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Reflexões sobre o Medievo III

práticas e saberes no
ocidente medieval II
Cybele Crossetti de Almeida
Igor Salomão Teixeira
(Orgs.)

Reflexões sobre o Medievo III


práticas e saberes no
ocidente medieval II

GT ESTUDOS MEDIEVAIS/ANPUH-RS

OI OS
EDITORA
anpuhrs
2013
© Grupo de Trabalho de Estudos Medievais – ANPUH-RS – 2013
gtestudosmedievais@gmail.com

Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Imagem de capa: HARPUR, James, Faszinierendes Mittelalter: ein Panorama des
Alltagslebens. Gütersloh, 1995. p. 38 – de um manuscrito veneziano do séc. XIV.
Verlagsservice Dr. Helmut Neuberger & Karl Schaumann GmbH.
Revisão: Luís M. Sander
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund S. A.

Conselho Editorial (Editora Oikos):


Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia)
Arthur Blasio Rambo (UNISINOS)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (UNISINOS)
Elcio Cecchetti (ASPERSC)
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Luís H. Dreher (UFJF)
Marluza Harres (UNISINOS)
Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL)
Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)
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R332 Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medie-


val II. / Organizado por Cybele Crossetti de Almeida e Igor Salo-
mão Teixeira. – São Leopoldo: Oikos, 2013.
GT Estudos Medievais/ANPUH-RS
399 p.; il.; 16 x 23 cm.
ISBN 978-85-7843-299-7
1. História medieval. I. Almeida, Cybele Crossetti de. II. Teixeira,
Igor Salomão. III. Grupo de Trabalho de Estudos Medievais –
ANPUH-RS.
CDU 94
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário

Introdução ........................................................................................... 7

Algumas contribuições da prosopografia para a história política


e econômica das elites na Idade Média ................................................ 11
Cybele Crossetti de Almeida
¿Ha sido cristiana la Edad Media? ....................................................... 33
Luis Rojas Donat
Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval:
séculos XI-XIII ................................................................................... 59
José Rivair Macedo
Fin amour: as condições de existência no mundo medieval ................... 75
Nilton Mullet Pereira
Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII
(Vicente de Beauvais e Iacopo de Varazze) ........................................ 103
André Luis Pereira Miatello
As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII:
O Libellus de Principiis Ordinis Praedicatorum e os modelos de
masculino e feminino ....................................................................... 127
Carolina Coelho Fortes
Homens e mulheres nos processos de canonização de santos
mendicantes: Domingos, Clara e Tomás, 1230-1330 .......................... 133
Igor Salomão Teixeira
Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno
a 1316 en Zamora, España ................................................................ 141
Carmen Beatriz Paz
Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas pelo
pessoal da chancelaria real de Afonso X de Castela (1252-1284) ........ 153
Marina Kleine
O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula ... 175
Nei Nordin
A constituição do feminino e o pecado da luxúria no “Livro
das Confissões” de Martín Pérez ....................................................... 191
Letícia Schneider Ferreira
Comer, beber e jogar nas tabernas medievais ..................................... 209
Felipe Parisoto

Fórum de Pós-Graduação

Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais ................... 235


Darlan Pinheiro de Lima
Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de
Martín Pérez (1316) .......................................................................... 253
Marcos Schulz
O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal no
reinado de D. Dinis (1279-1325): os limites do perdão ....................... 279
Cassiano Malacarne
Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X). Notas
sobre a historiografia, a história política e uma proposta de estudo .... 305
Rafael José Bassi
A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação
ibérica medieval: uma análise comparativa da Leges Visigothorum
e da legislação afonsina..................................................................... 327
Irma A. G. Bueno
“Cosas Admirables Fuera de la Orden de la Natura”: Projeto
sobre a Admiração e o Maravilhoso na Península Ibérica
Tardo-Medieval N’O Amadis De Gaula (1508) .................................... 337
Rodrigo Moraes Alberto
O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética sobre a
Fronteira Luso-Castelhana (1509) ..................................................... 355
Edison Bisso Cruxen
A iconografia de Maria Madalena na arte do medievo e da
modernidade: um olhar genderificado ................................................. 375
Cristine Tedesco

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Introdução

Apresentamos ao público mais um volume da série Reflexões sobre o


Medievo, organizada pelo GT de Estudos Medievais da ANPUH/RS. Inicia-
da em 2009 como fruto do I Encontro Estadual de Estudos Medievais do
Rio Grande do Sul – realizado em setembro daquele ano –, a obra chega ao
terceiro volume. Os textos, em sua maioria, são trabalhos apresentados no
II Encontro Estadual de Estudos Medievais, realizado em setembro de 2012,
e no VI Seminário de Estudos Medievais, realizado em setembro de 2011.
Sendo assim, o Grupo de Trabalho de Estudos Medievais da Associação
Nacional de História/Núcleo RS, bem como o Departamento e o Progra-
ma de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul seguem oferecendo ao público – especializado ou não – reflexões
variadas sobre aspectos relacionados à história medieval.
Para o volume 3, procuramos reunir os textos em relação à progra-
mação do evento, bem como segundo as proximidades temáticas. Os dois
primeiros capítulos foram duas conferências. A professora Cybele Crosset-
ti de Almeida (UFRGS/Brasil) apresentou parte dos resultados de seu dou-
toramento, obtido na Universität Bielefeld/Alemanha em 2008. O assunto
principal do texto é o método prosopográfico e suas contribuições para o
estudo sobre as elites econômicas e políticas no final da Idade Média. O
professor Luis Rojas Donat (Bío-Bío/Chile), como indica no título de seu
texto, questiona se a Idade Média foi cristã. Para responder à questão, o
professor apresenta conceitos de religião, devoção e reflexões sobre a ritua-
lidade do cristianismo na Idade Média.
A partir do terceiro capítulo, foram reunidos textos de professores
pesquisadores que colaboram sistematicamente em atividades do GT e/
ou de professores que recentemente passaram a integrar as atividades or-
ganizadas pelo Grupo. Citamos os textos de José Rivair Macedo e Nilton
Mullet Pereira (ambos da UFRGS/Brasil), na primeira situação, e os tex-
tos de André Luís Pereira Miatello (UFMG/Brasil) e Carmen Beatriz Paz
(CONICET/Argentina), no segundo caso.
O texto do professor Macedo apresenta suas recentes preocupações
em torno da história da África. O professor Pereira apresenta uma reflexão

7
Introdução

sobre a noção de fin amour, que foi objeto do seu estudo de pós-doutora-
do, realizado em 2007 na UFRGS. O texto da professora Carmen desta-
ca-se em relação aos demais por tratar de imagens em narrativas hagio-
gráficas e da pintora gótica Teresa Dieç. Os capítulos seguintes compõem
uma análise temática em torno da Ordem dos Irmãos Pregadores, ou do-
minicanos, a partir de diferentes perspectivas teóricas e de documenta-
ção: André Miatello, Carolina Fortes (Universidade Gama Filho/Brasil)
e Igor Teixeira (UFRGS/Brasil) analisam crônicas e questões de gênero,
que foram importantes para a afirmação daquela Ordem mendicante entre
os séculos XIII e XIV.
Mantendo a perspectiva iniciada em 2012 com o volume 2 das Refle-
xões sobre o Medievo, quando foram apresentados resultados de teses de dou-
torado defendidas em 2011, por exemplo, no volume 3 também são apre-
sentados dois textos na mesma situação: o capítulo escrito por Marina Klei-
ne (Universidad de Sevilla/Espanha – tese defendida nessa Universidade em
dezembro de 2012) sobre a chancelaria na corte de Afonso X, e o texto de
Letícia Schneider Ferreira (IFSC/Brasil – tese defendida na UFRGS em maio
de 2012). Também apresentamos o estudo de Felipe Parisoto, desenvolvido
na Universidade de Coimbra em 2011, sobre “comer, beber e jogar nas ta-
bernas medievais”.
Além desses textos, apresentamos as reflexões do professor Nei Nor-
din sobre o ensino de história medieval “na prática”. Esse texto tem origem
no minicurso sobre “metodologias para o ensino escolar de história medie-
val” que fez parte da programação do II Encontro Estadual. Diferentemen-
te do texto apresentado no volume 2, pelo mesmo autor – a respeito da
crônica de Fernão Lopes –, no volume 3 temos a oportunidade de conferir
resultados da sua experiência acumulada de alguns anos de prática docente
na escola básica.
A partir do capítulo 12 apresentamos o fórum de pós-graduação. Du-
rante o II Encontro, a maior parte das mesas-redondas foi composta por
alunos de mestrado e doutorado de programas de Pós-Graduação em His-
tória de Instituições de Ensino Superior do Rio Grande do Sul. Quantitati-
vamente, há um predomínio das atividades concentradas na UFRGS, mas,
felizmente, já apresentamos reflexões com origem em outros programas,
como no caso da PUCRS e da Universidade Federal de Pelotas. Isso, certa-
mente, é algo a ser comemorado. No entanto, como o leitor perceberá, de
uma maneira geral ainda permanecemos com o foco de análise na Penínsu-

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

la Ibérica nos séculos finais da Idade Média. Esta percepção não destoa a
produção dos Programas de Pós-Graduação em História no Rio Grande
do Sul em relação aos demais Programas de IES de outras regiões do país.
Ao mesmo tempo em que percebemos esse predomínio, apresenta-
mos textos que transitam por outros períodos e regiões. O livro Reflexões
sobre o Medievo III contém propostas de análises sobre o reino dos francos
no século X, sobre a Península Itálica nos séculos XIII e XIV, sobre a região
da atual Alemanha. Os temas também se diversificaram: questões políticas
e culturais; aspectos metodológicos; direito(s), crônicas, processos de cano-
nização, arte e ensino.
A Comissão Organizadora do II Encontro Estadual de Estudos Me-
dievais agradece a todos(as) os(as) autores(as) colaboradores(as) pelo pres-
tígio e pela participação nas atividades do GT. Também agradecemos pelo
apoio fundamental da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Algumas contribuições da prosopografia


para a história política e econômica das elites
na Idade Média1

Cybele Crossetti de Almeida*

O ponto de partida deste trabalho foi o meu interesse pela prosopo-


grafia, um método ainda pouco conhecido no Brasil e que articula a histó-
ria institucional com a dos indivíduos2. Um dos pré-requisitos para a utili-
zação deste método é a disponibilidade de uma quantidade abundante de
fontes, que permitam traçar uma rede densa das relações entre estes indiví-
duos e acompanhar suas trajetórias, geralmente através de várias gerações.
O objeto escolhido para o meu estudo foi a cidade alemã de Colônia, entre
1391 e 1513, dois momentos centrais para a história política da cidade3.

1
Texto originalmente publicado nos Anais do XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
Fortaleza, UFCE, 2009, p. 1-12, sob o título: Ética cristã, riqueza e poder: reflexões sobre a
elite dirigente da cidade de Colônia na Idade Média tardia. Para esta publicação o texto original
foi revisto e ampliado.
* Doutora em História pela Universität Bielefeld, Alemanha, com bolsa do CNPq; professora do
Depto. e PPG em História, IFCH/UFRGS.
2
A prosopografia, ao levantar – entre outras questões – a preocupação com a identidade dos
sujeitos históricos (para responder a questão “quem foram eles”), pode cumprir um papel
relevante para descartar generalizações e imprecisões. Sobre a prosopografia vide BULST, 1986,
p. 2s., e também STONE, 1971, p. 46-79: BULST, N. Zum Gegenstand und zur Methode von
Prosopographie. In: BULST, N.; GENET, J.-Ph. (Ed.). Medieval Lives and the Historian: Studies
in Medieval Prosopography (Proceedings of the First International Interdisciplinary Conference
on Medieval Prosopography, University of Bielefeld, 3-5 Dec. 1982). Kalamazoo, Michigan,
1986, p. 1-16; tradução para o português disponível em: <http://periodicos.uesb.br/index.php/
politeia/article/viewFile/190/211>; STONE, Lawrence. Prosopography. In: STONE. The Past
and the Present. London: Routledge, 1987 (originalmente in Daedalus, n. 100, p. 46-79, 1971).
Sobre este tema vide ainda LALOUETTE, Jacqueline. Do exemplo à série: história da
prosopografia. In: HEINZ, F. (Org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2006, p. 55-74, e, na mesma coletânea, CHARLE, Christophe. A prosopografia ou
biografia coletiva: balanço e perspectivas. In: ibid., p. 41-53.
3
Em 1391 ocorre um conflito entre duas facções do patriciado que até então governava a cidade,
e esta cisão facilitou a tomada de poder por outros grupos na chamada revolução de 1396,
quando foi promulgado um documento, Verbundsbrief, que modificava o sistema político da
cidade e acabava com os privilégios do patriciado. Em 1513, este documento recebeu um adendo,
chamado Transfixbrief, que, também após conflitos políticos, fez algumas alterações no
documento original de 1396.

11
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

Colônia foi, durante a Idade Média, uma importante metrópole co-


mercial e cultural, não apenas na região do Reno, mas em todo o oeste do
Sacro Império e centro da Europa, com uma vasta produção artesanal e
redes de comércio do Báltico ao Atlântico. A riqueza obtida com o comér-
cio e a produção artesanal possibilitou a obtenção de privilégios reais, como
o direito de recolhimentos de impostos, que, por sua vez, foram decisivos
para consolidar o poderio da cidade. Política e economia estavam, portan-
to, intimamente entrelaçadas e, por isso é compreensível que alguns dos
maiores historiadores alemães, ao estudar a história de Colônia, tenham
afirmado que a elite dirigente da cidade após 1396 era formada basicamen-
te por grandes comerciantes. O fato de praticamente inexistirem estudos
prosopográficos sobre a cidade renana e sua elite4 é, em grande parte, res-
ponsável por esta concepção, pois uma análise mais detalhada dos indiví-
duos atuantes politicamente permite questionar esta visão, até então domi-
nante, e as generalizações sobre as quais, muitas vezes, esteve baseada. Este
é o objetivo desta apresentação: problematizar a relação dos indivíduos com
suas famílias e demais atores sociais e políticos, traçar o seu perfil e analisar
os diferentes modelos de carreira – na política e fora dela – que compõem o
cenário da cidade de Colônia na Idade Média tardia, para, com o auxílio
da prosopografia, identificar algumas constantes e questionar alguns luga-
res-comuns da prática de relações de poder político e econômico, que se
aplicam não só a Colônia, mas também a outras cidades europeias deste
período.
Muitos dos melhores historiadores da Alemanha estudaram – alguns
durante várias décadas – a história de Colônia na Idade Média e, através
dos seus trabalhos e edições de fontes, sabemos que Colônia – com sua
população entre cerca de 30.000 ou 40.000 habitantes5 – era a maior cidade

4
O que é curioso, porque Colônia é uma das cidades mais pesquisadas da Alemanha e dispunha,
até o desabamento do arquivo histórico da cidade em março de 2009, de uma enorme quantidade
de fontes, essenciais para este tipo de estudo. Os poucos trabalhos que utilizam ou reivindicam
o método prosopográfico aplicado à Colônia são: HUFFMAN, Joseph P. Family, Commerce and
Religion in London and Cologne: Anglo-German Emigrants, c. 1000-c. 1300. Cambridge, 2002;
HEUSER, Peter Arnold. Prosopographie der Kurkölnischen Zentralbehörden: Teil I: Die
Gelehrten Rheinischen Räte 1550-1600: Sudien- und Karriereverläufe, soziale Verflechtung.
RhVjbll, v. 66, p. 264-319, 2002; e HERBORN, Wolfgang; HEUSER, Peter Arnold. Vom
Geburtsstand zur Regionalen Juristenelite – Greven und Schöffen des Kurfürstlichen
Hochgerichts in Köln von 1448 bis 1798. RhVjbll, v. 62, p. 59-160, 1998.
5
IRSIGLER, F. Kölner Wirtschaft im Spätmittelalter. In: KELLENBENZ, Hermann (Ed.). Zwei
Jahrtausende Kölner Wirtschaft. Köln, 1975. v. 1, p. 217-319, aqui p. 225; IRSIGLER, F. Industrial
Production, International Trade and Public Finances in Cologne (XIVth and XVth Centuries).

12
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

do Sacro Império e uma das maiores da Europa a norte dos Alpes. Era
também uma grande metrópole econômica cujas relações comerciais se
estendiam “da Península Ibérica até a região do Danúbio, do Báltico à Silé-
sia e Roma”6. Especialmente importantes eram as relações comerciais com
os Países Baixos7 e com a Inglaterra, onde Colônia, “desde 1157, gozava de
enormes privilégios, que quase lhe permitiam monopolizar o comércio com
a ilha”8.

The Journal of European Economic History, v. 6, p. 269-306, aqui p. 278, 1977; BUSZELLO, H.
Köln und England: 1468-1509. In: Köln, das Reich und Europa. Köln, 1971, p. 431-467, aqui p.
431 (Mitteilungen aus dem Staatsarchiv von Köln, 60).
6
ENNEN, E. Kölner Wirtschaft im Früh- und Hochmittelalter. In: KELLENBENZ (Hg.), 1975,
p. 87-193, aqui p. 187; PLANITZ, H. Das Kölner Recht und seine Verbreitung in der späteren
Kaiserzeit. Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte: Germanistische Abteilung, v. 55, p.
1-40, aqui p. 4, 1935; KELLENBENZ, H. Der Aufstieg Kölns zur mittelalterlichen
Handelsmetropole. JbdKGV, v. 41, p. 1-30, aqui p. 10, 23-24, 1967; CREMER, O. Der Rentenkauf
im mittelalterlichen Köln: Nach Schreinsurkunden des 12. bis 14. Jahrhundert. Diss.
Rechtswissenschaftliche Fakultät, Würzburg, 1936, p. 39; IRSIGLER, F. Die Frankfurter Messen
und die Handelsbeziehungen mit Oberdeutschland im 15. Jahrhundert. In: STEHKÄMPER,
H. (Ed.). Köln, der Rhein und das Reich: Abhandlungen über weiträumige Verflechtungen der
Stadt Köln in Politik, Recht und Wirstchaft im Mittelalter. 1971, p. 341-429, aqui, p. 341s.
(Mitteilungen aus dem Stadtsarchiv von Köln, 60), entre outros.
7
KELLENBENZ, 1967, p. 29; e HOUTTE, J. A. Die Handelsbeziehungen zwischen Köln und
den südlichen Niederlanden bis zum Ausgang des 15. Jahrhunderts. JbKGV, v. 23, p. 141-184,
aqui p. 176s., 1941. Vide também BONENFANT, P. L’origine des villes brabançonnes et la
“route” de Bruges à Cologne. Revue Belge de Philologie et d’Histoire, v. 31, p. 399-447, aqui p. 399-
447, 1953; MILITZER, K.; RÖSSNER, R. Rheinischer Wein in Brügge. In: JÖRN, N.;
PARAVICINI, W.; WERNICKE, H. (Ed.). Hansakaufleute in Brügge: Teil 4: Beiträge der
Internationalen Tagung in Brügge, April 1996. Frankfurt a.M., 2000, p. 227-236, aqui p. 227-
236. Também as relações com a Itália, especialmente com Veneza, eram importantes; vide
BEUTIN, L. Italien und Köln. In: Studi in onore di Armando Sapori. A cura di G. Astuti, E.
Bach, G. Barbieri et al. Milano, 1957, p. 30-46, aqui p. 40s.
8
STEHKÄMPER, H. Die Stadt Köln und Westfalen: Versuch eines ersten Überblicks. Westfalen,
v. 51, p. 346-377, aqui p. 351, 1973; KELLENBENZ, 1967, p. 8, 19, 22; HANSEN, J. Der
englische Staatskredit unter König Eduard III. (1327-1377) und die hansische Kaufleute:
Zugleich ein Beitrag zur Geschichte des kirchlichen Zinsverbotes und des rheinischen
Geldgeschäftes im Mittelalter. Hansische Geschichtsblätter, v. 16, p. 323-415, aqui p. 351s., 1910,
entre outros. Até o século XV os habitantes de Colônia tinham direitos especiais na Inglaterra;
vide a este respeito DÖSSELER, E. Der Handel und Verkehr Westfalens mit Köln zur Hansezeit.
JbdKGV, v. 18, p. 1-64, especialmente p. 51, 193; BUSZELLO, 1971, p. 434; HÖHLBAUM, K,
Kölns älteste Handelsprivilegien für England. Leipzig, 1883, especialmente p. 42, 47s. Devido
a isso, este é um tema bastante estudado; vide, por exemplo, HUFFMAN, J. Prosopography
and the Anglo-imperial Connection: A Cologne Ministerial Family and Its English Relations.
Medieval Prosopography, v. 11, p. 53-134, 1990; HUFFMAN, J. Family, Commerce and Religion in
London and Cologne: Anglo-German Emigrants, c. 1000-c.1300. Cambridge, 2002;
SCHNURMANN, C., Kommerz und Klüngel: Der Englandhandel Kölner Kaufleute im 16.
Jahrhundert. Göttingen/Zürich, 1991 (Veröffentlichungen des Deutschen Historischen Instituts
London, 27).

13
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

Originalmente fundada como uma cidade romana (Colonia Claudia


Ara Agrippinensium), Colônia cresceu e enriqueceu durante a Idade Mé-
dia através de comércio e produção artesanal e, com esta riqueza, adquiriu
privilégios reais9, como a crescente autonomia frente ao Arcebispo da cida-
de, seu senhor legal10, e o direito de instituir e recolher impostos, além do
famoso Kölner Stapelrecht 11. Em 1396, a cidade foi agitada por uma revolta12
que extinguiu o predomínio do poder político do patriciado, abrindo as
portas da participação para diversos grupos sociais, como comerciantes re-
cém-chegados13 e artesãos. Herborn demonstrou que havia diferenças entre
o ideal e a práxis da nova constituição, elaborada logo após a revolução
(HERBORN, 1980, p. 26ss.), – a Verbundbrief, de 1396 –, e defende que a
nova camada dirigente era uma plutocracia, dominada por comerciantes,
pois apenas estes (ou, excepcionalmente, artesãos bem-sucedidos) teriam
condições de preencher o critério da Abkömmlichkeit – disponibilidade de tempo
– necessária para o exercício de cargos políticos não remunerados (HER-
BORN, 1977, p. 330). Mas na análise de Herborn não entra uma considera-
ção importante, a saber: que o caminho mais curto e seguro para a Abkömmli-
chkeit era – como já apontado por Rüthing, por exemplo – o rendimento sem
trabalho, obtido através de negócios imobiliários (RÜTHING, 1981, p. 19 e
23) ou outros tipos de investimentos.
Os trabalhos clássicos de Wolfgang Herborn, Klaus Militzer, Franz
Irsigler, dentre outros, trouxeram-me uma série de questões, como, por exem-
plo: se, em uma cidade tão grande como Colônia, pode-se falar de uma
camada dirigente ou se deveriam ser utilizados outros instrumentos para a
compreensão dos grupos e mecanismos de poder. Assim, utilizando o con-

9
Para estratégias semelhantes adotadas pelo Conselho da cidade de Nürnberg, a fim de obter
privilégios do papa e do imperador, vide STROMER, W. Handel und Geldgeschäfte der Mendel
von Nürnberg 1305-1449. Tradition, v. 11, p. 1-16, aqui p. 5 e 8, 1966.
10
Em 1355, a cidade obteve do imperador Carlos IV o direito de não ter que responder pelas
dívidas e acordos do arcebispo; vide IRSIGLER, 1975, p. 219.
11
Era um direito de mercado – também conhecido como ius emporii – que garantia que os bens
transportados no Reno deveriam ser desembarcados e ofertados no mercado de Colônia, antes
que os navios pudessem seguir viagem; a este respeito vide HENNING, 1891, p. 8-9.
12
Chamada de “revolução” na literatura especializada, apesar de não alterar muitas das estruturas
de poder existentes. Sobre a crítica da utilização deste conceito vide MILITZER, Klaus. Ursachen
und Folgen der innerstädtischen Auseinandersetzungen in Köln in der zweiten Hälfte des 14. Jahrhunderts.
Köln, 1980. p. 143s. (Veröffentlichungen des Kölnischen Geschichtsvereins 36).
13
De diferentes cidades da Alemanha ou outras regiões, como é o caso das famílias Suderman
(de Dortmund), Rinck (de Corbach) e também dos Wasservasse, cujo partiarca, Gehard von
der Hennen, aparece nas fontes do início do século XV identificado com o topônimo von
Esch, localidade nos arredores de Colônia.

14
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

ceito de carreira, central para a prosopografia, procurei investigar os indiví-


duos desta nova camada dirigente nas suas diferentes trajetórias, com uma
abordagem que utilize não apenas o seu desenvolvimento político, mas tam-
bém a analise de uma perspectiva social e econômica. O ponto de partida
foi o fato de que, na Idade Média, poder, prestígio e riqueza eram caracte-
rísticas inseparáveis dos grupos dirigentes, o que não significa, no entanto,
que estes três elementos estivessem disponíveis, na mesma medida, para
cada um dos membros da camada dirigente.
Assim, além da questão sobre o motivo para a clara tendência à oli-
garquização, perceptível após 1396, a utilização do método prosopográfico
neste trabalho trouxe outros questionamentos, como, por exemplo: se é ver-
dade que o antigo patriciado foi substituído após 1396 por uma nova cama-
da dirigente de ricos comerciantes14, por que estes novos poderosos então
geralmente não são designados nas fontes – especialmente os Schreinsbücher15,
uma das mais importantes – como comerciantes? Podemos então pergun-
tar se de fato muitas das posições mais importantes na política não estavam
ocupadas por comerciantes. Como em geral se reconhece que a riqueza é
uma conditio sine qua non para as famílias dirigentes, é importante investigar
de onde vinha a riqueza, tanto para a família como um todo quanto para os
indivíduos separadamente. Também são questões importantes: quem real-
mente pertencia à camada dirigente? Esta camada dirigente não seria mais
bem compreendida se fosse investigada e classificada através de diferentes
modelos de carreira?
Para responder estas questões através de uma análise detalhada fo-
ram selecionadas – para o período de 1391 até 1513 – três famílias princi-
pais que se mantiveram em instâncias do poder durante quase todo o perío-
do, e todos os seus grupos de parentes, que puderam ser comprovadas em
fontes. Assim, além dos Namensträger16 das famílias principais, foram inves-
tigados igualmente pais e irmãos de homens ou mulheres que casaram com
membros das três famílias principais e seus herdeiros na primeira geração.

14
HERBORN, W. Die politische Führungsschicht der Stadt Köln im Spätmittelalter. Bonn, 1977, p.
330 (Rhein. Archiv 100).
15
Schreinsbücher são livros de registros de transações imobiliárias; sobre este tema vide ALMEIDA,
Cybele Crossetti de. Os Schreinsbücher como fonte de pesquisa histórica e genealógica. In:
MALEVAL, Maria do Amparo (Org.). Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais da
ABREM, 2001. Rio de Janeiro: Ed. Ágora da Ilha, 1999, p. 191-197.
16
Os portadores do nome, em uma tradução literal. São, via de regra, os filhos homens da linha
paterna, que mantêm e dão continuidade ao nome da família.

15
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

O conjunto das famílias investigadas elevou-se, deste modo, de três para 25.
Fazem parte do catálogo prosopográfico 97 indivíduos, além de 13 extras,
que não tinham relação direta com as famílias por parentesco, mas tinham
relações próximas com as mesmas e serviram como uma espécie de grupo
de controle, bem como alguns indivíduos que faziam parte das famílias
analisadas, mas que viveram fora do período em questão.
Através do conhecimento dos indivíduos e suas diferentes trajetórias,
foi possível verificar que existiam diversos modelos de carreiras. Para fins
de análise, os indivíduos analisados foram classificados em três categorias,
segundo critérios quantitativos – número de vezes em que foram eleitos
para determinado cargo, como o de conselheiro – e qualitativos, como qual
o cargo para o qual foram eleitos, já que a eleição como conselheiro era
bem mais fácil de obter que a de um cargo como prefeito. Segundo estes
critérios, os indivíduos foram agrupados em: Alpha – Indivíduos eleitos para
o Conselho quatro ou mais vezes, e que exerceram os cargos mais altos,
como o de prefeito. Beta – Indivíduos que foram eleitos para o Conselho
quatro ou mais vezes, sem, no entanto, ocupar os cargos mais altos, como o
de prefeito. Gama – Indivíduos que foram eleitos para o conselho entre uma
e três vezes; também podem ser definidos como conselheiros ocasionais.
Embora o subgrupo gama concentre, em geral, aquilo que podemos chamar
de conselheiros ocasionais, sem uma tradição familiar de participação polí-
tica e provenientes do estrato social dos artesãos, encontramos nesta, como
nas demais categorias, também indivíduos abastados, provenientes das fa-
mílias mais poderosas, o que reforça a noção de uma divisão de trabalho
também no interior das grandes famílias.
A ocupação de cargos na hierarquia política da cidade envolvia não
apenas questão do exercício do poder político propriamente dito, mas tam-
bém prestígio. Pois estas funções desempenhadas – das menos importantes
para as de maior destaque – podem ser claramente enquadradas no modelo
do cursus honorum, que, por sua vez, pode ser definido, de acordo com Dirl-
meier, como “uma escala de prestígio”17.
Assim foi possível compreender melhor a dinâmica política de Colô-
nia e também a nova camada dirigente, que não era homogênea, embora

17
DIRLMEIER, U. Merkmale des sozialen Aufstiegs und der Zuordnung zur Führungsschicht
in süddeutschen Städten des Spätmittelalters. In: GUARDUCCI, A. (A cura di). Gerarchie
economiche e gerarchie sociale secoli XII-XVII (Atti delle Settimani di Studi, Prato, XII). Firenze,
1990, p. 171-215, aqui p. 179.

16
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

após 1396 formalmente não existissem mais limites ao acesso às posições


políticas hierarquicamente superiores. As desigualdades no acesso aos car-
gos políticos não eram mais tão rígidas e claras como antes de 1396, mas
são perceptíveis para todo o período investigado. Os resultados apontam
claramente para uma divisão da camada dirigente em superior e inferior18.
Não se trata de uma divisão rígida, já que as fronteiras entre ambos os
grupos eram frequentemente abertas e porque, para algumas famílias, po-
dem ser encontrados membros em ambos os grupos.
Esta divisão informal em uma camada dirigente superior e uma infe-
rior tinha não apenas funções políticas, mas também administrativas, e re-
gulava o acesso à vida política – embora de modo não oficial – através de
uma divisão com várias gradações. Como simples conselheiros os artesãos
eram não apenas tolerados, mas, inclusive, desejados, mas suas carreiras
permaneciam limitadas dentro de determinadas fronteiras (categorias beta
e gama). Também entre as famílias mais ricas, que atingiam um nível supe-
rior, as carreiras eram diferentes, o que possivelmente se explique através
de uma divisão de trabalho intrafamiliar. Como divisão de trabalho com-
preende-se aqui não apenas o fato de existirem diferentes modelos de car-
reira dentro de uma mesma família, mas também o fato de que nem todos
os membros se dedicavam à política. Ao contrário: para que alguns indiví-
duos – que reuniam tanto a adequação quanto a inclinação – pudessem se
dedicar à política – o que aumentava o prestígio da família como um todo
–, muitas das famílias investigadas estavam dispostas a distribuir os seus
membros em outros campos de atuação, como o comércio e a vida religio-
sa. Dentre estes se encontram irmãos, filhos, mas também esposas, que
frequentemente apoiavam o trabalho de seus maridos na política19.
Esta divisão de trabalho no interior da família permitiu que as famí-
lias politicamente mais importantes se mantivessem por um longo período
em posições de poder. O conceito de divisão do trabalho pode ser aplicado

18
Embora os dois extremos – alpha e gama – possam ser claramente identificados com o que
chamo uma camada dirigente superior e inferior, o subgrupo intermediário, beta, reúne
indivíduos que podem se enquadrar - pelas relações familiares, perfil econômico, etc. – em
ambos. Além disso, mesmo nas famílias mais poderosas há indivíduos distribuídos por todas
estas categorias.
19
Desenvolvi este tema em ALMEIDA, C. C. Poder e divisão do trabalho: a participação das
mulheres no sucesso das famílias dirigentes. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO
GÊNERO (8º, 25-28 ago. 2008, Florianópolis). Corpo, Violência e Poder. Anais... Florianópolis:
UFSC, 2008, texto disponível em: <http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST70/
Cybele_Crossetti_de_Almeida_70.pdf>.

17
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

também à divisão entre uma camada dirigente superior e inferior, ou seja:


alguns indivíduos alcançavam e quase monopolizavam as posições de co-
mando, enquanto outros, embora fossem ativos politicamente, desempe-
nhavam um papel subordinado e, portanto, tinham mais a ilusão da partici-
pação no poder do que o poder propriamente dito.
Sob muitos aspectos, as famílias dirigentes de Colônia assemelha-
vam-se a várias outras, dentro e fora do império. Além das relações famili-
ares – consanguíneas e por parentesco adquirido –, outras formas de socia-
bilidade – através da convivência nas Gaffeln20 e no próprio Conselho, de
relações de amizade e vizinhança ou de interesses comuns, como no comér-
cio – também tiveram um papel importante, e, inclusive, podemos perceber
muitas vezes também um “caráter instrumental”21 destas relações, que podi-
am ser úteis para a vida política. Também a preocupação em legitimar a
riqueza e o poder através da caridade estava presente, não apenas de maneira
instrumental, claro, mas também como fruto da religiosidade característica
da época.
Mas, provavelmente, o que mais diferencia o grupo dirigente de Co-
lônia do de outras cidades é o fato de que em Colônia, na Idade Média
tardia, não se pode simplesmente falar de uma camada dirigente de comer-
ciantes. A suposição de que os indivíduos politicamente ativos fossem co-
merciantes (tal como defendida por Herborn, Irsigler, Ennen, etc.) surge da
inexistência de pesquisas prosopográficas sobre esta elite22. Esta interpreta-
ção tradicional, no entanto, não pode ser aplicada a muitos dos homens
que atingiram posições de destaque em Colônia. O motivo para isso é, pos-
sivelmente, o fato de que ao longo do final da Idade Média, e mais especial-

20
As Gaffeln são uma particularidade política da cidade de Colônia e podem ser definidas como
uma espécie de braço político das associações e corporações de artesãos e de comerciantes.
Para uma maior contextualização das estruturas de participação política em Colônia na Idade
Média tardia – e suas modificações –, vide ALMEIDA, C. C. Entre Veneza e Amsterdã: um
estudo da camada dirigente da cidade de Colônia (séculos XIV-XVI). In: CARVALHO,
Margarida Maria de; LOPES, Maria Aparecida de S.; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.).
As cidades no tempo. Franca, São Paulo, 2005, p. 179-200.
21
REINHARD, W. Freunde und Kreaturen: Verflechtung als Konzept zur Erforschung historischer
Führungsgruppen Römischer Oligarchie um 1600. München, 1979, p. 37-38 (Schriften der
Philosophischen Fachbereiche der Universität Augsburg, 14).
22
Embora possamos, a partir das fontes, reconstruir listas de nomes de conselheiros e prefeitos,
nem sempre é possível descobrir quem eram realmente estes indivíduos. Neste sentido, vale a
pena lembrar a observação básica de Poos: “O que é dado nos documentos são nomes, não
pessoas” (POOS, Lawrence R. Peasant ‘Biographies’ from Medieval England. In: BULST;
GENET [Ed.], 1986, p. 201-214, aqui p. 208).

18
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

mente do século XV, a complexidade da administração das cidades em ge-


ral aumentou, e este foi especialmente o caso de uma cidade grande como
Colônia. Assim, as famílias que tinham mais condições de garantir a dedi-
cação exclusiva de alguns de seus membros à atividade política – conse-
quentemente, com melhores resultados – foram as que atingiram o topo
desta hierarquia política.
Por trás da interpretação da vida política dominada por uma pluto-
cracia (de comerciantes) existe a reflexão de que a nova Constituição da
cidade de Colônia, a Verbundbrief de 1396, concedia um espaço privilegia-
do aos comerciantes, organizados nas Kaufleutegaffeln23. Mas assim como
as Gaffeln de artesãos podiam reunir indivíduos que não desempenhavam
estas atividades – como foi o caso, em fins do século XV, de Johann (VIII.)
von Hirtze, professor universitário, doutor em direito, conselheiro e pre-
feito da cidade e que era associado à Gaffel dos tecelões –, o mesmo se
aplica às Gaffeln identificadas com os comerciantes, que congregavam os
indivíduos mais ricos, mas não necessariamente comerciantes24. Por isso,
defendo a necessidade de problematizar o conceito Kaufleutefamilien (fa-
mílias de comerciantes), que frequentemente é impreciso e generalizante,
podendo, inclusive, levar a erros. Um exemplo claro disso se encontra em
Hirschfelder, que afirma que, no ano 1417,
os cidadãos de Colônia Conrad Niden e Johann vanme Hircze [estiveram]
durante algum tempo em Constança. Enquanto Hirtze possivelmente tam-
bém fazia negócios, para o clérigo Niden certamente o Concílio [de Cons-
tança] estava no centro dos interesses.25

A afirmação de Hirschfelder é baseada na suposição de que este Jo-


hann von Hirtze26 fosse um comerciante, já que ele pertencia à família Hirt-

23
Por exemplo, IRSIGLER, F., Soziale Wandlungen in der Kölner Kaufmannschaft im 14. und
15. Jahrhundert. Hansische Geschichtsblätter, v. 92, p. 59-78, aqui p. 67, 1974. Esta interpretação,
no entanto, é muito simplista para explicar as complexas relações de poder dentro do Conselho
de Colônia.
24
Como já tive oportunidade de demonstrar em minha tese. Para aprofundar o assunto vide:
ALMEIDA, C. C. Prosopographische Untersuchung zu Kölner führenden Familien im Spätmittelalter.
Tese (Doutorado) – Universität Bielefeld. Faculdade de História, Filosofia e Teologia,
Alemanha, 2008, 925 p. Disponível na Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanas
(BSCSH) da UFRGS.
25
HIRSCHFELDER, G. Die Kölner Handelsbeziehungen im Spätmittelalter. Köln, 1994, p. 525
(Veröffentlichungen des Kölnischen Stadtmuseums, Hrsg. v. Werner Schäfke, Heft X).
26
O erro de Hirschfelder é facilmente compreensível, já que existem nada menos que onze
indivíduos com o nome Johann von Hirtze no período analisado. Fatos como este evidenciam
a necessidade de um estudo exaustivo como o prosopográfico, já que apenas através do contexto
em que estão inseridos é que eles podem ser identificados.

19
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

ze, que seria uma família de comerciantes (Kaufleutefamilie)27, como apon-


tado, por exemplo, por Irsigler. O que Hirschfelder desconhece é que este
Johann von Hirtze do início do século XV não era comerciante, mas sim
doutor em direito, professor da universidade de Colônia entre 1414 e 1426
(KEUSSEN, 1919, p. 26), e também auxiliar do Conselho da cidade em
questões jurídicas (Mitt. 18, p. 64). Sua presença em Constança tinha rela-
ção direta com o Concílio (de 1414 a 1418), tanto quanto a de Conrad
Niden, já que ele também era clérigo, já havia atuado anteriormente como
advogado da Cúria da cidade (KEUSSEN, 1919, p. 26) e, posteriormente,
como pároco da igreja de St. Martin (HUISKES, 1988, p. 115). O raciocí-
nio de Hirschfelder é simples: ele confunde duas famílias de Colônia, os
Hirtze e os Hirtze von der Landskrone, e por isso supõe que também a
primeira fosse uma família de grandes comerciantes28.
Mas não apenas para a família Hirtze não se encontrou nenhum en-
volvimento direto com comércio no século XV; também é questionável se,
no caso da família von der Landskrone, pode-se falar de uma família de
comerciantes, já que apenas um dos seus membros – Diederich (II.) von
Hirtze von der Landskrone29 – teve atuação neste campo, durante o perí-
odo. Através de um estudo detalhado foi possível constatar que algumas
famílias classificadas como Kaufleutefamilien não poderiam ser considera-
das como tais entre 1391 e 1513, pois frequentemente encontramos para
estas apenas um ou dois membros ativos como comerciantes, e em alguns
casos isso é válido já para o século XIV. Estas considerações podem ser
mais claramente compreendidas quando cruzamos os dados da participa-
ção política com aqueles da atividade econômica, como na tabela a se-
guir:

27
Hirschfelder provavelmente tomou de maneira acrítica a interpretação de Irsigler, que, apesar
de sua inquestionável importância como historiador, apresenta problemas na identificação de
indivíduos das famílias Hirtze e Hirtze von der Landskrone; vide IRSIGLER, 1979, p. 312.
Estes problemas são, aliás, bastante comuns na pesquisa em Idade Média, como demonstrado
por Rüthing; vide RÜTHING, H. Der Wechsel von Personennamen in einer
spätmittelalterlichen Stadt: Zum Problem der Identifizierung von Personen und zum sozialen
Status von Stadtbewohnern mit wechselnden oder unvollständigen Namen. In: BULST, N.;
GENET, J.-Ph. (Ed.) 1986, p. 215-225, especialmente p. 215s.
28
HIRSCHFELDER, 1994, p. 88. Este autor comete o mesmo erro que Fahne, que foi corrigido
por Lau já no século XIX; vide LAU, 1895, p. 113.
29
Diederich (II) von Hirtze von der Landskrone atuou como importador de peles entre 1460 e
1469 (IRSIGLER, 1979, p. 236), e também como representante comercial de Alf von der Burg
e Johann (II) von Dauwe na França e Navarra (KUSKE, 1917, p. 89; IRSIGLER, 1979, p. 302
e HIRSCHFELDER, 1994, p. 48).

20
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Participação na política
Alpha Beta Gama Total
Participação no comércio
Grande – 15 anos ou mais no comércio 1 2 1 4
Média – de 5 até 10 anos no comércio – 3 – 3
Pequena – até 5 anos no comércio 4 3 2 9
Nenhuma 8 7 12 27
Total 13 15 15 43

Dos 13 indivíduos que pertencem ao subgrupo Alpha, apenas cinco


praticaram comércio, dos quais apenas um, Johann (I) von Dauwe, que
viveu na virada do século XIV para o XV, praticou comércio por mais de 15
anos. Os outros quatro indivíduos, que também praticaram comércio, tive-
ram uma participação bem mais reduzida, por até cinco anos apenas ou
ainda como sócios de companhias de comércio. Um destes indivíduos foi
Johann (II) von Dauwe, que representa um caso interessante. Ele era sócio
de uma companhia de comércio com Alf von der Burg e encarregou seus
filhos – que não eram ativos na política –, já em 1456, da condução de
negócios na Península Ibérica30. Após esta menção, ele não aparece mais
como comerciante. Mas no ano de 1475, já como prefeito de Colônia, Jo-
hann (II) von Dauwe foi encarregado pelo imperador Friederich III de com-
prar seda – em diferentes cores e quantidades31. Ele fez a compra e enviou o
produto para o imperador, mas não é esclarecido se age como prefeito ou
como comerciante. A favor da primeira interpretação temos o fato de que ele
é mencionado não como comerciante, mas como prefeito. A isso soma-se o
fato de que – em 22 de maio de 1475 – ele informou o imperador sobre o
cumprimento do encargo e que o imperador logo após – em 24 de maio do
mesmo ano – comunicou à cidade que seus gastos com a guerra da Borgonha
seriam recompensados com taxas alfandegárias sobre o comércio no Reno32.

30
KUSKE, Bruno (Hg.). Quellen zur Geschichte der Kölner Handels und Verkehrs im Mittelalter. v. 4
(Publ., 33), Düsseldorf, reedição de 1978 (originais: Bonn, 1917-1934); nas próximas citações
conforme o volume indicado: KUSKE, Quellen II, p. 89. Vide também IRSIGLER, Franz.
Die wirtschaftliche Stellung der Stadt Köln im 14. und 15. Jahrhundert: Stukturanalyse einer
Spätmittelalterlichen Exportgewerbe- und Fernhandelsstadt. Wiesbaden, 1979, p. 302 e 308.
(Viertjahrschrift für Sozial- und Wirtschaftsgeschichte, Bd. 65. Hrsg. v. Otto Brunner, Hermann
Kellenbenz u.a.).
31
KUSKE, Quellen II, p. 324: “14 Ellen swartz oder bruyn ruwe samdt ind vunf lot sijden von
derselver varwen.”
32
Ibid., p. 324.

21
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

É conhecido que empréstimos e presentes de membros dos Conselhos das


cidades medievais para os reis e imperadores eram pagos, frequentemente,
com favorecimentos, isenções ou atribuições de taxas especiais. Isso se deve
ao fato de que estes governantes tinham permanentemente necessidade de
dinheiro e não tinham outras formas de pagar suas dívidas a não ser com a
concessão de privilégios. Esta prática é sintetizada por Pierre Monnet na
expressão “Stadtgeld macht frei”, que altera a fórmula medieval conhecida
– “Stadtluft macht frei” (o ar da cidade liberta) – colocando que é o dinheiro
da cidade que compra suas liberdades33.
Como não foi encontrada nenhuma outra referência a uma atividade
comercial de Johann (II) von Dauwe após 1456, a compra de seda para o
imperador em 1475 representa um caso isolado, após uma pausa de quase
20 anos. Isto permite concluir que, nesta ocasião, ele atuava – aproveitando
sua experiência prévia como comerciante e os contatos advindos desta ati-
vidade – como representante da cidade, e não como uma privat person, co-
merciante, no caso.
No subgrupo beta é possível verificar, em comparação com o alpha,
mais participação em comércio: 2 conselheiros com grande participação, 3
com média e 3 com pequena participação no comércio. O mais curioso dos
casos é a análise do subgrupo gama. Inicialmente foi levantada a hipótese
de que este subgrupo concentraria a maior participação no comércio. O
fato dos resultados provarem o contrário do esperado (apenas um conse-
lheiro como grande comerciante e dois como pequenos) pode ser explicado
pelo fato de que este subgrupo concentra indivíduos que morreram cedo –
como é o caso de Frank Rummel, por exemplo – e que estes indivíduos,
portanto, tiveram uma participação pouco intensa em ambas as atividades:
no comércio e na política. Isso deve-se ao fato de que alguns deles – como é
o caso de Peter von Wasservase – viveram mais fora do que em Colônia. Há
também indivíduos, como com os irmãos Johann (I) e Johann (II) von Hirtze,
assim como, posteriormente, Johann (II) von der Eren e Werner Quatter-

33
Stadtgeld macht frei: oder wie eine Stadt ihre Unabhängigkeit kauft: Frankfurt am Main im 14.
Jahrhundert. Apresentação no Kolloquium da Universität Bielefeld, coordenado pelo Professor
Neithard Bulst em 30 de outubro de 1997. Uma análise semelhante pode ser encontrada em
HENNING, Albrecht. Steuergeschichte von Köln in den ersten Jahrhunderten städtischer Selbständigkeit
bis zum Jahre 1370 (Dissertation, Universität Leipzig). Dessau, 1891, p. 6s.; e STROMER,
Wolfgang. Reichtum und Ratswürde in Nürnberg, in: ID. (Hg.). Oberdeutsche Hochfinaz: 1350-
1450. Wiesbaden, 1970, p. 295-341, aqui p. 308 (Vierteljahrschrift für Sozial- und
Wirtschaftsgeschichte, 55-57).

22
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

mart, cuja pouca participação na vida política deve-se à sua participação


em revoltas e disputas políticas, como foi o caso dos dois primeiros em
1396 e dos dois últimos em 1481.
Para compreender estes dados é preciso levar em conta que, apesar
de uma crescente valorização da atividade comercial, o prestígio dos co-
merciantes ainda não era muito grande em fins da Idade Média. Este fenô-
meno não se restringe ao Sacro Império, como mostram as pesquisas de
Teofilo Ruiz sobre os caballeros-villanos e as de Fédou e Wolff sobre as famí-
lias Ysalguier e Jossard, respectivamente34. A pouca valorização da ativida-
de comercial em Colônia, especificamente, pode ser percebida, por exem-
plo, no fato de que – em milhares de entradas dos Schreinsbücher que foram
analisadas, a identificação de indivíduos como comerciantes só foi encon-
trada duas vezes. Em ambas trata-se de um comerciante italiano, Franciscus
van Busti, mencionado como “koufman van Meylen” (comerciante de Mi-
lão): primeiro em uma entrada de 1396 e após, novamente, em 140035. Isso
permite concluir que a designação/identificação como comerciante não era
muito apreciada – e por isso pouco utilizada – pelos cidadãos de Colônia, a
não ser para identificar comerciantes estrangeiros ou quando era necessá-
rio apresentar ou defender os seus próprios comerciantes para outras cida-
des, príncipes, etc., como é o caso em um outro grupo de fontes, as Brie-
fbücher – livros de cartas (expedidas e recebidas) – da cidade, onde são mui-
to comuns os casos de roubo ou sequestro de comerciantes ou seus bens.
Como os Schreinsbücher distribuem fartamente não apenas títulos
honoríficos – como Herr (senhor), Ritter (cavaleiro), Doktor (doutor), etc. –,
mas também indicações de profissões artesanais – como padeiro, pintor,
sapateiro, etc. –, é possível concluir que mesmo indivíduos que desempe-
nhavam a atividade de comerciantes, ao contrário dos artesãos36, que não

34
WOLFF, Phillipe. Une famille du XIIIe au XVIe siècle: les Ysalguier de Toulouse. Mélanges
d’Histoire Sociale; Annales d’Histoire Sociale, v. 1, p. 35-58, 1942; FÉDOU, Henri. Une familie
aux XIVe et XVe siècles: les Jossard de Lyon. Annales E.S.C. (D’Histoire Sociale), v. 9, n. 4, p.
461-480, 1954; e RUIZ, Teofilo. The Transformation of the Castilian Municipalities: The Case
of Burgos 1248-1350. Past and Present, v. 77, p. 3-32, 1977; RUIZ, Teofilo. Two Patrician Families
in Late Medieval Burgos: The Sarracin and the Bonifaz. In: ID. (Ed.). The City and the Realm:
Burgos and Castile 1082-1492. Aldershot, 1992, p. 1-15.
35
Schrb. 74/78v e 74/82v.
36
Sobre este tema pronuncia-se Francis Rapp: “Wie in Straßburg sah man auch in Basel mit
Mißtrauen auf die unteren Schichten herab. Die Gesellen wollten mit den Knechten nichts
gemein haben, nicht einmal den Namen. Noch weniger hätte es ihnen gefallen, arbeiter genannt
zu werden, war doch letzteres Wort da, um die Tagelöhner zu bezeichnen. Dagegen tönte
Müßiggänger nich anangenehm: Müßiggänger waren nicht ausschließlich, jedoch hauptsächlich

23
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

tinham a possibilidade de utilizar estes títulos honoríficos, preferiam ser


conhecidos e lembrados por outras designações e ocupações, como aquelas
identificadas com a atuação política37, já que esta atividade conferia mais
prestígio. Aliás, o crescente prestígio – ou busca de – por parte dos indivíduos
que participavam da vida política da cidade também pode ser identificado
através da frequência cada vez maior de adjetivos como vorsichtige, ersame
etc., nos Schreinsbücher.38
Esta interpretação é consolidada por casos como o de Heinrich (I) Su-
derman, um comerciante que também foi membro do Conselho de Colônia,
mas foi expulso do mesmo em 1418 por negócios escusos39. É importante
ainda lembrar o trabalho de Franz Irsigler que analisa o testamento de Jo-
hann Rinck, comerciante e político de Colônia, que afirma explicitamente
que não desejava que seus filhos seguissem seus passos como comerciantes40.

die von Renten lebenden Patrizier, Ritter und Achtburger” (RAPP, Francis. Sozialpolitische
Entwicklung und volkssprachlicher Wortschatz im spätmittelalterlichen Strassburg. In:
STACKMANN, K.; FLECKENSTEIN, J. (Hg.). Über Bürger, Stadt und städtische Literatur im
Spätmittelalter. Göttingen, 1980, p. 146-160, aqui p. 159 [Abhandlungen der Akademie der
Wissehschaften in Göttingen, Philosogisch-Historische Klasse, Folge 3, Nr. 121]). Sobre a
importância das palavras vide também ibid., p. 159-160. São também significativos os resultados
do estudo de Portmann sobre a cidade de Freiburg na Suíça. Este autor mostra que entre os
membros do Conselho da cidade um grande número aparecia como “sem profissão” (Berufslose),
e o mais significativo é que “muitos destes ‘Berufslosen’ na realidade eram comerciantes ou
rentiers” (“dass diese in vielen Fällen Händler und Rentner waren”) (PORTMANN, Urs.
Bürgerschaft im mittelalterlichen Freiburg: Sozialtopographische Auswertungen zum ersten
Bürgerbuch 1341-1416. Freiburg, 1986, p. 183 [Historische Schriften der Universität Freiburg,
11]). Complementar a esta observação é a constatação, pelo mesmo autor, de que o número
dos supostos “sem emprego” (Berufslosen) era maior entre as associações mais importantes da
cidade (ibid., p. 183).
37
Rogge chegou a esta mesma conclusão no seu estudo sobre a elite de Augsburg: “Parece que o
cargo tornou-se, dentro da elite, um critério de distinção mais importante que outras
características sociais e políticas do poder (origem, riqueza, profissão” (ROGGE, Jörg. Für
den gemeinen Nutzen: politisches Handeln und Politikverständnis von Rat und Bürgerschaft in
Augsburg im Spätmittelalter. Tübingen, 1996, p. 285 [Studia Augustana, 6]). Também a nova
elite da cidade de Colônia “não cria nenhuma denominação para si, não se concede nenhum
nome” (ibid., p. 156). O título “Herr” (senhor), comumente utilizado para nobres e membros
do clero, em Colônia era, significativamente, também empregado para os prefeitos da cidade.
38
Respectivamente: cuidadoso e honrado.
39
HUISKES, Manfred. Beschlüsse des Rates der Stadt Köln, 1320-1550. (Publikationen der Gesellschaft
für Rheinische Geschichtskunde, Bd. 65; Bd. I bearb. von Manfred HUISKES), p. 107.
40
IRSIGLER, Franz. Kaufmannsmentalität im Mittelalter. In: MECKSEPER, C.; SCHRAUT,
E. (Hg.). Mentalität und Alltag im Spätmittelalter. Göttingen, 1985, p. 53-75, aqui p. 71. A família
Rinck não foi analisada por mim, por não manter vínculo de parentesco com as famílias centrais
durante o período estudado. No entanto, se fosse aplicado o modelo de análise e subcategorias
aqui desenvolvido para Johann Rink, ele seria enquadrado no subgrupo beta, já que, apesar de
ter sido eleito para o Conselho regularmente durante 21 anos, nunca chegou a ocupar o cargo
máximo de prefeito da cidade.

24
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A desvalorização da atividade comercial não era, como afirmado


anteriormente e verificado nos trabalhos de Ruiz, Fédou e Wolff, algo res-
trito a Colônia. A análise empreendidas por estes autores mostra famílias
que, embora devam, via de regra, sua riqueza e poder à atividade comercial
de alguns ancestrais, tendem – ao longo das gerações – a se afastar gradual-
mente desta atividade, que vai sendo substituída pelo engajamento na polí-
tica local ou regional, compra de bens imóveis e rendas e – em alguns casos
– inclusive de títulos de nobreza, de modo que cada geração se afasta um
pouco mais deste padrão inicial. O fato de que as últimas gerações de algu-
mas famílias frequentemente atestem perda de riqueza – e, muitas vezes,
também de poder e prestígio – mostra o quão difícil era para elas adaptar-se
a um outro estilo de vida41.
Este fenômeno, inclusive, não se restringe à Idade Média e sua sobre-
vivência pode ser atestada, por exemplo, nas expressões “pai rico, filho nobre,
neto pobre”42 e no seu complemento: “A primeira geração constrói, a segunda
usufrui e a terceira destrói”43, o que permite utilizar o conceito de espírito dos
pioneiros, como faz Fédou44. Outros estudos para Colônia também verifica-
ram esta tendência, como a análise de Militzer sobre a família von Bach,
que conclui afirmando: “Os netos liquidaram a empresa em 1421. [...]. As-
sim se mostra, também em Colônia, a terceira geração frequentemente como
o ponto fraco das famílias de comerciantes.”45
Deve-se ainda considerar que o afastamento da atividade comercial
nem sempre esteve relacionado à busca de segurança – tanto pessoal quan-
to dos investimentos –, já que muitos dos indivíduos investigados, que não

41
FEDOU, 1954, p. 472s.; e também WOLFF, 1942, p. 49s.
42
Exemplos disso podem ser encontrados em BURSCHEL; HÄBERLEIN, Familie, Geld und
Eigennutz: Patrizier und Großkaufleute im Augsburg des 16. Jahrhundert. In: DEUTSCHES
HISTORISCHES MUSEUM BERLIN (Hg.). “Kurzweil viel ohn’ Maß und Ziel”: Alltag und Festtag
auf dem Augsburger Monatsbildern der Renaissance. München, 1994, p. 48-65, aqui p. 54.
43
Exemplos neste sentido são mencionados em HÄBERLEIN, Mark. Familiäre Beziehungen
und geschäftliche Interessen: Die Augsburger Kaufmannsfamilie Böcklin zwischen Reformation
und Dreißigjährigem Krieg. Zeitschrift des Historischen Vereins für Schwaben, v. 87, p. 39-58, aqui p.
47, 1994; e HÄBERLEIN, Mark. Jakob Herbrot (1490/95-1564): Großkaufmann und
Stadtpolitiker. In: HABERL, Wolfgang (Hg.). Lebensbilder aus dem Bayerischen Schwaben.
Weißenhorn, 1997, p. 69-111, aqui p. 98ss. (Veröffentlichungen der Schwäbischen
Forschungsgemeinschaft bei der Kommission für Bayerische Landsgeschichte, Reihe 3, Bd. 15).
44
“Des âmes de pionniers”, FEDOU, 1954, p. 474.
45
MILITZER, Klaus. Tuchhandel und Tuchhändler Kölns in Österreich und Ungarn um 1400.
In: Kaiser Karl IV: 1316-1378. Forschungen über Kaiser und Reich, ed. Hans Patze. Göttingen,
1978, p. 265-288, aqui p. 276. (Sonderabdruckt der Aufsatze aus “Blätter für Deutsche
Landsgeschichte”, 114).

25
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

tinham nenhuma participação direta no comércio de longa distância, tam-


bém se envolveram – atuando como políticos, diplomatas e representantes
de sua cidade – em várias e difíceis viagens, além de financiar com seus
próprios recursos obras públicas ou caritativas, como hospitais. Os riscos
da vida de comerciante, portanto, não podem ser considerados como os
únicos motivos para o afastamento do comércio, pois muitos dos conselhei-
ros e prefeitos da cidade de Colônia se expunham a estes riscos para desem-
penhar suas funções e alguns deles foram, inclusive, sequestrados, maltra-
tados e mortos. Os indivíduos que mais se expunham a estes riscos eram
aqueles com uma carreira política mais consolidada, pertencentes aos
subgrupos alpha ou beta.
Um exemplo da grande quantidade de tempo despendido em viagens
a serviço da cidade é o de Johann Frunt, que exerceu as funções de proto-
notário e chanceler de Colônia e morreu em 1464 em consequência das
dificuldades/maus-tratos das viagens46.
Nem sempre o desfecho era tão dramático, mas as fontes indicam o
quanto conselheiros e prefeitos despendiam de tempo em viagens a serviço
dos negócios da cidade. É o caso, por exemplo, de Godert (I) von Hirtze,
que, em 1398, viajou como representante da cidade junto ao rei, em Frank-
furt47. Johann (VI) von Hirtze, que também faz parte do subgrupo Alpha,
foi enviado como representante da cidade também para Frankfurt – para
negociar taxas alfandegárias em 144648; em 1454, ele foi enviado pelo Con-
selho para negociar com o arcebispo Dietrich II de Colônia49; entre 1460 e
1461, foi enviado para negociar com o rei Carlos VII, da França50; e, em
1465, representou a cidade na Geldrische Frage51. Seu sobrinho, Johann

46
STEIN, Walter (ed.). Akten zur Geschichte der Verfassung und Verwaltung der Stadt Köln im 14. und
15. Jahrhundert. 2 v. Bonn, 1893-95, aqui v. I, p. CLVIss. (Publ., Bd. 10) (nas próximas citações:
STEIN, Akten I).
47
KELLER, K. (ed.). Die stadtkölnische Kopienbücher, 1373-1401, Regesten. In: Mitteilungen
aus dem Stadtarchiv von Köln. v. 4, 1883, p. 51-111, aqui p. 78: “An Rentmeister Ritter Goedart
v. Hirtze und seine andern Gesandten in Frankfurt: fordert Unterstützung der vor König zitierten
Juden und Wahrung des städtischen Interesses gegen Johan Canys.” Vide também as p. 82, 83
e 84, com missões no mesmo sentido.
48
KUSKE, Quellen I, p. 390.
49
Juntamente com o conselheiro Godert (II) von Wasservase e o protonotário Edmund Frunt
(KUSKE, Quellen II, p. 70).
50
Juntamente com Johann van Berck e Berthold Questenberg (KUSKE, Quellen II, p. 112).
51
Juntamente com Johann van Breyde, Johann Pennynck, Joist van Dordrecht, Wilhelm van
Lyskirchen, Johann Koelgijn, Konrad van Berchem e o prefeito Johann (II) von Dauwe
(KUSKE, Quellen II, p. 163).

26
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

(VIII) von Hirtze, que também integra o subgrupo Alpha, viajou para tratar
de negócios da cidade em Roma, em 147852, e novamente em 148553; no
ano de 1488, ele atuou como representante da cidade junto ao imperador54;
em 1490, representou a cidade junto ao imperador Frederico III nas nego-
ciações em Enger55, 1491, representou a cidade no Reichstag em Nürnberg56.
Este tipo de atividade é uma constante nos indivíduos de destaque de
todas as famílias analisadas. Godert (I) von Wasservase, que também perten-
cia ao subgrupo Alpha, foi enviado pelo Conselho em 1445 – juntamente com
Johann Frunt – como representante na questão da Holanda57; em 1447, ele
atuou como enviado do Conselho na reunião da Hansa em Lübeck58; e, ain-
da no mesmo ano, foi enviado como representante do Conselho junto ao
duque Philipp von Burgund59; em 1450, atuou como intermediário entre o
Conselho de Colônia e o bispo de Lüttich60; nos anos 1452 e 1453, foi envia-
do para negociar com o imperador61; e, em 1453, foi enviado, novamente,
como representante do Conselho junto ao duque Philipp von Burgund62. Seu
filho, Godert (II) von Wasservase, que também pertence ao subgrupo Alpha,
igualmente dedicou grande parte do seu tempo às viagens como represen-
tante do Conselho: em 1454, ele foi enviado, juntamente com o prefeito Jo-
hann (VI) von Hirtze e o protonotário Edmund Frunt, para negociar com o
arcebispo Dietrich II. von Köln63; em 1454, o Conselho o enviou para Deven-

52
KEUSSEN, Herman (ed.). Die Matrikel der Universität Köln: 1389-1559. (Publ., VIII ), Neudruck
und Weiterführung Düsseldorf, 1979-1981 (originalmente: 3 v., Bonn, 1892-1931. Aqui
KEUSSEN, Matrikel I, p. 590. Vide também ID. (ed.). Regesten und Auszüge zur Geschichte
der Universität Köln 1388-1559. Mitteilungen aus dem Stadtarchiv von Köln, n. 36/37, 1918 (nas
próximas citações: Mitt. 36/37), p. 220.
53
KEUSSEN, Matrikel I, p. 590. Vide Mitt. 36/37, p. 220.
54
HEGEL; CARDAUNS (Hg.). Die Chroniken der niederrheinischen Städte (Köln). 3 v. Göttingen,
1875-77, aqui v. 14, p. 873. (Die Chroniken der deutschen Städte vom 14. bis 16. Jahrhundert,
Bde. 12, 13, 14).
55
ENNEN, Leonard. Geschichte der Stadt Köln, meist aus den Quellen des Kölner Stadt-Archivs. 6 v.
Köln und Neuß, 1860-1880. (Reimpr. Köln: Bachem Verlag, 1970). Aqui (e nas próximas
citações) ENNEN, Geschichte III, p. 622.
56
ENNEN, Geschichte III, p. 624.
57
KUSKE, Quellen I, p. 364,
58
KUSKE, Quellen I, p. 390 e p. 407.
59
KUSKE, Quellen I, p. 414.
60
KUSKE, Quellen II, p. 21.
61
KEUSSEN, Hermann (ed.). Das Urkunden-Archiv der Stadt Köln seit dem Jahr 1397. HUA,
Inventar VI, 1451-1480. In: Mitteilungen aus dem Stadtarchiv von Köln, n. 38, 1926, p. 92-215,
aqui p. 101; e também KUSKE, Quellen II, p. 30.
62
KUSKE, Quellen II, p. 54.
63
KUSKE, Quellen II, p. 70.

27
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

ter, cidade com a qual Colônia tinha vários negócios e disputas comerciais64.
Em 1486, após mais de 30 anos de serviço à Cidade, ele foi enviado novamente
como seu representante junto ao imperador65. E estes são apenas alguns – pou-
cos – exemplos, para não tornar a exposição excessivamente longa66.
Os resultados deste trabalho mostram que é preciso encontrar outras
respostas para a pergunta por que tantos membros da elite política afasta-
vam-se do grande comércio e buscavam outras fontes de rendimentos. Não
apenas o “uso crescente da escrita, o refinamento dos métodos de adminis-
tração e o aumento das competências do Conselho”67, como afirma Milit-
zer, mas também a busca da nova elite dirigente por mais poder e prestígio
também teria influenciado este desenvolvimento. Deve se considerar que
entre os dois polos de conselheiros-comerciantes e conselheiros-juristas,
como propõe Schilling68, havia um grande grupo intermediário, que não se
encaixava nem em uma nem em outra categoria e ainda precisa ser bem
mais investigado.
A nova elite dirigente de Colônia tinha muito em comum com o an-
tigo patriciado, já que ambos tinham a nobreza como modelo. Por isso, a
afirmação de Louise von Winterfeld sobre o patriciado também pode ser
aplicada a ela, a saber: “Eles queriam ficar ricos e governar, gozar e de-
monstrar sua riqueza publicamente, e aplicá-la de tal modo que seus filhos
conseguissem, com menos esforço que eles mesmos, manter e aumentar a
riqueza e o poder”69. Esta tendência manteve-se não apenas no século XV,
mas também no XVI, quando ela foi ainda – aparentemente – aprofunda-
da, como se pode concluir da leitura dos textos de Hermann von Weins-
berg, provavelmente a personalidade política mais conhecida de Colônia.

64
KUSKE, Quellen I, p. 358.
65
HUISKES, Beschlüsse I, p. 703.
66
Uma revisão completa destas e outras atividades se encontra no catálogo prosopográfico que
compõe minha tese de doutorado.
67
MILITZER, Ursachen und Folgen, p. 89.
68
SCHILLING, Heinz. Vergleichende Betrachtungen zur Geschichte der Bürgerlichen Eliten in
Nordwestdeutschland und in den Niederlanden. In: SCHILLING, H.; DIEDERIKS, H. (Hg.).
Bürgerlichen Eliten in dem Niederlanden und in Nordwestdeutschland. Köln/Wien, 1985, p. 1-32,
aqui p. 12.( Studien zur Sozialgeschichte des europäischen Bürgertums im Mittelalter und in
der Neuzeit. Städteforschung, Reihe A: Darstellungen, Bd. 23).
69
WINTERFELD, Luisa. Handel, Kapital und Patriziat in Köln bis 1400. Pfingstblätter des
Hansischen Geschichtsvereins, Lübeck, n. XVI, p. 3-83, aqui p. 65, 1925. “Sie wollten reich werden
und herrschen, ihren Reichtum genießen und öffentlich zeigen, dazu ihr Vermögen möglichst
so anlegen, daß ihre Kinder, unter geringeren Mühen als sie selbst, Reichtum und Macht erhalten
und steigern konnten.”

28
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Este indivíduo, que orgulhava-se tanto da sua atuação política quando da


sua situação de Rentier70, afirmava que
nunca precisei realizar nenhum trabalho penoso [...] mas sim ler e escrever,
advogar e solicitar e negociar, isso eu sempre fiz, pelo Conselho, paróquia,
Gaffel, pelas questões dos amigos e dos estranhos, [de modo que] nunca fi-
quei desocupado e sem trabalho.71
Os exemplos apresentados – embora claramente não esgotem o pro-
blema – são suficientes para problematizar as interpretações normalmen-
te apresentadas, pois mostram um desvio do que é, em geral, considerado
o normal, a saber: que nas famílias que se ocupavam mais com o comér-
cio a atividade política não era tão importante, e também o contrário: as
famílias que se dedicavam preferencialmente à política não se destaca-
vam na atividade comercial.
Seria ainda interessante, embora ainda mais difícil, porque as fon-
tes são ainda mais econômicas a este respeito, levantar-se a necessidade
de investigar em que medida também a atividade econômica – dentro das
comunidades e mesmo das famílias – poderia ser classificada em diferen-
tes tipos, se aqui também haveria complementaridade e divisão de traba-
lho segundo as gerações ou entre irmãos e esposos72. Com isso, seria cer-
tamente mais precisa a observação, análise e comparação entre as elites
políticas e econômicas. Este tipo de estudo, com certeza, não pode ser
feito sem o recurso à prosopografia.

Conclusão
Os resultados encontrados para Colônia se enquadram na atitude
ambivalente do homem medieval frente à riqueza e ao comércio, um fe-
nômeno reconhecido e pouco contestado: por um lado, como hoje, a ri-
queza era desejada, procurada efetivamente, muitas vezes sem escrúpu-

70
JÜTTE, R. Household and family life in late sixteenth-century Cologne: The Weinsberg family.
Sixteenth Century Journal, v. 17, p. 165-82, aqui p. 168, 1986.
71
Das Buch Weinsberg II, p. 373; citado ap. JÜTTE, Household, p. 168. No original: “[…] kein
besonder grobe leibsarbeit hab ich zu verrichten, auch nit vil reitens oder zugains, aber lesens
und schreibens, advocerens, solliciterns und handlens hab ich immer wirk, miteins raitz, kirspel,
gaffelen, der frunde und fremden sachen bin ich auch nit ohn arbeit und unrawe.”
72
Sobre a heterogeneidade da categoria social “comerciantes” também se pronuncia LEÓN,
Juan Manuel B. Mercaderes extranjeros en Sevilla en tiempos de los reyes católicos. Historia,
Instituciones, Documentos, v. 20, p. 47-83, aqui p. 47, 1993, que destaca os banqueiros-comerciantes
como os mais poderosos entre eles.

29
ALMEIDA, Cybele C. de • Algumas contribuições da prosopografia para a história política...

los, especialmente através do comércio, a via mais rápida para o enrique-


cimento; por outro lado, a riqueza e a atividade comercial eram vistas
como algo suspeito, advindo de meios escusos, práticas condenáveis e
falta de atenção aos preceitos cristãos, como o amor ao próximo, a caridade,
etc. A posição crítica da igreja frente ao empréstimo com juros – ad usuras – é
bastante conhecida73, e isso pode ter sido um dos motivos pelos quais este
tipo de negócio foi dissimulado (MASCHKE, 1964, p. 329), especialmente
por aqueles que tinham ou aspiravam a uma carreira na política e que, por
isso, estavam especialmente preocupados com a sua boa fama74.
A dissimulação de negócios de crédito já foi apontada por vários auto-
res – como, por exemplo, Militzer, Cremer e Müller – como uma das razões
para a importância dos negócios imobiliários – dos quais uma grande parte
baseada em rendas – na cidade de Colônia75. Existe também a possibilidade

73
LE GOFF, J. Time, Work and Culture in the Middle Ages. Chicago/London, 1982, p. 111, 120s.;
STARK, W. Zins und Profit beim hansischen Handelskapital. In: FRITZE; MÜLLER-
MERTAS; SCHIDHAUER (Ed.). Zins-Profit, Ursprüngliche Akkumulation. Weimar, 1981, p.
13-27, aqui p. 22 (Hansische Studien, V); THOMSON, J. A. F. Wealth, Poverty and Mercantile
Ethics in Late Medieval London. In: BULST; GENET (Ed.). La Ville, la bourgeoisie et la genèse
de l’État moderne (XIIe-XVIIIe siècles). Paris, 1988, p. 265-277, aqui p. 265s.; MÜLLER, Achatz
von. Zwischen Verschuldung und Steuerbellion: Die mittelalterliche Stadt an den Beispielen
Florenz und Köln. In: SCHULTZ, Uwe (Hrsg.). Mit dem Zehnten fing es an: Eine Kulturgeschichte
der Steuer. München, 2000, p. 100-113, aqui p. 112; CREMER, 1936, p. 30s., etc. Embora
elementos da igreja tenham se adequado à nova realidade econômica e participassem inclusive
do sistema de crédito – não apenas como recebedores, mas também como credores, como
podemos verificar nos Schreinsbücher e testamentos da cidade de Colônia. Vide sobre este tema
também HANSEN, 1910, p. 408; TRUSEN, W. Zum Rentenkauf im Spätmittelalter. In:
Festschrift für Hermann Heimpel zum 70. Geburstag: Zweiter Band. Hrsg v. den Mitarbeitern des
Max-Plancks-Instituts für Geschichte. Göttingen, 1972, p. 140-158, especialmente p. 148-149
(Max-Plancks-Institut für Geschichte, 36/II). É importante lembrar que “[f]rom the thirteenth
century, however, scholastic writers, while condemning usury, accepted that the payment of
interest might be justified as compensation for possible loss (lucrum cessans) on the part of the
lender” (THOMSON, 1988, p. 272). Além disso, a crítica à usura concentrava-se frequentemente
nos judeus, e as elites urbanas aproveitavam-se disso quando estes eram expulsos das cidades
e os seus bens podiam ser comprados por um valor ínfimo. Deve-se lembrar também que na
Reformatio Sigismundi o centro do conceito de usura – encarado como pecado mortal – era o
binômio juros/usura; vide BAUER, C. Der Wucher-Begriff der Reformatio Sigismundi. In:
Aus Stadt- und Wirtschaftsgeschichte Südwestdeutschlands: Festschrift für Erich Maschke zum 75.
Geburtstag. Stuttgart, 1975, p. 110-117, especialmente p. 113.
74
A exclusão (ou “incapacidade legal”) de determinados grupos sociais e profissionais – como
barbeiros, intermediários de comércio, usurários, adúlteros, filhos ilegítimos – da eleição para
o Conselho da cidade é um forte indício da preocupação com a sua reputação por parte dos
conselheiros.
75
MILITZER, Klaus. Grundstückübertragungen im Kölner Hachtbezirk im 13.-15. Jahrhundert.
In: Staat und Gesellschaft in Mittelater und Früher Neuzeit: Gedenkschrift für Joachim Leuschner.
Hrsg. v. Historischen Seminar der Universität Hanover. Göttingen, 1983, p. 75-91, aqui p. 79s.;
CREMER, 1936, p. 32s., e também MÜLLER, 2000, p. 112.

30
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

do dinheiro advir de outas atividades, como empréstimos, negócios


imobiliários e investimento em rendas76, ou ainda de uma maneira indire-
ta, de investimentos em companhias de comércio sem uma participação
direta (SIEH-BURENS, 1986, p. 66), o que permitia viver do lucro sem
grandes riscos77 e dedicar-se a outras atividades consideradas mais honra-
das, como a política. Neste período era o comércio, e não a política, que era
visto pela ética cristã e pelo senso comum como perigoso para aqueles que se
preocupavam com a sua boa fama e a salvação de suas almas. Dedicar-se à
política era algo que enobrecia – não só no sentido figurado, mas algumas
vezes também literal – aqueles que desempenhavam esta função, e isso expli-
ca o porquê do esforço – não apenas individual, mas também familiar – que
se verifica neste sentido, em detrimento de outras atividades ou através de
uma inteligente combinação de várias delas, distribuídas no grupo familiar.

76
Zöller constata esta tendência nos negócios de Gerhard Unmaze, reconhecido como o maior
comerciante do século XII; ZÖLLER, S. Kaiser, Kaufmann und die Macht des Geldes: Gerhard
Unmaze von Köln als Finanzier der Reichspolitik und der “Gute Gerhard” des Rudolf von
Sem. München, 1993, p. 66 (Forschungen zur Geschichte der älteren deutschen Literatur).
Sobre a importância de rendas e empréstimos como fontes de rendimentos das camadas
dirigentes em fins da Idade Média vide NICHOLAS, D. The Later Medieval City: 1300-1500. (A
History of Urban Society in Europe). London, 1997, p. 198-199; WINTERFELD, L. Handel,
Kapital und Patriziat in Köln bis 1400. Pfingstblätter des Hansischen Geschichtsvereins
(Lübeck), n. XVI, p. 3-83, especialmente p. 32s. 1925; RÜTHING, H. Die Familie in einer
deutschen Kleinstadt am Übergang vom Mittelalter zur Neuzeit: Materialien und
Beobachtungen. In: BUST, N.; GOY, J.; HOOCK, J. (Ed.). Familie zwischen Tradition und
Moderne: Studien zur Geschichte der Familie in Deutschland und Frankreich vom 16. bis zum
20. Jahrhundert. Göttingen, 1981, p. 19-38, aqui p. 19 (Kritische Studien zur
Geschichtswissenschaft, 48); WOLFF, Ph. 1942, p. 35-58, aqui p. 39, entre outros.
77
Isso se tornou possível com a popularização das companhias de comércio; vide WEBER, M.
Zur Geschichte der Handelsgesellschaften im Mittelalter: Nach südeuropäischen Quellen. Amsterdam,
1970, p. 16, 22, 24, 162; MASCHKE, E. Das Berufsbewußtsein des mittelalterlichen
Fernkaufmans. In: WILPERT, P.; ECKERT, W. P. (Ed.). Beiträge zum Berufsbewußtsein des
mittelalterlichen Menschen. Berlin, 1964, p. 306-335, p. 320s. (Miscellanea Mediaevalia, 3);
ISENMANN, E. Die deutsche Stadt im Spätmittelalter: 1250-1500. Stuttgart, 1988, p. 364; BURKE.
Veneza e Amsterdã. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 72; KELLENBENZ, H. Handelsgesellschaft.
In: Lexikon des Mittelalters, v. IV, 1901. Outros exemplos neste sentido em HÄBERLEIN, M.
Familiäre Beziehungen und geschäftliche Interessen: Die Augsburger Kaufmannsfamilie
Böcklin zwischen Reformation und Dreißigjährigem Krieg. Zeitschrift des Historischen Verein für
Schwaben, v. 87, p. 39-58, aqui p. 47, 1994; e IRSIGLER, Franz. Kölner Kaufleute im 15.
Jahrhundert: die Akten des Prozesses Rosenkrantz/Viehof als Quelle für die kölnische
Handelsgeschichte. RhVjbll, v. 36, 1972, p. 71-88, especialmente p. 75-76.

31
32
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

¿Ha sido cristiana la Edad Media?*

Luis Rojas Donat1

Por razones que hoy resultan incomprensibles, todavía está arraigada


en la conciencia ideológica de los historiadores, incluso entre los
medievalistas que lo saben, ignorar una verdad mayúscula: la unidad y
omnipresencia de la Iglesia Católica durante la Edad Media. Tal como lo
dijo sin exageración Richard Southern, en una posición hegemónica –casi
monopólica–, la Iglesia medieval abarcaba todos los aspectos de la sociedad,
ejerciendo un control cuasi total de todas las normas de la vida social.
Afirmarlo así, huele a compromiso y fidelidad de feligresía, cuando en realidad
la medievística moderna, habiendo aprendido la lección dieciochesca, no
busca hoy una verdad moral, sino una verdad científica, es decir,
epistemológica.
Un testimonio notable que vale recordar nos ofrece el medievalista
Michel Mollat du Jourdain. Al aceptar en 1990 el cargo de presidente de la
Société d’histoire religieuse de la France, fue notorio que deseaba introducir el
conocimiento de la Historia y su sentido dentro de la Iglesia Católica de
Francia, y para ello puso mucho empeño en interesar al episcopado francés.
En la carta que escribió poco después de su elección a todos los obispos de
Francia, expresaba las razones que podían naturalmente descubrirse en pro
de una cooperación mucho más estrecha entre los pastores del pueblo
cristiano y los historiadores: A nuestros ojos, las circunstancias presentes hacen
particularmente necesario un conocimiento exacto del pasado de la Iglesia, incluso
sus flaquezas humanas no hacen sino más evidente la trascendencia de su encarnación
en la Historia después de dos milenios. Los historiadores de profesión se alegran que,

* Este trabajo, adaptado ahora como texto, fue originalmente presentado como conferencia en el
II Encontro Estadual de Estudos Medievais da ANPUH/RS el 26 de septiembre de 2012. Dicho
congreso lo dirigió el Dr. Igor Salomão Teixeira, colega y amigo, a quien agradezco la invitación.
El tema aquí tratado forma parte de una investigación mayor sobre las ordalías y otros medios
resolutorios de conflictos, que contó con el financiamiento de Fondecyt-Chile (Proyecto
n°1110474-2011-2012).
1
Universidad del Bío-Bío/Universidad de Concepción, Chile. Contacto: lrojas@ubiobio.cl

33
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

después de algunos años, la enseñanza de su disciplina beneficie en los seminarios.


Nosotros creemos, por ejemplo, que un buen conocimiento de los concilios, de las
circunstancias históricas de la condición sacerdotal, de la liturgia, de la práctica
parroquial y las corrientes espirituales aporta experiencias útiles a una pastoral actual
que mire al futuro.2
Pero se dirá que Michel Mollat era un historiador católico. Veamos,
pues, el testimonio de una historiadora de tono laico. Sostiene Anita
Guerreau-Jalabert que todas las áreas en las que los medievalistas dividen
su trabajo las engloba la Iglesia: religión, filosofía, arte, literatura, economía,
sociedad, etc. Estas parcialidades, quiérase o no, resultan del todo
incomprensibles sin el tapiz de fondo de la institución eclesiástica. Y otras
más: las edificaciones, el dominio sobre las reglas de comportamiento, el
culto y los sacramentos, las rentas y la tierra, la enseñanza, el control del
tiempo, la beneficencia, el conocimiento mismo, en fin, todo lo esencial de
la sociedad medieval3.
La institución eclesial ha vivido, asumido, interpretado y, por sobre
todo, encarnado o intentado encarnar la virtud cardinal que es la justicia.
El ejercicio concreto de ella se hacía tanto al interior de la Iglesia
(monasterios, conventos, capítulos) como fuera de la misma, en el seno de
las comunidades que gobernaba espiritualmente (diócesis, parroquias), pero
también, y muy frecuentemente, en los señoríos o principados que dirigía
temporalmente, sobre los cuales imponía un poder político4.

¿Edad Media cristiana?


Para la cultura media de nuestro tiempo, esta pregunta resulta casi
absurda porque se da por sabido que el cristianismo se impuso, y finalmente
dominó toda la vida de todos los hombres y mujeres durante toda la Edad
Media. Esta opinión se formó en el siglo XVIII y se prolongó hasta el XX,
creando una encrucijada de dos posiciones antagónicas que podríamos
presentar así: una corriente liderada por historiadores comprometidos con

2
Vid. Revue d’Histoire de l’Église de France, v. 83, n. 210, p. 5-11, janvier-juin 1997.
3
GUERREAU-JALABERT, Anita. L’ecclesia médiévale, une institution totale. In: SCHMITT,
Jean-Claude; OEXLE, Otto Gerhard (eds.). Les tendances actuelles de l’Histoire de Moyen Âge en
France et en Allemagne. Paris, 2002. p. 219-26.
4
CHIFFOLEAU, J.; THÉRY, J. Introduction. In: Les justices d’Église dans le Midi (XIe-XVe siècle).
2007, p. 7-18 (p. 8). (Cahiers de Fanjeaux, 42).

34
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

su fe cristiana, los cuales destacaron la omnipresencia de la Iglesia guiando


a la población en todos los aspectos de la civilización. En cambio, la otra
corriente, encabezada por historiadores agnósticos y ácidamente críticos
de esta institución, se preocupó de destacar su carácter dogmático, impositivo
e intolerante ante una población sumida en la ignorancia. Pese a su
manifiesto antagonismo, ambas posiciones coinciden en subrayar el mismo
aspecto, esto es, que la religión cristiana, gobernada por el Papado, ocupó
casi todos los espacios habidos en la civilización del Occidente medieval.
Por lo tanto, la discrepancia se encuentra en el valor más o menos absoluto
que esa presencia haya tenido en la formación de la cultura occidental. En
otros términos, se trata de ver en los hechos una unanimidad cristiana, el
imperio más o menos totalitario de un sistema de valores o una atmósfera
cultural que habría desarrollado e impuesto el cristianismo con el apoyo de
todas las importantes instituciones dependientes del Papado.
Inicialmente fueron los ilustrados del siglo XVIII quienes, en su intento
de comprensión crítica, hicieron una simplificación errada cuando quisieron
explicar el fenómeno de la confluencia de tradiciones distintas en la
formación de la sociedad medieval; para representar las relaciones que se
establecieron entre el clero y el pueblo, recurrieron a un reduccionismo
señalando que fueron las de unos tramposos frente a otros imbéciles y
crédulos. Por cierto, como ha advertido con agudeza Aaron Gourevich,
siempre ha habido credulidad y pillería en toda época, pero con este ridículo
esquema simplista de una maravillosa cultura folklórica popular enfrentada
a una perversa cultura letrada –idea por lo demás todavía muy extendida en
la sociedad actual–, nunca se estará en condiciones de comprender ni la
cultura ni la religiosidad popular de la Edad Media5.
El hombre actual ha desarrollado una percepción casi completamente
desacralizada del mundo circundante y su mirada tiende a ser completamente
materialista. Por eso el universo mágico y sacral de la Edad Media le es
distante y extraño. Los ilustrados tenían en parte razón cuando reconocían
en este fenómeno de sacralidad elementos de cultura diferentes, un cosmos
con su propio sistema de valores y de conceptos. En verdad, aspiraban a
descubrir en esta realidad el supuesto “engaño” que entrañaba el proceso
de cristianización. No está demás decir que, guiado el estudio por un pre-

5
GOUREVICH, Aaron. Contadini e santi: problemi della cultura popolare nel Medioevo. Torino, 1986
(versión rusa, 1981), p. 340.

35
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

juicio así, la realidad histórica se desfigura, y de paso llena al adjetivo


“medieval” de un contenido irreal de intolerancia, obscurantismo o
conservadurismo. De este modo, no se puede estudiar el pasado de manera
seria y rigurosa.
Por cierto, hoy estamos conscientes de la distorsión que implica mirar
la cultura medieval solamente desde arriba, digamos, desde la mirada de
los supuestos “dominadores”. Sería mucho más productivo ver en la
civilización medieval una cultura toda ella aparte, admitir su extranjería
ante nosotros y juzgarla de acuerdo a sus propios criterios. Sólo así podría
establecerse con ella un diálogo. Pero esta relación de reciprocidad
comunicativa necesariamente debe excluir tanto el desdén como la
desaprobación, para apropiarse de una actitud de admiración y una voluntad
de querer conocer a su interlocutor decodificando su lenguaje. Una
aproximación así permite descubrir el contenido humano que alberga una
cultura pasada. Así se disiparía la perversa tendencia a ver en la historia un
catálogo de errores e ilusiones, dice Gourevich, de la que apenas nos estamos
librando en la actualidad. Admitiendo, pues, que la cultura medieval es
otra, procuremos comprenderla tal como es6.

Cristianización
Aun cuando los ilustrados estaban contaminados de prejuicios, en
cierta medida tenían algo de razón al lanzar sus sospechas respecto del
cristianismo popular de la Edad Media. Justamente, respecto de cuánto de
las nociones cristianas hubiesen podido ser asimiladas en el universo
espiritual de las comunidades medievales, los historiadores tienen razonables
dudas. Se trata del “mito de la Edad Media cristiana”, como ha dicho Jean
Delumeau7. Este escepticismo no proviene de una pura y simple negación
fundada en una convicción agnóstica del historiador, sino que se generó
por un cambio de óptica en el estudio de la historia religiosa en general,
pero que afectó especialmente a la religiosidad medieval. En efecto,
tradicionalmente la historia religiosa había circunscrito su preocupación
abarcando el estudio de la Iglesia y sus instituciones, la dogmática, la teología

6
Ibid., p. 341.
7
DELUMEAU, Jean. Le Catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris, 1971. p. 227-252. Vid. cap.
“La légende du Moyen Âge chrétien”.

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

o el misticismo. Al ampliar la mirada, no se abría la puerta solamente a


otros temas, sino que ingresaban al análisis otros enfoques teóricos,
inaugurando una nueva llanura que recibió el nombre de religiosidad
popular8. François-André Isambert destacó los cambios que había mostrado
el estudio de la religiosidad desde hace ya casi un siglo, destacando el trabajo
pionero de William Robertson Smith y después la contribución importante
de Emile Durkheim9, con los cuales la religiosidad se convirtió en un campo
de interés para las ciencias sociales, particularmente la sociología, desde
una perspectiva puramente científica.
Más tarde, encabezada por Gabriel Le Bras, la sociología de la religión
desarrollaría un conjunto teórico denominado “ciencias de las religiones”
poniendo en cuestionamiento el monopolio cultural del pensamiento
cristiano; se produjo un desplazamiento de la mirada de los estudiosos que
pasaron de la visión elitista de la realidad eclesial para entrar en la
autenticidad de la vida religiosa del pueblo cristiano. Superando el estudio
de las doctrinas y de los sistemas, se buscaba examinar en niveles diferentes
la sustancia viva de la época atendiendo a la trama misma la vida religiosa
y su poder de penetración e instrucción10.
El estudio de la religiosidad fundamentada así en la sociología religiosa
por Gabriel Le Bras, pero también en los estudios de psicología colectiva y de
las mentalidades de la primera camada de la escuela de los Annales, había de
convertirse en una herencia que sistematizaría Alphonse Dupront con acento
en la antropología religiosa. Éste, a su vez, haría escuela a su alrededor formando
una pléyade de notables historiadores11. Aportaría también a esta senda Henri-
Irenée Marrou y su profundo conocimiento del cristianismo antiguo12.
La historia de las mentalidades, convertida en moda en las décadas
de los años sesenta y setenta del siglo XX, contribuiría con la ampliación de

8
ARIES, Philippe et al. Religion populaire et réforme liturgique. Paris, 1975; MALDONADO, Luis.
Religiosidad popular: nostalgia de lo mágico. Madrid, 1975; ID. Génesis del catolicismo popular. Madrid,
1979; ISAMBERT, François-André Religion populaire, sociologie, histoire et folklore. Archives
de Sciences Sociales des Religions, 43, p. 161-84, 1977.
9
ROBERTSON SMITH, William. Religion of the Semites. London, 1889 (1912); DURKHEIM,
Emil. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, 1912 (5. ed., PUF, 2003).
10
VAUCHEZ, André. Église et vie religieuse au Moyen Âge: renouveau des méthodes et de la
problématique, d’après trois ouvrages récents (note critique). Annales E.S.C., 4, p. 1042-1050
(p. 1042), 1973.
11
DUPRONT, Alphonse. La religion: anthropologie religieuse. In: LE GOFF, J.; NORA, P.
Faire de l’Histoire. Paris, 1974.
12
MARROU, Henri-Irenée. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris, 1937.

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DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

giro que se dio en los ‘60, cuando medievalistas y modernistas reaccionaron


ante la hegemónica presencia de la historia social y económica, entonces de
plena moda. El giro cultural había de poner a la religión en el centro del
debate historiográfico.
La renovación de la historia religiosa se debe, pues, a un cambio teórico
y metodológico que la sacó de su acantonamiento como historia puramente
eclesiástica. Esta innovación tuvo consecuencias colosales, ya que hizo
posible que en su cultivo se tendieran puentes con las restantes ciencias
sociales, especialmente la teología, la sociología y la antropología. Los
medievalistas, encabezados por Jacques Le Goff, Georges Duby, Michel
Mollat, Emmanuel Leroy-Ladurie, André Vauchez entre los más visibles,
se abocaron a problemas culturales, como la piedad, las creencias, las
espiritualidades; por su parte, los contemporaneistas, liderados por René
Remond y Jean-Marie Mayeur, se inclinaron a las relaciones Estado e Iglesia,
a los movimientos anticlericales, a la influencia de la religión en las opciones
políticas.
En efecto, ejemplos de estos trabajos merecen una breve recensión.
Uno de los grandes estudiosos de la religiosidad popular en el Medievo,
Jean Toussaert, insiste en el peligro de sobreestimar los éxitos de la evange-
lización que se produjo durante la época. Toussaert estudia la documenta-
ción de Flandes en los siglos finales de la Edad Media, y descubre el bajo
nivel que la educación religiosa alcanzaba en la población. No es un caso
aislado, pues los datos de la historia eclesiástica provenientes de otras regi-
ones del Occidente nos muestran que la educación religiosa de la masa de
la población medieval tenía un nivel muy bajo. De hecho, la esencia de la
religión era incomprensible y la fe de la mayoría se reducía a la observancia
mecánica de los ritos. El hombre medieval no escogía si quería o no ser
cristiano; después de su nacimiento, toda su vida respiraba el aire del cristia-
nismo con todas sus formalidades y parte de sus creencias, pero su práctica
religiosa permanecía igualmente superficial13.
La idealización de una Edad Media totalmente cristiana, dicho así
de simple, es, pues, un punto que debe corregirse. Sin embargo, sería un
craso error de perspectiva concluir que la sociedad no haya sido cristiana,
como sí lo afirmó rotundamente Gabriel Le Bras: “La historia de la práctica
cristiana es la historia del conflicto entre religión y magia, entre dos

13
TOUSSAERT, Jean. Le Sentiment religieux en Flandre à la fin du Moyen Âge. Paris, 1960. p. 845.

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

civilizaciones donde una tiene por principio obligar y la otra doblegar las
fuerzas sobrenaturales”14. Desde luego, hay algo de verdad en esta afirmación
de cierto tono rotundo, demasiado influida por la sociología, juicio que
tiende, desgraciadamente, a desnaturalizar la especificidad del pensamiento
mágico y, por lo mismo, también el sentimiento religioso. Sin embargo, el
llamado que en 1931 hizo el ilustre historiador tenía como objetivo atraer
la atención de eclesiásticos e historiadores a conocer la vitalidad religiosa
de Francia y buscar las causas próximas y lejanas de la entonces llamada
“descristianización”15. Por ello, nos parece que Gabriel Le Bras, empleando
un acento provocador, deseaba más bien incitar a un cambio en el modo de
entender históricamente el cristianismo: “No hay un gran siglo en la historia
de la Iglesia, el mundo jamás ha sido cristiano.” Hay que ser historiador
para tolerar una afirmación así, ya que si no hay una época de apogeo del
cristianismo medieval, que algunos lo circunscriben a los siglos XII y XIII,
se deduce que tampoco habría que hablar de decadencia en los siglos
siguientes.
Precisamente, esto fue lo que se propuso Jean Delumeau al hacer un
seguimiento popular de la religión en los siglos XVII y XVIII bajo la
pregunta: durante el Antiguo Régimen, ¿Era acaso el cristianismo una
“mezcla de prácticas y doctrinas que tenían escasa relación con el mensaje
evangélico?”16. Este estudio relativo a los primeros tiempos de la Edad
Moderna demuestra que había un enorme abismo entre el cristianismo que
se vivía en las ciudades y la religiosidad de los campesinos, que fue, hasta el
siglo XVIII, el “conservatorio del paganismo”. Se trata, pues, de una
prolongación de realidades medievales. Luego, si no hay un Medievo cristiano,
es incorrecto hablar de un posterior proceso de “descristianización”, sino
más bien de una “segunda cristianización” en la que habría entrado Europa
en la época moderna. “En cierto modo, la Reforma y la Contrarreforma –
dice Jean Delumeau–, fueron la toma de consciencia de una no-
cristianización. Ambos procesos habrían provocado un gigantesco trabajo
de adoctrinamiento que prolongó la evangelización de los siglos anteriores

14
LE BRAS, Gabriel. La civilisation des pratiquants. In: Études de sociologie religieuse. Paris, 1955-
6. v. II, p. 640-1; ID. Introduction à l’histoire de la pratique religieuse en France. Paris, 1942-5. 2 v.;
BOULARD, F. Premiers itinéraires en sociologie religieuse. Paris, 1954.
15
LE BRAS, Gabriel. Statistique et histoire religieuse: pour un examen détaillé et pour une
explication historique de l’état du catholicisme dans les diverses régions de la France. Revue
d’Histoire de l’Église de France, v. 17, p. 425-49, 1931.
16
DELUMEAU, 1971, p. 227ss.; 243ss.; 248ss.; 330.

39
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

(especialmente el llevado a cabo en las ciudades durante la época de la pre-


reforma), pero que alcanzó una intensidad y una amplitud jamás
conocida.”17
Se ha advertido que el historiador se mueve en el terreno resbaladizo
de la nomenclatura para representar los procesos vividos en el pasado. Por
tal razón, Jean Delumeau es partidario de precisar algunos conceptos que
el historiador usa habitualmente con demasiada soltura: la primera precisión
consiste en proponer la sustitución de la noción excesivamente amplia de
“cristianismo” por otra que dé cuenta de la diversidad de “modelos de
cristianismo” que ha conocido el Occidente en su larga historia18. En otros
términos, históricamente la religión cristiana no ha tenido una sola y misma
imagen, sino que en su vivencia ha sufrido cambios que es necesario
distinguir y comprender.
Ello nos conduce, irremediablemente, a precisar dichos modelos: hay
un primer modelo de cristianismo que es anterior al cambio profundo ope-
rado por los emperadores Constantino y Teodosio, momento en que la Iglesia
se confundió con la institucionalidad civil romana; se trata de una religión
minoritaria de fieles que optaban libremente por la creencia en la resur-
rección de Jesús y que esperaban con fervor el próximo retorno del Salva-
dor. Sin organización plenamente institucional, los cristianos se ordenaban
en pequeñas comunidades, muy cohesionadas por un compromiso espiri-
tual de profundo arraigo19.
Le sigue un segundo modelo de cristianismo muy diferente al anterior,
en el que, integrada y confundida con las estructuras políticas romanas, la
religión se volvió doctrina oficial, totalitaria y obligatoria. Se trata de una
religión sostenida por el poder, un complejo institucional y una ortodoxia
cada vez más rigurosa. “Una religión –asevera Delumeau–, cualitativa en
sus comienzos, y durante muchos siglos se hizo cuantitativa y unanimista
llegando a ser la del poder político, no imaginando que la masa anónima
pudiera creer más que en ella.” Por cierto, en medio de tales circunstancias,
el cristianismo no llegaría a ser el mismo de antes, puesto que al interior de
las fronteras del orbis christianus controladas por la Iglesia, el bautismo se

17
DELUMEAU, Jean. Au sujet de la déchristianisation. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine,
v. 22, p. 52-60 (p. 57), 1975.
18
Ibid., p. 56.
19
PAUL, Jacques. Le christianisme occidental au Moyen Âge. Paris, 2004. p. 60-6.

40
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

impartió sin interrupción, haya sido por la fuerza, como en la Germania


conquistada por Carlomagno o bien después en la Conquista de América,
fuera porque ante la habitual docilidad de las masas se actuara por mera
autoridad.
Una cristianización así no podía sino cuajar a nivel de los comporta-
mientos y las actitudes que eran las de las clases dirigentes. Con todo, cris-
tianismo al fin, que a nivel cuantitativo muestra su real éxito, sin que el
primer modelo haya desaparecido completamente, ya que logró expresarse
durante esta etapa a través de las creaciones artísticas, en las aventuras mís-
ticas, en el altruismo extremo, en el martirio. Por eso es preciso distinguir
claramente una religión obligatoria y totalitaria respecto de un cristianismo
libre que, después de Constantino, ha coexistido con ella, y que continúa su
carrera, siempre contestatario y crítico. Este segundo modelo alcanza su
máximo desarrollo entre los siglos XVII y XVIII, momento en que se pro-
duce una aculturación religiosa que logra su éxito a través del temor al
infierno y a su sustituto atenuado: el purgatorio20.
Por todas estas razones, la religión popular llevó junto a los gestos
cristianos impuestos los trazos desperdigados de una religiosidad “terrenal”
muy antigua, politeísta y mágica que huyó de las ciudades ante la prohibición
para refugiarse en los campos, conformando una religión sincrética que la
omnipresente institucionalidad eclesiástica, con su calendario litúrgico, las
imponentes catedrales góticas o la vida milagrosa de los santos, la hicieron
posteriormente invisible a nuestra mirada. Los comportamientos religiosos
de las masas campesinas quedaron irremediablemente tras las bambalinas.
En este sentido, Jean Delumeau ha sacado del olvido el esfuerzo que
hicieron muchos obispos ya en pleno mundo moderno de la Contrarreforma
por singularizar al sacerdote y separarlo de la vida cotidiana: traje, tonsura,
prohibición del trabajo manual, obligación de cumplir con las oraciones
del breviario, respeto estricto del celibato, etc. Sin duda, todas estas exigencias
tenían el propósito de otorgarle una digna prestancia social a su función y
recuperar una seriedad perdida. La mentalidad popular campesina, que
desde mucho antes tenía en muy alta estima al párroco, se resentiría con
estos cambios, ya que consiguieron distanciar al sacerdote de la comunidad
al situarlo en un “halo de soledad”21.

20
DELUMEAU, 1975, p. 58-9.
21
DELUMEAU, Jean. Le Christianisme va-t-il mourir? Paris, 1977. p. 102-3.

41
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

Pero todavía más, puede hablarse de un tercer modelo de cristianismo


que debe hallarse entre los siglos XVIII y XIX. Como el primero, está fundado
en el amor y no en el temor, es minoritario y se sitúa a contracorriente de los
conformismos. Sin embargo, se diferencia de aquél, por su alejamiento de las
corrientes apocalípticas, aun cuando de pronto emerjan pulsiones mesiánicas.
La salvación se identifica con la “liberación” del Hombre, salvación a la
que la humanidad puede acceder, pero que está, a pesar de todo, más allá
de la Historia. El cristianismo se va convirtiendo en una teología del Hombre,
integrando todo el saber científico a las creencias, aspecto que en Rodney
Stark, desde un punto de vista sociológico, ha llegado hasta la apología22.
Atendidos estos rasgos globales del cristianismo en Occidente, en lo
que a nuestro tema viene a cuento respecto del cristianismo medieval, es
posible aventurar que el cristiano actual no sea tan distinto al hombre de la
Edad Media. Tal como vemos en nuestros días, el cristianismo popular
medieval coexistía con las prácticas mágicas, acompañadas de una fuerte
sensibilidad por el animismo. Y habría que decir, aun más, que los responsables
de la religión medieval tenían clara conciencia de esta coexistencia. En las
inmensas extensiones campesinas de la Edad Media, algunas dosis variables
de Evangelio ciertamente convivían con ritos y creencias de antigua data
provenientes de la profundidad de los tiempos. Estos directores de la religión
medieval, probablemente más juiciosos que los del mundo moderno,
consideraban que lo más importante era cristianizar el paganismo, aunque
fuera lentamente, paso a paso, puesto que había convicción de que, finalmente,
el buen grano se separaría de la cizaña. Durante muchos siglos la Iglesia
medieval tuvo dos lenguajes: uno muy exigente destinado a una pequeña
elite, otro más de adhesión destinado a las masas. De esta manera, lejos de
buscar un elitismo, la Iglesia medieval integró al paganismo rural y,
probablemente, cerrando los ojos, se abrió a una folclorización del mensaje
cristiano, el cual no parece que haya sido considerado un obstáculo a la
gracia23.
Utilizando los métodos sociológicos propuestos por Gabriel Le Bras,
en 1962 Jeanne Ferté aportó en su tesis doctoral interesantes evidencias

22
STARK, Rodney, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and
Western Success. New York: Random House, 2005.
23
DELUMEAU, Jean. Déchristianisation ou nouveau modèle de christianisme? (Leçon
inaugurale au Collège de France, 13 février 1975). Archives de Sciences Sociales des Religions, v.
40, p. 10, 1975.

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

sobre la vida religiosa campesina de la región parisina durante el siglo XVII.


Como en toda Francia, lo que dominó en la campiña aledaña a Paris fue la
observancia de la regla, respetando la mayor parte de la población su
asistencia a los oficios dominicales. Sin embargo, la práctica de la fe se
petrificó en los rasgos exteriores del culto; la vitalidad religiosa decayó junto
con un pálido fervor, tal vez debido a que la educación espiritual era
realmente mediocre, permitiendo la proliferación de toda clase de
supersticiones. La cristiandad expresaba la casi nula adhesión a las creencias
ortodoxas, por lo cual se explica que los santos sanadores tuviesen más
fieles que la Santísima Trinidad24.
Para el siglo XIII, otro gran especialista de la religión popular, Raul
Manselli, usando un lenguaje menos categórico, ha hablado de una
“dramática incomprensión, cada vez más grave” entre la Iglesia y el pueblo25.
En esta misma línea, arrojando una mirada más optimista, Francis Rapp
ha señalado que la alta espiritualidad que se vivía a fines de la Edad Media
en los segmentos más cultivados se propagó de manera bastante difusa entre
las comunidades populares que se movían en un universo iletrado, oral, en
suma, una cultura diferente. La inmensa mayoría de los cristianos del siglo
XV –dice Rapp– ignoraban las Escrituras. Si ellos podían familiarizarse
con su contenido sin hacer una lectura completa de punta a cabo, sin embargo
a fuerza de escuchar extractos de ella en los sermones o ver imágenes, podría
reconocerse que la Biblia no era tan extraña26.
Aculturación ha llamado a este proceso la antropología histórica,
consistente en transformaciones de diversa índole –adaptaciones, asimila-
ciones, destrucciones, dominaciones, resistencias, etc.– que se producen de
modo a menudo involuntario, en diferentes niveles de la realidad histórica,
cuando una cultura interactúa con otra; lo que nos interesa destacar aquí es
la aparición de una suerte de vulgarización del mensaje cristiano, aunque
sin perder su autenticidad. La experiencia vivida en los dos últimos siglos
del Medievo habría preparado el camino al proceso de “renovación” que
sufriría el cristianismo a comienzos del siglo XVI. El cristianismo de este
siglo fue magistralmente estudiado en 1947 por el insigne Lucien Febvre en

24
FERTÉ, Jeanne. La vie religieuse dans les campagnes parisiennes (1922-1695). Paris, 1962.
25
MANSELLI, Raul. La religion populaire au Moyen Âge: problème de méthode et d’histoire.
Québec-Paris, 1975. p. 194.
26
RAPP, Francis. l’Église et la vie religieuse en Occident à la fin du Moyen Âge. 4. ed. Paris, 1991. p.
326-31.

43
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

su admirable libro Le problème de l’incroyance au XVIe siècle, cuya tesis ha sido


corroborada por posteriores investigaciones, esto es, que afirmar que el re-
nacimiento haya sido una suerte de modernismo pagano no es sino un cli-
ché más del irracional prejuicio contra la Edad Media.
El sincretismo religioso tan variado del que venimos tratando ha sido
estudiado espléndidamente por Emmanuel Leroy-Ladurie tomando la aldea
de Montaillou, en una región fronteriza entre Francia y España a fines del
siglo XIV y comienzos del XV. Allí el catolicismo arraigó en la población
campesina únicamente a nivel exterior de los ritos. Coexistía esta consciencia
popular junto a un folclor precristiano y un naturalismo campesino.
Obsesionados por el miedo al más allá, numerosos habitantes de la aldea de
Montaillou se vieron arrastrados a adherirse a la herejía de los cátaros. Ello
da cuenta del rol predominante que tuvo la sensibilidad mágica frente a la
liturgia católica, sin dejar de lado las supersticiones y la superficial asimilación
que habían hecho de muchos elementos fundamentales del cristianismo27.
Intentando equilibrar las posiciones que sobre este tema se han tejido,
André Vauchez ha entendido que la discrepancia se explica por un
problema de método para interpretar las fuentes de información que cada
uno ha escogido para estudiar la religiosidad popular. Aun con todas estas
miradas, puede deducirse un planteamiento homogéneo que es importante
destacar. Todos están de acuerdo en que, en sentido estricto, la Edad Media
no fue la época de la dominación absoluta del cristianismo sobre la vida
espiritual de la población. André Vauchez aclara que aquellos que hablan
de una cristianización incompleta o derechamente de una no-cristianización
de Europa a fines de la Edad Media, lo hacen teniendo presente un criterio
cartesiano, es decir, un modelo de religión pura que es difícil de lograr incluso
en nuestros días. Pero, desde el punto de vista puramente histórico, pueden
apreciarse otros modelos de cristianismo, probablemente más plausibles,
como un cristianismo ambiguo que Vauchez designa con la expresión
“religión de la tierra”, religiosidad campesina abierta a la magia, y que
Peter Brown, destacando el rol de lo sobrenatural en esta sociedad,
denominó la religión de los campos, frente a una religión de la capilla28.

27
LEROY-LADURIE, Emmanuel. Montaillou, village occitan: de 1294 à 1324. Paris, 1975;
SUMPTION, J. Pilgrimage: An Image of Medieval Religion. Totowa, N.J., 1976.
28
VAUCHEZ, André. Église et vie religieuse au Moyen Âge: renouvau des méthodes et de la
problématique d’après trois ouvrages récents. Annales ESC, v. 28, p. 1042-1050, 1973; BROWN,
Peter. Society and the Supernatural: a Medieval Change. Daedalus, n. 104, p. 131-151, 1975.

44
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Peliagudo tema en el que los modernistas se han enfrentado; hay


quienes interponen como punto de partida la hipótesis de que existe un
cristianismo puro, el de los reformadores, y el otro no lo sería, radicalmente
inferior y destinado a desaparecer. Desde luego, planteadas las cosas así, se
obstaculiza la comprensión del hecho religioso. Las palabras de Philippe
Ariès vienen bien para el medievalista:
Los historiadores nos ponen ante dos experiencias religiosas diferentes […]
No nos corresponde decir que una es más verdadera o más auténtica que la
otra. No debemos ver la religión popular a través de los lentes de los
reformadores. Por el contrario, deberíamos esforzarnos por verla tan
directamente como sea posible, a pesar de la pobreza de los documentos.
Hemos de analizar esta para-religión como una religión como tal, que tiene
sus creencias y sus ritos. Hay espacio para una cierta manera de ser un
cristiano paralelo, fuera de la elite cristiana, y aún contra ella.29

Esta suerte de paganización del cristianismo era, por cierto, difícil de


evitar, señala acertadamente Jean Delumeau, ya que al interior de aquella
civilización materialmente frágil debido al precario conocimiento de la
ciencia y las técnicas, el temor al hambre y el frío, la amenaza continua de
la naturaleza, la inminencia de las enfermedades y con ella la muerte, sin
duda, resultaban insoportables. Una religión de corte espiritual no parece
posible en un ambiente donde la alimentación no estaba asegurada y cuando
el miedo era el compañero cotidiano del hombre medieval. A ojos vista, la
inmensa mayoría campesina necesitaba pedirle al cielo ayudas concretas,
como alejar las enfermedades, la protección de las calamidades, abundantes
cosechas, etc., con lo cual era inevitable que el cristianismo se convirtiera
en un sistema de ritos destinados a lograr dichos socorros. La tesis que en
1978 propuso el autor fue que el impacto producido por la peste de 1347 y
sus incalculables consecuencias (“el mal que expande el terror”), marcaron
en la historia de Occidente una ruptura capital en todos los dominios de la
civilización, y que en ese clima de fin de mundo los miedos colectivos, tanto
los populares como los de elite, se exacerbaron30.

29
ARIÈS, Philippe. Religion populaire et réformes religieuses. La Maison-Dieu, n. 22, p. 89, 1975.
30
DELUMEAU, 1971, p. 246-7 ; ID. La peur en Occident (XIVe-XVIIIe): une cité assiégée. Paris,
1978; ID. Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident (XIIIe-XVIIIe). Paris, 1983.

45
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

Concepto de devoción

El estudio de la devoción es un campo que ha tenido una gran


renovación. El interés se ha alejado, pero sin abandonarlas, de las
preocupaciones teológicas puras para atraer al historiador hacia la práctica
devota. Desde luego, esta última carece de realidad histórica sin que la
sustente algún fondo teológico, cualquiera sea éste, ortodoxo o sincrético31.
Pero el historiador fija su mirada analítica en los hechos, esto es, la
descripción de las funciones y los contextos socio-políticos en los que las
representaciones, las costumbres y los rituales religiosos se desarrollan.
Difícil es saber qué se entendía en la Edad Media por devoción. En
cambio, sí sabemos no designaba el comportamiento de los individuos o
los grupos que guiaban su vida en función de una representación del mundo,
inducida por una religión respecto de la cual compartían ciertos valores
éticos. Con todo, a fines del Medievo, los autores alemanes tradujeron devotio
por “ternura”, “cordialidad” (ynnekeit), “oración”, con el fin de significar a
la vez el amor, el miedo y la esperanza que acompañan el don sensible de la
persona dedicada a Dios. Cuando calificaban la persona devota –piadosa,
diríamos–, ponían delante su probidad y su respetabilidad. Cuando Martín
Lutero explicaba su teoría de la justificación por la fe, señalaba que el
comportamiento de los cristianos debía estar sometido a los imperativos
éticos y religiosos de la justicia divina. Al traducir, pues, iustus/iustitia por
frum/frumkeit (devoto/devoción), el reformador le confería a los valores
éticos no solamente la función de orientar la conducta y las acciones socio-
políticas, sino el poder de interceder inmediatamente ante Dios. Hijo también
de su tiempo, Lutero vinculaba indisolublemente la práctica de la fe con la
vida cotidiana. Ello nos revela que el concepto de devoción, en el sentido de
un comportamiento que asocia las convicciones, las emociones y los ritos,
es una creación muy tardía, casi reciente, de los siglos XVIII-XIX.
Frente a los reparos que los reformadores y los humanistas lanzaban
en relación con el déficit espiritual de las prácticas devotas vividas durante
los siglos finales de la Edad Media, los teólogos desarrollaron criterios para
distinguir la que ellos definían como la verdadera devoción respecto de la
falsa. No era fácil hacerlo, puesto que las prácticas religiosas de la aristocra-

31
SCHREINER, Klaus. La dévotion comme pratique sociale, littéraire et visuelle: acquis et
centres d’intérêts de la médiévistique allemande. In: SCHMITT, J.-C.; OEXLE, O. G. Les
tendances actuelles de l’histoire du Moyen Âge en France et en Allemagne. Paris, 2002. p. 187-218.

46
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

cia no diferían notablemente de las formas de la devoción popular. Hasta el


siglo XVIII, la aristocracia del poder, es decir, emperadores, reyes y prínci-
pes participaban de las peregrinaciones, la veneración de los santos, las re-
liquias y las imágenes de piedad. Sin embargo, el proceso que disocia la
devoción vivida por diversos grupos sociales se inicia durante el llamado
Renacimiento, esto es, en los siglos XV-XVI, momento en que se aprecia,
de un lado, la devoción de las elites intelectuales y espirituales (docti) y, del
otro lado, el pueblo (vulgus) viviendo una devoción simple.
Para satisfacer las exigencias del estudio histórico, en primer lugar,
habría que reconocer la gran complejidad de la piedad medieval; en segundo
lugar, es preciso recurrir a un concepto que conjugue las representaciones
religiosas y las formas de comunicación ritualizadas, los registros visuales,
corporales y textuales, los factores sociales y las funciones políticas. Se trata
de una categoría de análisis basada en una antítesis que contempla dos tipos
de piedad dialogando en un juego dialéctico de coincidencias y oposiciones,
con lo cual parece posible aprehender y estructurar las formas y las funciones
sociales de los comportamientos religiosos.
Sin embargo, el valor heurístico de esta dicotomía adoptada por
muchos medievalistas ha sido cuestionada por otros colegas debido a que
las nociones de “piedad popular” o “religión popular” serían, a juicios de
los críticos, construcciones intelectuales heredadas de los teólogos y los
escritores ilustrados de fines del siglo XVIII, para quienes era muy necesario
distinguir la religiosidad basada en la razón, asociada a la burguesía
cultivada, y la religión del “populacho” ignorante. Frente a la desigualdad
de reflexión de las elites instruidas y la masa iletrada, era natural que surgiera
una teoría referida a las dos clases de cristianos (Zweiklassentheorie der Christen),
y que introduce la “instrucción” como criterio diferenciador de los cristianos
pensantes y el pueblo traspasado por las supersticiones. Motivados por el
deseo de purificar la religión de todos los católicos de la Ilustración, se
preguntaron a lo largo de los siglos XVIII y XIX respecto de cada una de las
clases. Tanto a las clases inferiores como las superiores les atribuían
representaciones divergentes de la religión, de lo que se deriva adicionalmente
una concepción diferenciada de las prácticas religiosas. En suma, la tesis se
refiere a que las diferencias religiosas traducían las diferencias sociales.
El modelo interpretativo piedad de elites/piedad popular presuponía un
dualismo de la religión y de las prácticas devotas que habían surgido en el curso
de los siglos XVIII y XIX, dualismo que, hay que decirlo, nunca existió en la
Edad Media. En efecto, los católicos del siglo XIX ya no participaban de las

47
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

peregrinaciones y su devoción cristocéntrica les alejaba más y más del culto a


los santos, a las imágenes y a las reliquias. La adoración al Sagrado Corazón de
Jesús, tan popular entre la gente humilde, les parecía una “superstición” nefasta
desde el punto de vista moral. Al entrar en la historia medieval, rechazaban
también la disposición de los emperadores, reyes, nobles, burgueses, campesinos,
obispos, clérigos y monjes de recurrir a la ayuda de los santos ante situaciones
peligrosas. En definitiva, su modo racional de pensar les parecía incompatible
con la devoción vulgar enraizada en el mundo sensible.
Hemos visto que la hipótesis antitética de una piedad de elites y una
piedad popular llevaba consigo serios impedimentos epistemológicos para
comprender la devoción medieval. Por esa vía, la investigación histórica estaba
impedida de penetrar el sistema de valores religioso de la sociedad medieval,
puesto que la noción de devoción popular obligaba inmediatamente a concebir
su contrario. Y como tanto una como la otra llevaban implícita la idea de
estratos sociales, el esquema así planteado servía para representar finalmente
una diferenciación social.
Esquema cómodo y fácil, de reduccionismo puro, que no encuentra
comprobación alguna en las fuentes medievales, ya que no existe evidencia
documental que algún estrato social de la Edad Media haya vivido una
piedad completamente alternativa. El modelo interpretativo consistente en
una dicotomía estaba fundado en la hipótesis según la cual las diversas formas
medievales de la devoción no fueron más que expresiones religiosas de una
rígida segmentación social. Además, el fraccionamiento social era concebido
anacrónicamente, es decir, que se asignaba a la sociedad medieval la división
de clases provocada por la industrialización, expresión que careció de realidad
histórica en la Edad Media, ya que la sociedad de entonces se dividía en
órdenes, como prefiere Georges Duby, o estamentos, como sugiere la sociología32.
Con ello se comprobaba un “supuesto”, esto es, el peso que sobre la religión
habría tenido esta sociedad estamental fundada en órdenes, generadora a su
vez de las desigualdades jurídicas. ¿No podría, acaso, plantearse el supuesto
contrario, el peso que la religión habría tenido sobre la sociedad?
No parece plausible reducir la devoción medieval a un componente
puramente social. Los diversos segmentos sociales de la comunidad se
volcaban con igual fervor a la peregrinación y al culto de los santos. Tanto

32
DUBY, Georges. Les trois ordres ou l’imaginaire du féodalisme. Paris, 1978; CONSTABLE, Giles.
The Orders of Society: Three Studies in Medieval Religious and Social Thought. Cambridge, 1995.

48
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

los campesinos como los habitantes de los burgos tomaban parte activa en
el traslado de las reliquias y participaban de la fiesta de los santos. Es
sospechoso de arbitrariedad distinguir cultura popular y cultura de elites en
las procesiones organizadas por los ayuntamientos de las villas, en las que
concurría toda la comunidad, aun cuando en ellas se distinguiera el rango y
la condición de las personas. Les unía a todos la convicción de que, así
reunidos, alejaban las amenazas que pesaban sobre la comunidad entera.
Separar intelectualmente aquello que en la realidad histórica se muestra
como una entidad homogénea, sería al menos antojadizo.

Concepto de religión
Las palabras son un problema importante en la ciencia de la historia.
Necesariamente, el conocimiento histórico debe expresarse a través de palabras.
Con ellas pretendemos representarnos, más o menos fielmente, las diversas
realidades del pasado en toda su complejidad. He aquí que para comprender la
experiencia religiosa de una comunidad, solemos aplicar nuestro actual concepto
de religión a la época medieval, sin saber que ella carecía de ese vocablo para
expresar su vivencia. Se trata de un anacronismo, el más serio problema que
tiene la ciencia histórica, y que interpela continuamente a los historiadores
sobre la validez de sus instrumentos de análisis.
Ha de comenzarse afirmando que la Edad Media no ha conocido el
vocablo religión al modo como en la actualidad lo empleamos. Ciertamente,
aquélla conoció la palabra religio, pero con ella se designaba en la comunidad
religiosa una suerte de “contrato”, cual es el voto monástico, o también el
vínculo que consagra el voto religioso. Su sentido básico es, según Emil
Benveniste, “vincular” (religere), esto es, el vínculo que se establece entre Dios
y su fiel33. En la Edad Media, el concepto de religión no aludía, como hoy, a
la convicción privada de un creyente, sino que –sostiene Jean-Claude Schmitt–
“es un imaginario social que contribuye, por la representación (mental, ritual)
de un más allá que puede denominarse lo divino, a ordenar y a legitimar las
relaciones de los hombres entre sí”34.

33
BENVENISTE, Emil. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, 1969; véase v. II:
“Religion et superstition”, p. 265-79.
34
SCHMITT, Jean-Claude. ne histoire religieuse du Moyen Âge est-elle possible? Jalons pour
une anthropologie historique su christianisme médiéval. In : LEPORI, F. (ed.). Il mestiere di
storico del medioevo. Spoleto: Centro italiano di studi sull’alto medioevo, 1994. p. 73-83 ; reimpr.
en ID. Le corps, les rites, les rêves, le temps. Paris, 2001. p. 36.

49
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

Así, pues, la voz religión es del todo reciente. Como ya lo hemos


adelantado, comenzó a elaborarse en el curso del siglo XVIII, el siglo de la
Ilustración, momento en que el cristianismo, desprovisto ya de su status de
ideología todo-poderosa, se convierte en objeto de una reflexión en extremo
crítica y decididamente desmitificante. A diferencia de cómo era concebida
en la Edad Media aquello que nosotros denominamos “religión”, esto es,
una realidad total abarcando también la totalidad de la vida de los seres
humanos, en el siglo XVIII la “religión” se concibió no solamente como un
ámbito autónomo en la vida humana, sino también, y casi exclusivamente,
como el resultado de una opción libre de la conciencia individual. Esta
transformación tiene una importancia colosal en la historia de Occidente, y
desde luego está ligada al conjunto de cambios sociales y políticos que
marcaron la caída del Antiguo Régimen.
Herederos nosotros de estas transformaciones, el concepto de religión
devino en un hecho polémico de la realidad humana que debía explicarse
científicamente, dado que a fines del siglo XIX nacía la llamada “Ciencia de
las Religiones”. Es bien sabido que este campo de estudio fue concebido en
un comienzo como un arma contra la Iglesia, cuya principal finalidad era
asegurar que el cristianismo perdiera definitivamente su carácter de referencia
absoluta para la sociedad. Para ello era necesario afirmar científicamente, en
primer lugar, la evidente universalidad del “hecho religioso”, ya que no había
ninguna sociedad humana que ignorara la experiencia religiosa; pero también,
en segundo lugar, había que proclamar la diversidad de las experiencias
religiosas en las diferentes culturas. Con ello, al quedar el cristianismo sometido
a la ley del relativismo, se concluía que éste había sido y era una de las tantas
experiencias humanas en materia religiosa; no podía, pues, reclamar ningún
status de privilegio.
A este confinamiento de la religión a una esfera puramente privada,
y a la pérdida de su posición institucional tradicional, contribuyeron dos
realidades históricas decimonónicas herederas de la erosión provocada por
la Ilustración: de un lado, la presencia del nuevo “Estado laico” y el rápido
proceso de “descristianización” que sufrieron las sociedades industriales
durante el siglo XIX; por el otro lado, el nacimiento de dos ciencias cuyo
estudio reafirmaría esta mirada “científica” de la religión.
En primer lugar, la sociología no solamente sacó a la religión de su
lugar supra-social para insertarla en las estructuras complejas de las socie-
dades, sino que miraría el hecho religioso como una manifestación más,
entre muchas otras, de todas las sociedades humanas. Sea que la religiosi-

50
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

dad cristiana refleje las divisiones sociales, o éstas incidan en el surgimiento


de las formas diferenciadas de expresión de la devoción, lo cierto es que
con los aportes teóricos de los sociólogos Max Weber y Emil Durkheim,
los historiadores interesados en una interpretación socio-política de las prác-
ticas devotas de la Edad Media tomaron prestado el concepto de religión35.
Max Weber consideraba que las representaciones, los rituales y los símbo-
los religiosos traducen las diferenciales sociales, generan ciertas formas de
vida religiosa en comunidad, legitiman algunos modos de organización
política y social, y, en fin, ejercen un poder no menor sobre la manera en
que los individuos conducen su vida.
Entendido así, sociológicamente, el concepto de religión pondría al
descubierto en las sociedades tradicionales los vínculos existentes entre las
formas religiosas y los intereses socio-políticos. No debe entenderse por
ello que la religión y la devoción se desintegren, o sean nada más que reflejos
o sombras de las superestructuras. El argumento sociológico expresa que
las representaciones piadosas y las prácticas religiosas reflejan los intereses
socio-económicos diferenciados que existen en la población.
El planteamiento se enfrenta con los documentos. Desde una mira-
da amplia, las fuentes medievales atestiguan la ausencia de piedad propia
en los diversos grupos sociales. Sin embargo, hay circunstancias en las
que los modos de pensar y los comportamientos piadosos se revisten de
atributos que podríamos llamar sociales: algunos oficios o profesiones
como también ciertas órdenes religiosas o simplemente la nobleza se apro-
piaban de las representaciones y las realizaciones de rituales religiosos.
No existen en la Edad Media devociones concebidas como un sistema
cerrado de representaciones o que algún grupo lo haya reivindicado. Cier-
tamente, la participación en dichos ritos estaba destinada a convocar a los
miembros de una comunidad ligados por lazos muy variados; las cofradías,
las órdenes religiosas, la nobleza, los habitantes de un burgo o una parroquia,
por cierto, excluían a los extraños. Sin embargo, el fondo religioso que daba
fundamento a esos ritos o representaciones seguía siendo cristiano, con los
valores compartidos de la religión que todos aceptaban y vivían. Las proce-
siones urbanas permitían al conjunto de la población (nobleza o pueblo)
comulgar en un solo rito religioso, no obstante allí mismo se evidenciaran

35
DURKHEIM, Emil. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, 1912 (3. ed., PUF, 2003);
WEBER, Max. Ensayos sobre sociología de la religión. Madrid, 1987. 3 v.

51
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

las jerarquías políticas y sociales. Simbolizaban también intereses colecti-


vos y los intereses propios de ciertas órdenes. Por lo tanto, con las formas se
respetaba el fondo, es decir, que la devoción medieval combinaba muy bien
las formas y los contenidos de una cultura religiosa colectiva, como asimis-
mo las formas más singulares del comportamiento religioso y cultural espe-
cífico de ciertos grupos.
En segundo lugar, la antropología haría también un gran aporte, dado
que en su predilección por el estudio de las “sociedades primitivas” descubriría
el carácter fundador de los lazos religiosos y pondría acento en el “hecho
religioso vivido y sentido” históricamente. Lo que interesa a esta corriente
es el fenómeno religioso concebido como comportamiento, una respuesta
individual y colectiva a una enseñanza moral y teológica; es la totalidad del
homo religiosus lo que se toma en consideración.
La irrupción de la antropología en el estudio del hecho religioso había
de producir una cierta irritación en los años ’70-80 en algunos historiadores
católicos o de hábito que practicaban una historia religiosa que había hecho
grandes aportes, como Raoul Manselli, Étienne Delaruelle, John van Engen;
especialmente éste último, historiador estadounidense, protestaba que las
nuevas tendencias relativas a la “religión popular” manifestaran un desprecio
por los estudios sobre los papas, los teólogos y los obispos. Interpelando a
Jacques Le Goff, Jean Delumeau y a Jean-Claude Schmitt, no le parecía
que las reliquias, el culto a los santos, las peregrinaciones, los milagros o el
purgatorio fueran más importantes que las disputas doctrinales o la política
papal. La idea desarrollada por éstos, de oponer dos culturas religiosas, una
clerical y erudita, que se estudia a través de las categorías intelectuales y
espirituales tradicionales, frente a otra popular, oral y costumbrista, que se
advierte por medio de la antropología estructural y la religión comparada,
llevaba implícito el error de desviar la atención de la fe como fenómeno
esencial de la religión medieval36. Se veía en esta aproximación antropológica
un cierto desenfado, una mirada irrespetuosa, quizás habría que decir, una
suerte de profanación sobre algunos valores fundamentales del cristianismo.
Fue una reacción excesiva, ya que no había intención por parte de las
nuevas tendencias de ofender la fe cristiana. El problema que se planteó era,
por cierto, teórico, es decir, que para estas corrientes no es posible entender el

36
ENGEN, John van. The Christian Middle Ages as an Historiographical Problem. American
Historical Review, v. 91, p. 519-52 (esp. p. 545, 530, 535), 1986.

52
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

fenómeno religioso medieval si, para concebirlo intelectualmente –sostiene


Jean-Claude Schmitt–, se emplea el término “religión” según el sentido que
adquirió en el siglo XIX. La discordia se generaba por el anacronismo que
significa aplicar el concepto de religión a la sociedad medieval que había
ignorado no solamente el vocablo mismo, sino también el contenido que
hoy le asignamos37.
Desde luego, el debate no ha concluido, puesto que la historia
institucional y doctrinal, al estilo tradicional, no ha desaparecido sino que
sigue cultivándose con gran vigor. Sin embargo, en la actualidad ambos
enfoques no deben confundirse, ya que, con categorías de análisis distintas,
tanto una como la otra estudian los mismos documentos extrayendo
interpretaciones diferentes sobre un mismo campo temático: la vida religiosa
del Occidente medieval38.
Con tales categorías de análisis, la religión en general, pero en
particular el cristianismo para la cultura de Occidente, quedaría reducido a
un cuadro general de un sistema de relaciones sociales, de prácticas, de
representaciones del mundo y de la sociedad, esto es, una manifestación
externa de la conducta humana, un mero objeto de estudio más entre las
diversas creencias, políticas, filosóficas y económicas. En consecuencia,
ambas disciplinas afirmarían la universalidad y la diversidad de las realidades
religiosas en la cultura humana.

Religiosidad ritualista
La profunda religiosidad de los pueblos que habitaban el Occidente a
fines del mundo antiguo ha sido una experiencia intensa cuya realidad es
muy anterior a la entrada del cristianismo en Europa. Con un pasado muy
lejano y de mucho peso en las costumbres, las prácticas supersticiosas y
mágicas constituyeron un profundo fondo de imaginario colectivo sobre el
cual vino a instalarse, a comienzos de la primera Edad Media, la reciente y
nueva religión cristiana. No es, pues, el Medievo el que ha transformado a
la sociedad europea occidental en una comunidad de creyentes, sino que a
última hora en la historia de la civilización occidental, la religión cristiana

37
SCHMITT, Jean Claude. Religione, folklore e società nell’Occidente medievale. Roma-Bari, 1988. p.
1-20.
38
LITTLE, L.; ROSENWEIN, B. La Edad Media a debate. Madrid, 2003 (ed. inglesa 1998). p.
475-7.

53
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

hizo su aparición superponiéndose a este sustrato religioso de remotos


orígenes, pero sin poder abolirlo.
Recientemente, Paul Veyne ha destacado con maestría las grandes
novedades que introdujo la nueva religión en el período tardo-imperial, todas
las cuales habrían de asegurarle el definitivo triunfo39. La novedad que habría
que calificar de radical, según Jean-Claude Schmitt, fue que el cristianismo
destacó visiblemente respecto del paganismo y el judaísmo antiguo, debido
a la existencia de una “institución de lo sagrado”, la Iglesia, gobernada y
administrada por un clero y provista de un conjunto de creencias con carácter
dogmático. Actuando ella como mediadora entre Dios y los hombres, y
legitimada por el peso de la tradición apostólica, la Iglesia tenía para la
sociedad un plan no cualquiera, sino un proyecto totalizador en el que lo
sagrado habría de quedar bajo su vigilancia40.
Nos encontramos ante un tema que nos conecta con los gestos, los
ritos y los sacramentos, que constituyen uno de los aspectos medulares y,
probablemente, más interesantes de una sociedad, puesto que a través de
ellos es posible adentrarse en el universo de las representaciones y, con ellas,
en el sistema de valores de una comunidad. La simbología de los gestos
exteriores de este vasto universo de representaciones colectivas, la condensaba
la parte más oficial de la vida religiosa del pueblo cristiano, esto es, la práctica
de los sacramentos41.
Con todo su enorme prestigio de casta culta, privilegiada y autoexigente,
el clero administraba los sacramentos de acuerdo a protocolos muy antiguos
y bien definidos, cuyo cumplimiento dio vida a los ritos públicos. Encuadrados
en estos marcos institucionales y normativos bastante rígidos, era de esperar
que los eclesiásticos dejaran muy poco espacio para que las creencias
populares pudieran contaminarlos al manifestarse los fieles al interior de
ellos. No obstante, la población cristiana, con un pasado pagano de profundo
alcance, más o menos presente y apenas por debajo de la epidermis
cristianizada, no abandonó sus ancestrales usos supersticiosos o mágicos.
En algunos casos, ejerciendo el clero alguna presión sobre estas prácticas

39
VEYNE, Paul. Quand notre monde est devenu chrétien (312-394). Paris, 2007. p. 26 ss.; tb. BROWN,
Peter. The Rise of Western Christendom: Triumph and Diversity AD 200-1000. Blackwell, 1996.
(Trad. franc.: L’essor du christianisme occidental: 200-1000. Seuil, 1997).
40
SCHMITT, 2001, p. 46.
41
SCHMITT, Jean-Claude. La raison des gestes dans l’Occident médiéval. Paris, 1990; PAUL, Jacques.
L’Église et la culture en Occident: IXe-XIIe siècle. Paris, 1986. v. II, p. 645-6.

54
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

paganas, las introdujeron en los ritos cristianos tratando de permearlas; en


cambio, en otros casos, fueron los propios eclesiásticos los que insertaron
prácticas cristianas al interior de ritos de origen pagano. Es el caso de las
ordalías que aquí nos ocupa.
En una sociedad enteramente campesina, dominada por un vital
conservadurismo, difícilmente hubiese podido ocurrir de otro modo esta
mixtura de tradiciones religiosas, aparentemente antagónicas. No muy lejos
de lo que puede advertirse todavía hoy, el primer acercamiento que los
individuos y las comunidades tuvieron del cristianismo fue su visible
ritualismo, en el que sobresalían los gestos y las palabras pronunciadas con
tono ceremonioso y circunspecto. La práctica de los sacramentos, administrada
por el clero según los ritos definidos y públicos, fue la muestra más evidente
de la parte más oficial de la vida religiosa del cristianismo, dice Jacques Paul.
Pero, en un principio, dichos sacramentos cristianos fueron para la
población todavía no cristianizada pero profundamente religiosa, sin duda,
extraños y a la vez muy desconcertantes para la realidad cotidiana de las
personas, y por esta razón se fijaron muy lentamente en el amplio imaginario
de los diversos pueblos del Occidente europeo. Y muy lentamente fueron
impregnando la sensibilidad cuando alcanzaron los gestos, los relatos y los
sueños con los cuales la población se identificaba42.
Si lo sagrado, pues, estaba presente en Europa antes del avance del
cristianismo, puede apreciarse que aquél no fue, a comienzos del Medievo,
específicamente cristiano; pero el cristianismo se fue haciendo presente en
las experiencias cotidianas e instalándose en el sistema de valores, a menudo,
sin camuflar del todo el inmenso patrimonio religioso anterior. Ciertamente,
adhesión exclusiva a las creencias cristianas no la hubo durante la Alta Edad
Media, ni la habría después durante el período bajo-medieval, porque el
cristianismo cohabitó históricamente con la práctica de numerosas creencias
mucho más antiguas. El historiador descubre la vitalidad de estas antiguas
creencias en los momentos en que la Iglesia, investigando las desviaciones y
cautelando la ortodoxia, revelaba un foco herético. Por tal razón, la experiencia
religiosa medieval fue, por entonces, particularmente compleja y variada.
La Iglesia, en cuanto era la “institución de lo sagrado”, no estaba en
condiciones de controlar todas las formas que adoptaba lo sagrado al interior
del cristianismo. Había una sacralidad, por así decirlo, “salvaje” que escapaba

42
PAUL, Jacques, 1986, p. 646.

55
DONAT, Luis Rojas • ¿Ha sido cristiana la Edad Media?

al control eclesiástico, a veces más o menos integrado al devocionario


popular como eran las ermitas erigidas por doquier, especialmente en la
campiña; a veces eran erradicadas, como lo fue el culto a un perro, el “santo
lebrel”, o demonizadas, como más tarde fue el árbol de las hadas de Juana
de Arco43; en otras ocasiones eran asimiladas, convertidas o re-sacralizadas,
como ocurrió con los cultos populares dedicados a un santo local. La cultura
popular supo apropiarse para sus propios fines de ciertos objetos o lugares
consagrados por la Iglesia, no para profanarlos, como pretendían los clérigos
que reivindicaban el monopolio de lo sagrado, sino para revestirlos de otra
forma de lo sagrado. Precioso ejemplo de ello es el caso que presenta Jean-
Claude Schmitt, de las diversas versiones de un relato famoso en que los
campesinos, se decía, conservaban disimuladamente la hostia en la boca
para depositarla más tarde en una colmena o en un establo, con la esperanza
de aumentar su producción de miel o leche. Los predicadores, escrupulosos
en su tarea, no desaprovechaban esta ocasión para reafirmar la Presencia
Real de Dios en la eucaristía44.
La Iglesia de comienzos de la Edad Media creyó haber triunfado sobre
ese paganismo cuando percibió que los germanos, aparentemente, se allanaban
a abandonar sus dioses. Sin embargo, los eclesiásticos estaban en un error,
porque la comunidad germánica jamás abandonó los gestos religiosos
elementales; tampoco lo hizo con su propia sensibilidad ante lo sagrado y,
menos aun, había de olvidar su modo tan particular de percibir las fuerzas
superiores. Quizás haya que mirar de otro modo este fundamento religioso,
puesto que el cristianismo se asentó entre los germanos, precisamente, porque
tenían ese pasado. De este modo se logró una transición compleja entre una
sacralidad tradicional que se mezcló con la sacralidad cristiana, por cuanto
los sacramentos se convirtieron en los instrumentos que integraban tradiciones
distintas, evitando una cristianización radical que habría provocado una
profunda crisis al romper con las raíces tradicionales de la sensibilidad religiosa
popular. En las sugestivas palabras de Marc Augé, consiste en comprender
los dioses y los ritos o ritos sin dioses45.

43
SCHMITT, J.-C. Le saint lévrier. Paris, 1979; ID., 2001, p. 50; ISAMBERT, F.-A. Le sens du sacré:
fête et religion populaire. Paris, 1982. p. 25 ; DUBY, G.; DUBY, A. Los procesos de Juana de
Arco. Valencia, 2005. p. 176-85.
44
SCHMITT, 2001, p. 50.
45
AUGÉ, Marc. Dieux et rituels ou rituels sans Dieux. In : MIDDLETON, John. Anthropologie
religieuse: les Dieux et les rites. Textes fondamentaux. Présentation de Marc Augé. Paris, 1974. p.
9-36.

56
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Casi idéntico proceso ocurrió con el fondo consuetudinario religioso


de la mayor parte de la población medieval romanizada. No solamente
antiguas prácticas religiosas se perpetuaron por debajo del ropaje cristiano
que las admitió, como las procesiones, las ofrendas, las oraciones y otras,
sino también los modos de pensar, de percibir y de reaccionar. Asimismo,
provenientes de viejas devociones paganas, los respetados lugares de culto
coexistieron durante mucho tiempo junto a los nuevos espacios devocionales
que fue imponiendo la acción evangelizadora de los monjes. El sincretismo
de que hablamos nos muestra la primera etapa de la conformación de las
estructuras religiosas del Occidente medieval, momento de transición en
que se verificaba el paso de una religión a otra, paso que presenta una
plasticidad única permitiendo que sistemas religiosos distintos pudieran
cohabitar.
Sobre esos poderosos fundamentos religiosos se erigió el cristianismo
creando una religiosidad mixta que combinó la sacralidad tradicional con
la nueva religión. Las prácticas religiosas antiguas se vistieron de un ropaje
cristiano que permitió su misma sobrevivencia. Solamente así puede
entenderse el proceso de transición de una religión a otra46. En consecuencia,
por mucho conservadurismo que, en general, tengan todos los sistemas
religiosos, no es correcto concebirlos estáticos, ya que tanto el paganismo
como el cristianismo demostraron en esta época una gran plasticidad y una
gran capacidad integradora, flexibilidad que les permitió asegurar una propia
y particular manera de conservarse. Precisamente, del encuentro de estos
diferentes sistemas con su diversidad de elementos germinaría una actitud
y también un comportamiento nuevo que, a su vez, habría de tener su propia
evolución con más o menos coherencia.

46
MANSELLI, Raul. La conversione dei popoli germanici al cristianesimo: la discussione
storiografica. In: Settimane di studio del Centro Italiano di studi sull’alto Medioevo: v. VII: Le Chiese
nei regni dell’Europa occidentale e i loro rapporti con Roma sino all’800: la conversione
nell’Europa dell’alto Medioevo. Spoleto, 1967. v. I, p. 15-42.

57
58
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Minorias, questão racial e mestiçagem


no mundo medieval: séculos XI-XIII

José Rivair Macedo*

No conhecido romance de cavalaria Parsifal, escrito por Wolfram von


Eschenbach no início do século XIII, apresenta-se uma situação singular,
intrigante, que nos chamou a atenção e motivou a reflexão inicial do pre-
sente estudo. Antes de ser duque de Anjou, no reino da França, de casar-se
e tornar-se pai do protagonista da obra, o cavaleiro chamado Ghamuret
visitou as terras da Arábia, onde se envolveu numa aventura amorosa com
Belakane, uma rainha moura de grande beleza e que era “preta retinta”. O
filho deles, chamado Feirefiz, tinha em seu aspecto físico curiosa particula-
ridade, e seu nascimento é assim descrito:
Quando chegou a hora a soberana deu à luz um filho bicolor no qual Deus
havia operado um prodígio. É que sua pele era malhada de branco e preto. A
rainha cobriu de beijos a parte branca de sua pele. Feirefiz de Anjou foi o
nome que a mãe impôs ao filho que se tornaria um demolidor, de tanto
quebrar lanças e perfurar escudos. Sua pele e seus cabelos eram matizados
de preto e branco, como a plumagem de uma ave.1

Eis um aspecto que não parece ter chamado a atenção ou despertado


o interesse dos especialistas: o protagonista da mais conhecida e popular
aventura cavaleiresca em solo germânico ter um irmão de sangue no Orien-
te Médio, e esse irmão ter sido um mestiço2. Além disso, salta aos olhos a
solução encontrada pelo autor do romance para caracterizar a mestiçagem.
Feirefiz não era nem branco, nem preto, era literalmente bicolor, isto é,

* Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS; Pesquisador


do CNPq.
1
ESCHENBACH, Wolfram von. Parsifal. Brasília: Ed. Thot, 1989. p. 49.
2
Geralmente, o personagem é interpretado a partir do simbolismo iniciático associado ao Graal.
Ver GRAY Jr., Clayton. The symbolic role of Wolfram’s Feirefiz. The Journal of English and
Germanic Philology, 1974; WILSON, H. B. The Symbolism of Belakane and Feirefiz in Wolfram’s
Parsifal. German Life and Letters, v. 13, n. 2, p. 94-105, 1960.

59
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

tinha o corpo malhado3. Partindo dessa curiosa (e provavelmente primeira)


representação literária de um personagem mestiço na criação cultural euro-
peia, o objetivo da comunicação é discutir algumas possibilidades de estudo
sobre o tratamento reservado às minorias étnico-religiosas e ao fenômeno da
miscigenação racial que efetivamente existiu nas franjas do mundo medieval,
em áreas de fronteira ou cruzamento entre a Cristandade e o Islã.
Como especificamos linhas acima, a representação romanesca de-
sempenhará nesse estudo o papel de elemento indiciário, porque a caracte-
rização do personagem, aparentemente bizarra, deve ser considerada na-
quilo que ela comporta de historicidade. Não quer dizer que a descrição
física apresentada correspondesse à realidade, mas o fato de que ela tivesse
sido admitida pelo escritor e, provavelmente, pelos seus ouvintes/leitores
pede algum tipo de explicação. Fazemos nossas as palavras de Anita Guer-
reau-Jalabert, para quem a análise de certos elementos ditos “maravilho-
sos” ou bizarros das obras literárias da Idade Média, irredutíveis a uma
abordagem racional, pode ser a chave para a decifração dos códigos socio-
culturais compartilhados naquela sociedade, cabendo ao historiador tentar
restituir a coerência de seu discurso4. Em nosso caso, todavia, o interesse
não está no romance em si, mas na visão de mundo que tornou possível a
referida caracterização.
Do ponto de vista dos referenciais de análise, cumpre reconhecer a
importância do amplo movimento de revisão crítica dos pressupostos que
orientaram a própria constituição do campo da medievística europeia. Tra-
ta-se de reconsiderar o peso das identidades nacionais construídas a partir
dos séculos XVIII-XIX e projetadas em retrospecto no período de forma-
ção da Europa, em busca de elementos identitários de caráter social, cultu-
ral e étnico5. O reconhecimento dos condicionamentos subjacentes à cons-

3
Para LAMPERT, Lisa. Race, Periodicity and the (neo) Middle Ages. Modern Language Quarterly,
v. 65, n. 3, 2004, “Feirefiz é um exemplo não apenas de um personagem heroico negro ou de
representação protorracial, mas ilustra as complexas relações de cor num meio em que a imagem
idealizada do cavaleiro era a de alguém branco e cristão” (p. 405).
4
GUERREAU-JALABERT, Anita. Histoire médiévale et littérature. In: Le GOFF, Jacques;
LOBRICHON, Guy. Le Moyen Âge aujourd’hui: trois régards sur le Moyen Age: histoire, théologie,
cinéma. Paris: Le Leopard d’Or, 1997. p. 142.
5
Ver, entre outros, os estudos de DAGENAIS, John; GRER, Margareth. Decolonizing the Middle
Ages. Journal of Medieval and Early Modern Studies, v. 30, n. 3, 2000; LAMPERT, 2004.
6
O tema da mestiçagem tem despertado o interesse dos pesquisadores e vem sendo incorporado
ao debate historiográfico, mas a ênfase costuma ser dada ao período das colonizações promovidas
pelos europeus. Nesse sentido ver GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001; DAVIS, Natalie. Métissage culturel et mediation historique. In:

60
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

trução do saber acadêmico produzido pela medievística europeia, com seus


etnocentrismos e ângulos preferenciais de estudo, depende do quanto te-
nhamos condições de olhar para o passado europeu com outros olhos e de
lhe fazer outras perguntas. Acreditamos que, em todos esses casos, a inda-
gação acerca do lugar reservado no medievo às relações étnico-raciais abre
possibilidades de investigação muito interessantes para nós, pesquisadores
latino-americanos, pertencentes a sociedades marcadas pelas trocas cultu-
rais e pela mestiçagem6.

Classificações étnico-raciais
É preciso tomar cuidado para não cair em velhas ciladas metodológi-
cas, e definir claramente os objetos e conceitos. O primeiro equívoco seria
aplicar ao medievo os pressupostos das modernas teorias a respeito das
raças, sobretudo os componentes biológicos, genéticos, evocados na elabora-
ção das classificações étnico-raciais e que produziram as doutrinas racialistas
dos séculos XIX-XX. Neste ponto, os argumentos apresentados por Robert
Bartlett são bastante convincentes, demonstrando que no período em causa o
componente genético foi muitas vezes ofuscado por considerações de dife-
rente ordem e que no vocabulário das relações raciais eram os componentes
sociais, culturais e inclusive religiosos que determinavam a identidade étnica,
embora, a partir do legado do saber greco-romano, os enciclopedistas dos
séculos XIII-XIV tenham tido condições de formular explicações genéricas a
respeito dos traços distintivos dos povos que beiram o determinismo racial e
geográfico, como se pode perceber no trecho a seguir: “O frio é a mãe de
brancura e da palidez, como o calor é a mãe da negrura e da vermelhidão.
Assim, em terras quentes sairão homens negros e marrons, como entre os
Mouros, e em terras frias, homens brancos, como entre os eslavos”7.
Deslocando a atenção daquilo que, com alguma temeridade, chama-
ríamos de “teorização” étnico-racial para os discursos e lugares-comuns
identitários, é possível observar com facilidade o quanto as generalizações
acerca das particularidades étnicas de determinados povos, considerados
“estrangeiros”, repetiam-se em ambiente cristão e em ambiente muçulma-

XVII CONFERENCE MARC BLOCH, Paris, EHESS, 13/06/1995. Disponível em: <http://
cmb.ehess.fr/document114.html>. Acesso em: 13 ago. 2012.
7
Bartholomeu Anglicus, Livre des proprietés des choses, ap. BARTLETT, Robert. Medieval and
modern concepts of race and ethnicity. Journal of Medieval and Early Modern Studies, v. 31, n. 1,
p. 46, 2001.

61
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

no. Na Europa acima dos Pirineus, os prejuízos étnicos ganharam maior


visibilidade, por exemplo, em ambiente urbano, nas “nações” dos collegia
que compunham o cenário da Universidade, com suas rixas, competições e
querelas, aspecto realçado em cores muito vivas na Historia Occidentalis de
Jacques de Vitry, escrita na primeira metade do século XIII8. Abaixo dos
Pirineus, o sábio andaluz Ibn Abd al-Munim al-Himiari caracterizava os
galegos como falsos, inescrupulosos e sujos9, enquanto no Liber Scale Ma-
chometi (Livro da escada de Maomé), clássico da literatura do miraj que
Alfonso o Sábio mandou traduzir, os povos são apontados de acordo com
vícios e defeitos que lhes seriam inerentes: os árabes como invejosos, os
indianos como luxuriosos, os judeus como falsos, os cristãos como arro-
gantes, os persas como avaros e os etíopes como ignorantes10.
Vislumbra-se a partir daqui o quanto, na definição da identidade
étnica, o credo religioso aparecia como elemento determinante para a
classificação. Parece não haver dúvida quanto ao fato de que, tanto em
ambiente cristão quanto em ambiente muçulmano, a opção religiosa apa-
recia como fator de destaque na qualificação dos próximos e dos não pró-
ximos, dos conterrâneos e estrangeiros, enfim, dos que se consideravam
semelhantes por oposição aos diferentes. Moçárabes11 ou dhimmis12 em do-
mínio islâmico, ou mudejares13 e judeus em domínio cristão, mesmo que

8
Jacques de Vitry, Historia Occidentalis, líber II, cap. VII, ap. MOULIN, Leo. A vida cotidiana dos
estudantes na Idade Média. Lisboa: Edições “Livros do Brasil”, 1994. p. 179-180.
9
AL-HIMIARI, Ibn Abd al-Munim. Kitab al-Rawd al-Mitar (O livro do jardim das fragrâncias).
Tradução de António Borges Coelho. Portugal na Espanha Árabe. 2. ed. Lisboa: Editorial
Caminho, 1989. v. 1, p. 44.
10
Liber scale Machometi (O livro da escada de Maomé). In: LAUAND, Luiz Jean (trad.). Cultura
e educação na Idade Média. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1998. p. 279.
11
Designativo genérico empregado pelos cristãos latinos para identificar os remanescentes das
comunidades visigóticas que permaneceram sob o domínio muçulmano entre os séculos VIII-
XI, mediante o pagamento de um imposto de capitação, a djizya. A seu respeito, ver SIMONET,
F. J. Historia de los mozárabes de España. Amsterdam, 1967 (orig. 1897-1903); MATTOSO, José.
Os moçárabes. In: Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987. p. 19-34.
(Imprensa Universitária, 59).
12
Termo pelo qual os muçulmanos designavam as comunidades cristãs e judaicas mantidas sob
proteção, com permissão para realizar seus cultos em espaço doméstico. Para uma abordagem
mais geral, a obra de referência é LEWIS, Bernard. Judeus do islã. Rio de Janeiro: Xenon, 1990.
13
Nome das populações muçulmanas que permaneceram sob o domínio cristão após a
Reconquista. Entre a vasta bibliografia, convém reter as seguintes referências: PERÉZ, J.
Chrétiens, juifs et musulmans en Espagne: le mythe de la tolerance religieuse. L’Histoire, Paris,
n. 137, p. 8-17, 1990; SERRA, Pedro Cunha. O árabe muwallad e sua representação na
Península Ibérica. Boletim de Filologia, Universidade de Lisboa, tomo XXVIII, p. 231-235, 1983;
GONZÁLES PALENCIA, Angel. Moros y cristianos en España medieval. Madrid: Consejo
Superior de Investigaciones Científicas, 1945; LADERO QUESADA, Miguel Angel. Los

62
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

pudessem permanecer sob a proteção das autoridades, ao preço de pesa-


dos impostos de capitação, viviam na difícil condição de minorias étnico-
religiosas, e, no caso da Europa, são bem numerosos e conhecidos estu-
dos que demonstram os fundamentos do antissemitismo e da islamofobia
no período medieval14.
Não pretendemos retomar esses pontos, que, segundo pensamos, es-
tão amplamente contemplados. Interessa-nos indagar sobre os interstícios
das relações sociais e dos confrontos entre grupos étnico-raciais distintos
justamente em áreas de conflito e de fronteira, onde se produziram igual-
mente intercâmbios, e mesmo fusões. Embora seguindo rumo próximo ao
nosso, as pesquisas de Alexander Beihamer a respeito das defecções e mu-
danças de lado de bizantinos e turcos seljúcidas entre os séculos XI-XIII
distanciam-se de nossos objetivos. Não obstante sua investigação ter como
ponto de partida uma inscrição grega num epitáfio de 1297 encontrado
numa igreja da antiga cidade de Konya, na Anatólia turca, pertencente a
Michael Amiraslan, descendente da família dos Comnenos, seu interesse
não foi recuperar as condições de vida dos turco-bizantinos, mas averiguar,
em diferentes contextos, as razões políticas pelas quais turcos ou bizantinos
mudaram de lado e passaram a conviver com o adversário de seus povos de
origem15. É verdade que, nas franjas dos territórios que serviam de cenário
de conflito, a figura dos renegados, para uns, e adotados, para outros, não
deve ser menosprezada na análise histórica – sobretudo em períodos tão
recuados, em que as instituições e as modalidades de coerção aos dissiden-
tes não se encontravam profundamente enraizadas nas práticas sociais.

mudejares de Castilla y otros estudios de Historia medieval andaluza. Granada: Universidad de


Granada, 1989; BARROS, Maria Filomena Lopes de. As comunas muçulmanas em Portugal
(subsídios para o seu estudo). Revista da Faculdade de Letras, Universidade do Porto, II série, v.
7, p. 85-100, 1990.
14
Este traço do comportamento cristão-ocidental foi examinado detidamente por BLU-
MENKRANZ, Bernhard. Juifs et chrétiens dans le monde occidental (430-1096). Paris: La Haye,
1960; BARKAI, Ron. Cristianos y musulmanes en la España medieval: el enemigo en el espejo.
Madrid: RIALP, 1984; SÉNAC, Philippe. L’image de lautre: L’occident médiéval face à l’islam.
Paris: Flammarion, 1983; IOGNA-PRAT, Dominique. Pode-se falar em antissemitismo medie-
val? Signum: Revista da ABREM, n. 4, p. 71-86, 2002; ID. Ordenner et exclure: cluny et la société
chrétienne face a l’hérésie, au judaisme et a l’islam. Paris: Aubier, 1998.
15
BEIHAMER, Alexander. Defection across the Border of Islam and Christianity: Apostasy
and Cross-Cultural Interaction in Byzantine-Seljuk Relations. Speculum: A Journal of Medieval
Studies, v. 86, n. 3, p. 597-651, 2011. Não obstante o autor ter notado e valorizado tais
movimentações entre os participantes dos dois campos, não levou em conta o papel das
interações e hibridações das populações turco-bizantinas, tratando-as como se fizessem parte
dos estados modernos da Grécia e Turquia, com seus respectivos territórios “nacionais”.

63
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

Grupos mestiços
O que se pode supor é que, em áreas de passagem cujas fronteiras fos-
sem disputadas, ou cujas fronteiras se mostrassem permeáveis a trocas e inte-
rações, a distinção entre os grupos de origem admitisse cruzamentos, fusões,
e que nem mesmo a diferença religiosa impedisse o surgimento de grupos
sociais híbridos. Para a nossa investigação, interessa particularmente a área
mediterrânica, o Oriente Médio e a área do Egeu e da Ásia Menor, onde con-
viveram secularmente populações de origem cristã, judaica e muçulmana.
Secular ponto de circulação de povos de proveniência diversa, as ci-
dades de todos os lados do Mediterrâneo abrigaram, em maior ou menor
proporção, grupos de pessoas mestiças. Na segunda metade do século XII,
o geógrafo andaluz al-Bakri registrava em seu tratado intitulado Kitâb al-
Masâlik wa-al-Mamâlik (Livro dos caminhos e dos reinos) a existência de
diversas comunidades ocupadas por gente de “sangue misturado”, como
Biskera, na Ifryquia, onde habitam mestiços de latinos e berberes, e Asila,
onde viveriam filhos de normandos e berberes. Próximo da comunidade de
Tolga haveria três coletividades menores, com jardins repletos de oliveiras,
vinhedos e árvores frutíferas: “Uma dessas cidades é habitada por gente de
sangue misturado, outra por árabes de origem iemenita e a terceira por um
povo pertencente à tribo árabe de Cais.”16
Para a Península Ibérica, o tema da convivência entre cristãos, ju-
deus e muçulmanos suscita ampla discordância entre os especialistas desde
o célebre debate entre Américo Castro e Claudio Sanchez Albornoz17. Não
parece ser casual o fato de que as investigações mais aprofundadas sobre o
impacto dos berberes afro-muçulmanos na composição étnico-social de al-
Andaluz tenham sido levadas a cabo por pesquisadores estrangeiros, sobre-
tudo por Pierre Guichard e Robert I. Burns18. Salvo engano, parece haver

16
Al-BAKRI. Description de l’Afrique septentrionale. Trad. Mac Guckin de Slane. Alger: Typographie
Adolphe Jourdain, 1913. p. 111-112, 149.
17
CASTRO, Américo. España en su historia: cristianos, moros y judíos. Barcelona: Critica, 2001
(orig. 1948); ALBORNOZ, Claudio Sánchez. La España musulmana según los autores islamitas y
cristianos medievales. Buenos Aires: El Ateneo, 1946, 2 v.
18
GUICHARD, Pierre. Les musulmans de Valence et la Reconquête (XI-XIII siècles). Damas: Institut
Français de Damas; Paris: Editions d’Amérique et d’Oriente, 1991; GUICHARD, Pierre.
Structures sociales “orientales” et “occidentales” dans l’Espagne musulmane. Paris: Mouton / EHESS,
1977; BURNS, Robert I. Les mudejares du royaume de Valence au temps des croisades: une
majorité traitée en minorité dans un royaume au Moyen Age. In: Minorités et marginaux en
France Meridionale et dans la Peninsule Ibérique (VII-XVIII siècles) (Actes du Colloque de Pau, 27-
29 mai 1984). Paris: Editions du CNRS, 1986. p. 95-118.

64
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

certa desproporção na produção acadêmica dedicada aos moçárabes no


período anterior ao século XII e aos mudejares no período posterior ao
século XIII, em comparação com os parcos trabalhos dedicados aos mula-
dis – os cristãos convertidos ao islã, de onde surgiram importantes famílias
andaluzas desde pelo menos o século IX.
O termo muladi provém do vocábulo árabe mawali, na expressão mu-
salimat ahl al-dhimma o muwalladun19. Era utilizado inicialmente para desig-
nar os crentes recém-convertidos, ligados por laços de fidelidade às famílias
árabe-muçulmanas reinantes. Considerando os estudos recentes, é possível
identificar a filiação étnica de famílias cristãs convertidas cuja ascendência
transparece em qualificativos como al Quti (o Godo), ou em nomes que
sugerem a adoção do credo islâmico, como Abd Allah (O que se entrega a
Deus), ou ainda em sobrenomes que procuram reforçar a vinculação religi-
osa, como al Islami (do islã)20.
Embora o período de maior participação histórica dos muladis tenha
sido contemporâneo ao emirado e califado andaluz, onde atuaram muladis
influentes, como Ibn Hafsun na cidade de Ronda por volta de 850, ou famí-
lias poderosas, como os Banu Qasi, de Córdova (714-924), não parece que
o grupo tenha constituído número expressivo, mas deve-se considerar na
composição desse grupo o cruzamento entre muçulmanos e cristãs nativas
que adotaram o credo islâmico21. Mesmo durante e depois da Reconquista
cristã, a possibilidade da conversão ao islã continuava a se apresentar, de
modo que os legistas alfonsinos incluíram na Sétima Partida a circunstância
em que determinados indivíduos, qualificados de desesperados, apóstatas e
infames, renegavam sua fé primeira. As razões apresentadas pelo legislador
para explicar a mudança religiosa e de status são várias:
Há alguns que são levados a fazer isto pelo gosto que têm de viver a seu
modo; ou porque perderam ou mataram seus parentes, ou porque perderam
o que tinham e ficaram pobres, ou por malfeitos que tenham feito e o temor
de receber a pena que merecem.22

19
MARÍN Manuela. Individuo y sociedad en al-Andalus. Madrid: MAPFRE, 1992. p. 50.
20
FIERRO, Maribel. Árabes, bereberés, muladíes y mawali: algunas reflexiones sobre los datos
de los diccionarios biográficos andalusíes. In: MARÍN, Manuela; FELIPE, Helena de (orgs.).
Estudios onomástico-biográficos de al-Andalus. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, 1995. p. 50; PENELAS, Mayte. Some Remarks on Conversion to Islam in al-
Andalus. Al Qantara: Revista de Estudios Árabes, Madrid: CSIC, v. 23, n. 1, p. 193-200, 2002.
21
PAVON BENITO, Julia. Muladíes: lectura política de una conversión: los Banu Qasi. Anaqel
de Estudios Árabes, Madrid, v. 17, p. 189-201, 2006.
22
ALFONSO X, EL SABIO. Las siete partidas. Selección, prólogo y notas de Francisco López
Estrada y Tereza López García-Berdoy (Odres Nuevos). Madrid: Castalia, 1992. Sétima partida,

65
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

Com a ocupação parcial do Oriente Médio por latinos a partir do


século XII, em decorrência das conquistas empreendidas por ocasião da
Primeira Cruzada, os contatos entre os latinos conhecidos pelo termo ge-
nérico “francos” (em árabe, franj) que permaneceram na Síria e Palestina
com mulheres muçulmanas produziram o aparecimento do grupo de cris-
tãos levantinos conhecidos como poulains23. Entre os membros da aristocra-
cia dos Estados Latinos destacaram-se famílias poderosas, como os Ibelin,
ou personagens influentes, entre os quais o Conde Josselin e a Condessa de
Jaffa, ou Roberto de Corbie e Foulque de Fiole, ambos nascidos em Jerusa-
lém. São eles os personagens de primeiro plano nas crônicas de Guilherme
de Tyr e Bernard le Trésorier, compostas na segunda metade do século XIII24.
Adaptados ao ambiente oriental e acostumados ao convívio com os
sírio-muçulmanos, judeus e palestinos, esses cristãos orientais eram vistos
com reserva e desconfiança pelos escritores latinos. Muito provavelmente
deve-se a Foucher de Chartres, no século XII, a melhor caracterização das
diferenças que os separavam dos ocidentais:
Nós, que éramos ocidentais, vamos nos tornando orientais […] Esquecemos
nossos lugares de origem; muitos de nós os ignoram e nem mesmo ouviram
falar deles […] Um possui aqui casas e propriedades por direito de herança;
outro casou-se com uma mulher, não entre nossas compatriotas, mas sim
entre as sírias, armênias, às vezes inclusive uma sarracena batizada […] ser-
vem-se das diversas línguas do países, e as línguas antes faladas misturam-se
umas às outras, tornando-se comuns […] a confiança aproxima as raças mais

título 25, lei 4, p. 422. Para a análise do enquadramento jurídico-político dos mouros, mudéjares
e muladis, ver MACEDO, José Rivair. Afonso o Sábio e os mouros: uma leitura das Siete
Partidas. Anos 90: Revista do PPG de História da UFRGS, Porto Alegre, v. 16, 2002;
CARPENTER, Duaine. Alfonso el Sabio y los moros: algunas precisiones legales, históricas y
textuales con respecto a Siete Partidas. Al-Qantara, Madrid, v. 7, p. 229-252, 1986.
23
A mais antiga definição do termo latino pulanis, de onde o vocábulo francês poulain, encontra-
se em NOGENT, Guibert de. Gesta Dei per francos. Ed. Jacques Bongars. Jerusalém, 1972:
“Pollani autem dicuntur, qui post praedictam terrae sanctae liberatione ex ea oriundi extiterunt:
vel quia recentes et novi, quase pulli respectu Surianorum reputati sunt; vel quia principaliter
de gente Apuliae matres secundum carnem habuerunt” (tomo I, p. 1086). Sobre o uso da
expressão nos séculos XII-XIII, MORGAN, M. R. The Meaning of Old French Polain/Latin
Pullanus. Medium Aevum, v. XLVIII, p. 40-54, 1979.
24
Entre as poucas propostas de estudo do grupo, ver as considerações de JOTISCHKY, Andrew.
Franks and Natives in the Crusader States: The State of the Question. In: Norman Edge
Colloquium, 2009. Disponível em: Medievalists.net, april 21, 2011, <http://
www.medievalists.net/2011/04/21/franks-and-natives-in-the-crusader-states-the-state-of-the-
question/>; SCHWINGES, Rainer Christoph. William of Tyre, the Muslim Enemy, and the
Problem of Tolerance. In: GERVERS, Michael; POWELL, James F. (eds.). Tolerance and
Intolerance: Social Conflict in the Ages of the Crusades. Siracuse: Syracuse University Press,
2001. p. 124-135.

66
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

distantes. A palavra da Escritura se concretiza: “O leão e o boi comerão no


mesmo pasto”. O colono transformou-se quase num indígena, e quem era
estrangeiro aproxima-se daquele que antes aí habitava25.

A avaliação do cronista é confirmada pelo testemunho de um escri-


tor com formação muito distinta e com interesses divergentes em relação
aos cristãos. O príncipe sírio Osama Ibn Munqid (1095-1188), que convi-
veu durante décadas com os franj, fornece deles uma imagem parecida com
a anterior. Embora considerando-os instrumento da punição divina para
castigar os pecados dos fiéis de Allah, admite que sua prolongada perma-
nência produziu uma situação nova:
Muitas vezes me perguntei se eles com o tempo ficariam aqui e se pareceriam
conosco. Pelo exemplo de muitos deles, acabei acreditando no milagre: mes-
mo que não tenham abraçado nossa fé, eles aprenderam em massa a nossa
língua, e partilharam conosco uma vida em comum.26

Na região do Mar Egeu e na Ásia Menor, dominada pelos bizanti-


nos, área historicamente ocupada por população de origem greco-cristã, o
contato com altaicos e eslavos ocasionou a assimilação de grupos designa-
dos por serbii e croatie desde os séculos VI-VII, búlgaros e ávaros nos séculos
posteriores. No século X, por ocasião da redação do tratado intitulado De
administrando imperio, de Constantino Porfirogêneta, o mundo bizantino
era marcadamente greco-eslavo27. Muito tempo depois, na segunda metade
do século XIII, após o efêmero período de dominação dos latinos, aberto
com o saque de Constantinopla em 1204, as famílias de origem franca,
genovesa e veneziana instaladas em Bizâncio mesclaram-se com a popula-
ção nativa, dando origem ao grupo de mestiços que, com o tempo, adquiri-
ram um falar próprio, identificado a partir do período de governo da dinas-
tia dos Paleólogos pelo termo genérico de gasmulos28.

25
Foucher de Chartres, Historia Hierosolymitana, ap. AZIZ, Philippe. A Palestina dos cruzados.
Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978. p. 126. (Grandes civilizações desaparecidas).
26
Para a tradução do texto árabe ao francês, ver MIQUEL, André. Ousama: un prince syrien face
aux croisés. Paris: Fayard, 1978. p. 35, 76-77; para o conjunto de seus pontos de vista sobre os
franj, DERENBOURGH, Hartwig. Ousama Ibn Mounkidh: un émir syrien au premier siécle
des croisades. Paris: Ernest Leroux, 1989, especialmente cap. 11: “Impressions d’Ousama sur
les francs”, p. 467-498.
27
MARÍN RIVEROS, José. Croatas y serbios en el De administrando imperio de Constantino VII
Porphyrogénito. Byzantion Néa-Hellas, Santiago de Chile, n. 13-15, p. 55-59, 1993-1996.
28
A primeira definição proposta para este designativo foi apresentada no antigo estudo de
BUCHON, J. A. (ed.). Chroniques étrangères relatives aux expéditions françaises pendant le XIII
siècle. Paris: Mairet, 1841, p. XV. Para ele, este grupo falaria uma língua que mesclava elementos
do antigo francês com o grego, e os falantes seriam filhos da mistura dos francos com as mulheres
do país.

67
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

Empregados na marinha bizantina pelo basileu Miguel Paleólogo em


1261, certos desses mestiços passaram a ocupar papéis de destaque no Im-
pério Bizantino tardio, e algumas de suas ações aparecem registradas nos
relatos cronísticos de Niceforo Gregoras e Miguel Pachimero. A julgar pe-
las informações fornecidas por David Jacoby, especialista em temas da his-
tória dos latinos no Oriente, eles atuavam nos navios de comércio ou de
guerra dos latinos e se beneficiavam da ascendência veneziana, mas a situ-
ação se inverteu no século XIV, quando a ascendência italiana passou a ser
um problema para sua integração. Muitos, então, procuravam esconder sua
ascendência para escapar das vexações impostas pelos oficiais bizantinos
aos venezianos e genoveses29.
Outra categoria de gasmulos eram os descendentes latinos que se tor-
naram senhores de territórios bizantinos durante o período de ocupação.
Foi o caso de Marco Vernier, filho de Giovanni Vernier, que atuou em Con-
stantinopla antes de 1232 e por volta de 1250 residia na área de Petrion,
anexada por Veneza depois da conquista. Ele teve três filhos com sua espo-
sa grega Zoé, e em 1263 viviam em Creta. Também Geoffroy de Méry,
descendente de Geoffroy de Villehardouin, casou-se com uma mulher gre-
ga. A família Villehardouin desempenhou papel singular na Moreia e Ar-
cádia, e os príncipes descendentes de francos também gozavam de posição
de destaque na região da Acaia – entre os quais cabe destacar Ricardo de
Cefalônia, João de Tournai e João de Chaudron30. Considere-se ainda o
caso das famílias de descendentes de bizantinos com turcos, como o já
mencionado Michael Amiraslan, de ascendência bizantina, que vivia em
Konya, capital do sultanato de Rum. Desde o século XII o cronista franco
Raymond d’Aguillers os denominava de turcopuli e os caracterizava como

29
JACOBY, David. Studies on the Crusader States and on Venetian Expansion. London: Variorum
Reprints, 1989. p. 117-119; ID. Trade, Commodities and Shipping in the Medieval Mediterranean.
Variorum Reprints, 1997; ID. Les venitiens naturalisés dans l’1empire byzantine: un aspect de
l’expansion de Venise en Romanie du XIII au milieu du XV siècle”. In: Travaux et mémoires.
Centre de Recherche d’Histoire et de Civilization de Byzance. Paris: E. de Boccard, 1981.
tomo VIII, p. 221-223.
30
JACOBY, David. The Greeks of Constantinople under Latin Ruler 1204-1261. In: MADDEN,
Thomas F. (ed.). The Fourth Crusade: Event, Aftermath and Perceptions – Papers from the
Sixth Conference of the Society for the Study of the Crusades and the Latin East, Istanbul,
Turkey, 25-29 August 2004. Publicado em 2008; ID. Catalans, turcs et vénitiens en Romanie
(1305-1332): un nouveau témoignage de Marino Sanudo Torsello. Studi Medievali, 3. série, v. 15,
p. 217-261, 1974; informações sobre as famílias de origem franca podem ser obtidas em Chronique
de Moree. In: BUCHON, 1841, p. 565-736; ROD, Renell. The Princes of Achaia and the Chronicles
of Morea: A Study of Greece in the Middle Ages. London: Edward Arnold, 1907. p. 22.

68
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

“gens impia et dicta christiana nomine, non opera, qui ex turco patre et
graeca matre procreati”31.

Hibridação
Constatada a existência do fenômeno da mestiçagem nas áreas de
fronteira geográfica ou de fronteira cultural do mundo medieval, é hora de
voltar ao ponto inicial deste estudo e tentar compreender as razões pelas
quais Wolfram Von Eschenbach, no Parsifal, caracterizou o mestiço Feire-
fiz (que personificava, sabemos agora, a condição dos poulains do Levante)
como um indivíduo bicolor, portador de manchas brancas e pretas. Trata-
se de refletir sobre essa aparente dificuldade de admitir a mistura das dife-
rentes cores dos pais na descendência dos filhos mestiços, sobre essa apa-
rente recusa da ideia de mestiçagem.
Em primeiro lugar, convém ressaltar a inexistência, no mundo cris-
tão latino, daquilo que se poderia chamar de preconceito de cor em relação
aos traços fisiológicos dos negros. Uma das mais importantes pesquisado-
ras dos fenômenos associados à descendência e geração no pensamento
médico medieval, Maike Van der Lugt, afirma que, naquele tempo, teólo-
gos, mestres universitários e eruditos em geral dedicavam maior atenção à
tonalidade, densidade e viço da pele do que à sua cor mais clara ou mais
escura32. Não quer dizer que a cor negra estivesse isenta de qualificações
negativas, como se sabe, mas tudo leva a crer que esse aspecto decorresse do
lugar ocupado pela noção da escuridão no pensamento cristão, atravessado
pela polaridade branco/luz/divindade – negro/trevas/demônio33. Com efei-
to, nos sistemas de valores medievais, a cor negra lembrava o mal, e os teólo-
gos, de Santo Agostinho a Alberto Magno e São Tomás de Aquino, estabele-
ciam relação do branco com a pureza, perfeição espiritual e verdade, e do

31
Raymonde de Aguillers, Chronique, liber V, cap. 3, ap. DU CANGE. Glossarium ad scriptores
mediae et infimae latinitatis. Niort: N. Favre, 1883-1887. tomo VIII, col. 212b.
32
LUGT, Maaike van der. La peau noire dans la science médiévale. Micrologus, v. XIII, p. 441,
2005.
33
Segundo PORTAL, F. Des couleurs symboliques dans l’Antiquité, le Moyen Age et les temps modernes.
Paris: Éditions Niclaus, s.d. p. 103: “Le blanc est le symbole de la verité absolue, le noir devait
être celui de l’erreur, du néant, de ce qui n’est pas. Dieu seul possède l’existence en soi; le
monde est une emanation de sa pensée, le blanc réfléchit tous les rayons lumineux, le noir est
la négation de la lumière; il fut attribué à l’auteur de tout mal et de toute fausseté.” Definições
similares, contrastantes, são apresentadas por PASTOUREAU, Michel. Dicionário das cores do
nosso tempo: simbólica e sociedade. Lisboa: Estampa, 1997. p. 43-44, 141-142.

69
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

negro com a perdição e falsidade. Quanto aos textos destinados à pregação


religiosa – sermões, exempla e a literatura didática em geral –, negra era a cor
do diabo. Por isso mesmo, até pelo menos o século XIV o senhor dos infernos
era retratado como “etíope negro”, com cabelo encarapinhado, baixa estatu-
ra e corpo disforme, em que se misturavam traços humanos e anfíbios34.
De qualquer modo, isso é diferente do que ao mesmo tempo se passa-
va no mundo muçulmano, onde se desenvolvia um discurso de caráter emi-
nentemente racial que inferiorizava os sudan e os zandj, termos genéricos
aplicados aos negros de origem africana, num gradual distanciamento dos
preceitos de fraternidade estabelecidos no Corão35. Provavelmente o preju-
ízo étnico-racial tenha estado vinculado à escravização imposta aos africa-
nos durante séculos – embora outras categorias de populações cativas, como
os turcos Mamluk e os Eslavos, não tenham sido tratadas com desprezo36.
No caso ocidental, mesmo sem ter tido contato mais frequente com
populações de pele negra antes do século XV, aqueles elementos condicio-
nantes de seus sistemas de valores parecem ter operado no sentido de ante-
cipar um pré-conceito em relação à ideia da mescla e da hibridação. Numa
obra sem qualquer vinculação aparente com a questão aqui discutida, o
historiador Michel Pastoureau pode ter resvalado num ponto crucial para o
esclarecimento das dificuldades diante da mestiçagem na cultura ocidental,
que tem suas bases na matriz judaico-cristã. Em O pano do diabo: uma histó-
ria das listras e dos tecidos listrados, ele estuda os sentidos atribuídos ao uso
das vestes e símbolos heráldicos bicolores e policromados, revelando-nos
um ponto aparentemente surpreendente: até pelo menos o século XVI os
tecidos e imagens listrados não eram bem vistos, tinham significado negati-

34
Ver MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval.
Signum: Revista da Associação Brasileira de Estudos Medievais, São Paulo, v. 3, p. 83-101,
2001; MEDEIROS, François de. L’Occident et l’Afrique (XIII-XV siécles): images et representations.
Paris : Karthala, 1985; OLIVA, Anderson Ribeiro. Da Aethiopia à África: as ideias de África,
do medievo europeu à idade moderna. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, v. 5, n.
4, p. 1-20, 2008.
35
A respeito das formas de relacionamento das populações da África oriental com o Oriente
Médio, o antigo livro de DEVIC, L. Marcel. Le pays des zendjs ou la côte orientale d’Afrique au
Moyen Age d’après les écrivais arabes. Paris: Librairie Hachette, 1883, continua a servir de referência
para as informações gerais, embora a interpretação proposta esteja completamente ultrapassada
devido à perspectiva etnocêntrica do autor.
36
LEWIS, Bernard. Raza y color en el Islam. Al Andalus, Madrid, v. 33, n. 1, p. 1-51, 1968; ver
também WEDEBURN, Carlos Moore. O racismo através da história: da Antiguidade à
Modernidade. Brasília: MEC-SECAD, 2007, especialmente p. 57-70; MARMON, Shaun. Black
Slaves in Mamluk Narratives: Representations of Transgression. Al-Qantara, Madrid, v. XXVIII,
n. 2, p. 435-464, 2007.

70
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

vo e eram impostos a grupos marginais ou excluídos sociais. A hipótese de


que duas cores pudessem coexistir numa mesma composição vestimentária
passou a ser aceita, e até valorizada, após a Revolução Americana (1776) e
a Revolução Francesa (1789), movimentos que representaram verdadeiras
rupturas com o Antigo Regime. Nas palavras do historiador francês:
O ponto no qual já se pode insistir é o vínculo que, na Idade Média, une as
listras e a ideia de diversidade, de varietas, conforme o latim medieval [...]
Com efeito, o que é varius exprime sempre alguma coisa de impuro, de agres-
sivo, de imoral ou de ilusório [...] Toda superfície listrada parece trapacear,
pois impede os olhos de distinguir a figura do fundo sobre o qual ela está
disposta.37

Isto significa que, antes mesmo de experimentar a convivência com


grupos humanos de cor diferente, os padrões que orientavam a cultura me-
dieval europeia eram refratários à irregularidade das cores listradas e aos
planos bicromáticos que sugeriam a mesclagem, valorizando as superfícies
uniformes. A própria palavra que designava os tecidos listrados, barrados
(barrés), indica ao mesmo tempo a incidência de cores alternadas e a ação
de impedimento, expressa na ideia de “barrar”, “impedir”. Na Idade Mé-
dia, a perfeição correspondia à uniformidade, motivo pelo qual os mons-
tros e os demônios eram imaginados como seres híbridos, disformes. A
fundamentação religiosa da aversão decorria provavelmente de uma leitura
distorcida das prescrições e proibições contidas no Antigo Testamento, onde
se pode ler: “Não juntarás animais de espécies diferentes. Não semearás o
teu campo grãos de espécies diferentes. Não vestirás tecidos de duas espéci-
es de fios” (Levítico, XIX, 19)38.
Nesse modo de ver, a mistura gera poluição, impureza, e se transfor-
ma em tabu. Conforme explica a antropóloga Mary Douglas, nas organiza-
ções sociais primitivas e arcaicas “as espécies impuras são aquelas que são

37
PASTOUREAU, Michel. O pano do diabo: uma história das listras e dos tecidos listrados. Rio
de Janeiro: Zahar, 1993. p. 86-87.
38
Seria preciso, contudo, admitir outras leituras das prescrições do texto bíblico com respeito à
mistura das cores, o que se pode observar no episódio da partilha das ovelhas entre Jacó e
Labão, segundo o qual o primeiro teria conseguido, através de um artifício da mistura de duas
cores, que seus animais nascessem listrados, malhados. Para os escritores medievais, o episódio
deve ser tomado em sua dimensão alegórica, em que Jacó significa os pregadores da Igreja de
Cristo; as ovelhas são os fiéis; a água figura a Santa Escritura; a “variedade de cores” simboliza
a diversidade dos ensinamentos dos Pais da Igreja. Para a interpretação da passagem, ver
SCHMITT, Jean-Claude. Le corps des images: essais sur la culture visuelle au Moyen Age. Paris:
Gallimard, 2002. p. 350-353.

71
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

membros imperfeitos de sua classe ou cuja classe desafia o esquema geral


do universo”39. A impureza ou imperfeição estaria ligada à ruptura da or-
dem, que, por sua vez, assenta na imutabilidade. Por isso é que, na Idade
Média, os seres híbridos, os monstros, são apresentados como resultando de
mesclas de animais de gêneros diferentes (répteis, quadrúpedes, anfíbios) e
que a própria imagem do demônio tenha sido a de um híbrido monstruoso40.
Até o momento não encontramos nenhuma obra produzida no mun-
do cristão latino que permita corroborar a hipótese do pré-conceito em re-
lação à miscigenação racial. Mas algo nesse sentido foi produzido no sécu-
lo X no mundo bizantino, justamente no momento em que se ampliavam
os contatos com os eslavos e os turcos. Entre 948-952, o basileus Constanti-
no Porfirogêneta compôs para o seu filho o De Administrando Imperio – obra
de orientação sobre as atividades de caráter diplomático. Na primeira parte
do texto, o governante elabora quase que um relato etnográfico sobre os
povos com os quais os bizantinos estabeleciam contatos, dividindo a huma-
nidade em nações (ethné) distintas, reguladas por suas próprias instituições
e costumes, mas não aconselhava que houvesse comunicação e convivência
permanente entre elas, esboçando um discurso com nítido teor racial: “As
nações têm seus costumes, leis e instituições diferentes, cada uma deve con-
solidar aquelas que lhe são próprias e rejeitar as associações que tendem à
mistura dos homens.” Uma teoria étnica é então apresentada, e argumen-
ta-se se a partir de uma lei considerada natural:
Da mesma forma que o animal se mistura aos seus congêneres, cada nação
tem o dever de se unir pelo casamento aos de mesma raça (homogenos) e de
mesma língua (homophonos) e não aos de outra raça (allophylos) e de uma
outra língua (alloglôssos). Porque de lá vem a harmonia do pensamento (ho-
mophrosyne) e do discurso, conversações amigáveis e uma vida comum. Em
contrapartida, costumes estrangeiros (allotria ethé) e leis diferentes são pró-
prias para engendrar inimizades, ódios e revoltas.41

39
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Lisboa: Edições
70, s.d. (orig. 1966), especialmente p. 71-74.
40
KECK, Christian. Respecter l’ordre du monde: l’animal-homme et l’homme-animal dans les
enluminures du Ci Nous Dit. Micrologus, v. VIII, n. 2, p. 395-410, 2000; ENGAMMARE,
Isabelle. Le processus d’hybridation dans les marges à droleries des manuscripts gothiques.
Micrologus, v. VIII, n. 2, p. 445-461, 2000; KAPPLER, Claude. Monstres, démons et merveilles à la
fin du Moyen Age. Paris: Payot, 1999.
41
Constantin Porphyrogènete, De administrando Imperio, ap. MALAMUT, Elisabeth. Les peuples
étrangers dans l’idéologie imperiale: scythes et occidentaux. In: Actes des Congrès de la Société
des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, 30 congres, Göttingen, 1999, p. 119-
132

72
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Mestiçagem
É provável que a referida indisposição à mescla e à simbiose explique a
atitude negativa dos povos de origem em relação aos grupos miscigenados,
algo que se pode observar no vocabulário social da Idade Média latina –
espaço ao qual limitaremos nossa análise daqui por diante. De imediato, ob-
serva-se que os designativos empregados para identificá-los tinham conota-
ção pejorativa e infamante. Isso se depreende, por exemplo, da reação de
Jean de Joinville, na segunda metade do século XIII. Ele ficou muito irritado
ao ter sido apelidado de “poulain” e devolveu aos maledicentes que assim o
chamaram a acusação de serem “roncins recreus”, isto é, rocins desqualifica-
dos, baixos, traidores42. Quanto ao termo gasmulo, também era sinônimo de
pessoa estúpida, baixa, bastardo43.
O rebaixamento e infamação decorriam da associação dos qualificati-
vos aplicados aos mestiços com o mundo animal. No caso dos poulains, sua
primeira acepção era de “potrinho”, cavalinho. Significado similar deve ter
sido aplicado aos turco-cristãos, os turcopulis, em que se nota a mesma raiz
etimológica do termo originário, poulos. Quanto aos termos gasmulo e mula-
di, a ideia de degenerescência é ainda mais evidente devido à incorporação
do vocábulo mule, do nome do asinino mula. Sabe-se, aliás, que mula está na
raiz etimológica de mulato, vocábulo empregado no novo mundo para iden-
tificar os mestiços de brancos e negros44.
O caso da mula, animal estéril, resultante do cruzamento de um
equino e de um asinino, pode ter servido de exemplo para os riscos da
hibridização. A classificação dos animais quanto às suas características
biológicas serviu de modelo inicial para a classificação genética dos seres
humanos. Salvo engano, data de 1480, num poema do francês Jacques de
Brezé, o primeiro emprego do termo “raça” para designar um tipo bioló-
gico, mas no caso tratava-se de “cães de boa raça”, apreciados pela nobre-

42
JOINVILLE, Jean de. Histoire de Saint Louis. Ed. Natalys de Wailly. Paris: Librairie Hachette,
1865. p. 192.
43
HANAWALT, Emily Albu. Byzantion: Church, Society and Civilisation Seen through
Contemporary Eyes (Deno Geanakoplos). Speculum: A Journal of Medieval History, v. 61, n.
3, p. 653-654, 1983.
44
Sobre a origem do vocábulo mulato e suas primeiras aplicações, na África e no Novo Mundo,
ver o estudo de FORBES, Jack D. Africans and Native Americans: The Language of Race and the
Evolution of Red-black people. Oxford/New York: Basil Blackwell, 1988, p. 131, 138-140,
para quem o termo derivaria do árabe muwallad e teria conexão com o vocábulo malato, em
Portugal, de onde a palavra malhado… misturado.

73
MACEDO, José Rivair • Minorias, questão racial e mestiçagem no mundo medieval: séculos XI-XIII

za45. Desde o século XIII, o pensamento médico medieval podia se be-


neficiar das teorias aristotélicas sobre a geração e a corrupção dos seres, e
de seus detalhados estudos de zoologia. No tratado sobre as formas de
procriação dos animais, o sábio grego analisou as condições decorrentes
do intercurso sexual entre asnos e éguas, animais de espécies diferentes,
portadores de características naturais diferentes, concluindo que “quan-
do o calor mistura-se ao frio, ou o frio ao calor, o que é concebido desses
dois genitores pode viver; e os dois têm a capacidade de fecundidade; mas
o produto de sua união não é fecundo, e não pode produzir nada de com-
pleto”46. Também a Historia Naturalis, de Plínio, amplamente conhecida
pelos enciclopedistas e eruditos cristãos, informava as características dos
asininos e as decorrências negativas de seu cruzamento47.
De modo geral, os dicionaristas admitem que o vocábulo mulato se
derive do designativo ibérico muladi. Mas qual a vinculação desse último
com a caracterização dos asininos, uma vez que seu uso é anterior e sua
raiz etimológica provém de mawla ou mawali, isto é, os “adotados pelo islã”?
Talvez, e isso é apenas uma ilação, o animal em causa é que recebeu seu
nome devido ao fato de ser um híbrido, à luz a situação híbrida dos cristãos
convertidos ao islã. O que se pode afirmar com certeza é que, na Península
Ibérica, o campo semântico do vocábulo mula admite vários significados e
inclusive serve de designativo a uma moléstia cancerígena.
Encontramo-nos, portanto, diante de um quadro que, embora muito
genérico e impreciso, dependente de outras pesquisas que lhe deem maior
consistência, aponta alternativas novas para compreender os parâmetros
que nortearam as relações étnico-raciais dos europeus com os povos de
outros continentes a partir do século XV, no contexto da abertura do Atlân-
tico e das rotas do Índico. Desde aquele momento, eles carregavam consigo
ideias próprias a respeito da convivência multirracial e/ou multiétnica, con-
dicionados por seus sistemas de valores pouco favoráveis à miscigenação e
à mestiçagem. Em todos os sentidos, a experiência histórica aberta pela
colonização lhes ofereceria outras possibilidades...

45
LUGT, Maiike van der; MIRAMON, Charles de. Pensar a hereditariedade na Idade Média:
introdução e primeiros apontamentos. In: V.V.A.A. Reflexões sobre o medievo. São Leopoldo
(RS): Oikos, 2009. p. 125.
46
ARISTOTE. Traité de la generation des animaux. Livro II, cap. X. Disponível em: <http://
remacle.org/bloodwolf/philosophes/Aristote/generation210.htm>. Acesso em: 15 out. 2012.
47
PLINE. Histoire naturelle. Livro VIII, cap. LXVIII-LXIX. Disponível em: <http://remacle.org/
bloodwolf/erudits/plineancien/livre8.htm>. Acesso em: 15 out. 2012.

74
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Fin amour: as condições de existência


no mundo medieval

Nilton Mullet Pereira1

O artigo aborda o tema do amor cortês no Ocidente medieval, discu-


tindo seu lugar social naquela sociedade, suas relações com a instituição do
casamento e as condições de sua emergência.

O século XII – a revolução da cidade


O século XII ficou conhecido no século das heresias, e nele pode-se
presenciar uma verdadeira revolução cultural, o Renascimento do século XII.
Viu-se nascer, nesse período, toda uma nova espiritualidade na sociedade
cristã medieval que tendeu à constituição de uma consciência de si, na medi-
da em que essa espiritualidade era muito mais introspectiva e exigia dos ho-
mens um constante exame de si, de seus atos e de suas intenções. A própria
invenção do purgatório mostrou que o juízo divino se tornara individual e
que a conduta singular do fiel consistia na prova necessária ao juízo de Deus.
A essa série de eventos juntei o lirismo amoroso inaugurado pelos
trovadores provençais, com o objetivo de tratar a forma amorosa cortês e a
poesia de Guilherme como parte de uma nova sensibilidade que aparece no
Ocidente medieval, resultado das transformações às quais me referi.
Como foco dessas transformações da Idade Média central está o “apa-
recimento” da cidade. A ela é devida, em grande medida, a invenção da
nova sensibilidade, da interioridade, da individualidade.
O século XII: a aurora das cidades. Elas parecem se proliferar independen-
temente dos limites feudais e das circunstâncias históricas; constroem novos
contextos e escrevem, numa palavra, uma nova história, criando um novo
cenário que emerge dos escombros da história e contra ela se volta: é a sina
da corrente exuberante e avassaladora do Eterno Retorno.2

1
Professor na Faculdade de Educação – UFRGS.
2
PEREIRA, Nilton. A cidade, o filósofo e a mulher: em nome de Deus. 2006, p. 43. (Cadernos IHU
em Formação, 11).

75
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

A cidade é o lugar do empreendimento, e no interior das suas mura-


lhas forjam-se rebeliões, busca-se a liberdade e cria-se uma série de novos
modos de viver e sobreviver, de chegar a Deus e de dar sentido à vida. A
cidade do comércio, do artesanato, da circulação intensa e insistente do
dinheiro, da moeda. A revolução da cidade permite a abundância da criati-
vidade e da produção do conhecimento; devemos a ela o espaço da inven-
ção da universidade e das escolas que espalhavam estudantes embriagados
com vinho e conhecimento pelas ruas a desacomodar todo um sistema de
relações há muito estabelecido. A criatividade da cidade trouxe muita des-
confiança, e dessa desconfiança emergiram novos sistemas de valores, tan-
to para contestar os novos homens da cidade quanto para aceitá-los.
A cidade é o lugar dos festins, ela dá forma ao gozo, ao prazer urbano
do carnaval e do teatro. Ela abre espaço para os uns e para os outros: o
carnaval será a face grotesca da grande procissão de Corpus Cristhi. Na his-
tória da longa duração do corpo, Le Goff mostra a antinomia entre a Qua-
resma e o Carnaval. O corpo como realidade simbólica vê inscritos nas
suas entranhas o zelo, a fé e a penitência (os jejuns, a abstinência do sexo),
mas, por outro lado, se vê marcado pelas feridas abertas pela cidade na
grande procissão do Carnaval. O corpo do homem medieval ora é glorifica-
do no sofrimento de Jesus pelos pecados dos homens, ora é marcado pela
impureza produzida pelo pecado.
A civilização medieval da cidade é esse movimento dual e tenso. Ela
é produto, simbolicamente, dessa
tensão entre Quaresma e Carnaval. Quaresma [...] é esse período de jejum,
originário da nova religião, o cristianismo. E a cultura dessa anticivilização
não encontra melhor maneira para se exprimir do que através do carnaval,
que se instala verdadeiramente no século XII, isto é, em pleno triunfo da
reforma gregoriana, para culminar, no século XIII, no próprio coração das
cidades3.

É aí, no coração da cidade, que o carnaval vai fazer triunfar o riso, o


gozo e o prazer. “O carnaval transforma-se em algo que se opõe à quares-
ma, combate a mentalidade penitencial e ascética da religião cristã.”4 Eis o
espírito das cidades.

3
LE GOFF, Jacques; & TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006. p. 60.
4
LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1998. p. 59.

76
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Elas aparecem muito mais fulgurantes, dinâmicas e sedentas por in-


dependência como o foram dois séculos antes. Paris, “paraíso da terra, a
rosa do mundo, o bálsamo da terra”5, bradavam os goliardos, filósofos er-
rantes, desligados da terra, homens nobres/pobres da cidade.
Paris acolhe a todos: de Dionísio a Apolo, todos nela tem lugar. A
Igreja e o Estado; o estudioso e o vagabundo; o mestre filósofo e o cavalei-
ro. Acolhe também o rei. Este, que antes transitava de castelo em castelo,
hospedado por seus homens, a lhes mostrar sua existência e sua suserania,
agora, com a explosão monumental da cidade, está mais postado no centro
da terra, na cabeça do “império”. É na cidade que aos poucos a nobreza vai
se apinhando em torno da realeza a constituir o espaço das festas, da corte-
sania, das intrigas.
Mas não esqueçamos que Paris é a cidade da Igreja. “Paris era tam-
bém uma cidade episcopal, um trono de riqueza, cultura e poder religiosos,
que equilibrava a força da monarquia.”6 Toda uma série de controles e ju-
risdições são impostos ao espaço da cidade por parte da Igreja, a tentar
manter a ordem e combater as fornicações, os jogos, os taverneiros, os agi-
tadores e, quem sabe, o filósofo Abelardo.
Ora, os religiosos, viajantes, negociantes e estudantes que afluíam à
cidade davam a ela riqueza e prosperidade. Dinamismo e movimento: eis a
avalanche que a cidade trouxe para a história do feudalismo europeu. Abe-
lardo é conivente com tal avalanche, e como os goliardos, ele vai defender a
nobreza da cidade contra a pobreza dos nobres.
Há uma independência intelectual no espaço da cidade, preenchido
por mestres e alunos que, através do método da disputa argumentativa, pre-
enchem a escola da Catedral de debates e discussões teológicas e filosófi-
cas. A cidade das diferenças, eis o que ela é, eis o que faz dela Abelardo. À
independência intelectual se juntam a jogatina, a beberagem, a fornicação.
Abelardo é detestado pelos altos postos da Igreja, mas tolerado pela impor-
tância e pelo renome que traz à cidade e à inteligência de Paris. O maior
inimigo de Abelardo, São Bernardo, famoso criador da ordem de Cister,
grita aos estudantes e mestres que se deleitam com a vida no espaço da
cidade:

5
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2003. p. 47.
6
SENNETT, Richard. Carne e pedra. Tradução de Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record,
1997. p. 150.

77
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

Fugi do ambiente de Babilônia, fugi e salvai vossas almas. Ide todos juntos
para a cidade do refúgio, onde podereis se arrepender do passado, viver na
graça para o presente, e esperar com confiança o futuro [quer dizer, nos
mosteiros]. Encontrarás bem mais nas florestas do que nos livros. Os bos-
ques e as pedras ensinar-te-ão mais do que qualquer mestre.7

O mosteiro é a alternativa à cidade de pedra. Os monges serão os


maiores inimigos de Abelardo e da profusão do conhecimento. A multipli-
cação dos mosteiros e das ordens o comprova. Lado a lado, cidade e mos-
teiro; o filósofo e o monge vão disputar as almas. Eles mantêm a chama
ardente do misticismo, da vida retirante na floresta e no mosteiro, em opo-
sição ao espaço conflituoso e dinâmico da cidade.
Por outro lado, essa Paris dionisíaca não se constitui numa ameaça
mortal para todo o clero. Philippe de Harvengt a chama, como já mencio-
nei, de Jerusalém:
Levado pelo amor da ciência, eis que estás em Paris e encontraste essa Jeru-
salém que tanto desejam. É a morada de Davi [...] do sábio Salomão. Um tal
aglomerado, uma tal multidão de clérigos aí se comprime que eles estão
prestes a ultrapassar a numerosa população de leigos. Cidade feliz onde os
santos livres são lidos com tanto zelo, onde seus mistérios complicados são
resolvidos graças aos dons do Espírito Santo, onde há tantos professores
eminentes, onde existe a ciência teológica a um ponto tal que se poderia
chamá-la a cidade das brilhantes disciplinas.8

Eis que a ciência é chamada a explicar o mistério da fé. Razão e fé não


mais se opõem, e a filosofia pode andar lado a lado com a teologia. As razões
da dialética servem, agora, à palavra de Deus.
Paris é uma cidade que acolhe a individualidade, e não é difícil verificar
que eles aí já se alojam, timidamente, a cavar um espaço de sentimento, desta-
que e projeção para além das formas gregárias e coletivas do mundo feudal.
Pensar, confessar, amar e mostrar-se singular é o que faz a individualidade
desses tempos, e a cidade lhe permite uma paradoxal aparição anônima.
É nesse espaço de singularização aberto pela cidade que emergiu Abe-
lardo e foi por essa fissura que ele nos brindou com uma das mais importantes
obras que formulam a noção de uma individualidade, a história das suas cala-
midades, sua autobiografia.
Abelardo foi a “primeira grande figura de intelectual moderno – nos
limites da modernidade do século XII –, Abelardo foi o primeiro profes-

7
LE GOFF, 2003, p. 45.
8
Ibid., p. 47.

78
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

sor”9. E foi ele, talvez, o único dentre filósofos e padres a não situar o pecado
original na concupiscência, uma das grandes criações do cristianismo medi-
eval. Abelardo já é produto desta nova sensibilidade, tanto por parecer estar
próximo da nova forma de amor profano, o amor cortês, quanto pela sua
inestimável contribuição à filosofia no que concerne à querela dos universais,
e, ainda, pela sua autobiografia, quando, nos limites dos arquétipos disponí-
veis, apresenta o seu eu e propõe uma interioridade, uma consciência de si
mesmo. Quando ainda iniciava sua relação secreta com a jovem Heloísa,
Abelardo escreve: “O amor mais frequentemente se buscava nos olhos de um
e outro do que a atenção os dirigia sobre o texto [...] Nosso ardor conheceu
todas as fases do amor, e também tivemos experiência de todos os refinamen-
tos insólitos que o amor imagina.”10
Mesmo Abelardo, esse homem da cidade, parece se sustentar nos mo-
delos disponíveis, tal como os poetas respondiam às convenções da poética,
as autobiografias se valiam de modelos arquétipos. “A mesma coisa vale para
Heloísa. A fim de exprimir seu amor por Abelardo, ela usa imagens e pala-
vras tiradas do Cântico dos cânticos.”11
O século XII é uma época de renascimento e de criações, múltiplas
criações: a cidade e o amor cortês. O amor cortês busca tanto sua autonomia
quanto o buscava a cidade. O amor é nobre e a cidade é burguesa, mas um e
outro são movimentos repletos de vestígios profanos e de inversões da or-
dem, ambos demonstram a tensão entre os modelos e os desvios.

Amor e interioridade
Na justa amorosa cortês ou nos confins das noites eternas da floresta;
na promessa do segredo feita no leito de uma grande dama ou na errância
fugitiva à ilegalidade do bosque, lá está ela nascendo, emergindo como um
espectro que invade o gregarismo, o coletivismo, a morte e o pecado origi-
nal. Nasce da invenção do seu íntimo e, ao conversar com Deus e a Igreja,
confessa o seu pecado e mostra-se para a divindade e para si mesmo. Peca
por si – na evidência e na intenção – não apenas pela origem malfadada de

9
Ibid., p. 59.
10
Correspondência de Abelardo e Heloísa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 41.
11
GOUREVITCH, Aaron. Indivíduo. Tradução de Flavio de Campos. In: LE GOFF, Jacques;
SCHIMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Tradução de Hilário Franco
Júnior. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Nacional, 2002. p. 622.

79
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

todo homem. Está ela emergindo nas difíceis entradas da lei da confissão e
na esperança da eternidade, representada no purgatório.
Ela está aparecendo pelas bordas suaves do poema cortês, onde a
experiência de si se dá na promessa, no segredo e na guerra do amor, que
leva o cavaleiro a transformar-se nos seus mais íntimos modos de ser e leva
a dama a uma liberdade de dizer não e de escolher melhor. Pelo amor-
obstáculo ela se constrói – aprende a contrição, o autocontrole e se faz vir-
tuoso a guardar um segredo que é só do indivíduo. Ele aparece repentino,
driblando a vigilância da Igreja e preenchendo de moedas seus bolsos cada
vez mais fundos: a nova economia a ascende e a constitui.
Ela nasce lentamente diante da relíquia no altar, espaço de encontro
entre o divino e o terreno – lá onde o divino se mostra a todos na forma da
Eucaristia. É aí, na hora da cerimônia agora sagrada do casamento, que a
noiva, depois de explorar o fundo de sua intimidade, escolhe e revela o
desejo, ultrapassa o limite da lei, do código, da própria aliança e, sobretu-
do, da política.
O século XII assiste, bem pouco atônito, à emergência dela, a indivi-
dualidade. E ela é produto de uma nova sensibilidade e de um conjunto de
códigos que definem o perfil do bom cavaleiro e do amante perfeito.
O amor cortês é algo verdadeiramente novo no Ocidente cristão, des-
de o princípio da elaboração do seu perfil, com Guilherme IX. É novo por-
que se propõe inteiramente dentro e fora do modelo de sociedade do qual
surgiu. Ao mesmo tempo, ele somente pode ser compreendido no interior
das relações sociais e do caldo cultural da Europa da Idade Média Central
e do Renascimento do século XII, mas avança contra um terreno altamente
rígido do modelo moral cristão que é o casamento. Este que, justamente
nesse mesmo momento, emerge como sacramento e como uma das formas
de controle sobre a sociedade mais importantes já criadas pela Igreja cristã.
O amor cortês faz do terreno do casamento o lugar/espaço no qual se trava
um debate, uma guerra, uma disputa de forças, que têm como consequên-
cia a “revolução” dos costumes e da “própria sensibilidade”.
A novidade, para esse autor, estava no fato de o amor cortês “reclamar
a autonomia do sentimento e pretender que podia haver entre os dois sexos
relações diferentes das do instinto, da força, do interesse e do conformismo”12.

12
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Tradução de José Rivair de Macedo.
Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 354.

80
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Uma relação estranha àquele ambiente, mas ao mesmo tempo produto


mesmo das suas injunções históricas, da situação singular do feudalismo
no Sul da França e do novo contexto urbano e burguês que vivia a Europa
cristã. Uma relação que volta o homem-cavaleiro ao seu interior, leva-o a
realizar aventuras únicas e irrepetíveis e, sobretudo, a olhar para si mesmo,
voltar-se sobre seu sofrimento, seu amor, sua Dama, como o fez Abelardo
ou como mostrava Guilherme nos seus cansos.
O amor cortês teve existência profana e, por isso, autônoma; tratou-
se de um amor humano que propunha uma ascese, no sentido de levar o
amante a debruçar-se de tal forma sobre si mesmo a ponto de reconstituir
seu caráter e construir sua virtuose.
E os trovadores procuraram elaborar uma forma amorosa totalmente
purificada de tudo o que possa não ser da natureza do amor. O objetivo foi
constituir um amor verdadeiro, fino, bom e puro. É claro que o ato carnal
tornava o amor conjugal “venal utilitário”13, mas isso não quer dizer que os
trovadores pregassem a completa abstinência sexual, ao contrário. Tratava-
se, no caso, de negar o caráter utilitário da relação sexual, razão pela qual
facilmente o amor cortês é tanto uma forma de negar o casamento quanto
uma forma de amor adúltero.
Enfim, o poema amoroso dos trovadores se reporta sempre à exposi-
ção dos estados da alma do trovador, este mesmo que se confunde com o
próprio sujeito do seu poema, geralmente, um jovem cavaleiro que disputa
a Dama com o Grande Senhor. “La chanson dit toujours ‘je’.”14 Nesse sen-
tido, forma-se um trio amoroso: o jovem cavaleiro, geralmente representa-
do pela figura do trovador, a grande Dama, mulher de alta linhagem, rica e
casada, e o Senhor, suserano que abriga em seu castelo o próprio trovador e
sua trupe. Não há dúvida de que no centro do poema está sempre a Dama,
e é a devoção a ela o que articula as relações da tríade amorosa.
A Dama Inatingível
Que plus es blanca qu’evori,
Per qu’ieu autra non azori:
Si.m breu non ai ajutori,
Cum ma bona dompna m’am,

13
NELLI, René. Os cátaros. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 86.
14
ROUILLAN-CASTEX, Sylvette. L’amour et la société feodale. Revue Historique, n. 272, p.
296, 1984. “A canção diz sempre ‘eu’.” (tradução minha).

81
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

Morrai, pel cap sanh Gregori,


Si no.m bayz‘en cambr’o sotz ram.15

Guilherme não sabe quem ela é, nem nunca a viu, mas isso não im-
porta a ele. O poeta/cavaleiro tampouco poderá trocá-la por nada, nem
que o seu sofrimento pela ausência da Senhora se prolongue pela vida intei-
ra. A Dama é de tal forma enaltecida que se torna transcendente em rela-
ção à vida concreta do poeta; ela se encontra num tal estado de pureza que
vê-la ou tocá-la vale apenas pela promessa, pela possibilidade. Ter prazer
com a Dama, beijá-la e tocar seu corpo, vale apenas pela possibilidade, de
maneira que o desejo tem sua satisfação permanentemente afastada, ao
ponto da sublimação.
Eis um dos elementos mais marcantes da retórica cortês do bon amour:
“Tous lês grands troubadours ont chanté cette femme essentiellement ab-
sente et partant, inaccessible.”16 Trata-se de uma idealização da mulher
amada; ela é possuidora das maiores e mais altas qualidades. São qualida-
des tão significativamente irreais que jamais poderiam ser descobertas em
uma mulher real. Elas essencializam a Dama, no sentido de colocá-la numa
situação ideal, como que uma substância que paira transcendentalmente,
em relação às mulheres com seus corpos empíricos.
Para Nelli, “a dama adorada transmite-nos mais facilmente a impres-
são de que simboliza um ser sobrenatural ou equilibrado ou muito simples-
mente a essência feminina consagrada pela morte”. Não se trata, para esse
autor, de uma incorporação do culto à virgem, de modo que se pudesse
supor ser a virgem a Dama idealizada pelos trovadores. “A mulher não
simboliza nunca, para os trovadores, a Santa Virgem, nem a sabedoria, nem
a gnose, nem a Igreja Cátara: ela remete-nos unicamente para a sua própria
imagem, transfigurada e sempre pronta, de resto, para recair nas realidades
terrenas.”17
De qualquer modo, as virtudes da Dama se refletem imediatamente
no poeta/cavaleiro. Pois é por amor a ela que o cavaleiro poderá se mostrar
virtuoso, respeitando as regras do amor e da cortesia. A alegria do amor,

15
“Mais branca é do que o marfim, motivo por que lhe/ quero mais do que a qualquer outra; se
tão logo não/ conseguir a piedade do seu amor, morrerei, por São/ Gregório, a menos que
consiga um beijo, em sua mo-/ rada ou sob a ramagem” (tradução de SPINA, Segismundo. A
lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1996. p. 103).
16
ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 304. “Todos os grandes trovadores têm cantado essa mulher
essencialmente ausente e, portanto, inacessível” (tradução minha).
17
NELLI, 1980, p. 87.

82
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

assumida pelo trovador que ama incondicionalmente sua Dama idealizada


e superior a tudo o que existe, é a fonte mesma da virtude cavaleiresca,
tanto no torneio a lutar e mostrar sua virilidade, quanto a escrever versos. O
que intensifica a produção literária dos trovadores é o horizonte da Senho-
ra, é a promessa do amor e é a espera interminável pelo momento de beijá-
la. Ora, como bem menciona Rouillan-Castex, a característica narcísica é
evidente. “Par l’intemédiaere d’un amour d’essence supérieure pour une
femme socialement supérieure, le troubadour acquiert lês qualités reconnu-
es par toute la société féodale, qui sont celles de la classe des chevaliers.”18
A Dama como fonte de virtude pode ser encontrada em toda a tradi-
ção literária do amor cortês. No Tratado de André, o Capelão, são as nega-
tivas veementes da mulher que levam o homem nobre a revelar mais e mais,
através da palavra, os males que esperam aquelas que desdenham o deus do
amor. E assim se sucede uma justa dialética entre a Dama e o homem no-
bre, de modo que cada um, tanto o homem nobre quanto a Dama, estejam
a constituir-se no interior do debate, como indivíduos. A justa entre os aman-
tes, a promessa de amor que a Dama faz ao pretendente e que nunca se
realiza, fortalece o amor e lança o homem em busca da virtude. O amor
cortês se revela no tratado de Capelão com a expectativa da salvação e do
enaltecimento da Dama como fonte de virtude.
A Dama é também lembrança, de modo que o cavaleiro vive e se
regozija de um dia reencontrá-la e, assim, satisfazer o desejo. O caso de
Lanval é bem demonstrativo: este cavaleiro da corte de Artur, tal como nos
conta Marie de France19, é um cavaleiro sem mulher e sem herança que
aspira pelo amor de uma grande Dama. Ele a encontra, obtém o seu amor
e o guarda em segredo. Quando volta para a corte de Artur, Lanval é tenta-
do pela Rainha, a quem nega amor. Esta lhe impinge uma série de calúnias
e o entrega ao Rei para ser julgado. O problema de Lanval é que sua liber-
dade depende da vinda da sua grande e inigualável Dama; somente ela
poderia mostrar aos barões do rei que Lanval não tinha razões para assediar
a rainha, pois era apaixonado por uma bela Senhora. Pois bem, na época
do julgamento do pobre cavaleiro, a Dama aparece, sem que Lanval tenha

18
ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 312. “Por intermédio de um amor de essência superior por
uma mulher socialmente superior, o trovador adquire as qualidades reconhecidas por toda a
sociedade feudal, que são aquelas da classe dos cavaleiros” (tradução minha).
19
MARIE, de France. Lais de Maria de França. Tradução e introdução de Antonio L. Furtado;
prefácio de Marina Colasanti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

83
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

chamado ou que qualquer outro o fizesse. Ela aparece e se mostra como o


amor de Lanval, livra-o da punição real e o leva para o Avalon. A Dama volta
para afirmar a virtude de Lanval, para mostrar que o amor por si só o torna
virtuoso; ora, se era apaixonado, era evidente, como foi a todos, que jamais se
interessaria por outra mulher. Era a regra do amor20, era a regra da cortesia.

Dama e o casamento
Guilherme canta essa distância da Dama na sua obra prima, o canso X:
II
De lai don plus m’es bon e bel
non vei mesager ni sagel,
per que mos cors non dorm ni ri
ni no m’aus traire adenan,
tro qu’eu sacha ben de la fi,
s’el’es aissi com eu deman.

IV
Enquer me membra d’un mati
que nos fezem de guerra fi
e que.m donet un don tan gran:
sa drudari’ e sin anel.
Enquer me lais Dieus viure tan
qu’aia mas mans soz son mantel!21

Essa mulher envolvida no jogo amoroso leva o trovador a um estado


de alma de uma exaltação sentimental, como bem o mostra Guilherme,
que jamais se poderia pensar que uma tal mulher considerada no plano das
coisas empíricas fosse capaz de produzir tal efeito. Bem sabemos que, tanto

20
Eis algumas das leis do amor que Capelão inclui no seu Tratado: “II. Mantém-te casto para
aquela que amas. III. Não tentes destruir o amor de uma mulher que esteja perfeitamente
unida a outro. IV. Não busques o amor de nenhuma mulher que o sentimento natural de
vergonha te impeça de desposar. V. Lembra-te de evitar absolutamente a mentira. VI. Evita
contar a vários confidentes os segredos do teu amor. VII. Obedecendo em tudo às ordens das
senhoras, esforça-te sempre por pertencer à cavalaria do Amor. X. Não traias os segredos dos
amantes. XI. Em qualquer circunstância, mostra-te polido e cortês” (CAPELÃO, André. Tratado
do amor cortês. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 98).
21
Disponível em: <http://www.ricardocosta.com>; acesso em: 03 jul. 2006. “II. Do lugar que
me parece bom e belo,/ Não vejo chegar nem carta, nem mensageiro./ Por isso, meu coração
não dorme, nem ri,/ Nem me atrevo a seguir adiante,/ Até que esteja certo do fim,/ Se ele
será assim como eu desejo./ III. Com nosso amor ocorre o mesmo/ Que o galho branco do
espinheiro/ Que está queimando sobre a árvore,/ De noite, com a chuva congelada,/ Até que
no dia seguinte o Sol se ponha,/ Pelas folhas verdes e a relva” (tradução de Ricardo da Costa).

84
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

nos poemas dos trovadores do sul da França quanto nos romances do ciclo
arturiano, a Dama é uma mulher de alta linhagem. E ela forma junto com
o Senhor, detentor de toda autoridade e riqueza, e o trovador, vital como
um adolescente, alegre, espirituoso e juvenil, o trio amoroso que marca o
amor cortês como o espaço de rebeldia em relação ao casamento cristão.
O trovador se relaciona de modo ambíguo com o Senhor, que pode
ser suserano e mecenas e, ao mesmo tempo, inimigo mortal, em função da
disputa pela Dama e da quebra do contrato de fidelidade. Concluímos, en-
tão, que essa forma amorosa cortês é adultera. Mas que casamento era esse
que os trovadores abominavam e que, por exemplo, Heloísa relutou em
aceitar quando Abelardo o propôs a ela?
Esse casamento era um pactum conjugale, um negócio entre famílias
nobres22, ligado a interesses políticos, militares e sociais, definido, justa-
mente, quando os laços de consanguinidade passaram a definir os proces-
sos de sucessão. A nobreza passou a ser definida pela linhagem da qual o
indivíduo fazia parte, de forma que era uma genealogia que marcava a no-
breza. Assim, o casamento tornou-se um instrumento político poderosíssi-
mo, na medida em que é ele que organizava as alianças e definia a linhagem
e a sucessão. O casamento era, pois, uma garantia de herança23.
Por outro lado, a desconfiança do modelo moral cristão em relação
ao corpo e à mulher, em função pecado original, feito pecado carnal, levou
a Igreja a ver no casamento público, tornado sacramento e ritualizado, um
modo de controlar as Evas. Em função do perigo que representavam as
mulheres, o “casamento é a melhor defesa. No século XII, as autoridades
da Igreja terminam de ajustar-lhe as defesas, de colocá-lo como sendo o
sétimo sacramento entre os sacramentos.”24 Tratava-se de um movimento
paradoxal, primeiro, porque o casamento implicava relação carnal, logo
consistia em perpetuar o pecado; segundo, o matrimônio era um modo de
controlar as mulheres e as próprias uniões carnais. Tal paradoxo fez a Igre-
ja aceitar o casamento e sacramentá-lo com reservas, não acabando com o

22
Cf. BLOCH, Howard R. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995. p. 23-54.
23
Cf. BLOCH, 1995; GUERREAU-JALAMBERT, Anita. Parentesco. In: LE GOFF; SCHMITT,
2002, p. 321-336; DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios.
Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
24
DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. Tradução de Maria Lúcia Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 66.

85
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

pecado do ato carnal, mas permitindo-o, já que tal união – cercada de regu-
lamentos e proposições de condutas morais – era o modo mesmo de gera-
ção, de procriação. O casamento encontra no Gênesis sua justificativa.
Como uma aliança política no mundo feudal, o matrimônio funcio-
nava como uma poderosa forma de dominação e controle social. No cam-
po espiritual, a preocupação era aprofundar uma ascese que livrasse os ho-
mens do perigo feminino e, ao mesmo tempo, levasse as mulheres do con-
vento à casa do Senhor para que a rua não lhes fosse um espaço de ampla
tentação. No campo material, a aliança matrimonial criava e ampliava uma
rede de parentesco e consanguinidade que definia o jogo de poder na socie-
dade feudal. Por exemplo, a proibição do casamento dos caçulas e a reserva
do feudo ao primogênito criaram toda uma série de cavaleiros e indivíduos
de baixa nobreza que estavam à margem da distribuição patrimonial na
sociedade feudal.
Este sistema permite à aristocracia tecer amplas redes baseadas na afinida-
de, nas quais se combinam os elos de longa e muito longa distância, cobrin-
do a totalidade do espaço da Cristandade, e os elos locais, sustentando par-
cialmente as relações hierárquicas de vassalidade. A extensão considerável
das proibições, restringindo drasticamente as possibilidades de fechamento
das proibições, restringindo drasticamente as possibilidades de fechamento
das parentelas, cria uma situação particularmente favorável à coesão dos
grupos dominantes na sociedade feudal.25

Então, a importância da aliança matrimonial se explica por consti-


tuir-se no interior de uma sociedade que pouco reconhecia ainda a noção
de Estado Nacional, logo de poder central. A Igreja procura, desesperada-
mente, exigir um cuidado dos fiéis em relação ao casamento, criando toda
uma série de regulamentos que tendem a não permitir casamentos consan-
guíneos26; por sua vez, os chefes feudais procuram, ao repudiar esposas ou
enviuvar, esposar mulheres dentro da própria linhagem, com o objetivo de
reagrupar a herança.27 Bem sabemos que a concepção aristocrática do casa-
mento “é antes de tudo de ordem social. Recorre-se a ele para selar uma
aliança política e econômica de duas casas, ou para pôr fim a conflitos en-

25
GUERREAU-JALAMBERT, 2002, p. 328.
26
A questão refere-se a uma tentativa de proibir o incesto. É assim que os regulamentos
eclesiásticos impõem limites para as uniões. Em princípio a Igreja proibia casamentos até o 7º
grau de parentesco, e, mesmo tal imperativo tendo sido reduzido no Concílio de Latrão IV
(1215) para o 4º grau, as proibições se mantiveram e o casamento dentro da própria
consanguinidade nunca foi permitido.
27
Cf. DUBY, 1989.

86
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

tre elas [...]. As uniões desse gênero, arranjadas pelos pais, muitas vezes
programadas quando os futuros cônjuges são ainda crianças, às vezes nem
nascidos.”28
A Igreja, no Concílio de Latrão, em 1215, estendeu a interdição de
uniões até o sétimo grau, ampliando a presunção do incesto que, antes, era
fixado no quarto grau, tornando boa parte dos casamentos aristocráticos
passíveis de condenação.
O casamento era, como mostram Bloch e Duby, um estado de sujei-
ção permanente, movido por uma eterna desconfiança do Senhor-esposo
em relação à natureza demoníaca da mulher. Era, pois, melhor tê-las por
perto, mortificá-las pelo domínio opressivo dos homens, aprisionando-as
nas torres dos castelos, onde o que lhes poderia restar era sonhar com um
amante jovem ao qual pudessem enaltecer a virtude e com o qual pudessem
viver um amor verdadeiro.
O casamento não se constituía em renúncia; ao contrário, ele estabe-
lecia oficialmente a possibilidade da relação sexual. A ascese cristã, então,
não incluía o casamento, exceto se esse fosse com Deus. Inúmeras epístolas
de religiosos29, como o próprio são Bernardo, mostram que o valor atribuí-
do ao casamento não era maior do que a vida de renúncia no convento.
Tais cartas mostram notadamente o valor que a Igreja atribuía à ascese
através da renúncia, de forma que, para acessar o paraíso, o caminho mais
rápido e mais desejável não era o casamento, mas a renúncia a todos os
prazeres e uniões carnais. Isso significa que, mesmo sem o prazer – como
eram recomendadas as uniões carnais entre marido e esposa –, a união
carnal não pode ser boa aos olhos de Cristo.
De qualquer modo, o convento era um espaço entre a rua e a casa do
senhor. Ali, a menina esperava até que o senhor viesse buscá-la, a fim de
casar-se com ela. Era no convento o lugar onde elas podiam estar fora de
perigo, longe das tentações mundanas e de uma “defloração acidental”.
Ora, muitas delas ficavam esquecidas no convento; que fazer com elas? Era
preciso casá-las: casá-las com Deus, fato que as livrava, quem sabe, da con-
junção carnal.
O convento tinha essa função importante: uma espécie de espaço de
purificação e de garantia de pureza, garantia de manutenção da virgindade.

28
FLORI, Jean. A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média, São Paulo: Madras,
2005. p. 144.
29
Pesquisa realizada por DUBY, 2001.

87
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

A virgindade tinha um valor significativo tanto para as famílias quanto para


a Igreja. A família preservava a menina para entregá-la ao noivo, que a
preferia e a exigia virgem. A Igreja, o bispo, o abade também exigiam a
virgindade ou, pelo menos, a castidade. Se for verdadeiro que as aceitavam
já defloradas, é verdade também que “Cristo as prefere intactas”30.
Claro, muitas das mulheres não se consolavam com a distância em
relação à corrupção da carne e procuravam um esposo “tangível” que lhes
pudesse aquecer o corpo. A estas santo Anselmo dizia para renunciar e
desprezar o homem “que a fez cair e que ou já a despreza ou, sem nenhuma
dúvida, logo a desprezará e abandonará”31. Era preciso, por isso, manter
extrema vigilância sobre elas.
O casamento, como consentimento da conjunção carnal, funcionava
como um novo convento: em vez da vigilância do abade, do bispo, a vigi-
lância do marido. O casamento, com todo o perigo32 que representava, era
ainda uma defesa daquela sociedade de homens em relação às mulheres de
entranhas insaciáveis.
Os muros do mosteiro são construídos para isso, para que os que amam o
mundo não sejam acolhidos no campo entrincheirado dos que fugiram dele,
para que não vos mostreis em público, para que não exponhais vosso corpo
à infecção. Se deixásseis introduzir-se aí o reflexo vergonhoso do que teríeis
visto no mundo, poríeis em perigo vossa virgindade. Evitai a conversação
dos homens. Desconfiai dos leigos, desconfiai também dos clérigos. Se a
pena capital pune a dama considerada adúltera porque se voltou para um
outro homem, que pena sofrerá aquela que, desprezando as castas bodas do
esposo imortal, dirigiu carnalmente seu amor a alguém?33

De certa forma, toda a mulher que buscava o sexo, sendo casada ou


não, era uma adúltera em potencial, na medida em que negava a possibi-
lidade de ser esposa de Cristo. De parte de alguns religiosos, havia uma

30
Ibid., p. 79.
31
Santo Anselmo, cit. ap. ibid., p. 80.
32
O perigo estava no fato de que o casamento era um modo de consentir na conjunção carnal e
isso, de certo modo, era a reprodução do pecado original. Além disso, para os homens, estar
ao lado de uma mulher não consistia em nenhum ganho espiritual ou intelectual: “A mulher é
simplesmente útil na procriação (adiutorium generationis) e no cuidado da casa. Para a vida
intelectual do homem não tem significado. Assim Agostinho foi o brilhante inventor do que os
alemães chamam de três Kas (Kinder, Küche, Kirche) – filhos, cozinha, Igreja, uma ideia
ainda viva, que com efeito continua a ser a oposição teológica primária das mulheres na
hierarquia da Igreja” (RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres,
sexualidade e a Igreja Católica. 4. impr. Tradução de Paulo Fróes. Rio de Janeiro: Record/
Rosa dos Tempos, 1999. p. 101).
33
DUBY, 2001, p. 80/81.

88
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

certa aversão ao casamento, já que este era, em si, uma forma de decai-
mento e adultério. “Os filhos? Chafurda-se na lama imunda no instante
em que são concebidos”, diz Hildebert de Lavardin. A necessidade que
jamais deveria ter existido, ter que reproduzir e, para isso, ter que copular.
Diz ele ainda que “a liberdade é a virgindade [...] o silêncio da carne, a
paz e, em breve, a beatitude, as verdadeiras bodas, as únicas perfeitas, a
união com Jesus Cristo”34.
As cartas desses religiosos enaltecem um amor que é um casamento
com Deus. Aos olhos de muitos religiosos, inclusive de Agostinho, o casto
é superior ao casado. O santo diz que, se marido e esposa renunciam juntos
ao coito, como uma forma de ascese, de cuidar do espírito e do ingresso na
Cidade de Deus, eles se elevam e se aproximam de Deus. Para o santo, “a
virgindade (castidade) é moralmente superior ao casamento, e o casamento
sem sexo também é superior ao casamento com sexo”35.
O casamento foi parte da pedagogia da Igreja. Sacralizado, ele torna-
va o pecado do coito, ainda pecado, desde então, tolerado e controlado. O
casamento foi, desse modo, uma maneira de “corrigir os costumes” e “con-
trolar as pulsões carnais”. Ele não consistia em uma união amorosa. Casa-
mento e amor eram de naturezas diversas; para os trovadores, o casamento
torna o amor utilitário, e a utilidade não faz parte da natureza do amor
puro, do amor bom. Até porque o casamento implica uma mulher empíri-
ca. Essa existência empírica da mulher faz fenecer o centro irradiador da
criação literária, da intensidade do amor, da disposição para amar e da
virtude, a Dama inatingível e inacessível.
É bem verdade que o amor cortês cantado pelos trovadores se valia
do ambiente da sua época a fim de criar os temas das suas canções e, indu-
bitavelmente, o tema da castidade, da negação do ato carnal, no sentido de
ser elemento que torna impuro o amor, estava tanto no discurso dos teólo-
gos quanto na retórica dos trovadores. A época da emergência do lirismo
cortês foi um momento de construção de um imaginário intensamente po-
voado pela virtude da castidade, pelo apelo à virgindade.
Há quem anuncie uma valorização da mulher nessa Idade Média cen-
tral. Tanto em razão do papel assumido pela Dama na poesia dos trovado-
res: a mulher como a fonte da virtude, quanto da possibilidade de escolha

34
Ibid., p. 81.
35
RANKE-HEINEMANN, 1999, p. 110.

89
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

dada à mulher em função do sacramento do casamento. Nesse sentido, a


mulher desfrutaria, no interior desse modelo cristão, de uma maior liberda-
de de escolha, já que o consentimento de ambos os noivos é condição para
a realização do ritual. O casamento constitui-se em um pacto ritualizado
diante do altar, mas um pacto que implica a necessidade de cada um dos
noivos ter a intenção de se unir.
Apesar disso, o enaltecimento da mulher, a partir do século XII, não
é matéria unânime entre os medievalistas. O que se pode ver, além do ex-
posto acerca dos trovadores e do casamento católico quanto à valorização
da mulher, é que, nessa época, a Europa ocidental assistiu ao despertar de
uma soma significativa de mulheres que, fosse na literatura ou na realidade
vivida, rompiam com os padrões sociais vigentes, como vemos pelo exem-
plo de Heloísa ou de Hildegarda de Bingen. Entretanto, longe estavam os
medievais de suspender o caráter misógino da sua cultura; fora literatura
ou do sim diante do altar, o casamento era precedido de uma intrincada
negociação.

O sofrimento como forma de prazer


O amor cortês não se define apenas pela negação do casamento, nem
pela alusão insistente e repetitiva à Dama inalcançável e excedente; ele cons-
titui uma erótica nova e inédita no Ocidente e estranha à noção de desejo
como falta. É essa forma amorosa cortês, inventada no século XII, que
anuncia o amor romântico ocidental.
Na erótica cortês, o amante, via de regra o trovador, vê no sofrimento
amoroso um autêntico prazer, tornando o sofrimento, alegria (joi)36. Trata-
se de gozar com o sofrimento, de ter prazer na humilhação que causa a
obediência cega à Dama.
A alegria liberta do desejo como falta, pois que ela é fonte de juventu-
37
de . “De amor, sei que dá facilmente grande alegria àquele que observa
suas leis”, sentencia Guilherme, propondo que o amor implica a obediên-
cia às leis, tal como o fez André, o Capelão. “Desde o início do século XII,
essas leis de Amor já estavam portanto fixadas como um ritual. Ei-las:

36
O vocábulo joi é bastante utilizado pelos trovadores e o seu sentido, independentemente das
ambiguidades interpretativas que enseja, é “joué à plaisir”, isto é, um jogo alegre e prazeroso
(ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 312).
37
Cit. ap. ROUGEMOND [? NÃO CONSTA EM NOTA ANTERIOR], 2003, p. 164.

90
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Mesura, Serviço, Proeza, Longa Espera, Castidade, Segredo, Mercê; e es-


sas virtudes conduzem à alegria, que é sinal do verdadeiro amor.”38
Alegria e sofrimento não são sentimentos apartados; ao contrário, no
amor cortês, são inseparáveis e complementares. Para os trovadores, o que
permite o regozijo, o gozo e a produção literária, é a distância da Dama e a
promessa de um dia voltar a vê-la. Assim escrevia Guilherme: “Que Deus
me deixe viver ainda,/ Para que eu ponha minhas mãos sob seu mantel!”,
fazendo clara alusão apenas à possibilidade de voltar a possuir a Dama.
Na literatura cavalheiresca em geral, o sofrimento se revela na errân-
cia pela floresta, num tormento sem fim, na doença e, às vezes, na morte; é
exemplo disso tudo o amor de Tristão e Isolda. Esse sentimento produz um
estado de alma que gera sofrimento e alegria, e que situa o obstáculo – que
é, sobretudo, a interdição do desejo – como um elemento imanente ao amor.
Escreveu Pierre Cardenal: “J’ai désiré, Je désiré et prefere désirer toujours”39.
Ora, o obstáculo é um fator de enobrecimento, de fortalecimento e de eter-
nização do amor, no sentido de um apagamento dos amantes.
Segundo Deleuze, o amor cortês é um agenciamento de desejo. Para
o filósofo, o bom amor, ao rechaçar o prazer carnal, não está a privar o
amor da alegria; ao contrário, como o desejo não é sinônimo da falta, mas
pura extensão do jogo de amor, do alegre jogo de amor, a contenção é,
antes, obstáculo que permite ao amor transformar sofrimento em alegria.
Então, o amor cortês tem dois inimigos: “a transcendência religiosa
da falta, a interrupção hedonista que introduz o prazer como descarga”40.
A primeira, uma “instância-lei” que caracterizava os homens como incapa-
zes da relação amorosa, já que indivíduos naturalmente em falta. Todo o
amor possível seria apenas aquele dirigido à divindade, na forma de um
amor ao próximo – uma imitatio Christi. A segunda, uma noção de desejo
como produto mesmo da falta; só há desejo se há a falta, e quando o desejo
é preenchido, é porque ele já não existe – isto, na concepção religiosa, tor-
nava toda atividade sexual, toda paixão, passageira e efêmera, produto de
um mundo precário e de um ser humano em falta. O amor cortês torna a
amizade uma estética da existência porque não reduz o desejo à falta e cria

38
ROUGEMOND, 2003, p. 164.
39
Pierre Cardenal é citado por ROUILLAN-CASTEX, 1984, p. 304. “Eu tenho desejo, eu desejo
e prefiro desejar sempre” (tradução minha).
40
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1999. p. 116-117.

91
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

novas formas de prazer para além dessa noção de desejo como recalque da
falta. “O processo do desejo é chamado de ‘alegria’, e não falta ou procura.
Tudo é permitido, com exceção do que vier interromper o processo com-
pleto do desejo, o agenciamento.”41 No amor cortês, não se trata de satisfa-
zer a falta e dar um fim aos processos desejantes, mas, em vez disso, manter
aberta a possibilidade de criação de outras formas de desejo distante da
culpabilização, da falta e da sua consequente proibição. Todo desejo codifi-
cado é uma forma institucionalizada de prazer, e é isto mesmo o que não é
o amor cortês.
Daí a contradição entre um amor bom e um amor mau. O bom amor,
como diz Guilherme, é sempre inacabado e estéril, reluta uma possessão
definitiva da Dama, pois a possessão definitiva da Dama acaba com a rela-
ção amorosa e com todos as consequências decorrentes dela: a virtude do
cavaleiro, o serviço vassálico à Dama e, sobretudo, a alegria e o jogo.
O amor cortês é um jogo, e seguem-se dele as virtudes do cavaleiro.
O jogo possui regras e se desenvolve no interior de um debate racional
entre a Dama e seu pretendente. Este jogo, alegre que ínsita a Dama a
prometer amor ao cavaleiro se estende ao infinito, mesmo que o final trá-
gico da morte interrompa a existência dos amantes. Neste caso, os aman-
tes como entidades empíricas desaparecem, mas o amor vence e se man-
tém à eternidade. A promessa do amor é mais importante que a consoli-
dação do amor em termos carnais; a presunção do adultério é mais valio-
sa que o adultério em si.

O contexto
Os medievalistas são unânimes em afirmar que o século XII foi um
momento decisivo na civilização ocidental. Foi nesse “Grande Século” que
a vida urbana se tornou um fato irremediável na vida dos cristãos ociden-
tais. A vida urbana era um fato, sobretudo, para a França meridional, onde
o feudalismo assumiu feições muito singulares. O amor cortês dos trovadores
provençais constitui um acontecimento que somente pode ser abordado no
interior das circunstâncias sociais e históricas nas quais apareceu, no sentido
de que essa forma amorosa é um “fenômeno social” e que deve ser estudado
e explicado como tal, segundo o que propõe Nelli. Isso quer dizer que o amor

41
Ibid., p. 116-117.

92
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

cortês não se revela apenas como um fenômeno literário, distanciado do ima-


ginário e das relações sociais feudais características do sul da França.
Às condições políticas e econômicas favoráveis à eclosão do amor e
da cortesia se junta o Renascimento do século XII, que, ao mesmo tempo
que as condições econômico-sociais, forma o universo, o plano possível
para o aparecimento do amor.
No interior desse plano é possível incluir um certo número de variá-
veis favoráveis ao aparecimento desse amor sentimental e sensual, inédito
na experiência do Ocidente. Passo agora a realizar dois movimentos de
escrita: descrever tais condições estruturais e mostrar algumas das teorias
que procuram explicar o advento do amor cortês.
1. O amor cortês emergiu justamente neste século XII, época propí-
cia para o aparecimento de um discurso sobre as mulheres – e o amor
cortês é um discurso sobre e para as mulheres. Já mostramos a importân-
cia da mulher como peça do grande jogo político feudal e que essa impor-
tância da mulher estava ligada ao processo de sacralização do casamento
por parte da Igreja cristã. Digamos que as mulheres, naquela sociedade
de homens, estavam na ordem do discurso. De um lado o clero, de outro
lado o discurso profano: em qualquer das situações tratava-se de abordar
o sexo e as relações entre os sexos, fosse para afirmar sua pureza, fosse
para atestar seu caráter continuador do pecado original. Assim, o casa-
mento surgiu como o lugar permitido, não aos devaneios do corpo, mas à
reprodução da humanidade e ao controle político da Igreja sobre as fa-
mílias aristocráticas.
O modo como os religiosos transformaram o pecado original em pe-
cado sexual vinculou inextricavelmente a mulher ao pecado e, dessa manei-
ra, criou um lugar para o corpo e, mais especificamente, para o corpo da
mulher no interior da sociedade e da história ocidental.
Le Goff afirma que o cristianismo introduziu essa grande novidade
no Ocidente, a transformação do pecado original em pecado sexual. O pe-
cado original nunca antes fora caracterizado como pecado sexual. A expul-
são de Adão e Eva do paraíso estava ligada ao pecado do orgulho, já que os
dois comeram da árvore do conhecimento. Foi “a vontade de saber” que
moveu o primeiro homem e a primeira mulher ao pecado, e não o sexo. De
qualquer modo, os ensinamentos do apóstolo Paulo dão forma ao caráter
diabólico que assume a mulher no interior do discurso cristão medieval, e o
corpo se constitui em alvo da desconfiança dos cristãos. Diz Paulo aos co-

93
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

ríntios: “Eu vos digo, irmãos: o tempo é curto. Que a partir de agora aque-
les que têm mulher vivam como se não a tivessem mais.”42
Então, a mulher aparece como centro do interesse do discurso dos clé-
rigos e, de outro modo, também do discurso dos trovadores. Na retórica cris-
tã, o culto a Maria vai se constituir na estratégia de criar a segunda Eva,
aquela que vai exorcizar o pecado original. Ela será a representação da mu-
lher ideal e vai afirmar os valores supremos da virgindade e da castidade. Por
seu turno, os trovadores, ao construírem a Dama perfeita, mulher idealizada
e inatingível, elevam a mulher a uma condição de pureza. Essa Dama é fonte
de toda a virtude do cavaleiro, e quem este deve obediência e serviço.
Uma tese bastante corrente é a identificação da Dama dos trovadores
com Maria, mãe de Deus. Na medida em que se idealizava a Dama e se a
colocava num patamar para além mesmo da própria experiência empírica, isso
parece confundir-se com o culto a Maria que tomava força no século XII.
Não há dúvida de que os trovadores transcendentalizaram a mulher,
projetando-a para um estado de tal pureza e perfeição, que ela se aproxima
da Virgem cultuada pelos populares e oficializada pela Igreja.
Mas atentemos para o fato de que os medievais sempre olhavam para
a realidade como um conjunto de símbolos. O caráter hierofânico dessa
cultura nos mostra que os signos querem dizer outra coisa que o que dizem.
Isso significa que a idealização da Dama tem um significado outro que não
simplesmente o que se depreende diretamente, ou seja, que a Dama ideali-
zada não corresponde a uma mulher empírica, mas a uma essência que
pode ser Maria. Para Nelli, “a mulher não simboliza nunca, para os trova-
dores, a Santa Virgem, nem a sabedoria, nem a gnose, nem a Igreja Cátara:
ela remete-nos unicamente para a sua própria imagem transfigurada e sem-
pre pronta, de resto, para recair nas realidades terrestres”43.
Rougemond, ao tentar ligar o amor dos trovadores à heresia cátara,
mostra que a Dama é “efetivamente de uma mulher real – o pretexto físico
é evidente –, mas, como no Cântico dos cânticos, o tom é realmente místico.
Os eruditos insistem em repetir sua fórmula: significa ‘muito simplesmen-
te’ uma mania de idealizar a mulher e o amor natural.”44
Bloch defende que essa idealização da mulher, através da figura da
Dama, não significa que o amor cortês se constituísse em uma elevação da

42
A Bíblia: Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Traduções dos textos originais hebraico e
grego. São Paulo: Loyola, 1995. 1 Coríntios 7,29.
43
NELLI, 1980, p. 87.
44
ROUGEMOND, 2003, p. 123.

94
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

mulher; ao contrário, para ele, a transcendentalização da mulher é um modo


de fazê-la voltar a essência que é masculina. Nesse sentido, a mulher é parte
e o homem essência.
De um modo ou de outro, o fato é que aquela sociedade estava prepara-
da para receber um discurso sobre as mulheres. Se efetivamente a promoção da
mulher não ultrapassou os limites do lirismo dos trovadores e, logo, não se
constituiu em uma realidade no século XII, quando o mundo medieval conti-
nuava a dar lugar a uma sociedade masculina, na qual, salvo raras exceções, a
mulher não teve um lugar de destaque, não devemos deixar de considerar, pelo
menos, dois aspectos que permitem constatar a presença da mulher naquela
sociedade. Em primeiro lugar, não obstante a tese de Bloch e a tese de Duby,
tanto o discurso dos clérigos quanto o discurso profano mostram um certo
enaltecimento da figura feminina, na Dama construída no interior da retórica
cortês ou em Maria, criada no interior da cultura popular e do discurso clerical.
Não resta dúvida, entretanto, que tanto Maria quanto a Dama cortês não são
mais do que representações idealizadas da mulher que sustentam e reprodu-
zem uma ideologia que afirma os valores da castidade e da virgindade. Bloch
mostra como o amor pela Dama não é outra coisa senão uma reafirmação da
essência que é masculina e da qual a mulher empírica é apenas parte. De forma
a ser amada, argumenta o autor, a mulher precisa assumir características que
ultrapassam os limites do possível para uma mulher real. Já Duby afirma que a
Dama colocada no centro e na visibilidade de todos na corte não passa de uma
“marionete” nas mãos do seu senhor, que a manipula segundo seus interesses
políticos, em relação aos seus cavaleiros.
Em segundo lugar, é preciso reconhecer que a mulher, no mundo
medieval, conheceu um progresso, quanto à sua condição, incomparável se
relacionada às sociedades anteriores e ao islã. Flori argumenta que, na Ida-
de Média, a mulher “pode pleitear justiça, herdar, governar, e talvez até
reinar e não pode, ao menos por direito, ser casada contra a vontade”45.
2. O fin amour foi um elemento necessário para a distinção do nobre
em relação ao burguês: essa categoria de gente que invade o modo de vida
medieval. As práticas amorosas corteses serviram, numa época de surgimen-
to de novos grupos sociais na Europa ocidental, como elemento singulariza-
dor e diferenciador da nobreza cortesã. Tratava-se de constituir uma outra
“forma de vida” específica para a nobreza, que abrisse um campo de possibi-

45
FLORI, 2005, p. 142.

95
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

lidades de vida, independentemente do que se instituía e consolidava no


mundo feudal da Baixa Idade Média. Ela pretendia a afirmação de um estilo
de vida nobre diante da desagregação dos ideais cavaleirescos. Bloch mostra
tal desagregação através da história de Lanval, um cavaleiro da corte de Ar-
tur. Lanval foi o único cavaleiro da corte de Artur a não receber nem terra
nem mulheres; foi esquecido pelo suserano. Desse modo, ele é contado no
contingente daqueles cavaleiros despossuídos em função das novas relações
de herança e consanguinidade da Baixa Idade Média. Lanval vaga perdido
pelo campo até se encontrar com a dama-fada que lhe permite prestígio e
riqueza, coisas que Artur não lhe concedeu: “A dama fada promete-lhe eter-
na fidelidade (em contraste com o esquecimento de Artur) e, o que é mais
importante, tanta riqueza quanto o coração dele desejar.”46
Talvez se possa afirmar que a cortesia tenha sido um modo da baixa
nobreza, esse grupo cada vez mais presente na sociedade medieval, colocar-
se ao lado da alta nobreza. A partir do século XII, consolida-se o privilégio
da primogenitura; assim, os filhos mais novos ficaram destituídos de posse,
sem terra e, logo, fora das relações de prestígio e riqueza feudais. Esse proces-
so deu lugar à constituição de uma camada da nobreza sem acesso à herança
e fora da rede dos casamentos feudais. Ao mesmo tempo, essa classe de cava-
leiros sem riqueza e casamento se via ameaçada, por outro lado, por uma
nascente burguesia urbana, que, segundo Bloch, estava “frequentemente ali-
ada não à aristocracia, mas a uma monarquia cada vez mais agressiva, a
qual, começando no reinado de Filipe I, estendeu suas próprias prerrogativas
e posses numa evolução que culminaria no século XIII com a aliança de
realeza e santidade na figura de São Luís”47. Podemos supor que a solução
para a crise dos jovens solteiros e sem terras estivesse em obter da dama casa-
da a promessa de amor e de riqueza e em adquirir, através do código corte-
são, o prestígio perdido por essa baixa nobreza.
A contextualização dessa literatura amorosa fornece elementos impor-
tantes para compreender o amor cortês como um fenômeno social. A conso-
lidação do sistema da primogenitura definiu, de certo modo, a constituição,
como já dissemos, de uma numerosa trupe de nobres menores, de cavaleiros
sem herança, e assim por diante. Pois bem, o sistema da primogenitura foi
antecedido por alguns meios utilizados pelas famílias nobres que explicam
bastante o advento do cavaleiro “sem terras”. Em primeiro lugar, observa-se,

46
BLOCH, 1995, p. 209.
47
Ibid., p. 208.

96
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

nos primórdios do século XI, uma significativa redução dos patrimônios de-
vido à divisão dos domínios, fosse em função da divisão advinda da herança,
fosse mesmo em função das doações feitas à Igreja. Flori lembra que a docu-
mentação permite concluir que ocorrera uma diminuição significativa nas
doações à Igreja e que as penitências, antes realizadas sobretudo através das
doações, voltam-se a mecanismos como a peregrinação, da qual o exemplo
mais cabal foram as Cruzadas. Houve mesmo tentativas de reverter doações
feitas anteriormente por familiares. Em segundo lugar, as famílias tentaram
ao máximo evitar o fracionamento sucessório, mantendo a indivisão dos bens
após a morte do pai. Nesse sentido, houve uma restrição dos casamentos, de
modo que em cada família apenas um membro casava, com uma única li-
nhagem reconhecida. Desse modo, os outros filhos se tornavam celibatários
ou eram investidos cavaleiros sob a guarda do Castelão, mas sem herança ou
casamento. A partir daí se deu a generalização da primogenitura.
Uma das consequências desse processo parece ter sido a constituição
de uma “horda” de jovens guerreiros sem acesso ao casamento e à herança.
A esses jovens estão ligadas as grandes aventuras da cavalaria, relatadas far-
tamente pela literatura, onde cada um procura mostrar-se: sua virilidade, sua
capacidade pessoal com as armas e, sobretudo, sua capacidade no trato com
as mulheres. Isso tudo implicava um distinguir-se socialmente, não em razão
da riqueza, que não tinham, mas por um certo número de regras de convi-
vência e de comportamento, a cortesia. Segundo a tese de Erich Koehler, a
baixa nobreza teve na cortesania a possibilidade de “readquirir um quinhão
do prestígio perdido através do mito de uma aristocracia de alma em vez de
nascimento”48. Por seu turno, a alta nobreza, através da cortesania, pretendia
manter a lealdade de uma grande quantidade de cavaleiros sem posses. Estes
últimos poderiam até mesmo fantasiar e desejar amar damas da alta nobre-
za, sem, no entanto, chegar a consumar com elas uma relação amorosa. A
partir do exposto, podemos observar que alguns aspectos da erótica cortês
encontram explicação estrutural: a ausência da Dama e a sublimação do de-
sejo, na medida em que a Senhora é inatingível; a tríade amorosa, que inclui
o grande Senhor, o jovem cavaleiro despossuído e a esposa, Dama de alta
linhagem, cria uma tensão entre o jovem cavaleiro, que canta o seu amor à
Dama, e o Senhor, que permite a corte e utiliza isso como estratégia para
manter a lealdade do jovem cavaleiro.

48
Ibid., p. 209.

97
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

Aceitar os argumentos acima significa, no mínimo, buscar nas trans-


formações da sociedade medieval, nas relações familiares, nos fatores eco-
nômicos da passagem do século XI para o século XII a explicação para um
fascínio tão grande que aquela sociedade nutriu pela poesia lírica cortês.
3. Duby também partilha da ideia de que o amor cantado pelos trova-
dores está relacionado ao advento de uma cisão no interior da nobreza feu-
dal, que levou à constituição da baixa nobreza. Mas é taxativo ao mostrar
que não houve promoção da mulher no interior do jogo amoroso e que, na
verdade, o amor cortês se revelava como uma pedagogia que, junto com as
regras da cortesania, tinha a função de civilizar aquela quantidade de ho-
mens sedentos por um bom casamento “a fim de fundar a sua própria casa”49.
Para Duby, o jogo amoroso cortês não era senão uma maneira do príncipe
aumentar o seu poder e controlar os jovens. Nessa versão, os cavaleiros, ao
demonstrarem todas as suas qualidades, ao realizarem uma ascese e mos-
trarem o quanto eram capazes de se converter em homens virtuosos estariam,
na verdade, fazendo do um amor de homens. “Servindo à sua esposa, era o
amor do príncipe que os jovens queriam ganhar, esforçando-se, dobrando-
se, curvando-se.”50 Nesse sentido, diz o autor que as regras do amor refor-
çavam as regras da vassalagem. O amor teria servido para controlar o dese-
jo dos homens, que, disciplinados poderiam permitir o controle do príncipe
e, por que não, conceber que o desejo masculino tivesse sido “utilizado
para fins políticos”. Eis o questionamento que nos deixa Duby.
4. Denis de Rougemond e René Nelli tentaram aproximar o amor
cortês cantado pelos trovadores da heresia cátara. Para o último, a heresia
cátara foi a “expressão espiritual” do Languedoc, de maneira que o cresci-
mento da heresia deu lugar à constituição não apenas de um movimento
herético, mas sim de uma Igreja Cátara, que influenciou a sociedade fran-
cesa do sul e, em alguma medida, constituiu uma mentalidade, um modo
de vida, um certo conjunto de representações que se tornaram pano de
fundo para a criação literária.
É preciso considerar a singularidade do feudalismo languedociano,
como bem mostra a análise de Macedo, ao tratar da grande cruzada albi-
gense, no século XIII. Os sulistas falavam outra língua e constituíam uma
cultura à parte no interior do que hoje conhecemos como França. É con-

49
DUBY, 2001, p. 63.
50
Ibid., p. 65.

98
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

senso que a nobreza do Languedoc tinha um caráter bastante anticlerical e


que a cruzada contra os cátaros, no século XIII, fora resultado da singulari-
dade do feudalismo languedociano. No Languedoc, os grandes senhores
anticlericais utilizavam o catarismo como um pretexto para ultrapassar a
tirania de Roma: eles gostavam de poder repudiar a mulher quando deseja-
vam, de não precisar respeitar a Trégua de Deus, e não eram antissemitas,
confiando postos a judeus em vez de cristãos. Além do mais, confiscavam
os bens eclesiásticos e as dízimas das abadias.
Assim, não foi difícil a autores como Denis de Rougemond realizar
uma aproximação entre a heresia cátara e o amor cortês, do mesmo modo
que o fizera Nelli. Esses autores viam, entre outras aproximações, o fato de
a heresia cátara desprezar o corpo e a relação sexual, sublimando o desejo,
do mesmo modo que o fizeram os poetas corteses. Os cátaros também ne-
gavam o casamento sacralizado, pois viam nele uma maneira de reproduzir
o mundo do corpo, criado pelo deus mal. Nesse sentido, o catarismo e o
amor cortês estariam sendo criados no interior do mesmo pano de fundo
cultural. Rougemond alerta que não se trata de ver uma relação de causalida-
de entre o amor cortesão e a heresia languedociana, mas, pergunta-se ele,
que espécie de vínculo podemos imaginar entre esses sombrios cátaros, cujo
ascetismo os compelia a fugir de todo contato com o outro sexo, e esses
luminosos trovadores, alegres e loucos, segundo se diz, que cantavam o amor,
a primavera, a aurora, os pomares floridos e a Dama?51

Creio que os vínculos não ultrapassam os limites do que os historia-


dores chamam de pano de função, que tem a ver com a constituição de um
imaginário comum que tanto os cátaros quanto os trovadores respiraram e,
inclusive, contribuíram para produzir. Acredito que pensar cátaros e trova-
dores do sul da França signifique querer escrever regularidades enunciati-
vas, ao modo de Foucault52, considerando que tanto um quanto outro obe-
decem as mesmas leis de enunciação. Assim, podemos falar de uma espécie
de formação discursiva que tornou possível a emergência de acontecimen-
tos como a religião cátara e o amor cortês.
Apesar de Rougemond referir-se a uma série de coincidências entre
os dois, penso que o limite da pesquisa permite apenas sugerir que seria
ingênuo buscar qualquer equivalência lógica e determinada entre os dog-

51
ROUGEMOND, 2003, p. 114.
52
Ver FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

99
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

mas do catarismo e a retórica cortês, pois o fato é que os trovadores eviden-


temente respiravam a atmosfera do catarismo e, mais do que isso, utiliza-
vam-se do mesmo conjunto de símbolos disponíveis naquela época, naque-
le lugar. Então, não é difícil concordar com Rougemond quando ele afirma
que religiosos e poetas esbarravam uns nos outros e, desse modo, não pode-
riam estar vivendo em mundos absolutamente diferentes e ser indiferentes
à “grande revolução psíquica do século XII”53.
A lírica occitânica se constitui em um evento típico do século XII, a
chamada Idade de Ouro da poesia provençal, na qual a temática central dos
poetas era o lirismo amoroso. Macedo afirma que, no século XIII, os poetas
levaram a efeito uma produção literária de um gênero mais satírico, sobretudo
no que concerne à sátira política, lançando uma crítica à grande cruzada con-
tra os cátaros. Macedo refere que os versos “veiculados pelo canto do jogral, e,
depois, de boca em boca pelos ouvintes [...] eram um poderoso meio de comu-
nicação, um meio eficiente de difusão da propaganda política”54.
5. O amor cortês aparece como parte de uma cultura profana que
propõe um novo modelo mental, a cortesania, e está ligado, primeiro, a um
processo de distinção da nobreza em relação aos novos grupos socais que
surgem, desestabilizando o modo de vida feudal, e segundo, ao nivelamen-
to simbólico entre a alta e a baixa nobreza. Ao mesmo tempo, a cortesia é o
ideal de vida dos cavaleiros, sujeitos centrais do discurso amoroso. Morris
menciona que a aristocracia languedociana era mais culta e educada do
que em outros lugares da Europa e que, por isso, talvez tivesse uma ânsia
por elegância e delicadeza, buscando inspiração no poema lírico latino e na
Espanha muçulmana. Então, cortesia, cavalaria e amor cortês são partes
do mesmo modo de vida, do mesmo jogo e da mesma revolução psíquica
de que falava Rougemond.
Foi nas cortes que nasceu o amor cortesão. E ele nasceu ligado a esse
código de comportamento, a cortesia, que distingue a nobreza. Como mos-
trou Bloch, a nobreza se fecha a partir do século XI, como resultado desse
processo de transformação da sociedade medieval. Fernandes mostra que,
no século XI, “o latim deixa de ser o único veículo de expressão escrita. A
partir da estreia literária das línguas vulgares, foi franqueado o acesso da

53
ROUGEMOND, 2003, p. 114.
54
MACEDO, José Rivair. Heresia, cruzada e inquisição na França Medieval. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000. p. 80.

100
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

classe senhorial à literatura que, assim, se adaptou ao gosto e aos interesses


das cortes feudais”55.
A cortesia se revela como um ideal estético da nobreza, mas também um
ideal ético. Observemos, por exemplo, que, no texto de André Capelão, a pro-
messa de amor de uma mulher pode levar o homem a tornar-se cada vez mais
virtuoso, de modo que a conclusão é que o amor é fonte da virtude do cavalei-
ro. Do mesmo modo, o primeiro trovador, na sua canção IX, afirma que tanto
a necessidade do amor da dama quanto a falta dele está associada, respectiva-
mente, à virtude e à vilania. Esse ideal ético se constitui, então, em uma ascese;
o homem transforma a si mesmo diante da relação amorosa, diante do jogo do
amor. O vilão, o camponês, não é capaz de inserir-se no jogo do amor, não é
cortês; eis o simbolismo da distinção do nobre.
A cortesia era, além de um ideal estético, um conjunto de códigos de
conduta, claramente exposta nos versos dos trovadores. “En los versos tro-
vadorescos”, diz Martín de Riquer, “la cortesía es una noción muy concreta,
aunque muy amplia, pues supone la perfección moral y social del hombre
del feudalismo: lealtad, generosidad, valentía, buena educación, trato ele-
gante, afición a juegos y placeres refinados, etc.”56. Logo, a vilania, como
diz Fernandes, é a antítese da cortesia.
Os cinco aspectos que refiro acima procuram mostrar elementos que
explicam a existência da forma amorosa cortês no Ocidente medieval, no
século XII. Todos esses aspectos servem para constituir um pano de fundo,
ao modo do que pensa Flori, para dar sentido à emergência da retórica e da
erótica cortês no ambiente medieval do século XII. Penso, para concluir, que
o amor cortês introduz no Ocidente medieval, como parte da grande revolu-
ção do século XII, uma novidade, como já venho argumentando desde o iní-
cio, na sociedade medieval e, particularmente, nas relações entre o masculino e
o feminino. Se é verdade, como argumenta Duby, que o amor cortês pode ser
compreendido como uma estratégia pedagógica a fim de disciplinar os cavalei-
ros e elevar o poder do príncipe, é verdadeiro também que a mulher assume um
outro papel e torna-se muito mais relevante como agente social.

55
FERNANDES, Rui César Gouveia. Amor e cortesia na literatura medieval. Notandum, Editora
Mandruvá, n. 7. Disponível em: <http://www.hottopos.com/notand7/raul.htm>. Acesso em:
27 jul. 2006.
56
RIQUER, Martin de. Los trovadores: historia literária y textos. Barcelona: Ariel, 2001. p. 85.
“Nos versos trovadorescos, a cortesia é uma noção muito concreta, todavia muito ampla, pois
supõe a perfeição moral e social do homem do feudalismo: lealdade, generosidade, valentia,
boa educação, trato elegante, afeição a jogos e prazeres refinados, etc...” (tradução minha).

101
PEREIRA, Nilton Mullet • Fin amour: as condições de existência no mundo medieval

Dizer isso, entretanto, não significa deixar de compreender que a lite-


ratura “embeleza a realidade” e, na realidade, o amor cortês pode bem ser-
vir “para aliviar as carências sexuais e passionais de um tempo pouco pro-
pício às folias do corpo e aos arroubos do coração”57. A literatura, entretan-
to, muito tem de fantasia, quanto tem de constituidora de um modo de
pensar e de se comportar. Ela, sem dúvida, influencia a vida de uma época,
a formação do seu imaginário, a produção da memória.
O amor cortês redefine as relações íntimas entre homens e mulheres,
introduzindo no Ocidente um amor entre dois sexos não limitado pelo ca-
samento, pois dele se tornou independente. O amor cortês é um amor ver-
dadeiro, seja qual tenha sido seu papel: de disciplinador da cavalaria sem
herança e mulher ou de instrumento político nas mãos do príncipe. Ele é
um amor que basta a si mesmo e mostra uma autonomia dos sentimentos.
No interior de uma vida cotidiana cheia de restrições, o amor é revelador
da virtude e do bem e torna a mulher parceira amorosa, mesmo que isso se
restrinja aos escritos literários.
Difícil escapar dessa conclusão de que debates literários tão intensos e preci-
sos respondiam com certeza a uma expectativa, expressavam uma revolu-
ção nos costumes e das mentalidades. Eles influenciaram os comportamen-
tos reais, apesar de serem mais modelos que reflexos. Sabemos, por múlti-
plos testemunhos, que os costumes corteses se difundiram nos meios cava-
leirescos e modificaram suas atitudes.58

A literatura revela a vida interior; talvez ela seja uma prova da exis-
tência de uma vida interior, no sentido de que mostra o modo como os
homens viam e experienciavam sua época. Nesse sentido, através da litera-
tura eles produziam representações sobre seu lugar naquela história e, de
algum modo, influenciavam nela do mesmo modo que dela tiravam os sím-
bolos em que se baseava sua criatividade. Ora, criar poemas e ritos de acom-
panhamento parece ter sido, além das atividades guerreiras e de caça, a
ocupação favorita da nobreza59.
É bem possível pensar a poesia lírica dos trovadores como sinal de
uma interioridade, não como o atestado do nascimento do indivíduo, mas
como parte do nascimento de uma intimidade que é típica e inimitável,
evento singular do mundo medieval e não estado infantil do que os moder-
nos chamarão de indivíduo.

57
LE GOFF, 2005, p. 96.
58
FLORI, 2005, p. 152.
59
Cf. ROUILLAN-CASTEX, 1984.

102
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Cultura letrada, pregação e


educação política no século XIII
(Vicente de Beauvais e Iacopo de Varazze)

André Luis Pereira Miatello1

Ao escrever, em 1288, a obra laudatória chamada Sobre as Maravilhas


de Milão, o professor de gramática Bonvesin de la Riva registrou uma infor-
mação muito útil para o estudo que agora se apresenta; segundo o erudito
milanês,
[…] a divina providência nos concedeu uma necessária abundância de fra-
des pregadores [dominicanos] e menores [franciscanos], que são os dois prin-
cipais luminares da fé católica, bem como de outros [religiosos] que todos
os dias pregam o caminho de nossa salvação, expurgam nossa cidade de
toda heresia, plantam e edificam o povo na fé católica, corroboram com a
palavra e o exemplo e elevam constantemente a devoção do bom ao me-
lhor2.

A citação nos faz pensar, antes de tudo, na importância que Bonvesin


confere aos frades pregadores e menores, cujas Ordens, para ele, eram os
“luminares principais” da Igreja, não só do ponto de vista universal, mas,
nesse caso, do local, já que Bonvesin inseriu esse trecho na parte em que
elogia Milão por conta de sua cristianização antiga, pelo número excelente
de seus arcebispos, pela quantidade de corpos de santos que acolhe. Assim,
os frades mendicantes ocupam, ao lado do apóstolo Barnabé, fundador da
Igreja milanesa, de santo Ambrósio e dos 92 arcebispos, um destacado lu-
gar providencial. Isso porque os tais religiosos “todos os dias pregam o
caminho da salvação”, e este é o segundo aspecto que a citação nos leva a
considerar: a pregação recobre um papel eclesial de imediata serventia, pois
edifica a fé católica; mas, por trás dessa óbvia proposição esconde-se o uso

1
Professor Adjunto de História Medieval da Universidade Federal de Minas Gerais.
2
BONVESIN DE LA RIVA. De magnalibus Mediolani – Le meraviglie di Milano. Testo a fronte.
Traduzione di Giuseppe Pontiggia. Introduzione e note di Maria Corti. Milano: Bompiani,
1974. p. 106. As palavras entre colchetes foram inseridas por mim para facilitar a compreensão
do leitor.

103
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

social que os frades conferem à sua principal atividade; afinal, purificavam


a cidade de toda heresia, isto é, de todo discurso desviante que se chocava
com o ordenamento socioeclesial tido por legítimo e, com isso, podiam
conduzir a cidade “do bom ao melhor”.
A despeito da relação imediata e simplista com o aspecto da fé, que
costumeiramente nos satisfaz, a pregação nos remete para o âmbito da instru-
ção coletiva, pois se trata de um discurso feito com frequência a céu aberto, em
praça pública ou descampado, em cima de palanque o mais perto possível de
uma grande audiência, tendo por base um ensinamento, o mais das vezes adap-
tado ao público ouvinte, e, por finalidade, a transmissão de uma mensagem
que ambicionava ver-se concretizada na vida dos espectadores3.
Essa instrução, como procurarei mostrar, pode ser relacionada com
o que chamamos, hoje, de educação, no sentido largo, e com a educação
política, no sentido estrito. Vários são os fatores que apontam para isso: no
século XIII, o pregador era, quase sempre, um erudito, se não um grande
estudioso, ao menos alguém que detinha boa bagagem de estudo porque
frequentara as escolas de pregadores, onde pudera ler certa quantidade de
tratados predicativos4; é preciso destacar que os pregadores pertenciam a
uma espécie de elite clerical culta, já que, entre os padres, mesmo entre os
frades mendicantes, bem poucos eram aqueles dotados do mandato oficial
de pregar. A estes cabia a obtenção dos graus acadêmicos e a persistência
nos estudos, como podemos ler no Comentário às Constituições que Humber-
to de Romains (c. 1194-1277), quinto mestre geral da Ordem dos Pregado-
res, apresentou em 1267:
Deve-se saber que o estudo não é a finalidade da Ordem [dos frades pregado-
res], mas é sumamente necessário para se atingir seus fins, isto é, a pregação e
a obtenção da salvação das almas, pois sem o estudo não podemos dar conta
nem de uma e nem da outra. Uma ciência restrita é suficiente para alguém
conseguir a própria salvação, mas não é suficiente para ensiná-la aos outros.5

3
Remeto o leitor interessado nos assuntos técnicos da pregação medieval para o livro de
Giuseppina MUZZARELLI, Pescatori di uomini: predicatori e piazze alla fine del Medioevo.
Bologna: Il Mulino, 2005.
4
Se levarmos em conta o cânon 10 do Concílio Lateranense IV, de 1215, vemos que se tornara
norma canônica, válida para toda a Igreja Romana, que os arcebispos e bispos suprissem a demanda
por pregadores escolhendo homens idôneos e “poderosos na palavra” [potentes in sermone], o que
certamente supõe que estavam entre os mais instruídos dentre os membros do clero.
5
BERTHIER, Joachim Joseph (ed.). B. Humberti de Romanis Opera de vita regulari. Torino: Marietti,
1956. v. 1, p. 41-42: “Notandum est autem quod studium non est finis ordinis, sed summe
necessarium est ad fines praedictos, scilicet ad praedicationes et animarum salutem operandam,
quia sine studio neutrum possemus […]. Modica scientia sufficit cuilibet ad salutem propriam;
sed non sufficit modica ad alios docendum.”

104
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Este trecho já citado e comentado por estudiosos da história domini-


cana do século XIII ilustra bem a posição fundamental da Ordem que Do-
mingos de Gusmão fundou, em Toulouse, em 1215, sob a autoridade do
bispo Foulques (c. 1155-1231)6: uma vida de estudos dedicada à pregação,
isto é, ao ensino de um público bastante heterogêneo e extenso que, com ou
sem convicção, colocava-se como receptor de uma mensagem sistematica-
mente pensada para convencer e ensinar. Assim, vemos que a pregação
constituía um instrumento de ensino de conteúdos e comportamentos con-
siderados legítimos e socialmente condizentes, completando, em público, o
que já se supunha iniciado no âmbito doméstico; isso nos faz ver que a
educação, na baixa Idade Média, acontecia por meio de uma variada mul-
tiplicidade de canais e de espaços, ultrapassando a estreita instituição esco-
lar que marca e caracteriza o processo educativo padrão de nossa época7. O
pregador, investido de uma autoridade reconhecida coletivamente, punha-
se a falar como intérprete de um texto; tendo esse texto à mão, como nos
sugere a iconografia8, ensinava seu público a entender a lição que o texto
comporta, em seus vários sentidos. Dito de maneira introdutória, o prega-
dor facultava aos ouvintes a apropriação do livro por meio da oralidade,
adaptando seu aspecto erudito à capacidade intelectiva de seu público e,
por isso, precisava conhecer bem o tipo de público para o qual iria ensinar:
são essas e outras características que me levam a pensar a pregação como
parte integrante do processo de educação, como uma das formas de instru-
ção pública.
No entanto, as palavras de Humberto de Romains, de resto compro-
batórias do que viria a escrever Bonvesin de la Riva, mostram que a prega-
ção, por um lado, circunscrevia-se a um enfrentamento direto com os con-
testadores da disciplina eclesiástica ordinária, muito bem instruídos, e, por
outro, impunha-se o dever de reconverter à fé dita ortodoxa as populações
das cidades e dos castelos: em ambas as situações, a pregação apresentava-
se como o meio de comunicação mais efetivo, mais amplamente divulgado
e mais adequado para um embate de marcado caráter eclesial. A partir
dessas motivações, o estudo impunha-se como critério qualificador da mis-

6
VICAIRE, Marie-Humbert. Charisme et hiérarchie dans la fondation de l’Ordre des Prêcheurs.
In: Dominique et ses Prêcheurs. Paris: Éditions du Cerf, 1977. p. 198-221.
7
BÉRIOU, Nicole. Un mode singulier d’1éducation: la prédication aux derniers siècles du Moyen
Âge. Communications, v. 72, p. 113-127, 2002.
8
CHAMPETIER, Marie-Paule. Faits et gestes du prédicateur dans l’iconographie du XIIIe siècle
au début du XVe siècle. Médiévales, v. 16-17, p. 197-208, 1989.

105
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

são de uma Ordem religiosa nascida para influenciar a sociedade política


de maneira concreta e, ao menos em tese, total.
O aspecto político da pregação será demonstrado ao longo de todo o
texto; por ora, quero chamar a atenção para um detalhe muito elucidativo.
No mesmo século em que a pregação assumia um lugar social de extrema
importância, outro tipo de discurso público também se afirmava, de modo
particular no espaço urbano comunal italiano, sob o nome latino de concio. A
voz dos religiosos [praedicatio] não era mais a única a ressoar pela cidade, pois
veio a somar-se a ela o discurso cívico [concio aut civilis admonitio] produzido
pelos professores de retórica das escolas universitárias9. Em seu tratado sobre
a arte da pregação, Alain de Lille (1128-1202) assim distinguia os dois tipos
de discursos: “A pregação é, pois, aquela instrução [instructio] que se faz a
muitos e publicamente para o ensinamento dos costumes […], enquanto o
discurso de assembleia [concionatio et civilis admonitio] o que se faz para o for-
talecimento da república.”10 Aparentemente, a distinção de Alain não deixa
dúvidas quanto à área de abrangência da palavra religiosa e da cívica: enquan-
to a primeira trata da instrução moral, a segunda, da confirmação da repúbli-
ca. O problema vai surgir quando os frades mendicantes, empenhados em con-
verter as cidades, passarem a interferir também no discurso cívico, fazendo a
praedicatio se tornar concio e moldando-a segundo seu ideário próprio.11
Isso pode ser visto, de maneira particular, nos dois personagens que
quero inserir no debate sobre cultura letrada e poder político na Baixa Idade
Média, isto é, Vicente de Beauvais (c. 1190-c. 1264) e Iacopo de Varazze
(1228-1298), dois grandes representantes do mundo das letras e da política,
no século XIII. Ambos são frades da Ordem dos Pregadores, ambos estive-
ram ligados às questões políticas e governamentais de seu tempo e ambos
foram também prolíficos escritores.
Vicente escreveu a maior obra enciclopédica do século XIII, o Specu-
lum Maius12, disposto em três partes: speculum naturale (súmula de ciência,

9
Cf. MURPHY, James J. La retorica nel Medioevo: una storia delle teorie retoriche da s. Agostino
al Rinascimento. Barra: Liguori, 1983.
10
Cf. ALANI DE INSULIS. Summa magistri Alani de arte praedicatoria. In: Patrologia Latina,
210. p. 111-198.
11
Cf. VV.AA. Etica e política: le teorie dei frati mendicanti nel Due e Trecento. Atti del XXVI
Convegno internazionale. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1999.
12
Cf. FOUCART, Serge Lusignan. Vincent de Beauvais et l’histoire du Speculum Maius. Journal
des Savants, n. 1-2, p. 97-124, 1990; SCHNEIDER, Jean. Vincent de Beauvais à l’épreuve des
siècles. In: LUSIGNAN, Serge; PAULMIER-FOUCART, Monique (org.). Lector et compilator
Vincent de Beauvais, frère prêcheur: un intellectuel et son milieu au XIIIe siècle. Grâne: Créaphis,
1997. p. 21-46.

106
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

filosofia e história natural), speculum doctrinale (manual para estudantes con-


tendo uma apreciação das artes liberais e mecânicas, bem como recomen-
dações metodológicas úteis para o aprendizado das técnicas do ensino es-
colástico) e speculum historiale (tratado de história universal, que, das três
partes, foi a mais divulgada e conhecida durante a Idade Média).
Iacopo de Varazze também se dedicou a uma obra que podemos con-
siderar enciclopédica, cujo título mais antigo é Legendae sanctorum, mais
conhecida por nós como Legenda Áurea, que reúne pequenas biografias de
cerca de 180 santos, venerados segundo o ciclo do ano litúrgico13. Este com-
pêndio hagiográfico pode, sem exagero, ser considerado a obra de maior
circulação, a mais lida, a mais copiada, a mais traduzida na Idade Média,
depois da Bíblia, obviamente.
Mas não vou discorrer nem sobre o Speculum maius, de Vicente de Beau-
vais, nem sobre as Legendae sanctorum, de Iacopo de Varazze. No que tange à
relação entre cultura letrada e poder político, penso que as obras mais repre-
sentativas desses autores sejam outras, menos conhecidas, menos divulgadas,
porém de impressionante significado prático e político. No caso de Vicente,
refiro-me ao De morali principis institutione14 (Sobre a educação moral do prín-
cipe), escrita por volta de 1263, e, no caso de Iacopo, à Chronica civitatis Ia-
nuensis15 (Crônica da cidade de Gênova), terminada em 1297.
A discussão dessas duas obras nos dará ocasião de identificarmos
algumas linhas mestras do pensamento político dominicano gestado em
âmbito monárquico e para o poder monárquico, como fez Vicente de Beau-
vais, mas gestado também em âmbito citadino e para a comunidade citadi-
na, como Iacopo de Varazze. Ambos os autores serão aqui tomados como
exemplares bem acabados de uma proposta política destinada a ultrapassar
o nível teórico para se tornar ação tanto no Estado monárquico quanto na
cidade comunal16. A escolha de dois dominicanos não é fortuita: a Ordem

13
Cf. BOUREAU, Alain. La Légende Dorée: le système narratif de Jacques de Voragine (1298).
Paris: Éditions du Cerf, 1984.
14
VICENTE DE BEAUVAIS. De la formación moral del príncipe. Edición bilingüe preparada por
Carmen Teresa Pabón de Acuña. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2007. v. 680. Esta
edição espanhola foi cotejada com a belga: SCHNEIDER, R. J. (ed.). Vincentii Belvacensis “De
morali principis institutione”. Turnhout: Brepols, 1995. (Corpus Christianorum, continuatio
Mediaevalis, 137).
15
IACOPO DA VARAGINE. Cronica della città di Genova dalle origini al 1297. Testo latino in
appendice a cura di Stefania Bertini Guidetti. Genova: ECIG, 1995.
16
VERGARA, Javier. La educación política en la Edad Media: el Tractatus de Morali Principis
Institutione de Vicente de Beauvais (1262/63): una apuesta prehumanista de la política.

107
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

de são Domingos, no séc. XIII, pelo menos, esteve bastante envolvida com
o âmbito do poder público, do governo e da administração; os frades assu-
miram cargos e funções que estavam associados ao campo da política, seja
nas cortes principescas ou nas cúrias citadinas: muitos deles foram inclusi-
ve autores de obras com declarada finalidade política, como as duas obras
escolhidas para esse estudo.
Os frades pregadores, como eram chamados os dominicanos, puse-
ram-se a trabalhar nos palácios de reis, duques, condes, foram embaixado-
res de príncipes e papas, pregaram cruzadas, governaram cidades, lidera-
ram assembleias cívicas, redigiram estatutos e regimentos urbanos, presidi-
ram tribunais inquisitoriais e campanhas de pacificação; assumiram cargos
episcopais, legações apostólicas e régias, foram professores universitários e
preceptores de nobres. Tomadas em conjunto, a produção teórica e o traba-
lho prático dos dominicanos nos mais diversos setores sociais fizeram com
que os frades não fossem apenas úteis a este ou aquele poder, mas, sobretu-
do, que definissem um vocabulário político e ajudassem a construir a pró-
pria consciência política no séc. XIII, colaborando de forma explícita para
o incremento da linguagem política e, por conseguinte, da comunicação e
da educação política no final da Idade Média17.

Vicente de Beauvais e o de bono statu principis


Em 1246, Vicente de Beauvais foi nomeado professor (lector) e prega-
dor da casa régia que Luís IX, rei de França, mandara construir no mostei-
ro cisterciense de Royaumont. Essa nomeação elevou o frade pregador à
qualidade de conviva do rei e da família real capetíngia, confiando a ele a
responsabilidade de instruir o monarca na condução de seus atos pessoais e
públicos. A função de professor da corte, obviamente, deu a Vicente a opor-
tunidade de se aproximar dos príncipes, como Isabel (1242-1271), que de-

Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 2010; BOUREAU, Alain. Le prêcheur et les


marchands: ordre divin et desordres du siècle dans la Chronique de Gênes de Jacques de Voragine
(1297). Médiévales, 4, p. 102-122, 1983; AIRALDI, Gabriella. Sotto il nome di Genova: etica
economica e interpretazione del reale nell’opera di Jacopo da Varagine. In: Iacopo da Varagine:
Atti del I Convegno di Studi (Varazze, 13-14 aprile 1985). Genoa, 1987. p. 151-161.
17
EVANGELITI, Paolo. I pauperes Christi e i linguaggi dominativi: I francescani come
protagonisti della costruzione della testualità politica e dell’organizzazione del consenso nel
bassomedioevo (Gilbert de Tournai, Paolino da Venezia, Francesc Eiximenis). In: La propaganda
politica nel Basso Medioevo: (Atti del XXXVIII Convegno storico internazionale, Todi, 14-17
ottobre 2001). Spoleto, 2002. p. 315-392.

108
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

pois se casou com Teobaldo II, rei de Navarra (1258), e Filipe (1245-1285),
que, por morte do primogênito, Luís, acabou sucedendo ao pai no trono,
em 1274. Desde a época em que redigia o Speculum maius, Vicente já vinha
refletindo sobre assuntos relativos ao poder público e ao ministério régio.
Como podemos ler no prólogo do livro Sobre a educação moral do príncipe,
Vicente pretendia fazer desta obra, de 1263, uma espécie de síntese de uma
imensa gama de tratados que ele havia lido e que tinham por finalidade
discorrer sobre aquilo que condiz aos costumes dos monarcas e dos ho-
mens de corte18. Concluímos, então, que o De morali principis institutione é o
resultado de, pelo menos, 17 anos de pesquisa.
É preciso fazer notar ainda que Vicente não esperava escrever apenas
mais um espelho de príncipe, como tantos clérigos, antes dele, já haviam
feito19. Sua obra, que é propriamente um espelho de príncipe20, é também,
segundo suas próprias palavras, um compêndio de referências morais à dis-
posição dos frades pregadores que porventura, como ele, houvessem de ocu-
par a responsabilidade de aconselhar, em privado ou em público, os reis,
cavaleiros, conselheiros, ministros, bailios, prepósitos e demais homens que
trabalhavam na administração da república, conforme a sua posição21. Te-

18
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 2-3: “Outrora, quando morava no mosteiro de Royaumont,
onde exercia o ofício de professor [lector], segundo a vontade de vossa alteza, senhor meu, rei
dos francos, percebi que vós e a vossa família muitas vezes punham vossos ouvidos e também
vossas mentes atentos às palavras divinas, assim me pareceu útil resumir em um só volume o
que li em muitos livros sobre os costumes dos príncipes e homens de corte, dividindo o assunto
em vários capítulos [...].”
19
BORN, Lester Kruger. The Perfect Prince: A Study in Thirteenth and Fourteenth-Century
Ideals. Speculum, v. 3, n. 4, p. 470-504, 1928; ID. The specula principis of the Carolingian
Renaissance. Révue Belge de Philologie et d’Histoire, tomo 12, fasc. 3, p. 583-612, 1933; BUESCU,
Ana Isabel. Um discurso sobre o príncipe: a “pedagogia especular” em Portugal no século
XVI. Penélope, v. 17, p. 33-50, 1997; GÓMEZ REDONDO, Fernando. Modelos políticos y
conducta del rey en la literatura del siglo XIII”. Cahiers de Linguistique Hispanique Médiévale, v.
23, p. 285-304, 2000.
20
SCHNEIDER, Robert J. Vincent of Beauvais’ Opus universale de statu principis: A Reconstruc-
tion of its History and Contents. In: PAULMIER-FOUCART, Monique; LUSIGNAN, Serge;
NADEAU, Alain (org.). Vincent de Beauvais: intentions et réceptions d’une oeuvre encyclopé-
dique au Moyen Âge. Montréal: Bellarmin/Vrin, 1990. p. 285-300.
21
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 2-3: “[...] a fim de que eu e os demais irmãos tenhamos
facilmente acesso a essa matéria [isto é, os livros sobre os costumes dos príncipes e homens de
corte], sobre a qual muito pouca coisa se encontra escrita, e possamos recorrer a ela
oportunamente, caso alguma sejamos incumbidos de persuadir, em público ou em privado,
sobre o que toca à honestidade da vida e à salvação da alma de homens tais como príncipes,
cavaleiros [milites], conselheiros, ministros, bailios, prepósitos e outros que, morando nas cortes
ou fora delas, administram a república [respublica] segundo lhe compete pelo seu estado.”

109
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

mos, pois, um segundo objetivo para a obra, este sim, pouco frequente na
literatura política: ser um manual para consulta dos frades envolvidos nas
lidas do governo e da administração pública. A julgar pela própria função
exercida por Vicente, podemos perceber que os dominicanos constituíam
uma elite intelectual à disposição do reino francês22, como também o foram
no reino catalão-aragonês durante os séculos XIII e XIV23.
Ora, se levarmos em conta que, desde pelo menos o período carolín-
gio, as ordens religiosas estiveram sempre à disposição dos governantes,
diremos que não há nada de especial no fato de os dominicanos passarem a
servir à corte capetíngia. Portanto, não está aqui a especificidade que quero
fazer notar. Os frades de São Domingos não eram monges e, como tal, não
possuíam mosteiros, que, como sabemos, constituíam patrimônios fundiá-
rios tornados domínios territoriais e, por extensão de sentido, parcelas polí-
ticas do reino24. Nesse caso, a associação das ordens monásticas aos meca-
nismos de governação e dominação de um dado território é consequência
lógica de seu envolvimento nas redes de poder, seja porque os abades eram
membros da alta aristocracia ou porque os mosteiros foram construídos às
expensas de uma casa nobiliárquica ou porque eram necrópoles de impor-
tantes linhagens, etc.
O diferencial dos dominicanos, como também o será dos frades de
São Francisco, é a desapropriação e, acima de tudo, a pregação. No meu
entender, esta segunda característica é a mais importante. De um ponto de
vista ideal, os dominicanos se aproximaram do poder e se colocaram a ser-
viço das cortes como extensão de seu ministério predicativo. A pregação,
que justamente no século XIII havia voltado a ser discutida como parte
fundamental da pastoral eclesiástica, passou a ter também uma função po-
lítica imprescindível25.
E, com isso, estamos diante de um problema: como a pregação ou,
mais propriamente, o pregador, isto é, um homem de letras e de reza, pode

22
GENET, Jean-Philippe. Saint Louis: le roi politique. Médiévales, v. 34, p. 25-34, p. 29, 1998; LE
GOFF, Jacques. Portrait du roi idéal. L’Histoire, v. 81, p. 71-76, 1985.
23
EVANGELISTI, Paolo. I francescani e la costruzione di uno stato: linguaggi politici, valori identitari,
progetti di governo in area catalano-aragonese. Padova: EFR – Editrici Francescane, 2005.
24
ROSENWEIN, Barbara; HEAD, Thomas; FARMER, Sharon. Monks and Their Enemies: A
Comparative Approach. Speculum, v. 66, n. 4, p. 764-796, 1991.
25
D’AVRAY, D. L. The Preaching of the Friars: Sermons Diffused from Paris before 1300. Oxford:
Clarendon Press, 1985. p. 1-11. MUESSIG, Carolyn. Sermon, Preacher and Society in the
Middle Ages. Journal of Medieval History, v. 28, p. 73-91, 2002.

110
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

querer ensinar a arte de governar para reis e príncipes? Essa pergunta, feita
pelo próprio Vicente de Beauvais, foi respondida a partir dos argumentos
do orador romano Fábio, citado por são Jerônimo: “As artes seriam felizes
se apenas os artistas fossem seus juízes.”26 Portanto, o frade pregador, ape-
sar de não ser versado na arte do governo, podia, com justa razão, avaliar a
atividade governativa e, com mais propriedade, julgar a arte política por-
que desprovido de paixão e capacitado para ver as suas imperfeições.
Além disso, a arte de governar supõe aprendizado: Vicente confere à
pedagogia, ou melhor, ao processo educativo, uma importância considerá-
vel, o que pode ser visto desde o título de sua obra, De morali principis insti-
tutione, que preferi traduzir por Sobre a educação moral do príncipe. O vocábu-
lo institutio indica disposição, instrução, possuindo sentido de formação,
amestramento, doutrina e educação; nesse sentido, não é nada diferente do
vocábulo latino instructio [instrução], adotado por Alain de Lille, em seu De
arte praedicatoria. O termo remete aos procedimentos de aprendizado que,
seguindo um método e amparando-se em autoridades, tinham por pressu-
posto a transmissão de conhecimentos considerados socialmente necessári-
os tanto para a vida pública quando para a edificação moral27.
No caso apresentado por Vicente, o processo educativo diferencia-se
de acordo com o estatuto social a que se destina ou ao mister que se execu-
ta: a educação que um rei precisa receber deve ser diferente da educação de
um pregador; no entanto, o rei governa homens, não seres irracionais. Por
isso, a educação que ele necessita adquirir deve ser relativa ao aspecto supe-
rior do homem, sua racionalidade e espiritualidade, e, em assim falando,
Vicente propõe o modelo de educação do orador greco-romano: aprende-
se na escola a ser homem de caráter; aprende-se na escola a ser homem de
virtude; a ser um bom cidadão. O aprendizado é atividade moral; aprender
para conseguir coisas não faria o menor sentido. Aqui reside outro argu-
mento para atestar que o pregador tem muito a ensinar sobre a arte do
governo: o pregador também lida com o que há de mais elevado no ho-
mem; também se envolve num processo de transmissão de valores morais e,
no limite, também persegue um objetivo educativo relacionado com o go-

26
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 108: “Ut enim ait Fabius orator: ‘Felices essent artes si
de illis artifices iudicarent’.”
27
MICHEL, Alain. Culture et sagesse: aspects de la tradition classique de Cicéron à Hugues de
Saint Victor. In: Mélanges de philosophie, de littérature et d’histoire ancienne offerts à Pierre Boyancé.
Rome: École Française de Rome 1974. p. 513-528.

111
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

verno, porém das almas. Mas, nesse discurso, o governo dos homens coin-
cide, de alguma maneira, com o governo das almas.
Desse ponto de vista, o bom governo depende da educação moral, re-
ligiosa e intelectual do governante, o que não deixa de ser um preceito bas-
tante antigo, visto que já o encontramos em Platão e em toda a filosofia so-
crática. O próprio Vicente recorre às obras de Platão para referendar seu raci-
ocínio: “[...] as repúblicas serão felizes se forem governadas por sábios ou se
seus governantes se esforçarem por alcançar a sabedoria.”28 A aquisição de
sabedoria é aqui fundamental, e já o livro do Eclesiástico o afirmava: “Um
rei ignorante perderá seu povo” (Eclo 10,3). Se o rei ignorante perde, o rei
sábio ganha. Assim, Vicente eleva a educação régia ao grau de condição im-
prescindível para que se verifique a legitimidade do próprio governo. O frade,
mais uma vez, recorre a um autor antigo, Valério Máximo, para afirmar que
é uma deformidade que o rei seja superado na virtude por aqueles que supera
em dignidade29. O termo latino virtus, nesse contexto, parece apontar para
todo o arcabouço de educação que torna o homem apto a governar.
O interessante é que não é apenas o rei ou o príncipe que precisam
educar-se para tornar a república boa, mas também os seus cidadãos. Ora,
admitia-se como verdade que o bom estado da república e o bom governo
dependiam simultaneamente de bons cidadãos e bons governantes, e os
cidadãos e governantes, para serem bons, precisavam ser homens transfor-
mados pelos valores da religião30, pelos quais os pregadores se sentiam os
mais abalizados responsáveis.
Não nego que este pressuposto era já evidente desde os tempos da
Alta Idade Média; acontece que no século XIII isso se tornou uma obses-
são coletiva: manuais de pregadores começaram a ser escritos e, mais do

28
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 96. A citação de Platão, na verdade, foi tomada do livro
Sobre a consolação da filosofia, de Boécio, como o próprio Vicente afirma: “Plato etiam, ut Boetius
testis est, res publicas fore beatas dixit si eas aut sapientes regerent au earum rectores sapientiae
studerent.”
29
Ibid., p. 90: “Ut enim ait Valerius Maximus, libro III: ‘Deforme est quos prestes dignitate ab
hiis superari virtute’.”
30
Uma maneira bastante ilustrativa desse modo de pensar pode ser encontrada em Boaventura
de Bagnorégio, na V conferência Sobre os seis dias da criação (Collationes in Hexaemeron), quando
resume as virtudes em três grupos: as virtudes morais, as virtudes intelectuais e as virtudes de
justiça, sendo que este último grupo reúne o necessário para a regulação da vida dos homens
em sociedade e em sua relação com Deus: o dever de se prestar culto a Deus, a forma de
convivência, a norma de presidir uma comunidade e a censura no julgar. SAN
BUENAVENTURA. Obras de San Buenaventura. Edición Bilingüe. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1947. Tomo III, p. 273-298.

112
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

que isso, reproduzidos e distribuídos31; escolas de pregação foram funda-


das; novas ordens eclesiásticas surgiram com o fito de se dedicar exclusiva-
mente a esse serviço32. Até o direito canônico precisou adequar-se a esta
realidade de religiosos itinerantes dedicados à pregação.
Ora, foi justamente enquanto pregador do palácio régio de Royau-
mont que Vicente se pôs a pensar a política e foi no ato da pregação que ele
ensinou os pressupostos do bom governo à corte de Luís IX. Seu tratado
sobre a educação do príncipe, como vimos, apresenta-se como um manual
de pregadores, e a proposta pedagógica que se desenrola pelo livro coincide
com os objetivos que um pregador pretendia alcançar: exortar, comover,
demover e convencer os ouvintes a mudarem seus costumes33.
É interessante notar que na mesma época em que, na França, Vicente
se propunha a escrever sobre os costumes dos que administravam a repúbli-
ca34, na Itália, homens como Albertano de Brescia35 (1195-1251) e Brunetto
Latini36 (1220-1295) apresentavam a política (ou a vida cívica) como pres-
suposto da vida feliz, a qual não podia existir sem a reforma moral de cada
cidadão: é uma inspiração sem dúvida latina, mas que recebe uma signifi-
cação cristã quando se acredita que ninguém pode ser um bom cidadão se
não for antes um homem de bem, isto é, bom pai, bom filho, bom marido,
bom amigo, bom irmão e, sobretudo, bom cristão. Nenhuma dessas quali-
dades era uma característica inata; ao contrário, era fruto de um empenho
ascético em que o homem, ajudado pela graça, procurava transformar-se
interior e exteriormente37.

31
D’Avray menciona o Repertorium de sermões latinos compostos entre 1150-1350 que J. B.
Schneyer e Hödl começaram a publicar na década de 1970 (Repertorium des lateinischen Sermones
des Mittelalters für die Zeit von 1150-1350) e que somam nove volumes, em 7.300 páginas. Como
apontado, a obra só se refere aos sermões escritos em latim, o que nos faz aumentar o prognóstico
se levarmos em conta os sermões escritos em línguas vernáculas. Cf. D’AVRAY, 1985, p. 1.
32
BOUGEROL, J. G. Les sermons dans les studia des mendiants. In: Le scuole degli Ordini
Mendicanti (secoli XIII-XIV). Convegno del Centro di Studi sulla Spiritualità Medievale, XVII,
11-14 ottobre 1976. Todi, 1978. p. 249-280.
33
Cf. BÉRIOU, 2002, p. 114.
34
VICENTE DE BEAUVAIS, 2007, p. 6: “Sobre o poder secular, pois, desejo escrever umas
poucas coisas que se referem aos costumes dos que governam a república.”
35
Autor do Liber Consolationis et Consilii, de 1246.
36
Penso sobretudo nos Livres dou Trésor, escritos em 1260.
37
Sobre o paradigma político italiano do século XIII e seus empréstimos da ética romana
(ciceroniana e senequiana, sobretudo) e da moral cristã, remeto o leitor para a importante
obra de VIROLI, Maurizio. Dalla politica alla ragion di Stato: la scienza del governo tra XIII e
XVII secolo. Roma: Donzelli Editore, 1994. p. 3-47.

113
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

Esses autores concebiam a cidadania como o produto de uma longa


empresa educativa que retirava o homem de sua condição naturalmente
inclinada aos vícios e o levava a um estágio superior em que as virtudes
seriam a régua das condutas, e, dessa forma, o bom estado da república
poderia ser uma realidade. Em Vicente de Beauvais isso é bastante patente:
como agostiniano que era, vislumbrava o Estado a partir de sua negativida-
de38. A origem do Estado e, por conseguinte, do domínio foi a depravação
da vontade que gerou nos primeiros homens uma ambição pelo poder (o que
tanto Agostinho, em seu A cidade de Deus, e Vicente de Beauvais, em seu
Sobre a educação moral do príncipe grafam como ambitio potestatis). Cada ho-
mem possui um defeito congênito na vontade da alma que faz com que ela
queira coisas ruins e erradas. O poder pode ser bom, mas se o governante
tiver uma vontade depravada, será um mau governante. A sociedade pode
ser boa, mas se as pessoas que a compõem, como células de um corpo,
tiverem uma vontade má, todo o corpo social será eivado de doenças. Ho-
mens desordenados formam uma sociedade desordenada e elegem um go-
vernante desordenado.
É exatamente aqui que o papel da pregação recobre uma função im-
periosamente política: ora, o pregador, mais do que um simples professor
ou educador, acreditava poder penetrar, pela arte da palavra e pela ação da
graça, na consciência de seu ouvinte. O objetivo é iluminar a consciência
para que veja seus erros e os conserte. Há, então, um duplo movimento: inte-
rior e exterior: o primeiro movimento é levar o ouvinte para dentro de si; o
segundo, fazê-lo voltar a agir segundo a consciência. Ora, fazer os homens
agirem segundo a lei da consciência é uma das atribuições que Vicente de
Beauvais confere ao ofício régio, e o explica detalhadamente em seu De mora-
lis principis institutione, enviado aos reis Luís IX e Teobaldo II de Navarra.
Segundo a interpretação que o frade faz dos termos de Agostinho, a
necessidade do ofício régio surgiu como consequência de um processo de
exteriorização do homem, acontecido desde os primórdios da história, a partir
do qual as pessoas encontram obstáculos para entrar em si mesmas, no
profundo da consciência, para discernir o bem do mal. É justamente na

38
Para uma fecunda discussão sobre os fundamentos políticos agostinianos, sobretudo em seu
diálogo com o pensamento político de Marco Túlio Cícero, remeto o leitor à obra de SILVA
FILHO, Luiz Marcos. A definição de populus n’A cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia
com Da republica de Cícero. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008. 205 p.

114
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

consciência que está escrita a lei natural [lex naturalis], isto é, aquela norma
de conduta que não depende de nenhum legislador humano, que não foi
escrita em qualquer código legal e nem definida por assembleias deliberati-
vas39. É uma lei inscrita na própria natureza racional do homem que lhe dá
[ou deveria dar] uma ideia imediata do bem e do mal; em outras palavras,
todo homem, pelo fato de ser uma alma racional [anima rationalis], é capaz
de distinguir o bem do mal ainda que ninguém venha a lhe dizer o que é
certo ou errado, ainda que viva isolado ou não tenha nenhuma instrução.
Vicente evoca o ponto de vista agostiniano sobre a lei natural, e, por isso,
convém entender os termos segundo o exposto por Agostinho; um bom
lugar para encontrarmos a exposição agostiniana sobre a lei natural é no
Comentário ao salmo 57; muito embora Vicente não o cite, é preciso citá-lo: a
lei natural refere-se àquele preceito de não fazer aos outros o que não se
quer que se lhe faça, algo que já era uma verdade moral muito antes de a
Bíblia ser escrita e, portanto, já conhecida pelos pensadores antigos. O mo-
tivo para que esse preceito tivesse de ser posto por escrito na Bíblia surgiu
exatamente por conta da incapacidade que o homem exterior [isto é, o ho-
mem após a Queda] tem de voltar para si mesmo. Isso porque, nas palavras
de Agostinho, o homem é um fugitivo do próprio coração40.
O exposto por Agostinho no comentário ao salmo vai ao encontro da
apresentação de Vicente, segundo a qual a necessidade de haver um gover-
nante decorre da necessidade de haver alguém que force os homens a entra-
rem nas próprias consciências: essa é, aliás, a marca do bom governante,
aquele que faculta ao governado ouvir a voz da consciência [respeitar a lei
natural] para agir corretamente. E ao agir assim, isto é, ao levar para o
âmbito político uma dimensão da vida espiritual, o governante se aproxi-
ma da função do pregador ou, nas palavras de Michel Foucault, da figura
emblemática do rei-pastor41.

39
Podemos acompanhar a discussão de Vicente em torno do problema da lei natural lendo o
capítulo V do De morali principis institutione, na edição citada, p. 46s.
40
S. AURELIUS AUGUSTINUS. Enarrationes in psalmos, In psalmum LVII enarratione. In:
MIGNE, J.-P. Patrologia latina. 1845. v. 36, tomo IV, p. 673: “Mas porque os homens quiseram
aquilo que está fora, eles se tornaram exilados de si mesmos e assim foi-lhes dada a lei escrita:
não que ela não estivesse escrita nos corações, mas porque tu eras um fugitivo de teu coração
[…]” [“Sed quia homines appetentes ea quae foris sunt, etiam a seipsis exsules facti sunt, data
est etiam conscripta lex: non quia in cordibus scripta non erat; sed quia tu fugitivus eras cordis
tui (…).”].
41
FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”: uma crítica da razão política”. In: DA MOTTA,
Manoel Barros (org.). Michel Foucault: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003. p. 355-385. (Coleção Ditos e Escritos, IV). A evocação do texto de Foucault

115
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

A associação política entre o ofício do pregador e o do rei não é aqui


um mero exercício exegético; no caso particular dos frades dominicanos,
inclusive dos franciscanos, tanto a pregação executa um mister cívico quan-
to o rei, uma obra espiritual. A questão da consciência apresenta-se, por-
tanto, ligada aos dois domínios. O caso régio já vimos; resta analisar o caso
da pregação. No entender dos frades, a pregação pública era o primeiro
passo para a confissão individual auricular, privada. O pregador, quando se
dirigia ao púlpito, era sempre acompanhado por confessores, isto é, um
grupo grande de padres (religiosos ou seculares) que estavam ali a postos
para colher o fruto da pregação em forma de confissão de pecados42. Quan-
to melhor a pregação, maior a fila do confessionário, pois a prédica é, no
dizer dos linguistas, palavra performática, isto é, dotada de efeitos, eficaz,
como nos ensinou Paul Zumthor43. Então, não é só no plano do discurso
que o pregador esperava entrar na consciência, mas efetivamente, por meio
da confissão, que justamente no século XIII se tornou uma lei canônica
obrigatória a todos os cristãos, ao menos uma vez ao ano44.
Na confissão, o penitente era exortado a abrir sua consciência ao con-
fessor, que completava o trabalho começado na pregação. Desse ponto de
vista, o binômio pregação-confissão refazia ritualmente o caminho oposto
à queda histórica do primeiro homem, descrito por Agostinho e repetido
por Vicente em termos de exteriorização: se o primeiro homem perdera a
condição de se governar a si mesmo, prescindindo do poder de um chefe, os
demais homens, filhos da Queda, poderiam recuperar, socialmente, a felici-

não é simples relação temática, pois Vicente de Beauvais, para construir seus argumentos em
torno do ofício régio, opõe, de maneira consistente, regnum e ecclesia, o primeiro governado por
poderosos soberanos que detinham a força pela força, a segunda governada por pastores, isto
é, por homens que usavam o critério do afeto e da mansidão. Em minha opinião, o governo
idealizado por Vicente depende do equilíbrio desses dois governos: o monárquico e o pastoral
e, como mostrarei a seguir, de uma ação bastante ambígua entre ambos os ofícios.
42
Os exemplos da presença de grande número de confessores a acompanhar pregadores, sobretudo
quando muito famosos, são bastante variados. Aqui quero apenas apontar para um deles, mais
ou menos contemporâneo a Vicente de Beauvais, relativo a santo Antônio, em sua pregação
quaresmal, em Pádua, no ano de 1231: “Não posso calar-me sobre como ele [Antônio] induzia
à confissão [dos pecados] a multidão de homens e mulheres a ponto de nem os frades e nem os
demais sacerdotes que o seguiam, em não pequeno número [non parva frequentia], serem
suficientes para ouvir as confissões”. In: GAMBOSO, Vergilio (ed.). Fonti agiografiche antoniane:
Vita Prima o “Assidua”. Padova: Edizioni Messaggero, 1995. v. 1, p. 344-346.
43
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
44
Refiro-me ao cânon 21 do Concílio Lateranense IV celebrado em Roma, em 1215, que tem
por título De confessione facienda et non revelanda a sacerdote et saltem in pascha communicando.

116
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

dade daquele momento originário interiorizando-se e fazendo-se obedien-


tes à palavra, já que o primeiro homem se exteriorizara quando deixou de
ouvir a Verbum dentro de si mesmo.
No fundo, a proposta vicentina repisa o velho tema eclesiástico que
propunha o uso da máquina do Estado para consertar os desmandos mo-
rais dos homens e colaborar com a efetiva recuperação do gênero humano.
Os reis certamente não poderiam ouvir confissões e, ainda que pudessem,
não seriam capazes de fazer isso com todos. Mas os reis podiam dotar seus
reinos de muitos pregadores e confessores, podiam sustentá-los ou criar
estruturas eclesiais capazes de transmitir a auctoritas que pertencia à Igreja
por meio da potestas que lhes era comum.
Esse procedimento, aliás, decorre da argumentação lógica do tratado
vicentino: fiel às teses agostinianas, Vicente afirmava que o grande fruto do
pecado foi fazer o homem deixar de ouvir a própria consciência; a exterio-
ridade impede o homem de ver-se como ele é [ou devia ser], leva-o a ver em
si mesmo aquilo que não lhe pertence: ser rei não é próprio do homem,
pelo menos não do homem em estado de graça; ser rico e ter prestígio tam-
bém não são atributos próprios dele: próprio do homem é a sua interiorida-
de. Portanto, a monarquia, ainda que tenha sido um mecanismo providen-
cial de reversão das consequências do pecado, não pertence à natureza ori-
ginal do gênero humano e, nesse sentido, é limitada ao tempo e ao espaço.
A ela convém apenas a potestas, isto é, o poder entendido como aquela ope-
ração coercitiva que visa ordenar a sociedade segundo os critérios interio-
res. E o que podia ser mais interior ao homem do que aquele núcleo fun-
dante da razão humana? Lá habita a auctoritas, isto é, a virtude do princípio
incorrupto e intocado pela exterioridade. Se a potestas nasceu de uma ambi-
ção desordenada pelo poder, isto é, do desejo de mandar e de ser obedeci-
do, sentimento posterior à criação do homem, a auctoritas, como princípio
fundante, precede a queda e, portanto, está imune à ambição [ambitio-cupi-
ditas] porque revestida de amor [caritas]45.
Se a autoridade sobrepõe-se ao poder é porque está ligada ao princí-
pio incorrupto que ama a própria consciência, enquanto o poder nasceu da
transitoriedade [do movimento de saída de si]. Assim, o poder dos reis pre-
cisa estar a serviço da autoridade da Igreja, sociedade nascida da caridade

45
Vicente de Beauvais explora as várias dimensões envolvidas em sua conceitualização de ambitio/
cupiditas e charitas/amor entre os capítulos II e III de seu De morali principis institutione.

117
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

de Cristo. Se a autoridade está na Igreja, cabe a ela restaurar a ordem tem-


poral, isto é, ajudar os reis a cumprirem seu papel. Se a autoridade está na
Igreja, enquanto sociedade fundada no movimento da charitas, então é ela a
principal agente da restauração da política: esse é um dos argumentos sus-
tentados pelos frades mendicantes para se espalharem por todas as cidades
e castelos e agirem diretamente sobre a sociedade, do menor dos cidadãos
ao maior dos governantes, pois era preciso conceder ao mundo a presença
de muitos pregadores e confessores.

Iacopo de Varazze e o de bono statu civitatis


Na Península italiana, os dominicanos também foram muito ativos
nos espaços públicos, como as cidades, e Iacopo de Varazze é um exemplo
desse empenho46. Antes de ter sido escolhido arcebispo de Gênova, em 1292,
Iacopo foi prior provincial da Lombardia, em 1267, permanecendo no car-
go até 1286. Por cerca de dois anos, atuou como regente geral de sua Or-
dem até que os capitulares elegeram o substituto de João de Vercelli, morto
durante o mandato. Em 1288, Iacopo foi encarregado de uma missão jurí-
dica importante: absolver da excomunhão os cidadãos genoveses que man-
tiveram relações comerciais com os sicilianos, que também haviam sido
excomungados.
Mas não resta dúvida de que a mais evidente ação política exercida
por Iacopo foi ter assumido a função arquiepiscopal em Gênova. Além de
ter gasto boa parte de seus últimos anos de vida para a reforma do clero e a
estabilidade de sua igreja e do poder do arcebispo em uma cidade comunal,
Iacopo envolveu-se na pacificação dos partidos rampini (guelfo) e mascherati
(gibelino), que se digladiavam continuamente, e na pacificação entre Gêno-
va e Veneza. Mas, em minha opinião, a contribuição política de Iacopo é
mais bem sentida na crônica de Gênova que começou a escrever em 1295.
Trata-se da história da cidade, desde sua fundação até a vida do autor. Essa
crônica está inserida no gênero literário historiográfico, mas, ao mesmo

46
Podem-se encontrar boas referências da história dos frades pregadores na Itália do século XIII
na obra de THOMPSON, Augustine. Revival Preachers and Politics in Thirteenth-Century Italy:
The Great Devotion of 1233. Oxford: Clarendon, 1992. Quanto à biografia de Iacopo, sugiro
o texto “Iacopo da Varazze”, escrito por Carla Casagrande para o Dizionario biografico degli
italiani, v. 62, 2004, publicado na versão digital da Enciclopedia Treccani: <http://www.treccani.it/
enciclopedia/iacopo-da-varazze_(Dizionario_Biografico)/>. Acesso em: 10 nov. 2012.

118
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

tempo, é também parte de outro gênero, o elogio das cidades (laus civita-
tum): é um panfleto de propaganda patriótica e, mais do que isso, um pan-
fleto de propaganda da moral e da política que os frades dominicanos espe-
ravam implantar nas cidades.
Isso fica visível, por exemplo, no fato de Iacopo ter reservado quatro
das doze partes para discorrer sobre a educação política do governante da
cidade e do cidadão47. A maneira com que o cronista apresenta seus argu-
mentos indica um encadeamento argumentativo muito próximo aos temas
da pregação dominicana. A proximidade é grande, e Carla Casagrande e
Silvana Vecchio chegam a chamar a crônica de Iacopo de “história do púl-
pito”48, pois seu autor, ao redigir a obra, uniu num só discurso o campo da
historiografia e o campo da pregação, isto é, tornou a atividade historiográ-
fica ocasião de prédica.
Em se tratando de um dominicano, isso não é de se estranhar, mas o
assunto ainda se reforça se levarmos em conta que Iacopo é também arce-
bispo de Gênova. É enquanto pastor de uma cidade que Iacopo se põe a
resgatar a história da fundação, do desenvolvimento e da grandeza de Gê-
nova. Curiosamente, ele concedeu pouco espaço ao papel dos dominicanos
na história da cidade, mas reservou as últimas duas partes da crônica para
narrar a importância histórica da sucessão episcopal, da qual fez parte. Para
mim, o nenhum destaque dado aos frades em nada diminui a perspectiva
que viemos apresentando, só aumenta o alcance político citadino do cargo
que o frade veio a ocupar.
Ora, o encontro de Gênova, uma rica cidade comercial, e de Iacopo,
um frade mendicante, é bastante curioso e, dada a especificidade do acon-
tecimento, merece a atenção do historiador. Em fins do século XIII, a cida-
de de Gênova estava marcada por um grande contraste social: ao mesmo
tempo em que era a cabeça de um império mercantil e naval que pratica-
mente atravessava o Mediterrâneo de ponta a ponta, possuindo uma eco-
nomia dinâmica, mostrava, no entanto, uma estrutura política muito débil,
oscilando entre a busca por independência e o recurso ao apoio militar
estrangeiro; as contradições políticas genovesas podem ser observadas nas
improvisações dos sistemas de governo que se sucedem: comuna de cônsu-

47
MONLEONE, G. (ed.). Iacopo da Varagine e la sua Cronaca di Genova dalle origini al MCCXCVII.
Roma, 1941. 3 v.
48
CASAGRANDE, C.; VECCHIO, S. Cronache, morale, predicazione: Salimbene da Parma e
Jacopo da Varagine. Studi Medievali, v. 30, n. 2, p. 749-788, p. 749, 1989.

119
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

les, comuna de podestà, comuna de capitães do povo, diarquia: tudo isso em


menos de um século. Uma das razões para essa instabilidade sociopolítica
pode ser encontrada no talvez maior contraste da Gênova no século XIII:
instituições políticas mal geridas e organizações econômicas bem adminis-
tradas por aquilo que chamaríamos hoje de iniciativa privada, isto é, um
pequeno número de famílias riquíssimas que conseguiam estabelecer uma
imensa rede de clientela com homens estrategicamente situados nos mais
diversos polos da economia mediterrânea, inclusive cidades portuárias do
Mar Negro e Mar Cáspio. Nas palavras de Giovanna Petti Balbi, essa difícil
combinação de “desordem política e florescimento econômico” contribuía
para o aumento da “gestão individualista dos recursos e do poder dentro e
fora da cidade”49.
Em meio a esses desafios, a eleição episcopal de Iacopo de Varazze
só veio acentuar ainda mais os desníveis: afinal, ele era um frade mendican-
te, não um membro do tradicional clero secular que costumava controlar o
acesso a cátedra episcopal aqueles que pertenciam à rede aristocrática coli-
gada ao cabido diocesano: mesmo que, em Gênova, os bispos não detives-
sem poderes civis públicos, como acontecia em Milão e outras cidades, o
arcebispo de Gênova exercia forte influência na política citadina por meio
da clientela vassálica ligada a ele e pelo considerável patrimônio predial que
o bispado possuía e que era usado como margem de manobra nos equilíbrios
internos. Numa cidade plutocrática50, a ascensão de um mendicante ao posto
de arcebispo não deixa de ser chocante, isso porque Iacopo não era qualquer
frade mendicante, mas adepto daquela postura que podemos considerar rigo-
rista, visível na plataforma de governo do sétimo mestre geral da Ordem, o
frade Munio de Zamora51 (1237-1300), cuja eleição (em 1285) contou com o
apoio de Iacopo, contrariando, inclusive, a vontade do papa.
Pela leitura da Crônica da cidade de Gênova, não encontramos uma
reprimenda por parte de Iacopo à grandeza ou riqueza da cidade, nem mes-
mo qualquer ressalva ao poderio militar e marítimo que tantas vezes levara
os pisanos e venezianos à derrota. Ao contrário, Iacopo é uma das vozes a

49
BALBI, Giovanna Petti. Governare la città: pratiche sociali e linguaggi politici a Genova in età
medievale. Florença: Firenze University Press, 2007. p. 129.
50
BOUREAU, Alain. Le Prêcheur et les marchands: ordre divin et désordres du siècle dans la
Chronique de Gênes de Jacque de Voragine (1297). Médiévales, v. 4, p. 102-122, p. 104, 1983.
51
JOSEPH DA NATIVIDADE. Agiologio Dominico, que consta das vidas dos santos, beatos, martyres,
e outras pessoas veneraveis da Ordem dos Pregadores, por todos os dias do anno. Lisboa: Officina
Alvarense, 1748. tomo V, p. 369.

120
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

endossar o estereótipo de Gênova como cidade rica e poderosa; porém,


consoante ao espírito ético defendido pelos dominicanos e visível nas ideias
econômicas que professavam, não podemos ignorar que, por trás do elogio
da cidade, na época de sua perfeição52, Iacopo vislumbrava motivos de re-
provação, principalmente porque o enriquecimento de famílias poderosas
causava (ou poderia causar) o desinteresse pelo bonum commune, a fraqueza
moral, o orgulho, etc.
É nesse ponto que se pode aproximar a Crônica citadina, de Iacopo de
Varazze, ao Espelho de príncipe, de Vicente de Beauvais: em primeiro lugar,
porque também ele escrevera sua obra para a instrução moral e educação
política dos cidadãos, fazendo da história lição de vida; em segundo lugar,
Iacopo igualmente interpreta o estatuto político da cidade pelo viés da ne-
gatividade do poder, e, em terceiro lugar, porque o poder [potestas], distinto,
mais uma vez, da autoridade [auctoritas], possui sua origem na ambição ou,
no que dá no mesmo, na cupidez53. Tanto é que Iacopo começa a Crônica de
Gênova pela narração da fundação da primeira cidade, segundo o relato do
livro de Gênesis54.
Ora, a cidade histórica, construída no tempo, tem a Caim por seu
fundador; é uma cidade fundada por um homicida e é, por isso, a deturpa-
ção da cidade dos anjos. Caim é ladrão, invejoso e assassino, toma para si o
que não lhe pertence: a rapina é a prova mais contundente da falta de or-
dem e, portanto, de paz. E, mesmo depois do dilúvio, as cidades históricas
não melhoraram de situação, pois Nemroth, descendente de Noé, usurpou
o poder para si, o que prova que também tinha uma perversão interior;
como rei, Nemroth tornou-se tirânico, pervertendo todo o seu reino. A ques-
tão, mais uma vez, recai sobre a perversão da lei natural: não adorar a Deus
e trocar a glória de Deus pela glória do homem: fruto de Nemroth é a Babi-
lônia, cidade nascida de uma ambitio potestatis, a cupiditas que destrói a cha-

52
Iacopo de Varazze organiza sua narrativa em partes organicamente dispostas: a história de
Gênova é descrita segundo o processo de desenvolvimento biológico: nascimento, crescimento,
amadurecimento, etc. Porém, o autor considera que a cidade, mesmo em suas fases iniciais,
quando era ainda uma “parva terra”, possuía uma grandeza evidente, e isso no estado de sua
origem [in statu sue inchoationis], no estado de seu progresso [in statu sue progressionis] e, por fim,
no estado de sua perfeição [in statu sue perfectionis], isto é, o tempo em que vivia Iacopo. Cf.
IACOPO DA VARAGINE, 1995, p. 79 (da tradução italiana) ou p. 339 (do texto latino).
53
Como procurarei mostrar a seguir, Iacopo de Varazze inicia o quarto capítulo da sétima parte,
exatamente aquela em que discorre sobre a educação política dos governantes.
54
Cf. IACOPO DA VARAGINE, 1995, p. 81-82 (da tradução italiana) e p. 340-341 (do texto
latino).

121
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

ritas divina nos corações. São referências já conhecidas e que, de alguma


forma, compunham o arsenal argumentativo dos frades pregadores; não
vem ao caso, nesse estudo, investigar as relações intertextuais entre Iacopo
de Varazze e Vicente de Beauvais, até porque, como cremos, entre os dois
estão uma variedade generosa de leituras comuns e autoridades partilha-
das: no entanto, há que se ressaltar a coincidência temática que faz da cupi-
dez a origem dos males sociais.
A história de Gênova, que Iacopo procurou escrever, apresentava bem
o exemplo de como a cidade, nascida do pecado, corria sempre o risco de
voltar à sua situação primeva. Ao enumerar os pontos que considerava im-
portantes na educação política dos governantes, Iacopo reservou um bom
espaço para relacionar a narrativa da cidade de Caim e do reino de Nemroth
à cidade de Gênova: “Que os juízes e governantes devem odiar toda avare-
za e cupidez […], porque os governantes e juízes avaros pervertem os julga-
mentos, roubam os bens alheios e não cuidam da coisa pública. […].”55 Des-
se modo, todo o capítulo quarto da sétima parte segue argumentando con-
tra a avareza dos líderes políticos e expondo os males daí resultantes. Tal
discussão, como creio, pode ser vista pela tópica da exortação moralizante,
mas, aqui, penso que devemos levar mais a sério a situação de Gênova no
instante mesmo em que o cronista redigia sua obra. Escolhi deliberada-
mente traduzir por “coisa pública” o termo latino res publica, empregado na
citação. Não que outras traduções não pudessem ser úteis nesse contexto;
Stefania B. Guidetti, por exemplo, traduziu por “estado”, no sentido políti-
co56. Optei por empregar a expressão coisa pública para contrastar o juízo de
Iacopo com aquela situação, já discutida por Giovanna P. Balbi, de gestão
individualista dos recursos: o governante avaro, isto é, tomado pela cupidi-
tas, não é capaz de antepor o interesse público da cidade ao interesse priva-
do de seus negócios ou de sua família. Essa afirmação condiz com o dito
por Iacopo mais à frente: “os juízes e reitores não cuidam da coisa pública
[re publica], mas apenas de suas próprias coisas [de re propria]”. Vemos, en-
tão, que, consoante o exposto, entre respublica e respropria existe a mesma
distância e, portanto, o mesmo problema que existe entre bonum commune e
bonum privatum: o governo legítimo só pode partir da forte ideia do bem
comum que, é fruto, como vimos, de uma disposição interior ao sujeito que

55
Ibid., p. 170 (da tradução italiana) e p. 400 (do texto latino) – grifo meu.
56
Ibid., p. 170.

122
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

governa na medida em que reverte, dentro de si, aquele ímpeto que levou
Caim a matar seu irmão para roubar-lhe o reconhecimento divino; no fun-
do, a questão continua a mesma que Vicente de Beauvais tentou resolver:
Caim deixou de querer o bem de todos e passou a querer o próprio bem,
tomando para si o que pertencia ao seu irmão.
E se o problema de Gênova, no fim do século XIII, era mesmo o
descompasso entre uma administração voltada para o interesse público e a
ambição particularista de enriquecimento privado, Iacopo, como arcebis-
po, tratou de dar sua colaboração para trazer (ou instaurar) o sentido do
público na cidade: como ele mesmo narrou no último capítulo da Crônica,
tomou uma série de medidas para consolidar seu episcopado, como o con-
cílio provincial convocado em 1293 e, mais particularmente, a cerimônia
para o reconhecimento das relíquias de São Siro, enterradas na igreja de
São Lourenço, em Gênova. Ora, esse episódio não é apenas um ato eclesi-
ástico qualquer. Segundo a dinâmica própria a muitas cidades do período
dito medieval, os corpos dos santos exerciam uma função política de pri-
meira importância, como vimos no início do texto, em Bonvesin de la Riva;
o reconhecimento das relíquias deu ao arcebispo a oportunidade de reunir,
além dos bispos sufragâneos da província, todas as autoridades políticas de
Gênova [“o podestà, o capitão, o abade do povo e muitos outros nobres da
cidade de Gênova”57], mostrando assim o papel cívico que o arcebispo pode
vir a exercer. Como se não bastasse a oportunidade do reconhecimento,
Iacopo, dias depois, apresentou essas relíquias a toda a população genove-
sa, que, desde então, contou com mais um veículo de culto. Se esta minha
leitura fizer algum sentido, talvez possamos ver nesse episódio a busca (ou
ao menos o indício de uma busca) de um ponto suficientemente forte, in-
questionável e acima de qualquer partidarismo que pudesse chamar a aten-
ção dos governantes e dos citadinos para aquilo que Iacopo, como arcebis-
po, considerava oportuno numa cidade verdadeiramente cristã: as relíquias
de São Siro poderiam representar um ponto de convergência necessária
para uma cidade orgulhosa de sua riqueza superar a vaidade e a soberba.
Este é apenas um simples exemplo de como os temas desenvolvidos
na Crônica de Gênova se relacionam com os temas próprios da pregação do-
minicana; quanto a isso, não devemos deixar de lado o cômputo que Alain

57
Ibid., p. 328-329 (da tradução italiana) e p. 500-501 (do texto latino).

123
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

Boureau apresenta58: Iacopo empregou, na Crônica, 167 citações de outras


obras suas, sendo que 17 dos sermões De Sanctis, 83 dos sermões De Tempore
e 18 dos sermões De Quadragesima, ou seja, são 118 citações de suas própri-
as prédicas, num total de 167 autorreferências. Encontramos aqui o mesmo
poder regenerador da pregação e sua função política: Iacopo espera mos-
trar, pela narração da história, que há esperança para a cidade, desde que
cada cidadão, a começar pelos que ocupam cargos públicos, deixe-se trans-
formar pela caridade, em outras palavras, desde que seja educado para vi-
ver politicamente.

Conclusão
Como fechamento das minhas considerações sobre a educação polí-
tica em Vicente de Beauvais e Iacopo de Varazze, gostaria, mais uma vez,
de chamar a atenção para o significado político da pregação: ora, muito
facilmente nos contentamos em pensar que a pregação é uma atividade
clerical, ligada a um espaço religioso, estritamente litúrgico, relativa a mo-
tivos de ordem bíblica, moral e espiritual. Se pensamos assim, talvez nos
surpreenda saber que, no séc. XIII, vários governadores citadinos, notários
públicos e juízes foram também pregadores, como é o caso do já citado
Albertano de Bréscia59. A meu ver, não podemos ver nisso só uma expres-
são daquele ímpeto de espiritualidade que, nos sécs. XII e XIII, provocou o
surgimento de muitas comunidades predicantes, como os valdenses e hu-
milhados, pois os governantes de cidades não pertenciam a esse tipo de
agremiação.
Quanto a isso, não podemos perder de vista que a experiência políti-
ca ocidental é devedora dos paradigmas greco-romanos, segundo os quais a
virtude e o discurso fazem o cidadão e constroem a cidade. É fato que a
historiografia tradicional acentuou o fracasso da oratória cívica no medie-
vo latino, mostrando que a oratória sacra roubou o espaço do discurso po-
lítico propriamente dito. Ora, essa é uma meia verdade: não nego que a
oratória sacra, a partir de Agostinho e Gregório Magno, tenha assumido

58
BOUREAU, 1983, p. 106.
59
ARTIFONI, Enrico. Gli uomini dell’assemblea: l’oratoria civile, i concionatori e i predicatori
nella società comunale. In: Etica e política: le teorie dei frati mendicanti nel Due e Trecento.
Atti del XXVI Convegno internazionale. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo,
1999. p. 141-188.

124
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

uma função social muito mais evidente; mas questiono a crença de que o
sermão não seja, concretamente falando, uma expressão da palavra públi-
ca, com valor e finalidade política.
Em primeiro lugar, porque, como acabo de citar, a oratória latina,
visível, por exemplo, em Cícero, supõe que o discurso não seja só atividade
técnica, verbal, mas, além disso, moral: o que está em jogo é, mediante a
palavra pública, a gestação do homem de bem que edifica a cidade por
meio da virtude. No séc. XIII, Brunetto Latini, que muitos historiadores
tomam como maior expoente de um pensamento cívico laico, foi elogiado
por Giovanni Villani (1280-1348) por ter sido um grande filósofo, professor
de oratória, tendo apresentado aos florentinos a Retórica de Túlio e escrito
muitos livros sobre os vícios e as virtudes; Villani também o louva por ter
sido “o iniciador e mestre no refinar os florentinos e fazê-los peritos no bem
falar e em saber guiar e reger nossa república segundo a Política”60. Perce-
bemos, então, que o sentido da oratória cívica é tão moralizador quanto o
sentido da pregação, e que faz parte da ação política o domínio das formas
de discurso.
Em segundo lugar, porque a pregação não é um mero instrumento de
divulgação dos ensinamentos doutrinários: ao contrário, durante o medie-
vo latino, a pregação era um importante canal de mediação entre aspectos
da vida social os mais diversos, dando coesão e sentido a experiências espi-
rituais e políticas que eram partilhadas comunitariamente. Tanto quanto a
retórica cívica de Brunetto, a pregação esperava edificar a comunidade, cujos
fundamentos não eram só religiosos, mas também políticos. Por isso, gosto
muito da expressão de Laura Gaffuri que chama a pregação medieval de
“espelho dos valores da sociedade”61; a partir da leitura de Vicente de Beau-

60
GIOVANNI VILLANI, Nuova Cronica, libro IX, cap. X, ap. BRUNETTO LATINI. Tresor. A
cura di Pietro Beltrami, Paolo Squillacioti, Plinio Torri e Sergio Vatteroni. Testo a fronte.
Torino: Giulio Einaudi, 2007. p. IX: “Nel detto anno 1294 morì in Firenze uno valente cittadino
il quale ebbe nome ser Brunetto Latini, il quale fu gran filosafo, e fue sommo maestro in
rettorica, tanto in bene sapere dire come in bene dittare. E fu quegli che spuose la Rettorica di
Tulio, e fece il buono e utile libro detto Tesoro, e il Tesoretto, e la Chiave del Tesoro, e più altri
libri in filosofia, e de vizi e di virtù, e fu dittatore del nostro Comune. Fu mondano uomo, ma
di lui avemo fatta menzione però ch’egli fue cominciatore e maestro in digrossare i Fiorentini,
e farli scorti in bene parlare, e in sapere guidare e reggere la nostra repubblica secondo la
Politica.” [Grifos nossos].
61
GAFFURI, Laura; QUINTO, Riccardo (org.). Presentazione. In: Predicazione e società nel
Medioevo: riflessione etica, valori e modelli di comportamento. Atti/Proceedings of the XII
Medieval Sermon Studies Symposium. Padova: Centro Studi Antoniani, 2002. p. I-XII. p. IX.

125
MIATELLO, André Luis Pereira • Cultura letrada, pregação e educação política no século XIII

vais e Iacopo de Varazze, podemos acrescentar que a pregação se tornou


uma das principais formas de educação política, pois, desde um tratado
político a uma crônica citadina, os frades dominicanos não se esqueceram
da sua verdadeira natureza: pregar e converter. Tanto em França quanto
nas cidades comunais italianas, a pregação assumiu um lugar de destacado
valor político e, por isso, sua presença era tanto mais sentida quanto maior
fosse a crise social. Vicente de Beauvais e Iacopo de Varazze, cada qual a
seu modo, usaram da prédica para gestar o cidadão e o governante cristão
projetando sobre ambos as preceptivas éticas da penitência que a Ordem
dominicana tanto postulava.

126
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

As questões de gênero em uma crônica


dominicana do século XIII: O Libellus
de Principiis Ordinis Praedicatorum e os
modelos de masculino e feminino

Carolina Coelho Fortes1

O Libellus de Principiis Ordinis Praedicatorum tem um papel central nos


escritos posteriores da Ordem dos Pregadores, em especial no que tange à
construção do modelo de santidade de Domingos. Pretendemos, neste traba-
lho, analisar as construções de gênero presentes neste documento. Nossa in-
tenção é iniciar, com esta análise, uma pesquisa mais ampla que visa verificar
os papéis de gênero dentro da ótica dominicana, que contribuiriam para sua
relação com as casas femininas que pretendiam se atrelar à Ordem.
Partimos de uma ideia, no mínimo, problemática: as articulações entre
modelos e realidades concretas, o que nos leva à pergunta: que relação há
entre a construção de ideais de comportamento, tangíveis nos textos a que
temos acesso, e as atitudes concernentes aos grupos de carne e osso que
esses ideais pretendem regular? Ou seja, os modelos de masculino e femini-
no estabelecidos pelos dominicanos estariam vinculados diretamente ao
seu contumaz repúdio à afiliação de casas de mulheres ao longo do século
XIII? Aqui ainda não chegaremos à resposta para esta questão, mas insisti-
remos na pergunta para podermos refletir sobre ela.
Há outro problema que nos move: é possível trabalhar com a catego-
ria gênero quando no texto que escolhemos para análise não há nenhuma
referência explícita a masculinidade ou feminilidade? Para essa pergunta
temos uma resposta de pronto, e ela é afirmativa. Como a categoria gênero
prioriza o caráter relacional entre mulheres e homens, podendo ser enten-
dido como a organização social da relação entre os sexos,2 e esta relação

1
Universidade Gama Filho.
2
SCOTT, J. W. El género: una categoria util para el analisis histórico. In: AMELANG, James;
NASH, Mary (eds.). História y género: las mujeres en la Europa moderna y contemporanea.
Valencia: Alfons el Magnanim, 1990.

127
FORTES, Carolina Coelho • As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII

está presente no relato que estudaremos, é lícito afirmar que o conceito é


aplicável neste caso. Desta forma, a compreensão dos sexos não se dá pelo
estudo dos dois separadamente, ou seja, mulheres e homens são definidos
em termos recíprocos, e nenhuma compreensão destes seria possível se fos-
sem estudados em separado.
Para Joan Scott, gênero como categoria de análise se baseia na rela-
ção entre duas proposições: “Gênero tanto é um elemento constitutivo das
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quan-
to uma maneira primária de significar relações de poder.”3 Enquanto a pri-
meira proposição se refere ao “processo de construção das relações de gê-
nero” e sublinha a importância “dos procedimentos de diferenciação pelos
quais, em cada contexto histórico, são formuladas e reformuladas, em ter-
mos dicotômicos, os conteúdos aparentemente fixos e coerentes do mascu-
lino e do feminino”,4 a segunda proposição se refere à pertinência do gêne-
ro como categoria de compreensão e explicação histórica de outras rela-
ções de poder. O aspecto essencial do gênero formulado por Scott é expor
as estratégias de dominação que sustentam a construção binária da diferen-
ça entre os dois sexos.
Sendo uma forma primária de significar relações de poder, o que an-
tevemos do documento que temos em mãos em relação ao gênero é uma
supremacia do masculino. Os personagens citados são praticamente todos
homens, não sendo as mulheres, quando aparecem, sequer nomeadas. Já
disso concluímos que a Ordem dos Pregadores é fundada por homens e
para homens. As mulheres, no longo século XIII, ocupam, quando muito,
um lugar marginal entre os dominicanos. No Libellus, portanto, vemos uma
Ordem com raízes profundas no masculino. Mas que masculino seria esse?
Antes de nos determos na análise que possibilitará a resposta para
esta questão, é necessário que digamos algumas palavras a respeito do do-
cumento sobre o qual esta repousa. O Libellus de Principiis Ordinis Praedicato-
rum, um relato sobre a vida de Domingos e dos primeiros frades composto
pelo segundo mestre geral, Jordão da Saxônia, é o primeiro documento
escrito sobre Domingos, entre 1231 e 1234, esta última a data de canoniza-
ção do fundador. Embora possa ser classificada como uma hagiografia, esta

3
Cf. VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-
Scott. Cadernos Pagu, n. 3, 1994, p. 67, e SCOTT, 1990.
4
VARIKAS, 1994.

128
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

obra se assemelha muito mais, em seu conteúdo e estilo, a uma crônica, já


que Jordão aponta com precisão todas as datas e eventos marcantes para
Domingos e a Ordem.
Podemos encontrar seu objetivo ainda no prólogo: Jordão estaria aten-
dendo aos apelos dos frades “desejosos de saber como teve origem a ordem
dos pregadores”.5 Passados dez anos da morte de seu pretenso fundador,6
os novos frades buscavam as raízes para melhor compreender sua missão.
Jordão já vê Domingos como santo, sendo suas qualidades suficientes para
tal. Há toda uma discussão sobre a possível pretensão da obra, tendo al-
guns estudiosos visto o Libellus como um preâmbulo para a abertura do
processo de canonização do fundador.7 Concordamos com estes estudiosos,
o que nos leva a defender que, apesar de ser prioritariamente uma crônica, ali
Jordão se esforça em estabelecer quais são os papéis e atributos adequados
aos grandes homens que deram origem à Ordem que ele governa.
Lancemo-nos a uma análise mais geral da obra, para só posterior-
mente nos determos em algumas passagens. Dos 94 capítulos analisados,8
em apenas 12 são mencionadas mulheres. Como apontamos antes, nenhu-
ma delas é nomeada, com exceção da Virgem Maria. Em apenas dois ca-
sos, essas mulheres falam e, em ambos, desempenham atitudes caracteriza-
das como pecaminosas. Já os homens são nomeados, descritos e estão inva-
riavelmente vinculados a comportamentos virtuosos. Os papéis e funções
que lhes são mais frequentemente conferidos são a inteligência, a fala elo-
quente, a pureza/virgindade, a prudência e o renome. Há, ainda, duas pas-
sagens em que se dá a inversão de gênero, ou seja, os homens são feminili-
zados.
Não poderemos aqui nos deter em uma análise minuciosa do texto,
por isso foram escolhidas quatro passagens consideradas mais representati-
vas para a construção dos modelos de feminino e masculino: os dois relatos

5
Ibid., p. 31.
6
Embora dê relativo relevo à figura de Domingos, o Libellus também se estende a respeito de
Diego de Osma, superior de Domingos naquela diocese ibérica, e motivador da missão de
pregação no Languedoc, onde chegou a fundar o que seria considerada a primeira casa da
Ordem, Santa Maria de Prouille.
7
Essa discussão é resumida em GELABERT, M.; MILAGRO, J.; GARGANTA, J. (eds.). Santo
Domingo de Guzmán visto por sus contemporâneos. Madri: BAC, 1947. p. 153, embora a ela tenham
adicionado argumentos, por exemplo, CANETTI, Luigi. L’Invenzione della memória: il culto e
l’imagine di Domenico nella storia dei primi frati Predicatori. Spoleto: Centro Italiano di Studi
Sull’Alto Medioevo, 1996. p. 215.
8
Ao todo, a obra é composta de 120 capítulos, mas não analisamos os relatos de milagres.

129
FORTES, Carolina Coelho • As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII

que envolvem feminilização, a descrição do frade Henrique de Colônia e a


morte de Domingos. No primeiro relato de inversão de gênero, os anos de
estudo de Domingos são o contexto. Jordão afirma que o fundador apren-
dia com muita facilidade por conta de sua inteligência:
O Deus do saber, vendo com que fervoroso afeto Domingos aceitava os
mandamentos e com que devoção e boa vontade acolhia a doce voz do Es-
poso, concedeu-lhe o dom de estar apto não só a beber o leite, mas a pene-
trar com a inteligência de um coração humilde o arcano das mais difíceis
questões e de digerir com suficiente facilidade a aspereza de um alimento
mais sólido (Cap. VII).

Assim, nesse trecho temos que Domingos é a noiva de Cristo, pois


acolhia com devoção e boa vontade a “voz do Esposo”. Ainda que esteja-
mos diante do uso simbólico de uma imagem bíblica, prática largamente
difundida nos escritos eclesiásticos medievais, essa referência não é inocen-
te, não está livre de significados de gênero. Entendemos que a feminiliza-
ção de Domingos só é possível dentro de circunstâncias absolutamente
masculinizadas, como ocorre nessa passagem que trata de forma bastante
objetiva dos seus estudos liberais e posteriormente teológicos, nos quais sua
inteligência permitiu que avançasse.
Veremos que o segundo caso de inversão de gênero segue uma linha
semelhante. Desta vez Jordão descreve a trajetória de Reginaldo de Saint-
Aignant, “homem muito conhecido, douto e ilustre pelos postos ocupados;
entre outros havia ocupado por cinco anos a cátedra de Direito Canônico
em Paris” (cap. LVI). Sua narrativa dá atenção especial a Reginaldo. Sua
entrada na Ordem é descrita em algum detalhe e, em dado momento, Regi-
naldo é dito ser um novo Elias, pelo fervor e eficácia de sua pregação. Rela-
tando a transferência de Reginaldo de Bolonha para Paris, Jordão escreve:
A ida de Reginaldo para Paris não se dá sem grande desolação daqueles
filhos que ele recentemente havia gerado para Cristo mediante a palavra do
Evangelho; que choravam por terem sido separados tão cedo do seio da
piedosa mãe (Cap. LXI).

Reginaldo é a mãe que gerou filhos com Cristo por intermédio da


pregação. Seus filhos lhe são retirados com sua partida e por isso sofrem. É
uma cena comovente, porque se identifica explicitamente com a materni-
dade. Novamente a feminilização se dá em um contexto de intensa mascu-
linidade: além das referências à inteligência de Reginaldo, este ainda é um
proficiente pregador, e mais, mestre da universidade de Paris! Sua masculi-
nidade está acima de toda prova. Os exemplos de Domingos e Reginaldo

130
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

são tão poderosos aos olhos de Jordão que estes podem desempenhar não
só papéis masculinos, mas igualmente os femininos.
Uma parte considerável do Libellus é dedicada a Henrique de Colô-
nia, grande amigo de Jordão. Este não nos deixa dúvida alguma sobre a
profunda afeição e imensa admiração que tem pelo companheiro, a ponto
de dedicar-lhe 19 capítulos da obra. Podemos afirmar que Jordão vê em
Henrique o ideal de homem, pois o descreve com mais detalhes até do que
o próprio Domingos:
Ele era pronto à obediência, constante na paciência, sempre sereno na sua
doçura, amável na sua alegria, generoso na sua caridade. Não lhe faltava a
honestidade dos costumes, a sinceridade de coração e a integridade virginal
da carne, porque por toda a vida nunca olhou ou tocou mulher com inten-
ções impudicas. Era modesto no falar, tinha língua eloquente, mente pene-
trante, agradável continência, bela aparência; tinha habilidade com a escri-
ta, perícia na dicção e uma melodiosa voz de anjo. Nunca foi visto triste ou
perturbado, mas estava sempre calmo e alegre. A moderação o libertara dos
rigores da austeridade e a misericórdia o reivindicou para si. Ele era tão
amável com todos e conseguia tão facilmente conquistar os corações que se
conversasses com ele por um instante, crerias que não havia alguém que ele
gostasse mais do que de ti (Cap. LXXVIII)

A citação é longa, mas nos justificamos: temos aí o modelo mais


acabado da masculinidade para Jordão. Se não vejamos: obediência, mo-
deração, amabilidade, serenidade, virgindade, eloquência, inteligência, ca-
risma. Entre essas características, que, se as encontramos dispersas por este
ou aquele personagem ao longo da obra, convergem todas na pessoa de
Henrique, verificamos que não associamos algumas diretamente à masculi-
nidade. As mais destacadas, em outros homens também, são a amabilidade
e a virgindade, que relacionamos comumente ao feminino.
A virgindade, no Libellus, aparece como um traço forte da figura de
Domingos. Em três momentos Jordão faz menção dela, inclusive no pito-
resco relato sobre a sua morte:
Em seu leito de morte mandou chamar 12 frades dos mais prudentes e os
exortou a serem fervorosos, a zelarem pela propagação da Ordem e a perse-
verarem na via da perfeição. Recomendou também que eles evitassem a fa-
miliaridade suspeita com mulheres, especialmente as jovens, porque elas são
muito atraentes e capazes de prender as almas que ainda não estão enraiza-
das na pureza. “Vejam – ele disse – até hoje a misericórdia de Deus me
conservou incorrupta a carne, todavia devo confessar não ter conseguido
me libertar dessa imperfeição de encontrar maior atração nas conversas com
mulheres jovens do que naquelas que tive com mulheres velhas” (Cap. XCII).

131
FORTES, Carolina Coelho • As questões de gênero em uma crônica dominicana do século XIII

E é esse o ensinamento de Domingos antes de morrer. Para Jordão,


ao menos, essas teriam sido as últimas palavras do fundador. Como pode-
mos interpretá-las? De início nos chama a atenção a rapidez com que as
questões mais gerais são tratadas, em contraste com o maior detalhamento
dos conselhos sobre as mulheres. Vemos que estes chegam a tomar forma
na própria voz de Domingos. Ele fala, o que confere à mensagem uma maior
autoridade. Outro aspecto que merece destaque é a ênfase na virgindade,
no corpo sem mácula do fundador, e sua relação direta com o perigo cons-
tante que as mulheres representam.
Mal resistimos à tentação de ver nos trechos que destacamos uma
feminilização generalizada dos modelos masculinos. Sendo a virgindade
um traço marcante dos homens no Libellus e tendo ela tanto no discurso
eclesiástico quanto no laico, ao longo do período medieval, sido constante-
mente relacionada à regulamentação do comportamento feminino, acredi-
tamos ser lógica essa conclusão. No entanto, se masculino, como feminino,
são atribuições impostas culturalmente aos corpos sexuados, o masculino
do Libellus é virginal.
Desta maneira, podemos aventar uma conclusão parcial para a ques-
tão colocada no início da nossa fala: há relação entre modelos e atitudes
concretas? Se entendemos como posicionamento mais comum dos frades
ao longo do século XIII um repúdio à associação de casas femininas, pode-
mos interpretá-lo, à luz do Libellus, como fundamentado na redundância.
Explicamos: se os homens retêm características femininas, tornando-as
masculinas, e fazendo delas caracterísicas virtuosas, perfeitas, sagradas, não
havia necessidade premente de inserir também as mulheres em sua Ordem.

132
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Homens e mulheres nos processos de canonização


de santos mendicantes: Domingos, Clara
e Tomás, 1230-13301

Igor S. Teixeira2

Introdução
Nosso objetivo neste texto é analisar processos de canonização nos
quais homens e mulheres foram chamados a falar sobre a vida e milagres de
santos de ordens mendicantes. Além disso, analisar possíveis diferenças nos
registros dos testemunhos de homens e mulheres. Especificamente, analisa-
mos os processos de Domingos de Gusmão3, Clara de Assis4 e Tomás de
Aquino.5 Estes processos são entendidos a partir do conceito de Tempo de
Santidade, o qual criamos em nossa tese de doutorado.
Tempo de Santidade significa o tempo entre morte, processo e cano-
nização dos santos. Nos casos analisados, temos dois, 13 e 49 anos, para
Clara de Assis, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino, respectivamen-

1
Este texto compõe a pesquisa: Os Tempos da Santidade: processos de canonização e relatos
hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV), financiado pela FAPERGS (ARD/
2012) e pela Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS (Edital PRO-PESQUISA/2012).
2
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
3
Proceso de Canonización de Santo Domingos. Ap. Santo Domingo de Guzmán visto por sus
contemporáneos. Esquema biográfico, introducciones, versión y notas de los Padres Fr. Miguel
Gelabert, O.P., Fr. José María Milagro, O.P.. Introducción General por el Padre Fr. José María
de Garganta, O.P. Madrid: BAC, MCMXLVII. p. 267-323. Próximas Citações: PC Domingos
de Gusmão e as páginas correspondentes.
4
Processo di canonizzazzione di S. Chiara d’Assisi: vita, conversione, miracoli (commento). Giovanni
Boccali. Assis: Porziuncola, 2003. Tradução utilizada: Processo de canonização de Clara de Assis.
Disponível online em edição bilíngue em: <http://www.procasp.org.br/
capitulo.php?cCapitulo=10>. Próximas citações: PC Clara de Assis e as páginas correspondentes.
5
Para 1319: LAURENT, M. H. (ed.). Fontes vitae S. Thomae Aquinatis notis historicis et criticis
illustrati, 4: Liber de inquisitione super vita et conversatione et miraculis fratris Thomae de
Aquino. Ap. Revue Thomiste, Saint Maximin [Var], 1931. E para 1321: Fontes vitae S. Thomae
Aquinatis notis historicis et criticis illustrati, 5: IIe procès de canonisation: Abbaye de Fossa-Nova,
10-20 Novembre 1321. Récits de la canonization de S. Thomas d’Aquin: Avignon, 14 (ou 16)-
21 Juillet 1323. Ap. Revue Thomiste, Saint Maximin [Var], 1931. pp. 409-532. Recentemente
disponibilizado na internet: <http://archive.org/stream/fontesvitaesthom00pr#page/424/
mode/2up>. Acesso em: 27 dez. 2012. Próximas citações: PC Tomás de Aquino e as páginas
correspondentes.

133
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes

te. Os processos de Clara e Tomás marcam também outras diferenças: o


número de interrogados. Para a irmã de Francisco, 20 em um inquérito.
Entre os interrogados, 16 mulheres e quatro homens; para o teólogo, 144
em dois inquéritos. O primeiro processo de Tomás foi em 1319 e não havia
mulheres. As mulheres foram ouvidas apenas em 1321, quando o papa João
XXII ordenou que os inquisidores encontrassem outros testemunhos de
milagres de Tomás de Aquino. A proporção de mulheres em 1321 (41) em
relação aos homens (71) é significativa.6
A partir destes dados perguntamos: a palavra do homem era mais
valiosa que a das mulheres? Se sim, como a santidade de Clara de Assis foi
atestada por mais mulheres que homens? As respostas encontram-se na in-
quisição que fizeram os inquisidores, na noção de fama publica, além das
vidas e milagres atribuídos aos três santos investigados.

Santidade na Idade Média e o universo normativo


da canonização: a fama publica
A santidade é um objeto de estudo frequente na historiografia medi-
eval. Os historiadores investigam diferentes aspectos, como devoção, mila-
gres, relíquias, hagiografias e, recentemente, os processos de canonização.7
Um processo de canonização é uma inquisição sobre os rumores de santi-
dade de alguém. Normalmente, um grupo social ou, como nos casos que
analisamos, uma ordem religiosa solicita que o pontífice autorize a abertu-
ra da investigação. O papa tem o poder para aceitar ou não a solicitação. A
autorização determina os nomes dos inquisidores e os objetivos da inquisi-
ção a fazer: se há fama publica sobre a vida e os milagres atribuídos ao can-
didato a santo. Depois de ouvir os testemunhos, os inquisidores escrevem
atas, as quais são enviadas e analisadas por comissários papais. Em alguns
casos, uma única inquisição aprovada e o santo era reconhecido oficial-
mente como tal. Em outros casos, o pontífice ordenava outros inquéritos
ou mesmo encerrava o caso.
O processo de canonização é um fenômeno medieval. Tem suas ori-
gens na chamada Idade Média Central, mas foi nos séculos XIII e XIV que

6
Cf. TEIXEIRA, I. S. O Tempo da Santidade: reflexões sobre um conceito. Revista Brasileira de
História, v. 32, n. 63, p. 207-223. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v32n63/
10.pdf>. Acesso em: 26 dez. 2012.
7
Destacamos, neste caso, a obra: KLANICZAY, G. (dir.). Procès de canonization au moyen âge:
aspects juridiques et religieux. Rome: École Française de Rome, 2004.

134
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

sua forma foi mais elaborada.8 É provável que a sistematização dos proces-
sos tenha relação com o desenvolvimento geral das reflexões sobre o direito
– tanto nas universidades quanto no direito canônico – no Ocidente.9 Isso é
perceptível nas formas análogas de registro das atas, como analisamos an-
teriormente.10 Mas, também, pelo uso recorrente de elementos como a ques-
tão da fama publica relacionada aos fatos testemunhados e/ou conhecidos,
bem como a “conversação” – algo próximo da “reputação” – daqueles que
eram investigados.
A fama é relacionada ao conhecimento público dos fatos investiga-
dos. Citamos o final do depoimento de Martinho de Pastina, tomado no
dia 24 de julho de 1319: “Interrogatus si de premissis est publica vox et
fama in dicto monasterio et locis vicinis, dixit quod sic...”.11 Em outras pa-
lavras, o monge cisterciense de Fossanova (onde Tomás morreu e foi sepul-
tado em 1274) afirmou que tudo o que ele disse anteriormente era conheci-
do publicamente e tinha fama no mosteiro e na vizinhança. Esse é o um
procedimento padrão, digamos assim.
Questões jurídicas em torno da fama publica serviam, na Idade Mé-
dia, tanto para que uma pessoa fosse inserida no rol de testemunhas a inter-
rogar, quanto para atestar a veracidade de algo declarado. Servia, portanto,
para instaurar uma investigação ou para a sentença.12
Como estamos tratando de um tipo de processo que tem a decisão
final atribuída ao pontífice, a fama poderia não ser suficiente para uma
canonização, como defendeu Didier Lett em sua tese sobre a “não canoni-

8
Referência obrigatória: VAUCHEZ, A. La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age:
d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. 2. ed. Rome: École
Française de Rome, 1981.
9
Essas reflexões foram proficuamente discutidas em um Seminário Temático que ministramos
em 2012, a saber: Normas, Leis e Conflitos na Idade Média. Agradeço aos mestrandos Marcos
Schulz e Rafael José Bassi, que atuaram como estagiários na ocasião.
10
Cf. TEIXEIRA, I. S. A pesquisa em História Medieval: relatos hagiográficos e processos de
canonização. Aedos, v. 2, n. 2, p. 71-94, 2009. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/aedos/
article/view/9832/5648>. Acesso em: jun. 2011.
11
PC de Tomás de Aquino, p. 285.
12
THÉRY, J. Fama: la opinión pública como presunción legal: apreciaciones sobre la revolución
medieval de lo inquisitorio (siglos XII-XIV). In: DELL’ELICINE, E.; MICELI, P.; MORIN,
A. (orgs.). De jure: nuevas lecturas sobre derecho medieval. Buenos Aires: ADHOC, 2009. p.
201-243. No mesmo livro: VALLERANI, M. Modelos de verdad: las pruebas en los procesos
inquisitorios. p. 245-269. Sobre o uso “criminal” da fama: SOLÓRZANO TELECHEA, J. A.
Justicia y ejercicio del poder: la infamia y los “delitos de lujuria” en la cultura legal de la
Castilla medieval. Cuadernos de Historia del Derecho, n. 12, p. 313-353, 2005. Agradeço à Profa.
Andréia Frazão pela indicação deste último texto.

135
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes

zação” de Nicolas de Tolentino, em 1325, por João XXII.13 Em uma com-


paração simples: em 1325, foram interrogadas mais de 360 pessoas, de dife-
rentes regiões, sobre a santidade do Eremita de Santo Agostinho, Nicolas
de Tolentino. O papa não reconheceu nem autorizou o culto per universas
ecclesias, como fez dois anos antes, após 144 depoimentos sobre Tomás de
Aquino.
A partir da questão que nos interessa – homens e mulheres nos pro-
cessos de canonização –, se compararmos aquelas declarações de Marti-
nho de Pastina com o depoimento de uma mulher, Estefânia, interrogada
sobre Tomás de Aquino em 11 de novembro de 1321, temos a seguinte
estrutura: sua presença foi requisitada para compor a investigação sobre o
milagre de cura relacionado ao seu marido, Pedro Boccassius de Piperno,
interrogado no dia anterior. O depoimento de Estefânia não contempla
questões sobre publica vox et fama. Sua participação no inquérito foi para
acrescentar informações a respeito do que tinha dito o marido, sendo seu
depoimento praticamente uma repetição das informações anotadas: Pedro
sentia fortes dores e nenhum remédio resolvia. Clamou pelo nome de To-
más de Aquino e adormeceu. Ao acordar, a dor sumira. Segundo Estefâ-
nia, o marido teria lhe dito que a cura era atribuída a Tomás de Aquino e
nada mais o afligia. O notário, então, registrou: “Interrogata si audivit eu-
mdem eius virum votum facientem, dixit quod non, dixit tamen quod dic-
tus vir suus dixit sibi quod, illa eadem noctem, fecerat votum predictum.”
Em outras palavras: Estefânia não ouviu o marido clamar por Tomás de
Aquino, mas ouviu o mesmo dizer que o fez.14
Achamos legítima a pergunta: Por que a Estefânia não foi direciona-
do o articuli interrogatorii sobre a fama de Tomás de Aquino? Esta questão
reforça a problemática na medida em que, no processo desse teólogo, inici-
ado em 1319 com 32 depoimentos de homens, nesses 32 casos a pergunta
sobre fama aparece. No inquérito de 1321, no qual foram interrogadas 112
pessoas, sendo 41 mulheres, a fama não fez parte do interesse do notário
que registrou as atas.
Os processos analisados neste texto, a saber, de Domingos de Gus-
mão, realizado em 1233, Clara de Assis, realizado em 1254, e Tomás de
Aquino (1319-1321), aconteceram em lugares e datas distintos, mas podem

13
LETT, D. Un procès de canonisation au Moyen Âge: Essai d’histoire sociale: Nicolas de Tolentino,
1325. Paris: PUF, 2008.
14
PC de Tomás de Aquino, p. 424.

136
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

ser analisados em comparação a partir de diferentes categorias. Aqui anali-


samos a participação de homens e mulheres. Em uma perspectiva de histó-
ria social, investigamos se a condição de gênero implica participações dis-
tintas.
Selecionamos, então, a partir dos seguintes elementos: a) por tempo
de santidade distinto (dois, 13 e 49); b) por ordens distintas (franciscanos e
dominicanos); c) por gêneros distintos (homem e mulher) de investigação.
O que perguntaram os inquisidores aos interrogados? Quais são as dife-
renças entre os dois processos? É possível, nesta comparação, concluir
por que a santa tem um tempo de santidade de dois anos e o teólogo
dominicano de 49?

As mulheres nos processos


A palavra da mulher na Idade Média é há muito tempo alvo de pes-
quisas e considerações. Entre a dominação masculina e a raridade do do-
mínio da arte da escrita os historiadores têm conseguido reconstituir, pro-
blematizar e, principalmente, analisar os espaços de atuação das mulheres
na sociedade medieval. Os processos inquisitoriais são fontes interessantes
para se ter acesso à “voz” da mulher nos séculos XIII e XIV.
É importante ressaltar que um processo apresentará sempre qualquer
voz a partir do filtro/registro do inquisidor e do notário, responsáveis pela
confecção das atas. Desta forma, citamos três depoimentos anotados. O
primeiro, no processo de Clara de Assis:
A Irmã Benvinda, de Perúsia, religiosa do Mosteiro de São Damião, decla-
rou sob juramento que madona Clara, antiga abadessa do Mosteiro de São
Damião, se evidenciou de maneira admirável pela humildade. […] Disse
ainda a testemunha que uma irmã do mosteiro, de nome Benvinda, filha de
Diambre de Assis, caiu gravemente enferma, sofrendo de muitas dores por
causa duma grande chaga debaixo do braço. Quando disso tomou conheci-
mento, a piedosa mãe Santa Clara encheu-se de grande compaixão e rezou
por ela. Traçado sobre ela o sinal da cruz, ficou imediatamente curada. In-
terrogada sobre como sabia do caso, respondeu que primeiro viu a chaga
e depois constatou a cura. Perguntando-lhe se tinha presenciado o facto,
respondeu que não, mas que ouviu contar a cena. Sobre o tempo em que
tudo isto aconteceu, disse não se recordar nem do dia nem do mês, nem
quanto tempo passou antes e depois da cura, mas afirmou que a viu cura-
da a partir da altura em que constou que Santa Clara havia traçado sobre
ela o sinal da cruz.15

15
PC Clara de Assis, p. 14 e 18. Grifos nossos.

137
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes

O segundo, no processo de Domingos de Gusmão:


Guilhermina, mulher de Elías Martin, testemunha jurada, disse que ela
tecia o cilício que o Santo levava. Sabe também e crê que os testemunhos
anteriores são verdadeiros e que se conservou virgem. Comeu com ele mais
de 200 vezes, mas nunca o viu tomar uma quarta parte de um pescado em
uma comida ou mais de duas gemas de ovo. Nem beber mais de um copo de
vinho, aguado em três partes. Nem o viu comer mais que um pouco de pão.
Observou também que, sendo atormentado com muita frequência por gra-
víssimas dores, os próximos colocavam-no no leito, e ele, de pronto, coloca-
va-se no chão, pois não se acostumara a descansar na cama.16

O terceiro, no processo de Tomás de Aquino:


No mesmo dia, Bona, mulher de Bartolomeu Pedro Benicassi do Castelo
Sermineti, testemunha citada pelo dito Iohannem, núncio, na presença dos
ditos senhores inquisidores, prestou juramento na presença deles, no local
predito, da mesma forma e modo preditos, interrogada pelos ditos senho-
res inquisidores sobre os milagres atribuídos à memória do frade Tomás
de Aquino, disse em juramento que viu o dito Bartolomeu, seu esposo,
enfermo e com tremores nas mãos durante muitos anos; e neste ano al-
guns meses atrás, disse que Bartolomeu disse (a ela): “Bona, o beato To-
más de Aquino, que você me recomendou, me libertou”. E então viu e
viveu ele libertado. Interrogada de quantos anos a dita enfermidade e
dias curados, disse que não tinha mais nada a declarar.17

Temos, então, três possíveis formas de participação ou uso da fala da


mulher em três processos de canonização diferentes. No primeiro depoi-
mento, uma mulher testemunha sobre a cura e a santidade de outras duas
mulheres. No segundo, uma mulher leiga atesta como “verdadeiros” teste-
munhos anteriores ao dela. No terceiro, uma mulher é convocada para com-
por a investigação de um milagre de cura no qual seu marido foi o atendido
(no processo, o depoimento do marido é imediatamente anterior ao depoi-
mento citado).
A primeira observação a ser feita é a forma como o nome das mulhe-
res é associada a alguma função: religiosa do mosteiro; filha de..., esposa
de.... Seria este um elemento da dominação dos homens sobre as mulheres?
Afinal, no interrogatório de Bartolomeu Pedro Benicassi não há identifica-
ção dele como marido de Bona, ou em outros casos, como o de Pedro Cra-
pário de Sermineto sua esposa Marotta, também interrogada, é identifica-
da como “mulher de Pedro Crapário”.18

16
PC Domingos de Gusmão, p. 309. Tradução livre. Grifos nossos.
17
PC Tomás de Aquino, p. 461. Tradução livre. Grifos nossos.
18
PC Tomás de Aquino, p. 462-463.

138
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

No processo de Clara de Assis, os homens interrogados são assim


referidos: Hugolino de Pedro Girardone, “cavaleiro de Assis”; Rainério de
Bernardo, “de Assis”; Pedro de Damião, “da cidade de Assis”; João Ventu-
ra de Assis, “homem de armas da casa de seu pai [de Clara de Assis]”.19
Porém, se considerarmos, principalmente, os interrogatórios sobre Domin-
gos de Gusmão tomados em Toulouse, vamos encontrar um tipo de regis-
tro em relação ao depoimento de mulheres que não aparece nos outros dois
casos analisados. Trata-se da informação referente a Guilhermina, que afir-
mou que “os testemunhos anteriores são verdadeiros”. Essa informação
está registrada em quase todos os 27 depoimentos com nomes de testemu-
nhas identificados, tanto para os homens quanto para as mulheres.
Isso significa que, diferentemente do que foi perguntado somente a
homens no processo de Tomás de Aquino, às quatro mulheres referidas nas
atas de Toulouse se perguntou sobre a fama publica de Domingos de Gus-
mão. E é interessante, ainda, notar que essas mulheres estão assim referidas
no processo: Berengária (só aparece o nome, sem nenhuma referência “ex-
terna” ou “masculina”), Beceda, “monja de Santa Cruz”, Nogueza “de
Toulouse”, e Guilhermina, “mulher de Elías Martin”.20
Quanto ao funcionamento dos processos, comparando o primeiro e
o terceiro depoimento percebemos que não há diferenças no entendimento
do que seria uma investigação diligente e minuciosa sobre os casos relata-
dos. A partir de uma estrutura que tende a se repetir, percebemos que, por
exemplo, em relação aos milagres, os inquisidores interrogam se as pessoas
conheceram e/ou foram agraciadas com esse tipo de intervenção. Geralmen-
te, trata-se de milagres de cura; portanto, perguntam quanto tempo as pesso-
as viveram doentes, quanto tempo viveram após a cura, onde o milagre acon-
teceu, quais as testemunhas, o que foi dito no momento do milagre.
O que esses dados permitem afirmar?
Inicialmente, que entre a segunda metade do século XIII e a primeira
metade do século XIV, de fato, percebemos certa padronização do funcio-
namento dos processos de canonização. Também podemos considerar que
há uma diferenciação entre homens e mulheres em relação às formas de

19
PC Clara de Assis, p. 68-76.
20
Como afirmado anteriormente, este inquérito termina com a informação de que outras 300
pessoas assinaram e testemunharam como verdadeiros os testemunhos. PC Domingos de
Gusmão, p. 305-315.

139
TEIXEIRA, Igor S. • Homens e mulheres nos processos de canonização de santos mendicantes

identificação e nomeação, seja pela situação social do casamento, seja pela


filiação a uma Ordem religiosa – no caso das mulheres. Porém, para os ho-
mens também encontramos o que chamamos aqui de referências externas,
embora em recorrência mais discreta em comparação com as mulheres.

Considerações finais
Considerando uma perspectiva de história social, esses dados são
importantes, pois: a) os processos de canonização, quando entendidos em
perspectiva comparada, evidenciam tratamentos diferenciados, porém não
significativos a ponto de se estabelecer uma relação de dominação dos ho-
mens sobre as mulheres; b) caso o historiador analise apenas um processo,
a conclusão poderia ser diferente. Por exemplo: uma análise do processo de
Domingos chegaria à conclusão de que a homens e mulheres foram feitas
as mesmas perguntas; uma análise do processo de Tomás, não. Principal-
mente, neste caso, se for considerado que no primeiro inquérito (1319) não
houve participação de mulheres; c) mesmo não sendo possível afirmar
uma dominação do homem sobre a palavra da mulher a partir das formas
de tratamento, os processos são fontes importantes para o historiador en-
contrar, mesmo que “indiretamente”, o sujeito “mulher” na sociedade
medieval.

140
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç,


activa en torno a 1316 en Zamora, España

Carmen Beatriz Paz

Introducción
En 1955 una monja del antiguo Monasterio de Santa Clara de Toro,
Zamora, encontró protegidas en parte por la sillería del coro, varias pinturas
murales hechas con una técnica llamada fresco seco. Técnica en que se realiza
el dibujo sobre cal fresca pero los colores (escasos pues proceden de tierras)
son pintados encima, al temple. Se conocieron gracias a que se lavó esa
pared y luego fueron despegadas en 1962 por LLopart Castells y trasladadas
en el actual soporte a la iglesia museo de San Sebastián de los Caballeros,
en la misma ciudad en que conocemos la obra de esta mujer medieval.
En 1988 se realizó una exposición en Valladolid con dichos murales,
los cuales salieron a la luz, deslumbrando por su composición y sobre todo
cuando se descubre que su autora resultaría una mujer de la región, la cual
firma, en la escena de San Cristóbal en Santa Clara de Toro, con la frase
TERESA DIEÇ ME FECIT, en una banda entre la túnica del santo (se le
representa como un gigante, según la leyenda, ayudando a cruzar un río al
niño Jesús). Bajo la banda firmada hay un escudo [banda de sable -negro-
sobre campo de plata, orlada de gules -rojo-] que es desconocido por ahora
y que lleva a muchos investigadores a pensar que tal vez la pintora pertenecía
a una señoría.
Dice la investigadora Isabel del Río:
¿Quién era Teresa Dieç? Poco más sabemos, como tampoco sabemos mucho
de las particulares biografías de otros artistas masculinos medievales […],
aunque algo más hemos avanzado en la comprensión de su sociedad estamental
y gremial. Lo lógico sería pensar que fue un encargo del convento a un artista
externo, que pudo pertenecer a algún gremio y tal vez ser maestra, pues los
murales son de gran calidad, fruto de la mano de alguien que ya ha pintado
otros y que sabe guardar las proporciones del gusto gótico sin titubeos. Más
improbable sería pensar que fue una monja del monasterio quien los hizo: las
legas no solían saber escribir y las madres (como nobles que eran de
procedencia) preferían encargar a otros este tipo de trabajos “sucios”. Pero
debajo de la firma hay un escudo (todavía se desconoce a qué casa u orden

141
PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...

pertenece) y quién, de momento, sabe si es otra pista para identificar a la


autora: tal vez de procedencia noble, tal vez rebelde a la costumbre impuesta
de que los de su “grupo” escribían y no pintaban con cal en los muros
pedregosos. Por casualidad, siempre por casualidad, vamos rellenando retazos
de saber. Noble o plebeya esta mujer hizo un espléndido y colorista trabajo;
noble o plebeya tenía un bagaje cultural; noble o plebeya quiso ser artista y lo
constató firmando en un tiempo en que la idea de autor aún no había arraigado.
Ella fue Teresa Dieç y pintaba muy bien. En la exposición de las Edades del
Hombre de Valladolid de 1988 también se atribuía a Teresa Dieç unos murales
de Hiniesta.

Para pensar un poco más acerca de ella, en el libro de Gloria Fernández


Somoza solicitado a la Biblioteca del Municipio de Zamora, se dice
textualmente:
Habría que pensar en Teresa Díez como en una noble zamorana, cuya familia
pagó parte de las pinturas que ornaron el coro de las monjas a cambio de un
lugar privilegiado para su sepultura, además de tener asegurada, con la
comunidad religiosa, la oración diaria por la salvación de su alma. Esto en
el caso de que no hubiese sido una dama, hija de alguna noble familia, llevada
al convento para formar parte de dicha comunidad de clarisas. A cambio,
costeó obras en el monasterio, en este caso las pinturas murales del coro, o
bien patrocinó su realización, quizás desde el cargo de abadesa del monasterio
que, tal y como hemos tenido ocasión de ver en páginas precedentes, fue una
práctica habitual en la Edad Media.

Historia
Teresa Dieç pintó las escenas de la historia sagrada en el año 1316
siempre rodeadas (al estilo del gótico internacional) de marcos, de modo que
formasen viñetas como en un libro didáctico. En la parte superior coloca las
frases en castellano antiguo que explican la pintura. Se puede leer: “COMO
VAN OFERECER LOS TRES MAGOS A SANTA MARIA A
IESUXPTO”, y se ve cómo aún no aparecía el rey negro en el siglo XIV.
Sigue “COMO BAUTIÇA SAN IHOAN A IESUXPO” y “COMO
APARECE IESUXPO A LA MADALENA”; podemos apreciar qué antigua
es la costumbre castellana de llamarla Madalena. Falta comentar que al lado
se ve a Santa Marta combatiendo con el Dragón. Salvo el bautismo de Cristo,
las otras escenas se hallan relatadas en la Leyenda Dorada de fray Vorágine
Hay quien dice que hubo una comitente, pero no hay ningún libro
que complete la biografía de esta pintora 48 años después de ser colocadas
sus obras en un lugar a modo de museo. En la actualidad han aparecido
algunas pequeñas investigaciones sobre la misma. En realidad tampoco hay
muchos estudios sobre la reina María de Molina, que pudo ser su comitente.

142
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

En el deceso de Alfonso X (1284), se proclama a Sancho IV como rey de


Castilla y León y, con ello, a la coronación de María de Molina su legítima
esposa. El reinado de Sancho IV fue corto pues murió en 1295, dejando
como heredero a su hijo de 9 años: Fernando IV. Anteriormente había
adquirido unos predios en Hiniesta (Zamora), lugar en el que Teresa Dieç
también realizó murales que se supone fueron por encargo de la reina María
de Molina, sin embargo no hay escritos ni actas de referencia de este pedido
Es que la historia de los trabajos de las mujeres aún está sin escribir.

La Leyenda Dorada
En el Monasterio de santa Clara de Toro, como anteriormente dijimos,
usó para sus pinturas La Leyenda Dorada.

La leyenda dorada, Santiago de la Vorágine comenzó a escribirla


(Legenda aurea) en 1250 (el primer manuscrito aparecido es de 1260) y se
dedicó a esta tarea hasta 1280.
En algunas de sus primeras ediciones, la Legenda aurea se tituló
Lombardica Historia, originando una falsa idea de tratarse de trabajos distintos,
debido a que de la Vorágine dedica el segundo y último capítulo de su obra
a la vida del papa Pelagio, incluyendo un resumen de la historia de los
lombardos, hasta 1250.
La obra está compuesta por 177 capítulos (182, según algunos estudio-
sos). Está dividida en cinco apartados de acuerdo con el año litúrgico: de
Adviento a Navidad, de Navidad a Septuagésima, de Septuagésima a Pascua,
de Pascua a la Octava de Pentecostés, y de la Octava de Pentecostés al Adviento.
La Legenda aurea fue creada con la intención de propiciar la religiosidad
popular y cumplió su propósito, pero a costa de la verosimilitud y la fidelidad
histórica, como denunciaron los humanistas Juan Luis Vives y Melchor
Cano. Aunque, sin duda, hay que tener en cuenta que el sentido medieval
de la historia era distinto que el de la Edad Moderna. De muchas historias
no hay fuente comprobada y no existe manifestación crítica alguna sobre
los hechos, acumulados de forma heterogénea y sin discernimiento, hasta
que incluso es posible encontrar alusiones a hechos de la vida de Buda en la
historia de Barlaam y Josafat. En algunas de sus historias toma datos de
textos apócrifos.
El prestigio de la obra fue sin embargo inmenso entre los artistas, que
utilizaron sus conmovedoras narraciones para pintar y esculpir escenas

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PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...

devotas a lo largo de la Edad Media, el Renacimiento y el Barroco. Fue


traducida del latín al español en el siglo XIX por Fray José Manuel Macías
y éste es el texto al que acudimos para comparar las imágenes.

Imagen de San Cristobal


LA LEYENDA DORADA de SANTIAGO de la VORÁGINE (pág. 405-409)
Este santo al bautizarse adoptó el nombre de Cristóbal y renunció a la de
Réprobo que anteriormente llevaba. Hizo bien porque Cristóbal significa
portador de Cristo.
En su madurez llegó a medir doce codos de estatura; por su corpulencia y su
aspecto de gigante infundía terror a quienes lo veían.
A consecuencia de una charla que en cierta ocasión mantuvo con el rey de
los cananeos (su lugar de nacimiento), decidió recorrer el mundo en busca
del príncipe más poderoso que había en la tierra […] Después de varios intentos
y no encontrar al más fuerte se halló con un ermitaño. El ermitaño, en cambio,
le explicó quién era el jefe al que buscaba, le instruyó en la doctrina cristiana
y finalmente le dijo que ese rey exigirá que ayune, al que Cristóbal le respondió
que no lo haría. También exigirá que reces mucho, al que respondió que no
podría desempeñar ese oficio.
¿Has oído hablar de un río muy peligroso en el que se ahogan muchos que
intentan cruzarlo? preguntó el anacoreta.
Sí, he oído hablar de ese río, – respondió.
En ese caso, – observó el ermitaño, – creo que puedo indicarte la forma que
puedas servir a Cristo. Se trata de desempeñar un oficio que está al alcance
de tus posibilidades. Puedes ir a vivir a la vera de ese río. Tienes una estatura
colosal; sin duda alguna posees también enorme fuerza. Estás dotado para
transportar sobre tus hombros de orilla en orilla a los que necesitan pasar de
un lado al otro. He aquí un enorme servicio que podrías prestar a Cristo
[…] En cierta ocasión, estando descansando en su cabaña, oyó que desde
afuera le llamaban. La voz que llegaba hasta él parecía la de un niño.
¡Cristóbal; sal y ayúdame a pasar el río! Decía la voz aquella.
Así lo hizo pero no encontró a nadie. Dos veces más escuchó es a misma voz
y, a la tercera vez, vio a la vera del río a un niño. Cristóbal se acercó a él, lo
alzó del suelo, lo colocó cómodamente sobre los hombros, tomó en sus manos
el varal que le servía de bastón y se introdujo en el agua. De pronto el nivel
del cauce comenzó a subir incesantemente y al mismo tiempo a aumentar el
peso del niño cual si su cuerpo dejase de ser de carne y se tornase de plomo.
A cada paso que daba aumentaba el caudal del agua visiblemente y hacíase
más pesada la carga que transportaba en sus fornidos hombros. Al llegar
hacia el medio del cauce creyó que no podía soportar un minuto más el peso
del niño ni el ímpetu de la corriente. Lleno de angustia, y temiendo que no le
iba a ser posible salir con vida del apurado trance en que se hallaba, hizo un
esfuerzo supremo y, sacando de sus agotadas energías unas fuerzas
sobrehumanas, consiguió llegar a la otra orilla, puso al chiquillo en el suelo y
exclamo: ¡Ay, pequeño! ¡Qué gravísimo peligro hemos corrido!
A lo que el niño contestó: No te extrañe que hayas sentido un enorme peso,
porque sobre tus hombros acarreabas el mundo entero y al creador de ese

144
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

mundo. Yo soy Cristo, tu rey. Con este trabajo que desempeñas me estás
prestando un extraordinario servicio. Voy a darte una prueba de lo que te
estoy diciendo es verdad. Cuando cruces el río y llegues a la puerta de tu
cabaña, hinca junto a ella en el suelo el varal que utilizas para atravesar el río;
mañana cuando te levantes el varal estará verde y lleno de frutos. […] a la
mañana siguiente, al salir de su cabaña comprobó que el varal se había
transformado en una frondosa palmera cuajada de dátiles.

Esta es la imagen de San Cristóbal en la Leyenda Dorada

En esta imagen del texto se ve a San Cristóbal con su vara entrando al


río cargando a un niño que sostiene en su mano izquierda al orbe con una
cruz, indicando la presencia de Cristo niño. A la derecha de la imagen parecería
una de las escenas del calvario de Cristo, cuando se lo corona; aquí no se ven
coronas de espinas pero sí un signo de la serenidad y paciencia del coronado.
El ambiente es casi desértico, con palmeras en el fondo y los vestidos
de los que allí se representan son los que habitualmente usaba las gentes del
siglo XIII.

Firma de Teresa Dieç

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PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...

Veamos la imagen de Teresa Dieç, en la parte occidental del coro.


Sólo alcanzamos a tener las piernas del santo que ingresa al río. Se ven
peces y lampreas rodeando sus piernas y, a diferencia del libro de Vorágine,
insinúa al río con ondas en su fondo y con animales habitantes del mismo
entre las piernas del gigante. En su mano izquierda sostiene el cayado y a la
derecha de su vestimenta está la leyenda Teresa Dieç lo hizo. Utiliza un
profundo oscuro como fondo como para destacar la gigantesca figura del
santo. Aparece enmarcado con líneas en zigzag y apenas se insinúa la orilla
del río. Usa colores vegetales y dentro de tonos tierra, salvo el manto rojo
del santo. La imagen aparece cortada pues la mayoría de sus murales han
perdido parte de la iconografía al descubrirse en 1955.
Debajo de la firma un enigmático escudo es motivo de investigación
de los actuales estudiosos.

Imagen de la Epifanía
LA LEYENDA DORADA de SANTIAGO de la VORÁGINE (pág. 91-97)
Cap. XIV: Cuatro nombres tiene esta festividad, correspondientes
respectivamente a los cuatro hechos maravillosos que en ella se
conmemoraron, a saber La adoración de Jesús por los magos (Epiphanía),
el bautismo que san Juan administró al Señor (Theofanos), la conversión de
Cristo al agua en vino (Bethanía) y el milagro que el mismo Cristo realizó
para alimentar con cinco panes a cinco mil hombres (Fagifanía).
[…] Poco después del nacimiento del Señor llegaron a Jerusalén tres magos,
llamados en hebreo Apelio, Amerio y Damasco, en griego Gálgala, Malgalat
y Sarathin y en lengua latina Gaspar, Balthasar y Melchor. La palabra mago
significa tres cosas diferentes: ilusionista, hechicero maléfico y sabio. Según
algunos intérpretes, estos tres hombres eran de hecho tres reyes aficionados
a la práctica del ilusionismo; por eso, con sus trucos y astucias lograron
engañar a Herodes y, en lugar de regresar a sus tierras por Jerusalén, lo
hicieron por otro sitio. […] Una vez dentro de la humilde morada en la que
hallaron al Niño con su Madre, los magos se arrodillaron y cada uno ofreció
al Niño tres dones: oro, incienso y mirra. Es costumbre extendida por los
pueblos antiguos que nadie comparece ante Dios o ante el rey con las manos
vacías. San Bernardo dice que los magos ofrecieron a Cristo oro, para socorrer
la pobreza de la Virgen Santísima, incienso, para contrarrestar el mal olor
que había en el establo y mirra para ungir con ella al Niño, fortalecer sus
miembros e impedir que se acercaran a Él parásitos e insectos.

146
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Esta imagen se encuentra en La Leyenda Dorada

Como se ve aquí no se dibuja a un rey o mago negro. La Virgen se


halla en un espacio exterior, delante de una edificación de estilo italiano.
San José se halla a la derecha y detrás de ella. El ambiente pertenece a una
zona con colinas. Se aprecian los caballos y no camellos que transportaron
a los reyes o magos desde oriente y un paje a la usanza árabe. Los reyes
todos portan coronas y el primero, se postra a los pies del niño y la madre
como lo haría un súbdito ante su REY. Todos ellos están vestidos a la usanza
medieval, salvo el primero, que está recubierto por un manto. En cambio la
Virgen y San José tienen túnica y manto como se representaba en esa época.
Aunque podemos apreciar que resuelve bien los pliegos de las vestimentas
aún tienen características hieráticas. San José, La Virgen y el Niño se hallan
aureolados.

Imagen de Teresa Dieç


Epifanía. Pintura mural de Teresa Dieç de la Iglesia de Santa Clara de Toro, Zamora

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PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...

La Virgen sentada en Maestá, a la izquierda del cuadro, no viste el


manto. Su cabeza, a la usanza de las matronas judías, está descubierta. El
Niño también está vestido con una túnica y ambos tienen la mano derecha
en actitud de hablar. Poseen sendas aureolas y el Niño una aureola crucífera.
El mago postrado y con su corona puesta en su cabeza presenta al
Niño su ofrenda Los otros dos en conversación entre sí señalan la estrella
que los guiara. Si observamos sus vestimentas, veremos variaciones entre
ellas, demostrando como esta pintora puso énfasis en destacar sus distintos
lugares de origen. Ya no tienen vestimentas cortas sino al estilo de la misma
Virgen. Calzan botas cortas y sus túnicas presentan correctos pliegues. Los
colores son tierra con algunos toques de rojo en las vestimentas. También
se puede apreciar que hay diferencia de edad entre los magos. Los dos en
pie también portan sendos presentes. El central que parece más joven, posee
un manto con un forro interior adamascado y el de la izquierda tiene una
capucha finamente adornada, llamando la atención sus mangas tubo al estilo
de la época. Los colores son tierra y vemos cómo sabe usarlos para que se
distinga cada cuerpo y cada parte de los vestidos. Para asemejar un espacio
desde donde se observa la estrella ha realizado un fondo verdoso; tampoco
aquí observamos a un mago negro.

Escenas del Bautismo de Cristo, Cristo resucitado y la Magdalena y Santa Marta


lanceando al dragón

148
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

En la Leyenda Dorada podemos leer sobre la Aparición de Cristo a María


Magdalena CAP. LIV (pág. 231):
¿Cuantas veces se apareció después de resucitar?.
Acerca de esto tenemos que decir que el mismo día en que resucitó se apareció
cinco veces, y otras tantas en el tiempo transcurrido hasta su ascensión al cielo.
Primeramente se apareció a María Magdalena. Esta primera aparición se
halla referida en el Cap. 20 del evangelio de San Juan. Este Evangelista dice:
“Resucitado Jesús, se apareció a María Magdalena en la madrugada del
primer día de la semana…”
Por cinco razones quiso el Señor mostrarse en primer lugar a María
Magdalena, prototipo de penitentes. Primera: para corresponder al ardiente
amor que ella le profesaba desde que le perdonó los muchos pecados que
había cometido. Segunda: Para demostrar que Él había muerto por los
pecadores: “No vine en busca de los justos, sino de los pecadores” (Mateo,
21). Tercera: Para ratificar esto que en alguna ocasión había dicho: “En verdad
os digo que las meretrices os precederán en el reino de los cielos” (Mateo,21);
o lo que es lo mismo: algunas mujeres de mal vivir ocuparan en la
bienaventuranza asientos más destacados que muchos sabios. Cuarta: Porque,
así como según la glosa una mujer fue mensajera de la noticia de su muerte,
una mujer fuese también quien extendiese la voz que había resucitado. Quinta:
Para darnos a entender que, como asegura San Pablo, “donde haya abundado
el pecado, puede después sobreabundar la gracia” (Rom., 5).

No tenemos registro de iluminación de la aparición de Cristo a la


Magdalena, pero sí la redacción en la que se basa esta pintura mural. Vemos
a Cristo con un manto de tono claro que lo recubre y que aparece con un
excelente drapeado. La señal del crucifijo con el lábaro presente en su
resurrección la sostiene en su mano izquierda. Tiene un nimbo crucífero y
señala a Magdalena, la cual está arrodillada, también nimbada y sosteniendo
un pomo con sustancias para ungir al muerto. Magdalena posee una
vestimenta verde con un manto castaño que la cubre. Ambos se hallan en un
paisaje exterior con representación de árboles. Observamos que apenas coloca
un espacio terrenal donde apoyan Jesús sus pies y Magdalena sus rodillas. Sí
vemos que al igual que la Epifanía hay un gran fondo verdoso.
CAP. CV (pág. 419-420)
Marta fue una mujer simpática y muy elocuente. En un bosque situado en
las proximidades del Ródano entre Arlés y Avignon había por aquel tiempo
un dragón cuyo cuerpo más grueso que el de un buey y más largo que el de
un caballo, era una mezcla de animal terrestre y de pez, sus costados estaban
provistos de corazas y su boca de dientes cortantes como espadas y afilados
como cuernos. Esta fiera descomunal a veces salía de la selva, se sumergía
en el río, volcaba las embarcaciones y mataba a cuantos en ellas navegaban.
Teníase por cierto que el espantoso monstruo había sido engendrado por
Leviatán (que es una serpiente acuática ferocísima) y por una fiera llamada

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PAZ, Carmen Beatriz • Teresa Dieç: sobre la pintora gótica Teresa Dieç, activa en torno de 1316...

onaco u onagro, especie de asno salvaje propio de la región de la Galacia, y


que desde este país asiático había venido nadando por el mar hasta el Ródano,
y llegado a través del susodicho río al lugar donde entonces se encontraba.
Decíase también que este dragón, si se sentía acosado, lanzaba sus propios
excrementos contra sus perseguidores en tanta abundancia que podía dejar
cubierta con sus heces una superficie de una yugada; i con tanta fuerza y
velocidad como la que lleva la flecha al salir del arco; y tan calientes que
quemaban como el fuego y reducían a cenizas cualquier cosa que fuera
alcanzada por ellos.
Marta, atendiendo a los ruegos de las gentes de la comarca, y dispuesta a
librarlas definitivamente de los riesgos que corrían, se fue en busca de la
descomunal bestia; en el bosque la halló, devorando a un hombre; acercóse
la santa, la asperjó con agua bendita y le mostró una cruz. La terrible fiera,
al ver la señal de la cruz y al sentir el contacto del agua bendita, tornóse de
repente mansa como una oveja. Entonces Marta se arrimó a ella, la amarró
por el cuello con el cíngulo de su túnica y, usando el ceñidor a modo de
ramal, sacóla de la espesura del bosque, la condujo a un lugar despejado, y
allí los hombres de la comarca la alancearon y mataron a pedradas. […]
Una vez muerto el dragón, Marta, con el beneplácito de su hermana y de
San Maximino, decidió consagrarse a la oración y al ayuno precisamente en
aquel lugar de la selva. Pronto se le unieron con el mismo propósito varias
mujeres, edificó una basílica dedicada a la bienaventurada siempre Virgen
María y un convento anejo en el que todas ellas organizaron su vida en la
comunidad a base de penitencia y oración.

Aquí la imagen de Marta contra el dragón el de la Leyenda Dorada y,


tal como aparece en la Leyenda, Marta detiene al dragón y los hombres de
esa ciudad amurallada que se ve al fondo cumplen con la misión de matarlo,
mientras que en el mural Marta aparece como San Jorge matando al dragón
extramuro mientras es observada por la población desde la muralla. La idea
de San Jorge hace a Marta salvadora contra las fuerzas del mal. La figura
de la santa es una figura más masculina, asemejándose a la de un lancero
medieval, diferente a lo que propone la Leyenda Dorada.
Este es el mural completo con: LA EPIFANÍA, EL BAUTISMO DE
CRISTO, LA APARICIÓN A MAGDALENA Y MARTA MATANDO
AL DRAGÓN. Así aparece el mural como una redacción continua de los
episodios de la Vida de Cristo. La parte superior está deteriorada y no se
puede saber si aparecen los comitentes.
Como se ve, los colores son tierra con algunos verdes y negros. Cristo
aparece siempre con la aureola crucífera. La vestimenta sigue la forma de
la que vimos en la Epifanía.

150
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Conclusiones
Como dice la investigadora Gloria Fernández Somoza (2001, p. 21),
“[…] en el espacio coral las Clarisas centraban su vida espiritual y litúrgica,
razón que justifica el hecho de que estuviese decorado con escenas hagio-
gráficas o de la vida de Cristo. Además de suceder así en Toro, también lo
vemos en el coro de las Clarisas de Salamanca.” Lo importante de estos
murales radica en el hecho que fueran realizados y firmados por una mujer
de la cual, debido a los problemas de la desamortización, no se tiene dema-
siado referencias; tampoco si la reina María de Molina fuese su comitente.
Pero una vez más ponemos en claro que, fuese laica o religiosa, Teresa Dieç
poseía una extraordinaria capacidad artística y desarrolla el inminente arte
gótico francés que entra tardíamente a España pero que demuestra las habi-
lidades femeninas de las que queremos rescatar, en especial, los detalles
que se observan en los murales usando pocos colores, todos vegetales, sin
embargo destacando figura y fondo con suma habilidad.

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1989. 2 v. ISBN 84-206-7998-4

152
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Da iussio à redactio: observações sobre as funções


desempenhadas pelo pessoal da chancelaria real
de Afonso X de Castela (1252-1284)

Marina Kleine1

Da mesma forma que ocorreu em outras formações políticas da Euro-


pa ocidental, Castela experimentou na segunda metade do século XIII uma
reordenação da estrutura político-administrativa: o aumento do grau de com-
plexidade dos sistemas fiscal e jurídico em suas distintas competências – real,
senhorial, eclesiástica e municipal – conduziu à ampliação e consequente
especialização do quadro de oficiais em todos os níveis e a uma reestrutura-
ção sem precedentes em diversos âmbitos. Uma das instituições que melhor
refletiu as mudanças ocorridas em meados do século foi, precisamente, a que
deixou mais rastros de suas atividades: a chancelaria real, a oficina encarre-
gada de expedir documentos em nome do monarca e um dos mais antigos
organismos vinculados ao governo do reino. Não por acaso, o principal e
mais evidente indício destas transformações é a considerável multiplicação
do volume documental produzido pela monarquia castelhana a partir de 1250.
A chancelaria real, enquanto organismo que tinha por função princi-
pal a confecção e expedição dos documentos do monarca relativos ao go-
verno e à administração do reino, constitui um objeto de interesse de dife-
rentes disciplinas. Em conjunto, os principais estudos dedicados direta ou
indiretamente à chancelaria real castelhana se centram, em geral, em dois
enfoques distintos: a instituição em si mesma e a norma referente a ela, no
caso da história do direito2, e os próprios diplomas expedidos em nome do
rei, no caso da paleografia e da diplomática3. O resultado do primeiro enfo-

1
Universidad de Sevilha.
2
A obra de maior destaque neste sentido continua sendo a de TORRES SANZ, David. La
administración central castellana en la Baja Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid,
1982, especialmente o capítulo 5.
3
Como exemplos, podemos citar os trabalhos de MILLARES CARLO, Agustín. La cancillería
real en León y Castilla hasta fines del reinado de Fernando III. Anuario de Historia del Derecho
Español, v. 3, p. 227-306, 1926; LUCAS ÁLVAREZ, Manuel. Las cancillerías reales (1109-1230).

153
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

que costuma ser a descrição de uma instituição constituída por ofícios hie-
rarquicamente ordenados e de suas respectivas funções delimitadas na le-
gislação da época, mas cujos titulares permanecem no anonimato. Ao mes-
mo tempo, esta descrição normalmente abarca um período muito amplo e
não reflete uma preocupação pela historicidade da instituição e pelas mu-
danças sofridas ao longo do período estudado. O segundo enfoque, além de
igualmente descuidar do material humano vinculado à instituição, apre-
senta um risco similar, isto é, o de ter como resultado unicamente a descri-
ção da produção documental de uma determinada oficina, muitas vezes
obviando o contexto que emoldura sua evolução na diacronia histórica.
Assim, considerando esta carência da historiografia existente sobre
as chancelarias reais castelhano-leonesas na Idade Média, a pesquisa que
realizamos em nossa tese de doutorado teve como objetivo abordar a ques-
tão a partir da perspectiva dos atores documentais, dos indivíduos que de-
ram vida à chancelaria real de Afonso X e protagonizaram o processo de
expedição documental levado a cabo pela instituição durante este reinado4.
Para tanto, o trabalho consistiu na coleta de informações contidas na docu-
mentação da época em um banco de dados e na posterior elaboração de um
catálogo prosopográfico de todos os indivíduos vinculados com a produ-
ção de documentos do monarca. O principal elemento para a identificação
dos atores documentais nos diplomas emitidos pela chancelaria real é a
chamada subscrição chanceleresca ou linha de chancelaria, onde se indi-

León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1993. (Coleção “El reino de León en
la Alta Edad Media”, 5); OSTOS SALCEDO, Pilar. La cancillería de Alfonso VIII, rey de
Castilla (1158-1214): una aproximación. Boletín Millares Carlo, v. 13, p. 101-135, 1994; ID. La
cancillería de Fernando III, rey de Castilla (1217-1230): una aproximación. Archivo Hispalense
(Actas de las IV Jornadas de Historia Militar), 77/234-236, p. 59-70, 1994; LÓPEZ
GUTIÉRREZ, Antonio. La cancillería de Fernando III, rey de Castilla y León (1230-1253
[sic]): notas para su estudio. In: ibid. p. 70-81; PARDO RODRÍGUEZ, María Luisa. La cancillería
de don Fernando de la Cerda, infante de Castilla y León (1255-1275). León: Universidad de León,
2009; e SÁNCHEZ BELDA, Luis. La cancillería castellana durante el reinado de Sancho IV
(1284-1295). Anuario de Historia del Derecho Español, v. 21-22, p. 171-223, 1951-1952.
Especificamente para o reinado de Afonso X, os principais trabalhos são os de PROCTER,
Evelyn S. The Castilian Chancery during the reign of Alfonso X (1252-1284). In: POWICKE,
Frederick Maurice. Oxford Essays in Medieval History Presented to Herbert Edward Salter. Oxford:
Clarendon, 1934. p. 104-121; e LÓPEZ GUTIÉRREZ, Antonio. La Cancillería de Alfonso X a
través de las fuentes legales y la realidad documental. Tese de doutorado publicada em microfichas –
Universidad de Oviedo, Oviedo, 1990.
4
KLEINE, Marina. La cancillería real castellana durante el reinado de Alfonso X (1252-1284): una
aproximación prosopográfica. Tese de doutorado inédita – Universidad de Sevilla, Sevilha,
2012, 894 p. Esta tese foi realizada graças à concessão de uma bolsa de doutorado pleno no
exterior pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

154
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

cam os nomes dos indivíduos que atuaram na expedição dos mesmos. Por-
tanto, com tal de determinar as funções exercidas pelo pessoal chanceleres-
co, centraremos a análise a seguir nessas subscrições da documentação de
Afonso X.
No que diz respeito às informações que fornece sobre o pessoal ativo
na produção documental, a documentação real emitida pela chancelaria de
Afonso X apresenta uma particularidade inovadora em comparação com o
que se pode observar nos reinados anteriores, tanto em Castela como em
Leão: a inclusão sistemática de subscrição chanceleresca em todas as for-
mas documentais produzidas. Esta prática teve início já nos dois últimos
anos do reinado de Fernando III, com a atividade do bispo de Segóvia,
Remondo, como notário do rei, e estabeleceu as bases definitivas da produ-
ção documental dos monarcas castelhano-leoneses durante a Baixa Idade
Média. Como consequência, este fato permite uma aproximação muito mais
detalhada do pesquisador aos indivíduos que atuavam no processo de expe-
dição documental e às funções que nele exerciam, elementos determinan-
tes para compreender a organização e o funcionamento da chancelaria real
como instrumento de governo e órgão fundamental nas relações entre o
monarca e seus súditos.
A este respeito, os textos jurídicos compilados na corte alfonsina de-
terminam que os privilegios rodados e as cartas plomadas devem indicar sem-
pre “el nombre del escriuano que lo fizo”, embora não especifiquem como
se deve proceder em relação às outras formas documentais5. A documenta-
ção de Afonso X que compilamos demonstra, no entanto, que a subscrição
chanceleresca era seguramente um elemento obrigatório para qualquer di-
ploma expedido. De fato, foi consultado um total de 1.931 documentos
afonsinos e, embora 82 não contenham a cláusula de subscrição da chance-
laria, somente quatro destes últimos são originais6. A base para a análise

5
P III.xviii.2 e E IV.xii.13 sobre os privilegios; P III.xviii.4 e E IV.xii.15 sobre as cartas plomadas.
As edições aqui utilizadas de ambas as obras são: BERNÍ Y CATALÁ, Joseph. Las Siete Partidas
del rey D. Alfonso el Sabio, glosadas por el Sr. D. Gregorio López. Valencia: Benito Monfort, 1767; e
MARTÍNEZ DÍEZ, Gonzalo. Leyes de Alfonso X: I. Espéculo. Ávila: Fundación Sánchez
Albornoz, 1985.
6
Os outros 78 conservam-se unicamente através de cópias, traslados ou inserções em confirmações
posteriores, o que certamente explica tal ausência, dado que estas formas de transmissão nem
sempre incluem os elementos de validação do documento transmitido. No tocante aos quatro
diplomas originais, trata-se de dois privilegios rodados de confirmação outorgados aos mosteiros
de Nogales e Sahagún (Archivo Histórico Nacional [AHN], Clero, carpeta 949, nº 6 e AHN,
Clero, carp. 916, nº 13, respectivamente) e de dois exemplares da mesma carta partida por ABC

155
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

que aqui apresentamos, portanto, é um conjunto de 1.849 documentos


emitidos pela chancelaria do Rei Sábio que indicam o indivíduo responsá-
vel por sua redação. Após o exame do mencionado corpus documental, foi
possível verificar que as fórmulas utilizadas nas subscrições da chancelaria
dos documentos de Afonso X são variadas, sendo de uso recorrente as se-
guintes7:
– “N la escribió.”
– “N la escribió por mandato de N / del rey.”
– “N la mandó hacer por mandato del rey. N la escribió.”
– “N la hizo.”
– “N la hizo por mandato de N / del rey.”
– “N la hizo por mandato de N, teniente las veces de N.”
– “N la mandó hacer por mandato del rey. N la hizo.”
– “N, teniente las veces de N, la mandó hacer por mandato del rey. N
la hizo.”
– “N la hizo escribir.”
– “N la hizo escribir por mandato de N / del rey.”
– “N la mandó hacer por mandato del rey. N la hizo escribir.”
– “N, teniente las veces de N, la mandó hacer por mandato del rey. N
la hizo escribir.”
– “N la hizo escribir. N la escribió.”
Como se pode observar, as locuções que se referem à ação realizada
por cada indivíduo na elaboração do documento se reduzem a quatro:
“mandar hacer”, “hacer escribir”, “hacer” e “escribir”. Os significados de
“mandar hacer” e de “escribir” resultam claramente inequívocos, na medi-
da em que a primeira locução faz referência à transmissão, direta ou dele-
gada, da iussio real – entendida esta como a ordem de expedição do docu-
mento, como será detalhado mais adiante –, enquanto que a segunda alude
à materialidade da ação de colocar por escrito o ato jurídico em questão. As

– neste caso, foram confeccionadas três – pela qual Afonso X ditava sentença em um pleito
entre o bispo e o capítulo da catedral de Cuenca e o concelho da cidade (Archivo de la Catedral
de Cuenca, I, caja 5, nº 20 e 21). Não nos foi possível detectar o motivo pelo qual estes documentos
não contêm a subscrição chanceleresca e, dada sua quantidade tão exígua, entendemos que se
trata de casos absolutamente excepcionais.
7
Não incluímos nesta lista as subscrições que, por sua escassa utilização e provável origem em
mãos posteriores – no caso de cópias, traslados e inserções –, podem ser consideradas como
anômalas e não recorrentes. Das 13 fórmulas apresentadas, a mais frequente tem quase 600
ocorrências e a menos frequente repete-se 23 vezes.

156
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

outras duas expressões, “hacer escribir” e “hacer”, no entanto, não estão


desprovidas de ambiguidade com respeito à função que indicam e deram
lugar a diferentes interpretações de historiadores e diplomatistas dedicados
ao estudo das chancelarias reais medievais.
Na literatura existente sobre a documentação real castelhano-leone-
sa da Idade Média, desde a publicação da síntese de Agustín Millares Carlo
sobre as chancelarias reais até o reinado de Fernando III, normalmente
considera-se o uso da expressão “hacer escribir” na subscrição chanceleres-
ca como indicativo da participação de uma terceira pessoa na elaboração
do documento, diferente da que transmite a iussio real – nem sempre pre-
sente – e também diferente da que pratica a ação de “hacer escribir”8. Este
terceiro indivíduo – que, na grande maioria dos casos examinados do uso
da expressão, permanece anônimo – seria, portanto, o autor material do
documento, o encarregado de escrevê-lo com sua própria mão. Tal asser-
ção resulta perfeitamente plausível e aceitável, pois parece evidente que o
indivíduo que subscreve um documento real afirmando que “lo hizo escri-
bir” está precisamente indicando que não é o autor material do mesmo.
Em seu estudo sobre a chancelaria de Sancho IV, Luis Sánchez Belda
ultrapassa os limites desta interpretação e atribui outro significado à men-
cionada expressão. Com o objetivo de identificar uma hierarquia de fun-
ções entre os escrivães, o autor afirma que, “mientras unos figuran sólo con
la firma de su nombre indicando su misión de sellador, registrador o ejecu-
tor material del diploma, otros aparecen en la suscripción con una fórmula
que les equipara por completo a los notarios”, referindo-se à locução “ha-
cer escribir”9. Isto o leva a concluir que tais escrivães, os quais qualifica
como “funcionarios sin título”, não apenas atuavam como notários, como
também eram colocados por estes para substituí-los – uma suposição que, a
propósito, não pode ser comprovada com a documentação – e eram os ver-
dadeiros encarregados de levar o peso da produção documental na chance-
laria10. Por outra parte, o autor entende o verbo “hacer”, aplicado aos di-
plomas, como sinônimo de “escribir”, ou seja, igualmente indicativo do
momento de materialização do documento. Como consequência, e fazen-
do menção ao significado das quatro locuções que identificamos acima nas
subscrições chancelerescas de Afonso X, Luis Sánchez propõe a existência

8
MILLARES CARLO, 1926, p. 264.
9
SÁNCHEZ BELDA, 1951-1952, p. 186.
10
Ibid., p. 191.

157
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

de uma oposição entre as fórmulas que contêm os verbos “escribir” ou “ha-


cer”, que seriam utilizadas pelos “escribas propiamente dichos”, e as que
incluem as expressões “hacer escribir” ou “mandar hacer”, dando a enten-
der que estas duas últimas seriam equivalentes e, portanto, “hacer escribir”
também indicaria a transmissão da iussio real11.
Tais observações sobre as funções do pessoal chanceleresco durante
o reinado de Sancho IV encontraram eco na tese de Antonio López Gutiér-
rez, o estudo diplomático mais completo de que se dispõe até o momento
sobre a chancelaria de seu pai, Afonso X12. Sem abordar diretamente a ques-
tão da iussio documental, o autor referenda a equivalência entre as expres-
sões “mandar hacer” e “hacer escribir” e, por conseguinte, sua associação
com a transmissão da iussio régia, que denomina de “iussio delegada”13. As
duas principais conclusões de Antonio López resultantes desta forma de
entender a iussio documental na chancelaria de Afonso X são, em primeiro
lugar, a de que em muitos casos se observa “la ausencia del escribano que
redacta el documento” nas subscrições chancelerescas – referindo-se ao uso
frequente da fórmula “N la hizo escribir por mandato del rey” – e, em se-
gundo lugar, a de que há na instituição “un personal que ejerce el oficio de
notario y, sin embargo, no figura en los documentos nominado como tal”14.
Na realidade, a explicação oferecida pela historiografia para a ques-
tão da iussio documental na segunda metade do século XIII resulta pouco
clara e insuficiente. A raiz do problema se encontra no significado atribuí-
do à locução “hacer escribir” nas subscrições de chancelaria dos documen-
tos reais. A nosso entender, a solução proposta pelos estudos existentes re-
sulta insatisfatória porque se estriba, por um lado, na confusão entre dois
momentos claramente distintos da conscriptio documental: a iussio e a redac-
tio. Por outro lado, tal confusão parece ser produto de não se ter dado a
devida advertência a uma mudança fundamental no tipo de intervenção
dos notários na expedição de documentos reais. Estes dois pontos precisam
ser esclarecidos para que se possa compreender o papel das distintas pesso-
as que intervinham na produção documental da chancelaria de Afonso X e
determinar as funções atribuídas a estes indivíduos, como trataremos de
expor a seguir.

11
Ibid., p. 187.
12
LÓPEZ GUTIÉRREZ, 1994.
13
Esta ideia se reflete de modo especial no elenco apresentado pelo autor das fórmulas utilizadas
nas subscrições de chancelaria, particularmente em ibid., p. 570.
14
Ibid., p. 193-194.

158
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Em primeiro lugar, com o objetivo de mostrar como as etapas da


iussio e da redactio se manifestam na documentação produzida pela chance-
laria real, particularmente nas subscrições chancelerescas dos diplomas,
faremos um breve percurso pela documentação expedida nos reinados pre-
cedentes ao de Afonso X. A busca das origens e da evolução da distribuição
de tarefas na expedição dos documentos reais castelhanos e leoneses, dessa
forma, permitirá identificar as funções exercidas pelo pessoal adscrito à
instituição e poderá elucidar os diferentes papéis desempenhados pelos atores
documentais durante o reinado do Rei Sábio.
Considerando-se que o principal elemento que caracteriza uma chan-
celaria organizada é a constância de um pessoal próprio identificável e dedi-
cado à confecção dos diplomas que produz, pode-se afirmar que os reinos de
Castela e Leão contaram com uma chancelaria como organismo de expedi-
ção de documentos reais pelo menos desde a primeira metade do século XII15.
Tomando como ponto de partida o reinado de Afonso VII (1105-1157), ob-
servamos que se tratava basicamente da existência de um chanceler como
chefe do escritório de expedição documental do rei e responsável, muitas
vezes, pela transmissão da iussio real aos indivíduos encarregados da redação
dos diplomas, nos casos em que tais funções são expressas nos documentos16.
Estes últimos figuram nas subscrições predominantemente com o título de
notários do rei (“notarius domini regis”), mas ocasionalmente também como
escrivães (“scriptor domini regis”). Ambos utilizavam a locução “scripsit”
para indicar sua função na expedição dos diplomas reais, o que aponta a que

15
O período anterior foi essencialmente marcado pela confecção de diplomas por parte não de
um pessoal vinculado a uma instituição régia identificável com uma chancelaria, mas sim por
escribas dependentes dos destinatários dos documentos, que utilizavam fórmulas próprias e
mais características da documentação privada. As novidades introduzidas durante o reinado
de Afonso VII, como o surgimento da figura do chanceler e o uso do selo real como principal
forma de validação dos diplomas, marcam “el germen a partir del cual se irá desarrollando la
posterior y compleja cancillería castellano-leonesa”. OSTOS SALCEDO, Pilar; PARDO
RODRÍGUEZ, María Luisa; SANZ FUENTES, María Josefa. Corona de Castilla-León:
documentos reales. Tipología (775-1250). In: BISTRICKÝ, Jan. Typologie der Königsurkunden:
Kolloquium der Comission Internationale de Diplomatique in Olmütz (1992). Olmütz:
Univerzita Palackého, 1998, p. 163-187, especialmente p. 164-165.
16
Sobre a chancelaria de Afonso VII, ver os trabalhos de RASSOW, Peter. Die Urkunde Kaiser
Alfons’ VII von Spanien: eine palaeographische-diplomatische Untersuchung. Berlin: Gruyter,
1929; REILLY, Bernard F. The Chancery of Alfonso VII of León-Castilla: The Period 1116-
1135 Reconsidered. Speculum, v. 51, n. 2, p. 243-261, abr. 1976; LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p.
89-314. Além das obras já referidas, também na síntese de Agustín Millares Carlo podem ver-
se vários exemplos de subscrições de documentos reais que permitem deduzir a organização
chanceleresca: MILLARES CARLO, 1926, p. 227-306.

159
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

notários e escrivães, embora constituíssem dois cargos distintos – inclusive


com um possível sentido hierárquico –, executavam, na prática, a mesma
tarefa na chancelaria: a de escrever os documentos do rei. Tampouco é raro
encontrar o próprio chanceler exercendo esta tarefa, o que denota o caráter
débil da hierarquização da instituição em suas etapas iniciais e certo grau de
fluidez das funções atribuídas a cada cargo17.
Posteriormente, a divisão dos reinos entre os filhos do imperador,
Fernando II de Leão (1157-1188) e Sancho III de Castela (1157-1158), pro-
vocou o surgimento de novos costumes e formas chancelerescas particula-
res em cada um dos dois reinos – que mais tarde foram também incorpora-
das no correspondente reino vizinho, como o signo real em forma de roda
que surgiu em Leão em 1158 e o selo de chumbo aparecido em Castela em
1176, já sob Afonso VIII –, mas em essência a base da organização da chan-
celaria, embora incipiente, foi herdada por ambos18. Segundo Manuel Lu-
cas Álvarez, no reino de Leão sob Fernando II já se pode observar pela
primeira vez a diferenciação de um terceiro nível nas funções da expedição
documental chanceleresca, que seria evidenciado pelo uso da fórmula “N,
notarius regis, scribi feci”19, mas, na verdade, a maior parte dos documen-
tos atesta a função dos notários como os autores materiais propriamente
ditos (“N, regis notarius, N cancellario existente, scripsit”), eventualmente
sob a iussio do chanceler (“N, regis notarius, per manum / per iussonem /
per mandatum N cancellari, scripsit”)20. Neste sentido, durante o breve rei-
nado de seu irmão Sancho III em Castela, igualmente não detectamos ne-
nhuma mudança na hierarquia chanceleresca de acordo com as informa-
ções contidas nas subscrições dos documentos. O protagonista de sua chan-
celaria foi Martín Peláez, que escreveu os diplomas – usando a locução
“scripsit” – em uma primeira etapa como “clericus et scriptor domini re-

17
Como no seguinte exemplo referente ao reinado de Afonso VII: “Magister Petrus Gunsalviz,
imperatoris cancellarius, beati Iacobi canonicus in Palencia, scripsit”, cit. ap. LUCAS
ÁLVAREZ, 1993, p. 194.
18
Sancho III e Fernando II começaram a reinar ainda em vida de seu pai, contando com uma
produção documental também nos anos anteriores ao falecimento deste em 1157. MILLARES
CARLO, 1926, p. 269. Para as novidades introduzidas nas chancelarias castelhana e leonesa a
meados do século XII por Afonso VIII e Afonso IX, ver os estudos de OSTOS SALCEDO,
1994; e de LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p. 489-597.
19
LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p. 317-485. Para a chancelaria de Fernando II, também é referência
a obra de GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Regesta de Fernando II. Madrid: Instituto Jerónimo
Zurita, 1949.
20
MILLARES CARLO, 1926, p. 266.

160
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

gis” (1145-1155), logo por um curto período figura sob a iussio do chanceler
(1154-1155) e, já nos últimos anos, subscreveu os documentos com a fór-
mula “Martinus Pelaiz, regis notarius, hanc cartam scripsit” (1155-1158)21.
Mudanças substanciais ocorreram em ambas as chancelarias reais,
no que diz respeito ao seu pessoal e organização interna, durante os reina-
dos de Afonso VIII de Castela e Afonso IX de Leão. No caso da instituição
castelhana, como indicou Pilar Ostos Salcedo, a figura do “subnotarius”
assumiu paulatinamente a função de escrever materialmente os diplomas22.
Assim, após analisar as subscrições documentais de Afonso VIII, observa-
mos três etapas distintas na organização de sua chancelaria23. Na primeira,
(1159-1206), seguindo a prática dos períodos anteriores, ainda predomina-
ram os notários como autores materiais com o uso da fórmula “N, regis
notarius, scripsit”. Destacou-se nesta longa fase inicial a figura do chance-
ler Raimundo, que de 1164 a 1176 também se encarregou de escrever mate-
rialmente os documentos reais (“Raimundus, regis cancellarius, scripsit”).
Em 1204, surgiram as primeiras subscrições com a fórmula “N, regis sub-
notarius, scripsit”, embora ainda fossem excepcionais nestes momentos.
Pouco depois, de 1206 a 1209, predominou pela primeira vez na chancela-
ria real o uso da fórmula “N, notarius regis, scribere iussit / fecit”, sem
incluir os autores materiais dos documentos, que provavelmente seriam os
mencionados subnotários. Finalmente, de 1209 até o final do reinado em
1214, as mudanças na chancelaria parecem ter dado lugar a um período de
estabilidade, e a subscrição majoritariamente observada na documentação é
“N, regis notarius, N subnotario scribere iussit”. Esta última fórmula encon-
trou seguimento na chancelaria real castelhana durante o breve reinado de
Enrique I (1214-1217), no qual não observamos alterações neste sentido24.
Por sua vez, os diplomas de Afonso IX de Leão também constituem
um claro exemplo da evolução gradual da organização da chancelaria e da
definição das funções de seu pessoal no início do século XIII25. O exame da

21
Vide a coleção de documentos de Sancho III incluída no segundo volume da obra de
GONZÁLEZ GONZÁLEZ, 1949.
22
OSTOS SALCEDO, 1994, p. 113.
23
Os dados apresentados a seguir procedem de um exame da documentação de Afonso VIII
publicada por GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. El reino de Castilla en la época de Alfonso
VIII. Op. cit., [? NÃO FOI CITADA ANTERIORMENTE] v. II e III.
24
A documentação analisada também se encontra editada na coleção documental publicada por
Julio González, citada na nota anterior, ao final do terceiro volume.
25
Vide os estudos de GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Alfonso IX. Op. cit., v. I, p. 479-492, e
LUCAS ÁLVAREZ, 1993, p. 489-597.

161
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

documentação real leonesa expedida neste período novamente nos permi-


tiu identificar três etapas distintas26. Durante a maior parte do reinado de
Afonso IX (1188-1219), predominou a tradicional atuação dos notários
como autores materiais dos diplomas reais, sendo a fórmula de subscrição
mais frequente a de “N, regis notarius, scripsit”. A figura do “scriptor re-
gis” não apareceu antes de 1219, quando se observa uma espécie de perío-
do de transição (1219-1225), no qual os notários compartilharam o prota-
gonismo nas subscrições com os escrivães, e estes alternavam o uso da fór-
mula “N, scriptor regis, notavit” com o de “N, scriptor regis, scripsit”, sen-
do a primeira mais frequente que a segunda. A partir de 1225 – portanto,
nos últimos cinco anos do reinado –, os notários praticamente cederam a
função de escrever os documentos reais aos “scriptores regis” e, finalmente,
observa-se a predominância da fórmula “N, scriptor regis, scripsit”.
O mesmo tipo de análise, agora realizado com a documentação pro-
duzida pela chancelaria de Fernando III, rei de Castela de 1217 a 1230, e de
Castela e Leão desde esta última data até 125227, permite-nos uma vez mais
demonstrar a existência de três etapas diferenciadas no que diz respeito às
subscrições dos diplomas28. De 1217 a 1232, o chanceler interveio direta-
mente na expedição documental, transmitindo a iussio real a indivíduos –
possivelmente escrivães – que, na grande maioria dos casos, figuram sem
nenhuma menção ao posto que ocupavam na instituição29. Esta situação se
deduz da fórmula mais utilizada na mencionada etapa: “N cancellarius
iussit, N scripsit”. Desde 1233 até 1249, destaca-se a ausência de subscrição
chanceleresca na maior parte dos documentos, incluídos os mais solenes.
Finalmente, em 1250, entrou em cena Remondo, bispo de Segóvia, como
“notarius regis”, e não se menciona a existência de um chanceler.
Durante os dois últimos anos do reinado de Fernando III, nos quais
o bispo segoviano esteve à frente da expedição dos documentos reais, ocor-

26
Obtivemos os dados apresentados a partir de uma análise da documentação de Afonso IX
publicada por GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Alfonso IX. Op. cit., v. II.
27
A chancelaria de Fernando III foi um dos objetos da obra de GONZÁLEZ GONZÁLEZ,
Julio. Reinado y diplomas de Fernando III. Op. cit., vol. I, pp. 504-555. Também foi
detalhadamente estudada por OSTOS SALCEDO, Pilar. “La cancillería de Fernando III...”.
Art. cit., pp. 59-70; e por LÓPEZ GUTIÉRREZ, Antonio. “La cancillería de Fernando III...”.
Art. cit., pp. 70-81.
28
As informações que fornecemos sobre a chancelaria fernandina resultam de nossa observação
dos diplomas publicados na coleção documental de GONZÁLEZ GONZÁLEZ, Julio. Reinado
y diplomas de Fernando III. Op. cit. [? NÃO FOI CITADA ANTERIORMENTE], v. II e III.
29
Com exceção de cerca de 30 documentos do total de quase 500 referentes a esta primeira
etapa, nos quais, sim, se pode constatar a menção a um “scriptor” ou “scriptor domini regis”.

162
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

reram na chancelaria castelhano-leonesa duas mudanças profundas na evo-


lução da instituição. Em primeiro lugar, uma mudança estrutural, marcada
pela substituição do chanceler pelo notário como transmissor da iussio real
aos escrivães. Com efeito, a fórmula mais utilizada nas subscrições chance-
lerescas de 1250 a 1252 é: “N, iussu magistri Raimundi, Segobiensis episco-
pi, domini regis notarii, hanc cartam scripsi”. Em segundo lugar, uma mu-
dança formal, já que, pela primeira vez, foi incluída a subscrição chancele-
resca em todas as formas documentais produzidas, fato que anteriormente
se constatava apenas nos documentos mais solenes, que levavam a subscri-
ção de confirmantes30. Estas duas inovações marcaram as pautas da chan-
celaria real de Afonso X e, por este motivo, são fundamentais para a com-
preensão de seu funcionamento, como veremos a seguir.
Em conjunto, portanto, pode-se verificar que o esquema hierárquico
chanceleresco consistente na existência de um chanceler que, ocasional-
mente, transmitia a iussio real e de um grupo de notários, subnotários e/ou
escrivães que se encarregavam da redação dos documentos se manteve –
com algumas variações e com o surgimento efêmero de novas funções, como
a do vice-chanceler – praticamente até o final do reinado de Fernando III.
Somente então, em 1250, o notário real substituiu o chanceler e foi definida
sua função tal como se observa a partir da segunda metade do século XIII e
em toda a Baixa Idade Média: como um dos responsáveis pela transmissão
das ordens do rei na emissão de documentos reais. Isto se concretizou pre-
cisamente no momento em que o chanceler deixou de intervir diretamente
no processo de expedição documental e de figurar nas subscrições chance-
lerescas dos diplomas reais, sendo plenamente substituído pelo notário e
por outros indivíduos como transmissores da iussio do rei aos escrivães,
que, a partir de então, passaram a ser os únicos encarregados da redação
dos diplomas. O posto de chanceler se converteu, assim, definitivamente
em um cargo honorífico, que, embora implicasse o recebimento de uma
importante retribuição anual, já não tinha uma participação ativa na expe-
dição documental da chancelaria real31.

30
As primeiras exceções se observam durante o reinado de Afonso VIII em Castela; OSTOS
SALCEDO, 1994, p. 130-131. No entanto, a mudança definitiva somente se produz com
Fernando III, em 1250. Também é necessário acrescentar a observação de Antonio López
sobre o surgimento, no mencionado período de atuação de Remondo como notário real, das
marcas feitas pelo pessoal da chancelaria na plica dos documentos; LÓPEZ GUTIÉRREZ,
1994, p. 77.
31
Embora para épocas anteriores se tenha advertido para o caráter honorífico do cargo de
chanceler, o qual muitas vezes delegava sua função a outro indivíduo, este último igualmente

163
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

Como vimos, um dos elementos-chave para a compreensão da hie-


rarquia de funções e distribuição de tarefas na chancelaria real é o exercício
da iussio documental. Neste sentido, convém destacar-se que a Commission
Internationale de Diplomatique define a iussio como:
Le commandement d’un acte (lat.: iussio) est l’action par laquelle l’ordre est
donné de procéder à l’établissement de l’acte écrit; l’ordre peut être écrit ou
verbal. Il peut être donné par l’auteur de l’acte juridique lui-même ou bien
par une personne ou une institution à qui il a confié l’instruction de l’affaire
et délégué, compte rendu de sa compétence, la décision.32

A iussio documental é, portanto, a ação pela qual se ordena a emissão


de um diploma. Em última análise, na qualidade de autor do ato jurídico, o
rei é o iussor de todos os documentos emitidos em seu nome, fato que pode
ser observado pelo menos desde o século XII na roboratio real dos diplomas
castelhanos e leoneses, nos quais o monarca confirma “hanc cartam, quam
fieri iussi”. A iussio real também encontra expressão na inclusão de locu-
ções como “rege exprimente” ou “el rey la mandó” na cláusula da data, ou
ainda na especificação de que o documento se fez “por mandato del rey”,
incluída na data ou na subscrição chanceleresca do documento33. Por outro
lado, como indica a citada definição, a ordem de expedição pode ser dada
de forma direta ou indireta, isto é, no caso dos documentos reais, a iussio
pode ser exercida diretamente pelo rei ou transmitida através de pessoas
concretas designadas pelo monarca para executar esta tarefa.
Pudemos observar que, desde pelo menos o reinado de Afonso VII, a
iussio documental nos diplomas reais era exercida diretamente pelo rei ou

utilizava o título nos documentos, o que revela a importância que se conferia ao cargo e a
existência de chanceleres de fato e chanceleres de direito. Como exemplo, vide o caso da
delegação do cargo de chanceler do arcebispo de Toledo Rodrigo Jiménez de Rada a Juan de
Soria: OSTOS SALCEDO, 1994, p. 61. No que diz respeito à retribuição econômica vinculada
aos altos títulos da chancelaria real, Linehan e Hernández mencionam que Gonzalo Pérez
recebia 6.000 maravedís como notário de Castela durante o reinado de Alfonso X; LINEHAN,
Peter; HERNÁNDEZ, Francisco J. The Mozarabic Cardinal: The Life and Times of Gonzalo
Pérez Gudiel. Florencia: SISMEL / Edizioni del Galluzzo, 2004, p. 133 e 486. Especificamente
sobre os chanceleres, é significativa a carta outorgada por Fernando IV em 1300 ao mesmo
Gonzalo Pérez, então chanceler de Castela, pela qual lhe confirmava a tenência da chancelaria
e o pagamento correspondente, que nesse momento chegava a 40.000 maravedís. NIETO
SORIA, José Manuel. Las relaciones monarquía-episcopado castellano como sistema de poder (1252-
1312). Tese (Doutorado) – Universidad Complutense, Madrid, 1983, v. II, p. 255-256.
32
CÁRCEL ORTÍ, María Milagros. Vocabulaire international de la diplomatique. Valencia:
Universitat de València, 1994, nº 336.
33
Sobre a incorporação da fórmula “rege exprimente” na cláusula da data dos diplomas reais
durante o reinado de Afonso VIII, vide OSTOS SALCEDO, 1994, p. 118-119.

164
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

transmitida através do chanceler, situação que só mudou de configuração


em 1250, quando um notário régio passou a transmitir a iussio no lugar do
chanceler, o qual desapareceu das subscrições chancelerescas. No que con-
cerne à chancelaria de Afonso X, porém, tanto a Tercera Partida como o
Espéculo afirmam que podiam “dar cartas” na casa ou na corte do rei, além
do próprio monarca, o chanceler, os notários e os indivíduos que julgavam
na corte, como os adelantados e os alcaldes34. No entanto, o exame da docu-
mentação afonsina demonstra que os chanceleres não intervieram na práti-
ca da expedição documental, assim como também não o fizeram os adelan-
tados35. Dessa forma, o grupo de indivíduos que, na prática, transmitiam a
iussio de Afonso X, os quais aqui denominamos iussores, estava composto
por notários, alcaldes e outros indivíduos sem cargo definido designados
pelo rei para ordenar a emissão de documentos em seu nome.
Tal ação reflete-se no uso das expressões “mandar hacer” ou “por
mandato de”, e faz-se patente em toda a documentação real produzida em
Leão e Castela pelo menos desde o século XII, como foi demonstrado. A
evolução, neste sentido, observa-se no aumento do número de indivíduos
habilitados em cada momento para a execução da tarefa de ordenar a expe-
dição de um diploma: inicialmente, a iussio documental era exercida unica-
mente pelo rei e pelo chanceler; a partir de 1250, o notário real – neste caso
concreto havia somente um – substituiu o chanceler nesta função; e, por
fim, com Alfonso X, abriu-se a possibilidade de que, além dos notários –
nesse momento já havia mais de um –, também os alcaldes e outros indiví-
duos da corte transmitissem a iussio real nos diplomas chancelerescos.
Em relação a isto, é necessário ressaltar que a citada definição de
iussio oferecida pela Comission Internationale de Diplomatique faz referência
ao conteúdo jurídico do documento e à competência ou poder do iussor,
seja este uma pessoa ou uma instituição, para a tomada de decisão necessá-
ria para ordenar a redação do diploma. A iussio, portanto, não se reduz
unicamente à ordem de expedição documental, mas também implica – e
este talvez seja o elemento mais importante a ser considerado – a responsa-

34
P III.xviii.26, E IV.vi.3: “En casa del Rey, nin en su Corte ninguno non deue dar cartas, si non
estas que aquí diremos luego. Primeramente dezimos, que carta ninguna, que sea de gracia, o
de merced que el Rey faga a alguno, que otro non la pueda dar si non el Rey, o otro por su
mandado, de aquellos que lo deuen fazer; assí como Chanceller, o Notario, o alguno de los
otros que han de judgar en la Corte, assi como Adelantados o Alcaldes”.
35
Em nosso estudo, encontramos a exceção de um único documento no qual o chanceler intervém;
KLEINE, 2012, p. 63.

165
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

bilidade sobre o conteúdo jurídico do documento a ser emitido. Desta for-


ma, voltando às fórmulas identificadas ao princípio deste texto que sinteti-
zam as usadas nas subscrições chancelerescas da documentação de Afonso
X, podemos observar que somente o rei e os indivíduos que utilizavam as
expressões “mandar hacer” ou “por mandato de” nessas fórmulas podem
ser considerados como iussores e, portanto, como responsáveis pelo negócio
jurídico celebrado nos documentos.
Assim, tendo presente quem eram as pessoas que podiam “mandar
hacer” os documentos reais e a responsabilidade que tinham em sua emis-
são, podemos proceder a analisar a evolução da outra tarefa essencial do
processo de expedição documental refletida nas subscrições chanceleres-
cas: a redactio. Uma vez mais, o vocabulário de diplomática elaborado pela
Comission Internationale de Diplomatique nos proporciona algumas definições
que resultam especialmente esclarecedoras no que diz respeito às funções
desempenhadas na elaboração de um diploma. Em primeiro lugar, a defini-
ção de “scriptor” ou “escribano”:
Le scribe (lat.: scriba, scriptor) est celui qui écrit matériellement une pièce. Il
peut en être aussi le rédacteur. On dit aussi écrivain. Il peut aussi en être le
notaire.36

É imprescindível destacar todas as implicações desta definição: por


um lado, é atribuída ao escrivão a autoria material do documento; por ou-
tro, remarca-se que o escrivão pode ser tanto o autor material como o reda-
tor de um diploma, dando a entender que ambas as ações, a de redigir e a de
escrever, também podem recair na mesma pessoa; finalmente, manifesta-se
uma diferença entre escrivão e notário, especificando-se que este último
também pode ser o encarregado de colocar o documento por escrito37. Isso
equivale a dizer, em outras palavras, que redigir não é sinônimo de escre-
ver; que os escrivães podem ou não ser, além de autores materiais, os reda-
tores dos documentos; e que os notários, além de redatores, podem tam-
bém ser os autores materiais. Isto nos leva diretamente a duas outras defini-
ções-chave para entender o processo. Por um lado, a de “redator”:
Le rédacteur d’un acte (lat.: dictator, abbreviator) est celui qui conçoit la minu-
te ou qui en dicte le contenu, ou encore qui établit directement le texte de
l’acte.38

36
CÁRCEL ORTÍ, 1994, nº 274.
37
Sobre este assunto, vide também as definições de “poner por escrito” e “redactar” em ibid., nº
340 e 342.
38
Ibid., nº 272.

166
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

E, por outro, a de “notário”:


Un notaire (lat.: notarius) est un rédacteur professionnel des actes. À l’origine
le mot, sans signification technique, désignait celui qui prenait des notes et
procédait à l’établissement d’un écrit quelconque.39

Esta última definição corresponde à função que os notários reais vi-


nham desempenhando, como já indicamos, desde pelo menos o reinado de
Afonso VII: a de redatores. Na prática chanceleresca, tratava-se da mesma
função exercida pelos escrivães, considerando-se que ambos firmavam os
diplomas reais usando o verbo “scripsit”. A diferença entre um notário e
um escrivão nas chancelarias reais castelhana e leonesa do século XII e
primeira metade do século XIII, no entanto, estriba-se no fato de que, espo-
radicamente, podemos encontrar notários reis subscrevendo documentos
com as expressões “notuit”, “scribi feci” ou mesmo “scribi iussi”40, indi-
cando que, nestes casos, o notário não escreveu o documento com suas
próprias mãos, mas sim que delegou a tarefa da colocação em escritura a
uma terceira pessoa que não é mencionada na subscrição.
Com isto, voltamos à já comentada leitura que fez da documentação
real até o reinado de Fernando III o diplomatista Agustín Millares Carlo,
que detectou este matiz nas subscrições chancelerescas e chamou a atenção
para a existência de um autor material que não é nomeado. Assim, levan-
do-se em conta que os notários atuavam como redatores no período menci-
onado, carece de lógica a associação da expressão “scribi feci” com a trans-
missão da iussio real, proposta por Luis Sánchez Belda, principalmente quan-
do seu uso é verificado exclusivamente entre os notários e em nenhum caso
se utilizava a dita locução para indicar a iussio real direta ou a transmitida
pelo chanceler41. Mais ainda, os notários de Fernando III e Afonso X, que
a partir de 1250 passaram a transmitir a iussio real, não figuram na docu-
mentação com a expressão “hacer escribir”42.
No que se refere à citada definição de redator, segundo a qual este
pode ser quem concebe a minuta, quem dita seu conteúdo ou mesmo quem

39
Ibid., nº 273.
40
Considerando-se que os notários não figuram transmitindo a iussio real até 1250, pode-se
afirmar que a expressão de raro uso “scribi iussit”, apesar de conter o verbo “iubeo”, não
equivale à locução iussiva “fieri iussit” utilizada pelo rei e pelo chanceler, e deve, ao contrário,
ser compreendida como sinônimo de “scribi fecit” pela referência explícita que faz à escrita do
diploma. Vide a documentação de Afonso VIII a partir de 1206, GONZÁLEZ GONZÁLEZ,
El reino de Castilla en la época de Alfonso VIII. Op. cit., v. III.
41
SÁNCHEZ BELDA, 1951-1952, p. 186.
42
Para os casos excepcionais, vide KLEINE, 2012, p. 78.

167
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

estabelece diretamente o texto do documento, cabem aqui algumas consi-


derações. O uso da locução “notuit”, que acabamos de mencionar, poderia
referir-se à elaboração de uma minuta, ou nota – a minutatio –, prévia à
escrita final do documento43. Na documentação real castelhana e leonesa
do século XII e primeira metade do século XIII, embora seja possível ob-
servar alguns contados casos de “scriptores” que subscreveram documen-
tos reais fazendo uso de tal verbo, trata-se de uma expressão que vem nor-
malmente associada aos notários. Em qualquer caso, da mesma forma que
não se pode apreciar uma distinção clara de funções entre escrivães e notá-
rios na expedição de documentos reais durante o referido período, também
não é possível afirmar com certeza que o verbo “notare” tinha um significa-
do distinto do de “scribere”, como deixa ver a própria definição de “nota-
rio” citada. O que parece certo é que, se em um primeiro momento a minu-
tatio estava associada à redactio, na época de Afonso X esta função provavel-
mente continuou vinculada ao notário, e, em consequência e devido à mu-
dança de papel deste último no processo de expedição documental, passou
a associar-se à iussio. É o que manifestam tanto as Partidas como o Espéculo,
ao indicar que, após escrever o documento, o escrivão
déuelo leuar al notario, que vea si es fecho segunt la nota quel dio el rey o el
notario ol dixieron por palabra; e si fallare el notario que es assí fecho commol
dixieron ol mandaron, dél al escriuano quel fizo quel registre en su libro e
liéuel a la chançellería quel seellen44.

Como se pode observar, o fragmento citado está em conexão com a


definição de iussio que dá a Commission Internationale de Diplomatique, que
afirma que a ordem de expedição do documento pode ser dada de forma
oral ou por escrito45. No segundo caso, a ordem se emite através de uma
nota, que consiste em uma matriz a partir da qual será redigido o documen-
to final. As citadas fontes legais afonsinas também indicam que a elabora-
ção da nota era uma tarefa atribuída ao próprio rei e aos notários, isto é, aos

43
Vide a definição de “minuta” proporcionada por CÁRCEL ORTÍ, 1994, nº 353.
44
Tomamos a transcrição do Espéculo (E IV.xii.14); o grifo é nosso. A citada lei apresenta uma
pequena variação na Tercera Partida: “déuelo lleuar al notario que lo vea si es fecho según la
nota que le dio el rey o el Notario, o le dixeron por palabra. E si fallare el notario que es assí
fecho como le dixeron o le mandaron, délo al escriuano que lo fizo que lo registre en su libro,
e lléuenlo a la cancelería, e póngale cuerda de seda, e sellado con el sello de plomo” (P
III.xviii.3). Sobre a associação dos notários com a minutatio, vide também P II.ix.7: “Notarios
son dichos aquellos que fazen las notas de los priuilegios e de las cartas por mandado del rey o
del chanceler”.
45
LÓPEZ GUTIÉRREZ, 1990, p. 284-285.

168
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

indivíduos que exerciam ou transmitiam a iussio documental, respectiva-


mente. Por outro lado, a minutatio, se de fato chegou a utilizar-se na época
de Afonso X como preceituam os textos jurídicos elaborados em sua corte,
não deixou rastros na documentação produzida pela chancelaria real.
Retomando uma vez mais as quatro locuções identificadas nas subs-
crições chancelerescas da documentação de Afonso X, observamos que, se
“mandar hacer” indica o exercício direto ou transmitido da iussio real, as
outras três expressões se referem à redação propriamente dita do documen-
to. Por um lado, não é evidente a equivalência exata entre “hacer” e “escri-
bir”, embora também não seja possível determinar se representam funções
distintas: enquanto “hacer” parece indicar o conjunto da redação, isto é, a
composição e a escrita, “escribir” poderia referir-se unicamente à autoria
material, mas a documentação não permite comprovar estas suposições.
Por outro lado, vimos que a fórmula “hacer escribir” parece fazer referên-
cia à composição sem incluir a autoria material46.
No entanto, e isto é fundamental para a compreensão das subscrições
chancelerescas dos documentos de Afonso X, o redator, embora não escre-
va o documento com suas próprias mãos em todas as ocasiões, sempre será
o responsável por sua composição e colocação por escrito. Com isto, referi-
mo-nos ao sentido jurídico do termo “responsabilidade”, a saber, como
indicativo do dever de responder legalmente por algo. No caso específico
da redação de um documento, já não se trata de responder pelo negócio
jurídico celebrado no documento, obrigação que cabe ao iussor, mas sim
pelo texto que o perpetua e que, ao ser outorgado pela autoridade que o
emite, lhe confere validez. Assim, podemos concluir que os indivíduos que
subscreveram os documentos reais utilizando as locuções “hacer”, “escri-
bir” e “hacer escribir” eram os redatores dos diplomas e, portanto, respon-
sáveis pela forma material dos mesmos, embora não necessariamente se-
jam seus autores materiais.
O exame das subscrições da documentação expedida pela chancela-
ria de Afonso X nos permite constatar que, das duas responsabilidades
mencionadas – sobre o conteúdo e sobre a forma do documento ou, em
outras palavras, a responsabilidade jurídica e a responsabilidade material
sobre sua expedição –, a primeira pode ser delegada, mas a segunda, não.
Isto é, o transmissor da iussio real pode delegar sua responsabilidade jurídi-

46
Vide o caso do escrivão Millán Pérez de Ayllón exposto em KLEINE, 2012, p. 102.

169
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

ca sobre o conteúdo do documento a outra pessoa, o que de fato se observa


em alguns casos47. O redator, por sua vez, unicamente pode delegar a tarefa
da colocação por escrito do diploma (“hacer escribir”), mas não a respon-
sabilidade material sobre a composição do mesmo, e precisamente por este
motivo é o redator que subscreve o documento. No primeiro caso, a delega-
ção da responsabilidade jurídica sempre será indicada na subscrição do di-
ploma, por exemplo: “Pedro Pérez de León la hizo por mandato de Gutierre
Pérez, teniente las veces del maestre Juan Alfonso, notario del rey y arcediano
de Santiago”48. Já no segundo caso, o responsável material – o redator – subs-
creve o documento, mas em geral não há menção ao autor material que de
fato o escreve, por exemplo: “Juan Mateo la hizo escribir”49.
A partir destas constatações, observamos que, na documentação chan-
celeresca de Afonso X, a iussio real não se transmite sempre através de ou-
tro indivíduo e, por isso, os documentos podem ou não conter a referência
a um iussor como intermediário entre o rei e o escrivão; entretanto, a res-
ponsabilidade sobre a redação do documento é invariavelmente expressa
nas subscrições chancelerescas, as quais, é necessário lembrar, eram incluí-
das em todas as formas documentais produzidas, como já foi exposto. Sen-
do assim, é possível inferir que a normativa interna da chancelaria de Afon-
so X ditava que todos os documentos deveriam indicar o escrivão responsá-
vel por sua redação, embora seja provável que não em todas as ocasiões este
fosse necessariamente o seu autor material. Portanto, se a expressão “ha-
cer escribir” realmente indicasse a transmissão da iussio real, como afir-
mam vários estudos diplomáticos referentes às chancelarias de reis e infan-
tes castelhanos do século XIII, isto implicaria que uma parte considerável
da documentação desse período – a que contém a fórmula de subscrição
“N la hizo escribir” – unicamente mencionaria o iussor e somente faria refe-
rência à responsabilidade sobre o ato jurídico, mas não sobre a redação do
documento que o oficializa50. Além disso, os documentos subscritos com as

47
Ibid., p. 65.
48
Vide a ficha de Gutierre Pérez em ibid., Apêndice, nº 44.
49
Vide a ficha de Juan Mateo em ibid., Apêndice, nº 128. A única exceção observada na
documentação afonsina, na qual se combinam as expressões “hacer escribir” e “escribir” na
mesma fórmula de subscrição, limita-se a um único escrivão, Millán Pérez de Ayllón; KLEINE,
2012, p. 102 e Apêndice, nº 74.
50
Aos já citados estudos de Luis Sánchez Belda sobre Sancho IV e de Antonio López Gutiérrez
sobre Afonso X, soma-se também o de PARDO RODRÍGUEZ, María Luisa. 2009. Vide
especialmente a seção sobre os escrivães nas p. 42-43: “El primer puesto en escalafón y el que,
sin duda, constituye el grupo más numeroso es del que formaban parte aquellas personas en

170
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

fórmulas “N la hizo escribir por mandato de N / del rey” e “N la mandó


hacer por mandato del rey. N la hizo escribir” estariam testificando a atua-
ção de dois e três iussores, respectivamente, mas de nenhum redator.
Considerando-se, por um lado, o valor legal que se conferia ao docu-
mento escrito – segundo podemos depreender, por exemplo, do título XVIII
da Tercera Partida51 – e, por outro, que desde 1250 as subscrições chanceleres-
cas são incluídas em toda a documentação real expedida, a ideia de que um
documento somente indique o iussor ou os iussores e silencie o nome do reda-
tor é pouco lógica. Neste sentido, e para dar um exemplo concreto do que
estamos afirmando, merece ser destacada uma lei do Espéculo, incluída no
título que trata sobre os modos de adquirir o domínio e a tenência, a qual
dispõe que os escrivães não devem escrever em livros nem em cartas alheias
para que não percam a propriedade sobre as escrituras de sua autoria:
Mas si lo fezieren por yerro non cuydando que eran agenas bien las pueden
retener fasta que los paguen de su escriptura; e si el sennor daquellos libros o
daquellas cartas non se pagare de aquella escritura, el que la escriuió o la fizo
escreuir le deue pechar por ellos quanto valíen ante que fuesen escriptos. Mas
si sabiendo que eran agenos los escriuiere alguno o los fiziere escreuir, en escogen-
çia es daquél cuyos eran de tomárselos sin preçio ninguno [...].52

cuya suscripción utilizaron una fórmula que les equipara totalmente a los notarios. Me refiero
al fiz escriuir, que indica siempre, en este contexto de elaboración, la orden de expedición de la
carta en el ámbito cancilleresco, y por tanto la tramitación de la iussio del infante.” Por outra
parte, gostaria de deixar constância aqui de que eu mesma reproduzi tal interpretação da
locução “hacer escribir”, que agora considero equivocada, em KLEINE, Marina. Sancho Pérez
y la cámara del rey en el reinado de Alfonso X. Alcanate, 7, p. 329-360, especialmente p. 332,
2010-2011. Com relação à chancelaria do infante Sancho, o único trabalho existente sobre o
tema não contribui com informações no que diz respeito à questão do exercício ou transmissão
da iussio documental. Contudo, esse estudo sim se refere ao significado da fórmula “hacer
escribir” como “ordenar la redacción de documentos”, embora sem especificar as implicações
desta afirmação: OSTOLAZA ELIZONDO, María Isabel. La cancillería del infante don Sancho
durante la rebelión contra su padre Alfonso X el Sabio. Historia, Instituciones, Documentos, 16, p.
305-318, especialmente p. 311, 1989. Para o reinado de Fernando IV, também não contribui
com dados neste sentido o artigo de PASCUAL MARTÍNEZ, Lope. Apuntes para un estudio
de la cancillería del rey Fernando IV de Castilla. Art. cit. [? NÃO FOI CITADO
ANTERIORMENTE], p. 1021-1036. Igualmente reproduz a associação da expressão “hacer
escribir” com o exercício do ofício de notário, no demais geralmente difundida na diplomática
castelhana tradicional, MARTÍN POSTIGO, María de la Soterraña. Notaría mayor de los
privilegios y escribanía mayor de los privilegios y confirmaciones en la cancillería real castellana.
In: Actas de las I Jornadas de Metodología Aplicada a las Ciencias Históricas. Santiago de Compostela:
Universidad de Santiago de Compostela, 1975. v. 5, p. 241-254, especialmente p. 244.
51
Não devemos esquecer que a Tercera Partida está dedicada à administração de justiça, e que o
mencionado título trata sobre as escrituras “de que pueda nascer prueua, o aueriguamiento en
juyzio” (P III.xviii, proêmio).
52
E V.viii.14. Os grifos são nossos.

171
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

Nesta lei, reflete-se a associação entre “escribir” e “hacer escribir”,


deixando-se claro que se trata de duas ações distintas, mas relacionadas
entre si e conectadas à pessoa do escrivão. Da mesma forma, manifesta-se a
ideia de que tanto o escrivão que “escribe” como o que “hace escribir” têm
a responsabilidade legal sobre as escrituras que produzem.
Adicionalmente, é necessário ressaltar ainda que o exame das mencio-
nadas locuções utilizadas nas subscrições chancelerescas dos documentos
de Afonso X somente ganha sentido quando é determinada a associação
das fórmulas com os indivíduos que as utilizavam. Para tanto, a identifica-
ção desses indivíduos é fundamental, em primeiro lugar, para evitar confu-
sões entre sujeitos homônimos, especialmente nos casos de nomes extre-
mamente comuns, como Juan Pérez ou Pedro Pérez. Após a elaboração da
lista de pessoas que figuram nas subscrições chancelerescas e sua devida
identificação, o segundo passo é verificar quais fórmulas cada indivíduo
utilizava para poder determinar qual das duas funções era atribuída aos
mesmos. O resultado, que pode ser observado no catálogo prosopográfico
que fundamenta esta análise, revela uma clara divisão de funções entre o
pessoal chanceleresco: via de regra, os indivíduos que “mandan hacer”
documentos e que identificamos como iussores não coincidem com os que
os “hacen escribir”, “escriben” ou “hacen” e que identificamos como reda-
tores53. Observa-se, portanto, a formação de dois conjuntos de atores docu-
mentais nitidamente distintos, o primeiro composto por 53 pessoas e o se-
gundo, muito mais amplo, por 122 indivíduos54.
Em síntese, pudemos constatar que as subscrições chancelerescas da
documentação de Afonso X proporcionam informações sobre os indivídu-
os que participavam de duas etapas da produção documental. Em primeiro
lugar, a iussio, a ordem de expedição do negócio jurídico em forma de docu-
mento, que sempre cabia ao rei como autor do mesmo, mas que podia ser
exercida diretamente por ele ou transmitida através de seus notários, alcal-
des e outros indivíduos da corte real. O exercício da iussio documental é
marcado pelo uso das expressões “mandar hacer” ou “por mandato de”
nas subscrições chancelerescas e indica a pessoa responsável pelo conteúdo

53
KLEINE, 2012, Apêndice.
54
É necessário destacar-se, porém, que nove indivíduos iniciaram suas atividades na chancelaria
real como redatores e posteriormente passaram a exercer a função iussiva. Para evitar a
duplicação de indivíduos em ambos os grupos, esses casos foram contabilizados entre os iussores
e neste conjunto são incluídas suas respectivas fichas no citado catálogo prosopográfico.

172
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

jurídico do diploma. Em segundo lugar, a redactio, o momento em que se


concretiza o negócio jurídico em uma forma documental específica. Esta
etapa era constituída pela redação e pela colocação por escrito do diploma,
e nela intervinham os responsáveis pela forma material conferida ao ato
jurídico: os redatores, aqueles que subscreviam os documentos reais com as
locuções “hacer”, “escribir” e “hacer escribir”.
Assim, esclarecidos a atribuição e o significado das duas funções que
se refletem nas subscrições chancelerescas da documentação de Afonso X,
podemos retomar a lista de fórmulas identificadas nos documentos que foi
apresentada no início deste texto, agora substituindo “N”, que indicava o
nome do indivíduo, pela função que este exercia na produção de diplomas
da chancelaria afonsina. O resultado é o que segue:
– “[redator] la escribió.”
– “[redator] la escribió por mandato de [iussor] / del rey.”
– “[iussor] la mandó hacer por mandato del rey. [redator] la escribió.”
– “[redator] la hizo.”
– “[redator] la hizo por mandato de [iussor] / del rey.”
– “[redator] la hizo por mandato de [iussor delegado], teniente las
veces de [iussor].”
– “[iussor] la mandó hacer por mandato del rey. [redator] la hizo.”
– “[iussor delegado], teniente las veces de [iussor], la mandó hacer por
mandato del rey. [redator] la hizo.”
– “[redator] la hizo escribir.”
– “[redator] la hizo escribir por mandato de [iussor] / del rey.”
– “[iussor] la mandó hacer por mandato del rey. [redator] la hizo es-
cribir.”
– “[iussor delegado], teniente las veces de [iussor], la mandó hacer por
mandato del rey. [redator] la hizo escribir.”
– “[redator] la hizo escribir. [redactor] la escribió.”
Conforme foi exposto, a determinação das duas funções específicas e
claramente delimitadas da conscriptio documental, a iussio e a redactio, alia-
da à análise dos nomes e cargos das pessoas que figuram nas subscrições
chancelerescas afonsinas, permitiu a identificação de dois grupos diferenci-
ados implicados no processo de expedição dos documentos reais, de acor-
do com a função exercida no mesmo: os iussores e os redatores. A diferença
hierárquica entre ambos os grupos funcionais se relaciona não somente com
o desempenho do trabalho desses indivíduos na prática chanceleresca, con-

173
KLEINE, Marina • Da iussio à redactio: observações sobre as funções desempenhadas...

forme pudemos demonstrar em nossa já citada tese, como também, muito


provavelmente, com o nível de sua participação na política do reino. Esta
última observação, no entanto, deverá ser verificada futuramente por meio
de uma ampliação das pesquisas realizadas até o momento.

174
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O ensino da Idade Média: questões práticas


e realidade de sala de aula

Nei Nordin1

O ensino da História medieval em sala de aula, tal como ocorre com


outras temáticas, está condicionado a fatores diversos que vão desde a es-
tratégia pedagógica adotada pelo professor, a estrutura material proporcio-
nada pela instituição até as condições subjetivas de cada aluno.
Este texto tem como objetivo abordar questões da prática cotidiana
do trabalho com a temática medieval, analisar metodologias e sugerir ins-
trumentos ao professor de História. Tal como ocorre em muitas discussões
pedagógicas, o debate teórico acerca do ensino da Idade Média no ensino
fundamental e médio, por vezes, tende a não contemplar aspectos práticos
da questão como o gerenciamento da convivência entre alunos e professo-
res e a administração do tempo. Existem inúmeros aspectos do cotidiano
escolar que podem não possuir uma relação direta com teorias pedagógi-
cas, mas que pesam decisivamente sobre as condições do ensino de Histó-
ria. São conhecimentos que não se adquirem nos bancos acadêmicos e que
costumam surpreender muitos professores ao assumirem suas regências. É
importante ressaltar que muito do que for demonstrado aqui se baseou em
experiências de sala de aula da escola pública e em situações práticas que se
demonstraram frutíferas.

Sobre os espaços dos saberes históricos no currículo escolar


A totalidade dos conteúdos da disciplina de História para o ensino
fundamental e médio constitui um amplo aparato que raramente pode ser
adequado ao tempo real de que o professor dispõe para a regência de classe.
Nestes tempos em que se busca uma reforma pedagógica de âmbito nacio-
nal, adaptando o ensino para as finalidades do Exame Nacional do Ensino

1
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

175
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

Médio (ENEM), a “importância” e a “utilidade” de certos conteúdos da


História em sala de aula têm sido debatidas e (de forma velada) questiona-
das com o objetivo de “encolher” o conteúdo a ser trabalhado.
Há o agravante de ainda vigorar em boa parcela dos corpos docentes
escolares a antiga mentalidade de “combate” entre disciplinas, onde umas
seriam mais importantes do que outras, sendo justo, nesta concepção, que
as “melhores” sejam contempladas com número maior de horas-aula (perío-
dos) semanais. Infelizmente, podemos constatar que ainda prevalece para
muitos professores um senso de oposição entre as ciências humanas e exa-
tas, e as políticas públicas de ensino nem sempre colaboram para amenizar
tal acepção.
Levando-se em conta este contexto, um dos pontos essenciais a ser
considerados é o tempo real de que o professor dispõe para ministrar seus
conteúdos. É fato que o professor vê-se pressionado numa espécie de emba-
te que procura lhe tolher os espaços e o tempo que pode dedicar à sua re-
gência. Isto o obriga a mediar pontualmente a distribuição e a forma dos
conteúdos que serão trabalhados durante o ano letivo. O que ocorre na
prática é que o professor termina por tomar a decisão sobre quais conteú-
dos irá trabalhar de um modo mais completo e prolongado e quais serão
“sacrificados”, seja sob forma de trabalhos extraclasse ou mesmo em aulas
expositivas mais abreviadas. Trata-se da escolha de abrir mão de alguns
conteúdos para que se possa realizar um trabalho realmente diferenciado e
de maior qualidade em detrimento de outros que serão ministrados com
maior formalidade. É forçoso reconhecer que esta decisão é plenamente
dotada de parcialidade. Ela ocorre de acordo com as preferências pessoais
de cada docente. Veremos, então, cada professor, de acordo com sua dispo-
sição, conceder mais espaço, tempo e energia a assuntos de sua predileção,
como o Egito Antigo, a Grécia, a Segunda Guerra Mundial ou, assunto
deste texto, a Idade Média.
De fato, esta mediação não consiste em prática ilícita ou prejudicial
à educação. Foi-se o tempo em que o ensino almejava que o aluno soubes-
se a totalidade da trajetória factual do desenvolvimento social, religioso e
político das grandes civilizações. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
para o ensino fundamental (3º e 4º ciclo) recomendam que os conteúdos
trabalhados para a disciplina de História sejam selecionados sem priori-
zar “uma ordem de graduação espacial e sem a ordenação temporal [...] o
estudo de contextos específicos e de processos, sejam eles contínuos ou

176
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

descontínuos.”2 Também é consenso que, para os fins de construção do


saber e do conhecimento tido como histórico, não é lícito questionar se o
ensino da Grécia Antiga é mais importante do que a Primeira Guerra Mun-
dial. Ambas enquadram-se em contextos específicos e sua relevância pode
depender de vários fatores, como o perfil dos educandos ou do enfoque a
ser dado. Acreditamos que a construção do conhecimento histórico não
depende do recorte temporal escolhido. Com diversos conteúdos é possível
empreender todos aqueles objetivos que sonhamos em nossas graduações
de licenciatura: ensinar história, semear consciência crítica, capacidade de
interpretar o mundo, etc.
Uma outra questão que não deve ser esquecida é o fato de que, para
o ensino médio, os conteúdos pertinentes à História contemporânea go-
zam de um respaldo maior pela demanda nos exames vestibulares. Aqui
vemos os assuntos da Antiguidade e do Medievo claramente relegados a
um plano secundário, pois estes exames costumam contemplar um número
menor de questões sobre o tema. Então é viável que conhecimentos sobre a
Idade Média sejam até tolerados como acréscimo cultural ou pelo caráter
pitoresco, mas é comum que não lhes seja imputado seu valor “real” pela
ótica de muitos pais e vestibulandos. Atentemos ainda para o fato de que a
colonização do Brasil teve início quando a Idade Média cronológica decli-
nava. Isto serviu de justificativa para que, durante um certo período, seu
estudo encontrasse certa resistência por parte de pesquisadores brasileiros,
o que repercutiu nos bancos escolares.
Enfim, são questões práticas do papel dos saberes que o sistema edu-
cacional impõe naquilo que chamamos de “currículo oculto” e que deter-
minam aquilo que deve ser ensinado com maior ou menor ênfase e pesam
de forma determinante sobre o ensino da Idade Média.

Sobre o conceito de Idade Média e sua apreensão


Sobre a noção geral a respeito do Medievo que paira na imaginação
das pessoas, há aspectos positivos e negativos a serem considerados e ex-
plorados.
Existem muitas pesquisas demonstrando a forma como os próprios
livros didáticos contribuem para reforçar uma imagem pejorativa do perío-

2
Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Brasília: MEC / Secretaria de Educação Fundamental
(SEF), 1998. p. 46.

177
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

do. Ao passo que os textos procuram claramente desmistificar o mito de


“idade das trevas”, as entrelinhas muitas vezes expressam antigos precon-
ceitos e juízos ou estão atreladas a uma construção política e econômica
que remonta muito mais aos processos históricos próprios do contexto eu-
ropeu do século XIX. Ademais, a organização dos conteúdos se apresenta
de forma a limitar o universo do Medievo ao processo econômico e políti-
co. O historiador José Rivair Macedo nos oferece uma perspectiva apresen-
tada pela grande maioria dos livros didáticos de História para o ensino
fundamental e médio:
[...] estão ligadas à evolução das formas de governo, isto é, o governo temporal dos
reinos e do império, e o governo espiritual/temporal da Igreja. Prendem-se também à
configuração dos grupos sociais, com particular ênfase nas relações de dominação
entre senhores feudais e camponeses, ou então na formação e decadência do feudalis-
mo e a germinação do capitalismo moderno.
No que respeita às formas de governo, os livros apresentam a caracterização de trata-
dos, conflitos diplomáticos e batalhas, ou seja, os marcos temporais tradicionais da
história política.3

Posteriormente abordaremos o trabalho com o livro didático. Por hora


vejamos que a Idade Média aparece atrelada aos “corredores mofados” da
História, e pode ser que haja de fato pouco interesse por parte de um ado-
lescente em conhecer ou memorizar os processos acima.
Veja-se que uma parcela muito pequena dos historiadores brasileiros
possui a habilidade de dominar a mídia para “vender o peixe da História”.
Nos nichos onde isto ocorreu, como é o caso da França, a História passou
a gozar de maior credibilidade perante a opinião pública. Contudo, pode-
mos considerar que, no Brasil, a Idade Média possui um lugar relativamen-
te privilegiado nas imaginações e, de forma geral, assuntos relacionados
com a temática medieval gozam de uma boa recepção entre o público leigo.
Seja pelo potencial mítico consolidado em seus arquétipos, como o cavalei-
ro, o heroísmo, o castelo, a princesa, etc., ou também pela imagem reforça-
da pela cultura pop, o que envolve as produções cinematográficas, jogos de
video game e RPG, música, histórias em quadrinhos, etc.
Certamente veremos eruditos ruminarem imprecações, e com boa
dose de razão, sobre o quanto esta imagem produzida distorce o conheci-
mento real acerca dos processos históricos. Mesmo que esta seja uma Idade

3
MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História. In: KARNAL,
Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto,
2004.

178
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Média ofuscada em nome do divertimento e da fantasia, podemos conside-


rar que o Medievo está presente nos imaginários e este não deixa de ser um
aspecto positivo e com boas potencialidades para o professor. Afinal, em
grande medida uma boa aula se constrói pela sensibilidade do regente em
identificar e usar em seu proveito situações e interesses que possam ser rela-
cionados com o tema trabalhado.
Consideramos, então, que a Idade Média Ocidental está suficiente-
mente enraizada no imaginário popular. As pessoas guardam em suas me-
mórias referenciais suficientes para que tenham uma maior predisposição
para se interessar e dissertar sobre o tema. Explorando estas possibilidades,
gosto de iniciar uma aula perguntando aos alunos que palavras surgem em
sua mente quando pronuncio a expressão “Idade Média”. Em 2012, três
turmas do primeiro ano do ensino médio relacionaram o termo com os
seguintes verbetes:
Castelos – cavaleiros – reinos – espada – cruzada – religião – feudo – muralha –
escudo – arco e flecha – batalha – catapulta – elmo – armadura – guerra – vilarejos
– cavalos – távola redonda – dragão – cálice – justiça – fosso – paladino – campone-
ses – igreja – escravos – Merlin – Artur – impérios – feudalismo – bruxaria – posses
– bárbaros – vikings – nobreza – França – Inglaterra.

A listagem acima dá uma dimensão de como o jovem percebe aspec-


tos do Medievo e que tipo de construção mental o termo lhe sugere. En-
quanto as palavras vão chegando, simultaneamente, costumo enumerá-las
no quadro para, em seguida, empreender uma explanação sobre cada ver-
bete, esclarecendo seus equívocos ou vínculos e relações com o período.
Considero este exercício bastante interessante e produtivo, pois abre espa-
ços a uma diversidade de variações e rumos para um debate introdutório
que sempre estimula participações e se estende com questionamentos. Este
é um bom exercício inicial para “moldar” um conceito mais consolidado
de Idade Média.
Como sou um destes professores que nutre preferências pelo período,
costumo sempre dispensar uma aula para uma explanação sobre o imagi-
nário, o maravilhoso e os valores remanescentes do mundo medieval. É
muito interessante observar como tais aspectos prendem a atenção dos alu-
nos quando demonstro que valores atuais como honra, caráter, heroísmo,
valentia são remanescentes da cultura medieval. Aqui torna-se pitoresco,
por exemplo, efetuar a relação das semelhanças entre a conduta cavaleires-
ca e as características de muitos dos super-heróis tão apreciados pelas cri-
anças, jovens e adultos. Figuras como Batman, Super-Homem, cowboys do

179
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

far west, protagonistas de filmes de ação e outros tantos são herdeiros da


ética da cavalaria medieval, se não no todo, ao menos em parte de seus
traços. O herói em sua essência possui um código, protege os fracos, não
comete abusos e não utiliza seus (super) poderes em proveito pessoal. Quem
nunca assistiu a algum filme que culmina com a luta entre os personagens
que representam o bem e o mal? Quando o protagonista tem o vilão encur-
ralado e dominado, aquele decide poupar sua vida, mesmo sabendo que o
outro o mataria se pudesse. Este clichê não representa o mais puro espírito
da ética cavaleiresca?
Seja pela conduta ou pela estética, nossos heróis contemporâneos são
fortemente dotados de remanescentes medievais. O traço mais evidente é a
utilização da espada como arma central. Ele está presente desde os filmes
de ficção científica, como a saga Star Wars de George Lucas, nos desenhos
animados da televisão como ThunderCats, He-man, etc. Repare que, nes-
tes últimos casos, suas espadas possuem poderes mágicos e são elas que
permitem ao personagem dotar-se de seus poderes mediante palavras mági-
cas como o clássico “Eu tenho a força” de He-man.
Há também que se evidenciar as raízes medievais do amor. As for-
mas e sutilezas do amor e do romance, tal como o conhecemos, provêm da
elaboração da ideologia de corte que se desenvolveu paralelamente à con-
cepção cavaleiresca. É certo que o amor sempre existiu e que as pessoas
sempre se apaixonaram, desde a Pré-História e Antiguidade, mas as formas
rituais e estéticas que hoje conferimos ao amor, ao namoro e às formas de
cortesia, gentileza e conquista para com uma dama são também heranças
medievais. Estas correlações sempre despertam muito interesse.
O mundo dos gestos também proporciona momentos de boa refle-
xão. Demonstrar que o aperto de mão ou o ósculo traziam significados
diferenciados, mas que são antecessores do sentido que hoje lhes conferi-
mos contribuirá para a formação de noções de permanência para com o
Medievo que vão além daquele cabedal político e econômico tradicional.
Cabe destacar o papel do riso que foi tão polêmico em debates teológicos
do Medievo. Soa estranho e até ridículo aos jovens atuais observar que o
ato de rir foi objeto de debates e discussões com o intuído de decidir se
Cristo teria ou não praticado o riso. A partir daí lembramos que a gargalha-
da é marca registrada do estereótipo do vilão e da bruxa das histórias infan-
tis. É uma interessante curiosidade para um adolescente o fato que de havia
quem pregasse que o riso deformava a face e dava ao homem um aspecto
demoníaco. As raízes medievais de nossas mais famosas fábulas são um

180
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

excelente material, lembrando que chapeuzinho vermelho enfrenta o lobo


mau porque os lobos constituíam uma ameaça real nas aldeias e este medo
se cristalizou nos imaginários.
Assuntos correlacionados com o maravilhoso e o fantástico compõem
igualmente um interessante argumento para bons momentos em aula. Um
exercício interessante é pedir que os alunos recordem quais as superstições
em que acreditavam quando tinham em torno de 6 anos de idade. Surgem
figuras como o “coelho da páscoa”, o “papai-noel”, a “fada do dente” ou o
“velho do saco”. Estes personagens recebem o estatuto de existência real
durante os anos de nossa infância. Da mesma forma fazia o homem medi-
eval em relação aos seres fabulosos que habitavam a floresta e a noite. O
diabo era entendido como uma entidade que, de fato, poderia bater em sua
porta. Nós que domesticamos a noite não podemos imaginar o impacto
que ela causava na vida das pessoas do Medievo. A noite era o tempo da
escuridão, do medo e dos seres fantásticos. Era o tempo de proteger-se e
ficar em casa.
Os fatores tangenciados acima mostram-se particularmente fascinan-
tes quando se demonstra um tempo em que os homens mediavam sua rela-
ção com o mundo e com o cotidiano fortemente pautados por relações sim-
bólicas e mediações constantes com o sobrenatural. Neste sentido, cabe
alguma explicação sobre os conceitos de símbolo, mito, discurso, etc., mes-
mo que de forma rudimentar.
São conversas simples e prazerosas que fazem crescer o interesse acerca
da Idade Média. Um tempo em que o homem partilhou uma visão de mun-
do totalmente diferenciada da forma como hoje o concebemos.

Brincar é preciso...
Como dito anteriormente, quando optamos por nossas licenciaturas,
certamente alimentamos o sonho de participar da maravilhosa experiência
que é semear o conhecimento e participar do processo educativo. Não ima-
ginávamos que significativa parcela dos nossos alunos não estariam exata-
mente interessados nos benefícios do conhecimento histórico. A realidade
não é bem o que esperávamos.
É preciso que todo professor tenha consciência de que não vai para a
sala de aula formar historiadores. Estamos, em muitos casos, verdadeira-
mente distantes de alcançar o objetivo de semear a sonhada consciência

181
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

crítica e cidadania... Mas nem tudo está perdido. Note-se que o conteúdo
ou o conhecimento histórico “despejado” para uma classe não é algo men-
surável. É possível que algo dito em uma aula de História seja apreendido
muito tempo depois, talvez até quando chegue a maturidade. São crianças
e adolescentes, afinal. Estão sedentos de brincar e viver. Lutamos contra
todo um contexto de deterioração da educação, afastamento da leitura, etc.,
e é preciso lembrar que a estes jovens, cheios de energias e hormônios, os
processos históricos da Idade Média ou de outro contexto qualquer podem
não despertar grandes interesses. Aprender História exige disposição, ma-
turidade e uma determinada consciência de sua importância. Isto é algo
que não vai necessariamente brotar da boca de um adulto se não for a “hora
certa” de cada um entendê-lo.
Verdade é que, atualmente, em uma sala de aula do ensino médio
trabalhamos com a perspectiva de que apenas uma média de 10% dos alu-
nos esteja realmente interessada em aprender e motivada pelo prazer do
conhecimento. Não é fácil concorrer com a internet, a televisão, a música,
os aparelhos de telefonia móvel, as festas, os consoles de games, etc. Caberá
ao professor seduzir e conquistar os outros 90% para que, ao menos, coope-
rem para que ele possa ministrar sua proposta. Sim, falamos aqui da ques-
tão disciplinar, que é central.
O professor em sala de aula, perante 30 ou 40 adolescentes, deverá
estar preparado e adaptado às mudanças e transformações que pesam sobre
a escola. Na verdade, precisamos reconhecer que a figura e a imagem que o
regente cultiva perante a classe serão uma parte significativa que pesará
sobre a recepção do conteúdo. Nenhum aluno vai prender-se a uma aula se
absorve uma imagem negativa do professor. Nenhuma aula terá um bom
rendimento se o professor não tiver uma boa noção do chamado “domínio
de classe”. Somente estes dois fatores já são suficientes para fazer naufra-
gar um bom planejamento de aula, e este conhecimento dificilmente se
adquire na graduação. Ele é inato.
Considero que o professor deve possuir duas grandes habilidades.
Primeiro, o domínio intelectual sobre sua disciplina. Segundo, o dom de
transmitir este conhecimento transmutando-o em formas diversas para a
recepção daqueles que ainda estão muito distantes da linguagem acadêmi-
ca: crianças e adolescentes. A palavra-chave aqui é criatividade. E criativi-
dade não é algo tão fácil de se colocar em prática, principalmente quando
se tem uma carga horária excessiva, como é o caso do quadro de educado-
res brasileiros. Preparar boas aulas demanda tempo, e materiais alternati-

182
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

vos não são abundantes. Precisam ser confeccionados. Contudo, se você é


daqueles que não se contenta em sentar e mandar abrir o livro didático em
tal página, precisará encontrar tempo para preparar materiais diferencia-
dos, nem que seja eventualmente.
Numa aula de História, a diferença entre a informação que o aluno
vai guardar e aquela que vai descartar está não somente no método diferen-
ciado, como também na qualidade emocional do registro. Demonstrar pra-
zer e empolgação em contar-lhes sobre os cruzados ou sobre Joana d’Arc
pode ser fator fundamental para despertar o interesse pessoal em comple-
mentar esta informação posteriormente. Uma aula de história não deve
converter-se em show de comédias, como fazem algumas instituições, mas
cabe, sim, dosar alguma descontração.
Afora a vertente criativa do professor, estimular atividades que de-
mandem a criatividade do aluno sempre costuma dar bons resultados. Até
porque a memória adquire vínculos maiores com aqueles conhecimentos
que foram preparados e pensados pelo próprio aluno. Por isso gosto de
investir na produção de trabalhos e avaliações que sejam pensados e inves-
tigados pelos próprios alunos. Produção de contos, peças teatrais, vídeos,
histórias em quadrinhos, textos, resumos esquemáticos e até figurinos vol-
tados à temática medieval feitos por alunos sempre tenderão a aumentar a
qualidade do registro memorial. É importante investigar os talentos indivi-
duais e propor-lhes trabalhos e atividades afins. Em uma sala de aula de 30
ou 40 alunos é sempre possível que existam bons desenhistas, músicos, es-
critores, poetas, etc. Desta forma, estaremos sobrevalorizando seus interes-
ses pessoais.
Outra atividade lúdica que pode ter bons resultados é a promoção de
jogos. Existe no ser humano uma característica e é intrínseca aos jogos; e,
se até mesmo os adultos se deixam seduzir, que diremos dos jovens? Mes-
mo ao conteúdo formal que apontamos anteriormente pode ser ministrada
uma revisão na forma de perguntas, charadas ou palavras cruzadas. Por
que não estimular premiações simbólicas (balas ou pontinhos)?
Um pouco mais complexos são os jogos de RPG que alimentam
legiões de adoradores e onde a temática medieval é privilegiada. Já existem
inúmeros trabalhos acadêmicos abordando suas potencialidades educativas,4

4
SCHMIDT, Wagner Luiz. RPG e educação: alguns apontamentos teóricos. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.

183
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

principalmente porque nestes jogos é a criatividade que dita a emoção. Te-


nho visto muitos alunos pesquisando características do Medievo para ins-
trumentalizar-se neste tipo de jogos. O grande problema que se apresenta é
sua adequação ao tempo de um ou dois períodos de aula. Sua adaptação
deverá requerer bons conhecimentos por parte do professor, mas será certa-
mente uma atividade memorável.
Enfim, existem uma série de recursos que nos permitem proporcio-
nar ao educando uma experiência fascinante e lúdica. Ele poderá ainda
não ter maturidade para entender a importância do conhecimento, mas
certamente terá muita disposição para jogar, brincar, criar e “participar” de
experimentos medievais.

Professor Nei Nordin numa “luta de espadas” em uma aula em que foi apresentada a
cavalaria medieval...

Confecção de espadas de espuma como trabalho escolar

184
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O uso do cinema
A utilização do cinema como ferramenta didática em sala de aula
não é novidade. Muito se tem discorrido sobre este assunto, e são abundan-
tes as teses e artigos empreendendo sua análise. O cinema realmente tem a
propriedade de concretizar a narrativa diante de nossos olhos, principal-
mente se tratando de produções épicas. Nenhuma aula de História poderá
reproduzir uma batalha ou o cotidiano de um mosteiro no século XIV como
faz “O nome da rosa”, de Jean Jacques Anaud, de 1987. É preciso lembrar
que o cinema muito raramente possui algum compromisso histórico e seu
fim é o de entretenimento. Jamais um filme será um livro.
Buscando não cair em repetições, gostaria de abordar quatro ques-
tões sobre o uso do cinema como ferramenta no ensino da Idade Média.
Primeiro. Exibir um filme e posteriormente promover um debate sobre
suas peculiaridades é uma excelente atividade. Há que se ter certa sensibilidade
quanto à escolha do título, cuidando para que seja “palatável” à faixa etária do
público alvo. Lamentavelmente, nossa dimensão cultural cinematografia é for-
temente moldada pelos padrões do cinema de ação norte-americano, e filmes
mais antigos, lentos ou introspectivos, podem resultar em desastres.
Segundo. Novamente aqui será necessário mediar o tempo a ser em-
pregado na atividade. Ou o professor contará com apoio de colegas que
cederão seus períodos para complementar o tempo de exibição ou terá de
contentar-se em seccioná-lo nos seus períodos semanais. Então, somando-
se o tempo do debate, esta é uma atividade que poderá durar até três sema-
nas, o que resulta em um problema de tempo.
Uma opção é lançar como desafio ou trabalho extraclasse (opcional
ou não) que os alunos procurem em videolocadoras no final de semana
algum filme indicado para que, na aula seguinte, ocorra alguma atividade
de debate ou avaliação.
Terceiro. Uma experiência que pode produzir um resultado muito
interessante é optar pelo inverso do argumento cinematográfico. Descons-
truir um filme pode ser muito produtivo e interessante aos jovens: demons-
trar aquilo que um filme tem de inverossímil e equivocado historicamente;
mostrar em um filme o que não é e como deveria ser.
Quarto. Resta ainda a opção de trabalhar com trechos selecionados
de filmes que podem ser retirados com um software e inseridos em uma aula
com um projetor de slides. Há filmes que são ruins ou demasiadamente
longos, mas que trazem cenas primorosas para serem demonstradas em

185
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

uma sala de aula. Este é recurso altamente produtivo, pois uma pequena
cena de dois ou três minutos pode ilustrar todo um contexto que foi traba-
lhado e prenderá muito a atenção dos alunos, além de ser um momento de
relaxamento entre as cópias e anotações.

Utilização de imagens
Outro ponto que não deve deixar de ser considerado para uma aula de
História está no recurso iconográfico. Primeiro porque existem imagens que
são primorosas reconstituições históricas. Segundo porque é possível traba-
lhar uma variedade muito grande de imagens produzidas pelos próprios con-
temporâneos do Medievo. Então será possível tecer comparações e demons-
trar concepções de mundo, espaço e tempo: qual a concepção estética que o
homem medieval possuía de si próprio e como as imagens representavam os
atores sociais, como a mulher, o camponês, o clérigo, o senhor, etc.
Essas imagens são facilmente coletadas na rede mundial e poderão ser
operacionalizadas novamente como slides em um projetor ou facilmente im-
pressas ou reveladas como fotografias em que poderão circular pela classe.

O livro didático
Confesso que não sou um utilizador assíduo do livro didático em aula.
Possuo dois ou três títulos de qualidade razoável com os quais preparo uma
aula básica e vou acrescentando informações com o tempo. Sim, os tais con-
teúdos precisam ser ministrados e é preciso também reservar-lhes horas-aula.
Uma vez que o mercado editorial de livros didáticos movimenta mi-
lhões de reais, existe uma gama infinita cuja variação é sentida desde a
proposta até a qualidade. Há livros muito ruins, como também há livros
excelentes. Há projetos gráficos muito atraentes e projetos pobres. Há tex-
tos acessíveis que convidam à leitura e textos maçantes repletos de equívo-
cos. Muitos livros vêm acompanhados de um bom material de anexos (ta-
belas, mapas, imagens, documentos históricos, etc.), e este vem a ser um
recurso de apoio significativo.
Contudo, como demonstramos acima, poucos livros realmente ino-
vam no tratamento da história proporcionando uma proposta diferencia-
da. É bem verdade que mesmo aquele velho livro didático que está esqueci-
do no banco de livros da escola vai salvar você em muitos apertos e você
deverá fazer a pazes com ele. Mas, seja em História Medieval ou outra

186
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

qualquer, é recomendável tomar cuidado para não criar uma relação de


dependência para com os livros.
Existem bons livros, e os alunos necessitam que exista ao menos um
como referência de base para seus estudos e revisões. Penso que, para o caso do
Medievo, o professor deverá fazer uso daquilo que os livros oferecem, princi-
palmente a rica iconografia que vem sendo publicada em muitas edições.

Um pouco de tecnologia
A tecnologia já é uma realidade relativamente acessível e está inseri-
da em todos os contextos educacionais. Urge que o educador saiba fazer
uso de suas possibilidades da forma mais apropriada. Não apenas por seu
caráter facilitador, mas pelo fato significativo de que crianças e adolescen-
tes se adaptam muito rapidamente às inovações tecnológicas, o que pode
facilmente causar um abismo cultural entre professor e alunos de forma
que não seja possível uma interação. É aconselhável que o professor conhe-
ça ao menos de forma rudimentar as referências culturais que compõem o
universo de seus alunos, e hoje os “brinquedos tecnológicos” integram o
cotidiano dos jovens, mesmo entre aqueles de menor poder aquisitivo. Eles
podem até não possuí-los, mas certamente os conhecem e desejam.
Sendo assim, farei a enumeração de alguns softwares que podem con-
ferir à sala de aula maior interação com este aparato tecnológico. Que ne-
nhum professor se iluda quanto à necessidade de despender algum tempo
para aprendizado e adaptação, além de algum investimento financeiro.
Vamos aos softwares.
Fizemos acima a sugestão de selecionar cenas de filmes e vídeos para
o uso pontual em slides. FORMAT FACTORY é um programa leve e bas-
tante intuitivo que permite,
além do corte ou da união de
cenas, a conversão de muitos
formatos de vídeo ou áudio
de acordo com a preferência
e necessidade do usuário.
É realmente imensa a
quantidade de trabalho que
este software simples vai faci-
litar, permitindo a edição de
boas seleções de vídeos.

187
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

Histórias em quadrinhos são uma forma de linguagem que sempre


conservou sua popularidade entre crianças, jovens e adultos. Porém, sua con-
fecção sempre foi um problema para a sala de aula não só pela exigência da
aptidão em desenhar, como pela noção de editoração e dos quadrinhos na
página. Existe um software excelente que agiliza em torno de 70% do trabalho
de produção de uma história em quadrinhos.
Com o COMIC LIFE é possível criar uma história em quadrinhos
mesmo sem nenhum talento para desenho, pois o programa trabalha a partir
de imagens que você tem
armazenadas no seu com-
putador ou mesmo aque-
las que você coleta pela in-
ternet. É possível até apli-
car efeitos predefinidos nas
imagens para que fiquem
parecidas com desenhos
das HQs. Com ele você ou
seus alunos poderão dar
asas à criatividade e pro-
mover uma boa atividade
em aula, como a quadrinização de um conteúdo ou a criação livre de narra-
tivas ficcionais históricas.
Uma outra ferramenta a ser destacada está na possibilidade de criação
de modelos em 3D. Lembra daqueles trabalhos de maquetes que fazíamos no
tempo de escola? Papelão, isopor, além do trabalho de transportar a coisa
toda no dia da entrega...
Descobri com muita satisfação uma ferramenta que permite a modela-
gem dos objetos mais diversos. Ocorre que elaborar modelos em 3D exige,
além de muitas horas de treinamento especializado, um microcomputador
de configuração muito potente. Contrariando todos os prognósticos, o sof-
tware GOOGLE SKETCHUP é leve, intuitivo e pode ser compreendido com
dedicação de um tempo razoavelmente breve.
A dinâmica de trabalho proporciona um bom divertimento a partir do
momento em que os alunos percebem as possibilidades. Claro que exige en-
volvimento, dedicação e pesquisa, mas o resultado permite uma interação
diferenciada com cenários ou monumentos arquitetônicos históricos. É real-
mente uma experiência interessante poder construir um castelo medieval e
passear por suas dependências, estudar seus detalhes e demonstrar este re-

188
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

sultado aos colegas de classe. O mesmo vale para a construção do seu pró-
prio feudo ou a elaboração de máquinas de guerra medieval.
Vejamos alguns exemplos:

Uma arena de justa construída por alunos do segundo ano do ensino médio – 2012

Castelo cruzado de Arsur (Tel Aviv) construído por alunos do segundo ano do ensino
médio – 2012

Modelo básico de um feudo construído por alunos do segundo ano do ensino médio – 2012

189
NORDIN, Nei • O ensino da Idade Média: questões práticas e realidade de sala de aula

Enfim, são trabalhos alternativos que acredito estimulem novas sen-


sibilidades em torno de temas da História. Cabe ressaltar que a dinâmica
destes trabalhos deverá ser organizada em grupos, pois devemos considerar
que no contexto da escola pública, onde os trabalhos aqui demonstrados
foram realizados, não são todos os alunos que possuem recursos para ad-
quirir microcomputadores. Mesmo se for uma escola de comunidade mais
carente e que disponha de um laboratório de informática, será possível rea-
lizar estas atividades.
Como vimos, a tecnologia pode ser uma aliada para tornar mais atra-
tiva uma aula sobre a Idade Média. Não é recomendável que venhamos a
ser dependentes de seus requintes. Não devemos esquecer que, em meio a
novas e constantes tendências de modernidades pedagógicas e avanços na
educação, algumas coisas tradicionais ainda devem ter seu papel assegura-
do em sala de aula, como a postura e a autoridade do professor/educador e
até mesmo alguns velhos métodos de uma boa aula organizada na lousa.
Mesmo que o professor esteja assessorado pelos mais modernos apa-
ratos tecnológicos, ele ainda deve possuir a faculdade de contar uma boa
História aos seus alunos, buscando encantá-los com fábulas de reis, cavalei-
ros, princesas e batalhas. Se ainda não houver entre os alunos a maturidade
necessária para que possam apreender processos históricos, ficará ao me-
nos registrada a memória de um momento prazeroso proporcionado por
um professor em algum lugar do passado. Então uma semente foi plantada.
Como afirmado acima, o objetivo deste texto foi demonstrar e discu-
tir questões de ordem prática e apresentar algumas sugestões ao ensino da
Idade Média Ocidental na sala de aula. É importante ressaltar que todas as
sugestões e metodologias aqui mencionadas foram realizadas no contexto
da escola pública e com todas as dificuldades decorrentes de seu contexto.
Não há mais nenhuma sustentação para a afirmação de que nossa forma-
ção histórica esteja desvinculada do período do Medievo. A literatura de
cordel do Nordeste está aí para demonstrar muito bem suas permanências.
Somos herdeiros legítimos do Medievo. E são estas permanências que legi-
timam o estudo da História da Idade Média em nossas salas de aula.

190
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A constituição do feminino e o pecado da luxúria


no “Livro das Confissões” de Martín Pérez

Letícia Schneider Ferreira

Introdução
O presente estudo visa discutir de que forma se apresenta a concep-
ção sobre o feminino e sua associação com o pecado da luxúria, questão
que foi alvo da pesquisa empreendida pela autora durante a realização do
doutorado em História no Programa de Pós-Graduação da UFRGS em
História. Os estudos sobre o feminino vêm demonstrando sua importância
com o número crescente de adeptos desta área, sendo este tópico extre-
mamente relevante para a compreensão da realidade de uma determinada
sociedade. Deste modo, refletir sobre o pensamento e as representações pre-
sentes no medievo requer uma análise sobre seus atores, os modelos de com-
portamento e os papéis atribuídos para homens e mulheres.
A avaliação do pecado é um outro ponto interessante, uma vez que
este tópico permeia a vida e o pensamento do homem medieval. A identifi-
cação daquilo que é considerado pecado e a verificação das penitências
atribuídas a homens e mulheres podem auxiliar a percepção das represen-
tações sobre o feminino e o masculino no Medievo. Assim sendo, este arti-
go investiga tais questões no “Livro das Confissões” de Martín Pérez, ver-
são portuguesa do manual de confessores castelhano do início do século XIV.
A opção pela análise desta obra se justifica dada a sua relevância no período,
sua linguagem acessível, visível no teor pedagógico do manual, além de sua
abordagem extensa sobre o feminino e o pecado da luxúria.
Assim, em um primeiro momento, será realizada uma discussão so-
bre as principais concepções teóricas que serão utilizadas no presente estu-
do. Após o debate teórico, será apresentada a obra em análise e de que
forma a mesma aborda a ideia de pecado, em especial o pecado da luxúria.
De igual modo, refletir-se-á sobre as referências às mulheres presentes no
manual de confessores de Martín Pérez, realizando um cotejo entre as mes-
mas e as concepções hegemônicas sobre as mulheres durante o Medievo.

191
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

Indubitavelmente, não se deseja esgotar o tema ou mesmo apresentar con-


clusões irrevogáveis sobre ele, mas sim lançar questionamentos a fim de
estimular a investigação dos estudos sobre o gênero e o feminino em docu-
mentos medievais.

1. Gênero e feminino: um debate profícuo


O estudo sobre o feminino ao longo da história implica não apenas
uma análise das diferentes esferas sociais e a participação ou não das mu-
lheres nas mesmas, mas também das concepções teóricas que podem orien-
tar as reflexões sobre este tópico. De fato, é possível referir a existência de
duas principais correntes de compreensão relativas aos estudos sobre as
mulheres: a história das mulheres e os estudos de gênero. Há, muitas vezes,
uma confusão entre estes diferentes olhares sobre a realidade do feminino,
que de forma alguma são equivalentes, apesar de ambos se originarem do
movimento feminista dos anos 60 e 70. É possível diferenciar estas perspec-
tivas explicitando que a história das mulheres possuiria uma vertente mais
voltada à militância e à denúncia da opressão do feminino, contestando o
papel atribuído às mulheres na sociedade. Os estudos de gênero, por outro
lado, também buscam referir a desigualdade entre os sexos, mas a partir de
uma ótica de relação entre os sexos, sem evidenciar um antagonismo in-
trínseco entre homens e mulheres, mas a constituição da ideia de feminino
concomitantemente ao de masculino. Talvez a maior referência entre os
estudos de gênero ainda seja Joan Scott, que, ao definir gênero, expõe que
[g]ênero é a organização social da diferença sexual. [...] Gênero é o saber
que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados
variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada
no corpo, incluídos aí os órgãos reprodutivos femininos, determina univoca-
mente como a divisão social será definida. Não podemos ver a diferença
sexual a não ser como função do nosso saber sobre o corpo e este saber não
é “puro”, não pode ser isolado de suas relações numa ampla gama de con-
textos discursivos.1

O presente artigo irá valer-se desta perspectiva por acreditar que a


mesma apresenta a complexidade da constituição do feminino, historici-
zando os discursos que acabam por inferiorizar o feminino frente aos valo-

1
SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu: Desacordos, desamores
e diferenças, Campinas, UNICAMP, n. 3, p. 11-27, 1994. p. 13.

192
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

res ocidentais e iluministas, embasando-se principalmente em argumentos


biologicistas. A ideia de gênero não se vale de uma percepção fixa, dado
que o que se pensa ou se argumenta sobre o modelo de comportamento
apropriado para homens e mulheres modifica-se ao longo do tempo. O gê-
nero permite referir o conteúdo cultural da percepção sobre as mulheres e
impõe que não haja neutralidade nos estudos sobre feminino e masculino.
Christiane Kaplish-Zuber avalia esta questão salientando que
[n]ascer homem ou mulher não é, em nenhuma sociedade, um dado biológi-
co neutro, uma simples qualificação “natural” que permaneça como que
inerte. Pelo contrário, esse dado é trabalhado pela sociedade: as mulheres
constituem um grupo social distinto, cujo caráter [...] invisível aos olhos da
história tradicional, não depende da “natureza” feminina. Aquilo que se
convencionou chamar de “gênero” é o produto de uma reelaboração cultu-
ral que a sociedade opera sobre essa pretensa natureza: ela define, considera
– ou desconsidera – representa-se, controla os sexos biologicamente qualifi-
cados e atribui-lhes papéis determinados. Assim, qualquer sociedade define
culturalmente o gênero e suporta em contrapartida um efeito sexual.2

O gênero revela também a diferenciação de poderes entre os atores


sociais, sendo este um conceito fundamental para refletir sobre o feminino.
A ideia de poder refere uma proposta de dinamicidade, conforme a concep-
ção foucaultiana, que prevê diversas fontes de poder disseminadas na soci-
edade, não sendo uma estrutura fixa e única. Os atores sociais, assim, aces-
sam as formas de poder de acordo com cada contexto e com os valores de
cada sociedade. Deste modo, para Foucault,
[o] poder está em toda parte, não porque englobe tudo e sim porque provém
de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo,
de inerte, de autorreprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir
de todas essas mobilidades, encadeamento que se apoia em cada uma delas
e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida devemos ser nominalistas: o poder
não é uma instituição ou uma estrutura, não é uma certa potência de que
alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa
numa sociedade determinada.3

A relação entre homens e mulheres durante o Medievo revela uma


desigualdade de posicionamentos na trama social e se configura nas repre-
sentações referentes a homens e mulheres nos documentos medievais. Para
tanto é importante refletir sobre as personagens femininas que estão pre-

2
KLAPISH-ZUBER, Christiane. Introdução. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História
das mulheres no Ocidente: v. 2: A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. p. 11.
3
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010.
p. 102- 103.

193
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

sentes principalmente nos discursos clericais, tais como aqueles presentes


no Livro das Confissões de Martín Pérez. De fato, em sua grande maioria,
os textos escritos produzidos durante o período medieval são compostos
por clérigos, e a compreensão da percepção do feminino deve perpassar as
singularidades deste segmento social. Apesar de não haver a possibilidade
de resgatar a concretude do cotidiano do feminino, o que não é de forma
alguma o objetivo deste estudo, é essencial referir que os discursos de pa-
dres e monges vinculam-se a um determinado referencial de feminino, o qual
se apresenta geralmente misógino4. Desta forma, o feminino está muitas ve-
zes associado ao pecado, tema que será explorado no item subsequente.

2. Pecado, luxúria e confissão


A importância do pecado no período medieval pode ser medida pela
quantidade de referências ao mesmo na documentação escrita e pictórica
produzida na época. A necessidade de evitar o pecado mobiliza ações e
conduz a determinados modelos de comportamento, prescritos em diferen-
tes discursos, sendo indiferente o seguimento ou não das condutas sugeri-
das. O pecado é um ordenador da realidade, organizando o pensamento
sobre diferentes instâncias e atores sociais. Casagrande e Vecchio refletem
sobre o tema do pecado e afirmam que
[o]s homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo peca-
do. A concepção do tempo, a organização do espaço, a antropologia, a no-
ção do saber, a ideia de trabalho, as ligações com Deus, a construção das
relações sociais, a instituição das práticas rituais, toda a vida e a visão de
mundo do homem medieval gira em torno da presença do pecado. O tempo
histórico é um tempo pontuado pelo pecado: antes e depois da Queda, antes
e depois da vinda de Cristo, antes e depois do Juízo Final.5

Cometer um pecado vincula-se a romper regras no nível humano e


divino, havendo a necessidade de responder por seus atos em ambas as esfe-

4
Dalarun afirma que “[t]udo os distancia das mulheres, entrincheirados que estão no universo
masculino dos claustros e dos scriptoria, das escolas, depois das faculdades de teologia, no seio
das comunidades de cônegos onde, desde o século XI, os clérigos encarregados do século se
preparam para a vida imaculada dos monges. [...] Separados das mulheres por um celibato
solidamente estendido a todos a partir do século XI, os clérigos nada sabem delas. Figuram-
nas, ou melhor, figuram-n’A; representam-se a Mulher, à distância, na estranheza e no medo,
como uma essência específica ainda que profundamente contraditória” (DALARUN, Jacques.
Olhares de clérigos. In: DUBY; PERROT, 1990, p. 29.
5
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, v. II, p. 337.

194
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

ras. Para compreender o pecado é necessário analisar uma série de práticas


sociais ao longo do tempo, não sendo possível avaliá-lo de modo isolado. O
pecado é um mecanismo que mobiliza dois elementos essenciais: o medo e
a culpa. O indivíduo deve temer as possíveis consequências do pecado,
mesmo que não vivenciadas: as torturas prometidas no espaço infernal de-
vem ser de tal monta que provoquem determinadas formas de comporta-
mento; de igual modo, para que as lições sejam apreendidas, é fundamental
que o indivíduo se sinta culpado, remoa o equívoco, internamente, bem
como seu ato seja alvo de repúdio alheio. O conceito de pecado é bastante
amplo, guardando em si a ideia do mal e a ideia de omissão. Josef Pieper
afirma que
[s]i intentamos delimitar el concepto de “pecado” [...] se muestran inmedia-
tamente dos campos de significación en los que él está situado, uno más
estrecho y otro más amplio. El más amplio es el ambito entero del mal, de lo
privado de bien, de lo malo, de malum. Quien piensa el pecado estrictamente
hablando ha pensado ya antes que algo no está en orden en el hombre, que
algo no concuerda con él, que la cosa no anda bien en torno a el y a su
existência, y que quizá no anda bien en torno al mundo mismo. El otro
campo más limitado del concepto es el da acción defectuosa, el de la falta
humana, el del mal causado por la acción u omisión. Todo pecado es una
falta; pero, por supuesto, no toda falta humana es un pecado en sentido
estricto.6

A prática da confissão está em estreito vínculo com a preocupação


em relação ao pecado: assim, é a partir da admissão de seus erros àquele
que possui a legitimidade de absolvê-los e de um sincero arrependimento
que o indivíduo pode ter sua alma salva. A própria ideia de confessar os
equívocos cometidos foi transformando-se ao longo do tempo de uma con-
fissão pública em uma confissão individual exclusivamente para compo-
nentes do clero realiza, sem dúvida, um processo de empoderamento deste
segmento social, sem que tal opção tenha sido uma escolha maniqueísta de
manipulação dos indivíduos. Contudo, é inegável que esta nova forma de
inserção dos representantes da Igreja Católica na sociedade constituiu mo-
dos diferentes de relação entre os atores sociais, bem como a construção de
outros olhares sobre o pecado e sua remissão. Macedo explicita que
[...] a confissão auricular assegurou à Igreja e aos seus ministros um sistema
de regulação dos comportamentos coletivos pelo qual o confessor não ape-
nas detectava, mas também constituía, mediante severo interrogatório, as
faltas do penitente. Nesse aspecto, o dispositivo da confissão transformava-

6
PIEPER, Josef. El concepto de pecado. Barcelona: Editorial Herder, 1986. p. 23.

195
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

se num mecanismo de controle social. Por outro lado, a contrição e remis-


são dos pecados liberavam o penitente de eventuais culpas, reconciliando-o
com sua consciência e permitindo-lhe experimentar maior densidade emo-
cional e espiritual, motivo que explique talvez a razão de seu sucesso e de
sua excepcional duração como prática.7

A adoção da confissão auricular, sem dúvida, não se realizou em um


rompante, sendo na verdade um processo gradual e que, sem dúvida, en-
controu resistências à sua aplicação. A confissão auricular parte do pressu-
posto da existência de um íntimo em cada indivíduo, espaço no qual segre-
dos pecaminosos poderiam ser mantidos ocultos e sem penitência. Cabe,
então, ao confessor escrutinar a alma do pecador a fim de desvelar seus
equívocos e guiá-lo na direção correta. A confissão auricular, a qual passou
a ser exigida pelo cânone XXI do IV Concílio de Latrão, acarretou novas
tarefas para os clérigos, bem como estabeleceu uma nova forma de relação
entre confessor e penitente, sendo que o primeiro deveria saber como abor-
dar o fiel e esclarecê-lo para que obtivesse uma verdadeira contrição. José
Antunes aborda esta questão, expondo que,
[s]egundo a corrente contricionista, a atenção do confessor não devia recair
tanto sobre o pecado quase abstractamente, desligado da pessoa, como até
então, mas fundamentalmente sobre o homem pecador. Não propriamente
sobre o erro e a respectiva penitência, mas sim sobre o coração da pessoa,
dando-se mais relevo à contrição, aos sentimentos, à dor sincera e à confis-
são do penitente arrependido. [...] Não admira, portanto, que já nos finais
do século XII e durante todo o século XIII este encontro entre o penitente e
o confessor revestisse uma maior importância e se começasse a atribuir mais
valor à confissão e ao exame de consciência, a fim de perscrutar com mais
atenção e verdade o interior do próprio homem, numa tentativa de ajuda e
de maior compreensão.8

O exercício da confissão irá propor toda uma nova ritualística, e é


necessário dar uma orientação àqueles que se incumbirão da tarefa de sal-
var as almas dos fiéis. Assim, surgem paulatinamente, a partir do século
XIII, uma série de obras cujo intuito é apoiar os clérigos em sua missão,
esclarecendo de que modo os mesmos devem proceder, formas de investi-
gar os pecados e as penitências a serem aplicadas para cada situação. A
literatura confessional é redigida principalmente por membros do clero e

7
MACEDO, José Rivair. Os manuais luso-castelhanos dos séculos XII-XIV. Aedos: Revista do
Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, v. 2, n. 2, 2009.
Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/ppghist/aedos/ojs-2.2ed3/index.php/aedos/article/
view/167>. Acesso em: 10 jun. 2011.
8
ANTUNES, José. A cultura erudita portuguesa: juristas e teólogos. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Coimbra, 1995. p. 281-282.

196
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

incorpora diferentes expressões de gênero, como os penitenciais, os manu-


ais de confessores e as súmulas de confissão, entre outros, e tal diversidade
evidencia a importância do tema na realidade medieval. Jean Delumeau
debate esta questão e afirma que
a base da documentação sobre o assunto é evidentemente a pesada literatura
eclesiástica, acumulada do século XIII ao XIX, que reúne “súmulas de con-
fissão”, “manuais de confessores”, tratados de casuística, sermões, catecis-
mos, “resultados de conferências eclesiásticas”, cartas de espiritualidade etc.
Essa massa é para nós um signo. A confissão privada obrigatória ocupou
nas preocupações de então, mutatis mutandis, um lugar comparável ao que
ocupam hoje em cada um dos meios de comunicação e na opinião pública a
contracepção, o aborto, as fecundações artificiais e a eutanásia.9

O “Livro das Confissões”, manuscrito em análise no presente artigo,


pode ser classificado como um manual de confessores, uma vez que foi
redigido com a intenção de orientar em especial aqueles que detinham um
“minguado conhecimento”10. A versão portuguesa da obra original caste-
lhana, escrita por volta de 1316, foi compilada por monges do mosteiro de
Alcobaça em 1399 e alcançou considerável popularidade, uma vez que a
tradução desta obra ocorre no momento em que há um aumento do inte-
resse pela prática de leitura da nobreza de Portugal11. Além disso, Martín
Pérez, do qual pouco se conhece12, possui uma linguagem acessível e sua

9
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 14.
10
Martín Pérez inicia sua obra com as seguintes palavras: “EN NOME DE DEUS padre e filho
e spirito sancto hu? Deus uerdadeyro, começo e fin de todalas cousas, sen o qual ne 4hu4a cousa
nõ pode seer feyta. Começa se o pobre libro das confissões, dito assi, por que he feyto e complido
para os clérigos m?guados de sciencia” (MARTÍN PÉREZ. Livro das confissões. Edição
semidiplomática de José Barbosa Machado e Fernando Torres Moreira. Edições Pena Perfeita,
2005-2006. 2 v. p. 21).
11
Em relação ao “Livro das Confissões”, Macedo afirma que “o interesse dos príncipes pela
leitura da obra revela-nos talvez algo importante sobre a recepção do conteúdo do Libro de las
Confesiones em ambiente português. Sua introdução data do período inicial da dinastia de Avis,
no mesmo momento de produção de uma ampla literatura em prosa, elaborada com fins
didascálios, destinada à educação da nobreza. Sabe-se bem do gosto desta elite culta por textos
de caráter histórico, moralizante, doutrinal. Praticamente contemporâneos da tradução da
obra de Martín Pérez são o Leal Conselheiro e o Livro dos Conselhos, do rei Dom Duarte, e o
Livro da Virtuosa Benfeitoria, do Infante Dom Pedro, obras imbuídas de um conjunto de
ideias que revelam uma certa percepção da sociedade” (MACEDO, José Rivair Os códices
alcobacenses do Libro de las Confesiones de Martín Pérez [Ms. Alc. 377-378]: elementos para o
seu estudo. Programas de Estudos Medievais: Instituições, cultura e poder na Idade Média
Ibérica. In: Atas da VI Semana de Estudos Medievais I Encontro Luso-Brasileiro de História Medieval.
Brasília, 2006. v. 1, p. 121).
12
Na introdução da edição semidiplomática do “Livro das Confissões”, João Machado Barbosa
explicita a dificuldade em desvendar de fato a real identidade do autor castelhano: “Pouco se

197
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

obra destaca-se por seu conteúdo pedagógico: de fato, Martín Pérez pare-
ce estar preocupado em definir conceitos importantes para a compreen-
são dos tópicos que aborda, como o pecado e os sacramentos. Ressalta a
importância do trabalho do confessor e sua responsabilidade, sendo ne-
cessário que o mesmo tenha um largo conhecimento a fim de realizar
uma orientação adequada, e procura pautar seu discurso nos ensinamen-
tos de importantes figuras da cristandade, como São Paulo e Santo Agos-
tinho. O autor expõe que
[c]onue4 que o cõfessor seia sabedor 4e nas leys de Deus, e que nõ despreze as
constituiçoões da sancta egreja, aas quaaes deue 4 todos os christaãos obedee-
cer. E nõ çarre as orelhas o cõfessor que lhe esqueeça, aquelas palauras de
Sancto Agustinho que som: guarde se o jujz spritual que lhe nõ falesça o dom
da sciencia. Ca lhe conue 4 que sayba todo o que ha de iulgar. [...] E tu iujz
spiritual iulgaras por a ley de Deus, que he o testamento uelho e nouo, e as
sete4ças que os sanctos disserõ sobre elo.13

Martín Pérez abrange em sua narrativa diversas abordagens em rela-


ção ao pecado, apresentando situações referentes ao pecado original, peca-
dos “criminais”, mortais ou veniais, e também realiza uma reflexão a partir
do setenário. A classificação dos sete pecados capitais, entre os quais se inclui
o pecado da luxúria, tema de interesse deste artigo, é visível ao longo da
história, havendo uma série de referências a estas faltas na documentação
textual e iconográfica. Para alguns autores, os chamados “pecados capitais”
poderiam ser compreendidos como vícios, pois partem de uma ação voluntá-
ria do pecador. Solignac vai ao encontro desta perspectiva, afirmando que
[l]es péchés capitaux ne sont pas des péchés au sens où ce terme implique
une action consciente et volontaire; il s’agit plutôt de tendances fondamen-
tales qui portente au mal. Si le terme péchés a fini par prévaloir au 13º siécle
c’est parce que ces tendances se rélisent le plus souvent en états d’âme ouha-
bitudes qui ne sont pas sans culpabilité plus ou moins consciente et en outre,
parce qu’ils conduisent à des actes réellement peccamineux.14

sabe acerca de Martín Pérez e esse pouco é retirado da única obra que se lhe conhece, o Libro
de las Confesiones, ou de algum dos manuscritos que a contém. Sabe-se que escreveu, ou mais
provavelmente, acabou de escrever, esta obra em 1316, que era um homem da Igreja, certamente
um clérigo secular, e que tinha uma grande cultura canônica e teológica, o que pode fazer-nos
pressupor que teria frequentado uma universidade, talvez a de Salamanca. É, no entanto,
arriscado [...] identificar o autor com os vários indivíduos com o mesmo nome que surgem em
documentos medievais” (MACHADO, José Barbosa. Introdução. In: MARTÍN PÉREZ, 2005-
2006, p. 9).
13
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, p. 27.
14
SOLIGNAC, Aimé. Péchés capiteux. In: Dictionnaire de spiritualité: ascétique et mystique:
doctrine et histoire. Paris: Beauchesne, 1984. Tome 12, Première Partie, p. 854.

198
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A Evrágio de Pôntico, monge que viveu no século IV, é atribuída a


organização dos principais vícios que corromperiam a alma humana, sen-
do inicialmente oito: a gula, a fornicação, a cobiça, a melancolia, a cólera,
a acídia, a vanglória e o orgulho. O sucesso desta sistematização talvez se
explique pela facilidade de compreensão dos vícios arrolados pelo monge,
pois é possível associá-los a práticas concretas do cotidiano. Evágrio de
Pôntico não se limita a explicitar os vícios, mas também procura apresentá-
los em grau de importância. Tal prática irá se repetir com os demais estudi-
osos dos pecados capitais, os quais também podem valer-se de uma concep-
ção em que os pecados seguem uma ordem na qual de um deriva o outro.
Casagrande e Vecchio refletem sobre esta questão, afirmando que
[D]ans un processus ininterrompu, l’excès de gourmandise engendre la lu-
xure, laquelle produit à son tour l’avarice ; de l’avarice naît la colère, de l’a
colère la tristesse et de la tristesse l’acédie. Le parcours qui engendre les
deux autres vices est inverse : l’orgueil et la vaine-gloire ne sont pas du tout
le produit d’un excès de malice, mais se nourrissent plutôt des progrès mo-
raux accomplis par le moine : l’elimination de tous les vices chanerls est
l’élément qui déchaîne les tentations d’ordre spirituel.15

João Cassiano, monge que viveu durante o século V, apropriou-se da


reflexão sobre os pecados, modificando a ordem de importância dos vícios
e separando, no interior do octonário, os pecados carnais dos espirituais,
sendo mais comum associar os pecados espirituais aos homens e os carnais,
que não necessitam de uma profundidade interior para serem desencadea-
dos, às mulheres. O setenário conforme é conhecido atualmente começa a
se delinear a partir do pensamento do Papa Gregório I, que apresenta o
orgulho como o mais grave pecado e origem de todos os demais. Porém,
talvez a maior contribuição para o delineamento dos pecados capitais tenha
sido de um dos maiores pensadores da cristandade: São Tomás de Aquino.
Para Tomás, estes vícios seriam a “cabeça” de todos os demais equívocos
humanos, sendo os grandes responsáveis pelas más ações humanas. Em rela-
ção às reflexões de Tomás de Aquino, Lauand explicita que
[o]s vícios capitais na enumeração de Tomás são: vaidade, avareza, inveja,
ira, luxúria, gula e acídia. Hoje, em lugar da vaidade, a Igreja coloca a sober-
ba, e em lugar da acídia é mais frequente encontrarmos a preguiça na lista
dos vícios capitais. Isto se deve a que a soberba é considerada por Tomás
como um pecado, por assim dizer, “megacapital”, fora da série e, portanto,
prefere falar em vaidade (inanis gloria, vanglória). Já a substituição da acídia

15
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Histoire des péchés capitaux au Moyen Âge. Paris:
Aubier, 2003. p. 277.

199
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

pela preguiça parece realmente um empobrecimento, uma vez que [...] a


acídia medieval – e os pecados dela derivados – propiciam uma chave extra-
ordinária precisamente para a compreensão do desespero do homem con-
temporâneo.16

A luxúria é um pecado que está presente na reflexão de todos os teó-


logos que abordaram os pecados capitais, demonstrando sua constância,
ao contrário de outros que foram sendo substituídos ou reformulados ao
longo do tempo. Este vício, muitas vezes, é percebido como de pouca gravi-
dade por ser de natureza carnal e, portanto, de mais fácil controle. Delu-
meau explicita os motivos da falta de interesse dos autores tanto pela luxú-
ria quanto pela gula, ambos vícios da carne, e sua classificação inferior frente
aos demais:
Essa classificação e essa relativa falta de interesse pela luxúria (e pela gulo-
dice) constituem uma herança da lista outrora estabelecida por Evágrio, o
Pôntico, que aconselhava aos monges do deserto que começassem por ven-
cer a gulodice e a luxúria para em seguida atacar pouco e pouco e por ordem
de dificuldade crescente os vícios mais resistentes.17

Apesar desta suposta falta de importância da luxúria, esta é tema


recorrente dos discursos eclesiásticos, demonstrando que este seria um dos
pecados mais cometidos entre os vícios do setenário. Porém, antes de dis-
cutir a presença da luxúria no manual de confessores em estudo, é necessá-
rio realizar um primeiro questionamento: qual a melhor definição de “lu-
xúria”? De fato, o termo luxúria parece ter se modificado ao longo do tem-
po, sendo inicialmente mais abrangente, até tornar-se específico para refe-
rir-se à relação sexual. Assim, talvez seja mais adequado refletir a luxúria
como “a busca pelo prazer” ou a experiência prazerosa, sensação condena-
da durante o Medievo.
Martín Pérez percebe a luxúria como um dos pecados mais impor-
tantes, que deveria ser investigado pelo confessor. O autor expõe que “e por
4 mays os homee
razõ que en dous peccados se enuolue 4s cõue4 assaber: luxuria e avare-
18
za”. A luxúria é, na ótica do autor, a mais comum, e portanto é por este

16
LAUAND, Jean. O pecado capital da acídia na análise de Tomás de Aquino: notas de
conferência. Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, set. 2004. Disponível em: <http://www.hottopos.com/
videtur28/ljacidia.htm>. Acesso em: 11 jan. 2012. p. 66.
17
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente. Bauru, SP: EDUSC,
2004. 2 v. , p. 403.
18
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, p. 65.

200
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

pecado que o confessor deve iniciar o interrogatório. Recomenda o autor


que “[p]or esso cõuem que demãdes primeyro estes, e primeyro da luxuria”.19 É
possível refletir que a própria mudança do significado da luxúria ou mesmo
de sua importância está vinculada ao contexto vivenciado pelo pensador
que debate seu significado e sua aplicação. No ambiente monástico, geral-
mente caracterizado pela exigência de uma postura de isolamento, os peca-
dos classificados como “espirituais” apresentavam um desafio maior: ape-
sar de não se negar a ocorrência da prática da luxúria por parte de clérigos,
o domínio do orgulho e o da vaidade parecem ter sido preocupações mais
prementes destes atores sociais. Os discursos que condenam a luxúria podem
ser pensados como uma crítica aos excessos aos quais ela leva, e, ao passarem
de um espaço monacal para um contexto laico, requerem uma modificação
de perspectiva, adequando-a ao cotidiano dos demais atores sociais. Assim,
supõe-se que a luxúria virá paulatinamente se restringindo à concepção de
prazer sexual, a fim de se coadunar com as necessidades da sociedade, na
qual a prática do ato sexual é o excesso mais comumente cometido.
Martín Pérez demonstra a importância da luxúria salientando que
esta deve ser demandada junto com a soberba pelo confessor. O autor expli-
ca que
Porque na ordinaçõ dos peccados carnaaes he posto primeyro o peccado da
luxuria, que deuia séér portumeyro, e o primeyro o peccado da soberua, por
que scientemente e assabendas foy feyto, por que segmdo diz algums docto-
res e paresce por experiencia dous som os peccados en que os homes som
mays ergonha e destes ham mays consciencia e os mays assy traz suas con-
fissoões ordinadas.20

O “Livro das Confissões” não contempla as mulheres como as úni-


cas praticantes da luxúria, mas aborda que as mesmas podem ser o estopim
da luxúria dos homens. A luxúria tem diversas formas de manifestação, po-
dendo estar vinculada não somente ao ato sexual, mas também às intenções
impregnadas em um determinado gesto ou olhar. Tal ponto é interessante
pois sugere que ela não é sinônimo de prática sexual, apenas a inclui. A luxú-
ria associa-se ao desejo torpe de sedução pela busca de prazer e pode ser
vislumbrada no uso de ornamentos, vestuário e perfumes. Haveria, assim, o
desejo de atrair olhares e a atenção do outro, o que seria já condenável mes-
mo que não provocasse o ato sexual em si. Martín Pérez afirma que

19
Ibid., p. 68.
20
Ibid., p. 25.

201
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

[t]ááes som algu4as molheres que assabendas affeytã para enamorar alguu 4s
homee4s de maao amor e çujo e apparã se em tááes logares que acabam o que
quere4. Esso méésmo faze 4 alguu
4s homee 4s ca luta e cãtã e baylham e tãge4
estormentos. Veste se, bafordã, caualagã e faze4 passada e emviã messegei-
4
ros, dan doas, e muytas outras cousas que pode 4 fazer ou dizer eles por elas.
E certo os que tááes cousas faze 4 ou dize4 por trager o home4 ou a molher a
consentimento de peccado de luxuria. Caãe em grande peccado semelhauel
do que faz o diabóó cada dia. Enpero departimento he antre estes. Ca algu-
ms faze4 estas cousas por cõplir luxuria tã soomente.21

A luxúria abrange o desejo e o pensamento pecaminoso. O confes-


sor, deste modo, deve estar preparado para interrogar sobre o íntimo do
fiel, desde seus pensamentos, intenções e inclusive os seus sonhos. Contu-
do, o processo investigativo deve ser bastante criterioso, pois, ao mesmo
tempo em que questiona, o confessor deve evitar de sugerir ideias pecami-
nosas ao fiel, uma vez que a luxúria seria um pecado insidioso, que perma-
neceria adormecido no coração dos homens, expressando-se a partir de um
estímulo externo. De igual modo, o confessor deve se resguardar para não
se sentir atraído pelo pecado da luxúria por meio dos fatos narrados pelo
penitente. Em relação a esta questão, Martín Pérez orienta o confessor da
seguinte forma:
Demãdaras dos peccados que chama a escreptura peccados de molicie, e
demãdas ben sagesmente, e no demãdes mays desto. Ao hom diras assi: so-
4a uez en peccado de luxuria, se disser si, demandalhe mays.
nhastes uos algu
Acõteceo uos algu4an torpidade, se disser si, demãdalhe se acõteceo tal cou-
sa esperto e como. E aas molheres diras esso méésmo: Se ouuerõ en seu
cabo algma tentaçõ, outrosi se lhes acõteceo algu 4a cousa, e nõ demãdes
mays descoberto de tááes cousas ca muy grãde perigóó he, saluo que as
esforçaras co boas palauras e honestas .s. que nõ encobrã nehma cousa por
uergõça.22

O confessor deve estar ciente de que não é apenas para o desvelamen-


to do ato sexual que as questões devem direcionar-se, mas que o pecado se
inicia em um momento anterior. O confessor deve procurar descobrir o
contexto de realização do pecado, o que ele provoca, locais e ações que
estão vinculadas com mais frequência à prática da luxúria. As questões a
serem abordadas junto ao fiel exigem um tempo de preparo, requerendo
atenção de quem as elabora. Se o confessor demonstra conhecimento sobre
momentos ou locais mais propícios, pode facilitar o interrogatório, causan-

21
Ibid., p. 215.
22
Ibid., p. 67.

202
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

do inclusive uma intimidação do fiel. Guy Betchel refere este tópico, afir-
mando que
[o] amor começa muito antes do amor, e a Igreja sempre soube isso. Foi por
isso que previu, na confissão, interrogar não só sobre os actos da carne, mas
também sobre todas as antecipações em espírito, os fantasmas que os prece-
dem, as delícias prévias. O confessor deve também informar-se sobre as oca-
siões, as possibilidades de pecar, que podem levar ao acto carnal se não se
sobre evitá-las, pior ainda se elas tiverem sido solicitadas.23

A importância da luxúria parece jazer também em suas nefastas con-


sequências na sociedade, pois a prática sexual fora das situações determi-
nadas pela Igreja, ou seja, no interior do matrimônio e com o objetivo úni-
co de procriação, poderia causar perturbações na trama social em casos
como o adultério ou mesmo de gravidez de uma mulher solteira. O autor
propõe uma visão de feminino bastante interessante em relação à luxúria:
as mulheres não são apresentadas como as principais executoras deste pe-
cado, mas como aquelas que podem provocá-lo ou mesmo ser vítimas dele.
São os homens os praticantes da luxúria, aqueles que se deixam seduzir por
seus desejos e, segundo o autor, nem mesmo os clérigos estão imunes a
estas tentações. Martín Pérez afirma que o confessor deve estar atento para
estes casos, uma vez que o membro do clero pode aproveitar-se de sua con-
dição para seduzir uma penitente. O autor explicita que
[...] algum creligo luxurioso que poderia alguma molher aduzer a luxuria ou
cobijçoso de cobijça, ou symonyaco de symonia, ou se esta em rancor, espe-
rando vingança e assy dos outros pecados. Se o seu confessor he seu enemi-
jgo ou lhe quer mal. Se errou contra el assy como se lhe fezesse grande furto
ou grande dano ou que ouue achegança a sua filhe ou a sua jrmaa e teme
morte ou perijgoo se a el se confessasse.24

Assim, há diversos fatores envolvidos na prática da luxúria e que o


confessor deve considerar no momento de avaliar e realizar uma sentença.
A gravidade do pecado pode ser ampliada pelos atores que o praticam ou
mesmo o local ou momento em que é cometido. Assim, se foi realizado em
um local sagrado ou em algum período de celebração da Igreja, significaria
uma penitência maior, e o confessor deve estar atento para estas questões.
Neste intuito, Martín Pérez recomenda que
[d]eues assaber que se o peccado da luxuria se faz, na egreia, ou no cemité-
rio, se he manifesto ou fama delo, ha mester de se recõciliar. E se he occulto

23
BECHTEL, Guy. A carne, o diabo e o confessor. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. p. 161.
24
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, Livro II, p. 32.

203
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

e escõdido, ou nõ. E se a egreia he uiolada por sangue ou fornizio, E se he


cõsagrada o bispo a há de recõciliar. E se nõ se he cõsagrada qualquer sacer-
dote o pode fazer, spargdo por a egrei agua beta. [...] Se en tpo de sangue
fluxu .s. [quando ueë] sua frol aas molheres, se buscou tentaçõ de sy, fazen-
do cousas para cõprir mays o talante da carne. E demãdaras essas méésmas
cousas áá molher.25

Martín Pérez refere a necessidade de realizar o interrogatório tanto


para homens quanto para mulheres, sendo, contudo, necessário cuidado no
caso da penitente ser do sexo feminino a fim de que não haja perigo de
tentações para ambos os envolvidos26 . Além disso, evidenciando o caráter
pedagógico de sua obra, Martín Pérez abrange outras ações pecaminosas
que estão associadas à luxúria: o fornízio e o mau amor. De fato, não está
clara a distinção entre estas três categorias no “Livro das Confissões”, mas
é possível deduzir a partir de sua leitura uma tênue diferenciação entre es-
tes termos: a luxúria seria mais abrangente, seria a procura do excesso de
prazer, por uma sensação de tal monta que o indivíduo se afastaria de suas
obrigações cristãs; o fornízio estaria relacionado ao ato sexual em si, en-
quanto o “mau amor” estaria associado às intencionalidades torpes e à “su-
jeira” presente em pensamentos ou atos sedutores, os quais revelariam a
luxúria e direcionariam ao fornízio. Em relação ao “mau amor”, Martín
Pérez orienta o confessor para a necessidade de questionar
[s]e cantou cantares maaos e torpes. E se quebrantou seu corpo em baylhar
ou em dançar ou se fez mááos gééstos ou mááos e deshonestos óólhares. Se
estoruou os homes do bem co seus cantares e co suas joglarias por que per-
dessem seu tpo em uahidade. Se os metéo em mááo amor ou se o fez por
amor carnal nos homes. Ca esto seria peccado muy mayor.27

25
Ibid., p. 66.
26
Marcelo Pereira Lima reflete sobre tais questões, analisando a legislação afonsina no século
XIII. A respeito da relação estabelecida entre o confessor e a penitente mulher e os perigos que
tal contato acarretava, o autor afirma que “a maior preocupação estava no perigo exposto à
vontade dos homens em geral, mas, sobretudo, também no ‘risco’ iminente dos confessores
dedicados ao contato com o corpo feminino. Pelo menos nesse caso, a perspectiva era tradicional
no que se refere à associação do feminino ao pecado da luxúria e à defesa do celibato clerical.
Mesmo na busca pelo perdão divino, mediado pelas autoridades clericais, as figuras femininas
estereotipadas na lei não seriam perigosas só para si mesmas, mas para a própria institucional
representada pelos clérigos. Aliás, mais do que a mulher, era também a dimensão do feminino
que precisava ser controlada, pois ela prejudicaria a almejada sutura estabelecida entre a
geografia interna (alma, vontade) e a paisagem externa (ações, comportamentos) do confessado
pelo confessor” (LIMA, Marcelo Pereira. Do pecado ao gênero da confissão religiosa: algumas
reflexões sobre as concepções de pessoa na legislação afonsina, século XIII. Signum: Revista
da ABREM, v. 11, n. 1, p. 236-266, 2010. p. 261-262).
27
MARTÍN PÉREZ, 2005-2006, p. 192.

204
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A importância da luxúria nesta obra pode estar associada também ao


destaque que recebe o sacramento do matrimônio, ao qual Martín Pérez
dedica um expressivo número de capítulos. Indubitavelmente, a luxúria deve
ser coibida a fim de que não ocorram adultérios, que poderiam comprome-
ter a herança e o patrimônio de determinados atores sociais. O casamento
vai gradativamente recebendo atenção enquanto instrumento para o esta-
belecimento de vínculos entre as elites, além de ser uma estratégia inclusive
de sobrevivência no caso de segmentos desvalidos, pois um maior número
de braços para o trabalho poderia ser a garantia de escapar da fome. Assim,
Martín Pérez reflete sobre este espaço social comumente referido ao femi-
nino, definindo o matrimônio como duas formas de união:
O primeiro aimtamento he spiritual que se faz por aimtamento das almas
com Jhesu Christo seu sposo em caridade. O ijº aimtamento he corporal,
por que Jhesu Christo em sy quer confirmar se conosco, tomando nossa
humanjdade. E assy o matrimonyo he grande sacramto como diz o aposto-
lo. Ca tem em sy grande e nobre demonstramto de sancto aimtamento de
dous corpos em hma carne, assy deu de dentro em os corações, em hum
querer e co huma uoõtade seer.28

A discussão sobre o matrimônio e o relevante papel que o feminino


possui em seu interior é fundamental para compreender as representações
sobre as mulheres contidas no “Livro das Confissões”. Deseja-se uma de-
terminada postura de cada um dos membros do casal a fim de que o matri-
mônio se mantenha harmônico e mantenha seu caráter sagrado, uma vez
que ele foi constituído por Deus ainda no período da inocência, quando o
ser humano ainda não havia sido expulso do Paraíso. O matrimônio tem
por finalidade a multiplicação dos fiéis, e o ato sexual deve ser limitado à
tentativa de procriação. Martín Pérez afirma que
[o] matrimonyo foy fecto em o parayso terreal. E foy fecto em no stado da
ynocencia, e sem culpa ante que Adam pecasse. E foy fecto em tal logar, e
em tal tenpo que se Adam nõ pecara, fora concibimento sem ardor, e parto
sem door. As palauras por que o matrimonyo // foy fecto, segundo que os
douctores todos cõcordã foro as que disse Adam, prophitizando por o spiri-
tu de Deus, quando lhe Deus pos a molher deãte el, que del formou. O osso
dos meus ossos, e carne da mjnha carne. E de pois deu lhe Deis a beençõ, e
disse: Crecede e multiplicade sobre a terra.29

A função do matrimônio é sustentar a ordem social e manter o equi-


líbrio entre os indivíduos. Além da procriação, ele deve assegurar uma pro-

28
Ibid., p. 142.
29
Ibid., p. 142-143.

205
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

teção contra o pecado da luxúria: há a exigência de exclusividade entre os


cônjuges, procurando-se, assim, evitar a promiscuidade luxuriosa. Toda-
via, marido e mulher devem estar atentos para que o pecado não seja prati-
cado no interior do próprio casamento, sendo necessário que o marido não
deseje ardentemente a esposa e vice-versa. O enlace entre os cônjuges deve
ter um teor de sacrifício e ser executado das formas prescritas pela Igreja a
fim de evitar satisfação. O matrimônio deve ser contraído de forma que os
envolvidos estejam livres de desejo. Em relação a este ponto, Martín Pérez
afirma que
[d]izem os sanctos douctores, que o matrimonyo foy fecto, por duas cousas
principaaes .s. por acrecentamento de ljnhag, e por squiuar o peccado do
fornjzio. [...] depois que o hom pecou, toda a carne foy corrupta do pecca-
do, pero por que os casados nõ se podem imtar, sem delecto de torpidade
carnal. Onde diz Sam Geronjmo, que o casamento em sy, boõ e lijdemo he e
sem peccado, pero por que tanto he o ardor carnal, em seus carnaaes aimta-
mentos, que a graça do spiritu sancto nõ se da aquel tempo, posto que de
plaça seia casamento, e por auer geeraçõ, use do casamento.30

Martín Pérez apresenta o casamento como ordenador social, um pe-


queno núcleo que reflete a sociedade mais ampla. Neste pequeno universo,
homens e mulheres possuem suas funções, sendo as funções da maternida-
de e a criação dos filhos atribuídas às mulheres. O autor inclusive estabele-
ce uma relação estreita entre o termo “matrimônio” e “mãe”, demonstran-
do que tudo o que se referisse ao casamento estaria vinculado ao feminino.
Ele explicita que
[e] a este sacramto dizem matrimonyo da parte da madre. E nõ patrimonyo
da parte do padre. Por que o officio e trabalho da geeraçõ, mais perteece aa
madre que ao padre. E mais trabalho toma a madre trager o filho e parilo e
crialo, que o padre em o geerar. E poserõ ao que herda do padre e da madre
matrimonyo, por que os guaanhos da requeza tporal, mais se soõy de fazer
por officio e trabalho do padre do que da madre. E bem pode dizer o filho
que he de boõ conhocjmento este prouerbio: Minha madre me trouue seu
utre e me paryu e crioucõ gram trabalho. Meu padre me heridou co gram
cuydado. E assy quanto ujuer deue seer a anbos mujto obligado.31

Para Martín Pérez, homens e mulheres possuem papéis distintos, po-


rém complementares. A preocupação do autor parece ser a manutenção do
equilíbrio da relação, o que só acontecerá se ambos adotarem o comporta-
mento esperado de cada um. Não há no seu discurso uma concepção misó-

30
Ibid., p. 143.
31
Ibid., p. 145.

206
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

gina explícita, mas sim o destaque da necessidade de um companheirismo


entre os cônjuges. Martín Pérez defende que
[e]sta companhia majdaujl he tal qual Deus mostrou, quando formou a pri-
meira molher do corpo do hom. Nõ a formou da cabeça por que nõ pareces-
se senhora. Nõ a formou dos pees, por que nõ parecesse serua, mas fezea do
costado do hom, por que fosse cõpanheira. Tal consintjmento nõ he antre os
barregueeiros, que como quer que consentã o aimtamento carnal, nõ con-
sent em o cõsintjmento de cõpanhia maridaujil. [...] Onde os que casam os
que casam obligãse ao djujdo da carne segmdo a enfermjdade dela. Ca mãtj-
mento do comer e do uistir hum ao outro mjnjistrar, e fazer hum ao outro
seruiço corporal. Onde diz o derecto, que a molher e o marjdo taaes deu
seer hum ao outro, como assy meesmo.32

Assim sendo, a partir das passagens citadas da obra é possível perce-


ber que a narrativa presente no “Livro das Confissões” não apresenta a
mulher como um ser maléfico e inferior ao homem, um instrumento diabó-
lico de exercício do pecado da luxúria. A mulher é a companheira do ho-
mem e sua atuação é extremamente relevante na manutenção da ordem
social. Contudo, não é possível negar que, no contexto medieval, o papel
vinculado ao homem era mais valorizado socialmente, o que não significa
uma inferiorização explícita e violenta da mulher.

Considerações finais
O presente artigo teve por finalidade refletir sobre o olhar relativo ao
feminino e ao pecado da luxúria no “Livro das Confissões” de Martín Pé-
rez, a partir da concepção de gênero. A partir da leitura da obra, foi possí-
vel analisar que a narrativa do autor é bastante complexa e extensa, possu-
indo um caráter pedagógico no intuito de orientar o leitor, seja ele o confes-
sor ao qual se dirige ou mesmo um leigo. Martín Pérez demonstra erudição
no sentido de que aponta vários olhares sobre o pecado, entre os quais a
classificação dos pecados capitais. Em relação ao setenário, Martín Pérez
destaca a importância do pecado da luxúria, o qual, no contexto para o
qual se dirige, possui um significado relevante, podendo ser causador de
desordem. A luxúria, que seria comumente associada ao feminino, por ser
um pecado carnal vinculado ao corpo, não é atribuída às mulheres enquan-
to executoras, mas sim como aquelas que podem provocar ou ser vítimas
da luxúria masculina.

32
Ibid., p. 150-151.

207
FERREIRA, Letícia Schneider • A constituição do feminino e o pecado da luxúria...

A luxúria mostra-se como um pecado abrangente, e não somente o


ato sexual em si: ela abriga em si o “mau amor”, as intencionalidades, a
sedução e, por fim, a própria fornicação. Para combater este pecado é reco-
mendado o sacramento do matrimônio, espaço vinculado ao feminino no
qual a mulher exercerá seu papel principal: o de companheira do homem.
A concepção de Martín Pérez sobre o feminino mostra-se, assim, bastante
diferenciada frente à maioria da documentação de natureza eclesiástica, a
qual apresenta a mulher sob uma ótica negativa. Para o autor castelhano,
homens e mulheres possuem papéis diferentes, mas a manutenção do equi-
líbrio social depende da atuação de cada um dos indivíduos que estabele-
cem uma relação, o que é fundamental para a perpetuação e a dissemina-
ção da cristandade.

208
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

Felipe Parisoto1

Introdução
As cidade medievais, na condição de centros de trocas e de produção econô-
mica, propiciaram o surgimento de grupos sociais com atividades marcantes
e intensa participação nas diferentes esferas da vida cotidiana. Além disso,
essa sociedade urbana criou vínculos de identificação muito fortes e desenvol-
veu formas de sociabilidade próprias, que iam além da convivência nos locais
de trabalho. A vida social transcorria também longe das oficinas, dos porto e
dos mercados. O tempo reservado ao trabalho era sensivelmente diferente para
as pessoas na Idade Média. Comparado aos dias de hoje, trabalhava-se menos
naquela época, e sobrava mais tempo para o descanso, o lazer e a distração.
Na realidade, várias atividades de lazer estavam integradas na vida cotidiana,
consumindo parte do tempo dos citadinos de então.2

Um problema comum na História da Cotidiano é “o que fazia o ho-


mem medieval quando não trabalhava?”. Lembremos da população cam-
ponesa, grande maioria, privada de trabalho nos domingos. Paisagens co-
nhecidas, amigos distantes, distrações culturais praticamente inexistentes.
Da cidade ao campo, uma resposta nunca estará incorreta: a taberna é o
local por excelência do lazer na Idade Média.
O homem, independentemente de classe, prestígio ou intelecto, ja-
mais conseguiu fugir de suas necessidades primordiais – o “comer” e “be-
ber” não foge à regra. Porém, tais ações, apesar da simplicidade, possuem
uma história de aprimoramentos e significados que permitem perceber não
apenas hábitos de uma civilização, mas também a sua mentalidade.
Deve-se levar em conta que o comer na Idade Média não é algo facil-
mente delimitado, uma vez que fatores temporais, religiosos, geográficos e
econômicos influenciavam diretamente este ato. Perspectivas e gostos mu-
dam em mil anos. Sabemos que os homens do norte não comiam o mesmo
que aqueles que ocupavam o litoral mediterrânico. Assim como os nobres

1
Felipe Parisoto é licenciado em História (UNISINOS, 2008) e Mestre em História da Idade
Média – Espaços, Poderes, Quotidianos (Universidade de Coimbra, 2011). E-mail:
felipe.parisoto@gmail.com
2
MACEDO, J. R. Viver nas cidades medievais. São Paulo: Ed. Moderna, 1999. p. 69.

209
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

tinham uma alimentação que diferia daquela do meio monástico ou vilão,


afinal, os pobres deviam se contentar com aquilo que possuíam e os ricos
podiam contar com a abundância. Todavia, a complexidade da alimenta-
ção não estava restrita apenas ao poder aquisitivo, mas sim baseava-se em
questões de ideologia, tradição e certas normativas. Contudo, tal complexi-
dade era posta de lado em um ambiente onde os homens superavam, pelo
menos em parte, as suas distinções. Um local popular, mas jamais desde-
nhado pelos nobres. Lugar onde a comida era simples e a bebida abundan-
te. Onde mulheres e pouso eram acessíveis por poucas moedas ou favores.
Espaço de várias denominações, mas optamos por sua forma mais conheci-
da: a taberna.

A alimentação como problema histórico


Antes de iniciarmos a nossa abordagem, acreditamos que seja impor-
tante introduzir o leitor ao campo da História da Alimentação. Não temos
como objetivo uma complexa análise de método, contudo julgamos rele-
vante uma reflexão sobre os objetos deste campo, assim como a compreen-
são do seu papel na produção histórica.
Ao pesquisarmos sobre a alimentação, enquanto problema, foi possí-
vel encontrar um estudo nos Anais do Museu Paulista denominado “A Histó-
ria da Alimentação: balizas historiográficas”3, onde seus autores, Meneses
e Carneiro, nos questionam:
[...] ao se falar de alimentação, do que se está falando, qual, precisamente, o objeto
desse interesse, desses registros, crônicas e estudos? […] Falar de alimentação é pri-
vilegiar o alimento (sua produção, aquisição, circulação, consumo, carência, o mer-
cado, representação, funções sociais e culturais e assim por diante)? Ou a nutrição?
Não existe, hoje, uma antropologia nutricional, assim como uma sociologia do ali-
mento? Ou o objeto seriam a dieta e os modelos e sistemas alimentares? Ou os hábitos
à mesa, as práticas alimentares e a culinária (a “cozinha”) , os espaços e equipamen-
tos, contextos e agentes, em particular os próprios comedores e bebedores? E a história
do gosto e da gastronomia, seriam subcategorias da alimentação? E a educação ali-
mentar, a segurança alimentar e as políticas alimentares? 4

Podemos observar, portanto, que existe um largo espectro de subte-


mas com difícil delimitação e que se confundem. Não cabe a este capítulo

3
CARNEIRO, H.; MENESES, U. T. B. de. A História da Alimentação: balizas historiográficas.
Anais do Museu Paulista, São Paulo, n. sér., v. 5, p. 9-91, jan./dez. 1997.
4
Ibid., p. 10-11

210
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

classificar os problemas, mas julgamos relevante apresentar uma síntese


dos cinco enfoques predominantes nas pesquisas desta área; são eles: bioló-
gico, econômico, social, cultural e filosófico.
Quanto ao enfoque biológico, temo-lo associado à nutrição. Sua ori-
gem se encontra na Antiguidade5, é resgatado no Renascimento e possui a
sua continuidade até os dias de hoje, principalmente dentro do que chama-
mos de “História da Medicina”. Suas teorias inicialmente abrangiam ape-
nas os processos digestivos, as prescrições dietéticas e problemas relaciona-
dos exclusivamente ao processo orgânico e metabólico. Contudo, novas pers-
pectivas surgiram nesta área, como é o caso de Watt, Freeman e Bynum6,
que tiveram como objetivo estabelecer a influência da nutrição na história
marítima naval, uma vez que estudavam a fome crônica dos marinheiros.
Outros exemplos são os casos de Scrimshaw7, em 1983, que publicou um
artigo sobre a importância do conhecimento nutricional para os historiado-
res, e de McGee8, em 1988, que buscou transmitir aos não especialistas
referências introdutórias nos campos da bioquímica, botânica, fisiologia e
zoologia.9
Todavia, com a evolução das pesquisas na área da nutrição, sabemos,
hoje, que os principais problemas não podem ser resolvidos apenas no cam-
po biológico. Carneiro e Meneses nos evidenciam diversos exemplos, como
a bulimia e anorexia nervosa, vistas como doenças típicas de uma socieda-
de de consumo; a matriz política do jejum; as implicações sociais, políticas
e culturais nas dietas; a rejeição do consumo da carne como símbolo natu-
ral; a não ingestão de alimentos por questões culturais; o gosto; e – um
campo pouco estudado – a demografia.
Quanto ao enfoque econômico, encontramo-lo de forma mais evi-
dente nas pesquisas históricas, podendo ser observado também nos campos
da geografia e antropologia. Com referência ao objeto, podemos notar uma
significativa mudança frente à abordagem anterior: preço, safra, mercado,

5
Principalmente com gregos e romanos – como Hipócrates, Galeno, Oríbase, Antímio,
Dioscórides, Apuleio, Celso, entre outros.
6
WATT, J.; FREEMAN, E. J; BYNUM, W. F. (eds.). Starving sailors: The influence of nutrition
on Naval and Maritime History. London, 1981.
7
SCRIMSHAW, N. S. The value of contemporary food and nutrition studies for historians. Journal
of Interdisciplinary History, v. 14, n. 2, p. 529-34, 1983.
8
McGEE, H. On food and cooking: The science and lore of the kitchen. New York: Collier Books,
1988.
9
CARNEIRO; MENESES, 1997, p. 11-12

211
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

processamento, consumo, comercialização, transporte, distribuição, entre


outros, serão os focos dessa linha de pesquisa.
O enfoque social, por sua vez, terá seu período de maior expressão
na segunda metade do século XX. Uma obra como The history and social
influence of the potato, de R. Salaman10, publicada em 1949, ou os dois estu-
dos sobre o açúcar de Sidney Mintz11, publicados em 1986 e 1996, são exem-
plos clássicos nessa abordagem, uma vez que buscam observar a sociedade
que se desenvolve dentro deste universo de produção e consumo. A dificul-
dade da aceitação da batata nos conduz ao imaginário de um tempo; ver o
açúcar como um produto de luxo e, em seguida, a sua produção em larga
escala nos permite observar a ascensão de uma sociedade de consumo; en-
tre outros.
No campo cultural, as pesquisas desviam a atenção para as formas
de preparo e consumo, evidenciando os sentidos e valores atribuídos ao
alimento – os símbolos associados à alimentação e a formação identitária
com base no consumo. Observar a cozinha não apenas na sua forma física,
mas como carregada de influências culturais e dos imaginários, é o objetivo
do enfoque cultural.
Por fim, temos a mais recente das áreas de estudo: a filosófica. Pes-
quisas deste gênero colocam em evidência temas como a fome enquanto
problema ético, segurança alimentar, respeito à vida animal e às condições
ambientais, a moralidade das biotecnologias, o prazer e a não necessidade
na alimentação, etc.
Como podemos observar, o objeto “alimento” muda a sua forma de
acordo com as diferentes perspectivas, seja no campo das ciências sociais
(história, antropologia, arqueologia, sociologia, geografia, etc.), ou da saú-
de (medicina, bioquímica, botânica, zoologia, agronomia, toxicologia, en-
tre outros).
No que diz respeito a este capítulo, evidenciaremos o enfoque cultu-
ral. Pratos, cotidiano e experiências relacionadas ao alimento são os focos
de nosso estudo.

10
SALAMAN, R. N. The history and social influence of the potato. Cambridge: Cambridge University
Press, 1949.
11
MINTZ, S. W. Sweetness and power: The place of sugar in modern history. New York: Viking
Press, 1986; ID. Tasting food, testing power: Excursions into eating, culture and the past. Boston:
Beacon, 1996.

212
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A taberna: espaços e agentes


Cavaleiros, mercadores, peregrinos, clérigos, soldados, estudantes,
nobres aventureiros. O homem do Medievo era, sem dúvida, um viajante.
Em permanente jornada, um local onde descansar e comer se fazia neces-
sário. Afinal, mesmo com o serviço gratuito oferecido pelos mosteiros e,
comumente, pela população, o número de viajantes aumentou de forma
significativa a partir do ano 1000, de forma a abrir um espaço maior para a
estadia paga.
Com suas características insígnias, as tabernas estavam espalhadas
em locais estratégicos, como portos, estradas de peregrinação e rotas co-
merciais, assim como próximo a abadias, castelos ou tribunais. Contudo,
apesar do suprimento na área de serviço público, a taberna não estava livre
do juízo negativo a ela atribuído, já que não estava restrita apenas ao forne-
cimento de abrigo, como é o caso dos albergues, mas se constituía como
espaço de consumo de álcool e comida, de jogos, prostituição, venda de
mercadorias e aberto a todos. Todavia, é importante ressaltar que todas
essas funções não eram comuns entre as tabernas, podendo cada uma limi-
tar a sua atividade. Na verdade, a confusão surge do próprio termo “taber-
na”, pois na Antiguidade indicava um grande número de locais. Com a
amplitude de seu significado era possível designar bares, pousadas e vendas
de produtos alimentares. Nos escritos clássicos romanos, encontram-se ter-
mos mais específicos, como caupona, popina e thermopolium, para lugares de
venda de vinho e comida, assim como hospitium, deversorium e stabula, para
pousadas. Ao analisar a raiz deste termo, encontra-se trabes, ou seja, vigas;
o que indica, portanto, um termo genérico para uma construção modesta,
tornando difícil delimitar a função de cada uma12.
No que diz respeito ao espaço social, unamos todas as figuras anteri-
ormente citadas com os homens da cidade ou campo, que, como visto na
afirmação de Macedo, tinham a possibilidade de integrar o lazer ao cotidi-
ano. A troca cultural era intensa, com sátiras, histórias, música, troca de
ideias e até mesmo o recital dos clássicos.
Em meio a todos os agentes citados, não pode ficar de lado a figura
central deste ambiente. O taberneiro era o senhor de seu espaço; quanto aos

12
VALENTINI, R. O. Mangiare nelle taverne medievali: tra cibo, vino e giochi. Completar a
referência , p. 9

213
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

jogos, caracterizava-se como “aquele que garantia a honestidade”, ou seja,


era o juiz de tudo aquilo que dizia respeito aos seus domínios. Isto se fazia
necessário; afinal, a bebedeira proporcionava jogos de alto risco, uma vez
que trapaças e brigas eram problemáticas para os dois lados – os que joga-
vam e o próprio taberneiro.
Porém, qualquer prestígio não passava das paredes que o cercavam.
Considerado pérfido e de raça inferior, a palavra taberneiro era quase sinô-
nimo de rufião ou cafetão, sendo usado até mesmo como insulto.
Obras inteiras foram escritas sobre as tabernas. O interesse dos se-
nhores, a mulher, proibições de jogos e outros tópicos são pontos que não
podemos abordar, seja pela dimensão deste texto ou pelo nosso interesse
específico.
Nos próximos subcapítulos apresentaremos, em síntese, três ações
fundamentais desenvolvidas nas tabernas medievais da Península Itálica:
jogar, beber e comer.

I – JOGAR

O jogo era uma parte fundamental do cotidiano medieval, e, assim


como as festas e a bebida, dividia o amor dos homens. Torneios, competi-
ções e apostas existiam das cidades ao campo. Muitos eram os jogos e suas
variações, mas iremos nos restringir aos principais.

Jogos de Azar
Possivelmente os mais comuns, assim como os mais questionados no
campo da moralidade cristã, os jogos de azar existem desde a Antiguidade,
mas na Baixa Idade Média se desenvolveram a ponto de se tornarem um
importante ponto de análise da história política e econômica. Tal aspecto
pode ser observado a partir do século XIV, quando havia um interesse por
parte das instituições em controlar essa prática. Os motivos são vários: os
pobres comumente tinham perdas consideráveis. Muitos eram os casos de
completa ruína e perda de bens. Insultos e brigas eram correntes por parte
dos perdedores. No âmbito religioso, os pecados relacionados aos jogos de
azar eram conhecidos: avareza, roubo, usura, mentira, blasfêmia, corrup-
ção do próximo, escândalo, desprezo aos deveres da Igreja e ócio. Um grande
crítico dos jogos de azar foi o franciscano Bernardino de Siena (1380-1444),
que os considerava “um furto contínuo ao próximo, uma apropriação inde-

214
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

vida de dinheiro, adquirido desfrutando o tempo de Deus e sem trabalhar”.


O jogo era, definitivamente, um inimigo da cristandade.13
O controle, contudo, não era possível de forma completa, uma vez
que a difusão dos jogos abrangia todas as categorias sociais – mesmo os
eclesiástico –, eram de difícil fiscalização e estavam presentes na maioria
dos ambientes. A solução acabou sendo a regulação da prática: lugares,
horários (ou dias), modo de se portar, etc., assim como o reconhecimento
daqueles que o praticavam de forma profissional. Temos aí, portanto, a
gênese dos futuros cassinos. Eram organizações regulamentadas e voltadas
ao jogo. Seus responsáveis eram membros de Societas, com devidos líderes.
O auxílio político, por sua vez, era recíproco. A cidade concedia direito aos
profissionais dos jogos, como a moderação de disputas, denúncia dos blas-
femos, impedimento dos jogos clandestinos, a mediação dos litígios entre
vencedores e perdedores e, em alguns casos, o porte de arma. Tudo devida-
mente tributado. Um contributo econômico significativo ao bolso público.
O jogo na Baixa Idade Média da Península Itálica era, portanto, lícito, ape-
sar de malvisto.14 Dentre os principais jogos, evidenciamos:

Dados
– Zara: Zahr, palavra árabe para dados ou jogo de dados, e origem da
palavra portuguesa “azar”, deu o nome a esse jogo muito difundido nas
tabernas medievais – provavelmente o mais conhecido na Península Itálica.
O método era muito simples: em uma mesa, os jogadores atiravam de dois
a três dados, onde, por turno, deveriam adivinhar o total tirado. As combi-
nações 3, 4, 17 e 18 eram consideradas Azar, sendo invalidadas. O perdedor
deveria pagar o total do acerto.
– Sozum: Uma variação da Zara, onde vencia quem tirava o maior
número.
– Riffa: Com três dados, um jogador deveria jogar até atingir o mes-
mo resultado em dois dados. Depois se atirava o terceiro dado e era feita a
soma de todos. Ganhava a maior pontuação.
– Astrágalo: Jogo onde os dados, de quatro lados, eram feitos do osso
que lhe confere o seu nome. De origem grega, os jogadores deveriam esco-

13
LEPORE, F. Il gioco nel Medioevo. 2009. p. 1. Disponível em: <http://www.stratosbari.it/wp-
content/uploads/2009/02/2009_Il_Gioco_nel_Medioevo_Lepore.pdf>.
14
Ibid., p. 2.

215
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

lher uma combinação de quatro números, entre 1, 3, 4 ou 6. Golpe de Afro-


dite era como chamavam a jogada em que os quatro números eram consegui-
dos em uma só vez.

Jogos de mesa
Muitos eram os jogos de mesa. Dentro desta categoria, hoje, encon-
tramos, por exemplo, a Tábua Real (ou backgammon) e o Xadrez. Contu-
do, uma grande variedade pode ser evidenciada, como o Doblet; o Jogo do
Imperador; Cab e Quinal; Fallas; Seys, dos e as; Laquet; Baldrac; Duodecim Scrip-
ta; Tric Trac; Hnefatafl; Tablut; Mereles; Halatafl; Cinco Pedras; Arithmomachia
ou Ludus Philosophorum; El mundo; o Xadrez e suas variações; entre outros.15
– Jogos de trapaça: Além dos mais usuais que apresentamos, muitos
ainda eram os jogos de trapaça, inventados por aqueles que tentavam ga-
nhar algum dinheiro. Vale ressaltar que homens faziam a vida com trapa-
ças, tendo até mesmo associações de delinquentes. Um exemplo é a Gher-
minella, que consistia em fazer desaparecer uma corda dentro de um bas-
tão. Observemos a seguir um jogo de trapaça ainda mais particular:

O jogo da mosca
Franco Sacchetti, poeta medieval, conta em sua obra Trecentonovelle16
sobre um jogo particular. Basso della Penna era um taberneiro de Ferrara.
Certo dia, um grupo de genoveses parou em sua taberna e trapaceou os
clientes com seus jogos. Então, para pagar na mesma moeda, disse della
Penna: “Eu quero fazer com vocês um jogo que não pode ter qualquer ma-
lícia […] Colocarei um bolognino17 para cada um nessa mesa; aquele no
qual uma mosca pousar no bolognino, fica com as moedas dos outros.”18
Os genoveses aceitaram de bom grado, mas não se deram conta de que o
taberneiro, quando queria ganhar, sujava a moeda com a metade de uma
pera que tinha embaixo da mesa. Um claro exemplo de que nem sempre
venciam os enganadores.

15
De forma a observar detalhadamente cada um dos jogos citados, sugerimos o artigo já citado
de LEPORE, 2009.
16
SACCHETTI, Franco. Trecentonovelle. Torino: E. Faccioli, 1970. novela XVIII, p. 51-52.
17
Moeda de algumas regiões da Península Itálica medieval. Foi utilizada entre os séculos XII e
XVII.
18
Tradução livre. “Io voglio fare con voi a un gioco che non ci potrà avere malizia alcuna [...] Io
porrò a ciscun di noi uno bolognino innanzi su questa tavola, e colui, a cui sul bolognino si
porrà prima la mosca, tiri a sé i bolognini che gli altri averanno innanzi.”

216
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

II – BEBER

Necessidade ainda maior que o comer é o beber. Jejuns podem durar


meses, já a privação de líquido leva uma pessoa à morte em poucos dias.
Sabemos que a água, “utile et humile et pretiosa et casta”, como dito por
São Francisco, é o elemento em maior abundância em nosso corpo, o que a
torna indispensável. Porém, quando substituímos a necessidade pelo pra-
zer, a bebida deixa de se caracterizar apenas como um ato orgânico para se
tornar um elemento prazeroso e socializante ao homem. Afirma Brillat-
Savarin, em Fisiologia do gosto:
O apetite, até que não se torne fome, é acompanhado de uma sensação agradável. A
sede, ao contrário, não conhece crepúsculo; apenas se faz sentir, eis o desconforto e a
ânsia, ânsia que se torna atroz quando não há esperança de poder matar a sede. Por
uma justa compensação, a ação de beber pode, dependendo das circunstâncias, pro-
porcionar um prazer extremamente vivo: e quando se abranda uma sede muito inten-
sa ou mesmo se responde a uma sede moderada com uma bebida deliciosa, todo o
aparato papilar, da ponta da língua à profundeza do estômago, é prazerosamente
agradado.19

Ilustração 1: Iluminura de “livres dou santé de


Aldobrandino de Siena”. British Library,
manuscrito Sloane 2435, f. 44v.

19
Tradução livre. “L’appetito, finché non diventa fame, è accompagnato da una sensazione
gradevole. La sete invece non conosce crepusculo; appena si fa sentire, ecco il disagio e l’ansia,
ansia che diventa atroce quando non sia há speranza di potersi dissetare. Per una giusta
compensazione, l’azione del bere può, a seconda delle circostanze, procurare un piacere
estremamente vivo: e quando si placa una sete molto intensa oppure si risponde ad una sete
moderata con una bevanda deliziosa, tutto laparato papillare, dalla punta della língua alle
profondità dello stomaco, è piacevolmente solledicato” (BRILLAT-SAVARIN, A. Physiologie
du goût. Paris: Flammarion, 1982; trad. italiana, de Roberta Ferrara: Fisiologia del gusto. Palermo:
Sallerio Editore, 1988. p. 86).

217
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

Mas quem é esse homem medieval que bebe nas tabernas? Qual a sua
categoria social? Certamente um elucidativo poema medieval que diz res-
peito ao beber é o clássico “In Taberna Quando Sumus”, do Carmina Bura-
na20. Nele podemos observar a grande parte da sociedade medieval repre-
sentada, se não toda – “bibunt omnes sine lege”.
Observemos as principais bebidas:

O vinho
Ao retornarmos para a Antiguidade clássica, temos o vinho como
principal componente do Symposium e dos banquetes aristocráticos. Mas é
apenas na Idade Média que tal bebida se torna parte da alimentação da
camada social mais baixa.
Como já explicitamos, limitamos a nossa observação à Península Itá-
lica, o que implica a supremacia do vinho como produto de consumo na
taberna; diferentemente do norte europeu, onde o consumo de uma cerveja
primitiva era muito forte, o que veremos na sequência.
Quando falamos de vinho na Idade Média, devemos levar em conta
a sua difusão e simbologia. As zonas mais setentrionais, por motivos climá-
ticos, não tinham condições de cultivar videiras. Já as regiões meridionais
da Península Itálica e Ibérica, sob influência muçulmana, não as cultiva-
vam por razões religiosas.
Se retornarmos às raízes do cristianismo, encontrar-nos-emos em um
ambiente mediterrânico e essencialmente rural, onde tanto a produção de
vinho como a de cereais panificáveis ocupam uma posição de extrema im-
portância para a sobrevivência dos habitantes. Cultura fortemente abalada
com a queda do Império Romano, mas resgatada devido ao seu elemento
sacro dentro da nova religião. Portanto, uma produção difusa e aceita jun-
tamente com a palavra cristã
É evidente que não nos referimos a um vinho muito elaborado, até
porque sua aceitação popular foi muito significativa. Não existindo rolhas,
era impossível engarrafar e conservar, ou seja, bebia-se usualmente o vinho
do ano. O tempo apenas piorava o sabor, e era comum adicionar especiari-
as ou mel e até esquentar esta bebida, para torná-la mais agradável. Mas

20
Tradução anexa a este capítulo.

218
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

entre os costumes mais comuns estava o de aguar o vinho, para enfraquecer


o gosto forte.
Seu consumo estava presente em todas as categorias sociais e ambien-
tes. Da liturgia católica – “Hic est enim calix sanguinis mei” – aos atos acadê-
micos. Nas nobres mesas senhoriais e em casas camponesas. Nos sacros mos-
teiros e profanas tabernas. O vinho aproxima uma sociedade tão marcada
pela diferença, a ponto de vermos bispos morrerem em tabernas. Não deixa-
remos este último ponto passar despercebido. Eis a história de João DeFuk:

A Lenda do Est! Est!! Est!!!


Quem busca percorrer as estradas de peregrinação e rotas de vinhos
não pode deixar de passar pela região da Tuscia italiana, mais precisamen-
te na Igreja de São Flaviano, em Montefiascone.
O próprio nome do vilarejo já evoca um recipiente para vinho (Fias-
co = Frasco), sendo a geografia do local o desenho de uma garrafa. A Igreja
citada, por sua vez, é muito famosa devido a uma lápide tumular com a
inscrição “Est! Est!! Est!!! Pr[opter] nim[ium] est hic jo[annes] de Fuk
do[minus] meus mortuus est” (Est! Est!! Est!!! O meu senhor João Defuk
está morto por ter exagerado).
A história é conhecida. No ano de 1111, Henrique V partiu para
Roma, acompanhado de sua corte, com o objetivo de receber a coroa do
Sacro Império Romano pelas mãos do Papa Pascoal II. Em seu séquito
estava o bispo de Augusta, João Defuk (ou Deuc, De Fugger, Defugger),
um amante dos bons vinhos. Por este motivo, o prelado ordenou que o seu
servo Martin percorresse antes a rota, de forma a selecionar as melhores
tabernas. A indicação dos locais selecionados por Martin era a escrita da
palavra “Est” ao lado da porta (Est no sentido de Há, como “aqui há bom
vinho”). Com a chegada em Montefiascone, o servo achou o vinho tão
agradável que escreveu três vezes a palavra citada, acompanhada ainda de
pontos de exclamação. Est! Est!! Est!!!, escreveu.
O prelado, assim que chegou ao vilarejo, não apenas apreciou o vi-
nho, mas estendeu a sua estadia por três dias. Ao voltar de Roma, João
Defuk não pôde deixar de parar na taberna de Montefiscone, dessa vez
exagerando a ponto de cair doente.
João Defuk jamais voltou para casa. Morreu em Montefiscone, onde
foi sepultado na igreja já citada. Diz a lenda que, antes de morrer, o bispo
deixou claro no seu testamento que o dinheiro que possuía, 24.000 escu-

219
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

dos, deveria ser destinado ao vilarejo, com a cláusula de que todos os anos
fosse derramado na sua tumba um barril daquele bom vinho. É narrado
que o costume se manteve até o século XVII, quando foi anulado.
O episódio deu ao vinho de Montefiascone o nome de Est! Est!! Est!!!,
assim como notoriedade na literatura, sendo citado por Cervantes, Marquês
de Sade, Kant, Dickens, entre outros.21
A taberna era, sem dúvida, um lugar para todos.
O vinho, por sua vez, não possui apenas o caráter prazeroso. “Ele
serve para nutrir os corpos, tornar saudável, prevenir as enfermidades, aju-
dar na digestão, reforçar o calor natural, clarificar as ideias, abrir as artérias,
descansar o cérebro, remover do coração a tristeza e favorecer a procriação.”22
Além de ser inspirador, como testemunha um poeta anônimo do século
XII: “É ébrio de néctar que o coração se eleva; com os copos se acendem as
lanternas da alma […]. Eu, para fazer versos, preciso de bom vinho. E quanto
mais o vinho sai puro dos tonéis, mais límpidas palavras então vou produ-
zindo. Tais os vinhos que bebo, tais os versos que escrevo.”23
Nas tabernas, nobres e alto clero bebiam o vinho puro, ou quase. Os
mais abastados bebiam o vinho parcialmente puro ou o vino di torchio24, este
último obtido da prensa do bagaço deixado a fermentar. Para os demais,
existia uma série de tipos de vinho. Apresentamos cinco destas variações,
presentes em um estudo da Universidade de Bolonha25:
• l’aquaticcio: preparado com bagaços frescos espremidos e água em
proporções variáveis.
• l’aquaticcio poveiro: preparado colocando água em bagaços fermen-
tados.
• il mezzo vino ricco: preparado com metade água e metade uvas esma-
gadas.

21
VALENTINI, op. cit. [??], p. 20-21
22
DELORT, R. Le Moyen Age: Histoire illustrée de la vie quotidienne. Paris: Seuil, 1972. p. 38.
23
“Poculis accenditur animi lucerna, cor inbutum nectare volat ad superna [...] ego versus faciens
bibo vinum bonum et quod habent purius dolia cauponum; tale vinum generat copiam
sermonum. Tales versus facio, quale vinum bibo” (Lateinische Lyrik des Mittelalters, p. 367-368.
Trad. de D. M. Ferreira, Jornal das Letras, n. 1, p. 3-16, mar. 1981).
24
Optamos por deixar a nomenclatura em italiano devido à dificuldade de tradução (algo como
vinho de pressão/prensado).
25
PASQUALI, G. Il mosto, la vinaccia, il torchio, dall’alto as basso medioevo: ricerca della
qualità o del massimo rendimento?. In: Dalla vite al vino. Bologna, 1994, p. 44.

220
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

• il mezzo vino poveiro: preparado com metade água e metade bagaços


escorridos.
• il vino acconciato: preparado com vinho quente e bagaços escorridos.
Os taverneiros ainda possuíam uma série de técnicas, onde adicionar
clara de ovos ao vinho branco, para torná-lo mais luminoso e transparente,
bagas coloridas para deixar o vinho tinto mais encorpado e intenso, ou sal,
para clarear, são apenas alguns exemplos. Esquentar e adicionar especiarias
eram também um modo de utilizar o vinho que estava por adquirir um
gosto desagradável.

A cerveja
Como vimos, o vinho era a bebida por excelência do homem medie-
val. Contudo, a falta deste poderia ocorrer em determinadas ocasiões. Sua
ausência era suprida com duas bebidas secundárias: a cerveja e a sidra.
No que diz respeito à primeira, devemos observar que existia uma
distinção entre dois tipos de cerveja, que a língua portuguesa não absorveu
como outras línguas latinas. Na língua italiana, por exemplo, temos Cirvo-
gia e Birra, sendo que a diferença essencial entre uma e outra é que a segun-
da utiliza na sua receita o lúpulo; um detalhe que muitas vezes passa des-
percebido. Lato Sensu, trataremos a tradicional bebida proveniente da fer-
mentação de cereais como cerveja.
Quanto à sua difusão, temos uma bebida deveras aceita, até porque
muito antiga. Presente na epopeia de Gilgamesh, produzida por babilônios –
responsáveis pelas primeiras receita –, egípcios e gregos, teve sua produção
na região da França e Península Itálica pelas mãos dos romanos da Gália,
ainda na Antiguidade clássica.
Na França medieval temos casos bem concretos de utilização da cer-
veja como substituta do vinho; por exemplo: quando Bento de Aniane, mon-
ge visigodo, decide reformar os mosteiros, ao início do reinado de Luís I, o
Piedoso, é estabelecido que cada superior de ordem receberia cotidiana-
mente, nas regiões vinícolas, 3 libras de vinho, se possível, ou 2 libras de
vinho e 2 de cerveja, e, na falta de vinho, 3 libras de cerveja e, eventualmen-
te, 1 de vinho26.

26
VERDON, Jean. op. cit. [? NÃO FOI CITADA ANTERIORMENTE], p. 67

221
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

O consumo da cerveja está intimamente ligado à capacidade de pro-


dução e consumo do vinho, uma vez que as regiões mais setentrionais pos-
suem um clima menos propício para o cultivo de videiras. Portanto, um
problema não muito significativo na Península Itálica, mas comum ao nor-
te de França e, principalmente, em reinos como a Inglaterra.
Outro fator decisivo para o consumo da cerveja era o econômico, já
que esta era muito mais aprazível ao bolso dos pobres. Porém, não tão agra-
dável, talvez, ao paladar. Léo Moulin a define como “uma espécie de por-
ridge27 diluído” que une bebida com comida. Guilherme de Saint-Pathus,
na Vie de Saint Louis, afirma que “ainda que o rei não gostasse de cerveja, se
via no rosto, a bebia muito na Quaresma para conter o apetite” 28. Tratava-
se, portanto, de uma bebida um pouco pastosa, principalmente por ser pro-
duzida de forma bastante rústica29. E mesmo com o aprimoramento das
técnicas, resultantes da profissionalização dos produtores de cerveja nas
corporações de ofício, o caráter de “semialimento” antes citado não mu-
dou. No Livre de Métiers, de Étienne Boileau (séc. XIII), podemos observar
os ingredientes utilizados por mestres de Paris: “Nós, fabricantes de cerve-
ja, não podemos e nem devemos produzir cerveja senão com água e cere-
ais, ou cevada, cereais misturados e forragens.”30
Se observássemos a região setentrional, veríamos uma difusão muito
significativa da cerveja, inclusive aprimoramentos e variações. Principal-
mente devido ao lúpulo, que, apesar de utilizado já no século IX, só teve
uma difusão relevante a partir do século XV. Contudo, uma vez que temos
uma restrição geográfica, podemos afirmar que nas tabernas da Península
Itálica a cerveja não era um produto do cotidiano, apesar de conhecida.

27
Prato típico inglês, consumido normalmente pela manhã. Trata-se de uma espécie de sopa
muito densa à base de farinha de aveia fervida na água ou leite e acrescida de açúcar, nata ou
geleia.
28
Tradução livre. “E sebbene al mansueto re non piacesse la cervogia, lo si vedeva in faccia,
tuttavia ne beveva abbastanza spesso in quaresima per frenare il sua appetito” (ap. VERDON,
op. cit., p. 70).
29
Durante a Alta Idade Média, a cerveja esteve restrita, quase que exclusivamente, à produção
em âmbito familiar, comumente feita pelas mulheres e com a utilização dos fornos banais. A
produção em larga escala surgiu apenas entre os séculos X e XIII, devido à alta demanda por
parte das abadias e domínios reais. Eis que surgiram as corporações e cervejarias monásticas.
De qualquer forma, no âmbito campesino, a produção permaneceu no campo privado.
30
Tradução livre. “Noi fabbricanti di cervogia no possiamo né dobbiamo produrre cervogia se
non con acqua e cereali, ovvero orzo, cereali mescolati e foraggi misti” (ap. VERDON, op.
cit., p. 69.

222
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A sidra
A sidra é uma bebida muito consumida no norte europeu. Sua pro-
dução é feita com o acréscimo de água e açúcar ao suco de frutas até a
fermentação. Durante a Idade Média, era comum a sidra de maçã ou pera,
tendo como antecessora a matiana romana, que era um hidromel com suco
de maça.
No que diz respeito à produção, eram os bascos que faziam a maior
parte da sidra, dado a grande quantidade de maças na região noroeste da
Península Ibérica, assim como sul de França. No século VI (aproximada-
mente), pescadores desta região teriam passado a receita para os habitantes
da futura Normandia, outra região produtora de maçãs.
Seu consumo em maior escala aparece de forma mais substancial na
Normandia do século XII, quando foi inclusive tributada na região norte e
centro de França. Atingiu certa representatividade no século XV, quando
substituiu o vinho ou a cerveja em algumas regiões do norte de França
(principalmente Maine e Normandia). Contudo, sua ingestão tornou-se
cotidiana apenas na modernidade.31
Certamente o consumo em tabernas francesas era uma realidade des-
te período. É importante observar que um ponto para o consumo da sidra é
o fato da cerveja ser feita com muitos cereais, ou seja, em tempos de carên-
cia tornava-se inviável, tanto pela questão financeira como moral. Lembra-
mos que temos novamente uma limitação geográfica. A sidra não era servi-
da de forma representativa nas tabernas da Península Itálica.

III – COMER
Neste subcapítulo, vamos observar alimentos difundidos nas tabernas.
Por questões ligadas à dimensão do estudo, abordaremos apenas os elemen-
tos que constituem os pratos, deixando de lado os métodos de preparo.
No que diz respeito à documentação, por volta de 1430, o cozinheiro
do Papa Martinho V, Jean de Bockenheim, escreveu um texto em latim
denominado Registrum coquine32, com 74 receitas, onde procurou evidenciar
a quem os pratos eram destinados, segundo nacionalidade e categoria social.

31
Ibid., p. 82-83.
32
BONARDI, G. (a cura di). Johannes Bockenheim: la cucina di Papa Martino V. Milano:
Mandadori, 1995.

223
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

Temos, portanto, receitas com ingredientes de fácil aquisição para a cama-


da mais pobre, possivelmente consumidos nas tabernas.

Ilustração 2: Um padeiro medieval e seu aprendiz. The Bodleian Library, Oxford.


BLACK, Maggie. The Medieval Cookbook. Londres: Thames & Hudson, 1992.

Outras fontes não menos importantes são: Liber de coquina33, de um


anônimo da corte angevina (séc. XIII); o clássico Libro di arte coquinaria34,
de Martino da Como; o Libro della cocina35, de um anônimo toscano (séc.
XIV ou XV); Libro per cuoco36, de um anônimo veneziano (séc. XIII); Due
libri di cucina37, de um anônimo meridional (séc. XIII); entre outras presen-
tes em obras de caráter bibliográfico de autores já consagrados, como Hilá-
rio Franco Jr., Montanari e, em especial, Rosella Omicciolo Valentini, uma
vez que sua obra Mangiare nelle Taverne Medievali serviu de incentivo e de
base às informações que seguem:

33
Tradução de anônimo do século XIII da corte angevina. Liber de coquina. In: MULON, M.
Deux traités inédits d’art culinaire medieval. In: Bulletin philologique et historique (jusqu’à 1610)
du Comité des Travaux historiques et scientifiques: v. I: Les problèmes de l’alimentation. Paris,
1971.
34
BALLERINI, L., PARZEN, J. (a cura di). Maestro Martino: Libro de Arte Coquinaria. Milano:
Guido Tommasi, 2011.
35
Anônimo toscano. Libro della cocina. In: FACCIOLI, E. Arte della cucina: libri e ricette, testi
sopra lo scalco, il trinciante e i vini dal XIV al XIX secolo. Milano, 1966. Disponível em:
<http://www.uni-giessen.de/gloning/tx/an-tosc.htm>.
36
Anônimo veneziano. Libro per Cuoco. In: FRATI, Ludovico (ed.). Libro di cucina del secolo XIV.
Livorno, 1899. Disponível em: <http://www.uni-giessen.de/gloning/tx/frati.htm>.
37
BOSTRÖM, I. (org.). Anonimo meridionale: due libri di cucina. Stockholm: Almqvist & Wiksell
International, 1985.

224
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Para estimular a sede


– Salsichas diversas: sobretudo artesanais. Pratos compostos de salsi-
chas secas, salames rústicos, presunto e speck, possivelmente de javali. No
que diz respeito à preparação, eram pouco triturados. E deve-se excluir a
mortadela, que, embora medieval, foi criada apenas em 1376.
– Queijos: sazonais, uma vez que a conservação não é adequada em
uma taberna.
– Frutas secas: É importante observar que, durante a Idade Média, a
fruta tinha uma finalidade diferente da alimentação. Nos banquetes mais
ricos, podia-se comer uma fruta fresca de entrada, pois, crescidas em árvo-
res que se elevavam ao céu, tinham caráter nobre. Serviam para dar sabor à
carne e torná-la mais macia.
No caso das tabernas, a fruta fresca era rara e de alto preço. A fruta
seca, por sua vez, era muito mais difundida, devido à facilidade de conser-
vação e por bem acompanhar o vinho.
Era comum a mistura de avelãs, castanhas (cruas e assadas), amên-
doas e figos secos.

Sopas
– Sopa para os rústicos
Ingredientes: ervilhas frescas ou secas, cebola, manjerona, pão, azei-
te, pimenta e sal.
– Sopa de espelta (trigo vermelho)
Ingredientes: espelta descascada, feijão dall’occhio, lardo, azeite, aipo,
cenoura, cebola, alho, sálvia e sal.
– Favas: A fava está certamente entre os legumes de maior difusão e
consumo na Península Itálica medieval. Consumida por todas as categorias,
seu consumo era comum durante todo o ano, seja fresca (durante a prima-
vera) ou seca.
– Grão-de-bico e castanhas: A mistura de legumes e castanhas era muito
comum durante o período medieval. É importante observar que as castanhas
ocupavam uma posição muito importante no suprimento de proteínas.
Ingredientes: grão-de-bico, castanhas, salsa, aipo, cenoura, alho “fran-
cês”, bacon, pimenta, sal e alecrim.
– Sopa para clérigos e peregrinos: Ainda nos registros de Bockenheim,
entramos uma receita específica para clérigos e peregrinos, ou seja, aqueles
que precisavam de fontes de energia significativas e baratas, para suprir as

225
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

necessidades de viagens, sejam elas de estudo ou por motivos religiosos.


Ingredientes: favas secas (ou descascadas), cebola, vinho branco, azeite
ou manteiga, ervas aromáticas e sal. Caldo: carne de galinha ou boi, aipo,
salsa, cebola ou alho “francês” e verduras.
– Sopa da Infantaria: Um dos alimentos mais comuns na horta medie-
val era o nabo, o que permite encontrá-lo em uma grande variedade de
pratos. Normalmente era preparado no forno ou nas cinzas para ser usado
ao redor dos assados. Era também muito utilizado nas sopas como ingredi-
ente fundamental.
Ingredientes: nabos brancos, caldo de carne (galinha, aipo, salsa, ce-
bola ou alho francês), lardo ou bacon, queijo ralado, pão e sal.

Carnes

Ilustração 3: Abate doméstico. British Library.


BLACK, Maggie. The Medieval Cookbook.
Londres: Thames & Hudson, 1992.

Ao contrário do que é comum pensar, a carne era bem difundida no


Medievo. Apesar da dificuldade na conservação, os açougueiros trabalha-
vam diariamente no abate e corte. Portanto, era possível o fácil acesso a
carne fresca. É evidente que alguns tipos eram mais caros que outros, como,
por exemplo, o vitelo, reservado ao consumo da nobreza. Havia ainda animais
reservados a outros fins: o boi trabalhava o campo e a vaca produzia leite; ou,
seja, utilizá-los como fonte alimentar era um luxo de custo excessivo.
– Carne e lardo
Ingredientes: bifes de porco, lardo, erva-doce e sal.

226
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

– “Carbonata”: A carne “carbonata” encontra-se entre os alimentos


que favorecem o beber. O nome é originário de uma técnica de cozimento
feito sobre o carvão das lareiras. Mesmo na França este termo é conhecido,
onde carbonnés dizia respeito a pedaços de porco na grelha.
Ingredientes: bacon, vinagre e salsa.
– Gansos ao alho: Uma ave de grande difusão, o ganso era um prato
apreciado por todos, assim como acessível aos menos ricos. É importante
notar que pratos como este poderiam ser feitos com outras aves, como cis-
nes, gruas, garças, patos e cegonhas.
Ingredientes: ganso, lardo, alho, migalhas de pão, sal e ervas aromáticas.
– Carne de porco e lentilhas: lentilha.
Ingredientes: lentilhas, carne de porco fresca ou salgada (podia ser
substituída por salsicha ou bacon) e sal. Ervas aromáticas e queijo a gosto.
– Miúdos: Um clássico prato das camadas mais pobres (fígado, pul-
mão, coração, rins, etc.)
Ingredientes: miúdos, gema de ovo, lardo, ervas aromáticas (alecrim
e sálvia), queijo, sal e pimenta.

Peixe e ovos
– Escabeche do taverneiro: peixe frito em azeite ou cozido no vinho e
cebolas fritas. Um prato muito fácil de ser feito e apreciado por todas as
categorias sociais.
Ingredientes: peixe (é indiferente o tamanho, podendo ser pequeno,
como anchova e sardinha, ou grande, como tainha, merluza ou espada),
cebola, vinho, vinagre, pimenta e sal.
– Palamita assada.
Ingredientes: palamita, lardo, suco de limão e sal.
– Enguias no espeto: Enguias eram comidas assadas, fritas, cozidas, em
pastéis, no espeto, etc. Era um peixe muito apreciado, de fácil aquisição e
bem difundido.
Ingredientes: enguia, folhas de sálvia ou louro, azeite, vinagre, pi-
menta e sal.
– Ovos mexidos: O ovo ocupava uma posição de grande importância
, no mundo medieval em função da sua qualidade proteica e baixo preço.
Era preparado de diversos modos e consumido regularmente.
Ingredientes: ovo, queijo (caciotta, parmesão, pecorino, caciocavallo),
banha ou azeite e sal. Ervas aromáticas a gosto.

227
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

– Omelete hebraico: Essa receita foi descrita em um tribunal da Inquisi-


ção, onde uma aragonesa convertida explicou sua maneira de fazer os ovos.
Uma receita simples e possível de ser utilizada em tabernas.
Ingredientes: quatro ovos, cebola, 50 g de carne moída, sal e azeite.

Pastéis e tortas
Pastéis e tortas dizem respeito a um alimento coberto por uma cama-
da simples de massa. São pratos típicos do Medievo itálico e foram difundi-
dos em virtude da fácil preparação e utilidade em conservar o alimento.
– Pastéis de coelho
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: coelho
(selvagem, preferencialmente), fatias de lardo, alecrim, pimenta e sal.
– Torta de cebola
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: cebola
(de preferência a branca), fatias de lardo, ovos, parmesão ralado e sal.
– Torta de queijo: A torta de queijo pode variar muito de acordo com a
riqueza. Tanto os queijos como as especiarias possuem valores diversos,
dependendo da qualidade e raridade.
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: queijo
pecorino doce, caciocavallo ou parmesão e queijo fresco (fontina ou taleg-
gio), ovo e pimenta.
– Ervada: Uma torta muito comum e elaborada de modos diversos.
Ingredientes: Massa: farinha, água, banha ou azeite. Recheio: espina-
fre ou acelga (ou outros), flores de abóbora, ervas aromáticas (salsa, manje-
rona, mas também erva-doce, cerefólio, hortelã ou sálvia), queijo (pecorino,
ou parmesão, caciotta, caciocavallo), ovo, pimenta e sal. Lardo a gosto.

Verduras
As verduras na Idade Média eram muito comuns, mesmo dentro das
cidades (horti conclusi). É evidente que as condições metereológicas influen-
ciavam muito a produção, sendo que havia também as limitações impostas
pela falta de técnicas frente às imposições de estação. Nas tabernas, era
comum o uso de verduras para acompanhar pratos mais encorpados.
– Pequenas folhas: Ervas e verduras não costumavam faltar nas mesas
medievais, contudo, enquanto os mais ricos podiam contar com ervas aro-
máticas e especiarias, os mais pobres limitavam-se apenas às ervas como
condimento.

228
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Ingredientes: verduras de folhas (preferivelmente chicória, espinafre


ou biedina), ervas aromáticas (endro, erva-doce e manjerona), azeite, sal e
pimenta.
– Salada de cebola: A cebola era uma verdura muito comum no perío-
do. Muito prestigiada, era facilmente adquirida. Os mais ricos poderiam
consumir a chalota, proveniente da Ásia, com especiarias. Nas tabernas,
porém, os ingredientes eram mais simples.
Ingredientes: cebola (de preferência a branca), vinagre, azeite, sal e
pimenta.
– Favas novas
Ingredientes: favas frescas, cebola, azeite, ervas aromáticas (salsa, sál-
via e alecrim), pimenta e sal.

Doces
O doce que conhecemos não era típico da gastronomia medieval eu-
ropeia. Diferentemente dos árabes, que possuíam o açúcar de cana, a Euro-
pa restringia-se a biscoitos, pães com especiarias e panquecas.
– Panquecas com folhas de sálvia e louro
Ingredientes: folhas de sálvia e louro (escolhendo as frescas e macias),
ovo, farinha, azeite ou banha e sal.
– Panquecas com flores de sabugueiro: É comum encontrar nas receitas
medievais o uso de flores.
Ingredientes: flores de sabugueiro (podendo ser substituídas por flor
de malva ou de abóbora), leite, ovo, farinha, azeite ou banha.
– Pão frito com ovo: uma forma de utilização do pão endurecido.
Ingredientes: pão branco endurecido, gema de ovo, azeite ou banha
de porco, mel.
– Creme para rufiões e prostitutas: Receita de nº 49 do livro de Bocke-
nheim, o “omelette” para ruffianis et leccatricibus consiste de ovos, unidos
por suco de laranja e adocicados com açúcar. A associação com a categoria
é desconhecida, sendo a 50º receita também destinada a meretricibus, que
diz respeito a um leite de amêndoas cozido em um espeto. É possível que o
doce esteja ligado aos prazeres da carne.
Ingredientes: para cada ovo, meia laranja e meio limão, uma colher
de açúcar, azeite ou manteiga e sal.
Muitas ainda são as receitas, mas acreditamos que os principais ele-
mentos da gastronomia das tabernas medievais na Península Itálica este-
jam aqui contemplados.

229
PARISOTO, Felipe • Comer, beber e jogar nas tabernas medievais

In Taberna Quando Sumus38 Quando Estamos na Taberna39


In taberna quando sumus Quando estamos na taberna,
non curamus quit sit humus, não curamos do que seja a terra,
sed ad ludum properamus, mas corremos para o jogo
cui semper insudamus. a que sempre nos aplicamos.
Quid agatur in taberna, Que é que se faz na taberna,
ubi nummus est pincerna, [onde o dinheiro é o anfitrião]
hoc est opus ut queratur, eis o problema a pôr,
si quid loquar, audiatur. mas oiça-se o que direi.

Quidam ludunt, quidam bibunt, Uns jogam, outros bebem,


quidam indiscrete vivunt. outros vivem sem discrição:
Sed in ludo qui morantur, Mas os que no jogo se demoram,
ex his quidam denudantur deles, uns são despidos,
quidam ibi vestiuntur, outros ai se vestem,
quidam saccis induuntur. outros de sacos revestidos.
Ibi nullus timet mortem Lá ninguém teme a morte,
sed pro Baccho mittunt sortem. mas deixam por Baco a sorte.

Primo pro nummata vini, Primeiro pergunta-se pelo preço do vinho,


ex hac bibunt libertini; então bebem os libertinos:
semel bibunt pro captivis, bebem uma vez pelo cativos,
post hec bibunt pro captivis, depois desta bebem três vezes pelos vivos,
quater pro Christianis cunctis, quatro vezes todos os cristãos,
quinquies pro fidelibus defunctis, cinco vezes pelos fiéis defuntos,
sexies pro sororibus vanis, seis vezes pela irmãs tolas,
septies pro militibus silvanis. sete vezes pelo soldados campónios,

Octies pro fratribus perversis, Oito vezes pelos irmãos perversos,


nonies pro monachis dispersis, nove vezes pelos monges dispersos,
decies pro navigantibus, dez vezes pelos navegantes,
undecies pro discordantibus, onze vezes pelos discordantes,

38
Carmina Burana, canto 196.
39
Muitas são as traduções. Utilizamos a versão do Dr. José Geraldes Freire, professor catedrático
do curso de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra. In: VELOSO, M. T. N. A
importância do vinho na vida acadêmica medieval. Revista Portuguesa de História, t. XXX, p.
110-111, 1995. As palavras em itálico, entre chaves, são observações nossas, com base em
outras traduções.

230
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

duodecies pro penitentibus, doze vezes pelos penitentes,


tredecies pro iter agentibus. treze vezes pelos peregrinos.
Tam pro papa quam pro rege Tanto pelo papa como pelo rei
bibunt omnes sine lege. todos bebem sem lei.

Bibit hera, bibit herus Bebe a patroa, bebe o patrão,


bibit miles, bibit clerus, bebe o soldado, bebe o clero,
bibit ille, bibit illa, bebe aquele, bebe aquela,
bibit servus, cum ancilla, bebe o criado, bebe a criada,
bibit velox, bibit piger, bebe o veloz, bebe o lento,
bibit albus, bibit niger, bebe o branco, bebe o negro,
bibit constants, bibit vagus, bebe o constante, bebe o vadio,
bibit rudis, bibit magus. bebe o rude, bebe o mago.

Bibit pauper et egrotus, Bebe o pobre e o doente,


bibit exul et ignotus, bebe o estranho e o desconhecido
bibit puer, bibit canus, bebe a criança, bebe o velho,
bibit presul et decanus, bebe o bispo, bebe o deão,
bibit soror, bibit frater, bebe a irmã, bebe o irmão,
bibit anus, bibit mater, [bebe a anciã, bebe a mãe,]
bibit ista, bibit ille bebe esta, bebe aquele
bibunt centum, bibunt mille. bebem cem, bebem mil.

Parum sexcente nummate Umas cento e seis moedas [seiscentas]


Durant, cum immoderate Gastam, quando imoderadamente
bibunt omnes sine meta. bebem todos sem medida.
Quamvis bibant mente leta, Embora bebam de cara alegre,
sic nos rodunt omnes gentes, assim todas as pessoas nos criticam
et sic erimus egentes. e assim ficaremos indigentes.
Qui nos rodunt confundantur Os que nos criticam condenados sejam
et cum iustis non scribantur. e entre os justos inscritos não sejam.

231
Fórum de Pós-Graduação:
II Encontro Estadual de Estudos Medievais
Porto Alegre, setembro de 2012
234
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Os cistercienses de Alcobaça:
pecados e pecados capitais

Darlan Pinheiro de Lima

A volta às origens: Cister


Nos cânones XII e XXVII do Concílio de Elvira (304/306), têm-se as
primeiras notícias alusivas às práticas monásticas na Península Ibérica, em-
bora de forma espontânea e muito pouco organizada. Mas é na época sue-
vo-visigótica (séculos VI e VII) que notamos uma proliferação de mostei-
ros, que aos poucos ganharam regras produzidas para serem seguidas como
normas, como a Regula Benedicti e a Carta Caritatis1.
Notamos até o século XII a coexistência de uma diversidade de re-
gras, o que denota a não observância exclusiva de apenas uma. E esta não
observância no espaço interno de uma comunidade, somada às sobreposi-
ções de uma regra ou outra, confere à figura do abade uma certa importân-
cia, que não veremos de uma forma tão intensa nos próximos séculos2.
As exortações provenientes do Concílio de Coyança (1055) motiva-
ram diversas transformações na vida monástica peninsular, contribuindo
para sua uniformização e dinamização. Com a revisão da vida monacal e o
apelo à adoção de uma única regra, abriram-se os caminhos para o surgi-
mento de práticas imbuídas no objetivo de voltar à pureza da tradição visi-
gótica. Isto facilitou o conhecimento e a absorção de modelos provindos da
Europa além-Pirineus3.
Apesar das divergências, acredita-se que a observância da Regra de
São Bento em solo peninsular remonta às últimas décadas do século XI e
particularmente ao século XII. Este “atraso” proporcionou a contempora-

1
A Regula Benedicti foi produzida no século VI na abadia de Monte Cassino, na Itália e a Carta
Caritatis foi redigida em um mosteiro francês no século XII.
2
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). História religiosa de Portugal: I – Formação de Limites da Cris-
tandade. Coord. de Ana Maria Jorge e Ana Maria Rodrigues. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000.
3
GUSMÃO, Antonio Nobre de. A Real Abadia de Alcobaça. 2. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.

235
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

neidade de Cluny e Cister nas difusões de ambas no século XII. A primeira


metade deste século representa o auge da dispersão da regra beneditina e
das práticas cluniacenses. E a segunda metade é marcada pela adoção da
mensagem cisterciense.
Na vida monacal, alcançava-se a subsistência com o próprio traba-
lho, mas já muito cedo os mosteiros obtinham mais do que o suficiente
para a sua manutenção. Além disto, as constantes doações na incansável
busca pela salvação abriram aos monges uma nova situação que contrasta-
va com seus votos de limitações e renúncias, preceitos essenciais da obser-
vância monástica primitiva. Gradativamente observou-se a escolha de um
caminho diferente dos ideais de São Bento de Núrsia. Aos poucos, o luxo e
o ócio substituiriam a proposta e o espírito austero e humilde fundado pela
Ordem Beneditina.
No século XI, do mosteiro francês de Molesmes, saíram 21 monges e
seu abade, para fundar uma nova sede monástica na Borgonha. A região
escolhida era inóspita, formada por pântanos e distante das influências
mundanas. O novo mosteiro foi chamado de Cîteau, originário do nome da
região, Cistercium.
No início foram tempos difíceis, pois não havia um grande projeto,
mas sim negar uma vida regada a luxo e ócio, voltar ao trabalho e à hu-
mildade, isolando a alma distante das ações do mundo, deixando-a unica-
mente aos ofícios designados nos preceitos monásticos primitivos. Talvez
caiba salientar que o intuito não era a fundação de uma nova ordem, não
havendo nem ao menos um plano de ação concreto. A vontade inicial se
baseava em, voluntariamente, voltar-se ao trabalho e à oração. Fugir do
mundo, em lugares onde não houvesse senão o silêncio e o básico para a
subsistência4.
Com a chegada de São Bernardo, que por muitos é considerado o
verdadeiro fundador de Cister, os alicerces foram estabelecidos, a primei-
ra batalha (a da sobrevivência) foi ganha, e a difusão dos ideais cistercien-
ses estava apenas começando. A organização cisterciense se baseava so-
bre suas quatro casas principais: La Ferté (1113), Pontigny (1114), Clara-
val e Morimond (1115). Quando o abade Bernardo morreu em 1153, a

4
Cister: os documentos primitivos. Tradução, introduções e comentários de Aires A. Nascimento.
Lisboa: Edições Colibri, 1999.

236
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Ordem tinha 343 mosteiros, sendo que 167 da filiação de Claraval; o últi-
mo era Alcobaça.
Aos poucos, a proposta dos monges de Molesmes se concretizava;
erguida e consolidada a sua existência, abria-se o confronto com os benedi-
tinos. Com a família formada, a ordem via-se obrigada a dar-lhe o que
respeitar, o que seguir, enfim, o que observar. Então, os abades das filhas de
Cister reuniram-se e redigiram a Carta Caritatis, que traz as edificações cis-
tercienses, alicerçadas em uma família única com a origem sacramentada
em Cister.
Ela é o documento oficial de fundação da ordem. Foi redigida em
um mosteiro francês no século XII, traduzida e comentada por Aires Au-
gusto Nascimento5. Representa o documento jurídico cisterciense, o marco
de fundação constitucional da ordem.
A Carta Caritatis controla a existência de cada casa da ordem e regu-
la a administração de sua unidade. Por várias décadas, este importante
documento cisterciense foi considerado único, imutável e completo. Mas,
paulatinamente, descobrimos o quanto ele sofreu modificações, o quanto
evoluiu, principalmente ao longo do século XII6.
Uma primeira versão da Carta Caritatis é conhecida desde a fundação
de Pontigny (1114), intitulada Carta de caridade e unanimidade, cujo manus-
crito se perdeu. Acreditamos que as normas presentes na versão atual da
Carta de Caridade, aprovada em 1119 pelo papa Calisto II, sofreram inter-
pretações e modificações sucessivas, mas nem sempre determináveis por
documentação. Com isso, é difícil revelar as indagações e tensões gerais
que reconstituam os momentos que pretendemos analisar. Mas averigua-
mos, na evolução e produção da Carta de caridade e em documentos cisterci-
enses primitivos, indícios que fundamentaram a fundação da ordem, e o
quanto a busca pelo regresso à pureza da Regra Beneditina nos revela as
contradições dos monges de Cister em relação aos monges de Molesmes,
principalmente quando se referem à avareza.
A Ordem Cisterciense foi fundada em um momento em que aconte-
cia uma reforma no meio monástico, a qual se relacionava com a busca de
se respeitar os ensinamentos de Bento de Núrsia. A importância de se estu-
dar tal ordem também se deve à constatação de que os cistercienses, no

5
Os Cistercienses: documentos primitivos. Edição bilíngue latim-português. São Paulo: Musa Editora;
Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1997.
6
REIS, Baltasar dos. Livro da fundação do Mosteiro de Salzedas. Lisboa, 1934.

237
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

contexto histórico monástico, já representavam um movimento de reforma


dentro de outra reforma. Esta primeira foi representada pela fundação de
Cluny, que aos poucos deixou de corresponder plenamente aos anseios dos
monges mais devotos. Assim, surgiu a reforma cisterciense, de grande su-
cesso, vistas as dezenas de mosteiros fundados pela ordem a partir do sécu-
lo XII.

Cistercienses em Portugal e Alcobaça


Podemos dizer que a história dos cistercienses em Portugal se inicia
no século XII, principalmente a partir da existência de dois diplomas pas-
sados por D. Afonso Henriques a um abade e seus monges. O primeiro,
datado de 1139, é uma carta que concede licença para a fundação de um
mosteiro. O segundo, de 1140, é uma carta de couto passada ao mosteiro
de São João Baptista de Tarouca, o primeiro de Cister em Portugal. Esses
documentos apontam que os primeiros monges brancos que chegaram a
Portugal fixaram-se no mosteiro de São Cristóvão de Lafões, em 1138.
Acreditamos que, em 1139, D. Afonso Henriques concedeu licença
para a construção de um mosteiro, que foi usado como salvo-conduto en-
quanto não se acertava na escolha do local, que viria a recair em Tarouca,
como se apresenta na carta de couto para a criação deste mosteiro7.
O mosteiro de Santa Maria das Salzedas foi entregue aos cistercien-
ses no ano de 1156, diretamente por D. Teresa Afonso. Foi recebido com o
juramento de um abade chamado “João”, que comprometeu-se ao receber
tal encargo, a conservar sempre a referida observância monástica.
Acreditamos que este documento seja o introdutor da reforma cister-
ciense em Portugal, que veio se instalar em Salzedas em 1156 a partir de
um mosteiro que a ordem já possuía em Portugal. Este mosteiro só poderia
ser o de Tarouca.
Resumidamente, podemos fazer algumas considerações que possam
elucidar as origens cistercienses em solo luso. Os monges brancos provavel-
mente chegam a Portugal em meados de 1138. Em 1139, é concedida licen-
ça do infante D. Afonso Henriques para a fundação de um mosteiro. E,
como vimos, em 1140, obtêm a carta de couto para Tarouca, o primeiro
mosteiro erguido pela ordem de Cister em Portugal.

7
Para conhecer a história da abadia de Alcobaça, ler GUSMÃO, 1992.

238
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O sucesso cisterciense em solo português se explica por alguns fato-


res, e a busca de espaços inóspitos e desabitados para sua instalação contri-
buiu para a ocupação territorial por parte dos reinos peninsulares. A funda-
ção do mosteiro de Alcobaça é um exemplo desta prática, pois foi fundado
em região distante e erma, provinda de conquistas recentes e, portanto, de
povoamento reduzido.
Mais do que isso, os monges cistercienses representaram para o mun-
do cristão português uma resposta aos anseios de uma vida perfeita, longe
dos pecados mundanos, em busca dos ideais mais primitivos no monaquis-
mo beneditino.
Construída entre os séculos XII e XIII, a abadia de Alcobaça8 foi um
dos centros monásticos cistercienses que mais contribuíram para a cultura
religiosa portuguesa na baixa Idade Média. Isto ocorreu, principalmente,
devido ao grande número de textos produzidos e copiados por seus mon-
ges, somando atualmente mais de 450.

Origens dos sete pecados capitais


Diante da ideia de que o pecado se infiltrou na terra através do peca-
do original, o clero católico procurou limitar a ação dos pecados através da
instituição de várias práticas rituais, tanto individuais quanto coletivas. Entre
elas estão o batismo, a confissão, o jejum, a oração, a punição corporal e a
peregrinação. E, estando o pecado presente em todos os espaços terrestres,
foi preciso fugir dele e criar um lugar protegido contra o mal, o mosteiro.
Os primeiros ascetas eram anacoretas que buscavam fugir dos prazeres mun-
danos, esperançosos em obter a paz espiritual nos desertos do Oriente. Um
dos pioneiros desta prática foi Santo Antônio (251-356), que por quase toda
sua vida isolou-se no deserto do Egito9.
João Cassiano (370-435) fez diversas viagens pelo Oriente, tendo con-
tato com os pioneiros da prática monacal, e com isso divulgou-a pelo pró-
prio Oriente, e principalmente, no Ocidente. Contribuiu para que, aos pou-
cos, o trabalho dos primeiros monges fosse conhecido, respeitado e copia-

8
Para a história do monasticismo, ler LITTLE. Lester K. Monges e religiosos. In: LE GOFF,
Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC,
2002. v. 2, p. 225-241.
9
Benedicti Regula monachorum. Edição e tradução de J. E. Enout. A Regra de São Bento. Latim-
português. Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1990.

239
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

do, para ser usado como mais uma ferramenta na difusão da religião cristã.
Os primeiros cristãos foram essenciais para a difusão da nova doutri-
na, tanto entre os povos que adentraram no Império Romano quanto entre
os que ainda se dedicavam às doutrinas pagãs fora dele. Teve papel funda-
mental na consolidação e sucesso do cristianismo a competente ação dos
monges. Por ser a doutrina dos sete pecados capitais, ou setenário, nascida
em ambiente monástico e por terem os monges o importantíssimo papel de
difundir o cristianismo na Europa, entende-se que a doutrina, a partir das
primeiras décadas do período medieval, foi bastante usada como meio de
entender o que é o pecado, quais os pecados mais graves, e outras particula-
ridades que formam parte da essência do cristianismo.
Para nossa análise é de suma importância o trabalho do monge bi-
zantino Evágrio Pôntico (345-399), que teve grande influência anacoreta.
Em busca da comunicação com Deus, através de manifestações e renúncias
aos prazeres mundanos, é que surgem as tentações, que de certa forma são
naturalmente as condições para o nascimento do pecado. Evágrio Pôntico
listou os oito maiores males ou necessidades que os monges sofriam no
deserto, e, dessa forma, nasceu o que futuramente seria a mais importante
doutrina sobre pecados do período medieval, a doutrina dos sete pecados
capitais.
Esta importância é confirmada com a readaptação da doutrina pelo
papa Gregório Magno (590-604) logo no início do período medieval, e tam-
bém com a agregação da doutrina à da Igreja Católica, na qual será utiliza-
da principalmente nos rituais de confissão e nos sermões. E, por ter consi-
derado a cristianização de todos os povos germânicos como a principal
questão política em seu pontificado, podemos reconhecer a importância de
seu trabalho para não apenas divulgar o cristianismo, mas também a dou-
trina do setenário adaptada por ele.
Também podemos citar a missão formada por monges, a qual o mes-
mo papa enviou para a região da atual Inglaterra e que obteve um excelente
resultado na cristianização dos povos anglo-saxões. Tanta foi a competên-
cia desta missão que fez com que os próprios monges ingleses saíssem para
fazer o mesmo em regiões ainda não cristianizadas. Dentre todas essas par-
ticularidades, destaca-se o simples fato de que, até Gregório Magno, a dou-
trina dos sete pecados capitais era mantida apenas no ambiente monástico.
A partir dele, além de continuar se mantendo neste ambiente, a doutrina
iria ganhar uma difusão mais ampla, dentro e fora dos mosteiros, já estabe-
lecida como uma doutrina da Igreja Católica.

240
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Gregório Magno construiu a ideia de que a alma humana é testada,


assediada por um exército de vícios liderados pela soberba, e que, portanto,
esta exerce a função de comandante deste exército, alicerçado ainda pela
vaidade, inveja, ira, avareza, acídia, luxúria e gula. Cada um destes pecados
considerados capitais é responsável pela geração de outros secundários, me-
nos importantes.
Um dos documentos monásticos mais importantes que nos revela
uma representação significativa sobre a doutrina dos sete pecados capitais é
a Regra de São Bento, produzida no século VI, na abadia de Monte Cassi-
no na Itália, momento em que se estabelece a Ordem Beneditina. Foi com
Carlos Magno, com a retomada da regra com Bento de Aniane, considera-
do o segundo fundador da ordem, que ocorreu a difusão da mesma no
Ocidente europeu.
A Regula Benedicti10 prescreve a pobreza, a castidade, a obediência, a
oração e o trabalho. Gradativamente ela se difundiu pela Europa e também
provocou divergências internas no ambiente monástico, que se referem às
reformas tratadas em nosso trabalho: cluniacense e cisterciense.
Parece-nos que as reformas foram consequência da não observância
de diversos preceitos descritos na Regula Benedicti, nos quais estão inseridos
os pecados capitais. A presença da doutrina do setenário na Regra Benedi-
tina nos mostra a difusão ampla que já alcançava, influência do trabalho
dos pioneiros das práticas monacais.
No capítulo 1 da Regula Benedicti, que fala sobre os gêneros de mon-
ges, eles são preparados para ajudar-lhes a enfrentar o demônio, “contra os
vícios da carne, dos pensamentos e das seduções da gula”11.
Já no capítulo 2, instrui e ordena castigar os improbos, duros e sober-
bos com varadas ou outro tipo de castigo corporal. Cita ainda uma passa-
gem bíblica: “o estulto não se corrige com palavras”, “bate no teu filho com
a vara e livrarás a sua alma da morte”.
Como conduta disciplinar, a Regra de São Bento utiliza como instru-
mentos as “boas obras” e exatamente o que “não fazer”. E este não fazer,
imerso nos Dez Mandamentos, apresenta também o setenário, principal-

10
Ibid.
11
MATOS, Leonor Correia de. A Ordem de Cister em Portugal: mito e razão. Lisboa: Fundação
Lusíada, 1999. MARQUES, Maria Alegria Fernandes. Estudos sobre a Ordem de Cister em Portu-
gal. Lisboa: Edições Colibri, 1998.

241
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

mente quando se refere a “não praticar a ira”, “não reservar tempo para a
cólera”, “não ser soberbo”, “não ser guloso”, “não exercer a inveja”.
Com isso, observamos que os primeiros mosteiros que utilizaram a
Regra de São Bento foram influenciados pela doutrina dos sete pecados
capitais. Não obstante, é a partir de mosteiros desta ordem que surgiram as
reformas e as novas interpretações da leitura da regra e das práticas monás-
ticas. Na verdade, Cluny e Cister representaram o objetivo de voltar à vida
de trabalho e oração, fundada pela Ordem Beneditina.
A amplitude do tema nos remete a buscar limites de espaço e tempo,
pois seria demasiadamente grande a tarefa de estudar a doutrina do sete-
nário durante o período medieval, sua evolução, os debates em relação à
mesma e as reflexões desenvolvidas por diversos pensadores a respeito do
tema. Por isso, evitando o risco de generalização, delimitamos nossa aná-
lise na baixa Idade Média portuguesa, entre fins do século XIV e início do
século XVI.
Levando-se em conta que a doutrina foi criada em ambiente monás-
tico, direcionamos nosso olhar para as fontes de uma das ordens monásti-
cas mais importantes do período medieval, a ordem dos cistercienses12. E,
por ser um assunto que apresenta ainda um amplo campo de estudo, deli-
mitamos nossa temática ao estudo dos textos produzidos na mais impor-
tante abadia cisterciense em solo português, a abadia de Santa Maria de
Alcobaça.
Nossa análise, portanto, tem como objetivo explorar um tema ainda
pouco abordado pela historiografia, cuja temática nos orienta para a con-
cepção de pecado e, principalmente, para a doutrina dos sete pecados capi-
tais. E tem como espaço exatamente uma instituição onde nasceu esta dou-
trina, o meio monástico. E também direciona o estudo para a Ordem Cis-
terciense, cujos motivos de fundação se baseiam na fuga dos pecados come-
tidos pelos monges no próprio ambiente.
Nosso trabalho tem como tema central o significado dos pecados e,
particularmente, da doutrina dos sete pecados capitais, mas tomei o cuida-
do de enfatizar a delimitação temporal, espacial e temática nos textos pro-
duzidos após o IV Concílio de Latrão (1215)13, pois a partir dele estabele-
ceu-se a obrigatoriedade da confissão anual. Com isso, acreditamos que

12
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. O IV Concílio de Latrão: heresia, disciplina e exclu-
são. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~pem/html/Latrao.htm>. Acess em: 05 jan. 2012.

242
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

houve uma maior motivação para a produção de manuais, tanto para a


formação de confessores e penitentes quanto para a preparação dos fiéis
para o ritual da confissão.

O Virgeu de Consolaçon
Durante a Dinastia de Avis, foi produzida em Portugal uma grande
quantidade de textos que tinham como objetivo divulgar a prática de com-
portamentos de acordo com o que se considerava o bom cristão, ou talvez
ainda o bom cristão português. Foram textos voltados para a tarefa de di-
vulgação dos preceitos divinos e morais, de cunho doutrinário, disciplinar e
literário, abarcando uma diversidade de conteúdos e exemplos que abran-
giam a totalidade da vida de um ser humano.
Apresenta-se como uma filosofia moral que se voltava para o aprendi-
zado, abarcando como fontes de inspiração, além dos textos bíblicos, o pen-
samento de filósofos, teólogos e pensadores, da antiguidade até sua época.
A maioria dos tratados doutrinários produzidos expressa uma filoso-
fia de doutrinação moral, que remete o leitor para um aprendizado alicer-
çado em uma concepção cristão-medieval. Esta concepção pode ou não
utilizar a doutrina dos sete pecados capitais como meio de persuadir seu
público-alvo. Isto depende da importância que esta representava para as
ordens onde tais textos foram produzidos.
O Virgeu de Consolaçon faz parte de uma coleção que ainda compre-
ende outros textos, como o Catecismo de Doutrina Cristã, Tractado das media-
ções e pensamentos de S. Bernardo, e Visão de Tundalo ou Estória de huum cavalei-
ro a que chamavão Tungulu, com letra gótica do século XV, sendo citado por
A. F. de Ataíde e Melo, em Inventário dos Códices Alcobacenses14, e faz parte
do Códice Alcobacense CCXLIV/211.
É sempre um problema identificar a autoria destes tratados alcoba-
censes, pois na maioria das vezes não são assinados, e, quando são, a assi-
natura nem sempre corresponde ao autor, mas sim ao monge copista. An-

13
Inventário dos códices alcobacenses. [ed. lit. da Biblioteca Nacional de Lisboa; apresentação de A.
Botelho da Costa Veiga; introdução de A. F. de Ataide e Melo]. Lisboa: Biblioteca Nacional de
Lisboa, 1930-1932.
14
ANSELMO, António. Os códices alcobacenses da Biblioteca Nacional. Lisboa, 1926.

243
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

tónio Joaquim Anselmo15 limita-se a definir o autor da obra, assim como


Álvaro J. da Costa Pimpão, que nos diz: “Outro manuscrito ainda não im-
presso é o Virgeu de Consolaçon, que Fr. Fortunato de S. Boa Ventura su-
põe (depois de Nicolau António e Joseph Rodriguez de Castro) ser tradu-
ção portuguesa (por Fr. Zacarias de Papoyelle) do Veridarium Consolatio-
nis de S. Pedro Pacoal.”
A informação mais precisa que temos sobre a autoria e o histórico do
Virgeu de Consolaçon vem do estudo feito pelo erudito Mário Martins, no
seu trabalho chamado O Vergel de Consolação16. Neste texto, Mário Martins
informa que diversas obras tinham títulos semelhantes do nosso códice al-
cobacense, citando exemplos como Lê livre du vergie, um dos livros de Hen-
rique II de Navarra. No século XVI, Guilherme Branteghen redigia Poma-
rium mysticum, mais tarde traduzido para o francês como Vergier spirituel et
mystique. Além destes, há o Vergier de solas (Vergel de Consolação), em um
francês arcaico entre os séculos XIII e XIV17.
Mário Martins compara o nosso códice alcobacense com o incuná-
bulo castelhano chamado Vergel de Consolación do frade dominicano Jacobo
de Benavente, impresso na cidade de Sevilha em 1497, e com outro códice
escurialense chamado Vergel de Grand Consolación em castelhano. Conclui
em sua análise que se trata de três obras com a mesma linguagem, mesmo
título e da mesma época. Cita ainda que algumas diferenças em termos
estruturais existem, mas que nada interfere na conclusão de que seriam as
três uma obra única. O nosso códice alcobacense O Virgeu de Consolaçon é a
tradução do incunábulo castelhano chamado O Viridario ou Vergel de conso-
lación, obra do frade dominicano Jacobo Benavente. Chega-se a esta con-
clusão comparando diversas partes dos três textos rigorosamente, que reve-
lariam uma mesma estrutura, um mesmo conteúdo; enfim, seriam, na essên-
cia, apenas uma obra. Ainda sugere em seu estudo que “não se trata de pas-
sagens copiadas, são obras idênticas, uma posta em letra de forma, num incu-
nábulo, outra copiada a mão, num códice da Biblioteca do Escurial e a tercei-
ra vertida para o português medieval no códice alcobacense CCXLIV/211”.18

15
Separata da revista Brotéria, 1949. Reeditado em: MARTINS, Mário. Estudos de literatura medie-
val. Braga, 1956.
16
Ver Notice du manuscrit français de la Bibliothèque Nationale, in Romania, de Arthur Langfors,
cit. ap. MARTINS, 1956.
17
Ibid., p. 72.
18
Ver edição crítica de Virgeu de Consolaçon. Ed. de Albino de Bem Veiga. Salvador: Publicações da
Universidade da Bahia, 1959.

244
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Porém, Albino De Bem Veiga, editor da obra, diz que catálogos e eru-
ditos atribuem autoria a esses códices, recaindo de preferência em Jacobo
Benavente. Também diz que parecem apógrafos cujo arquétipo se desconhe-
ce. Nota-se que provêm de uma cópia, pois não há indícios de uma concen-
tração ou desdobramento do assunto, do âmbito do arbítrio do copista. Na
análise filológica, o editor ainda relata que o assunto das três obras é a litera-
tura religiosa e comum às línguas românicas na Idade Média19.
Mas com tantas cópias e perda do arquétipo, se é que foi copiado de
apenas um arquétipo, não seria Jacobo Benavente um escriba do mestre
castelhano? A verdade é que temos um códice alcobacense para nós ainda
anônimo.
O Virgeu de Consolaçon trata dos pecados e das virtudes, e é com-
posto de cinco partes. As duas primeiras partes falam sobre os pecados e os
vícios, e as três últimas baseiam-se nas virtudes, totalizando 78 capítulos.
A quase totalidade da obra é composta por citações de uma diversi-
dade de moralistas que o autor coloca com o objetivo de sustentar os seus
argumentos. Com a leitura, o leitor conheceria os males, os vícios e as vir-
tudes da vida e, consequentemente, o caminho para a salvação.
No primeiro capítulo da segunda parte, o autor define o que é peca-
do. A concepção de pecado, para o autor, apresenta-se da forma como San-
to Agostinho o define. O autor usa uma citação do próprio para sustentar
seu argumento: “Segundo diz sancto Agostinho, peccado he desamparar
home o bem de Deos que nunca se perde, e fazer muito pelos bees do mundo
que continuadamente falece. E diz esse meesmo: Peccado he dizer ou fazer
ou cuidar ou cubijçar contra a ley de Deos”.
Na primeira parte do códice, o autor faz uma recapitulação rigorosa
dos diversos pecados, já mostrando a forte influência da doutrina dos sete
pecados capitais, que muito lembra a forma como Tomás de Aquino os
classificou20.
Primeira parte: 7 capítulos
Segunda parte: 20 capítulos
Terceira parte: 7 capítulos

190
TOMÁS DE AQUINO. Sobre o ensino. Os sete pecados capitais. Trad. de Luiz Jean Lauand. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
20
Para uma concepção e conhecimento sobre vícios e virtudes, ver NEWHAUSER, Richard. The
treatise on vices and virtues in Latin and the vernacular. Turnhout: Brepols, 1993. (Typologie des
sources du Moyen Age Occidental).

245
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

Quarta parte: 13 capítulos


Quinta parte: 31 capítulos.
Com o objetivo de apresentar o ideal doutrinário de tal obra, mos-
tram-se neste capítulo as duas primeiras partes do Virgeu. Desta forma,
destaco a definição de cada capítulo, pois cada um dos capítulos inicia-se
com um conceito, uma definição sobre o assunto que o mesmo trata. Após
esta definição, começam as conclusões de diversos sábios e religiosos que
compõem a nossa fonte alcobacense.
Na primeira parte, diz o enunciado:
“Aqui se começa a primeyra parte desse livro, que fala dos peccados
principaes, e ha sete capítulos”.
Influência da doutrina do setenário? Cremos que sim, pois, segundo
a obra, são sete os pecados principais, e isto já mostra os primeiros indícios
da inspiração cisterciense na doutrina dos sete pecados capitais.
Em ordem, colocamos os títulos de cada capítulo e o primeiro pará-
grafo, uma espécie de introdução, pois após já se iniciam as citações dos
sábios e religiosos, que formam a essência do conteúdo doutrinário do
nosso Virgeu:
PRIMEIRA PARTE
Capitulo primo – da soberba.
Primeyramente começa o tractado da soberva, por que todo pecado trage
começo dela, a scriptura afirmante e dizente no livro Ecclsiastico. Soberva
he começo de todo peccado, pore, assi como en cabeça dos outros peccados
he de começar, ca da raiz dessa meesma saae sete peccados: Vãa gloria,
enveja, jra, tristeza, avareza, gula, luxuria. E cada huu destes peccados ha
contra nós seu ofício.

Quando se trata da soberba já no primeiro capítulo, lembramos não


somente a doutrina do setenário, mas também a importância deste pecado
na construção da própria doutrina. Para o papa Gregório Magno (590-604),
a soberba é o general do exército de vícios que assolam a alma humana. É
da soberba que surgem outros sete vícios21.
A análise do pecado, do ato de pecar, assinala o nascimento da teolo-
gia do pecado. No transcorrer do século XII, monges e mestres discutem
sobre o pecado. Essas discussões aparecem pela primeira vez na “Ética” de
Abelardo, em que o pecado se constitui como a parte mais interna e forte
do problema da moral.

21
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF; SCHMITT, 2002, v. 2, p.
337-351.

246
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Para Abelardo, por exemplo, há uma distinção entre vício e ação ou


ato pecaminoso. O vício é da natureza da alma, herdado do pecado origi-
nal, é o que nos leva a cometer o pecado propriamente dito. O ato pecami-
noso é o pecado consumado, uma ação exterior, nem sempre ligada à von-
tade. Por isso, nenhum dos dois pode ser atribuído ao ser humano, e muito
menos identificado com o pecado, pois o pecado consiste em deixar permi-
tir e aceitar os vícios. O vício é mais intenso, e o pecado deriva do vício22.
Na tradição monástica, o pecado coincide com o vício, inevitável cor-
rupção do corpo e da alma que se caracteriza como uma tendência para o
mal. Porém, no universo religioso português da baixa Idade Média, averi-
guamos uma distinção entre vício e pecado, mesmo no universo monástico
cisterciense. A solução para o problema do pecado está na maceração do
corpo, no desprezo do mundo e no ascetismo23.
Mas a intensidade da soberba não se destaca só pela relação às con-
cepções do papa; o Virgeu também nos revela o pecado cometido por Lúci-
fer. A intensidade do ato pecaminoso de Lúcifer é extrema, dizendo-se ain-
da que ele era o maior entre os anjos, e apenas por efeito de sua soberba foi
expulso do céu. Com isso, pensamos: se ele era um anjo e foi expulso, o que
seria de nós meros humanos?
Capitulo IIº da primeyra parte – da enveja.
A enveja quer sempre bem apartado aver e sem outro conpanheyro e en-
teyramente.
Capitolo tercio da primeyra parte – da sanha ou jra.
Jra quer todalas cousas apropriar e nõ aver outro companheyro e sem nehuu
contrayro. Da ira nascem pelejas, enchimentos de voontade, braados e ar-
roydos, blasfêmia, nõ querer nehua cousa sofrer, maldade, homizio, mal
querença. Onde o ódio pode seer dicto sanha antiga.

A inveja, às vezes, confunde-se com a tristeza, principalmente quan-


do a sensação de estar fora de si com o bem do próximo. Segundo o nosso
Virgeu, a alma invejosa não está de olho nos outros, e sim no bem dos
outros. A ira, para o escritor alcobacense, retrata o indivíduo que momen-
taneamente está fora de si mesmo, seu coração está poluído e ele deixa de
ser quem ele é por estar possuído por ela.
Capitulo quarto – da pigriça e negligecia de be fazer que he accidia.
Accidia quer manteer e aver todalas cousas sem nehuu trabalho. Da accidia
nascem muitos maaes, primeyramente nasce dela malicia, rancor, desmem-

22
Ibid.
23
Com a análise de alguns documentos fundacionais e a Carta Caritatis em Cister: os documentos
primitivos, 1999.

247
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

bramento, desasperança, pigriça nos mandamentos de Deos, vagar na voon-


tade contra as cousas de razom.
Accidia he confondimento de voontade ou tristeza da voontade muy grande
ou pigriça de coraçõ muy vagaroso que faz o home partir do be que come-
çou. Accidia he tristeza que vê do confondimento do coraçom por o qual se
affoga o amor e a alegria spiritual. E por aquela morte he confonduda em sy
per desasperança.

Relacionada com o comodismo, ao mesmo tempo parece óbvio que


o “não fazer” abre as portas para pensar em outras coisas da vida, e estes
pensamentos estão inseridos quase sempre em práticas ilícitas. É o pensar
em algo que não é necessário. Assim é caracterizada a acídia, mais ligada a
uma apatia espiritual, ficar sem motivação, não fazer o que deve ser feito.
Ao longo das transformações que ocorreram na doutrina do setenário, a
acídia nos remete também à preguiça e à tristeza, atribuições que abordare-
mos no histórico da doutrina no capítulo segundo.
Capitulo quinto da primeira parte – da avareza.
Avareza sempre deseja e cobijça o que nõ he de cobijçar. E nascem dela
muitos maaes, symonya, usura, ladroice, trayçom, engano e obras e em pa-
lavras, erro nas obras, perjuro nos jrmãaos, vida sem folgança, e crueldade
contra a misericórdia, ceguidade de coraçõ.
Capitulo sexto da primeyra parte – da gargãtuiçe.
Gargantuice cobijça cousas deleitosas e muy doces comeres saborosos, por
proveito de sy meesma. E dela nace alegria vã e deshonesta, bevedice sem
razon, palavras deshonestas e caçurritas. E outrossy nasce dela seere os ho-
mees lixosos e palrreyros e faze-os rudes e botos do entendimento. E porem
os meestres departe assi da gargantuice: gargantuice he cuidado sôo do cor-
po maao e enpeencivil e ha razõ pera comer comer muito. Gargantuice he
cobijça e vootade desmesurada de comer.

Quando propomos averiguar o quanto os sete pecados capitais inspi-


raram a ordem de Cister, já imaginávamos encontrar nos textos primitivos,
e isto inclui a Carta Caritatis, menções diretamente ligadas à avareza e à
gula. Tanto na Carta quanto no Virgeu, os votos de pobreza e a repulsão a
tais pecados estão muito bem explícitos.
Capitulo VIJ° da primeyra parte – da luxuria.
A luxuria demanda que os homees compram desejo desaguisado. E dela
nascem ceguidade e teebas do entendimento, nõ pensar nehuu bem, fraque-
za e torvamento e amor de si mesmo, mal querença, avorrecimento de Deos,
talente e cobijça deste mundo, desperaçõ do coraçon.
SEGUNDA PARTE
Aqui se começa a segunda parte deste livro – e fala dos peccados.

A segunda parte caracterizada como “pecados” nos insere no mundo


monástico alcobacense de Cister, e se dedicaram neste texto a deixar bem

248
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

evidente a intensidade maior sobre os pecados capitais no primeiro capítu-


lo, e um certo desprezo por outros menos importantes no próximo capítu-
lo. Mas, ao mesmo tempo, é neste segundo capítulo que encontramos o
conceito de pecado.
Capitulo primo.
Segundo diz sancto Agostinho, peccado he desemparar home o bem de Deos
que nunca se perde, e fazer muito pelos bees do mundo que continuadamen-
te falece. E diz esse mesmo: E diz esse meesmo: Peccado he dizer ou fazer
ou cuidar ou cubijçar contra a ley de Deos.
Capitulo segundo – que fala dos que querem saber e scoldrinhar os juízos de
Deos.
Querer home departir ou razoar ou per sotileza saber os altos juízos e conse-
lhos de Deos, nõ he seno tomar soberva contra ele.

A soberba volta e sempre está relacionada a outros vícios que carac-


terizaram a consumação do ato pecaminoso.
Tercio capitulo da IJª parte – que fala da arrogancia.
Arrogancia ou gabamento he louvor que os homees em sy filha do que faze
e he hua chaga muy maa e mortal que se nõ quer guarecer ne sofrer meezi-
nha nehua. E quanto mais padece acrescentamento a aquel louvor que toma,
tanto cuida que meos he, e he cousa muy ovorrecivil a Deos e aos homees.
Quarto capitulo da IJª parte – que fala da jngratidõe.
Engradidõe, segundo diz san Bernardo, he cousa mortal, contrayra de graça
e enmijga da luz e da saúde, e destruimento de virtudes e desfazimento de
merecimentos, vento secante e queymante ata as rayzes, e que queyma a
fonte da piedade e os ryos de graça. E diz esse meesmo que aquele he de
maao conhocer e engrato que nõ conhoce o be que recebeo. E mais desco-
nhoçudo he o que nõ faz boas obras a aquel de que bem recebeo. E muito
mais desconhoçudo he o que nõ faz boas obras a aquel de que bem recebeo.
E muito mais desconhoçudo he aquel que se nõ nenbra de bem nenhuu que
lhe fezessen. E diz esse meesmo que nõ perteece ao senhor grande de desfa-
zer aquel a que muito be fez, em quanto lhe alguu pequeno serviço fezer,
como quer que lhe nõ faça serviço tanto, segundo o bem que recebeo.

A ingratidão está enraizada no espírito, que faz parte da unidade


humana para os cistercienses de Alcobaça. Parece-nos algo que conside-
ram “incurável”, mas que deve ser controlado.
Quinto capitulo da IJª parte – que fala do peccado da cobijça.
Cobijça segudo diz san Bernardo e o Boecio, he mal sotil, peçonha de puri-
dade, pestilência asconduda, meestra de engano, madre de ypocrisia, come-
ço de enveja, fonte de peccado, traça de sanctidade, doesto de toda cousa
ordinária, cousa de que naçe sempre enfermedade e dores.

Indiferente é a cobiça, representada também como uma geradora de


outros vícios, que gera a hipocrisia relatada a seguir: “Ypocrisia he a ma-
drastra das virtudes e madre dos peccados”.

249
LIMA, Darlan Pinheiro de • Os cistercienses de Alcobaça: pecados e pecados capitais

Reflexões finais
Notamos claramente as influências do monaquismo beneditino na
baixa Idade Média luso-castelhana. O legado dos ensinamentos de São Bento
de Núrsia, compilados na regra que o mesmo produziu, disseminou-se pela
Europa e, consequentemente, pelo solo peninsular no decorrer do período
medieval. Com o desenvolvimento do monasticismo, surgiu uma varieda-
de de regras, que aos poucos corresponderam ou não às particularidades e
aflições de cada comunidade que as prescreveu.
Também já observamos o quanto a doutrina do setenário se apresen-
ta bastante coesa quando a fonte é de cunho doutrinário/disciplinar, orga-
nizada e apresentada de uma forma mais direta. E o quanto a mesma se
dispersa e aparece de uma forma mais diluída quando a fonte é literária,
em prosa, e destinada, acreditamos, para uma leitura mais prazerosa.
As reformas de Cluny e Cister se apresentaram como um novo cami-
nho em direção às velhas práticas monacais primitivas. E, desde a fundação
de Cister24, notamos a importância da doutrina dos sete pecados capitais
como uma das maneiras de persuadir e justificar a proposta cisterciense,
exposta também nas fontes alcobacenses.

Referências
Fontes primárias:
Benedicti Regula monachorum. Edição e tradução de J. E. Enout. A Regra de São
Bento. Latim-português. Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1990.
Cister: os documentos primitivos. Tradução, introduções e comentários de Aires Au-
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Os Cistercienses: documentos primitivos. Edição bilíngue latim-português. São Paulo:
Musa Editora; Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1997.
Virgeu de Consolaçon. Ed. de Albino de Bem Veiga. Salvador: Publicações da Uni-
versidade da Bahia, 1959.

Referências bibliográficas:
ANSELMO, António. Os códices alcobacenses da Biblioteca Nacional. Lisboa: Bibliote-
ca Nacional, 1926. Volume 1 – Códices portugueses.
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). História religiosa de Portugal: I – Formação de
Limites da Cristandade. Coord. de Ana Maria Jorge e Ana Maria Rodrigues. Lis-
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252
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Experiência e autoridade no Libro de las


confesiones de Martín Pérez (1316)

Marcos Schulz1

A ideia principal para a escrita deste artigo partiu da seguinte per-


gunta: o que está por trás da visão particular de Martín Pérez2 sobre os
pecados capitais? – que logo evolui para outra: como o clérigo castelhano
trata o conhecimento que provém da experiência?

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Bolsista CNPq (2010-2011). Contato: qkschulz@superig.com.br
2
Canonista castelhano com formação universitária, provavelmente em Bolonha. Teve atuação
profissional provável como mestre em Salamanca e talvez tenha conduzido um studium em
Valladolid, mas não cita títulos; demonstra grande conhecimento do universo dos confessioná-
rios e das paróquias, motivo pelo qual se suspeita que faça parte do clero secular. Tudo que se
sabe sobre sua figura é pela análise interna da obra – não há documentação inequívoca sobre
sua pessoa, como data e local de nascimento, posses, morte, etc. O nome também aparece de
variadas maneiras nas vezes em que foi citado: Martim Pires, Martín Pérez, Martim Perez,
Martinus Petri, Martim Pirez, etc. A obra Libro de las confesiones, escrita em 1316 em Castela ou
Leão (pela análise de todos os manuscritos se sabe que os mais originais e antigos provinham
da região de fronteira com o reino leonês ou de cidades próximas, como Salamanca), possuía
originalmente três partes. Espalhou-se pela Península Ibérica durante os séculos XIV e XV,
mas não se conhecem cópias para além dos Pirineus, provavelmente pela questão da língua:
fora escrito em castelhano, justamente para servir aos objetivos formacionais do baixo clero, os
padres que não sabiam latim. A obra é composta como uma espécie de manual de instrução e
referência, com dicas e orientações práticas, mas sempre contrabalanceadas com as altas dis-
cussões teológicas e apoio no direito canônico. Teve versões reduzidas, sintetizadas, mutiladas
e abreviadas. Foi feita uma tradução para o português no mosteiro de Santa Maria de Alcoba-
ça, finalizada em 1399. Essa cópia está preservada no setor de reservados da Biblioteca Nacio-
nal de Portugal (Lisboa) em dois volumes manuscritos, separada em quatro partes: a primeira
parte original virou duas partes, a segunda parte original não foi copiada naquela ocasião ou se
perdeu, e a terceira parte original foi separada em outras duas, sendo uma delas o longo trecho
sobre o sacramento do casamento (MS Cód. Alc. 377 e 378; ainda há uma compilação de
trechos da terceira parte, no MS Cód. Alc. 213). Reunidas e resumidas aqui, essas informações
são mais convenientemente analisadas em GARCÍA Y GARCÍA, Antonio; CANTELAR
RODRÍGUEZ, Francisco; ALONSO RODRÍGUEZ, Bernardo. El Libro de las confesiones de
Martín Pérez. Revista Española de Derecho Canónico, Salamanca, v. 49, n. 132, p. 77-78, 1992; e
GARCÍA Y GARCÍA, Antonio; RODRÍGUEZ, Bernardo Alonzo; RODRÍGUEZ, Francisco
Cantelar. Una radiografía de la sociedad medieval hispana: el Libro de las confesiones de Martín Pé-
rez. Madrid: BAC, 2003. p. IX-XXXI.

253
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

Numa primeira parte, serão tratados os sete pecados capitais como


aparecem no Libro de las confesiones, como e por que eles diferem das maneiras
mais tradicionais de tratá-los (na ordem SALIGIA ou por concatenação, con-
forme Gregório Magno os consagrou), e como seu didatismo lhes deu vida
longa nas obras pastorais. A segunda parte se dedica a traçar aspectos contex-
tuais que ajudem a compreender adaptações (mesmo que pequenas) entre
doutrina e prática, razão pela qual se dará ênfase ao circunstancialismo e ao
desenvolvimento da casuística nas obras para confessores. Já a terceira parte
trata do valor da experiência e do “conhecimento em primeiro nível”, procu-
rando testar, a partir de possíveis contatos com outros autores (por filiação
teórica, citação, convívio), as hipóteses levantadas sobre a relação com auto-
ridades e com os sistemas de pensamento vigentes na época.

I
E non tenga ninguno por mengua porque en la ordenaçion de los pecados
capitales es puesto primero el pecado de la luxuria, que devia ser postrime-
ro, e primero el pecado de la soverbia, ca a sabiendas fue fecho porque, se-
gund dizen algunos doctores e paresçe por esperiençia, dos son los pecados
en que paresçen los omes mas enbueltos, conviene a saber luxuria e cobdi-
çia, e destos tomam mas verguença, e destos han mas consçiençia, e, a lo
mas, asi traen ellos sus confesiones ordenadas3.

Esta passagem do Libro de las confesiones é um ponto de partida para


uma reflexão sobre as transformações dos fundamentos do texto confessio-
nal e pastoral que atingiram os reinos ibéricos no século XIV. O IV Concí-
lio de Latrão já acontecera há quase uma centena de anos, as obras de direi-
to inspiradas na recuperação das leis romanas e na atividade universitária
gozavam do auge do seu prestígio, e a escrita transbordava aos meios religio-
sos, oferecendo-se a novos agentes sociais. Também para a história dos sete
vícios ou pecados capitais o momento era de mudança. O modelo nunca
fora tão discutido como no século XIII, durante o qual fora substituído
pelo ternário de Santo Agostinho como forma oficial da Igreja – classifica-
ção por pecados da fala, dos atos e dos pensamentos.
No entanto, o setenário tinha qualidades demais para desaparecer do
pensamento religioso. Seu didatismo e potencial imagético lhe conferiram

3
GARCÍA Y GARCÍA; RODRÍGUEZ; RODRÍGUEZ, 2003, p. 7.

254
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

um espaço sem concorrentes nas pregações e obras pastorais baixo-medie-


vais. É nesse contexto, porém, que as formas de ordenar e concatenar esses
pecados foram manuseadas diversificadamente ao tom dos objetivos de cada
autor ou pregador. É certo, contudo, que tenha tido uma formatação bási-
ca, mais erudita nas suas justificações.4
A SALIGIA, fórmula mnemotécnica para a sequência Soberba-Ava-
reza-Luxúria-Ira-Gula-Inveja-Acídia, dava espaço pouco a pouco a novos
tratamentos por tratadistas, escolásticos, clérigos autores de obras pias em
geral. Assim é que se deve buscar em cada autor a explicação para sua visão
quando ela destoa da visão mais comum, ou mais aceita, sobre a doutrina
dos pecados.
A classificação de Martín Pérez – a saber, tratar os pecados da luxú-
ria e da avareza antes da soberba, subvertendo toda lógica sequencial dos
sete pecados – obedece aos objetivos do seu livro: otimizar a prática da
confissão. Os pecados mais recorrentes e mais graves devem ser interro-
gados primeiro. É um dado da experiência (e isto ainda segundo os “dou-
tores”) que os fiéis trazem a confissão organizada também por essa lógi-
ca. A obra
es mejor ordenada que mas a provecho es acabada […]: por que fuese mas
ayuda al pecador, si le non desfizieren la manera que el trae estudiada para
se confesar; nin es contra la ordenaçion de los santos ordenar commo los
pecados sean mejor confesados5.

Por causa disso, Martín Pérez afirma que não basta encaixar todos os
pecados no modelo do setenário. Essa é uma opinião também de outras
autoridades no campo do direito canônico, e não se pretende ver no autor
castelhano uma espécie de arauto das mudanças ou antecessor das críticas
ao distanciamento da teologia para com a realidade material e visível.
No se pudo tan bien aguardar el apropiamiento de ordenar los pecados espe-
çiales so los capitales, nin el departamiento dellos, quales de quales nasçen,
porque los que non son letrados non entienden estas propiedades, e por eso
semejo que seria mas pro mostrarles sensiblemente, asi commo de ojo, los

4
Para os elementos de estudo sobre os sete pecados e sua evolução histórica, WENZEL, Siegfri-
ed. The Seven Deadly Sins: Some Problems of Research. Speculum, v. 43, n. 1, p. 1-22, jan.
1968; CASAGRANDE, Carla. I sette vizi capitali: storia di un successo. Conferência apresen-
tada no Seminário Internacional “Os pecados capitais na Idade Média”, 2004, Porto Alegre,
RS; CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Pecado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT,
Jean-Claude (orgs.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002. v. 1, p.
333-351.
5
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 7.

255
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

pecados, por que les mengüe el estudio e el trabajo de saber los pecados, e les
cresca sabor de confesarlos.6

Por essas passagens se percebe que as discussões eruditas em torno


do sequenciamento e funcionamento dos sete pecados não eram um item
ignorado ou desconhecido. O interesse de Martín Pérez é ajudar na forma-
ção dos padres “menguados em sciençia”7 e não latinistas, motivo pelo qual
a clareza no texto e a didática lhe são importantes. Sabe ele que a compre-
ensão do que está escrito na sua obra é difícil ao homem mais simples – não
desenvolvido nas letras e no direito. Seu estilo e argumentação são opções,
e não pode ser visto como algo arbitrário ou aleatório que os dados da
experiência se constituam numa baliza para o canonista, pois constituem
também, de forma semelhante, o próprio filtro pelo qual passa a informa-
ção abstraída da leitura.
Assim, é feito um reconhecimento de que a doutrina dos sete peca-
dos capitais não é inteligível aos não letrados. Até mesmo por esse motivo
os pecados capitais nunca chegam a ser contados ou ordenados na obra,
apenas são tratados numa certa sequência – não tradicional. A proposta
classificatória do autor se define pelo objetivo de “mostrar” os pecados aos
pecadores, falar-lhes como ocorrem, para que os “vejam” e melhor os en-
tendam, e melhor saibam evitá-los – até porque o estudo teoricamente in-
tenso dos pecados era pensado como algo perigoso, reservado às mentes
mais piedosas e sofisticadas: quanto mais se sabia sobre o pecado mais au-
mentavam as tentações de cometê-los. Neste sentido, a ignorância era vista
como bênção. Por isso, cada pecado capital aparece na obra descrita em
atos, nas formas em que ocorrem na realidade. Martín Pérez analisa muito
pouco “em abstrato” esses pecados. Isso fica claro, por exemplo, quando
trata da acídia, que é definida por ele como “afriamiento de la voluntad de
fazer algund bien espiritual que es de fazer, e si es com aborresçimiento e
com todo despagamiento de bien, es pecado mortal”8.
Nesse pecado caem aqueles que não sabem o mínimo que devem
saber para cumprir sua função (profissional, espiritual, comunitária [...]) e
para salvar sua alma – por isso é fundamental para os clérigos, pois devem
saber todos artigos de fé, as virtudes cardeais, os Credos, as fórmulas de
absolvição, entre outras. O pecado é relacionado, portanto, com as “negli-

6
Ibid. Grifo meu.
7
Ibid., p. 3.
8
Ibid., p. 182.

256
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

gençias”, “menguas” de cada indivíduo na sua esfera de competência – e


aqui o peso recai nas profissões.
Em resumo, fazer o confessor reconhecer o esfriamento da vontade e
da fé no penitente é algo muito mais impreciso e desafiante do que reconhe-
cer as atitudes que o expressam. O ato dos que “sirven con pereza”9 ou dos
que dormem na hora do trabalho, pelo contrário, está corporificado e se
oferece – “asi commo de ojo” – à apreciação no cotidiano vivido. Martín
Pérez procura concentrar a atenção do seu leitor nesta questão, em lugar de
discutir as circunstâncias teológicas que fazem a acídia se transformar em
pecados da carne, ou suas ligações filiais para com o vício original da sober-
ba, por exemplo.
Outro exemplo de análise do pecado em suas circunstâncias reais e
não simplesmente no abstrato é perceptível no tratamento do pecado da
ira, ou “saña”10.
Demanda si desacordo de las costunbres de los otros o de lo que a los otros
semejava que es bien, e el por saña o por porfia non quiso acordar e por ende
nasçio saña o pelea, o si metio desavençia ente los que bien se querian, ca es
muy grand pecado. Si fue renzelloso, commo algunos que son tales commo
perros que sienpre estan ladrando e dan sienpre guerra en casa, e muchos ay
que con sanãs astrosas dan muchos malos dias a sus mugeres o a sus
conpañas.11

É notável um tom didático e até informal em expressões como “algu-


nos son tales commo perros”, ou ainda “muchos ay que...”. O mais impor-
tante é que tais pecados são agravados ou atenuados conforme uma série de
variáveis, seguindo uma proposta que os casuístas tomarão por sua meto-
dologia (as perguntas “quem?”, “onde?”, “como?”, “por quê?”, etc.), mas
que ainda assim aparece diluída no texto do Libro de las confesiones. Ali estão
expressas as preocupações com os motivos da ira, se o penitente se “sanhou
com merecimento”, ou se há relação com a vingança. Há também a discrimi-
nação de uma “otra saña”12 que deve ser perdoada, que é quando o irado se
põe contra os abusos de alguém. Há que fazer distinções progressivas quando
a ira é contra o pecado e não contra uma pessoa em si. Toda matéria doutri-
nal, ao fim, passa por uma transformação pela linguagem e pela forma.

9
Ibid., p. 185.
10
Ibid., p. 191-193.
11
Ibid., p. 193.
12
Ibid.

257
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

Cabe ressaltar que, ao contrário do que era mais comum na literatura


pastoral, o pecado da soberba interessa muito pouco a Martín Pérez em
comparação com outros. É notável que associe esses pecados às classes mais
altas e grupos de elite, sobretudo os letrados que desdenham dos ignoran-
tes. É ponto pacífico que este é o pecado capital mais importante e o mais
teorizado, como se pode facilmente depreender da tradição que remonta a
São Gregório Magno13 – passando por muitos doutores e autoridades cris-
tãos, como Peñafort e Tomás de Aquino – de ver na soberba a raiz de todos
os outros males e pecados.
Tudo isso é fruto de uma reflexão que tem as raízes no concreto, e se
algo desse tipo aparece inferido também nas altas discussões teológicas é
porque estas também já se mostravam – e cada vez mais – porosas ao dado
da experiência14.
Martín Pérez reconhece a alguns indivíduos um “poder de casti-
gar”. Segundo ele, a ira seria um comportamento cabível aos que são res-
ponsáveis também pelos comportamentos alheios. Dessa forma, Deus,
pai, mãe, senhor, mestre e dono da casa (sobre sua companheira, inclusi-
ve) possuem, cada um a seu modo, um direito natural de se revoltar e
“ferir por castigo”15.
Martín Pérez não escreve o único confessional que trata dos sete pe-
cados, nem mesmo se pode dizer que é o único que subverte sua sequência
ou modelo – tudo isso era comum em manuais de confessores, sobretudo
em penitências que objetivassem ser manuais de referência na hora da ab-
solvição e de associação entre pecados e penas. É justamente esse tipo de
literatura que deu longa vida ao modelo e sustentou a formação de sua
tradição – sendo o didatismo o ponto crucial para o entendimento dessa
sobrevivência, que é também um aspecto primordial para a compreensão
do Libro de las confesiones.

13
Martín Pérez certamente teve contato direto com a obra do papa Gregório Magno e a citou no
Libro de las confesiones: “dize sant Gregorio en el libro que llaman Moral, que fizo el sobre el
libro de Job. En aquella doctrina muestra sant Gregorio que toda alma convertida a Dios ha de
pasar toda la su vida por tribulaçiones e por consolaçiones” (ibid., p. 371). É notável que tenha
modificado o modelo tradicional gregoriano para melhor adaptá-lo ao cotidiano nos confes-
sionários, em detrimento das teorizações a respeito da concatenação dos vícios entre si, até
porque “los que non son letrados non entienden estas propiedades” (ibid., p. 7).
14
Outro não é o motor dos esforços escolásticos que movimentam debates, fermentam teses,
recuperam saberes antigos e conectam o meio universitário aos lugares de contemplação e
vida religiosa durante os séculos XIII e XIV – conforme analisado no item II deste artigo.
15
Ibid., p. 192.

258
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Combinando normatismo e instrução prática, a obra enfoca os peca-


dos mais recorrentes e mais visíveis na sociedade de seu tempo, a sociedade
observada por Martín Pérez – que não saberíamos definir precisamente
senão pela análise interna da obra e pela busca de uma leitura em “segundo
grau”16, uma vez que nada se sabe da biografia de seu autor. Os riscos dessa
abordagem metodológica para textos jurídicos já foram destacados por Ja-
cques Chiffoleau, segundo o qual é preciso evitar “uma tendência a coisifi-
car as instituições, a substancializar as ficções, as construções jurídicas, a
transformar o direito em “coisa” e fazer essa coisa agir como por milagre”,
além do perigo de “colocar a história de normas em uma ampla história
providencialista dos ‘progressos do espírito humano’”17. Essas advertências
devem servir em medida parcial para Martín Pérez, pois há convergências
de objetivo e de estilo evidentes. Mas o autor castelhano possui uma certa
especificidade de submeter os modelos à realidade, e não o contrário18.
Ainda sobre isso cabe a lembrança de outros confessionais medievais
que compartilhem desse apelo à experiência. Em artigo de 200619, José María
Soto Rábanos analisa alguns manuais de confessores, inclusive o de Martín
Pérez, e procura encontrar em cada um deles a forma como os pecados são
tratados. É possível perceber também se cada autor deixava ou não certo
poder de adaptação da regra em relação à realidade. É o caso, por exemplo,
do Manipulus Curatorum, de Guido de Monte Roterio. Nessa obra, os peca-
dos são arrolados por profissões e analisados em suas circunstâncias. No
mesmo caso, encontra-se o Sacramental de Clemente Sánchez de Vercial (arce-
diano de Valderas), composto entre 1421 e 1423, estando ambos mais para
tratados sobre os sacramentos do que para manuais para confessores pro-
priamente. Esses textos procuram, da mesma forma que o Libro, partir dos

16
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: A confissão católica: séculos XIII a XVIII. Trad. de
Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 9. O presente artigo divide com o
autor francês o objetivo de “ler esses documentos em segundo grau para neles adivinhar, nas
entrelinhas, tanto o comportamento real dos confessores como as reações dos cristãos comuns
submetidos à obrigação da confissão”.
17
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: LE GOFF; SCHMITT (orgs.), 2002, v. 1, p. 334.
18
O canonista sugere que seu leitor vá acrescentando novas determinações à sua obra à medida
que a Cúria papal as for emitindo, o que, segundo ele, é uma característica das obras de direito:
“Si te semeja esto enojo e trabajo e mengua del libro, sepas que eso mismo conteçe a los libros
del derecho [...]” (GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 8). Depreende-se disso que, reconhe-
cidamente, seu texto não é definitivo e sua obra tem um caráter “vivo”.
19
SOTO RÁBANOS, José María. Visión y tratamiento del pecado en los manuales de confesión
de la baja Edad Media hispana. Hispania Sacra, v. LVIII, n. 118, p. 411-447, jul.-dez. 2006.

259
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

dados empíricos da realidade que circunda o autor, fazendo a doutrina e a


verdade ser mais um ponto de chegada do que saída. Já como contraprova
podemos citar o Libro de confesión de Medina de Pomar, escrito em meados do
século XV. Esta obra trata extensamente dos pecados capitais e de seus ra-
mos, mas de maneira pouco conectada às práticas cotidianas, fazendo lem-
brar o projeto denso de Peraldus, de quem se conhece o maior compêndio e
mais desorganizado compêndio sobre o tema dos pecados capitais (século
XIV) – os pecados são analisados por aproximação com diversos modelos
classificatórios, ora pela questão das consequências de cada um, ora pelas
interseções entre dois pecados, ou ainda pela gravidade ou semelhança com
as desobediências às leis bíblicas e os dez mandamentos.
No De arte audiendi confessiones, o teólogo francês Jean de Gerson (1362-
1428) usava expressões como “conheci muitos deles [penitentes] que foram
surpreendidos dessa maneira [...]”20. Esse apelo explícito – e em primeira
pessoa – à experiência não é aparente em Martín Pérez. Sua experiência
como confessor se depreende mais pelo conhecimento de detalhes dos pe-
cados, de como mais aparecem, do que através de testemunhos pessoais
como o que está deduzido da leitura de Gerson. Já São Francisco Xavier
tinha suas estratégias peculiares para estabelecer uma conexão entre os “par-
ceiros do sacramento”21: ele sugeria aos confessores a “santa ousadia” de
confessar primeiro seus próprios pecados. Assim, a confissão se dava sob o
signo do compadecimento, trazendo o problema para dentro da trama coti-
diana. O fato de “esse artifício caridoso” ter “às vezes bom sucesso”22 só
mostra ainda mais como o testemunho do real e o apelo à experiência pos-
suíam lugar próprio na literatura de ajuda aos confessores, vindo a preen-
cher o espaço vazio e por vezes abismal que distanciava o objetivo da nor-
ma canônica e sua factibilidade – dito de outra forma: a distância entre
discurso e prática.

II
Para melhor compreender aquelas perguntas provocativas iniciais do
artigo, acrescentamos aqui mais uma, que amplia o espectro da análise:
como a contextualização do problema – a história dos séculos XIII e XIV –

20
DELUMEAU, 1991, p. 29.
21
Ibid., p. 34.
22
Ibid., p. 30.

260
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

pode nos ajudar a entender os processos mentais e metodológicos que sus-


tentam o pensamento do clérigo castelhano?
A Igreja Católica Apostólica Romana se construiu como emissora da
doutrina e como instituição em grande parte sustentada pelo recurso a uma
ideia de herança e pela palavra das autoridades. Papas, monges, eremitas e
santos deixaram um legado que, acumulado, adaptado, ressignificado, pro-
duziu a religião de uma civilização. Mas o que fazer quando seus escritos já
estivessem por demais distantes no tempo para que correspondessem irre-
dutivelmente a realidades ora tão diferentes? Quando os Pais da Igreja não
tinham mais todas as respostas23, entrou em cena a necessidade de reorga-
nização da matéria doutrinal. Daí para diante, seria uma questão de tempo
para que o princípio medieval de autoridade fosse questionado, sobretudo
quando adentra o debate que ficou conhecido como laxismo x rigorismo.
Diante da flexibilidade fornecida pelos novos teólogos, universitários e es-
colásticos, os confessores ganharam maior liberdade para administrarem a
absolvição em casos onde houvesse dúvida, casos complexificados na mes-
ma medida em que a sociedade se complexificou. No século XIII, o direito
canônico já havia incorporado elementos de universos jurídicos antigos –
obras as mais variadas se difundiam pelas universidades, ganhavam tradu-
ções24 (principalmente na Península Ibérica, território de “fronteira”, de
convívio nem sempre pacífico entre culturas diversas), proporcionadas por
ambientes eruditos que antes se detinham nos mosteiros, mas que ganha-
ram direito de cidadania nos emergentes meios urbanos.
A absorção de novas formas de pensamento é uma consequência des-
se processo que mudaria a forma como os homens, sobretudo os religiosos,

23
Ibid., p. 95. “Os casos da época requerem autores da época”, diria o Padre Annat, futuro
confessor de Luís XIV, ainda que reconhecesse que o ideal seria encontrar soluções nos Padres
e doutores da Igreja. Essa questão pode ficar mais clara à luz de um exemplo contemporâneo:
com o advento de métodos anticoncepcionais o alto clero católico foi chamado a discutir
internamente sua posição quanto ao seu uso pelos fiéis. O debate sobre isso continua em anda-
mento, e não há a menor possibilidade de que alguma autoridade de tempos antigos possa
servir objetivamente como baliza na tomada de decisões desse tipo em matéria de doutrina,
pois elas fornecem respostas mais ou menos limitadas ao grau em que nossa época ainda pode
se reconhecer naquele passado.
24
Importância das traduções de Toledo e da tradição filosófica muçulmana para a recuperação
das obras dos antigos, principalmente Aristóteles. Sobre essa questão ver WILLIAMS, Steven
J. Defining the Corpus Aristotelicum: Scholastic Awareness of Aristotelian Spuria in the High
Middle Ages. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 58, p. 50, 1995: “By around 1200
most of Aristotle’s treatises outside of the Organon were still unknown, unread or unavailable.
During the following decades, academic manuscript production grew enormously, and nearly
all the remaining books of the Aristotelian corpus were translated and put into circulation”.

261
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

se relacionavam com a norma escrita. No texto de Martín Pérez, lemos


citações de Santo Agostinho, Graciano, Pedro Lombardo, Henrique de Si-
racusa, Raymundo de Peñafort, entre outros. Mas não é de espantar que
haja certos ecos de novas autoridades se formando, como Aristóteles, ainda
que através do igualmente muito presente Tomás de Aquino.
A forma de organização da obra do canonista castelhano abre uma
janela às reflexões sobre o que pensava da realidade e como dava vida a
suas ideias pela ponta da pena. O Libro de las confesiones está dividido em
três partes: a primeira trata dos pecados gerais que cometem os homens em
geral; a segunda trata dos pecados de pessoas de “estados” específicos; já a
terceira fala dos sacramentos, dentre eles o casamento recebe uma atenção
maior. O fato é que muitos pecados se repetem, são tratados em duas ou até
nas três partes da obra. O trecho inicial sobre os casos de excomunhão, logo
após o prólogo, parece bastante compacto em si, mas possui desdobramen-
tos, por exemplo, na segunda parte (pois trata dos erros cometidos pelos
padres em relação à absolvição ou não de um excomungado) e na terceira
parte (pois a absolvição ocupa parte fundamental da administração do sa-
cramento confessional, sobretudo na extrema unção). Contudo, a organi-
zação dos temas dentro de cada uma das três partes é quase caótica. Martín
Pérez passa da discussão sobre os votos e os juramentos para orientações
sobre os pecados das palavras, voltando uma vez a temas que já havia trata-
do parcialmente quando discutia a gula e a “gargantoíce” na primeira par-
te... Essas tergiversadas conferem à obra um tom repetitivo e não muito
prático (motivo pelo qual não se pode tratá-la literalmente como um “ma-
nual”).
Sabemos que o sistema complexo, classificador, dialético, aristotéli-
co de pensamento teve uma entrada senão forçada ao menos tardia na lite-
ratura católica medieval. Seu método dialético de acesso ao conhecimento
não foi condenado pela Igreja, mas algumas de suas teses o foram – como,
por exemplo, a da eternidade do mundo25, o que tornava seu uso em obras
religiosas um tanto problemático. Em todo caso, mesmo que o dito sistema
aristotélico tivesse sido compreendido ou parcialmente absorvido através
da Summa Theologica por Martín Pérez (não há indícios resolutos de conta-

25
GILETTI, Ann. Aristotle in Medieval Spain: Writers of the Christian Kingdoms Confronting
the Eternity of the World. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 67, p. 23-48, 2004.

262
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

to direto com as obras de Aristóteles), o que é improvável, ainda assim é


forçoso concluir que foi, no mínimo, aplicado superficialmente.
Uma vez que não adiantava mais negá-las, a (con)formação de novas
autoridades nos campos do direito e da teologia não parece ter se mostrado
como um desafio ao autor castelhano – não da mesma forma como outros
religiosos anteriores e posteriores o vivenciariam.
Algo que fica evidente na leitura de Martín Pérez, entretanto, é sua
dívida para com o pensamento agostiniano. A importância maior dada aos
pecados advindos da concupiscência (não por acaso coincidentes com os
que mais ocorrem, luxúria e avareza) é apenas um ponto de partida para a
aproximação entre os autores. O tom mais crítico e moralista reservado aos
membros do clero, que são os mediadores entre o mundo terreno e o espiri-
tual (ou entre as cidades do homem e a de Deus, para usar uma terminolo-
gia mais reconhecível), não deixa dúvidas sobre a defesa das liberdades e
das esferas de poder e influências da Igreja em detrimento do surgimento e
proliferação de abusos dos seculares26 e de movimentos heréticos. Além
disso, é possível rastrear as origens do circunstancialismo chegando ao pró-
prio Santo Agostinho27, que defendia a ideia de que o conhecimento da
situação em que um pecado ocorre é fundamental para que seja melhor com-
batido (numa máxima dedicada à luta contra as heresias e heterodoxias que
se tornou famosa durante séculos).
Outro processo histórico que muito concorreu para a visão peculiar
de Martín Pérez (seu “ojo avisor” ao qual nada escaparia28) foi a diluição
do modelo das três ordens. Numa sociedade em que a escrita não era mais
monopólio dos religiosos e em que a economia se complexificava com no-
vas formas de câmbio e a criação de bancos e cheques, não se pode admirar
que tal ideologia de justificação social caducasse. Isso se expressa na litera-
tura confessional no momento em que os pecados são classificados pelo
“estado” de seu agente, o que ocupa toda a segunda parte da obra em caste-
lhano.
Segundo artigo seminal de Jacques Le Goff, as obras religiosas, como
os manuais de confessores, são fonte de “primeiro plano para o historiador

26
Tive oportunidade de analisar isso em artigo de 2009. SCHULZ, Marcos. O conflito entre as
autoridades religiosas e laicas e o direito medieval: os casos de excomunhão do ‘Livro das
Confissões’ de Martim Perez – Cód. Alc. 377-378. AEDOS, v. 2, n. 2, 2009.
27
DELUMEAU, 1991, p. 81.
28
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 79.

263
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

das mentalidades ligadas às atividades materiais”29, sobretudo quando “a


consciência que todo o homem tem de si mesmo aparece através do estado a
que pertence, através do grupo profissional de que faz parte, através do
mester que exerce e de que é membro”30. É a partir dessa transformação
que se torna a norma ainda mais aberta à negociação com a realidade, pois
os homens ocupam funções diversas, que devem ser regulamentadas por
novos corpus jurídicos. Os “estados” fazem explodir de dentro para fora as
barreiras entre as ordo – ainda que nobres e religiosos tenham se certificado
de manter, cada um a seu modo, seus espaços legítimos.
Nesse novo quadro social em pleno processo de desenvolvimento, o
circunstancialismo encontrou meios de se justificar, e com ele vieram os
tratados e resoluções de casuística. Os livros para confessores passam a
conter parágrafos infinitos que tratam dos agravamentos e atenuantes para
cada tipo de pecado, e para isso a atividade dos glosadores também contri-
buiu, pois a respeito de cada situação nova prevista se entendia necessário
legar algo seguro aos padres iniciantes ou mesmo aos simples penitentes
que estivessem engajados no estudo e nas leituras para a confissão. E com
Martín Pérez, mais uma vez, não foi tão diferente. Basta citar a forma como
trata o caso de excomunhão reservado ao pecador que “alança mãaos ira-
das” em clérigos e religiosos em geral31, seja ele de uma ordem qualquer
reconhecida pela Igreja. Para este caso, há sete exceções que atenuam a
culpa: 1) quando a ofensa é por zelo, educação ou castigo; 2) quando o
ferimento é feito “en jogo por solaz”, sem fazer por mal ou “saña”; 3) quando
o fiel pega o clérigo em luxúria com sua mãe, mulher, filha ou irmã; 4) em
legítima defesa; 5) quando não sabia que era clérigo, mesmo que o matasse
e que a intenção de ferir permanecesse; 6) se o clérigo abandonou a fé,
encontra-se em apostasia (abjuração), ou se deixou o hábito e depois das
admoestações do bispo manteve a desobediência ; 7) se o religioso se casa,
se torna cavaleiro ou se abandona a clerezia de todo. No resto dos casos é
só o papa que pode absolver. Em todos esses casos, a ofensa continua sendo
pecado, mas fica dirimida e não merece mais a sentença de excomunhão.
Mas a casuística não para aí e vai além, pois em seguida Martín Pé-
rez relaciona sete casos em que a agressão ao religioso continua sendo pe-

29
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ociden-
te. Lisboa: Estampa, 1980, p. 152.
30
Ibid., p. 159.
31
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 17-21.

264
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

cado excomungável, mas a absolvição pode ser recebida do bispo local, e


não necessariamente obtida aos pés do Sumo Pontífice. Não é necessário
acompanhar mais essa discriminação para pontuar o argumento.
Complementando essa questão, José Maria Soto Rábanos tem refle-
xões muito profícuas sobre o que chama de “desteologização do pecado”.
Explica que, no momento em que a ignorância do fiel passa a ser um
atenuante quando comete pecados sem intenção, e quando a fama ou o es-
cândalo decorrentes do ato pecaminoso servem de piores agravantes, é por-
que “en cierto modo se puede hablar de una socialización del pecado, de una
juridización, de una desteologización”32. Esses elementos caracteristicamente
sociais constituem novo aspecto para a literatura pastoral da época, que se
infla de proposições idealizadas com o intuito de regular a ordem terrena e
preparar a comunidade eclesial para a plenitude da vida no além – ou seja,
a realidade é considerada, mas sua compreensão e utilização em argumen-
tações sobre a doutrina estão sempre submetidas à necessidade de buscar a
salvação da alma: a realidade terrena não importa nem é um fim em si. A
realidade terrena se envolve em valores paradoxais: recusa e aproximação,
recusa e necessidade ao mesmo tempo. A doutrina objetiva a salvação da
alma, mas se sustenta ela mesma em normas que atingem e partem do uni-
verso corporal.
Desse modo, já se podem compreender melhor as transformações
dos sete pecados já referidas na primeira parte do artigo: elas são um indí-
cio de um novo olhar para a realidade enquanto experiência não meramen-
te subordinada à lei, mas em processo incipiente-dialético com ela. Por isso,
cabem algumas considerações sobre os tipos de experiência vislumbrados
na análise do Libro de las confesiones.
Há três “níveis de experiência”: 1) a vivência pessoal do autor; 2)
aquela a ser considerada pelo leitor (ou a do leitor); 3) e aquela pretendida
pelo autor objetivamente (que deveria ser o produto da leitura e da classifi-
cação da realidade, como um “efeito de teoria”33, ou experiência-objetivo,
a entificação da norma). Essa última corresponde não ao que o leitor deve
pensar, mas o que deve acontecer, como as coisas devem ser através da
aplicação daquilo que o próprio texto prescreve – é uma qualidade especial
dos textos normativos. Já a experiência de primeiro tipo é muito fugaz e

32
SOTO-RÁBANOS, 2006, p. 444.
33
A respeito desse conceito, é emprestado dos estudos de Pierre Bourdieu sobre a epistemologia
materialista-histórica. BOURDIEU, Pierre. Lições da aula. São Paulo: Ática, 1988, p. 15-16.

265
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

quase nunca assumida expressamente por Martín Pérez. Ela não é necessa-
riamente redutível à de segundo tipo, mas para esta análise é forçoso consi-
derá-las quase como uma só, devido à falta de dados sobre a biografia do
autor castelhano: elas formam a realidade observável, que está em eterna
disputa com a realidade como-ela-deveria-ser das obras de direito34.
Martín Pérez não deixa muitas instruções de como agir em cada caso.
O tom impessoal de sua narrativa impera. Mas isso não deixa para o leitor
uma sensação de impotência diante da norma; pelo contrário, a generalida-
de do texto cria um efeito de aplicabilidade igualmente geral da norma,
funcionando tanto em meios urbanos como rurais, em Castela como na
Itália – e isso vem a aprofundar as dificuldades de precisar dados sobre a
escrita da obra e sobre a vida do autor, que se mostra muito sem nunca se
mostrar realmente. Como exemplos dessa aplicabilidade geral (mas não
unilateral), vemos alguns trechos, muitos dos quais são recorrentes, em que
o clérigo castelhano sugere que o confessor pergunte a seu bispo sobre como
agir em casos de dúvida ou discordância entre os “doctores”35. Por fim, e
pela própria essência da obra que escreveu, Martín Pérez não poderia dei-
xar margens de manobra muito grandes para seus leitores, uma vez que
servia justamente para orientar os padres menos esclarecidos. Mesmo as-
sim, sua postura é visivelmente mais rigorosa em relação àqueles que com-
põem o chamado alto clero, os doutores e teólogos, ou apenas “ricos de
letras”, pois desagravavam a classe religiosa e pecavam gravemente, negli-
genciando seu dever de guiar e dar exemplos cada vez que se mostram
tan avarientos e tan soberbios con ellas [as letras] que non tan solamente
non quieren fazer a los que non son letrados limosna [esmola] del seso de-
llas, mas despreçian e muerden con dientes caninos a muchos que han por la
graçia de Dios el entedimiento sano.36

34
Ver nota 6.
35
Há o exemplo do caso décimo quinto de excomunhão retirado do “dereyto antigo” sobre o uso
do arco sagitário para causar danos físicos a outrem. Martín Pérez cita esse caso entre os de
excomunhão maior e depois novamente entre os casos de excomunhão menor, pois há desa-
cordo entre os doutores nessa matéria. “Este caso es del obispo, enpero dizen los mas de los
doctores que non es descomulgado, mas devese descomulgar [cita Henrique de Susa e Ray-
mundo de Peñafort como sustentação], e sobre esto faz commo te mandare tu obispo”. GAR-
CÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 24.
36
Ibid., p. 3.

266
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

III
A relação entre a doutrina religiosa e sua flexibilização pelo reconhe-
cimento do valor da experiência observável é um tema que foi tratado por
Jean Delumeau, de modo que muitas das reflexões dele sobre casuística,
probabilismo37, laxismo x rigorismo, podem ser confrontadas com esta aná-
lise, sobretudo a respeito do papel da escolástica na adaptação da moral aos
novos tempos e novos sistemas de pensamento, indicando caminhos futu-
ros de independência desta em relação ao domínio do religioso (tanto Ma-
quiavel quanto a Reforma Protestante terão papéis importantes nesse lon-
go processo).
Para a busca de um fechamento deste artigo, cabe fazer notar que o
cotidiano vivido passa a ser um ponto de partida e de chegada ao mesmo
tempo do movimento escolástico em seu esforço de adaptação da norma à
realidade – e qualquer referência aqui à dialética aristotélica (recebida na
maioria das vezes em tons de neoplatonismo38) não estaria muito aquém da
verdade. O esforço desses autores, reunidos sobretudo na Universidade de
Paris – de onde escreveram obras que, ao se difundirem, influenciaram a
construção de uma nova Igreja Católica –, é o que torna a obra de Martín
Pérez possível. É evidente que as necessidades sacramentais criadas em
Latrão IV e sempre reafirmadas em Concílios e Sínodos39 reunidos com
recorrência assustadora (sobretudo ao se perceberem objetivos e prescri-
ções sempre repetidos) dão conta de explicar o que queria o autor com a

37
O probabilismo (doutrina que tem raízes na casuística, mas se desenvolve apenas a partir do
século XV), que consistia em seguir uma opinião em relação a uma dúvida em matéria doutri-
nal sem que essa fosse necessariamente a opinião mais segura ou mais provável, levou à for-
mação de uma nova noção de autoridade – mais relativizada e submetida à crítica e ao contex-
to. Ele “subentendia assim que a ciência moral é feita para a ação e submetida às condições
mutáveis da vida” (DELUMEAU, 1991, p. 108).
38
É preciso lembrar da “aura neoplatônica” com que Aristóteles foi lido na baixa Idade Média e
dos esforços escolásticos para compreender a utilidade de seu estudo. Além disso, houve obs-
táculos em relação à aceitação de seu estilo, porque era complexo em comparação aos textos
claros das autoridades cristãs dos tempos romanos. Isso teria feito com que aumentassem as
dificuldades para que suas ideias fossem absorvidas. PAGDEN, Anthony R. D. The Diffusion
of Aristotle’s Moral Philosophy in Spain, ca. 1400 — ca. 1600. Traditio, v. 31, p. 289, 1975:
“This apparent lack of interest in Aristotle’s moral writings is not in itself inexplicable. Despi-
te the willingness of medieval moralists to rely upon St. Augustine’s permission to ‘spoil the
Egyptians’ as their authority for Christianizing pagan authors, Aristotle’s ideas did not lend
themselves to this kind of scissors and paste treatment; they were not easily divorced from
their context and lacked the obvious simplicity of the Roman moralists.”
39
Para um levantamento extensivo dessas ocasiões, HERRERO, José Sanchez. La literatura
catequética en la Península Ibérica: 1236-1553. En la España Medieval, n. 9, p. 1051-1118, 1986.

267
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

obra – e por que foi escrita em castelhano e não em latim. Mas o processo
de preparação da obra é tributário de um espírito escolástico muito caracte-
risticamente complementar à pastoral da época e à sedimentação dos con-
flitos travados no direito canônico desde o século XI.
É com esse mesmo problema em mente que já afirmavam os editores
modernos da obra de Martín Pérez na sua introdução que, “en todo caso, el
libro parece estar escrito desde la observación directa de la vida, y no sólo
desde lecturas y reflexiones teóricas en una apartada celda”.40
No plano da experiência primária de Martín Pérez, o mesmo de sua
formação intelectual (leituras, aulas, glosas, discussões), essas relações se
fortificam pela aproximação com autores que, ao contrário de um Aristóte-
les, poderiam ter sido seus contemporâneos, em cargos semelhantes, e até,
quem sabe, tenham desfrutado do status e oportunidades que a relação de
mestre-aprendiz cria – há a possibilidade de que Martín Pérez tenha sido
aprendiz do canonista João de Deus, em cuja obra – Summa Confessorum,
de meados do século XIII – poderia ter se inspirado. Esse manual foi muito
difundido por toda a Europa e conheceu muitas cópias em várias línguas,
ainda que seu autor seja português, porque o texto está em latim. Teriam
eles dividido espaços da hierarquia eclesiástica na península Ibérica ou em
universidades italianas como a de Bolonha?
De qualquer forma, há também uma proximidade temática muito
grande entre os textos. Na Summa (conhecida também por Confessionale) de
João de Deus se fala dos pecados que se encontram em qualquer pecador
(primeira parte) e os pecados de categorias profissionais específicas (segun-
da parte) – ou seja, algo muito semelhante ao Libro de las confesiones.
Além disso, Martín Pérez é claramente um tributário dos trabalhos
do dominicano aragonês Raymundo de Peñafort41, que escreveu uma Sum-
ma de casibus poenitentia nos anos 1220-1221. Esse documento se tornaria
muito influente por toda a Europa e também era dividido em três partes,
sendo que essa terceira parte também foi transformada em duas partes, anos
depois, por estudiosos criteriosos, devido à sua extensão – lembre-se que o

40
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. XXI.
41
MENJOT, Denis. L’impot: péché des puissants: Le discours sur le droit d’imposer dans le
Libro de las confesiones de Martin Pérez (1316). In: GUGLIELMI, Nilda; RUCQUOI, Ade-
line (orgs.). Derecho y justicia: el poder en la Europa medieval. Buenos Aires: IMHICIHU-
CONICET, 2008, p. 117-134; RUCQUOI, Adeline. Reflexion sur le droit et la justice en Cas-
tille entre 1250-1350. In: GUGLIELMI, Nilda; RUCQUOI, Adeline (orgs.). Derecho y justicia:
el poder en la Europa medieval. Buenos Aires: IMHICIHU-CONICET, 2008, p. 165-194.

268
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

casamento é um tema que praticamente constitui um tratado à parte do


Libro, e por isso foi dividido assim na tradução de 1399 feita no mosteiro de
Santa Maria de Alcobaça. Martín Pérez cita Peñafort diversas vezes no
Libro, o que reforça alguns indícios de parentesco entre as obras que poderi-
am se tornar dados mais seguros via cruzamento dessas leituras.
Há ainda a possibilidade de que tenha tido encontros (e aproxima-
ções teóricas) com o Frei Álvaro Pais, que em 1316, data da escrita do Li-
bro, já era franciscano e já estava em Bolonha para realizar seus estudos.
Mas, apesar da origem e grande circulação pelo meio ibérico, suas obras
não fazem referência uma à outra42. Ainda assim, pelo tom rigoroso de
condenação aos desleixos dos membros do clero e pela afirmação de uma
concepção de sociedade cristã regida pela lei de Deus na qual os poderes
seculares devem se subordinar ao de maior dignidade representado pelo
Sumo Pontífice, é possível colocar a hipótese de que não fossem completos
desconhecidos. Outro caminho que os conecta pode ser buscado na forma-
ção e/ou atuação jurídica, na comum condenação das riquezas desse mun-
do e da soberba dos clérigos dos altos círculos eclesiásticos, e na reafirma-
ção categórica do voto de pobreza43.
Embora existam todos esses indícios e atalhos possíveis, as leituras
que mais influenciaram Martín Pérez foram seguramente as obras de Santo
Agostinho, tendo Tomás de Aquino um espaço também relevante. Interlo-
cutores recorrentes (mesmo que, na maioria das vezes, ocultos) do autor
castelhano, os dois, cada um a seu modo, teriam deixado marcas profundas
no seu pensamento. O apoio em Agostinho é mais evidente, expresso em
diversas citações como esta:
Onde, dize sant Agostin: Sepan estos tales que asi buscan las saludes e atales
sabidurias que han el bautismo desanparado, e la fe christiana que la han
denegada, que son fechos paganos e apostatas e enemigos de Dios, e que son
caydos em grand yra de Dios, si por penitençia verdadera non se castigan
destos pecados [de heresia]44

42
A referência para isso foi fornecida pela Dra. Armênia Maria de SOUZA, de quem há disser-
tação defendida em 1999 sobre Álvaro Pais. A sociedade medieval no Estado e Pranto da Igreja
de Álvaro Pais, Bispo de Silves (1270-1349). 1999. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal de Goiás, 1999.
43
José Hernando DELGADO, Sociedad y cristianismo en un manual de confesores de principios del
siglo XIV. 1978. Tese (Doutorado) – Universidad de Barcelona, acredita que Martín Pérez
possa ter sido franciscano, o que aumentaria as chances de diálogo e de contatos entre ele e
Álvaro Pais.
44
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 156.

269
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

De fato, a heresia é um tema caro a Agostinho que voltou com muita


força no início da baixa idade média e sustentou todo um esforço da Igreja,
inclusive com o apelo às ordens monásticas recém-criadas, de retomada da
iniciativa pastoral e de campanhas de conversão. Mas, em muitas outras
passagens, o canonista castelhano demonstra sua dívida para com Santo
Agostinho no que diz respeito a seu status enquanto padre com cura de al-
mas, entrevendo-se a formação de uma concepção confessional mais clara:
E despues que el te dixiere los pecados asi commo el sabe, conviene a ti que
sepas alguna manera ordenada para le demandar los pecados que el non con-
feso e tu entendieres que son de confesar, ca asi lo manda sant Agostin e otros
doctores santos. E si otra manera mejor tu sabes, si non toma esta que es
tomada de doctores santos e de maestros. E por razon que en dos maneras de
pecados se enbuelven mas los omes, conviene saber luxuria e avariçia [...].45

A obra de Agostinho é escrita séculos antes da oficialização da práti-


ca da confissão individual auricular; ainda assim, Martín Pérez empresta
essas suas palavras de autoridade – e a de outros “doutores santos”46 – para
prescrever uma regularização das condutas no confessionário, condutas essas
que, a despeito de toda normatização, ainda careciam de controle efetivo, a
se considerar o grau de detalhamento das insistentes instruções ao longo de
toda a obra. Aqui também se pode perceber que há uma flexibilidade na
aplicação de um modelo de inquisição do penitente. O canonista castelha-
no assegura ao seu leitor que pode haver formas melhores de conduzir a
confissão conforme objetivos mais precisos, ou em meios diferentes. É pre-
ciso uma certa experiência nessas questões para que seja deixada essa mar-
gem ao confessor/leitor, sobretudo se considerarmos que ele provavelmente
“minguava” em conhecimentos confessionais. O importante é que Martín
Pérez dá sustentação tanto ao padre que busca a opinião mais segura retirada
das obras de direito canônico, e que poderia variar das formas mais tradicio-
nais de confissão, quanto ao pobre cura de paróquia que ignora a maioria do
que caberia a um guia espiritual e que precisa de direcionamento para seguir.
Já em relação a Tomás de Aquino, esse outro santo mais próximo de
seu tempo, Martín Pérez demonstra uma influência significativa, mas me-

45
Ibid., p. 46-47.
46
São citadas como fonte de autoridade no Libro para essa passagem as obras De vera et falsa
poenitentia, de Agostinho, o tratado de Peñafort encomendado pelo papa Gregório IX em 1230,
ratificado na Bula Rex Pacificus de 1234, e capítulos selecionados do Decreto de Graciano e do
IV Concílio de Latrão (1215). Vale destacar ainda o quanto a santidade concorre para o refor-
ço do argumento de autoridade em matéria doutrinal.

270
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

nos indícios de leitura direta – fazendo com que, no mínimo, a interpreta-


ção dessa presença exija uma relativização. É provável que tenha lido a
Summa theologica, não só por se tratar de uma obra básica na trajetória de
formação em direito canônico à época, mas pela quantidade das vezes em
que ela é citada em suas notas – e elas ficaram mais perceptíveis graças ao
trabalho de editoração do texto realizado pela equipe que publicou o texto
pela Biblioteca de Autores Cristianos em 2002. De fato, o canonista susten-
ta muitas prescrições na Summa, mas se trata, nesses casos, de um uso mais
técnico. A influência em termos de pensamento fica menos perceptível,
cabendo ao doutor uma função de ferramenta jurídica para os casos de
pecados variados. A respeito do esforço escolástico de interpretação e adap-
tação das normas reservando um papel importante à realidade observável –
campo em que Aquino foi mestre e até pioneiro –, Martín Pérez não tece
comentários pormenorizados.
No entanto, há que considerar algumas hipóteses de empréstimos
epistemológicos também. Como vimos, a lei nem sempre se adequava à
prática. Nessas dúvidas, a noção de equidade – cara ao homem medieval e
já prevista em Aristóteles (epikeia) – era aplicada. Além de Alberto, o Gran-
de, coube justamente a Tomás de Aquino recuperar essa noção, encontran-
do formas de encaixe dessa lógica com a matéria jurídico-canônica vigente.
Levando isso em consideração (e, talvez, forçando um pouco o argumen-
to), é possível perceber uma concepção “de fundo” na divisão da obra vol-
tada para a análise do tipo de pecado que a condição social do homem lhe
proporciona, dando a cada um aquilo que lhe cabe de direito, numa revita-
lização das nunca esquecidas palavras de Justiniano no seu Corpus Iulis Ci-
vilis de 529 – o que concordaria, ainda e mais uma vez, com a máxima de
Agostinho, na medida em que o mal se conhece nas condições em que acon-
tece em forma de pecado47.
De Tomás de Aquino o Libro de las confesiones teria tomado, então,
um espírito escolástico de adaptação e crítica do conhecimento herdado48,

47
Nota-se que as correntes de pensamento e circulação de ideias não seguem cadeias lineares de
influência. Para uma consideração sobre a teoria de Agostinho sobre as paixões e os males que
lhe são – não necessariamente – inerentes, ver BERMON, Emmanuel. A teoria das paixões
em Santo Agostinho. In: BESNIER, Bernard et al. (org.). As paixões antigas e medievais: teorias
e críticas das paixões. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 199-226.
48
WILLIAMS, 1995, p. 29-51.

271
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

podendo, inclusive, serem feitas algumas conjecturas sobre a absorção de


ecos aristotélicos. Enfim, seja mais hierocrático, seja mais voltado para o
universo da pastoral, a visão de Martín Pérez sobre os pecados observáveis
em seu tempo não é incompatível de forma alguma com o conhecimento
herdado (ou redescoberto) dos antigos. A hipótese de que tenha seguido
ideais escolásticos bem localizados e precisos historicamente se reforça na
aproximação com temas caros a Aristóteles, Agostinho, decretistas e até,
por que não, temas apropriados pelos humanistas.
Apesar disso, o uso que faz das autoridades ainda é, em grande medi-
da, herdado da Alta Idade Média. É um uso em primeiro nível, constituído
pela concordância com uma opinião reputada, e expresso repetidas vezes
na palavra “doctores” ou na expressão “maestros del derecho”. Um uso em
segundo nível, já mais próximo de um uso “filosófico”, teria de esperar a
flexibilização da moral perpetrada pelo probabilismo, não por acaso con-
temporâneo da difusão do protestantismo – e, juntamente com ele, das crí-
ticas virulentas ao sacramento da confissão.
Ainda sobre esse uso em segundo nível, tanto é essa uma abordagem
estranha a Martín Pérez que é possível inferir que estava condenada no
próprio Libro, como no trecho em que o clérigo ameaça de excomunhão o
padre que atender a aulas de filosofia e física49 – o que está de acordo com
muitos teólogos de sua época.

* * *

Em conclusão, Martín Pérez não pode ser lido como um antecessor


ou precursor de novos tempos unicamente por percebermos nele indícios
de que a relação com a forma da doutrina e sua aplicação é deformada
através do processo de ensino-aprendizagem, que é necessariamente feito
no concreto, através do conhecimento das coisas em primeiro nível. Essa
realidade é a mesma que tantos outros autores de manuais e sumas para

49
“Oyen las leyes o la fisica” (GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 23). O termo “física” mais se
aproximaria da nossa medicina de hoje, equanto por “leyes” se entendem as aulas de filosofia
natural, e não o direito – isso que seria contraditório com a própria posição de Martín Pérez.
Muitos autores de sua época, e mesmo antes dele, condenaram os objetivos da filosofia natural
em suas obras, entre eles o dominicano Ramon Marti, que escreveu Pugeo Fidei por volta de
1275, baseando-se muito em Tomás de Aquino. Além dele, Raimundo Llullio, que teve atua-
ção profissional em Avignon e em Paris, e Alvaro de Toledo. Cf. GILETTI, 2004, p. 45-46.

272
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

confessores observaram, sendo que muitos outros também a perceberam


como algo transitório, imperfeito pela ação do pecado, e mutável pela ação
humana que busca (ou deveria buscar) o bem do próximo e de sua alma –
de maneira que muitos outros também tinham uma sociedade idealizada
em mente quando se punham a escrever. O que talvez torne o Libro de las
confesiones diferente (e adequado para essa análise) é a forma franca com
que empreende o enorme salto da teologia dos doutores para o universo
“menguado”50 dos confessores em suas paróquias, sem que se percam os
aspectos mais fundamentais de cada um durante o trânsito.
É difícil precisar em que medida há uma conscientização por parte
de Martín Pérez do movimento histórico de individualização que se refor-
ça com e através da confissão auricular individual; de qualquer forma, deve-
se considerar o contexto e os processos psicológicos “de fundo” que deter-
minam e são determinados pela atividade intelectual e sua circulação por
meios e espaços insuspeitos, como é o caso do Libro, que proporciona uma
ponte entre universos muito díspares e que, muitas vezes, podem nos ser
apresentados como não comunicantes pela historiografia.
O tratamento específico que Martín Pérez dá ao tema dos pecados
capitais permitiu a abertura de uma janela para esse universo das ideias e
para o cruzamento de leituras e de obras, mas poderíamos tomar os mes-
mos rumos partindo de lugares outros. A realidade que o canonista caste-
lhano busca compreender e/para modificar se prestaria à observação de
qualquer um que, “asi commo de ojo”, se lançasse ao desafio de sustentar
também em dados da experiência sua visão de mundo, ou, ao menos, com-
preender o mundo segundo princípios não mais inamovíveis51.
As ideias presentes no Libro são de um autor que leva a questão da
participação social da Igreja a um patamar mais adiante, faz a discussão
sobre o papel da experiência pessoal na doutrina religiosa avançar, propõe

50
GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 3.
51
Martín Pérez, acompanhando o desenvolvimento da corrente escolástica, em linhas gerais,
tende a ser mais religioso que os grandes dominicanos do século XIII, por sua vez sintéticos e
filosóficos. Sérgio Rábade Romeu defende que os escolásticos do século XIV dão fundamen-
tos teológicos para a filosofia, enquanto os dominicanos do século XIII elaboram fundamen-
tos filosóficos para a teologia. Martín Pérez estaria precisamente no ponto médio dessa mu-
dança. Segundo o autor, no século XIV se perdeu a vivência da fé, juntamente com a “atenen-
cia en el comportamiento moral al conjunto de normas que se consideraban inamovibles”
(ROMEU, Sérgio Rábade. Reflexiones en torno al pecado en la Edad Media. In: CARRASCO
MANCHADO, A. I.; RÁBADE OBRADÓ, M. P. (coords.). Pecar en la Edad Media. Madrid:
Sílex, 2008, p. 21.

273
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

mudanças e abrandamentos da lei em muitos casos, mesmo se não for in-


tencionalmente um partidário da readaptação da lei de Deus aos novos
tempos – atitude dos “laxistas” do período da Contrarreforma religiosa,
conforme Jean Delumeau.
Encontramos a sugestão ao confessor de buscar orientação no bispo
ou superior em casos de dúvida ou desacordo, assim como seguir o “uso” e
costume do lugar onde o confessor atua, ou ainda o uso da igreja local52; o
autor também fala dos pecados levando sempre em conta as consequências
desse saber para a vida dos penitentes (e omite tudo aquilo que o faria cair
em mais tentações, como nos casos da luxúria), ao mesmo tempo em que
ensina com certa minúcia as técnicas e dicas para se reconhecer exterior-
mente os pecados para saber evitar que eles tomem conta da consciência e
provoquem as intenções novas e pecaminosas dos homens simples – moti-
vo pelo qual António García y García defende para o Libro de las confesiones
uma repercussão maior nas consciências, em comparação com a fortuna
crítica escrita e comentada de sua obra, afinal, de seu público-alvo (pobres
confessores) raramente se originava uma obra manuscrita.
Numa passagem do prólogo, o canonista castelhano diz que escreve
os casos do livro “de fora do espaço”53, ou seja, usa o sujeito impessoal
jurídico e não dá nomes nem locais nem eventos concretos em seus inúme-
ros exemplos; porém, isso também significa que ele se pretende universal,
fazendo com que seus ensinamentos não se detenham (como ocorreu à sua
obra em termos materiais) geograficamente à Península Ibérica.
Em tempos de mudanças significativas na forma de expressão da re-
ligiosidade e no engendramento delas em relações sociais novas (tanto em
cenário quanto pelos seus atores), não seria de surpreender que Martín Pé-
rez tivesse a sensibilidade de perceber o caráter “vivo” e mutacional de seu
legado. Ele é, ao mesmo tempo, contemporâneo, testemunha e ratificador
do esfacelamento das ordens e sua transformação em “estados”, um novo
mundo se configurando com novas práticas comerciais, novas técnicas,
multiplicação dos manuscritos e dos cargos letrados; as dúvidas inéditas já
não encontram nas formulações dos Padres da Igreja a segurança de outro-

52
Para um exemplo: “en tal caso sabe commo usa la Iglesia, e asi usa tu en las confesiones”
(GARCÍA Y GARCÍA et al., 2003, p. 221).
53
“Onde, por eso fueron en este libro las sentençias de la santa Escriptura e los derechos escrip-
tos de fuera en el espaçio, por que el entendimiento del leedor benivolo sea pagado con el
testimonio de la verdat [...]” (ibid., p. 5).

274
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

ra. Há um sentido histórico no processo que atribui a novos tipos de pecado


a atenção a leis e constituições vindouras da Igreja, fazendo-se necessárias
novas anotações nas margens de seu livro:
E porque la maliçia de los omes levanta sienpre nuevas contiendas e estrañas
maneras de pecar e muchas sotilezas para los pecados defender [...], por
tanto se acresçientan cada dia nuevas constituçiones e nuevas leyes para las
sotilezas maliçiosas refrenar, e para las opiniones tenebrosas amatar.54

Estamos diante de uma pessoa que se atribui ainda uma tarefa seleti-
va muito clara e digna, em vários pontos comparável à de Graciano com
sua “Concordância de cânones discordantes” de 1140: fornecer verdade de
doutrina para que os cristãos tenham “en sus casas los granos del trigo linpio,
sin las pajas e sin las aristas de la disputaçion”55 e instrumentalizar a hierar-
quia clerical contra as justificativas – “opiniones tenebrosas” – que os peca-
dores encontram para não baixarem suas cabeças em humilde arrependi-
mento. Esse é um ponto de flexão comparativa que permanece em aberto.
Também a questão dos empréstimos entre vários sistemas de pensa-
mentos que se entrecruzam não necessita conclusão final e absoluta, a não
ser a de que Martín Pérez, como qualquer outra pessoa, configura uma
visão de mundo apropriando-se de ideias e concepções que lhe sejam aces-
síveis e lhe pareçam coerentes, muitas vezes não importando que tenham
sido forjadas muito distantes em tempo, espaço e objetivos. Inclusive na
contradição pode existir alguma lição. No Libro de las confesiones há espaço
para tudo isso – e, enquanto a trajetória do corpo do clérigo permanece
obscura, resta-nos acender luzes nos caminhos percorridos por sua mente.

Referências
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BOURDIEU, P. Lições da aula. São Paulo: Ática, 1988.

54
Ibid., p. 9.
55
Ibid., p. 4.

275
SCHULZ, Marcos • Experiência e autoridade no Libro de las confesiones de Martín Pérez (1316)

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Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

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277
278
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados


em Portugal no reinado de D. Dinis (1279-1325):
os limites do perdão

Cassiano Malacarne

No século XIII, Portugal teve dois reis que se destacaram no proces-


so de centralização política, que aos poucos vai transformando a monar-
quia feudal até que finalmente, no século XV, se transforme numa monar-
quia absolutista. Como se sabe, nisso ocorrem conflitos em termos de juris-
dição e autoridade entre os reis e os senhores e prelados, ou seja, tanto um
conflito contra a nobreza quanto contra autoridades religiosas. A política
de D. Dinis insere-se, portanto, nesse contexto, mas também em um con-
texto no qual a Igreja viveu dois momentos. No primeiro momento do rei-
nado de D. Dinis, a autoridade de Roma era ainda muito forte, porque ela
passava ainda pela fase gregoriana. Essa fase começou no século XI, aos
poucos, ainda antes do Papa Gregório VII, e se estende até o fim do ponti-
ficado do Papa Bonifácio VIII, ou seja, até iniciar o século XIV e a segunda
metade do reinado de D. Dinis. Isso não se refletiu numa imediata transfor-
mação nas relações com Roma, porque, como vimos noutro lugar1, D. Di-
nis encontrou muitas dificuldades até conseguir realizar seu intento quan-
do da extinção da Ordem dos Templários e da criação da Ordem de Cristo.
O que se percebe, todavia, é, a partir de então, uma relativa falta de prote-
ção de Roma aos bispos nas contendas com D. Dinis.
Os conflitos com Roma são de longa data e vêm desde a época de D.
Sancho II, um rei que foi muito acusado de não saber aplicar a justiça,
princípio básico de qualquer rei em qualquer época antes da era contempo-
rânea. Por isso, os papas o aconselharam e o advertiram pelos males que ele
vinha causando à população do reino, desprotegida, e também ao clero,

1
MALACARNE, C. A prática do direito no direito adversário: as infrações institucionais de D.
Dinis às Leis Canônicas (1279-1325). 2008. Dissertação (Mestrado em História) – UFRGS,
Porto Alegre, 2008, p. 87-98.

279
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

atacando as suas imunidades eclesiásticas garantidas pelo direito canônico.


Não surtindo efeitos, ele acabou sendo deposto no concílio de Lyon (1245)
pelo Papa Inocêncio IV e, em seu lugar, acabou sendo entronizado o seu
irmão, como D. Afonso III. Apesar de este ter firmado o Juramento de
Paris, que prometia cumprir o que seu irmão tinha descumprido, ele vai
acabar seguindo pelo mesmo caminho mais adiante em seu reinado. Sem
relatar aqui as diversas admoestações dos papas a esse rei e também as quei-
xas levadas pelos bispos até Roma, que foram se somando, a ponto de,
quando iniciar o governo de D. Dinis, totalizarem 51 artigos das mais va-
riadas naturezas (principalmente sobre a imunidade fiscal, imunidade judici-
al, jurisdições e usurpações de propriedades eclesiásticas, tratando ainda de
infrações ao direito de asilo nas igrejas, violências ao clero, propriedade do
subsolo, etc.), vamos estudar aqui uma dessas queixas, o não respeito ao
direito de asilo, garantido tanto pelo direito canônico quanto pelo romano
e pelos costumes da Cristandade.
Essa queixa aparece nas três concordatas realizadas com os bispos do
reino, em 1289 (divididas em duas partes), 1292 e 1309, sendo que somente
aquelas de 1289 poderiam a rigor ser chamadas de concordatas, porque
foram as únicas sancionadas por Roma. As demais, na verdade, em grande
parte repetiam as queixas de 1289 e que vinham desde a época de D. Afon-
so III (mas que D. Dinis demorou quase 10 anos de seu reinado para chegar
a um acordo e com pontos que nem sempre agradavam nem a D. Dinis e
nem ao clero). Nessas concordatas, reclama a clerezia que o soberano in-
fringe o direito de refúgio daqueles que se acolhem às igrejas e demais lo-
cais sagrados, retirando-os dali por força, utilizando-se de mouros e judeus
que não temeriam as sanções canônicas, ou retirando esses mesmos mou-
ros e judeus que buscavam asilo nas igrejas (somente em 1309 e conforme a
versão das concordatas que se for adotar, conforme veremos). Vejamos o
histórico dos reveses da extensão ou limitação desse direito desde a primei-
ra vez que foi regulamentado no império romano. Seguiremos a descrição
dada por L. R. Misserey2, que se deteve mais na evolução desse dispositivo
na Europa da Alta e Baixa Idade Média, e de E. Herman3, que se preocu-
pou com as origens mais remotas no Império Romano, além de sua aplica-
ção na Igreja Cristã Oriental.

2
MISSEREY, L. R. Asile en Ocident. In: Dictionnaire de Droit Canonique. Paris: Librairie Letou-
zey et Ané, 1935. v. I, col. 1089-1104.

280
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Cremos que o costume de se buscar abrigo nos templos cristãos é


algo que vem, ao menos principalmente, da tradição e leis judaicas, ainda
que geralmente os autores se refiram também às tradições pagãs gregas e
romanas que garantiam o asilo em templos e estátuas sagradas. Mas, fonte
básica do cristianismo, o Antigo Testamento relata que os perseguidos polí-
ticos buscavam salvação sob o altar, seja do Tabernáculo, seja ali ainda,
mas dentro do templo, após a construção do Templo de Jerusalém. As crô-
nicas possuem menções do tipo “e morreu agarrado ao altar” ou “escondeu-
se no altar”. Essa origem parece-nos tanto ou mais verossímil que sua relação
pagã, dado que os primeiros líderes do cristianismo eram judeus e seguiam
muito da lei judaica. Um exemplo é essa passagem localizada por nós:
Adonias, temendo Salomão, levantou-se também e foi abraçar-se com os
cornos do altar. Disseram-no a Salomão, nestes termos: Eis que Adonias,
temendo o rei Salomão, foi abraçar-se com os cornos do altar, dizendo: Jure-
me hoje o rei Salomão que ele não fará morrer o seu servo à espada! Se ele se
mostrar um homem valente, respondeu Salomão, não lhe cairá por terra um
só de seus cabelos; mas se nele se encontrar maldade, morrerá. O rei Salo-
mão mandou mensageiros, e o fizeram descer do altar. Ele veio e prostrou-se
diante do rei, que lhe disse: Volta para a tua casa.4

Repare-se no juramento que o asilado pediu para que fosse garantida


a sua vida, semelhante ao asilo no mundo cristão. Ou ainda:
Quando chegou esta notícia a Joab, que tinha seguido o partido de Adonias,
embora não tivesse seguido o de Absalão, ele fugiu e refugiou-se no taberná-
culo do Senhor, agarrando-se aos cornos do altar.5

As leis sobre as cidades de refúgio, estabelecidas segundo a doutrina


bíblica antes da construção do Templo de Jerusalém, indicadas por Enri-
que Undabarrena6, também possuem a mesma lógica, uma vez que todo o
solo de Israel era tido como sagrado, porque no meio de seu povo habitava
o Senhor:
Aquele que ferir mortalmente um homem, será morto. Porém, se nada pre-
meditou, e Deus o fez cair em suas mãos, eu lhe fixarei um lugar onde possa
refugiar-se.7

3
HERMAN, E. Asile dans l’Église Orientale (Le Droit d’). In: Dictionnaire de Droit Canonique.
Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1935. v. I, col. 1084-1089.
4
1Reis 1,50. Bíblia Ave Maria. Todas as consultas feitas em: Bíblia Católica Online. Disponível
em: <http://www.bibliacatolica.com.br>.
5
1Reis 2,28. Bíblia Ave Maria.
6
UNDABARRENA, Enrique Vivó. “Utrumque lus”: La institución del Derecho de Asilo. Bole-
tín de la Facultad de Derecho, n. 4, p. 210, 1993.
7
Êxodo 21,12-13. Bíblia Ave Maria.

281
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

[...] reservarás três cidades no meio da terra cuja posse o Senhor, teu Deus,
te dá. Farás estradas que conduzam a elas e dividirás em três partes a terra
que te dá o Senhor, teu Deus, a fim de que todo homicida possa encontrar
refúgio nessas cidades. Eis a regra a seguir para o homicida que ali se refugi-
ar, procurando salvar sua vida. Se matou o seu próximo por inadvertência,
sem ódio prévio, como, por exemplo, se ele tiver ido à floresta com outro
cortar lenha e, no momento de brandir o machado para abater a árvore, o
ferro se tenha deslocado do cabo e ferido mortalmente o seu companheiro,
esse homem refugiar-se-á em uma dessas cidades para salvar sua vida. De
outra forma, o vingador do sangue, no ardor de sua cólera, poderia perse-
guir o homicida e, se o caminho fosse muito longo, atingi-lo para dar-lhe o
golpe mortal. Entretanto, esse homem não merece a morte, pois que não
tinha ódio da vítima.8
O Senhor disse a Moisés: [...] “Dize aos israelitas: quando tiverdes passado
o Jordão e entrado na terra de Canaã, escolhereis cidades de refúgio onde se
possam retirar os homicidas que tiverem involuntariamente matado. Elas
vos servirão de asilo contra o vingador de sangue, de sorte que o homicida
não seja morto antes de haver comparecido em juízo diante da assembleia.
Serão em número de seis as cidades que destinareis a esse fim. [...] Serão
cidades de refúgio, e servirão aos israelitas, aos peregrinos e a qualquer ou-
tro que habite no meio de vós, para ali encontrar asilo quando houver mata-
do alguém por descuido. [...] então a assembleia julgará entre o homicida e
o vingador de sangue de acordo com estas leis. A assembleia livrará o homi-
cida da mão do vingador de sangue e o reconduzirá à cidade de refúgio onde
se tinha abrigado. Permanecerá ali até a morte do sumo sacerdote que foi
ungido com o santo óleo. [...] Não manchareis a terra em que ides habitar,
onde também eu habito, porque eu sou o Senhor, que habito no meio dos
filhos de Israel.”9

Parece-nos que, além do grande pecado ocasionado pelo assassinato


de inocentes em solo sagrado de Israel, também era determinante para exis-
tirem cidades de refúgio a ausência nessa época do Templo de Jerusalém, o
único templo do povo judeu. Mas, acima de tudo, a proteção ao algoz sem
culpa por um tempo prolongado só seria possível em um local maior. E
essa proteção era dada após um julgamento realizado por uma assembleia,
onde porventura deveriam ser apresentadas as provas10.

8
Deuteronômio 19,2-6 (e por todo o capítulo). Bíblia Ave Maria.
9
Números 35,9-13.15.24-25.34. Bíblia Ave Maria.
10
As cidades de refúgio bíblicas, ainda que não se tratasse de locais sagrados, invocavam essa
sacralidade do solo israelita. Em Portugal existiam os coutos de homiziados, que lembram um
tanto essas cidades de refúgio, mas com muitas diferenças. Segundo Margarida Garcez Ventu-
ra (VENTURA, Margarida Garcez. Os coutos de homiziados nas fronteiras com o direito de
asilo. Revista da Faculdade de Letras [História], Porto: Universidade do Porto, II série, v. XV,
tomo I, p. 601-625, 1998), abrigavam criminosos mesmo e não apenas aqueles que matavam
sem intenção (que diferenciamos no nosso direito em dolo, sem dolo, dolo eventual), que
vemos aqui no caso bíblico, e os reis utilizavam muitas vezes quase as mesmas regras canôni-

282
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

As primeiras leis no mundo cristão romano (referidas em latim como


asylum ou confugium) teriam surgido bem depois das práticas já serem cor-
rentes no império católico e apenas regulamentariam tal costume. Em um
decreto ainda de 392, dado pelo imperador Teodósio (do Império Romano
do Oriente), proibia-se o refúgio às igrejas para os devedores públicos, su-
bentendendo-se o reconhecimento de outros tipos de asilo nas igrejas11.
Teodósio II (408-450, também do Império do Oriente) estabelece, em 431,
uma lei que seria a base legislativa da Igreja Oriental e Ocidental por muito
tempo. O direito se estende a todos os anexos dos templos: casas, jardins,
banhos, praças, pórticos12. Mas a regulação das normas só seria dada pelo
imperador Leão I, que incluiu diversos complementos à referida lei. Para se
usufruir do benefício, não se poderia ser um infiel, herético ou judeu13. Os
homicidas, adúlteros e os violadores de virgens são excluídos do benefí-
cio14. Os escravos ou indivíduos submetidos a alguém, que eram fugitivos,
poderiam ser recebidos nas igrejas, mas com a condição de que fossem avi-

cas que eram aplicadas aos locais sagrados (ibid., p. 625, e conforme Ordenações Afonsinas, no
livro 5, título 118, § 1 e seguintes). Localizavam-se geralmente nas fronteiras como um meio
de colonização da terra e de defesa nas guerras contra os castelhanos. Outra diferença funda-
mental é que geralmente serviam como local de cumprimento de sentença e não de local de
refúgio, ainda que tenham sido registrados casos de pessoas que fugiam para lá. No período
moderno o Brasil todo se torna um couto de homizio, local de pena para os degredados portu-
gueses (COSTA, Emília Viotti da. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degreda-
dos. Revista Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação da UnB. Disponível
em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/textos/search/result>. Acesso em: set. 2012). Na carta
de doação da capitania do Espírito Santo se determina que ali pudessem se refugiar crimino-
sos que teriam cometido crimes em outras capitanias, perseguidos pela justiça (FREIRE, Fe-
lisbello. Historia Territorial do Brazil. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1906, v. 1 [Bahia,
Sergipe e Espirito Santo], p. 367-368, direito concedido a Fernandes Tourinho em carta régia
de 1534). Isso coloca a capitania não como um local de cumprimento de sentença judicial,
mas como um local de refúgio, e não de inocentes, como determina a Bíblia, mas de crimino-
sos de qualquer espécie. Vê-se que a necessidade de colonizar a terra (sede de riquezas) ofusca
a obrigação de se aplicar justiça, quando muitos desses criminosos poderiam ser assassinos
intratáveis ou criminosos sexuais.
11
HERMAN, 1935, col. 1085, (Cod. Teod. I, tít. 45, lei 1); UNDABARRENA, 1993, p. 209-232.
12
HERMAN, 1935, col. 1085 (Cod. Teod. I, IX, tít. 45, lei 4); UNDABARRENA, 1993, p. 211.
13
HERMAN, 1935, col. 1086 (Nov. 37; Cod. 1.12.1); UNDABARRENA, 1993, p. 211. A edição
do Corpus Iuris Civilis consultada é: Cuerpo del Derecho Civil Romano. A Doble Texto, traducido
al Castellano del Latino. Publicados por los hermanos Kriegel, Hermann y Osenbrüggen; con
variantes de las principales ediciones antiguas y modernas y con notas de referencias por Ilde-
fonso L. García del Corral. Barcelona: Reimpressão do original publicado por J. Molina, 1889-
1898, pela editora Lex Nova [1988?], 6 volumes: v. 1, pt. 1 - Instituta. - Digesto, v. 2, pt. 1 -
Digesto, v. 3, t. 3, pt. 1 - Digesto, v. 4, t. 1, pt. 2 - Código, v. 5, t. 2, pt. 2 - Código, v. 6, pt. 3 -
Novelas.
14
Nov. 17.7 pr.; Nov. 37.

283
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

sados os seus senhores e, após receberem destes um juramento de impuni-


dade, os refugiados deveriam sair15. Os governadores de província e os de-
vedores públicos, ou seja, aqueles que não pagam seus impostos, não ti-
nham assegurado o benefício16. E os devedores de pessoas particulares seriam
amparados, desde que pagassem seus credores17. Os violadores do direito
de asilo seriam considerados como culpados do crime de lesa-majestade,
ou seja, sofreriam a pena capital.
Abatido o Império Ocidental18, trata a Igreja de regulamentar me-
lhor esse mecanismo jurídico, seja para lembrá-lo ou aperfeiçoá-lo. O De-
creto de Graciano (c. 1140), uma compilação canônica que se tornou oficial
mais tarde, compila a regra do mais antigo concílio que trata do tema após
o fim do Império Romano do Ocidente como sendo o de Orange em 44119.
A questão 4 da causa 17 é, em grande parte, voltada a esse tema, como
vemos na pequena descrição a seguir. No Concílio de Orléans (511), esta-
belece-se que não se podem retirar os homicidas, adúlteros, ladrões, rap-
tores e servos fugidos refugiados quer nas igrejas, no seu átrio, quer na
residência do bispo, antes de se ter feito um juramento de impunidade

15
Cod. 1.12.6.
16
Edit. 1; Nov. 17.7. § 1.
17
Cod. 1.12.2.
18
Cod. 1.12.2,6. Após essas leis, os imperadores do Império Romano do Oriente continuaram a
legislar sobre a matéria, mas suas normas não influenciaram o Ocidente. Exemplo é o acrésci-
mo nessa lista daqueles que atentavam contra a vida dos basileus, valendo, assim, a lei apenas
para os gregos ( P. G. t. XCVII, col. 713), após Justiniano já ter feito sua compilação há muito
tempo. Existindo ainda imperadores no lado oriental, a Igreja apenas legislava o que já havia
sido legislado pelos imperadores, mas estes, por sua vez, seguiam os costumes eclesiásticos
(HERMAN, 1935, col. 1087-1088). Segundo Herman, era muito comum as crônicas registra-
rem, no quadro das disputas políticas no Império Bizantino, que o partido vencido buscasse
asilo nas igrejas (se não se salvando sempre, ao menos atenuando a punição), algo semelhante
ao que ocorria no Israel bíblico. De acordo com o autor, o direito de asilo no lado oriental está
registrado em várias partes do Império, como em Constantinopla (incluindo um registro do
imperador Teófilo, 829-842 – em Theophanes Continuatus, Bonn, 1838, p. 108 – que decretou
que o túmulo de sua filha usufruiria de tal imunidade), no Egito, na Síria e na Ásia Menor.
Contudo, não teria deixado marcas em seus herdeiros, como na Rússia e na Sérvia do período
medieval, sem nenhum registro de ocorrência (ibid., 1085, 1087-1088), o que, acreditamos,
não prova a sua inexistência, porque parece ser um costume muito amplo no mundo cristão.
19
D. 87 c. 6. A edição do Corpus Iuris Canonici utilizada é: Corpus juris canonici emendatum et notis
illustratum. Gregorii XIII. pont. max. iussu editum. 3 parts in 4 volumes. Part I, in 2 volumes:
Decretum Gratiani; Part II: Decretales d. Gregorii papae IX; Part III: Liber sextus Decretalium d.
Bonifacii papae VIII; Clementis papae V. Constitutiones; Extravagantium viginti d. Joannis papae XXII
tum communes. Romae: In aedibus Populi Romani, 1582. Disponível como fac-símile em: UCLA
(University of Califor nia, Los Angeles), Digital Librar y Program. <http://
digital.library.ucla.edu/canonlaw>.

284
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

diante dos Evangelhos. Quem agisse contra, aplicando castigos, poderia


ser excomungado20.
No Concílio de Toledo (681), o território considerado imune se es-
tende a 30 passos em volta das igrejas, um espaço necessário para que os
refugiados pudessem fazer suas necessidades naturais, segundo o cânone21.
Mas, posteriormente, uma decretal do papa Nicolau II (1059-1061) estipu-
lou que as igrejas catedrais teriam a imunidade de 40 passos, enquanto que
as menores de 30 passos. E, segundo o glosador dessa decretal, João da
Teotônia, citando outros capítulos dessa questão (C.17 q.4 c.21 e 41), exce-
tuavam-se as capelas dos castelos por causa de tamanho reduzido do espa-
ço em volta22.
Temos, portanto, uma grande diferença entre as leis romanas e as leis
eclesiásticas muito mais brandas. Ao mesmo tempo, as leis dos nascentes
reinos cristãos livravam esses criminosos da pena de morte em troca de
compensações às vítimas23. Como veremos, algo muito oposto ao que futu-
ramente esses reinos desenvolvidos farão para atacar essas normas, quando
do renascimento da aplicação do direito romano. Seguiram-se vários ou-
tros concílios, decretais e uma capitular de Carlos Magno (séculos V-IX)
que repetiam essas mesmas regras ou aperfeiçoavam as normas.
As Decretais de Gregório IX reúnem decretais que fazem uma certa
ruptura com o período anterior. Ali se encontram os primeiros casus excepti
que a Igreja enuncia. Esses foram estabelecidos por Inocêncio III (1198-
1216), que diz que estão excluídos do benefício do asilo os bandidos públi-

20
MISSEREY, 1935, col. 1089-1090 (C.17 q.4 c.36).
21
MISSEREY, 1935, col 1090-1091; UNDABARRENA, 1993, p. 214 (C.17 q.4 c.35).
22
UNDABARRENA, 1993, p. 214 (C.17 q.4 c. 6 e Glosa ad C.17 q.4 c. 6 ad verbum passus. O
glosador cita Santo Isidoro de Sevilha, para o qual 1 passo equivaleria a 5 pés e 1 pé a 15
dedos).
23
MISSEREY, 1935, p. 1089 (C.17 q.4 c.36). O autor cita exemplos de leis dos burgúndios, dos
visigodos da Península Ibérica, bávaros e alamanos. Exemplo na lei dos burgúndios: os viola-
dores poderiam se livrar de sua pena pagando 12 soldos à vítima. O homicida deveria entregar
a metade de seus bens e se colocar a serviço dos parentes do defunto. Escravos deveriam pagar
de 50 a 100 soldos, conforme sua função profissional. Entre os visigodos: os assassinos se
livram da pena capital, mas todos os seus bens vão para a família da vítima ou para o Estado.
Sobre os visigodos da Hispânia ainda acrescenta Fortunato de Almeida (ALMEIDA, Fortu-
nato de. História da Igreja em Portugal. Coimbra: Imprensa Académica, 1910, v. I, p. 64) que
tinham direito apenas os servos maltratados por seus amos, os devedores e os delinquentes. Os
servos só deveriam sair do templo após ter sua segurança garantida por um juramento. Os
homicidas teriam, na verdade, seus olhos arrancados ou se tornavam servos da família da
vítima. Sobre os mesmo visigodos Undabarrena (1935, p. 212) diz que a Lex Wisigothorum (VI,
518) previa que, se a vítima fosse um parente, o assassino deveria entregar todos os seus bens
à família ou ao Fisco na ausência da família e ser desterrado perpetuamente.

285
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

cos, os devastadores noturnos dos campos, os salteadores de grandes cami-


nhos que atacam os viajantes24. De uma decretal enviada ao rei da Escócia,
em 1200, sobre uma questão de direito canônico, ela ganhou caráter uni-
versal quando foi incluída (apenas com os trechos mais importantes) nas
Decretais de Gregório IX, em 1234. E, em uma decretal de Gregório IX (1227-
1241), foram acrescentados ainda a essa exclusão os homicidas e mutilado-
res em locais sagrados25.
A decretal de Inocêncio III, chamada Inter alia, pelo que pudemos
perceber, é a que mais regulava o direito de refúgio na época de D. Dinis.
Isso porque, enquanto as diversas citações sobre o assunto contidas no De-
creto de Graciano estão fragmentadas em diversas resoluções conciliares, a
Inter alia é um tanto mais geral. Além do mais, como veremos, é a única que
é citada por D. Egas. Também, principalmente, está entre as mais atualiza-
das, porque enuncia os casus excepti:
[...] Tuis quaestionibus respondentes iuxta sacrorum statuta canonum et tra-
ditiones legum ciuilium, ita duximus in huismodi distinguendum: quod fu-
giens ad ecclesiam, aut liber, aut seruus exsistit. Si liber, quantumcunque
grauia maleficia perpetrauerit, non est violenter ab ecclesia extrahendus: nec
inde damnari debet ad mortem, vel ad poenam, sed rectores ecclesiarum sibi
obtinere debent membra et vitam. Super hoc tamen quod inique fecit, est
alias legitime puniendus: Et hoc verum est, nisi publicus latro fuerit, vel noc-
turnus depopulator agrorum, qui dum itinera frequentata, vel publicas stra-
tas obsidet aggressionis insidiis, ab ecclesia extrahi potest, impunitate non
praestita, secundum canonicas sanctiones. Si vero seruus fuerit, qui confu-
gerit ad ecclesiam: postquam de impunitate sua, dominus eius clericis iura-
mentum praestiterit, ad servitium domini sui redire compellitur etiam inui-
tus: alioquin a domino poterit occupari 26.

24
Mas Gama Barros (BARROS, Henrique da Gama. História da Administração Pública em Portu-
gal. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1885, t. I, p. 332-333) informa que ainda no Concílio de
Oviedo de 1115 (can. III) havia sido estabelecida uma exceção para os servos, ladrões públi-
cos, traidores convictos e excomungados publicamente.
25
Ibid., col. 1092. Leis citadas nas notas seguintes.
26
X 3.49.6. “[...] Respondendo às tuas questões, de acordo com os estatutos dos cânones sagra-
dos e as tradições das leis civis, deste modo entendemos que deve ser distinguido: se quem foge
para a igreja é livre ou é servo. Se é livre, por mais que tenha perpetrado um grave malefício,
não deve ser retirado violentamente da igreja, nem por isso deve ser condenado à morte ou à
punição; mas os reitores das igrejas devem lhe preservar os membros e a vida. Porém, com
relação a isso, o que fez de mal deve ser legitimamente punido de outro modo; e isto em
verdade é, a não ser que seja um ladrão público, ou devastador noturno dos campos, uma vez
que ataca com emboscadas de assalto os caminhos frequentados ou as estradas públicas; pode
ser extraído da igreja sem prestar [juramento de] impunidade segundo as sanções canônicas.
Se, porém, for um servo que tiver se refugiado na igreja, depois que o seu senhor tiver prestado
um juramento de impunidade aos clérigos, é compelido a retornar para a servidão do seu
senhor, ainda que constrangido, do contrário poderá ser capturado pelo senhor.”

286
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

E como dissemos, depois de Inocêncio III, legislando sobre o nosso


período de estudo, somente Gregório IX, numa decretal dirigida aos arce-
bispos de Toledo e de Compostela (com algumas dioceses sufragâneas por-
tuguesas), é que vai acrescentar mais uma exceção ao direito de refúgio27:
os criminosos que cometem um homicídio ou que mutilam pessoas nas
igrejas ou nos cemitérios:
[...] Nonnulli impunitatem suorum excessuum, per defensionem ecclesiae ob-
tinere sperantes homicidia, et mutilationes membrorum, in ipsis ecclesijs, vel
earum coemiterijs committere non verentur: qui, nisi per ecclesiam, ad quam
confugiunt, crederent se defendi, nullatenus fuerant commissuri: et infra. Cum
in eo, in quo delinquit, puniri quis debeat: et frustra legis auxilium inuocet, qui
committi in legem: Mandamus, quatenus publice nuncietis, tales non debere
gaudere immunitatis priuilegio, quo faciunt se indignos.28

Essa decretal (Immunitatem ecclesiasticam) se tornou lei geral na cris-


tandade quando foi incluída nas Decretais de Gregório IX. Contudo, a Inter
alia é a única decretal que é referida por D. Egas, bispo de Viseu em Portu-
gal, na Summa de Libertate Ecclesiastica29 (1311). Trata-se de um compêndio
sobre as imunidades fiscais, judiciais e outras questões de disputa de foro
com os tribunais seculares. Segundo Antonio García y García30, o respon-
sável por descobrir esse manuscrito, esse bispo participou numa das con-
cordatas com D. Dinis, em 1292, e sua obra parece ser uma manifestação
do seu descontentamento. Ainda que o trabalho do prelado tenha sido ape-
nas o de classificar as leis que dissessem respeito às liberdades da Igreja, a
forma como ele as selecionou pode revelar algo sobre sua visão da situação
de respeito ou não ao direito de asilo em Portugal (sem mencionarmos o seu
caráter didático, que era o seu objetivo ao escrever a suma). Diz o bispo:
Ecclesie uero et monasteria ac eorum cimiteria habent immunitatem ut qui-
cumque, siue liber siue seruus, timore mortis uel cruciatus corporis, ad ea
confugerit, non extrahatur, nec ibi ei iniuria inferatur, nisi sit publicus latro

27
MISSEREY, 1935, col. 1092-1093.
28
X 3.49.10. “[...] Alguns, esperando obter a imunidade de seus crimes através da proteção da
igreja, não temem cometer homicídios e mutilações de membros nas mesmas igrejas e cemité-
rios delas, os quais, se não fosse a igreja na qual se refugiaram crendo serem defendidos, de
nenhum modo teriam cometido, et infra. Visto que aquele que delinque deve ser punido naque-
la delinquência, e invocará em vão o auxílio das leis aquele que cometeu [crimes] quando
estava sob o abrigo da lei: Mandamos que publicamente anuncieis que tais não devem usufruir
do privilégio da imunidade, da qual se fazem indignos.”
29
D. EGAS (Bispo de Viseu). Summa de Ecclesiastica Libertate. In: GARCÍA Y GARCÍA, Anto-
nio. Estudios sobre la Canonistica Portuguesa Medieval. Madrid: Fundación Universitária Españo-
la, 1970, p. 219-281.
30
Ibid., p. 226-227, 232.

287
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

uel nocturnus depredator et depopulator agrorum, ut extra de immunit. ec-


cles. Inter alia. Si quis uero uiolator eorum stiterit, sacrilegium committit et
pena sacrilegii punietur [...]31.

D. Egas não cita a decretal do papa Gregório IX e, por isso, restringe os


casus excepti e teoricamente amplia a sua jurisdição da justiça. Mas é imprová-
vel existir alguma intenção de omitir a exceção outorgada por Gregório IX.
Outro ponto é que, se D. Egas abre espaço em sua obra para tratar
desse assunto, é porque entendia que era um direito que era descumprido
na época de D. Dinis. De fato, os bispos reclamaram do desrespeito a esse
direito em 1289, 1292 e 1309. As autoridades eclesiásticas defenderam-se
contra as determinações centralistas da justiça de D. Dinis, que atacava um
mecanismo religioso que subtraía de sua justiça os criminosos fugitivos,
contra os quais ele empreendeu uma grande “caçada”32, desde o início de
seu reinado, até quando seu filho rebelde abrigava esses fugitivos33. Deve-
mos ter em conta que, além de subtrair os criminosos da justiça do rei34,
eram as autoridades religiosas que decidiam se o refugiado tinha ou não
direito ao asilo. Apesar de a Igreja não passar a ser a nova juíza da culpabi-
lidade do indivíduo refugiado, ela é que decidia sobre a concessão de asilo
ao criminoso ou ao fugitivo comum35. E ainda acrescentamos uma consta-

31
Summ. de Libert. Eccl. p. 268. “As igrejas e os monastérios e também seus cemitérios têm
imunidade para todo aquele que, seja livre, seja servo, por temor da morte ou tortura do corpo,
que tenha se refugiado neles, não seja removido, nem nesse lugar lhe seja aplicada injúria, a
não ser que seja ladrão público ou pilhador noturno ou devastador dos campos31, como extra
de immunit. eccles. Inter alia [X 3.49.6]. Se alguém, porém, apresentar-se como violador dessas
propriedades, comete sacrilégio e com pena de sacrilégio será punido [...].”
32
A Crónica de 1419 (Crónica de D. Dinis [extrato da Crónica de 1419]. Edição crítica por Carlos
da Silva Tarouca. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947) diz: “Espiçialmente trabalhou
loguo de fazer justiça e auer a mão todos os ladrões que andauom no Regno em çertos lugares,
em que ladrões pruviquos andauom e cerquadores de camjnho, que podiom ser tomados, e
como erom presos, loguo desembargados. E faziom em eles justiça, por tal gujsa que os casti-
gou, que não forom nehums majs ousados de se aly majs acolherem em seus dias deste Rey,
pera malfazerem. E não tam soomente justiças, que todos aujão delas temor e reçeyo, e como
algum fazia tal que mereçese morte, tampouquo lha guardauom, que sempre as forquas erom
pouoadas de malfeytores” (p. 77-78). No caso, se esses ladrões de caminhos buscassem refú-
gio, a Igreja não concederia, mas se se tratasse de outros casos, a determinação da Coroa em
acabar com os bandidos certamente iria contra a facilidade que encontravam para se livrar das
penas abrigando-se em locais sagrados.
33
Crón. 1419, p. 198. “E el Rey auya grão pesar e noja pelo acolhjmento que ho Jffante daua aos
malfeytores, e porque muytos que ele degradaua, se yom pera ele e andauom em sua compa-
nha; e era esto de tal manejra que os do Jffante tomauon ousamça de fazer o que queryom, e
el Rey não podia deles fazer justiça, nem doutros muytos malfeytores que se yom ao Jffante.”
34
Os refugiados adquiriam o benefício de um juramento de impunidade de atenuação da sua
pena, que não se converteria em pena de morte ou outra que atingisse o corpo.
35
MISSEREY, 1935, col. 1099-1100.

288
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

tação nova, o fato de o asilo conceder garantias ao criminoso que somente


o monarca, se benevolente, seria capaz de conceder antes de o indivíduo se
refugiar no local sagrado.
Vejamos os casos de desrespeito a esse direito no período por nós
abordado. Em 1289, afirmam os prelados:
Que ElRey dos que se colhem, e fogem aas Igrejas em aquelles casos, em os
quaaes devem seer defendidos pelas Igrejas, tira-os hende per força, e faze-
os tirar dellas per Mouros, ou per Judeus, ou per Chrisptaãos, ou os faz
guardar nas, ou metem-lhes os ferros aas vegadas [as vezes] per seus Sergen-
tes, tolhendo-lhes de comer, em tal que se sayam das Igrejas36.

A resposta do rei salvaguarda o direito de refúgio, “senom em aque-


lles casos, que for direito”. Em 1292, a queixa volta a aparecer, e o sobera-
no pronuncia:
Mando, e defendo, que aquelles, que se colherem aas Igrejas, que os nom
tirem ende senom como he de direito, e em as nossas Hordenaçoões he con-
theudo37.

Esse trecho é revelador da grande desobediência ao direito da Igreja:


“senom como he de direito, e em as nossas Hordenaçoões he contheudo”.
Que leis anteriores regulamentavam o direito de refúgio? Temos conheci-
mento de uma única regra estabelecida por D. Dinis em 1286, ainda antes
da primeira concordata:
Conheçam todos os que este estormento virem e ouvyrem, que eu Roderigo
Abril, Tabeliam d’Elrrey na Cidade de Lamego, vy e ly huma carta de meu
Senhor Elrrey, seelada de seu verdadeyro seelo [...].
Dom Deniz, pela graça de Deos Rey de Portugal e do algarve, a todolos
Alcaydes, Meirinhos, Comendadores, Juizes, Alvazys, Alcades, Justiças, e
Concelhos do meu Reyno, sahude. Mando-vos, que nam prendades nenhum
Clerigo por couza que faça, salvo se acaecer que faça cousa, por que meres-
ca morte, ou penha [pena] em seus corpos, filhadeos [tomai-os], e dadeos
logo a seu Bispo, ou a seus Vigarios, e lhes faram em elles ssa justiça. Item
vos mando, que sse sse alguem colher àlguma Egreja, por cousa que faça, ou
por coyta que aya, que non tiredes ende [por isso], n½no filhedes hy, salvo

36
OA, II, I, art. XIII (Ordenações Afonsinas. Reprodução fac-símile da edição feita na Real Im-
prensa da Universidade de Coimbra [1792] pelo Serviço de Educação. Lisboa: Calouste Gul-
benkian, 1998, 5 v.); LLP, p. 346 (Livro das Leis e Posturas. Edição da Faculdade de Direito da
Universidade Clássica de Lisboa. Lisboa, 1971); ODD p. 232 (Ordenações Del-Rei Dom Duarte.
Edição crítica de Martim de Albuquerque e Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Calouste Gul-
benkian, 1988).
37
OA, II, III, item 10, LLP, p. 372; ODD p. 260 (no Livro das Leis e Posturas e nas Ordenações de D.
Duarte este trecho final está ausente: “e em as nossas Hordenaçoões he conteúdo”).

289
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

outrossy se ffezer cousa, per que meresca morte, ou justiça em seu corpo.
Unde al nom façades, se nom a vos me tornaria eu poren38.

O caráter de decreto fica claro na leitura do texto. Sobre isso não há


dúvidas. Sobre seu conteúdo podemos perceber que há duas leis nele e,
ainda que apenas uma delas nos interesse no momento, podemos dizer que,
ao fazer um contraponto entre uma determinação e outra, podemos afir-
mar que, na primeira declaração, D. Dinis não viola as normas eclesiásti-
cas. Mas isso ocorre de forma muito grande na segunda determinação do
decreto. Os refugiados teriam, sim, que sair do asilo sagrado, mas somente
depois de um juramento de preservação física, e com autoridade do bispo,
autoridade que é mencionada na primeira lei, mas deixada de lado na se-
gunda norma, de conteúdo muito diferente da primeira.
No começo da lei, ocorre uma universalização do direito de asilo,
sem nem citar os casus excepti, mas depois se reduz muito a possibilidade de
abrigo nos templos, muito mais do que fizeram os pontífices. Ao aplicar a
exclusão do benefício a todos aqueles que merecem castigos corporais, D.
Dinis deveria estar excluindo a quase todos, ao menos de acordo com o
grupo social ao qual se aplicavam mais punições físicas. Na verdade, por-
tanto, o monarca generaliza a exclusão do direito de forma até inacreditá-
vel, uma vez que um número muito grande daqueles que poderiam se refu-
giar nas igrejas de acordo com as leis eclesiásticas deveriam merecer de
alguma forma castigos corporais. Essa linguagem da cúria do rei já nos é
muito conhecida das concordatas que se estava tentando celebrar durante a
mesma época dessa lei. O monarca parece proteger um direito, proclaman-
do de início uma generalidade de sua extensão, para no final de seu pro-
nunciamento reduzir a quase nada: “Item vos mando [...] que non tiredes
ende, ne~no filhedes hy, salvo outrosy [...]” e segue a exceção que é maior
que a regra. São, porventura, as cavilações da cúria do monarca de que já
nos alertou Martinho IV (1281-1285), fato narrado pelo seu sucessor Nico-

38
RIBEIRO, João Pedro. Dissertações chronológicas e criticas sobre a História e Jurisprudência Ecclesi-
ástica e Civil de Portugal. Apendices de Documentos. Lisboa: Academia Real de Sciencias, 1860-
1896, t. III, p. II, p. 165-166. Encontramos a referência graças às indicações de Gama Barros
(1885, t. I, p. 333) e Fortunato de Almeida (1910, t. I, p. 360). Essa lei não existe no LLP e nas
OA. Fortunato de Almeida referencia ainda o decreto como estando nas OA, no livro II, tít.
III, art. 10, quando, na verdade, o que encontramos ali é a resposta dada por D. Dinis sobre o
direito de asilo na concordata de 1292. Nesse livro não pode estar porque o estatuto vai contra
uma norma de Afonso V que organizou as Ordenações e, por isso, só poderia ser descartada
(OA, II, VIII). Ali D. Afonso V estatui o direito de asilo também aos condenados de pena de
morte, aos quais o asilo é justamente negado por D. Dinis.

290
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

lau IV (1277-1280), que tentaria ardilosamente retirar direitos da Igreja du-


rante uma tentativa de celebração da primeira concordata39. Essa restrição
do direito de asilo é muito maior que aquela que ficará estipulada nas Orde-
nações Afonsinas, uma compilação de leis de reis anteriores e do próprio D.
Afonso V, em pleno século XV, quase iniciando o período moderno:
Achamos per Direito Canonico, que a Igreja soomente defende aquelle mal-
feitor, que tem feito tal maleficio, per que merece aver pena de morte natu-
ral, ou cortamento de nembro, ou qualquer outra pena de sangue [...]. E se o
maleficio for muito grave, em que caiba pena de morte, ou cortamento de
nembro, ou qualquer outra pena de sangue, poderá o malfeitor seer tirado da
Igreja pelo Juiz secular, con tanto que elle faça primeiramente segurança ao
Reitor da Igreja, que salvará ao dito malfeitor o corpo, e nembros, e qual-
quer outra pena de sangue [...].40

Teria a cúria de D. Dinis esquecido de estipular que os criminosos, de


acordo com as regras canônicas, poderiam sim ser retirados, mas apenas
depois de um juramento de segurança do corpo e com autorização do bis-
po? Veremos se ele mantém esse estatuto na resposta que ele dá à queixa da
última concordata. Mas antes cuidemos também a comparação que pode-
mos fazer entre a lei de D. Dinis e o que escreve D. Egas em sua Summa.
Todas as pessoas têm direito ao asilo timore mortis uel cruciatus corporis:
“por temor da morte (logo, por presumível merecimento) ou tortura do
corpo”. E o rei diz que estão excluídos do benefício aqueles “per que
meresca morte (logo, devendo temê-la e querendo fugir da punição), ou
justiça em seu corpo”. Não é extremamente revelador esse contraste entre
as duas passagens? O que D. Egas escreve em sua obra sempre são apenas
recortes do direito canônico, apesar de ser a forma como ele recorta que
mostra como sua suma é determinada pelas leis desrespeitadas em sua
época. Mas, nesse caso, ele cita unicamente a Inter alia de Inocêncio III. E
essa passagem que justifica o asilo não está contida na decretal (ver mais

39
LLP, p. 334. Em uma carta de Nicolau IV, feita após a realização da concordata de 1289, este
narra os reveses que levaram finalmente a um acordo nessa data, e nela lemos que, no pontifi-
cado de Martinho IV, após o acordo estar já firmado pelos prelados e o rei, “[d]epoys o dicto
arcebispo e prelados e o dauandicto Rey dom Donis pedirom ao dito Papa Martinho que
confirmasse esta possiçom que fora trauctada antre elles e que a confirmasse en tal guisa que
durasse pera todo o senpre. Entom esse papa Martinho examinou as dauandictas respostas e
porque achou alg?as delas como quer que fossem compridauijs a dereito empoeram (?) uoltas
com muytas cauilações. e feze as tornar a forma de dereito e talhou as cauilações por tal que as
podesse confirmar com bõa consciencia sse peruentura esto lhe fosse pedido. Outras achou
tam sem dereito e tam minguadas que as nom podia confirmar com bõa consciencia.”
40
OA, II, VIII, § 1 e 2.

291
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

acima41), o que não a deixa, contudo, de ser canonicamente correta. A pas-


sagem pode ter sido influenciada pela resolução monárquica. As duas pas-
sagens que comparamos demonstram duas ideias contrárias que se choca-
ram nesse período. Cremos que a passagem escrita pelo bispo de Viseu cons-
titui um libelo ou, ao menos, um contraponto à lei de D. Dinis de 1286.
Que o monarca seguia suas próprias leis talvez esteja claro ainda em
1289, quando D. Dinis dirá que não permitirá que se retire ninguém que se
refugia nas igrejas “senom em aquelles casos, que for direito”. É provável que
ocultasse em sua declaração as suas próprias normas, uma vez que não invo-
ca nesse caso o direito comum, como faz em outras respostas. E mais clara-
mente ainda em 1292 pronunciará que obedecerá ao benefício do refúgio
assim como “em as nossas Hordenações he contheudo”. A palavra central ali
é “nossas Hordenações”. Não se trata do direito comum, os direitos romano
e canônico, mas sim somente das regras feitas por D. Dinis ainda em 1286.
Enquanto os prelados tentavam elaborar um acordo com o monarca na déca-
da de 1280 e fazê-lo ceder em costumes antigos, o soberano estava com sua
cúria a proclamar novas normas. Mais notável do que essa infração é o fato
de a resposta que ele concedeu em 1289 não ter desagradado o clero, visto
que tal resposta está incluída entre os Quarenta artigos e não entre os Onze
(feitos em separado, mas também em 1289, porque possuíam artigos muito
polêmicos). Eles podem ter imaginado que esse direito (“senom em aquelles
casos, que for direito”) só poderia ser aquele das decretais? Parece não ser,
como ficou comprovado em 1292, quando já não possuíam o escudo de defe-
sa de Roma, e o monarca cita abertamente suas ordenações que não se guiam
pelo direito canônico. Vemos, então, que D. Dinis tinha de antemão sua pró-
pria concepção do direito de asilo, aquela que menos poderia afetar sua capa-
cidade de aplicação da justiça penal.
Também volta a reclamar, em 1309, o bispo de Lisboa, demonstran-
do a abrangência das infrações que eram cometidas contra o direito eclesi-
ástico muito tempo depois de o papa Nicolau IV ter assegurado o cumpri-

41
A expressão de D. Egas: timore mortis uel cruciatus corporis (“por temor da morte ou tortura do
corpo”) está relacionada à expressão de Inocêncio III: nec inde damnari debet ad mortem vel ad
poenam (“nem por isso deve ser condenado à morte ou à punição”). Misserey (1935, col. 1092),
ao fazer uma descrição parcial da decretal, diz que Inocêncio III, após ter declarado que os
refugiados não podem ser retirados das igrejas violentamente, também não podem être condam-
né à une peine corporelle ou à la morte, traduzindo, assim, poenam (punição) por pena corporal,
aumentando ainda mais as semelhanças. Contudo, D. Egas transforma o trecho, sem modifi-
car a norma, tornando-a exatamente o oposto do que determinou D. Dinis.

292
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

mento dos itens da concordata de 1289 com grandes ameaças de sentenças


espirituais. O artigo sobre o direito de asilo de 1309 diz:
O sseptimo artigo he tal. Diz que faz elRey tirar os christãaos e os mouros e
os Judeus das Jgreias nos casos en que nom deue. e faze os hj guardar e /
meter en ferros e deffende que lhis nom dem a comer. contra o seu artigo
xiijº.¶ a este artigo. diz elRey que aguardara o dereito cumum e o artigo xiijº
que foy fecto. sobre esto na Corte42.

Essa resposta, apesar de estar na concordata em que o rei mais liberda-


de teve, não parece – só à primeira vista – ser tão claramente desobediente
como é a de 1292. Ainda mais porque diz que guardará também o direito
comum (canônico e romano), o que se entende à primeira vista tratar-se do
direito canônico dentro do conjunto dessas normas. É verdade que, ao reme-
ter ao pronunciamento de 1289, ele apenas reafirmava o que já sabemos, que
obedeceria ao seu próprio ordenamento. Ele não deve ter remetido também a
1292, porque essa concordata teve muito menor importância, porque não
teve participação papal e apresentava o retorno de antigas queixas.
Mas temos de resolver a questão de o monarca ter citado o direito
comum. De fato, as duas citações são contraditórias: seu direito, o direito
romano e o da Igreja não se conciliam nesse tema. Os casus excepti da Coroa
são muito mais abrangentes, e, como vimos, o direito romano também
tem muito mais exceções ao benefício do asilo que o direito canônico.

42
LLP, p. 375. Todavia, de forma bem oposta, as Ordenações Afonsinas afirmam: “Diz que faz
ElRey tirar aos Chrisptãaos per Mouros, e per Judeus das Igrejas nos casos, em que nom deve,
e faze-os hi guardar, e meter em ferros, e defende, que lhes nõ dem de comer contra o seu
artigo treze. A este artigo diz ElRey, que aguardará hi o Direito Comu?, e o artigo decimo
terceiro, que foi feito sobre esto na Corte” (OA, II, IV, art. VII). Assim, a versão manuscrita,
particular dessa lei, no Livro de Leis e Posturas, não tem a preposição “per”, deixando claro que
a reclamação do bispo seria que os cristãos, mouros e judeus seriam retirados das igrejas con-
tra a lei, e não que os cristãos seriam expulsos das igrejas pelos mouros e judeus. E nisso o
Livro de Leis e Posturas está de acordo com outra versão particular, as Ordenações de D. Duarte,
que diz: “O setimo artigoo he tall ¶ diz que faz Ell rrey tirar os cristaaõs E os mouros E os
Judeus das egreias nos casos em que nom deue E faze-o hi guardar E meter em ferros E
defende ( ) que lhes nom dem de comer contra o seu artigo xiijº” (ODD, p. 263). A favor das
Ordenações Afonsinas nós vimos anteriormente que na primeira queixa, em 1289, aparece a
preposição “per” mouros e judeus, nas três compilações. Logo, entender-se-ia que essa queixa
de 1309 seja a mesma e possua o mesmo teor, o que é invocado pelo bispo, que afirma que o rei
descumpre o artigo 13 de 1289. Além do mais, temos o fato de que foi feita, ainda que posteri-
ormente, no século XV, através da consulta de porventura mais de um único manuscrito, le-
vando-se em conta os conhecimentos jurídicos da época, e que é uma obra oficial cujas leis, na
maioria, vigoraram em Portugal e no Brasil até o século XIX. A favor das Ordenações de D.
Duarte e do Livro de Leis e Posturas existe uma lei posterior, de D. Afonso IV (ver páginas adian-
te), na qual o rei condena o usufruto do asilo por mouros e judeus.

293
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

Cremos que era às normas justinianeias a que o rei se referia. E isso se


dava via Siete Partidas43.
Em um conjunto de leis promulgadas por D. Dinis44 para tratar do
tema, uma espécie de estatuto, num período que com certeza era bem pró-
ximo da concordata de 1309, ele revela bem e finalmente quais eram as
suas próprias normas, fundamentado no Antigo e Novo Testamento bíbli-
cos, além do direito romano via Siete Partidas de Castela e no direito canô-
nico, quando lhe interessava:
Caso 1: não àqueles que matam com traição e sem razão (a Igreja
acrescentará essa exceção no período moderno). Fundamentado no direito
de asilo bíblico.
Estes sam os casos da santa escriptura per que a igreia nom uall nem deue
defender os que se colherem a Ella
Casso primeiro
A santa Jgreia nom uall [vale] a homem que mata outro esto se proua polla
sentença de sallamom [Salomão] que deu contra Joabollo [Joabe] que fora
principe da caualaria del Rey dauyd [Davi] porque matou auner [Abner] E
amasa [Amasa] per traiçom ca [pois] segundo conta em-no iijº capitullo Jo-
abolo temendo-se de Rey salamam fugio pera o tabarnaculo en-no quall orau-
am E faziam sacrefiçio E apartou-se com o altar E enujou hi Rey salamam
bonaxa [Benaia] E mandou-lhi que matasse Joabollo E banaxa foy ao taber-
nacollo sobredito E dise a Joabolo el Rey manda que saias daqui. E entom
Joabollo Respondeo nom sairey mais aquy morrerey E banaxa tornou com
esta rresposta a el Rey E dise-lhe entom Rey sallamom uay asy como te dixe
E mata-o E soterra-o E banaxa foy E matou-o ali hu estaua ante o altar

Caso 2: não àqueles que matam sem razão, injustamente. Fundamen-


tado no direito de asilo bíblico, mas relativo às cidades de refúgio.
Casso segundo
A Jgreia nom uall a homem que mata outro açinte [com acinte, premedita-
mente] a torto [injustamente] esto se proua no xxj capitullo do eisedo [Êxo-
do] hu deus mandou a mouses dizendo asy se alguum poser emseias [ense-
jas] a seu prouximo E o matar arrinca-llo-as do meu altar E moira Esto se
confirma em-no ix capitullo do eisedo hu mandou nostro Senhor a mouses
que asinasse [designasse] alguas cidades a que se acolhesem aquelles que
matassem outros per caJam [razão] por tall que os nom matassem os paren-

43
Esse artigo de 1309 nos parece ser de redação muito duvidosa, como notamos em nota anteri-
or. Colocamos aqui em nota essas dúvidas para não comprometer o raciocínio que elabora-
mos sobre a qual direito o rei se referia: canônico, romano ou real, os três conflitantes até essa
época (mas depois, como mostraremos, tornados uniformes à força através de um estatuto.
44
ODD, p. 278-280. Essas normas sobre o direito de asilo encontradas nas Ordenações de D.
Duarte ficaram de fora de nossa dissertação de mestrado.

294
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

tes do morto E depois disse assy E se alguum querendo mall a outro lhe
posser emseias E o ferrir de ferridas de morte E fogir a allguas cidades sobre-
ditas toma-lo-am os anciaaos daquelllas cidades E da-llo-am em maaos dos
parentes do morto E morrera E non te amercearas [compadecerás] dell

Caso 3: não àqueles que atentam contra o rei, crime de lesa-majesta-


de (a Igreja acrescentará essa exceção no período moderno). Cita um caso
bíblico, mas o direito romano também vetava esse direito a esses tipos de
criminosos.
Casso iij
A igreia non uall a quem uay contra o senhorio del Rey Esto se proua em-
no xj capitollo do iiijº liuro dos Reis hu se conta que Job [Jojada] que era
emtom bispo [sacerdote] E estando com el Rey Joas que entom era menjno
E leuantou-o por Rey E mandou aos armados que estauom com el Rey den-
tro no templo E dise-lhes asy Se allguum entrar contra el Rey no tenplo
moira Outrosy conta hi que aitalia [Atalia] auoo [avó] de Rey Joas tomara
em sy o senhorio do rregno des que morrera Rey hucosya [Ocozias] seu filho
E quando ouuyo que leuantarom em-no tenplo por Rey Joas seu neto foy E
entrou em-no tenplo com grandes uozes E tolheo suas uesteduras com gram
pesar do que ujo E entom o bispo sobredito mandou aas Centurias que es-
tauom com el Rey que o [a] tirassem do tenpllo E tiraro-no [na] fora E ma-
taram-no [na]

Caso 4: não àqueles que cometem pecados ou crimes dentro da igreja


(de acordo com Gregório IX, como vimos).
Casso iiij
A Igreia nom uall a quem faz em-na igreia obras contrairas E esto se proua
segundo contam os auangelistas que Jesu Cristo deitou fora do tenpllo os
que uendiam E conprauam em-no tenplo E por esto pareçe que nom praz a
Jesu Cristo que a igreia seJa morada nem defendimento daquelles que na
igreia gazem furnjzio [fornicação, adultério] ou descreem ou ferem ou ma-
tam em ella E mujto he contra Razom que a honrra da igreia preste aaquell
que a Jgreia desonrra

Caso 5: semelhante ao caso 2, não àqueles que cometem crimes em


uma igreja e depois se refugiam em outra (Gregório IX é quem estipulou tal
exceção).
Casso b
A Jgreia nom uall a quem se colhe a Jgreia E sal della E uay furtar fora ou
rroubar ou matar ou fazer outro mall E depois acolhe-se a igreia. ca [pois]
per este se proua que faz da igreia cassa de lladroões E desto pessa mujto a
Jesu cristo Ca segundo contam os auangelistas mais pequena cousa era d’auer
sanha aos que uendiam E conprauam em-no tenpllo E disse a mjnha cassa
he casa d’oraçom mais uos fazedes coua de lladroões

295
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

Caso 6: não àqueles que fazem emboscadas nos caminhos para rou-
bar e matar (de acordo com Inocêncio III, como vimos). Cita as Siete Parti-
das, compilação de leis castelhanas do avô materno de D. Dinis, D. Afonso
X, traduzidas em Portugal no reinado de D. Dinis (conforme veremos adi-
ante). As Siete Partidas, por sua vez, se fundamentam no direito romano.
Casso bj
E com estas sentenças sobreditas acordam mujtos direitos E outrosy a lley
iiijº da primeira partida Titollo xb E diz assy homes hi a que nom deuem
seer enparados em-na igreia E os podem ende [por isso] sacar sem coima
[punição] nhia. assy como os ladroões manefestos E pubricos que teem os
camjnhos E matam os homens E os Roubam

Caso 7: complemento ao caso 6 (porque também fundamentado na


Inter alia de Inocêncio III).
Casso bij
Outrosy os que andam queimando E destroindo ou em outra maneira quall-
quer as ujnhas E as aruores E as meses [messe, seara] E teem os camjnhos

Caso 8: não àqueles que matam ou ferem dentro da igreja para se


defenderem ou para defendê-la ou de acordo com qualquer motivo. Não se
pode derramar sangue no templo.
Casso biij
Outrosy os que matam ou ferem na igreia contra aquelles que fazem o dano.

Caso 9: também citando as Siete Partidas, que se fundamentam no


direito romano (“leis antigas”), não àqueles que são traidores conhecidos,
repetindo o caso 1.
Casso ix
Outrossy en-na lley .v. do dito liuro xj c. diz que manda o direito das leis
antjgas que saquem da Jgreia sem comiha [punição] nhia os tredores conhe-
cidos

Caso 10: fundamentada no direito romano (via Siete Partidas), a cúria


de D. Dinis acrescenta, além do que já foi dito no caso 2 (matar injustamen-
te), os adúlteros, aqueles que raptam e estupram as virgens, os devedores ao
fisco real. E ainda excetua os sodomitas. D. Dinis apenas segue o direito
romano, mas expressa uma posição muito rígida, a de que qualquer um que
cometesse injustiça não deveria se acolher à Igreja, manifestando a sua não
vontade de perdoar nesses casos, e sempre se fundamentando numa frase
de Jesus, de que a casa de Deus não deveria ser tornada covil de ladrões,
quando Jesus expulsou os vendedores no Templo de Jerusalém. Essas exce-
ções estabelecidas por D. Dinis são muito maiores que aquelas que, beiran-

296
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

do o período moderno e a época do Absolutismo real, ficarão estabelecidas


pelas Ordenações Afonsinas (OA, II, 8, 1-10).
Casso x
Outrosy os que matam outros a torto [injustamente] E os adulterosos E os
que forçam as uirgens E os que ham a dar conto [prestar conta] aos enpera-
dores E aos rreis dos seus trebutos E dos seus direitos que nom seria cousa
guisada [correta] que ataaes malfeitores como estes enparasse [amparasse] a
igreJa que he cassa de deus E hu se deue a Justiça guardar. Mais conprida-
mente [completamente] que em outro lugar porque seria contra o que disse
nosso Senhor Jesus cristo que a sua cassa era chamada cassa d’oraçom E nom
deue seer feita coua de ladroões estas sam as pallauras da lley sobredita.
Outrosy a igreia nom uall aos sodomjtigos [sodomitas]

Além disso, existe uma declaração no Livro das Leis e Posturas que,
assim como no estatuto acima, derroga o direito canônico em favor das
ordenações imperiais de uma forma muito explícita. É baseada totalmente
em lei das Siete Partidas, como demonstraremos. Ainda que essa declaração
talvez tenha sido feita pelo sucessor de D. Dinis, seu filho D. Afonso IV45,
existem muitos motivos para crer que ela seja de D. Dinis. Isso porque é
muito semelhante ao estatuto estabelecido encontrado nas Ordenações de D.
Duarte e, pelo que sabemos do uso que D. Dinis faz das Siete Partidas, usan-
do seu texto sem citá-las, em outra resposta46 dada ao bispo de Lisboa em
1309 (sexto artigo: construção de obras públicas, devendo os clérigos quando
se tratar de bem comum e defesa da terra, serem obrigados pelo bispo, o que
está de acordo com o direito canônico). Após citar trechos das leis imperiais
e das leis canônicas, o promulgador vai optar pelas leis romanas:
Estes som os casos que as lex dos empadores (sic) [imperadores] põem em
que as egreias nom deuem de ualer aos que se acõlhem ha ellas por medo de
serem presos
Os ladroes publicos que teem enculcas [vigias] nos camjnhos e nas stradas
asçiente pera fazer mal jtem aquelles que talham e queymam os paaes [sea-
ras] e as aruores e as vjnhas Jtem os que matam outros nas egreias e nos
cjmiteryos dellas Jtem os que saae (sic) das Eigreias e matam ou vãao furtar.
ou outro mal e colhem se ha ellas Item os que teem os camjnhos e matam
per enculcas alguem ou per enseias [motivos, ensejos] Jtem Se o seruo fuge
ha seu senhor e se colhe aa Egreia seu senhor o pode tirar della

45
Esse lei poderia ser de D. Afonso IV porque ela está entre as leis que levam o nome desse
soberano. Fortunato de Almeida (1910, v. I, 360-362), ao tratar desse assunto, cita também
essa norma, que diz ser apenas originária da primeira metade do século XIV. Em nossa disser-
tação de mestrado entendíamos que essa lei era de D. Afonso IV, ainda que D. Dinis tivesse
razões de sobra para conhecer e aplicar a lei sobre o direito de asilo das Siete Partidas, porque
fizera isso com relação a outros temas de imunidade eclesiástica.
46
MALACARNE, 2008, p. 257-282.

297
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

Jtem os ereges publicos e enfamados de Eresia Jtem os que furtam nas egrei-
as. por este caso nom he dereyto expreso mays segundo razom se entende
Jtem segundo as lex o que he prouado que mata outro a torto [injustamente,
sem razão] contra dereyto publicamente Jtem os que fazem adulteryo na
egreia Jtem os que forçam ou rousam as uirgeens / Jtem o que faz trayçom
a seu senhor Jtem os Sodomjcos [sodomitas] Jtem os Judeus ou mouros que
deuem djujda a christãaos Jtem Judeo ou mouro que faz qualquer crime
Jtem os que nom pagam os dereytos e tributos ha Elrrey constrangem nos as
egreias Jtem o seruo que doestar [afrontar, injuriar] seu senhor e se colhe aa
Egreia os clerigos o deuen a tirar della e se seruo se defender o senhor com
outra gente o pode a tirar della E se o seruo hy matarem. en se defendendo
nom deue a penar o senhor nem a outra gente que com el for pera esto
estes som os casos que pon as degretaes [Decretais] em que egreia nom va-
lha haos que se lançam en ella
Enparamento [amparo] e segurança deuen ha auer os que fugirem haa Egreia
segundo diz en a ley ante desta E pero homeens hy ha que nom deuem seer
enparados en ella Ante os podem ende [nisso] tirar sen coyma [punição]
nenhia Asy como os ladroes manifestos que teem os camjnhos ou as stradas
que matam os homeens ou os roubam Jtem os que andam de noyte quey-
mando ou destrujndo doutra maneira qualquer as vjnhas e as aruores Jtem
os que matam ou ferem en a Egreia ou no çimiteryo della nom ham força de
se enparar [amparar] em ella e os quea queymam ou ha quebrantam [destro-
em] E a todos os outros defendeo [proibiu] a sancta egreia que nengiu nom
lhes faça mal segundo o que de suso [acima] he dicto E qualquer que contra
esto fezesse farya sacrilegeo e deuen no de esculmugar ataa que faça emenda
entre porque nom guardaua a sancta egreia a onrra que deuya E se forcou
homem ou outra cousa sacando da Egreia deue o hy a tornar sen dampno e
sen meos cabo [prejuízo, menoscabo]. nenhiu /
aqui pom. iiijº cassos
ERos muy grandes fazem os homeens as degadas [as vezes] e os que diz en
a ley ante desta porque ham de fugir haas Egreias com medo de pea [pena].
E por esto manda o dereyto das leys antigas que os saquem ende [daí] sen
comea [punição] nenhia asy como aos tredores conhoçudos e aos que ma-
tam outrem a torto [injustamente, sem razão] e os que fazem adulteryo e os
que forçam as uirgeens E os que ham a dar conto [pagar] aos enperadores e
aos Reys de seus tributos qual nom seeria razom conjnauel [aceitável] que
taaes malfeytores commo estes emparasse a egreia que he cara (sic) [casa]
de deus ljure deue a justiça guardar mays compridamente [completamente]
que outro logar porque seria contra o que disse nosso senhor Jesu christo.
que disse que a sa casa era chamada casa de oraçom e nom deuya a ser fecta
coua de ladrooes /47

Na lei que se diz romana se encontram, na verdade, também deter-


minações eclesiásticas como a proibição do asilo aos que fazem embosca-
das nos caminhos, aqueles que destroem os campos e os que matam nas

47
LLP, p. 483-484.

298
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

igrejas e cemitérios, que não foram elaboradas pelos imperadores. A proibi-


ção de refúgio aos mouros e judeus era algo estabelecido pelo direito roma-
no. Por outro lado, quando se diz que se podem retirar das igrejas os servos
fugitivos, o autor da lei deixa de fora uma norma de Leão I (condição tam-
bém deixada de fora nas Ordenações Afonsinas, II, 8, 3) – e repetida pelo
direito canônico – que permitia a retirada do servo somente mediante um
juramento de impunidade dada pelo senhor, regra esta que foi repetida pelo
direito canônico, como vimos. As Siete Partidas, local de onde essa norma
foi traduzida, por outro lado, garantem isso aos servos.
Ao referir-se aos trechos acima, Gama Barros48 diz que não seriam
leis, pelo motivo de não possuírem data e por seu conteúdo, mas constitui-
riam antes a melhor declaração doutrinal da primeira metade do século
XIV. Nas Siete Partidas, seu caráter é legislativo, mas inserida como está no
Livro de Leis e Posturas, ocupa uma posição distinta, na verdade, de todas as
demais leis. Seja como for, sua leitura é válida, visto que demonstra as in-
tenções da prática de ação do monarca. Veremos agora o que encontramos
nas ordenações castelhanas, que mostram que essa lei do Livro das Leis e
Posturas foi copiada praticamente ipsis litteris das Siete Partidas:
Ley III
Sieruo de alguno fuyendo a la Eglesia sin mandado de su Señor, deue ser
amparado en ella [...]. Pero si el Señor diesse fiadores, e jurasse que non le
fiziesse mal ninguno, deuenlo los Clerigos sacar de la Eglesia, maguer [ain-
da que] el non quisiesse salir, e dargelo; e si los Clerigos non lo quisiessen
fazer, puedelo sacar el Señor sin caloña [punição] ninguna, e lleuarlo. Mas si
los Clerigos lo amparassem, despues de la segurança, ellos son tenudos de
pechar [pagar pecho ou multa] el menoscabo [prejuízo, menoscabo] del se-
ruicio, que rescibio el Señor, porque non gelo dieron [lhe deram isso]; e si se
fuyere, deuengelo pechar [pagar isso]
Ley IV Quales omes non se pueden en la Eglesia amparar
Amparamiento, e segurança deuen auer los que fuyeren a la Eglesia [...]
pero omes y a [ai há] que non deuen ser amparados en ella, ante los pueden
sacar della, sin caloña alguna, assi como los ladrones manifiestos, que tie-
nen los caminos, e las carreras, e matan los omes e los roban. Otrosi los que
andan de noche, quemando, destruyendo de otra manera las miesses [mes-
ses, searas, campos de trigo], e las viñas, e los arboles, e los campos. E los
que matan, o firieren en la Eglesia, o en el cementerio, enfiuziandose [confi-
ando-se] de ampararse en ella, o a los que la queman, o la quebrantan [des-
troem]. A todos los otros defiende [proíbe] Santa Eglesia, que ninguno les
faga mal, segund que de suso [acima] es dicho. E qualquier que contra esto
fiziesse, faria sacrilejo: e deuenlo descomulgar, fasta que venga a enmienda
dello, porque non guardo a Santa Eglesia, la honrra que deuia. E si forço

48
BARROS, 1885, t. I, p. 333.

299
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

ome, o muger, o otra cosa, sacandolo de la Eglesia, deuelo y tornar sin daño,
e sin menoscaho ninguno.
Ley V Quales omes manda el derecho de las leyes antiguas, sacar de la Eglesia
Yerros muy grandes fazen los omes a las vegadas [vezes], sin los que dize en
la ley ante desta, por que han de foyer a las Eglesias, temiendo de pena. E
por esto mando el Derecho de las leyes antiguas, que los saquen dellas, sin
caloña ninguna; assi como los traydores conoscidos, e los que matan a otro
a tuerto [injustamente, sem razão], e los adulteradores, e los que fuerçan
virgines, e los que tienen de dar cuenta a los Emperadores, e a los Reyes, de
sus tributos, o de sus pechos [impostos]. Ca [pois] non seria cosa razonable,
que tales malfechores como estos, amparasse la Eglesia, que es Casa de Dios,
donde se deue la justicia guardar mas complidamente [completamente], que
en otro logar; e porque seria contra lo que dixo en otro logar; nuestro Señor
JESU Christo por ella: Que la sua casa era llamada Casa de Oracion, e non
deue ser fecha cueua de ladrones49.

As leis IV e V são, na maior parte, simplesmente traduzidas no Livro


das Leis e Posturas. (Uma diferença que notamos entre essa passagem e aquela
do Livro das Leis e Posturas está na lei III que permite a retirada dos servos das
igrejas somente mediante um juramento de segurança, seguindo as determi-
nações canônicas.) Todos os preceitos das Siete Partidas, por sua vez, se fun-
damentam nas leis romanas e na decretal Inter alia de Inocêncio III e na ex-
tensão da norma que fez Gregório IX, como já mencionamos. Mas a opção
que aqui faz Afonso X, como o fará D. Dinis, é pelo código justinianeu,
aquele mesmo que, em grande parte, foi deixado de lado pelo direito canôni-
co, o qual criou seus próprios casos de exceção. Ao retomar o direito romano,
D. Dinis retoma parte das funções imperiais, tornando-se aquele que legisla
sobre as igrejas e sobre suas imunidades.
Portanto, D. Dinis descumpriu o direito de asilo de 1279 a 1289, ano
da primeira concordata; depois, no período de 1289 a 1292, continuou a des-
cumpri-lo, para finalmente, em 1309, o bispo de Lisboa reclamar novamente.
E, em 1311, o bispo de Viseu demonstra seu descontentamento na Summa de
Libertate Ecclesiastica pela não aplicação dessa norma, apesar de ele já ter re-
clamado com os outros bispos ainda em 1292. Ele incluiu em sua obra um
trecho que, como vimos, era exatamente contrário à lei de 1286. Embora
reproduza os mandamentos da Igreja, constituiu uma manifestação própria
de indignação. E, se a lei de 1286 limitava tão grandemente o direito de asilo,
o monarca vai começar a seguir as normas romanas no começo do século
XIV, que eram também redutoras do benefício do refúgio, mas não tanto
quanto a lei pessoal de 1286.

49
Siete. Part., I, XI, leis III-V.

300
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Os limites do perdão, portanto, se fundamentavam no que as autori-


dades políticas proclamavam. Ainda que para outros temas o direito canô-
nico fosse determinante, com relação a esse privilégio ele influenciava gran-
demente (até mesmo fornecendo a base romana para o direito secular),
mas, na época de D. Dinis, não possuía a última palavra. Não havia a pos-
sibilidade de perdão àqueles que agissem premeditadamente, fossem “pro-
fissionais” em seus crimes, incuráveis em sua desonestidade e nem para
aqueles que cometessem crimes que poderíamos entender “hediondos” para
a época, como eram as traições, o crime de lesa-majestade, o rapto de vir-
gens, crimes dentro do local sagrado, a sodomia (crendo ser mais chocante
se se tratasse de casos envolvendo sodomizações de pessoas vulneráveis,
incluindo a esposa e os jovens, como se verifica em vários casos de investi-
gação canônica) e outros mais citados neste estudo. Dentre todas as leis
eclesiásticas essa foi uma das mais desrespeitadas. Com relação ao direito
de asilo, a concepção de perdão das autoridades seculares deixa aos poucos
de ser o “setenta vezes sete” de Cristo para ser a concepção do Antigo Tes-
tamento, mais limitativa do perdão (ainda que as Ordenações Afonsinas – em
sua determinação final, não com relação às respostas de D. Dinis nas con-
cordatas – não sejam tão limitativas quanto as leis de D. Dinis).
E, nos dias atuais, essa concepção cristã (ainda que não seja conside-
rada cristã, é preciso comparar com o mundo oriental e islâmico, onde a
criminalidade é, a grosso modo, menor e a punição maior) de sempre per-
doar e acreditar na ressocialização dos criminosos que cumprem penas ga-
nhou muito espaço no século XX. A tal ponto que parece superar até o
cristianismo, cuja doutrina seria oferecer o rosto ao inimigo, mas devendo
existir arrependimento para o perdão. Isso porque mesmo criminosos que
confessam que vão continuar a matar são perdoados (e sem sequer o jura-
mento de impunidade; não que se fosse acreditar no juramento, mas exis-
tem criminosos que prometem continuar a matar); criminosos que, se ma-
tassem 50 mil pessoas, como no Brasil, seriam liberados depois de cumprir
pena; se mil pessoas vissem um criminoso matando e fossem testemunhas,
o bandido teria direito a habeas corpus, a aguardar pelo julgamento fora da ca-
deia50; menores de idade têm nas mãos o poder de vida ou morte de qualquer
um sem precisar se preocupar com o retorno do dano causado; a punição é tão

50
Verificar sobre isso a concepção do notório e do manifesto no direito canônico, que determina-
va a falta de necessidade do processo formal quando um crime fosse praticado em público
(Glosa ad X 3.2.7 ad verbum notorium).

301
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

leve que pode ser dita inexistente. “Valeria a pena”, literalmente, segundo a
origem dessa expressão, esse propósito criminoso. A pena compensa o objeti-
vo. Os teóricos abandonam antigas concepções e se compadecem do bandido
profissional (que assola as camadas mais populares); aquele que mata uma vez
é igual ao que tem como profissão cometer crimes (ver sobre isso a origem da
palavra assassinus e sua concepção no direito canônico51). Divulga-se a justiça,
ou seja, a busca da equidade, e busca-se o desigual, entendendo-se o princípio
do talião (de talio: talião, que veio de talis52: tal, igual, semelhante) em termos
não verdadeiros e deturpados (exemplo: um roubo teria uma pena tão despro-
porcional quanto arrancar-se uma mão, o que não é equidade, uma vez que a
punição é muito maior que o dano causado; por outro lado, é considerado
equitativo que um mesmo bandido pague por uma pena leve e volte a matar
várias vezes), uma palavra que denota, como a equidade, o retorno do mal ao
patrimônio do criminoso (satisfação do mal pelo trabalho caso não possua) e
ao seu corpo que ele causou (nunca maior ou fundamentado em provas que
não sejam muitas provas testemunhais).
Nos relatos antigos e medievais, entre muitos povos, o rei que não apli-
casse a justiça, que não protegesse o povo dos invasores e dos criminosos, dos
inimigos externos e internos, estaria cumprindo todos os requisitos fundamen-
tais para ser deposto, perder o poder. A “culpa de sangue”, o sangue inocente
que se deixa derramar seria o suficiente em qualquer época dita “bárbara” para
que o rei, uma vez que não possuía o poder absolutista, perde-se sua autorida-
de. Mas as concepções do que um soberano deve fazer mudam com o tempo.
Ideologias substituem compromissos comunitários de autoproteção. O crime
(entendendo-se principalmente o crime contra a vida, uma vez que a concep-
ção de crime se modifica com o tempo) se justifica pela necessidade humana,

51
MISSEREY, L. R. Assassin. In: Dictionnaire de Droit Canonique. Paris: Librairie Letouzey et
Ané, 1935, v. I, col. 1104-1107. Assassinus (assassino) é uma palavra, latinizada pelo direito
canônico, de origem árabe (haschischin) e dava nome a uma seita islâmica conhecida por atro-
cidades contra os cristãos. No direito canônico significava aquele que matava por algo em
troca, prometido ou dado. O francês conservou parte do sentido, porque coloca como um dos
seus significados aquele que mata com premeditação (Centre National de Ressources Textue-
lles et Lexicales. Verbete assassin. Disponível em: <http://www.cnrtl.fr/definition/assassin>.
Acessado em: set. 2012), o que não aparece no Dicionário Aurélio (Novo Dicionário Eletrônico
Aurélio. Versão 5.0, corresponde à 3ª. edição, 1ª impressão da Editora Positivo. Edição de
Positivo Informática Ltda., 2004, “assassino”), que diz que em português esse termo significa,
de modo geral, aquele que mata alguém.
52
SARAIVA, F. R. Dicionário latino-português. Rio de Janeiro / Belo Horizonte: Garnier, 2006,
talio, talis.

302
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

pela origem social. Mas, uma questão se levanta quando se constata que as
maiores vítimas do crime são justamente aqueles que vivem em locais mais
pobres, ou seja, aquele de classes mais humildes sempre está com sua vida
muito mais em risco e corre mais risco de perder seu patrimônio (com muito
mais suor conquistado dada a exiguidade do que é herdado) do que as classes
mais abastadas ou médias, de onde justamente se divulgam tais ideologias. E,
uma vez tornadas alicerces de partidos políticos, impedem que as mortes e o
dano deixem de ocorrer, e a culpa de sangue da classe política, média e abasta-
da, nunca é paga. Se os crimes ocorressem nesses grupos, as leis seriam regula-
mentadas de outra forma. Assim sendo, o perdão concedido pelos políticos do
período medieval, ainda que muitas vezes fosse demonstração de seu poder,
liberalidade e benevolência, nunca poderia ultrapassar o limite do aceitável53.
Mas essa concepção do perdão no período contemporâneo sempre ultrapassa
o limite do tolerável, porque existe muito mais complexidade para se alterar
um conjunto de leis, para se condenar muitos políticos dispersos em ideologias
várias. Uma quantidade muito grande carrega a culpa de sangue, mas entre
eles não há preocupação.
Por outro lado, o respeito que se devia ao sagrado na medida em que ia
se limitando cada vez mais, poderia denotar também uma mudança na con-
cepção religiosa ou uma dessacralização lenta que, no século XX e ainda an-
tes, durante as revoluções liberais (inumeráveis destruições e sacrilégios –
lesão do sagrado – de mosteiros), fará com que os locais sagrados não se-
jam mais considerados tão sagrados pelos fiéis, principalmente aplicadas
politicamente e sem plebiscito por aqueles que até nos dias atuais creem ser

53
Passava-se dos limites do aceitável quando os reis portugueses, numa demonstração do inten-
to sem prudência de colonizar as terras indígenas do Brasil, enviavam para cá criminosos que
em Portugal seriam condenados à morte, mas que, vindo para o Brasil, tinham sua pena trans-
formada em degredo. Há relatos de queixas de laicos e religiosos interessados no bem físico
dos indígenas de que tais criminosos continuavam a praticar seus crimes no Brasil: “Certifico
a V. A. e lhe juro pela hora da morte que nenhum fruto nem bem fazem na terra mas muito
mal e dano e por sua causa se fazem cada dia males e temos perdido o crédito que até aqui
tínhamos com os índios porque os que Deus nem a natureza não remedeia como ey [?] o posso
remediar” (carta do governador geral D. Duarte de 1546, ap. COSTA, p. 96-97). O Brasil se
tornou, assim, um imenso couto de homiziados, uma cidade de refúgio bíblica, mas para onde
não fugiam criminosos que haviam matado sem intenção, mas sim bandidos profissionais,
muitos dos quais se dedicavam à caça de vidas indígenas. Ainda que existam também relatos
de pessoas que se regeneravam, é para a casa daqueles que acreditavam em tal regeneração
que tais criminosos deveriam ser enviados, ou seja, para a corte monárquica, ou, na época
contemporânea, das vilas pobres para Brasília ou para os condomínios da intelligentsia nacio-
nal.

303
MALACARNE, Cassiano • O direito de asilo nas igrejas e locais sagrados em Portugal...

os guias de uma população ignorante. Na verdade, são apenas “ilumina-


dos” por mais um tipo de ideologia. Educar as pessoas deixa de ser fazê-las
pensar e questionar, mas crer na ideologia de uma minoria política e inte-
lectual no todo do país, mas maioria em seu meio.

304
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Por um estudo da política no


Reino dos Francos (século X)
Notas sobre a historiografia, a história
política e uma proposta de estudo

Rafael José Bassi1

No ano milésimo depois da Paixão do Senhor, após a dita fome desastrosa, as


chuvas das nuvens acalmaram-se obedecendo à bondade e à misericórdia di-
vina. O céu começou a rir, a clarear e animou-se de ventos favoráveis. Pela sua
serenidade e paz, mostrava a magnanimidade do Criador. Toda a superfície
da terra cobriu-se de uma amável verdura e de uma abundância de frutos que
expulsou completamente a privação [...] Inúmeros doentes reencontraram a
saúde nessas reuniões, onde se haviam levado tantos santos. E, para que nin-
guém tomasse isso por fantasmas, aconteceu muitas vezes que o momento em
que braços ou pernas torcidos retomavam a sua primitiva retidão, se visse a
pele rasgar-se, a carne abrir-se, o sangue correr aos borbotões: isto para que
fosse dado crédito aos casos para os quais a dúvida podia subsistir. O entusias-
mo era tão ardente que os assistentes elevavam as mãos a Deus exclamando
em uníssono: “Paz! Paz! Paz!”. Viam o sinal do pacto definitivo, da promessa
estabelecida entre eles e Deus. [...] Todavia, neste mesmo ano, o trigo, o vinho,
e os outros frutos da terra foram em tal abundância que se não poderia esperar
uma quantidade semelhante para o conjunto dos cinco anos seguintes. Todo o
alimento bom para o homem, à parte a carne e iguarias delicadas, nada mais
valia; era como no antigo tempo do grande jubileu mosaico. No segundo, no
terceiro e no quarto anos, a produção não foi menor [...] Como se aproximava
o terceiro ano que se seguiu ao Ano Mil, viu-se em quase toda a terra, mas,
sobretudo na Itália e na Gália, renovar as basílicas das igrejas; embora nenhu-
ma necessidade tivesse disso, uma emulação levava cada comunidade cristã a
ter uma mais suntuosa do que as outras. Era como se o próprio mundo tivesse
sido sacudido e, despojando-se da sua vetustez, se tivesse coberto por toda a
parte de um manto branco de igrejas. Então, quase todas as igrejas das sés
episcopais, os santuários monásticos dedicados aos diversos santos, e mesmo
os pequenos oratórios das aldeias, foram reedificados mais belos pelos fiéis2.

1
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Especialista
em História Cultural pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP); Mestrando em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2
Raul Glaber, Les cinq livres de ses histoires (900 – 1044), ap. DUBY, G. O Ano Mil. Lisboa:
Edição 70, p. 179-80 e 192.

305
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

Estas foram as palavras do historiador medieval Raoul Glaber para


descrever, para historiar a sociedade do Ano Mil. E as palavras que se se-
guem formam parte dos comentários feitos por um dos seus maiores estu-
diosos e utilizadores de seus relatos para análise sobre o período, o histori-
ador francês Georges Duby, que, por sua forma sempre poética de escrita,
ao analisar o período medieval acima descrito denominou o momento de
“A Primavera do Mundo”:
Para os historiadores que começaram a trabalhar a seguir ao milénio da
Paixão, os juramentos de paz, as peregrinações, todas as medidas de purifi-
cação colectiva tinham atingido o seu objetivo. Podia-se ver as forças do mal
recuar em desordem. A cólera de Deus acalmava-se. Ele aceitava concluir
um novo contrato com o género humano. Cumpridos os mil anos, após a
passagem dos flagelos, era como se a cristandade saísse de um novo baptis-
mo. Ao caos sucedia a ordem. O que se segue ao Ano Mil é uma nova Pri-
mavera do Mundo. [...] O mal não estava evidentemente vencido, os homens
não escapavam às tentações; podemos vê-los voltar já a cair na desordem.
Mas multiplicam-se os sinais de uma nova aliança e do influxo juvenil que
ela comunica a toda a criação. As garantias do perdão divino situam-se,
evidentemente, na ordem dos acontecimentos espirituais. São munições com-
pletamente novas fornecidas à humanidade para ajudar na sua grande aven-
tura, o caminho para a Terra Prometida3.

Por uma visão política


O estudo da Idade Média foi, por muito tempo, durante o século XX,
problematizado a partir de suas questões culturais e mentais. Com a “revo-
lução historiográfica”, nas palavras de Peter Burke4, feita pela Escola dos
Annales, a questão das mentalidades, das produções culturais dos homens
medievais, entre outras, foram amplamente pesquisadas – e, uma raridade
no Brasil, mas não na França, a pesquisa foi amplamente divulgada, alcan-
çando até mesmo o grande público leitor. Inclusive a história política foi
analisada pelo viés da crença se pensarmos, por exemplo, no trabalho fun-
damental de Marc Bloch, com sua análise sobre os “reis taumaturgos”5.
Mas, nas últimas décadas, pudemos notar uma retomada da história políti-
ca, que também se mostrou presente nos estudos sobre a Idade Média.

3
Ibid.
4
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São
Paulo: Editora da UNESP, 1997.
5
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

306
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O que se percebe nos estudos sobre a Alta Idade Média é uma proble-
matização das pesquisas, dos questionamentos feitos sobre a realeza e sua
natureza. Deixou-se de lado aquela visão sobre os “reinos bárbaros” como
simples ocaso e decadência da civilização romana para avançar na compre-
ensão de sua estruturação. Assim sendo, hoje esses reinos são considerados
pelos historiadores como construções institucionais muito bem elaboradas,
sendo que muito da discussão atual gira em torno da própria noção de Es-
tado para esse período – ainda que controversa; o que até bem pouco tempo
atrás era um termo inaceitável6. A partir desse único exemplo já se pode
vislumbrar a dificuldade de estabelecimento de termos e conceitos para esse
período da história dos francos na Idade Média.
Surge-nos um questionamento, que acreditamos necessário: o que
poderia ter causado esse interesse e essas novas discussões, ocasionando
essa “guinada historiográfica”? Desde finais do século XIX, a documenta-
ção sobre o período se mantém praticamente inalterada, haja vista a escas-
sez de fontes para a época. Portanto, não foram descobertas documentais
nem arqueológicas que ocasionaram a retomada das discussões e essas no-
vas concepções que vêm sendo discutidas na atualidade. O que os historia-
dores hoje em dia veem em relação ao período é que o conhecimento sobre
ele foi produzido por historiadores que estavam ligados a análises próprias
de seus contextos – um pressuposto básico, para a historiografia –, relacio-
nadas muitas vezes às políticas fortemente engajadas com o mesmo contex-
to, onde ressaltamos, por exemplo, a escola positivista no século XIX. Des-
sa forma, o que se discutiu, muitas vezes, foi fruto de tendências ideológi-
cas e construções historiográficas dos pesquisadores do século XIX e XX.
Portanto, nada mais adequado do que uma retomada da história política a
partir de novos questionamentos, novas análises sobre a mesma documen-
tação, novos parâmetros de pesquisa e discussão. E, para que isso seja feito,
é necessário que não apenas sobre o período medieval, mas sobre toda a
produção historiográfica, se pense o político, se saiba da necessidade das
pesquisas sobre as concepções políticas e suas diversas nuances dentro de
suas respectivas sociedades.

6
Podemos salientar uma obra para essa discussão, como: SILVA, Marcelo Cândido da. A realeza
cristã na Alta Idade Média: os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (sécu-
los V-VIII). São Paulo: Alameda, 2008. Nessa obra, que é a publicação da tese de doutoramen-
to do autor, defendida na França, aparece, principalmente na Introdução, uma excelente dis-
cussão historiográfica, incluindo a utilização do conceito.

307
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

Para tanto, em nossa discussão sobre a realeza e as suas ações nesse


recorte temporal escolhido, a saber, o final do século X, devemos conside-
rar a concepção do feudalismo, relacionando esse conceito com a estrutura
política do período alto-medieval, numa tentativa de releitura das fontes,
de rediscussão, a fim de objetivar novos olhares e parâmetros para a com-
preensão do período. O significado político da concepção de feudalismo é
de fundamental importância para o entendimento do contexto da realeza
no Reino dos Francos na passagem do milênio. Parte-se de pressupostos
básicos e gerais, como o demonstrado por Georges Duby, um dos historia-
dores que mais buscou compreender a sociedade ocidental na análise sobre
o período em território franco:
O feudalismo caracteriza-se, em primeiro ligar, pela decadência da autori-
dade real e vimos já que a incapacidade dos Carolíngios para conter os ata-
ques do exterior tinha acelerado a dispersão do seu poder no decurso do
século IX. A defesa da terra – função primeira da realeza – passou rápida e
irreversivelmente para as mãos dos príncipes locais7.

Portanto, temos como foco de análise o poder da realeza. O perío-


do feudal foi entendido, durante muito tempo, por essa característica bá-
sica da descentralização política, decadência do poder real e “feudaliza-
ção” da sociedade. Colocar em discussão a realeza no período, com sua
estrutura, sua utilização simbólica de legitimidade, suas ações ativas den-
tro da sociedade presentes nos relatos históricos, a partir de novas con-
cepções, passa a ser um grande desafio de análise para o historiador. No-
vos questionamentos, novas discussões, novos prismas sobre as ações po-
líticas, ligadas à função real, devem ser pensados para que o período pos-
sa ser estudado nos dias de hoje. É o que os historiadores vêm fazendo.
Mas, para isso, precisamos analisar um pouco do debate que para nós é
entendido como de grande importância, e que toma conta da produção
acadêmica, sobre o processo de mudança estrutural da sociedade no Rei-
no dos Francos, que tem sua gênese ainda no século XIX, perpassando
todo o “breve” século XX e chegando até nós.
Em nossa análise, pudemos dividir essa discussão em três momen-
tos historiográficos distintos, com algumas ramificações no segundo perí-
odo. Para nós, há que se entender o debate a partir da formulação das ideias
de mudança estrutural, da concepção mutacionista das transformações da

7
DUBY, Georges. A era do feudalismo: guerreiros e camponeses: os primórdios do crescimento
econômico europeu do século XII. Lisboa: Editorial Presença, 1980, p. 178.

308
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

sociedade e, por fim, da resposta teórico-metodológica de uma percepção


antimutacionista.

Formulação das ideias – o século XIX e início do XX


A gênese dessas concepções aparece com a velha escola histórica
positivista, ainda no século XIX. Com a Revolução Francesa e os aconteci-
mentos que antecedem à III República, os poucos e velhos costumes feu-
dais que ainda permaneciam em determinadas regiões são abolidos na socie-
dade francesa. E isso aparece descrito na produção histórica do período pos-
terior com os trabalhos, principalmente, de historiadores como François
Guizot (1787-1874) e Numa-Denis Fustel de Coulanges (1830-1889).
Essa velha escola aponta sua análise para a percepção de uma crise
de um poder real que antecedeu o Ano Mil. Em contraposição ao Estado
Moderno, que se formulava desde o século XVIII e se fortalecia no século
XIX, as análises baseavam-se numa provável desestruturação e desapareci-
mento do Estado, com o final da dinastia carolíngia. Assim, a ordem esta-
belecida pelos carolíngios não obteve continuidade na dinastia dos Capetos
que a sucedeu. Baseados nas observações das estruturas das villas e da servi-
dão, o resultado a que estes historiadores chegaram foi a diminuição do
poder real, em face ao crescimento substancial do poder da Igreja e dos
nobres.
A historiografia tradicional considerava sempre a Idade Média como
palco de uma violência endêmica e sem limitações, o que seria justamente
o oposto do que acontecia a partir da formação do Estado Nacional Mo-
derno – defendido por muitos desses historiadores do século XIX. As expli-
cações formuladas pela historiografia sempre foram pautadas no argumen-
to da falta de um Estado centralizado, resultado da “ausência” de uma au-
toridade pública, ou então como “decadência” da organização romana em
virtude da “barbarização” da sociedade alto-medieval. Essa concepção se
encontra principalmente nos historiadores dos séculos XVIII e XIX, como
Gibbon, Coulanges e Guizot, os quais apresentam um interesse muito grande
na noção de Estado, devido às suas visões – além das próprias questões –
políticas europeias naquele momento de sua escrita. Para eles, a violência
adquiria um caráter intrapessoal, pois o Estado tinha como função a res-
ponsabilidade pela pacificação da sociedade, e a falta dele geraria uma vio-
lência desregrada. Assim, no século XIX, o historiador François Guizot,

309
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

em sua obra Histoire de la civilisation en Europe8, afirma que, após as invasões


dos povos germânicos, as resoluções dos conflitos passaram a ser assumi-
das pela nobreza, sem a participação da realeza – o que para nós demonstra
um exagero de análise por parte de Guizot em sua interpretação. E, a partir
disso, uma das grandes querelas aparece nas discussões historiográficas re-
lacionadas à Idade Média, que permeou todo o século XX. Para essa histo-
riografia, a violência seria resultado da entrada dos hábitos, dos costumes
bárbaros e da falta de uma autoridade tida como pública, que numa visão
globalizante é característica de toda a Alta Idade Média ocidental. Portan-
to, há nessa produção historiográfica uma visão pejorativa do movimento
de transformação social que ocorreu no Ocidente na “transição” da Anti-
guidade para a Idade Média. Importante salientar que essas postulações
foram muito criticadas, como o fez, para citarmos um único exemplo den-
tre tantos possíveis, Sônia Regina de Mendonça, no seu livro básico sobre o
mundo carolíngio, quando demonstra que a mistura da estrutura adminis-
trativa romana com os princípios e práticas germânicos formou uma “orga-
nização original onde se confundiam as duas heranças, num misto de po-
der público e serviços privados do rei”9.
Com o início do século XX e com as pesquisas propostas por um dos
fundadores dos Annales, o historiador Marc Bloch, temos um aprofunda-
mento das discussões acerca das mudanças estruturais que ocorrem após os
carolíngios; discussões essas alicerçadas em um retorno às análises das fon-
tes históricas das mais diversas características, não apenas a documentação
oficial, escrita, como princípio básico do conhecimento histórico. Bloch,
em seu clássico A sociedade feudal, expõe que, próximo ao Ano Mil, houve
uma quebra da centralização do poder público existente desde o início da
dinastia carolíngia. Também afirma que, até o século X, as funções da rea-
leza eram assegurar a salvação espiritual dos habitantes de seu domínio,
defender o território dos ataques de inimigos, além de prezar e manter a
justiça e a paz em seus domínios10. Entretanto, como o autor mesmo salien-
ta, podemos encontrar nessa sociedade que antecede o Ano Mil uma inca-
pacidade do rei de resolver os conflitos, sendo que a nobreza assume o
trabalho de fazer a justiça, solucionando os conflitos entre os seus servos,

8
GUIZOT, François. Histoire de la civilisation en Europe. Paris, 1868.
9
MENDONÇA, Sônia Regina de. O mundo carolíngio. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 66.
10
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, s. d., p. 450.

310
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

dentro dos seus territórios, sem a participação real. Esse é um dos motivos
que levaram ao que ele denominou de “desmembramento feudal”11, com
uma maior incidência da violência dentro da sociedade franca no período
alto-medieval.
A violência era, para Bloch, uma característica constante, graças aos
diversos ataques entre os nobres, desordem social, carência de Estado, como
o que havia existido durante a dinastia carolíngia. Os poderes da realeza se
mostravam ineficazes, tanto que a Igreja formou um grupo que empreen-
deu esforços “espontâneos”, como a reunião em concílios, segundo o histo-
riador francês, para a organização desta ordem que era almejada pelos mem-
bros da sociedade. O corpo eclesiástico tinha, portanto, a função de prote-
ção aos mais fracos, de acordo com as normas canônicas. Assim, em meio
a esse contexto histórico, a instituição eclesiástica começa a se reunir para
discutir algumas normas que deveriam reger a sociedade: eram os concílios
da paz de Deus. Para Bloch, o período no qual houve a mudança para a
dinastia capetíngia, sucessora dos carolíngios, ascendendo ao poder (entre
os séculos X e XI)12, não foi marcado por uma preocupação por parte da
realeza com a crescente tomada de medidas por parte da Igreja, na tentati-
va de assumir “missões justiceiras dentro do seu território”13. Portanto, a
Igreja e os nobres locais mostravam a tendência de se apoderarem das tare-
fas reais. Isso foi caracterizado por Jean-François Ganshof, em seu livro
Qu’est-ce que la féodalité?, – em uma obra célebre e reeditada dezenas de ve-
zes, em vários idiomas – como uma desagregação da ordem política, de-
monstrando, assim, uma “falência do poder carolíngio”14.
Um ponto-chave: em célebre artigo de Georges Duby15, denominado
Recherches sur l’évolution des institutions judiciares pendant le Xe et XIe siécle
dans le sud de la Bourgogne, publicado em meados da década de 40, o histori-
ador discute as mudanças das instituições judiciárias entre os séculos X e

11
Ibid.
12
É importante salientar que a Dinastia Capetíngia estende-se até o século XIV; por isso a neces-
sidade veemente de ressaltar que o período sobre o qual este texto se debruça é o início da
dinastia, na passagem do século X para o XI.
13
“Com exceção de Roberto, o Piedoso, que reuniu grandes assembleias para nelas fazer jurar a
paz, os Capetos não parecem ter-se preocupado com instituições que consideravam, talvez, aten-
tatórias contra a sua própria missão de justiceiros” (DUBY, op. cit., p. 458).
14
GANSHOF, Jean-François. Qu’est-ce que la féodalité? Bruxelles, 1944, p. 47.
15
DUBY, Georges. Recherches sur l’évolution des instituitions judiciaires pendent le Xe et le
XIe siècle dans le Sud de la Bourgogne. Le Moyen Age, v. 52, n. 3-4, p. 149-194, 1946, e v. 53, n.
1-2, p. 15-38, 1947; publicado posteriormente em Hommes et structures du Moyen Age: recuil
d’articles. Paris: Mouton Éditeur, 1973, p. 7-60.

311
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

XI. É importante ressaltar que seu texto é uma análise de caso, num local
específico que é a região do Mâconnais, a partir de documentação clunia-
cense, incluindo os escritos do historiador Raoul Glaber, monge dessa or-
dem – tema frequente de pesquisas de Duby e fonte para sua pesquisa de
doutoramento nesse período. Para Duby, anteriormente à passagem do
milênio, podemos encontrar a queda do sistema carolíngio, “simples e coe-
rente”16, e o advento de uma concepção “confusa” da função judiciária,
determinada, pois, pelas relações pessoais dos nobres e resoluções de con-
flitos a partir de práticas privadas. A prática judiciária passa, portanto, de
um caráter público, que era da realeza, para um caráter privado de funcio-
namento, assumido pela instituição da Igreja e pela nobreza17. Duby utili-
za-se dessa terminologia descrita, por mais questionada que possa parecer
aos historiadores. Mais uma vez, considero importante salientar que uma
discussão a ser posta é o fato dessa historiografia considerar o “caráter pú-
blico” apenas pelo fato de partir da instituição real. Essa percepção, fica
claro em minhas análises e percepções nas leituras sobre essas obras de
importante conhecimento para quem se dispõe a estudar o período, deve
ser colocada em questionamento ao longo de uma pesquisa.
A análise salienta que a diminuição, o declínio do poder real aparece
como uma das características de formação da “civilização feudal”, deixan-
do de lado aquele período do Império Carolíngio que tinha características
baseadas na antiga organização ainda de origem romana. Com o contexto
europeu dos anos 60, o historiador recorre às análises estruturalistas18 (ten-
dência também expressa na análise de Robert Boutruche19), nas quais vigora
a ideia de que, com a descentralização do poder real e o aparecimento de
vários núcleos de poder (células de poder), podemos notar uma tripartição
social específica e delimitada20. Tal análise resultou na famosa trifuncionali-
dade exposta nas pesquisas de Duby sobre as três ordens (oratores, bellatores
e laboratores)21, fundamentadas no imaginário medieval.

16
Ibid., p. 7.
17
Duby conclui que “desormais la curia est formée essentielement de deux éléments. Les fami-
liers du comte, son fils, la comtesse, des mistériaux, en particulier le prévôt de Mâcon, consti-
tuient un noyau permanent qui confere au tribunal un caractere nettement prive, familial même”
(ibid., p. 10).
18
DUBY, Georges. La société aux XIe et XIIe siècles dans la region mâconnaise. Paris, 1953.
19
BOUTRUCHE, Robert. Seigneurie e féodalité. Paris, 1968.
20
Para maiores informações sobre o tema, ver: DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do
feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982 (Colecção Nova História); ID., 1980.
21
DUBY, 1982.

312
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Concepção mutacionista
Ainda que Duby não possa ser considerado “mutacionista”, pelo fato
de não ter se utilizado do termo em suas primeiras análises, suas ideias
serviram como fundamento para a ascensão de uma nova problemática:
teria existido uma “mutação feudal” após a tentativa de organização públi-
ca dos carolíngios e a administração de seus sucessores, os capetíngios?
Jean-Pierre Poly e Éric Bournazel deram a seu texto o nome de La mutation
féodale22, no qual defenderam a tese de que a sociedade do século X sofreu
uma mudança social de ordem até então nunca vista. Essa análise também
é defendida por historiadores como Pierre Bonnassie, no seu livro La Cata-
logne du milieu du Xe à la fin du XIe siècle23, e por Guy Bois, na obra La muta-
tion de l’an mil24.
A realeza carolíngia, com sua característica de uma organização que
visava à administração pública da sociedade em meio àquela “anarquia”
que remetia à época das “invasões bárbaras” da sociedade, nos séculos V e
VI, desaparecera dando origem à dinastia dos capetíngios, a qual diferia
das condições organizacionais, dos meios de estruturação política feita pe-
los seus antecessores – os carolíngios. As lutas entre os nobres presentes no
espaço do Reino dos Francos fizeram com que aumentasse a insegurança
geral25. As tensões e conflitos desse período nos chegaram pelos “olhos da
Igreja”, já que foram os monges que nos legaram a maior parte da docu-
mentação conhecida até hoje. Estes textos, segundo Poly e Bournazel, nos
mostram que bispos, arcebispos e mais alguns condes iniciaram um movi-
mento de organização social para, em concílios, tentar restabelecer a paz.
Dessa forma, para Poly e Bournazel, a formulação dos códigos feitos pelos
concílios da Paz de Deus e posteriormente a Trégua de Deus, com suas
sucessivas reuniões e formulações de documentos com regras básicas, fo-
ram iniciativas conjuntas da Igreja e dos condados francos a fim de objeti-

22
POLY, Jean-Pierre; BOURNAZEL, Eric. La mutation féodale: Xe – XIIe siècles. Paris: Presses
Universitaires de France.
23
BONNASSIE, Pierre. La Catalogne du milieu du Xe à la fin du XIe siècle. Publications de l’Université
de Toulouse-Le Mirail, 1976.
24
BOIS, Guy. La mutation de l’an mil. Paris: Fayard, 1989.
25
Os autores explicitam que “[l]e mouvement pour la Paix de Dieu avait commencé à la fin du
Xe siècle dans le Midi; la royauté carolingienne, considerée ici comme seule legitime, avait
disparu; les luttes entre princes territoriaux, en accroissant l’insécurité générale, favorisaient
une dissociation plus profonde des structures publiques. Quelques évêques méridionaux et
certains princes se réunissent alors pour rétablir la paix” (ibid., p. 157).

313
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

var uma reformulação do processo de resolução dos conflitos, de colocar


pressupostos para que a sociedade fosse regida através de um código, no
qual havia limitações aos novos grupos de milites que se formavam para
auxílio à aristocracia guerreira. A Igreja, ou grande parte de seus membros,
assumiu a organização social e jurídica, a partir da formulação dos docu-
mentos de Paz e Trégua de Deus. Foi um dos pressupostos fundamentais
para a afirmação de que, durante o período, houve uma transformação es-
trutural que recebeu a alcunha de “mutação”.
Baseado na análise dessas obras historiográficas, em 1980 Alain Guer-
reau, em seu livro O feudalismo: um horizonte teórico26, coloca um destaque
para os relatos sobre as guerras. Para ele, o período deve ser entendido a
partir de dois conceitos: o “feudalismo” e a “lógica feudal”. O primeiro
termo refere-se ao momento em que o “feudo” entra na integração feita
pela aristocracia a partir de alianças entre seus pares, o que corresponderia
aproximadamente aos séculos IX-XIII. Já o segundo termo, a “lógica feu-
dal”, refere-se aos elementos que passam por toda a Idade Média, os quais,
em uma visão estrutural-marxista, abrangeriam o período do século V ao
XVIII. Para ele, a “lógica feudal” se daria a partir das guerras pessoais para
a distribuição do poder – ainda que o autor não tenha utilizado o termo
“privado”, trata-se de uma concepção que elenca ideias a partir deste pos-
tulado. Portanto, encontra-se em sua interpretação um desaparecimento
dos instrumentos públicos de justiça, em que se nota também o desapareci-
mento de um poder público e de um governo. Por isso, nota-se, a partir
dessas análises, uma ênfase na violência no período, principalmente por
parte da nobreza, para explicar como não haveria autoridade pública nem
formas de governo nesse momento de “mutação”.

Percepção antimutacionista
Uma corrente contrária, iniciada por volta dos anos 1990, principal-
mente com Dominique Barthélemy, vem afirmando que devemos repensar
este momento da Alta Idade Média / Idade Média Central. O que ele de-
fende é que se deve colocar novamente em discussão as afirmações dos
historiadores que até então defenderam a “mutação”. No seu livro A Cava-

26
GUERREAU, Alain. O feudalismo: um horizonte teórico. Porto: Edições 70, 1982.

314
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

laria: da Germânia antiga à França do século XII27, Barthélemy demonstra que


devemos problematizar até mesmo o conceito de aristocracia guerreira, afir-
mando que muitas cerimônias advêm de tempos mais remotos, que chega-
ram e foram recebidas pelos povos ditos “bárbaros”.
Outro fator que Barthélemy aponta é que as declarações conflituosas
muitas vezes não têm uma consequência, um desdobramento, com a luta
entre os nobres e a utilização das armas. Para ele, grande parte das protela-
ções de resolução de conflitos a partir da batalha que são feitas podem ser
entendidas como demonstrativos de que os conflitos poderiam ser poster-
gados, para que talvez houvesse a resolução a partir de negociações entre as
partes. Seriam, então, as demais interpretações sobre o período, da corren-
te denominada “mutacionista”, apenas uma “ilusão documental”? Para
Barthélemy, a resposta parece afirmativa. Uma “ilusão documental”, con-
forme termo por ele próprio utilizado, pode ser encontrada nas pesquisas
sobre o problema. Assim, para esse historiador, nada mais houve que “ajus-
tamentos sucessivos”, nos quais as grandes estruturas institucionais, judi-
ciárias, militares e sociais não foram atingidas por uma convulsão ocorrida
no período do Ano Mil, mas sim, e simplesmente, “modificadas”, adaptan-
do-se à sociedade com suas mudanças naturais. O que muda, para Barthé-
lemy, é o vocabulário dessa sociedade – miles para caballarius ou beneficum
para feudum, para citar dois exemplos expostos pelo próprio Barthélemy28.
O autor elenca quatro pontos para fazer uma crítica às análises que defen-
dem uma transformação total da sociedade nesse período:
1. Para Barthélemy, a análise de Bloch, focada numa diferença de
ordenamento cronológico em relação às pesquisas do século XIX, mostra-
se quase que inteiramente sociológica, atentando para um ponto de infle-
xão por volta do ano de 1050; Georges Duby transforma essa inflexão em
uma consideração sobre a “ruptura” que teria se dado no período. Para ele,
o que esses autores propunham era uma “desagregação das instituições pú-
blicas”, relegando a justiça aos nobres. Assim, o resultado seria uma nova
concepção de poder.

27
BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Cam-
pinas: Ed. da Unicamp, 2010.
28
BARTHÉLEMY, Dominique. La mutation féodale a-t-elles eu lieu? (note critique). Annales
ESC, n. 3, p. 767-777, maio-jun. 1992. Posteriormente, sairia publicado um livro com o mesmo
nome da “nota crítica” que havia sido publicada na Annales (vide referências bibliográficas).

315
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

2. O segundo ponto demonstra uma mudança de estilo, que para


Barthélemy seria apenas o demonstrativo de uma transformação deste vo-
cabulário, de uma adaptação às mudanças inerentes às sociedades no tempo.
Para os mutacionistas aparece como uma formulação de um novo período,
que vem agregar força à ideia de um declínio das instituições públicas e da
predominância da violência endêmica na sociedade.
3. Também sobre o vocabulário, que demonstra uma mudança social
para os mutacionistas, Barthélemy afirma ser uma “ilusão documental”, já
citada linhas acima. Ele aponta a ascensão do milites como um “mito histo-
riográfico”. Assim sendo, tanto a servidão quanto a cavalaria, objetos de
análise dos mutacionistas, para Barthélemy não demonstram uma mudan-
ça social, mas uma adequação e transformação que já se gestavam desde
muito tempo antes do século X. Isso se mostraria mais pertinente nos seus
estudos sobre o senhorio e a cavalaria29.
4. Por fim, o problema relacionado à análise de um fim da “ordem
pública” não é demonstrado nos textos que são analisados pelos mutacio-
nistas. Para ele, a ordem apontada pelos mutacionistas que aparece “de-
monstrável” em suas pesquisas sobre o século X não está distante do, para
Barthélemy, “habitual” no século XI. Por isso, para esse historiador, não há
uma ruptura aparente e demonstrável na organização jurídica na passagem
do Ano Mil. Dessa forma, as instituições públicas continuam exercendo
suas funções na continuidade da passagem do milênio. Mas, claro, com
readequações e ajustes.
Em suma, para Barthelémy não há, pois, uma mudança que se possa
considerar profunda nesse período, mas sim ajustes sociais. Para ele, as gran-
des estruturas judiciárias, militares, sociais, entre outras, não sofreram mo-
dificações, mas sim uma série de rearranjos.
Ao analisar a tese de Barthelémy, algumas considerações merecem
ser traçadas. Enquanto ele aponta para um fator importante, que é a noção
por nós entendida de “ajustamentos” sociais, salientamos que isso é de-
monstrável no período o qual nos propusemos analisar. Entretanto, não
concordamos que as transformações sejam sempre rearranjos, mas, sim, há
momentos de ruptura, os quais não encontramos de uma forma abrupta na
passagem da dinastia carolíngia para a capetíngia. Outra crítica que tece-
mos à tese deste historiador é que não podemos supor que a mudança de

29
Ver referência da nota 25.

316
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

vocabulário possa ser entendida única e exclusivamente nesse período como


uma ilusão documental, haja vista a concepção de que uma língua – e,
portanto, sua própria representação – em sua transformação, denota uma
construção social que emana mudanças que ocorrem dentro da sociedade.
Ou seja, quando o vocabulário muda, isso aponta para transformações que
ocorrem dentro daquela sociedade naquele determinado contexto30. Não é,
portanto, uma mera ilusão documental conforme proposta pelo historia-
dor.
O debate continua em aberto, como nos mostra o grande número de
publicações e discussões em revistas acadêmicas, como a Past & Present31,
para citar apenas um exemplo. Analisar mais estas obras neste pequeno
trabalho seria altamente custoso pela falta de espaço exigido pelo texto.
Entretanto, o debate continuar em aberto é um demonstrativo da necessi-
dade de as fontes serem analisadas, problematizadas, da discussão continu-
ar sendo feita, com novas abordagens sobre o período e novos questiona-
mentos, para que se possa contribuir com tão profícua discussão. Uma re-
flexão que foi muito bem formulada por Christian Lauranson-Rosaz finali-
za uma percepção sobre o debate que está proposto:
É um lugar comum dizer que essas análises são muito teóricas ou dialéticas,
que correm o risco da abstração, da opacidade, e, sobretudo, do maniqueís-
mo. As tipologias, as representações ideológicas, as revisões cronológicas,
têm seus limites [...] Sem esquecer que nossos imaginários político, instituci-
onal, jurídico, econômico, social, mental não serão jamais aquele dos nos-
sos ancestrais do Ano Mil: “Os costumes dos homens mudam e muda tam-
bém a ordem das coisas”, disse Adalberón de Laón...32

Novas formas para discussão sobre o período


Nos últimos anos do século XX e início do XXI, pudemos observar
um crescente interesse pelo estudo e análise das resoluções dos conflitos
durante a Idade Média. A partir da organização de colóquios como o tradi-
cional encontro de Spoleto, feito pelo Centro Italiano di Studi sull’Alto Me-

30
GUERREAU, 1982, mais precisamente o capítulo 6, p. 213-257.
31
O debate publicado na Past & Present pode ser observado em: <http://past.oxfordjournals.org/
content/155/1/196.citation>. Acesso em: 25 out. 2012.
32
LAURANSON-ROSAZ, Christian. Le débat sur la “mutation féodale”: état de la question.
Disponível em: <http://www.droit.u-clermont1.fr/pages_statiques/Recherche/CentreRecher-
che/...>. Tradução nossa. Acesso em: 25 out. 2012.

317
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

dioevo33, vários pesquisadores começaram a se debruçar sobre a análise dessa


temática. Dentre os muitos, mencionamos Patrick Geary34, Paul Fouracre35,
Ian Wood36, Regine Le Jan37, além de vários eventos organizados pela Société
des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public38 e um outro coló-
quio sobre a “vingança” na Idade Média, pela École Française de Rome39.
Entretanto, não podemos considerar o interesse pela temática da violência
como novo, já que desde os historiadores do século XIX o tema teve papel
fundamental para a compreensão do período. O que se pode notar na atua-
lidade é uma mudança no enfoque, nos métodos de análise da documenta-
ção e nos questionamentos que são feitos a essas fontes, documentações.
Dessa forma, acreditamos ser possível fazer uma análise da obra de
escrita histórica de Richer de Reims, analisando-a à luz dessa discussão
bibliográfica, para compreendermos de que forma se compõe, para este
autor medieval, a autoridade pública no Reino dos Francos, na passagem
dinástica dos carolíngios para os capetíngios. Essa análise pode ser postula-
da a partir da leitura crítica dos relatos de conflito, de disputa, que envol-
vem tanto a figura real quanto os demais nobres; relatos estes que ocupam
extensas páginas da obra do historiador medieval. A partir desse estudo,
poderemos contribuir para o entendimento das ações da realeza que se fa-
zem com a participação efetiva do rei, no relato de Richer, como artifício
de manutenção do poder dentro da sociedade medieval.
Richer de Reims foi um monge oriundo de uma família muito próxi-
ma a Luis D’Altremar, do qual seu pai, Raoul, foi um guerreiro (um miles).
Como monge, entra na Abadia de Saint-Remi de Reims em 969 e lá ficaria
para o resto de sua vida. Por volta de 972, conheceu Gerbert d’Aurillac

33
Fondazione Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo: <http://www.cisam.org/index.php>.
Acesso em: 25 out. 2012.
34
GEARY, Patrick. Vivre en conflit dans une France sans État: typologie des mecanismes de
règlement des conflits (1050-1200). Annales ESC, v. 5, p. 1107-1133, 1986.
35
FOURACRE, P. Placita and the Settlement of Disputes in Later Merovingian Gaul. In: DA-
VIS, W.; FOURACRE, P. The Settlement of Disputes in Early Medieval Europe. Cambridge, 1986,
p. 23-44.
36
WOOD, Ian. Disputes in Late Fifth and Sixth-century Gaul: Some Problems. In: DAVIES;
FOURACRE, 1986, p. 7-22.
37
LE JAN, R. La vengeance d’Adèle ou la construction d’une legende noire. In: BARTHÉLE-
MY, D.; BOUGARD, F.; LE JAN, R. La vengeance, 400-1200. Paris: École Française de Rome,
2006, p. 325-340.
38
Actes des Congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Pu-
blic. Disponível em: <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/revue/shmes>.
Acesso em: 25/10/2012.
39
BARTHÉLEMY; BOUGARD; LE JAN, 2006.

318
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

(futuro papa Silvestre II), que o compele à escrita de uma obra de História,
a qual foi estruturada entre o período de 882 a 998. A partir deste feito
surgem os Quatre livres d’histoire (991-998), que nós conhecemos apenas como
Histoires, obra essa que foi dedicada ao próprio autor da encomenda, Ger-
bert. Um importante dado é que este texto foi descoberto e editado apenas
no século XIX (1833) pelo estudioso George-Henri Pertz. O texto, em seu
conjunto, compõe uma importante fonte para o estudo dos séculos IX e X
no Reino dos Francos.
O texto, segundo Pertz, foi escrito durante três anos (995-998) e foi
desta maneira distribuída por Richer: entre os anos 995 e 996, o monge
escreveu o livro I e mais 78 capítulos do livro II, o que conduz o leitor até o
ano de 948. Entre 996 e 998, redigiu o fim do livro II mais os livros III e IV,
que por sua vez compreendem os anos posteriores a 948 até o ano de 995.
Para a escrita de sua obra, Richer expõe suas intenções, que partem da
análise e narração dos acontecimentos relativos às guerras travadas pelos
francos, além das causas de problemas que correspondem a este período. O
monge utiliza-se, basicamente, da obra de Flodoard, que descreve os acon-
tecimentos até o ano de 888. Obra essa tão importante que será a base dos
escritos de Richer durante a composição do seu livro de Histórias, como ele
mesmo salienta em seu prólogo40. Para Pertz, podemos caracterizar a obra
da seguinte forma: a primeira e segunda partes correspondem ao período
em que há um diálogo com os Anais de Flodoard e a terceira parte ao perí-
odo posterior ao ponto onde aquele cronista parou41. Outro historiador, H.
D’Arbois de Jubainville, vai apontar ainda que a primeira e a segunda par-
tes da obra de Richer são adições e complementos ao texto de Flodoard42.
A terceira parte da obra de Richer se inicia a partir do capítulo XX do
livro III e compreende os anos de 969-995, que referenciam o fim do governo
de Lotário, o governo de Luís V e o de Hugo Capeto. Para tanto, utiliza-se
dos arquivos do Sínodo de Mouzon, organizado por Gerbert, além dos docu-

40
Para uma melhor análise sobre a escrita da história nesse período, principalmente a partir dos
relatos de Richer de Reims e Raoul Glaber, ver: BASSI, Rafael José. Por fazer História: histori-
ografia medieval nos séculos X e XI no Reino dos Francos: Raoul Glaber e Richer de Reims.
Monografia de Especialização em História Cultural, apresentada na Universidade Tuitui do
Paraná.
41
PERTZ, G-H. Notice Critique. Richer: Histoire de son temps. Paris: Chez Jules Renouard,
1845, p. xxvii.
42
JUBAIVILLE, H. D’Arbois. L’Historien Richer et le siége de Melun em 999. Disponível em:
< h t t p : / / w w w. p e r s e e . f r / w e b / r e v u e s / h o m e / p r e s c r i p t / a r t i c l e / b e c _ 0 3 7 3 -
6237_1859_num_20_1_445644>. Acesso em: 25 out. 2012.

319
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

mentos de Saint-Remi de Reims. Isso faz com que componha com seu escrito
uma grande fonte para o estudo dos governos destes três reis, que caracteriza
o recorte cronológico proposto para nossas análises.
Uma contribuição que pretendemos dar com este texto passa por uma
análise baseada em pressupostos estabelecidos, entre outros autores, por
uma concepção problematizada por nós a partir de Pierre Bourdieu43. Sali-
entamos que utilizamos alguns pressupostos, adequando-os, na maior par-
te das vezes, nas nossas necessidades teóricas de análise. Cremos que a dis-
cussão do conceito de poder simbólico pode contribuir para o entendimento
das relações de poder na passagem da dinastia carolíngia para a dinastia
capetíngia, no Reino dos Francos. Pensando a partir da concepção de cam-
po, podemos estabelecer o conceito como um campo de forças, em que há
uma imposição aos grupos sociais; mescla-se a isso a ideia de campo de
lutas, onde estas acontecem de acordo com a posição dos personagens polí-
ticos dentro de uma hierarquia social. Assim sendo, podemos analisar a
participação da instituição eclesiástica e do próprio grupo da nobreza e
suas relações com a realeza que se estabelecia, ou pelo menos intentava,
com sua subida ao reino.
Observemos o excerto que se segue, que se inicia com a aceitação do
nome de Hugo Capeto para a função real. O texto que é posto parte do
relato do historiador Richer de Reims sobre a coroação de Hugo Capeto e,
por consequência, a mudança dinástica ocorrida no Reino dos Francos nos
anos que antecediam a passagem do milênio, a saber, 987 d.C.:
[12] Emitida essa sentença, e sendo ela por todos aprovada, o duque [Hugo],
com o consenso de todos, foi elevado ao reino e, coroado a Noyon pelo
arcebispo e os demais bispos, foi proclamado nas calendas (primeiro dia) de
junho rei dos gálicos, dos bretões, dos normandos, dos aquitânios, dos go-
dos, dos hispânicos e dos guascões. E assim circundado pelos príncipes do
reino, segundo costume, emitiu decretos e estabeleceu leis, ordenando e dis-
tribuindo tudo com grande sucesso, e ele, por corresponder à própria fortu-
na, encorajado do grande sucesso dos eventos favoráveis, se dedicou a mui-
tas obras de piedade. E para deixar um herdeiro certo no reino depois da
própria partida dessa vida, se conciliou com os príncipes e, tendo com eles
maturado uma decisão, convocou o arcebispo de Reims à cidade de Or-
léans44; primeiro mediante embaixadores e depois de outras pessoas, sobre o
propósito da elevação do próprio filho Roberto. E quando o arcebispo lhe
respondeu que não se podia ter legitimamente criado dois reis no mesmo
ano, ele [Hugo] de súbito exibiu uma carta enviada pelo duque da Espanha

43
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
44
Hugo estava em Orleans em 25 de agosto de 987.

320
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Citeriore [condado de Barcelona], assinalando que o duque exigia ajuda


contra os bárbaros [os árabes de Almansor, que haviam ocupado Barcelona
por volta de 985]. Afirmava também que a província da Espanha estava já
quase conquistada pelos inimigos e se não recebesse em até 10 meses uma
tropa dos francos, o território seria todo passado para possessão dos bárba-
ros. E assim pedia que se criasse um segundo rei, pois se no tumulto bélico
um dos dois sucumbisse, o exército não perderia a confiança no príncipe. E
afirmava que se podia verificar, no caso de um só rei ser assassinado e o
território devastado, a discórdia dos maiores, a tirania dos malvados sobre
os bons e depois a sujeição de toda a população.
[13] O arcebispo, compreendendo o que poderia acontecer, consentiu ao
discurso do rei. E porque no momento do dia da natividade do Senhor, os
príncipes do reino estavam reunidos para celebrar a cerimônia da coroação
do rei, na basílica da Santa Cruz [catedral de Orleans], enquanto os francos
aclamavam, vestido à púrpura, ele coroou solenemente o seu filho, Roberto,
e o ordenou rei e o colocou chefe dos ocidentais do rio Mosa [planalto de
Langres] até o Oceano. Homem notável por empenho e diligência grande
que ao mesmo tempo sobressaiu na arte militar e era considerado espertíssi-
mo nas instituições divinas e canônicas; se dedicava aos estudos liberais e
participava também nos sínodos dos bispos e com eles discutia e decidia as
causas eclesiásticas45.

Elencamos esse excerto para uma primeira análise. Nota-se, princi-


palmente, que o rei tem um séquito de príncipes, os quais lhe são fiéis para
os fins políticos de apoio e aceitação. O relato anterior ao acima exposto
demonstrava o discurso do arcebispo de Orléans, que dispensava elogios
sobre a sucessão real; já que Luís V (986-987) não deixara herdeiros ao
trono, o nome sugerido pela instituição da Igreja era o de Hugo Capeto. E
note-se que a escolha é feita em detrimento de outros parentes carolíngios
que reivindicavam o trono para membros da família. E como a documenta-
ção aufere, todos os nobres que estavam presentes no discurso mostraram-
se afeitos à escolha. A sentença foi aceita por todos, como explicita Richer.
Assim, podemos considerar os agentes, no termo de Bourdieu, como mem-
bros de uma nobreza decisiva que, justamente por essa função, aceitava o
referendo da Igreja e legitimava a escolha eclesiástica para a posição real. O
questionamento que deve ser feito é se não poderia ser uma aceitação polí-
tica justamente para enfraquecimento da monarquia. Entretanto, não se
nota, por parte de Hugo Capeto, uma anulação do poder da realeza por sua
própria parte. Explicitamente o contrário, haja vista suas ações efetivas den-
tro da sociedade.

45
Richeri Historiarum, liv. IV, cap. 12-13.

321
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

Essa realeza que possui um poder simbólico. Contendo um capital


simbólico por meio de instituições e práticas sociais que permitem o exercí-
cio do poder, estes símbolos tornam-se instrumentos de reprodução para a
manutenção da ordem, para a legitimação do poder e para a aceitação da
ação da realeza, suas funções perante a sociedade. Todo esse capital simbó-
lico aparece, pois, como um legitimador do poder. O momento do anúncio
do rei, com toda a série de rituais como o de sua coroação, das festividades
religiosas que se seguem, demonstram o poder simbólico imbuído na figura
real. A simples utilização do termo “púrpura” no relato richeriano aponta
para uma ação simbólica utilizada desde a Antiguidade para a afirmação
da figura dirigente de poder, tendo sua manutenção no Império Bizantino
e, como demonstra o documento, apontando para resquícios dessa prática
no Ocidente medieval46.
Esse poder simbólico, tido como “invisível que só pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos
ou mesmo que o exercem”47, segundo Bourdieu, demonstra como a realeza
franca se apresenta. O rei tem a função de “emitir decretos e delegar leis”,
ainda que existisse em muitos pontos da legislação um limite48, o que apon-
ta para uma participação ativa na administração política. Com a cumplici-
dade dos demais nobres, que o observam e o congratulam pelos feitos, a
figura do rei mantém sua autoridade, mesmo com a ascensão ao poder e
formulação de uma nova dinastia. Isso se demonstra pelo fato de, para Ri-
cher, reunir todos os grandes nobres do território sob seu domínio e, em
determinado momento, propor até mesmo a coroação de seu filho, utili-
zando-se de uma série de argumentos bélicos e de estratégia política para a
aceitação. Aqui apontamos para a quantificação aparente na fonte, o que é
improvável de haver concordância, pelo fato de não podermos cotejar com
outros dados para a certificação de que todos os nobres, detentores de par-

46
Alguns apontamentos sobre a utilização da púrpura nos cerimoniais de coroação podem ser
vistos em BASSI, Rafael José. Esquecer os favoritismos e os ódios: Anna Comnena e a historiogra-
fia bizantina (séculos XI e XII). Trabalho monográfico para obtenção do título de Bacharel em
história pela UFPR. Disponível em: <http://www.historia.ufpr.br/monografias/2009/
2_sem_2009/rafael_jose_bassi.pdf>. Observar, particularmente, o capítulo II: Anna Comne-
na, historiadora medieval.
47
BOURDIEU, 2001, p. 7-8.
48
Sobre uma discussão da função exercida pelo rei como juiz e como legislador, problematizan-
do as ideias de Weckmann, ver: ALMEIDA, C. C. de. Considerações sobre o uso político do
conceito de justiça na obra legislativa de Afonso X. Anos 90, Porto Alegre, n. 16, p. 13-36,
2001/2002.

322
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

celas de terras dentro do território franco, tenham comparecido. Outro ponto


observado é a formulação feita pelo historiador medieval para ressaltar as
qualidades do filho de Hugo, assim que ele recebe a posse do trono junto ao
pai. Homem que se sobressaía na qualidade militar, mas também nas ques-
tões eclesiásticas e, além do conhecimento das artes liberais (trivium e qua-
drivium), participava junto com os bispos das reuniões promovidas pela Igre-
ja. A figura real é exaltada pelas suas qualidades militares, religiosas e de
organização social.
Marc Bloch propôs uma análise comparativa que até hoje continua
muito atual. Analisando as monarquias francesa e inglesa, o historiador
analisou a “história de uma crença”, resultando no livro já citado, Os reis
taumaturgos49, obra basilar da Escola dos Annales, com seu foco em uma
história total, baseada em uma ideia de sociedade feudal, sendo até a polí-
tica vista por esse prisma. Havia a crença de que o rei tinha o poder de curar
as escrófulas, segundo Bloch, graças à sua aura sagrada que envolvia a
monarquia nesse momento – e que tem sua permanência pelos séculos pos-
teriores, até a Idade Moderna. Segundo o autor, isso derivava do fato de
que as concepções de semideuses que os reis possuíam acabam por desapa-
recer após a ascensão do cristianismo. O que restara a estes homens era o
cargo de chefes políticos durante o período medieval. Mas, com as celebra-
ções da coroação e da unção, feitas pela Igreja, o rei assumia a figura de
defensor da cristandade, com o objetivo de defesa da religião. E como rei
cristianíssimo, como vigário de Deus na Terra, o rei possuía o poder de
cura sobre as escrófulas, que era resultado dos óleos santos com os quais
havia sido ungido na hora de receber o poder. Com uma simbologia pree-
xistente e afirmada pela própria instituição eclesiástica, o rei pode se tornar
chefe político com poderes amplos, até mesmo os poderes de cura das es-
crófulas. Com estes pressupostos, Bloch expõe que, desde o período dos
merovíngios, formula-se politicamente aquilo que ele denomina como uma
monarquia sagrada.
Outro autor que discute muito a questão da figura real, no clássico da
historiografia Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval 50, é
Ernst Kantorowicz. Para este historiador, o caráter sagrado e simbólico
que o rei possui durante a Idade Média deve ser compreendido como a

49
BLOCH, op. cit.
50
KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.

323
BASSI, Rafael José • Por um estudo da política no Reino dos Francos (século X)

junção e apropriação dos caracteres jurídicos e filosóficos existentes na so-


ciedade em que vivia. Assim, para Kantorowicz, o rei possuía dois corpos,
o natural e o político, sendo o primeiro corpo mortal, estando sujeito a
todas as incorreções que podem acontecer aos outros homens, mas o se-
gundo – o corpo político – é um corpo que não pode ser visto ou tocado,
constituindo a política e o governo. Dessa forma, as atitudes tomadas por
esse corpo não podem ser invalidadas por alguma espécie de incapacidade
preexistente em seu corpo natural. Assim sendo, podemos auferir que esse
corpo político está envolto em questões simbólicas tais como sagração e
ritos, que podem demonstrar a existência desse corpo invisível.
Por isso, tanto em Bloch quanto em Kantorowicz percebemos como
a figura real é detentora de um poder, seja ele advindo de uma monarquia
sagrada, seja de uma utilização de formulações jurídicas, que faz com que o
rei possa exercer suas funções dentro da sociedade. Além do fato de ele ser
aceito tanto pelo grupo dos nobres quanto pelo grupo das pessoas que habi-
tam aquele território de um modo geral, sejam camponeses ou detentores
de outras atividades.
Podemos propor como pequena provocação acadêmica uma outra
percepção para a análise da realeza franca relatada nesse excerto, ainda que
deixemos claro que a problematização é passível de crítica – o que pode
também contribuir para a discussão sobre o período, levando em considera-
ção o que explicitamos anteriormente neste pequeno trabalho. Pensando a
partir das concepções de Norbert Elias expostas em seu livro A sociedade de
corte51, nota-se que, mesmo nesse contexto medieval, encontramos um gru-
po de nobres; os quais gravitam em torno da figura real. A isso, acredita-
mos que se pode acrescentar que há uma dependência destes nobres em
relação ao rei. Ainda que Elias esteja analisando a sociedade do Antigo
Regime, acreditamos que a ideia de uma corte – e aqui, modificamos a
percepção para aquilo que denominamos de “grupo de nobres” – que está
no entorno do rei atende às análises sobre a realeza medieval. Esses encon-
tros entre os dirigentes políticos, como o relatado por Richer de Reims,
aparecem como o centro de relações sociais e políticas entre o rei e estes
nobres, e podem expressar uma tensão entre eles, onde os nobres procura-
vam o reconhecimento por parte do rei, a fim de garantir a manutenção de

51
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocra-
cia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

324
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

uma hierarquia entre eles mesmos, os próprios nobres. É, pois, articulando


nesse jogo, nesse esquema politico, que o rei assegura o seu poder. E dessa
tensão, da busca de um equilíbrio entre a nobreza e o rei, é que o segundo
consegue manter sua predominância sobre os demais, dentro dessa estrutu-
ra política nesse caso.
Dessa forma, como primeiras considerações, podemos apontar a rea-
leza franca do período como detentora de um poder simbólico dentro de um
campo social que lhe permite, caso o rei consiga, administrar um poder
efetivo de ação na sociedade. Utiliza-se desse poder simbólico constituído
para legitimar-se no poder político, no trono. Portanto, adequa-se à ideia de
que o rei detém uma função; e o exercício dessa função significa a manu-
tenção das ações que o rei deve realizar, todas elas derivadas e atribuídas ao
caráter real, sendo elas religiosas, jurídicas ou administrativas. O que é de-
monstrável pelo relato do historiador Richer de Reims é que a mudança
dinástica apresenta-se como pacífica e que o rei possui e zela pela manuten-
ção de suas ações, de suas funções preestabelecidas pela tradição, como a
manutenção da paz, a administração, o exercício efetivo do poder na socie-
dade.
Essa ideia aponta para uma consideração sobre a continuidade do
exercício prático do poder real, com suas funções e ações determinantes
para a política já existentes dentro da sociedade, no contexto do reino dos
francos. O que se adequa para a nossa concordância da ideia de reajustes
políticos e sociais, com transformações naturais dentro das mudanças so-
ciais que passava o Reino dos Francos no período do final do século X.
Essas transformações políticas, essa mudança dinástica, em efeito, podem
fazer com que o rei tenha que agir em alguns momentos de formas variadas
à tradição, ao costume, mas também fazem com que consiga manter o seu
poder de ação, de manutenção de suas funções. Ou, como a ideia exposta,
fazem com que o rei continue agindo dentro daquela sociedade, naquele
contexto, segundo os relatos do historiador medieval Richer de Reims.

325
326
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A incorporação de modelos femininos


cristãos na legislação ibérica medieval:
uma análise comparativa da Leges Visigothorum
e da legislação afonsina

Irma A. G. Bueno1

Estudar a figura feminina durante o Medievo buscando conhecer quais


os papéis exercidos pelas mulheres neste período não é uma tarefa fácil.
Afinal, não temos registros de vozes femininas em número significativo
para a Idade Média que possibilitem um estudo profundo que nos dê uma
relativa segurança.
A mulher medieval chega até nós através do filtro preconceituoso do
olhar masculino, o qual, conforme Dulce Amarante dos Santos, “concebeu
‘a mulher’ como uma categoria única sem distinção de seus diferentes pa-
péis sociais, ou seja, antes de ser camponesa, dona ou monja, ela foi repre-
sentada e delineada por seu corpo, seu sexo e pelas relações com as linha-
gens”2. Não importava se eram esposas ou viúvas, virgens ou prostitutas, o
comportamento que lhes era exigido em uma ética cotidiana, e mesmo na
caracterização de sua personalidade jurídica, foi esboçado em função de
um homem ou de um grupo deles3.
Como única estrutura de caráter universal durante a Idade Média, a
Igreja Católica teve grande influência sobre o modo como esta sociedade se
compreendia e organizava e, portanto, também sobre a visão de quais pa-
péis caberiam à mulher.
Através do uso das personagens bíblicas de Eva e Maria, a Igreja de-
senvolveu modelos de comportamento feminino que prescreviam qual o

1
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2
SANTOS, D. A. dos. Imagens de mulheres nos reinos ibéricos de Leão, Castela e Portugal
(1250-1350). In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS I., 1995,
Campinas. Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais. Campinas: Humanitas Publica-
ções FFLCH, p. 157-160, aqui p. 157.
3
KLAPISCH-ZUBER, C. A mulher e a família. In: LE GOFF, Jacques (Org.). O homem medie-
val. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 193-208, aqui p. 205.

327
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval

tipo de comportamento esperado de uma mulher que desejasse a salvação


de sua alma – obediência, pureza, castidade, zelo por seu marido e filhos,
necessidade de ser defendida dos abusos e da ganância de sua própria famí-
lia ou de terceiros, por exemplo –, assim como qual o tipo de atitudes faria
com que ela fosse excluída do reino divino – desobediência, traição, utiliza-
ção de seu corpo para obter suas vantagens, incapacidade de controlar o
que diz e o que pensa e faz e, ainda, tentar inverter o funcionamento das
relações humanas, no qual, segundo os teólogos, o homem era superior à
mulher.
Levando em consideração essas visões ambíguas da mulher e de sua
natureza, e partir das pregações, dos sermões e das cartas trocadas entre
clérigos e as senhoras respeitáveis da nobreza4, foi sendo difundido, na so-
ciedade medieval como um todo, um modelo de representação binário da
mulher baseado nas figuras bíblicas de Eva e Maria como modelos de com-
portamento negativo e positivo, respectivamente, a partir dos quais as mu-
lheres deveriam agir, pois seriam classificadas e julgadas de acordo com
eles5. Ou seja, ao incorporar essa visão dualista da mulher a seus dogmas e
preceitos religiosos e pregações orais ou escritas, a Igreja foi responsável
por justificar e legitimar a posição ocupada pela mulher durante o Medie-
vo. Contudo, o grau de incorporação de tais modelos comportamentais va-
riava bastante de região para região, assim como durante os longos anos de
duração da Idade Média.
Utilizando o Direito como instrumento para buscar compreender,
embora de maneira limitada, o quanto das concepções cristãs católicas de
representação da mulher foi incorporado ao imaginário da sociedade cristã
católica ibérica ao longo do período medieval, foram analisadas a Leges
Visigothorum e as legislações afonsinas do Fuero Real e as Siete Partidas. Isso
porque, por conta da grande separação temporal e constitutiva entre as duas
sociedades formadoras e para as quais se dirigiam tais compilações norma-
tivas, o reino visigodo ibérico do século VII e as regiões de Leão e Castela
governadas por Afonso X no século XIII, respectivamente, acreditou-se ser
possível averiguar se houve variação no quanto essa representação binária
da mulher, baseada em Eva e Maria, foi absorvida entre a população cristã
católica da Península.

4
DUBY, G. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
5
POWER, E. Medieval Women. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 11.

328
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O uso do Direito como fonte para este tipo de trabalho pode ser de
grande valia para o historiador, pois, mesmo sendo elaborado por um legis-
lador ligado diretamente ao monarca e, por óbvio, atendendo aos interesses
deste, o Direito não deixa de ser um instrumento de regulação e mudança
social, bem como um reflexo – realístico ou utópico – da sociedade que o
criou e a qual pretende reger.
É oportuno lembrar, portanto, as palavras de Paulo Dourado de Gus-
mão quando este afirma que uma das funções mais importantes do Direito,
seja em qual época for,
é, pois [ser] a “resposta” dada pela sociedade ou pela autoridade à neces-
sidade de normatização exigida por uma situação histórico-social. [Desse
modo], reconhecemos influir na “resposta” (norma) os valores e tradições
históricas da cultura ou civilização em que se encontra integrada a socie-
dade para qual o direito se destina. Igualmente as necessidades históricas
e os interesses exercem também pressão sobre a “resposta” (norma), pois
não nos devemos esquecer ser o Direito obra humana, destinando-se a
homens6.

É possível, portanto, conhecer e compreender um pouco mais do


modo de vida e organização de uma sociedade ao estudar o seu Direito e,
do mesmo modo, como afirma Eugene Hecker, “nós não podemos enten-
der a legislação [de uma sociedade] sem alguma ideia do histórico de sua
vida social, política e intelectual”7.
Isso, desde que o estudioso mantenha em mente o alerta feito por
Chiffoleau sobre os riscos aos quais o historiador está sempre sujeito ao
utilizar o Direito como fonte de estudos:
a) o de esquecer que as leis são feitas por homens e para os homens e
acabar “coisificando” o Direito e dar-lhe vida própria e independente dos
seres humanos e os motivos que o estabeleceram; b) ignorar, em favor de
uma concepção contemporânea, as particularidades, peculiaridades e cir-
cunstâncias históricas da sociedade que criou tais normas e para a qual
estas leis eram direcionadas; c) estar imbuído da “ideia de progresso” e de
perceber o Direito dos povos do passado como “menos evoluído” ou “so-
mente um caminho necessário” que a humanidade teve de passar até atin-

6
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 40.
7
HECKER, Eugene A. A Short History of Women’s Rights: From the Days of Augustus to the
Present Time: With Special Reference to England and the United States. Charleston: BiblioLi-
fe, LLC, p. 103.

329
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval

gir o estágio em que se encontra na atualidade, ou seja, a tentação do histo-


ricismo8.
Conseguindo o pesquisador evitar esses três perigos mencionados
acima, a utilização do Direito faz-se útil para verificar o quão profunda-
mente ideais e concepções a respeito de determinado assunto – no que con-
cerne a essa fala em específico, os modelos cristãos católicos de comporta-
mento feminino baseados nas personagens bíblicas de Eva e Maria – foram
incorporados em uma sociedade.
No caso em específico, a escolha de tais compilações normativas não
foi aleatória. A Leges Visigothorum, embora contendo algumas normas ante-
riores, isto é, do Codex Revisus e da Lex romana Visigothorum, foi elaborada
após a conversão de Recaredo ao catolicismo. E, portanto, a maior parte de
suas leis possui um tom distintamente católico, chegando até a utilizar pas-
sagens bíblicas no corpo de algumas leis, ou de referências a estas. Inclusi-
ve, normas que tratam de assuntos específicos – forma de eleição da monar-
quia, perdão aos considerados rebeldes, relação com os judeus, etc. – deve-
riam ser sancionadas pelos Concílios antes de serem promulgadas.
A versão editada por Égica da Leges Visigothorum acabou sendo usada
“como base da legislação que, mais tarde, foi utilizada nas comunidades
cristãs-moçárabes pelos seus próprios juízes e condes [para julgar os casos
envolvendo cristãos] quando passaram para o domínio político dos muçul-
manos”9.
A sobrevivência e importância dessa codificação foi tamanha para os
cristãos da Península Ibérica durante todo o período de domínio muçulmano
que continuou a ser utilizada, de modo inquestionável, nos reinos cristãos
sobreviventes no Norte da Península10. E, conforme lembra O’Callagahan,
ainda durante a Reconquista, mas já “no século treze, por ordens de Fernan-
do III de Castela, foi traduzido para o castelhano sob o título [de] Fuero

8
CHIFFOLEAU, Jacques. Direito(s). In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.).
Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002. v. 1, p. 333-351, aqui p. 334.
9
REILLY, Bernard F. The Medieval Spains. Cambridge, UK: Cambridge Univeristy Press, 2006,
p. 37. A tradução desta citação, assim como de todas as demais ao longo do texto, que não
tenham sido mantidas na língua da publicação citada, são minhas. No original se lê: “[...] the
basis of the Law which was later adjudicated in the Christian Mozarab communities by their
own judges and counts when they had passed under the political dominion of the Muslim.”
10
REILLY, 2006, p. 37; SCOTT, S. P. The Visigothic Code (Forum judicum). Boston: Boston Book
Company, 1910. Disponível em: <libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm>. Acesso em: 03 fev.
2011.

330
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Juzgo”11, o qual foi uma das fontes utilizadas por Afonso X na elaboração
de sua legislação.
As obras legislativas afonsinas, por sua vez, são consideradas as obras
jurídicas mais importantes do período medieval, além de ser a maior com-
pilação normativa desde Justiniano. Além disso, durante o período em que
reinou Afonso, o Sábio, estava em andamento o processo de Reconquista12
da Península Ibérica e, em razão disso, ocorria a ampliação dos valores e
preceitos cristãos católicos nesta região.
Para a criação destas, Afonso levou especialistas em direito romano e
canônico para sua corte, além de juristas versados no direito consuetudiná-
rio castelhano e leonês e nas leis do Fuero Juzgo, o que apontava a reminis-
cência da identidade visigótica na Península mesmo com todas as altera-
ções pelas quais esta havia passado ao longo dos séculos13.
Para realizar este trabalho, todas as leis que citam a mulher foram
inventariadas e separadas em três grupos. Um para aquelas que apresentas-
sem características que se encaixassem nos modelos femininos baseados
em Eva, ou seja, os negativos. Outro para aquelas que se apresentassem no
modelo positivo, cuja figura bíblica inspiradora é Maria. E, em um terceiro

11
O’CALLAGHAN, Joseph. A History of Medieval Spain. London: Cornell University Press,
1983, p. 65. No original se lê: “In the thirteenth century, on the order of Fernando III of
Castile, the Liber Iudiciorum was translated into Castilian under the title Fuero Juzgo.”
12
Utilizo o termo “Reconquista” no mesmo sentido empregado por Gabriel Jackson, ou seja, de
que o domínio muçulmano modificou completamente a organização social e modo de vida
das regiões por eles ocupadas em relação à realidade existente durante o período visigótico;
“pero las crónicas medievales conservaron el recuerdo de los tiempos romanos y visigodos, la
mayor parte de la población de Andalucía hablaba un dialecto romance, y la Iglesia había
conseguido su firme propósito de inculcar en la población de los reinos del norte la idea de que
toda la Península debía de estar bajo el gobierno cristiano. Tanto la conciencia historica vigen-
te en el siglo XIII como la situación étnica y linguística permiten [portanto] calificar como
‘reconquista’ este avance cristiano” (JACKSON, Gabriel. Introducción a la España Medieval.
Madrid: Alianza Ediciones Del Prado, 1974, p. 89).
13
JIMENEZ, Manuel Gonzales. Alfonso X el Sabio: 1252-1284. Burgos: Editorial La Olmeda,
S.L., 1999, p. 344-345; LOPES, J. R. L. O Direito na História: lições introdutórias. 2. ed. São
Paulo: Max Limonad, 2002, passim; RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1997, p. 62-63; VARELA, Laura Beck. Breve panorama sobre a obra jurídica do
reinado de Afonso X de Castela. In: MACEDO, José Rivair de (Org.). Anos 90: estudos sobre a
Idade Média peninsular. 16. ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2001/2002, p.
125-140, aqui p. 126-127; VALDEON, Julio. Alfonso X, a Bibliographical Sketch of His Reign.
Revista de Occidente, v. 13, p. 15-28, aqui p. 21-22, 1984. O direito romano referido aqui é base-
ado nas Compilações Justinianas reunidas no Corpus Iuris Civili, publicadas em 533. Contudo,
o direito utilizado como base por Afonso não vem diretamente do texto justinianeu, mas sim
das interpretações e glosas feitas destes na Universidade de Bolonha a partir do século XI.

331
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval

grupo, foram inseridas as leis “neutras”, ou seja, aquelas que citam a mu-
lher, mas não fazem um juízo de valor sobre ela.
Visto que tais normas seguem os moldes da tradição do Direito ro-
mano, baseado na jurisprudência, na casuística, o detalhamento das situa-
ções presentes em tais leis permite que haja a previsão de mais de uma
possibilidade de sanção ou de determinação de conduta para cada situa-
ção. Isso faz, assim, com que, em alguns casos, ocorra a existência de carac-
terísticas tanto do modelo positivo de representação da mulher, como do
negativo ou do neutro na mesma lei.
Exemplo disso é a lei VIII, do terceiro livro, título I da Leges Visigotho-
rum. Ao descrever a situação de irmãos responsáveis por uma irmã solteira
e com um pretendente para casar, pode-se perceber a mulher que deve ser
protegida de parentes gananciosos, como aquela que é leviana e desobede-
ce aos seus responsáveis:
Si fratres nuptias puelle differant, aut si puella inpudice nuptias presumat
Si fratres nuptia puelle sub ea conditione suspendant, ut ud maritum illa
confugiens, iuxta legem portionem inter fratres usos de bonis parentum uon
possit accipere, et bis aut tertio removerint petitorem: puella que, fratrum
callidiatate prespecta, maritum natilibus suis equalem crediderit expeten-
dum, tunc integram a fratribus, que ei de parentum hereditate debetur, perci-
piat portionem. Quod si rursum nihil fratres contra sororem meditentur ad-
versum et idcirco morentur, ut sorori provideant digniorem et illa, honesta-
tis sua oblita, persone sue non cogitans statum, ad inferiorem maritum deve-
nerit, porttionem suam, sive divisam sive non divisam, quam de facultate
parentum fuerat consecutura. In fratrum vero et sororum vel aliorum paren-
tum hereditatem ingrediendi ei concedimus potestatem14.

Na primeira parte da lei, temos características do modelo positivo: a


mulher inocente, que deve ser protegida da ambição de terceiros. No caso,
seus próprios irmãos, que atrasam ou não permitem o casamento esperan-
do que a irmã faça algo contrário à lei e acabe perdendo o direito à sua
parte da herança deixada pelos pais. Já na segunda parte, podemos vislum-

14
“Se irmãos adiam o casamento de sua irmã ou se ela contrai núpcias impróprias.
Se irmãos de uma moça adiam o casamento dela, com a expectativa de que ela se refugie com
o marido [pretendido], conforme a lei perca a parte da herança de seus pais que lhe cabe, e eles
repudiem o pretendente dela duas ou três vezes, a menina, assim que o dolo dos irmãos ficar
aparente, acreditar que o marido seja seu igual em nascimento, deve receber a parte da heran-
ça de seus pais que lhe cabe. Mas se, por outro lado, seus irmãos não fizerem nada contra o
direito da irmã, e só atrasarem para providenciar a ela um marido mais digno, e ela, esquecen-
do sua honra, e ignorando seu status, se casar com homem de um nível inferior ao seu, perca
ela aquilo que deveria herdar de seus pais, quer a herança já tenha sido dividida ou não, mas
ela ainda terá o direito de herdar de seus irmãos e irmãs, ou de qualquer outro parente.”

332
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

brar características do modelo de Eva: a mulher desobediente, que age em


desconformidade com o desejo do(s) homem(ns) responsável(is) por ela.
Nessa segunda situação, os irmãos são apresentados como conscienciosos.
Eles só retardam o casamento da irmã a fim de garantir um marido melhor
para ela, o que ela ignora e casa com um homem de nível inferior ao de sua
família.
Finalizada a análise quantitativa e qualitativa das fontes, encontra-
mos os seguintes resultados apresentados na tabela abaixo:

Positivas* Negativas* Neutras* Total de Total após


leis** classificação****
Leges Visigothorum 35 (22, 58%) 48 (30,96%) 111 (71,61%) 155 194
Fuero Real 33 (30,27%) 42 (35,53%) 48 (44,03%) 109 123
Siete Partidas 212 (37,92%) 227 (40,6%) 303 (54,2%) 559 742
Total*** 278 (33,77%) 316 (38,96%) 461 (56,01%) 823 1059

* Total e a percentagem respectiva de leis incluídas nesta categoria.


** Total de leis que mencionam a mulher. Estas sempre representam 100%.
*** Total da soma e a percentagem respectiva dos valores das três obras.
**** Total obtido após a classificação. Não corresponde ao número de leis.

Um ponto importante a ser debatido é o número de leis classificadas


como neutras. Mesmo que por uma margem não muito grande no Fuero
Real e nas Siete Partidas, porém, de forma expressiva na Leges Visigothorum
(71,15%), a percentagem de menções passíveis de serem classificadas como
neutras – sem juízo de valor – é superior àquelas em que se observam os
modelos baseados nas figuras de Eva e Maria.

Ao fazer tal observação, é necessário lembrar que tanto os legislado-


res visigóticos quando Afonso X mantêm o discurso de igualdade dos súdi-
tos – sejam homens ou mulheres – perante a lei.

333
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval

No Liber Iudiciorum 1, 2, 3, lei essa que explicita “Quid agit lex”, ou


seja, o que faz a lei, lê-se:
Quid agit lex.
Lex regit omnem civitatis ordinem, omnem hominis etatem, que sic feminis
datur ut maribus, iuventute conplectitur et senectute, tam prudentibus quam
indoctis, tam urbanis quam rusticis fertur, que summum salutis principium
hac populorum culmen obtinet, et cum manifesto preclaroque preconio in
modum lucidissimi solis effulgit15.

No mesmo sentido, encontramos no Fuero Real a lei primeira do livro


I, Título VI – de las leyes e de sus establecimientos – onde encontramos o se-
guinte texto:
La ley ama e enseña las cosas que son de Dios, e es fuente de enseñamiento, e maestra
de derecho, e de justicia, e ordenamiento de buenas costumbres, e guiamiento del
pueblo e de su vida, e es tan bien para las mugeres como para los varones, tambien
para los mancebos como para los viejos, tan bien para los sábios como para los non
sabios, asi para los de la cibdat como para los de fuera, e es guarda del rey e de los
pueblos16.

Contudo, a maioria dessas normas neutras somente cita a mulher


para dizer que, em certas situações, deve existir uma igualdade entre os
sexos, conforme é possível perceber na 3ª Partida, título 16, lei 14:
Padre nin abuelo nin los otros que suben por la liña derecha non pueden
testiguar por sus fijos nin por sus nietos nin por los otros que descienden
dellos por essa misma liña Esso mismo dezimos que ninguno destos descen-
dientes que non pueden testiguar por aquellos de quien descienden Pero si
contienda acaesciesse sobre la edad de alguno de los decendientes o en
razon de parentesco bien podria dar testimonio el padre e la madre e el
abuelo e la abuela en tal pleyto como este [...]17.

Isso faz pensar sobre a efetividade dessa igualdade no mundo dos


fatos e, se nesses casos, a concepção da população também era a de neutra-
15
“O que faz a lei.
A lei regula toda a ordem do reino, homens de todas as condições, é dada para mulheres e maridos,
jovens e idosos, tanto os prudentes quanto os ignorantes, tanto os da cidade quanto os da área
rural, e objetiva dar um maior nível de segurança tanto o para o príncipe (rei) e quanto para o
povo, e em excelência e reconhecimento é tão clara como o brilhante sol do meio-dia.”
16
“A lei ama e ensina as coisas que são de Deus, e é fonte de ensinamento e mestre do direito, e de
justiça, e ordenamento de bons costumes, e guia do povo e de sua vida, e é tanto para as mulhe-
res como para os varões, também para os jovens como para os velhos, tanto para os sábios como
para os não sábios, assim para os da cidade como para os de fora e é guarda do rei e dos povos.”
17
“Pai nem avô nem os outros que sobem pela linha direita não podem testemunhar por seus filhos
nem por seus netos nem por outros que descendem deles por essa mesma linha Isso mesmo
dizemos que nenhum destes descendentes que não podem testemunhar por aqueles de quem
descendem Porém se a contenda recair sobre a idade de algum dos descendentes ou em razão de
parentesco bem pode dar testemunho o pai e a mãe e o avô e a avó em um pleito como este [...].”

334
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

lidade ou se essa era uma tentativa de alterar o ponto de vista vigente. Afi-
nal, a legislação não é um mero retrato das condições existentes e pode
também contribuir para alterar alguns comportamentos, de acordo com a
vontade e/ou necessidade do legislador.
Outra explicação para isso é que grande parte das leis foi escrita utili-
zando o gênero de declinação gramatical neutro18, como é possível obser-
var na lei XXXI, do livro dois, título I:
Quieumque ingenuorum regiam iussionem contemnere invenitur aut taliter
se egisse probatur, quod sub calliditatis aliqua cinctione proponat et dicat ean-
dem iussionem se nec vidisse nec accepisse dum calliditatis huius fraus mani-
feste patuerit, si nobilior persona est, tres libras auri fisco persolvat [...]19.

Do mesmo modo, a proporção de leis que contém características pre-


sentes tanto do modelo representado por Eva quanto do representado por
Maria também sofreu variação. Porém, ao contrário do que aconteceu com
as leis neutras, estas tiveram um aumento, embora com um percentual bem
mais modesto, como demonstra o gráfico a seguir:

Esses resultados levam a perceber a presença das características dos


referidos modelos de comportamento nesses códigos. Além disso, é possível
verificar que a presença destes torna-se mais evidente nas compilações nor-
mativas afonsinas quando comparadas à legislação da sociedade visigótica.
Uma explicação possível para tal é o maior arraigamento das con-
cepções cristãs católicas referentes às mulheres nos legisladores afonsinos do
que nos visigodos e, por conseguinte, na população à qual tais leis seriam
destinadas. Possibilidade esta extremamente plausível, uma vez que, du-

18
O latim, assim como o inglês e o alemão, possui gênero feminino, masculino e neutro.
19
“Quem que é livre (pessoa livre) que tenha sido condenada por desconsiderar um chamado/
mandato/decreto real ou que tenha sido provado que seu agir dissimulado ficou aparente/
claro e que diga o contrário da verdade (minta), [dizendo que] não viu nem recebeu o chama-
do/mandato/decreto se é pessoa nobre, pague três libras de outro ao tesouro […].”

335
BUENO, Irma A. G. • A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval

rante o período do reino visigótico, a Igreja Católica ainda estava forman-


do seu entendimento a respeito do papel da mulher na sociedade como um
todo, mas mais especificamente dentro da cristandade, enquanto, no reina-
do de Afonso X, os conceitos e modelos haviam sido bem delineados, di-
fundidos e propagados entre os cristãos já por um bom tempo. Além disso,
as obras jurídicas afonsinas foram escritas durante o período da Reconquis-
ta, ou seja, havia o interesse de fazer valer a visão cristã católica de mundo,
e isso inclui as noções sobre o comportamento da mulher no território ibé-
rico recém-conquistado.
É interessante notar, ainda, que o percentual de leis que apresentam
características positivas tem um crescimento maior do que aquelas com
características negativas. Uma possível explicação para isto advém do fato
de que a visão depreciadora da mulher já estava enraizada e vinha sendo
propagada, tanto nas concepções religiosas, quanto na própria sociedade, há
muito tempo, antes mesmo do surgimento do cristianismo e da própria Igreja
Católica. A preocupação mais efetiva com a apresentação de um modelo
de conduta feminino que apresentasse suas qualidades pudesse ser utiliza-
do como guia para salvação foi algo bem mais recente: Maria.
Ou, nas palavras de Anselmo da Cantuária: “Para impedir que as
mulheres desesperem de alcançar a sorte dos bem-aventurados, já que uma
mulher esteve na origem de um mal tão grande, é preciso, para lhes resti-
tuir a esperança, que uma mulher esteja na origem de um bem igualmente
grande”20.
O culto mariano, que não surgiu por esse motivo específico, mas que
deu grande impulso à noção da possibilidade de salvação das mulheres,
mesmo estas sendo, por sua natureza, tendentes ao mal, vinha crescendo
desde o período carolíngio e tem seu auge na baixa Idade Média; indo além
do meio clerical, o culto à Virgem torna-se popular também entre a socie-
dade laica. Ou seja, bem posterior ao período de elaboração da Leges Visigo-
thorum.

20
Anselmo da Cantuária, apud JARDIM, Rejane Barreto. Ave Maria, Ave Senhora de todas as
graças!: um estudo do feminino na perspectiva de gênero na Castela do século XIII. 2006. 236f.
Tese (Doutorado) – PUCRS, Porto Alegre, 2006, p. 41.

336
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

“Cosas admirables fuera de la orden de


la natura”: projeto sobre a admiração
e o maravilhoso na Península Ibérica
tardo-medieval n’O Amadis de Gaula (1508)

Rodrigo Moraes Alberto1

Y el primero que maese Nicolás le dio en las manos fue Los cuatro de Amadis de
Gaula, y dijo el cura: – Parece cosa de misterio ésta.2

As palavras empregadas por Cervantes para transmitir o que se ema-


nava do romance não poderiam ser mais precisas e – ao mesmo tempo –
escusas. Aquilo que tem os motivos insabidos, os significados incertos, as
formas e lugares não muito bem delimitados, esteve sempre a permear as
páginas de romances e todo tipo de registro cultural, estimulando a imagi-
nação do período medieval. O que se convencionou chamar de “maravi-
lhoso” ou “relatos maravilhosos” são os mirabilia ou mirabilis. A raiz mir
(mirar, mirari) demonstra que eles comportam algo de visível: são coisas
frente às quais se arregalam os olhos, que suscitam a admiração (admiratio),
o maravilhamento, por ser algo novo, raro ou inaudito; como não sabemos
sua causa, espantam-nos3. Este maravilhoso foi tão incitante aos medievais
quanto o foi aos historiadores: desenvolveu-se uma gama de trabalhos, liga-
dos principalmente à Nova História, à História das Mentalidades e à Histó-
ria do Imaginário, cuja origem é primordialmente francesa4. Vinculados ao
pensamento estruturalista de Claude Lévi-Strauss, fazendo algo como um
estudo antropológico da sociedade medieval, buscou-se compreender a

1
Mestrando em História, UFRGS.
2
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edición del IV Centenario.
Alfaguara, 2004. parte I, capítulo VI, p. 61.
3
Esta definição nos é dada a partir de GERVAIS DE TILBURY. Otia Imperialia, III, Prólogo, ap.
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 98-99; LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval.
Lisboa: Edições 70, 2010, p. 19. (Coleção Lugar na História, nº 24).
4
PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário: o estudo da Idade Média. In: LE GOFF,
Jacques (org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 400-406.

337
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

magia, as histórias folclóricas, as superstições e as manifestações do sobre-


natural em relatos e fontes de tipos diversos.
Dentre este campo de estudo tão vasto, destacam-se as temáticas das
heranças pré-cristãs do maravilhoso, suas funções e as relações da cultura
folclórica com o cristianismo. É evidente que o Ocidente medieval compar-
tilhou uma complexa mitologia – não se restringindo aqui apenas ao mara-
vilhoso – que não forma um conjunto homogêneo (tradições e apropria-
ções do judaísmo, paganismo, herança greco-romana, tradições celtas e ger-
mânicas). Como nos aponta Jean-Claude Schmitt, estas heranças culturais
o cristianismo, bem ou mal, teve de assimilar5. Os estudos de Jacques Le
Goff, maior expoente desta história da qual falamos, acerca das opiniões de
dirigentes intelectuais e espirituais do Ocidente demonstraram que, duran-
te o período da Alta Idade Média (entre os séculos V e XI), verifica-se, se
não a sua rejeição, uma repressão do maravilhoso. A Igreja procura trans-
formar, ocultar e eventualmente até destruir aquilo que faça alusão a uma
cultura tradicional, dita por ela como pagã. O maravilhoso seria perigoso,
tentador aos espíritos. Uma invasão deste, todavia, irromperia a cultura
dos doutos nos séculos XII e XIII. Segundo o autor, a Igreja já não teria
motivos para erguer interditos frente aos mirabilia, uma vez que já pode
domesticá-los, recuperá-los. Através de um processo de sincretismo, o en-
contro da pressão de certo alicerce laico e a tolerância eclesiástica explica-
riam a invasão do extraordinário na Idade Média Central6.
Os estudos de literatura cortês de Erich Köhler permitem-nos lançar
outra hipótese: a grande difusão se deu devido aos interesses da pequena e
média nobreza – a cavalaria, em ascensão e já ameaçada – de contrapor à
cultura eclesiástica ligada à aristocracia uma outra que lhe fosse diferente.
Uma cultura mais próxima ao que desejavam, que foi buscada na cultura
oral, em que o maravilhoso é um elemento importante7. O maravilhoso
estaria arraigado à procura da identidade individual e coletiva da idealiza-

5
SCHMITT, Jean-Claude. Problemas do mito no Ocidente medieval. In: SCHÜLER, Donaldo;
GOETTEMS, Míriam Barcellos (org.). Mito ontem e hoje. Porto Alegre: Editora da Universida-
de / UFRGS, 1990, p. 49-53.
6
LE GOFF, 2010, p. 17-19. A “terceira fase” (séculos XIV-XV), superficialmente categorizada
como a “estetização do maravilhoso” devido aos progressos na ornamentação, ao processo
literário e artístico e ao jogo estilístico, é tão superficialmente analisada que necessita de mais
investigações, até para o caso francês.
7
KÖHLER, Erich. L’aventure chevaleresque: Idéal et réalité dans le roman courtois. Paris: Éditi-
ons Gallimard, 1984, ap. LE GOFF, 2010, p. 18.

338
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

ção do cavaleiro. Pois não é sem razão que este mesmo maravilhoso terá
um papel tão importante nos romances corteses de cavalaria a partir do
século XII. Estes textos rebuscam em tradições de origens célticas e míticas
temas e motivos, formando a chamada “matéria da Bretanha”. Mostra-nos
Heitor Megale que estas histórias de cavaleiros andantes surgiram a partir
da transmissão oral da lírica trovadoresca provençal. Alterados e mutilados
por diversos narradores – o que torna difícil o trabalho de precisar suas
origens – os textos estabelecem um riquíssimo intercâmbio de heróis e mi-
tos das lendas celtas8. Transpostos para a via escrita no último quartel do
século XII, como nas tramas de Chrétien de Troyes, o cavaleiro idealizado
segue o modelo do fine amors, o amor cortês. Designando ao mesmo tempo
um gênero e a língua vulgar em que foram escritos, os roman arturianos
“exalam um perturbador perfume de maravilhoso pagão, que a posterior
cristianização de alguns de seus temas não dissipa totalmente”9.

A literatura romanesca maravilhosa na Península Ibérica


O mundo ibérico conheceu essas mudanças na literatura em uma
época posterior àquela em que ocorreram na França e na Alemanha. No final
do medievo, ressurge o ideal cavaleiresco através dos libros de caballerías. Este
“atraso” cultural da Espanha, segundo Ernst Curtius10, seria devido ao desen-
volvimento tardio da literatura em língua vulgar e à também tardia chegada da
cultura latina do século XII – introduzida pelos monges de Cluny e Cister –,
além de fatores de desenvolvimento político e econômico11. O “retardamen-
to” acabara por trazer o rico conteúdo da Idade Média Central francesa ao
período de florescência espanhol, e assim, tornou-se produtivo ao surgi-

8
MEGALE, Heitor. A demanda do Santo Graal: das origens ao códice português. Cotia: Ateliê,
2001, p. 27-50.
9
FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático
do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006. v. 1, p. 196-198.
10
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. São Paulo: Hucitec, 1996, p.
659-661.
11
É preciso lembrar que desde muito antes, no tempo dos visigodos, havia uma literatura latina
na Península Ibérica, como os textos de Bráulio de Saragoça, Leandro de Sevilha, Isidoro de
Sevilha e Martinho de Braga, entre outros. Segundo Curtius, a poesia latina da Idade Média,
contudo, penetrou na Espanha por etapas. Uma onda chegou até 1230, com Berceo; outra até
1330, com Juan Ruiz Arcipreste de Hita em seu Libro de buen amor, que importa a erótica de
Ovídio e de suas refundições medievais; a terceira com Alfonso da Torre. Torre, que, em 1440,
escreveu uma enciclopédia com roupagem alegórica sobre as sete artes liberais, a Visión delec-
table, inspirada em Marciano Capela e em Alain de Lille (ibid., p. 549-555).

339
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

mento de uma literatura peninsular. Já para Paul Zumthor, que traça suas
considerações a partir da oralidade, o motivo para este desenvolvimento
tardio foram as guerras de Reconquista, que ocuparam suficientemente a
nobreza ibérica até o século XIII12. Já Henry Thomas, em um livro clássi-
co que lançou as bases para o estudo deste gênero narrativo na península,
ressalta a importância da unificação e pacificação da Espanha sob os Reis
Católicos a partir de 1469, que produzira uma vida cortesã e favoreceu o
aparecimento de uma série original de novelas. Segundo o autor, estas
conhecem grande difusão principalmente pela (re)descoberta da arte de
imprimir com caracteres móveis (os tipos, pela imprensa), possibilitando
sua rápida reprodução13. A partir de meados do século XV, nascem histó-
rias de características e formas diversas, como Tirant lo Blanc, El Caballero
Cifar, El Baladro del Sabio Merlín, e os dois ciclos mais consagrados, dos
Amadíses e dos Palmerins, cujos fólios estão recheados de personagens, lu-
gares, objetos, façanhas e temas maravilhosos herdados do repositório de
imaginário céltico e da matéria da Bretanha14. A partir do século XVI,
este universo mental será ainda mais expandido pela chegada à América.
Obra mais difundida na península e fora dela deste gênero cavalei-
resco, o Amadis de Gaula tem especiais manifestações do “sobrenatural”
durante toda a trama: veem-se as aparições de Urganda la Desconocida,
vinculadas ao universo feérico; a magia de Arcaláus el Encantador, com
seus auxiliares; o mundo de Briolanja; a ilha encantada de Insula Firme; o
anão que entrega a carta de Oriana a Amadis; o gigante Gandalác, que se-
questra Galaor, entre tantos outros monstros; os sonhos e as profecias; os
lugares e objetos mágicos (espadas e anéis)15. Considerando-a a partir de
um sentido estrutural, um dos maiores estudiosos da obra, Juan Manuel
Cacho Blecua, chega a dizer que, por suas características e sua tradição,
“la aventura [no Amadís] es por esencia maravillosa, [...] una continuada

12
ZUMTHOR, Paul. La medida del mundo: representación del espacio en la Edad Media. Ma-
drid: Cátedra, 1994, p. 207.
13
THOMAS, Henry. Las novelas de caballerías españolas y portuguesas: despertar de la novela cabal-
leresca en la Península Ibérica y expansión e influencia en el extranjero. Madrid: CSIC, 1952.
14
Para um panorama das heranças dos temas maravilhosos nas tramas ibéricas, ver o clássico
trabalho de ENTWISTLE, William J. A lenda arturiana nas literaturas da Península Ibérica. Lis-
boa: INL, 1942.
15
BUENO SERRANO, Ana Carmen; CORTIJO OCAÑA, Antonio. El dominio del caballero:
nuevas lecturas del género caballeresco áureo. eHumanista: Journal of Iberian Studies, v. 16, p.
LV-LXI, 2010.

340
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

maravilla”16. Rafael Mérida Jiménez, autor de um dos trabalhos recentes


sobre a maravilha na novela, conclui que “el Amadís de Gaula constituye la
obra más relevante de las letras españolas medievales para una investigación
como la abordada”17. A obra, portanto, propicia uma abordagem da admira-
ção e do maravilhoso. Expressão mais nítida da ligação da novela com o que
é admirável ao leitor – e do explícito ceticismo com que o autor deseja que
sejam tomados tais trechos pelo seu público – é a passagem que intitula o
projeto de pesquisa de meu mestrado. Os antigos originais de outros autores
sobre os quais foi refundada a obra, logo no prólogo, são classificados como:
historias fingidas en que se hallan las cosas admirables fuera de la orden de
la natura: que mas por nombre de patrañas que de crónicas con mucha ra-
zón deuen ser tenidas et llamadas.18

Seria esta também a visão dos leitores-ouvintes? Esta sociedade, con-


tudo, ao mesmo tempo em que reapropria, caminha em uma direção cada
vez mais distante das concepções do período medieval, como se pode per-
ceber a partir dos estudos de Adeline Rucquoi19, o que nos levanta alguns
questionamentos. Como uma visão de mundo folclórica, de fundo pagão,
pode conviver com o cristianismo e o cada vez mais crescente racionalismo
desta sociedade? Quais seriam as especificidades dos mirabilia na Península
Ibérica? O que era estranho e causador de admiração e o que era comum e
cotidiano aos ibéricos tardo-medievais?

Problemas e fontes de pesquisa


As questões centrais para o trabalho que me proponho a fazer são: o
que seria a admiração e como era entendido o maravilhoso pelos homens e
mulheres do mundo ibérico na passagem do século XV ao XVI? Quais cir-
cunstâncias causariam o “maravilhamento” a esta sociedade em transfor-
mação, cada vez mais cética em relação ao sobrenatural, em vias de se eman-
cipar da Idade Média?

16
CACHO BLECUA, Juan Manuel. Introducción. In: Amadís de Gaula, v. I. Edição de Juan
Manuel Cacho Blecua. Madrid: Cátedra, 1987, p. 127 (Colección Letras Hispánicas).
17
MÉRIDA JIMÉNEZ, Rafael Manuel. El “Amadis de Gaula” de Garci Rodriguez de Montal-
vo y la Maravilla Medieval. Disponível em: <http://parnaseo.uv.es/Tirant/
merida_tesis_amadis.htm>. Acesso em: 20 ago. 2011.
18
Amadís de Gaula. Versão de Garci Rodríguez de Montalvo, edição de Juan Manuel Cacho
Blecua. Madrid: Cátedra, 1987, prólogo, p. 217-220 (Colección Letras Hispánicas, v. 1).
19
RUCQUOI, Adeline. “A justaposição de três coroas” e “Uma herança complexa”. In: História
Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995, p. 205-212.

341
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

Para abordar estas perguntas, tomarei como fonte para a pesquisa a


novela O Amadis de Gaula20 como base, valendo-me da recente edição crítica
de Juan Manuel Cacho Blecua da versão da obra publicada em 1508, a
mais antiga que se conhece. Los Quatro Libros del Esforzado et Virtuoso Cabal-
lero Amadís, Hijo del Rey Perion de Gaula y de la Reina Elisena foram impressos
em Saragoça, portanto, em território aragonês21. Juan Baptista Avalle-Arce,
um dos grandes estudiosos da obra, evidencia como compilador do roman-
ce Garci-Rodríguez de Montalvo, que teria atualizado os três primeiros li-
vros do Amadis emendando-lhe um quarto, além de uma continuação, co-
nhecida como Las Sergas de Esplandián (quinto livro do ciclo de Amadis)22.
Montalvo deve ter trabalhado na novela nas últimas décadas do século XV.
Não nos deixou mais escritos, tampouco é citado por outras obras. Como
nos aponta Cacho Blecua, seguramente foi um homem de certa quantidade
de posses, uma vez que tinha o cargo de regedor da vila castelhana de Medi-
na del Campo23.
Sabemos que o Amadis adquiriu uma popularidade até então nunca
vista na Península Ibérica e fora dela, com várias edições e traduções24.
Dentre estas, com o objetivo de traçar comparações no decorrer da pesqui-
sa, pretendo me servir de mais duas versões que estão acessíveis: a publica-
da em Veneza em 153325, compilada por Pascual de Gayangos em 1850 na
Biblioteca de Autores Españoles; e a impressa em Sevilha no ano de 152626,

20
Amadís de Gaula. Versão de Garci Rodríguez de Montalvo, edição de Juan Manuel Cacho
Blecua. Madrid: Cátedra, 1987-1988. 2 v. (Colección Letras Hispánicas).
21
Estes dados de localidade mostram-nos quão grande era a transitoriedade destas obras pelo
espaço ibérico, já no período de suas primeiras impressões. Ressalto o importante estudo de
NEUMAYER, Kristin. Editorial Interference in Amadís de Gaula and Sergas de Esplandián.
In: CORFIS, Ivy A.; HARRIS-NORTHALL, Ray. Medieval Iberia: Changing Societies and
Cultures in Contact and Transition. Woodbridge: Tamesis Books, 2007, p. 136-149.
22
O autor propôs uma delimitação textual ao Amadis primitivo, salientando os parâmetros da
reelaboração de Montalvo em cada um dos quatro livros. AVALLE-ARCE, Juan Baptista.
Amadís de Gaula: el primitivo y el de Montalvo. México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
23
Na introdução de sua versão do Amadis, argumenta que é possível que Montalvo tenha nasci-
do antes de 1450, da mesma forma que é seguro dizer que em 1505 já havia falecido. Pertencia
à linhagem dos Pollino, que tinha por costume ser presente e representativa em Medina del
Campo. Todos os aspectos indicam o seu pertencimento à pequena nobreza, da qual faziam
parte não apenas os altos aristocratas, mas cavaleiros, militares, hidalgos e cidadãos honrados,
de acordo com a terminologia da época. “III. La reelaboración de Rodríguez de Montalvo”.
In: Amadís de Gaula, versão de Garci Rodríguez de Montalvo, edição de Juan Manuel Cacho
Blecua, op. cit., p. 72-81.
24
EISENBERG, Daniel; MARÍN PINA, M.ª Carmen. Bibliografía de los libros de caballerías caste-
llanos. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2000.

342
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

disponível online no site da Biblioteca Nacional Portuguesa, digitalização


do documento original.
Não posso me furtar de comparações e cotejamentos com outras obras
do período. De forma eventual, pretendo lançar mão das obras que permi-
tem contrastar o encontrado no Amadis. Todas, de uma ou outra forma, são
herdeiras do ciclo arturiano da matéria da Bretanha e estão imersas no ideal
cavaleiresco ibérico. Las Sergas de Esplandián, escrito como uma continuação
aos quatro livros de Amadis, como já mencionado, é de autoria de Garci-Rodrí-
guez de Montalvo; tendo sido impresso em Sevilha no ano de 151027, mostra-
se o mais necessário a estar contido na análise; o Baladro del Sabio Merlín, do
contexto ibérico, publicado em Burgos em 149828; El Libro del Caballero Cifar,
impresso em 151229; e, por fim, Tirant lo Blanc, de Joanot Martorell, tendo como
coautor Martí Joan de Galba, impresso em Valência em 149030.

Justificativas do estudo
Este trabalho insere-se no campo das pesquisas que faço desde 2007
no âmbito dos estudos medievais, orientado pelo Prof. Dr. José Rivair Ma-
cedo, nas quais venho trabalhando com a temática histórica relacionada
aos romances de cavalaria31.

25
Amadis de Gaula. Los Quatro Libros del Esforzado et Virtuoso Caballero Amadís, Hijo del Rey Perion
de Gaula y de la Reina Elisena, versão de 1533. In: Libros de Caballerías. Madrid: Atlas, 1950, p. 1-
402 (Biblioteca de Autores Españoles, tomo XL).
26
Amadis de Gaula. Los quatro libros de Amadis de gaula nueuamente impressos & hystoriados en Seuilla.
Sevilla: Iacobo y Iuan Cromberger, 1526. Disponível em: <http://purl.pt/921>. Acesso em:
07 maio 2011.
27
Sergas de Esplandian, Las. Las Sergas del Muy Esforzado Caballero Esplandian, Hijo del Excelente Rey
Amadis de Gaula. Versão de 1542 e 1588. In: Libros de Caballerías. Madrid: Atlas, 1950, 403-561
(Biblioteca de Autores Españoles, tomo XL).
28
Baladro del Sabio Merlín, El. Edição de Burgos de 1498. Madrid: Miraguano Ediciones, 1988.
Edição digital Proyecto Avalon, 2003.
29
Caballero Cifar, El. In: BUENDIA, Felicidad (org.). Libros de Caballerías españoles. Madrid:
Aguillar, 1954, p. 43-296; Caballero Zifar, Libro del. Códice de Paris. Edição de Manuel Moleiro
e Francisco Rico. Barcelona: Moleiro, 1996.
30
Tirant lo Blanc. Valencia, 1490. Disponível online em: <http://www.tinet.cat/bdt/tirant/>.
Acesso em: 20 set. 2011; Tirante el Blanco. In: BUENDIA, Felicidad (org.). Libros de Caballe-
rías españoles. Madrid: Aguillar, 1954, p. 1053-1731.
31
O projeto de pesquisa, sob a orientação do Prof. Dr. José Rivair Macedo, está sendo desenvol-
vida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, e foi agraciado com bolsa do CNPq no período 2012-2013. Destes estudos anteriores,
além de artigos publicados, defendi em dezembro de 2010 na UFRGS o Trabalho de Conclu-
são de Curso A Saña no Ideal Cavaleiresco Ibérico do Final da Idade Média a partir da Novela “O
Amadis de Gaula”. Porto Alegre, 2010.

343
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

Acredito que este trabalho se justifique por três motivos principais. O


primeiro é que os estudos dos mirabilia, ainda que seja um tema um tanto
bem percorrido, estão muito marcados pela historiografia da década de 80
do século XX. Sem tirar o mérito que estes historiadores têm por lançarem
estes alicerces, seus estudos pretendem-se estruturalistas e acabam por ge-
neralizar para todo o medievo conceitos e visões de mundo que são próprios
apenas do espaço e tempo visado em suas pesquisas, que de modo geral
corresponde à França da Idade Média Central – séculos XII e XIII. Inspira-
do por John Dagenais e Margareth R. Grer32, este trabalho pretende questio-
nar apropriações forçosas impostas aos espaços ditos “periféricos” da Eu-
ropa e reproduzidas acriticamente por grande maioria dos acadêmicos.
Buscando visões de mundo que sejam próprias, procuro devolver à socieda-
de ibérica sua historicidade.
Da mesma forma, este trabalho provém da necessidade de repensar o
estudo do maravilhoso. Não pretende, portanto, completar lacunas na bi-
bliografia, mas questionar a forma tão somente colecionista e inventariante
com que muitas vezes os trabalhos sobre os mirabilia vêm sendo produzi-
dos. Como cita Caroline Walker Bynum, devemos “deixar ‘as maravilhas’
para os teóricos literários e ‘a idade das maravilhas’ para a Renascença”33.
O projeto pretende focar as significações e reações que os homens e mulhe-
res demonstraram a partir da admiração, para então pensar nas caracterís-
ticas daquilo que é maravilhoso.
Por fim, com este trabalho pretendo também lutar contra uma ten-
dência e um preconceito. Não sei se por desprezo, medo do perigo ou de-
sinteresse, mas de modo geral os historiadores pouco se aventuraram a tra-
çar pesquisas a partir dos romances de cavalaria, principalmente dos libros
ibéricos, quase totalmente relegadas aos estudos literários e filológicos. Como
escreveu José Roberto Mello, mesmo em narrativas idealizadas “o mundo
real é sempre tomado como ponto de partida”34. Dada a viabilidade do
estudo pelo acesso à bibliografia e às fontes (em edições atuais e nos ma-
nuscritos originais online), pesquisas como esta trazem a originalidade de se
abordar romances como fontes para o estudo histórico, e só viriam a acres-
centar à compreensão dos modos de ser e pensar medievais e modernos.

32
DAGENAIS, John; GRER, Margareth R. Decolonizing the Middle Ages. Journal of Medieval
and Early Modern Studies, v. 30, n. 3, p. 431-448, 2000.
33
BYNUM, Caroline W. Wonder. The American Historical Review, v. 102, n. 1, p. 3, 1997 (tradu-
ção livre).
34
MELLO, José Roberto. O cotidiano no imaginário medieval. São Paulo: Contexto, 1992, p. 123.

344
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Referências para um estudo histórico


do maravilhoso na literatura
Com a certeza de que é possível produzir conhecimento histórico a
partir de fontes literárias – desde que abordadas com o devido dimensiona-
mento e atenção – entendo as novelas de cavalaria no âmbito das represen-
tações, construídas a partir da lógica cortesã e moldadas pelo ideal cavalei-
resco, refratando as realidades sociais do mundo à sua volta. Para a Idade
Média, é válido dizer, não existe a distinção entre o que é um documento
literário e o que é um documento histórico; existem as variadas intenções,
de produzir algo para a posteridade ou para a efemeridade, para o uso coti-
diano ou para servir de memória35. Michael Zink já comprovou como a
existência na Idade Média de uma ficção que se contrapõe à realidade é,
todavia, problemática. Pensar a “literatura” medieval é colocá-la entre as-
pas, da mesma forma implicante como sempre escreve Paul Zumthor. Em
seu genial livro – não superado até hoje – sobre a “literatura” na Idade
Média, o autor aponta como o que nós hoje chamamos de literatura era
para eles letra (como lettera, cultura letrada) e voz (a cultura oral, daqueles
que não tinham acesso ao escrito)36. Em uma sociedade quase em sua tota-
lidade ágrafa, as histórias, contos, poesias e romances estavam relaciona-
dos aos índices de oralidade. Os romances são antes de tudo romanço, poe-
sia oral. Mas pensar a “literatura” medieval é antes de tudo interpretá-la, e
aproveito para ratificar as palavras de Anita Guerreau-Jalabert, de que a
apreciação de alguns elementos ditos bizarros ou “maravilhosos” das obras
literárias do período medieval, irredutíveis a uma compreensão racional, pode
ser a chave interpretativa para os códigos socioculturais compartilhados. Cabe
ao historiador o esforço de restituição da coerência de seu discurso37.
O campo de estudo do maravilhoso mais recentemente veio a ser tra-
tado de outra forma. A partir do que nos foi apontado por Caroline Walker

35
ZINK, Michel. Literatura(s). In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário te-
mático do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2006. v. 2, p. 79-93.
36
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993, p. 15-54 e 265-286; ID. Y a-t-il une “littérature” médiévale? Poétique, Paris, n. 66, p. 131-
139, 1986.
37
GUERREAU-JALABERT, Anita. Histoire médievale et littérature. In: LOBRICHON, Guy;
LE GOFF, Jacques (dir.). Le Moyen Age aujourd’hui: trois regards contemporains sur le Moyen
Age: histoire, théologie, cinéma. Paris: Le Leopard d’Or, 1998, p. 141, ap. MACEDO, José
Rivair. O real e o imaginário nos Fabliaux medievais. Revista Tempo: Revista do Departamento
de História da UFF, v. 9, n. 17, p. 13, 2004.

345
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

Bynum em seu artigo de 1997 para a American Historical Review, abre-se um


novo caminho para pensar o sobrenatural. Em uma crítica aberta aos histo-
riadores franceses, com a qual eu concordo, a autora pretende abandonar
os padrões até então vigentes de análise; diferencia maravilhas (mirabilia)
de admiração (admiratio), denuncia as impropriedades generalizantes do
estruturalismo e vai à procura “das circunstâncias em que homens e mulhe-
res medievais sentem admiração”. Pretende uma História do Comporta-
mento, uma História das Emoções que é cognitiva, particular e sempre em
perspectiva: “a admiração é o reconhecimento da singularidade e da signi-
ficação da coisa encontrada”38. A autora busca uma história que foi anunci-
ada por Le Goff, mas não perseguida por ele. Em seu artigo clássico sobre
o maravilhoso no Ocidente Medieval, o autor francês evidenciou esta ca-
racterística do sobrenatural: “coisas perante as quais se arregalam os olhos;
[...] porquanto todo um imaginário pode organizar-se à volta dessa ligação
a um sentido, o da vista”39.
Entretanto, Jacques Le Goff foi buscar a partir da opinião de diri-
gentes intelectuais e eclesiásticos do Ocidente, em tempos e lugares espar-
sos, o que estaria sendo entendido por “o maravilhoso”. Como já mencio-
nei, esta definição é problemática para qualquer contexto que não seja o
francês entre os séculos XII-XIII, porque busca qualificar e categorizar
representações que não estavam claramente divididas na perspectiva da-
quele que se maravilhava. A demarcação do autor dos Annales, além de
tender demasiadamente para as influências eclesiásticas, emprega no Oci-
dente cristão o conceito de mirabilia como uma coleção, em que os diver-
sos “maravilhosos” estariam classificados. Ora, tantas vão ser as defini-
ções quantos vão ser os contextos: elas mudarão dependendo da pessoa,
lugar e situação.
O grande trunfo do conceito de “admiração” da estadunidense Caro-
line Bynum é que seu método implica retomar a ideia da visão e dos senti-
dos para construir seu objeto inquirido. Afirma a autora que um dos maio-
res problemas de buscar a admiração no período é que os textos em que se
discute sobre ela são também os lugares que menos aparecem40.

38
BYNUM, 1997, p. 3. (Tradução minha).
39
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 2010,
p. 16 (Coleção Lugar na História, n. 24).
40
BYNUM, 1997, p. 15.

346
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Vislumbra-se, para mim, a grande possibilidade que é utilizar este


conceito no vasto campo de estudo dos romances: mesmo sem falar explici-
tamente, as indicações ao deslumbramento são frequentes e, ao contrário
de outros textos, o espaço da novela propicia a admiração. Como aponta a
autora, as pistas deixadas devem ser procuradas menos por adjetivos, e mais
nas evocações que pretendem provocar respostas para o personagem que vê
ou no leitor, pela descrição de atos ou objetos e seres. A admiração produ-
ziria, pois, respostas, e tais podem ser uma admiração risível, uma admira-
ção com temor, ou uma admiração simplesmente pelo estranho; reações
que se dão mais frequente e violentamente quando são confundidas, apaga-
das ou cruzadas as fronteiras morais, o que Bernardo de Claraval chamou
de admirabiles mixturae41. Bynum ainda adiciona que, justamente devido às
características de ser estranho e inexplicável, o admirável não era tão so-
mente isso: ele aponta para um significado (utilitas), pois a reação de admi-
ração é uma reação de significação, busca entender as “razões secretas” do
ininteligível. Sem generalizações, a explicação para algo desconhecido tem
um significado, dado a partir das reações, que pode ser apreendido pelo
historiador.
Decisiva me parece a ideia de Roger Chartier de não tomar primeiro
um critério de classe e de grupo social para depois trabalhar o objeto42. No
caso do Amadis, por mais que o contexto da obra e seu enredo façam crer
que circulava essencialmente em meio nobre, tomar o argumento como
pressuposto só vai fazer calar um eventual eco que permaneça como uma
reminiscência no texto. Ademais penso, contudo, que o trabalho de Jac-
ques Le Goff não está em todo superado. Um campo um tanto nebuloso –
talvez justamente pelas escolhas conceituais –, chamado por ele de “fron-
teiras do maravilhoso”, a ausência do “maravilhoso” no cotidiano medie-
val43 nos possibilita pensar no lugar da admiração no dia a dia da Idade
Média. Tornando à ótica romanesca, quais seriam os lugares em que não
se perceberia a admiração? Outrossim, Paul Zumthor alega que, para com-
preendermos as obras medievais, devemos “fundar uma operação crítica
sobre a consideração do que foi o ‘horizonte de expectativa’ do público
primeiro da obra” e “pressupor sempre, na medida do possível, as per-

41
Ibid., p. 21.
42
CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 213-217.
43
LE GOFF, 2010, p. 24.

347
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

guntas que a obra respondia em seu tempo, antes daquelas que lhe fazemos
hoje”44.
Oportunas advertências, como a que nos brindou presentemente Domi-
nique Barthélemy. Esta literatura cavaleiresca não necessariamente pode – tam-
pouco pretende – ter sobre os cavaleiros uma influência direta, e nada prova
que ela crie facilmente o desejo de imitar seus personagens. As narrativas pode-
riam estar servindo para diverti-los, oferecer-lhes uma compensação imaginá-
ria àquilo que eles deixam de fazer, como em suas decepções e fracassos: a
idealização cavaleiresca não pode estar dispensando, ou até constrangendo os
cavaleiros reais? No outono de 1191, o cavaleiro Arnaldo de Guines volta de
uma empreitada fracassada na Lorena, em perseguição a condessa de Bou-
logne e seu raptor, da qual ele não pode resgatá-la, assim como nem ela mesma
queria muito voltar. Como cita Barthélemy, “a supor que sejam verdadeiros
modelos destinados a conformar os comportamentos, os seres literários não
são um todo uniforme”45. Trata-se de manter o distanciamento para não apli-
car a noção de ficcional literário ao real. Tendo consciência do terreno, preten-
do – e me permito – adentrar esta zona de possibilidades.

Balanço historiográfico
Reparto esta breve revisão em duas partes. Primeiro, abordarei os
autores que discutem o conceito de maravilhoso, sua utilidade, abrangên-
cia nos estudos medievais e formas de analisá-lo. Na segunda, discutirei as
obras que tratam especificamente do maravilhoso no Amadis de Gaula.

Os estudos do maravilhoso
Os historiadores da primeira metade do século XX tenderam a des-
crever o entusiasmo medieval para o maravilhoso como extrema emotivi-
dade ou credulidade. Levantando questões muito mais profundas do que a
evolução da ciência histórica de seu tempo podia responder, o holandês
Johan Huizinga classificou a Idade Média como excessivamente emocio-
nável, e relacionou isto ao caráter “infantil” que a caracterizaria, dada a
prematura gênese da Europa46. Já o consagrado historiador da primeira

44
ZUMTHOR, 1993, p. 23.
45
BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 461.
46
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 11-45.

348
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

geração dos Anneles Marc Bloch caracterizou a Idade Média como mais
“emocional” do que os tempos modernos47.
De acordo com Todorov48, o “maravilhoso” seria um gênero literário
em que personagens oscilam entre a explicação natural e a aceitação do
sobrenatural como sobrenatural. Os medievalistas criticam a aplicação des-
te conceito às obras da imaginação medieval. Jacques Le Goff contesta-o,
pois esta leitura que pende da explicação à aceitação requer um “leitor im-
plícito”. Para este último, o maravilhoso medieval exclui o leitor implícito e
nos é apresentado através de textos “impessoais” como objetivo. O concei-
to de Todorov me parece de pouca utilidade para a pesquisa, pois o autor se
valeu de contos quase somente dos séculos XIX e XX para construí-lo. To-
davia, a visão de Le Goff me parece supervalorizar o objeto maravilhoso
sobre o contexto ou as visões de mundo particulares.
Francis Dubost, por sua vez, defende que o fantástico medieval de-
corre do horror provocado por todo sobrenatural onde Deus não habita
mais49, e argumenta que é possível utilizar modernas noções críticas de res-
posta e de enquadramento para identificar um medieval “fantástico”. Ou-
tro autor representativo que trabalha com o maravilhoso é Laurence Harf-
Lancner, que pretendeu estudar o sobrenatural feérico, as fadas e as melusi-
nas50, não estabelecendo uma crítica tão representativa para o conceito de
maravilhoso quanto os outros autores citados até então. O crítico literário
russo Vladimir Propp é outro pensador de representatividade nos estudos
do maravilhoso. Recolheu vários contos tradicionais, estabelecendo uma
estrutura em 31 funções, que poderiam ser agrupadas em sete esferas: o
agressor; o doador; o auxiliar; a princesa e o pai; o mandador; o herói; e o
falso herói51. Não obstante estar sempre citado em inúmeras pesquisas, a
utilização do modelo de Propp só faz aumentar a distância que existe entre
nós e os medievais, na medida em que criou um modelo explicativo fácil e

47
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 52-78.
48
TODOROV, Tzvetan. Introduction a la litterature fantastique. Paris, 1970, p. 28-62.
49
DUBOST, Francis. Aspects fantastiques de la littérature narrative médiévale (XIIe-XIIIe siècles).
In: L’Autre, l’Ailleurs, l’Autrefois. Paris: Champion, 1991, v. 1 p. 241, ap. LARANJINHA, Ana
Sofia Figueiras Henriques. Artur, Tristão e o Graal: a escrita romanesca no ciclo do pseudo-boron.
2005. Tese (Doutorado) em Literatura – Faculdade de Letras do Porto, Porto, 2005, p. 152.
50
HARF-LANCNER, Laurence. Les fées au Moyen Age: Morgane et Melusine: la naissance des
fées. Paris: Champion, 1984.
51
PROPP, Vladimir. Morphologie du conte. Paris: Gallimar, 1970, ap. SILVEIRA, Aline Dias da.
O “maravilhoso” no Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro: uma proposta de análise. Anos
90: Revista do PPG de História, n. 16, p. 213, 2001-2002.

349
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

tentador, a partir tão somente dos contos soviéticos, que inúmeros pesqui-
sadores moldam e enquadram em suas pesquisas.
O maior responsável pela consolidação do tema de estudo maravi-
lhoso foi Jacques Le Goff (vou me ater a apenas expor suas ideias, uma vez
que a crítica já foi feita no decorrer no projeto). Como já comentado, pro-
põe uma divisão do sobrenatural ocidental em três âmbitos a partir do sécu-
lo XII e XIII, recobertos por três adjetivos52: mirabilis, que corresponderia
ao nosso maravilhoso, de origens pré-cristãs; magicus, um sobrenatural ma-
léfico e satânico; e o miraculosus, o sobrenatural propriamente cristão, o
maravilhoso cristão – a estas categorias Cacho Blecua adicionaria uma quar-
ta, identificável nos libros de Amadís: o maravilhoso mecânico (é identifica-
do com o magicus, afasta-se do natural e é causado pelos conhecimentos
dos homens)53. Para Le Goff, o maravilhoso seria produzido por seres sobre-
naturais incontáveis, e seriam imprevisíveis, tendendo a organizar-se a um
“mundo às avessas”, um universo virado ao contrário. O maravilhoso teria
sido, por fim, uma forma de resistência contra o cristianismo, devido à
recusa ao humanismo – um dos alicerces da Igreja Medieval54. Jean-Claude
Schmitt de certa forma conluiou com os parâmetros estabelecidos por Le
Goff, mas ressalta o maravilhoso que incita a curiositas do espírito humano,
uma busca de causas ocultas que um dia serão compreendidas; um espírito
científico que se preocupa com a investigação (inquisitio), com o testemu-
nho verdadeiro e com a experiência (experimentum); pensa também a ideia
do sobrenatural, as religiosidades populares e as superstições55. Caroline
Bynum vai contestar esta possibilidade de alcançar-se a cultura popular nos
relatos sobreviventes, uma vez que seria difícil distingui-los claramente. Ten-
do a não concordar com a autora, uma vez que um trabalho que buscasse a
noção de “circularidades”, aos moldes do que pensa Ginzburg56, poderia fa-
zer compreender o processo e esta diferenciação.

52
LE GOFF, 2010, p. 19.
53
CACHO BLECUA, Juan Manuel. Introducción. In: Amadís de Gaula, v. I. Edição de Juan
Manuel Cacho Blecua. Madrid: Cátedra, 1987, p. 128 (Colección Letras Hispánicas).
54
LE GOFF, 2010, p. 22.
55
SCHMITT, 1999, p. 98-99; História das superstições. Lisboa [?]: Publicações Europa-América,
1997.
56
GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 20ss.

350
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A Historiografia Amadisiana
Os estudos historiográficos sobre o Amadis de Gaula podem ser divi-
didos em quatro grandes fases, segundo Filipa Medeiros57. A primeira fase,
que se estende dos finais do século XIX até meados do século XX, é prota-
gonizada pela historiografia inglesa, francesa e peninsular, com as primei-
ras abordagens coerentes à obra, tendo ênfase as temáticas de origem da
novela (autoria e localização geográfica), as influências e sua língua primi-
tiva; emergem os nomes de Grace Williams58, Teófilo Braga59, Alexandre
Herculano60 e Carolina Michaëlis de Vasconcelos61. Uma segunda fase, entre
as décadas de 50 e 60 do século XX é encabeçada pela historiografia inglesa
e peninsular, com um incipiente interesse da historiografia americana, e
verifica-se a proliferação dos campos de estudo, com o surgimento de pes-
quisas relacionadas à temática amorosa e ao maravilhoso na obra; ressaltam-
se os trabalhos de Edwin Place62, Rosa Lida Malkiel63 e Rodríguez-Moñino64.
Entre as décadas de 70 e 80 do século XX, a historiografia entra em uma
terceira fase, tendo maior destaque os investigadores espanhóis e america-
nos. Os estudos da obra se aprofundam, sob novos métodos e perspectivas,
dando uma renovação literária e historiográfica aos trabalhos, acompanha-
dos do surgimento de novas temáticas, como as ligadas à História Cultural,
à designada “História de Gênero”, assim como o estudo das armas, dos ele-
mentos mítico-simbólicos, das profecias e dos vários fatores inerentes ao amor
cavaleiresco; nesta fase, podemos ressaltar os trabalhos de Frank Pierce65 e
Cacho Blecua66.

57
MEDEIROS, Filipa. Historiografia de uma novela de cavalaria peninsular: O Amadis de Gaula
– Estado da questão e bibliografia comentada. Medievalista On Line, Lisboa, ano 2, n. 2, 2006.
58
WILLIAMS, Grace. The Amadis Question. Revue Hispanique, t. XXI, n. 59, p. 1-167, 1909.
59
BRAGA, Teófilo. História das novelas portuguesas de cavalaria: formação do Amadis de Gaula.
Porto: Imprensa Portuguesa, 1873.
60
HERCULANO, Alexandre. Novellas de cavallaria portuguesas: Amadis de Gaula. In: Opúscu-
los: v. IX, Literatura. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1873-1908, p. 87-99.
61
VASCONCELOS, C. M. Prefácio a Romance de Amadis. Lisboa: Imprensa Libânio da Silva,
1912, p. 12-41.
62
PLACE, Edwin B. The Amadís Question. Speculum, v. 25, n. 3, p. 357-366, jul. 1950.
63
LIDA DE MALKIEL, M. R. El desenlace del Amadis primitivo. Romance Philology, v. VI, p.
283-89, 1953.
64
MOÑINO, Antonio Rodríguez; CARLO, Agustín Millares; LAPESA, Rafael. El primer ma-
nuscrito del Amadís de Gaula. Madrid: Imprenta de Silverio Aguirre Torre, 1957, p. 24.
65
PIERCE, Frank. Amadis de Gaula. Boston: Twayne Publishers, 1976.
66
CACHO BLECUA, Juan Manuel. Amadís: heroísmo mítico cortesano. Madrid: Cupsa, 1979. O
autor analisa grande parte dos episódios do Amadis e os elementos mítico-folclóricos da tradi-
ção literária.

351
ALBERTO, Rodrigo Moraes • “Cosas admirables fuera de la orden de la natura”

Uma quarta e última fase se delimita entre os anos 80 e os dias de


hoje, caracterizando-se por um boom (para usar a expressão da autora) nos
estudos sobre o Amadis, principalmente por espanhóis e argentinos, com
uma participação menor de norte-americanos, marcada pelos estudos de
antropologia e sociologia históricas, de filologia e de simbolismo, chegan-
do a um ponto de saturamento e esgotamento, como refere Filipa Medei-
ros, dos campos de estudo proporcionados pela obra. As principais temáti-
cas são o simbólico, a magia, as profecias, as influências greco-romanas e
bizantinas, o estudo do feminino, a cavalaria, o espaço (sobretudo as geo-
grafias insulares), a temática amorosa e a cortesania, os estudos filológicos
variados, os motivos folclóricos e os aspectos jurídicos; neste período, des-
tacam-se a contribuição de Juan Baptista Avelle-Arce67 e a criação da base
de dados de literatura cavaleiresca denominada Clarisel68. Nos últimos anos,
alguns estudiosos se aventuraram em juntar estes temas e abordar o maravi-
lhoso junto aos romances, como Gómez-Montero, Bognolo69, Sales Dasí70
e Cuesta Torre71. Especificamente ao Amadis de Gaula, um dos expoentes é
Rafael Manuel Mérida Jimenez72, que parte dos conceitos de Le Goff, de-
pois da crítica de Dubost, para compreender o tema da magia na trama.
Depois de sua extensa tese, suas conclusões são de que a magia é cristiani-
zada no decorrer dos quatro livros, passando de uma “maravilha neutra”
no I, uma “magia” no II e III, para chegar, por fim, ao milagre no IV (que
é criação de Montalvo). Suas conclusões vão de encontro à opinião do au-
tor transmitida no prólogo – que dá nome a este projeto: Montalvo depreci-
aria as relações com o discurso folclórico.

67
AVALLE-ARCE, 1990. Através de uma análise minuciosa, propôs uma delimitação textual
ao Amadis primitivo, salientando os parâmetros da reelaboração de Montalvo.
68
Projeto do Departamento de Filologia Espanhola da Universidade de Saragoça, tendo como
finalidade reunir o máximo de trabalhos sobre a matéria cavaleiresca. Disponível em: <http:/
/clarisel.unizar.es/>. Acesso em: 20 set. 2011.
69
BOGNOLO, Anna. La finzione rinnovata: meraviglioso, corte e avventura nel romanzo cavalle-
resco del primo Cinquecento spagnolo. Firenze: Edizzioni ETS, 1997.
70
SALES DASÍ, Emilio. La aventura caballeresca: epopeya y maravillas. Alcalá de Henares: Cen-
tro de Estudios Cervantinos, 2004.
71
CUESTA TORRE, María Luzdivina. Don Quijote y otros caballeros andantes perseguidos
por los malos encantadores. (El mago como antagonista del héroe caballeresco). In: CACHO
BLECUA, Juan Manuel (coord.). De la literatura caballeresca al Quijote. Zaragoza: P. Univ. de
Zaragoza, 2007, p. 141-169.
72
MÉRIDA JIMÉNEZ, Rafael Manuel. “Fuera de la orden de natura”: magias, milagros y mara-
villas en el “Amadís de Gaula”. Kassel: Reichenberger, 2001, 444 p.

352
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Como se pode perceber, a grande maioria dos trabalhos sobre o ma-


ravilhoso e sobre os romances – e com o Amadis não é diferente – é da área
da literatura. Por onde andarão os historiadores? Estudar romances é bus-
car entender um mundo enquanto ele está de ponta-cabeça. Os estudos lite-
rários se satisfazem evidenciando as características de sua anormalidade. O
que os historiadores devem se encorajar a fazer é tentar compreender a sua
normalidade, mesmo com ele estando às avessas.

Horizontes e propostas da pesquisa


Pretendo com estes estudos, que irão se desenvolver nos anos de 2012
e 2013, a partir da leitura das fontes e da bibliografia específica explicitada,
apreender o conjunto das variadas concepções e ideias acerca da admiração
presente na sociedade ibero-portuguesa do final do século XV e início do
século XVI. Examinando o romance de cavalaria Amadis de Gaula, buscar
evidências textuais da admiração, procurando entender as reações surgidas
(como o estranhamento, a risibilidade, o temor) e a significação decorrida (o
sentido atribuído) a partir dela em sua particularidade espaçotemporal73.
Com estas diferentes formas de pensá-la, das reações e dos sentidos
atribuídos, como era pensada a admiração? Proponho-me a estabelecer um
quadro mais preciso do que era a admiração para o período, evidenciando
suas fronteiras no meio social (o espantoso, o amedrontador, o risível, o
prazeroso); e, para além da ideia de “maravilhoso”, construir um conceito
que seja próprio e específico para o período, que realce aquilo que estaria
causando o “maravilhamento”, a admiração, buscando o lugar do que é
sobrenatural, feérico, mágico, para esta sociedade – que de forma provisó-
ria poderíamos chamar de “maravilhante ibérico quinhentista”.
Adentrando o palustre terreno do maravilhoso ibérico na literatura a
partir do Amadis, se, ao final destes estudos, forem desvelados alguns dos
“segredos” deste livro, que foi tido como cosa de misterio pela cura de Cer-
vantes, estarei mais do que satisfeito.

73
O que pretendo aqui não é estudar a recepção do Amadis na sociedade ibérica – que demanda-
ria uma pesquisa muito maior; tampouco tenho por intento recuperar “emoções” a partir do
texto literário, o que penso ser algo um tanto difícil para a Idade Média. O que pretendo é
procurar e explorar os trechos da narrativa em que reações de admiração são não apenas expli-
citadas, mas evocadas. Temos acesso a estas reações não só por adjetivos (algo chamado de
maravilloso, por exemplo), mas pelas indicações de respostas dos personagens e de um possível
leitor, e também pela descrição de atos e objetos colocados na narrativa intencionalmente para
provocar estas respostas (como Amadis, que fica maravilhado ao ver o castelo de Arcaláus).

353
354
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O viajante Duarte de Armas e sua obra


imagética sobre a fronteira
luso-castelhana (1509)

Edison Bisso Cruxen1

O século XVI ibérico está marcado por grandes viagens ultramarinas


e descobertas em terras distantes. Possivelmente este seja um dos períodos
mais favoráveis para encontrar registros escritos de viajantes que se depara-
ram com mundos exóticos, pouquíssimo conhecidos, ou mesmo nunca an-
tes vistos. Em finais do século XV, os espanhóis alcançam as Américas, e
os portugueses o Extremo Oriente. Os estranhos, quase indescritíveis mun-
dos além do Mar Oceano. Mas, no presente trabalho, a atenção está dire-
cionada para um viajante, em seu território, em seu próprio chão. Um
funcionário da Casa Real Portuguesa, Duarte de Armas, que também par-
ticipou de viagens de conquista e expansão, no norte da África. Infeliz-
mente, desta sua “aventura”, onde teria produzido um tratado com dese-
nhos de diversas fortalezas portuguesas em território marroquino, além
de uma curta passagem na Crônica do Rei D. Manuel, nada ficou regis-
trado. Mas se engana quem possa pensar que, neste caso, “santo de casa
não faz milagres”. Duarte de Armas, hábil debuxador, realizou um périplo
de aproximadamente 900 km, ao longo de um ano de caminhada, acom-
panhado de seu criado, onde, desde o extremo sul ao extremo norte da
fronteira luso-castelhana, proporcionou um dos registros mais ricos e de-
talhados do funcionamento desta região da Península Ibérica, nos alvores
do século XVI. Fidalgo, burocrata, tratadista, homem metódico no cum-
primento de sua missão real... mas, no momento deste artigo, viajante.

1. O viajante e seu contexto

1
Professor do Curso de Licenciatura em História da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA). Dou-
torando do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS), Bolsista CAPES.

355
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

Para melhor compreendermos os motivos da realização do tratado


iconográfico Livro das Fortalezas2, que gerou a necessidade de Duarte de
Armas viajar ao longo de 900 km na fronteira luso-castelhana, devemos
vislumbrar um pouco do contexto histórico dos princípios do século XVI,
na Península Ibérica. No ano de 1509, Portugal encontra-se sob o reinado
de D. Manuel I, “O Venturoso” (1495-1521). Período das grandes navega-
ções, das descobertas do caminho marítimo para as Índias, do Brasil e das
“Ilhas das Especiarias” (Molucas), a coroa portuguesa contava com posses
espalhadas na costa norte, oeste e leste do continente africano. D. Manuel
foi o primeiro soberano lusitano a assumir o título de “Senhor do Comér-
cio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”, embora não
tivesse domínios consistentes na Arábia (além de alguns entrepostos) e no
território persa (atual Irã) mantivesse apenas acordos diplomáticos e co-
merciais (SANTOS, 1995).
No período de Manuel I, marcado por reformas profundas, o funcio-
namento do reino foi reorganizado através das Ordenações Manuelinas (ini-
ciadas em 1495 e publicadas como novo corpus de lei em 1512). As Ordena-
ções Afonsinas (de D. Afonso V, 1438-1448), ainda fortemente influencia-
das pelo peso das leis medievais portuguesas, foram destruídas. Portugal
encontrava-se em plena expansão territorial (ultramarina) e comercial, sen-
do necessário readaptar seu funcionamento administrativo e político. Com
o dinheiro das especiarias vindas do Oriente, Manuel I realizou, por todo o
reino, diversas obras arquitetônicas, tanto de construção como de reforma,
ao ponto das edificações e o caráter decorativo desenvolvido neste período
virem a ser conhecidos por um estilo próprio, denominado manuelino (gó-
tico português tardio) (MAGALHÃES, 1997). Muitas das características
decorativas deste estilo foram registradas nos desenhos de Duarte de Ar-
mas em seu périplo pelos termos dos reinos ibéricos.
“O Venturoso”, com suas reformas e poder econômico, edificou um
novo “Estado” em que se prenuncia, em boa medida, um absolutismo ré-

2
Original na Torre do Tombo/Lisboa, cód. ref. PT/TT/CF/159, Códice A, com título original
– “Livro das fortalezas situadas no extremo de Portugal e Castela por Duarte de Armas, escu-
deiro da Casa do rei D. Manuel I”. Cópia aquarelada preservada na Biblioteca Nacional de
Lisboa, com publicação em 1642, Microfilme cota 6618 – com o título “Fronteira de Portugal
fortificada pellos reys deste Reyno. Tiradas estas fortalezas no tempo del Rey Dom Manoel
copiadas por Brás Pereira. Na Biblioteca Nacional de Madrid existe o Códice B, cópia incom-
pleta, com apenas 37 fortificações, com a signatura Aa, 98, n 9241, com o título “Plazas de
guerra y castillo medievales de la frontera de Portugal”. Publicação fac-símile integral em 1997,
pela Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Códice A.

356
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

gio, incentivando fortemente as artes, técnicas e cultura em seu território,


buscando continuamente o centralismo, através da criação de instrumentos
unificadores de caráter estatal. Como demonstração de poder, no Marro-
cos, antigo espaço de conquista português (iniciado em 1415, com a toma-
da de Ceuta), realiza novas “façanhas” tomando posse dos portos de Sa-
fim, Azamor e Agadir. Para tanto, a preocupação da manutenção das fron-
teiras na constituição de um “Estado” forte e soberano demonstra ser uma
constante. Esta característica parece ser mais visível principalmente frente a
seu tradicional adversário, o reino de Castela, que se encontrava em fase de
unificação territorial, bem como expansão ultramarina, sob a égide dos Reis
Católicos (Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela) (MONTEIRO, 1999).
O mesmo receio que impelia o soberano português a fortalecer seu
reino política e administrativamente, além de assegurar a delimitação e
manutenção de suas fronteiras fortificadas (por castelos e cidadelas), pro-
moveu uma política de aproximação entre as casas reais peninsulares, com
a intenção de uma ligação dinástica com Espanha. Manuel I foi casado
com Isabel de Aragão (1497-1498), que apenas um ano após o matrimonio
morreu durante o trabalho de parto, casando-se novamente com Maria de
Aragão (1500-1517). As duas infantas eram filhas dos Reis Católicos e her-
deiras da coroa de Espanha. Ao mesmo tempo em que “O Venturoso” bus-
cava ter um sucessor que viesse a unificar as duas casas reais, também cor-
ria o risco de expor seu reino ao controle de Felipe II, que podia sentir-se no
direito de avançar as fronteiras, caso Manuel morresse sem deixar descen-
dência (MAGALHÃES, 1997). A manutenção de uma raya fortificada e
em condições de resistir aos impulsos expansionistas espanhóis era de vital
importância. Neste momento, para constituir um documento onde estives-
sem registradas todas as fortificações portuguesas, na fronteira com Caste-
la, e suas respectivas condições de conservação, entra em cena o “desenha-
dor” Duarte de Armas, de quem, infelizmente, pouquíssimo se sabe.
Duarte nasceu na corte portuguesa, em Lisboa, por volta de 1465; a
data de sua morte é desconhecida. Seu pai, Rui Lopes de Veiros, era um
fidalgo cortesão, fidalguia herdada por Armas, que alcançou a dignidade
de Escudeiro da Casa Real3, Escrivão da Livraria Régia e da Torre do Tom-
bo. Seu posto de Escudeiro fazia parte da Antiga Nobreza de Sangue (li-

3
Na nobreza portuguesa correspondia a Fidalgo de 1º Ordem e 2º Grau, estando abaixo apenas
do Fidalgo Cavaleiro – 1º Ordem e 1º Grau.

357
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

nhagem), correspondendo a uma categoria social e jurídica própria, que


servia diretamente ao monarca. Definido como “debuxador per tallento”,
além do chamado “Livro das Fortalezas Situadas no Extremo de Portugal
e Castela”, conhece-se referência de outro tratado iconográfico de fortifica-
ções, também ordenado por D. Manuel I (CASTELO BRANCO, 1997). O
levantamento das praças fortes de Azamor, Mamora, Salé e Larache, na costa
do Marrocos, trabalho realizado como integrante da Armada de D. João Me-
neses, entre 1507-1508. Sua presença está registrada na Chronica do Felicissimo
Rei Dom Emanuel, de Damião Góis, de 1566 (Parte II, Cap. XXVII, p. 28):
Como el Rei todo o tempo que viueo, trabalhasse muito por fazer guerra aos
Reis de Fez, Miquinez, & Marrocos, & a outras prouincias de Mouros, que
sam da conquista desta destes regnos, mandou no anno atras de mil, & qui-
nhentos e sete, dom Ioaõ de Meneses com tres carauellas... & hum Duarte
Darmas grande pintor, que traçou, & debuxou as entradas destes rios, & a
situaçam da terra. O que tudo feito como conuinha, dom Ioaõ de Meneses se
veo ao regno a dar informaçaõ a el Rei do que achara [...]

Mas, infelizmente, nenhum dos desenhos produzidos nessa missão


“sobreviveu”. Duarte não era propriamente um “artista”, mas um burocra-
ta, um funcionário real, que, devido às suas qualidades como “boom debu-
xador” e conhecedor da arquitetura militar da época, recebeu o encargo de
produzir tratados sobre as fortificações nos “termos” dos domínios portu-
gueses na África do Norte e no continente europeu (NUNES, 1991). Seu
trabalho não era propriamente uma produção artística, mas um documen-
to de Estado, da maior importância para manutenção e segurança das fron-
teiras. Informações de tamanha relevância só poderiam ser confiadas a um
funcionário da Casa Real.

2. A obra imagética e seu autor


Obra única por suas características peculiares e até hoje pouco estu-
dada, o Livro das Fortalezas possibilita, devido à riqueza de sua iconogra-
fia e precisão das anotações do périplo realizado por Duarte de Armas, um
instigante e amplo campo de investigação. Códice recorrentemente citado
nos estudos da castelologia, como forma de “observação” de característi-
cas da arquitetura militar portuguesa dos séculos XIV, XV e XVI, além
disso, apresenta em seus registros iconográficos, de forma humanista, pes-
soas em suas ações prosaicas extramuros. O códice permite inferir questões
e reflexões sobre urbanismo, sociedade, política, arquitetura, relações de

358
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

poder, paisagem, percursos de viajantes e cotidiano no reino de Portugal do


século XVI. A primeira referência histórica da importância, enquanto do-
cumento de “Estado”, desta obra encontra-se nas Noticias de Portugal Offere-
cidas a ElRey N.S. Dom João o IV, de Manuel Severim de Faria, onde relata,
em 1655, que D. Manuel havia mandado “tirar em planta e montea todos
os lugares fortes do Estremo de que se fizeram dois livros depositados por
sua ordem na Torre do Tombo, onde ainda estaõ”. Embora seja um tratado
de natureza militar, contendo detalhada iconografia de 57 fortificações por-
tuguesas, realizadas à pena, reúne diversificada informação, sobre as carac-
terísticas da região de fronteira entre Portugal e Castela nos princípios do
século XVI. Ainda que não possamos esquecer que esses registros imagéti-
cos são traduções sintéticas da paisagem, que o autor observou com deter-
minado propósito, podemos utilizá-los para constituir representações so-
bre o trajeto percorrido e documentado.
No estudo de antigas estruturas arquitetônicas e das paisagens nas
quais estão inseridas, mesmo os registros iconográficos isolados possuem
importância. Eles fornecem dados preciosos possibilitando constituir um
meio de interpretar a transformação das construções e do ambiente através
do tempo. Porém, são os conjuntos coerentes, nomeadamente os que fo-
ram desenhados pelo mesmo artista e relativos à mesma época que permi-
tem os estudos mais completos e aprofundados. Este é o caso da obra Livro
das Fortalezas (NUNES, 1998, p. 94).
O chamado “Códice A” começa com um índice dos castelos dese-
nhados desde o extremo Sul (Castro Marim, fronteira com a Andaluzia,
junto ao rio Guadiana) ao extremo Norte de Portugal (Melgaço, na frontei-
ra com a Galícia, junto ao rio Minho). No total, este viajante, ao que tudo
indica, acompanhado de seu criado, contabilizou 175 léguas (cerca de 900
km) de percurso pelos “limites” do território português. Os alçados, assim
como as respectivas plantas baixas das fortificações, foram realizados, por
volta do ano de 1509, a pedido do Rei D. Manuel I, que pretendia garantir
uma fronteira protegida e bem equipada, contra possíveis ameaças do reino
vizinho de Castela. Para tanto, era necessário saber em que condições se en-
contravam as fortificações da raya. Muitas estavam abandonadas por com-
pleto, outras em situação precária, necessitando reformas; algumas apresen-
tavam pleno funcionamento, mas, devido a suas características arquitetôni-
cas, majoritariamente, medievais, não fariam frente às novas e potentes ar-
mas de fogo. Poucas se encontravam reformadas e contendo uma arquitetura
definida como de “transição”, capaz de travar conflitos baseados na piroba-

359
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

lística4 (CASTELO BRANCO, 1994). Nas Ordenações Manuelinas, Livro


II, Título 44, De como os Castelos ham de seer repairados, páginas 227 e 228,
pode-se identificar claramente a preocupação com a manutenção e provi-
mento das fortificações do reino, fazendo o monarca saber quais obrigações,
por lei, seus responsáveis deveriam cumprir.
Os Alcaides Moores dos Castelos, que os teurerem de juro, e assi as Ordens
que Castelos teuerem, seram obrigados a fazer, e assi repairar nos ditos Cas-
telos as cousas seguintes, .s. todo aposentamento necessario para a viuenda
do Alcaide Moor, e assi estrebarias , atafonas, fornos, casa d’almazem, e de
mantimentos, telhados de torres, portas de fortalezas, e assi barreiras, e ba-
luartes, trancas, ferrolhos , e fechaduras, repairo de cisternas e poços, e qua-
esquer danificamentos de muros, e barras, e torres, e assi de d’ameias, e
peitoris. E caindo torre, ou lanço de muralha, baluarte, ou barreira o pouco
lhe dará seruentia. E o mais fara o Alcaide Moor a sua custa. E os Alcaides
Moores, que nom teuerem os ditos Castelos de juro, seram obrigados a re-
pairar todas as cousas sobreditas, e de as entregar no estado em que lhe
forem entregues, tirando muros, barreiras, e baluartes, e torres. E quando
assi repairarem as sobreditas cousas, que sam obrigados repairar, o pouco
lhe dará a seruentia.

Duarte de Armas teve como função inventariar em que condições se


encontravam as defesas do reino de Portugal. Em suas reproduções, conse-
guiu captar cada uma das partes componentes da “arquitetura militar me-
dieval” e de “transição” que, em inícios do século XVI, já estava sendo
colocada em prática por toda a Península Ibérica. Conforme Nunes (1991,
p. 199), em Portugal a fortificação de transição corresponde à primeira me-
tade do séc. XVI, durante o reinado de D. Manuel. Com a lenta introdução
das novas armas de fogo, nos finais do século XIV, os castelos góticos, pro-
gressivamente, começaram a sofrer mudanças estruturais. A busca de adap-
tação a um novo conceito de combate possibilitou o surgimento de uma
arquitetura militar com características simultaneamente do castelo medie-
val e das primeiras fortalezas modernas.

3. O visto e o registrado em sua viagem


A obra de Duarte de Arma pode ser definida como fundamental-
mente “descritiva”, criando um jogo de escalas entre a constituição de uma
ampla paisagem, abrangendo toda uma região, e os incontáveis detalhes
que dela fazem parte. Muito mais do que simplesmente fortificações, o Es-

4
Armas que utilizam a combustão da pólvora como força impulsionadora dos projéteis.

360
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

cudeiro buscou desenhar o mundo ao seu redor. Sua obra realiza um estu-
do da observação do mundo e, enquanto documento, tem a função de “tes-
temunhar” o observado, não dramatizá-lo (ALPERS, 1999). No Livro das
Fortalezas, a “imagem mostrada na superfície pictórica parece ser um frag-
mento ilimitado de um mundo que continua para além da tela” (ALPERS,
1999, p. 85), havendo também uma forte inclusão da natureza, da vida.
As pessoas que habitavam nas vilas, próximas às muralhas, aparecem
nos registros, ainda que pequenas, na tentativa de manter uma proporção
adequada com as fortificações. É possível perceber, nestes desenhos, o modo
de vestir dos campesinos da época, assim como a maneira de carregar seus
jarros de cerâmica e de conduzir seus animais de carga. Estas paisagens
pictóricas revelam fontes de água (poços, córregos, riachos ou mesmo rios)
próximas às fortalezas ou moradias das vilas. Duarte se preocupou em pas-
sar as informações completas sobre a qualidade da água dos poços e córre-
gos, se estas eram abundantes, frescas e limpas. As áreas destinadas para
cultivo agrícola, assim como a vegetação circundante (árvores altas ou bai-
xas, concentradas ou espaçadas, pastagens ou áreas com concentração de
arbustos) não foram esquecidas. No caso das culturas agrícolas, pode-se
perceber, através de uma comparação entre os diferentes registros das vilas
e seus arredores, que terras eram mais ou menos favoráveis para o plantio.
Ocupou-se também em registrar certas cenas pitorescas do cotidiano, um
caçador e seus dois cães (ALMEIDA, fl. 74), um almocreves com duas
mulas carregadas de mercadorias (CASTELO BRANCO, fl. 52), campo-
neses tirando água de um poço (MONTALVÃO, fl. 50)5, um pastor com
seu rebanho (MONSANTO, fl. 61). Em sua obra, Duarte anotou a distân-
cia (dias de caminhada) e que tipo de estrada (se boa ou ruim para se viajar)
separava um castelo do outro. Registrou sua dura jornada do Castelo de
Apalhão (fls. 41 e 42) ao Castelo de Vide (fl. 43 e 44): “d alpalhãao a
castello de ujde sam duas legoas e antre huua vylla e outra corem duas
Ribeyras pequenas ho camjnho he muj fragosso” (fl. 41).
Através dos desenhos, percebe-se o tipo de aglomeração das residên-
cias, se estas estavam longe ou próximas das fortificações, a característica
dos tetos (colmo, ardósia ou telha), das janelas e portas, a existência ou não
de muralhas a cercar as vilas, a presença de praças centrais, igrejas (com
todos seus detalhes – com torre para sino, ou simples campanário sobre o

5
Veja imagem Anexo 01 no final deste artigo.

361
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

teto, com entrada decorada ao estilo manuelino, com simples porta de ma-
deira, com cruzeiro à sua frente ou cruz sobre o teto). Os patíbulos existen-
tes em muitas vilas, para castigar os criminosos com o enforcamento, não
foram esquecidos, foram desenhados sempre na periferia das vilas, muitos
com os corpos ainda pendurados nas cordas6.
O códice destaca-se como fonte para o estudo da paisagem rayana, do
início do século XVI. Duarte não apenas reproduziu as fortalezas, mas tam-
bém seu entorno, possibilitando informações sobre a utilização de rios para
pesca e comércio. Nota-se a importância deste trabalho, uma vez que os
rios desenhados no século XVI (como exemplo temos o Guadiana) sofre-
ram modificações no “contorno” dos leitos, devido ao assoreamento de
suas margens. A grande maioria dos portos reproduzidos há muito deixa-
ram de existir. Os trechos de rios, onde nas gravuras do tratado aparecem
embarcações, com as velas estufadas pelo vento, atualmente não servem
para a navegação. Especial atenção deve ser dada ao registro de um estalei-
ro, em pleno funcionamento, na cidade de Caminha (fl. 115)7, onde se iden-
tificam os detalhes de uma embarcação em construção, que com frequência
serve para exemplificar estudos em história da engenharia naval (AMATO,
2006, p. 111-112).
A contribuição de Duarte para o estudo da paisagem quinhentista
também está em suas anotações (parte escrita do tratado), situadas junto
aos desenhos. Daveu (2000, p. 12), em seu artigo sobre a rede hidrográfica
portuguesa da segunda metade do século XVI, apresenta uma passagem
muito elucidativa quanto às fontes e cursos de águas presentes no Livro das
Fortalezas:
Durante o verão de 1509, Duarte de Armas, encarregado de “pintar” as
fortalezas raianas, foi de Montalegre até Portelo (Sendim) por um bom ca-
minho de “uma légua boa”, tendo atravessado um rio provido de pontes
(Cávado). Daí, foi ter à fortaleza de Piconha, perto de Rendim, por um muito
mau caminho de 2 léguas, tendo atravessado algumas ribeiras pequenas. Para
atingir Castro Laboreiro teve, a seguir, que franquear “5 léguas de serras e
muitas ribeiras, entre as quais a maior há nome Lima”; o que mostra que
atravessou em linha directa as terras galegas, facto confirmado pela não des-
crição do castelo de Lindoso. De Castro Loboreiro desceu a Melgaço, por
um caminho de “2 léguas mui fragosas, todo de serras, ribeiras nem uma”.
A sucinta que deixou de seu itinerário é de grande interesse; ainda que mui-
to simples, indica sistematicamente a distância em léguas, a qualidade dos
caminhos e os rios atravessados, providos ou não de pontes.

6
Veja imagem Anexo 02 no final deste artigo.
7
Veja imagem Anexo 03 no final deste artigo.

362
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O álbum apresenta grande importância para o conhecimento da or-


ganização espacial urbana dos princípios dos “quinhentos” em Portugal,
indicando que, muitas vezes, há que se procurar uma topografia desapare-
cida através de uma documentação normalmente escassa, em muitos casos
sem continuidade cronológica e raramente adequada ao esclarecimento da
paisagem urbana. A maioria dos documentos disponíveis foi elaborada por
razões jurídico-administrativas e, por isso, privilegiam assuntos como a fi-
xação de quantitativos fiscais ou o esclarecimento de questões de proprie-
dade. Através deles, só muito lateralmente, pode-se depreender o traçado
das artérias de um núcleo urbano, o contorno da muralha ou a exata mor-
fologia de uma construção (ANDRADE, 2003, p. 43). O códice manuelino
nos faculta, assim, um retrato pormenorizado de como seria outrora a pai-
sagem urbana e rural da fronteira terrestre portuguesa nos princípios dos
quinhentos. O viajante da Casa Real se esforçava por oferecer o melhor
enquadramento possível aos seus desenhos, aproveitando para isso os ca-
minhos de aproximação ou de saída dos aglomerados que visitava.
O minucioso trabalho de investigação de Manuel da Silva Castelo
Branco (1994) nos faz acreditar na idoneidade do escudeiro do “Venturo-
so” como excelente “tracista” e observador. Armando Cortesão (1935) não
teve dúvidas em integrar d’Armas no grupo dos cartógrafos portugueses da
primeira metade do século XVI. Duarte demonstra uma disciplina em re-
produzir as fortificações e as paisagens, registrando montes, serras, escarpas,
arvoredos, campos de cultura, pontes, caminhos, azenhas. Acusa-se a mão
de alguém com treino para a cartografia, mas sobressai, ao mesmo tempo,
uma grande maestria no tratamento das formas edificadas.
Em seu “relatório imagético”, Duarte detalhou a situação de conser-
vação e funcionalidade em que as fortalezas se encontravam. A partir de
suas plantas baixas, podem-se obter informações valiosas sobre a constitui-
ção interna das fortificações, assim como o número exato de torres, as pro-
porções do pátio interno, a distância entre a primeira e segunda linha de
muralhas, a localização das torres, os acessos (entradas), capelas, cisternas,
escadarias, estábulos, espessura aproximada das paredes, separação dos di-
ferentes ambientes e seus possíveis espaços. Segundo Cid (2001, p. 112), a
inspeção nas defesas do reino de Portugal, através de desenhos e medições,
seguia o sistema de unidades da vara (v) de 1,10 m e meia-vara (+) de 0,55
m e o palmo (p) de 0,22 m. Na imagem da cidade de Olivença, visão norte
(fl. 23), Duarte se representou tirando a medida da altura da principal torre

363
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

do castelo. Como desejando comprovar a exatidão de seus registros, dese-


nhou a si próprio, segurando uma corda, com um peso na ponta, que descia
desde o teto da torre até o chão8.

4. Fronteira, estratégia e poder


Ao que parece, a leitura da geografia e das condicionantes locais fo-
ram decisivas para o posicionamento do “debuxador”, que adotou uma
metodologia de privilegiar, claramente, a verticalização dos elementos edi-
ficados, principalmente os de função militar. Foi essa regra, estipulada por
Duarte, ou pelo menos por ele empregada repetidas vezes, que lhe serviu
como um recurso para conjugar dados de ordem estética com outros mais
pragmáticos, de conteúdo político. Pode-se inferir que um dos seus empe-
nhos seria exaltar a autoridade régia, e, para tanto, nada como atribuir a
maior altura possível às fortificações que desenhava.
Rasgavam-se múltiplos caminhos vicinais nascidos de serventias diárias que,
ligando-se às estradas principais, encaminhavam o olhar do viajante para uma
monumental construção de pedra que, cada passo andado, se afirmava como
protagonista do seu horizonte visual (ANDRADE, 2003, p. 45).

O Incastellamento, a ocupação por fortalezas, dos pontos mais altos na


topografia da Europa Ocidental, fenômeno registrado no ocidente medie-
val desde o século IX, serve para formalizar uma “linguagem de poder”,
caracterizada pela hierarquização da ocupação do espaço. Esse procedimen-
to, além de responder a necessidades estratégicas, de vigilância e defesa, res-
ponde também a pautas ideológicas. Desde um patamar mais elevado no
terreno e de cima das torres ou muralhas, o domínio visual do território po-
deria chegar a muitos quilômetros. O mesmo é verdade para quem estivesse
fora da fortificação, podendo avistá-la desde uma grande distância (VILLE-
NA, 1992, p. 24). Este fenômeno ajudará na formação de uma imagem men-
tal do castelo como núcleo de referência territorial, elemento fundamental de
domínio da paisagem, articulador do território e protetor da população situ-
ada em seu interior. Principalmente nas regiões de fronteira, a fortificação
será o elemento dominante na paisagem da Europa até o século XVII.
Segundo Nieto Soria (1993, p. 16), o feito de governar vem unido ao
feito de convencer, de persuadir da conveniência da existência do poder

8
Veja imagem Anexo 04 no final deste artigo.

364
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

que governa. A ação de governar, na sociedade medieval, se vê cercada de


diversos procedimentos retóricos, que asseguram a ação de persuasão. Existe
uma forma de retórica não escrita, que precisamente por essa característica
é, frequentemente, dramática, teatralizada, o que favorece uma percepção
imediata e generalizada por parte de um amplo público. A comunicação
que provém da arquitetura do castelo segue esse padrão, visual, direta, per-
ceptível desde muito longe.
Algumas reproduções de Duarte de Armas apresentavam, em segun-
do plano, outros castelos portugueses, demonstrando assim a possibilidade
de contato visual entre as fortalezas, facilitando a manutenção de um siste-
ma defensivo de fronteira. No que diz respeito às regiões do Alentejo e
Algarve, podem ser citados como exemplos a fortificação de Serpa (fl. 8),
onde, na visão leste foram registradas as muralhas de Beja (aprox. 25 km) e o
castelo de Campo Maior (fl. 28), onde ao fundo, na visão norte, foi registrada
a fortificação de Elvas. Também foram desenhados diversos povoados, vilas
e fortalezas castelhanas que se encontravam na margem oposta do rio Gua-
diana. Na visão oeste de Mourão (fl. 14), desenhou Villa Nueva de Fresno.
Na visão sul de Olivença (fl. 24), desenhou ao fundo a cidade castelhana de
Badajoz. Na visão sul de Alcoutim (fl. 3), representou a cidade castelhana de
San Lucar. Na visão sul de Ouguela (fl. 29), desenhou a cidade castelhana de
Albuquerque9. Segundo Andrade (2001, p. 31), as fortificações eram cons-
truídas justamente em frente aos castelos castelhanos, havendo a preocupa-
ção de se constituírem povoações nas proximidades, legitimando a ocupação
portuguesa do território fronteiriço.
Na visão sudoeste de Sintra (fl. 118), ao fundo, Armas desenhou o
antigo e abandonado castelo dos Mouros, cujo “pano de muralha” e torres
“serpenteiam” acompanhando os declives e aclives dos morros onde estão
instalados10. Outro exemplo interessante da minúcia com que os desenhos
eram feitos está no momento do artista registrar a perspectiva sul do castelo
de Alcoutim, onde acabou captando também, a aproximadamente 2 km de
distância, sobre o topo de um monte vizinho, um antigo e arruinado caste-
lo muçulmano, atualmente chamado Castelo Velho de Alcoutim. Este de-
senho é o mais antigo registro existente da estrutura muçulmana, construí-
da possivelmente no século IX e definitivamente abandonada no século XI,

9
Veja imagem Anexo 05 no final deste artigo.
10
Veja imagem Anexo 06 no final deste artigo.

365
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

vindo a ser quase completamente soterrada com o passar tempo (CATARI-


NO, 2002, p. 34).
Referencias sobre o funcionamento do comércio também podem ser
alcançadas através da análise dos desenhos do Escudeiro da Casa Real. No
vale do rio Minho, o problema da navegabilidade atraiu a atenção do “de-
buxador”. A parte vestibular do rio aparece franqueada por grandes naus e
caravelas; uma das naus se afasta em direção ao oceano, enquanto outra
nau e duas caravelas ficam ancoradas na foz, perto de Caminha (fl. 116), e
a terceira nau ao pé do castelo de Vila Nova de Cerveira (fl. 113). Mais à
montante11, em Valença do Minho (fl. 111), estão ancoradas no rio duas
grandes naus, com três mastros e castelos à popa e à proa, e também duas
pequenas caravelas, com dois mastros e duas velas triangulares. Uma das
naus vai içando as velas, preparando-se para descer em direção ao mar.
Mais à montante, em Monção (fl. 108), o desenhista representou apenas
uma pequena barca no rio, como permite apreciar o barqueiro nela instala-
do, com uma só vela. Demonstrou, assim, que a passagem da carga da
navegação marítima se fazia em Valença, à jusante12, e que as mercadorias
passavam em Monção, levadas por animais de carga, dirigidos por almo-
creves (DAVEAU, 2003, p. 84-85).
Um artista da época com recursos técnicos, como se acredita ser o
caso de Duarte, perceberia a necessidade de “distorcer” e “arranjar” as suas
imagens para torná-las mais compreensíveis para terceiros, principalmente
para D. Manuel. O desenhista real deveria ter conhecimento de que os códi-
gos de representação são simples ferramentas, abertas a ser moldadas para
atingir um determinado fim expressivo. Conforme Cid (2001), a obra de Du-
arte pode ser classificada como uma modalidade de desenho de transição:
Isto porquanto, se essas ilustrações encerram ainda um grande peso da Ida-
de Média, acima de tudo na falta de uma geometria que as determine inte-
gralmente (de modo a eliminar as pequenas discordâncias a tal associadas,
tais como pontos de fuga não unificados ou alguns erros de escala), é porém
manifesto que a estrutura interna dos seus desenhos responde a uma percep-
ção espacial já muito longe do “realismo” do Gótico, cujos valores se mos-
travam então completamente esgotados. Com efeito, nas suas representa-
ções, Duarte de Armas procurou uma adequada verossimilhança na topo-
grafia – distinguindo também materiais (pedra, reboco, etc.) e introduzindo
vida (pessoas) nos desenhos –, tentou obter valores de “longe” e de “perto”,

11
Em direção à foz do rio, direção contrária à vazante. Costuma-se dizer “subindo o rio”.
12
Vazante, em direção à saída para o mar.

366
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

e apostou no registro circunstanciado das características de cada recinto


defensivo que visitava (CID, 2001, p. 117).

Quanto a esta “transição”, expressão artística que se relaciona a ca-


racterísticas de diferentes recortes temporais, Didi-Huberman (2008) nos
faculta a informação de que as imagens são objetos heterocrônicos/poli-
crônicos. As pinturas, gravuras e desenhos conteriam em si a influência, a
existência de diversos períodos e estilos, o que definiria o estudo da arte
como algo anacrônico, por definição. “A história das imagens é uma histó-
ria dos objetos temporalmente impuros, complexos, sobredeterminados”
(2008, p. 46). Sendo assim, a eucronia, ou seja, a tentativa de compreender
o objeto do passado pelo próprio passado, acedendo à “Ferramenta Men-
tal”, técnica, estética, religiosa que fez possível determinada eleição pictó-
rica, seria uma idealização impossível. Conforme esse pensamento, as ima-
gens seriam uma montagem de diferenças que abririam um leque do tempo
em grande escala. Um dos principais conceitos criados e trabalhos por Aby
Warburg é justamente o de “Sobrevivência”, que busca fazer jus à comple-
xa temporalidade das imagens, que se configuram na larga duração e se
encontram nas “fissuras do tempo” (BURUCÚA, 2002).
Na segunda metade do século XVI, aparecem as primeiras referên-
cias de utilização das técnicas da perspectiva empregadas como instru-
mentos a serviço da arte de guerra. Francisco de Holanda, em seus Diálo-
gos, comenta:
[...] la gran pintura no es solamente útil a la guerra, sino que además es
necesaria [...]; el diseño sirve en sumo grado en la guerra para dibujar la
situación de los lugares apartados, la configuración de las montañas y de los
puertos, de las cadenas de montes y de las bahías y golfos; para fijar la figura
de las ciudades y fortalezas, altas y bajas, murallas y puertas y el lugar que
éstas ocupan; para mostrar los caminos y los rios, las playas, los lagos, las
lagunas que hay que evitar o que hay que cruzar; la dirección y la extensión
de los desiertos de arena; los malos caminos, selvas y matorrales; todo ello
mal podría comprenderse de otro modo, mientras que con el diseño se hace
claro y fácil de entender, y , siendo todas estas cosas importantes en las empre-
sas de guerra, los diseños del pintor sirven de gran ayuda para los propósitos y
los proyectos del capitán (HOLANDA apud BOTÍ, 2006, p. 118).

Francisco de Holanda define, de forma clara, a grande importância


que o recurso imagético ocupava, em termos estratégicos, para o conheci-
mento do território. Um registro visível, onde pudessem ser localizadas mon-
tanhas, estradas, lagos, cursos de rios, fortificações, postos de observação e
características topográficas de uma região, serviria como valioso diferencial
no momento de um conflito. “Fazendo fácil e claro de entender [...] o dese-

367
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

nho do pintor” (Duarte) “servia de grande ajuda aos projetos e propósitos”


(defesa da fronteira portuguesa) “do capitão” (D. Manuel).

Conclusão
A distorção da verticalidade das torres (para valorizar o poder régio),
a captura de dois pontos de vista (N/S ou L/O) nos registros das cidades
fortificadas, a ostentação dos gigantescos estandartes das Coroas Ibéricas
desenhados sobre as construções (delimitando “perfeitamente” a fronteira)
e o empenho exaustivo de reproduzir uma paisagem detalhada demons-
tram que Duarte realizou seu trabalho através de uma forma regrada, “re-
gulamentando seu olhar” sobre o que deveria ser registrado. As medições
(em vara e meia-vara, tanto dos alçados como das plantas baixas) e as des-
crições das condições de estradas, cercas, vilas, fontes de água e a identifi-
cação por legenda (igreja, menagem, villa, cubello, caçador, embarcações –
nau, caravela, barca13 [...]), indicam um ver “racional”, com método, que
buscava ser objetivo na produção de um documento que faria parte da grande
campanha de reestruturação do reino, iniciada por D. Manuel.
Mas não são apenas informações técnicas e metódicas que constituem
este tratado. Em alguns debuxos, Duarte registra a si (sobre uma mula) e seu
criado (a pé) passando diante das fortificações, atravessando as vilas ou cami-
nhando pelas estradas próximas às cidades14. Podem-se considerar como uma
inovação desta obra os diferentes momentos representados por seu autor.
Quase sempre apresentando sua chegada à vila, sua passagem em frente a
esta e sua saída. O Livro das Fortalezas é mais do que um tratado das fortifi-
cações portuguesas fronteiriças, é um detalhado “registro etnográfico”, reali-
zado por um viajante atento e “faminto” por informações, que possibilita
valiosos dados sobre o viver no início do século XVI. A obra é humanizada
com sua imagem e com a dos habitantes das cidades; esse recurso dá vida à
paisagem e às estruturas. Uma viagem singular, capaz de gerar uma obra de
grande força evocativa. Um auxílio precioso para quem, por qualquer moti-
vo, necessita investigar a história dos povoados e do território fronteiriço in-
cluídos nas páginas do tratado. Um maravilhoso diário de viagem onde as
letras, palavras, frases e textos foram substituídos por elaboradas composi-

13
Veja imagem Anexo 07 no final deste artigo.
14
Veja imagem Anexo 08 no final deste artigo.

368
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

ções iconográficas, que dão a entender o que nosso viajante pode vivenciar
ao longo de seu périplo de 900 km em, aproximadamente, um ano de cami-
nhada.

Documentos
ARMAS, D. Livro das Fortalezas. Lisboa, Fac-Símile do MS 159 da Casa Forte do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 2. ed., INAPA, 1997.
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Título 44, p. 227 e 228. Ordenações Manuelinas On-line, Fac-Símile, Instituto de
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Impressa na Officina Craesbeeckiana, 1655.Biblioteca Nacional de Portugal. Mi-
crofilme F.5751 – Sala Geral de Microfilmes.
GÓIS, D. Chronica do Felicissimo Rei Dom Emanuel. Lisboa, Na Officina de Miguel
Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio, 1566, Parte II, Cap. XXVII, p. 28.
Biblioteca Nacional de Portugal – Biblioteca Nacional Digital. Disponível em:
<http://purl.pt/288/1/P229.html>.

Referências
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Oceanos: Uma Plataforma para o Desenvolvimento. Publicação da Escola Naval
de Portugal. p. 09-114.
ANDRADE, A. Horizontes urbanos medievais. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
______. A construção medieval do território. Lisboa: Livros Horizonte, 2001.
BOTI, A. La arquitectura militar del Renacimiento a través de los tratadistas de los siglos
XV y XVI. 2006. Tesis Doctoral – Escuela Técnica Superior de Arquitectura de
Valencia. Director Juan Francisco Noguera Giménez, 2006.
BURUCÚA, J. E. História, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002.
CASTELO-BRANCO, M. O Livro de Duarte de Armas. In: A arquitetura militar na
expansão portuguesa. Porto: Comissão Nacional para as Comemorações dos Desco-
brimentos Portugueses, 1994.
______. Introdução. In: O Livro das Fortalezas. Lisboa, Fac-Símile do MS 159 da
Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 2. ed., INAPA, 1997.

369
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

CATARINO, H. Arqueologia medieval: o estado da arte e novas perspectivas. In:


As Oficinas da História. Coimbra: Edições Colibri – Faculdade de Letras da Univer-
sidade de Coimbra, Portugal, 2002.
CID, P. Castelo de Vide e o Álbum de Duarte de Armas: algumas notas. In: Caderno
de Intervenções em Patrimônio. Lisboa: IPPAR, 2001.
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DAVEAU, S. A rede hidrográfica no mapa de Portugal de Fernando Alvaro Seco
(1560). Revista Finisterra, Porto, v. XXXV, n. 69, p. 11-38, 2000.
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XV e XVI e na actualidade. Revista da Faculdade de Letras – Geografia, Porto: Univer-
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MAGALHÃES, J. R. História de Portugal: v. 3: No alvorecer da Modernidade (1480-
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MONTEIRO, J. Os castelos portugueses dos finais da Idade Média: presença, perfil, con-
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NIETO SORIA, J. M. Ceremonias de la realeza: propaganda y legitimación en la
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______. Dicionário temático de arquitetura militar e arte de fortificar. Lisboa: Direcção
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VASCONCELLOS, J. A pintura portuguesa nos séculos XV e XVI. Coimbra: Imprensa
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VILLENA, L. Arquitectura militar en la Península Ibérica. In: Actas del IV Curso de
Cultura Medieval: Seminario – La Fortificación Medieval en la Península Ibérica.
Fundación Santa Maria la Real. Aguilar del Campo, España, Septiembre de 1992.
p. 17-32.

370
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Anexos

Anexo 01 – Mulheres buscando água em um poço, fora das muralhas de


Montalvão – Detalhe.

Anexo 02 – Pessoa enforcada, em um patíbulo, fora da cidade de Bragança


– Detalhe.

371
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

Anexo 03 – Embarcação em construção, junto à margem do rio Minho, na


cidade de Caminha – Detalhe.

Anexo 04 – Duarte, no topo da torre de Olivença, “demonstrando” como


tirar as medidas de sua altura – Detalhe.

372
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Anexo 05 – Em primeiro plano, a cidade portuguesa de Ouguela, visão sul,


ao fundo a cidade castelhana de Albuquerque

Anexo 06 – Palácio de Sintra, ao fundo, à esquerda, Castelo dos Mouros, à


direita, Convento de Nossa Sra. da Penha.

373
CRUXEN, Edison Bisso • O viajante Duarte de Armas e sua obra imagética...

Anexo 07 – Detalhe da cidade castelhana de Tui, três diferentes tipos de


embarcações. Da direita para esquerda: nau, galé e caravela – Detalhe.

Anexo 08 – Supostamente Duarte de Armas e seu criado, em um detalhe


do registro da cidade de Elvas, visão sul.

374
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A iconografia de Maria Madalena


na arte do Medievo e da Modernidade:
um olhar genderificado

Cristine Tedesco1

1. Introdução
Considerando os estudos desenvolvidos sobre o medievo nas últimas
décadas, acreditamos numa perspectiva cronológica que não obedece aos re-
cortes tradicionais. Nossa Idade Média, conforme Duby2, prolonga-se por
mais de dez séculos e não se deixa enquadrar nos limites muitas vezes impos-
tos por uma cronologia dita necessária à pesquisa e ao ensino de História.
Destacamos que nosso referencial teórico é marcado pelo conceito
de gênero, pensado por Joan Scott3. Para a pesquisadora, as relações de po-
der são ensaiadas primariamente desde as relações entre homens e mulhe-
res. Ao sugerir que as significações de gênero e poder se constroem recipro-
camente, Scott (1990) afirma que, para escrever história fazendo uso do
gênero, enquanto categoria de análise, é necessário reconhecer que “[...] ‘ho-
mem’ e ‘mulher’ são categorias vazias e transbordantes4 pois que, quando
parecem fixadas, elas recebem, apesar de tudo, definições alternativas, ne-
gadas ou reprimidas”5.
Assim, nosso olhar genderificado ou gendrado6 analisa as representações
imagéticas de Maria Madalena produzidas no período entre os séculos XV e

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas.
Orientadora: Profª Dra. Rejane Barreto Jardim. Contato: tedesco.cristi@gmail.com
2
DUBY, Georges. História artística da Europa. Tomo I: A Idade Média. São Paulo: Paz e Terra,
1997.
3
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade,
Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 05-22, jul.-dez. 1990.
4
Vazias porque não possuem significado definitivo e transcendente. Transbordantes porque,
mesmo quando estão aparentemente determinadas, elas contêm definições alternativas nega-
das ou reprimidas.
5
SCOTT, 1990, p. 19.
6
“O vocábulo gendrado, oriundo de gender (palavra inglesa para gênero), tem sido utilizado por
feministas, na falta de um adjetivo correspondente ao substantivo gênero. Trata-se de um neolo-

375
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

XVII buscando compreender os significados atribuídos a essas imagens, como


foram pensadas por seus criadores? Perguntamo-nos, por exemplo: Quem foi
Maria Madalena aos olhos dos artistas que a representaram?
Sobre a análise das imagens, filiamo-nos à metodologia de Luigi Pa-
reyson7. Segundo o autor, a obra de arte para ser compreendida “[...] por
um lado ela exige ser colocada no seu tempo e interpretada à luz do espírito
da época; por outro lado, contribui para dar a conhecer a sua época, em
todas as suas diversas manifestações espirituais, culturais, morais, religio-
sas, etc.”8

2. Considerações sobre a arte: do Medievo ao Barroco


Com base no conceito convencional do Medievo como a Idade das
Trevas, as pessoas pensam o período como uma época obscura, até mesmo
do ponto de vista colorístico, conforme Umberto Eco9. Para o pesquisador,
durante a Idade Média,
[...] a noite é vivida em ambientes pouco luminosos: em cabanas iluminadas
– no máximo – pelo fogo da lareira, nos quartos amplíssimos de castelos
iluminados por tochas ou na cela de um monge o lume de um débil candeei-
ro, e escuras eram as estradas das aldeias e cidades. Todavia, esta é uma
característica também do Renascimento e do Barroco e – ainda adiante – do
período que vai pelo menos até a descoberta da eletricidade.10

Porém, ao contrário, o homem medieval se vê e se representa, tanto


na poesia como na pintura, em um ambiente luminosíssimo, afirma Eco
(2010). Sobre as miniaturas medievais, Umberto Eco salienta que, mesmo
tendo sido realizadas, provavelmente, em ambientes mal iluminados, “[...]
são plenas de luz, de uma luminosidade, aliás, particular, gerada pela com-
binação de cores puras; vermelho, azul, ouro, prata, branco e verde, sem
esfumaturas”11.
Outro elemento comum ao Medievo e ao Barroco é a função cate-
quética atribuída às imagens. Para Georges Duby, os homens de saber con-

gismo, incorporado do inglês (gendered) e ainda não dicionarizado” (SAFFIOTI, Heleieth I. B.


Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 77).
7
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
8
Ibid., p. 126.
9
ECO, Umberto. História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2010.
10
Ibid., p. 99.
11
Ibid., p. 99.

376
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

feriam um papel pedagógico aos monumentos, objetos e imagens, os quais


favoreciam a comunicação com o outro mundo. Conforme Duby, “[e]m 1205,
o sínodo de Arrás autorizou a pintura de imagens para ensinar os ignorantes.
Cem anos mais tarde, Bernardo de Claraval exortava os bispos a excitar por
meio de imagens sensíveis a devoção carnal do povo [...].”12
Mais tarde, nos anos de 1600, o Papa Clemente VIII desejava que
Roma fosse um modelo político e religioso para o mundo ocidental. Segun-
do Janson13, o papado patrocinava a arte barroca em longa escala, com
objetivos de “[...] fazer de Roma a mais bela cidade do mundo cristão: para
maior Glória de Deus e da Igreja”14. Também por esse motivo, a Contrarrefor-
ma irá investir significativamente nas ações catequéticas. Para disseminar
os ensinamentos da Igreja Católica, era preciso fazer conhecer as histórias
bíblicas, o que para a maioria do povo não letrado se daria através das ima-
gens. Nesse sentido, as imagens terão uma função importante tanto no
medievo quanto nos inícios do mundo moderno. Para Paulo Knauss15, elas
são capazes “[...] de atingir todas as camadas sociais ao ultrapassar as di-
versas fronteiras sociais pelo alcance do sentido humano da visão. [...] a
imagem se identifica com uma variedade de grupos sociais que nem sem-
pre se identificam com a palavra escrita”16. As imagens, além de comunica-
rem sentidos, carregam valores simbólicos, políticos, ideológicos, religio-
sos, etc. “Isso quer dizer que participam plenamente do funcionamento e
da reprodução das sociedades presentes e passadas.”17
Sobre o cotidiano dos artistas da Idade Média, Ernst H. Gombrich18
salienta que foi a partir do século XIII que abandonaram os livros de mode-
los e esboços. Para entender o que isto pode ter significado para o período, é
importante pensar no tipo de formação que os jovens artistas do Medievo
recebiam. Segundo Gombrich, o aprendiz ingressava no ateliê de um mes-
tre e o ajudava, preparando tintas e preenchendo partes secundárias de uma
pintura. “Aprendia a copiar e reagrupar cenas de velhos livros, e a ajustá-

12
DUBY, 1997, p. 16.
13
JANSON, Horst Woldemar. História geral da arte. V. 2: Renascimento e Barroco. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
14
Ibid., p. 716.
15
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagem: arte e cultura visual. ArtCultura,
Uberlândia, v. 8, p. 97-115, jan.-jun. 2006.
16
Ibid., p. 99.
17
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média.
Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 11.

377
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

las a diferentes contextos; finalmente, adquiria desenvoltura para poder até


ilustrar uma cena para o qual não conhecia nenhum modelo.”19
Gombrich afirma que os retratos eram, na verdade, desenhos de figu-
ras convencionais aos quais os artistas acrescentavam as insígnias do cargo
“[...] coroa e cetro para o rei, mitra e báculo para o bispo – e talvez escrever
embaixo o nome da personalidade representada”20. Dessa forma, a ideia de
sentar-se diante de algo ou alguém e retratar uma cópia do que viam não
era comum para os artistas no medievo.
Sobre a arte desse período, Andrea C. L. de Miranda21 salienta duas
barreiras encontradas pelos artistas do medievo, uma delas “[...] era prove-
niente do cristianismo, fixava a ideia de que o indivíduo não era o agente da
história e a outra dizia respeito à condição pouco elevada dos artistas devi-
do à natureza mecânica ou servil do seu trabalho”22. Nesse sentido, pintu-
ra, escultura, música, poesia, arquitetura e eloquência eram consideradas
mecânicas; isso perdurou até o início do Renascimento, o que pesará sobre
a condição social dos artistas, conforme Miranda. Para Marc Jimenez23,
“[...] a palavra arte, herdeira desde o século XI, de sua origem latina ars =
atividade, habilidade, designa até o século XV, no Ocidente, apenas um
conjunto de atividades ligadas à técnica, [...] essencialmente manuais.”24
Conforme Germain Bazin25, isto começa a se modificar quando os
artistas florentinos passaram a reivindicar o reconhecimento de suas obras.
Além disso, os pintores “[...] estavam fascinados pela ideia de que a arte
pudesse ser usada não só para contar a história sagrada de uma forma co-
movente, mas para refletir também um fragmento do mundo real”26. A for-
mação e organização dos artistas urbanos e artesãos devem muito aos mos-
teiros, a sua estrutura e ao aprendizado em suas oficinas.

18
GOMBRICH, Ernst Hans. A história da arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC,
2009.
19
Ibid., p. 196.
20
Ibid., p. 196.
21
MIRANDA, Andrea Cristina Lisboa de. A mulher artista na idade média: considerações e
revelações acerca do seu lugar na história da arte. R. Cient./FAP, Curitiba, v. 1, p. 1-17, jan./
dez. 2006. Disponível em: <http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/RevistaCientifica1/
ANDREA_LISBOA_DE_MIRANDA.PDF>. Acesso em: 15 jun. 2012.
22
Ibid., p. 2.
23
JIMENEZ, Marc. A autonomia da estética. O que é estética? São Leopoldo: UNISINOS, 2000.
24
Ibid., p. 32.
25
BAZIN, Germain. A História da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
26
GOMBRICH, 2009, p. 247.

378
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Durante o Medievo, os mestres podiam ser recomendados de um mos-


teiro para outro; com a consolidação dos espaços urbanos no século XV, os
artistas, artesão e artífices organizaram-se em corporações, como lembra
Gombrich (2009). Para ser aceito numa corporação, o artista precisava al-
cançar os padrões determinados e quando aceito era autorizado a “[...] ins-
talar uma oficina, a empregar aprendizes e aceitar encomendas para retá-
bulos, retratos, arcas, estandartes e brasões, ou qualquer outro trabalho”27.
Em Florença, assim como em outras cidades da Europa, as corporações
destinavam uma parte de suas verbas à construção de igrejas, de palácios
para as guildas ou corporações e, segundo Gombrich (2009), estimularam
muito a produção artística. Ao mesmo tempo, zelavam pelos interesses de
seus membros, dificultando a entrada de novos artistas.
Segundo Duby (1997), até o século XV, a sociedade confundiu artis-
tas e artesãos, via neles o simples executante de uma encomenda, um sujei-
to que recebia o projeto de uma obra. “A autoridade eclesiástica repetia que
não cabia aos artistas inventar imagens: a Igreja as construía e as transmi-
tia; aos pintores competia apenas executar a ars [...].”28 Contudo, ao longo
desse milênio, as coisas não pararam de se transformar na Europa emer-
gente, como salienta o mesmo pesquisador. “Ao afetarem as relações soci-
ais e os diversos componentes da formação cultural, as transformações
modificaram as condições da criação artística.”29
Para Johan Huizinga30, “[t]odas as tentativas de estabelecer uma
divisão clara entre os períodos da Idade Média e da Renascença resultam
num aparente recuo das fronteiras.”31 O Medievo trazia consigo a marca
do Renascimento. Além disso, ao examinarmos a mentalidade renascen-
tista, notamos muito mais coisas “medievais” nela do que aparentemente
a teoria permitiria, nas palavras de Huizinga. O mesmo autor afirma ain-
da que artistas como Sluter e Jan Van Eyck, e nós incluímos aí Roger Van
der Weyden, podem ser incluídos na égide da Renascença, entretanto,
“[e]les possuem um sabor medieval”32, são medievais tanto na forma como
no conteúdo.

27
Ibid., p. 248.
28
DUBY, 1997, p. 17.
29
Ibid., p. 17.
30
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
31
Ibid., p. 479.
32
Ibid., p. 479.

379
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

No conteúdo, pois sua arte não recusou nada do antigo, e não incorporou
nada de novo no que diz respeito ao assunto, ideias e propósito. Na forma,
justamente porque o seu realismo minucioso e o seu desejo de representar as
coisas o mais fisicamente possível na imagem constituem o pleno desenvol-
vimento do verdadeiro espírito medieval. E assim vemos esse espírito atuan-
do no pensamento e na representação religiosa, nos pensamentos da vida
cotidiana e em todos os outros lugares.33

Salientamos a importância de entender as variações estilísticas sem,


no entanto, criar um simples rótulo. A concepção clássica da arte, fundada
na imitação das harmonias da natureza, é um dos elementos mais eviden-
tes do período renascentista34, porém, é também uma concepção presente
no medievo.
A elaboração das obras artísticas foi, durante o século XV, marcada
de forma importante pelo conceito de Beleza – entendida como imitação
da natureza a partir de regras estabelecidas pela ciência. O artista é, ao
mesmo tempo, criador da novidade e imitador da natureza. Para Leonardo
da Vinci35 (1989) ,“[i]l pittore è padrone di tutte le cose che possono cadere
in pensiero all’uomo, perciocchè s’egli ha desiderio di vedere bellezze che
lo innamorino, egli è signore di generarle, e se vuol vedere cose mostruose
che spaventino, [...] ei n’è signore e creatore.”36
O desenvolvimento das técnicas de perspectiva na Itália e seu apri-
moramento em pintura implicaram: “[...] invenção e imitação: a realidade
é reproduzida com precisão, mas, ao mesmo tempo, obedecendo a um pon-
to de vista subjetivo do observador, que acrescenta a Beleza contemplada
pelo sujeito à exatidão do objeto”37. Para o mesmo autor, ao longo do sécu-
lo XVI, durante a reabilitação da concepção da Beleza como imitação da
natureza, já condenada por Platão, o conceito adquire um valor simbólico,
contrapondo-se à Beleza como harmonia.
Assim, com o movimento neoplatônico promovido principalmente
em Florença, o caráter mágico da Beleza, assumido por filósofos como
Giovanni Pico della Mirandola e Giordano Bruno, juntamente com o au-

33
Ibid., p. 479.
34
ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
35
DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura. Preceduto dalla “Vita di Leonardo da Vinci” di
Giorggio Vasari. Roma: Club del Libro Fratelli Melita, 1989.
36
“O pintor é senhor de todas as coisas que possam vir ao pensamento do homem, porque, se
tem desejo de ver belezas que o apaixonem, ele é o senhor de gerá-las, e se quer ver coisas
monstruosas que assustem, delas ele é senhor e criador” (DA VINCI, 1989, p. 7; tradução de
minha autoria).
37
ECO, 2010, p. 180.

380
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

mento dos trabalhos por encomenda, foi, de acordo com Umberto Eco,
essencial para que “[...] a não imitação da natureza”38, fosse tolerada.
A Beleza clássica se dissolve nas formas do Maneirismo e do Barro-
co, e observamos “[...] outras formas de expressão da Beleza: o sonho, o
estupor, a inquietude”39. A perfeição do Renascimento é afetada pelo movi-
mento dinâmico da cultura o qual atinge as artes, a religião, a sociedade. O
desenvolvimento da ciência e os progressos do saber deslocam o homem do
centro do universo para a periferia. O artista não está imune a estas ques-
tões, ele agora pensa sobre a representação da Beleza de forma mais com-
plexa, está inquieto e emotivo.
Umberto Eco (2007) define o Maneirismo como “[...] a época em
que o artista, dominado pela inquietação e pela melancolia, não se volta
mais para o belo como imitação, mas para o expressivo”40. Para Eco, a
partir do século XVI, há uma reviravolta na forma de pensar a arte.
O maneirista tende à subjetivação da visão: enquanto a perspectiva monocu-
lar dos renascentistas visava à reconstrução de uma cena como se fosse vista
por um olho matematicamente objetivo, o artista maneirista dissolve a estru-
tura do espaço clássico nas visões saturadas e desprovidas de um centro. [...]
Com maior propriedade, o gosto pelo extraordinário, pelo que pode despertar
assombro e maravilha aprofunda-se no Barroco e neste ambiente cultural são
explorados os mundos da violência, da morte, do horror, como acontece na
obra de Shakespeare [...] Dessa maneira, Maneirismo e Barroco não temem
recorrer àquilo que, para a estética clássica, era considerado irregular.41

Ernst Gombrich (2009) afirma que a expressão Barroco “[...] foi em-
pregada pelos críticos de um período ulterior que lutavam contra as tendên-
cias seiscentistas e queriam expô-las ao ridículo. ‘Barroco’, realmente, sig-
nifica absurdo ou grotesco.”42
O Barroco é a dramatização da vida e, segundo Eco (2010), uma
busca por novas expressões da Beleza. “O século Barroco exprime uma Bele-
za, por assim dizer, além do bem e do mal. Ela pode dizer o belo através do
feio, o verdadeiro através do falso, a vida através da morte. Esse tema da
morte está, aliás, obsessivamente presente na mente barroca.”43 No século
XVII, “[...] à Beleza imóvel e inanimada do modelo clássico substitui-se

38
Ibid., p. 186.
39
Ibid., p. 212.
40
ECO, 2007, p. 169.
41
Ibid., p. 169.
42
GOMBRICH, 2009, p. 387.
43
ECO, 2010, p. 233.

381
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

uma Beleza dramaticamente tensa. [...] não respeita nenhuma hierarquia


entre centro e periferia, que exprime a plena dignidade de uma barra de
vestido, assim como de um olhar.”44 Além disso, a estética do Barroco pos-
sui, conforme Umberto Eco45, uma “forma aberta”46. Para ele, a forma bar-
roca, em seu jogo de cheios e vazios, os ângulos nas inclinações mais diver-
sas, a procura do movimento e da ilusão induzem o observador a deslocar-
se continuamente para ver a obra sob aspectos sempre novos.

3. A iconografia de Madalena no Medievo e no Barroco


Maria Madalena é citada no Evangelho de Lucas47. No pequeno tex-
to intitulado As mulheres servem Jesus, os doze apóstolos seguiam Jesus Cris-
to, e com eles seguiam algumas mulheres que haviam sido curadas de espí-
ritos maus e doenças. Entre elas está “Maria, chamada Madalena, da qual
haviam sido expulsos sete demônios”48.
De acordo com Wilma Steagall de Tommaso49, “Madalena não é so-
brenome, provinha de el-Mejdel, que era uma cidade a noroeste do lago da
Galileia, 6 quilômetros ao norte de Tiberíades, lugar onde Madalena pode
ter nascido”50. Para a mesma autora, o que mais inquieta no texto bíblico
alusivo à Madalena “[…] é que ela não aparece como filha, esposa ou irmã
de nenhum homem. Essa independência feminina em uma sociedade do-
minada por homens tem intrigado muitos pesquisadores”51.
A pesquisadora Wilma S. de Tommaso afirma ainda que os sete de-
mônios expulsos de Maria Madalena podem ser uma alusão aos, também
sete, pecados capitais: gula, luxúria, ira, orgulho, vaidade, preguiça e inve-
ja. Além disso, “sete é o número da salvação e do que é divino”52. Sendo
assim, Madalena teria sido convertida religiosa e moralmente, significava
uma salvação integral, não apenas uma conversão.

44
Ibid., p. 234.
45
ECO, Umberto. Obra aberta. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1971.
46
Ibid., p. 44.
47
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
48
Lc 8,2.
49
TOMMASO, Wilma Steagall de. Maria Madalena nos textos apócrifos e nas seitas gnósticas.
Último Andar, São Paulo, (14), p. 79-94, jun. 2006. Disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/485244/artigos-maria-madalena>. Acesso em: 14 jun. 2012.
50
Ibid., p. 80.
51
Ibid., p. 81.
52
LURKER, 1993, ap. TOMMASO, 2006, p. 82.

382
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

A associação comum de Maria Madalena como uma mulher pecado-


ra se deve ao relato bíblico que antecede o texto sobre a expulsão dos demô-
nios realizada por Cristo. No Evangelho de Lucas (7,36-50), é mencionado
que uma pecadora anônima teria ungido os pés de Jesus com as próprias
lágrimas e os secado com seus longos cabelos, na casa de Simão, o fariseu,
e sido perdoada por Ele. Para Tommaso (2006), a proximidade entre as
duas histórias bíblicas pode ter favorecido a associação entre as duas mu-
lheres, a pecadora anônima e Maria Madalena.
Conforme o texto bíblico de São João (12,1-11), seis dias antes da
Páscoa, Jesus foi para Betânia. Durante o jantar na casa de Lázaro, Maria –
irmã de Marta e Lázaro – usou meio litro de perfume de nardo puro e
muito caro na unção dos pés de Cristo, depois os secou com os próprios
cabelos. Wilma Steagall de Tommasso salienta que foi a interpretação dos
evangelhos de Lucas e João que transformou as três mulheres numa só:
Maria Madalena.
De acordo com Tommaso (2006), a confusão de identidade das três
mulheres “[...] remonta ao século III, e foi no final do século VI que o Papa
Gregório Magno (540-604) pôs fim à questão ao declarar que Maria Mada-
lena, Maria de Betânia e a pecadora anônima eram a mesma pessoa”53. Ao
analisarmos os relatos bíblicos, não encontramos evidências de uma supos-
ta imoralidade de Maria Madalena. O fato de estar possuída por sete demô-
nios não era considerado pecado, conforme Tommaso (2006). A autora
salienta que,
[a]o se fazer uma leitura atenta dos fatos, não se chega à conclusão de que
Maria Madalena tenha sido uma mulher adúltera. O que acontece é que, ao
ser identificada com a pecadora anônima de Lucas e com Maria de Betânia,
Madalena incorpora a mulher de cabelos longos e soltos que serviram para
secar os pés de Jesus. Essa imagem evoca a feminilidade e também a sexua-
lidade, que induz a uma associação com o pecado.54

Perguntamo-nos, agora, como teria se dado o processo que consolidou


Maria Madalena na Igreja Católica. A este respeito, Georges Duby55 afirma
que a santificação de Madalena delineou-se em meados do século XII, com a
elaboração de um livro para os peregrinos de Santiago de Compostela, onde
eram indicados os santuários existentes no percurso. Entre os santos mila-

53
TOMMASO, 2006, p. 83.
54
Ibid., p. 83.
55
DUBY, Georges. Heloísa, Hisolda e outras damas no século XII: uma investigação. Tradução Pau-
lo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

383
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

greiros e protetores destacados no livro “[...] há duas mulheres, santa Fé e


santa Maria Madalena. A primeira em Conques, a outra em Vézelay”56. Era
também no santuário de Vézelay que repousava o corpo da santa Maria
Madalena, segundo a publicação. Para Jacques Dalarun57, foi preciso elabo-
rar uma narrativa um tanto forçada para “[...] explicar a vinda do santo cor-
po do Oriente para a Borgonha, conciliando essa trasladação com o lendário
desembarque de Marta, Maria e Lázaro na Provença”58.
Sobre os milagres de Maria Madalena, Duby indica que,
[e]ntre outras graças, a santa devolve a visão aos cegos, a fala aos mudos, o
movimento aos paralíticos, a calma aos energúmenos – milagres que o pró-
prio Cristo havia realizado. [...] Tudo está aí: as curas, o pecado, o amor, as
lágrimas, a remissão. Elementos que explicam o estrondoso sucesso de uma
peregrinação, então uma das maiores do Ocidente. Que explicam também a
presença insistente no imaginário coletivo de uma figura de mulher, a da
amante de Deus, da perdoada, cuja fama é mantida em toda parte por uma
ativa publicidade combinada aos relatos dos peregrinos.59

Para Duby, Madalena representa o apóstolo dos apóstolos, pois foi a


primeira testemunha da ressureição de Cristo. Nas palavras de Duby, Ma-
dalena significou ainda a construção de uma mulher intermediária. A mor-
te e o pecado introduzidos no mundo por Eva; a entrada no céu reaberta
por Maria, mãe de Deus; e no meio do caminho há Madalena, pecadora
como todos os seres humanos, que se tornou uma figura emblemática. A
figura de Madalena é engendrada pela atitude da pecadora na casa do fari-
seu, que não abre a boca, ajoelha-se. Conforme Duby, a postura de humi-
lhação, de entrega de si, “[...] tinha na época um lugar central nos ritos de
passagem que manifestavam a conversão, a mutação de uma existência; a
noiva ajoelhava-se diante de seu esposo, diante do homem a quem doravan-
te chamaria seu senhor”60. Com esse gesto, Maria Madalena convidava os
homens a se colocarem “[...] à disposição do Senhor para servi-lo, e de
forma magnífica, como ela o fez”61.
Num dos sermões de Geoffroi, abade do grande mosteiro de Ven-
dôme, elaborados no século XII, Madalena foi antes “pecadora famosa,

56
Ibid., p. 31.
57
DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. In: DUBBY, Georges; PERROT, Michelle. História
das mulheres no Ocidente: a Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990, p. 29-63.
58
Ibid., p. 48.
59
DUBY, 1995, p. 32.
60
Ibid., p. 38.
61
Ibid., p. 39.

384
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

depois gloriosa pregadora”62, como revelou a investigação de George Duby.


Porém, Madalena só foi plenamente redimida depois das penitências às
quais se submeteu. “Geoffroi afirma que, após a Ascensão, ela se lançou
com fúria sobre seu próprio corpo, castigando-o com jejuns, vigílias, pre-
ces ininterruptas.”63
Duby ainda salienta que Maria Madalena, “[...] para tornar-se a
esperança dos pecadores, para se postar junto à porta do céu e não mais
do inferno, precisou destruir totalmente, consumida em penitências, a parte
feminina de seu ser”64. Assim, Madalena era a mulher perfeita, adorava
seu senhor, o temia, o servia. A imagem de Madalena foi utilizada para
“[...] provar que a alma, mesmo infectada de luxúria, pode ser inteira-
mente purificada por uma penitência corporal”65. Conforme Dalarun, na
segunda metade do século XII, com a consolidação do espaço do Purga-
tório como lugar do arrependimento, “[t]odo o pecador se deve resgatar
da falta que o marca desde a concepção. Tem-se o sentimento de que as
mulheres, sob os auspícios de Madalena, se devem resgatar duas vezes em
vez de uma: de serem pecadoras e de serem mulheres.”66 Para Duby, é a
partir do século XIII que a pintura e escultura estiveram mais empenha-
daos em criar imagens perturbadoras e ambíguas da figura de Maria Ma-
dalena.
Dentre essa produção, selecionamos Madalena Lendo (1445), de Ro-
gier de la Pasture, pintor nascido em Tournai (Bélgica) em 1399/1400. Se-
gundo Sthepen Farthing67, seu pai fabricava facas, e acredita-se que o artis-
ta possa ter começado a vida como ourives. A partir de 1427, foi aprendiz
do Mestre de Flémalle, superando-o. Em 1432, foi aceito como mestre na
Guilda dos Pintores de São Lucas, em Tournai. Alguns anos depois,
[e]m 1435 ele se mudou para Bruxelas, onde adotou a tradução holandesa
para seu nome, Van der Weyden. Um ano mais tarde, assumiu o cargo vita-
lício de pintor oficial da cidade. Acredita-se que tenha feito uma peregrina-
ção a Roma em 1450. Lá, conheceu artistas e mecenas italianos. Durante
esse período na Itália, Rogier Van der Weyden pintou para famílias impor-
tantes, como os Medici de Florença.68

62
Ibid., p. 46.
63
Ibid., p. 46.
64
Ibid., p. 47.
65
Ibid., p. 50.
66
DALARUN, 1990, p. 53.
67
FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, p. 147.
68
Ibid., p. 147.

385
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

Segundo Maria C. Louro Berbara69, da mesma forma que “Van Eyck,


Van der Weyden conheceu, em vida, fama internacional, e ambos são segu-
ramente os primeiros artistas nórdicos a tornarem-se celebridades compa-
ráveis a seus counterparts italianos”70. Weyden foi um dos pintores mais pro-
fundos e influentes do século XV. Era internacionalmente famoso princi-
palmente pelo naturalismo expressivo de suas obras. Ele criou uma varie-
dade de tipos – para retratos e para assuntos religiosos – que foram repeti-
dos em diferentes regiões da Europa até meados do século XVI, conforme
Berbara.
Entre as maiores obras de Roger Van der Weyden está a intitulada A
Descida da Cruz, hoje em Madri.

Figura 1: A Descida da Cruz (1435), de Roger Van der Weyden (1397/1400-1464). 220 x 262 cm.
Óleo sobre madeira. Museo del Prado, Madrid. Disponível em: <http://
www.museodelprado.es/imagen/alta_resolucion/P02825.jpg>. Acesso em: 6 ago. 2012.
Ver também Gombrich, 2009, p. 277.

69
BERBARA, Maria C. Louro. Propria Belgarum laus: Domenicus Lampsonius e as Pictorum
aliquot celebrium germaniae inferioris effigies*. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 8, p. 17-
37, 2008. Disponível em: <http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%208%20-
%20artigo%202.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2012.
70
Ibid., p. 22.

386
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

O artista pintou um dos momentos mais dramáticos da história cris-


tã, o instante em que Cristo é retirado da cruz. Enquanto a virgem Maria
cai desfalecida e é segurada por Maria Madalena e João Evangelista, o cor-
po de Jesus Cristo é mantido no ar por José de Arimateia, Nicodemos e um
assistente. O movimento do corpo de Maria acompanha o do corpo de
Cristo no centro da imagem, de frente para o espectador.
Para Gombrich (2009), o grande retábulo de Weyden “[...] não repre-
senta uma cena real. Ele colocou suas figuras numa espécie de palco com
pouca profundidade, contra um fundo neutro”71. É preciso lembrar que o
quadro foi pintado para ser visto de longe, exibindo o tema sacro aos fiéis.
Gombrich evidencia a serena compostura dos anciãos que forma um con-
traste com a expressão dramática dos protagonistas.
Na verdade, parecem todos atores num drama sacro medieval ou num ta-
bleau vivant agrupado ou organizado por um excelente encenador que tivesse
estudado as grandes obras do passado medieval e quisesse imitá-las usando
os seus próprios recursos de montagem cênica.72

Conforme Farthing, o retábulo foi encomendado pela Guilda dos


Arqueiros de São Jorge, em Louvain, atual Bélgica. “Originalmente, ele
foi exibido na capela da guilda, em Notre Dame Hors-les-murs. Em 1548,
a obra estava nas mãos de Maria da Áustria, regente dos Países-Baixos, e,
alguns anos mais tarde, foi dada para seu sobrinho, o rei Felipe II da Es-
panha.”73
Roger Van der Weyden traduziu as principais ideias da arte gótica
para o novo estilo realista, e “[d]aí em diante, os artistas do norte procura-
ram, cada um à sua maneira, reconciliar as novas exigências impostas à
arte e a sua antiga finalidade religiosa”74, de acordo com Gombrich.
Da produção de Weyden, destacamos também a obra Madalena Len-
do (1445). A imagem é um fragmento cortado de um retábulo maior, repre-
senta Maria Madalena com São João Evangelista, à esquerda, possivelmente
ajoelhado, de pés descalços e veste vermelha; São José atrás, segurando um
rosário.

71
GOMBRICH, 2009, p. 276.
72
Ibid., p. 276.
73
FARTHING, 2011, p. 147.
74
GOMBRICH, 2009, p. 276.

387
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

Figura 2: Madalena lendo (1445), de Roger Van der Weyden (1397/1400-1464). 62 x 55 cm.
Óleo sobre carvalho (retábulo). The National Gallery, London. Disponível em: <http://
www.nationalgallery.org.uk/cid-classification/classification/picture/rogier-van-der-wey-
den,-the-magdalen-reading/264249/*/moduleId/ZoomTool/x/169/y/0/z/1>. Acesso em:
5 jul. 2012.

Nosso olhar é logo envolvido pelo drapeado das vestes dos três perso-
nagens. Madalena, sentada sobre uma almofada com um livro devocional
nas mãos. Ela está em posição de leitura. Ao seu lado, em primeiro plano,
está o frasco que continha o unguento (substância aromática) com o qual
ungiu os pés de Jesus Cristo. O vestido verde suntuoso de Madalena faz
uma alusão à mesma personagem presente na Descida da Cruz de Roger Van
der Weyden. A imagem revela um rico ambiente doméstico onde Maria
Madalena é representada como uma mulher da nobreza. Depois de arre-
pender-se de seus pecados, ser absolvida por Cristo, Madalena é concebida
pelo pintor como um modelo de vida contemplativa.
De acordo com Lorne Campbell75, a obra foi adquirida pela Galeria
Nacional de Londres76 entre 1845 e 1860; contudo, a profundidade de Ma-

75
CAMPBELL, Lorne. Van der Weyden. London: Chaucer Press, 2004.
76
The National Gallery, London.

388
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

dalena lendo só foi revelada em 1956, quando se descobriu que o seu fundo
uniforme escuro, aplicado provavelmente no século XIX, escondia o corpo
de São José, parte de uma janela com uma paisagem, e a roupagem de São
João Evangelista. A referência a um desenho do final do século XV de uma
composição semelhante mostrando a Virgem e o Menino, cercados por san-
tos, é possivelmente o tema da obra de Van der Weyden da qual Madalena
lendo foi cortada. Pode-se pensar no Retábulo de Beaune77, onde o mesmo ar-
tista pintou cenas do juízo final como um exemplo de obra composta por
diferentes imagens que juntas formam o grande retábulo.
Acreditando que o mundo é um livro escrito pela mão de Deus, o
medievo crê que tudo tem um significado sobrenatural. As obras de Van
der Weyden também são marcadas por essas concepções simbólicas. “É
costume atribuir valores positivos e negativos também a cores [...] para o
simbolismo medieval cada coisa pode ter dois significados opostos segun-
do o contexto em que é vista.”78
Nesse sentido, Johan Huizinga (2010) indica que o sopro de vida do
pensamento medieval foi o simbolismo. “O costume de ver todas as coisas
em sua conexão rica de significados em relação ao eterno mantinha vivo o
mundo com suas cores radiantes e resplandecentes, ao mesmo tempo em
que atenuava a fronteira entre todas as coisas.”79
Segundo Umberto Eco (2010), no longo período que compõe a Ida-
de Média ocorreram mudanças no gosto e nas convicções acerca desses
significados. Nos primeiros tempos, o verde e o azul-escuro foram conside-
rados cores de pouco valor “[...] provavelmente porque ainda não se conse-
guia obter azuis vivos e brilhantes e, portanto, as roupas ou as imagens
azuis tinham uma aparência desmaiada e pálida”80.
No decorrer do século XIII, o azul passa a ser uma cor apreciada,
principalmente se pensarmos na estética dos vitrais das catedrais. Eco (2010)
salienta ainda que, em determinados lugares, o negro era a cor dos reis e em
outro era a cor dos cavaleiros misteriosos que ocultavam sua identidade.
Assim, também o vermelho tinha duplo sentido, era a cor da coragem e
nobreza, contudo poderia ser a cor das prostitutas e carrascos. Conforme
Eco (2010), o amarelo era a cor da covardia, associado aos marginalizados,

77
HUIZINGA, 2010, p. 434-437.
78
ECO, 2010, p. 121.
79
HUIZINGA, 2010, p. 353.
80
ECO, 2010, p. 121.

389
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

rejeitados, loucos, muçulmanos e judeus. Mas era ainda “[...] celebrado como
a cor do ouro, entendido como o mais solar e precioso dos metais”81.
No século XIII, Hugo de Saint-Victor (De tribos Diebus) afirmou:
[...] A cor verde que supera qualquer outra em Beleza, assim como rapta as
almas daqueles que a olham; quando na nova primavera, os brotos se abrem
a uma nova vida, e erigindo-se para o alto com suas folhas pontudas, quase
empurrando a morte para baixo à imagem da futura ressureição, erguem-se
todos juntos em direção à luz.82

De acordo com Eco (2010), Guilherme de Alvernia manifesta a mes-


ma preferência pela cor verde, “[...] sustentando-a com argumentos de con-
veniência psicológica, pois o verde estaria a meio caminho entre o verde
que dilata o olho e o negro que o contrai”83.
Nas duas obras de Roger Van der Weyden, Maria Madalena é repre-
sentada usando vestido verde. Acreditando que a escolha do pintor não
tenha sido aleatória, a figura de Madalena é concebida de forma emblemá-
tica pelo seu criador. Quem era Madalena para Weyden? Maria de Betânia,
Maria Madalena e a prostituta desconhecida, as três presentes nos textos
bíblicos, seriam a mesma mulher? Weyden idealiza uma Madalena santifi-
cada; figura jovem e pálida, seu olhar evita o espectador. Os detalhes da
pintura envolvem a personagem, absorvida pela leitura silenciosa, símbolo
da devoção. Madalena é apresentada num momento de reflexão e arrepen-
dimento.
Se o medievo constrói a figura de Maria Madalena como o símbolo
da mulher redimida, no barroco encontraremos outras perspectivas nas re-
presentações pictóricas da mesma personagem. Acreditamos que, para en-
tender a arte barroca, é importante pontuar algumas questões sobre o con-
texto da Contrarreforma.
Os artistas do Barroco, não diferente da maioria das pessoas comuns,
vivenciaram os dramas daquele tempo. O extermínio de uma das famílias
mais ilustres de Roma, os Cenci, foi um dos episódios mais dramáticos assis-
tidos pelos homens e mulheres que cruzaram a Praça do Castelo Sant’Angelo
naquele 11 de setembro do ano de 1599. Beatrice Cenci84, os irmãos e a ma-

81
Ibid., p. 123.
82
Hugo de Saint-Victor, século XIII, ap. ECO, 2010, p. 125.
83
ECO, 2010, p. 125.
84
Para aprofundamentos sobre Beatrice Cenci, consultar: SANTUCCI, Francesca. Virgo virago:
Donne fra mito e storia, letteratura ed arte, dall’Antichità a Beatrice Cenci. Catania: Akkua-
ria, 2008.

390
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

drasta haviam assassinado a golpes de martelo o pai, Francesco Cenci, acu-


sado de violência sexual e sodomia contra a filha Beatrice. Os irmãos, jun-
tamente com Beatrice e a madrasta, foram condenados pelo Papa Clemen-
te VIII à decapitação em praça pública, sob acusação de parricídio.
Alguns meses depois, em 16 de fevereiro de 1600 era condenado à
fogueira o filósofo, astrônomo e matemático Filippo Bruno, mais conheci-
do como Giordano Bruno85 – nome que lhe foi dado quando ingressou no
convento de São Domingos. Roma era novamente palco de espetáculo para
alguns e drama para outros. O frade dominicano, que havia viajado por boa
parte da Europa e defendia a tese do astrônomo alemão Johannes Kepler
de que a Terra girava em torno do Sol, foi queimado vivo pela inquisição
católica.
Estes episódios não passaram despercebidos pela produção de Mi-
chelangelo Merisi (1571-1610), o Caravaggio. O artista desenvolveu novas
e diferentes formas de representação pictórica. Para Caravaggio, não inte-
ressava a Roma do Renascimento e da perfeição; preferia os temas do coti-
diano, a humanidade grotesca das tavernas, dos vendedores de frutas, dos
ambulantes e prostitutas.
Não lhe agradavam os modelos clássicos nem tinha o menor respeito pela
“beleza ideal”. Queria desvencilhar-se de todas as convenções e repensar a
arte. [...] Foi um dos grandes artistas, como Giotto e Dürer antes dele, que
quis ver os eventos sagrados com os próprios olhos, como se estivessem acon-
tecendo na casa do vizinho. E fez todo o possível para que as figuras dos
textos antigos parecessem reais e tangíveis.86

Ao introduzir o tratamento da luz e da sombra nas imagens, desafiou


as representações tradicionais católicas. Os modelos de Caravaggio serão
prostitutas, mendigos e ciganos. Sua produção desafia os cânones da pintu-
ra, pois retira os santos do céu e das nuvens e os coloca num plano de fundo
escuro com jogo de luzes nas figuras. Testemunhando as lutas de seu tem-
po, e se atrevendo a colocar o personagem central do afresco no chão (Con-
versão de São Paulo), ou representando a Virgem como uma mulher da
plebe (Deposição de Cristo), Caravaggio foi acusado de heresia e imorali-
dade pela poética sensível e humana de suas obras. As obras de Artemísia
Lomi Gentileschi – nascida em julho de 1593 em Roma e falecida, prova-

85
Para maiores detalhes consultar: YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São
Paulo: Cultrix, 1964.
86
GOMBRICH, 2009, p. 392-93.

391
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

velmente, no ano de 1654 em Nápoles – serão marcadas por estas concep-


ções sobre a pintura.
Orazio Gentileschi – pintor da Toscana que chegou a Roma no final
da década de 1570 – possuía um estilo impregnado dos princípios maneiris-
tas da sua região. Judith W. Mann87 salienta que as figuras representadas
em espaços pouco profundos, as poses artificiais e um desenho nem sempre
preciso são marcas da produção de Orazio. As pinturas de Caravaggio nas
capelas Contarelli88 e Cerasi89 de Roma impressionaram profundamente
Orazio e o induziram a repensar profundamente seu estilo, conforme
Mann90. A produção de Caravaggio, com exploração profunda de luzes e
sombras das quais emergem as formas, seus modelos não idealizados e sua
atenção às tramas e aos detalhes de superfície, ofereceu a Orazio novas
pistas para sua evolução artística. Foi por meio do pai que Artemísia Lomi
Gentileschi (1593-1654) conheceu, compreendeu e adotou o severo natura-
lismo caravaggesco91.
Segundo Tiziana Agnati92, é muito provável que Artemísia Lomi Gen-
tileschi tenha conhecido Caravaggio pessoalmente, pois o pintor frequenta-
va o atelier de Orazio Gentileschi buscando vigas de apoio para a elabora-
ção das obras. De acordo com Alfred Moir93 (2001), Orazio Gentileschi faz
parte do grupo de caravaggistas de primeira geração, e Artemísia do grupo
da segunda geração de caravaggistas. Moir afirma ainda que, a partir de 1630,
Artemísia Lomi Gentileschi contribuiu de forma importante e decisiva para
a evolução do caravaggismo napolitano, além de ter sido responsável pela
introdução do caravaggismo em Florença.
Assim como as obras de Caravaggio desafiaram seu tempo pela origi-
nalidade, as obras de Artemísia recriaram as narrativas bíblicas e conferiram
espaços diferentes para o feminino, atribuindo um sentido novo e igualmente

87
MANN, Judith W. Artemisia Gentileschi nella Roma di Orazio e dei caravaggeschi: 1608-
1612, p. 51-61. In: CONTINI, Roberto; SOLINAS, Francesco. Artemisia Gentileschi: storia di
una passione. Catalogo della mostra (Milano, 22 settembre 2011-30 gennaio 2012). Milano: 24
ORE Cultura, 2011.
88
Na igreja de São Luis dos Franceses (Roma).
89
Na igreja de Santa Maria del Popolo (Roma).
90
MANN, in: CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 55.
91
Utilizamos ao longo do texto os termos “caravaggesco”, “caravaggismo” e “caravaggistas”,
pois não existe uma tradução literal para o português que possa definir o significado desses
termos.
92
AGNATI, Tiziana. La fortuna di Artemisia. Art Dossier, Firenze: Giunti, n. 172, p. 5-50, no-
vembre 2001.
93
MOIR, Alfred. Caravaggisti: Italia. Art Dossier, Firenze: Giunti, n. 109, p. 4-17, febbraio 2001.

392
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

original aos personagens. A originalidade é atribuída à produção pictórica de


ambos, essencialmente porque nasceu de seus dramas particulares, de suas tra-
gédias pessoais, de suas inquietações e do inconformismo com a realidade.
O microuniverso da obra de Artemísia Lomi Gentileschi carrega uma
linguagem estética e figurativa anticonformista. A própria adesão ao estilo
de Caravaggio já evidenciava o abandono das teorias clássicas da Beleza e o
direcionamento colorido dos pincéis para criação de imagens inovadoras e
dramáticas, com apelo significativo às emoções. Além disso, acreditamos,
como já afirmou Ulpiano B. T. de Meneses94, que “[...] a imagem, também
age, executa o papel de ator social, produz efeito”95.
A Madalena (1618-1619) de Artemísia é, antes de tudo, um trabalho vali-
oso do ponto de vista do colorido: um terço da tela é ocupado pela textura
luxuosa do vestido, adornado com tons dourados e estilo sofisticado, o cabelo
dourado, o peito iluminado. A cadeira é coberta de veludo vermelho de seda,
trançado e adornado com o símbolo dourado esférico da família Medici.
De acordo com Francesco Solinas96, o amarelo do vestido de Mada-
lena a representa como cortesã, e sua expressão facial é de sincera apreen-
são e expectativa diante do que virá. Solinas97 destaca a dinâmica da ima-
gem: a torção do tronco e da cabeça de Madalena, a desconfortável posição
das pernas muito longas, os pés descalços da personagem e seus gestos elo-
quentes, onde sua mão direita está posicionada sobre o peito, enquanto a
esquerda rejeita o espelho e seu próprio reflexo nele.
Os detalhes, o cenário requintado e a fisicalidade do corpo feminino,
por um lado, sugerem o desejo de agradar ao gosto da corte dos Medici; por
outro lado, a Madalena encanta o olhar do espectador dirigindo-o para um
instante dramático: decidir entre resistência ou submissão aos ensinamen-
tos de Cristo. Para Agnati98, Artemísia livremente reinterpreta modelos ico-
nográficos anteriores, com foco não na retidão moral de conversão, mas na
incerteza meio agonizante que a precede.

94
MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Rumo a uma “história visual”. São Paulo, 2005. Disponível
em: <http://www.4shared.com/office/B9AJ09cB/meneses_ulpiano_-_rumo_histria.html>.
Acesso em: 30 jan. 2012.
95
MENESES, 2005, p. 11.
96
SOLINAS, Francesco. Catalogo Artemisia Gentileschi. In: CONTINI, Roberto; SOLINAS,
Francesco. Artemisia Gentileschi: storia di una passione. Catalogo della mostra (Milano, 22
settembre 2011-30 gennaio 2012). Milano: 24 ORE Cultura, 2011, p. 130-258.
97
SOLINAS, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 156.
98
AGNATI, 2001, p. 26. Ver também: DAVOLI, Zeno. Il volto e la vita di Santa Maria Maddalena:
nell’incisione europea. La Maddalena: Italo Innocenti Editore, 2010, p. 30-31.

393
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

Figura 3: Madalena (1618-1619), de Artemísia Lomi Gentileschi. 146 x 109 cm. Óleo sobre
tela. Galleria Palatina (Palazzo Pitti), Florença. Disponível em: <http://www.wga.hu/
index1.html>. Acesso em: 12 ago. 2012. Ver também Solinas, 2011, p. 157.

Quem foi Maria Madalena aos olhos da jovem pintora Artemísia Lomi
Gentileschi? A artista não produz uma mulher imoral e pecadora em sua
obra Madalena. A primeira testemunha da Ressureição de Jesus Cristo é
representada num momento de meditação, paralisada pela dúvida. Na ima-
gem, Madalena não nos parece um símbolo da vida contemplativa, como é
descrita pela parábola bíblica, nem nos remete ao símbolo de devoção que
Madalena significou no Medievo.
Quando avaliamos as obras Allegoria dell’inclinazione99 e Maddalena100,
as duas produzidas por Artemísia entre 1615 e 1619, notaremos que os ros-
tos de ambas são coloridos, com uma capacidade introspectiva e penetrante,
que se traduz em mudanças surpreendentes de expressão: do êxtase da incli-
nação à tragédia de Maria Madalena101. Segundo Francesco Solinas102, a Ma-
dalena de Artemísia foi provavelmente elaborada para o grão-duque Cosme
II, uma vez que pode tê-lo encomendado em honra de sua esposa Maria
Madalena da Áustria – devota da santa que carregava seu nome.

99
Casa Buonarroti (Florença).
100
Galleria Palatina (Florença).
101
AGNATI, 2001, p. 25.
102
SOLINAS, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 156.

394
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Solinas indica que a cadeira forrada de seda vermelha, galonada e


ornamentada com franjas, ornada com esferas mediceias é assinada pela
artista com cinzelado arabesco lomiano. A obra Madalena carrega a assina-
tura Artimisia Lomi, revelando que a jovem aderia a uma modalidade da
“pintura reformada”, desenvolvida por seu tio, Aurelio Lomi.
Os irmãos Aurélio, Baccio e Orazio Lomi Gentileschi, filhos de Gio-
van Battista Lomi103, atuaram desde cedo no mundo das artes pictóricas.
Mas por que Artemísia teria aderido ao sobrenome Lomi se o pai, Orazio,
optou por carregar apenas o sobrenome Gentileschi?
Acreditamos que a produção da jovem artista foi ofuscada, tempora-
riamente, pelo fato que marcou sua vida pública e privada, o desvirgina-
mento forçado por parte de Agostino Tassi, em 1611, e os fatos que decor-
rem do processo crime Stupri et lenocinij Pro Cúria et Fisco104, onde Orazio
Gentileschi denuncia Tassi pelo defloramento de sua filha e Cosmo Quorli
pelo desaparecimento de uma tela, uma Judite.
A jovem artista casou em outubro de 1612 na igreja Santo Spirito in
105
Sassia , localizada próximo à Basílica de São Pedro, a um ou dois quartei-
rões de distância do domicilio familiar dos Gentileschi. Um mês depois do
final do processo, que ocorreu entre maio e outubro de 1612, Artemísia
deixa Roma e se transfere para Florença, junto com o marido Pietro Anto-
nio Stiattesi, cujo casamento foi arranjado por Orazio. A partida de Arte-
mísia Gentileschi de Roma para Florença, no final de 1612, também pode
ter significado a saída do anonimato e a busca por tornar-se alguém dife-
rente do pai. Quem sabe, o ato de rejeitar o sobrenome do pai tenha sido

103
Encontramos nos estudos mais recentes variações do mesmo sobrenome “Gentileschi alias
Lomi” e “Lomi de Gentileschis” (CIARDI, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 23).
104
“Estupro e libidinagem. Em favor da Cúria [Romana] e do Fisco [Tesouro Romano]”. MEN-
ZIO, Eva (Org.). Lettere precedute da “Atti di un processo per stupro”. Roma: Abscondita, 2004, p.
9. Tradução Dr. Celso Bordignon e Vicente Pasinatto. Os autos do processo crime foram
publicados por Eva Menzio (2004) em Roma. Os questionamentos feitos pelos inquisidores
estão publicados em língua latina e as respostas na língua italiana do século XVII. A tradução
dos textos em língua italiana é feito pelo doutor (2000) em Arqueologia Paleo-Cristã pelo
Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã (PIAC) de Roma Celso Bordignon. Os textos em
língua latina estão sendo traduzidos por Vicente Pasinatto. A tradução, ainda inédita em
língua portuguesa, conta com o apoio do Museu dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul,
localizado na cidade de Caxias do Sul. Foram traduzidos do latim para o italiano os nomes
próprios, por exemplo: Tutia [Túzia]; Artemitia [Artemísia]; Horatio [Orazio]. Os nomes
próprios, na sua maioria, permanecem em italiano. Os trabalhos de tradução da fonte estão
em fase de finalização.
105
NICOLACI, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 260 (Archivio Storico del Vicariato di Roma,
Libro dei Matrimoni II: 1607-1630, Sto. Spirito in Sassia, XVII, f. 17).

395
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

uma tentativa de assumir uma identidade própria, onde não seria apenas
“filha do Gentileschi”.
Certamente, deixar sua cidade natal foi mais uma experiência dolo-
rosa para a jovem artista, já que Roma também era uma das cidades mais
importantes da Europa, principalmente para os artistas. Contudo, Agnati106
declara que a ida de Artemísia para Florença foi significativa para sua vida
profissional. A jovem artista se libertava da presença do pai, renegava seu
sobrenome e adotava o do tio Aurelio Lomi, passando a assinar Artemísia
Lomi. Em Florença, o tio, Aurelio Lomi, apresentou-a à corte de Cosme II,
onde foi recebida. A vida na corte se revelou uma experiência fundamental
para o seu futuro: conheceu representantes da nobreza e estabeleceu rela-
ções com pessoas artisticamente mais preparadas107.
As inquietações de Artemísia – uma mulher artista dos anos de 1600
que viveu, além da violência física de um desvirginamento forçado, perpe-
tuado pelas falsas promessas de casamento, a exposição pública do processo
crime, os exames ginecológicos, a tortura das sibilas, o matrimônio arranja-
do entre o pai e um homem endividado – são elementos presentes em toda
sua obra. O que não poderia ser diferente em Madalena. Entendemos que a
obra é um autorretrato dramático de uma mulher imponente e inquieta.
Francesco Solinas destaca que
[...] lo specchio d’ebano istoriato col motto latino Optimam partem elegit (quae
non auferetur ab ae in Aeternum) esortazione del cristo nel Vangelo di Luca
10,42". “[...] o espelho de ébano historiado com a frase latina Elegeu a melhor
parte (que nunca lhe será tirada), exortação de Cristo no Evangelho de Lucas
10,42.108

A referência ao texto de Lucas (10,38-42), onde Maria, irmã de Mar-


ta e Lázaro, ouvia as palavras de Jesus Cristo sentada aos seus pés, indica
que a artista criou sua própria interpretação do texto bíblico. A Madalena
de Artemísia é, antes de tudo, a representação de um corpo humanizado
que se distancia da Madalena santificada, contemplativa e devota da obra
de Roger Van der Weyden.
As pesquisas mais recentes sobre a arte têm mostrado a relevância do
tema de Madalena na renúncia aos bens terrenos da arte do período da
Reforma. A obra de Artemísia coloca em destaque a legendária vida de

106
AGNATI, 2001, p. 8.
107
Ibid., p. 8.
108
Ibid., p. 156. Tradução Dr. Celso Bordignon.

396
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

Madalena evidenciada pela centralidade ocupada pela figura na imagem.


Além disso, para Francesco Solinas, Madalena é uma pintura clássica e na-
turalista, ao mesmo tempo. Uma síntese da arte internacional109 presente
em Roma, onde a artista nasceu e permaneceu até o início da vida adulta, e
sua identificação com o jogo de luzes e sombras da pintura caravaggesca. A
misteriosa figura pintada por Artemísia é atingida por uma luz que vem do
alto como na dramática Lucrezia110, pintada pela artista na mesma década.
A menina romana renovaria profundamente a pintura da corte Medici, afir-
ma Francesco Solinas111.

4. Considerações finais
Os séculos XV e XVI testemunharam acontecimentos de longo al-
cance, como, por exemplo, a queda de Constantinopla, as viagens ao Novo
Mundo, à África e à Ásia, a conjuntura da Reforma e da Contrarreforma.
No contexto da produção artística – durante boa parte do Medievo, a arte
era desenvolvida dentro dos mosteiros – a estruturação das corporações de
ofício foi elemento catalisador do processo que consolidaria as Academias
de Desenho. Assim, para pensar a arte e os artistas do século XVII, é funda-
mental considerar as academias, estruturadas graças aos movimentos de
valorização do trabalho artístico iniciados no Medievo.
Nas oficinas medievais de pintura, escultura, ourivesaria, entre ou-
tros, é possível encontrar a presença de mulheres, trabalhando ao lado dos
homens. Conforme Miranda112, as mulheres poderiam trabalhar como mão
de obra familiar ou em atividades não regulamentadas. Conforme Claudia
Opitz, “[u]ma das primeiras corporações que concedeu direitos iguais a
homens e mulheres foi a dos peleiros de Basileia, no ano de 1226. Contanto
que se tornassem membros da corporação, as mulheres podiam trabalhar,
comprar e vender nas mesmas condições que os homens.”113 A mesma au-
tora salienta que, como membros das corporações, as mulheres também
estavam sujeitas ao controle e às obrigações tributárias.

109
Internacional porque as tendências estilísticas e técnicas desenvolvidas na Europa também
surgiram em centros geograficamente distantes do continente europeu. FARTHING, 2011, p.
128.
110
Coleção privada.
111
SOLINAS, in CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 156.
112
MIRANDA, 2006, p. 12.
113
OPITZ, Claudia. O cotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500). In: DUBBY;
PERROT, 1990, p. 401-403.

397
TEDESCO, Cristine • A iconografia de Maria Madalena na arte do Medievo e da Modernidade

Porém, mesmo alcançando espaço como artífices e ampliação de suas


atividades como artistas durante o século XIV, no final do medievo verifi-
cou-se um crescimento da hostilidade frente ao trabalho das mulheres. De
acordo com Opitz, a economia urbana e familiar medieval tinha favorecido
o alcance da independência profissional e social, mas isso se chocava “[...]
com as barreiras impostas pela economia, pela política e pelas mentalida-
des”114. Segundo a mesma autora, em 1688 Adrian Beier publicou uma
legislação artesanal que frisava: “[...] nenhuma pessoa do sexo feminino
pode exercer um ofício, mesmo que o compreenda tão bem como uma pes-
soa do sexo masculino [...].”115
Contrastando com este cenário, em 1616 Artemísia Lomi Gentiles-
chi era aceita como a primeira mulher membro da Academia de Desenho
de Florença, criada por Giorgio Vasari em 1563. A Academia foi criada
com o objetivo de transformar e consolidar a posição dos artistas na socie-
dade que, por herança do Medievo, estavam relegados e restritos a um am-
biente fechado116.
A família Medici esteve ativamente empenhada nesta lenta transfor-
mação, dando a possibilidade aos grandes artistas de fazer conhecer o pró-
prio nome e desempenhando um papel importante no desenvolvimento e
abertura da tão rigidamente estruturada, pintura aristocrática, como definiu
a pesquisadora Tiziana Agnati. A autora salienta que, até a segunda meta-
de do século XVII, só a intervenção direta do grão-duque permitiria a uma
mulher – como de fato aconteceu com a Gentileschi – cruzar o limiar da
Academia. O sucesso foi imediato, e Artemísia passou a conseguir trabalho
encomendado.
A presença de algumas mulheres em lugares que lhes são oficialmen-
te negados revela um intenso campo de tensão entre o feminino e o mascu-
lino nas sociedades humanas. Embora o gênero seja um conceito estrutura-
do no tempo presente, é o resultado de uma reflexão antiga. Uma inquieta-
ção diante da naturalização das diferenças entre feminino e o masculino.
Ao refletirmos sobre a iconografia de Maria Madalena na arte do
medievo e inícios da modernidade através do olhar genderificado, acredita-
mos ter contribuído com a problematização proposta por Joan Scott (1990).

114
Ibid., p. 410.
115
Ibid., p. 406.
116
AGNATI, 2001, p. 23.

398
Reflexões sobre o Medievo III: práticas e saberes no ocidente medieval II

As obras de arte analisadas carregam elementos subjetivos e inquietações


de seus criadores, são releituras particulares dos textos bíblicos. Contudo,
os artistas que produziram imagens pictóricas de Madalena não estão des-
conectados da cultura de seu tempo. Nesse sentido, salientamos as palavras
do filósofo francês Michel Foucault117: a sexualidade é produzida dentro de
contextos históricos. Engendradas pela sociedade e pela cultura, as concep-
ções sobre o feminino e o masculino são questões que fazem parte do modo
de pensar o mundo e também as obras de arte – seja por parte de quem as
produz ou de quem as estuda.

117
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 10. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1990.

399

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