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RAZÃO E LOUCURA: OS IDEAIS ILUMINISTAS E A CRISE DO SÉCULO XX:


Evandro Figueiredo Cândidoa*

RESUMO

A idéia de se estar cada vez mais próximo de uma sociedade perfeita tor-
nou-se bastante cara aos pensadores do século XVIII. Fundamentado no pensamento
renascentista de valorização do homem, o Iluminismo dispensava interpretações de
mundo   baseadas   em   superstições;;   combatia-­se   firmemente   a   Igreja,   proclamando  
a necessidade de se colocar pensamento crítico acima de qualquer dogmatismo. A
certeza de se viver no melhor dos mundos possíveis mantinha-se corrente. Reinava o
otimismo; a cada momento a tecnologia trazia felicidades. Contudo, todo o otimismo
edificado  durante  longos  séculos  sofreu  profundos  abalos  no  limiar  do  século  XX.  A  
deflagração  de  uma  guerra  envolvendo  os  grandes  países  do  mundo  demonstrou  que  
a humanidade, outrora considerada feliz, carregava consigo o peso de crises pro-
fundas. O século XX trouxe consigo o medo e descrença. Nesse sentido, propomos,
nessa comunicação, uma leitura da obra “A Peste” de Albert Camus. Considerando
esse autor como um crítico da Modernidade, tentaremos analisar a obra como uma
possível alegoria à crise da Razão; Razão essa construída e idealizada durante lon-
gos séculos.

ABSTRACT

The idea of being closest to a perfect society became important to


thinkers from the XVIIIth century. Based in the Renaissantist thought of giving value
to men, Illuminism was opposed to the world interpretations based on superstitions.
It strongly fought against Church, proclaiming the necessity of emphasize the critical
thought upon any dogmatism. The certainty of being living in the best of the possible
worlds was common. The optimism was in vogue; as the time went by, technology was
bringing happiness. However, all the optimism built during long centuries suffered from
deep shocks in the beginning of the XXth century. The start of a war, holding the grea-
test countries of the world showed that humanity, in another time considered as happy,
carried with itself the weight of profound crisis. The XXth century brought with itself the
fear and the lack of faith. Thus, we propose, in this communication, a reading of the
book “A Peste” by Albert Camus. Considering this author as a critic of the Modernity,
we are going to try to analyze this work as a possible allegory to crisis of the Sense;
Sense which was built and idealized during long centuries.

O ILUMINISMO:

Voltaire, em um conto intitulado “História de um Brâmane”, relata um


diálogo travado entre ele – o narrador – e um – velho sábio, rico e com o espírito
eivado de erudição – o Brâmane. Durante grande parte do texto o velho reclama de
sua  condição  e  deseja  nunca  ter  nascido,  o  que  causa  grande  surpresa  ao  narrador.  

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A grande queixa do sábio recai sobre a sua própria ignorância. Considera perdidos to-
dos os seus 40 anos de estudo e, apesar de ensinar aos demais, ignora tudo. Desco-
nhece o que vem a ser o tempo, apesar de viver nele; não compreende a eternidade;
ignora a matéria responsável pela produção do pensamento, não sabe o porquê de
sua existência. Contudo, quando lhe direcionam alguma indagação, faz-se necessário
responder; após a resposta o que lhe resta é, tão somente, a vergonha de si mesmo,
o acabrunhamento de não poder transmitir algo que preste. Ao perguntarem sobre a
divindade, a resposta torna-se ainda mais complexa. Ao consultar os livros antigos, as
trevas  se  acentuam.  Os  companheiros  que  julgam  saber  algo  contribuem  apenas  para  
fazê-lo perder-se em divagações. Isso o leva ao desespero. Após tantas pesquisas, o
sábio percebe desconhecer as suas origens, o seu ser, o seu destino.

Após  ouvir  as  lamentações  do  filósofo,  o  narrador  fala  com  a  vizinha  do  
sábio  –  uma  mulher  pobre  e  ignorante.  Ao  perguntar-­lhe  se,  alguma  vez  na  vida,  ela  já  
se  afligiu  por  desconhecer  as  origens  de  sua  alma,  a  pobre  nem  sequer  compreendeu  a  
pergunta.  Nunca  refletira  sobre  as  questões  que  inquietavam  o  Brâmane.  Acreditava  no  
deus  de  sua  religião  e  julgava-­se  a  mais  feliz  das  mulheres.

A grande condição para a felicidade, no fato em questão, é a ignorância.


Pensando  no  caso,  o  narrador  julga  a  ignorância  um  preço  muito  alto  para  se  obter  a  
felicidade; consultando alguns amigos, notou que todos eram da mesma opinião.

O que, a primeira vista, pode nos parecer um disparate, é a noção que nor-
teia  a  maneira  de  se  pensar  da  modernidade.  A  vitória  da  luz  sobre  as  trevas  significava  
a aplicação da razão e da ciência como formas de se compreender o mundo. Livres do
jugo  da  natureza,  livres  de  amarras  que  tanto  tempo  os  prenderam,  os  homens  passa-
riam a controlar o seu próprio destino (BERLIN, 1991, p. 82). Se o narrador se preocupa
com  a  felicidade,  mais  ainda  se  importa  com  a  razão  a  ponto  de  desejá-­la  em  detrimento  
da felicidade; a ponto de dispensar esta quando o valor para se obtê-la é a ignorância.
Voltaire  acreditava  na  influência  dos  livros  perante  o  comportamento  social  e  os  filósofos  
do século XVIII, em geral, buscaram o conhecimento fora dos limites da teologia ortodo-
xa,  considerando-­a  um  conjunto  caótico,  fruto  de  sensações  violentas  (Ibidem,  p.  31).

As ciências naturais receberam um valor inestimável. Acreditava-se na apli-


cação de leis aos fenômenos e o conseqüente conhecimento dos mesmos. Como uma
extensão de tal método, tornou-se plausível a aplicação de tais princípios às ciências
sociais. “Aqueles dotados de uma mente empírica estavam certos de que uma ciência
da natureza humana poderia se mostrar tão desenvolvida quanto uma ciência das coisas
inanimadas” (Ibidem, p. 96).

As respostas para questões políticas ou mesmo históricas poderiam ser


dadas como mesmo rigor e precisão que às questões da matemática e da astronomia.
Qualquer resposta nesse sentido seria mais confortável, virtuosa, segura e feliz.

A idéia de história como “mestra da vida” está atrelada à concepção de


evolução e progresso. Enquanto a primeira representa um caminho uniforme pelo qual
todas as sociedades devem passar, o segundo é um instrumento através do qual as

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referidas sociedades se desenvolvem. Tanto a evolução quanto o progresso possuem


um ápice. Acreditava-se que a sociedade européia do século XVIII estava próxima des-
se ponto culminante. O pensamento de Kant, segundo o qual a natureza guardava um
plano de felicidade para os homens e o de Hegel, que concebia a vida terrena como um
meio de evolução do espírito rumo a um estado de perfeição, denotam todo o otimismo
de uma época.

O sentido do progresso, com o Positivismo de Comte é também pensado


no século XIX. A lei dos três estados da humanidade concebia o desenvolvimento das
sociedades sob a ótica de três estágios fundamentais: o primeiro estágio era o teoló-
gico, no qual os grupos humanos, não sendo capazes de compreender os fenômenos
ao seu redor, atribuíam-nos á manifestação de divindades. No segundo, o metafísico,
buscava-­se  explicações  por  intermédio  do  raciocínio  lógico.  Por  fim,  o  estágio  Positivo  
– o mais avançado de todos – apresentava a experiência como forma de se apre-
ender a realidade. Para Comte a sociedade moderna estava a caminho de atingir o
apogeu  do  desenvolvimento  científico.  Após  um  longo  período  de  erros  e  incertezas,  
finalmente  chegava-­se  à  verdade.  Se  outrora  Deus  fora  a  centro  de  todas  as  coisas,  a  
modernidade substituíra-o pela ciência.

A  concepção  de  ciência  veiculada  durante  o  século  XIX  influenciou  ou-


tros campos, tais como a literatura e a pintura. A densidade das descrições literárias
e  o  caráter  fotográfico  das  pinturas  denotam  tal  influencia  uma  vez  que  se  visava,  ao  
máximo possível, descrever a realidade com a mais completa imparcialidade, despre-
zando-­se  o  subjetivismo.

O  Brâmane  de  Voltaire,  apesar  de  se  confessar  um  infeliz  e  de  desejar  
nunca  ter  nascido,  é  de  certa  forma,  um  feliz.  Feliz  por  refletir,  por  se  inquietar,  por  co-
nhecer as interações ignorância-felicidade, sabedoria-desespero, por ter a certeza de
não  desejar  a  primeira  ou  se  sacrificar  pela  segunda,  por  saber  reconhecer  as  trevas  
da  superstição,  a  cegueira  da  não-­reflexão,  e  esquivar-­se  de  uma  vida  árida,  isenta  
de  qualquer  leitura  e  sem  qualquer  entendimento.  É  feliz  por  ser  um  filosofo,  é  feliz  
quando   lhe   perguntavam   algo.   O   seu   desespero,   a   sua   infelicidade,   são   reflexo   de  
um  contentamento  excessivo  edificado  por  quarenta  anos  de  estudo.  Talvez  ele  sinta  
pena  de  sua  vizinha,  afinal,  a  pobre  ignorante  jamais  provou  do  gosto  do  esclareci-
mento;;  a  mulher  jamais  teve  a  oportunidade  de  escolher;;  viveu  enleada  pelo  místico,  
crê no místico, basta-lhe a água do Ganges para se lavar, basta-lhe as suas crenças;
as crenças são sua felicidade; crê e ponto. O Brâname é feliz por estudar, apesar de
se confessar um desventurado.

E o mundo, na ótica moderna, sorri. O mundo do avanço técnico, das ar-


tes  elevadas  e  da  filosofia  esclarecida.  Rompia-­se  com  longos  séculos  de  estupidez;;  a  
natureza conspirava para o bem de todos; o espírito, perante a dialética, evoluía, rumo
à síntese, rumo ao ápice. O conhecimento positivo estava nas mãos das gerações da
modernidade; a técnica facilitava a vida, as artes ludibriavam os sentidos. Respirava-
se;;  tal  como  o  Brâmane  utilizava-­se  da  razão  acima  de  qualquer  crendice,  da  reflexão  
acima de qualquer dogma.

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O SÉCULO XX:

No  dia  28  de  julho  o  troar  de  um  tiro  foi  ouvido.  Partira  da  cidade  de  Sa-
rajevo.  Gravillo  Príncipe  tentara  fugir  e  Francisco  Ferdinando  estava  morto.b** Era o es-
topim  para  uma  guerra  cujas  proporções  jamais  foram  imaginadas  outrora.  Segundo  
Hobsbawn, muitos dos que cresceram em 1914 não admitiam qualquer continuidade
em relação ao passado; depois de 1914 a palavra “paz” não mais fazia sentido (HO-
BSBAWN, 1995, p. 30).

Modris Eksteins, em A Sagração da Primavera destaca, através dos di-


ários dos combatentes da primeira Grande Guerra, todo o terror da guerra moderna.
Em uma passagem Delvert – um dos combatentes – descreve, como grande precisão,
a morte de seu companheiro:

A morte de Jégoud foi atroz. Ele estava nos primeiros degraus do


abrigo quando um Obus (provavelmente um 130 austríaco) explodiu.
Seu rosto foi queimado; uma lasca entrou no crânio através da orelha;
outra rasgou o estomago, quebrou a espinha, e naquela sangrenta
confusão via-se a medula espinhal solta, a resvalar. A perna direita
estava  totalmente  esmagada  acima  do  joelho.  O  mais  terrível  de  tudo  
foi que ele ainda viveu quatro ou cinco minutos (EKSTEINS, 2001, p.
199).

Mais adiante Eksteins destaca as mais diversas tecnologias aplicadas á


guerra, tais como o gás venenoso, o lança-chamas, os tanques, os canhões de longa
distancia, os aviões, os submarinos, dentre outros. Hobsbawn salienta que a guerra
representou um grande mecanismo para acelerar o progresso técnico; progresso este
que não teria ocorrido no mesmo ritmo caso o mundo vivesse em tempos de paz. As
novas tecnologias trouxeram a impessoalidade para os campos de batalha; as vitimas
tornaram-se invisíveis; diante dos canhões não havia pessoas, mas sim estatísticas;
os aviões tinham diante de si apenas alvos. Assim a morte ocorria com mais frieza,
matava-se à distância e não se presenciava a agonia das vitimas. Nesse sentido:

as maiores crueldades do nosso século foram as crueldades impessoais


decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam
ser  justificadas  como  lamentáveis  necessidades  operacionais  (Ibidem,  
p. 57).

De acordo com Zygmunt Bauman a desumanização do inimigo foi revolu-


cionada pelas novas tecnologias. A simetria do combate corpo a corpo foi substituída pela
matança em massa. Nesse sentido as armas modernas exigiam uma eliminação moral de
suas vítimas (BAUMAN, 1999, P. 54).

Guerras, mortes atrozes, desumanização. Esses elementos, presentes no


limiar do século XX, deixaram pasmo todo o mundo. A descontinuidade existente entre
os eventos do século XX e o pensamento veiculado durante os longos séculos anteriores
é  notável.  As  nações  que  se  julgavam  no  ápice,  agora  guerreavam  entre  si,  ceifando  mi-
lhares  de  vidas,  trazendo  o  medo  e  a  insegurança.  A  tecnologia,  edificada  para  promover  
conforto  e  estabilidade,  era  utilizada  nos  campos  de  batalha  ocasionando  os  mais  rijos  

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combates e os mais inacreditáveis passamentos. Segundo as anotações de Ernst Jünger,


citado por Eksteins, não havia mais cavalheirismo; esse sentimento, nobre como tantos
outros, desaparecera cedendo o seu lugar ao novo ritmo de batalha e ao poder da máqui-
na (Ibidem, p. 188).

Tudo parecia ruir; o mundo se deparava com um apagar de luzes; como


se tudo estivesse apodrecido e, insustentável, tendendo a se consumir nas chamas da
guerra. “As civilizações também são mortais!” espantava-se Paul Valéry e não o fazia
sozinho.

Perante o contexto em questão, a razão, tanto nos campos de batalha


quanto fora deles, sofria fortes abalos. Modris Eksteins salienta o caráter instintivo dos
combatentes como condição para a sobrevivência dos mesmos. Os homens, tanto da
linha de frente quanto os que desempenharam tarefas rotineiras, tendiam, depois de um
certo  tempo  e  por  conta  das  inúmeras  agressões  sofridas,  a  viver  de  acordo  com  reflexos.  
A fumaça, os tiros, as bombas, a presença da morte em cada lugar dispensavam qual-
quer  reflexão,  qualquer  tentativa  mais  ampla  de  compreensão  da  guerra  como  um  todo  
(Ibidem, p. 221). Necessitavam viver; mas a condição para a vida era, necessariamente,
a morte de outrem. Fora dos campos reinava o medo. Elisabeth Queen descreve o pavor
diário dos Londrinos em meio aos bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mun-
dial. Enquanto alguns fugiam, outros amavam e era tudo. Não havia lugar para a razão;
queria-se viver e ponto.

Todavia é interessante observarmos que o pessimismo em relação à huma-


nidade ocorre mesmo antes da Primeira Grande Guerra. Nietzsche, na segunda metade
do século XIX, criticava a moral e a razão Ocidental, preconizando o domínio dos instintos
em detrimento da razão, Dionísio em detrimento de Apolo. Schopenhauer considerava o
instinto, a vontade e a miséria como alentos primordiais, responsáveis pelo surgimento de
todas as coisas. O pulverizar da vontade desembocava na individuação (ou a ilusão de
cada ser ao se considerar único, diferente e separado dos demais). O instinto representa
a essência do universo e a inteligência – salvo em raríssimas exceções – é dominada
e  colocada  a  serviço  do  primeiro.  Joseph  de  Maistre,  no  início  do  século  XIX,  insistia  já  
na conduta má e corrupta do homem, preconizando a primazia do instinto em lugar da
ciência,  o  pessimismo  em  lugar  do  otimismo,  o  conflito  e  a  guerra  ao  invés  de  uma  paz,  
os interesses particulares dos homens ao invés de uma bondade natural (Ibidem, p. 97).
É como se Maistre, um século antes de Nietzsche, Schopenhauer e da própria guerra,
falasse a língua do século XX; como se seus textos fossem produzidos nessa época.

Mas os questionamentos aos valores universais da modernidade não só


foram  edificados  por  “profetas”.  A  vigésima  centúria  abrigou  a  incerteza,  as  guerras  trou-
xeram  o  pavor  dos  fins  dos  tempos  e  novas  gerações  de  artistas  vieram  à  tona.  As  mu-
danças  dos  novos  tempos  refletiram-­se  na  obras.

O que se segue é a análise do livro “A Peste” de Albert Camus. Nela tenta-


remos perceber alguns elementos que podem estar relacionados com o mundo da irra-
zão, as transformações ocorridas durante o século XX e o pessimismo que desabrochou
desde então.

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A PESTE – ALBERT CAMUS:

Oran era uma cidade neutra, com uma simples prefeitura na costa arge-
lina.  Lá  não  havia  pombos,  nem  árvores  nos  jardins,  nem  cair  de  folhas.  As  mudan-
ças de estações anunciavam-se através do aspecto do céu e da qualidade do ar. As
pessoas, em geral, trabalhavam muito e apreciavam os prazeres simples: cinemas,
banhos de mar, mulheres. Uma cidade perfeitamente moderna, onde se levava uma
vida veloz e amava-se sem saber. Os dias corriam sem obstáculos e tudo ia bem.

Assim Camus principia na descrição do cenário no qual os eventos se


desenrolariam. A cidade de Oran com sua vida habitual é, em determinado momento,
abrasada por uma epidemia. Tudo principiou quando uma grande quantidade de ratos
passou a ser encontrada pelas ruas. O caso atingiu proporções tais que 6.231 ratos
foram queimados em um só dia. Quando um porteiro de um prédio faleceu houve pâ-
nico. Pouco tempo depois a palavra “peste” foi utilizada pela primeira vez. O Dr. Rieux
que, num primeiro momento, demonstrou tranqüilidade, com o passar do tempo e o
agravar da situação teve novos sentimentos:

Durante o dia, Rieux sentiu crescer uma espécie de vertigem que o


afligia  quando  pensava  na  peste.  Afinal  reconheceu  que  tinha  medo.  
Entrou duas vezes em cafés cheios (...) necessitava calor humano
(CAMUS, 1971, p. 58).

Por conta da epidemia as portas da cidade foram fechadas, conseqüen-


temente as pessoas conhecidas se viram separadas umas das outras:
mães,  filhos,  amantes,  esposos  que  dias  antes,  na  estação  se  havia  
despedido   com   duas   ou   três   recomendações,   julgando   provisória   a    
ausência, viram-se de chofre, irremediavelmente afastados e impedidos
de  juntar-­se  ou  comunicar  (Ibidem,  p.  105).

Assim, o primeiro o efeito da epidemia foi o de obrigar os cidadãos a procede-


rem como se estivessem destruídos de sentimentos individuais. A idéia de não mais
contemplar um ente querido atormentava a todos e a necessidade de se agir como um
ser bruto tornava-se potente. Oran tornara-se árida. Sofria-se com as separações. A
sensação de exílio dominava a todos.
Percebíamos que os trens não chegavam; a separação iria prolongar-
se e era necessário amoldar-nos às circunstâncias. Fomo-nos, pois,
acomodando à situação de prisioneiro, reduzido a contemplar o
passado (Ibidem, p. 102)

Ali  reinava  o  sofrimento;;  findava-­se  a  coragem  e  a  vontade.  Não  se  pen-


sava em liberdade e nem no futuro; conservava-se a cabeça baixa, na tentativa de
esquecimento perante a miséria reinante. Nesta preservava-se o egoísmo do amor e
a peste ameaçava eternizar a separação.

O isolamento levava muitos indivíduos a atos de desespero. O padre da


cidade, em pregações públicas, atribuía a peste às más ações dos indivíduos; mas
que  os  justos  não  deveriam  recear,  ao  passo  que  os  pecadores  tremiam  com  razão.  

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Deus estaria fatigado de aguardar qualquer manifestação de crença e, por isso, lan-
çou  à  cidade  o  flagelo.  Esta  aí  inserida  a  noção  do  fim  dos  tempos,  um  castigo  divino,  
um aviso dos céus.

Os cidadãos acabaram por adquirir uma atitude de fuga e, ao mesmo


tempo, de embrutecimento. Não havia mais a animação dos subúrbios; nos bairros
onde as pessoas viviam sempre a conversar e com a porta das casas abertas, reinava
silêncio e as persianas conservavam-se cerradas.

Depois de tantos alarmes, os corações haviam endurecido e a gente


se movia entre queixumes como se houvéssemos sido sempre a
linguagem natural dos homens (...) (Ibidem, p. 135).

O narrador lamenta não poder expor alguma ação grandiosa da parte


dos indivíduos, uma vez que tal elemento inexistia em meio ao caos. Havia uma de-
generação tanto física quanto moral dos habitantes de Oran. Não havia grandes pen-
samentos e ninguém nutria grandes sentimentos. Depois de algum tempo surgiu uma
espécie de consenso, ou acomodação geral, perante as circunstancias. Os olhares
das pessoas eram frios e apagados; trabalhava-se sem brilho. A dor de cada um fora
subtraída à desgraça coletiva; aceitava-se a confusão. Sem esperança, pousava-se
no presente:
é preciso dizer que a peste suprimia em todos o amor e a amizade. Por
que  o  amor  exige  um  pouco  de  futuro  –  e  já  não  havia  para  nós  senão  
instantes [...] (Ibidem, p. 188).

Até mesmo os que trabalhavam diretamente contra a peste pareciam fati-


gados. O Dr. Rieux notava, tanto em si quanto em seus amigos, uma curiosa indiferença
perante as notícias referentes à epidemia. Uma personagem interessante é Rambert:
jornalista  acabou  preso  na  cidade  empestada  pelo  mais  completo  azar.  Estava  separa-
do  de  sua  mulher  e  isso  o  afligia.  Tal  como  os  demais  parecia  indiferente  ao  mundo  que  
o circundava; apesar de ter na memória a estatística dos efeitos dos soros nas quaren-
tenas, apesar de estar a par de todas as minúcias do sistema de evacuação imediata
– organizado para os que apresentassem algum sinal da peste – desconhecia a quanti-
dade semanal de vitimas, ignorando se a doença progredia ou recuava. Contudo nutria
a esperança de fugir da cidade interditada e de encontrar a sua mulher.

A peste causava tão irresistível desordem que até mesmo as detenções


foram suspensas. Não havia mais polícia, nem, crimes, nem réus. Persistia a epide-
mia,  a  experiência  generalizada  da  morte,  e  houve  quem  se  beneficiou  dela.  Cottard,  
personagem envolvido em contrabandos, estava livre das perseguições da lei e, dentre
tantos sofrimentos, era o único que não demonstrava cansaço. Os habitantes de Oran
passavam pelos mesmos sentimentos de Cottard. Este, em sua situação de contraban-
dista,  jamais  poderia  confiar  em  quem  quer  que  fosse,  uma  vez  que  podiam,  a  qualquer  
momento, delatá-lo e prendê-lo. Com a peste todos passavam pelo sentimento da des-
confiança.  Como  a  doença  estava  no  ar,  não  se  podia  mais  confiar  no  vizinho,  posto  
que este poderia infectar a qualquer um. Se, por um lado, os tempos difíceis clamavam
por  calor  humano  e  aproximações,  a  desconfiança  e  o  medo  da  morte  promoviam  o  
distanciamento e a frieza.

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Além do distanciamento entre si os cidadãos sitiados, apesar de não


abandonarem os seus deveres religiosos, entregavam-se às práticas supersticiosas.
Preferiam trazer medalhas protetoras ou amuletos a ir à missa. Correram pela cida-
de  diversas  profecias  atribuídas  a  magos  ou  santos  da  Igreja  Católica.  Nostradamus  
e Santa Odília eram consultados freqüentemente; recorria-se á história de grandes
pestes,  fazia-­se  cálculos  estranhos  nos  quais  figuravam  o  Milenarismo,  o  número  de  
mortos e o tempo de existência da peste. As conclusões eram tranqüilizadoras e tudo
prosseguia.

Pelo  jogo  de  egoísmos  a  peste  reforçava,  por  um  lado,  a  igualdade  e,  
por  outro,  tornava  mais  agudo  o  sentimento  de  injustiça.  Não  se  pensava;;  ninguém  se  
preocupava com outrem:

No   fim   de   tudo   percebemos   que   realmente   não   somos   capazes   de  


pensar  nos  outros;;  por  grande  que  seja  a  desgraça.  Pensar  em  alguém  
é   pensar   de   minuto   a   minuto,   sem   nos   distrairmos   com   o   arranjo   da  
casa, o vôo das moscas, a refeição, uma coceira. Mas há sempre
moscas e coceiras. É o que torna difícil à vida. E elas não ignoram isso
[...] (Ibidem, p. 227).

Havia, contudo, a esperança de que a peste recuasse. Certa vez o Dr.


Rieux isolou no hospital uma paciente supostamente perdida. Porém, no outro dia, a
febre diminuiu, não mais aumentou e, posteriormente, desapareceu. Contra todas as
regras, a rapariga estava salva e, em poucos dias, outros tantos casos semelhantes
ocorreram. A peste perdia a sua força;

no   conjunto   a   doença   recuava   em   toda   parte,   e   as   informações   da  


prefeitura, recebidos a principio com tímida esperança, trouxeram ao
público a certeza de que a vitória estava assegurada [...] (Ibidem, p.
248).

Apesar de tais anúncios, as pessoas pareciam agir de forma contradi-


tória, passando por opções de desesperação e depressão; no momento em que as
estatísticas eram mais favoráveis, registraram-se novas tentativas de fuga. Isso de-
monstra  o  ceticismo  enraizado  pela  peste.  Agia-­se  ainda  de  acordo  com  o  flagelo;;  sem  
esperanças,  mal  percebiam  o  rumo  dos  acontecimentos;;  instintivamente  desejavam  
fugir  e  a  impaciência  turvava  a  razão;;  temia-­se  a  morte  em  pleno  findar  de  suas  cau-
sas;;  não  se  queria  acompanhá-­la  até  o  final.

Com   o   fim   da   peste   as   portas   da   cidade   foram   abertas;;   o   trem,   já   na  


estação, trazia os entes queridos dos cidadãos de Oran. Os que se reencontravam
partiam para casa, exultantes, alheios ao mundo, esquecendo a miséria e a dor dos
que  não  encontravam  ninguém  a  esperá-­los.  Para  esses,  cuja  dor  recente  era  a  única  
companheira, o sentimento da separação atingira o seu ponto máximo; para eles a
peste prosseguia.

Apesar do contentamento dos indivíduos e da certeza da vitória perante


a peste, o Dr. Rieux pensava que essa alegria estava sempre ameaçada. Apesar de
a população ignorar:

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o  bacilo  da  peste  não  morre  nem  desaparece,  ficam  dezenas  de  anos  
a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos,
nos porões, nas malas, nos papeis, nos lenços – e chega talvez o dia
em que, para a desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda
os ratos e os manda morrer numa cidade feliz [...] (Ibidem, p. 108).

De acordo com Roland Barthes “A Peste” é uma crônica. Nela todos os


temas habituais do romance – o homem, o amor, ou o sofrimento – são vistos através do
distanciamento de uma história coletiva, acompanhada sem se deixar penetrar por uma
significação  histórica.  O  tema  central  é  a  epidemia;;  o  texto  se  desdobra  na  clausura  ma-
terial de Oran, a qual não se pode abandonar. Ali as pessoas não são capazes de pensar
em outra coisa a não ser na epidemia como base para se conceber a vida, a morte e o
sofrimento.

Segundo Isabel Magalhães Maia, a questão da morte sempre obcecou Al-


bert  Camus  desde  a  sua  juventude.  Toda  a  sua  obra  parece  se  insurgir  contra  a  morte.  É  
na “Peste” que tal elemento surge como uma experiência generalizada.

Escrita na década de 40 do século XX a obra de Camus está em conso-


nância com uma época de crise e revisão de valores. Um pessimismo constante parece
perpassar toda a obra; pessimismo latente há algumas décadas. Se, por muitos séculos,
apregoou-se o otimismo em relação à humanidade, o século XX, conforme mencionado
anteriormente, trouxe – através de novas situações – bases para se criticar esse otimis-
mo. A chegada de uma epidemia em Oran representa a própria crise vinda à tona com a
Primeira Guerra.

Barthes  afirma  que  o  tema  do  exílio  perpassa  toda  a  obra.  A  tristeza  é  outra  
constante. Ora, não há sentimento mais obvio que o de tristeza e mesmo de decepção
quando  se  percebe  que  a  civilização  há  tanto  tempo  posta  em  altos  patamares  pelos  filó-
sofos da modernidade, descobre-se, de uma certa forma, empestada por suas próprias
fraquezas, triste por seu engano e a se autodevorar.

A epidemia de Oran obrigava os seus habitantes, em termos de nobreza,


à impassibilidade. Não havia ali lugar para boas ações, os corações pareciam endureci-
dos, os olhares mantinham-se frios, trabalhava-se sem destreza, vivia-se no presente, o
passado inspirava saudade e o futuro demonstrar-se ininteligível. Por sua vez, a Grande
Guerra trazia situações análogas: Em Eksteins vemos o embrutecimento dos soldados
durante as batalhas. Da mesma forma que na Oran empestada, ali não havia lugar para
o cavalheirismo; matava-se para sobreviver e era essa a condição.

O caos de novo contexto trouxe o distanciamento em relação ao passado e


uma ausência de perspectiva em relação ao futuro. Quanto ao primeiro, restava, tal como
em Oran, a saudade; no tocante ao segundo, persistia a incerteza e, conseqüentemente,
o medo.

Em  “A  Peste”  há  um  elemento  constante:  a  irrazão.  Com  efeito,  o  objetivo  
de se fechar as portas da cidade, impedindo a saída e a entrada de quem quer que fos-
se era o de evitar a proliferação ainda maior da doença em outras regiões por daqueles

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que, sem sabê-lo, estivessem infectados. Nesse sentido a cidade isolava-se do mundo,
mantendo-­se  em  sua  “clausura  material”,  na  expressão  de  Barthes.  Contudo,  o  jornalista  
Rambert,  mesmo  a  par  de  tais  fatos,  planeja  a  sua  evasão  com  o  objetivo  de  rever  a  sua  
mulher que se encontrava em outra cidade. Enquanto prepara a sua fuga – fuga que,
na verdade, não será realizada – Rambert não concebe a possibilidade de seu corpo
estar infectado como a peste e, por extensão, a de contaminar até mesmo a sua mulher.
A irrazão, tal como a epidemia, demonstrava-se uma experiência generalizada. O ato
de evasão da cidade, ainda com a notícia do recuo do mal, revela a manifestação do
instinto, permeada pela dor, pelo receio, pelo desespero. O medo da morte, uma morte
momentânea, capaz de invalidar um longo período de espera, revela a pouca tendência
de  se  pensar  –  em  termos  de  futuro  –  em  longo  prazo.  Não  importava  o  iminente  fim  do  
mal; queria-se partir imediatamente e o amanhã era uma incógnita inquietante.

A mesma incógnita, a mesma ausência de perspectiva para o futuro e


a mesma irrazão pareciam reinar no limiar da vigésima centúria. Enquanto Schope-
nhauer pensava o instinto como a base de mundo, Nietzsche preconizava a ressur-
reição de Dionísio; enquanto a Europa se consumia nas chamas da Guerra os indiví-
duos, atônitos, desconheciam o seu próprio âmbito e ignoravam o futuro. A irrazão da
Peste é a mesma irrazão de uma civilização “mortal” e decadente, a mesma irrazão
dos  campos  de  batalha;;  é  o  instinto  da  vida  momentânea,  das  ações  irrefletidas,  ações  
sem rumo, sem chegada, sem lógica.

A Peste de Camus afastou-se. Contudo, conforme o próprio Dr. Rieux, o


bacilo da epidemia não morreria, mas sim permaneceria por dezenas de anos ador-
mecido em diversos lugares. Oran, após o ocorrido, não mais seria a mesma, e o
mundo, no século XX, sofrera outras tantas transformações. A ruptura é mais que
notória. O século da Grande Guerra trouxe tantas novidades que o tempo do roman-
tismo nos parece um tanto distante. Não há de se deixar de lado dos novos valores
que emergiram durante e após um tempo de guerras inovadoras e crises gigantescas.
Da mesma forma que a Peste, o século XX trouxe o bacilo “infectando” os ideais de
longos séculos.

CONCLUSÃO:

Após um longo tempo de otimismo e unidade, o mundo, no século XX,


conheceu o seu “apagar de luzes”. A razão do Brâmane de Voltaire perdeu o seu
sentido, a sociedade perfeita demonstrou-se infectada e o positivismo desnorteou-se.
Não seriam admiráveis as lágrimas do Brâmane perante o “balé da batalha”; em plena
loucura a razão pedia o seu sentido. Segundo Adorno, o potencial do iluminismo de
libertar a humanidade foi cooptado, pervertido e transformado em um estilo opressivo
de  vida,  privando,  progressivamente,  o  homem  de  sua  liberdade.    O  projeto  filosófi-
co,  político,  científico  e  cultural  do  iluminismo  não  se  cumpriu;;  permanece  inacabado  
(HORKHEIMER; ADORNO, 1969, p. 65).

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A Peste de Oran representa a peste que impediu a continuidade do pro-


jeto  iluminista.  A  obra  é  uma  critica  à  modernidade.  O  pessimismo  contido  nas  páginas  
de  Camus  é  um  reflexo  de  algo  que  pulsa  desde  que  se  compreendeu  o  caráter  mor-
tal  das  civilizações.  Por  fim,  pode-­se  dizer  que  Brâmane  de  Voltaire  adoeceu;;  que  a  
peste o contaminou; em suma: a peste da irrazão e do pessimismo feriu destramente
a saúde otimista da razão.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.

BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: Capítulos da História das Idéias. Trad. Walter Lellis Siqueira. SP:
Companhia das Letras, 1991.

CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. Opera Mundi,
1971.

EKSTEINS, Modris. A Sagração da Primavera. SP. ROCCO, SID, 2001.

HOBSBAWN. Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX – 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita.
SP: Companhia das Letras, 1995.

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. A indústria cultural: o esclarecimento como misti-


ficação  das  massas.  In: ___Dialética  do  Esclarecimento:  Fragmentos  filosóficos.
Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1969 (notas da nova edição
alemã, datada de abril de 1969).

*
Graduando em História pela Universidade Federal de Viçosa.
No  dia  28  de  julho  de  1914,  a  Áustria  declara  guerra  a  Sérvia,  iniciando  assim  a  Primeira  Grande  guerra.  A  morte  de  Francisco  
**

Ferdinando  e  sua  esposa,  assassinados  por  um  estudante  da  Bósnia  foi  o  incidente  que  faltava  para  que  o  conflito  iniciasse.

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