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práticas e saberes no
ocidente medieval II
Cybele Crossetti de Almeida
Igor Salomão Teixeira
(Orgs.)
GT ESTUDOS MEDIEVAIS/ANPUH-RS
OI OS
EDITORA
anpuhrs
2013
© Grupo de Trabalho de Estudos Medievais – ANPUH-RS – 2013
gtestudosmedievais@gmail.com
Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Imagem de capa: HARPUR, James, Faszinierendes Mittelalter: ein Panorama des
Alltagslebens. Gütersloh, 1995. p. 38 – de um manuscrito veneziano do séc. XIV.
Verlagsservice Dr. Helmut Neuberger & Karl Schaumann GmbH.
Revisão: Luís M. Sander
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund S. A.
Introdução ........................................................................................... 7
Fórum de Pós-Graduação
6
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Introdução
7
Introdução
sobre a noção de fin amour, que foi objeto do seu estudo de pós-doutora-
do, realizado em 2007 na UFRGS. O texto da professora Carmen desta-
ca-se em relação aos demais por tratar de imagens em narrativas hagio-
gráficas e da pintora gótica Teresa Dieç. Os capítulos seguintes compõem
uma análise temática em torno da Ordem dos Irmãos Pregadores, ou do-
minicanos, a partir de diferentes perspectivas teóricas e de documenta-
ção: André Miatello, Carolina Fortes (Universidade Gama Filho/Brasil)
e Igor Teixeira (UFRGS/Brasil) analisam crônicas e questões de gênero,
que foram importantes para a afirmação daquela Ordem mendicante entre
os séculos XIII e XIV.
Mantendo a perspectiva iniciada em 2012 com o volume 2 das Refle-
xões sobre o Medievo, quando foram apresentados resultados de teses de dou-
torado defendidas em 2011, por exemplo, no volume 3 também são apre-
sentados dois textos na mesma situação: o capítulo escrito por Marina Klei-
ne (Universidad de Sevilla/Espanha – tese defendida nessa Universidade em
dezembro de 2012) sobre a chancelaria na corte de Afonso X, e o texto de
Letícia Schneider Ferreira (IFSC/Brasil – tese defendida na UFRGS em maio
de 2012). Também apresentamos o estudo de Felipe Parisoto, desenvolvido
na Universidade de Coimbra em 2011, sobre “comer, beber e jogar nas ta-
bernas medievais”.
Além desses textos, apresentamos as reflexões do professor Nei Nor-
din sobre o ensino de história medieval “na prática”. Esse texto tem origem
no minicurso sobre “metodologias para o ensino escolar de história medie-
val” que fez parte da programação do II Encontro Estadual. Diferentemen-
te do texto apresentado no volume 2, pelo mesmo autor – a respeito da
crônica de Fernão Lopes –, no volume 3 temos a oportunidade de conferir
resultados da sua experiência acumulada de alguns anos de prática docente
na escola básica.
A partir do capítulo 12 apresentamos o fórum de pós-graduação. Du-
rante o II Encontro, a maior parte das mesas-redondas foi composta por
alunos de mestrado e doutorado de programas de Pós-Graduação em His-
tória de Instituições de Ensino Superior do Rio Grande do Sul. Quantitati-
vamente, há um predomínio das atividades concentradas na UFRGS, mas,
felizmente, já apresentamos reflexões com origem em outros programas,
como no caso da PUCRS e da Universidade Federal de Pelotas. Isso, certa-
mente, é algo a ser comemorado. No entanto, como o leitor perceberá, de
uma maneira geral ainda permanecemos com o foco de análise na Penínsu-
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
la Ibérica nos séculos finais da Idade Média. Esta percepção não destoa a
produção dos Programas de Pós-Graduação em História no Rio Grande
do Sul em relação aos demais Programas de IES de outras regiões do país.
Ao mesmo tempo em que percebemos esse predomínio, apresenta-
mos textos que transitam por outros períodos e regiões. O livro Reflexões
sobre o Medievo III contém propostas de análises sobre o reino dos francos
no século X, sobre a Península Itálica nos séculos XIII e XIV, sobre a região
da atual Alemanha. Os temas também se diversificaram: questões políticas
e culturais; aspectos metodológicos; direito(s), crônicas, processos de cano-
nização, arte e ensino.
A Comissão Organizadora do II Encontro Estadual de Estudos Me-
dievais agradece a todos(as) os(as) autores(as) colaboradores(as) pelo pres-
tígio e pela participação nas atividades do GT. Também agradecemos pelo
apoio fundamental da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
1
Texto originalmente publicado nos Anais do XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
Fortaleza, UFCE, 2009, p. 1-12, sob o título: Ética cristã, riqueza e poder: reflexões sobre a
elite dirigente da cidade de Colônia na Idade Média tardia. Para esta publicação o texto original
foi revisto e ampliado.
* Doutora em História pela Universität Bielefeld, Alemanha, com bolsa do CNPq; professora do
Depto. e PPG em História, IFCH/UFRGS.
2
A prosopografia, ao levantar – entre outras questões – a preocupação com a identidade dos
sujeitos históricos (para responder a questão “quem foram eles”), pode cumprir um papel
relevante para descartar generalizações e imprecisões. Sobre a prosopografia vide BULST, 1986,
p. 2s., e também STONE, 1971, p. 46-79: BULST, N. Zum Gegenstand und zur Methode von
Prosopographie. In: BULST, N.; GENET, J.-Ph. (Ed.). Medieval Lives and the Historian: Studies
in Medieval Prosopography (Proceedings of the First International Interdisciplinary Conference
on Medieval Prosopography, University of Bielefeld, 3-5 Dec. 1982). Kalamazoo, Michigan,
1986, p. 1-16; tradução para o português disponível em: <http://periodicos.uesb.br/index.php/
politeia/article/viewFile/190/211>; STONE, Lawrence. Prosopography. In: STONE. The Past
and the Present. London: Routledge, 1987 (originalmente in Daedalus, n. 100, p. 46-79, 1971).
Sobre este tema vide ainda LALOUETTE, Jacqueline. Do exemplo à série: história da
prosopografia. In: HEINZ, F. (Org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2006, p. 55-74, e, na mesma coletânea, CHARLE, Christophe. A prosopografia ou
biografia coletiva: balanço e perspectivas. In: ibid., p. 41-53.
3
Em 1391 ocorre um conflito entre duas facções do patriciado que até então governava a cidade,
e esta cisão facilitou a tomada de poder por outros grupos na chamada revolução de 1396,
quando foi promulgado um documento, Verbundsbrief, que modificava o sistema político da
cidade e acabava com os privilégios do patriciado. Em 1513, este documento recebeu um adendo,
chamado Transfixbrief, que, também após conflitos políticos, fez algumas alterações no
documento original de 1396.
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ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
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O que é curioso, porque Colônia é uma das cidades mais pesquisadas da Alemanha e dispunha,
até o desabamento do arquivo histórico da cidade em março de 2009, de uma enorme quantidade
de fontes, essenciais para este tipo de estudo. Os poucos trabalhos que utilizam ou reivindicam
o método prosopográfico aplicado à Colônia são: HUFFMAN, Joseph P. Family, Commerce and
Religion in London and Cologne: Anglo-German Emigrants, c. 1000-c. 1300. Cambridge, 2002;
HEUSER, Peter Arnold. Prosopographie der Kurkölnischen Zentralbehörden: Teil I: Die
Gelehrten Rheinischen Räte 1550-1600: Sudien- und Karriereverläufe, soziale Verflechtung.
RhVjbll, v. 66, p. 264-319, 2002; e HERBORN, Wolfgang; HEUSER, Peter Arnold. Vom
Geburtsstand zur Regionalen Juristenelite – Greven und Schöffen des Kurfürstlichen
Hochgerichts in Köln von 1448 bis 1798. RhVjbll, v. 62, p. 59-160, 1998.
5
IRSIGLER, F. Kölner Wirtschaft im Spätmittelalter. In: KELLENBENZ, Hermann (Ed.). Zwei
Jahrtausende Kölner Wirtschaft. Köln, 1975. v. 1, p. 217-319, aqui p. 225; IRSIGLER, F. Industrial
Production, International Trade and Public Finances in Cologne (XIVth and XVth Centuries).
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
do Sacro Império e uma das maiores da Europa a norte dos Alpes. Era
também uma grande metrópole econômica cujas relações comerciais se
estendiam “da Península Ibérica até a região do Danúbio, do Báltico à Silé-
sia e Roma”6. Especialmente importantes eram as relações comerciais com
os Países Baixos7 e com a Inglaterra, onde Colônia, “desde 1157, gozava de
enormes privilégios, que quase lhe permitiam monopolizar o comércio com
a ilha”8.
The Journal of European Economic History, v. 6, p. 269-306, aqui p. 278, 1977; BUSZELLO, H.
Köln und England: 1468-1509. In: Köln, das Reich und Europa. Köln, 1971, p. 431-467, aqui p.
431 (Mitteilungen aus dem Staatsarchiv von Köln, 60).
6
ENNEN, E. Kölner Wirtschaft im Früh- und Hochmittelalter. In: KELLENBENZ (Hg.), 1975,
p. 87-193, aqui p. 187; PLANITZ, H. Das Kölner Recht und seine Verbreitung in der späteren
Kaiserzeit. Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte: Germanistische Abteilung, v. 55, p.
1-40, aqui p. 4, 1935; KELLENBENZ, H. Der Aufstieg Kölns zur mittelalterlichen
Handelsmetropole. JbdKGV, v. 41, p. 1-30, aqui p. 10, 23-24, 1967; CREMER, O. Der Rentenkauf
im mittelalterlichen Köln: Nach Schreinsurkunden des 12. bis 14. Jahrhundert. Diss.
Rechtswissenschaftliche Fakultät, Würzburg, 1936, p. 39; IRSIGLER, F. Die Frankfurter Messen
und die Handelsbeziehungen mit Oberdeutschland im 15. Jahrhundert. In: STEHKÄMPER,
H. (Ed.). Köln, der Rhein und das Reich: Abhandlungen über weiträumige Verflechtungen der
Stadt Köln in Politik, Recht und Wirstchaft im Mittelalter. 1971, p. 341-429, aqui, p. 341s.
(Mitteilungen aus dem Stadtsarchiv von Köln, 60), entre outros.
7
KELLENBENZ, 1967, p. 29; e HOUTTE, J. A. Die Handelsbeziehungen zwischen Köln und
den südlichen Niederlanden bis zum Ausgang des 15. Jahrhunderts. JbKGV, v. 23, p. 141-184,
aqui p. 176s., 1941. Vide também BONENFANT, P. L’origine des villes brabançonnes et la
“route” de Bruges à Cologne. Revue Belge de Philologie et d’Histoire, v. 31, p. 399-447, aqui p. 399-
447, 1953; MILITZER, K.; RÖSSNER, R. Rheinischer Wein in Brügge. In: JÖRN, N.;
PARAVICINI, W.; WERNICKE, H. (Ed.). Hansakaufleute in Brügge: Teil 4: Beiträge der
Internationalen Tagung in Brügge, April 1996. Frankfurt a.M., 2000, p. 227-236, aqui p. 227-
236. Também as relações com a Itália, especialmente com Veneza, eram importantes; vide
BEUTIN, L. Italien und Köln. In: Studi in onore di Armando Sapori. A cura di G. Astuti, E.
Bach, G. Barbieri et al. Milano, 1957, p. 30-46, aqui p. 40s.
8
STEHKÄMPER, H. Die Stadt Köln und Westfalen: Versuch eines ersten Überblicks. Westfalen,
v. 51, p. 346-377, aqui p. 351, 1973; KELLENBENZ, 1967, p. 8, 19, 22; HANSEN, J. Der
englische Staatskredit unter König Eduard III. (1327-1377) und die hansische Kaufleute:
Zugleich ein Beitrag zur Geschichte des kirchlichen Zinsverbotes und des rheinischen
Geldgeschäftes im Mittelalter. Hansische Geschichtsblätter, v. 16, p. 323-415, aqui p. 351s., 1910,
entre outros. Até o século XV os habitantes de Colônia tinham direitos especiais na Inglaterra;
vide a este respeito DÖSSELER, E. Der Handel und Verkehr Westfalens mit Köln zur Hansezeit.
JbdKGV, v. 18, p. 1-64, especialmente p. 51, 193; BUSZELLO, 1971, p. 434; HÖHLBAUM, K,
Kölns älteste Handelsprivilegien für England. Leipzig, 1883, especialmente p. 42, 47s. Devido
a isso, este é um tema bastante estudado; vide, por exemplo, HUFFMAN, J. Prosopography
and the Anglo-imperial Connection: A Cologne Ministerial Family and Its English Relations.
Medieval Prosopography, v. 11, p. 53-134, 1990; HUFFMAN, J. Family, Commerce and Religion in
London and Cologne: Anglo-German Emigrants, c. 1000-c.1300. Cambridge, 2002;
SCHNURMANN, C., Kommerz und Klüngel: Der Englandhandel Kölner Kaufleute im 16.
Jahrhundert. Göttingen/Zürich, 1991 (Veröffentlichungen des Deutschen Historischen Instituts
London, 27).
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Para estratégias semelhantes adotadas pelo Conselho da cidade de Nürnberg, a fim de obter
privilégios do papa e do imperador, vide STROMER, W. Handel und Geldgeschäfte der Mendel
von Nürnberg 1305-1449. Tradition, v. 11, p. 1-16, aqui p. 5 e 8, 1966.
10
Em 1355, a cidade obteve do imperador Carlos IV o direito de não ter que responder pelas
dívidas e acordos do arcebispo; vide IRSIGLER, 1975, p. 219.
11
Era um direito de mercado – também conhecido como ius emporii – que garantia que os bens
transportados no Reno deveriam ser desembarcados e ofertados no mercado de Colônia, antes
que os navios pudessem seguir viagem; a este respeito vide HENNING, 1891, p. 8-9.
12
Chamada de “revolução” na literatura especializada, apesar de não alterar muitas das estruturas
de poder existentes. Sobre a crítica da utilização deste conceito vide MILITZER, Klaus. Ursachen
und Folgen der innerstädtischen Auseinandersetzungen in Köln in der zweiten Hälfte des 14. Jahrhunderts.
Köln, 1980. p. 143s. (Veröffentlichungen des Kölnischen Geschichtsvereins 36).
13
De diferentes cidades da Alemanha ou outras regiões, como é o caso das famílias Suderman
(de Dortmund), Rinck (de Corbach) e também dos Wasservasse, cujo partiarca, Gehard von
der Hennen, aparece nas fontes do início do século XV identificado com o topônimo von
Esch, localidade nos arredores de Colônia.
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
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HERBORN, W. Die politische Führungsschicht der Stadt Köln im Spätmittelalter. Bonn, 1977, p.
330 (Rhein. Archiv 100).
15
Schreinsbücher são livros de registros de transações imobiliárias; sobre este tema vide ALMEIDA,
Cybele Crossetti de. Os Schreinsbücher como fonte de pesquisa histórica e genealógica. In:
MALEVAL, Maria do Amparo (Org.). Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais da
ABREM, 2001. Rio de Janeiro: Ed. Ágora da Ilha, 1999, p. 191-197.
16
Os portadores do nome, em uma tradução literal. São, via de regra, os filhos homens da linha
paterna, que mantêm e dão continuidade ao nome da família.
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ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
O conjunto das famílias investigadas elevou-se, deste modo, de três para 25.
Fazem parte do catálogo prosopográfico 97 indivíduos, além de 13 extras,
que não tinham relação direta com as famílias por parentesco, mas tinham
relações próximas com as mesmas e serviram como uma espécie de grupo
de controle, bem como alguns indivíduos que faziam parte das famílias
analisadas, mas que viveram fora do período em questão.
Através do conhecimento dos indivíduos e suas diferentes trajetórias,
foi possível verificar que existiam diversos modelos de carreiras. Para fins
de análise, os indivíduos analisados foram classificados em três categorias,
segundo critérios quantitativos – número de vezes em que foram eleitos
para determinado cargo, como o de conselheiro – e qualitativos, como qual
o cargo para o qual foram eleitos, já que a eleição como conselheiro era
bem mais fácil de obter que a de um cargo como prefeito. Segundo estes
critérios, os indivíduos foram agrupados em: Alpha – Indivíduos eleitos para
o Conselho quatro ou mais vezes, e que exerceram os cargos mais altos,
como o de prefeito. Beta – Indivíduos que foram eleitos para o Conselho
quatro ou mais vezes, sem, no entanto, ocupar os cargos mais altos, como o
de prefeito. Gama – Indivíduos que foram eleitos para o conselho entre uma
e três vezes; também podem ser definidos como conselheiros ocasionais.
Embora o subgrupo gama concentre, em geral, aquilo que podemos chamar
de conselheiros ocasionais, sem uma tradição familiar de participação polí-
tica e provenientes do estrato social dos artesãos, encontramos nesta, como
nas demais categorias, também indivíduos abastados, provenientes das fa-
mílias mais poderosas, o que reforça a noção de uma divisão de trabalho
também no interior das grandes famílias.
A ocupação de cargos na hierarquia política da cidade envolvia não
apenas questão do exercício do poder político propriamente dito, mas tam-
bém prestígio. Pois estas funções desempenhadas – das menos importantes
para as de maior destaque – podem ser claramente enquadradas no modelo
do cursus honorum, que, por sua vez, pode ser definido, de acordo com Dirl-
meier, como “uma escala de prestígio”17.
Assim foi possível compreender melhor a dinâmica política de Colô-
nia e também a nova camada dirigente, que não era homogênea, embora
17
DIRLMEIER, U. Merkmale des sozialen Aufstiegs und der Zuordnung zur Führungsschicht
in süddeutschen Städten des Spätmittelalters. In: GUARDUCCI, A. (A cura di). Gerarchie
economiche e gerarchie sociale secoli XII-XVII (Atti delle Settimani di Studi, Prato, XII). Firenze,
1990, p. 171-215, aqui p. 179.
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
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Embora os dois extremos – alpha e gama – possam ser claramente identificados com o que
chamo uma camada dirigente superior e inferior, o subgrupo intermediário, beta, reúne
indivíduos que podem se enquadrar - pelas relações familiares, perfil econômico, etc. – em
ambos. Além disso, mesmo nas famílias mais poderosas há indivíduos distribuídos por todas
estas categorias.
19
Desenvolvi este tema em ALMEIDA, C. C. Poder e divisão do trabalho: a participação das
mulheres no sucesso das famílias dirigentes. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO
GÊNERO (8º, 25-28 ago. 2008, Florianópolis). Corpo, Violência e Poder. Anais... Florianópolis:
UFSC, 2008, texto disponível em: <http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST70/
Cybele_Crossetti_de_Almeida_70.pdf>.
17
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As Gaffeln são uma particularidade política da cidade de Colônia e podem ser definidas como
uma espécie de braço político das associações e corporações de artesãos e de comerciantes.
Para uma maior contextualização das estruturas de participação política em Colônia na Idade
Média tardia – e suas modificações –, vide ALMEIDA, C. C. Entre Veneza e Amsterdã: um
estudo da camada dirigente da cidade de Colônia (séculos XIV-XVI). In: CARVALHO,
Margarida Maria de; LOPES, Maria Aparecida de S.; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.).
As cidades no tempo. Franca, São Paulo, 2005, p. 179-200.
21
REINHARD, W. Freunde und Kreaturen: Verflechtung als Konzept zur Erforschung historischer
Führungsgruppen Römischer Oligarchie um 1600. München, 1979, p. 37-38 (Schriften der
Philosophischen Fachbereiche der Universität Augsburg, 14).
22
Embora possamos, a partir das fontes, reconstruir listas de nomes de conselheiros e prefeitos,
nem sempre é possível descobrir quem eram realmente estes indivíduos. Neste sentido, vale a
pena lembrar a observação básica de Poos: “O que é dado nos documentos são nomes, não
pessoas” (POOS, Lawrence R. Peasant ‘Biographies’ from Medieval England. In: BULST;
GENET [Ed.], 1986, p. 201-214, aqui p. 208).
18
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
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Por exemplo, IRSIGLER, F., Soziale Wandlungen in der Kölner Kaufmannschaft im 14. und
15. Jahrhundert. Hansische Geschichtsblätter, v. 92, p. 59-78, aqui p. 67, 1974. Esta interpretação,
no entanto, é muito simplista para explicar as complexas relações de poder dentro do Conselho
de Colônia.
24
Como já tive oportunidade de demonstrar em minha tese. Para aprofundar o assunto vide:
ALMEIDA, C. C. Prosopographische Untersuchung zu Kölner führenden Familien im Spätmittelalter.
Tese (Doutorado) – Universität Bielefeld. Faculdade de História, Filosofia e Teologia,
Alemanha, 2008, 925 p. Disponível na Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanas
(BSCSH) da UFRGS.
25
HIRSCHFELDER, G. Die Kölner Handelsbeziehungen im Spätmittelalter. Köln, 1994, p. 525
(Veröffentlichungen des Kölnischen Stadtmuseums, Hrsg. v. Werner Schäfke, Heft X).
26
O erro de Hirschfelder é facilmente compreensível, já que existem nada menos que onze
indivíduos com o nome Johann von Hirtze no período analisado. Fatos como este evidenciam
a necessidade de um estudo exaustivo como o prosopográfico, já que apenas através do contexto
em que estão inseridos é que eles podem ser identificados.
19
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
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Hirschfelder provavelmente tomou de maneira acrítica a interpretação de Irsigler, que, apesar
de sua inquestionável importância como historiador, apresenta problemas na identificação de
indivíduos das famílias Hirtze e Hirtze von der Landskrone; vide IRSIGLER, 1979, p. 312.
Estes problemas são, aliás, bastante comuns na pesquisa em Idade Média, como demonstrado
por Rüthing; vide RÜTHING, H. Der Wechsel von Personennamen in einer
spätmittelalterlichen Stadt: Zum Problem der Identifizierung von Personen und zum sozialen
Status von Stadtbewohnern mit wechselnden oder unvollständigen Namen. In: BULST, N.;
GENET, J.-Ph. (Ed.) 1986, p. 215-225, especialmente p. 215s.
28
HIRSCHFELDER, 1994, p. 88. Este autor comete o mesmo erro que Fahne, que foi corrigido
por Lau já no século XIX; vide LAU, 1895, p. 113.
29
Diederich (II) von Hirtze von der Landskrone atuou como importador de peles entre 1460 e
1469 (IRSIGLER, 1979, p. 236), e também como representante comercial de Alf von der Burg
e Johann (II) von Dauwe na França e Navarra (KUSKE, 1917, p. 89; IRSIGLER, 1979, p. 302
e HIRSCHFELDER, 1994, p. 48).
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Participação na política
Alpha Beta Gama Total
Participação no comércio
Grande – 15 anos ou mais no comércio 1 2 1 4
Média – de 5 até 10 anos no comércio – 3 – 3
Pequena – até 5 anos no comércio 4 3 2 9
Nenhuma 8 7 12 27
Total 13 15 15 43
30
KUSKE, Bruno (Hg.). Quellen zur Geschichte der Kölner Handels und Verkehrs im Mittelalter. v. 4
(Publ., 33), Düsseldorf, reedição de 1978 (originais: Bonn, 1917-1934); nas próximas citações
conforme o volume indicado: KUSKE, Quellen II, p. 89. Vide também IRSIGLER, Franz.
Die wirtschaftliche Stellung der Stadt Köln im 14. und 15. Jahrhundert: Stukturanalyse einer
Spätmittelalterlichen Exportgewerbe- und Fernhandelsstadt. Wiesbaden, 1979, p. 302 e 308.
(Viertjahrschrift für Sozial- und Wirtschaftsgeschichte, Bd. 65. Hrsg. v. Otto Brunner, Hermann
Kellenbenz u.a.).
31
KUSKE, Quellen II, p. 324: “14 Ellen swartz oder bruyn ruwe samdt ind vunf lot sijden von
derselver varwen.”
32
Ibid., p. 324.
21
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
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Stadtgeld macht frei: oder wie eine Stadt ihre Unabhängigkeit kauft: Frankfurt am Main im 14.
Jahrhundert. Apresentação no Kolloquium da Universität Bielefeld, coordenado pelo Professor
Neithard Bulst em 30 de outubro de 1997. Uma análise semelhante pode ser encontrada em
HENNING, Albrecht. Steuergeschichte von Köln in den ersten Jahrhunderten städtischer Selbständigkeit
bis zum Jahre 1370 (Dissertation, Universität Leipzig). Dessau, 1891, p. 6s.; e STROMER,
Wolfgang. Reichtum und Ratswürde in Nürnberg, in: ID. (Hg.). Oberdeutsche Hochfinaz: 1350-
1450. Wiesbaden, 1970, p. 295-341, aqui p. 308 (Vierteljahrschrift für Sozial- und
Wirtschaftsgeschichte, 55-57).
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
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WOLFF, Phillipe. Une famille du XIIIe au XVIe siècle: les Ysalguier de Toulouse. Mélanges
d’Histoire Sociale; Annales d’Histoire Sociale, v. 1, p. 35-58, 1942; FÉDOU, Henri. Une familie
aux XIVe et XVe siècles: les Jossard de Lyon. Annales E.S.C. (D’Histoire Sociale), v. 9, n. 4, p.
461-480, 1954; e RUIZ, Teofilo. The Transformation of the Castilian Municipalities: The Case
of Burgos 1248-1350. Past and Present, v. 77, p. 3-32, 1977; RUIZ, Teofilo. Two Patrician Families
in Late Medieval Burgos: The Sarracin and the Bonifaz. In: ID. (Ed.). The City and the Realm:
Burgos and Castile 1082-1492. Aldershot, 1992, p. 1-15.
35
Schrb. 74/78v e 74/82v.
36
Sobre este tema pronuncia-se Francis Rapp: “Wie in Straßburg sah man auch in Basel mit
Mißtrauen auf die unteren Schichten herab. Die Gesellen wollten mit den Knechten nichts
gemein haben, nicht einmal den Namen. Noch weniger hätte es ihnen gefallen, arbeiter genannt
zu werden, war doch letzteres Wort da, um die Tagelöhner zu bezeichnen. Dagegen tönte
Müßiggänger nich anangenehm: Müßiggänger waren nicht ausschließlich, jedoch hauptsächlich
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ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
die von Renten lebenden Patrizier, Ritter und Achtburger” (RAPP, Francis. Sozialpolitische
Entwicklung und volkssprachlicher Wortschatz im spätmittelalterlichen Strassburg. In:
STACKMANN, K.; FLECKENSTEIN, J. (Hg.). Über Bürger, Stadt und städtische Literatur im
Spätmittelalter. Göttingen, 1980, p. 146-160, aqui p. 159 [Abhandlungen der Akademie der
Wissehschaften in Göttingen, Philosogisch-Historische Klasse, Folge 3, Nr. 121]). Sobre a
importância das palavras vide também ibid., p. 159-160. São também significativos os resultados
do estudo de Portmann sobre a cidade de Freiburg na Suíça. Este autor mostra que entre os
membros do Conselho da cidade um grande número aparecia como “sem profissão” (Berufslose),
e o mais significativo é que “muitos destes ‘Berufslosen’ na realidade eram comerciantes ou
rentiers” (“dass diese in vielen Fällen Händler und Rentner waren”) (PORTMANN, Urs.
Bürgerschaft im mittelalterlichen Freiburg: Sozialtopographische Auswertungen zum ersten
Bürgerbuch 1341-1416. Freiburg, 1986, p. 183 [Historische Schriften der Universität Freiburg,
11]). Complementar a esta observação é a constatação, pelo mesmo autor, de que o número
dos supostos “sem emprego” (Berufslosen) era maior entre as associações mais importantes da
cidade (ibid., p. 183).
37
Rogge chegou a esta mesma conclusão no seu estudo sobre a elite de Augsburg: “Parece que o
cargo tornou-se, dentro da elite, um critério de distinção mais importante que outras
características sociais e políticas do poder (origem, riqueza, profissão” (ROGGE, Jörg. Für
den gemeinen Nutzen: politisches Handeln und Politikverständnis von Rat und Bürgerschaft in
Augsburg im Spätmittelalter. Tübingen, 1996, p. 285 [Studia Augustana, 6]). Também a nova
elite da cidade de Colônia “não cria nenhuma denominação para si, não se concede nenhum
nome” (ibid., p. 156). O título “Herr” (senhor), comumente utilizado para nobres e membros
do clero, em Colônia era, significativamente, também empregado para os prefeitos da cidade.
38
Respectivamente: cuidadoso e honrado.
39
HUISKES, Manfred. Beschlüsse des Rates der Stadt Köln, 1320-1550. (Publikationen der Gesellschaft
für Rheinische Geschichtskunde, Bd. 65; Bd. I bearb. von Manfred HUISKES), p. 107.
40
IRSIGLER, Franz. Kaufmannsmentalität im Mittelalter. In: MECKSEPER, C.; SCHRAUT,
E. (Hg.). Mentalität und Alltag im Spätmittelalter. Göttingen, 1985, p. 53-75, aqui p. 71. A família
Rinck não foi analisada por mim, por não manter vínculo de parentesco com as famílias centrais
durante o período estudado. No entanto, se fosse aplicado o modelo de análise e subcategorias
aqui desenvolvido para Johann Rink, ele seria enquadrado no subgrupo beta, já que, apesar de
ter sido eleito para o Conselho regularmente durante 21 anos, nunca chegou a ocupar o cargo
máximo de prefeito da cidade.
24
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
41
FEDOU, 1954, p. 472s.; e também WOLFF, 1942, p. 49s.
42
Exemplos disso podem ser encontrados em BURSCHEL; HÄBERLEIN, Familie, Geld und
Eigennutz: Patrizier und Großkaufleute im Augsburg des 16. Jahrhundert. In: DEUTSCHES
HISTORISCHES MUSEUM BERLIN (Hg.). “Kurzweil viel ohn’ Maß und Ziel”: Alltag und Festtag
auf dem Augsburger Monatsbildern der Renaissance. München, 1994, p. 48-65, aqui p. 54.
43
Exemplos neste sentido são mencionados em HÄBERLEIN, Mark. Familiäre Beziehungen
und geschäftliche Interessen: Die Augsburger Kaufmannsfamilie Böcklin zwischen Reformation
und Dreißigjährigem Krieg. Zeitschrift des Historischen Vereins für Schwaben, v. 87, p. 39-58, aqui p.
47, 1994; e HÄBERLEIN, Mark. Jakob Herbrot (1490/95-1564): Großkaufmann und
Stadtpolitiker. In: HABERL, Wolfgang (Hg.). Lebensbilder aus dem Bayerischen Schwaben.
Weißenhorn, 1997, p. 69-111, aqui p. 98ss. (Veröffentlichungen der Schwäbischen
Forschungsgemeinschaft bei der Kommission für Bayerische Landsgeschichte, Reihe 3, Bd. 15).
44
“Des âmes de pionniers”, FEDOU, 1954, p. 474.
45
MILITZER, Klaus. Tuchhandel und Tuchhändler Kölns in Österreich und Ungarn um 1400.
In: Kaiser Karl IV: 1316-1378. Forschungen über Kaiser und Reich, ed. Hans Patze. Göttingen,
1978, p. 265-288, aqui p. 276. (Sonderabdruckt der Aufsatze aus “Blätter für Deutsche
Landsgeschichte”, 114).
25
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
46
STEIN, Walter (ed.). Akten zur Geschichte der Verfassung und Verwaltung der Stadt Köln im 14. und
15. Jahrhundert. 2 v. Bonn, 1893-95, aqui v. I, p. CLVIss. (Publ., Bd. 10) (nas próximas citações:
STEIN, Akten I).
47
KELLER, K. (ed.). Die stadtkölnische Kopienbücher, 1373-1401, Regesten. In: Mitteilungen
aus dem Stadtarchiv von Köln. v. 4, 1883, p. 51-111, aqui p. 78: “An Rentmeister Ritter Goedart
v. Hirtze und seine andern Gesandten in Frankfurt: fordert Unterstützung der vor König zitierten
Juden und Wahrung des städtischen Interesses gegen Johan Canys.” Vide também as p. 82, 83
e 84, com missões no mesmo sentido.
48
KUSKE, Quellen I, p. 390.
49
Juntamente com o conselheiro Godert (II) von Wasservase e o protonotário Edmund Frunt
(KUSKE, Quellen II, p. 70).
50
Juntamente com Johann van Berck e Berthold Questenberg (KUSKE, Quellen II, p. 112).
51
Juntamente com Johann van Breyde, Johann Pennynck, Joist van Dordrecht, Wilhelm van
Lyskirchen, Johann Koelgijn, Konrad van Berchem e o prefeito Johann (II) von Dauwe
(KUSKE, Quellen II, p. 163).
26
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
(VIII) von Hirtze, que também integra o subgrupo Alpha, viajou para tratar
de negócios da cidade em Roma, em 147852, e novamente em 148553; no
ano de 1488, ele atuou como representante da cidade junto ao imperador54;
em 1490, representou a cidade junto ao imperador Frederico III nas nego-
ciações em Enger55, 1491, representou a cidade no Reichstag em Nürnberg56.
Este tipo de atividade é uma constante nos indivíduos de destaque de
todas as famílias analisadas. Godert (I) von Wasservase, que também perten-
cia ao subgrupo Alpha, foi enviado pelo Conselho em 1445 – juntamente com
Johann Frunt – como representante na questão da Holanda57; em 1447, ele
atuou como enviado do Conselho na reunião da Hansa em Lübeck58; e, ain-
da no mesmo ano, foi enviado como representante do Conselho junto ao
duque Philipp von Burgund59; em 1450, atuou como intermediário entre o
Conselho de Colônia e o bispo de Lüttich60; nos anos 1452 e 1453, foi envia-
do para negociar com o imperador61; e, em 1453, foi enviado, novamente,
como representante do Conselho junto ao duque Philipp von Burgund62. Seu
filho, Godert (II) von Wasservase, que também pertence ao subgrupo Alpha,
igualmente dedicou grande parte do seu tempo às viagens como represen-
tante do Conselho: em 1454, ele foi enviado, juntamente com o prefeito Jo-
hann (VI) von Hirtze e o protonotário Edmund Frunt, para negociar com o
arcebispo Dietrich II. von Köln63; em 1454, o Conselho o enviou para Deven-
52
KEUSSEN, Herman (ed.). Die Matrikel der Universität Köln: 1389-1559. (Publ., VIII ), Neudruck
und Weiterführung Düsseldorf, 1979-1981 (originalmente: 3 v., Bonn, 1892-1931. Aqui
KEUSSEN, Matrikel I, p. 590. Vide também ID. (ed.). Regesten und Auszüge zur Geschichte
der Universität Köln 1388-1559. Mitteilungen aus dem Stadtarchiv von Köln, n. 36/37, 1918 (nas
próximas citações: Mitt. 36/37), p. 220.
53
KEUSSEN, Matrikel I, p. 590. Vide Mitt. 36/37, p. 220.
54
HEGEL; CARDAUNS (Hg.). Die Chroniken der niederrheinischen Städte (Köln). 3 v. Göttingen,
1875-77, aqui v. 14, p. 873. (Die Chroniken der deutschen Städte vom 14. bis 16. Jahrhundert,
Bde. 12, 13, 14).
55
ENNEN, Leonard. Geschichte der Stadt Köln, meist aus den Quellen des Kölner Stadt-Archivs. 6 v.
Köln und Neuß, 1860-1880. (Reimpr. Köln: Bachem Verlag, 1970). Aqui (e nas próximas
citações) ENNEN, Geschichte III, p. 622.
56
ENNEN, Geschichte III, p. 624.
57
KUSKE, Quellen I, p. 364,
58
KUSKE, Quellen I, p. 390 e p. 407.
59
KUSKE, Quellen I, p. 414.
60
KUSKE, Quellen II, p. 21.
61
KEUSSEN, Hermann (ed.). Das Urkunden-Archiv der Stadt Köln seit dem Jahr 1397. HUA,
Inventar VI, 1451-1480. In: Mitteilungen aus dem Stadtarchiv von Köln, n. 38, 1926, p. 92-215,
aqui p. 101; e também KUSKE, Quellen II, p. 30.
62
KUSKE, Quellen II, p. 54.
63
KUSKE, Quellen II, p. 70.
27
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
ter, cidade com a qual Colônia tinha vários negócios e disputas comerciais64.
Em 1486, após mais de 30 anos de serviço à Cidade, ele foi enviado novamente
como seu representante junto ao imperador65. E estes são apenas alguns – pou-
cos – exemplos, para não tornar a exposição excessivamente longa66.
Os resultados deste trabalho mostram que é preciso encontrar outras
respostas para a pergunta por que tantos membros da elite política afasta-
vam-se do grande comércio e buscavam outras fontes de rendimentos. Não
apenas o “uso crescente da escrita, o refinamento dos métodos de adminis-
tração e o aumento das competências do Conselho”67, como afirma Milit-
zer, mas também a busca da nova elite dirigente por mais poder e prestígio
também teria influenciado este desenvolvimento. Deve se considerar que
entre os dois polos de conselheiros-comerciantes e conselheiros-juristas,
como propõe Schilling68, havia um grande grupo intermediário, que não se
encaixava nem em uma nem em outra categoria e ainda precisa ser bem
mais investigado.
A nova elite dirigente de Colônia tinha muito em comum com o an-
tigo patriciado, já que ambos tinham a nobreza como modelo. Por isso, a
afirmação de Louise von Winterfeld sobre o patriciado também pode ser
aplicada a ela, a saber: “Eles queriam ficar ricos e governar, gozar e de-
monstrar sua riqueza publicamente, e aplicá-la de tal modo que seus filhos
conseguissem, com menos esforço que eles mesmos, manter e aumentar a
riqueza e o poder”69. Esta tendência manteve-se não apenas no século XV,
mas também no XVI, quando ela foi ainda – aparentemente – aprofunda-
da, como se pode concluir da leitura dos textos de Hermann von Weins-
berg, provavelmente a personalidade política mais conhecida de Colônia.
64
KUSKE, Quellen I, p. 358.
65
HUISKES, Beschlüsse I, p. 703.
66
Uma revisão completa destas e outras atividades se encontra no catálogo prosopográfico que
compõe minha tese de doutorado.
67
MILITZER, Ursachen und Folgen, p. 89.
68
SCHILLING, Heinz. Vergleichende Betrachtungen zur Geschichte der Bürgerlichen Eliten in
Nordwestdeutschland und in den Niederlanden. In: SCHILLING, H.; DIEDERIKS, H. (Hg.).
Bürgerlichen Eliten in dem Niederlanden und in Nordwestdeutschland. Köln/Wien, 1985, p. 1-32,
aqui p. 12.( Studien zur Sozialgeschichte des europäischen Bürgertums im Mittelalter und in
der Neuzeit. Städteforschung, Reihe A: Darstellungen, Bd. 23).
69
WINTERFELD, Luisa. Handel, Kapital und Patriziat in Köln bis 1400. Pfingstblätter des
Hansischen Geschichtsvereins, Lübeck, n. XVI, p. 3-83, aqui p. 65, 1925. “Sie wollten reich werden
und herrschen, ihren Reichtum genießen und öffentlich zeigen, dazu ihr Vermögen möglichst
so anlegen, daß ihre Kinder, unter geringeren Mühen als sie selbst, Reichtum und Macht erhalten
und steigern konnten.”
28
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Conclusão
Os resultados encontrados para Colônia se enquadram na atitude
ambivalente do homem medieval frente à riqueza e ao comércio, um fe-
nômeno reconhecido e pouco contestado: por um lado, como hoje, a ri-
queza era desejada, procurada efetivamente, muitas vezes sem escrúpu-
70
JÜTTE, R. Household and family life in late sixteenth-century Cologne: The Weinsberg family.
Sixteenth Century Journal, v. 17, p. 165-82, aqui p. 168, 1986.
71
Das Buch Weinsberg II, p. 373; citado ap. JÜTTE, Household, p. 168. No original: “[…] kein
besonder grobe leibsarbeit hab ich zu verrichten, auch nit vil reitens oder zugains, aber lesens
und schreibens, advocerens, solliciterns und handlens hab ich immer wirk, miteins raitz, kirspel,
gaffelen, der frunde und fremden sachen bin ich auch nit ohn arbeit und unrawe.”
72
Sobre a heterogeneidade da categoria social “comerciantes” também se pronuncia LEÓN,
Juan Manuel B. Mercaderes extranjeros en Sevilla en tiempos de los reyes católicos. Historia,
Instituciones, Documentos, v. 20, p. 47-83, aqui p. 47, 1993, que destaca os banqueiros-comerciantes
como os mais poderosos entre eles.
29
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...
73
LE GOFF, J. Time, Work and Culture in the Middle Ages. Chicago/London, 1982, p. 111, 120s.;
STARK, W. Zins und Profit beim hansischen Handelskapital. In: FRITZE; MÜLLER-
MERTAS; SCHIDHAUER (Ed.). Zins-Profit, Ursprüngliche Akkumulation. Weimar, 1981, p.
13-27, aqui p. 22 (Hansische Studien, V); THOMSON, J. A. F. Wealth, Poverty and Mercantile
Ethics in Late Medieval London. In: BULST; GENET (Ed.). La Ville, la bourgeoisie et la genèse
de l’État moderne (XIIe-XVIIIe siècles). Paris, 1988, p. 265-277, aqui p. 265s.; MÜLLER, Achatz
von. Zwischen Verschuldung und Steuerbellion: Die mittelalterliche Stadt an den Beispielen
Florenz und Köln. In: SCHULTZ, Uwe (Hrsg.). Mit dem Zehnten fing es an: Eine Kulturgeschichte
der Steuer. München, 2000, p. 100-113, aqui p. 112; CREMER, 1936, p. 30s., etc. Embora
elementos da igreja tenham se adequado à nova realidade econômica e participassem inclusive
do sistema de crédito – não apenas como recebedores, mas também como credores, como
podemos verificar nos Schreinsbücher e testamentos da cidade de Colônia. Vide sobre este tema
também HANSEN, 1910, p. 408; TRUSEN, W. Zum Rentenkauf im Spätmittelalter. In:
Festschrift für Hermann Heimpel zum 70. Geburstag: Zweiter Band. Hrsg v. den Mitarbeitern des
Max-Plancks-Instituts für Geschichte. Göttingen, 1972, p. 140-158, especialmente p. 148-149
(Max-Plancks-Institut für Geschichte, 36/II). É importante lembrar que “[f]rom the thirteenth
century, however, scholastic writers, while condemning usury, accepted that the payment of
interest might be justified as compensation for possible loss (lucrum cessans) on the part of the
lender” (THOMSON, 1988, p. 272). Além disso, a crítica à usura concentrava-se frequentemente
nos judeus, e as elites urbanas aproveitavam-se disso quando estes eram expulsos das cidades
e os seus bens podiam ser comprados por um valor ínfimo. Deve-se lembrar também que na
Reformatio Sigismundi o centro do conceito de usura – encarado como pecado mortal – era o
binômio juros/usura; vide BAUER, C. Der Wucher-Begriff der Reformatio Sigismundi. In:
Aus Stadt- und Wirtschaftsgeschichte Südwestdeutschlands: Festschrift für Erich Maschke zum 75.
Geburtstag. Stuttgart, 1975, p. 110-117, especialmente p. 113.
74
A exclusão (ou “incapacidade legal”) de determinados grupos sociais e profissionais – como
barbeiros, intermediários de comércio, usurários, adúlteros, filhos ilegítimos – da eleição para
o Conselho da cidade é um forte indício da preocupação com a sua reputação por parte dos
conselheiros.
75
MILITZER, Klaus. Grundstückübertragungen im Kölner Hachtbezirk im 13.-15. Jahrhundert.
In: Staat und Gesellschaft in Mittelater und Früher Neuzeit: Gedenkschrift für Joachim Leuschner.
Hrsg. v. Historischen Seminar der Universität Hanover. Göttingen, 1983, p. 75-91, aqui p. 79s.;
CREMER, 1936, p. 32s., e também MÜLLER, 2000, p. 112.
30
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
76
Zöller constata esta tendência nos negócios de Gerhard Unmaze, reconhecido como o maior
comerciante do século XII; ZÖLLER, S. Kaiser, Kaufmann und die Macht des Geldes: Gerhard
Unmaze von Köln als Finanzier der Reichspolitik und der “Gute Gerhard” des Rudolf von
Sem. München, 1993, p. 66 (Forschungen zur Geschichte der älteren deutschen Literatur).
Sobre a importância de rendas e empréstimos como fontes de rendimentos das camadas
dirigentes em fins da Idade Média vide NICHOLAS, D. The Later Medieval City: 1300-1500. (A
History of Urban Society in Europe). London, 1997, p. 198-199; WINTERFELD, L. Handel,
Kapital und Patriziat in Köln bis 1400. Pfingstblätter des Hansischen Geschichtsvereins
(Lübeck), n. XVI, p. 3-83, especialmente p. 32s. 1925; RÜTHING, H. Die Familie in einer
deutschen Kleinstadt am Übergang vom Mittelalter zur Neuzeit: Materialien und
Beobachtungen. In: BUST, N.; GOY, J.; HOOCK, J. (Ed.). Familie zwischen Tradition und
Moderne: Studien zur Geschichte der Familie in Deutschland und Frankreich vom 16. bis zum
20. Jahrhundert. Göttingen, 1981, p. 19-38, aqui p. 19 (Kritische Studien zur
Geschichtswissenschaft, 48); WOLFF, Ph. 1942, p. 35-58, aqui p. 39, entre outros.
77
Isso se tornou possível com a popularização das companhias de comércio; vide WEBER, M.
Zur Geschichte der Handelsgesellschaften im Mittelalter: Nach südeuropäischen Quellen. Amsterdam,
1970, p. 16, 22, 24, 162; MASCHKE, E. Das Berufsbewußtsein des mittelalterlichen
Fernkaufmans. In: WILPERT, P.; ECKERT, W. P. (Ed.). Beiträge zum Berufsbewußtsein des
mittelalterlichen Menschen. Berlin, 1964, p. 306-335, p. 320s. (Miscellanea Mediaevalia, 3);
ISENMANN, E. Die deutsche Stadt im Spätmittelalter: 1250-1500. Stuttgart, 1988, p. 364; BURKE.
Veneza e Amsterdã. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 72; KELLENBENZ, H. Handelsgesellschaft.
In: Lexikon des Mittelalters, v. IV, 1901. Outros exemplos neste sentido em HÄBERLEIN, M.
Familiäre Beziehungen und geschäftliche Interessen: Die Augsburger Kaufmannsfamilie
Böcklin zwischen Reformation und Dreißigjährigem Krieg. Zeitschrift des Historischen Verein für
Schwaben, v. 87, p. 39-58, aqui p. 47, 1994; e IRSIGLER, Franz. Kölner Kaufleute im 15.
Jahrhundert: die Akten des Prozesses Rosenkrantz/Viehof als Quelle für die kölnische
Handelsgeschichte. RhVjbll, v. 36, 1972, p. 71-88, especialmente p. 75-76.
31
32
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
* Este trabajo, adaptado ahora como texto, fue originalmente presentado como conferencia en el
II Encontro Estadual de Estudos Medievais da ANPUH/RS el 26 de septiembre de 2012. Dicho
congreso lo dirigió el Dr. Igor Salomão Teixeira, colega y amigo, a quien agradezco la invitación.
El tema aquí tratado forma parte de una investigación mayor sobre las ordalías y otros medios
resolutorios de conflictos, que contó con el financiamiento de Fondecyt-Chile (Proyecto
n°1110474-2011-2012).
1
Universidad del Bío-Bío/Universidad de Concepción, Chile. Contacto: lrojas@ubiobio.cl
33
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
2
Vid. Revue d’Histoire de l’Église de France, v. 83, n. 210, p. 5-11, janvier-juin 1997.
3
GUERREAU-JALABERT, Anita. L’ecclesia médiévale, une institution totale. In: SCHMITT,
Jean-Claude; OEXLE, Otto Gerhard (eds.). Les tendances actuelles de l’Histoire de Moyen Âge en
France et en Allemagne. Paris, 2002. p. 219-26.
4
CHIFFOLEAU, J.; THÉRY, J. Introduction. In: Les justices d’Église dans le Midi (XIe-XVe siècle).
2007, p. 7-18 (p. 8). (Cahiers de Fanjeaux, 42).
34
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
5
GOUREVICH, Aaron. Contadini e santi: problemi della cultura popolare nel Medioevo. Torino, 1986
(versión rusa, 1981), p. 340.
35
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
Cristianización
Aun cuando los ilustrados estaban contaminados de prejuicios, en
cierta medida tenían algo de razón al lanzar sus sospechas respecto del
cristianismo popular de la Edad Media. Justamente, respecto de cuánto de
las nociones cristianas hubiesen podido ser asimiladas en el universo
espiritual de las comunidades medievales, los historiadores tienen razonables
dudas. Se trata del “mito de la Edad Media cristiana”, como ha dicho Jean
Delumeau7. Este escepticismo no proviene de una pura y simple negación
fundada en una convicción agnóstica del historiador, sino que se generó
por un cambio de óptica en el estudio de la historia religiosa en general,
pero que afectó especialmente a la religiosidad medieval. En efecto,
tradicionalmente la historia religiosa había circunscrito su preocupación
abarcando el estudio de la Iglesia y sus instituciones, la dogmática, la teología
6
Ibid., p. 341.
7
DELUMEAU, Jean. Le Catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris, 1971. p. 227-252. Vid. cap.
“La légende du Moyen Âge chrétien”.
36
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
8
ARIES, Philippe et al. Religion populaire et réforme liturgique. Paris, 1975; MALDONADO, Luis.
Religiosidad popular: nostalgia de lo mágico. Madrid, 1975; ID. Génesis del catolicismo popular. Madrid,
1979; ISAMBERT, François-André Religion populaire, sociologie, histoire et folklore. Archives
de Sciences Sociales des Religions, 43, p. 161-84, 1977.
9
ROBERTSON SMITH, William. Religion of the Semites. London, 1889 (1912); DURKHEIM,
Emil. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, 1912 (5. ed., PUF, 2003).
10
VAUCHEZ, André. Église et vie religieuse au Moyen Âge: renouveau des méthodes et de la
problématique, d’après trois ouvrages récents (note critique). Annales E.S.C., 4, p. 1042-1050
(p. 1042), 1973.
11
DUPRONT, Alphonse. La religion: anthropologie religieuse. In: LE GOFF, J.; NORA, P.
Faire de l’Histoire. Paris, 1974.
12
MARROU, Henri-Irenée. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris, 1937.
37
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
13
TOUSSAERT, Jean. Le Sentiment religieux en Flandre à la fin du Moyen Âge. Paris, 1960. p. 845.
38
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
civilizaciones donde una tiene por principio obligar y la otra doblegar las
fuerzas sobrenaturales”14. Desde luego, hay algo de verdad en esta afirmación
de cierto tono rotundo, demasiado influida por la sociología, juicio que
tiende, desgraciadamente, a desnaturalizar la especificidad del pensamiento
mágico y, por lo mismo, también el sentimiento religioso. Sin embargo, el
llamado que en 1931 hizo el ilustre historiador tenía como objetivo atraer
la atención de eclesiásticos e historiadores a conocer la vitalidad religiosa
de Francia y buscar las causas próximas y lejanas de la entonces llamada
“descristianización”15. Por ello, nos parece que Gabriel Le Bras, empleando
un acento provocador, deseaba más bien incitar a un cambio en el modo de
entender históricamente el cristianismo: “No hay un gran siglo en la historia
de la Iglesia, el mundo jamás ha sido cristiano.” Hay que ser historiador
para tolerar una afirmación así, ya que si no hay una época de apogeo del
cristianismo medieval, que algunos lo circunscriben a los siglos XII y XIII,
se deduce que tampoco habría que hablar de decadencia en los siglos
siguientes.
Precisamente, esto fue lo que se propuso Jean Delumeau al hacer un
seguimiento popular de la religión en los siglos XVII y XVIII bajo la
pregunta: durante el Antiguo Régimen, ¿Era acaso el cristianismo una
“mezcla de prácticas y doctrinas que tenían escasa relación con el mensaje
evangélico?”16. Este estudio relativo a los primeros tiempos de la Edad
Moderna demuestra que había un enorme abismo entre el cristianismo que
se vivía en las ciudades y la religiosidad de los campesinos, que fue, hasta el
siglo XVIII, el “conservatorio del paganismo”. Se trata, pues, de una
prolongación de realidades medievales. Luego, si no hay un Medievo cristiano,
es incorrecto hablar de un posterior proceso de “descristianización”, sino
más bien de una “segunda cristianización” en la que habría entrado Europa
en la época moderna. “En cierto modo, la Reforma y la Contrarreforma –
dice Jean Delumeau–, fueron la toma de consciencia de una no-
cristianización. Ambos procesos habrían provocado un gigantesco trabajo
de adoctrinamiento que prolongó la evangelización de los siglos anteriores
14
LE BRAS, Gabriel. La civilisation des pratiquants. In: Études de sociologie religieuse. Paris, 1955-
6. v. II, p. 640-1; ID. Introduction à l’histoire de la pratique religieuse en France. Paris, 1942-5. 2 v.;
BOULARD, F. Premiers itinéraires en sociologie religieuse. Paris, 1954.
15
LE BRAS, Gabriel. Statistique et histoire religieuse: pour un examen détaillé et pour une
explication historique de l’état du catholicisme dans les diverses régions de la France. Revue
d’Histoire de l’Église de France, v. 17, p. 425-49, 1931.
16
DELUMEAU, 1971, p. 227ss.; 243ss.; 248ss.; 330.
39
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
17
DELUMEAU, Jean. Au sujet de la déchristianisation. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine,
v. 22, p. 52-60 (p. 57), 1975.
18
Ibid., p. 56.
19
PAUL, Jacques. Le christianisme occidental au Moyen Âge. Paris, 2004. p. 60-6.
40
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
20
DELUMEAU, 1975, p. 58-9.
21
DELUMEAU, Jean. Le Christianisme va-t-il mourir? Paris, 1977. p. 102-3.
41
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
22
STARK, Rodney, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and
Western Success. New York: Random House, 2005.
23
DELUMEAU, Jean. Déchristianisation ou nouveau modèle de christianisme? (Leçon
inaugurale au Collège de France, 13 février 1975). Archives de Sciences Sociales des Religions, v.
40, p. 10, 1975.
42
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
24
FERTÉ, Jeanne. La vie religieuse dans les campagnes parisiennes (1922-1695). Paris, 1962.
25
MANSELLI, Raul. La religion populaire au Moyen Âge: problème de méthode et d’histoire.
Québec-Paris, 1975. p. 194.
26
RAPP, Francis. l’Église et la vie religieuse en Occident à la fin du Moyen Âge. 4. ed. Paris, 1991. p.
326-31.
43
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
27
LEROY-LADURIE, Emmanuel. Montaillou, village occitan: de 1294 à 1324. Paris, 1975;
SUMPTION, J. Pilgrimage: An Image of Medieval Religion. Totowa, N.J., 1976.
28
VAUCHEZ, André. Église et vie religieuse au Moyen Âge: renouvau des méthodes et de la
problématique d’après trois ouvrages récents. Annales ESC, v. 28, p. 1042-1050, 1973; BROWN,
Peter. Society and the Supernatural: a Medieval Change. Daedalus, n. 104, p. 131-151, 1975.
44
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
29
ARIÈS, Philippe. Religion populaire et réformes religieuses. La Maison-Dieu, n. 22, p. 89, 1975.
30
DELUMEAU, 1971, p. 246-7 ; ID. La peur en Occident (XIVe-XVIIIe): une cité assiégée. Paris,
1978; ID. Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident (XIIIe-XVIIIe). Paris, 1983.
45
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
Concepto de devoción
31
SCHREINER, Klaus. La dévotion comme pratique sociale, littéraire et visuelle: acquis et
centres d’intérêts de la médiévistique allemande. In: SCHMITT, J.-C.; OEXLE, O. G. Les
tendances actuelles de l’histoire du Moyen Âge en France et en Allemagne. Paris, 2002. p. 187-218.
46
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
47
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
32
DUBY, Georges. Les trois ordres ou l’imaginaire du féodalisme. Paris, 1978; CONSTABLE, Giles.
The Orders of Society: Three Studies in Medieval Religious and Social Thought. Cambridge, 1995.
48
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
los campesinos como los habitantes de los burgos tomaban parte activa en
el traslado de las reliquias y participaban de la fiesta de los santos. Es
sospechoso de arbitrariedad distinguir cultura popular y cultura de elites en
las procesiones organizadas por los ayuntamientos de las villas, en las que
concurría toda la comunidad, aun cuando en ellas se distinguiera el rango y
la condición de las personas. Les unía a todos la convicción de que, así
reunidos, alejaban las amenazas que pesaban sobre la comunidad entera.
Separar intelectualmente aquello que en la realidad histórica se muestra
como una entidad homogénea, sería al menos antojadizo.
Concepto de religión
Las palabras son un problema importante en la ciencia de la historia.
Necesariamente, el conocimiento histórico debe expresarse a través de palabras.
Con ellas pretendemos representarnos, más o menos fielmente, las diversas
realidades del pasado en toda su complejidad. He aquí que para comprender la
experiencia religiosa de una comunidad, solemos aplicar nuestro actual concepto
de religión a la época medieval, sin saber que ella carecía de ese vocablo para
expresar su vivencia. Se trata de un anacronismo, el más serio problema que
tiene la ciencia histórica, y que interpela continuamente a los historiadores
sobre la validez de sus instrumentos de análisis.
Ha de comenzarse afirmando que la Edad Media no ha conocido el
vocablo religión al modo como en la actualidad lo empleamos. Ciertamente,
aquélla conoció la palabra religio, pero con ella se designaba en la comunidad
religiosa una suerte de “contrato”, cual es el voto monástico, o también el
vínculo que consagra el voto religioso. Su sentido básico es, según Emil
Benveniste, “vincular” (religere), esto es, el vínculo que se establece entre Dios
y su fiel33. En la Edad Media, el concepto de religión no aludía, como hoy, a
la convicción privada de un creyente, sino que –sostiene Jean-Claude Schmitt–
“es un imaginario social que contribuye, por la representación (mental, ritual)
de un más allá que puede denominarse lo divino, a ordenar y a legitimar las
relaciones de los hombres entre sí”34.
33
BENVENISTE, Emil. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, 1969; véase v. II:
“Religion et superstition”, p. 265-79.
34
SCHMITT, Jean-Claude. ne histoire religieuse du Moyen Âge est-elle possible? Jalons pour
une anthropologie historique su christianisme médiéval. In : LEPORI, F. (ed.). Il mestiere di
storico del medioevo. Spoleto: Centro italiano di studi sull’alto medioevo, 1994. p. 73-83 ; reimpr.
en ID. Le corps, les rites, les rêves, le temps. Paris, 2001. p. 36.
49
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
50
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
35
DURKHEIM, Emil. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, 1912 (3. ed., PUF, 2003);
WEBER, Max. Ensayos sobre sociología de la religión. Madrid, 1987. 3 v.
51
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
36
ENGEN, John van. The Christian Middle Ages as an Historiographical Problem. American
Historical Review, v. 91, p. 519-52 (esp. p. 545, 530, 535), 1986.
52
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Religiosidad ritualista
La profunda religiosidad de los pueblos que habitaban el Occidente a
fines del mundo antiguo ha sido una experiencia intensa cuya realidad es
muy anterior a la entrada del cristianismo en Europa. Con un pasado muy
lejano y de mucho peso en las costumbres, las prácticas supersticiosas y
mágicas constituyeron un profundo fondo de imaginario colectivo sobre el
cual vino a instalarse, a comienzos de la primera Edad Media, la reciente y
nueva religión cristiana. No es, pues, el Medievo el que ha transformado a
la sociedad europea occidental en una comunidad de creyentes, sino que a
última hora en la historia de la civilización occidental, la religión cristiana
37
SCHMITT, Jean Claude. Religione, folklore e società nell’Occidente medievale. Roma-Bari, 1988. p.
1-20.
38
LITTLE, L.; ROSENWEIN, B. La Edad Media a debate. Madrid, 2003 (ed. inglesa 1998). p.
475-7.
53
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
39
VEYNE, Paul. Quand notre monde est devenu chrétien (312-394). Paris, 2007. p. 26 ss.; tb. BROWN,
Peter. The Rise of Western Christendom: Triumph and Diversity AD 200-1000. Blackwell, 1996.
(Trad. franc.: L’essor du christianisme occidental: 200-1000. Seuil, 1997).
40
SCHMITT, 2001, p. 46.
41
SCHMITT, Jean-Claude. La raison des gestes dans l’Occident médiéval. Paris, 1990; PAUL, Jacques.
L’Église et la culture en Occident: IXe-XIIe siècle. Paris, 1986. v. II, p. 645-6.
54
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
42
PAUL, Jacques, 1986, p. 646.
55
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?
43
SCHMITT, J.-C. Le saint lévrier. Paris, 1979; ID., 2001, p. 50; ISAMBERT, F.-A. Le sens du sacré:
fête et religion populaire. Paris, 1982. p. 25 ; DUBY, G.; DUBY, A. Los procesos de Juana de
Arco. Valencia, 2005. p. 176-85.
44
SCHMITT, 2001, p. 50.
45
AUGÉ, Marc. Dieux et rituels ou rituels sans Dieux. In : MIDDLETON, John. Anthropologie
religieuse: les Dieux et les rites. Textes fondamentaux. Présentation de Marc Augé. Paris, 1974. p.
9-36.
56
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
46
MANSELLI, Raul. La conversione dei popoli germanici al cristianesimo: la discussione
storiografica. In: Settimane di studio del Centro Italiano di studi sull’alto Medioevo: v. VII: Le Chiese
nei regni dell’Europa occidentale e i loro rapporti con Roma sino all’800: la conversione
nell’Europa dell’alto Medioevo. Spoleto, 1967. v. I, p. 15-42.
57
58
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
59
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
3
Para LAMPERT, Lisa. Race, Periodicity and the (neo) Middle Ages. Modern Language Quarterly,
v. 65, n. 3, 2004, “Feirefiz é um exemplo não apenas de um personagem heroico negro ou de
representação protorracial, mas ilustra as complexas relações de cor num meio em que a imagem
idealizada do cavaleiro era a de alguém branco e cristão” (p. 405).
4
GUERREAU-JALABERT, Anita. Histoire médiévale et littérature. In: Le GOFF, Jacques;
LOBRICHON, Guy. Le Moyen Âge aujourd’hui: trois régards sur le Moyen Age: histoire, théologie,
cinéma. Paris: Le Leopard d’Or, 1997. p. 142.
5
Ver, entre outros, os estudos de DAGENAIS, John; GRER, Margareth. Decolonizing the Middle
Ages. Journal of Medieval and Early Modern Studies, v. 30, n. 3, 2000; LAMPERT, 2004.
6
O tema da mestiçagem tem despertado o interesse dos pesquisadores e vem sendo incorporado
ao debate historiográfico, mas a ênfase costuma ser dada ao período das colonizações promovidas
pelos europeus. Nesse sentido ver GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001; DAVIS, Natalie. Métissage culturel et mediation historique. In:
60
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Classificações étnico-raciais
É preciso tomar cuidado para não cair em velhas ciladas metodológi-
cas, e definir claramente os objetos e conceitos. O primeiro equívoco seria
aplicar ao medievo os pressupostos das modernas teorias a respeito das
raças, sobretudo os componentes biológicos, genéticos, evocados na elabora-
ção das classificações étnico-raciais e que produziram as doutrinas racialistas
dos séculos XIX-XX. Neste ponto, os argumentos apresentados por Robert
Bartlett são bastante convincentes, demonstrando que no período em causa o
componente genético foi muitas vezes ofuscado por considerações de dife-
rente ordem e que no vocabulário das relações raciais eram os componentes
sociais, culturais e inclusive religiosos que determinavam a identidade étnica,
embora, a partir do legado do saber greco-romano, os enciclopedistas dos
séculos XIII-XIV tenham tido condições de formular explicações genéricas a
respeito dos traços distintivos dos povos que beiram o determinismo racial e
geográfico, como se pode perceber no trecho a seguir: “O frio é a mãe de
brancura e da palidez, como o calor é a mãe da negrura e da vermelhidão.
Assim, em terras quentes sairão homens negros e marrons, como entre os
Mouros, e em terras frias, homens brancos, como entre os eslavos”7.
Deslocando a atenção daquilo que, com alguma temeridade, chama-
ríamos de “teorização” étnico-racial para os discursos e lugares-comuns
identitários, é possível observar com facilidade o quanto as generalizações
acerca das particularidades étnicas de determinados povos, considerados
“estrangeiros”, repetiam-se em ambiente cristão e em ambiente muçulma-
XVII CONFERENCE MARC BLOCH, Paris, EHESS, 13/06/1995. Disponível em: <http://
cmb.ehess.fr/document114.html>. Acesso em: 13 ago. 2012.
7
Bartholomeu Anglicus, Livre des proprietés des choses, ap. BARTLETT, Robert. Medieval and
modern concepts of race and ethnicity. Journal of Medieval and Early Modern Studies, v. 31, n. 1,
p. 46, 2001.
61
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
8
Jacques de Vitry, Historia Occidentalis, líber II, cap. VII, ap. MOULIN, Leo. A vida cotidiana dos
estudantes na Idade Média. Lisboa: Edições “Livros do Brasil”, 1994. p. 179-180.
9
AL-HIMIARI, Ibn Abd al-Munim. Kitab al-Rawd al-Mitar (O livro do jardim das fragrâncias).
Tradução de António Borges Coelho. Portugal na Espanha Árabe. 2. ed. Lisboa: Editorial
Caminho, 1989. v. 1, p. 44.
10
Liber scale Machometi (O livro da escada de Maomé). In: LAUAND, Luiz Jean (trad.). Cultura
e educação na Idade Média. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1998. p. 279.
11
Designativo genérico empregado pelos cristãos latinos para identificar os remanescentes das
comunidades visigóticas que permaneceram sob o domínio muçulmano entre os séculos VIII-
XI, mediante o pagamento de um imposto de capitação, a djizya. A seu respeito, ver SIMONET,
F. J. Historia de los mozárabes de España. Amsterdam, 1967 (orig. 1897-1903); MATTOSO, José.
Os moçárabes. In: Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987. p. 19-34.
(Imprensa Universitária, 59).
12
Termo pelo qual os muçulmanos designavam as comunidades cristãs e judaicas mantidas sob
proteção, com permissão para realizar seus cultos em espaço doméstico. Para uma abordagem
mais geral, a obra de referência é LEWIS, Bernard. Judeus do islã. Rio de Janeiro: Xenon, 1990.
13
Nome das populações muçulmanas que permaneceram sob o domínio cristão após a
Reconquista. Entre a vasta bibliografia, convém reter as seguintes referências: PERÉZ, J.
Chrétiens, juifs et musulmans en Espagne: le mythe de la tolerance religieuse. L’Histoire, Paris,
n. 137, p. 8-17, 1990; SERRA, Pedro Cunha. O árabe muwallad e sua representação na
Península Ibérica. Boletim de Filologia, Universidade de Lisboa, tomo XXVIII, p. 231-235, 1983;
GONZÁLES PALENCIA, Angel. Moros y cristianos en España medieval. Madrid: Consejo
Superior de Investigaciones Científicas, 1945; LADERO QUESADA, Miguel Angel. Los
62
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
63
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
Grupos mestiços
O que se pode supor é que, em áreas de passagem cujas fronteiras fos-
sem disputadas, ou cujas fronteiras se mostrassem permeáveis a trocas e inte-
rações, a distinção entre os grupos de origem admitisse cruzamentos, fusões,
e que nem mesmo a diferença religiosa impedisse o surgimento de grupos
sociais híbridos. Para a nossa investigação, interessa particularmente a área
mediterrânica, o Oriente Médio e a área do Egeu e da Ásia Menor, onde con-
viveram secularmente populações de origem cristã, judaica e muçulmana.
Secular ponto de circulação de povos de proveniência diversa, as ci-
dades de todos os lados do Mediterrâneo abrigaram, em maior ou menor
proporção, grupos de pessoas mestiças. Na segunda metade do século XII,
o geógrafo andaluz al-Bakri registrava em seu tratado intitulado Kitâb al-
Masâlik wa-al-Mamâlik (Livro dos caminhos e dos reinos) a existência de
diversas comunidades ocupadas por gente de “sangue misturado”, como
Biskera, na Ifryquia, onde habitam mestiços de latinos e berberes, e Asila,
onde viveriam filhos de normandos e berberes. Próximo da comunidade de
Tolga haveria três coletividades menores, com jardins repletos de oliveiras,
vinhedos e árvores frutíferas: “Uma dessas cidades é habitada por gente de
sangue misturado, outra por árabes de origem iemenita e a terceira por um
povo pertencente à tribo árabe de Cais.”16
Para a Península Ibérica, o tema da convivência entre cristãos, ju-
deus e muçulmanos suscita ampla discordância entre os especialistas desde
o célebre debate entre Américo Castro e Claudio Sanchez Albornoz17. Não
parece ser casual o fato de que as investigações mais aprofundadas sobre o
impacto dos berberes afro-muçulmanos na composição étnico-social de al-
Andaluz tenham sido levadas a cabo por pesquisadores estrangeiros, sobre-
tudo por Pierre Guichard e Robert I. Burns18. Salvo engano, parece haver
16
Al-BAKRI. Description de l’Afrique septentrionale. Trad. Mac Guckin de Slane. Alger: Typographie
Adolphe Jourdain, 1913. p. 111-112, 149.
17
CASTRO, Américo. España en su historia: cristianos, moros y judíos. Barcelona: Critica, 2001
(orig. 1948); ALBORNOZ, Claudio Sánchez. La España musulmana según los autores islamitas y
cristianos medievales. Buenos Aires: El Ateneo, 1946, 2 v.
18
GUICHARD, Pierre. Les musulmans de Valence et la Reconquête (XI-XIII siècles). Damas: Institut
Français de Damas; Paris: Editions d’Amérique et d’Oriente, 1991; GUICHARD, Pierre.
Structures sociales “orientales” et “occidentales” dans l’Espagne musulmane. Paris: Mouton / EHESS,
1977; BURNS, Robert I. Les mudejares du royaume de Valence au temps des croisades: une
majorité traitée en minorité dans un royaume au Moyen Age. In: Minorités et marginaux en
France Meridionale et dans la Peninsule Ibérique (VII-XVIII siècles) (Actes du Colloque de Pau, 27-
29 mai 1984). Paris: Editions du CNRS, 1986. p. 95-118.
64
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
19
MARÍN Manuela. Individuo y sociedad en al-Andalus. Madrid: MAPFRE, 1992. p. 50.
20
FIERRO, Maribel. Árabes, bereberés, muladíes y mawali: algunas reflexiones sobre los datos
de los diccionarios biográficos andalusíes. In: MARÍN, Manuela; FELIPE, Helena de (orgs.).
Estudios onomástico-biográficos de al-Andalus. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, 1995. p. 50; PENELAS, Mayte. Some Remarks on Conversion to Islam in al-
Andalus. Al Qantara: Revista de Estudios Árabes, Madrid: CSIC, v. 23, n. 1, p. 193-200, 2002.
21
PAVON BENITO, Julia. Muladíes: lectura política de una conversión: los Banu Qasi. Anaqel
de Estudios Árabes, Madrid, v. 17, p. 189-201, 2006.
22
ALFONSO X, EL SABIO. Las siete partidas. Selección, prólogo y notas de Francisco López
Estrada y Tereza López García-Berdoy (Odres Nuevos). Madrid: Castalia, 1992. Sétima partida,
65
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
título 25, lei 4, p. 422. Para a análise do enquadramento jurídico-político dos mouros, mudéjares
e muladis, ver MACEDO, José Rivair. Afonso o Sábio e os mouros: uma leitura das Siete
Partidas. Anos 90: Revista do PPG de História da UFRGS, Porto Alegre, v. 16, 2002;
CARPENTER, Duaine. Alfonso el Sabio y los moros: algunas precisiones legales, históricas y
textuales con respecto a Siete Partidas. Al-Qantara, Madrid, v. 7, p. 229-252, 1986.
23
A mais antiga definição do termo latino pulanis, de onde o vocábulo francês poulain, encontra-
se em NOGENT, Guibert de. Gesta Dei per francos. Ed. Jacques Bongars. Jerusalém, 1972:
“Pollani autem dicuntur, qui post praedictam terrae sanctae liberatione ex ea oriundi extiterunt:
vel quia recentes et novi, quase pulli respectu Surianorum reputati sunt; vel quia principaliter
de gente Apuliae matres secundum carnem habuerunt” (tomo I, p. 1086). Sobre o uso da
expressão nos séculos XII-XIII, MORGAN, M. R. The Meaning of Old French Polain/Latin
Pullanus. Medium Aevum, v. XLVIII, p. 40-54, 1979.
24
Entre as poucas propostas de estudo do grupo, ver as considerações de JOTISCHKY, Andrew.
Franks and Natives in the Crusader States: The State of the Question. In: Norman Edge
Colloquium, 2009. Disponível em: Medievalists.net, april 21, 2011, <http://
www.medievalists.net/2011/04/21/franks-and-natives-in-the-crusader-states-the-state-of-the-
question/>; SCHWINGES, Rainer Christoph. William of Tyre, the Muslim Enemy, and the
Problem of Tolerance. In: GERVERS, Michael; POWELL, James F. (eds.). Tolerance and
Intolerance: Social Conflict in the Ages of the Crusades. Siracuse: Syracuse University Press,
2001. p. 124-135.
66
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
25
Foucher de Chartres, Historia Hierosolymitana, ap. AZIZ, Philippe. A Palestina dos cruzados.
Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978. p. 126. (Grandes civilizações desaparecidas).
26
Para a tradução do texto árabe ao francês, ver MIQUEL, André. Ousama: un prince syrien face
aux croisés. Paris: Fayard, 1978. p. 35, 76-77; para o conjunto de seus pontos de vista sobre os
franj, DERENBOURGH, Hartwig. Ousama Ibn Mounkidh: un émir syrien au premier siécle
des croisades. Paris: Ernest Leroux, 1989, especialmente cap. 11: “Impressions d’Ousama sur
les francs”, p. 467-498.
27
MARÍN RIVEROS, José. Croatas y serbios en el De administrando imperio de Constantino VII
Porphyrogénito. Byzantion Néa-Hellas, Santiago de Chile, n. 13-15, p. 55-59, 1993-1996.
28
A primeira definição proposta para este designativo foi apresentada no antigo estudo de
BUCHON, J. A. (ed.). Chroniques étrangères relatives aux expéditions françaises pendant le XIII
siècle. Paris: Mairet, 1841, p. XV. Para ele, este grupo falaria uma língua que mesclava elementos
do antigo francês com o grego, e os falantes seriam filhos da mistura dos francos com as mulheres
do país.
67
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
29
JACOBY, David. Studies on the Crusader States and on Venetian Expansion. London: Variorum
Reprints, 1989. p. 117-119; ID. Trade, Commodities and Shipping in the Medieval Mediterranean.
Variorum Reprints, 1997; ID. Les venitiens naturalisés dans l’1empire byzantine: un aspect de
l’expansion de Venise en Romanie du XIII au milieu du XV siècle”. In: Travaux et mémoires.
Centre de Recherche d’Histoire et de Civilization de Byzance. Paris: E. de Boccard, 1981.
tomo VIII, p. 221-223.
30
JACOBY, David. The Greeks of Constantinople under Latin Ruler 1204-1261. In: MADDEN,
Thomas F. (ed.). The Fourth Crusade: Event, Aftermath and Perceptions – Papers from the
Sixth Conference of the Society for the Study of the Crusades and the Latin East, Istanbul,
Turkey, 25-29 August 2004. Publicado em 2008; ID. Catalans, turcs et vénitiens en Romanie
(1305-1332): un nouveau témoignage de Marino Sanudo Torsello. Studi Medievali, 3. série, v. 15,
p. 217-261, 1974; informações sobre as famílias de origem franca podem ser obtidas em Chronique
de Moree. In: BUCHON, 1841, p. 565-736; ROD, Renell. The Princes of Achaia and the Chronicles
of Morea: A Study of Greece in the Middle Ages. London: Edward Arnold, 1907. p. 22.
68
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
“gens impia et dicta christiana nomine, non opera, qui ex turco patre et
graeca matre procreati”31.
Hibridação
Constatada a existência do fenômeno da mestiçagem nas áreas de
fronteira geográfica ou de fronteira cultural do mundo medieval, é hora de
voltar ao ponto inicial deste estudo e tentar compreender as razões pelas
quais Wolfram Von Eschenbach, no Parsifal, caracterizou o mestiço Feire-
fiz (que personificava, sabemos agora, a condição dos poulains do Levante)
como um indivíduo bicolor, portador de manchas brancas e pretas. Trata-
se de refletir sobre essa aparente dificuldade de admitir a mistura das dife-
rentes cores dos pais na descendência dos filhos mestiços, sobre essa apa-
rente recusa da ideia de mestiçagem.
Em primeiro lugar, convém ressaltar a inexistência, no mundo cris-
tão latino, daquilo que se poderia chamar de preconceito de cor em relação
aos traços fisiológicos dos negros. Uma das mais importantes pesquisado-
ras dos fenômenos associados à descendência e geração no pensamento
médico medieval, Maike Van der Lugt, afirma que, naquele tempo, teólo-
gos, mestres universitários e eruditos em geral dedicavam maior atenção à
tonalidade, densidade e viço da pele do que à sua cor mais clara ou mais
escura32. Não quer dizer que a cor negra estivesse isenta de qualificações
negativas, como se sabe, mas tudo leva a crer que esse aspecto decorresse do
lugar ocupado pela noção da escuridão no pensamento cristão, atravessado
pela polaridade branco/luz/divindade – negro/trevas/demônio33. Com efei-
to, nos sistemas de valores medievais, a cor negra lembrava o mal, e os teólo-
gos, de Santo Agostinho a Alberto Magno e São Tomás de Aquino, estabele-
ciam relação do branco com a pureza, perfeição espiritual e verdade, e do
31
Raymonde de Aguillers, Chronique, liber V, cap. 3, ap. DU CANGE. Glossarium ad scriptores
mediae et infimae latinitatis. Niort: N. Favre, 1883-1887. tomo VIII, col. 212b.
32
LUGT, Maaike van der. La peau noire dans la science médiévale. Micrologus, v. XIII, p. 441,
2005.
33
Segundo PORTAL, F. Des couleurs symboliques dans l’Antiquité, le Moyen Age et les temps modernes.
Paris: Éditions Niclaus, s.d. p. 103: “Le blanc est le symbole de la verité absolue, le noir devait
être celui de l’erreur, du néant, de ce qui n’est pas. Dieu seul possède l’existence en soi; le
monde est une emanation de sa pensée, le blanc réfléchit tous les rayons lumineux, le noir est
la négation de la lumière; il fut attribué à l’auteur de tout mal et de toute fausseté.” Definições
similares, contrastantes, são apresentadas por PASTOUREAU, Michel. Dicionário das cores do
nosso tempo: simbólica e sociedade. Lisboa: Estampa, 1997. p. 43-44, 141-142.
69
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
34
Ver MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval.
Signum: Revista da Associação Brasileira de Estudos Medievais, São Paulo, v. 3, p. 83-101,
2001; MEDEIROS, François de. L’Occident et l’Afrique (XIII-XV siécles): images et representations.
Paris : Karthala, 1985; OLIVA, Anderson Ribeiro. Da Aethiopia à África: as ideias de África,
do medievo europeu à idade moderna. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, v. 5, n.
4, p. 1-20, 2008.
35
A respeito das formas de relacionamento das populações da África oriental com o Oriente
Médio, o antigo livro de DEVIC, L. Marcel. Le pays des zendjs ou la côte orientale d’Afrique au
Moyen Age d’après les écrivais arabes. Paris: Librairie Hachette, 1883, continua a servir de referência
para as informações gerais, embora a interpretação proposta esteja completamente ultrapassada
devido à perspectiva etnocêntrica do autor.
36
LEWIS, Bernard. Raza y color en el Islam. Al Andalus, Madrid, v. 33, n. 1, p. 1-51, 1968; ver
também WEDEBURN, Carlos Moore. O racismo através da história: da Antiguidade à
Modernidade. Brasília: MEC-SECAD, 2007, especialmente p. 57-70; MARMON, Shaun. Black
Slaves in Mamluk Narratives: Representations of Transgression. Al-Qantara, Madrid, v. XXVIII,
n. 2, p. 435-464, 2007.
70
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
37
PASTOUREAU, Michel. O pano do diabo: uma história das listras e dos tecidos listrados. Rio
de Janeiro: Zahar, 1993. p. 86-87.
38
Seria preciso, contudo, admitir outras leituras das prescrições do texto bíblico com respeito à
mistura das cores, o que se pode observar no episódio da partilha das ovelhas entre Jacó e
Labão, segundo o qual o primeiro teria conseguido, através de um artifício da mistura de duas
cores, que seus animais nascessem listrados, malhados. Para os escritores medievais, o episódio
deve ser tomado em sua dimensão alegórica, em que Jacó significa os pregadores da Igreja de
Cristo; as ovelhas são os fiéis; a água figura a Santa Escritura; a “variedade de cores” simboliza
a diversidade dos ensinamentos dos Pais da Igreja. Para a interpretação da passagem, ver
SCHMITT, Jean-Claude. Le corps des images: essais sur la culture visuelle au Moyen Age. Paris:
Gallimard, 2002. p. 350-353.
71
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
39
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Lisboa: Edições
70, s.d. (orig. 1966), especialmente p. 71-74.
40
KECK, Christian. Respecter l’ordre du monde: l’animal-homme et l’homme-animal dans les
enluminures du Ci Nous Dit. Micrologus, v. VIII, n. 2, p. 395-410, 2000; ENGAMMARE,
Isabelle. Le processus d’hybridation dans les marges à droleries des manuscripts gothiques.
Micrologus, v. VIII, n. 2, p. 445-461, 2000; KAPPLER, Claude. Monstres, démons et merveilles à la
fin du Moyen Age. Paris: Payot, 1999.
41
Constantin Porphyrogènete, De administrando Imperio, ap. MALAMUT, Elisabeth. Les peuples
étrangers dans l’idéologie imperiale: scythes et occidentaux. In: Actes des Congrès de la Société
des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, 30 congres, Göttingen, 1999, p. 119-
132
72
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Mestiçagem
É provável que a referida indisposição à mescla e à simbiose explique a
atitude negativa dos povos de origem em relação aos grupos miscigenados,
algo que se pode observar no vocabulário social da Idade Média latina –
espaço ao qual limitaremos nossa análise daqui por diante. De imediato, ob-
serva-se que os designativos empregados para identificá-los tinham conota-
ção pejorativa e infamante. Isso se depreende, por exemplo, da reação de
Jean de Joinville, na segunda metade do século XIII. Ele ficou muito irritado
ao ter sido apelidado de “poulain” e devolveu aos maledicentes que assim o
chamaram a acusação de serem “roncins recreus”, isto é, rocins desqualifica-
dos, baixos, traidores42. Quanto ao termo gasmulo, também era sinônimo de
pessoa estúpida, baixa, bastardo43.
O rebaixamento e infamação decorriam da associação dos qualificati-
vos aplicados aos mestiços com o mundo animal. No caso dos poulains, sua
primeira acepção era de “potrinho”, cavalinho. Significado similar deve ter
sido aplicado aos turco-cristãos, os turcopulis, em que se nota a mesma raiz
etimológica do termo originário, poulos. Quanto aos termos gasmulo e mula-
di, a ideia de degenerescência é ainda mais evidente devido à incorporação
do vocábulo mule, do nome do asinino mula. Sabe-se, aliás, que mula está na
raiz etimológica de mulato, vocábulo empregado no novo mundo para iden-
tificar os mestiços de brancos e negros44.
O caso da mula, animal estéril, resultante do cruzamento de um
equino e de um asinino, pode ter servido de exemplo para os riscos da
hibridização. A classificação dos animais quanto às suas características
biológicas serviu de modelo inicial para a classificação genética dos seres
humanos. Salvo engano, data de 1480, num poema do francês Jacques de
Brezé, o primeiro emprego do termo “raça” para designar um tipo bioló-
gico, mas no caso tratava-se de “cães de boa raça”, apreciados pela nobre-
42
JOINVILLE, Jean de. Histoire de Saint Louis. Ed. Natalys de Wailly. Paris: Librairie Hachette,
1865. p. 192.
43
HANAWALT, Emily Albu. Byzantion: Church, Society and Civilisation Seen through
Contemporary Eyes (Deno Geanakoplos). Speculum: A Journal of Medieval History, v. 61, n.
3, p. 653-654, 1983.
44
Sobre a origem do vocábulo mulato e suas primeiras aplicações, na África e no Novo Mundo,
ver o estudo de FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The Language of Race and the
Evolution of Red-black people. Oxford/New York: Basil Blackwell, 1988, p. 131, 138-140,
para quem o termo derivaria do árabe muwallad e teria conexão com o vocábulo malato, em
Portugal, de onde a palavra malhado… misturado.
73
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII
45
LUGT, Maiike van der; MIRAMON, Charles de. Pensar a hereditariedade na Idade Média:
introdução e primeiros apontamentos. In: V.V.A.A. Reflexões sobre o medievo. São Leopoldo
(RS): Oikos, 2009. p. 125.
46
ARISTOTE. Traité de la generation des animaux. Livro II, cap. X. Disponível em: <http://
remacle.org/bloodwolf/philosophes/Aristote/generation210.htm>. Acesso em: 15 out. 2012.
47
PLINE. Histoire naturelle. Livro VIII, cap. LXVIII-LXIX. Disponível em: <http://remacle.org/
bloodwolf/erudits/plineancien/livre8.htm>. Acesso em: 15 out. 2012.
74
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
1
Professor na Faculdade de Educação – UFRGS.
2
PEREIRA, Nilton. A cidade, o filósofo e a mulher: em nome de Deus. 2006, p. 43. (Cadernos IHU
em Formação, 11).
75
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
3
LE GOFF, Jacques; & TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006. p. 60.
4
LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1998. p. 59.
76
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
5
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2003. p. 47.
6
SENNETT, Richard. Carne e pedra. Tradução de Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record,
1997. p. 150.
77
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
Fugi do ambiente de Babilônia, fugi e salvai vossas almas. Ide todos juntos
para a cidade do refúgio, onde podereis se arrepender do passado, viver na
graça para o presente, e esperar com confiança o futuro [quer dizer, nos
mosteiros]. Encontrarás bem mais nas florestas do que nos livros. Os bos-
ques e as pedras ensinar-te-ão mais do que qualquer mestre.7
7
LE GOFF, 2003, p. 45.
8
Ibid., p. 47.
78
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
sor”9. E foi ele, talvez, o único dentre filósofos e padres a não situar o pecado
original na concupiscência, uma das grandes criações do cristianismo medi-
eval. Abelardo já é produto desta nova sensibilidade, tanto por parecer estar
próximo da nova forma de amor profano, o amor cortês, quanto pela sua
inestimável contribuição à filosofia no que concerne à querela dos universais,
e, ainda, pela sua autobiografia, quando, nos limites dos arquétipos disponí-
veis, apresenta o seu eu e propõe uma interioridade, uma consciência de si
mesmo. Quando ainda iniciava sua relação secreta com a jovem Heloísa,
Abelardo escreve: “O amor mais frequentemente se buscava nos olhos de um
e outro do que a atenção os dirigia sobre o texto [...] Nosso ardor conheceu
todas as fases do amor, e também tivemos experiência de todos os refinamen-
tos insólitos que o amor imagina.”10
Mesmo Abelardo, esse homem da cidade, parece se sustentar nos mo-
delos disponíveis, tal como os poetas respondiam às convenções da poética,
as autobiografias se valiam de modelos arquétipos. “A mesma coisa vale para
Heloísa. A fim de exprimir seu amor por Abelardo, ela usa imagens e pala-
vras tiradas do Cântico dos cânticos.”11
O século XII é uma época de renascimento e de criações, múltiplas
criações: a cidade e o amor cortês. O amor cortês busca tanto sua autonomia
quanto o buscava a cidade. O amor é nobre e a cidade é burguesa, mas um e
outro são movimentos repletos de vestígios profanos e de inversões da or-
dem, ambos demonstram a tensão entre os modelos e os desvios.
Amor e interioridade
Na justa amorosa cortês ou nos confins das noites eternas da floresta;
na promessa do segredo feita no leito de uma grande dama ou na errância
fugitiva à ilegalidade do bosque, lá está ela nascendo, emergindo como um
espectro que invade o gregarismo, o coletivismo, a morte e o pecado origi-
nal. Nasce da invenção do seu íntimo e, ao conversar com Deus e a Igreja,
confessa o seu pecado e mostra-se para a divindade e para si mesmo. Peca
por si – na evidência e na intenção – não apenas pela origem malfadada de
9
Ibid., p. 59.
10
Correspondência de Abelardo e Heloísa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 41.
11
GOUREVITCH, Aaron. Indivíduo. Tradução de Flavio de Campos. In: LE GOFF, Jacques;
SCHIMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Tradução de Hilário Franco
Júnior. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Nacional, 2002. p. 622.
79
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
todo homem. Está ela emergindo nas difíceis entradas da lei da confissão e
na esperança da eternidade, representada no purgatório.
Ela está aparecendo pelas bordas suaves do poema cortês, onde a
experiência de si se dá na promessa, no segredo e na guerra do amor, que
leva o cavaleiro a transformar-se nos seus mais íntimos modos de ser e leva
a dama a uma liberdade de dizer não e de escolher melhor. Pelo amor-
obstáculo ela se constrói – aprende a contrição, o autocontrole e se faz vir-
tuoso a guardar um segredo que é só do indivíduo. Ele aparece repentino,
driblando a vigilância da Igreja e preenchendo de moedas seus bolsos cada
vez mais fundos: a nova economia a ascende e a constitui.
Ela nasce lentamente diante da relíquia no altar, espaço de encontro
entre o divino e o terreno – lá onde o divino se mostra a todos na forma da
Eucaristia. É aí, na hora da cerimônia agora sagrada do casamento, que a
noiva, depois de explorar o fundo de sua intimidade, escolhe e revela o
desejo, ultrapassa o limite da lei, do código, da própria aliança e, sobretu-
do, da política.
O século XII assiste, bem pouco atônito, à emergência dela, a indivi-
dualidade. E ela é produto de uma nova sensibilidade e de um conjunto de
códigos que definem o perfil do bom cavaleiro e do amante perfeito.
O amor cortês é algo verdadeiramente novo no Ocidente cristão, des-
de o princípio da elaboração do seu perfil, com Guilherme IX. É novo por-
que se propõe inteiramente dentro e fora do modelo de sociedade do qual
surgiu. Ao mesmo tempo, ele somente pode ser compreendido no interior
das relações sociais e do caldo cultural da Europa da Idade Média Central
e do Renascimento do século XII, mas avança contra um terreno altamente
rígido do modelo moral cristão que é o casamento. Este que, justamente
nesse mesmo momento, emerge como sacramento e como uma das formas
de controle sobre a sociedade mais importantes já criadas pela Igreja cristã.
O amor cortês faz do terreno do casamento o lugar/espaço no qual se trava
um debate, uma guerra, uma disputa de forças, que têm como consequên-
cia a “revolução” dos costumes e da “própria sensibilidade”.
A novidade, para esse autor, estava no fato de o amor cortês “reclamar
a autonomia do sentimento e pretender que podia haver entre os dois sexos
relações diferentes das do instinto, da força, do interesse e do conformismo”12.
12
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Tradução de José Rivair de Macedo.
Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 354.
80
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
13
NELLI, René. Os cátaros. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 86.
14
ROUILLAN-CASTEX, Sylvette. L’amour et la société feodale. Revue Historique, n. 272, p.
296, 1984. “A canção diz sempre ‘eu’.” (tradução minha).
81
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
Guilherme não sabe quem ela é, nem nunca a viu, mas isso não im-
porta a ele. O poeta/cavaleiro tampouco poderá trocá-la por nada, nem
que o seu sofrimento pela ausência da Senhora se prolongue pela vida intei-
ra. A Dama é de tal forma enaltecida que se torna transcendente em rela-
ção à vida concreta do poeta; ela se encontra num tal estado de pureza que
vê-la ou tocá-la vale apenas pela promessa, pela possibilidade. Ter prazer
com a Dama, beijá-la e tocar seu corpo, vale apenas pela possibilidade, de
maneira que o desejo tem sua satisfação permanentemente afastada, ao
ponto da sublimação.
Eis um dos elementos mais marcantes da retórica cortês do bon amour:
“Tous lês grands troubadours ont chanté cette femme essentiellement ab-
sente et partant, inaccessible.”16 Trata-se de uma idealização da mulher
amada; ela é possuidora das maiores e mais altas qualidades. São qualida-
des tão significativamente irreais que jamais poderiam ser descobertas em
uma mulher real. Elas essencializam a Dama, no sentido de colocá-la numa
situação ideal, como que uma substância que paira transcendentalmente,
em relação às mulheres com seus corpos empíricos.
Para Nelli, “a dama adorada transmite-nos mais facilmente a impres-
são de que simboliza um ser sobrenatural ou equilibrado ou muito simples-
mente a essência feminina consagrada pela morte”. Não se trata, para esse
autor, de uma incorporação do culto à virgem, de modo que se pudesse
supor ser a virgem a Dama idealizada pelos trovadores. “A mulher não
simboliza nunca, para os trovadores, a Santa Virgem, nem a sabedoria, nem
a gnose, nem a Igreja Cátara: ela remete-nos unicamente para a sua própria
imagem, transfigurada e sempre pronta, de resto, para recair nas realidades
terrenas.”17
De qualquer modo, as virtudes da Dama se refletem imediatamente
no poeta/cavaleiro. Pois é por amor a ela que o cavaleiro poderá se mostrar
virtuoso, respeitando as regras do amor e da cortesia. A alegria do amor,
15
“Mais branca é do que o marfim, motivo por que lhe/ quero mais do que a qualquer outra; se
tão logo não/ conseguir a piedade do seu amor, morrerei, por São/ Gregório, a menos que
consiga um beijo, em sua mo-/ rada ou sob a ramagem” (tradução de SPINA, Segismundo. A
lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1996. p. 103).
16
ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 304. “Todos os grandes trovadores têm cantado essa mulher
essencialmente ausente e, portanto, inacessível” (tradução minha).
17
NELLI, 1980, p. 87.
82
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
18
ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 312. “Por intermédio de um amor de essência superior por
uma mulher socialmente superior, o trovador adquire as qualidades reconhecidas por toda a
sociedade feudal, que são aquelas da classe dos cavaleiros” (tradução minha).
19
MARIE, de France. Lais de Maria de França. Tradução e introdução de Antonio L. Furtado;
prefácio de Marina Colasanti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
83
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
Dama e o casamento
Guilherme canta essa distância da Dama na sua obra prima, o canso X:
II
De lai don plus m’es bon e bel
non vei mesager ni sagel,
per que mos cors non dorm ni ri
ni no m’aus traire adenan,
tro qu’eu sacha ben de la fi,
s’el’es aissi com eu deman.
IV
Enquer me membra d’un mati
que nos fezem de guerra fi
e que.m donet un don tan gran:
sa drudari’ e sin anel.
Enquer me lais Dieus viure tan
qu’aia mas mans soz son mantel!21
20
Eis algumas das leis do amor que Capelão inclui no seu Tratado: “II. Mantém-te casto para
aquela que amas. III. Não tentes destruir o amor de uma mulher que esteja perfeitamente
unida a outro. IV. Não busques o amor de nenhuma mulher que o sentimento natural de
vergonha te impeça de desposar. V. Lembra-te de evitar absolutamente a mentira. VI. Evita
contar a vários confidentes os segredos do teu amor. VII. Obedecendo em tudo às ordens das
senhoras, esforça-te sempre por pertencer à cavalaria do Amor. X. Não traias os segredos dos
amantes. XI. Em qualquer circunstância, mostra-te polido e cortês” (CAPELÃO, André. Tratado
do amor cortês. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 98).
21
Disponível em: <http://www.ricardocosta.com>; acesso em: 03 jul. 2006. “II. Do lugar que
me parece bom e belo,/ Não vejo chegar nem carta, nem mensageiro./ Por isso, meu coração
não dorme, nem ri,/ Nem me atrevo a seguir adiante,/ Até que esteja certo do fim,/ Se ele
será assim como eu desejo./ III. Com nosso amor ocorre o mesmo/ Que o galho branco do
espinheiro/ Que está queimando sobre a árvore,/ De noite, com a chuva congelada,/ Até que
no dia seguinte o Sol se ponha,/ Pelas folhas verdes e a relva” (tradução de Ricardo da Costa).
84
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
nos poemas dos trovadores do sul da França quanto nos romances do ciclo
arturiano, a Dama é uma mulher de alta linhagem. E ela forma junto com
o Senhor, detentor de toda autoridade e riqueza, e o trovador, vital como
um adolescente, alegre, espirituoso e juvenil, o trio amoroso que marca o
amor cortês como o espaço de rebeldia em relação ao casamento cristão.
O trovador se relaciona de modo ambíguo com o Senhor, que pode
ser suserano e mecenas e, ao mesmo tempo, inimigo mortal, em função da
disputa pela Dama e da quebra do contrato de fidelidade. Concluímos, en-
tão, que essa forma amorosa cortês é adultera. Mas que casamento era esse
que os trovadores abominavam e que, por exemplo, Heloísa relutou em
aceitar quando Abelardo o propôs a ela?
Esse casamento era um pactum conjugale, um negócio entre famílias
nobres22, ligado a interesses políticos, militares e sociais, definido, justa-
mente, quando os laços de consanguinidade passaram a definir os proces-
sos de sucessão. A nobreza passou a ser definida pela linhagem da qual o
indivíduo fazia parte, de forma que era uma genealogia que marcava a no-
breza. Assim, o casamento tornou-se um instrumento político poderosíssi-
mo, na medida em que é ele que organizava as alianças e definia a linhagem
e a sucessão. O casamento era, pois, uma garantia de herança23.
Por outro lado, a desconfiança do modelo moral cristão em relação
ao corpo e à mulher, em função pecado original, feito pecado carnal, levou
a Igreja a ver no casamento público, tornado sacramento e ritualizado, um
modo de controlar as Evas. Em função do perigo que representavam as
mulheres, o “casamento é a melhor defesa. No século XII, as autoridades
da Igreja terminam de ajustar-lhe as defesas, de colocá-lo como sendo o
sétimo sacramento entre os sacramentos.”24 Tratava-se de um movimento
paradoxal, primeiro, porque o casamento implicava relação carnal, logo
consistia em perpetuar o pecado; segundo, o matrimônio era um modo de
controlar as mulheres e as próprias uniões carnais. Tal paradoxo fez a Igre-
ja aceitar o casamento e sacramentá-lo com reservas, não acabando com o
22
Cf. BLOCH, Howard R. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995. p. 23-54.
23
Cf. BLOCH, 1995; GUERREAU-JALAMBERT, Anita. Parentesco. In: LE GOFF; SCHMITT,
2002, p. 321-336; DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios.
Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
24
DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. Tradução de Maria Lúcia Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 66.
85
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
pecado do ato carnal, mas permitindo-o, já que tal união – cercada de regu-
lamentos e proposições de condutas morais – era o modo mesmo de gera-
ção, de procriação. O casamento encontra no Gênesis sua justificativa.
Como uma aliança política no mundo feudal, o matrimônio funcio-
nava como uma poderosa forma de dominação e controle social. No cam-
po espiritual, a preocupação era aprofundar uma ascese que livrasse os ho-
mens do perigo feminino e, ao mesmo tempo, levasse as mulheres do con-
vento à casa do Senhor para que a rua não lhes fosse um espaço de ampla
tentação. No campo material, a aliança matrimonial criava e ampliava uma
rede de parentesco e consanguinidade que definia o jogo de poder na socie-
dade feudal. Por exemplo, a proibição do casamento dos caçulas e a reserva
do feudo ao primogênito criaram toda uma série de cavaleiros e indivíduos
de baixa nobreza que estavam à margem da distribuição patrimonial na
sociedade feudal.
Este sistema permite à aristocracia tecer amplas redes baseadas na afinida-
de, nas quais se combinam os elos de longa e muito longa distância, cobrin-
do a totalidade do espaço da Cristandade, e os elos locais, sustentando par-
cialmente as relações hierárquicas de vassalidade. A extensão considerável
das proibições, restringindo drasticamente as possibilidades de fechamento
das proibições, restringindo drasticamente as possibilidades de fechamento
das parentelas, cria uma situação particularmente favorável à coesão dos
grupos dominantes na sociedade feudal.25
25
GUERREAU-JALAMBERT, 2002, p. 328.
26
A questão refere-se a uma tentativa de proibir o incesto. É assim que os regulamentos
eclesiásticos impõem limites para as uniões. Em princípio a Igreja proibia casamentos até o 7º
grau de parentesco, e, mesmo tal imperativo tendo sido reduzido no Concílio de Latrão IV
(1215) para o 4º grau, as proibições se mantiveram e o casamento dentro da própria
consanguinidade nunca foi permitido.
27
Cf. DUBY, 1989.
86
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
tre elas [...]. As uniões desse gênero, arranjadas pelos pais, muitas vezes
programadas quando os futuros cônjuges são ainda crianças, às vezes nem
nascidos.”28
A Igreja, no Concílio de Latrão, em 1215, estendeu a interdição de
uniões até o sétimo grau, ampliando a presunção do incesto que, antes, era
fixado no quarto grau, tornando boa parte dos casamentos aristocráticos
passíveis de condenação.
O casamento era, como mostram Bloch e Duby, um estado de sujei-
ção permanente, movido por uma eterna desconfiança do Senhor-esposo
em relação à natureza demoníaca da mulher. Era, pois, melhor tê-las por
perto, mortificá-las pelo domínio opressivo dos homens, aprisionando-as
nas torres dos castelos, onde o que lhes poderia restar era sonhar com um
amante jovem ao qual pudessem enaltecer a virtude e com o qual pudessem
viver um amor verdadeiro.
O casamento não se constituía em renúncia; ao contrário, ele estabe-
lecia oficialmente a possibilidade da relação sexual. A ascese cristã, então,
não incluía o casamento, exceto se esse fosse com Deus. Inúmeras epístolas
de religiosos29, como o próprio são Bernardo, mostram que o valor atribuí-
do ao casamento não era maior do que a vida de renúncia no convento.
Tais cartas mostram notadamente o valor que a Igreja atribuía à ascese
através da renúncia, de forma que, para acessar o paraíso, o caminho mais
rápido e mais desejável não era o casamento, mas a renúncia a todos os
prazeres e uniões carnais. Isso significa que, mesmo sem o prazer – como
eram recomendadas as uniões carnais entre marido e esposa –, a união
carnal não pode ser boa aos olhos de Cristo.
De qualquer modo, o convento era um espaço entre a rua e a casa do
senhor. Ali, a menina esperava até que o senhor viesse buscá-la, a fim de
casar-se com ela. Era no convento o lugar onde elas podiam estar fora de
perigo, longe das tentações mundanas e de uma “defloração acidental”.
Ora, muitas delas ficavam esquecidas no convento; que fazer com elas? Era
preciso casá-las: casá-las com Deus, fato que as livrava, quem sabe, da con-
junção carnal.
O convento tinha essa função importante: uma espécie de espaço de
purificação e de garantia de pureza, garantia de manutenção da virgindade.
28
FLORI, Jean. A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média, São Paulo: Madras,
2005. p. 144.
29
Pesquisa realizada por DUBY, 2001.
87
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
30
Ibid., p. 79.
31
Santo Anselmo, cit. ap. ibid., p. 80.
32
O perigo estava no fato de que o casamento era um modo de consentir na conjunção carnal e
isso, de certo modo, era a reprodução do pecado original. Além disso, para os homens, estar
ao lado de uma mulher não consistia em nenhum ganho espiritual ou intelectual: “A mulher é
simplesmente útil na procriação (adiutorium generationis) e no cuidado da casa. Para a vida
intelectual do homem não tem significado. Assim Agostinho foi o brilhante inventor do que os
alemães chamam de três Kas (Kinder, Küche, Kirche) – filhos, cozinha, Igreja, uma ideia
ainda viva, que com efeito continua a ser a oposição teológica primária das mulheres na
hierarquia da Igreja” (RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres,
sexualidade e a Igreja Católica. 4. impr. Tradução de Paulo Fróes. Rio de Janeiro: Record/
Rosa dos Tempos, 1999. p. 101).
33
DUBY, 2001, p. 80/81.
88
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
certa aversão ao casamento, já que este era, em si, uma forma de decai-
mento e adultério. “Os filhos? Chafurda-se na lama imunda no instante
em que são concebidos”, diz Hildebert de Lavardin. A necessidade que
jamais deveria ter existido, ter que reproduzir e, para isso, ter que copular.
Diz ele ainda que “a liberdade é a virgindade [...] o silêncio da carne, a
paz e, em breve, a beatitude, as verdadeiras bodas, as únicas perfeitas, a
união com Jesus Cristo”34.
As cartas desses religiosos enaltecem um amor que é um casamento
com Deus. Aos olhos de muitos religiosos, inclusive de Agostinho, o casto
é superior ao casado. O santo diz que, se marido e esposa renunciam juntos
ao coito, como uma forma de ascese, de cuidar do espírito e do ingresso na
Cidade de Deus, eles se elevam e se aproximam de Deus. Para o santo, “a
virgindade (castidade) é moralmente superior ao casamento, e o casamento
sem sexo também é superior ao casamento com sexo”35.
O casamento foi parte da pedagogia da Igreja. Sacralizado, ele torna-
va o pecado do coito, ainda pecado, desde então, tolerado e controlado. O
casamento foi, desse modo, uma maneira de “corrigir os costumes” e “con-
trolar as pulsões carnais”. Ele não consistia em uma união amorosa. Casa-
mento e amor eram de naturezas diversas; para os trovadores, o casamento
torna o amor utilitário, e a utilidade não faz parte da natureza do amor
puro, do amor bom. Até porque o casamento implica uma mulher empíri-
ca. Essa existência empírica da mulher faz fenecer o centro irradiador da
criação literária, da intensidade do amor, da disposição para amar e da
virtude, a Dama inatingível e inacessível.
É bem verdade que o amor cortês cantado pelos trovadores se valia
do ambiente da sua época a fim de criar os temas das suas canções e, indu-
bitavelmente, o tema da castidade, da negação do ato carnal, no sentido de
ser elemento que torna impuro o amor, estava tanto no discurso dos teólo-
gos quanto na retórica dos trovadores. A época da emergência do lirismo
cortês foi um momento de construção de um imaginário intensamente po-
voado pela virtude da castidade, pelo apelo à virgindade.
Há quem anuncie uma valorização da mulher nessa Idade Média cen-
tral. Tanto em razão do papel assumido pela Dama na poesia dos trovado-
res: a mulher como a fonte da virtude, quanto da possibilidade de escolha
34
Ibid., p. 81.
35
RANKE-HEINEMANN, 1999, p. 110.
89
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
36
O vocábulo joi é bastante utilizado pelos trovadores e o seu sentido, independentemente das
ambiguidades interpretativas que enseja, é “joué à plaisir”, isto é, um jogo alegre e prazeroso
(ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 312).
37
Cit. ap. ROUGEMOND [? NÃO CONSTA EM NOTA ANTERIOR], 2003, p. 164.
90
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
38
ROUGEMOND, 2003, p. 164.
39
Pierre Cardenal é citado por ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 304. “Eu tenho desejo, eu desejo
e prefiro desejar sempre” (tradução minha).
40
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1999. p. 116-117.
91
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
novas formas de prazer para além dessa noção de desejo como recalque da
falta. “O processo do desejo é chamado de ‘alegria’, e não falta ou procura.
Tudo é permitido, com exceção do que vier interromper o processo com-
pleto do desejo, o agenciamento.”41 No amor cortês, não se trata de satisfa-
zer a falta e dar um fim aos processos desejantes, mas, em vez disso, manter
aberta a possibilidade de criação de outras formas de desejo distante da
culpabilização, da falta e da sua consequente proibição. Todo desejo codifi-
cado é uma forma institucionalizada de prazer, e é isto mesmo o que não é
o amor cortês.
Daí a contradição entre um amor bom e um amor mau. O bom amor,
como diz Guilherme, é sempre inacabado e estéril, reluta uma possessão
definitiva da Dama, pois a possessão definitiva da Dama acaba com a rela-
ção amorosa e com todos as consequências decorrentes dela: a virtude do
cavaleiro, o serviço vassálico à Dama e, sobretudo, a alegria e o jogo.
O amor cortês é um jogo, e seguem-se dele as virtudes do cavaleiro.
O jogo possui regras e se desenvolve no interior de um debate racional
entre a Dama e seu pretendente. Este jogo, alegre que ínsita a Dama a
prometer amor ao cavaleiro se estende ao infinito, mesmo que o final trá-
gico da morte interrompa a existência dos amantes. Neste caso, os aman-
tes como entidades empíricas desaparecem, mas o amor vence e se man-
tém à eternidade. A promessa do amor é mais importante que a consoli-
dação do amor em termos carnais; a presunção do adultério é mais valio-
sa que o adultério em si.
O contexto
Os medievalistas são unânimes em afirmar que o século XII foi um
momento decisivo na civilização ocidental. Foi nesse “Grande Século” que
a vida urbana se tornou um fato irremediável na vida dos cristãos ociden-
tais. A vida urbana era um fato, sobretudo, para a França meridional, onde
o feudalismo assumiu feições muito singulares. O amor cortês dos trovadores
provençais constitui um acontecimento que somente pode ser abordado no
interior das circunstâncias sociais e históricas nas quais apareceu, no sentido
de que essa forma amorosa é um “fenômeno social” e que deve ser estudado
e explicado como tal, segundo o que propõe Nelli. Isso quer dizer que o amor
41
Ibid., p. 116-117.
92
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
93
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
ríntios: “Eu vos digo, irmãos: o tempo é curto. Que a partir de agora aque-
les que têm mulher vivam como se não a tivessem mais.”42
Então, a mulher aparece como centro do interesse do discurso dos clé-
rigos e, de outro modo, também do discurso dos trovadores. Na retórica cris-
tã, o culto a Maria vai se constituir na estratégia de criar a segunda Eva,
aquela que vai exorcizar o pecado original. Ela será a representação da mu-
lher ideal e vai afirmar os valores supremos da virgindade e da castidade. Por
seu turno, os trovadores, ao construírem a Dama perfeita, mulher idealizada
e inatingível, elevam a mulher a uma condição de pureza. Essa Dama é fonte
de toda a virtude do cavaleiro, e quem este deve obediência e serviço.
Uma tese bastante corrente é a identificação da Dama dos trovadores
com Maria, mãe de Deus. Na medida em que se idealizava a Dama e se a
colocava num patamar para além mesmo da própria experiência empírica, isso
parece confundir-se com o culto a Maria que tomava força no século XII.
Não há dúvida de que os trovadores transcendentalizaram a mulher,
projetando-a para um estado de tal pureza e perfeição, que ela se aproxima
da Virgem cultuada pelos populares e oficializada pela Igreja.
Mas atentemos para o fato de que os medievais sempre olhavam para
a realidade como um conjunto de símbolos. O caráter hierofânico dessa
cultura nos mostra que os signos querem dizer outra coisa que o que dizem.
Isso significa que a idealização da Dama tem um significado outro que não
simplesmente o que se depreende diretamente, ou seja, que a Dama ideali-
zada não corresponde a uma mulher empírica, mas a uma essência que
pode ser Maria. Para Nelli, “a mulher não simboliza nunca, para os trova-
dores, a Santa Virgem, nem a sabedoria, nem a gnose, nem a Igreja Cátara:
ela remete-nos unicamente para a sua própria imagem transfigurada e sem-
pre pronta, de resto, para recair nas realidades terrestres”43.
Rougemond, ao tentar ligar o amor dos trovadores à heresia cátara,
mostra que a Dama é “efetivamente de uma mulher real – o pretexto físico
é evidente –, mas, como no Cântico dos cânticos, o tom é realmente místico.
Os eruditos insistem em repetir sua fórmula: significa ‘muito simplesmen-
te’ uma mania de idealizar a mulher e o amor natural.”44
Bloch defende que essa idealização da mulher, através da figura da
Dama, não significa que o amor cortês se constituísse em uma elevação da
42
A Bíblia: Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Traduções dos textos originais hebraico e
grego. São Paulo: Loyola, 1995. 1 Coríntios 7,29.
43
NELLI, 1980, p. 87.
44
ROUGEMOND, 2003, p. 123.
94
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
45
FLORI, 2005, p. 142.
95
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
46
BLOCH, 1995, p. 209.
47
Ibid., p. 208.
96
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
nos primórdios do século XI, uma significativa redução dos patrimônios de-
vido à divisão dos domínios, fosse em função da divisão advinda da herança,
fosse mesmo em função das doações feitas à Igreja. Flori lembra que a docu-
mentação permite concluir que ocorrera uma diminuição significativa nas
doações à Igreja e que as penitências, antes realizadas sobretudo através das
doações, voltam-se a mecanismos como a peregrinação, da qual o exemplo
mais cabal foram as Cruzadas. Houve mesmo tentativas de reverter doações
feitas anteriormente por familiares. Em segundo lugar, as famílias tentaram
ao máximo evitar o fracionamento sucessório, mantendo a indivisão dos bens
após a morte do pai. Nesse sentido, houve uma restrição dos casamentos, de
modo que em cada família apenas um membro casava, com uma única li-
nhagem reconhecida. Desse modo, os outros filhos se tornavam celibatários
ou eram investidos cavaleiros sob a guarda do Castelão, mas sem herança ou
casamento. A partir daí se deu a generalização da primogenitura.
Uma das consequências desse processo parece ter sido a constituição
de uma “horda” de jovens guerreiros sem acesso ao casamento e à herança.
A esses jovens estão ligadas as grandes aventuras da cavalaria, relatadas far-
tamente pela literatura, onde cada um procura mostrar-se: sua virilidade, sua
capacidade pessoal com as armas e, sobretudo, sua capacidade no trato com
as mulheres. Isso tudo implicava um distinguir-se socialmente, não em razão
da riqueza, que não tinham, mas por um certo número de regras de convi-
vência e de comportamento, a cortesia. Segundo a tese de Erich Koehler, a
baixa nobreza teve na cortesania a possibilidade de “readquirir um quinhão
do prestígio perdido através do mito de uma aristocracia de alma em vez de
nascimento”48. Por seu turno, a alta nobreza, através da cortesania, pretendia
manter a lealdade de uma grande quantidade de cavaleiros sem posses. Estes
últimos poderiam até mesmo fantasiar e desejar amar damas da alta nobre-
za, sem, no entanto, chegar a consumar com elas uma relação amorosa. A
partir do exposto, podemos observar que alguns aspectos da erótica cortês
encontram explicação estrutural: a ausência da Dama e a sublimação do de-
sejo, na medida em que a Senhora é inatingível; a tríade amorosa, que inclui
o grande Senhor, o jovem cavaleiro despossuído e a esposa, Dama de alta
linhagem, cria uma tensão entre o jovem cavaleiro, que canta o seu amor à
Dama, e o Senhor, que permite a corte e utiliza isso como estratégia para
manter a lealdade do jovem cavaleiro.
48
Ibid., p. 209.
97
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
49
DUBY, 2001, p. 63.
50
Ibid., p. 65.
98
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
51
ROUGEMOND, 2003, p. 114.
52
Ver FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
99
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
53
ROUGEMOND, 2003, p. 114.
54
MACEDO, José Rivair. Heresia, cruzada e inquisição na França Medieval. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000. p. 80.
100
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
55
FERNANDES, Rui César Gouveia. Amor e cortesia na literatura medieval. Notandum, Editora
Mandruvá, n. 7. Disponível em: <http://www.hottopos.com/notand7/raul.htm>. Acesso em:
27 jul. 2006.
56
RIQUER, Martin de. Los trovadores: historia literária y textos. Barcelona: Ariel, 2001. p. 85.
“Nos versos trovadorescos, a cortesia é uma noção muito concreta, todavia muito ampla, pois
supõe a perfeição moral e social do homem do feudalismo: lealdade, generosidade, valentia,
boa educação, trato elegante, afeição a jogos e prazeres refinados, etc...” (tradução minha).
101
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval
A literatura revela a vida interior; talvez ela seja uma prova da exis-
tência de uma vida interior, no sentido de que mostra o modo como os
homens viam e experienciavam sua época. Nesse sentido, através da litera-
tura eles produziam representações sobre seu lugar naquela história e, de
algum modo, influenciavam nela do mesmo modo que dela tiravam os sím-
bolos em que se baseava sua criatividade. Ora, criar poemas e ritos de acom-
panhamento parece ter sido, além das atividades guerreiras e de caça, a
ocupação favorita da nobreza59.
É bem possível pensar a poesia lírica dos trovadores como sinal de
uma interioridade, não como o atestado do nascimento do indivíduo, mas
como parte do nascimento de uma intimidade que é típica e inimitável,
evento singular do mundo medieval e não estado infantil do que os moder-
nos chamarão de indivíduo.
57
LE GOFF, 2005, p. 96.
58
FLORI, 2005, p. 152.
59
Cf. ROUILLAN-CASTEX, 1984.
102
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
1
Professor Adjunto de História Medieval da Universidade Federal de Minas Gerais.
2
BONVESIN DE LA RIVA. De magnalibus Mediolani – Le meraviglie di Milano. Testo a fronte.
Traduzione di Giuseppe Pontiggia. Introduzione e note di Maria Corti. Milano: Bompiani,
1974. p. 106. As palavras entre colchetes foram inseridas por mim para facilitar a compreensão
do leitor.
103
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
3
Remeto o leitor interessado nos assuntos técnicos da pregação medieval para o livro de
Giuseppina MUZZARELLI, Pescatori di uomini: predicatori e piazze alla fine del Medioevo.
Bologna: Il Mulino, 2005.
4
Se levarmos em conta o cânon 10 do Concílio Lateranense IV, de 1215, vemos que se tornara
norma canônica, válida para toda a Igreja Romana, que os arcebispos e bispos suprissem a demanda
por pregadores escolhendo homens idôneos e “poderosos na palavra” [potentes in sermone], o que
certamente supõe que estavam entre os mais instruídos dentre os membros do clero.
5
BERTHIER, Joachim Joseph (ed.). B. Humberti de Romanis Opera de vita regulari. Torino: Marietti,
1956. v. 1, p. 41-42: “Notandum est autem quod studium non est finis ordinis, sed summe
necessarium est ad fines praedictos, scilicet ad praedicationes et animarum salutem operandam,
quia sine studio neutrum possemus […]. Modica scientia sufficit cuilibet ad salutem propriam;
sed non sufficit modica ad alios docendum.”
104
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
6
VICAIRE, Marie-Humbert. Charisme et hiérarchie dans la fondation de l’Ordre des Prêcheurs.
In: Dominique et ses Prêcheurs. Paris: Éditions du Cerf, 1977. p. 198-221.
7
BÉRIOU, Nicole. Un mode singulier d’1éducation: la prédication aux derniers siècles du Moyen
Âge. Communications, v. 72, p. 113-127, 2002.
8
CHAMPETIER, Marie-Paule. Faits et gestes du prédicateur dans l’iconographie du XIIIe siècle
au début du XVe siècle. Médiévales, v. 16-17, p. 197-208, 1989.
105
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
9
Cf. MURPHY, James J. La retorica nel Medioevo: una storia delle teorie retoriche da s. Agostino
al Rinascimento. Barra: Liguori, 1983.
10
Cf. ALANI DE INSULIS. Summa magistri Alani de arte praedicatoria. In: Patrologia Latina,
210. p. 111-198.
11
Cf. VV.AA. Etica e política: le teorie dei frati mendicanti nel Due e Trecento. Atti del XXVI
Convegno internazionale. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1999.
12
Cf. FOUCART, Serge Lusignan. Vincent de Beauvais et l’histoire du Speculum Maius. Journal
des Savants, n. 1-2, p. 97-124, 1990; SCHNEIDER, Jean. Vincent de Beauvais à l’épreuve des
siècles. In: LUSIGNAN, Serge; PAULMIER-FOUCART, Monique (org.). Lector et compilator
Vincent de Beauvais, frère prêcheur: un intellectuel et son milieu au XIIIe siècle. Grâne: Créaphis,
1997. p. 21-46.
106
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
13
Cf. BOUREAU, Alain. La Légende Dorée: le système narratif de Jacques de Voragine (1298).
Paris: Éditions du Cerf, 1984.
14
VICENTE DE BEAUVAIS. De la formación moral del príncipe. Edición bilingüe preparada por
Carmen Teresa Pabón de Acuña. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2007. v. 680. Esta
edição espanhola foi cotejada com a belga: SCHNEIDER, R. J. (ed.). Vincentii Belvacensis “De
morali principis institutione”. Turnhout: Brepols, 1995. (Corpus Christianorum, continuatio
Mediaevalis, 137).
15
IACOPO DA VARAGINE. Cronica della città di Genova dalle origini al 1297. Testo latino in
appendice a cura di Stefania Bertini Guidetti. Genova: ECIG, 1995.
16
VERGARA, Javier. La educación política en la Edad Media: el Tractatus de Morali Principis
Institutione de Vicente de Beauvais (1262/63): una apuesta prehumanista de la política.
107
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
de são Domingos, no séc. XIII, pelo menos, esteve bastante envolvida com
o âmbito do poder público, do governo e da administração; os frades assu-
miram cargos e funções que estavam associados ao campo da política, seja
nas cortes principescas ou nas cúrias citadinas: muitos deles foram inclusi-
ve autores de obras com declarada finalidade política, como as duas obras
escolhidas para esse estudo.
Os frades pregadores, como eram chamados os dominicanos, puse-
ram-se a trabalhar nos palácios de reis, duques, condes, foram embaixado-
res de príncipes e papas, pregaram cruzadas, governaram cidades, lidera-
ram assembleias cívicas, redigiram estatutos e regimentos urbanos, presidi-
ram tribunais inquisitoriais e campanhas de pacificação; assumiram cargos
episcopais, legações apostólicas e régias, foram professores universitários e
preceptores de nobres. Tomadas em conjunto, a produção teórica e o traba-
lho prático dos dominicanos nos mais diversos setores sociais fizeram com
que os frades não fossem apenas úteis a este ou aquele poder, mas, sobretu-
do, que definissem um vocabulário político e ajudassem a construir a pró-
pria consciência política no séc. XIII, colaborando de forma explícita para
o incremento da linguagem política e, por conseguinte, da comunicação e
da educação política no final da Idade Média17.
108
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
pois se casou com Teobaldo II, rei de Navarra (1258), e Filipe (1245-1285),
que, por morte do primogênito, Luís, acabou sucedendo ao pai no trono,
em 1274. Desde a época em que redigia o Speculum maius, Vicente já vinha
refletindo sobre assuntos relativos ao poder público e ao ministério régio.
Como podemos ler no prólogo do livro Sobre a educação moral do príncipe,
Vicente pretendia fazer desta obra, de 1263, uma espécie de síntese de uma
imensa gama de tratados que ele havia lido e que tinham por finalidade
discorrer sobre aquilo que condiz aos costumes dos monarcas e dos ho-
mens de corte18. Concluímos, então, que o De morali principis institutione é o
resultado de, pelo menos, 17 anos de pesquisa.
É preciso fazer notar ainda que Vicente não esperava escrever apenas
mais um espelho de príncipe, como tantos clérigos, antes dele, já haviam
feito19. Sua obra, que é propriamente um espelho de príncipe20, é também,
segundo suas próprias palavras, um compêndio de referências morais à dis-
posição dos frades pregadores que porventura, como ele, houvessem de ocu-
par a responsabilidade de aconselhar, em privado ou em público, os reis,
cavaleiros, conselheiros, ministros, bailios, prepósitos e demais homens que
trabalhavam na administração da república, conforme a sua posição21. Te-
18
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 2-3: “Outrora, quando morava no mosteiro de Royaumont,
onde exercia o ofício de professor [lector], segundo a vontade de vossa alteza, senhor meu, rei
dos francos, percebi que vós e a vossa família muitas vezes punham vossos ouvidos e também
vossas mentes atentos às palavras divinas, assim me pareceu útil resumir em um só volume o
que li em muitos livros sobre os costumes dos príncipes e homens de corte, dividindo o assunto
em vários capítulos [...].”
19
BORN, Lester Kruger. The Perfect Prince: A Study in Thirteenth and Fourteenth-Century
Ideals. Speculum, v. 3, n. 4, p. 470-504, 1928; ID. The specula principis of the Carolingian
Renaissance. Révue Belge de Philologie et d’Histoire, tomo 12, fasc. 3, p. 583-612, 1933; BUESCU,
Ana Isabel. Um discurso sobre o príncipe: a “pedagogia especular” em Portugal no século
XVI. Penélope, v. 17, p. 33-50, 1997; GÓMEZ REDONDO, Fernando. Modelos políticos y
conducta del rey en la literatura del siglo XIII”. Cahiers de Linguistique Hispanique Médiévale, v.
23, p. 285-304, 2000.
20
SCHNEIDER, Robert J. Vincent of Beauvais’ Opus universale de statu principis: A Reconstruc-
tion of its History and Contents. In: PAULMIER-FOUCART, Monique; LUSIGNAN, Serge;
NADEAU, Alain (org.). Vincent de Beauvais: intentions et réceptions d’une oeuvre encyclopé-
dique au Moyen Âge. Montréal: Bellarmin/Vrin, 1990. p. 285-300.
21
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 2-3: “[...] a fim de que eu e os demais irmãos tenhamos
facilmente acesso a essa matéria [isto é, os livros sobre os costumes dos príncipes e homens de
corte], sobre a qual muito pouca coisa se encontra escrita, e possamos recorrer a ela
oportunamente, caso alguma sejamos incumbidos de persuadir, em público ou em privado,
sobre o que toca à honestidade da vida e à salvação da alma de homens tais como príncipes,
cavaleiros [milites], conselheiros, ministros, bailios, prepósitos e outros que, morando nas cortes
ou fora delas, administram a república [respublica] segundo lhe compete pelo seu estado.”
109
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
mos, pois, um segundo objetivo para a obra, este sim, pouco frequente na
literatura política: ser um manual para consulta dos frades envolvidos nas
lidas do governo e da administração pública. A julgar pela própria função
exercida por Vicente, podemos perceber que os dominicanos constituíam
uma elite intelectual à disposição do reino francês22, como também o foram
no reino catalão-aragonês durante os séculos XIII e XIV23.
Ora, se levarmos em conta que, desde pelo menos o período carolín-
gio, as ordens religiosas estiveram sempre à disposição dos governantes,
diremos que não há nada de especial no fato de os dominicanos passarem a
servir à corte capetíngia. Portanto, não está aqui a especificidade que quero
fazer notar. Os frades de São Domingos não eram monges e, como tal, não
possuíam mosteiros, que, como sabemos, constituíam patrimônios fundiá-
rios tornados domínios territoriais e, por extensão de sentido, parcelas polí-
ticas do reino24. Nesse caso, a associação das ordens monásticas aos meca-
nismos de governação e dominação de um dado território é consequência
lógica de seu envolvimento nas redes de poder, seja porque os abades eram
membros da alta aristocracia ou porque os mosteiros foram construídos às
expensas de uma casa nobiliárquica ou porque eram necrópoles de impor-
tantes linhagens, etc.
O diferencial dos dominicanos, como também o será dos frades de
São Francisco, é a desapropriação e, acima de tudo, a pregação. No meu
entender, esta segunda característica é a mais importante. De um ponto de
vista ideal, os dominicanos se aproximaram do poder e se colocaram a ser-
viço das cortes como extensão de seu ministério predicativo. A pregação,
que justamente no século XIII havia voltado a ser discutida como parte
fundamental da pastoral eclesiástica, passou a ter também uma função po-
lítica imprescindível25.
E, com isso, estamos diante de um problema: como a pregação ou,
mais propriamente, o pregador, isto é, um homem de letras e de reza, pode
22
GENET, Jean-Philippe. Saint Louis: le roi politique. Médiévales, v. 34, p. 25-34, p. 29, 1998; LE
GOFF, Jacques. Portrait du roi idéal. L’Histoire, v. 81, p. 71-76, 1985.
23
EVANGELISTI, Paolo. I francescani e la costruzione di uno stato: linguaggi politici, valori identitari,
progetti di governo in area catalano-aragonese. Padova: EFR – Editrici Francescane, 2005.
24
ROSENWEIN, Barbara; HEAD, Thomas; FARMER, Sharon. Monks and Their Enemies: A
Comparative Approach. Speculum, v. 66, n. 4, p. 764-796, 1991.
25
D’AVRAY, D. L. The Preaching of the Friars: Sermons Diffused from Paris before 1300. Oxford:
Clarendon Press, 1985. p. 1-11. MUESSIG, Carolyn. Sermon, Preacher and Society in the
Middle Ages. Journal of Medieval History, v. 28, p. 73-91, 2002.
110
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
querer ensinar a arte de governar para reis e príncipes? Essa pergunta, feita
pelo próprio Vicente de Beauvais, foi respondida a partir dos argumentos
do orador romano Fábio, citado por são Jerônimo: “As artes seriam felizes
se apenas os artistas fossem seus juízes.”26 Portanto, o frade pregador, ape-
sar de não ser versado na arte do governo, podia, com justa razão, avaliar a
atividade governativa e, com mais propriedade, julgar a arte política por-
que desprovido de paixão e capacitado para ver as suas imperfeições.
Além disso, a arte de governar supõe aprendizado: Vicente confere à
pedagogia, ou melhor, ao processo educativo, uma importância considerá-
vel, o que pode ser visto desde o título de sua obra, De morali principis insti-
tutione, que preferi traduzir por Sobre a educação moral do príncipe. O vocábu-
lo institutio indica disposição, instrução, possuindo sentido de formação,
amestramento, doutrina e educação; nesse sentido, não é nada diferente do
vocábulo latino instructio [instrução], adotado por Alain de Lille, em seu De
arte praedicatoria. O termo remete aos procedimentos de aprendizado que,
seguindo um método e amparando-se em autoridades, tinham por pressu-
posto a transmissão de conhecimentos considerados socialmente necessári-
os tanto para a vida pública quando para a edificação moral27.
No caso apresentado por Vicente, o processo educativo diferencia-se
de acordo com o estatuto social a que se destina ou ao mister que se execu-
ta: a educação que um rei precisa receber deve ser diferente da educação de
um pregador; no entanto, o rei governa homens, não seres irracionais. Por
isso, a educação que ele necessita adquirir deve ser relativa ao aspecto supe-
rior do homem, sua racionalidade e espiritualidade, e, em assim falando,
Vicente propõe o modelo de educação do orador greco-romano: aprende-
se na escola a ser homem de caráter; aprende-se na escola a ser homem de
virtude; a ser um bom cidadão. O aprendizado é atividade moral; aprender
para conseguir coisas não faria o menor sentido. Aqui reside outro argu-
mento para atestar que o pregador tem muito a ensinar sobre a arte do
governo: o pregador também lida com o que há de mais elevado no ho-
mem; também se envolve num processo de transmissão de valores morais e,
no limite, também persegue um objetivo educativo relacionado com o go-
26
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 108: “Ut enim ait Fabius orator: ‘Felices essent artes si
de illis artifices iudicarent’.”
27
MICHEL, Alain. Culture et sagesse: aspects de la tradition classique de Cicéron à Hugues de
Saint Victor. In: Mélanges de philosophie, de littérature et d’histoire ancienne offerts à Pierre Boyancé.
Rome: École Française de Rome 1974. p. 513-528.
111
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
verno, porém das almas. Mas, nesse discurso, o governo dos homens coin-
cide, de alguma maneira, com o governo das almas.
Desse ponto de vista, o bom governo depende da educação moral, re-
ligiosa e intelectual do governante, o que não deixa de ser um preceito bas-
tante antigo, visto que já o encontramos em Platão e em toda a filosofia so-
crática. O próprio Vicente recorre às obras de Platão para referendar seu raci-
ocínio: “[...] as repúblicas serão felizes se forem governadas por sábios ou se
seus governantes se esforçarem por alcançar a sabedoria.”28 A aquisição de
sabedoria é aqui fundamental, e já o livro do Eclesiástico o afirmava: “Um
rei ignorante perderá seu povo” (Eclo 10,3). Se o rei ignorante perde, o rei
sábio ganha. Assim, Vicente eleva a educação régia ao grau de condição im-
prescindível para que se verifique a legitimidade do próprio governo. O frade,
mais uma vez, recorre a um autor antigo, Valério Máximo, para afirmar que
é uma deformidade que o rei seja superado na virtude por aqueles que supera
em dignidade29. O termo latino virtus, nesse contexto, parece apontar para
todo o arcabouço de educação que torna o homem apto a governar.
O interessante é que não é apenas o rei ou o príncipe que precisam
educar-se para tornar a república boa, mas também os seus cidadãos. Ora,
admitia-se como verdade que o bom estado da república e o bom governo
dependiam simultaneamente de bons cidadãos e bons governantes, e os
cidadãos e governantes, para serem bons, precisavam ser homens transfor-
mados pelos valores da religião30, pelos quais os pregadores se sentiam os
mais abalizados responsáveis.
Não nego que este pressuposto era já evidente desde os tempos da
Alta Idade Média; acontece que no século XIII isso se tornou uma obses-
são coletiva: manuais de pregadores começaram a ser escritos e, mais do
28
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 96. A citação de Platão, na verdade, foi tomada do livro
Sobre a consolação da filosofia, de Boécio, como o próprio Vicente afirma: “Plato etiam, ut Boetius
testis est, res publicas fore beatas dixit si eas aut sapientes regerent au earum rectores sapientiae
studerent.”
29
Ibid., p. 90: “Ut enim ait Valerius Maximus, libro III: ‘Deforme est quos prestes dignitate ab
hiis superari virtute’.”
30
Uma maneira bastante ilustrativa desse modo de pensar pode ser encontrada em Boaventura
de Bagnorégio, na V conferência Sobre os seis dias da criação (Collationes in Hexaemeron), quando
resume as virtudes em três grupos: as virtudes morais, as virtudes intelectuais e as virtudes de
justiça, sendo que este último grupo reúne o necessário para a regulação da vida dos homens
em sociedade e em sua relação com Deus: o dever de se prestar culto a Deus, a forma de
convivência, a norma de presidir uma comunidade e a censura no julgar. SAN
BUENAVENTURA. Obras de San Buenaventura. Edición Bilingüe. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1947. Tomo III, p. 273-298.
112
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
31
D’Avray menciona o Repertorium de sermões latinos compostos entre 1150-1350 que J. B.
Schneyer e Hödl começaram a publicar na década de 1970 (Repertorium des lateinischen Sermones
des Mittelalters für die Zeit von 1150-1350) e que somam nove volumes, em 7.300 páginas. Como
apontado, a obra só se refere aos sermões escritos em latim, o que nos faz aumentar o prognóstico
se levarmos em conta os sermões escritos em línguas vernáculas. Cf. D’AVRAY, 1985, p. 1.
32
BOUGEROL, J. G. Les sermons dans les studia des mendiants. In: Le scuole degli Ordini
Mendicanti (secoli XIII-XIV). Convegno del Centro di Studi sulla Spiritualità Medievale, XVII,
11-14 ottobre 1976. Todi, 1978. p. 249-280.
33
Cf. BÉRIOU, 2002, p. 114.
34
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 6: “Sobre o poder secular, pois, desejo escrever umas
poucas coisas que se referem aos costumes dos que governam a república.”
35
Autor do Liber Consolationis et Consilii, de 1246.
36
Penso sobretudo nos Livres dou Trésor, escritos em 1260.
37
Sobre o paradigma político italiano do século XIII e seus empréstimos da ética romana
(ciceroniana e senequiana, sobretudo) e da moral cristã, remeto o leitor para a importante
obra de VIROLI, Maurizio. Dalla politica alla ragion di Stato: la scienza del governo tra XIII e
XVII secolo. Roma: Donzelli Editore, 1994. p. 3-47.
113
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
38
Para uma fecunda discussão sobre os fundamentos políticos agostinianos, sobretudo em seu
diálogo com o pensamento político de Marco Túlio Cícero, remeto o leitor à obra de SILVA
FILHO, Luiz Marcos. A definição de populus n’A cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia
com Da republica de Cícero. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008. 205 p.
114
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
consciência que está escrita a lei natural [lex naturalis], isto é, aquela norma
de conduta que não depende de nenhum legislador humano, que não foi
escrita em qualquer código legal e nem definida por assembleias deliberati-
vas39. É uma lei inscrita na própria natureza racional do homem que lhe dá
[ou deveria dar] uma ideia imediata do bem e do mal; em outras palavras,
todo homem, pelo fato de ser uma alma racional [anima rationalis], é capaz
de distinguir o bem do mal ainda que ninguém venha a lhe dizer o que é
certo ou errado, ainda que viva isolado ou não tenha nenhuma instrução.
Vicente evoca o ponto de vista agostiniano sobre a lei natural, e, por isso,
convém entender os termos segundo o exposto por Agostinho; um bom
lugar para encontrarmos a exposição agostiniana sobre a lei natural é no
Comentário ao salmo 57; muito embora Vicente não o cite, é preciso citá-lo: a
lei natural refere-se àquele preceito de não fazer aos outros o que não se
quer que se lhe faça, algo que já era uma verdade moral muito antes de a
Bíblia ser escrita e, portanto, já conhecida pelos pensadores antigos. O mo-
tivo para que esse preceito tivesse de ser posto por escrito na Bíblia surgiu
exatamente por conta da incapacidade que o homem exterior [isto é, o ho-
mem após a Queda] tem de voltar para si mesmo. Isso porque, nas palavras
de Agostinho, o homem é um fugitivo do próprio coração40.
O exposto por Agostinho no comentário ao salmo vai ao encontro da
apresentação de Vicente, segundo a qual a necessidade de haver um gover-
nante decorre da necessidade de haver alguém que force os homens a entra-
rem nas próprias consciências: essa é, aliás, a marca do bom governante,
aquele que faculta ao governado ouvir a voz da consciência [respeitar a lei
natural] para agir corretamente. E ao agir assim, isto é, ao levar para o
âmbito político uma dimensão da vida espiritual, o governante se aproxi-
ma da função do pregador ou, nas palavras de Michel Foucault, da figura
emblemática do rei-pastor41.
39
Podemos acompanhar a discussão de Vicente em torno do problema da lei natural lendo o
capítulo V do De morali principis institutione, na edição citada, p. 46s.
40
S. AURELIUS AUGUSTINUS. Enarrationes in psalmos, In psalmum LVII enarratione. In:
MIGNE, J.-P. Patrologia latina. 1845. v. 36, tomo IV, p. 673: “Mas porque os homens quiseram
aquilo que está fora, eles se tornaram exilados de si mesmos e assim foi-lhes dada a lei escrita:
não que ela não estivesse escrita nos corações, mas porque tu eras um fugitivo de teu coração
[…]” [“Sed quia homines appetentes ea quae foris sunt, etiam a seipsis exsules facti sunt, data
est etiam conscripta lex: non quia in cordibus scripta non erat; sed quia tu fugitivus eras cordis
tui (…).”].
41
FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”: uma crítica da razão política”. In: DA MOTTA,
Manoel Barros (org.). Michel Foucault: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003. p. 355-385. (Coleção Ditos e Escritos, IV). A evocação do texto de Foucault
115
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
não é simples relação temática, pois Vicente de Beauvais, para construir seus argumentos em
torno do ofício régio, opõe, de maneira consistente, regnum e ecclesia, o primeiro governado por
poderosos soberanos que detinham a força pela força, a segunda governada por pastores, isto
é, por homens que usavam o critério do afeto e da mansidão. Em minha opinião, o governo
idealizado por Vicente depende do equilíbrio desses dois governos: o monárquico e o pastoral
e, como mostrarei a seguir, de uma ação bastante ambígua entre ambos os ofícios.
42
Os exemplos da presença de grande número de confessores a acompanhar pregadores, sobretudo
quando muito famosos, são bastante variados. Aqui quero apenas apontar para um deles, mais
ou menos contemporâneo a Vicente de Beauvais, relativo a santo Antônio, em sua pregação
quaresmal, em Pádua, no ano de 1231: “Não posso calar-me sobre como ele [Antônio] induzia
à confissão [dos pecados] a multidão de homens e mulheres a ponto de nem os frades e nem os
demais sacerdotes que o seguiam, em não pequeno número [non parva frequentia], serem
suficientes para ouvir as confissões”. In: GAMBOSO, Vergilio (ed.). Fonti agiografiche antoniane:
Vita Prima o “Assidua”. Padova: Edizioni Messaggero, 1995. v. 1, p. 344-346.
43
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
44
Refiro-me ao cânon 21 do Concílio Lateranense IV celebrado em Roma, em 1215, que tem
por título De confessione facienda et non revelanda a sacerdote et saltem in pascha communicando.
116
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
45
Vicente de Beauvais explora as várias dimensões envolvidas em sua conceitualização de ambitio/
cupiditas e charitas/amor entre os capítulos II e III de seu De morali principis institutione.
117
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
46
Podem-se encontrar boas referências da história dos frades pregadores na Itália do século XIII
na obra de THOMPSON, Augustine. Revival Preachers and Politics in Thirteenth-Century Italy:
The Great Devotion of 1233. Oxford: Clarendon, 1992. Quanto à biografia de Iacopo, sugiro
o texto “Iacopo da Varazze”, escrito por Carla Casagrande para o Dizionario biografico degli
italiani, v. 62, 2004, publicado na versão digital da Enciclopedia Treccani: <http://www.treccani.it/
enciclopedia/iacopo-da-varazze_(Dizionario_Biografico)/>. Acesso em: 10 nov. 2012.
118
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
tempo, é também parte de outro gênero, o elogio das cidades (laus civita-
tum): é um panfleto de propaganda patriótica e, mais do que isso, um pan-
fleto de propaganda da moral e da política que os frades dominicanos espe-
ravam implantar nas cidades.
Isso fica visível, por exemplo, no fato de Iacopo ter reservado quatro
das doze partes para discorrer sobre a educação política do governante da
cidade e do cidadão47. A maneira com que o cronista apresenta seus argu-
mentos indica um encadeamento argumentativo muito próximo aos temas
da pregação dominicana. A proximidade é grande, e Carla Casagrande e
Silvana Vecchio chegam a chamar a crônica de Iacopo de “história do púl-
pito”48, pois seu autor, ao redigir a obra, uniu num só discurso o campo da
historiografia e o campo da pregação, isto é, tornou a atividade historiográ-
fica ocasião de prédica.
Em se tratando de um dominicano, isso não é de se estranhar, mas o
assunto ainda se reforça se levarmos em conta que Iacopo é também arce-
bispo de Gênova. É enquanto pastor de uma cidade que Iacopo se põe a
resgatar a história da fundação, do desenvolvimento e da grandeza de Gê-
nova. Curiosamente, ele concedeu pouco espaço ao papel dos dominicanos
na história da cidade, mas reservou as últimas duas partes da crônica para
narrar a importância histórica da sucessão episcopal, da qual fez parte. Para
mim, o nenhum destaque dado aos frades em nada diminui a perspectiva
que viemos apresentando, só aumenta o alcance político citadino do cargo
que o frade veio a ocupar.
Ora, o encontro de Gênova, uma rica cidade comercial, e de Iacopo,
um frade mendicante, é bastante curioso e, dada a especificidade do acon-
tecimento, merece a atenção do historiador. Em fins do século XIII, a cida-
de de Gênova estava marcada por um grande contraste social: ao mesmo
tempo em que era a cabeça de um império mercantil e naval que pratica-
mente atravessava o Mediterrâneo de ponta a ponta, possuindo uma eco-
nomia dinâmica, mostrava, no entanto, uma estrutura política muito débil,
oscilando entre a busca por independência e o recurso ao apoio militar
estrangeiro; as contradições políticas genovesas podem ser observadas nas
improvisações dos sistemas de governo que se sucedem: comuna de cônsu-
47
MONLEONE, G. (ed.). Iacopo da Varagine e la sua Cronaca di Genova dalle origini al MCCXCVII.
Roma, 1941. 3 v.
48
CASAGRANDE, C.; VECCHIO, S. Cronache, morale, predicazione: Salimbene da Parma e
Jacopo da Varagine. Studi Medievali, v. 30, n. 2, p. 749-788, p. 749, 1989.
119
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
49
BALBI, Giovanna Petti. Governare la città: pratiche sociali e linguaggi politici a Genova in età
medievale. Florença: Firenze University Press, 2007. p. 129.
50
BOUREAU, Alain. Le Prêcheur et les marchands: ordre divin et désordres du siècle dans la
Chronique de Gênes de Jacque de Voragine (1297). Médiévales, v. 4, p. 102-122, p. 104, 1983.
51
JOSEPH DA NATIVIDADE. Agiologio Dominico, que consta das vidas dos santos, beatos, martyres,
e outras pessoas veneraveis da Ordem dos Pregadores, por todos os dias do anno. Lisboa: Officina
Alvarense, 1748. tomo V, p. 369.
120
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
52
Iacopo de Varazze organiza sua narrativa em partes organicamente dispostas: a história de
Gênova é descrita segundo o processo de desenvolvimento biológico: nascimento, crescimento,
amadurecimento, etc. Porém, o autor considera que a cidade, mesmo em suas fases iniciais,
quando era ainda uma “parva terra”, possuía uma grandeza evidente, e isso no estado de sua
origem [in statu sue inchoationis], no estado de seu progresso [in statu sue progressionis] e, por fim,
no estado de sua perfeição [in statu sue perfectionis], isto é, o tempo em que vivia Iacopo. Cf.
IACOPO DA VARAGINE, 1995, p. 79 (da tradução italiana) ou p. 339 (do texto latino).
53
Como procurarei mostrar a seguir, Iacopo de Varazze inicia o quarto capítulo da sétima parte,
exatamente aquela em que discorre sobre a educação política dos governantes.
54
Cf. IACOPO DA VARAGINE, 1995, p. 81-82 (da tradução italiana) e p. 340-341 (do texto
latino).
121
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
55
Ibid., p. 170 (da tradução italiana) e p. 400 (do texto latino) – grifo meu.
56
Ibid., p. 170.
122
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
governa na medida em que reverte, dentro de si, aquele ímpeto que levou
Caim a matar seu irmão para roubar-lhe o reconhecimento divino; no fun-
do, a questão continua a mesma que Vicente de Beauvais tentou resolver:
Caim deixou de querer o bem de todos e passou a querer o próprio bem,
tomando para si o que pertencia ao seu irmão.
E se o problema de Gênova, no fim do século XIII, era mesmo o
descompasso entre uma administração voltada para o interesse público e a
ambição particularista de enriquecimento privado, Iacopo, como arcebis-
po, tratou de dar sua colaboração para trazer (ou instaurar) o sentido do
público na cidade: como ele mesmo narrou no último capítulo da Crônica,
tomou uma série de medidas para consolidar seu episcopado, como o con-
cílio provincial convocado em 1293 e, mais particularmente, a cerimônia
para o reconhecimento das relíquias de São Siro, enterradas na igreja de
São Lourenço, em Gênova. Ora, esse episódio não é apenas um ato eclesi-
ástico qualquer. Segundo a dinâmica própria a muitas cidades do período
dito medieval, os corpos dos santos exerciam uma função política de pri-
meira importância, como vimos no início do texto, em Bonvesin de la Riva;
o reconhecimento das relíquias deu ao arcebispo a oportunidade de reunir,
além dos bispos sufragâneos da província, todas as autoridades políticas de
Gênova [“o podestà, o capitão, o abade do povo e muitos outros nobres da
cidade de Gênova”57], mostrando assim o papel cívico que o arcebispo pode
vir a exercer. Como se não bastasse a oportunidade do reconhecimento,
Iacopo, dias depois, apresentou essas relíquias a toda a população genove-
sa, que, desde então, contou com mais um veículo de culto. Se esta minha
leitura fizer algum sentido, talvez possamos ver nesse episódio a busca (ou
ao menos o indício de uma busca) de um ponto suficientemente forte, in-
questionável e acima de qualquer partidarismo que pudesse chamar a aten-
ção dos governantes e dos citadinos para aquilo que Iacopo, como arcebis-
po, considerava oportuno numa cidade verdadeiramente cristã: as relíquias
de São Siro poderiam representar um ponto de convergência necessária
para uma cidade orgulhosa de sua riqueza superar a vaidade e a soberba.
Este é apenas um simples exemplo de como os temas desenvolvidos
na Crônica de Gênova se relacionam com os temas próprios da pregação do-
minicana; quanto a isso, não devemos deixar de lado o cômputo que Alain
57
Ibid., p. 328-329 (da tradução italiana) e p. 500-501 (do texto latino).
123
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
Conclusão
Como fechamento das minhas considerações sobre a educação polí-
tica em Vicente de Beauvais e Iacopo de Varazze, gostaria, mais uma vez,
de chamar a atenção para o significado político da pregação: ora, muito
facilmente nos contentamos em pensar que a pregação é uma atividade
clerical, ligada a um espaço religioso, estritamente litúrgico, relativa a mo-
tivos de ordem bíblica, moral e espiritual. Se pensamos assim, talvez nos
surpreenda saber que, no séc. XIII, vários governadores citadinos, notários
públicos e juízes foram também pregadores, como é o caso do já citado
Albertano de Bréscia59. A meu ver, não podemos ver nisso só uma expres-
são daquele ímpeto de espiritualidade que, nos sécs. XII e XIII, provocou o
surgimento de muitas comunidades predicantes, como os valdenses e hu-
milhados, pois os governantes de cidades não pertenciam a esse tipo de
agremiação.
Quanto a isso, não podemos perder de vista que a experiência políti-
ca ocidental é devedora dos paradigmas greco-romanos, segundo os quais a
virtude e o discurso fazem o cidadão e constroem a cidade. É fato que a
historiografia tradicional acentuou o fracasso da oratória cívica no medie-
vo latino, mostrando que a oratória sacra roubou o espaço do discurso po-
lítico propriamente dito. Ora, essa é uma meia verdade: não nego que a
oratória sacra, a partir de Agostinho e Gregório Magno, tenha assumido
58
BOUREAU, 1983, p. 106.
59
ARTIFONI, Enrico. Gli uomini dell’assemblea: l’oratoria civile, i concionatori e i predicatori
nella società comunale. In: Etica e política: le teorie dei frati mendicanti nel Due e Trecento.
Atti del XXVI Convegno internazionale. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo,
1999. p. 141-188.
124
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
uma função social muito mais evidente; mas questiono a crença de que o
sermão não seja, concretamente falando, uma expressão da palavra públi-
ca, com valor e finalidade política.
Em primeiro lugar, porque, como acabo de citar, a oratória latina,
visível, por exemplo, em Cícero, supõe que o discurso não seja só atividade
técnica, verbal, mas, além disso, moral: o que está em jogo é, mediante a
palavra pública, a gestação do homem de bem que edifica a cidade por
meio da virtude. No séc. XIII, Brunetto Latini, que muitos historiadores
tomam como maior expoente de um pensamento cívico laico, foi elogiado
por Giovanni Villani (1280-1348) por ter sido um grande filósofo, professor
de oratória, tendo apresentado aos florentinos a Retórica de Túlio e escrito
muitos livros sobre os vícios e as virtudes; Villani também o louva por ter
sido “o iniciador e mestre no refinar os florentinos e fazê-los peritos no bem
falar e em saber guiar e reger nossa república segundo a Política”60. Perce-
bemos, então, que o sentido da oratória cívica é tão moralizador quanto o
sentido da pregação, e que faz parte da ação política o domínio das formas
de discurso.
Em segundo lugar, porque a pregação não é um mero instrumento de
divulgação dos ensinamentos doutrinários: ao contrário, durante o medie-
vo latino, a pregação era um importante canal de mediação entre aspectos
da vida social os mais diversos, dando coesão e sentido a experiências espi-
rituais e políticas que eram partilhadas comunitariamente. Tanto quanto a
retórica cívica de Brunetto, a pregação esperava edificar a comunidade, cujos
fundamentos não eram só religiosos, mas também políticos. Por isso, gosto
muito da expressão de Laura Gaffuri que chama a pregação medieval de
“espelho dos valores da sociedade”61; a partir da leitura de Vicente de Beau-
60
GIOVANNI VILLANI, Nuova Cronica, libro IX, cap. X, ap. BRUNETTO LATINI. Tresor. A
cura di Pietro Beltrami, Paolo Squillacioti, Plinio Torri e Sergio Vatteroni. Testo a fronte.
Torino: Giulio Einaudi, 2007. p. IX: “Nel detto anno 1294 morì in Firenze uno valente cittadino
il quale ebbe nome ser Brunetto Latini, il quale fu gran filosafo, e fue sommo maestro in
rettorica, tanto in bene sapere dire come in bene dittare. E fu quegli che spuose la Rettorica di
Tulio, e fece il buono e utile libro detto Tesoro, e il Tesoretto, e la Chiave del Tesoro, e più altri
libri in filosofia, e de vizi e di virtù, e fu dittatore del nostro Comune. Fu mondano uomo, ma
di lui avemo fatta menzione però ch’egli fue cominciatore e maestro in digrossare i Fiorentini,
e farli scorti in bene parlare, e in sapere guidare e reggere la nostra repubblica secondo la
Politica.” [Grifos nossos].
61
GAFFURI, Laura; QUINTO, Riccardo (org.). Presentazione. In: Predicazione e società nel
Medioevo: riflessione etica, valori e modelli di comportamento. Atti/Proceedings of the XII
Medieval Sermon Studies Symposium. Padova: Centro Studi Antoniani, 2002. p. I-XII. p. IX.
125
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
126
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
1
Universidade Gama Filho.
2
SCOTT, J. W. El género: una categoria util para el analisis histórico. In: AMELANG, James;
NASH, Mary (eds.). História y género: las mujeres en la Europa moderna y contemporanea.
Valencia: Alfons el Magnanim, 1990.
127
FORTES, Carolina Coelho • As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII
3
Cf. VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-
Scott. Cadernos Pagu, n. 3, 1994, p. 67, e SCOTT, 1990.
4
VARIKAS, 1994.
128
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
5
Ibid., p. 31.
6
Embora dê relativo relevo à figura de Domingos, o Libellus também se estende a respeito de
Diego de Osma, superior de Domingos naquela diocese ibérica, e motivador da missão de
pregação no Languedoc, onde chegou a fundar o que seria considerada a primeira casa da
Ordem, Santa Maria de Prouille.
7
Essa discussão é resumida em GELABERT, M.; MILAGRO, J.; GARGANTA, J. (eds.). Santo
Domingo de Guzmán visto por sus contemporâneos. Madri: BAC, 1947. p. 153, embora a ela tenham
adicionado argumentos, por exemplo, CANETTI, Luigi. L’Invenzione della memória: il culto e
l’imagine di Domenico nella storia dei primi frati Predicatori. Spoleto: Centro Italiano di Studi
Sull’Alto Medioevo, 1996. p. 215.
8
Ao todo, a obra é composta de 120 capítulos, mas não analisamos os relatos de milagres.
129
FORTES, Carolina Coelho • As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII
130
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
são tão poderosos aos olhos de Jordão que estes podem desempenhar não
só papéis masculinos, mas igualmente os femininos.
Uma parte considerável do Libellus é dedicada a Henrique de Colô-
nia, grande amigo de Jordão. Este não nos deixa dúvida alguma sobre a
profunda afeição e imensa admiração que tem pelo companheiro, a ponto
de dedicar-lhe 19 capítulos da obra. Podemos afirmar que Jordão vê em
Henrique o ideal de homem, pois o descreve com mais detalhes até do que
o próprio Domingos:
Ele era pronto à obediência, constante na paciência, sempre sereno na sua
doçura, amável na sua alegria, generoso na sua caridade. Não lhe faltava a
honestidade dos costumes, a sinceridade de coração e a integridade virginal
da carne, porque por toda a vida nunca olhou ou tocou mulher com inten-
ções impudicas. Era modesto no falar, tinha língua eloquente, mente pene-
trante, agradável continência, bela aparência; tinha habilidade com a escri-
ta, perícia na dicção e uma melodiosa voz de anjo. Nunca foi visto triste ou
perturbado, mas estava sempre calmo e alegre. A moderação o libertara dos
rigores da austeridade e a misericórdia o reivindicou para si. Ele era tão
amável com todos e conseguia tão facilmente conquistar os corações que se
conversasses com ele por um instante, crerias que não havia alguém que ele
gostasse mais do que de ti (Cap. LXXVIII)
131
FORTES, Carolina Coelho • As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII
132
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Igor S. Teixeira2
Introdução
Nosso objetivo neste texto é analisar processos de canonização nos
quais homens e mulheres foram chamados a falar sobre a vida e milagres de
santos de ordens mendicantes. Além disso, analisar possíveis diferenças nos
registros dos testemunhos de homens e mulheres. Especificamente, analisa-
mos os processos de Domingos de Gusmão3, Clara de Assis4 e Tomás de
Aquino.5 Estes processos são entendidos a partir do conceito de Tempo de
Santidade, o qual criamos em nossa tese de doutorado.
Tempo de Santidade significa o tempo entre morte, processo e cano-
nização dos santos. Nos casos analisados, temos dois, 13 e 49 anos, para
Clara de Assis, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino, respectivamen-
1
Este texto compõe a pesquisa: Os Tempos da Santidade: processos de canonização e relatos
hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV), financiado pela FAPERGS (ARD/
2012) e pela Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS (Edital PRO-PESQUISA/2012).
2
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
3
Proceso de Canonización de Santo Domingos. Ap. Santo Domingo de Guzmán visto por sus
contemporáneos. Esquema biográfico, introducciones, versión y notas de los Padres Fr. Miguel
Gelabert, O.P., Fr. José María Milagro, O.P.. Introducción General por el Padre Fr. José María
de Garganta, O.P. Madrid: BAC, MCMXLVII. p. 267-323. Próximas Citações: PC Domingos
de Gusmão e as páginas correspondentes.
4
Processo di canonizzazzione di S. Chiara d’Assisi: vita, conversione, miracoli (commento). Giovanni
Boccali. Assis: Porziuncola, 2003. Tradução utilizada: Processo de canonização de Clara de Assis.
Disponível online em edição bilíngue em: <http://www.procasp.org.br/
capitulo.php?cCapitulo=10>. Próximas citações: PC Clara de Assis e as páginas correspondentes.
5
Para 1319: LAURENT, M. H. (ed.). Fontes vitae S. Thomae Aquinatis notis historicis et criticis
illustrati, 4: Liber de inquisitione super vita et conversatione et miraculis fratris Thomae de
Aquino. Ap. Revue Thomiste, Saint Maximin [Var], 1931. E para 1321: Fontes vitae S. Thomae
Aquinatis notis historicis et criticis illustrati, 5: IIe procès de canonisation: Abbaye de Fossa-Nova,
10-20 Novembre 1321. Récits de la canonization de S. Thomas d’Aquin: Avignon, 14 (ou 16)-
21 Juillet 1323. Ap. Revue Thomiste, Saint Maximin [Var], 1931. pp. 409-532. Recentemente
disponibilizado na internet: <http://archive.org/stream/fontesvitaesthom00pr#page/424/
mode/2up>. Acesso em: 27 dez. 2012. Próximas citações: PC Tomás de Aquino e as páginas
correspondentes.
133
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes
6
Cf. TEIXEIRA, I. S. O Tempo da Santidade: reflexões sobre um conceito. Revista Brasileira de
História, v. 32, n. 63, p. 207-223. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v32n63/
10.pdf>. Acesso em: 26 dez. 2012.
7
Destacamos, neste caso, a obra: KLANICZAY, G. (dir.). Procès de canonization au moyen âge:
aspects juridiques et religieux. Rome: École Française de Rome, 2004.
134
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
sua forma foi mais elaborada.8 É provável que a sistematização dos proces-
sos tenha relação com o desenvolvimento geral das reflexões sobre o direito
– tanto nas universidades quanto no direito canônico – no Ocidente.9 Isso é
perceptível nas formas análogas de registro das atas, como analisamos an-
teriormente.10 Mas, também, pelo uso recorrente de elementos como a ques-
tão da fama publica relacionada aos fatos testemunhados e/ou conhecidos,
bem como a “conversação” – algo próximo da “reputação” – daqueles que
eram investigados.
A fama é relacionada ao conhecimento público dos fatos investiga-
dos. Citamos o final do depoimento de Martinho de Pastina, tomado no
dia 24 de julho de 1319: “Interrogatus si de premissis est publica vox et
fama in dicto monasterio et locis vicinis, dixit quod sic...”.11 Em outras pa-
lavras, o monge cisterciense de Fossanova (onde Tomás morreu e foi sepul-
tado em 1274) afirmou que tudo o que ele disse anteriormente era conheci-
do publicamente e tinha fama no mosteiro e na vizinhança. Esse é o um
procedimento padrão, digamos assim.
Questões jurídicas em torno da fama publica serviam, na Idade Mé-
dia, tanto para que uma pessoa fosse inserida no rol de testemunhas a inter-
rogar, quanto para atestar a veracidade de algo declarado. Servia, portanto,
para instaurar uma investigação ou para a sentença.12
Como estamos tratando de um tipo de processo que tem a decisão
final atribuída ao pontífice, a fama poderia não ser suficiente para uma
canonização, como defendeu Didier Lett em sua tese sobre a “não canoni-
8
Referência obrigatória: VAUCHEZ, A. La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age:
d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. 2. ed. Rome: École
Française de Rome, 1981.
9
Essas reflexões foram proficuamente discutidas em um Seminário Temático que ministramos
em 2012, a saber: Normas, Leis e Conflitos na Idade Média. Agradeço aos mestrandos Marcos
Schulz e Rafael José Bassi, que atuaram como estagiários na ocasião.
10
Cf. TEIXEIRA, I. S. A pesquisa em História Medieval: relatos hagiográficos e processos de
canonização. Aedos, v. 2, n. 2, p. 71-94, 2009. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/aedos/
article/view/9832/5648>. Acesso em: jun. 2011.
11
PC de Tomás de Aquino, p. 285.
12
THÉRY, J. Fama: la opinión pública como presunción legal: apreciaciones sobre la revolución
medieval de lo inquisitorio (siglos XII-XIV). In: DELL’ELICINE, E.; MICELI, P.; MORIN,
A. (orgs.). De jure: nuevas lecturas sobre derecho medieval. Buenos Aires: ADHOC, 2009. p.
201-243. No mesmo livro: VALLERANI, M. Modelos de verdad: las pruebas en los procesos
inquisitorios. p. 245-269. Sobre o uso “criminal” da fama: SOLÓRZANO TELECHEA, J. A.
Justicia y ejercicio del poder: la infamia y los “delitos de lujuria” en la cultura legal de la
Castilla medieval. Cuadernos de Historia del Derecho, n. 12, p. 313-353, 2005. Agradeço à Profa.
Andréia Frazão pela indicação deste último texto.
135
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes
13
LETT, D. Un procès de canonisation au Moyen Âge: Essai d’histoire sociale: Nicolas de Tolentino,
1325. Paris: PUF, 2008.
14
PC de Tomás de Aquino, p. 424.
136
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
15
PC Clara de Assis, p. 14 e 18. Grifos nossos.
137
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes
16
PC Domingos de Gusmão, p. 309. Tradução livre. Grifos nossos.
17
PC Tomás de Aquino, p. 461. Tradução livre. Grifos nossos.
18
PC Tomás de Aquino, p. 462-463.
138
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
19
PC Clara de Assis, p. 68-76.
20
Como afirmado anteriormente, este inquérito termina com a informação de que outras 300
pessoas assinaram e testemunharam como verdadeiros os testemunhos. PC Domingos de
Gusmão, p. 305-315.
139
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes
Considerações finais
Considerando uma perspectiva de história social, esses dados são
importantes, pois: a) os processos de canonização, quando entendidos em
perspectiva comparada, evidenciam tratamentos diferenciados, porém não
significativos a ponto de se estabelecer uma relação de dominação dos ho-
mens sobre as mulheres; b) caso o historiador analise apenas um processo,
a conclusão poderia ser diferente. Por exemplo: uma análise do processo de
Domingos chegaria à conclusão de que a homens e mulheres foram feitas
as mesmas perguntas; uma análise do processo de Tomás, não. Principal-
mente, neste caso, se for considerado que no primeiro inquérito (1319) não
houve participação de mulheres; c) mesmo não sendo possível afirmar
uma dominação do homem sobre a palavra da mulher a partir das formas
de tratamento, os processos são fontes importantes para o historiador en-
contrar, mesmo que “indiretamente”, o sujeito “mulher” na sociedade
medieval.
140
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Introducción
En 1955 una monja del antiguo Monasterio de Santa Clara de Toro,
Zamora, encontró protegidas en parte por la sillería del coro, varias pinturas
murales hechas con una técnica llamada fresco seco. Técnica en que se realiza
el dibujo sobre cal fresca pero los colores (escasos pues proceden de tierras)
son pintados encima, al temple. Se conocieron gracias a que se lavó esa
pared y luego fueron despegadas en 1962 por LLopart Castells y trasladadas
en el actual soporte a la iglesia museo de San Sebastián de los Caballeros,
en la misma ciudad en que conocemos la obra de esta mujer medieval.
En 1988 se realizó una exposición en Valladolid con dichos murales,
los cuales salieron a la luz, deslumbrando por su composición y sobre todo
cuando se descubre que su autora resultaría una mujer de la región, la cual
firma, en la escena de San Cristóbal en Santa Clara de Toro, con la frase
TERESA DIEÇ ME FECIT, en una banda entre la túnica del santo (se le
representa como un gigante, según la leyenda, ayudando a cruzar un río al
niño Jesús). Bajo la banda firmada hay un escudo [banda de sable -negro-
sobre campo de plata, orlada de gules -rojo-] que es desconocido por ahora
y que lleva a muchos investigadores a pensar que tal vez la pintora pertenecía
a una señoría.
Dice la investigadora Isabel del Río:
¿Quién era Teresa Dieç? Poco más sabemos, como tampoco sabemos mucho
de las particulares biografías de otros artistas masculinos medievales […],
aunque algo más hemos avanzado en la comprensión de su sociedad estamental
y gremial. Lo lógico sería pensar que fue un encargo del convento a un artista
externo, que pudo pertenecer a algún gremio y tal vez ser maestra, pues los
murales son de gran calidad, fruto de la mano de alguien que ya ha pintado
otros y que sabe guardar las proporciones del gusto gótico sin titubeos. Más
improbable sería pensar que fue una monja del monasterio quien los hizo: las
legas no solían saber escribir y las madres (como nobles que eran de
procedencia) preferían encargar a otros este tipo de trabajos “sucios”. Pero
debajo de la firma hay un escudo (todavía se desconoce a qué casa u orden
141
PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...
Historia
Teresa Dieç pintó las escenas de la historia sagrada en el año 1316
siempre rodeadas (al estilo del gótico internacional) de marcos, de modo que
formasen viñetas como en un libro didáctico. En la parte superior coloca las
frases en castellano antiguo que explican la pintura. Se puede leer: “COMO
VAN OFERECER LOS TRES MAGOS A SANTA MARIA A
IESUXPTO”, y se ve cómo aún no aparecía el rey negro en el siglo XIV.
Sigue “COMO BAUTIÇA SAN IHOAN A IESUXPO” y “COMO
APARECE IESUXPO A LA MADALENA”; podemos apreciar qué antigua
es la costumbre castellana de llamarla Madalena. Falta comentar que al lado
se ve a Santa Marta combatiendo con el Dragón. Salvo el bautismo de Cristo,
las otras escenas se hallan relatadas en la Leyenda Dorada de fray Vorágine
Hay quien dice que hubo una comitente, pero no hay ningún libro
que complete la biografía de esta pintora 48 años después de ser colocadas
sus obras en un lugar a modo de museo. En la actualidad han aparecido
algunas pequeñas investigaciones sobre la misma. En realidad tampoco hay
muchos estudios sobre la reina María de Molina, que pudo ser su comitente.
142
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
La Leyenda Dorada
En el Monasterio de santa Clara de Toro, como anteriormente dijimos,
usó para sus pinturas La Leyenda Dorada.
143
PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...
144
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
mundo. Yo soy Cristo, tu rey. Con este trabajo que desempeñas me estás
prestando un extraordinario servicio. Voy a darte una prueba de lo que te
estoy diciendo es verdad. Cuando cruces el río y llegues a la puerta de tu
cabaña, hinca junto a ella en el suelo el varal que utilizas para atravesar el río;
mañana cuando te levantes el varal estará verde y lleno de frutos. […] a la
mañana siguiente, al salir de su cabaña comprobó que el varal se había
transformado en una frondosa palmera cuajada de dátiles.
145
PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...
Imagen de la Epifanía
LA LEYENDA DORADA de SANTIAGO de la VORÁGINE (pág. 91-97)
Cap. XIV: Cuatro nombres tiene esta festividad, correspondientes
respectivamente a los cuatro hechos maravillosos que en ella se
conmemoraron, a saber La adoración de Jesús por los magos (Epiphanía),
el bautismo que san Juan administró al Señor (Theofanos), la conversión de
Cristo al agua en vino (Bethanía) y el milagro que el mismo Cristo realizó
para alimentar con cinco panes a cinco mil hombres (Fagifanía).
[…] Poco después del nacimiento del Señor llegaron a Jerusalén tres magos,
llamados en hebreo Apelio, Amerio y Damasco, en griego Gálgala, Malgalat
y Sarathin y en lengua latina Gaspar, Balthasar y Melchor. La palabra mago
significa tres cosas diferentes: ilusionista, hechicero maléfico y sabio. Según
algunos intérpretes, estos tres hombres eran de hecho tres reyes aficionados
a la práctica del ilusionismo; por eso, con sus trucos y astucias lograron
engañar a Herodes y, en lugar de regresar a sus tierras por Jerusalén, lo
hicieron por otro sitio. […] Una vez dentro de la humilde morada en la que
hallaron al Niño con su Madre, los magos se arrodillaron y cada uno ofreció
al Niño tres dones: oro, incienso y mirra. Es costumbre extendida por los
pueblos antiguos que nadie comparece ante Dios o ante el rey con las manos
vacías. San Bernardo dice que los magos ofrecieron a Cristo oro, para socorrer
la pobreza de la Virgen Santísima, incienso, para contrarrestar el mal olor
que había en el establo y mirra para ungir con ella al Niño, fortalecer sus
miembros e impedir que se acercaran a Él parásitos e insectos.
146
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
147
PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
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PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...
150
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Conclusiones
Como dice la investigadora Gloria Fernández Somoza (2001, p. 21),
“[…] en el espacio coral las Clarisas centraban su vida espiritual y litúrgica,
razón que justifica el hecho de que estuviese decorado con escenas hagio-
gráficas o de la vida de Cristo. Además de suceder así en Toro, también lo
vemos en el coro de las Clarisas de Salamanca.” Lo importante de estos
murales radica en el hecho que fueran realizados y firmados por una mujer
de la cual, debido a los problemas de la desamortización, no se tiene dema-
siado referencias; tampoco si la reina María de Molina fuese su comitente.
Pero una vez más ponemos en claro que, fuese laica o religiosa, Teresa Dieç
poseía una extraordinaria capacidad artística y desarrolla el inminente arte
gótico francés que entra tardíamente a España pero que demuestra las habi-
lidades femeninas de las que queremos rescatar, en especial, los detalles
que se observan en los murales usando pocos colores, todos vegetales, sin
embargo destacando figura y fondo con suma habilidad.
Bibliografía
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Arte. Madrid: Anaya, 1986. ISBN 84-207-1408-9
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151
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VORÁGINE, fray S. de la. La leyenda dorada. Madrid: Editorial Alianza Forma,
1989. 2 v. ISBN 84-206-7998-4
152
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Marina Kleine1
1
Universidad de Sevilha.
2
A obra de maior destaque neste sentido continua sendo a de TORRES SANZ, David. La
administración central castellana en la Baja Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid,
1982, especialmente o capítulo 5.
3
Como exemplos, podemos citar os trabalhos de MILLARES CARLO, Agustín. La cancillería
real en León y Castilla hasta fines del reinado de Fernando III. Anuario de Historia del Derecho
Español, v. 3, p. 227-306, 1926; LUCAS ÁLVAREZ, Manuel. Las cancillerías reales (1109-1230).
153
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
que costuma ser a descrição de uma instituição constituída por ofícios hie-
rarquicamente ordenados e de suas respectivas funções delimitadas na le-
gislação da época, mas cujos titulares permanecem no anonimato. Ao mes-
mo tempo, esta descrição normalmente abarca um período muito amplo e
não reflete uma preocupação pela historicidade da instituição e pelas mu-
danças sofridas ao longo do período estudado. O segundo enfoque, além de
igualmente descuidar do material humano vinculado à instituição, apre-
senta um risco similar, isto é, o de ter como resultado unicamente a descri-
ção da produção documental de uma determinada oficina, muitas vezes
obviando o contexto que emoldura sua evolução na diacronia histórica.
Assim, considerando esta carência da historiografia existente sobre
as chancelarias reais castelhano-leonesas na Idade Média, a pesquisa que
realizamos em nossa tese de doutorado teve como objetivo abordar a ques-
tão a partir da perspectiva dos atores documentais, dos indivíduos que de-
ram vida à chancelaria real de Afonso X e protagonizaram o processo de
expedição documental levado a cabo pela instituição durante este reinado4.
Para tanto, o trabalho consistiu na coleta de informações contidas na docu-
mentação da época em um banco de dados e na posterior elaboração de um
catálogo prosopográfico de todos os indivíduos vinculados com a produ-
ção de documentos do monarca. O principal elemento para a identificação
dos atores documentais nos diplomas emitidos pela chancelaria real é a
chamada subscrição chanceleresca ou linha de chancelaria, onde se indi-
León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1993. (Coleção “El reino de León en
la Alta Edad Media”, 5); OSTOS SALCEDO, Pilar. La cancillería de Alfonso VIII, rey de
Castilla (1158-1214): una aproximación. Boletín Millares Carlo, v. 13, p. 101-135, 1994; ID. La
cancillería de Fernando III, rey de Castilla (1217-1230): una aproximación. Archivo Hispalense
(Actas de las IV Jornadas de Historia Militar), 77/234-236, p. 59-70, 1994; LÓPEZ
GUTIÉRREZ, Antonio. La cancillería de Fernando III, rey de Castilla y León (1230-1253
[sic]): notas para su estudio. In: ibid. p. 70-81; PARDO RODRÍGUEZ, María Luisa. La cancillería
de don Fernando de la Cerda, infante de Castilla y León (1255-1275). León: Universidad de León,
2009; e SÁNCHEZ BELDA, Luis. La cancillería castellana durante el reinado de Sancho IV
(1284-1295). Anuario de Historia del Derecho Español, v. 21-22, p. 171-223, 1951-1952.
Especificamente para o reinado de Afonso X, os principais trabalhos são os de PROCTER,
Evelyn S. The Castilian Chancery during the reign of Alfonso X (1252-1284). In: POWICKE,
Frederick Maurice. Oxford Essays in Medieval History Presented to Herbert Edward Salter. Oxford:
Clarendon, 1934. p. 104-121; e LÓPEZ GUTIÉRREZ, Antonio. La Cancillería de Alfonso X a
través de las fuentes legales y la realidad documental. Tese de doutorado publicada em microfichas –
Universidad de Oviedo, Oviedo, 1990.
4
KLEINE, Marina. La cancillería real castellana durante el reinado de Alfonso X (1252-1284): una
aproximación prosopográfica. Tese de doutorado inédita – Universidad de Sevilla, Sevilha,
2012, 894 p. Esta tese foi realizada graças à concessão de uma bolsa de doutorado pleno no
exterior pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
154
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
cam os nomes dos indivíduos que atuaram na expedição dos mesmos. Por-
tanto, com tal de determinar as funções exercidas pelo pessoal chanceleres-
co, centraremos a análise a seguir nessas subscrições da documentação de
Afonso X.
No que diz respeito às informações que fornece sobre o pessoal ativo
na produção documental, a documentação real emitida pela chancelaria de
Afonso X apresenta uma particularidade inovadora em comparação com o
que se pode observar nos reinados anteriores, tanto em Castela como em
Leão: a inclusão sistemática de subscrição chanceleresca em todas as for-
mas documentais produzidas. Esta prática teve início já nos dois últimos
anos do reinado de Fernando III, com a atividade do bispo de Segóvia,
Remondo, como notário do rei, e estabeleceu as bases definitivas da produ-
ção documental dos monarcas castelhano-leoneses durante a Baixa Idade
Média. Como consequência, este fato permite uma aproximação muito mais
detalhada do pesquisador aos indivíduos que atuavam no processo de expe-
dição documental e às funções que nele exerciam, elementos determinan-
tes para compreender a organização e o funcionamento da chancelaria real
como instrumento de governo e órgão fundamental nas relações entre o
monarca e seus súditos.
A este respeito, os textos jurídicos compilados na corte alfonsina de-
terminam que os privilegios rodados e as cartas plomadas devem indicar sem-
pre “el nombre del escriuano que lo fizo”, embora não especifiquem como
se deve proceder em relação às outras formas documentais5. A documenta-
ção de Afonso X que compilamos demonstra, no entanto, que a subscrição
chanceleresca era seguramente um elemento obrigatório para qualquer di-
ploma expedido. De fato, foi consultado um total de 1.931 documentos
afonsinos e, embora 82 não contenham a cláusula de subscrição da chance-
laria, somente quatro destes últimos são originais6. A base para a análise
5
P III.xviii.2 e E IV.xii.13 sobre os privilegios; P III.xviii.4 e E IV.xii.15 sobre as cartas plomadas.
As edições aqui utilizadas de ambas as obras são: BERNÍ Y CATALÁ, Joseph. Las Siete Partidas
del rey D. Alfonso el Sabio, glosadas por el Sr. D. Gregorio López. Valencia: Benito Monfort, 1767; e
MARTÍNEZ DÍEZ, Gonzalo. Leyes de Alfonso X: I. Espéculo. Ávila: Fundación Sánchez
Albornoz, 1985.
6
Os outros 78 conservam-se unicamente através de cópias, traslados ou inserções em confirmações
posteriores, o que certamente explica tal ausência, dado que estas formas de transmissão nem
sempre incluem os elementos de validação do documento transmitido. No tocante aos quatro
diplomas originais, trata-se de dois privilegios rodados de confirmação outorgados aos mosteiros
de Nogales e Sahagún (Archivo Histórico Nacional [AHN], Clero, carpeta 949, nº 6 e AHN,
Clero, carp. 916, nº 13, respectivamente) e de dois exemplares da mesma carta partida por ABC
155
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
– neste caso, foram confeccionadas três – pela qual Afonso X ditava sentença em um pleito
entre o bispo e o capítulo da catedral de Cuenca e o concelho da cidade (Archivo de la Catedral
de Cuenca, I, caja 5, nº 20 e 21). Não nos foi possível detectar o motivo pelo qual estes documentos
não contêm a subscrição chanceleresca e, dada sua quantidade tão exígua, entendemos que se
trata de casos absolutamente excepcionais.
7
Não incluímos nesta lista as subscrições que, por sua escassa utilização e provável origem em
mãos posteriores – no caso de cópias, traslados e inserções –, podem ser consideradas como
anômalas e não recorrentes. Das 13 fórmulas apresentadas, a mais frequente tem quase 600
ocorrências e a menos frequente repete-se 23 vezes.
156
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
8
MILLARES CARLO, 1926, p. 264.
9
SÁNCHEZ BELDA, 1951-1952, p. 186.
10
Ibid., p. 191.
157
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
11
Ibid., p. 187.
12
LÓPEZ GUTIÉRREZ, 1994.
13
Esta ideia se reflete de modo especial no elenco apresentado pelo autor das fórmulas utilizadas
nas subscrições de chancelaria, particularmente em ibid., p. 570.
14
Ibid., p. 193-194.
158
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
15
O período anterior foi essencialmente marcado pela confecção de diplomas por parte não de
um pessoal vinculado a uma instituição régia identificável com uma chancelaria, mas sim por
escribas dependentes dos destinatários dos documentos, que utilizavam fórmulas próprias e
mais características da documentação privada. As novidades introduzidas durante o reinado
de Afonso VII, como o surgimento da figura do chanceler e o uso do selo real como principal
forma de validação dos diplomas, marcam “el germen a partir del cual se irá desarrollando la
posterior y compleja cancillería castellano-leonesa”. OSTOS SALCEDO, Pilar; PARDO
RODRÍGUEZ, María Luisa; SANZ FUENTES, María Josefa. Corona de Castilla-León:
documentos reales. Tipología (775-1250). In: BISTRICKÝ, Jan. Typologie der Königsurkunden:
Kolloquium der Comission Internationale de Diplomatique in Olmütz (1992). Olmütz:
Univerzita Palackého, 1998, p. 163-187, especialmente p. 164-165.
16
Sobre a chancelaria de Afonso VII, ver os trabalhos de RASSOW, Peter. Die Urkunde Kaiser
Alfons’ VII von Spanien: eine palaeographische-diplomatische Untersuchung. Berlin: Gruyter,
1929; REILLY, Bernard F. The Chancery of Alfonso VII of León-Castilla: The Period 1116-
1135 Reconsidered. Speculum, v. 51, n. 2, p. 243-261, abr. 1976; LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p.
89-314. Além das obras já referidas, também na síntese de Agustín Millares Carlo podem ver-
se vários exemplos de subscrições de documentos reais que permitem deduzir a organização
chanceleresca: MILLARES CARLO, 1926, p. 227-306.
159
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
17
Como no seguinte exemplo referente ao reinado de Afonso VII: “Magister Petrus Gunsalviz,
imperatoris cancellarius, beati Iacobi canonicus in Palencia, scripsit”, cit. ap. LUCAS
ÁLVAREZ, 1993, p. 194.
18
Sancho III e Fernando II começaram a reinar ainda em vida de seu pai, contando com uma
produção documental também nos anos anteriores ao falecimento deste em 1157. MILLARES
CARLO, 1926, p. 269. Para as novidades introduzidas nas chancelarias castelhana e leonesa a
meados do século XII por Afonso VIII e Afonso IX, ver os estudos de OSTOS SALCEDO,
1994; e de LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p. 489-597.
19
LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p. 317-485. Para a chancelaria de Fernando II, também é referência
a obra de GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Regesta de Fernando II. Madrid: Instituto Jerónimo
Zurita, 1949.
20
MILLARES CARLO, 1926, p. 266.
160
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
gis” (1145-1155), logo por um curto período figura sob a iussio do chanceler
(1154-1155) e, já nos últimos anos, subscreveu os documentos com a fór-
mula “Martinus Pelaiz, regis notarius, hanc cartam scripsit” (1155-1158)21.
Mudanças substanciais ocorreram em ambas as chancelarias reais,
no que diz respeito ao seu pessoal e organização interna, durante os reina-
dos de Afonso VIII de Castela e Afonso IX de Leão. No caso da instituição
castelhana, como indicou Pilar Ostos Salcedo, a figura do “subnotarius”
assumiu paulatinamente a função de escrever materialmente os diplomas22.
Assim, após analisar as subscrições documentais de Afonso VIII, observa-
mos três etapas distintas na organização de sua chancelaria23. Na primeira,
(1159-1206), seguindo a prática dos períodos anteriores, ainda predomina-
ram os notários como autores materiais com o uso da fórmula “N, regis
notarius, scripsit”. Destacou-se nesta longa fase inicial a figura do chance-
ler Raimundo, que de 1164 a 1176 também se encarregou de escrever mate-
rialmente os documentos reais (“Raimundus, regis cancellarius, scripsit”).
Em 1204, surgiram as primeiras subscrições com a fórmula “N, regis sub-
notarius, scripsit”, embora ainda fossem excepcionais nestes momentos.
Pouco depois, de 1206 a 1209, predominou pela primeira vez na chancela-
ria real o uso da fórmula “N, notarius regis, scribere iussit / fecit”, sem
incluir os autores materiais dos documentos, que provavelmente seriam os
mencionados subnotários. Finalmente, de 1209 até o final do reinado em
1214, as mudanças na chancelaria parecem ter dado lugar a um período de
estabilidade, e a subscrição majoritariamente observada na documentação é
“N, regis notarius, N subnotario scribere iussit”. Esta última fórmula encon-
trou seguimento na chancelaria real castelhana durante o breve reinado de
Enrique I (1214-1217), no qual não observamos alterações neste sentido24.
Por sua vez, os diplomas de Afonso IX de Leão também constituem
um claro exemplo da evolução gradual da organização da chancelaria e da
definição das funções de seu pessoal no início do século XIII25. O exame da
21
Vide a coleção de documentos de Sancho III incluída no segundo volume da obra de
GONZÁLEZ GONZÁLEZ, 1949.
22
OSTOS SALCEDO, 1994, p. 113.
23
Os dados apresentados a seguir procedem de um exame da documentação de Afonso VIII
publicada por GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. El reino de Castilla en la época de Alfonso
VIII. Op. cit., [? NÃO FOI CITADA ANTERIORMENTE] v. II e III.
24
A documentação analisada também se encontra editada na coleção documental publicada por
Julio González, citada na nota anterior, ao final do terceiro volume.
25
Vide os estudos de GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Alfonso IX. Op. cit., v. I, p. 479-492, e
LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p. 489-597.
161
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
26
Obtivemos os dados apresentados a partir de uma análise da documentação de Afonso IX
publicada por GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Alfonso IX. Op. cit., v. II.
27
A chancelaria de Fernando III foi um dos objetos da obra de GONZÁLEZ GONZÁLEZ,
Julio. Reinado y diplomas de Fernando III. Op. cit., vol. I, pp. 504-555. Também foi
detalhadamente estudada por OSTOS SALCEDO, Pilar. “La cancillería de Fernando III...”.
Art. cit., pp. 59-70; e por LÓPEZ GUTIÉRREZ, Antonio. “La cancillería de Fernando III...”.
Art. cit., pp. 70-81.
28
As informações que fornecemos sobre a chancelaria fernandina resultam de nossa observação
dos diplomas publicados na coleção documental de GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Reinado
y diplomas de Fernando III. Op. cit. [? NÃO FOI CITADA ANTERIORMENTE], v. II e III.
29
Com exceção de cerca de 30 documentos do total de quase 500 referentes a esta primeira
etapa, nos quais, sim, se pode constatar a menção a um “scriptor” ou “scriptor domini regis”.
162
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
30
As primeiras exceções se observam durante o reinado de Afonso VIII em Castela; OSTOS
SALCEDO, 1994, p. 130-131. No entanto, a mudança definitiva somente se produz com
Fernando III, em 1250. Também é necessário acrescentar a observação de Antonio López
sobre o surgimento, no mencionado período de atuação de Remondo como notário real, das
marcas feitas pelo pessoal da chancelaria na plica dos documentos; LÓPEZ GUTIÉRREZ,
1994, p. 77.
31
Embora para épocas anteriores se tenha advertido para o caráter honorífico do cargo de
chanceler, o qual muitas vezes delegava sua função a outro indivíduo, este último igualmente
163
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
utilizava o título nos documentos, o que revela a importância que se conferia ao cargo e a
existência de chanceleres de fato e chanceleres de direito. Como exemplo, vide o caso da
delegação do cargo de chanceler do arcebispo de Toledo Rodrigo Jiménez de Rada a Juan de
Soria: OSTOS SALCEDO, 1994, p. 61. No que diz respeito à retribuição econômica vinculada
aos altos títulos da chancelaria real, Linehan e Hernández mencionam que Gonzalo Pérez
recebia 6.000 maravedís como notário de Castela durante o reinado de Alfonso X; LINEHAN,
Peter; HERNÁNDEZ, Francisco J. The Mozarabic Cardinal: The Life and Times of Gonzalo
Pérez Gudiel. Florencia: SISMEL / Edizioni del Galluzzo, 2004, p. 133 e 486. Especificamente
sobre os chanceleres, é significativa a carta outorgada por Fernando IV em 1300 ao mesmo
Gonzalo Pérez, então chanceler de Castela, pela qual lhe confirmava a tenência da chancelaria
e o pagamento correspondente, que nesse momento chegava a 40.000 maravedís. NIETO
SORIA, José Manuel. Las relaciones monarquía-episcopado castellano como sistema de poder (1252-
1312). Tese (Doutorado) – Universidad Complutense, Madrid, 1983, v. II, p. 255-256.
32
CÁRCEL ORTÍ, María Milagros. Vocabulaire international de la diplomatique. Valencia:
Universitat de València, 1994, nº 336.
33
Sobre a incorporação da fórmula “rege exprimente” na cláusula da data dos diplomas reais
durante o reinado de Afonso VIII, vide OSTOS SALCEDO, 1994, p. 118-119.
164
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
34
P III.xviii.26, E IV.vi.3: “En casa del Rey, nin en su Corte ninguno non deue dar cartas, si non
estas que aquí diremos luego. Primeramente dezimos, que carta ninguna, que sea de gracia, o
de merced que el Rey faga a alguno, que otro non la pueda dar si non el Rey, o otro por su
mandado, de aquellos que lo deuen fazer; assí como Chanceller, o Notario, o alguno de los
otros que han de judgar en la Corte, assi como Adelantados o Alcaldes”.
35
Em nosso estudo, encontramos a exceção de um único documento no qual o chanceler intervém;
KLEINE, 2012, p. 63.
165
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
36
CÁRCEL ORTÍ, 1994, nº 274.
37
Sobre este assunto, vide também as definições de “poner por escrito” e “redactar” em ibid., nº
340 e 342.
38
Ibid., nº 272.
166
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
39
Ibid., nº 273.
40
Considerando-se que os notários não figuram transmitindo a iussio real até 1250, pode-se
afirmar que a expressão de raro uso “scribi iussit”, apesar de conter o verbo “iubeo”, não
equivale à locução iussiva “fieri iussit” utilizada pelo rei e pelo chanceler, e deve, ao contrário,
ser compreendida como sinônimo de “scribi fecit” pela referência explícita que faz à escrita do
diploma. Vide a documentação de Afonso VIII a partir de 1206, GONZÁLEZ GONZÁLEZ,
El reino de Castilla en la época de Alfonso VIII. Op. cit., v. III.
41
SÁNCHEZ BELDA, 1951-1952, p. 186.
42
Para os casos excepcionais, vide KLEINE, 2012, p. 78.
167
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
43
Vide a definição de “minuta” proporcionada por CÁRCEL ORTÍ, 1994, nº 353.
44
Tomamos a transcrição do Espéculo (E IV.xii.14); o grifo é nosso. A citada lei apresenta uma
pequena variação na Tercera Partida: “déuelo lleuar al notario que lo vea si es fecho según la
nota que le dio el rey o el Notario, o le dixeron por palabra. E si fallare el notario que es assí
fecho como le dixeron o le mandaron, délo al escriuano que lo fizo que lo registre en su libro,
e lléuenlo a la cancelería, e póngale cuerda de seda, e sellado con el sello de plomo” (P
III.xviii.3). Sobre a associação dos notários com a minutatio, vide também P II.ix.7: “Notarios
son dichos aquellos que fazen las notas de los priuilegios e de las cartas por mandado del rey o
del chanceler”.
45
LÓPEZ GUTIÉRREZ, 1990, p. 284-285.
168
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
46
Vide o caso do escrivão Millán Pérez de Ayllón exposto em KLEINE, 2012, p. 102.
169
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
47
Ibid., p. 65.
48
Vide a ficha de Gutierre Pérez em ibid., Apêndice, nº 44.
49
Vide a ficha de Juan Mateo em ibid., Apêndice, nº 128. A única exceção observada na
documentação afonsina, na qual se combinam as expressões “hacer escribir” e “escribir” na
mesma fórmula de subscrição, limita-se a um único escrivão, Millán Pérez de Ayllón; KLEINE,
2012, p. 102 e Apêndice, nº 74.
50
Aos já citados estudos de Luis Sánchez Belda sobre Sancho IV e de Antonio López Gutiérrez
sobre Afonso X, soma-se também o de PARDO RODRÍGUEZ, María Luisa. 2009. Vide
especialmente a seção sobre os escrivães nas p. 42-43: “El primer puesto en escalafón y el que,
sin duda, constituye el grupo más numeroso es del que formaban parte aquellas personas en
170
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
cuya suscripción utilizaron una fórmula que les equipara totalmente a los notarios. Me refiero
al fiz escriuir, que indica siempre, en este contexto de elaboración, la orden de expedición de la
carta en el ámbito cancilleresco, y por tanto la tramitación de la iussio del infante.” Por outra
parte, gostaria de deixar constância aqui de que eu mesma reproduzi tal interpretação da
locução “hacer escribir”, que agora considero equivocada, em KLEINE, Marina. Sancho Pérez
y la cámara del rey en el reinado de Alfonso X. Alcanate, 7, p. 329-360, especialmente p. 332,
2010-2011. Com relação à chancelaria do infante Sancho, o único trabalho existente sobre o
tema não contribui com informações no que diz respeito à questão do exercício ou transmissão
da iussio documental. Contudo, esse estudo sim se refere ao significado da fórmula “hacer
escribir” como “ordenar la redacción de documentos”, embora sem especificar as implicações
desta afirmação: OSTOLAZA ELIZONDO, María Isabel. La cancillería del infante don Sancho
durante la rebelión contra su padre Alfonso X el Sabio. Historia, Instituciones, Documentos, 16, p.
305-318, especialmente p. 311, 1989. Para o reinado de Fernando IV, também não contribui
com dados neste sentido o artigo de PASCUAL MARTÍNEZ, Lope. Apuntes para un estudio
de la cancillería del rey Fernando IV de Castilla. Art. cit. [? NÃO FOI CITADO
ANTERIORMENTE], p. 1021-1036. Igualmente reproduz a associação da expressão “hacer
escribir” com o exercício do ofício de notário, no demais geralmente difundida na diplomática
castelhana tradicional, MARTÍN POSTIGO, María de la Soterraña. Notaría mayor de los
privilegios y escribanía mayor de los privilegios y confirmaciones en la cancillería real castellana.
In: Actas de las I Jornadas de Metodología Aplicada a las Ciencias Históricas. Santiago de Compostela:
Universidad de Santiago de Compostela, 1975. v. 5, p. 241-254, especialmente p. 244.
51
Não devemos esquecer que a Tercera Partida está dedicada à administração de justiça, e que o
mencionado título trata sobre as escrituras “de que pueda nascer prueua, o aueriguamiento en
juyzio” (P III.xviii, proêmio).
52
E V.viii.14. Os grifos são nossos.
171
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
53
KLEINE, 2012, Apêndice.
54
É necessário destacar-se, porém, que nove indivíduos iniciaram suas atividades na chancelaria
real como redatores e posteriormente passaram a exercer a função iussiva. Para evitar a
duplicação de indivíduos em ambos os grupos, esses casos foram contabilizados entre os iussores
e neste conjunto são incluídas suas respectivas fichas no citado catálogo prosopográfico.
172
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
173
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...
174
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Nei Nordin1
1
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
175
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
176
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
2
Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Brasília: MEC / Secretaria de Educação Fundamental
(SEF), 1998. p. 46.
177
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
3
MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História. In: KARNAL,
Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto,
2004.
178
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
179
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
180
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Brincar é preciso...
Como dito anteriormente, quando optamos por nossas licenciaturas,
certamente alimentamos o sonho de participar da maravilhosa experiência
que é semear o conhecimento e participar do processo educativo. Não ima-
ginávamos que significativa parcela dos nossos alunos não estariam exata-
mente interessados nos benefícios do conhecimento histórico. A realidade
não é bem o que esperávamos.
É preciso que todo professor tenha consciência de que não vai para a
sala de aula formar historiadores. Estamos, em muitos casos, verdadeira-
mente distantes de alcançar o objetivo de semear a sonhada consciência
181
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
crítica e cidadania... Mas nem tudo está perdido. Note-se que o conteúdo
ou o conhecimento histórico “despejado” para uma classe não é algo men-
surável. É possível que algo dito em uma aula de História seja apreendido
muito tempo depois, talvez até quando chegue a maturidade. São crianças
e adolescentes, afinal. Estão sedentos de brincar e viver. Lutamos contra
todo um contexto de deterioração da educação, afastamento da leitura, etc.,
e é preciso lembrar que a estes jovens, cheios de energias e hormônios, os
processos históricos da Idade Média ou de outro contexto qualquer podem
não despertar grandes interesses. Aprender História exige disposição, ma-
turidade e uma determinada consciência de sua importância. Isto é algo
que não vai necessariamente brotar da boca de um adulto se não for a “hora
certa” de cada um entendê-lo.
Verdade é que, atualmente, em uma sala de aula do ensino médio
trabalhamos com a perspectiva de que apenas uma média de 10% dos alu-
nos esteja realmente interessada em aprender e motivada pelo prazer do
conhecimento. Não é fácil concorrer com a internet, a televisão, a música,
os aparelhos de telefonia móvel, as festas, os consoles de games, etc. Caberá
ao professor seduzir e conquistar os outros 90% para que, ao menos, coope-
rem para que ele possa ministrar sua proposta. Sim, falamos aqui da ques-
tão disciplinar, que é central.
O professor em sala de aula, perante 30 ou 40 adolescentes, deverá
estar preparado e adaptado às mudanças e transformações que pesam sobre
a escola. Na verdade, precisamos reconhecer que a figura e a imagem que o
regente cultiva perante a classe serão uma parte significativa que pesará
sobre a recepção do conteúdo. Nenhum aluno vai prender-se a uma aula se
absorve uma imagem negativa do professor. Nenhuma aula terá um bom
rendimento se o professor não tiver uma boa noção do chamado “domínio
de classe”. Somente estes dois fatores já são suficientes para fazer naufra-
gar um bom planejamento de aula, e este conhecimento dificilmente se
adquire na graduação. Ele é inato.
Considero que o professor deve possuir duas grandes habilidades.
Primeiro, o domínio intelectual sobre sua disciplina. Segundo, o dom de
transmitir este conhecimento transmutando-o em formas diversas para a
recepção daqueles que ainda estão muito distantes da linguagem acadêmi-
ca: crianças e adolescentes. A palavra-chave aqui é criatividade. E criativi-
dade não é algo tão fácil de se colocar em prática, principalmente quando
se tem uma carga horária excessiva, como é o caso do quadro de educado-
res brasileiros. Preparar boas aulas demanda tempo, e materiais alternati-
182
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
4
SCHMIDT, Wagner Luiz. RPG e educação: alguns apontamentos teóricos. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
183
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
Professor Nei Nordin numa “luta de espadas” em uma aula em que foi apresentada a
cavalaria medieval...
184
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
O uso do cinema
A utilização do cinema como ferramenta didática em sala de aula
não é novidade. Muito se tem discorrido sobre este assunto, e são abundan-
tes as teses e artigos empreendendo sua análise. O cinema realmente tem a
propriedade de concretizar a narrativa diante de nossos olhos, principal-
mente se tratando de produções épicas. Nenhuma aula de História poderá
reproduzir uma batalha ou o cotidiano de um mosteiro no século XIV como
faz “O nome da rosa”, de Jean Jacques Anaud, de 1987. É preciso lembrar
que o cinema muito raramente possui algum compromisso histórico e seu
fim é o de entretenimento. Jamais um filme será um livro.
Buscando não cair em repetições, gostaria de abordar quatro ques-
tões sobre o uso do cinema como ferramenta no ensino da Idade Média.
Primeiro. Exibir um filme e posteriormente promover um debate sobre
suas peculiaridades é uma excelente atividade. Há que se ter certa sensibilidade
quanto à escolha do título, cuidando para que seja “palatável” à faixa etária do
público alvo. Lamentavelmente, nossa dimensão cultural cinematografia é for-
temente moldada pelos padrões do cinema de ação norte-americano, e filmes
mais antigos, lentos ou introspectivos, podem resultar em desastres.
Segundo. Novamente aqui será necessário mediar o tempo a ser em-
pregado na atividade. Ou o professor contará com apoio de colegas que
cederão seus períodos para complementar o tempo de exibição ou terá de
contentar-se em seccioná-lo nos seus períodos semanais. Então, somando-
se o tempo do debate, esta é uma atividade que poderá durar até três sema-
nas, o que resulta em um problema de tempo.
Uma opção é lançar como desafio ou trabalho extraclasse (opcional
ou não) que os alunos procurem em videolocadoras no final de semana
algum filme indicado para que, na aula seguinte, ocorra alguma atividade
de debate ou avaliação.
Terceiro. Uma experiência que pode produzir um resultado muito
interessante é optar pelo inverso do argumento cinematográfico. Descons-
truir um filme pode ser muito produtivo e interessante aos jovens: demons-
trar aquilo que um filme tem de inverossímil e equivocado historicamente;
mostrar em um filme o que não é e como deveria ser.
Quarto. Resta ainda a opção de trabalhar com trechos selecionados
de filmes que podem ser retirados com um software e inseridos em uma aula
com um projetor de slides. Há filmes que são ruins ou demasiadamente
longos, mas que trazem cenas primorosas para serem demonstradas em
185
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
uma sala de aula. Este é recurso altamente produtivo, pois uma pequena
cena de dois ou três minutos pode ilustrar todo um contexto que foi traba-
lhado e prenderá muito a atenção dos alunos, além de ser um momento de
relaxamento entre as cópias e anotações.
Utilização de imagens
Outro ponto que não deve deixar de ser considerado para uma aula de
História está no recurso iconográfico. Primeiro porque existem imagens que
são primorosas reconstituições históricas. Segundo porque é possível traba-
lhar uma variedade muito grande de imagens produzidas pelos próprios con-
temporâneos do Medievo. Então será possível tecer comparações e demons-
trar concepções de mundo, espaço e tempo: qual a concepção estética que o
homem medieval possuía de si próprio e como as imagens representavam os
atores sociais, como a mulher, o camponês, o clérigo, o senhor, etc.
Essas imagens são facilmente coletadas na rede mundial e poderão ser
operacionalizadas novamente como slides em um projetor ou facilmente im-
pressas ou reveladas como fotografias em que poderão circular pela classe.
O livro didático
Confesso que não sou um utilizador assíduo do livro didático em aula.
Possuo dois ou três títulos de qualidade razoável com os quais preparo uma
aula básica e vou acrescentando informações com o tempo. Sim, os tais con-
teúdos precisam ser ministrados e é preciso também reservar-lhes horas-aula.
Uma vez que o mercado editorial de livros didáticos movimenta mi-
lhões de reais, existe uma gama infinita cuja variação é sentida desde a
proposta até a qualidade. Há livros muito ruins, como também há livros
excelentes. Há projetos gráficos muito atraentes e projetos pobres. Há tex-
tos acessíveis que convidam à leitura e textos maçantes repletos de equívo-
cos. Muitos livros vêm acompanhados de um bom material de anexos (ta-
belas, mapas, imagens, documentos históricos, etc.), e este vem a ser um
recurso de apoio significativo.
Contudo, como demonstramos acima, poucos livros realmente ino-
vam no tratamento da história proporcionando uma proposta diferencia-
da. É bem verdade que mesmo aquele velho livro didático que está esqueci-
do no banco de livros da escola vai salvar você em muitos apertos e você
deverá fazer a pazes com ele. Mas, seja em História Medieval ou outra
186
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Um pouco de tecnologia
A tecnologia já é uma realidade relativamente acessível e está inseri-
da em todos os contextos educacionais. Urge que o educador saiba fazer
uso de suas possibilidades da forma mais apropriada. Não apenas por seu
caráter facilitador, mas pelo fato significativo de que crianças e adolescen-
tes se adaptam muito rapidamente às inovações tecnológicas, o que pode
facilmente causar um abismo cultural entre professor e alunos de forma
que não seja possível uma interação. É aconselhável que o professor conhe-
ça ao menos de forma rudimentar as referências culturais que compõem o
universo de seus alunos, e hoje os “brinquedos tecnológicos” integram o
cotidiano dos jovens, mesmo entre aqueles de menor poder aquisitivo. Eles
podem até não possuí-los, mas certamente os conhecem e desejam.
Sendo assim, farei a enumeração de alguns softwares que podem con-
ferir à sala de aula maior interação com este aparato tecnológico. Que ne-
nhum professor se iluda quanto à necessidade de despender algum tempo
para aprendizado e adaptação, além de algum investimento financeiro.
Vamos aos softwares.
Fizemos acima a sugestão de selecionar cenas de filmes e vídeos para
o uso pontual em slides. FORMAT FACTORY é um programa leve e bas-
tante intuitivo que permite,
além do corte ou da união de
cenas, a conversão de muitos
formatos de vídeo ou áudio
de acordo com a preferência
e necessidade do usuário.
É realmente imensa a
quantidade de trabalho que
este software simples vai faci-
litar, permitindo a edição de
boas seleções de vídeos.
187
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
188
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
sultado aos colegas de classe. O mesmo vale para a construção do seu pró-
prio feudo ou a elaboração de máquinas de guerra medieval.
Vejamos alguns exemplos:
Uma arena de justa construída por alunos do segundo ano do ensino médio – 2012
Castelo cruzado de Arsur (Tel Aviv) construído por alunos do segundo ano do ensino
médio – 2012
Modelo básico de um feudo construído por alunos do segundo ano do ensino médio – 2012
189
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula
190
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Introdução
O presente estudo visa discutir de que forma se apresenta a concep-
ção sobre o feminino e sua associação com o pecado da luxúria, questão
que foi alvo da pesquisa empreendida pela autora durante a realização do
doutorado em História no Programa de Pós-Graduação da UFRGS em
História. Os estudos sobre o feminino vêm demonstrando sua importância
com o número crescente de adeptos desta área, sendo este tópico extre-
mamente relevante para a compreensão da realidade de uma determinada
sociedade. Deste modo, refletir sobre o pensamento e as representações pre-
sentes no medievo requer uma análise sobre seus atores, os modelos de com-
portamento e os papéis atribuídos para homens e mulheres.
A avaliação do pecado é um outro ponto interessante, uma vez que
este tópico permeia a vida e o pensamento do homem medieval. A identifi-
cação daquilo que é considerado pecado e a verificação das penitências
atribuídas a homens e mulheres podem auxiliar a percepção das represen-
tações sobre o feminino e o masculino no Medievo. Assim sendo, este arti-
go investiga tais questões no “Livro das Confissões” de Martín Pérez, ver-
são portuguesa do manual de confessores castelhano do início do século XIV.
A opção pela análise desta obra se justifica dada a sua relevância no período,
sua linguagem acessível, visível no teor pedagógico do manual, além de sua
abordagem extensa sobre o feminino e o pecado da luxúria.
Assim, em um primeiro momento, será realizada uma discussão so-
bre as principais concepções teóricas que serão utilizadas no presente estu-
do. Após o debate teórico, será apresentada a obra em análise e de que
forma a mesma aborda a ideia de pecado, em especial o pecado da luxúria.
De igual modo, refletir-se-á sobre as referências às mulheres presentes no
manual de confessores de Martín Pérez, realizando um cotejo entre as mes-
mas e as concepções hegemônicas sobre as mulheres durante o Medievo.
191
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
1
SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu: Desacordos, desamores
e diferenças, Campinas, UNICAMP, n. 3, p. 11-27, 1994. p. 13.
192
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
2
KLAPISH-ZUBER, Christiane. Introdução. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História
das mulheres no Ocidente: v. 2: A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. p. 11.
3
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010.
p. 102- 103.
193
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
4
Dalarun afirma que “[t]udo os distancia das mulheres, entrincheirados que estão no universo
masculino dos claustros e dos scriptoria, das escolas, depois das faculdades de teologia, no seio
das comunidades de cônegos onde, desde o século XI, os clérigos encarregados do século se
preparam para a vida imaculada dos monges. [...] Separados das mulheres por um celibato
solidamente estendido a todos a partir do século XI, os clérigos nada sabem delas. Figuram-
nas, ou melhor, figuram-n’A; representam-se a Mulher, à distância, na estranheza e no medo,
como uma essência específica ainda que profundamente contraditória” (DALARUN, Jacques.
Olhares de clérigos. In: DUBY; PERROT, 1990, p. 29.
5
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v. II, p. 337.
194
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
6
PIEPER, Josef. El concepto de pecado. Barcelona: Editorial Herder, 1986. p. 23.
195
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
7
MACEDO, José Rivair. Os manuais luso-castelhanos dos séculos XII-XIV. Aedos: Revista do
Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, v. 2, n. 2, 2009.
Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/ppghist/aedos/ojs-2.2ed3/index.php/aedos/article/
view/167>. Acesso em: 10 jun. 2011.
8
ANTUNES, José. A cultura erudita portuguesa: juristas e teólogos. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Coimbra, 1995. p. 281-282.
196
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
9
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 14.
10
Martín Pérez inicia sua obra com as seguintes palavras: “EN NOME DE DEUS padre e filho
e spirito sancto hu? Deus uerdadeyro, começo e fin de todalas cousas, sen o qual ne 4hu4a cousa
nõ pode seer feyta. Começa se o pobre libro das confissões, dito assi, por que he feyto e complido
para os clérigos m?guados de sciencia” (MARTÍN PÉREZ. Livro das confissões. Edição
semidiplomática de José Barbosa Machado e Fernando Torres Moreira. Edições Pena Perfeita,
2005-2006. 2 v. p. 21).
11
Em relação ao “Livro das Confissões”, Macedo afirma que “o interesse dos príncipes pela
leitura da obra revela-nos talvez algo importante sobre a recepção do conteúdo do Libro de las
Confesiones em ambiente português. Sua introdução data do período inicial da dinastia de Avis,
no mesmo momento de produção de uma ampla literatura em prosa, elaborada com fins
didascálios, destinada à educação da nobreza. Sabe-se bem do gosto desta elite culta por textos
de caráter histórico, moralizante, doutrinal. Praticamente contemporâneos da tradução da
obra de Martín Pérez são o Leal Conselheiro e o Livro dos Conselhos, do rei Dom Duarte, e o
Livro da Virtuosa Benfeitoria, do Infante Dom Pedro, obras imbuídas de um conjunto de
ideias que revelam uma certa percepção da sociedade” (MACEDO, José Rivair Os códices
alcobacenses do Libro de las Confesiones de Martín Pérez [Ms. Alc. 377-378]: elementos para o
seu estudo. Programas de Estudos Medievais: Instituições, cultura e poder na Idade Média
Ibérica. In: Atas da VI Semana de Estudos Medievais I Encontro Luso-Brasileiro de História Medieval.
Brasília, 2006. v. 1, p. 121).
12
Na introdução da edição semidiplomática do “Livro das Confissões”, João Machado Barbosa
explicita a dificuldade em desvendar de fato a real identidade do autor castelhano: “Pouco se
197
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
obra destaca-se por seu conteúdo pedagógico: de fato, Martín Pérez pare-
ce estar preocupado em definir conceitos importantes para a compreen-
são dos tópicos que aborda, como o pecado e os sacramentos. Ressalta a
importância do trabalho do confessor e sua responsabilidade, sendo ne-
cessário que o mesmo tenha um largo conhecimento a fim de realizar
uma orientação adequada, e procura pautar seu discurso nos ensinamen-
tos de importantes figuras da cristandade, como São Paulo e Santo Agos-
tinho. O autor expõe que
[c]onue4 que o cõfessor seia sabedor 4e nas leys de Deus, e que nõ despreze as
constituiçoões da sancta egreja, aas quaaes deue 4 todos os christaãos obedee-
cer. E nõ çarre as orelhas o cõfessor que lhe esqueeça, aquelas palauras de
Sancto Agustinho que som: guarde se o jujz spritual que lhe nõ falesça o dom
da sciencia. Ca lhe conue 4 que sayba todo o que ha de iulgar. [...] E tu iujz
spiritual iulgaras por a ley de Deus, que he o testamento uelho e nouo, e as
sete4ças que os sanctos disserõ sobre elo.13
sabe acerca de Martín Pérez e esse pouco é retirado da única obra que se lhe conhece, o Libro
de las Confesiones, ou de algum dos manuscritos que a contém. Sabe-se que escreveu, ou mais
provavelmente, acabou de escrever, esta obra em 1316, que era um homem da Igreja, certamente
um clérigo secular, e que tinha uma grande cultura canônica e teológica, o que pode fazer-nos
pressupor que teria frequentado uma universidade, talvez a de Salamanca. É, no entanto,
arriscado [...] identificar o autor com os vários indivíduos com o mesmo nome que surgem em
documentos medievais” (MACHADO, José Barbosa. Introdução. In: MARTÍN PÉREZ, 2005-
2006, p. 9).
13
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, p. 27.
14
SOLIGNAC, Aimé. Péchés capiteux. In: Dictionnaire de spiritualité: ascétique et mystique:
doctrine et histoire. Paris: Beauchesne, 1984. Tome 12, Première Partie, p. 854.
198
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
15
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Histoire des péchés capitaux au Moyen Âge. Paris:
Aubier, 2003. p. 277.
199
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
16
LAUAND, Jean. O pecado capital da acídia na análise de Tomás de Aquino: notas de
conferência. Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, set. 2004. Disponível em: <http://www.hottopos.com/
videtur28/ljacidia.htm>. Acesso em: 11 jan. 2012. p. 66.
17
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente. Bauru, SP: EDUSC,
2004. 2 v. , p. 403.
18
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, p. 65.
200
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
19
Ibid., p. 68.
20
Ibid., p. 25.
201
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
[t]ááes som algu4as molheres que assabendas affeytã para enamorar alguu 4s
homee4s de maao amor e çujo e apparã se em tááes logares que acabam o que
quere4. Esso méésmo faze 4 alguu
4s homee 4s ca luta e cãtã e baylham e tãge4
estormentos. Veste se, bafordã, caualagã e faze4 passada e emviã messegei-
4
ros, dan doas, e muytas outras cousas que pode 4 fazer ou dizer eles por elas.
E certo os que tááes cousas faze 4 ou dize4 por trager o home4 ou a molher a
consentimento de peccado de luxuria. Caãe em grande peccado semelhauel
do que faz o diabóó cada dia. Enpero departimento he antre estes. Ca algu-
ms faze4 estas cousas por cõplir luxuria tã soomente.21
21
Ibid., p. 215.
22
Ibid., p. 67.
202
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
do inclusive uma intimidação do fiel. Guy Betchel refere este tópico, afir-
mando que
[o] amor começa muito antes do amor, e a Igreja sempre soube isso. Foi por
isso que previu, na confissão, interrogar não só sobre os actos da carne, mas
também sobre todas as antecipações em espírito, os fantasmas que os prece-
dem, as delícias prévias. O confessor deve também informar-se sobre as oca-
siões, as possibilidades de pecar, que podem levar ao acto carnal se não se
sobre evitá-las, pior ainda se elas tiverem sido solicitadas.23
23
BECHTEL, Guy. A carne, o diabo e o confessor. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. p. 161.
24
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, Livro II, p. 32.
203
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
25
Ibid., p. 66.
26
Marcelo Pereira Lima reflete sobre tais questões, analisando a legislação afonsina no século
XIII. A respeito da relação estabelecida entre o confessor e a penitente mulher e os perigos que
tal contato acarretava, o autor afirma que “a maior preocupação estava no perigo exposto à
vontade dos homens em geral, mas, sobretudo, também no ‘risco’ iminente dos confessores
dedicados ao contato com o corpo feminino. Pelo menos nesse caso, a perspectiva era tradicional
no que se refere à associação do feminino ao pecado da luxúria e à defesa do celibato clerical.
Mesmo na busca pelo perdão divino, mediado pelas autoridades clericais, as figuras femininas
estereotipadas na lei não seriam perigosas só para si mesmas, mas para a própria institucional
representada pelos clérigos. Aliás, mais do que a mulher, era também a dimensão do feminino
que precisava ser controlada, pois ela prejudicaria a almejada sutura estabelecida entre a
geografia interna (alma, vontade) e a paisagem externa (ações, comportamentos) do confessado
pelo confessor” (LIMA, Marcelo Pereira. Do pecado ao gênero da confissão religiosa: algumas
reflexões sobre as concepções de pessoa na legislação afonsina, século XIII. Signum: Revista
da ABREM, v. 11, n. 1, p. 236-266, 2010. p. 261-262).
27
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, p. 192.
204
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
28
Ibid., p. 142.
29
Ibid., p. 142-143.
205
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
30
Ibid., p. 143.
31
Ibid., p. 145.
206
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Considerações finais
O presente artigo teve por finalidade refletir sobre o olhar relativo ao
feminino e ao pecado da luxúria no “Livro das Confissões” de Martín Pé-
rez, a partir da concepção de gênero. A partir da leitura da obra, foi possí-
vel analisar que a narrativa do autor é bastante complexa e extensa, possu-
indo um caráter pedagógico no intuito de orientar o leitor, seja ele o confes-
sor ao qual se dirige ou mesmo um leigo. Martín Pérez demonstra erudição
no sentido de que aponta vários olhares sobre o pecado, entre os quais a
classificação dos pecados capitais. Em relação ao setenário, Martín Pérez
destaca a importância do pecado da luxúria, o qual, no contexto para o
qual se dirige, possui um significado relevante, podendo ser causador de
desordem. A luxúria, que seria comumente associada ao feminino, por ser
um pecado carnal vinculado ao corpo, não é atribuída às mulheres enquan-
to executoras, mas sim como aquelas que podem provocar ou ser vítimas
da luxúria masculina.
32
Ibid., p. 150-151.
207
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...
208
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Felipe Parisoto1
Introdução
As cidade medievais, na condição de centros de trocas e de produção econô-
mica, propiciaram o surgimento de grupos sociais com atividades marcantes
e intensa participação nas diferentes esferas da vida cotidiana. Além disso,
essa sociedade urbana criou vínculos de identificação muito fortes e desenvol-
veu formas de sociabilidade próprias, que iam além da convivência nos locais
de trabalho. A vida social transcorria também longe das oficinas, dos porto e
dos mercados. O tempo reservado ao trabalho era sensivelmente diferente para
as pessoas na Idade Média. Comparado aos dias de hoje, trabalhava-se menos
naquela época, e sobrava mais tempo para o descanso, o lazer e a distração.
Na realidade, várias atividades de lazer estavam integradas na vida cotidiana,
consumindo parte do tempo dos citadinos de então.2
1
Felipe Parisoto é licenciado em História (UNISINOS, 2008) e Mestre em História da Idade
Média – Espaços, Poderes, Quotidianos (Universidade de Coimbra, 2011). E-mail:
felipe.parisoto@gmail.com
2
MACEDO, J. R. Viver nas cidades medievais. São Paulo: Ed. Moderna, 1999. p. 69.
209
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
3
CARNEIRO, H.; MENESES, U. T. B. de. A História da Alimentação: balizas historiográficas.
Anais do Museu Paulista, São Paulo, n. sér., v. 5, p. 9-91, jan./dez. 1997.
4
Ibid., p. 10-11
210
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
5
Principalmente com gregos e romanos – como Hipócrates, Galeno, Oríbase, Antímio,
Dioscórides, Apuleio, Celso, entre outros.
6
WATT, J.; FREEMAN, E. J; BYNUM, W. F. (eds.). Starving sailors: The influence of nutrition
on Naval and Maritime History. London, 1981.
7
SCRIMSHAW, N. S. The value of contemporary food and nutrition studies for historians. Journal
of Interdisciplinary History, v. 14, n. 2, p. 529-34, 1983.
8
McGEE, H. On food and cooking: The science and lore of the kitchen. New York: Collier Books,
1988.
9
CARNEIRO; MENESES, 1997, p. 11-12
211
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
10
SALAMAN, R. N. The history and social influence of the potato. Cambridge: Cambridge University
Press, 1949.
11
MINTZ, S. W. Sweetness and power: The place of sugar in modern history. New York: Viking
Press, 1986; ID. Tasting food, testing power: Excursions into eating, culture and the past. Boston:
Beacon, 1996.
212
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
12
VALENTINI, R. O. Mangiare nelle taverne medievali: tra cibo, vino e giochi. Completar a
referência , p. 9
213
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
I – JOGAR
Jogos de Azar
Possivelmente os mais comuns, assim como os mais questionados no
campo da moralidade cristã, os jogos de azar existem desde a Antiguidade,
mas na Baixa Idade Média se desenvolveram a ponto de se tornarem um
importante ponto de análise da história política e econômica. Tal aspecto
pode ser observado a partir do século XIV, quando havia um interesse por
parte das instituições em controlar essa prática. Os motivos são vários: os
pobres comumente tinham perdas consideráveis. Muitos eram os casos de
completa ruína e perda de bens. Insultos e brigas eram correntes por parte
dos perdedores. No âmbito religioso, os pecados relacionados aos jogos de
azar eram conhecidos: avareza, roubo, usura, mentira, blasfêmia, corrup-
ção do próximo, escândalo, desprezo aos deveres da Igreja e ócio. Um grande
crítico dos jogos de azar foi o franciscano Bernardino de Siena (1380-1444),
que os considerava “um furto contínuo ao próximo, uma apropriação inde-
214
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Dados
– Zara: Zahr, palavra árabe para dados ou jogo de dados, e origem da
palavra portuguesa “azar”, deu o nome a esse jogo muito difundido nas
tabernas medievais – provavelmente o mais conhecido na Península Itálica.
O método era muito simples: em uma mesa, os jogadores atiravam de dois
a três dados, onde, por turno, deveriam adivinhar o total tirado. As combi-
nações 3, 4, 17 e 18 eram consideradas Azar, sendo invalidadas. O perdedor
deveria pagar o total do acerto.
– Sozum: Uma variação da Zara, onde vencia quem tirava o maior
número.
– Riffa: Com três dados, um jogador deveria jogar até atingir o mes-
mo resultado em dois dados. Depois se atirava o terceiro dado e era feita a
soma de todos. Ganhava a maior pontuação.
– Astrágalo: Jogo onde os dados, de quatro lados, eram feitos do osso
que lhe confere o seu nome. De origem grega, os jogadores deveriam esco-
13
LEPORE, F. Il gioco nel Medioevo. 2009. p. 1. Disponível em: <http://www.stratosbari.it/wp-
content/uploads/2009/02/2009_Il_Gioco_nel_Medioevo_Lepore.pdf>.
14
Ibid., p. 2.
215
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
Jogos de mesa
Muitos eram os jogos de mesa. Dentro desta categoria, hoje, encon-
tramos, por exemplo, a Tábua Real (ou backgammon) e o Xadrez. Contu-
do, uma grande variedade pode ser evidenciada, como o Doblet; o Jogo do
Imperador; Cab e Quinal; Fallas; Seys, dos e as; Laquet; Baldrac; Duodecim Scrip-
ta; Tric Trac; Hnefatafl; Tablut; Mereles; Halatafl; Cinco Pedras; Arithmomachia
ou Ludus Philosophorum; El mundo; o Xadrez e suas variações; entre outros.15
– Jogos de trapaça: Além dos mais usuais que apresentamos, muitos
ainda eram os jogos de trapaça, inventados por aqueles que tentavam ga-
nhar algum dinheiro. Vale ressaltar que homens faziam a vida com trapa-
ças, tendo até mesmo associações de delinquentes. Um exemplo é a Gher-
minella, que consistia em fazer desaparecer uma corda dentro de um bas-
tão. Observemos a seguir um jogo de trapaça ainda mais particular:
O jogo da mosca
Franco Sacchetti, poeta medieval, conta em sua obra Trecentonovelle16
sobre um jogo particular. Basso della Penna era um taberneiro de Ferrara.
Certo dia, um grupo de genoveses parou em sua taberna e trapaceou os
clientes com seus jogos. Então, para pagar na mesma moeda, disse della
Penna: “Eu quero fazer com vocês um jogo que não pode ter qualquer ma-
lícia […] Colocarei um bolognino17 para cada um nessa mesa; aquele no
qual uma mosca pousar no bolognino, fica com as moedas dos outros.”18
Os genoveses aceitaram de bom grado, mas não se deram conta de que o
taberneiro, quando queria ganhar, sujava a moeda com a metade de uma
pera que tinha embaixo da mesa. Um claro exemplo de que nem sempre
venciam os enganadores.
15
De forma a observar detalhadamente cada um dos jogos citados, sugerimos o artigo já citado
de LEPORE, 2009.
16
SACCHETTI, Franco. Trecentonovelle. Torino: E. Faccioli, 1970. novela XVIII, p. 51-52.
17
Moeda de algumas regiões da Península Itálica medieval. Foi utilizada entre os séculos XII e
XVII.
18
Tradução livre. “Io voglio fare con voi a un gioco che non ci potrà avere malizia alcuna [...] Io
porrò a ciscun di noi uno bolognino innanzi su questa tavola, e colui, a cui sul bolognino si
porrà prima la mosca, tiri a sé i bolognini che gli altri averanno innanzi.”
216
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
II – BEBER
19
Tradução livre. “L’appetito, finché non diventa fame, è accompagnato da una sensazione
gradevole. La sete invece non conosce crepusculo; appena si fa sentire, ecco il disagio e l’ansia,
ansia che diventa atroce quando non sia há speranza di potersi dissetare. Per una giusta
compensazione, l’azione del bere può, a seconda delle circostanze, procurare un piacere
estremamente vivo: e quando si placa una sete molto intensa oppure si risponde ad una sete
moderata con una bevanda deliziosa, tutto laparato papillare, dalla punta della língua alle
profondità dello stomaco, è piacevolmente solledicato” (BRILLAT-SAVARIN, A. Physiologie
du goût. Paris: Flammarion, 1982; trad. italiana, de Roberta Ferrara: Fisiologia del gusto. Palermo:
Sallerio Editore, 1988. p. 86).
217
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
Mas quem é esse homem medieval que bebe nas tabernas? Qual a sua
categoria social? Certamente um elucidativo poema medieval que diz res-
peito ao beber é o clássico “In Taberna Quando Sumus”, do Carmina Bura-
na20. Nele podemos observar a grande parte da sociedade medieval repre-
sentada, se não toda – “bibunt omnes sine lege”.
Observemos as principais bebidas:
O vinho
Ao retornarmos para a Antiguidade clássica, temos o vinho como
principal componente do Symposium e dos banquetes aristocráticos. Mas é
apenas na Idade Média que tal bebida se torna parte da alimentação da
camada social mais baixa.
Como já explicitamos, limitamos a nossa observação à Península Itá-
lica, o que implica a supremacia do vinho como produto de consumo na
taberna; diferentemente do norte europeu, onde o consumo de uma cerveja
primitiva era muito forte, o que veremos na sequência.
Quando falamos de vinho na Idade Média, devemos levar em conta
a sua difusão e simbologia. As zonas mais setentrionais, por motivos climá-
ticos, não tinham condições de cultivar videiras. Já as regiões meridionais
da Península Itálica e Ibérica, sob influência muçulmana, não as cultiva-
vam por razões religiosas.
Se retornarmos às raízes do cristianismo, encontrar-nos-emos em um
ambiente mediterrânico e essencialmente rural, onde tanto a produção de
vinho como a de cereais panificáveis ocupam uma posição de extrema im-
portância para a sobrevivência dos habitantes. Cultura fortemente abalada
com a queda do Império Romano, mas resgatada devido ao seu elemento
sacro dentro da nova religião. Portanto, uma produção difusa e aceita jun-
tamente com a palavra cristã
É evidente que não nos referimos a um vinho muito elaborado, até
porque sua aceitação popular foi muito significativa. Não existindo rolhas,
era impossível engarrafar e conservar, ou seja, bebia-se usualmente o vinho
do ano. O tempo apenas piorava o sabor, e era comum adicionar especiari-
as ou mel e até esquentar esta bebida, para torná-la mais agradável. Mas
20
Tradução anexa a este capítulo.
218
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
219
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
dos, deveria ser destinado ao vilarejo, com a cláusula de que todos os anos
fosse derramado na sua tumba um barril daquele bom vinho. É narrado
que o costume se manteve até o século XVII, quando foi anulado.
O episódio deu ao vinho de Montefiascone o nome de Est! Est!! Est!!!,
assim como notoriedade na literatura, sendo citado por Cervantes, Marquês
de Sade, Kant, Dickens, entre outros.21
A taberna era, sem dúvida, um lugar para todos.
O vinho, por sua vez, não possui apenas o caráter prazeroso. “Ele
serve para nutrir os corpos, tornar saudável, prevenir as enfermidades, aju-
dar na digestão, reforçar o calor natural, clarificar as ideias, abrir as artérias,
descansar o cérebro, remover do coração a tristeza e favorecer a procriação.”22
Além de ser inspirador, como testemunha um poeta anônimo do século
XII: “É ébrio de néctar que o coração se eleva; com os copos se acendem as
lanternas da alma […]. Eu, para fazer versos, preciso de bom vinho. E quanto
mais o vinho sai puro dos tonéis, mais límpidas palavras então vou produ-
zindo. Tais os vinhos que bebo, tais os versos que escrevo.”23
Nas tabernas, nobres e alto clero bebiam o vinho puro, ou quase. Os
mais abastados bebiam o vinho parcialmente puro ou o vino di torchio24, este
último obtido da prensa do bagaço deixado a fermentar. Para os demais,
existia uma série de tipos de vinho. Apresentamos cinco destas variações,
presentes em um estudo da Universidade de Bolonha25:
• l’aquaticcio: preparado com bagaços frescos espremidos e água em
proporções variáveis.
• l’aquaticcio poveiro: preparado colocando água em bagaços fermen-
tados.
• il mezzo vino ricco: preparado com metade água e metade uvas esma-
gadas.
21
VALENTINI, op. cit. [??], p. 20-21
22
DELORT, R. Le Moyen Age: Histoire illustrée de la vie quotidienne. Paris: Seuil, 1972. p. 38.
23
“Poculis accenditur animi lucerna, cor inbutum nectare volat ad superna [...] ego versus faciens
bibo vinum bonum et quod habent purius dolia cauponum; tale vinum generat copiam
sermonum. Tales versus facio, quale vinum bibo” (Lateinische Lyrik des Mittelalters, p. 367-368.
Trad. de D. M. Ferreira, Jornal das Letras, n. 1, p. 3-16, mar. 1981).
24
Optamos por deixar a nomenclatura em italiano devido à dificuldade de tradução (algo como
vinho de pressão/prensado).
25
PASQUALI, G. Il mosto, la vinaccia, il torchio, dall’alto as basso medioevo: ricerca della
qualità o del massimo rendimento?. In: Dalla vite al vino. Bologna, 1994, p. 44.
220
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
A cerveja
Como vimos, o vinho era a bebida por excelência do homem medie-
val. Contudo, a falta deste poderia ocorrer em determinadas ocasiões. Sua
ausência era suprida com duas bebidas secundárias: a cerveja e a sidra.
No que diz respeito à primeira, devemos observar que existia uma
distinção entre dois tipos de cerveja, que a língua portuguesa não absorveu
como outras línguas latinas. Na língua italiana, por exemplo, temos Cirvo-
gia e Birra, sendo que a diferença essencial entre uma e outra é que a segun-
da utiliza na sua receita o lúpulo; um detalhe que muitas vezes passa des-
percebido. Lato Sensu, trataremos a tradicional bebida proveniente da fer-
mentação de cereais como cerveja.
Quanto à sua difusão, temos uma bebida deveras aceita, até porque
muito antiga. Presente na epopeia de Gilgamesh, produzida por babilônios –
responsáveis pelas primeiras receita –, egípcios e gregos, teve sua produção
na região da França e Península Itálica pelas mãos dos romanos da Gália,
ainda na Antiguidade clássica.
Na França medieval temos casos bem concretos de utilização da cer-
veja como substituta do vinho; por exemplo: quando Bento de Aniane, mon-
ge visigodo, decide reformar os mosteiros, ao início do reinado de Luís I, o
Piedoso, é estabelecido que cada superior de ordem receberia cotidiana-
mente, nas regiões vinícolas, 3 libras de vinho, se possível, ou 2 libras de
vinho e 2 de cerveja, e, na falta de vinho, 3 libras de cerveja e, eventualmen-
te, 1 de vinho26.
26
VERDON, Jean. op. cit. [? NÃO FOI CITADA ANTERIORMENTE], p. 67
221
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
27
Prato típico inglês, consumido normalmente pela manhã. Trata-se de uma espécie de sopa
muito densa à base de farinha de aveia fervida na água ou leite e acrescida de açúcar, nata ou
geleia.
28
Tradução livre. “E sebbene al mansueto re non piacesse la cervogia, lo si vedeva in faccia,
tuttavia ne beveva abbastanza spesso in quaresima per frenare il sua appetito” (ap. VERDON,
op. cit., p. 70).
29
Durante a Alta Idade Média, a cerveja esteve restrita, quase que exclusivamente, à produção
em âmbito familiar, comumente feita pelas mulheres e com a utilização dos fornos banais. A
produção em larga escala surgiu apenas entre os séculos X e XIII, devido à alta demanda por
parte das abadias e domínios reais. Eis que surgiram as corporações e cervejarias monásticas.
De qualquer forma, no âmbito campesino, a produção permaneceu no campo privado.
30
Tradução livre. “Noi fabbricanti di cervogia no possiamo né dobbiamo produrre cervogia se
non con acqua e cereali, ovvero orzo, cereali mescolati e foraggi misti” (ap. VERDON, op.
cit., p. 69.
222
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
A sidra
A sidra é uma bebida muito consumida no norte europeu. Sua pro-
dução é feita com o acréscimo de água e açúcar ao suco de frutas até a
fermentação. Durante a Idade Média, era comum a sidra de maçã ou pera,
tendo como antecessora a matiana romana, que era um hidromel com suco
de maça.
No que diz respeito à produção, eram os bascos que faziam a maior
parte da sidra, dado a grande quantidade de maças na região noroeste da
Península Ibérica, assim como sul de França. No século VI (aproximada-
mente), pescadores desta região teriam passado a receita para os habitantes
da futura Normandia, outra região produtora de maçãs.
Seu consumo em maior escala aparece de forma mais substancial na
Normandia do século XII, quando foi inclusive tributada na região norte e
centro de França. Atingiu certa representatividade no século XV, quando
substituiu o vinho ou a cerveja em algumas regiões do norte de França
(principalmente Maine e Normandia). Contudo, sua ingestão tornou-se
cotidiana apenas na modernidade.31
Certamente o consumo em tabernas francesas era uma realidade des-
te período. É importante observar que um ponto para o consumo da sidra é
o fato da cerveja ser feita com muitos cereais, ou seja, em tempos de carên-
cia tornava-se inviável, tanto pela questão financeira como moral. Lembra-
mos que temos novamente uma limitação geográfica. A sidra não era servi-
da de forma representativa nas tabernas da Península Itálica.
III – COMER
Neste subcapítulo, vamos observar alimentos difundidos nas tabernas.
Por questões ligadas à dimensão do estudo, abordaremos apenas os elemen-
tos que constituem os pratos, deixando de lado os métodos de preparo.
No que diz respeito à documentação, por volta de 1430, o cozinheiro
do Papa Martinho V, Jean de Bockenheim, escreveu um texto em latim
denominado Registrum coquine32, com 74 receitas, onde procurou evidenciar
a quem os pratos eram destinados, segundo nacionalidade e categoria social.
31
Ibid., p. 82-83.
32
BONARDI, G. (a cura di). Johannes Bockenheim: la cucina di Papa Martino V. Milano:
Mandadori, 1995.
223
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
33
Tradução de anônimo do século XIII da corte angevina. Liber de coquina. In: MULON, M.
Deux traités inédits d’art culinaire medieval. In: Bulletin philologique et historique (jusqu’à 1610)
du Comité des Travaux historiques et scientifiques: v. I: Les problèmes de l’alimentation. Paris,
1971.
34
BALLERINI, L., PARZEN, J. (a cura di). Maestro Martino: Libro de Arte Coquinaria. Milano:
Guido Tommasi, 2011.
35
Anônimo toscano. Libro della cocina. In: FACCIOLI, E. Arte della cucina: libri e ricette, testi
sopra lo scalco, il trinciante e i vini dal XIV al XIX secolo. Milano, 1966. Disponível em:
<http://www.uni-giessen.de/gloning/tx/an-tosc.htm>.
36
Anônimo veneziano. Libro per Cuoco. In: FRATI, Ludovico (ed.). Libro di cucina del secolo XIV.
Livorno, 1899. Disponível em: <http://www.uni-giessen.de/gloning/tx/frati.htm>.
37
BOSTRÖM, I. (org.). Anonimo meridionale: due libri di cucina. Stockholm: Almqvist & Wiksell
International, 1985.
224
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Sopas
– Sopa para os rústicos
Ingredientes: ervilhas frescas ou secas, cebola, manjerona, pão, azei-
te, pimenta e sal.
– Sopa de espelta (trigo vermelho)
Ingredientes: espelta descascada, feijão dall’occhio, lardo, azeite, aipo,
cenoura, cebola, alho, sálvia e sal.
– Favas: A fava está certamente entre os legumes de maior difusão e
consumo na Península Itálica medieval. Consumida por todas as categorias,
seu consumo era comum durante todo o ano, seja fresca (durante a prima-
vera) ou seca.
– Grão-de-bico e castanhas: A mistura de legumes e castanhas era muito
comum durante o período medieval. É importante observar que as castanhas
ocupavam uma posição muito importante no suprimento de proteínas.
Ingredientes: grão-de-bico, castanhas, salsa, aipo, cenoura, alho “fran-
cês”, bacon, pimenta, sal e alecrim.
– Sopa para clérigos e peregrinos: Ainda nos registros de Bockenheim,
entramos uma receita específica para clérigos e peregrinos, ou seja, aqueles
que precisavam de fontes de energia significativas e baratas, para suprir as
225
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
Carnes
226
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Peixe e ovos
– Escabeche do taverneiro: peixe frito em azeite ou cozido no vinho e
cebolas fritas. Um prato muito fácil de ser feito e apreciado por todas as
categorias sociais.
Ingredientes: peixe (é indiferente o tamanho, podendo ser pequeno,
como anchova e sardinha, ou grande, como tainha, merluza ou espada),
cebola, vinho, vinagre, pimenta e sal.
– Palamita assada.
Ingredientes: palamita, lardo, suco de limão e sal.
– Enguias no espeto: Enguias eram comidas assadas, fritas, cozidas, em
pastéis, no espeto, etc. Era um peixe muito apreciado, de fácil aquisição e
bem difundido.
Ingredientes: enguia, folhas de sálvia ou louro, azeite, vinagre, pi-
menta e sal.
– Ovos mexidos: O ovo ocupava uma posição de grande importância
, no mundo medieval em função da sua qualidade proteica e baixo preço.
Era preparado de diversos modos e consumido regularmente.
Ingredientes: ovo, queijo (caciotta, parmesão, pecorino, caciocavallo),
banha ou azeite e sal. Ervas aromáticas a gosto.
227
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
Pastéis e tortas
Pastéis e tortas dizem respeito a um alimento coberto por uma cama-
da simples de massa. São pratos típicos do Medievo itálico e foram difundi-
dos em virtude da fácil preparação e utilidade em conservar o alimento.
– Pastéis de coelho
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: coelho
(selvagem, preferencialmente), fatias de lardo, alecrim, pimenta e sal.
– Torta de cebola
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: cebola
(de preferência a branca), fatias de lardo, ovos, parmesão ralado e sal.
– Torta de queijo: A torta de queijo pode variar muito de acordo com a
riqueza. Tanto os queijos como as especiarias possuem valores diversos,
dependendo da qualidade e raridade.
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: queijo
pecorino doce, caciocavallo ou parmesão e queijo fresco (fontina ou taleg-
gio), ovo e pimenta.
– Ervada: Uma torta muito comum e elaborada de modos diversos.
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: espina-
fre ou acelga (ou outros), flores de abóbora, ervas aromáticas (salsa, manje-
rona, mas também erva-doce, cerefólio, hortelã ou sálvia), queijo (pecorino,
ou parmesão, caciotta, caciocavallo), ovo, pimenta e sal. Lardo a gosto.
Verduras
As verduras na Idade Média eram muito comuns, mesmo dentro das
cidades (horti conclusi). É evidente que as condições metereológicas influen-
ciavam muito a produção, sendo que havia também as limitações impostas
pela falta de técnicas frente às imposições de estação. Nas tabernas, era
comum o uso de verduras para acompanhar pratos mais encorpados.
– Pequenas folhas: Ervas e verduras não costumavam faltar nas mesas
medievais, contudo, enquanto os mais ricos podiam contar com ervas aro-
máticas e especiarias, os mais pobres limitavam-se apenas às ervas como
condimento.
228
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Doces
O doce que conhecemos não era típico da gastronomia medieval eu-
ropeia. Diferentemente dos árabes, que possuíam o açúcar de cana, a Euro-
pa restringia-se a biscoitos, pães com especiarias e panquecas.
– Panquecas com folhas de sálvia e louro
Ingredientes: folhas de sálvia e louro (escolhendo as frescas e macias),
ovo, farinha, azeite ou banha e sal.
– Panquecas com flores de sabugueiro: É comum encontrar nas receitas
medievais o uso de flores.
Ingredientes: flores de sabugueiro (podendo ser substituídas por flor
de malva ou de abóbora), leite, ovo, farinha, azeite ou banha.
– Pão frito com ovo: uma forma de utilização do pão endurecido.
Ingredientes: pão branco endurecido, gema de ovo, azeite ou banha
de porco, mel.
– Creme para rufiões e prostitutas: Receita de nº 49 do livro de Bocke-
nheim, o “omelette” para ruffianis et leccatricibus consiste de ovos, unidos
por suco de laranja e adocicados com açúcar. A associação com a categoria
é desconhecida, sendo a 50º receita também destinada a meretricibus, que
diz respeito a um leite de amêndoas cozido em um espeto. É possível que o
doce esteja ligado aos prazeres da carne.
Ingredientes: para cada ovo, meia laranja e meio limão, uma colher
de açúcar, azeite ou manteiga e sal.
Muitas ainda são as receitas, mas acreditamos que os principais ele-
mentos da gastronomia das tabernas medievais na Península Itálica este-
jam aqui contemplados.
229
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais
38
Carmina Burana, canto 196.
39
Muitas são as traduções. Utilizamos a versão do Dr. José Geraldes Freire, professor catedrático
do curso de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra. In: VELOSO, M. T. N. A
importância do vinho na vida acadêmica medieval. Revista Portuguesa de História, t. XXX, p.
110-111, 1995. As palavras em itálico, entre chaves, são observações nossas, com base em
outras traduções.
230
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
231
Fórum de Pós-Graduação:
II Encontro Estadual de Estudos Medievais
Porto Alegre, setembro de 2012
234
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Os cistercienses de Alcobaça:
pecados e pecados capitais
1
A Regula Benedicti foi produzida no século VI na abadia de Monte Cassino, na Itália e a Carta
Caritatis foi redigida em um mosteiro francês no século XII.
2
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). História religiosa de Portugal: I – Formação de Limites da Cris-
tandade. Coord. de Ana Maria Jorge e Ana Maria Rodrigues. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000.
3
GUSMÃO, Antonio Nobre de. A Real Abadia de Alcobaça. 2. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.
235
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
4
Cister: os documentos primitivos. Tradução, introduções e comentários de Aires A. Nascimento.
Lisboa: Edições Colibri, 1999.
236
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Ordem tinha 343 mosteiros, sendo que 167 da filiação de Claraval; o últi-
mo era Alcobaça.
Aos poucos, a proposta dos monges de Molesmes se concretizava;
erguida e consolidada a sua existência, abria-se o confronto com os benedi-
tinos. Com a família formada, a ordem via-se obrigada a dar-lhe o que
respeitar, o que seguir, enfim, o que observar. Então, os abades das filhas de
Cister reuniram-se e redigiram a Carta Caritatis, que traz as edificações cis-
tercienses, alicerçadas em uma família única com a origem sacramentada
em Cister.
Ela é o documento oficial de fundação da ordem. Foi redigida em
um mosteiro francês no século XII, traduzida e comentada por Aires Au-
gusto Nascimento5. Representa o documento jurídico cisterciense, o marco
de fundação constitucional da ordem.
A Carta Caritatis controla a existência de cada casa da ordem e regu-
la a administração de sua unidade. Por várias décadas, este importante
documento cisterciense foi considerado único, imutável e completo. Mas,
paulatinamente, descobrimos o quanto ele sofreu modificações, o quanto
evoluiu, principalmente ao longo do século XII6.
Uma primeira versão da Carta Caritatis é conhecida desde a fundação
de Pontigny (1114), intitulada Carta de caridade e unanimidade, cujo manus-
crito se perdeu. Acreditamos que as normas presentes na versão atual da
Carta de Caridade, aprovada em 1119 pelo papa Calisto II, sofreram inter-
pretações e modificações sucessivas, mas nem sempre determináveis por
documentação. Com isso, é difícil revelar as indagações e tensões gerais
que reconstituam os momentos que pretendemos analisar. Mas averigua-
mos, na evolução e produção da Carta de caridade e em documentos cisterci-
enses primitivos, indícios que fundamentaram a fundação da ordem, e o
quanto a busca pelo regresso à pureza da Regra Beneditina nos revela as
contradições dos monges de Cister em relação aos monges de Molesmes,
principalmente quando se referem à avareza.
A Ordem Cisterciense foi fundada em um momento em que aconte-
cia uma reforma no meio monástico, a qual se relacionava com a busca de
se respeitar os ensinamentos de Bento de Núrsia. A importância de se estu-
dar tal ordem também se deve à constatação de que os cistercienses, no
5
Os Cistercienses: documentos primitivos. Edição bilíngue latim-português. São Paulo: Musa Editora;
Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1997.
6
REIS, Baltasar dos. Livro da fundação do Mosteiro de Salzedas. Lisboa, 1934.
237
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
7
Para conhecer a história da abadia de Alcobaça, ler GUSMÃO, 1992.
238
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
8
Para a história do monasticismo, ler LITTLE. Lester K. Monges e religiosos. In: LE GOFF,
Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC,
2002. v. 2, p. 225-241.
9
Benedicti Regula monachorum. Edição e tradução de J. E. Enout. A Regra de São Bento. Latim-
português. Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1990.
239
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
do, para ser usado como mais uma ferramenta na difusão da religião cristã.
Os primeiros cristãos foram essenciais para a difusão da nova doutri-
na, tanto entre os povos que adentraram no Império Romano quanto entre
os que ainda se dedicavam às doutrinas pagãs fora dele. Teve papel funda-
mental na consolidação e sucesso do cristianismo a competente ação dos
monges. Por ser a doutrina dos sete pecados capitais, ou setenário, nascida
em ambiente monástico e por terem os monges o importantíssimo papel de
difundir o cristianismo na Europa, entende-se que a doutrina, a partir das
primeiras décadas do período medieval, foi bastante usada como meio de
entender o que é o pecado, quais os pecados mais graves, e outras particula-
ridades que formam parte da essência do cristianismo.
Para nossa análise é de suma importância o trabalho do monge bi-
zantino Evágrio Pôntico (345-399), que teve grande influência anacoreta.
Em busca da comunicação com Deus, através de manifestações e renúncias
aos prazeres mundanos, é que surgem as tentações, que de certa forma são
naturalmente as condições para o nascimento do pecado. Evágrio Pôntico
listou os oito maiores males ou necessidades que os monges sofriam no
deserto, e, dessa forma, nasceu o que futuramente seria a mais importante
doutrina sobre pecados do período medieval, a doutrina dos sete pecados
capitais.
Esta importância é confirmada com a readaptação da doutrina pelo
papa Gregório Magno (590-604) logo no início do período medieval, e tam-
bém com a agregação da doutrina à da Igreja Católica, na qual será utiliza-
da principalmente nos rituais de confissão e nos sermões. E, por ter consi-
derado a cristianização de todos os povos germânicos como a principal
questão política em seu pontificado, podemos reconhecer a importância de
seu trabalho para não apenas divulgar o cristianismo, mas também a dou-
trina do setenário adaptada por ele.
Também podemos citar a missão formada por monges, a qual o mes-
mo papa enviou para a região da atual Inglaterra e que obteve um excelente
resultado na cristianização dos povos anglo-saxões. Tanta foi a competên-
cia desta missão que fez com que os próprios monges ingleses saíssem para
fazer o mesmo em regiões ainda não cristianizadas. Dentre todas essas par-
ticularidades, destaca-se o simples fato de que, até Gregório Magno, a dou-
trina dos sete pecados capitais era mantida apenas no ambiente monástico.
A partir dele, além de continuar se mantendo neste ambiente, a doutrina
iria ganhar uma difusão mais ampla, dentro e fora dos mosteiros, já estabe-
lecida como uma doutrina da Igreja Católica.
240
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
10
Ibid.
11
MATOS, Leonor Correia de. A Ordem de Cister em Portugal: mito e razão. Lisboa: Fundação
Lusíada, 1999. MARQUES, Maria Alegria Fernandes. Estudos sobre a Ordem de Cister em Portu-
gal. Lisboa: Edições Colibri, 1998.
241
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
mente quando se refere a “não praticar a ira”, “não reservar tempo para a
cólera”, “não ser soberbo”, “não ser guloso”, “não exercer a inveja”.
Com isso, observamos que os primeiros mosteiros que utilizaram a
Regra de São Bento foram influenciados pela doutrina dos sete pecados
capitais. Não obstante, é a partir de mosteiros desta ordem que surgiram as
reformas e as novas interpretações da leitura da regra e das práticas monás-
ticas. Na verdade, Cluny e Cister representaram o objetivo de voltar à vida
de trabalho e oração, fundada pela Ordem Beneditina.
A amplitude do tema nos remete a buscar limites de espaço e tempo,
pois seria demasiadamente grande a tarefa de estudar a doutrina do sete-
nário durante o período medieval, sua evolução, os debates em relação à
mesma e as reflexões desenvolvidas por diversos pensadores a respeito do
tema. Por isso, evitando o risco de generalização, delimitamos nossa aná-
lise na baixa Idade Média portuguesa, entre fins do século XIV e início do
século XVI.
Levando-se em conta que a doutrina foi criada em ambiente monás-
tico, direcionamos nosso olhar para as fontes de uma das ordens monásti-
cas mais importantes do período medieval, a ordem dos cistercienses12. E,
por ser um assunto que apresenta ainda um amplo campo de estudo, deli-
mitamos nossa temática ao estudo dos textos produzidos na mais impor-
tante abadia cisterciense em solo português, a abadia de Santa Maria de
Alcobaça.
Nossa análise, portanto, tem como objetivo explorar um tema ainda
pouco abordado pela historiografia, cuja temática nos orienta para a con-
cepção de pecado e, principalmente, para a doutrina dos sete pecados capi-
tais. E tem como espaço exatamente uma instituição onde nasceu esta dou-
trina, o meio monástico. E também direciona o estudo para a Ordem Cis-
terciense, cujos motivos de fundação se baseiam na fuga dos pecados come-
tidos pelos monges no próprio ambiente.
Nosso trabalho tem como tema central o significado dos pecados e,
particularmente, da doutrina dos sete pecados capitais, mas tomei o cuida-
do de enfatizar a delimitação temporal, espacial e temática nos textos pro-
duzidos após o IV Concílio de Latrão (1215)13, pois a partir dele estabele-
ceu-se a obrigatoriedade da confissão anual. Com isso, acreditamos que
12
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. O IV Concílio de Latrão: heresia, disciplina e exclu-
são. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/Latrao.htm>. Acess em: 05 jan. 2012.
242
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
O Virgeu de Consolaçon
Durante a Dinastia de Avis, foi produzida em Portugal uma grande
quantidade de textos que tinham como objetivo divulgar a prática de com-
portamentos de acordo com o que se considerava o bom cristão, ou talvez
ainda o bom cristão português. Foram textos voltados para a tarefa de di-
vulgação dos preceitos divinos e morais, de cunho doutrinário, disciplinar e
literário, abarcando uma diversidade de conteúdos e exemplos que abran-
giam a totalidade da vida de um ser humano.
Apresenta-se como uma filosofia moral que se voltava para o aprendi-
zado, abarcando como fontes de inspiração, além dos textos bíblicos, o pen-
samento de filósofos, teólogos e pensadores, da antiguidade até sua época.
A maioria dos tratados doutrinários produzidos expressa uma filoso-
fia de doutrinação moral, que remete o leitor para um aprendizado alicer-
çado em uma concepção cristão-medieval. Esta concepção pode ou não
utilizar a doutrina dos sete pecados capitais como meio de persuadir seu
público-alvo. Isto depende da importância que esta representava para as
ordens onde tais textos foram produzidos.
O Virgeu de Consolaçon faz parte de uma coleção que ainda compre-
ende outros textos, como o Catecismo de Doutrina Cristã, Tractado das media-
ções e pensamentos de S. Bernardo, e Visão de Tundalo ou Estória de huum cavalei-
ro a que chamavão Tungulu, com letra gótica do século XV, sendo citado por
A. F. de Ataíde e Melo, em Inventário dos Códices Alcobacenses14, e faz parte
do Códice Alcobacense CCXLIV/211.
É sempre um problema identificar a autoria destes tratados alcoba-
censes, pois na maioria das vezes não são assinados, e, quando são, a assi-
natura nem sempre corresponde ao autor, mas sim ao monge copista. An-
13
Inventário dos códices alcobacenses. [ed. lit. da Biblioteca Nacional de Lisboa; apresentação de A.
Botelho da Costa Veiga; introdução de A. F. de Ataide e Melo]. Lisboa: Biblioteca Nacional de
Lisboa, 1930-1932.
14
ANSELMO, António. Os códices alcobacenses da Biblioteca Nacional. Lisboa, 1926.
243
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
15
Separata da revista Brotéria, 1949. Reeditado em: MARTINS, Mário. Estudos de literatura medie-
val. Braga, 1956.
16
Ver Notice du manuscrit français de la Bibliothèque Nationale, in Romania, de Arthur Langfors,
cit. ap. MARTINS, 1956.
17
Ibid., p. 72.
18
Ver edição crítica de Virgeu de Consolaçon. Ed. de Albino de Bem Veiga. Salvador: Publicações da
Universidade da Bahia, 1959.
244
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Porém, Albino De Bem Veiga, editor da obra, diz que catálogos e eru-
ditos atribuem autoria a esses códices, recaindo de preferência em Jacobo
Benavente. Também diz que parecem apógrafos cujo arquétipo se desconhe-
ce. Nota-se que provêm de uma cópia, pois não há indícios de uma concen-
tração ou desdobramento do assunto, do âmbito do arbítrio do copista. Na
análise filológica, o editor ainda relata que o assunto das três obras é a litera-
tura religiosa e comum às línguas românicas na Idade Média19.
Mas com tantas cópias e perda do arquétipo, se é que foi copiado de
apenas um arquétipo, não seria Jacobo Benavente um escriba do mestre
castelhano? A verdade é que temos um códice alcobacense para nós ainda
anônimo.
O Virgeu de Consolaçon trata dos pecados e das virtudes, e é com-
posto de cinco partes. As duas primeiras partes falam sobre os pecados e os
vícios, e as três últimas baseiam-se nas virtudes, totalizando 78 capítulos.
A quase totalidade da obra é composta por citações de uma diversi-
dade de moralistas que o autor coloca com o objetivo de sustentar os seus
argumentos. Com a leitura, o leitor conheceria os males, os vícios e as vir-
tudes da vida e, consequentemente, o caminho para a salvação.
No primeiro capítulo da segunda parte, o autor define o que é peca-
do. A concepção de pecado, para o autor, apresenta-se da forma como San-
to Agostinho o define. O autor usa uma citação do próprio para sustentar
seu argumento: “Segundo diz sancto Agostinho, peccado he desamparar
home o bem de Deos que nunca se perde, e fazer muito pelos bees do mundo
que continuadamente falece. E diz esse meesmo: Peccado he dizer ou fazer
ou cuidar ou cubijçar contra a ley de Deos”.
Na primeira parte do códice, o autor faz uma recapitulação rigorosa
dos diversos pecados, já mostrando a forte influência da doutrina dos sete
pecados capitais, que muito lembra a forma como Tomás de Aquino os
classificou20.
Primeira parte: 7 capítulos
Segunda parte: 20 capítulos
Terceira parte: 7 capítulos
190
TOMÁS DE AQUINO. Sobre o ensino. Os sete pecados capitais. Trad. de Luiz Jean Lauand. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
20
Para uma concepção e conhecimento sobre vícios e virtudes, ver NEWHAUSER, Richard. The
treatise on vices and virtues in Latin and the vernacular. Turnhout: Brepols, 1993. (Typologie des
sources du Moyen Age Occidental).
245
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
21
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF; SCHMITT, 2002, v. 2, p.
337-351.
246
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
22
Ibid.
23
Com a análise de alguns documentos fundacionais e a Carta Caritatis em Cister: os documentos
primitivos, 1999.
247
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
248
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
249
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais
Reflexões finais
Notamos claramente as influências do monaquismo beneditino na
baixa Idade Média luso-castelhana. O legado dos ensinamentos de São Bento
de Núrsia, compilados na regra que o mesmo produziu, disseminou-se pela
Europa e, consequentemente, pelo solo peninsular no decorrer do período
medieval. Com o desenvolvimento do monasticismo, surgiu uma varieda-
de de regras, que aos poucos corresponderam ou não às particularidades e
aflições de cada comunidade que as prescreveu.
Também já observamos o quanto a doutrina do setenário se apresen-
ta bastante coesa quando a fonte é de cunho doutrinário/disciplinar, orga-
nizada e apresentada de uma forma mais direta. E o quanto a mesma se
dispersa e aparece de uma forma mais diluída quando a fonte é literária,
em prosa, e destinada, acreditamos, para uma leitura mais prazerosa.
As reformas de Cluny e Cister se apresentaram como um novo cami-
nho em direção às velhas práticas monacais primitivas. E, desde a fundação
de Cister24, notamos a importância da doutrina dos sete pecados capitais
como uma das maneiras de persuadir e justificar a proposta cisterciense,
exposta também nas fontes alcobacenses.
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252
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Marcos Schulz1
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Bolsista CNPq (2010-2011). Contato: qkschulz@superig.com.br
2
Canonista castelhano com formação universitária, provavelmente em Bolonha. Teve atuação
profissional provável como mestre em Salamanca e talvez tenha conduzido um studium em
Valladolid, mas não cita títulos; demonstra grande conhecimento do universo dos confessioná-
rios e das paróquias, motivo pelo qual se suspeita que faça parte do clero secular. Tudo que se
sabe sobre sua figura é pela análise interna da obra – não há documentação inequívoca sobre
sua pessoa, como data e local de nascimento, posses, morte, etc. O nome também aparece de
variadas maneiras nas vezes em que foi citado: Martim Pires, Martín Pérez, Martim Perez,
Martinus Petri, Martim Pirez, etc. A obra Libro de las confesiones, escrita em 1316 em Castela ou
Leão (pela análise de todos os manuscritos se sabe que os mais originais e antigos provinham
da região de fronteira com o reino leonês ou de cidades próximas, como Salamanca), possuía
originalmente três partes. Espalhou-se pela Península Ibérica durante os séculos XIV e XV,
mas não se conhecem cópias para além dos Pirineus, provavelmente pela questão da língua:
fora escrito em castelhano, justamente para servir aos objetivos formacionais do baixo clero, os
padres que não sabiam latim. A obra é composta como uma espécie de manual de instrução e
referência, com dicas e orientações práticas, mas sempre contrabalanceadas com as altas dis-
cussões teológicas e apoio no direito canônico. Teve versões reduzidas, sintetizadas, mutiladas
e abreviadas. Foi feita uma tradução para o português no mosteiro de Santa Maria de Alcoba-
ça, finalizada em 1399. Essa cópia está preservada no setor de reservados da Biblioteca Nacio-
nal de Portugal (Lisboa) em dois volumes manuscritos, separada em quatro partes: a primeira
parte original virou duas partes, a segunda parte original não foi copiada naquela ocasião ou se
perdeu, e a terceira parte original foi separada em outras duas, sendo uma delas o longo trecho
sobre o sacramento do casamento (MS Cód. Alc. 377 e 378; ainda há uma compilação de
trechos da terceira parte, no MS Cód. Alc. 213). Reunidas e resumidas aqui, essas informações
são mais convenientemente analisadas em GARCÍA Y GARCÍA, Antonio; CANTELAR
RODRÍGUEZ, Francisco; ALONSO RODRÍGUEZ, Bernardo. El Libro de las confesiones de
Martín Pérez. Revista Española de Derecho Canónico, Salamanca, v. 49, n. 132, p. 77-78, 1992; e
GARCÍA Y GARCÍA, Antonio; RODRÍGUEZ, Bernardo Alonzo; RODRÍGUEZ, Francisco
Cantelar. Una radiografía de la sociedad medieval hispana: el Libro de las confesiones de Martín Pé-
rez. Madrid: BAC, 2003. p. IX-XXXI.
253
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
I
E non tenga ninguno por mengua porque en la ordenaçion de los pecados
capitales es puesto primero el pecado de la luxuria, que devia ser postrime-
ro, e primero el pecado de la soverbia, ca a sabiendas fue fecho porque, se-
gund dizen algunos doctores e paresçe por esperiençia, dos son los pecados
en que paresçen los omes mas enbueltos, conviene a saber luxuria e cobdi-
çia, e destos tomam mas verguença, e destos han mas consçiençia, e, a lo
mas, asi traen ellos sus confesiones ordenadas3.
3
GARCÍA Y GARCÍA; RODRÍGUEZ; RODRÍGUEZ, 2003, p. 7.
254
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Por causa disso, Martín Pérez afirma que não basta encaixar todos os
pecados no modelo do setenário. Essa é uma opinião também de outras
autoridades no campo do direito canônico, e não se pretende ver no autor
castelhano uma espécie de arauto das mudanças ou antecessor das críticas
ao distanciamento da teologia para com a realidade material e visível.
No se pudo tan bien aguardar el apropiamiento de ordenar los pecados espe-
çiales so los capitales, nin el departamiento dellos, quales de quales nasçen,
porque los que non son letrados non entienden estas propiedades, e por eso
semejo que seria mas pro mostrarles sensiblemente, asi commo de ojo, los
4
Para os elementos de estudo sobre os sete pecados e sua evolução histórica, WENZEL, Siegfri-
ed. The Seven Deadly Sins: Some Problems of Research. Speculum, v. 43, n. 1, p. 1-22, jan.
1968; CASAGRANDE, Carla. I sette vizi capitali: storia di un successo. Conferência apresen-
tada no Seminário Internacional “Os pecados capitais na Idade Média”, 2004, Porto Alegre,
RS; CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT,
Jean-Claude (orgs.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002. v. 1, p.
333-351.
5
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 7.
255
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
pecados, por que les mengüe el estudio e el trabajo de saber los pecados, e les
cresca sabor de confesarlos.6
6
Ibid. Grifo meu.
7
Ibid., p. 3.
8
Ibid., p. 182.
256
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
9
Ibid., p. 185.
10
Ibid., p. 191-193.
11
Ibid., p. 193.
12
Ibid.
257
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
13
Martín Pérez certamente teve contato direto com a obra do papa Gregório Magno e a citou no
Libro de las confesiones: “dize sant Gregorio en el libro que llaman Moral, que fizo el sobre el
libro de Job. En aquella doctrina muestra sant Gregorio que toda alma convertida a Dios ha de
pasar toda la su vida por tribulaçiones e por consolaçiones” (ibid., p. 371). É notável que tenha
modificado o modelo tradicional gregoriano para melhor adaptá-lo ao cotidiano nos confes-
sionários, em detrimento das teorizações a respeito da concatenação dos vícios entre si, até
porque “los que non son letrados non entienden estas propiedades” (ibid., p. 7).
14
Outro não é o motor dos esforços escolásticos que movimentam debates, fermentam teses,
recuperam saberes antigos e conectam o meio universitário aos lugares de contemplação e
vida religiosa durante os séculos XIII e XIV – conforme analisado no item II deste artigo.
15
Ibid., p. 192.
258
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
16
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: A confissão católica: séculos XIII a XVIII. Trad. de
Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 9. O presente artigo divide com o
autor francês o objetivo de “ler esses documentos em segundo grau para neles adivinhar, nas
entrelinhas, tanto o comportamento real dos confessores como as reações dos cristãos comuns
submetidos à obrigação da confissão”.
17
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: LE GOFF; SCHMITT (orgs.), 2002, v. 1, p. 334.
18
O canonista sugere que seu leitor vá acrescentando novas determinações à sua obra à medida
que a Cúria papal as for emitindo, o que, segundo ele, é uma característica das obras de direito:
“Si te semeja esto enojo e trabajo e mengua del libro, sepas que eso mismo conteçe a los libros
del derecho [...]” (GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 8). Depreende-se disso que, reconhe-
cidamente, seu texto não é definitivo e sua obra tem um caráter “vivo”.
19
SOTO RÁBANOS, José María. Visión y tratamiento del pecado en los manuales de confesión
de la baja Edad Media hispana. Hispania Sacra, v. LVIII, n. 118, p. 411-447, jul.-dez. 2006.
259
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
II
Para melhor compreender aquelas perguntas provocativas iniciais do
artigo, acrescentamos aqui mais uma, que amplia o espectro da análise:
como a contextualização do problema – a história dos séculos XIII e XIV –
20
DELUMEAU, 1991, p. 29.
21
Ibid., p. 34.
22
Ibid., p. 30.
260
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
23
Ibid., p. 95. “Os casos da época requerem autores da época”, diria o Padre Annat, futuro
confessor de Luís XIV, ainda que reconhecesse que o ideal seria encontrar soluções nos Padres
e doutores da Igreja. Essa questão pode ficar mais clara à luz de um exemplo contemporâneo:
com o advento de métodos anticoncepcionais o alto clero católico foi chamado a discutir
internamente sua posição quanto ao seu uso pelos fiéis. O debate sobre isso continua em anda-
mento, e não há a menor possibilidade de que alguma autoridade de tempos antigos possa
servir objetivamente como baliza na tomada de decisões desse tipo em matéria de doutrina,
pois elas fornecem respostas mais ou menos limitadas ao grau em que nossa época ainda pode
se reconhecer naquele passado.
24
Importância das traduções de Toledo e da tradição filosófica muçulmana para a recuperação
das obras dos antigos, principalmente Aristóteles. Sobre essa questão ver WILLIAMS, Steven
J. Defining the Corpus Aristotelicum: Scholastic Awareness of Aristotelian Spuria in the High
Middle Ages. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 58, p. 50, 1995: “By around 1200
most of Aristotle’s treatises outside of the Organon were still unknown, unread or unavailable.
During the following decades, academic manuscript production grew enormously, and nearly
all the remaining books of the Aristotelian corpus were translated and put into circulation”.
261
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
25
GILETTI, Ann. Aristotle in Medieval Spain: Writers of the Christian Kingdoms Confronting
the Eternity of the World. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 67, p. 23-48, 2004.
262
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
26
Tive oportunidade de analisar isso em artigo de 2009. SCHULZ, Marcos. O conflito entre as
autoridades religiosas e laicas e o direito medieval: os casos de excomunhão do ‘Livro das
Confissões’ de Martim Perez – Cód. Alc. 377-378. AEDOS, v. 2, n. 2, 2009.
27
DELUMEAU, 1991, p. 81.
28
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 79.
263
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
29
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ociden-
te. Lisboa: Estampa, 1980, p. 152.
30
Ibid., p. 159.
31
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 17-21.
264
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
32
SOTO-RÁBANOS, 2006, p. 444.
33
A respeito desse conceito, é emprestado dos estudos de Pierre Bourdieu sobre a epistemologia
materialista-histórica. BOURDIEU, Pierre. Lições da aula. São Paulo: Ática, 1988, p. 15-16.
265
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
quase nunca assumida expressamente por Martín Pérez. Ela não é necessa-
riamente redutível à de segundo tipo, mas para esta análise é forçoso consi-
derá-las quase como uma só, devido à falta de dados sobre a biografia do
autor castelhano: elas formam a realidade observável, que está em eterna
disputa com a realidade como-ela-deveria-ser das obras de direito34.
Martín Pérez não deixa muitas instruções de como agir em cada caso.
O tom impessoal de sua narrativa impera. Mas isso não deixa para o leitor
uma sensação de impotência diante da norma; pelo contrário, a generalida-
de do texto cria um efeito de aplicabilidade igualmente geral da norma,
funcionando tanto em meios urbanos como rurais, em Castela como na
Itália – e isso vem a aprofundar as dificuldades de precisar dados sobre a
escrita da obra e sobre a vida do autor, que se mostra muito sem nunca se
mostrar realmente. Como exemplos dessa aplicabilidade geral (mas não
unilateral), vemos alguns trechos, muitos dos quais são recorrentes, em que
o clérigo castelhano sugere que o confessor pergunte a seu bispo sobre como
agir em casos de dúvida ou discordância entre os “doctores”35. Por fim, e
pela própria essência da obra que escreveu, Martín Pérez não poderia dei-
xar margens de manobra muito grandes para seus leitores, uma vez que
servia justamente para orientar os padres menos esclarecidos. Mesmo as-
sim, sua postura é visivelmente mais rigorosa em relação àqueles que com-
põem o chamado alto clero, os doutores e teólogos, ou apenas “ricos de
letras”, pois desagravavam a classe religiosa e pecavam gravemente, negli-
genciando seu dever de guiar e dar exemplos cada vez que se mostram
tan avarientos e tan soberbios con ellas [as letras] que non tan solamente
non quieren fazer a los que non son letrados limosna [esmola] del seso de-
llas, mas despreçian e muerden con dientes caninos a muchos que han por la
graçia de Dios el entedimiento sano.36
34
Ver nota 6.
35
Há o exemplo do caso décimo quinto de excomunhão retirado do “dereyto antigo” sobre o uso
do arco sagitário para causar danos físicos a outrem. Martín Pérez cita esse caso entre os de
excomunhão maior e depois novamente entre os casos de excomunhão menor, pois há desa-
cordo entre os doutores nessa matéria. “Este caso es del obispo, enpero dizen los mas de los
doctores que non es descomulgado, mas devese descomulgar [cita Henrique de Susa e Ray-
mundo de Peñafort como sustentação], e sobre esto faz commo te mandare tu obispo”. GAR-
CÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 24.
36
Ibid., p. 3.
266
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
III
A relação entre a doutrina religiosa e sua flexibilização pelo reconhe-
cimento do valor da experiência observável é um tema que foi tratado por
Jean Delumeau, de modo que muitas das reflexões dele sobre casuística,
probabilismo37, laxismo x rigorismo, podem ser confrontadas com esta aná-
lise, sobretudo a respeito do papel da escolástica na adaptação da moral aos
novos tempos e novos sistemas de pensamento, indicando caminhos futu-
ros de independência desta em relação ao domínio do religioso (tanto Ma-
quiavel quanto a Reforma Protestante terão papéis importantes nesse lon-
go processo).
Para a busca de um fechamento deste artigo, cabe fazer notar que o
cotidiano vivido passa a ser um ponto de partida e de chegada ao mesmo
tempo do movimento escolástico em seu esforço de adaptação da norma à
realidade – e qualquer referência aqui à dialética aristotélica (recebida na
maioria das vezes em tons de neoplatonismo38) não estaria muito aquém da
verdade. O esforço desses autores, reunidos sobretudo na Universidade de
Paris – de onde escreveram obras que, ao se difundirem, influenciaram a
construção de uma nova Igreja Católica –, é o que torna a obra de Martín
Pérez possível. É evidente que as necessidades sacramentais criadas em
Latrão IV e sempre reafirmadas em Concílios e Sínodos39 reunidos com
recorrência assustadora (sobretudo ao se perceberem objetivos e prescri-
ções sempre repetidos) dão conta de explicar o que queria o autor com a
37
O probabilismo (doutrina que tem raízes na casuística, mas se desenvolve apenas a partir do
século XV), que consistia em seguir uma opinião em relação a uma dúvida em matéria doutri-
nal sem que essa fosse necessariamente a opinião mais segura ou mais provável, levou à for-
mação de uma nova noção de autoridade – mais relativizada e submetida à crítica e ao contex-
to. Ele “subentendia assim que a ciência moral é feita para a ação e submetida às condições
mutáveis da vida” (DELUMEAU, 1991, p. 108).
38
É preciso lembrar da “aura neoplatônica” com que Aristóteles foi lido na baixa Idade Média e
dos esforços escolásticos para compreender a utilidade de seu estudo. Além disso, houve obs-
táculos em relação à aceitação de seu estilo, porque era complexo em comparação aos textos
claros das autoridades cristãs dos tempos romanos. Isso teria feito com que aumentassem as
dificuldades para que suas ideias fossem absorvidas. PAGDEN, Anthony R. D. The Diffusion
of Aristotle’s Moral Philosophy in Spain, ca. 1400 — ca. 1600. Traditio, v. 31, p. 289, 1975:
“This apparent lack of interest in Aristotle’s moral writings is not in itself inexplicable. Despi-
te the willingness of medieval moralists to rely upon St. Augustine’s permission to ‘spoil the
Egyptians’ as their authority for Christianizing pagan authors, Aristotle’s ideas did not lend
themselves to this kind of scissors and paste treatment; they were not easily divorced from
their context and lacked the obvious simplicity of the Roman moralists.”
39
Para um levantamento extensivo dessas ocasiões, HERRERO, José Sanchez. La literatura
catequética en la Península Ibérica: 1236-1553. En la España Medieval, n. 9, p. 1051-1118, 1986.
267
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
obra – e por que foi escrita em castelhano e não em latim. Mas o processo
de preparação da obra é tributário de um espírito escolástico muito caracte-
risticamente complementar à pastoral da época e à sedimentação dos con-
flitos travados no direito canônico desde o século XI.
É com esse mesmo problema em mente que já afirmavam os editores
modernos da obra de Martín Pérez na sua introdução que, “en todo caso, el
libro parece estar escrito desde la observación directa de la vida, y no sólo
desde lecturas y reflexiones teóricas en una apartada celda”.40
No plano da experiência primária de Martín Pérez, o mesmo de sua
formação intelectual (leituras, aulas, glosas, discussões), essas relações se
fortificam pela aproximação com autores que, ao contrário de um Aristóte-
les, poderiam ter sido seus contemporâneos, em cargos semelhantes, e até,
quem sabe, tenham desfrutado do status e oportunidades que a relação de
mestre-aprendiz cria – há a possibilidade de que Martín Pérez tenha sido
aprendiz do canonista João de Deus, em cuja obra – Summa Confessorum,
de meados do século XIII – poderia ter se inspirado. Esse manual foi muito
difundido por toda a Europa e conheceu muitas cópias em várias línguas,
ainda que seu autor seja português, porque o texto está em latim. Teriam
eles dividido espaços da hierarquia eclesiástica na península Ibérica ou em
universidades italianas como a de Bolonha?
De qualquer forma, há também uma proximidade temática muito
grande entre os textos. Na Summa (conhecida também por Confessionale) de
João de Deus se fala dos pecados que se encontram em qualquer pecador
(primeira parte) e os pecados de categorias profissionais específicas (segun-
da parte) – ou seja, algo muito semelhante ao Libro de las confesiones.
Além disso, Martín Pérez é claramente um tributário dos trabalhos
do dominicano aragonês Raymundo de Peñafort41, que escreveu uma Sum-
ma de casibus poenitentia nos anos 1220-1221. Esse documento se tornaria
muito influente por toda a Europa e também era dividido em três partes,
sendo que essa terceira parte também foi transformada em duas partes, anos
depois, por estudiosos criteriosos, devido à sua extensão – lembre-se que o
40
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. XXI.
41
MENJOT, Denis. L’impot: péché des puissants: Le discours sur le droit d’imposer dans le
Libro de las confesiones de Martin Pérez (1316). In: GUGLIELMI, Nilda; RUCQUOI, Ade-
line (orgs.). Derecho y justicia: el poder en la Europa medieval. Buenos Aires: IMHICIHU-
CONICET, 2008, p. 117-134; RUCQUOI, Adeline. Reflexion sur le droit et la justice en Cas-
tille entre 1250-1350. In: GUGLIELMI, Nilda; RUCQUOI, Adeline (orgs.). Derecho y justicia:
el poder en la Europa medieval. Buenos Aires: IMHICIHU-CONICET, 2008, p. 165-194.
268
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
42
A referência para isso foi fornecida pela Dra. Armênia Maria de SOUZA, de quem há disser-
tação defendida em 1999 sobre Álvaro Pais. A sociedade medieval no Estado e Pranto da Igreja
de Álvaro Pais, Bispo de Silves (1270-1349). 1999. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal de Goiás, 1999.
43
José Hernando DELGADO, Sociedad y cristianismo en un manual de confesores de principios del
siglo XIV. 1978. Tese (Doutorado) – Universidad de Barcelona, acredita que Martín Pérez
possa ter sido franciscano, o que aumentaria as chances de diálogo e de contatos entre ele e
Álvaro Pais.
44
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 156.
269
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
45
Ibid., p. 46-47.
46
São citadas como fonte de autoridade no Libro para essa passagem as obras De vera et falsa
poenitentia, de Agostinho, o tratado de Peñafort encomendado pelo papa Gregório IX em 1230,
ratificado na Bula Rex Pacificus de 1234, e capítulos selecionados do Decreto de Graciano e do
IV Concílio de Latrão (1215). Vale destacar ainda o quanto a santidade concorre para o refor-
ço do argumento de autoridade em matéria doutrinal.
270
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
47
Nota-se que as correntes de pensamento e circulação de ideias não seguem cadeias lineares de
influência. Para uma consideração sobre a teoria de Agostinho sobre as paixões e os males que
lhe são – não necessariamente – inerentes, ver BERMON, Emmanuel. A teoria das paixões
em Santo Agostinho. In: BESNIER, Bernard et al. (org.). As paixões antigas e medievais: teorias
e críticas das paixões. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 199-226.
48
WILLIAMS, 1995, p. 29-51.
271
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
* * *
49
“Oyen las leyes o la fisica” (GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 23). O termo “física” mais se
aproximaria da nossa medicina de hoje, equanto por “leyes” se entendem as aulas de filosofia
natural, e não o direito – isso que seria contraditório com a própria posição de Martín Pérez.
Muitos autores de sua época, e mesmo antes dele, condenaram os objetivos da filosofia natural
em suas obras, entre eles o dominicano Ramon Marti, que escreveu Pugeo Fidei por volta de
1275, baseando-se muito em Tomás de Aquino. Além dele, Raimundo Llullio, que teve atua-
ção profissional em Avignon e em Paris, e Alvaro de Toledo. Cf. GILETTI, 2004, p. 45-46.
272
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
50
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 3.
51
Martín Pérez, acompanhando o desenvolvimento da corrente escolástica, em linhas gerais,
tende a ser mais religioso que os grandes dominicanos do século XIII, por sua vez sintéticos e
filosóficos. Sérgio Rábade Romeu defende que os escolásticos do século XIV dão fundamen-
tos teológicos para a filosofia, enquanto os dominicanos do século XIII elaboram fundamen-
tos filosóficos para a teologia. Martín Pérez estaria precisamente no ponto médio dessa mu-
dança. Segundo o autor, no século XIV se perdeu a vivência da fé, juntamente com a “atenen-
cia en el comportamiento moral al conjunto de normas que se consideraban inamovibles”
(ROMEU, Sérgio Rábade. Reflexiones en torno al pecado en la Edad Media. In: CARRASCO
MANCHADO, A. I.; RÁBADE OBRADÓ, M. P. (coords.). Pecar en la Edad Media. Madrid:
Sílex, 2008, p. 21.
273
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
52
Para um exemplo: “en tal caso sabe commo usa la Iglesia, e asi usa tu en las confesiones”
(GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 221).
53
“Onde, por eso fueron en este libro las sentençias de la santa Escriptura e los derechos escrip-
tos de fuera en el espaçio, por que el entendimiento del leedor benivolo sea pagado con el
testimonio de la verdat [...]” (ibid., p. 5).
274
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Estamos diante de uma pessoa que se atribui ainda uma tarefa seleti-
va muito clara e digna, em vários pontos comparável à de Graciano com
sua “Concordância de cânones discordantes” de 1140: fornecer verdade de
doutrina para que os cristãos tenham “en sus casas los granos del trigo linpio,
sin las pajas e sin las aristas de la disputaçion”55 e instrumentalizar a hierar-
quia clerical contra as justificativas – “opiniones tenebrosas” – que os peca-
dores encontram para não baixarem suas cabeças em humilde arrependi-
mento. Esse é um ponto de flexão comparativa que permanece em aberto.
Também a questão dos empréstimos entre vários sistemas de pensa-
mentos que se entrecruzam não necessita conclusão final e absoluta, a não
ser a de que Martín Pérez, como qualquer outra pessoa, configura uma
visão de mundo apropriando-se de ideias e concepções que lhe sejam aces-
síveis e lhe pareçam coerentes, muitas vezes não importando que tenham
sido forjadas muito distantes em tempo, espaço e objetivos. Inclusive na
contradição pode existir alguma lição. No Libro de las confesiones há espaço
para tudo isso – e, enquanto a trajetória do corpo do clérigo permanece
obscura, resta-nos acender luzes nos caminhos percorridos por sua mente.
Referências
ÁLVARO PAIS. Estado e pranto da Igreja (Status et planctus Ecclesiae). Estabelecimento
do texto e tradução de Miguel Pinto de Menezes. Lisboa: Fundação para a Ciência
e Tecnologia, 1998.
BERMON, E. A teoria das paixões em Santo Agostinho. In: BESNIER, Bernard et
al. (orgs.). As paixões antigas e medievais: teorias e críticas das paixões. São Paulo:
Edições Loyola, 2008. p. 199-226.
BOURDIEU, P. Lições da aula. São Paulo: Ática, 1988.
54
Ibid., p. 9.
55
Ibid., p. 4.
275
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)
276
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
277
278
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Cassiano Malacarne
1
MALACARNE, C. A prática do direito no direito adversário: as infrações institucionais de D.
Dinis às Leis Canônicas (1279-1325). 2008. Dissertação (Mestrado em História) – UFRGS,
Porto Alegre, 2008, p. 87-98.
279
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
2
MISSEREY, L. R. Asile en Ocident. In: Dictionnaire de Droit Canonique. Paris: Librairie Letou-
zey et Ané, 1935. v. I, col. 1089-1104.
280
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
3
HERMAN, E. Asile dans l’Église Orientale (Le Droit d’). In: Dictionnaire de Droit Canonique.
Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1935. v. I, col. 1084-1089.
4
1Reis 1,50. Bíblia Ave Maria. Todas as consultas feitas em: Bíblia Católica Online. Disponível
em: <http://www.bibliacatolica.com.br>.
5
1Reis 2,28. Bíblia Ave Maria.
6
UNDABARRENA, Enrique Vivó. “Utrumque lus”: La institución del Derecho de Asilo. Bole-
tín de la Facultad de Derecho, n. 4, p. 210, 1993.
7
Êxodo 21,12-13. Bíblia Ave Maria.
281
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
[...] reservarás três cidades no meio da terra cuja posse o Senhor, teu Deus,
te dá. Farás estradas que conduzam a elas e dividirás em três partes a terra
que te dá o Senhor, teu Deus, a fim de que todo homicida possa encontrar
refúgio nessas cidades. Eis a regra a seguir para o homicida que ali se refugi-
ar, procurando salvar sua vida. Se matou o seu próximo por inadvertência,
sem ódio prévio, como, por exemplo, se ele tiver ido à floresta com outro
cortar lenha e, no momento de brandir o machado para abater a árvore, o
ferro se tenha deslocado do cabo e ferido mortalmente o seu companheiro,
esse homem refugiar-se-á em uma dessas cidades para salvar sua vida. De
outra forma, o vingador do sangue, no ardor de sua cólera, poderia perse-
guir o homicida e, se o caminho fosse muito longo, atingi-lo para dar-lhe o
golpe mortal. Entretanto, esse homem não merece a morte, pois que não
tinha ódio da vítima.8
O Senhor disse a Moisés: [...] “Dize aos israelitas: quando tiverdes passado
o Jordão e entrado na terra de Canaã, escolhereis cidades de refúgio onde se
possam retirar os homicidas que tiverem involuntariamente matado. Elas
vos servirão de asilo contra o vingador de sangue, de sorte que o homicida
não seja morto antes de haver comparecido em juízo diante da assembleia.
Serão em número de seis as cidades que destinareis a esse fim. [...] Serão
cidades de refúgio, e servirão aos israelitas, aos peregrinos e a qualquer ou-
tro que habite no meio de vós, para ali encontrar asilo quando houver mata-
do alguém por descuido. [...] então a assembleia julgará entre o homicida e
o vingador de sangue de acordo com estas leis. A assembleia livrará o homi-
cida da mão do vingador de sangue e o reconduzirá à cidade de refúgio onde
se tinha abrigado. Permanecerá ali até a morte do sumo sacerdote que foi
ungido com o santo óleo. [...] Não manchareis a terra em que ides habitar,
onde também eu habito, porque eu sou o Senhor, que habito no meio dos
filhos de Israel.”9
8
Deuteronômio 19,2-6 (e por todo o capítulo). Bíblia Ave Maria.
9
Números 35,9-13.15.24-25.34. Bíblia Ave Maria.
10
As cidades de refúgio bíblicas, ainda que não se tratasse de locais sagrados, invocavam essa
sacralidade do solo israelita. Em Portugal existiam os coutos de homiziados, que lembram um
tanto essas cidades de refúgio, mas com muitas diferenças. Segundo Margarida Garcez Ventu-
ra (VENTURA, Margarida Garcez. Os coutos de homiziados nas fronteiras com o direito de
asilo. Revista da Faculdade de Letras [História], Porto: Universidade do Porto, II série, v. XV,
tomo I, p. 601-625, 1998), abrigavam criminosos mesmo e não apenas aqueles que matavam
sem intenção (que diferenciamos no nosso direito em dolo, sem dolo, dolo eventual), que
vemos aqui no caso bíblico, e os reis utilizavam muitas vezes quase as mesmas regras canôni-
282
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
cas que eram aplicadas aos locais sagrados (ibid., p. 625, e conforme Ordenações Afonsinas, no
livro 5, título 118, § 1 e seguintes). Localizavam-se geralmente nas fronteiras como um meio
de colonização da terra e de defesa nas guerras contra os castelhanos. Outra diferença funda-
mental é que geralmente serviam como local de cumprimento de sentença e não de local de
refúgio, ainda que tenham sido registrados casos de pessoas que fugiam para lá. No período
moderno o Brasil todo se torna um couto de homizio, local de pena para os degredados portu-
gueses (COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degreda-
dos. Revista Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação da UnB. Disponível
em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/textos/search/result>. Acesso em: set. 2012). Na carta
de doação da capitania do Espírito Santo se determina que ali pudessem se refugiar crimino-
sos que teriam cometido crimes em outras capitanias, perseguidos pela justiça (FREIRE, Fe-
lisbello. Historia Territorial do Brazil. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1906, v. 1 [Bahia,
Sergipe e Espirito Santo], p. 367-368, direito concedido a Fernandes Tourinho em carta régia
de 1534). Isso coloca a capitania não como um local de cumprimento de sentença judicial,
mas como um local de refúgio, e não de inocentes, como determina a Bíblia, mas de crimino-
sos de qualquer espécie. Vê-se que a necessidade de colonizar a terra (sede de riquezas) ofusca
a obrigação de se aplicar justiça, quando muitos desses criminosos poderiam ser assassinos
intratáveis ou criminosos sexuais.
11
HERMAN, 1935, col. 1085, (Cod. Teod. I, tít. 45, lei 1); UNDABARRENA, 1993, p. 209-232.
12
HERMAN, 1935, col. 1085 (Cod. Teod. I, IX, tít. 45, lei 4); UNDABARRENA, 1993, p. 211.
13
HERMAN, 1935, col. 1086 (Nov. 37; Cod. 1.12.1); UNDABARRENA, 1993, p. 211. A edição
do Corpus Iuris Civilis consultada é: Cuerpo del Derecho Civil Romano. A Doble Texto, traducido
al Castellano del Latino. Publicados por los hermanos Kriegel, Hermann y Osenbrüggen; con
variantes de las principales ediciones antiguas y modernas y con notas de referencias por Ilde-
fonso L. García del Corral. Barcelona: Reimpressão do original publicado por J. Molina, 1889-
1898, pela editora Lex Nova [1988?], 6 volumes: v. 1, pt. 1 - Instituta. - Digesto, v. 2, pt. 1 -
Digesto, v. 3, t. 3, pt. 1 - Digesto, v. 4, t. 1, pt. 2 - Código, v. 5, t. 2, pt. 2 - Código, v. 6, pt. 3 -
Novelas.
14
Nov. 17.7 pr.; Nov. 37.
283
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
15
Cod. 1.12.6.
16
Edit. 1; Nov. 17.7. § 1.
17
Cod. 1.12.2.
18
Cod. 1.12.2,6. Após essas leis, os imperadores do Império Romano do Oriente continuaram a
legislar sobre a matéria, mas suas normas não influenciaram o Ocidente. Exemplo é o acrésci-
mo nessa lista daqueles que atentavam contra a vida dos basileus, valendo, assim, a lei apenas
para os gregos ( P. G. t. XCVII, col. 713), após Justiniano já ter feito sua compilação há muito
tempo. Existindo ainda imperadores no lado oriental, a Igreja apenas legislava o que já havia
sido legislado pelos imperadores, mas estes, por sua vez, seguiam os costumes eclesiásticos
(HERMAN, 1935, col. 1087-1088). Segundo Herman, era muito comum as crônicas registra-
rem, no quadro das disputas políticas no Império Bizantino, que o partido vencido buscasse
asilo nas igrejas (se não se salvando sempre, ao menos atenuando a punição), algo semelhante
ao que ocorria no Israel bíblico. De acordo com o autor, o direito de asilo no lado oriental está
registrado em várias partes do Império, como em Constantinopla (incluindo um registro do
imperador Teófilo, 829-842 – em Theophanes Continuatus, Bonn, 1838, p. 108 – que decretou
que o túmulo de sua filha usufruiria de tal imunidade), no Egito, na Síria e na Ásia Menor.
Contudo, não teria deixado marcas em seus herdeiros, como na Rússia e na Sérvia do período
medieval, sem nenhum registro de ocorrência (ibid., 1085, 1087-1088), o que, acreditamos,
não prova a sua inexistência, porque parece ser um costume muito amplo no mundo cristão.
19
D. 87 c. 6. A edição do Corpus Iuris Canonici utilizada é: Corpus juris canonici emendatum et notis
illustratum. Gregorii XIII. pont. max. iussu editum. 3 parts in 4 volumes. Part I, in 2 volumes:
Decretum Gratiani; Part II: Decretales d. Gregorii papae IX; Part III: Liber sextus Decretalium d.
Bonifacii papae VIII; Clementis papae V. Constitutiones; Extravagantium viginti d. Joannis papae XXII
tum communes. Romae: In aedibus Populi Romani, 1582. Disponível como fac-símile em: UCLA
(University of Califor nia, Los Angeles), Digital Librar y Program. <http://
digital.library.ucla.edu/canonlaw>.
284
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
20
MISSEREY, 1935, col. 1089-1090 (C.17 q.4 c.36).
21
MISSEREY, 1935, col 1090-1091; UNDABARRENA, 1993, p. 214 (C.17 q.4 c.35).
22
UNDABARRENA, 1993, p. 214 (C.17 q.4 c. 6 e Glosa ad C.17 q.4 c. 6 ad verbum passus. O
glosador cita Santo Isidoro de Sevilha, para o qual 1 passo equivaleria a 5 pés e 1 pé a 15
dedos).
23
MISSEREY, 1935, p. 1089 (C.17 q.4 c.36). O autor cita exemplos de leis dos burgúndios, dos
visigodos da Península Ibérica, bávaros e alamanos. Exemplo na lei dos burgúndios: os viola-
dores poderiam se livrar de sua pena pagando 12 soldos à vítima. O homicida deveria entregar
a metade de seus bens e se colocar a serviço dos parentes do defunto. Escravos deveriam pagar
de 50 a 100 soldos, conforme sua função profissional. Entre os visigodos: os assassinos se
livram da pena capital, mas todos os seus bens vão para a família da vítima ou para o Estado.
Sobre os visigodos da Hispânia ainda acrescenta Fortunato de Almeida (ALMEIDA, Fortu-
nato de. História da Igreja em Portugal. Coimbra: Imprensa Académica, 1910, v. I, p. 64) que
tinham direito apenas os servos maltratados por seus amos, os devedores e os delinquentes. Os
servos só deveriam sair do templo após ter sua segurança garantida por um juramento. Os
homicidas teriam, na verdade, seus olhos arrancados ou se tornavam servos da família da
vítima. Sobre os mesmo visigodos Undabarrena (1935, p. 212) diz que a Lex Wisigothorum (VI,
518) previa que, se a vítima fosse um parente, o assassino deveria entregar todos os seus bens
à família ou ao Fisco na ausência da família e ser desterrado perpetuamente.
285
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
24
Mas Gama Barros (BARROS, Henrique da Gama. História da Administração Pública em Portu-
gal. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1885, t. I, p. 332-333) informa que ainda no Concílio de
Oviedo de 1115 (can. III) havia sido estabelecida uma exceção para os servos, ladrões públi-
cos, traidores convictos e excomungados publicamente.
25
Ibid., col. 1092. Leis citadas nas notas seguintes.
26
X 3.49.6. “[...] Respondendo às tuas questões, de acordo com os estatutos dos cânones sagra-
dos e as tradições das leis civis, deste modo entendemos que deve ser distinguido: se quem foge
para a igreja é livre ou é servo. Se é livre, por mais que tenha perpetrado um grave malefício,
não deve ser retirado violentamente da igreja, nem por isso deve ser condenado à morte ou à
punição; mas os reitores das igrejas devem lhe preservar os membros e a vida. Porém, com
relação a isso, o que fez de mal deve ser legitimamente punido de outro modo; e isto em
verdade é, a não ser que seja um ladrão público, ou devastador noturno dos campos, uma vez
que ataca com emboscadas de assalto os caminhos frequentados ou as estradas públicas; pode
ser extraído da igreja sem prestar [juramento de] impunidade segundo as sanções canônicas.
Se, porém, for um servo que tiver se refugiado na igreja, depois que o seu senhor tiver prestado
um juramento de impunidade aos clérigos, é compelido a retornar para a servidão do seu
senhor, ainda que constrangido, do contrário poderá ser capturado pelo senhor.”
286
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
27
MISSEREY, 1935, col. 1092-1093.
28
X 3.49.10. “[...] Alguns, esperando obter a imunidade de seus crimes através da proteção da
igreja, não temem cometer homicídios e mutilações de membros nas mesmas igrejas e cemité-
rios delas, os quais, se não fosse a igreja na qual se refugiaram crendo serem defendidos, de
nenhum modo teriam cometido, et infra. Visto que aquele que delinque deve ser punido naque-
la delinquência, e invocará em vão o auxílio das leis aquele que cometeu [crimes] quando
estava sob o abrigo da lei: Mandamos que publicamente anuncieis que tais não devem usufruir
do privilégio da imunidade, da qual se fazem indignos.”
29
D. EGAS (Bispo de Viseu). Summa de Ecclesiastica Libertate. In: GARCÍA Y GARCÍA, Anto-
nio. Estudios sobre la Canonistica Portuguesa Medieval. Madrid: Fundación Universitária Españo-
la, 1970, p. 219-281.
30
Ibid., p. 226-227, 232.
287
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
31
Summ. de Libert. Eccl. p. 268. “As igrejas e os monastérios e também seus cemitérios têm
imunidade para todo aquele que, seja livre, seja servo, por temor da morte ou tortura do corpo,
que tenha se refugiado neles, não seja removido, nem nesse lugar lhe seja aplicada injúria, a
não ser que seja ladrão público ou pilhador noturno ou devastador dos campos31, como extra
de immunit. eccles. Inter alia [X 3.49.6]. Se alguém, porém, apresentar-se como violador dessas
propriedades, comete sacrilégio e com pena de sacrilégio será punido [...].”
32
A Crónica de 1419 (Crónica de D. Dinis [extrato da Crónica de 1419]. Edição crítica por Carlos
da Silva Tarouca. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947) diz: “Espiçialmente trabalhou
loguo de fazer justiça e auer a mão todos os ladrões que andauom no Regno em çertos lugares,
em que ladrões pruviquos andauom e cerquadores de camjnho, que podiom ser tomados, e
como erom presos, loguo desembargados. E faziom em eles justiça, por tal gujsa que os casti-
gou, que não forom nehums majs ousados de se aly majs acolherem em seus dias deste Rey,
pera malfazerem. E não tam soomente justiças, que todos aujão delas temor e reçeyo, e como
algum fazia tal que mereçese morte, tampouquo lha guardauom, que sempre as forquas erom
pouoadas de malfeytores” (p. 77-78). No caso, se esses ladrões de caminhos buscassem refú-
gio, a Igreja não concederia, mas se se tratasse de outros casos, a determinação da Coroa em
acabar com os bandidos certamente iria contra a facilidade que encontravam para se livrar das
penas abrigando-se em locais sagrados.
33
Crón. 1419, p. 198. “E el Rey auya grão pesar e noja pelo acolhjmento que ho Jffante daua aos
malfeytores, e porque muytos que ele degradaua, se yom pera ele e andauom em sua compa-
nha; e era esto de tal manejra que os do Jffante tomauon ousamça de fazer o que queryom, e
el Rey não podia deles fazer justiça, nem doutros muytos malfeytores que se yom ao Jffante.”
34
Os refugiados adquiriam o benefício de um juramento de impunidade de atenuação da sua
pena, que não se converteria em pena de morte ou outra que atingisse o corpo.
35
MISSEREY, 1935, col. 1099-1100.
288
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
36
OA, II, I, art. XIII (Ordenações Afonsinas. Reprodução fac-símile da edição feita na Real Im-
prensa da Universidade de Coimbra [1792] pelo Serviço de Educação. Lisboa: Calouste Gul-
benkian, 1998, 5 v.); LLP, p. 346 (Livro das Leis e Posturas. Edição da Faculdade de Direito da
Universidade Clássica de Lisboa. Lisboa, 1971); ODD p. 232 (Ordenações Del-Rei Dom Duarte.
Edição crítica de Martim de Albuquerque e Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Calouste Gul-
benkian, 1988).
37
OA, II, III, item 10, LLP, p. 372; ODD p. 260 (no Livro das Leis e Posturas e nas Ordenações de D.
Duarte este trecho final está ausente: “e em as nossas Hordenaçoões he conteúdo”).
289
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
outrossy se ffezer cousa, per que meresca morte, ou justiça em seu corpo.
Unde al nom façades, se nom a vos me tornaria eu poren38.
38
RIBEIRO, João Pedro. Dissertações chronológicas e criticas sobre a História e Jurisprudência Ecclesi-
ástica e Civil de Portugal. Apendices de Documentos. Lisboa: Academia Real de Sciencias, 1860-
1896, t. III, p. II, p. 165-166. Encontramos a referência graças às indicações de Gama Barros
(1885, t. I, p. 333) e Fortunato de Almeida (1910, t. I, p. 360). Essa lei não existe no LLP e nas
OA. Fortunato de Almeida referencia ainda o decreto como estando nas OA, no livro II, tít.
III, art. 10, quando, na verdade, o que encontramos ali é a resposta dada por D. Dinis sobre o
direito de asilo na concordata de 1292. Nesse livro não pode estar porque o estatuto vai contra
uma norma de Afonso V que organizou as Ordenações e, por isso, só poderia ser descartada
(OA, II, VIII). Ali D. Afonso V estatui o direito de asilo também aos condenados de pena de
morte, aos quais o asilo é justamente negado por D. Dinis.
290
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
39
LLP, p. 334. Em uma carta de Nicolau IV, feita após a realização da concordata de 1289, este
narra os reveses que levaram finalmente a um acordo nessa data, e nela lemos que, no pontifi-
cado de Martinho IV, após o acordo estar já firmado pelos prelados e o rei, “[d]epoys o dicto
arcebispo e prelados e o dauandicto Rey dom Donis pedirom ao dito Papa Martinho que
confirmasse esta possiçom que fora trauctada antre elles e que a confirmasse en tal guisa que
durasse pera todo o senpre. Entom esse papa Martinho examinou as dauandictas respostas e
porque achou alg?as delas como quer que fossem compridauijs a dereito empoeram (?) uoltas
com muytas cauilações. e feze as tornar a forma de dereito e talhou as cauilações por tal que as
podesse confirmar com bõa consciencia sse peruentura esto lhe fosse pedido. Outras achou
tam sem dereito e tam minguadas que as nom podia confirmar com bõa consciencia.”
40
OA, II, VIII, § 1 e 2.
291
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
41
A expressão de D. Egas: timore mortis uel cruciatus corporis (“por temor da morte ou tortura do
corpo”) está relacionada à expressão de Inocêncio III: nec inde damnari debet ad mortem vel ad
poenam (“nem por isso deve ser condenado à morte ou à punição”). Misserey (1935, col. 1092),
ao fazer uma descrição parcial da decretal, diz que Inocêncio III, após ter declarado que os
refugiados não podem ser retirados das igrejas violentamente, também não podem être condam-
né à une peine corporelle ou à la morte, traduzindo, assim, poenam (punição) por pena corporal,
aumentando ainda mais as semelhanças. Contudo, D. Egas transforma o trecho, sem modifi-
car a norma, tornando-a exatamente o oposto do que determinou D. Dinis.
292
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
42
LLP, p. 375. Todavia, de forma bem oposta, as Ordenações Afonsinas afirmam: “Diz que faz
ElRey tirar aos Chrisptãaos per Mouros, e per Judeus das Igrejas nos casos, em que nom deve,
e faze-os hi guardar, e meter em ferros, e defende, que lhes nõ dem de comer contra o seu
artigo treze. A este artigo diz ElRey, que aguardará hi o Direito Comu?, e o artigo decimo
terceiro, que foi feito sobre esto na Corte” (OA, II, IV, art. VII). Assim, a versão manuscrita,
particular dessa lei, no Livro de Leis e Posturas, não tem a preposição “per”, deixando claro que
a reclamação do bispo seria que os cristãos, mouros e judeus seriam retirados das igrejas con-
tra a lei, e não que os cristãos seriam expulsos das igrejas pelos mouros e judeus. E nisso o
Livro de Leis e Posturas está de acordo com outra versão particular, as Ordenações de D. Duarte,
que diz: “O setimo artigoo he tall ¶ diz que faz Ell rrey tirar os cristaaõs E os mouros E os
Judeus das egreias nos casos em que nom deue E faze-o hi guardar E meter em ferros E
defende ( ) que lhes nom dem de comer contra o seu artigo xiijº” (ODD, p. 263). A favor das
Ordenações Afonsinas nós vimos anteriormente que na primeira queixa, em 1289, aparece a
preposição “per” mouros e judeus, nas três compilações. Logo, entender-se-ia que essa queixa
de 1309 seja a mesma e possua o mesmo teor, o que é invocado pelo bispo, que afirma que o rei
descumpre o artigo 13 de 1289. Além do mais, temos o fato de que foi feita, ainda que posteri-
ormente, no século XV, através da consulta de porventura mais de um único manuscrito, le-
vando-se em conta os conhecimentos jurídicos da época, e que é uma obra oficial cujas leis, na
maioria, vigoraram em Portugal e no Brasil até o século XIX. A favor das Ordenações de D.
Duarte e do Livro de Leis e Posturas existe uma lei posterior, de D. Afonso IV (ver páginas adian-
te), na qual o rei condena o usufruto do asilo por mouros e judeus.
293
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
43
Esse artigo de 1309 nos parece ser de redação muito duvidosa, como notamos em nota anteri-
or. Colocamos aqui em nota essas dúvidas para não comprometer o raciocínio que elabora-
mos sobre a qual direito o rei se referia: canônico, romano ou real, os três conflitantes até essa
época (mas depois, como mostraremos, tornados uniformes à força através de um estatuto.
44
ODD, p. 278-280. Essas normas sobre o direito de asilo encontradas nas Ordenações de D.
Duarte ficaram de fora de nossa dissertação de mestrado.
294
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
tes do morto E depois disse assy E se alguum querendo mall a outro lhe
posser emseias E o ferrir de ferridas de morte E fogir a allguas cidades sobre-
ditas toma-lo-am os anciaaos daquelllas cidades E da-llo-am em maaos dos
parentes do morto E morrera E non te amercearas [compadecerás] dell
295
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
Caso 6: não àqueles que fazem emboscadas nos caminhos para rou-
bar e matar (de acordo com Inocêncio III, como vimos). Cita as Siete Parti-
das, compilação de leis castelhanas do avô materno de D. Dinis, D. Afonso
X, traduzidas em Portugal no reinado de D. Dinis (conforme veremos adi-
ante). As Siete Partidas, por sua vez, se fundamentam no direito romano.
Casso bj
E com estas sentenças sobreditas acordam mujtos direitos E outrosy a lley
iiijº da primeira partida Titollo xb E diz assy homes hi a que nom deuem
seer enparados em-na igreia E os podem ende [por isso] sacar sem coima
[punição] nhia. assy como os ladroões manefestos E pubricos que teem os
camjnhos E matam os homens E os Roubam
296
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Além disso, existe uma declaração no Livro das Leis e Posturas que,
assim como no estatuto acima, derroga o direito canônico em favor das
ordenações imperiais de uma forma muito explícita. É baseada totalmente
em lei das Siete Partidas, como demonstraremos. Ainda que essa declaração
talvez tenha sido feita pelo sucessor de D. Dinis, seu filho D. Afonso IV45,
existem muitos motivos para crer que ela seja de D. Dinis. Isso porque é
muito semelhante ao estatuto estabelecido encontrado nas Ordenações de D.
Duarte e, pelo que sabemos do uso que D. Dinis faz das Siete Partidas, usan-
do seu texto sem citá-las, em outra resposta46 dada ao bispo de Lisboa em
1309 (sexto artigo: construção de obras públicas, devendo os clérigos quando
se tratar de bem comum e defesa da terra, serem obrigados pelo bispo, o que
está de acordo com o direito canônico). Após citar trechos das leis imperiais
e das leis canônicas, o promulgador vai optar pelas leis romanas:
Estes som os casos que as lex dos empadores (sic) [imperadores] põem em
que as egreias nom deuem de ualer aos que se acõlhem ha ellas por medo de
serem presos
Os ladroes publicos que teem enculcas [vigias] nos camjnhos e nas stradas
asçiente pera fazer mal jtem aquelles que talham e queymam os paaes [sea-
ras] e as aruores e as vjnhas Jtem os que matam outros nas egreias e nos
cjmiteryos dellas Jtem os que saae (sic) das Eigreias e matam ou vãao furtar.
ou outro mal e colhem se ha ellas Item os que teem os camjnhos e matam
per enculcas alguem ou per enseias [motivos, ensejos] Jtem Se o seruo fuge
ha seu senhor e se colhe aa Egreia seu senhor o pode tirar della
45
Esse lei poderia ser de D. Afonso IV porque ela está entre as leis que levam o nome desse
soberano. Fortunato de Almeida (1910, v. I, 360-362), ao tratar desse assunto, cita também
essa norma, que diz ser apenas originária da primeira metade do século XIV. Em nossa disser-
tação de mestrado entendíamos que essa lei era de D. Afonso IV, ainda que D. Dinis tivesse
razões de sobra para conhecer e aplicar a lei sobre o direito de asilo das Siete Partidas, porque
fizera isso com relação a outros temas de imunidade eclesiástica.
46
MALACARNE, 2008, p. 257-282.
297
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
Jtem os ereges publicos e enfamados de Eresia Jtem os que furtam nas egrei-
as. por este caso nom he dereyto expreso mays segundo razom se entende
Jtem segundo as lex o que he prouado que mata outro a torto [injustamente,
sem razão] contra dereyto publicamente Jtem os que fazem adulteryo na
egreia Jtem os que forçam ou rousam as uirgeens / Jtem o que faz trayçom
a seu senhor Jtem os Sodomjcos [sodomitas] Jtem os Judeus ou mouros que
deuem djujda a christãaos Jtem Judeo ou mouro que faz qualquer crime
Jtem os que nom pagam os dereytos e tributos ha Elrrey constrangem nos as
egreias Jtem o seruo que doestar [afrontar, injuriar] seu senhor e se colhe aa
Egreia os clerigos o deuen a tirar della e se seruo se defender o senhor com
outra gente o pode a tirar della E se o seruo hy matarem. en se defendendo
nom deue a penar o senhor nem a outra gente que com el for pera esto
estes som os casos que pon as degretaes [Decretais] em que egreia nom va-
lha haos que se lançam en ella
Enparamento [amparo] e segurança deuen ha auer os que fugirem haa Egreia
segundo diz en a ley ante desta E pero homeens hy ha que nom deuem seer
enparados en ella Ante os podem ende [nisso] tirar sen coyma [punição]
nenhia Asy como os ladroes manifestos que teem os camjnhos ou as stradas
que matam os homeens ou os roubam Jtem os que andam de noyte quey-
mando ou destrujndo doutra maneira qualquer as vjnhas e as aruores Jtem
os que matam ou ferem en a Egreia ou no çimiteryo della nom ham força de
se enparar [amparar] em ella e os quea queymam ou ha quebrantam [destro-
em] E a todos os outros defendeo [proibiu] a sancta egreia que nengiu nom
lhes faça mal segundo o que de suso [acima] he dicto E qualquer que contra
esto fezesse farya sacrilegeo e deuen no de esculmugar ataa que faça emenda
entre porque nom guardaua a sancta egreia a onrra que deuya E se forcou
homem ou outra cousa sacando da Egreia deue o hy a tornar sen dampno e
sen meos cabo [prejuízo, menoscabo]. nenhiu /
aqui pom. iiijº cassos
ERos muy grandes fazem os homeens as degadas [as vezes] e os que diz en
a ley ante desta porque ham de fugir haas Egreias com medo de pea [pena].
E por esto manda o dereyto das leys antigas que os saquem ende [daí] sen
comea [punição] nenhia asy como aos tredores conhoçudos e aos que ma-
tam outrem a torto [injustamente, sem razão] e os que fazem adulteryo e os
que forçam as uirgeens E os que ham a dar conto [pagar] aos enperadores e
aos Reys de seus tributos qual nom seeria razom conjnauel [aceitável] que
taaes malfeytores commo estes emparasse a egreia que he cara (sic) [casa]
de deus ljure deue a justiça guardar mays compridamente [completamente]
que outro logar porque seria contra o que disse nosso senhor Jesu christo.
que disse que a sa casa era chamada casa de oraçom e nom deuya a ser fecta
coua de ladrooes /47
47
LLP, p. 483-484.
298
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
48
BARROS, 1885, t. I, p. 333.
299
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
ome, o muger, o otra cosa, sacandolo de la Eglesia, deuelo y tornar sin daño,
e sin menoscaho ninguno.
Ley V Quales omes manda el derecho de las leyes antiguas, sacar de la Eglesia
Yerros muy grandes fazen los omes a las vegadas [vezes], sin los que dize en
la ley ante desta, por que han de foyer a las Eglesias, temiendo de pena. E
por esto mando el Derecho de las leyes antiguas, que los saquen dellas, sin
caloña ninguna; assi como los traydores conoscidos, e los que matan a otro
a tuerto [injustamente, sem razão], e los adulteradores, e los que fuerçan
virgines, e los que tienen de dar cuenta a los Emperadores, e a los Reyes, de
sus tributos, o de sus pechos [impostos]. Ca [pois] non seria cosa razonable,
que tales malfechores como estos, amparasse la Eglesia, que es Casa de Dios,
donde se deue la justicia guardar mas complidamente [completamente], que
en otro logar; e porque seria contra lo que dixo en otro logar; nuestro Señor
JESU Christo por ella: Que la sua casa era llamada Casa de Oracion, e non
deue ser fecha cueua de ladrones49.
49
Siete. Part., I, XI, leis III-V.
300
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
50
Verificar sobre isso a concepção do notório e do manifesto no direito canônico, que determina-
va a falta de necessidade do processo formal quando um crime fosse praticado em público
(Glosa ad X 3.2.7 ad verbum notorium).
301
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
leve que pode ser dita inexistente. “Valeria a pena”, literalmente, segundo a
origem dessa expressão, esse propósito criminoso. A pena compensa o objeti-
vo. Os teóricos abandonam antigas concepções e se compadecem do bandido
profissional (que assola as camadas mais populares); aquele que mata uma vez
é igual ao que tem como profissão cometer crimes (ver sobre isso a origem da
palavra assassinus e sua concepção no direito canônico51). Divulga-se a justiça,
ou seja, a busca da equidade, e busca-se o desigual, entendendo-se o princípio
do talião (de talio: talião, que veio de talis52: tal, igual, semelhante) em termos
não verdadeiros e deturpados (exemplo: um roubo teria uma pena tão despro-
porcional quanto arrancar-se uma mão, o que não é equidade, uma vez que a
punição é muito maior que o dano causado; por outro lado, é considerado
equitativo que um mesmo bandido pague por uma pena leve e volte a matar
várias vezes), uma palavra que denota, como a equidade, o retorno do mal ao
patrimônio do criminoso (satisfação do mal pelo trabalho caso não possua) e
ao seu corpo que ele causou (nunca maior ou fundamentado em provas que
não sejam muitas provas testemunhais).
Nos relatos antigos e medievais, entre muitos povos, o rei que não apli-
casse a justiça, que não protegesse o povo dos invasores e dos criminosos, dos
inimigos externos e internos, estaria cumprindo todos os requisitos fundamen-
tais para ser deposto, perder o poder. A “culpa de sangue”, o sangue inocente
que se deixa derramar seria o suficiente em qualquer época dita “bárbara” para
que o rei, uma vez que não possuía o poder absolutista, perde-se sua autorida-
de. Mas as concepções do que um soberano deve fazer mudam com o tempo.
Ideologias substituem compromissos comunitários de autoproteção. O crime
(entendendo-se principalmente o crime contra a vida, uma vez que a concep-
ção de crime se modifica com o tempo) se justifica pela necessidade humana,
51
MISSEREY, L. R. Assassin. In: Dictionnaire de Droit Canonique. Paris: Librairie Letouzey et
Ané, 1935, v. I, col. 1104-1107. Assassinus (assassino) é uma palavra, latinizada pelo direito
canônico, de origem árabe (haschischin) e dava nome a uma seita islâmica conhecida por atro-
cidades contra os cristãos. No direito canônico significava aquele que matava por algo em
troca, prometido ou dado. O francês conservou parte do sentido, porque coloca como um dos
seus significados aquele que mata com premeditação (Centre National de Ressources Textue-
lles et Lexicales. Verbete assassin. Disponível em: <http://www.cnrtl.fr/definition/assassin>.
Acessado em: set. 2012), o que não aparece no Dicionário Aurélio (Novo Dicionário Eletrônico
Aurélio. Versão 5.0, corresponde à 3ª. edição, 1ª impressão da Editora Positivo. Edição de
Positivo Informática Ltda., 2004, “assassino”), que diz que em português esse termo significa,
de modo geral, aquele que mata alguém.
52
SARAIVA, F. R. Dicionário latino-português. Rio de Janeiro / Belo Horizonte: Garnier, 2006,
talio, talis.
302
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
pela origem social. Mas, uma questão se levanta quando se constata que as
maiores vítimas do crime são justamente aqueles que vivem em locais mais
pobres, ou seja, aquele de classes mais humildes sempre está com sua vida
muito mais em risco e corre mais risco de perder seu patrimônio (com muito
mais suor conquistado dada a exiguidade do que é herdado) do que as classes
mais abastadas ou médias, de onde justamente se divulgam tais ideologias. E,
uma vez tornadas alicerces de partidos políticos, impedem que as mortes e o
dano deixem de ocorrer, e a culpa de sangue da classe política, média e abasta-
da, nunca é paga. Se os crimes ocorressem nesses grupos, as leis seriam regula-
mentadas de outra forma. Assim sendo, o perdão concedido pelos políticos do
período medieval, ainda que muitas vezes fosse demonstração de seu poder,
liberalidade e benevolência, nunca poderia ultrapassar o limite do aceitável53.
Mas essa concepção do perdão no período contemporâneo sempre ultrapassa
o limite do tolerável, porque existe muito mais complexidade para se alterar
um conjunto de leis, para se condenar muitos políticos dispersos em ideologias
várias. Uma quantidade muito grande carrega a culpa de sangue, mas entre
eles não há preocupação.
Por outro lado, o respeito que se devia ao sagrado na medida em que ia
se limitando cada vez mais, poderia denotar também uma mudança na con-
cepção religiosa ou uma dessacralização lenta que, no século XX e ainda an-
tes, durante as revoluções liberais (inumeráveis destruições e sacrilégios –
lesão do sagrado – de mosteiros), fará com que os locais sagrados não se-
jam mais considerados tão sagrados pelos fiéis, principalmente aplicadas
politicamente e sem plebiscito por aqueles que até nos dias atuais creem ser
53
Passava-se dos limites do aceitável quando os reis portugueses, numa demonstração do inten-
to sem prudência de colonizar as terras indígenas do Brasil, enviavam para cá criminosos que
em Portugal seriam condenados à morte, mas que, vindo para o Brasil, tinham sua pena trans-
formada em degredo. Há relatos de queixas de laicos e religiosos interessados no bem físico
dos indígenas de que tais criminosos continuavam a praticar seus crimes no Brasil: “Certifico
a V. A. e lhe juro pela hora da morte que nenhum fruto nem bem fazem na terra mas muito
mal e dano e por sua causa se fazem cada dia males e temos perdido o crédito que até aqui
tínhamos com os índios porque os que Deus nem a natureza não remedeia como ey [?] o posso
remediar” (carta do governador geral D. Duarte de 1546, ap. COSTA, p. 96-97). O Brasil se
tornou, assim, um imenso couto de homiziados, uma cidade de refúgio bíblica, mas para onde
não fugiam criminosos que haviam matado sem intenção, mas sim bandidos profissionais,
muitos dos quais se dedicavam à caça de vidas indígenas. Ainda que existam também relatos
de pessoas que se regeneravam, é para a casa daqueles que acreditavam em tal regeneração
que tais criminosos deveriam ser enviados, ou seja, para a corte monárquica, ou, na época
contemporânea, das vilas pobres para Brasília ou para os condomínios da intelligentsia nacio-
nal.
303
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...
304
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
1
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Especialista
em História Cultural pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP); Mestrando em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2
Raul Glaber, Les cinq livres de ses histoires (900 – 1044), ap. DUBY, G. O Ano Mil. Lisboa:
Edição 70, p. 179-80 e 192.
305
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
3
Ibid.
4
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São
Paulo: Editora da UNESP, 1997.
5
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
306
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
O que se percebe nos estudos sobre a Alta Idade Média é uma proble-
matização das pesquisas, dos questionamentos feitos sobre a realeza e sua
natureza. Deixou-se de lado aquela visão sobre os “reinos bárbaros” como
simples ocaso e decadência da civilização romana para avançar na compre-
ensão de sua estruturação. Assim sendo, hoje esses reinos são considerados
pelos historiadores como construções institucionais muito bem elaboradas,
sendo que muito da discussão atual gira em torno da própria noção de Es-
tado para esse período – ainda que controversa; o que até bem pouco tempo
atrás era um termo inaceitável6. A partir desse único exemplo já se pode
vislumbrar a dificuldade de estabelecimento de termos e conceitos para esse
período da história dos francos na Idade Média.
Surge-nos um questionamento, que acreditamos necessário: o que
poderia ter causado esse interesse e essas novas discussões, ocasionando
essa “guinada historiográfica”? Desde finais do século XIX, a documenta-
ção sobre o período se mantém praticamente inalterada, haja vista a escas-
sez de fontes para a época. Portanto, não foram descobertas documentais
nem arqueológicas que ocasionaram a retomada das discussões e essas no-
vas concepções que vêm sendo discutidas na atualidade. O que os historia-
dores hoje em dia veem em relação ao período é que o conhecimento sobre
ele foi produzido por historiadores que estavam ligados a análises próprias
de seus contextos – um pressuposto básico, para a historiografia –, relacio-
nadas muitas vezes às políticas fortemente engajadas com o mesmo contex-
to, onde ressaltamos, por exemplo, a escola positivista no século XIX. Des-
sa forma, o que se discutiu, muitas vezes, foi fruto de tendências ideológi-
cas e construções historiográficas dos pesquisadores do século XIX e XX.
Portanto, nada mais adequado do que uma retomada da história política a
partir de novos questionamentos, novas análises sobre a mesma documen-
tação, novos parâmetros de pesquisa e discussão. E, para que isso seja feito,
é necessário que não apenas sobre o período medieval, mas sobre toda a
produção historiográfica, se pense o político, se saiba da necessidade das
pesquisas sobre as concepções políticas e suas diversas nuances dentro de
suas respectivas sociedades.
6
Podemos salientar uma obra para essa discussão, como: SILVA, Marcelo Cândido da. A realeza
cristã na Alta Idade Média: os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (sécu-
los V-VIII). São Paulo: Alameda, 2008. Nessa obra, que é a publicação da tese de doutoramen-
to do autor, defendida na França, aparece, principalmente na Introdução, uma excelente dis-
cussão historiográfica, incluindo a utilização do conceito.
307
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
7
DUBY, Georges. A era do feudalismo: guerreiros e camponeses: os primórdios do crescimento
econômico europeu do século XII. Lisboa: Editorial Presença, 1980, p. 178.
308
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
309
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
8
GUIZOT, François. Histoire de la civilisation en Europe. Paris, 1868.
9
MENDONÇA, Sônia Regina de. O mundo carolíngio. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 66.
10
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, s. d., p. 450.
310
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
dentro dos seus territórios, sem a participação real. Esse é um dos motivos
que levaram ao que ele denominou de “desmembramento feudal”11, com
uma maior incidência da violência dentro da sociedade franca no período
alto-medieval.
A violência era, para Bloch, uma característica constante, graças aos
diversos ataques entre os nobres, desordem social, carência de Estado, como
o que havia existido durante a dinastia carolíngia. Os poderes da realeza se
mostravam ineficazes, tanto que a Igreja formou um grupo que empreen-
deu esforços “espontâneos”, como a reunião em concílios, segundo o histo-
riador francês, para a organização desta ordem que era almejada pelos mem-
bros da sociedade. O corpo eclesiástico tinha, portanto, a função de prote-
ção aos mais fracos, de acordo com as normas canônicas. Assim, em meio
a esse contexto histórico, a instituição eclesiástica começa a se reunir para
discutir algumas normas que deveriam reger a sociedade: eram os concílios
da paz de Deus. Para Bloch, o período no qual houve a mudança para a
dinastia capetíngia, sucessora dos carolíngios, ascendendo ao poder (entre
os séculos X e XI)12, não foi marcado por uma preocupação por parte da
realeza com a crescente tomada de medidas por parte da Igreja, na tentati-
va de assumir “missões justiceiras dentro do seu território”13. Portanto, a
Igreja e os nobres locais mostravam a tendência de se apoderarem das tare-
fas reais. Isso foi caracterizado por Jean-François Ganshof, em seu livro
Qu’est-ce que la féodalité?, – em uma obra célebre e reeditada dezenas de ve-
zes, em vários idiomas – como uma desagregação da ordem política, de-
monstrando, assim, uma “falência do poder carolíngio”14.
Um ponto-chave: em célebre artigo de Georges Duby15, denominado
Recherches sur l’évolution des institutions judiciares pendant le Xe et XIe siécle
dans le sud de la Bourgogne, publicado em meados da década de 40, o histori-
ador discute as mudanças das instituições judiciárias entre os séculos X e
11
Ibid.
12
É importante salientar que a Dinastia Capetíngia estende-se até o século XIV; por isso a neces-
sidade veemente de ressaltar que o período sobre o qual este texto se debruça é o início da
dinastia, na passagem do século X para o XI.
13
“Com exceção de Roberto, o Piedoso, que reuniu grandes assembleias para nelas fazer jurar a
paz, os Capetos não parecem ter-se preocupado com instituições que consideravam, talvez, aten-
tatórias contra a sua própria missão de justiceiros” (DUBY, op. cit., p. 458).
14
GANSHOF, Jean-François. Qu’est-ce que la féodalité? Bruxelles, 1944, p. 47.
15
DUBY, Georges. Recherches sur l’évolution des instituitions judiciaires pendent le Xe et le
XIe siècle dans le Sud de la Bourgogne. Le Moyen Age, v. 52, n. 3-4, p. 149-194, 1946, e v. 53, n.
1-2, p. 15-38, 1947; publicado posteriormente em Hommes et structures du Moyen Age: recuil
d’articles. Paris: Mouton Éditeur, 1973, p. 7-60.
311
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
XI. É importante ressaltar que seu texto é uma análise de caso, num local
específico que é a região do Mâconnais, a partir de documentação clunia-
cense, incluindo os escritos do historiador Raoul Glaber, monge dessa or-
dem – tema frequente de pesquisas de Duby e fonte para sua pesquisa de
doutoramento nesse período. Para Duby, anteriormente à passagem do
milênio, podemos encontrar a queda do sistema carolíngio, “simples e coe-
rente”16, e o advento de uma concepção “confusa” da função judiciária,
determinada, pois, pelas relações pessoais dos nobres e resoluções de con-
flitos a partir de práticas privadas. A prática judiciária passa, portanto, de
um caráter público, que era da realeza, para um caráter privado de funcio-
namento, assumido pela instituição da Igreja e pela nobreza17. Duby utili-
za-se dessa terminologia descrita, por mais questionada que possa parecer
aos historiadores. Mais uma vez, considero importante salientar que uma
discussão a ser posta é o fato dessa historiografia considerar o “caráter pú-
blico” apenas pelo fato de partir da instituição real. Essa percepção, fica
claro em minhas análises e percepções nas leituras sobre essas obras de
importante conhecimento para quem se dispõe a estudar o período, deve
ser colocada em questionamento ao longo de uma pesquisa.
A análise salienta que a diminuição, o declínio do poder real aparece
como uma das características de formação da “civilização feudal”, deixan-
do de lado aquele período do Império Carolíngio que tinha características
baseadas na antiga organização ainda de origem romana. Com o contexto
europeu dos anos 60, o historiador recorre às análises estruturalistas18 (ten-
dência também expressa na análise de Robert Boutruche19), nas quais vigora
a ideia de que, com a descentralização do poder real e o aparecimento de
vários núcleos de poder (células de poder), podemos notar uma tripartição
social específica e delimitada20. Tal análise resultou na famosa trifuncionali-
dade exposta nas pesquisas de Duby sobre as três ordens (oratores, bellatores
e laboratores)21, fundamentadas no imaginário medieval.
16
Ibid., p. 7.
17
Duby conclui que “desormais la curia est formée essentielement de deux éléments. Les fami-
liers du comte, son fils, la comtesse, des mistériaux, en particulier le prévôt de Mâcon, consti-
tuient un noyau permanent qui confere au tribunal un caractere nettement prive, familial même”
(ibid., p. 10).
18
DUBY, Georges. La société aux XIe et XIIe siècles dans la region mâconnaise. Paris, 1953.
19
BOUTRUCHE, Robert. Seigneurie e féodalité. Paris, 1968.
20
Para maiores informações sobre o tema, ver: DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do
feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982 (Colecção Nova História); ID., 1980.
21
DUBY, 1982.
312
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Concepção mutacionista
Ainda que Duby não possa ser considerado “mutacionista”, pelo fato
de não ter se utilizado do termo em suas primeiras análises, suas ideias
serviram como fundamento para a ascensão de uma nova problemática:
teria existido uma “mutação feudal” após a tentativa de organização públi-
ca dos carolíngios e a administração de seus sucessores, os capetíngios?
Jean-Pierre Poly e Éric Bournazel deram a seu texto o nome de La mutation
féodale22, no qual defenderam a tese de que a sociedade do século X sofreu
uma mudança social de ordem até então nunca vista. Essa análise também
é defendida por historiadores como Pierre Bonnassie, no seu livro La Cata-
logne du milieu du Xe à la fin du XIe siècle23, e por Guy Bois, na obra La muta-
tion de l’an mil24.
A realeza carolíngia, com sua característica de uma organização que
visava à administração pública da sociedade em meio àquela “anarquia”
que remetia à época das “invasões bárbaras” da sociedade, nos séculos V e
VI, desaparecera dando origem à dinastia dos capetíngios, a qual diferia
das condições organizacionais, dos meios de estruturação política feita pe-
los seus antecessores – os carolíngios. As lutas entre os nobres presentes no
espaço do Reino dos Francos fizeram com que aumentasse a insegurança
geral25. As tensões e conflitos desse período nos chegaram pelos “olhos da
Igreja”, já que foram os monges que nos legaram a maior parte da docu-
mentação conhecida até hoje. Estes textos, segundo Poly e Bournazel, nos
mostram que bispos, arcebispos e mais alguns condes iniciaram um movi-
mento de organização social para, em concílios, tentar restabelecer a paz.
Dessa forma, para Poly e Bournazel, a formulação dos códigos feitos pelos
concílios da Paz de Deus e posteriormente a Trégua de Deus, com suas
sucessivas reuniões e formulações de documentos com regras básicas, fo-
ram iniciativas conjuntas da Igreja e dos condados francos a fim de objeti-
22
POLY, Jean-Pierre; BOURNAZEL, Eric. La mutation féodale: Xe – XIIe siècles. Paris: Presses
Universitaires de France.
23
BONNASSIE, Pierre. La Catalogne du milieu du Xe à la fin du XIe siècle. Publications de l’Université
de Toulouse-Le Mirail, 1976.
24
BOIS, Guy. La mutation de l’an mil. Paris: Fayard, 1989.
25
Os autores explicitam que “[l]e mouvement pour la Paix de Dieu avait commencé à la fin du
Xe siècle dans le Midi; la royauté carolingienne, considerée ici comme seule legitime, avait
disparu; les luttes entre princes territoriaux, en accroissant l’insécurité générale, favorisaient
une dissociation plus profonde des structures publiques. Quelques évêques méridionaux et
certains princes se réunissent alors pour rétablir la paix” (ibid., p. 157).
313
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
Percepção antimutacionista
Uma corrente contrária, iniciada por volta dos anos 1990, principal-
mente com Dominique Barthélemy, vem afirmando que devemos repensar
este momento da Alta Idade Média / Idade Média Central. O que ele de-
fende é que se deve colocar novamente em discussão as afirmações dos
historiadores que até então defenderam a “mutação”. No seu livro A Cava-
26
GUERREAU, Alain. O feudalismo: um horizonte teórico. Porto: Edições 70, 1982.
314
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
27
BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Cam-
pinas: Ed. da Unicamp, 2010.
28
BARTHÉLEMY, Dominique. La mutation féodale a-t-elles eu lieu? (note critique). Annales
ESC, n. 3, p. 767-777, maio-jun. 1992. Posteriormente, sairia publicado um livro com o mesmo
nome da “nota crítica” que havia sido publicada na Annales (vide referências bibliográficas).
315
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
29
Ver referência da nota 25.
316
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
30
GUERREAU, 1982, mais precisamente o capítulo 6, p. 213-257.
31
O debate publicado na Past & Present pode ser observado em: <http://past.oxfordjournals.org/
content/155/1/196.citation>. Acesso em: 25 out. 2012.
32
LAURANSON-ROSAZ, Christian. Le débat sur la “mutation féodale”: état de la question.
Disponível em: <http://www.droit.u-clermont1.fr/pages_statiques/Recherche/CentreRecher-
che/...>. Tradução nossa. Acesso em: 25 out. 2012.
317
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
33
Fondazione Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo: <http://www.cisam.org/index.php>.
Acesso em: 25 out. 2012.
34
GEARY, Patrick. Vivre en conflit dans une France sans État: typologie des mecanismes de
règlement des conflits (1050-1200). Annales ESC, v. 5, p. 1107-1133, 1986.
35
FOURACRE, P. Placita and the Settlement of Disputes in Later Merovingian Gaul. In: DA-
VIS, W.; FOURACRE, P. The Settlement of Disputes in Early Medieval Europe. Cambridge, 1986,
p. 23-44.
36
WOOD, Ian. Disputes in Late Fifth and Sixth-century Gaul: Some Problems. In: DAVIES;
FOURACRE, 1986, p. 7-22.
37
LE JAN, R. La vengeance d’Adèle ou la construction d’une legende noire. In: BARTHÉLE-
MY, D.; BOUGARD, F.; LE JAN, R. La vengeance, 400-1200. Paris: École Française de Rome,
2006, p. 325-340.
38
Actes des Congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Pu-
blic. Disponível em: <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/revue/shmes>.
Acesso em: 25/10/2012.
39
BARTHÉLEMY; BOUGARD; LE JAN, 2006.
318
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
(futuro papa Silvestre II), que o compele à escrita de uma obra de História,
a qual foi estruturada entre o período de 882 a 998. A partir deste feito
surgem os Quatre livres d’histoire (991-998), que nós conhecemos apenas como
Histoires, obra essa que foi dedicada ao próprio autor da encomenda, Ger-
bert. Um importante dado é que este texto foi descoberto e editado apenas
no século XIX (1833) pelo estudioso George-Henri Pertz. O texto, em seu
conjunto, compõe uma importante fonte para o estudo dos séculos IX e X
no Reino dos Francos.
O texto, segundo Pertz, foi escrito durante três anos (995-998) e foi
desta maneira distribuída por Richer: entre os anos 995 e 996, o monge
escreveu o livro I e mais 78 capítulos do livro II, o que conduz o leitor até o
ano de 948. Entre 996 e 998, redigiu o fim do livro II mais os livros III e IV,
que por sua vez compreendem os anos posteriores a 948 até o ano de 995.
Para a escrita de sua obra, Richer expõe suas intenções, que partem da
análise e narração dos acontecimentos relativos às guerras travadas pelos
francos, além das causas de problemas que correspondem a este período. O
monge utiliza-se, basicamente, da obra de Flodoard, que descreve os acon-
tecimentos até o ano de 888. Obra essa tão importante que será a base dos
escritos de Richer durante a composição do seu livro de Histórias, como ele
mesmo salienta em seu prólogo40. Para Pertz, podemos caracterizar a obra
da seguinte forma: a primeira e segunda partes correspondem ao período
em que há um diálogo com os Anais de Flodoard e a terceira parte ao perí-
odo posterior ao ponto onde aquele cronista parou41. Outro historiador, H.
D’Arbois de Jubainville, vai apontar ainda que a primeira e a segunda par-
tes da obra de Richer são adições e complementos ao texto de Flodoard42.
A terceira parte da obra de Richer se inicia a partir do capítulo XX do
livro III e compreende os anos de 969-995, que referenciam o fim do governo
de Lotário, o governo de Luís V e o de Hugo Capeto. Para tanto, utiliza-se
dos arquivos do Sínodo de Mouzon, organizado por Gerbert, além dos docu-
40
Para uma melhor análise sobre a escrita da história nesse período, principalmente a partir dos
relatos de Richer de Reims e Raoul Glaber, ver: BASSI, Rafael José. Por fazer História: histori-
ografia medieval nos séculos X e XI no Reino dos Francos: Raoul Glaber e Richer de Reims.
Monografia de Especialização em História Cultural, apresentada na Universidade Tuitui do
Paraná.
41
PERTZ, G-H. Notice Critique. Richer: Histoire de son temps. Paris: Chez Jules Renouard,
1845, p. xxvii.
42
JUBAIVILLE, H. D’Arbois. L’Historien Richer et le siége de Melun em 999. Disponível em:
< h t t p : / / w w w. p e r s e e . f r / w e b / r e v u e s / h o m e / p r e s c r i p t / a r t i c l e / b e c _ 0 3 7 3 -
6237_1859_num_20_1_445644>. Acesso em: 25 out. 2012.
319
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
mentos de Saint-Remi de Reims. Isso faz com que componha com seu escrito
uma grande fonte para o estudo dos governos destes três reis, que caracteriza
o recorte cronológico proposto para nossas análises.
Uma contribuição que pretendemos dar com este texto passa por uma
análise baseada em pressupostos estabelecidos, entre outros autores, por
uma concepção problematizada por nós a partir de Pierre Bourdieu43. Sali-
entamos que utilizamos alguns pressupostos, adequando-os, na maior par-
te das vezes, nas nossas necessidades teóricas de análise. Cremos que a dis-
cussão do conceito de poder simbólico pode contribuir para o entendimento
das relações de poder na passagem da dinastia carolíngia para a dinastia
capetíngia, no Reino dos Francos. Pensando a partir da concepção de cam-
po, podemos estabelecer o conceito como um campo de forças, em que há
uma imposição aos grupos sociais; mescla-se a isso a ideia de campo de
lutas, onde estas acontecem de acordo com a posição dos personagens polí-
ticos dentro de uma hierarquia social. Assim sendo, podemos analisar a
participação da instituição eclesiástica e do próprio grupo da nobreza e
suas relações com a realeza que se estabelecia, ou pelo menos intentava,
com sua subida ao reino.
Observemos o excerto que se segue, que se inicia com a aceitação do
nome de Hugo Capeto para a função real. O texto que é posto parte do
relato do historiador Richer de Reims sobre a coroação de Hugo Capeto e,
por consequência, a mudança dinástica ocorrida no Reino dos Francos nos
anos que antecediam a passagem do milênio, a saber, 987 d.C.:
[12] Emitida essa sentença, e sendo ela por todos aprovada, o duque [Hugo],
com o consenso de todos, foi elevado ao reino e, coroado a Noyon pelo
arcebispo e os demais bispos, foi proclamado nas calendas (primeiro dia) de
junho rei dos gálicos, dos bretões, dos normandos, dos aquitânios, dos go-
dos, dos hispânicos e dos guascões. E assim circundado pelos príncipes do
reino, segundo costume, emitiu decretos e estabeleceu leis, ordenando e dis-
tribuindo tudo com grande sucesso, e ele, por corresponder à própria fortu-
na, encorajado do grande sucesso dos eventos favoráveis, se dedicou a mui-
tas obras de piedade. E para deixar um herdeiro certo no reino depois da
própria partida dessa vida, se conciliou com os príncipes e, tendo com eles
maturado uma decisão, convocou o arcebispo de Reims à cidade de Or-
léans44; primeiro mediante embaixadores e depois de outras pessoas, sobre o
propósito da elevação do próprio filho Roberto. E quando o arcebispo lhe
respondeu que não se podia ter legitimamente criado dois reis no mesmo
ano, ele [Hugo] de súbito exibiu uma carta enviada pelo duque da Espanha
43
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
44
Hugo estava em Orleans em 25 de agosto de 987.
320
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
45
Richeri Historiarum, liv. IV, cap. 12-13.
321
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
46
Alguns apontamentos sobre a utilização da púrpura nos cerimoniais de coroação podem ser
vistos em BASSI, Rafael José. Esquecer os favoritismos e os ódios: Anna Comnena e a historiogra-
fia bizantina (séculos XI e XII). Trabalho monográfico para obtenção do título de Bacharel em
história pela UFPR. Disponível em: <http://www.historia.ufpr.br/monografias/2009/
2_sem_2009/rafael_jose_bassi.pdf>. Observar, particularmente, o capítulo II: Anna Comne-
na, historiadora medieval.
47
BOURDIEU, 2001, p. 7-8.
48
Sobre uma discussão da função exercida pelo rei como juiz e como legislador, problematizan-
do as ideias de Weckmann, ver: ALMEIDA, C. C. de. Considerações sobre o uso político do
conceito de justiça na obra legislativa de Afonso X. Anos 90, Porto Alegre, n. 16, p. 13-36,
2001/2002.
322
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
49
BLOCH, op. cit.
50
KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
323
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)
51
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocra-
cia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
324
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
325
326
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Irma A. G. Bueno1
1
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2
SANTOS, D. A. dos. Imagens de mulheres nos reinos ibéricos de Leão, Castela e Portugal
(1250-1350). In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS I., 1995,
Campinas. Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais. Campinas: Humanitas Publica-
ções FFLCH, p. 157-160, aqui p. 157.
3
KLAPISCH-ZUBER, C. A mulher e a família. In: LE GOFF, Jacques (Org.). O homem medie-
val. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 193-208, aqui p. 205.
327
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval
4
DUBY, G. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
5
POWER, E. Medieval Women. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 11.
328
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
O uso do Direito como fonte para este tipo de trabalho pode ser de
grande valia para o historiador, pois, mesmo sendo elaborado por um legis-
lador ligado diretamente ao monarca e, por óbvio, atendendo aos interesses
deste, o Direito não deixa de ser um instrumento de regulação e mudança
social, bem como um reflexo – realístico ou utópico – da sociedade que o
criou e a qual pretende reger.
É oportuno lembrar, portanto, as palavras de Paulo Dourado de Gus-
mão quando este afirma que uma das funções mais importantes do Direito,
seja em qual época for,
é, pois [ser] a “resposta” dada pela sociedade ou pela autoridade à neces-
sidade de normatização exigida por uma situação histórico-social. [Desse
modo], reconhecemos influir na “resposta” (norma) os valores e tradições
históricas da cultura ou civilização em que se encontra integrada a socie-
dade para qual o direito se destina. Igualmente as necessidades históricas
e os interesses exercem também pressão sobre a “resposta” (norma), pois
não nos devemos esquecer ser o Direito obra humana, destinando-se a
homens6.
6
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 40.
7
HECKER, Eugene A. A Short History of Women’s Rights: From the Days of Augustus to the
Present Time: With Special Reference to England and the United States. Charleston: BiblioLi-
fe, LLC, p. 103.
329
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval
8
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.).
Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002. v. 1, p. 333-351, aqui p. 334.
9
REILLY, Bernard F. The Medieval Spains. Cambridge, UK: Cambridge Univeristy Press, 2006,
p. 37. A tradução desta citação, assim como de todas as demais ao longo do texto, que não
tenham sido mantidas na língua da publicação citada, são minhas. No original se lê: “[...] the
basis of the Law which was later adjudicated in the Christian Mozarab communities by their
own judges and counts when they had passed under the political dominion of the Muslim.”
10
REILLY, 2006, p. 37; SCOTT, S. P. The Visigothic Code (Forum judicum). Boston: Boston Book
Company, 1910. Disponível em: <libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm>. Acesso em: 03 fev.
2011.
330
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Juzgo”11, o qual foi uma das fontes utilizadas por Afonso X na elaboração
de sua legislação.
As obras legislativas afonsinas, por sua vez, são consideradas as obras
jurídicas mais importantes do período medieval, além de ser a maior com-
pilação normativa desde Justiniano. Além disso, durante o período em que
reinou Afonso, o Sábio, estava em andamento o processo de Reconquista12
da Península Ibérica e, em razão disso, ocorria a ampliação dos valores e
preceitos cristãos católicos nesta região.
Para a criação destas, Afonso levou especialistas em direito romano e
canônico para sua corte, além de juristas versados no direito consuetudiná-
rio castelhano e leonês e nas leis do Fuero Juzgo, o que apontava a reminis-
cência da identidade visigótica na Península mesmo com todas as altera-
ções pelas quais esta havia passado ao longo dos séculos13.
Para realizar este trabalho, todas as leis que citam a mulher foram
inventariadas e separadas em três grupos. Um para aquelas que apresentas-
sem características que se encaixassem nos modelos femininos baseados
em Eva, ou seja, os negativos. Outro para aquelas que se apresentassem no
modelo positivo, cuja figura bíblica inspiradora é Maria. E, em um terceiro
11
O’CALLAGHAN, Joseph. A History of Medieval Spain. London: Cornell University Press,
1983, p. 65. No original se lê: “In the thirteenth century, on the order of Fernando III of
Castile, the Liber Iudiciorum was translated into Castilian under the title Fuero Juzgo.”
12
Utilizo o termo “Reconquista” no mesmo sentido empregado por Gabriel Jackson, ou seja, de
que o domínio muçulmano modificou completamente a organização social e modo de vida
das regiões por eles ocupadas em relação à realidade existente durante o período visigótico;
“pero las crónicas medievales conservaron el recuerdo de los tiempos romanos y visigodos, la
mayor parte de la población de Andalucía hablaba un dialecto romance, y la Iglesia había
conseguido su firme propósito de inculcar en la población de los reinos del norte la idea de que
toda la Península debía de estar bajo el gobierno cristiano. Tanto la conciencia historica vigen-
te en el siglo XIII como la situación étnica y linguística permiten [portanto] calificar como
‘reconquista’ este avance cristiano” (JACKSON, Gabriel. Introducción a la España Medieval.
Madrid: Alianza Ediciones Del Prado, 1974, p. 89).
13
JIMENEZ, Manuel Gonzales. Alfonso X el Sabio: 1252-1284. Burgos: Editorial La Olmeda,
S.L., 1999, p. 344-345; LOPES, J. R. L. O Direito na História: lições introdutórias. 2. ed. São
Paulo: Max Limonad, 2002, passim; RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1997, p. 62-63; VARELA, Laura Beck. Breve panorama sobre a obra jurídica do
reinado de Afonso X de Castela. In: MACEDO, José Rivair de (Org.). Anos 90: estudos sobre a
Idade Média peninsular. 16. ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2001/2002, p.
125-140, aqui p. 126-127; VALDEON, Julio. Alfonso X, a Bibliographical Sketch of His Reign.
Revista de Occidente, v. 13, p. 15-28, aqui p. 21-22, 1984. O direito romano referido aqui é base-
ado nas Compilações Justinianas reunidas no Corpus Iuris Civili, publicadas em 533. Contudo,
o direito utilizado como base por Afonso não vem diretamente do texto justinianeu, mas sim
das interpretações e glosas feitas destes na Universidade de Bolonha a partir do século XI.
331
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval
grupo, foram inseridas as leis “neutras”, ou seja, aquelas que citam a mu-
lher, mas não fazem um juízo de valor sobre ela.
Visto que tais normas seguem os moldes da tradição do Direito ro-
mano, baseado na jurisprudência, na casuística, o detalhamento das situa-
ções presentes em tais leis permite que haja a previsão de mais de uma
possibilidade de sanção ou de determinação de conduta para cada situa-
ção. Isso faz, assim, com que, em alguns casos, ocorra a existência de carac-
terísticas tanto do modelo positivo de representação da mulher, como do
negativo ou do neutro na mesma lei.
Exemplo disso é a lei VIII, do terceiro livro, título I da Leges Visigotho-
rum. Ao descrever a situação de irmãos responsáveis por uma irmã solteira
e com um pretendente para casar, pode-se perceber a mulher que deve ser
protegida de parentes gananciosos, como aquela que é leviana e desobede-
ce aos seus responsáveis:
Si fratres nuptias puelle differant, aut si puella inpudice nuptias presumat
Si fratres nuptia puelle sub ea conditione suspendant, ut ud maritum illa
confugiens, iuxta legem portionem inter fratres usos de bonis parentum uon
possit accipere, et bis aut tertio removerint petitorem: puella que, fratrum
callidiatate prespecta, maritum natilibus suis equalem crediderit expeten-
dum, tunc integram a fratribus, que ei de parentum hereditate debetur, perci-
piat portionem. Quod si rursum nihil fratres contra sororem meditentur ad-
versum et idcirco morentur, ut sorori provideant digniorem et illa, honesta-
tis sua oblita, persone sue non cogitans statum, ad inferiorem maritum deve-
nerit, porttionem suam, sive divisam sive non divisam, quam de facultate
parentum fuerat consecutura. In fratrum vero et sororum vel aliorum paren-
tum hereditatem ingrediendi ei concedimus potestatem14.
14
“Se irmãos adiam o casamento de sua irmã ou se ela contrai núpcias impróprias.
Se irmãos de uma moça adiam o casamento dela, com a expectativa de que ela se refugie com
o marido [pretendido], conforme a lei perca a parte da herança de seus pais que lhe cabe, e eles
repudiem o pretendente dela duas ou três vezes, a menina, assim que o dolo dos irmãos ficar
aparente, acreditar que o marido seja seu igual em nascimento, deve receber a parte da heran-
ça de seus pais que lhe cabe. Mas se, por outro lado, seus irmãos não fizerem nada contra o
direito da irmã, e só atrasarem para providenciar a ela um marido mais digno, e ela, esquecen-
do sua honra, e ignorando seu status, se casar com homem de um nível inferior ao seu, perca
ela aquilo que deveria herdar de seus pais, quer a herança já tenha sido dividida ou não, mas
ela ainda terá o direito de herdar de seus irmãos e irmãs, ou de qualquer outro parente.”
332
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
333
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval
334
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
lidade ou se essa era uma tentativa de alterar o ponto de vista vigente. Afi-
nal, a legislação não é um mero retrato das condições existentes e pode
também contribuir para alterar alguns comportamentos, de acordo com a
vontade e/ou necessidade do legislador.
Outra explicação para isso é que grande parte das leis foi escrita utili-
zando o gênero de declinação gramatical neutro18, como é possível obser-
var na lei XXXI, do livro dois, título I:
Quieumque ingenuorum regiam iussionem contemnere invenitur aut taliter
se egisse probatur, quod sub calliditatis aliqua cinctione proponat et dicat ean-
dem iussionem se nec vidisse nec accepisse dum calliditatis huius fraus mani-
feste patuerit, si nobilior persona est, tres libras auri fisco persolvat [...]19.
18
O latim, assim como o inglês e o alemão, possui gênero feminino, masculino e neutro.
19
“Quem que é livre (pessoa livre) que tenha sido condenada por desconsiderar um chamado/
mandato/decreto real ou que tenha sido provado que seu agir dissimulado ficou aparente/
claro e que diga o contrário da verdade (minta), [dizendo que] não viu nem recebeu o chama-
do/mandato/decreto se é pessoa nobre, pague três libras de outro ao tesouro […].”
335
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval
20
Anselmo da Cantuária, apud JARDIM, Rejane Barreto. Ave Maria, Ave Senhora de todas as
graças!: um estudo do feminino na perspectiva de gênero na Castela do século XIII. 2006. 236f.
Tese (Doutorado) – PUCRS, Porto Alegre, 2006, p. 41.
336
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Y el primero que maese Nicolás le dio en las manos fue Los cuatro de Amadis de
Gaula, y dijo el cura: – Parece cosa de misterio ésta.2
1
Mestrando em História, UFRGS.
2
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edición del IV Centenario.
Alfaguara, 2004. parte I, capítulo VI, p. 61.
3
Esta definição nos é dada a partir de GERVAIS DE TILBURY. Otia Imperialia, III, Prólogo, ap.
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 98-99; LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval.
Lisboa: Edições 70, 2010, p. 19. (Coleção Lugar na História, nº 24).
4
PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário: o estudo da Idade Média. In: LE GOFF,
Jacques (org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 400-406.
337
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
5
SCHMITT, Jean-Claude. Problemas do mito no Ocidente medieval. In: SCHÜLER, Donaldo;
GOETTEMS, Míriam Barcellos (org.). Mito ontem e hoje. Porto Alegre: Editora da Universida-
de / UFRGS, 1990, p. 49-53.
6
LE GOFF, 2010, p. 17-19. A “terceira fase” (séculos XIV-XV), superficialmente categorizada
como a “estetização do maravilhoso” devido aos progressos na ornamentação, ao processo
literário e artístico e ao jogo estilístico, é tão superficialmente analisada que necessita de mais
investigações, até para o caso francês.
7
KÖHLER, Erich. L’aventure chevaleresque: Idéal et réalité dans le roman courtois. Paris: Éditi-
ons Gallimard, 1984, ap. LE GOFF, 2010, p. 18.
338
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
ção do cavaleiro. Pois não é sem razão que este mesmo maravilhoso terá
um papel tão importante nos romances corteses de cavalaria a partir do
século XII. Estes textos rebuscam em tradições de origens célticas e míticas
temas e motivos, formando a chamada “matéria da Bretanha”. Mostra-nos
Heitor Megale que estas histórias de cavaleiros andantes surgiram a partir
da transmissão oral da lírica trovadoresca provençal. Alterados e mutilados
por diversos narradores – o que torna difícil o trabalho de precisar suas
origens – os textos estabelecem um riquíssimo intercâmbio de heróis e mi-
tos das lendas celtas8. Transpostos para a via escrita no último quartel do
século XII, como nas tramas de Chrétien de Troyes, o cavaleiro idealizado
segue o modelo do fine amors, o amor cortês. Designando ao mesmo tempo
um gênero e a língua vulgar em que foram escritos, os roman arturianos
“exalam um perturbador perfume de maravilhoso pagão, que a posterior
cristianização de alguns de seus temas não dissipa totalmente”9.
8
MEGALE, Heitor. A demanda do Santo Graal: das origens ao códice português. Cotia: Ateliê,
2001, p. 27-50.
9
FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático
do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006. v. 1, p. 196-198.
10
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. São Paulo: Hucitec, 1996, p.
659-661.
11
É preciso lembrar que desde muito antes, no tempo dos visigodos, havia uma literatura latina
na Península Ibérica, como os textos de Bráulio de Saragoça, Leandro de Sevilha, Isidoro de
Sevilha e Martinho de Braga, entre outros. Segundo Curtius, a poesia latina da Idade Média,
contudo, penetrou na Espanha por etapas. Uma onda chegou até 1230, com Berceo; outra até
1330, com Juan Ruiz Arcipreste de Hita em seu Libro de buen amor, que importa a erótica de
Ovídio e de suas refundições medievais; a terceira com Alfonso da Torre. Torre, que, em 1440,
escreveu uma enciclopédia com roupagem alegórica sobre as sete artes liberais, a Visión delec-
table, inspirada em Marciano Capela e em Alain de Lille (ibid., p. 549-555).
339
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
mento de uma literatura peninsular. Já para Paul Zumthor, que traça suas
considerações a partir da oralidade, o motivo para este desenvolvimento
tardio foram as guerras de Reconquista, que ocuparam suficientemente a
nobreza ibérica até o século XIII12. Já Henry Thomas, em um livro clássi-
co que lançou as bases para o estudo deste gênero narrativo na península,
ressalta a importância da unificação e pacificação da Espanha sob os Reis
Católicos a partir de 1469, que produzira uma vida cortesã e favoreceu o
aparecimento de uma série original de novelas. Segundo o autor, estas
conhecem grande difusão principalmente pela (re)descoberta da arte de
imprimir com caracteres móveis (os tipos, pela imprensa), possibilitando
sua rápida reprodução13. A partir de meados do século XV, nascem histó-
rias de características e formas diversas, como Tirant lo Blanc, El Caballero
Cifar, El Baladro del Sabio Merlín, e os dois ciclos mais consagrados, dos
Amadíses e dos Palmerins, cujos fólios estão recheados de personagens, lu-
gares, objetos, façanhas e temas maravilhosos herdados do repositório de
imaginário céltico e da matéria da Bretanha14. A partir do século XVI,
este universo mental será ainda mais expandido pela chegada à América.
Obra mais difundida na península e fora dela deste gênero cavalei-
resco, o Amadis de Gaula tem especiais manifestações do “sobrenatural”
durante toda a trama: veem-se as aparições de Urganda la Desconocida,
vinculadas ao universo feérico; a magia de Arcaláus el Encantador, com
seus auxiliares; o mundo de Briolanja; a ilha encantada de Insula Firme; o
anão que entrega a carta de Oriana a Amadis; o gigante Gandalác, que se-
questra Galaor, entre tantos outros monstros; os sonhos e as profecias; os
lugares e objetos mágicos (espadas e anéis)15. Considerando-a a partir de
um sentido estrutural, um dos maiores estudiosos da obra, Juan Manuel
Cacho Blecua, chega a dizer que, por suas características e sua tradição,
“la aventura [no Amadís] es por esencia maravillosa, [...] una continuada
12
ZUMTHOR, Paul. La medida del mundo: representación del espacio en la Edad Media. Ma-
drid: Cátedra, 1994, p. 207.
13
THOMAS, Henry. Las novelas de caballerías españolas y portuguesas: despertar de la novela cabal-
leresca en la Península Ibérica y expansión e influencia en el extranjero. Madrid: CSIC, 1952.
14
Para um panorama das heranças dos temas maravilhosos nas tramas ibéricas, ver o clássico
trabalho de ENTWISTLE, William J. A lenda arturiana nas literaturas da Península Ibérica. Lis-
boa: INL, 1942.
15
BUENO SERRANO, Ana Carmen; CORTIJO OCAÑA, Antonio. El dominio del caballero:
nuevas lecturas del género caballeresco áureo. eHumanista: Journal of Iberian Studies, v. 16, p.
LV-LXI, 2010.
340
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
16
CACHO BLECUA, Juan Manuel. Introducción. In: Amadís de Gaula, v. I. Edição de Juan
Manuel Cacho Blecua. Madrid: Cátedra, 1987, p. 127 (Colección Letras Hispánicas).
17
MÉRIDA JIMÉNEZ, Rafael Manuel. El “Amadis de Gaula” de Garci Rodriguez de Montal-
vo y la Maravilla Medieval. Disponível em: <http://parnaseo.uv.es/Tirant/
merida_tesis_amadis.htm>. Acesso em: 20 ago. 2011.
18
Amadís de Gaula. Versão de Garci Rodríguez de Montalvo, edição de Juan Manuel Cacho
Blecua. Madrid: Cátedra, 1987, prólogo, p. 217-220 (Colección Letras Hispánicas, v. 1).
19
RUCQUOI, Adeline. “A justaposição de três coroas” e “Uma herança complexa”. In: História
Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995, p. 205-212.
341
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
20
Amadís de Gaula. Versão de Garci Rodríguez de Montalvo, edição de Juan Manuel Cacho
Blecua. Madrid: Cátedra, 1987-1988. 2 v. (Colección Letras Hispánicas).
21
Estes dados de localidade mostram-nos quão grande era a transitoriedade destas obras pelo
espaço ibérico, já no período de suas primeiras impressões. Ressalto o importante estudo de
NEUMAYER, Kristin. Editorial Interference in Amadís de Gaula and Sergas de Esplandián.
In: CORFIS, Ivy A.; HARRIS-NORTHALL, Ray. Medieval Iberia: Changing Societies and
Cultures in Contact and Transition. Woodbridge: Tamesis Books, 2007, p. 136-149.
22
O autor propôs uma delimitação textual ao Amadis primitivo, salientando os parâmetros da
reelaboração de Montalvo em cada um dos quatro livros. AVALLE-ARCE, Juan Baptista.
Amadís de Gaula: el primitivo y el de Montalvo. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
23
Na introdução de sua versão do Amadis, argumenta que é possível que Montalvo tenha nasci-
do antes de 1450, da mesma forma que é seguro dizer que em 1505 já havia falecido. Pertencia
à linhagem dos Pollino, que tinha por costume ser presente e representativa em Medina del
Campo. Todos os aspectos indicam o seu pertencimento à pequena nobreza, da qual faziam
parte não apenas os altos aristocratas, mas cavaleiros, militares, hidalgos e cidadãos honrados,
de acordo com a terminologia da época. “III. La reelaboración de Rodríguez de Montalvo”.
In: Amadís de Gaula, versão de Garci Rodríguez de Montalvo, edição de Juan Manuel Cacho
Blecua, op. cit., p. 72-81.
24
EISENBERG, Daniel; MARÍN PINA, M.ª Carmen. Bibliografía de los libros de caballerías caste-
llanos. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2000.
342
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Justificativas do estudo
Este trabalho insere-se no campo das pesquisas que faço desde 2007
no âmbito dos estudos medievais, orientado pelo Prof. Dr. José Rivair Ma-
cedo, nas quais venho trabalhando com a temática histórica relacionada
aos romances de cavalaria31.
25
Amadis de Gaula. Los Quatro Libros del Esforzado et Virtuoso Caballero Amadís, Hijo del Rey Perion
de Gaula y de la Reina Elisena, versão de 1533. In: Libros de Caballerías. Madrid: Atlas, 1950, p. 1-
402 (Biblioteca de Autores Españoles, tomo XL).
26
Amadis de Gaula. Los quatro libros de Amadis de gaula nueuamente impressos & hystoriados en Seuilla.
Sevilla: Iacobo y Iuan Cromberger, 1526. Disponível em: <http://purl.pt/921>. Acesso em:
07 maio 2011.
27
Sergas de Esplandian, Las. Las Sergas del Muy Esforzado Caballero Esplandian, Hijo del Excelente Rey
Amadis de Gaula. Versão de 1542 e 1588. In: Libros de Caballerías. Madrid: Atlas, 1950, 403-561
(Biblioteca de Autores Españoles, tomo XL).
28
Baladro del Sabio Merlín, El. Edição de Burgos de 1498. Madrid: Miraguano Ediciones, 1988.
Edição digital Proyecto Avalon, 2003.
29
Caballero Cifar, El. In: BUENDIA, Felicidad (org.). Libros de Caballerías españoles. Madrid:
Aguillar, 1954, p. 43-296; Caballero Zifar, Libro del. Códice de Paris. Edição de Manuel Moleiro
e Francisco Rico. Barcelona: Moleiro, 1996.
30
Tirant lo Blanc. Valencia, 1490. Disponível online em: <http://www.tinet.cat/bdt/tirant/>.
Acesso em: 20 set. 2011; Tirante el Blanco. In: BUENDIA, Felicidad (org.). Libros de Caballe-
rías españoles. Madrid: Aguillar, 1954, p. 1053-1731.
31
O projeto de pesquisa, sob a orientação do Prof. Dr. José Rivair Macedo, está sendo desenvol-
vida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, e foi agraciado com bolsa do CNPq no período 2012-2013. Destes estudos anteriores,
além de artigos publicados, defendi em dezembro de 2010 na UFRGS o Trabalho de Conclu-
são de Curso A Saña no Ideal Cavaleiresco Ibérico do Final da Idade Média a partir da Novela “O
Amadis de Gaula”. Porto Alegre, 2010.
343
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
32
DAGENAIS, John; GRER, Margareth R. Decolonizing the Middle Ages. Journal of Medieval
and Early Modern Studies, v. 30, n. 3, p. 431-448, 2000.
33
BYNUM, Caroline W. Wonder. The American Historical Review, v. 102, n. 1, p. 3, 1997 (tradu-
ção livre).
34
MELLO, José Roberto. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992, p. 123.
344
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
35
ZINK, Michel. Literatura(s). In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário te-
mático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2006. v. 2, p. 79-93.
36
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993, p. 15-54 e 265-286; ID. Y a-t-il une “littérature” médiévale? Poétique, Paris, n. 66, p. 131-
139, 1986.
37
GUERREAU-JALABERT, Anita. Histoire médievale et littérature. In: LOBRICHON, Guy;
LE GOFF, Jacques (dir.). Le Moyen Age aujourd’hui: trois regards contemporains sur le Moyen
Age: histoire, théologie, cinéma. Paris: Le Leopard d’Or, 1998, p. 141, ap. MACEDO, José
Rivair. O real e o imaginário nos Fabliaux medievais. Revista Tempo: Revista do Departamento
de História da UFF, v. 9, n. 17, p. 13, 2004.
345
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
38
BYNUM, 1997, p. 3. (Tradução minha).
39
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 2010,
p. 16 (Coleção Lugar na História, n. 24).
40
BYNUM, 1997, p. 15.
346
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
41
Ibid., p. 21.
42
CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 213-217.
43
LE GOFF, 2010, p. 24.
347
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
guntas que a obra respondia em seu tempo, antes daquelas que lhe fazemos
hoje”44.
Oportunas advertências, como a que nos brindou presentemente Domi-
nique Barthélemy. Esta literatura cavaleiresca não necessariamente pode – tam-
pouco pretende – ter sobre os cavaleiros uma influência direta, e nada prova
que ela crie facilmente o desejo de imitar seus personagens. As narrativas pode-
riam estar servindo para diverti-los, oferecer-lhes uma compensação imaginá-
ria àquilo que eles deixam de fazer, como em suas decepções e fracassos: a
idealização cavaleiresca não pode estar dispensando, ou até constrangendo os
cavaleiros reais? No outono de 1191, o cavaleiro Arnaldo de Guines volta de
uma empreitada fracassada na Lorena, em perseguição a condessa de Bou-
logne e seu raptor, da qual ele não pode resgatá-la, assim como nem ela mesma
queria muito voltar. Como cita Barthélemy, “a supor que sejam verdadeiros
modelos destinados a conformar os comportamentos, os seres literários não
são um todo uniforme”45. Trata-se de manter o distanciamento para não apli-
car a noção de ficcional literário ao real. Tendo consciência do terreno, preten-
do – e me permito – adentrar esta zona de possibilidades.
Balanço historiográfico
Reparto esta breve revisão em duas partes. Primeiro, abordarei os
autores que discutem o conceito de maravilhoso, sua utilidade, abrangên-
cia nos estudos medievais e formas de analisá-lo. Na segunda, discutirei as
obras que tratam especificamente do maravilhoso no Amadis de Gaula.
Os estudos do maravilhoso
Os historiadores da primeira metade do século XX tenderam a des-
crever o entusiasmo medieval para o maravilhoso como extrema emotivi-
dade ou credulidade. Levantando questões muito mais profundas do que a
evolução da ciência histórica de seu tempo podia responder, o holandês
Johan Huizinga classificou a Idade Média como excessivamente emocio-
nável, e relacionou isto ao caráter “infantil” que a caracterizaria, dada a
prematura gênese da Europa46. Já o consagrado historiador da primeira
44
ZUMTHOR, 1993, p. 23.
45
BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 461.
46
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 11-45.
348
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
geração dos Anneles Marc Bloch caracterizou a Idade Média como mais
“emocional” do que os tempos modernos47.
De acordo com Todorov48, o “maravilhoso” seria um gênero literário
em que personagens oscilam entre a explicação natural e a aceitação do
sobrenatural como sobrenatural. Os medievalistas criticam a aplicação des-
te conceito às obras da imaginação medieval. Jacques Le Goff contesta-o,
pois esta leitura que pende da explicação à aceitação requer um “leitor im-
plícito”. Para este último, o maravilhoso medieval exclui o leitor implícito e
nos é apresentado através de textos “impessoais” como objetivo. O concei-
to de Todorov me parece de pouca utilidade para a pesquisa, pois o autor se
valeu de contos quase somente dos séculos XIX e XX para construí-lo. To-
davia, a visão de Le Goff me parece supervalorizar o objeto maravilhoso
sobre o contexto ou as visões de mundo particulares.
Francis Dubost, por sua vez, defende que o fantástico medieval de-
corre do horror provocado por todo sobrenatural onde Deus não habita
mais49, e argumenta que é possível utilizar modernas noções críticas de res-
posta e de enquadramento para identificar um medieval “fantástico”. Ou-
tro autor representativo que trabalha com o maravilhoso é Laurence Harf-
Lancner, que pretendeu estudar o sobrenatural feérico, as fadas e as melusi-
nas50, não estabelecendo uma crítica tão representativa para o conceito de
maravilhoso quanto os outros autores citados até então. O crítico literário
russo Vladimir Propp é outro pensador de representatividade nos estudos
do maravilhoso. Recolheu vários contos tradicionais, estabelecendo uma
estrutura em 31 funções, que poderiam ser agrupadas em sete esferas: o
agressor; o doador; o auxiliar; a princesa e o pai; o mandador; o herói; e o
falso herói51. Não obstante estar sempre citado em inúmeras pesquisas, a
utilização do modelo de Propp só faz aumentar a distância que existe entre
nós e os medievais, na medida em que criou um modelo explicativo fácil e
47
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 52-78.
48
TODOROV, Tzvetan. Introduction a la litterature fantastique. Paris, 1970, p. 28-62.
49
DUBOST, Francis. Aspects fantastiques de la littérature narrative médiévale (XIIe-XIIIe siècles).
In: L’Autre, l’Ailleurs, l’Autrefois. Paris: Champion, 1991, v. 1 p. 241, ap. LARANJINHA, Ana
Sofia Figueiras Henriques. Artur, Tristão e o Graal: a escrita romanesca no ciclo do pseudo-boron.
2005. Tese (Doutorado) em Literatura – Faculdade de Letras do Porto, Porto, 2005, p. 152.
50
HARF-LANCNER, Laurence. Les fées au Moyen Age: Morgane et Melusine: la naissance des
fées. Paris: Champion, 1984.
51
PROPP, Vladimir. Morphologie du conte. Paris: Gallimar, 1970, ap. SILVEIRA, Aline Dias da.
O “maravilhoso” no Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro: uma proposta de análise. Anos
90: Revista do PPG de História, n. 16, p. 213, 2001-2002.
349
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
tentador, a partir tão somente dos contos soviéticos, que inúmeros pesqui-
sadores moldam e enquadram em suas pesquisas.
O maior responsável pela consolidação do tema de estudo maravi-
lhoso foi Jacques Le Goff (vou me ater a apenas expor suas ideias, uma vez
que a crítica já foi feita no decorrer no projeto). Como já comentado, pro-
põe uma divisão do sobrenatural ocidental em três âmbitos a partir do sécu-
lo XII e XIII, recobertos por três adjetivos52: mirabilis, que corresponderia
ao nosso maravilhoso, de origens pré-cristãs; magicus, um sobrenatural ma-
léfico e satânico; e o miraculosus, o sobrenatural propriamente cristão, o
maravilhoso cristão – a estas categorias Cacho Blecua adicionaria uma quar-
ta, identificável nos libros de Amadís: o maravilhoso mecânico (é identifica-
do com o magicus, afasta-se do natural e é causado pelos conhecimentos
dos homens)53. Para Le Goff, o maravilhoso seria produzido por seres sobre-
naturais incontáveis, e seriam imprevisíveis, tendendo a organizar-se a um
“mundo às avessas”, um universo virado ao contrário. O maravilhoso teria
sido, por fim, uma forma de resistência contra o cristianismo, devido à
recusa ao humanismo – um dos alicerces da Igreja Medieval54. Jean-Claude
Schmitt de certa forma conluiou com os parâmetros estabelecidos por Le
Goff, mas ressalta o maravilhoso que incita a curiositas do espírito humano,
uma busca de causas ocultas que um dia serão compreendidas; um espírito
científico que se preocupa com a investigação (inquisitio), com o testemu-
nho verdadeiro e com a experiência (experimentum); pensa também a ideia
do sobrenatural, as religiosidades populares e as superstições55. Caroline
Bynum vai contestar esta possibilidade de alcançar-se a cultura popular nos
relatos sobreviventes, uma vez que seria difícil distingui-los claramente. Ten-
do a não concordar com a autora, uma vez que um trabalho que buscasse a
noção de “circularidades”, aos moldes do que pensa Ginzburg56, poderia fa-
zer compreender o processo e esta diferenciação.
52
LE GOFF, 2010, p. 19.
53
CACHO BLECUA, Juan Manuel. Introducción. In: Amadís de Gaula, v. I. Edição de Juan
Manuel Cacho Blecua. Madrid: Cátedra, 1987, p. 128 (Colección Letras Hispánicas).
54
LE GOFF, 2010, p. 22.
55
SCHMITT, 1999, p. 98-99; História das superstições. Lisboa [?]: Publicações Europa-América,
1997.
56
GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 20ss.
350
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
A Historiografia Amadisiana
Os estudos historiográficos sobre o Amadis de Gaula podem ser divi-
didos em quatro grandes fases, segundo Filipa Medeiros57. A primeira fase,
que se estende dos finais do século XIX até meados do século XX, é prota-
gonizada pela historiografia inglesa, francesa e peninsular, com as primei-
ras abordagens coerentes à obra, tendo ênfase as temáticas de origem da
novela (autoria e localização geográfica), as influências e sua língua primi-
tiva; emergem os nomes de Grace Williams58, Teófilo Braga59, Alexandre
Herculano60 e Carolina Michaëlis de Vasconcelos61. Uma segunda fase, entre
as décadas de 50 e 60 do século XX é encabeçada pela historiografia inglesa
e peninsular, com um incipiente interesse da historiografia americana, e
verifica-se a proliferação dos campos de estudo, com o surgimento de pes-
quisas relacionadas à temática amorosa e ao maravilhoso na obra; ressaltam-
se os trabalhos de Edwin Place62, Rosa Lida Malkiel63 e Rodríguez-Moñino64.
Entre as décadas de 70 e 80 do século XX, a historiografia entra em uma
terceira fase, tendo maior destaque os investigadores espanhóis e america-
nos. Os estudos da obra se aprofundam, sob novos métodos e perspectivas,
dando uma renovação literária e historiográfica aos trabalhos, acompanha-
dos do surgimento de novas temáticas, como as ligadas à História Cultural,
à designada “História de Gênero”, assim como o estudo das armas, dos ele-
mentos mítico-simbólicos, das profecias e dos vários fatores inerentes ao amor
cavaleiresco; nesta fase, podemos ressaltar os trabalhos de Frank Pierce65 e
Cacho Blecua66.
57
MEDEIROS, Filipa. Historiografia de uma novela de cavalaria peninsular: O Amadis de Gaula
– Estado da questão e bibliografia comentada. Medievalista On Line, Lisboa, ano 2, n. 2, 2006.
58
WILLIAMS, Grace. The Amadis Question. Revue Hispanique, t. XXI, n. 59, p. 1-167, 1909.
59
BRAGA, Teófilo. História das novelas portuguesas de cavalaria: formação do Amadis de Gaula.
Porto: Imprensa Portuguesa, 1873.
60
HERCULANO, Alexandre. Novellas de cavallaria portuguesas: Amadis de Gaula. In: Opúscu-
los: v. IX, Literatura. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1873-1908, p. 87-99.
61
VASCONCELOS, C. M. Prefácio a Romance de Amadis. Lisboa: Imprensa Libânio da Silva,
1912, p. 12-41.
62
PLACE, Edwin B. The Amadís Question. Speculum, v. 25, n. 3, p. 357-366, jul. 1950.
63
LIDA DE MALKIEL, M. R. El desenlace del Amadis primitivo. Romance Philology, v. VI, p.
283-89, 1953.
64
MOÑINO, Antonio Rodríguez; CARLO, Agustín Millares; LAPESA, Rafael. El primer ma-
nuscrito del Amadís de Gaula. Madrid: Imprenta de Silverio Aguirre Torre, 1957, p. 24.
65
PIERCE, Frank. Amadis de Gaula. Boston: Twayne Publishers, 1976.
66
CACHO BLECUA, Juan Manuel. Amadís: heroísmo mítico cortesano. Madrid: Cupsa, 1979. O
autor analisa grande parte dos episódios do Amadis e os elementos mítico-folclóricos da tradi-
ção literária.
351
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”
67
AVALLE-ARCE, 1990. Através de uma análise minuciosa, propôs uma delimitação textual
ao Amadis primitivo, salientando os parâmetros da reelaboração de Montalvo.
68
Projeto do Departamento de Filologia Espanhola da Universidade de Saragoça, tendo como
finalidade reunir o máximo de trabalhos sobre a matéria cavaleiresca. Disponível em: <http:/
/clarisel.unizar.es/>. Acesso em: 20 set. 2011.
69
BOGNOLO, Anna. La finzione rinnovata: meraviglioso, corte e avventura nel romanzo cavalle-
resco del primo Cinquecento spagnolo. Firenze: Edizzioni ETS, 1997.
70
SALES DASÍ, Emilio. La aventura caballeresca: epopeya y maravillas. Alcalá de Henares: Cen-
tro de Estudios Cervantinos, 2004.
71
CUESTA TORRE, María Luzdivina. Don Quijote y otros caballeros andantes perseguidos
por los malos encantadores. (El mago como antagonista del héroe caballeresco). In: CACHO
BLECUA, Juan Manuel (coord.). De la literatura caballeresca al Quijote. Zaragoza: P. Univ. de
Zaragoza, 2007, p. 141-169.
72
MÉRIDA JIMÉNEZ, Rafael Manuel. “Fuera de la orden de natura”: magias, milagros y mara-
villas en el “Amadís de Gaula”. Kassel: Reichenberger, 2001, 444 p.
352
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
73
O que pretendo aqui não é estudar a recepção do Amadis na sociedade ibérica – que demanda-
ria uma pesquisa muito maior; tampouco tenho por intento recuperar “emoções” a partir do
texto literário, o que penso ser algo um tanto difícil para a Idade Média. O que pretendo é
procurar e explorar os trechos da narrativa em que reações de admiração são não apenas expli-
citadas, mas evocadas. Temos acesso a estas reações não só por adjetivos (algo chamado de
maravilloso, por exemplo), mas pelas indicações de respostas dos personagens e de um possível
leitor, e também pela descrição de atos e objetos colocados na narrativa intencionalmente para
provocar estas respostas (como Amadis, que fica maravilhado ao ver o castelo de Arcaláus).
353
354
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
1
Professor do Curso de Licenciatura em História da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA). Dou-
torando do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS), Bolsista CAPES.
355
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
2
Original na Torre do Tombo/Lisboa, cód. ref. PT/TT/CF/159, Códice A, com título original
– “Livro das fortalezas situadas no extremo de Portugal e Castela por Duarte de Armas, escu-
deiro da Casa do rei D. Manuel I”. Cópia aquarelada preservada na Biblioteca Nacional de
Lisboa, com publicação em 1642, Microfilme cota 6618 – com o título “Fronteira de Portugal
fortificada pellos reys deste Reyno. Tiradas estas fortalezas no tempo del Rey Dom Manoel
copiadas por Brás Pereira. Na Biblioteca Nacional de Madrid existe o Códice B, cópia incom-
pleta, com apenas 37 fortificações, com a signatura Aa, 98, n 9241, com o título “Plazas de
guerra y castillo medievales de la frontera de Portugal”. Publicação fac-símile integral em 1997,
pela Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Códice A.
356
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
3
Na nobreza portuguesa correspondia a Fidalgo de 1º Ordem e 2º Grau, estando abaixo apenas
do Fidalgo Cavaleiro – 1º Ordem e 1º Grau.
357
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
358
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
359
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
4
Armas que utilizam a combustão da pólvora como força impulsionadora dos projéteis.
360
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
cudeiro buscou desenhar o mundo ao seu redor. Sua obra realiza um estu-
do da observação do mundo e, enquanto documento, tem a função de “tes-
temunhar” o observado, não dramatizá-lo (ALPERS, 1999). No Livro das
Fortalezas, a “imagem mostrada na superfície pictórica parece ser um frag-
mento ilimitado de um mundo que continua para além da tela” (ALPERS,
1999, p. 85), havendo também uma forte inclusão da natureza, da vida.
As pessoas que habitavam nas vilas, próximas às muralhas, aparecem
nos registros, ainda que pequenas, na tentativa de manter uma proporção
adequada com as fortificações. É possível perceber, nestes desenhos, o modo
de vestir dos campesinos da época, assim como a maneira de carregar seus
jarros de cerâmica e de conduzir seus animais de carga. Estas paisagens
pictóricas revelam fontes de água (poços, córregos, riachos ou mesmo rios)
próximas às fortalezas ou moradias das vilas. Duarte se preocupou em pas-
sar as informações completas sobre a qualidade da água dos poços e córre-
gos, se estas eram abundantes, frescas e limpas. As áreas destinadas para
cultivo agrícola, assim como a vegetação circundante (árvores altas ou bai-
xas, concentradas ou espaçadas, pastagens ou áreas com concentração de
arbustos) não foram esquecidas. No caso das culturas agrícolas, pode-se
perceber, através de uma comparação entre os diferentes registros das vilas
e seus arredores, que terras eram mais ou menos favoráveis para o plantio.
Ocupou-se também em registrar certas cenas pitorescas do cotidiano, um
caçador e seus dois cães (ALMEIDA, fl. 74), um almocreves com duas
mulas carregadas de mercadorias (CASTELO BRANCO, fl. 52), campo-
neses tirando água de um poço (MONTALVÃO, fl. 50)5, um pastor com
seu rebanho (MONSANTO, fl. 61). Em sua obra, Duarte anotou a distân-
cia (dias de caminhada) e que tipo de estrada (se boa ou ruim para se viajar)
separava um castelo do outro. Registrou sua dura jornada do Castelo de
Apalhão (fls. 41 e 42) ao Castelo de Vide (fl. 43 e 44): “d alpalhãao a
castello de ujde sam duas legoas e antre huua vylla e outra corem duas
Ribeyras pequenas ho camjnho he muj fragosso” (fl. 41).
Através dos desenhos, percebe-se o tipo de aglomeração das residên-
cias, se estas estavam longe ou próximas das fortificações, a característica
dos tetos (colmo, ardósia ou telha), das janelas e portas, a existência ou não
de muralhas a cercar as vilas, a presença de praças centrais, igrejas (com
todos seus detalhes – com torre para sino, ou simples campanário sobre o
5
Veja imagem Anexo 01 no final deste artigo.
361
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
teto, com entrada decorada ao estilo manuelino, com simples porta de ma-
deira, com cruzeiro à sua frente ou cruz sobre o teto). Os patíbulos existen-
tes em muitas vilas, para castigar os criminosos com o enforcamento, não
foram esquecidos, foram desenhados sempre na periferia das vilas, muitos
com os corpos ainda pendurados nas cordas6.
O códice destaca-se como fonte para o estudo da paisagem rayana, do
início do século XVI. Duarte não apenas reproduziu as fortalezas, mas tam-
bém seu entorno, possibilitando informações sobre a utilização de rios para
pesca e comércio. Nota-se a importância deste trabalho, uma vez que os
rios desenhados no século XVI (como exemplo temos o Guadiana) sofre-
ram modificações no “contorno” dos leitos, devido ao assoreamento de
suas margens. A grande maioria dos portos reproduzidos há muito deixa-
ram de existir. Os trechos de rios, onde nas gravuras do tratado aparecem
embarcações, com as velas estufadas pelo vento, atualmente não servem
para a navegação. Especial atenção deve ser dada ao registro de um estalei-
ro, em pleno funcionamento, na cidade de Caminha (fl. 115)7, onde se iden-
tificam os detalhes de uma embarcação em construção, que com frequência
serve para exemplificar estudos em história da engenharia naval (AMATO,
2006, p. 111-112).
A contribuição de Duarte para o estudo da paisagem quinhentista
também está em suas anotações (parte escrita do tratado), situadas junto
aos desenhos. Daveu (2000, p. 12), em seu artigo sobre a rede hidrográfica
portuguesa da segunda metade do século XVI, apresenta uma passagem
muito elucidativa quanto às fontes e cursos de águas presentes no Livro das
Fortalezas:
Durante o verão de 1509, Duarte de Armas, encarregado de “pintar” as
fortalezas raianas, foi de Montalegre até Portelo (Sendim) por um bom ca-
minho de “uma légua boa”, tendo atravessado um rio provido de pontes
(Cávado). Daí, foi ter à fortaleza de Piconha, perto de Rendim, por um muito
mau caminho de 2 léguas, tendo atravessado algumas ribeiras pequenas. Para
atingir Castro Laboreiro teve, a seguir, que franquear “5 léguas de serras e
muitas ribeiras, entre as quais a maior há nome Lima”; o que mostra que
atravessou em linha directa as terras galegas, facto confirmado pela não des-
crição do castelo de Lindoso. De Castro Loboreiro desceu a Melgaço, por
um caminho de “2 léguas mui fragosas, todo de serras, ribeiras nem uma”.
A sucinta que deixou de seu itinerário é de grande interesse; ainda que mui-
to simples, indica sistematicamente a distância em léguas, a qualidade dos
caminhos e os rios atravessados, providos ou não de pontes.
6
Veja imagem Anexo 02 no final deste artigo.
7
Veja imagem Anexo 03 no final deste artigo.
362
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
363
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
8
Veja imagem Anexo 04 no final deste artigo.
364
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
9
Veja imagem Anexo 05 no final deste artigo.
10
Veja imagem Anexo 06 no final deste artigo.
365
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
11
Em direção à foz do rio, direção contrária à vazante. Costuma-se dizer “subindo o rio”.
12
Vazante, em direção à saída para o mar.
366
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
367
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
Conclusão
A distorção da verticalidade das torres (para valorizar o poder régio),
a captura de dois pontos de vista (N/S ou L/O) nos registros das cidades
fortificadas, a ostentação dos gigantescos estandartes das Coroas Ibéricas
desenhados sobre as construções (delimitando “perfeitamente” a fronteira)
e o empenho exaustivo de reproduzir uma paisagem detalhada demons-
tram que Duarte realizou seu trabalho através de uma forma regrada, “re-
gulamentando seu olhar” sobre o que deveria ser registrado. As medições
(em vara e meia-vara, tanto dos alçados como das plantas baixas) e as des-
crições das condições de estradas, cercas, vilas, fontes de água e a identifi-
cação por legenda (igreja, menagem, villa, cubello, caçador, embarcações –
nau, caravela, barca13 [...]), indicam um ver “racional”, com método, que
buscava ser objetivo na produção de um documento que faria parte da grande
campanha de reestruturação do reino, iniciada por D. Manuel.
Mas não são apenas informações técnicas e metódicas que constituem
este tratado. Em alguns debuxos, Duarte registra a si (sobre uma mula) e seu
criado (a pé) passando diante das fortificações, atravessando as vilas ou cami-
nhando pelas estradas próximas às cidades14. Podem-se considerar como uma
inovação desta obra os diferentes momentos representados por seu autor.
Quase sempre apresentando sua chegada à vila, sua passagem em frente a
esta e sua saída. O Livro das Fortalezas é mais do que um tratado das fortifi-
cações portuguesas fronteiriças, é um detalhado “registro etnográfico”, reali-
zado por um viajante atento e “faminto” por informações, que possibilita
valiosos dados sobre o viver no início do século XVI. A obra é humanizada
com sua imagem e com a dos habitantes das cidades; esse recurso dá vida à
paisagem e às estruturas. Uma viagem singular, capaz de gerar uma obra de
grande força evocativa. Um auxílio precioso para quem, por qualquer moti-
vo, necessita investigar a história dos povoados e do território fronteiriço in-
cluídos nas páginas do tratado. Um maravilhoso diário de viagem onde as
letras, palavras, frases e textos foram substituídos por elaboradas composi-
13
Veja imagem Anexo 07 no final deste artigo.
14
Veja imagem Anexo 08 no final deste artigo.
368
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
ções iconográficas, que dão a entender o que nosso viajante pode vivenciar
ao longo de seu périplo de 900 km em, aproximadamente, um ano de cami-
nhada.
Documentos
ARMAS, D. Livro das Fortalezas. Lisboa, Fac-Símile do MS 159 da Casa Forte do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 2. ed., INAPA, 1997.
De como os Castelos ham de seer repairados. In: Ordenações Manuelinas. Livro II,
Título 44, p. 227 e 228. Ordenações Manuelinas On-line, Fac-Símile, Instituto de
História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra – Portugal. Disponível
em: <http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/l2p227.htm>.
FARIA, M. S. Noticias de Portugal Offerecidas a ElRey N.S. Dom João o IV. Lisboa,
Impressa na Officina Craesbeeckiana, 1655.Biblioteca Nacional de Portugal. Mi-
crofilme F.5751 – Sala Geral de Microfilmes.
GÓIS, D. Chronica do Felicissimo Rei Dom Emanuel. Lisboa, Na Officina de Miguel
Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio, 1566, Parte II, Cap. XXVII, p. 28.
Biblioteca Nacional de Portugal – Biblioteca Nacional Digital. Disponível em:
<http://purl.pt/288/1/P229.html>.
Referências
ALPERS, S. A arte de descrever. São Paulo: EDUSP, 1999.
AMATO, A. Desenvolvimento da construção Naval no Garb Al-Andaluz entre os
séculos VIII e XIII: estaleiros e arsenais. In: JORNADAS DO MAR 2006 – Os
Oceanos: Uma Plataforma para o Desenvolvimento. Publicação da Escola Naval
de Portugal. p. 09-114.
ANDRADE, A. Horizontes urbanos medievais. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
______. A construção medieval do território. Lisboa: Livros Horizonte, 2001.
BOTI, A. La arquitectura militar del Renacimiento a través de los tratadistas de los siglos
XV y XVI. 2006. Tesis Doctoral – Escuela Técnica Superior de Arquitectura de
Valencia. Director Juan Francisco Noguera Giménez, 2006.
BURUCÚA, J. E. História, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002.
CASTELO-BRANCO, M. O Livro de Duarte de Armas. In: A arquitetura militar na
expansão portuguesa. Porto: Comissão Nacional para as Comemorações dos Desco-
brimentos Portugueses, 1994.
______. Introdução. In: O Livro das Fortalezas. Lisboa, Fac-Símile do MS 159 da
Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 2. ed., INAPA, 1997.
369
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...
370
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Anexos
371
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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
Cristine Tedesco1
1. Introdução
Considerando os estudos desenvolvidos sobre o medievo nas últimas
décadas, acreditamos numa perspectiva cronológica que não obedece aos re-
cortes tradicionais. Nossa Idade Média, conforme Duby2, prolonga-se por
mais de dez séculos e não se deixa enquadrar nos limites muitas vezes impos-
tos por uma cronologia dita necessária à pesquisa e ao ensino de História.
Destacamos que nosso referencial teórico é marcado pelo conceito
de gênero, pensado por Joan Scott3. Para a pesquisadora, as relações de po-
der são ensaiadas primariamente desde as relações entre homens e mulhe-
res. Ao sugerir que as significações de gênero e poder se constroem recipro-
camente, Scott (1990) afirma que, para escrever história fazendo uso do
gênero, enquanto categoria de análise, é necessário reconhecer que “[...] ‘ho-
mem’ e ‘mulher’ são categorias vazias e transbordantes4 pois que, quando
parecem fixadas, elas recebem, apesar de tudo, definições alternativas, ne-
gadas ou reprimidas”5.
Assim, nosso olhar genderificado ou gendrado6 analisa as representações
imagéticas de Maria Madalena produzidas no período entre os séculos XV e
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas.
Orientadora: Profª Dra. Rejane Barreto Jardim. Contato: tedesco.cristi@gmail.com
2
DUBY, Georges. História artística da Europa. Tomo I: A Idade Média. São Paulo: Paz e Terra,
1997.
3
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade,
Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 05-22, jul.-dez. 1990.
4
Vazias porque não possuem significado definitivo e transcendente. Transbordantes porque,
mesmo quando estão aparentemente determinadas, elas contêm definições alternativas nega-
das ou reprimidas.
5
SCOTT, 1990, p. 19.
6
“O vocábulo gendrado, oriundo de gender (palavra inglesa para gênero), tem sido utilizado por
feministas, na falta de um adjetivo correspondente ao substantivo gênero. Trata-se de um neolo-
375
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
376
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
12
DUBY, 1997, p. 16.
13
JANSON, Horst Woldemar. História geral da arte. V. 2: Renascimento e Barroco. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
14
Ibid., p. 716.
15
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagem: arte e cultura visual. ArtCultura,
Uberlândia, v. 8, p. 97-115, jan.-jun. 2006.
16
Ibid., p. 99.
17
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média.
Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 11.
377
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
18
GOMBRICH, Ernst Hans. A história da arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC,
2009.
19
Ibid., p. 196.
20
Ibid., p. 196.
21
MIRANDA, Andrea Cristina Lisboa de. A mulher artista na idade média: considerações e
revelações acerca do seu lugar na história da arte. R. Cient./FAP, Curitiba, v. 1, p. 1-17, jan./
dez. 2006. Disponível em: <http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/RevistaCientifica1/
ANDREA_LISBOA_DE_MIRANDA.PDF>. Acesso em: 15 jun. 2012.
22
Ibid., p. 2.
23
JIMENEZ, Marc. A autonomia da estética. O que é estética? São Leopoldo: UNISINOS, 2000.
24
Ibid., p. 32.
25
BAZIN, Germain. A História da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
26
GOMBRICH, 2009, p. 247.
378
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
27
Ibid., p. 248.
28
DUBY, 1997, p. 17.
29
Ibid., p. 17.
30
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
31
Ibid., p. 479.
32
Ibid., p. 479.
379
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
No conteúdo, pois sua arte não recusou nada do antigo, e não incorporou
nada de novo no que diz respeito ao assunto, ideias e propósito. Na forma,
justamente porque o seu realismo minucioso e o seu desejo de representar as
coisas o mais fisicamente possível na imagem constituem o pleno desenvol-
vimento do verdadeiro espírito medieval. E assim vemos esse espírito atuan-
do no pensamento e na representação religiosa, nos pensamentos da vida
cotidiana e em todos os outros lugares.33
33
Ibid., p. 479.
34
ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
35
DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura. Preceduto dalla “Vita di Leonardo da Vinci” di
Giorggio Vasari. Roma: Club del Libro Fratelli Melita, 1989.
36
“O pintor é senhor de todas as coisas que possam vir ao pensamento do homem, porque, se
tem desejo de ver belezas que o apaixonem, ele é o senhor de gerá-las, e se quer ver coisas
monstruosas que assustem, delas ele é senhor e criador” (DA VINCI, 1989, p. 7; tradução de
minha autoria).
37
ECO, 2010, p. 180.
380
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
mento dos trabalhos por encomenda, foi, de acordo com Umberto Eco,
essencial para que “[...] a não imitação da natureza”38, fosse tolerada.
A Beleza clássica se dissolve nas formas do Maneirismo e do Barro-
co, e observamos “[...] outras formas de expressão da Beleza: o sonho, o
estupor, a inquietude”39. A perfeição do Renascimento é afetada pelo movi-
mento dinâmico da cultura o qual atinge as artes, a religião, a sociedade. O
desenvolvimento da ciência e os progressos do saber deslocam o homem do
centro do universo para a periferia. O artista não está imune a estas ques-
tões, ele agora pensa sobre a representação da Beleza de forma mais com-
plexa, está inquieto e emotivo.
Umberto Eco (2007) define o Maneirismo como “[...] a época em
que o artista, dominado pela inquietação e pela melancolia, não se volta
mais para o belo como imitação, mas para o expressivo”40. Para Eco, a
partir do século XVI, há uma reviravolta na forma de pensar a arte.
O maneirista tende à subjetivação da visão: enquanto a perspectiva monocu-
lar dos renascentistas visava à reconstrução de uma cena como se fosse vista
por um olho matematicamente objetivo, o artista maneirista dissolve a estru-
tura do espaço clássico nas visões saturadas e desprovidas de um centro. [...]
Com maior propriedade, o gosto pelo extraordinário, pelo que pode despertar
assombro e maravilha aprofunda-se no Barroco e neste ambiente cultural são
explorados os mundos da violência, da morte, do horror, como acontece na
obra de Shakespeare [...] Dessa maneira, Maneirismo e Barroco não temem
recorrer àquilo que, para a estética clássica, era considerado irregular.41
Ernst Gombrich (2009) afirma que a expressão Barroco “[...] foi em-
pregada pelos críticos de um período ulterior que lutavam contra as tendên-
cias seiscentistas e queriam expô-las ao ridículo. ‘Barroco’, realmente, sig-
nifica absurdo ou grotesco.”42
O Barroco é a dramatização da vida e, segundo Eco (2010), uma
busca por novas expressões da Beleza. “O século Barroco exprime uma Bele-
za, por assim dizer, além do bem e do mal. Ela pode dizer o belo através do
feio, o verdadeiro através do falso, a vida através da morte. Esse tema da
morte está, aliás, obsessivamente presente na mente barroca.”43 No século
XVII, “[...] à Beleza imóvel e inanimada do modelo clássico substitui-se
38
Ibid., p. 186.
39
Ibid., p. 212.
40
ECO, 2007, p. 169.
41
Ibid., p. 169.
42
GOMBRICH, 2009, p. 387.
43
ECO, 2010, p. 233.
381
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
44
Ibid., p. 234.
45
ECO, Umberto. Obra aberta. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1971.
46
Ibid., p. 44.
47
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
48
Lc 8,2.
49
TOMMASO, Wilma Steagall de. Maria Madalena nos textos apócrifos e nas seitas gnósticas.
Último Andar, São Paulo, (14), p. 79-94, jun. 2006. Disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/485244/artigos-maria-madalena>. Acesso em: 14 jun. 2012.
50
Ibid., p. 80.
51
Ibid., p. 81.
52
LURKER, 1993, ap. TOMMASO, 2006, p. 82.
382
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
53
TOMMASO, 2006, p. 83.
54
Ibid., p. 83.
55
DUBY, Georges. Heloísa, Hisolda e outras damas no século XII: uma investigação. Tradução Pau-
lo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
383
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
56
Ibid., p. 31.
57
DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. In: DUBBY, Georges; PERROT, Michelle. História
das mulheres no Ocidente: a Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990, p. 29-63.
58
Ibid., p. 48.
59
DUBY, 1995, p. 32.
60
Ibid., p. 38.
61
Ibid., p. 39.
384
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
62
Ibid., p. 46.
63
Ibid., p. 46.
64
Ibid., p. 47.
65
Ibid., p. 50.
66
DALARUN, 1990, p. 53.
67
FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, p. 147.
68
Ibid., p. 147.
385
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
Figura 1: A Descida da Cruz (1435), de Roger Van der Weyden (1397/1400-1464). 220 x 262 cm.
Óleo sobre madeira. Museo del Prado, Madrid. Disponível em: <http://
www.museodelprado.es/imagen/alta_resolucion/P02825.jpg>. Acesso em: 6 ago. 2012.
Ver também Gombrich, 2009, p. 277.
69
BERBARA, Maria C. Louro. Propria Belgarum laus: Domenicus Lampsonius e as Pictorum
aliquot celebrium germaniae inferioris effigies*. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 8, p. 17-
37, 2008. Disponível em: <http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%208%20-
%20artigo%202.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2012.
70
Ibid., p. 22.
386
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
71
GOMBRICH, 2009, p. 276.
72
Ibid., p. 276.
73
FARTHING, 2011, p. 147.
74
GOMBRICH, 2009, p. 276.
387
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
Figura 2: Madalena lendo (1445), de Roger Van der Weyden (1397/1400-1464). 62 x 55 cm.
Óleo sobre carvalho (retábulo). The National Gallery, London. Disponível em: <http://
www.nationalgallery.org.uk/cid-classification/classification/picture/rogier-van-der-wey-
den,-the-magdalen-reading/264249/*/moduleId/ZoomTool/x/169/y/0/z/1>. Acesso em:
5 jul. 2012.
Nosso olhar é logo envolvido pelo drapeado das vestes dos três perso-
nagens. Madalena, sentada sobre uma almofada com um livro devocional
nas mãos. Ela está em posição de leitura. Ao seu lado, em primeiro plano,
está o frasco que continha o unguento (substância aromática) com o qual
ungiu os pés de Jesus Cristo. O vestido verde suntuoso de Madalena faz
uma alusão à mesma personagem presente na Descida da Cruz de Roger Van
der Weyden. A imagem revela um rico ambiente doméstico onde Maria
Madalena é representada como uma mulher da nobreza. Depois de arre-
pender-se de seus pecados, ser absolvida por Cristo, Madalena é concebida
pelo pintor como um modelo de vida contemplativa.
De acordo com Lorne Campbell75, a obra foi adquirida pela Galeria
Nacional de Londres76 entre 1845 e 1860; contudo, a profundidade de Ma-
75
CAMPBELL, Lorne. Van der Weyden. London: Chaucer Press, 2004.
76
The National Gallery, London.
388
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
dalena lendo só foi revelada em 1956, quando se descobriu que o seu fundo
uniforme escuro, aplicado provavelmente no século XIX, escondia o corpo
de São José, parte de uma janela com uma paisagem, e a roupagem de São
João Evangelista. A referência a um desenho do final do século XV de uma
composição semelhante mostrando a Virgem e o Menino, cercados por san-
tos, é possivelmente o tema da obra de Van der Weyden da qual Madalena
lendo foi cortada. Pode-se pensar no Retábulo de Beaune77, onde o mesmo ar-
tista pintou cenas do juízo final como um exemplo de obra composta por
diferentes imagens que juntas formam o grande retábulo.
Acreditando que o mundo é um livro escrito pela mão de Deus, o
medievo crê que tudo tem um significado sobrenatural. As obras de Van
der Weyden também são marcadas por essas concepções simbólicas. “É
costume atribuir valores positivos e negativos também a cores [...] para o
simbolismo medieval cada coisa pode ter dois significados opostos segun-
do o contexto em que é vista.”78
Nesse sentido, Johan Huizinga (2010) indica que o sopro de vida do
pensamento medieval foi o simbolismo. “O costume de ver todas as coisas
em sua conexão rica de significados em relação ao eterno mantinha vivo o
mundo com suas cores radiantes e resplandecentes, ao mesmo tempo em
que atenuava a fronteira entre todas as coisas.”79
Segundo Umberto Eco (2010), no longo período que compõe a Ida-
de Média ocorreram mudanças no gosto e nas convicções acerca desses
significados. Nos primeiros tempos, o verde e o azul-escuro foram conside-
rados cores de pouco valor “[...] provavelmente porque ainda não se conse-
guia obter azuis vivos e brilhantes e, portanto, as roupas ou as imagens
azuis tinham uma aparência desmaiada e pálida”80.
No decorrer do século XIII, o azul passa a ser uma cor apreciada,
principalmente se pensarmos na estética dos vitrais das catedrais. Eco (2010)
salienta ainda que, em determinados lugares, o negro era a cor dos reis e em
outro era a cor dos cavaleiros misteriosos que ocultavam sua identidade.
Assim, também o vermelho tinha duplo sentido, era a cor da coragem e
nobreza, contudo poderia ser a cor das prostitutas e carrascos. Conforme
Eco (2010), o amarelo era a cor da covardia, associado aos marginalizados,
77
HUIZINGA, 2010, p. 434-437.
78
ECO, 2010, p. 121.
79
HUIZINGA, 2010, p. 353.
80
ECO, 2010, p. 121.
389
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
rejeitados, loucos, muçulmanos e judeus. Mas era ainda “[...] celebrado como
a cor do ouro, entendido como o mais solar e precioso dos metais”81.
No século XIII, Hugo de Saint-Victor (De tribos Diebus) afirmou:
[...] A cor verde que supera qualquer outra em Beleza, assim como rapta as
almas daqueles que a olham; quando na nova primavera, os brotos se abrem
a uma nova vida, e erigindo-se para o alto com suas folhas pontudas, quase
empurrando a morte para baixo à imagem da futura ressureição, erguem-se
todos juntos em direção à luz.82
81
Ibid., p. 123.
82
Hugo de Saint-Victor, século XIII, ap. ECO, 2010, p. 125.
83
ECO, 2010, p. 125.
84
Para aprofundamentos sobre Beatrice Cenci, consultar: SANTUCCI, Francesca. Virgo virago:
Donne fra mito e storia, letteratura ed arte, dall’Antichità a Beatrice Cenci. Catania: Akkua-
ria, 2008.
390
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
85
Para maiores detalhes consultar: YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São
Paulo: Cultrix, 1964.
86
GOMBRICH, 2009, p. 392-93.
391
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
87
MANN, Judith W. Artemisia Gentileschi nella Roma di Orazio e dei caravaggeschi: 1608-
1612, p. 51-61. In: CONTINI, Roberto; SOLINAS, Francesco. Artemisia Gentileschi: storia di
una passione. Catalogo della mostra (Milano, 22 settembre 2011-30 gennaio 2012). Milano: 24
ORE Cultura, 2011.
88
Na igreja de São Luis dos Franceses (Roma).
89
Na igreja de Santa Maria del Popolo (Roma).
90
MANN, in: CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 55.
91
Utilizamos ao longo do texto os termos “caravaggesco”, “caravaggismo” e “caravaggistas”,
pois não existe uma tradução literal para o português que possa definir o significado desses
termos.
92
AGNATI, Tiziana. La fortuna di Artemisia. Art Dossier, Firenze: Giunti, n. 172, p. 5-50, no-
vembre 2001.
93
MOIR, Alfred. Caravaggisti: Italia. Art Dossier, Firenze: Giunti, n. 109, p. 4-17, febbraio 2001.
392
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
94
MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Rumo a uma “história visual”. São Paulo, 2005. Disponível
em: <http://www.4shared.com/office/B9AJ09cB/meneses_ulpiano_-_rumo_histria.html>.
Acesso em: 30 jan. 2012.
95
MENESES, 2005, p. 11.
96
SOLINAS, Francesco. Catalogo Artemisia Gentileschi. In: CONTINI, Roberto; SOLINAS,
Francesco. Artemisia Gentileschi: storia di una passione. Catalogo della mostra (Milano, 22
settembre 2011-30 gennaio 2012). Milano: 24 ORE Cultura, 2011, p. 130-258.
97
SOLINAS, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 156.
98
AGNATI, 2001, p. 26. Ver também: DAVOLI, Zeno. Il volto e la vita di Santa Maria Maddalena:
nell’incisione europea. La Maddalena: Italo Innocenti Editore, 2010, p. 30-31.
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TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
Figura 3: Madalena (1618-1619), de Artemísia Lomi Gentileschi. 146 x 109 cm. Óleo sobre
tela. Galleria Palatina (Palazzo Pitti), Florença. Disponível em: <http://www.wga.hu/
index1.html>. Acesso em: 12 ago. 2012. Ver também Solinas, 2011, p. 157.
Quem foi Maria Madalena aos olhos da jovem pintora Artemísia Lomi
Gentileschi? A artista não produz uma mulher imoral e pecadora em sua
obra Madalena. A primeira testemunha da Ressureição de Jesus Cristo é
representada num momento de meditação, paralisada pela dúvida. Na ima-
gem, Madalena não nos parece um símbolo da vida contemplativa, como é
descrita pela parábola bíblica, nem nos remete ao símbolo de devoção que
Madalena significou no Medievo.
Quando avaliamos as obras Allegoria dell’inclinazione99 e Maddalena100,
as duas produzidas por Artemísia entre 1615 e 1619, notaremos que os ros-
tos de ambas são coloridos, com uma capacidade introspectiva e penetrante,
que se traduz em mudanças surpreendentes de expressão: do êxtase da incli-
nação à tragédia de Maria Madalena101. Segundo Francesco Solinas102, a Ma-
dalena de Artemísia foi provavelmente elaborada para o grão-duque Cosme
II, uma vez que pode tê-lo encomendado em honra de sua esposa Maria
Madalena da Áustria – devota da santa que carregava seu nome.
99
Casa Buonarroti (Florença).
100
Galleria Palatina (Florença).
101
AGNATI, 2001, p. 25.
102
SOLINAS, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 156.
394
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
103
Encontramos nos estudos mais recentes variações do mesmo sobrenome “Gentileschi alias
Lomi” e “Lomi de Gentileschis” (CIARDI, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 23).
104
“Estupro e libidinagem. Em favor da Cúria [Romana] e do Fisco [Tesouro Romano]”. MEN-
ZIO, Eva (Org.). Lettere precedute da “Atti di un processo per stupro”. Roma: Abscondita, 2004, p.
9. Tradução Dr. Celso Bordignon e Vicente Pasinatto. Os autos do processo crime foram
publicados por Eva Menzio (2004) em Roma. Os questionamentos feitos pelos inquisidores
estão publicados em língua latina e as respostas na língua italiana do século XVII. A tradução
dos textos em língua italiana é feito pelo doutor (2000) em Arqueologia Paleo-Cristã pelo
Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã (PIAC) de Roma Celso Bordignon. Os textos em
língua latina estão sendo traduzidos por Vicente Pasinatto. A tradução, ainda inédita em
língua portuguesa, conta com o apoio do Museu dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul,
localizado na cidade de Caxias do Sul. Foram traduzidos do latim para o italiano os nomes
próprios, por exemplo: Tutia [Túzia]; Artemitia [Artemísia]; Horatio [Orazio]. Os nomes
próprios, na sua maioria, permanecem em italiano. Os trabalhos de tradução da fonte estão
em fase de finalização.
105
NICOLACI, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 260 (Archivio Storico del Vicariato di Roma,
Libro dei Matrimoni II: 1607-1630, Sto. Spirito in Sassia, XVII, f. 17).
395
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade
uma tentativa de assumir uma identidade própria, onde não seria apenas
“filha do Gentileschi”.
Certamente, deixar sua cidade natal foi mais uma experiência dolo-
rosa para a jovem artista, já que Roma também era uma das cidades mais
importantes da Europa, principalmente para os artistas. Contudo, Agnati106
declara que a ida de Artemísia para Florença foi significativa para sua vida
profissional. A jovem artista se libertava da presença do pai, renegava seu
sobrenome e adotava o do tio Aurelio Lomi, passando a assinar Artemísia
Lomi. Em Florença, o tio, Aurelio Lomi, apresentou-a à corte de Cosme II,
onde foi recebida. A vida na corte se revelou uma experiência fundamental
para o seu futuro: conheceu representantes da nobreza e estabeleceu rela-
ções com pessoas artisticamente mais preparadas107.
As inquietações de Artemísia – uma mulher artista dos anos de 1600
que viveu, além da violência física de um desvirginamento forçado, perpe-
tuado pelas falsas promessas de casamento, a exposição pública do processo
crime, os exames ginecológicos, a tortura das sibilas, o matrimônio arranja-
do entre o pai e um homem endividado – são elementos presentes em toda
sua obra. O que não poderia ser diferente em Madalena. Entendemos que a
obra é um autorretrato dramático de uma mulher imponente e inquieta.
Francesco Solinas destaca que
[...] lo specchio d’ebano istoriato col motto latino Optimam partem elegit (quae
non auferetur ab ae in Aeternum) esortazione del cristo nel Vangelo di Luca
10,42". “[...] o espelho de ébano historiado com a frase latina Elegeu a melhor
parte (que nunca lhe será tirada), exortação de Cristo no Evangelho de Lucas
10,42.108
106
AGNATI, 2001, p. 8.
107
Ibid., p. 8.
108
Ibid., p. 156. Tradução Dr. Celso Bordignon.
396
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
4. Considerações finais
Os séculos XV e XVI testemunharam acontecimentos de longo al-
cance, como, por exemplo, a queda de Constantinopla, as viagens ao Novo
Mundo, à África e à Ásia, a conjuntura da Reforma e da Contrarreforma.
No contexto da produção artística – durante boa parte do Medievo, a arte
era desenvolvida dentro dos mosteiros – a estruturação das corporações de
ofício foi elemento catalisador do processo que consolidaria as Academias
de Desenho. Assim, para pensar a arte e os artistas do século XVII, é funda-
mental considerar as academias, estruturadas graças aos movimentos de
valorização do trabalho artístico iniciados no Medievo.
Nas oficinas medievais de pintura, escultura, ourivesaria, entre ou-
tros, é possível encontrar a presença de mulheres, trabalhando ao lado dos
homens. Conforme Miranda112, as mulheres poderiam trabalhar como mão
de obra familiar ou em atividades não regulamentadas. Conforme Claudia
Opitz, “[u]ma das primeiras corporações que concedeu direitos iguais a
homens e mulheres foi a dos peleiros de Basileia, no ano de 1226. Contanto
que se tornassem membros da corporação, as mulheres podiam trabalhar,
comprar e vender nas mesmas condições que os homens.”113 A mesma au-
tora salienta que, como membros das corporações, as mulheres também
estavam sujeitas ao controle e às obrigações tributárias.
109
Internacional porque as tendências estilísticas e técnicas desenvolvidas na Europa também
surgiram em centros geograficamente distantes do continente europeu. FARTHING, 2011, p.
128.
110
Coleção privada.
111
SOLINAS, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 156.
112
MIRANDA, 2006, p. 12.
113
OPITZ, Claudia. O cotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500). In: DUBBY;
PERROT, 1990, p. 401-403.
397
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114
Ibid., p. 410.
115
Ibid., p. 406.
116
AGNATI, 2001, p. 23.
398
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II
117
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 10. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1990.
399