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RESUMO
A idéia de se estar cada vez mais próximo de uma sociedade perfeita tor-
nou-se bastante cara aos pensadores do século XVIII. Fundamentado no pensamento
renascentista de valorização do homem, o Iluminismo dispensava interpretações de
mundo baseadas em superstições;; combatia-se firmemente a Igreja, proclamando
a necessidade de se colocar pensamento crítico acima de qualquer dogmatismo. A
certeza de se viver no melhor dos mundos possíveis mantinha-se corrente. Reinava o
otimismo; a cada momento a tecnologia trazia felicidades. Contudo, todo o otimismo
edificado durante longos séculos sofreu profundos abalos no limiar do século XX. A
deflagração de uma guerra envolvendo os grandes países do mundo demonstrou que
a humanidade, outrora considerada feliz, carregava consigo o peso de crises pro-
fundas. O século XX trouxe consigo o medo e descrença. Nesse sentido, propomos,
nessa comunicação, uma leitura da obra “A Peste” de Albert Camus. Considerando
esse autor como um crítico da Modernidade, tentaremos analisar a obra como uma
possível alegoria à crise da Razão; Razão essa construída e idealizada durante lon-
gos séculos.
ABSTRACT
O ILUMINISMO:
A grande queixa do sábio recai sobre a sua própria ignorância. Considera perdidos to-
dos os seus 40 anos de estudo e, apesar de ensinar aos demais, ignora tudo. Desco-
nhece o que vem a ser o tempo, apesar de viver nele; não compreende a eternidade;
ignora a matéria responsável pela produção do pensamento, não sabe o porquê de
sua existência. Contudo, quando lhe direcionam alguma indagação, faz-se necessário
responder; após a resposta o que lhe resta é, tão somente, a vergonha de si mesmo,
o acabrunhamento de não poder transmitir algo que preste. Ao perguntarem sobre a
divindade, a resposta torna-se ainda mais complexa. Ao consultar os livros antigos, as
trevas se acentuam. Os companheiros que julgam saber algo contribuem apenas para
fazê-lo perder-se em divagações. Isso o leva ao desespero. Após tantas pesquisas, o
sábio percebe desconhecer as suas origens, o seu ser, o seu destino.
Após ouvir as lamentações do filósofo, o narrador fala com a vizinha do
sábio – uma mulher pobre e ignorante. Ao perguntar-lhe se, alguma vez na vida, ela já
se afligiu por desconhecer as origens de sua alma, a pobre nem sequer compreendeu a
pergunta. Nunca refletira sobre as questões que inquietavam o Brâmane. Acreditava no
deus de sua religião e julgava-se a mais feliz das mulheres.
O que, a primeira vista, pode nos parecer um disparate, é a noção que nor-
teia a maneira de se pensar da modernidade. A vitória da luz sobre as trevas significava
a aplicação da razão e da ciência como formas de se compreender o mundo. Livres do
jugo da natureza, livres de amarras que tanto tempo os prenderam, os homens passa-
riam a controlar o seu próprio destino (BERLIN, 1991, p. 82). Se o narrador se preocupa
com a felicidade, mais ainda se importa com a razão a ponto de desejá-la em detrimento
da felicidade; a ponto de dispensar esta quando o valor para se obtê-la é a ignorância.
Voltaire acreditava na influência dos livros perante o comportamento social e os filósofos
do século XVIII, em geral, buscaram o conhecimento fora dos limites da teologia ortodo-
xa, considerando-a um conjunto caótico, fruto de sensações violentas (Ibidem, p. 31).
O Brâmane de Voltaire, apesar de se confessar um infeliz e de desejar
nunca ter nascido, é de certa forma, um feliz. Feliz por refletir, por se inquietar, por co-
nhecer as interações ignorância-felicidade, sabedoria-desespero, por ter a certeza de
não desejar a primeira ou se sacrificar pela segunda, por saber reconhecer as trevas
da superstição, a cegueira da não-reflexão, e esquivar-se de uma vida árida, isenta
de qualquer leitura e sem qualquer entendimento. É feliz por ser um filosofo, é feliz
quando lhe perguntavam algo. O seu desespero, a sua infelicidade, são reflexo de
um contentamento excessivo edificado por quarenta anos de estudo. Talvez ele sinta
pena de sua vizinha, afinal, a pobre ignorante jamais provou do gosto do esclareci-
mento;; a mulher jamais teve a oportunidade de escolher;; viveu enleada pelo místico,
crê no místico, basta-lhe a água do Ganges para se lavar, basta-lhe as suas crenças;
as crenças são sua felicidade; crê e ponto. O Brâname é feliz por estudar, apesar de
se confessar um desventurado.
O SÉCULO XX:
No dia 28 de julho o troar de um tiro foi ouvido. Partira da cidade de Sa-
rajevo. Gravillo Príncipe tentara fugir e Francisco Ferdinando estava morto.b** Era o es-
topim para uma guerra cujas proporções jamais foram imaginadas outrora. Segundo
Hobsbawn, muitos dos que cresceram em 1914 não admitiam qualquer continuidade
em relação ao passado; depois de 1914 a palavra “paz” não mais fazia sentido (HO-
BSBAWN, 1995, p. 30).
Oran era uma cidade neutra, com uma simples prefeitura na costa arge-
lina. Lá não havia pombos, nem árvores nos jardins, nem cair de folhas. As mudan-
ças de estações anunciavam-se através do aspecto do céu e da qualidade do ar. As
pessoas, em geral, trabalhavam muito e apreciavam os prazeres simples: cinemas,
banhos de mar, mulheres. Uma cidade perfeitamente moderna, onde se levava uma
vida veloz e amava-se sem saber. Os dias corriam sem obstáculos e tudo ia bem.
Deus estaria fatigado de aguardar qualquer manifestação de crença e, por isso, lan-
çou à cidade o flagelo. Esta aí inserida a noção do fim dos tempos, um castigo divino,
um aviso dos céus.
Pelo jogo de egoísmos a peste reforçava, por um lado, a igualdade e,
por outro, tornava mais agudo o sentimento de injustiça. Não se pensava;; ninguém se
preocupava com outrem:
o bacilo da peste não morre nem desaparece, ficam dezenas de anos
a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos,
nos porões, nas malas, nos papeis, nos lenços – e chega talvez o dia
em que, para a desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda
os ratos e os manda morrer numa cidade feliz [...] (Ibidem, p. 108).
Barthes afirma que o tema do exílio perpassa toda a obra. A tristeza é outra
constante. Ora, não há sentimento mais obvio que o de tristeza e mesmo de decepção
quando se percebe que a civilização há tanto tempo posta em altos patamares pelos filó-
sofos da modernidade, descobre-se, de uma certa forma, empestada por suas próprias
fraquezas, triste por seu engano e a se autodevorar.
Em “A Peste” há um elemento constante: a irrazão. Com efeito, o objetivo
de se fechar as portas da cidade, impedindo a saída e a entrada de quem quer que fos-
se era o de evitar a proliferação ainda maior da doença em outras regiões por daqueles
que, sem sabê-lo, estivessem infectados. Nesse sentido a cidade isolava-se do mundo,
mantendo-se em sua “clausura material”, na expressão de Barthes. Contudo, o jornalista
Rambert, mesmo a par de tais fatos, planeja a sua evasão com o objetivo de rever a sua
mulher que se encontrava em outra cidade. Enquanto prepara a sua fuga – fuga que,
na verdade, não será realizada – Rambert não concebe a possibilidade de seu corpo
estar infectado como a peste e, por extensão, a de contaminar até mesmo a sua mulher.
A irrazão, tal como a epidemia, demonstrava-se uma experiência generalizada. O ato
de evasão da cidade, ainda com a notícia do recuo do mal, revela a manifestação do
instinto, permeada pela dor, pelo receio, pelo desespero. O medo da morte, uma morte
momentânea, capaz de invalidar um longo período de espera, revela a pouca tendência
de se pensar – em termos de futuro – em longo prazo. Não importava o iminente fim do
mal; queria-se partir imediatamente e o amanhã era uma incógnita inquietante.
CONCLUSÃO:
REFERÊNCIAS
BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: Capítulos da História das Idéias. Trad. Walter Lellis Siqueira. SP:
Companhia das Letras, 1991.
CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. Opera Mundi,
1971.
HOBSBAWN. Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX – 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita.
SP: Companhia das Letras, 1995.
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Graduando em História pela Universidade Federal de Viçosa.
No dia 28 de julho de 1914, a Áustria declara guerra a Sérvia, iniciando assim a Primeira Grande guerra. A morte de Francisco
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Ferdinando e sua esposa, assassinados por um estudante da Bósnia foi o incidente que faltava para que o conflito iniciasse.