal

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que tirou a vida de Lucrécia é, pois, o mesmo que pôs um fim a tantos males. Males estes
decretados por uma sociedade sexista que insistia em menosprezar a figura da mulher. Estes
males, segundo o eu-lírico, é míngua frente ao honrado sentimento de Lucrécia em decidir
defender bravamente sua imagem e conduta. Neste poema, o eu-lírico trata do sangue, mas
numa perspectiva diferente da do poema A huma dama que mandando-a o poeta solicitar-lhe
mandou dizer que estava menstruada de Gregório de Matos. A ênfase que é dada à sujeira do
sangue menstrual no primeiro poema, aqui exalta a nobreza do sangue de resistência,
dignidade e bravura feminina. Uma das preocupações da poética de Juana Inés de La Cruz é
justamente preservar a imagem da mulher através do resgate de figuras femininas valorosas
que desmentem as acusações injustas dos “hombres necios”, a exemplo da carta Respuesta a
Sor Filotea de la Cruz ou dos poemas dedicados as vice-rainhas da Nova Espanha. Ela mesma
transformou-se numa figura valorosa por não se calar frente à desigualdade do patriarcado.
São inúmeras as mulheres que assim como Juana Inés defenderam a imagem da mulher contra
a imposição da supremacia masculina já apresentada neste trabalho.
Nesta perspectiva, o sangue, estaria apresentado, não como algo negativo e proibido,
mas como um objeto de luta e transgressão. O sangue feminino neste poema representa,
portanto, uma resistência à onipotência masculina. É recorrente a referência a “sangue” em
outros poemas de Juana Inés de La Cruz, todos voltados para uma representação de luta,
bravura e resistência, diferentemente de Gregório de Matos que possui também vários poemas
voltados para a questão do sangue feminino, todavia, voltados para a negação, a proibição e o
desprezo. Diante do conservadorismo que é tomado o período seiscentista, o soneto de Soror
Juana Inés de La Cruz representa o caminho para uma nova posição social para a mulher em
virtude do reconhecimento da importância do papel feminino em sociedade. Entretanto, o
oposto é sentido através da poética gregoriana que insiste em abafar a importância da figura
feminina. Ambos tratam da mulher num mesmo período histórico e literário, mas, de maneira
totalmente diferentes constroem duas visões a respeito da mulher colonial.

Considerações Finais

É totalmente perceptível a diferença ideológica entre Gregório e Juana Inés. Enquanto


ele faz questão de reforçar o conservadorismo e a pseudo supremacia masculina, Juana Inés

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luta em favor dos direitos da mulher e valoriza a igualdade de gênero. Dois poetas
contemporâneos, mas que produziram de maneiras diferentes.
Ainda que Gregório seja elogiado por suas importantes críticas voltadas para questões
sociais, o poeta não se permitiu participar de uma luta em prol da classe feminina. Ao
contrário, Gregório de Matos contribui, através de sua poesia, para que a sociedade
seiscentista no Brasil permaneça desprezível quando se trata das questões de gênero. O poeta
não se permitiu enxergar uma nova era por trás do preconceito e de toda a desigualdade de
gênero vivida no século XVII. É importante também ressaltar que ainda é desconhecida a
existência da produção feminina no Brasil no período barroco, portanto, Gregório de Matos
encontra-se atualmente como único poeta a fazer poesia neste período. Logo, sua poética
contribui para o conceito de subalternização feminina na colônia portuguesa, já que não há
nem outro poeta, tampouco uma poetisa reconhecida até então para análise, comparação e
participação do cânone.
Soror Juana Inés de La Cruz, ao contrário, faz de sua poesia um meio para intervir
contra todo o preconceito e injustiças vividas pela mulher desde o seiscentos. Na Nova
Espanha, Juana Inés, ainda que protegida por poderosos, fez bom uso de sua condição de
religiosa e se permitiu fazer uma exímia guerreira do que viria se tornar mais tarde a causa da
luta feminista. Mesmo quando a mulher não tinha vez nem voz, Juana Inés se permitiu fazer
ouvida e eternizou sua luta em favor da mulher em sua poesia. A poesia de Juana Inés de La
Cruz é de extrema importância não só para os que lutam pela igualdade de gênero, mas para
todas as mulheres, pois todas são direta ou indiretamente atingidas pela força de sua poesia.
Sua poesia se faz importante no mundo contemporâneo para que se perceba o que podemos
chamar de início da luta feminista na América Latina e para que possamos perceber que,
independente do período em que vivamos, a busca pelos direitos das mulheres segue o mesmo
caminho e não pode ser interrompido.
Uma mulher brilhante que não se calou diante das atrocidades vividas pelas mulheres
em sua época. Uma mulher que inteligentemente soube se preservar diante das críticas através
dos “muros sagrados” dos conventos para revelar seus mais íntimos desejos através de uma
poesia liberta, forte, inovadora. Assim, Juana Inés de La Cruz conseguiu preservar sua poética
nos apresentando os aspectos sócio-culturais do século XVII. Dois poetas contemporâneos
entre si onde a comparação é inevitável. Dois poetas eternizados através de literatura que, de
formas diferentes, se permitiram abordoar a temática feminina. Enquanto um optou

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625

permanecer ao lado do preconceito e do machismo conservador tolhendo e menosprezando as


mulheres em sua poesia, a outra, brilhantemente abriu as portas da igualdade entre os gêneros
e se permitiu fazer um instrumento de luta frente a todo preconceito vivido pelas mulheres.

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O PAPEL DAS MULHERES EM DUAS OBRAS DE LOBATO: ANÁLISE DAS


DIFERENÇAS ENTRE OS MODOS DE NARRAR DE TIA NASTÁCIA E DONA
BENTA EM HISTÓRIAS DE TIA NASTÁCIA E FÁBULAS

Yasmin Meneses Silva Lima (UFBA)208


E-mail: min.meneses@gmail.com

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Monteiro Lobato é (re)conhecido, nos diversos trabalhos acadêmicos que versam


sobre sua produção literária – e também em alguns espaços fora da academia –, como o “pai”
da literatura infantojuvenil brasileira. Peres (2007) mostra que a literatura infantil começou a
ser produzida, no Brasil, no final do século XIX. Antes disso, circulavam, aqui, para o
consumo infantil, “traduções portuguesas dos contos de fadas e de obras pedagógicas
europeias.” (PERES, 2007, p. 5). O período citado correspondeu à abolição da escravatura e
ao advento da República, fato que culminou na preocupação dos autores brasileiros em
mostrar o Brasil como uma nação em pleno desenvolvimento – o que desencadeou no ensino
do amor à pátria e do civismo às crianças através dos textos literários. Esses raros escritores
que começaram a empreitada de escrever para crianças no Brasil, ainda de acordo com Peres
(2007), eram, majoritariamente, bem relacionados com os governantes, os quais garantiam a
adoção em grande volume desses livros nas escolas. Os escritores e os governantes, portanto,
tinham seus interesses assegurados através de uma troca na qual quem saía perdendo eram as
crianças, que precisavam lidar com uma literatura forjada e nada atraente. Apenas nos anos
1930 é que essa realidade começa a se modificar com o esforço quase solitário do escritor
Monteiro Lobato. Como diversos autores afirmam, ele ajudou a fundar uma literatura voltada
para crianças que valorizava o uso da fantasia como recurso para atrair o público em questão,
o que rompeu com o cânone estabelecido do fazer literário da época. Outra característica da
literatura produzida pelo autor é o uso de “histórias da tradição oral européia, indígena e
africana como matrizes das narrativas dirigidas à criança” (GOUVÊA, 1999, p.14). Lobato, ao
mesmo tempo em que rompe com o cânone da época, faz uso dessas matrizes citadas pela
autora, contudo, ele não somente traz para os seus textos os “elementos presentes nos contos
208
Mestranda no Programa de Pós-Gradução em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

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de fadas e no folclore” (GOUVÊA, 1999, p. 20), como também dá a eles uma nova
identidade.
O porco é um marquês com o qual Emília interesseiramente aceita se casar para se
tornar marquesa, mas desposa um leitão que só quer comer. Percebendo-se
enganada, só resta à boneca a separação. Para Narizinho: “Tudo se arruma. Um dia
ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.” O príncipe escamoso
acaba sendo frito por Tia Nastácia, deixando Narizinho viúva, porém feliz.
(GOUVÊA, 1999, p. 20).

Pode-se perceber, no exemplo apresentado, retirados por Gouvêa (1999) do livro


Reinações de Narizinho (1931), de Lobato, que o autor moderniza os contos de fadas,
levando-os a “[...] dialogar com valores e tensões presentes à época da produção da narrativa”
(GOUVÊA, 1999, p. 20). A partir da fusão desses dois elementos, o autor “[...] estabelece o
recurso à imaginação como um dos traços definidores de uma escrita dirigida ao público
infantil” (GOUVÊA, 1999, p. 17), construindo, assim, uma produção inaugural que foi de
suma importância para o desenvolvimento dessa literatura no Brasil. Além disso, o autor se
aproximou dos seus jovens leitores através do uso de uma linguagem mais oralizada e
também da utilização de recursos como o encaixe de narrativas, ou seja, a narração de
histórias realizada pelas personagens lobatianas, majoritariamente Dona Benta, o que abria
espaço para que as demais personagens, sobretudo as crianças, pudessem fazer comentários e
esclarecer dúvidas ao longo da narrativa – principalmente das adaptações lobatianas. Este
recurso foi utilizado pelo autor nas duas obras aqui analisadas. As narrativas de encaixe
ocorrem através da inserção de um novo plano à narrativa: o plano do Sítio do Pica Pau
Amarelo. Esses dois planos (o externo, que se refere ao sítio e dá base à narrativa secundária e
o interno, que se refere à história que está sendo narrada – no caso de Dona Benta, às fábulas
e no caso de Tia Nastácia, aos contos), se alternam durante a narrativa de Lobato. Com a
inclusão desse plano, os elementos que poderiam representar dificuldades para a leitura da
criança se apagam, visto que Dona Benta, nos dois casos, atua como mediadora entre a obra e
a criança, o que proporciona “[...] uma autonomia maior para a sua leitura (BÖHM, 2004,
p.65). Pode-se perceber, portanto, que Lobato não concordava com o “[...] caráter realista e
veiculador de preceitos morais” (GOUVÊA, 1999, p. 17) dos textos literários produzidos
pelos autores que o precederam. Apesar disso, ele também possuía um projeto de nação, que
buscou difundir como escritor e como editor, no qual o Sítio do Picapau Amarelo pode ser
interpretado como uma representação do Brasil e que impunha às crianças da época valores e
hierarquias consideradas importantes para ele, como será demonstrado adiante. O presente

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artigo visa analisar de que modo a atividade de narrar, realizada pelas personagens Tia
Nastácia e Dona Benta, reflete o papel destinado às mulheres nas obras do autor, explicitando
as hierarquias presentes no Sítio do Picapau Amarelo.

2. ANÁLISE DAS OBRAS

Apesar de ambas as obras possuírem semelhanças – como o fato de serem narradas por
mulheres, se constituírem como narrativas dentro de narrativas e se tratarem de histórias
curtas – fábulas, no caso das histórias contadas por Dona Benta e histórias da cultura popular,
no caso das histórias que Tia Nastácia apresenta às crianças do Sítio – e por que não do Brasil,
de modo geral? – são os aspectos constituintes de diferenças entre as obras que chamam a
atenção nessa análise. Ambas as obras aqui analisadas foram editadas pela Editora Globo e
lançadas no ano de 2011.

2.1 HISTÓRIAS DE TIA NASTÁCIA

A edição aqui considerada possui quarenta e três histórias, que têm origem europeia,
cujos contos versam sobre princesas, castelos e tudo o que se refere a esse universo, africanas
e indígenas, nas quais os contos tratam, majoritariamente, sobre animais. Os contos são
narrados por Tia Nastácia em serões, e têm início através da curiosidade de Pedrinho de saber
o que significa o termo folclore. A partir da resposta de Dona Benta, que afirma que o
significado tem a ver com “as coisas que o povo sabe por boca, de um contar para o outro, de
pais a filhos – os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedoria
popular etc. e tal” (LOBATO, 2011, p. 12), elege Tia Nastácia como uma representante do
povo e afirma que pretende espremê-la “para tirar o leite do folclore que há nela” (LOBATO,
2011, p.12). Publicada pela primeira vez em 1937, a obra apresenta duas particularidades
ressaltadas por Silva (2009): o tema, que pode ser definido como a cultura popular brasileira,
e que aparece como central em apenas mais uma obra lobatiana – O Saci (1921) – e a
narradora, Tia Nastácia. Apesar de a literatura infantil brasileira ter começado a ser publicada
nos fins do século XIX e começo do século XX, “[...] os personagens negros só aparecem a
partir do final da década de 20 e início da década de 30, no século XX [...]” (JOVINO, 2006,
p. 187), no contexto de uma sociedade que havia abolido a escravidão havia pouco tempo. As

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histórias desse período buscavam destacar a condição de subalternidade do negro. Por esse
motivo, nenhum aspecto da cultura era apresentado por um viés positivo. As personagens
negras retratadas nas obras desse período “não sabiam ler nem escrever, [...], ou seja, não
possuíam o conhecimento considerado erudito e eram representados de um modo
estereotipado e depreciativo” (JOVINO, 2006, p. 187). Fazendo uma análise da personagem
feminina negra na época, a autora observa que ela é sempre representada como a empregada
doméstica de uma família branca, “[...] retratada com um lenço na cabeça, um avental
cobrindo o corpo gordo: a eterna cozinheira e babá” (JOVINO, 2006, p. 188). Esse é,
certamente, o retrato de Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato. Observa-se, portanto,
que Lobato deu um grande passo ao colocar, nas suas histórias, uma personagem negra como
narradora. Apesar disso, o autor não deixa de explicitar as hierarquias que quer passar para o
seu público leitor.
Nas demais obras de Lobato, em especial nas suas adaptações, é Dona Benta quem
narra as histórias, enquanto Tia Nastácia ocupa o lugar da cozinha. Nessa obra, o que se
observa é que, apesar de assumir o lugar de contadora de histórias, o posto de dententora do
saber ainda é ocupado por Dona Benta. É ela quem esclarece as dúvidas das crianças em
relação às histórias, com as quais Tia Nastácia teve contato desde criança através das
narrações da sua mãe, Tiaga. No final do serão, no momento em que as demais personagens já
não querem ouvir contos populares brasileiros, Dona Benta assume o lugar de Tia Nastácia e
conta as seis histórias finais, que têm origem no folclore de outros países, e se compromete a
somente contar histórias dos grandes escritores, a partir de então – fato que confirma a
hierarquização trazida por Lobato durante toda a obra, de que a cultura letrada é mais
importante que a cultura oral popular. O que se pode perceber através disso é que não há uma
equiparação de saberes entre as personagens, ficando Tia Nastácia com o papel de mera
reprodutora - e não conhecedora – da história dos contos que fazem parte da sua realidade e
que, ainda mais grave, eleita por Lobato como representante do povo, parece mostrar que toda
a cultura popular é fundada na mera reprodução, aliada à ignorância, da sua própria tradição.
Outro fator que corrobora essa conclusão que Lobato parece passar é o fato de que, na obra,
nos comentários das crianças, entre uma história e outra, as críticas não são poupadas. Essa
não é uma novidade desse livro, visto que isso acontece em outras narrativas lobatianas, pois
as personagens costumam criticar, em seus textos, histórias antigas. Porém, a questão está na
“[...] violência com que a plateia critica as histórias contadas, declarando-as insatisfatórias e

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sublinhando o que considera seus defeitos” (LAJOLO, 1999, p. 70). Lajolo afirma que Dona
Benta
[...] conta as histórias que lê em livros estrangeiros, e enquanto adulta e
reconhecidamente mais experiente, narra de um espaço hegemônico em relação aos
seus ouvintes. Já quando Tia Nastácia assume a posição de contadora de histórias
[...] transfere [...] a inferioridade sócio-cultural da posição (de doméstica) que ocupa
no grupo e além disso (ou, por causa disso...), por contar histórias que vêm da
tradição oral não desempenha função de mediadora da cultura escrita, ficando sua
posição subalterna à de seus ouvintes, consumidores exigentes da cultura escrita [...]
(LAJOLO, 1999, p.68).

A citação deixa claro que são os próprios “[...] ouvintes que estabelecem a diferença
que afasta a tradição letrada e moderna que, erigindo-se em referente, confina à marginalidade
a produção cultural que não venha deste mundo urbano e moderno” (LAJOLO, 1999, p. 74).
Mais do que isso, confinam Tia Nastácia, personagem que, “[...] apesar de suas breves mas
muito significativas incursões pela sala e varanda, encontra no espaço da cozinha emblema de
seu confinamento e de sua desqualificação social” (LAJOLO, 1999, p. 65).

2.2 FÁBULAS

A obra Fábulas teve sua primeira edição em 1921, com o título Fábulas de Narizinho
a partir da necessidade que Lobato vê em criar obras que pudessem agradar ao público
infantojuvenil, como já foi falado acima. Na carta endereçada a Rangel, Lobato fala sobre a
necessidade de produzir obras para esse público:

Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La
Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. [...] Que é
que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da
literatura que nos falta. [...]. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil,
que nada acho para a iniciação de meus filhos... (LOBATO, 1964 apud VIEIRA,
1999, p. 45-46).

A fábula, de acordo com Souza (2009), é “um gênero de origens remotas, formada por
uma narrativa breve, cuja finalidade é ilustrar lições de vida” (p. 105). Ainda segundo a
autora, as principais influências para a adaptação lobatiana foram as obras de La Fontaine e
Esopo. Lobato adaptou essa obras, sempre que possível, “abrisileirando-as”. É o caso, por
exemplo, da primeira fábula apresentada pelo autor no livro: A cigarra e as formigas. Na
história original (Esopo), o fenômeno climático que aparece é a neve. Já na adaptação

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lobatiana, o autor não fala na neve, mas na chuva, visto que não neva na grande maioria do
Brasil, fazendo com que a narrativa dialogue com a nossa realidade.
A obra apresenta cinquenta fábulas e começa de modo abrupto, ao contrário das
demais adaptações lobatianas, ou seja, o leitor, ao abrir o livro, não tem uma contextualização
do que está acontecendo no Sítio – é transportado diretamente para a obra em questão. As
crianças, como na outra obra analisada neste artigo, têm espaço para opinar livremente acerca
das histórias que ouvem e das moralidades – característica típica do gênero em questão.
Apesar de toda a liberdade de expressão que Lobato delega aos interlocutores mirins de Dona
Benta, nessa e nas outras obras de sua autoria, é nítida a diferença entre elas e Histórias de
Tia Nastácia. O que se observa, na última, a partir de tudo o que foi discutido, é que, através
da violência com a qual as crianças reagem aos contos, Lobato quer transmitir a seguinte
hierarquia aos seus jovens leitores: as histórias advindas da cultura letrada importam mais do
que as histórias que vêm da cultura popular e oral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise dessas obras, o que se pode observar é que, nas palavras de Silva
(2009), “Se Lobato subverte, em suas histórias infantis, a hierarquia adulto/criança, o mesmo
não sucede às hierarquias branco/negro, erudito/popular, letrado/oral” (p.377). De modo geral,
observou-se, através da análise das obras selecionadas, que, no Brasil de Lobato, as histórias
europeias, contadas por Dona Benta, são entendidas como superiores por seu público ouvinte,
composto pelas demais personagens do Sítio (em especial as crianças), em relação às histórias
brasileiras, orais e populares, narradas por Tia Nastácia. Essa hierarquização presente nas
histórias que são narradas é reflexo de um modo de enxergar as personagens que as contam:
Dona Benta é o exemplo de intelectualidade, a personagem responsável por introduzir, no
contexto do Sítio, histórias europeias para a apreciação e formação das crianças; já Tia
Nastácia, personagem negra cuja função principal é cuidar da cozinha, se arrisca na função
majoritariamente ocupada por Dona Benta e não é bem recebida pelo público, que rejeita suas
histórias. Portanto, são diferentes os lugares e papeis ocupados por Tia Nastácia e Dona
Benta, enquanto narradoras e enquanto mulheres nas obras analisadas nesse trabalho.

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