Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Teresina: Cancioneiro,
2024.
Temístocles Cezar
O cinismo é uma filosofia antiga. Mais do que uma doutrina, foi um modo de vida.
Diógenes de Sínope, que teria vivido cerca de 90 anos e falecido em Corinto em 323 a.C.,
no mesmo ano e, segundo Diogène Laërte, seu biógrafo, no mesmo dia de Alexandre, o
Grande, é um dos seus representantes mais ilustres (LAËRCE, 1999; NAVIA, 1998).
Considerado pelos contemporâneos e pela posteridade como rebelde, selvagem,
cético, hedonista, escandaloso e solitário, Diógenes foi, ou pensava ser, acima de tudo,
um homem livre, autônomo e sincero. Mendigo errante, reza a lenda que vivia em um
barril rodeado de cães, de onde se origina a alcunha de o Cínico, cuja etimologia remonta
a palavra grega antiga kunos, genitivo de kuôn, que significa cachorro (em latim, canis).
1
Este breve ensaio faz parte de um projeto mais amplo intitulado Historia magistra vitae: ensaio sobre
uma crença, iniciado em 2017 com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2
“Cada século, sobretudo o nosso, teria necessidade de um Diógenes, mas a dificuldade é encontrar homens
que tenham a coragem de sê-lo, e homens que tenham a coragem de sofrer”. D’ALEMBERT. “Essai sur la
société des gens de lettres et des grands, sur la réputation, sur les mécènes, et sur les récompenses littéraire
(1753)”, Œuvres de d’Alembert, T. IV, 2. Paris: A. Belin, Bossange frères, 1822, p. 359-360. (Fonte: Gallica
– BNF). Todas as traduções das citações em língua estrangeira são minhas.
3 SAKAMOTO, Leonardo. O governo Temer, que conspirou para nascer, pode reclamar de conspiração?
4Diógenes teria sido o inventor da palavra “cosmopolita”. Ver: DESMOND, William. Cynics. Stockfield:
Acumen, 2006, p. 124.
2
são sentidos nas filosofias posteriores, como no estoicismo, ou na religião, como no
ascetismo cristão. No entanto, como doutrina, o cinismo, que jamais fora uma filosofia
dominante, diante de seus detratores, perdeu espaço e força ainda na Antiguidade
(BRANHAM; GOULET CAZÉ, 1996). Certos traços do ideário cínico, contudo,
permaneceram em outra roupagem ou remodelados, mas guardando alguma vinculação
com a sua experiência primeva. Supõe-se, por exemplo, a existência de princípios do
cinismo em autores e em movimentos políticos tão diferentes como em certas passagens
especulativas de Rousseau ou de Diderot, ou em algumas das visões de William Blake e
mesmo no anarquismo (DUDLEY, 1967, p. 211-212).
Foucault, mesmo sem negar a diluição da filosofia cínica, sustenta a hipótese de
que um cinismo trans-histórico, como modo de ser, como atitude, aparentado ao ceticismo
antigo e moderno, acompanha a história do pensamento, da existência e da subjetividade
ocidentais. Essa permanência estaria vinculada às diferentes manifestações da verdade,
do dizer a verdade, das lutas pela verdade, do “escândalo da verdade” (FOUCAULT,
2009, p. 161-166, 169, 173-175). O comportamento cínico não diz a verdade, mas
enuncia a verdade que desconcerta, que afronta, que escandaliza, que, enfim, desestabiliza
regimes de verdade.5
Mais forte, sem embargo, que este movimento descontínuo, foi a mutação
semântica do vocabulário cínico no mundo contemporâneo (DESMOND, 2006, p. VII-
IX). O desenvolvimento e a consolidação do capitalismo como sistema econômico e
político hegemônico, a ascensão do individualismo burguês como ideologia de vida, as
reviravoltas da democracia, as readaptações do cristianismo moderno, as experiências
socialistas, entre tantos outros acontecimentos que formam o grande e nublado cenário
dos últimos dois séculos, contribuíram para a ressurgência de alguns preceitos do cinismo
antigo, porém com o sentido, se não invertido, ao menos alterado em seus fundamentos
originários.
5O exemplo de Foucault é a arte moderna antiplatônica e antiaristotélica. FOUCAULT, Michel. Op. cit.,
2009, p. 174. Peter Sloterdijk relaciona o cinismo antigo ao pensamento moderno aos “anti-teóricos, anti-
dogmáticos e anti-escolásticos” como Montaige, Voltaire, Nietzsche e Feyerabend. William Desmond e
Andreas Huyssen, nesse sentido, relacionaram a modificação de certas ideias cínicas à pós-modernidade.
DESMOND, William. op. cit., 2006; HUYSSEN, Andreas. Postenlightened Cynism. Diogenes as
postmodern intellectual. Twilight Memories: marking time in a culture of amnesia. New York: Routledge,
1995.
3
A crítica cínica, neste amplo contexto, ao controle da palavra e da liberdade de
expressão, à ambição desmedida, à avareza secular, ao poder político instituído, etc. é
percebida como um ataque às convenções e valores sociais e como uma atitude de
suspeição permanente ao progresso da sociedade burguesa. Nessa perspectiva, as virtudes
éticas e morais, supostas ou reais, do cinismo antigo desaparecem diante de seu lado
sombrio: o da verdade que perturba. Se a verdade do cínico não era, de modo algum, no
mundo antigo, consensual, no contemporâneo, então ela é menor ainda: produto de uma
mente maligna, insensível, confusa, ignorante, desajustada, dissidente, revolucionária. O
cínico não é uma pessoa boa e nem se deve ensinar o cinismo às crianças. O modo de
vida do cínico não contribui para a ordem social. Ele deve, portanto, ser desencorajado,
contido, evitado. Entre o pária e o néscio, o cínico está perdido, como um cachorro sem
faro, a meio caminho.
O cinismo contemporâneo pode, igualmente, ser concebido como uma variante da
ironia. Oscar Wilde ilustrou bem esta tendência: “o cínico é um homem que conhece o
preço de tudo e o valor de nada” (apud DESMOND, 2006, p. VII). Figura de linguagem
que joga com a expectativa de o interlocutor compreender que o que se diz, na verdade,
implica em seu oposto, o uso exagerado da ironia pode levar seu enunciador a ser definido
como cínico. Nesse caso, o cinismo serve tanto àquele que garante que todos têm os
mesmo direitos e deveres, mesmo sabendo que a verdade não é fiduciária da afirmação,
quanto àquele que zomba do poder para afrontá-lo.
Outra maneira de se analisar o papel do cínico e do cinismo é, por exemplo, a
conversão do seu individualismo, da sua constante afirmação de si, de sua estranha
singularidade, em um singular coletivo. Foi o que Marx e Engels, no Manifesto
Comunista, fizeram ao definir a dominação burguesa, entre outros adjetivos, como “brutal
e cínica”. Paolo Virno, da mesma forma, não obstante outro contexto, relaciona cinismo,
oportunismo e medo à modernização acelerada do mundo do trabalho e ao desencanto
ambivalente dos anos 1980 (VIRNO, 1991, p. 17-17, 25-27, 38). Sem descartar essas
relações, Peter Sloterdijk, em Crítica da razão cínica, faz a cronologia recuar para os
anos 1960, acrescentando-lhe que o cinismo moderno não é apenas uma medida da
melancolia que atinge a sociedade moderna, mas uma nova ideologia: “o cinismo é a falsa
consciência esclarecida” (SLOTERDIJK, 2000, p. 25-301, 207). No mesmo sentido,
Vladimir Safatle (2008, p. 13) argumenta que “a partir de um certo momento histórico,
os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na modernidade
4
capitalista começaram a realizar-se (ou, ao menos, começaram a ser percebidos) a partir
de uma racionalidade cínica”.
Sintoma da cultura atual, esse “minimalismo da esperança” encontra no cínico e
no cinismo face e argumento (HUYSSEN, 1995, p. 173). Nesse sentido, os dicionários
modernos, embora mantenham, geralmente, um resumo da história etimológica e
filosófica das palavras cínico e cinismo, tendem a enfatizar em suas outras entradas a
conotação negativa das expressões.6 Assim, o dicionário Aurélio registra as seguintes
definições:
5
Temístocles Cezar
UFRGS/Bolsista do CNPq
Referências bibliográficas:
8 Meu argumento, que conto desenvolver ao longo do projeto do qual este ensaio faz parte, toma como
ponto de partida o pressuposto de que a mentira, que faz parte da própria história, é uma espécie de contrário
constitutivo dela, analogamente como a ficção, que “não se confunde com o puro falso senão que opera
dentro do falso aceitável. [...] Em palavras diretas: a ficção se torna aceitável a partir de um mito
domesticador. [...] O falso aceitável, i.e., o relato ficcional, ao invés, presta tributo à verdade”. LIMA, Luís
Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Editora UFSC, 2014, p. 269.
7
ALEMBERT, D’. Essai sur la société des gens de lettres et des grands, sur la réputation,
sur les mécènes, et sur les récompenses littéraire. In: Œuvres de d’Alembert, T. IV, 2.
Paris: A. Belin, Bossange frères, 1822, p. 335-373.
CAPPELLA, Joseph N e JAMIESON, Kathleen H. Spiral of cynicism. The press and the
public good. Oxford: Oxford University Press, 1997.
DUDLEY, Donald R. A history of cynicism. From Diogenes to the 6th Century A.D.
London, Hildesheim, G. Olms, 1967.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. Uma breve apresentação. Eutomia.
Revista Online de Literatura e Linguística. Ano I, n. 01, p.167-176, 2008.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Editora UFSC, 2014.
LUCIEN DE SAMOSATE. Les sectes à l’encan. In: Œuvres complètes. Paris: Robert
Laffont, 2015, pp. 342-360.
NAVIA, Luis E. Diogenes of Sinope: the man in the tub. Westport, Connecticut.
Greenwood Press, 1998.
NAVIA. Luis E. Diogenes the cynic. New York: Humanity Books, 2005.
NAVIA. Luis E. Classical cynism. A critical study. London: Greenwood Press, 1996.
8
PLUTARQUE. Vies parallèles. Paris: Gallimard/Quarto, 2001.
SAKAMOTO, Leonardo. O governo Temer, que conspirou para nascer, pode reclamar
de conspiração? 30 mar. 2018 Disponível em:
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br. Acesso em: 04 mar. 2018.
SCHMIDT, Benito Bisso. De quanta memória precisa uma democracia? Uma reflexão
sobre as relações entre práticas memoriais e práticas democráticas no Brasil atual. Anos
90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, p.153-177, dez. 2015.