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O MÍNIMO SOBRE DISTOPIAS Paulo Briguet

1ª edição — junho de 2023 — CEDET


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Gabriella Cordeiro de Moraes

Revisão & preparação:


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Capa:
Laura Barreto

Diagramação:
Virgínia Morais

Revisão de provas:
Juliana Gurgel
Mariana Souto Figueiredo
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Briguet, Paulo.
O mínimo sobre distopias / Paulo Briguet
Campinas, SP: O Mínimo, 2023.
isbn 978-65-85033-15-2
1. Ciência política: Sistemas de governos e Estados: Governos autoritalistas 2. Política e
direitos civis: Direitos civis específicos: Limitação e
suspensão dos direitos civis 3. Literatura: Teoria e filosofia: Natureza e
caráter: Análise e crítica.
I. Autor II. Título
cdd — 321.9 / 323.49 / 801.95
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. Ciência política: Sistemas de governos e Estados: Governos autoritalistas – 321.9
2. Política e direitos civis: Direitos civis específicos: Limitação e suspensão dos direitos
civis – 323.49
3. Literatura: Teoria e filosofia: Natureza e caráter: Análise e crítica – 801.95

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Sumário
DISTOPIAS: A DIVINA COMÉDIA DOS TEMPOS MODERNOS

1984: O I DE W S

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: IMAGINE NÃO HAVER PARAÍSO

FAHRENHEIT 451: O DA VIDA BOMBEIRO, O FOGO E A ÁRVORE

MOSCOU 1979: O MARTÍRIO DE ULYAN

O SENHOR DO MUNDO: PADRE BENSON NO VALE DE LÁGRIMAS

CRÔNICA: A PIRA DOS LIVROS CONSERVADORES

BIBLIOGRAFIA

N R
DISTOPIAS: A DIVINA COMÉDIA
DOS TEMPOS MODERNOS

Q
uando você descobriu que estamos vivendo dentro de uma
distopia? Qual foi a experiência determinante para que você se
visse como um personagem de 1984, Admirável mundo novo ou
Fahrenheit 451? Vasculhe a sua memória, faça um exame de
consciência, repasse os acontecimentos dos últimos anos. Certamente
você encontrará inúmeros momentos em que a sua inteligência foi
desafiada pela incongruência entre a evidência dos seus sentidos e as
narrativas apresentadas pelo sistema de poder por meio de seu porta-
voz, a mídia. Talvez você não saiba, mas tudo isso que estamos
vivendo e sofrendo atualmente já foi previsto por grandes escritores,
confirmando a profética máxima de Hugo von Hofmannsthal:

“Nada existe na realidade política de um


país que não esteja primeiro na sua
literatura”.
Os livros do gênero ficcional que hoje conhecemos por distopia são,
simultaneamente, descrições e profecias dos processos sociais que a
humanidade enfrentou no passado recente e continua enfrentando
hoje. Por esse motivo, o Ministério da Verdade não recomenda a
leitura do pequeno livro que você tem em mãos agora. E o motivo
dessa desconfiança é muito simples: aqui se dirá que a grama é verde,
que o céu é azul, que a água é molhada e que dois mais dois são
quatro — por mais que o sistema de poder insista no contrário.

No mundo dos escritores, eu pertenço à categoria menos nobre: a dos


cronistas. Tenho um apego obsessivo por pequenos acontecimentos,
que às vezes acabam por revelar grandes verdades. A imagem mais
antiga que trago na memória é de meu pai lendo um livro na sala, em
nosso minúsculo apartamento na Alameda Barão de Limeira, em São
Paulo. Eu tinha apenas um ou dois anos, ainda não sabia ler e não
entendia o que significava aquela cena: um homem de trinta anos
olhando para um objeto retangular feito de folhas de papel repletas de
pequenos sinais de tinta. No entanto, aquela imagem determinou o
rumo e o sentido da minha vida. Meu destino seria marcado por uma
longa estrada de livros.

É bem provável que naquela noite — era uma cena noturna, eu me


lembro do abajur aceso — meu pai estivesse lendo alguma obra dos
autores que de alguma maneira foram precursores das distopias
modernas: Dostoiévski, Kafka, Camus. Mesmo assim, o meu primeiro
contato com a ideia da distopia viria de outra maneira, alguns anos
depois, quando aprendi a rezar a Salve Rainha. Uma passagem que
sempre me impressionou nesta belíssima oração foi a seguinte:
A vós bradamos, os degredados filhos de Eva A vós suspiramos, gemendo e chorando neste
vale de lágrimas

Só muito mais tarde eu vim a compreender o sentido pleno dessas


palavras, mas meu coração de menino já intuía que elas expressavam
duríssimas verdades. Não pertencemos a este mundo, estamos
exilados aqui. E mais:

este mundo é um lugar de sofrimento,


que só pode ser aliviado pela misericórdia
de Deus.
Ninguém escapa das lágrimas do mundo, para usar a imortal
expressão de Virgílio.

A palavra distopia tem origem grega e é formada pela união de dys


(mau, ruim) e topos (lugar). Significa, portanto, “lugar ruim”. O termo
teria sido usado pela primeira vez em um discurso do filósofo e
economista John Stuart Mill no parlamento inglês, em 12 de março de
1868. Na ocasião, Stuart Mill fez severas críticas à política de terras
implantada pelos governantes irlandeses: “É, talvez, demasiado
elogioso chamá-los de utópicos; ao invés disso, devem ser chamados
de distópicos, ou cacotópicos”.1 Posteriormente, descobriu-se que o
termo distopia havia sido usado antes por outros dois escritores
britânicos, Baptist Noel Turner e Lewis Henry Younge. Mas, de fato,
foi o discurso de Stuart Mill que introduziu o conceito nos debates
intelectuais da Europa.

Note-se que Stuart Mill faz uma contraposição entre utopia e


distopia. Com efeito, para entendermos a distopia, precisamos saber
antes o que é a utopia. De Platão a Joaquim de Flora, inúmeros
pensadores e escritores se puseram a imaginar uma sociedade ideal,
uma Idade de Ouro em que os seres humanos pudessem viver em
perpétua harmonia, igualdade e segurança. De certa forma, os
episódios bíblicos da queda de Adão, do assassinato de Abel por Caim
e da Torre de Babel também refletem essa pretensão humana de uma
vida perfeita e de um total domínio sobre a realidade. Depois de matar
Abel, Caim funda a primeira pólis, ou seja, a primeira sociedade
política. Ao erigir a Torre de Babel, o soberbo e arrogante Nemrod,
“grande caçador diante de Deus” (Gn 10, 9), tenta atingir os céus a
partir da terra, o que acaba resultando na confusão das línguas e na
divisão entre os homens.

Há um enorme engano em definir A república de Platão como a


primeira utopia. Com a sua obra-prima, o genial filósofo grego na
verdade fez uma grande investigação sobre os efeitos da justiça na
alma humana. Todos os aspectos envolvidos na estruturação de uma
cidade ideal são uma analogia, um espelhamento da alma individual.
No entanto, não foram poucos os pensadores e revolucionários que
tomaram A república como um modelo aplicável de sociedade
perfeita. Semelhante confusão ocorre com a obra mais conhecida do
filósofo e estadista inglês Thomas More, cujo título completo é
Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei
publicae statu deque nova insula Utopia (traduzindo: “Um pequeno e
verdadeiro livro, não menos benéfico que divertido, do melhor estado
de uma república e da nova ilha Utopia”). Como quase todas as obras
do humanismo renascentista, o livro de More possuía um longo título,
mas ficou conhecido universalmente apenas como Utopia. O nome da
obra une os termos gregos ou (com sentido de negação) e topos
(lugar). Utopia, portanto, quer dizer “lugar nenhum”.

Em sua obra, More descreve o diálogo imaginário com um homem


que participou das grandes navegações e conheceu uma ilha, situada
no Oceano Atlântico, onde funciona uma sociedade ideal, em que os
cidadãos são livres e felizes. Na ilha imaginária de More, não existe
propriedade privada, a tolerância reina entre as religiões, o parlamento
age conforme os interesses do povo, a prosperidade e a paz estão
asseguradas.

Escrito em latim, a língua literária da época, o livro de Thomas More


— que também fazia uma crítica à sociedade de seu tempo — obteve
grande sucesso entre as classes letradas. Em 1529, More foi nomeado
Lorde Chanceler da Inglaterra pelo rei Henrique VIII. Essa acabou
sendo sua desgraça. Por não aceitar o divórcio do rei com sua primeira
esposa e o consequente rompimento com a Igreja Católica de Roma,
More foi condenado à morte por decapitação em 6 de julho de 1535.
Quatrocentos anos depois, o autor de A Utopia foi canonizado pelo
Papa Pio XI. Sim, o autor da Utopia hoje é um santo católico.

A expressão criada por Thomas More foi usada mais tarde, entre o
final do século XVIII e o início do século XIX, para designar
ironicamente uma categoria de pensadores europeus que defenderam a
implantação de sociedades ideais. São os chamados socialistas
utópicos, como Robert Owen (1771−1858), Charles Fourier
(1772−1837), Pierre-Joseph Proudhon (1809−1865), e Louis Blanc
(1811−1882). Eram pensadores excêntricos, para dizer o mínimo. O
francês Fourier, por exemplo, imaginava a sociedade dividida em
falanstérios, pequenas cidades de dois mil habitantes que funcionavam
de maneira mecânica e extremamente organizada.

Em 1789, eclode a Revolução Francesa. A derrubada do antigo


regime e a instauração da República, sob inspiração dos ideais
iluministas, acabaram por degenerar no banho de sangue do Terror
jacobino e no império napoleônico. Apenas quatro anos após a tomada
da Bastilha, ocorre o primeiro genocídio moderno, com o massacre de
cristãos na Vendeia.

A guilhotina se tornou o símbolo máximo


dessa primeira tentativa de implantação de
uma sociedade ideal. Para secar as lágrimas
dos homens, cortaram-lhes as cabeças.
Em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels publicam o Manifesto
comunista, lançando as bases do autodenominado socialismo
científico. O que era excêntrico nos socialistas utópicos tornou-se
trágico nas revoluções inspiradas por Marx. A utopia começa a se
transformar em distopia. Os regimes totalitários que marcariam o
século XX — inspirados no marxismo e no cientificismo do século
anterior — foram tentativas malogradas de criar o Paraíso na Terra
que acabaram por revelar o seu contrário. Se precisássemos de uma
definição sucinta para o tema discutido neste livro, seria esta: a
distopia é a utopia que chegou ao poder.

Comunismo e nazifascismo, irmãos gêmeos


distópicos, transformaram o século XX na
era do democídio,
termo criado pelo cientista político americano Rudolph Joseph
Rummel para designar o assassinato dos povos pelos seus governos. O
ranking dos maiores democidas do século XX é formado por Mao
Tsé-Tung (76 milhões de mortes, entre 1949−1976), Josef Stálin (42
milhões de mortes entre 1924−1953), Adolf Hitler (21 milhões de
mortes entre 1933−1945), Chiang Kai-shek (10 milhões de mortes
entre 1928−1949), Vladimir Lênin (4 milhões de mortes entre
1917−1924), Tojo Hideki (4 milhões de mortes entre 1939−1945), Pol
Pot (2 milhões de mortes entre 1975−79), Yahya Khan (1,5 milhão de
mortes entre 1969−1971) e Josip Broz Tito (1 milhão de mortes entre
1953−1980). Os países governados por esses monstros
experimentaram a cruel realidade da distopia.

Quase todos os exemplos de democídio citados no parágrafo anterior


decorrem da implantação de regimes políticos dominados pelo que o
filósofo Olavo de Carvalho denominou mentalidade revolucionária.

Mao, Stálin, Hitler, Lênin e Pol Pot,


entre outros, condenaram milhões à morte
na tentativa de implantar mudanças
radicais na sociedade
por meio da concentração de poder nas mãos de uma casta
dominante.

Essas tragédias do nosso tempo foram descritas em obras que


costumo chamar de distopias da vida real, tais como Arquipélago
Gulag, de Aleksandr Soljenítsin; Contos de Kolimá, de Varlam
Chalamov; Sussurros, de Orlando Figes; A fome vermelha, de Anne
Applebaum; A grande fome de Mao, de Frank Dikkoter; É isto um
homem?, de Primo Levi; Em busca de sentido — Um psicólogo no
campo de concentração, de Viktor Frankl; Um belo domingo, de Jorge
Semprun; e Diário da felicidade, de Nicolae Steinhardt.

O gênero literário conhecido como distopia começa com a


publicação de O senhor do mundo, do escritor e sacerdote católico
inglês Robert Hugh Benson, em 1907. Por razões que o leitor
descobrirá mais adiante, deixaremos a obra-prima do Padre Benson
para o último capítulo, depois de analisarmos outra obra que
poderíamos classificar como uma distopia cristã: o romance Moscou
1979, de Erik e Christiane von Kuehnelt-Leddihn. Os três grandes
clássicos do gênero — 1984, de George Orwell; Admirável mundo
novo, de Aldous Huxley; e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury — serão
focos centrais de nossa análise. Os romances Nós, de Ievguêni
Zamiátin, e Escuridão ao meio-dia (publicado anteriormente como O
zero e o infinito), de Arthur Koestler, que exerceram grande influência
sobre a obra de George Orwell, merecerão algum destaque. Existem, é
claro, várias outras obras significativas do gênero, tais como Laranja
mecânica, de Anthony Burgess, O homem do castelo alto, de Philip
K. Dick, O senhor das moscas, de William Golding, e até os
brasileiros O fruto do vosso ventre, de Herberto Sales, e Não verás
país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. Curiosamente, o nosso
maior escritor, Machado de Assis, publicou em 1881 um conto que
pode ser chamado de protodistopia: trata-se de O alienista.

Algumas características aparecem em quase todos os livros do


gênero distópico: Sociedade administrada. Nas distopias, o governo
comanda os mínimos aspectos da vida dos indivíduos, das famílias e
dos grupos sociais.

Estado policial. Todos desconfiam de todos. Qualquer cidadão, a


qualquer momento, pode perder a liberdade, a propriedade e a vida
por qualquer motivo. A delação é um elemento central nas sociedades
distópicas.

Uso da tecnologia contra o homem. As inovações tecnológicas são


utilizadas para oprimir, espionar e controlar as pessoas.

Manipulação da linguagem. Quem controla a linguagem, controla


as ideias. Quem controla as ideias, controla as ações. Por isso, a
linguagem é um dos primeiros alvos dos regimes distópicos.

Destruição da memória e da alta cultura. Para atomizar e fragilizar


as pessoas, é necessário destruir tudo aquilo que de melhor foi
pensado, tudo aquilo que de melhor foi escrito, tudo aquilo que de
melhor foi imaginado, tudo aquilo que passou no teste das gerações. A
grande literatura, a grande música e a filosofia clássica são rejeitadas
na sociedade distópica. Para se edificar a nova sociedade, faz-se
tábula rasa da memória individual e civilizacional. Isso inclui a
aversão a valores e virtudes antigos, pois é preciso tirar o sentido da
vida individual das pessoas e colocá-las a serviço de uma coletividade
abstrata.
Ausência de liberdade. O livre-arbítrio, inscrito por Deus no coração
do homem, deve ser afastado para que a sociedade possa funcionar
como uma máquina e atenda aos anseios dos donos do poder.

Ateísmo e materialismo. Na sociedade distópica, elimina-se toda e


qualquer ideia de transcendência na vida social. Deus é retirado de
cena.

Partido-Estado. Em todas as distopias, existe uma casta superior de


governantes que estabelece uma dominação completa sobre a
sociedade e os indivíduos.

O professor José Monir Nasser ensinava que os grandes heróis da


literatura passam por algum tipo de descida aos infernos durante a sua
trajetória. As principais distopias literárias do nosso tempo seguem o
mesmo caminho, perfazendo uma espécie de Divina comédia
moderna. Assim, organizei neste livro, de modo a contemplar as três
jornadas dantescas: o Inferno em 1984 e Admirável mundo novo; o
Inferno e o Purgatório em Fahrenheit 451; e finalmente o Inferno, o
Purgatório e o Paraíso em Moscou 1979 e O senhor do mundo.

Para descer às profundezas do Reino da Dor, Dante precisou de um


guia, o grande poeta latino Virgílio. Para descermos aos infernos da
distopia, nosso primeiro companheiro de viagem será Winston Smith,
ex-funcionário do Ministério da Verdade.
1984: O I DE W S

O Grande Irmão está de olho em você.

V ocê já ouviu essa frase? Você às vezes sente que está sendo
observado? Você às vezes pensa que um poder central está
acompanhando e controlando todos os seus passos, todas as suas
palavras e até os seus pensamentos? Então talvez você se identifique
com Winston Smith, o protagonista do romance 1984, de George
Orwell.

Winston Smith é um cidadão de 39 anos que mora na Pista de Pouso


Um (o lugar antigamente conhecido como Inglaterra) e trabalha como
revisor de textos no Departamento de Registros do Ministério da
Verdade. O nome “Winston” é uma clara referência a Winston
Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido durante a Segunda
Guerra Mundial; “Smith” é um dos sobrenomes mais comuns nos
países de língua inglesa. Podemos dizer que o personagem de Orwell
representa o homem médio da sociedade em que vive.

O mundo de 1984 está dividido em três grandes países de dimensão


continental: a Oceania, a Eurásia e a Lestásia. Smith vive na Oceania,
que é governada pelo Grande Irmão (Big Brother, que também pode
ser traduzido como Irmão Mais Velho). O Grande Irmão é mais do
que um ditador, mais do que um governante: ele é uma espécie de
representação daquilo que eu chamo de Partido-Estado: uma instância
de poder que expressa uma ideologia específica e torna essa ideologia
a razão de ser do Estado. O Grande Irmão é uma figura que aparece
apenas em grandes telas ou em grandes cartazes. Nunca é visto em
público, nunca é encontrado no meio do povo. Jamais se confunde
com as pessoas comuns. O Grande Irmão não é uma pessoa: ele é uma
ideia.

Desde que se tem memória, a Oceania sempre esteve em guerra com


alguma das outras superpotências. O país do Grande Irmão é
administrado pelo Partido, a única força política existente e
legalizada. A ideologia oficial do Partido leva o nome de Socing
(socialismo inglês). Há alguns anos, o governo desenvolve um
programa para a implantação de um novo idioma, a novilíngua, que
gradualmente deve substituir o inglês falado pela maioria da
população, até eliminá-lo por completo. A sociedade da Oceania está
dividida em três classes: o Partido Interno, o Partido Externo e os
proletas. O Partido Interno corresponde à casta dirigente e
privilegiada; o Partido Externo é a classe média, composta por
funcionários e ocupantes de cargos menos importantes na máquina
estatal; e os proletas são a imensa maioria da população, que vive em
condições de extrema pobreza, em um nível próximo à selvageria. A
estrutura de governo, por sua vez, consiste basicamente em quatro
órgãos estatais: o Ministério da Verdade, responsável pelas mentiras; o
Ministério da Fartura, responsável pela fome; o Ministério da Paz,
responsável pela guerra; e o Ministério do Amor, responsável pela
morte. Como se vê, o mundo em que vive Winston Smith é regido
pela inversão da realidade, conforme atestam os slogans do governo:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É


ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA2
Não existe vida privada na Oceania: em todas as casas há teletelas,
perpetuamente ligadas, que transmitem a programação oficial do
Partido. Através das teletelas, o Partido espiona a intimidade dos
cidadãos. O principal objetivo dessa perpétua fiscalização é impedir a
ocorrência do crime de pensamento (em novilíngua, crimipensar).
Trata-se do único crime realmente grave na Oceania — o crime de
pensar algo que desagrade o Partido. Como sinal de onipotência e
onipresença, por todos os lugares estão espalhadas gigantescas fotos
do Grande Irmão — que nunca foi visto pessoalmente e cuja
verdadeira identidade ninguém sabe — com a advertência em letras
garrafais: O GRANDE IRMÃO ESTÁ VENDO.

O trabalho de Winston no Ministério da Verdade consiste em


reescrever notícias de jornal que, por algum motivo, passaram a
desagradar o Partido. Assim, previsões erradas, contradições, índices
negativos, promessas não cumpridas e referências elogiosas a
políticos que caíram em desgraça são substituídas por novas versões
da verdade que atendam à orientação da cúpula dominante. Todos os
dias, as notícias são reescritas, as versões anteriores são incineradas e
novas edições dos jornais são impressas e arquivadas. Em suma, as
notícias que desagradam o Partido nunca existiram.

O Ministério da Verdade tem por objetivo a produção de um presente


interminável e imutável em que o Partido sempre está certo. O mesmo
processo de alteração contínua das informações é aplicado a livros,
periódicos, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, trilhas sonoras,
quadrinhos, fotografias e a qualquer documento que possa ter
qualquer importância política ou ideológica.

Certo dia, Winston Smith decidiu entrar numa loja de quinquilharias


em algum lugar sórdido da cidade. Essa era uma atitude ilegal, pois
membros do Partido Externo não possuem direito de fazer compras
em “lojas de livre mercado”. No entanto, trata-se de uma lei
impossível de cumprir, pois alguns produtos essenciais nunca são
encontrados em lojas do Estado. Naquele dia, porém, Winston não
adquiriu um produto qualquer: ele comprou um livro. Um livro com as
páginas em branco, é verdade, mas um bonito exemplar, com papel
macio, um pouco amarelado pelo tempo, como não se fabricava há
pelo menos 40 anos.

A decisão de adquirir um livro não permitido pelo Estado, ainda que


tivesse as páginas em branco, é um ato de ousadia na sociedade
distópica. Winston tem 39 anos; o livro que ele comprou é,
provavelmente, mais velho do que ele, unindo-o a um passado do qual
ele tem uma vaga lembrança. Na memória de Winston, restam
imagens pouco nítidas de seus pais, desaparecidos quando ele ainda
era um menino, durante a Revolução. Após um sonho tormentoso com
a mãe, Winston acorda com uma palavra nos lábios: Shakespeare.

Winston mora em um cubículo nas Mansões da Vitória, um conjunto


habitacional bastante precário e decadente. Em sua casa, existe um
pequeno vão em que ele pode se acomodar sem ser observado pela
teletela. Nesse espaço, Winston decide cometer a maior transgressão
de sua vida: escrever um diário. Ele sabe que, se for pego, poderá
cumprir uma pena de 25 anos de trabalhos forçados ou simplesmente
ser vaporizado — termo que designa o desaparecimento súbito de
cidadãos. Se o simples fato de manter um diário íntimo é considerado
um crime de pensamento, que dirá a frase que Winston escreve várias
vezes em seu livro, em letras maiúsculas:

ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO


O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE
IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO3
A partir desse momento, Winston Smith sabe que é um homem
morto. O Grande Irmão já foi interpretado como um personagem
alegórico, uma representação alegórica de Stálin e Hitler, tiranos que
assombravam o mundo na época em que George Orwell escreveu
1984. No entanto, ele é mais do que isso: trata-se de uma imagem do
Partido-Estado, uma figura sobre-humana do poder coletivista.
Quando Winston decide colocar os seus pensamentos pessoais no
papel, ele se descobre capaz de livre-arbítrio. Agora, ele se sente
capaz de amar outra pessoa — a colega de trabalho Julia — e busca
estabelecer contato com O’Brien, um funcionário do Partido Interno
que lhe parece digno de confiança. Contudo, o amor e a amizade,
naturalmente, são considerados crimes de pensamento e são puníveis
com a morte.

Há duas passagens que marcam a autolibertação de Winston. A


primeira é quando ele escreve em seu diário, depois de refletir sobre
as falsificações operadas pelo Partido: “A liberdade é a liberdade de
dizer que dois mais dois são quatro. Admitindo-se isso, tudo o mais se
segue”.4 A segunda é um verdadeiro tesouro do talento narrativo de
Orwell. Durante um de seus encontros amorosos clandestinos,
Winston observa um peso de papel de cristal que comprara
recentemente e se entrega a seus pensamentos:
Winston ficou deitado mais alguns minutos. O quarto estava escurecendo. Ele se virou para
a luz e ficou deitado, mirando o peso de papel de vidro. A fonte de interesse não era o
fragmento de coral, mas o próprio interior do vidro. Tinha tanta profundidade, e mesmo
assim era quase tão transparente quanto o ar. Era como se a superfície do vidro fosse o arco
do céu, envolvendo o mundinho pequenino com sua atmosfera completa. Winston tinha a
sensação de que podia entrar ali dentro, junto com a cama de mogno e a mesa dobrável, o
relógio, a figura de metal, e o próprio peso de papel. O peso de papel era o cômodo em que
ele estava, e o coral era a vida de Julia e a dele, fixadas numa espécie de eternidade no
coração do cristal.5

Nesse trecho antológico, que pode ser considerado o clímax do livro,


Winston vive uma epifania de autoconsciência. Pela primeira vez, ele
se percebe como uma alma individual que possui um vínculo com a
eternidade. Dentro da lógica de um regime distópico, em que o único
indivíduo absoluto é o Partido-Estado, personificado no Grande
Irmão, não pode haver afronta maior. Winston Smith precisa ser
destruído.

Bons tempos aqueles em que a distopia era apenas um gênero


literário.

Durante a pandemia da covid-19, uma frase circulou nas teletelas de


nossa época — as redes sociais —: Make Orwell fiction again (em
português, “Faça Orwell voltar a ser ficção”). Algumas vezes, a frase
vinha acompanhada de uma caricatura do autor de 1984 com a
expressão de espanto ao ler as notícias do período 2020−2021.
Acredito, porém, que o escritor inglês não se surpreenderia com o que
aconteceu nos últimos anos.

Os abusos cometidos por governos e


grandes corporações na pandemia apenas
vieram a confirmar o caráter profético do
livro de Orwell.
Profetas sempre incomodam o poder. Em fevereiro de 2023, o
relatório da Prevent, uma empresa contratada pelo governo inglês para
auxiliar no combate ao terrorismo, listou 1984 como uma das obras
que poderiam radicalizar os leitores e transformá-los em potenciais
terroristas de extrema-direita. Na mesma lista negra, ao lado de
Orwell, estão autores como, Thomas Carlyle, Adam Smith, Edmund
Burke, J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, Joseph Conrad e Aldous Huxley.
Em outras palavras: segundo o relatório, o simples fato de ler a obra
desses escritores transforma o cidadão em suspeito de insurgência
contra a democracia e o império da lei — ou, para usar a terminologia
do Partido, em uma não-pessoa.

O relatório da Prevent me fez lembrar uma passagem de 1984 em


que Winston Smith conversa com Syme, um colega de trabalho no
Ministério da Verdade. Ardoroso entusiasta da novilíngua e do
controle da linguagem, Syme diz a Winston:
Em 2050 — provavelmente antes — ninguém mais vai realmente saber a velhilíngua. Toda
a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron — eles só
vão existir nas versões da novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, mas de
fato transformados em algo em contradição com o que eram antes.6

Na mesma época em que foi divulgado o relatório da Prevent, a


mídia britânica noticiou que as obras de dois escritores ingleses do
século XX — Roald Dahl e Ian Fleming — seriam publicadas em
versões revisadas, com a substituição de palavras e frases que
pudessem ofender leitores sensíveis. A deturpação da obra de autores
já falecidos é um exemplo dos processos de manipulação da
linguagem descritos por Orwell em 1984. Quem será a próxima
vítima? Orwell? Shakespeare? No romance de Orwell, o controle da
linguagem se faz por meio da vigilância permanente dos indivíduos e
pela criação da novilíngua. O grande perigo da novilíngua é o seu
caráter totalitário. Quando você adota a novilíngua, todas as outras
formas de linguagem se tornam proscritas. É o que acontece, por
exemplo, na chamada “linguagem neutra”, que determinados grupos
ideológicos tentam implantar atualmente. Quem não utiliza o pronome
correto é tratado como criminoso, como transgressor da lei.

Quem controla a linguagem, controla as


ideias — e quem controla as ideias, controla
as ações.
Como explicava o professor Olavo de Carvalho, nada chega à
inteligência sem passar pela imaginação simbólica. A literatura
superior é um condensado imaginário da experiência de uma
sociedade. Se a literatura é destruída, as pessoas passam a adotar a
linguagem da mídia e do sistema de poder. É esse precisamente o
objetivo da novilíngua.

Profeta não é apenas quem antecipa o futuro, mas também aquele


que expressa as verdades amargas do presente. Ainda durante a
Segunda Guerra, Orwell publicou A revolução dos bichos (Animal
Farm), obra interpretada com uma alegoria sobre a Revolução Russa
de 1917, em que os porcos representariam os líderes comunistas.
Ocorre que naquele período a Rússia era aliada da Inglaterra contra os
nazistas — e Orwell teve grande dificuldade em publicar sua fábula.
Cinco editoras se recusaram a publicar Animal Farm, levando Orwell
a escrever um antológico artigo sobre a liberdade de expressão, em
que afirma: “Um dos fenômenos peculiares do nosso tempo é do
liberal renegado. Para além da famosa afirmação marxista de que a
‘liberdade burguesa’ é uma ilusão, há agora a tendência generalizada a
se afirmar que só é possível defender a democracia por meios
totalitários”.7

Como temos visto acontecer diante dos nossos olhos, a defesa do


“Estado Democrático de Direito” se transforma em justificativa para
todo tipo de abuso — inclusive a censura e a prisão por crime de
pensamento:
Se há amor à democracia, diz-se, é necessário esmagar seus inimigos, não importa como.
Em outras palavras, defender a democracia envolve destruir a liberdade de pensamento. [...]
Essas pessoas não entendem que, ao incentivar métodos totalitários, chegará o dia em que
estes serão usados não a seu favor, mas contra você.8

Grande parte do enredo de 1984 se baseia em dramas históricos que


Orwell testemunhou. Em 1936, ele e a esposa se aventuraram na
Espanha para lutar ao lado das tropas republicanas contra os
franquistas. Conforme narra em seu livro Homenagem à Catalunha,
Orwell teve ali uma amarga decepção com os comunistas orientados
por Moscou, que aproveitaram a situação de guerra para perseguir,
torturar e assassinar seus adversários trotskistas e anarquistas. O
próprio Orwell escapou por pouco de ser executado pelos comunistas.
Em 1940, ele leu o romance Escuridão ao meio-dia, de Arthur
Koestler, que conta a história de Rubashov, um líder comunista caído
em desgraça. Preso pelos ex-companheiros de partido, Rubashov
confessa a autoria de uma série de falsos crimes hediondos. O livro de
Koestler foi inspirado pelos Processos de Moscou, julgamentos-farsa
em que Josef Stálin eliminou quase toda a velha guarda da Revolução
de 1917. Testemunha pessoal dos expurgos na União Soviética,
Koestler exerceu considerável influência sobre o trabalho de Orwell.

Em 1984, há personagens claramente inspirados nos líderes


comunistas russos caídos em desgraça. Um deles é Emmanuel
Goldstein, claramente uma referência a Lev Trotsky, o arquirrival de
Stálin. Goldstein é o principal alvo dos Dois Minutos de Ódio e da
Semana do Ódio, eventos públicos em que os cidadãos devem
manifestar histericamente toda sua repugnância contra os inimigos do
Partido e do Grande Irmão. Da mesma forma que o porco Bola de
Neve em A revolução dos bichos, Goldstein é a personificação
pública do mal; odiá-lo é um dever cívico.

As sessões de manipulação do ódio coletivo


nos remetem às atuais ondas de cancelamento
e à perseguição de não-pessoas durante a
pandemia.
O romance Nós, do escritor russo Ievguêni Zamiátin, exerceu também
uma influência importante sobre Orwell. Em 4 de janeiro de 1946,
Orwell publicou um artigo sobre o livro de Zamiátin para a revista
Tribune. Escrito por volta de 1923, Nós é, sem dúvida alguma, um
precursor de 1984 e Admirável mundo novo. O livro se passa no
século XXVI, em um país denominado Utopia, onde existe um Estado
Único, governado pelo Benfeitor, em que os cidadãos são
identificados por números e vivem em casas de vidro, sendo
permanentemente vigiados pela polícia política (os Guardiões).
Proibido na União Soviética, o livro foi considerado ideologicamente
indesejável e causou a desgraça do autor em seu país de origem;
Zamiátin chegou a ser preso e impedido de escrever. Em 1931,
desesperado por não poder mais viver como escritor, Zamiátin
escreveu uma carta ao ditador Stálin pedindo que lhe fosse concedida
autorização para deixar o país:
Prezado Yosif Vissarianovich,

O autor da presente carta, condenado ao castigo mais elevado, apela ao senhor com um
pedido de mudança de punição. Provavelmente, o senhor conhece meu nome. Para mim,
como escritor, ser privado de escrever é como uma sentença de morte. Ainda assim a
situação que se delineou é tal que não posso continuar meu trabalho, pois nenhuma
atividade criativa é possível em uma atmosfera de perseguição sistemática, que aumenta de
intensidade ano após ano.9

Surpreendentemente, Stálin concedeu a Zamiátin a autorização para


viver no exterior. O escritor imigrou para a França, onde morreu em
1937. Boris Pilniak, Isaac Babel, Ossip Mandelstam e muitos outros
da geração de Zamiátin não tiveram a mesma sorte e foram
vaporizados em campos de concentração.

No entanto, como já foi dito, a ideologia oficial do regime na


Oceania não é o comunismo, mas o socialismo inglês (em novilíngua,
“Socing”). Podemos ver nisso uma referência velada à Sociedade
Fabiana, criada no final do século XIX por um grupo de intelectuais
ingleses — entre eles Sidney e Beatriz Webb, Bernard Shaw e
Bertrand Russell — com vistas à implantação gradual do regime
socialista em todo o mundo. Nesse sentido, é possível fazer uma
relação entre as três superpotências beligerantes de 1984 e as três
forças que disputam hoje o poder mundial: o globalismo ocidental, o
comunismo russo-chinês e o bloco islâmico. Embora a Oceania, a
Eurásia e a Lestásia sejam forças globais circunscritas
geograficamente — o que as diferencia das atuais forças globais, cuja
influência dominadora desconhece fronteiras —, podemos dizer que,
mais uma vez, Orwell foi profético.

O que me entristece é saber que Orwell foi um profeta sem


esperança. O melancólico destino de seu protagonista — que sucumbe
aos métodos do torturador O’Brien — soa como uma condenação para
todos que acreditam na liberdade e na redenção do homem. O’Brien
diz a Winston, na sala de torturas do Ministério do Amor:

“Se você quer uma imagem do futuro,


imagine uma bota esmagando um rosto
humano para sempre”.10
Esse é o mundo de 1984: um Inferno dos tempos modernos. Um
mundo que não enxerga nada além da própria matéria, além da
necessidade de sobrevivência imediata. Um mundo que não tem
vínculos com o seu passado, com as suas origens. Um mundo que não
se preocupa com os mortos nem com aqueles que hão de vir.

Lembremos que Orwell escreveu 1984 nos seus anos finais de vida,
devastado pela morte da esposa e pela tuberculose, em meio ao clima
da Guerra Fria que se iniciava. Escritor digno de figurar no panteão da
literatura inglesa, Orwell faz Winston Smith escrever o seu manifesto
em um livro com as páginas em branco. Talvez essa tenha sido a
tragédia de Winston. Ao contrário de Orwell, Winston não soube
encontrar dentro de sua própria alma as vozes da cultura e do espírito,
que são a base de toda ação humana. Ainda assim, o funcionário do
Ministério da Verdade, nosso Virgílio no Inferno da distopia, soube
deixar-nos pelo menos uma mensagem alentadora:
Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens
sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós — a um tempo em que a verdade
exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: da era da uniformidade, da era da
solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento — saudações!11
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO:
IMAGINE NÃO HAVER PARAÍSO
Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um Poder Executivo
todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser
coagidos porque amariam sua servidão.

— Aldous Huxley

E mWorld),
1932, quando publicou Admirável mundo novo (Brave New
Aldous Huxley já era reconhecido como o autor de
Contra-

ponto (Point Counter Point), narrativa estruturada conforme um


modelo musical, em que o romancista procurava fazer
simultaneamente uma sátira dos meios intelectuais ingleses e uma
aplicação das teorias psicanalíticas formuladas por Sigmund Freud.
Pertencente a uma tradicional família britânica, Aldous Huxley era
neto do biólogo Thomas Henry Huxley (conhecido como o “buldogue
de Darwin”, por sua feroz defesa da teoria evolucionista) e irmão do
fisiologista Andrew Fielding Huxley e do biólogo Julian Huxley.

Neil Gaiman, celebrado autor contemporâneo de graphic novels,


afirmou certa vez que existem três frases que tornam possível o
gênero da ficção científica: “E se...?”, “Se ao menos...” e “E se isso
continuar?”. Para conceber a sua distopia, Huxley respondeu à
terceira pergunta. Profundo conhecedor dos avanços científicos e dos
debates dos círculos intelectuais de sua época, Huxley imaginou um
mundo em que essas teorias fossem aplicadas em larga escala e
determinassem os rumos da civilização.

O grande sucesso de Admirável mundo novo ocultou o fato de que o


livro também era uma sátira — uma espécie de paródia da ficção
científica Men Like Gods, publicada em 1924 por um contemporâneo
de Huxley, o romancista e ensaísta H. G. Wells. O livro de Wells conta
a história do planeta Utopia, para o qual é levado um jornalista liberal
que se maravilha com a existência de uma sociedade perfeitamente
organizada. Sob alguns aspectos, a viagem do protagonista de Wells
faz lembrar o conto fantástico Sonho de um homem ridículo, do genial
escritor russo Fiódor Dostoiévski. Ao contrário de Dostoiévski,
porém, o autor de Men Like Gods acreditava na possibilidade de
edificação de uma sociedade ideal. Wells era um dos membros mais
proeminentes da Sociedade Fabiana, dedicada à implantação de um
regime socialista em escala global. No mesmo ano de lançamento de
Admirável mundo novo, Wells publicou um ensaio intitulado A
conspiração aberta, em que defende a implantação de uma nova
ordem política e econômica mundial, nos moldes daquilo que
entendemos hoje por globalismo.

Onde Wells viu a utopia, Huxley previu a


distopia.
A ação de Admirável mundo novo se passa no ano de 632 d. F., ou
seja, 632 anos depois do nascimento do industrial americano Henry
Ford. Como Ford nasceu em 1863, a história acontece no século XXV,
por volta do ano de 2495, segundo a contagem cristã. O planeta agora
é governado por uma elite de dez administradores mundiais. O lema
da sociedade global, parodiando os ideais da Revolução Francesa, é
Comunidade, Identidade e Estabilidade.

Quase 50 anos depois de Men Like Gods e 40 anos depois de


Admirável mundo novo, o compositor John Lennon lançou a canção
Imagine, que faz uma descrição do mundo imaginado na utopia de
Wells e na distopia de Huxley:
Imagine não haver Paraíso É fácil se você tentar

Nenhum Inferno abaixo de nós Acima de nós, só o céu Imagine todas as pessoas Vivendo o
presente

Imagine que não houvesse nenhum país Não é difícil imaginar

Nenhum motivo para matar ou morrer E nem religião, também

Imagine todas as pessoas Vivendo a vida em paz

Você pode dizer que eu sou um sonhador Mas eu não sou o único
Espero que um dia você se junte a nós E o mundo será como um só

Tal como no mundo utópico imaginado por Lennon, na sociedade


mundial descrita por Huxley não há religião, não há pátria, não há
motivos para matar ou morrer. Entre 141 e 150 d. F. — ou seja, no
início do século XXI — houve um terrível conflito global, a Guerra
dos Nove Anos. A partir daí, estabeleceram-se as bases para uma nova
ordem mundial em que todas as pessoas podem “viver a vida em paz”.

Neste mundo ideal, não existem mais famílias. A chamada


“reprodução vivípara” foi abolida. As pessoas nascem por meio de
clonagem em laboratórios, onde se aplica o método Bokanovsky para
a reprodução e desenvolvimento de embriões. Graças a uma hábil
manipulação do processo reprodutivo, o método Bokanovsky permite
que os seres gerados tenham exatamente as características desejadas
pelos cientistas, formando uma hierarquia de cinco castas: os alfas, os
betas, os gamas, os deltas e os ípsolons. Para imaginar essa produção
em série de modelos humanos, Huxley inspirou-se nas teorias
eugenistas que vigoravam em seu tempo.

Assim que deixam a incubadora, as crianças são entregues à


responsabilidade do Estado, passando por uma educação de moldes
pavlovianos.12 Enquanto as castas mais baixas são preparadas para
exercer trabalhos braçais e não especializados, os alfas e betas são
estimulados desde a primeira infância à prática de brincadeiras
eróticas. A sexualização precoce é um dos fundamentos da educação
no Admirável mundo novo: “Num pequeno espaço gramado entre as
altas moitas de urzes mediterrâneas, duas crianças, um garoto de cerca
de sete anos, e uma menina que poderia ter um ano a mais,
dedicavam-se muito seriamente, com toda a concentração de sábios
absortos, a um jogo sexual rudimentar”.13

Em outra passagem, um grupo de jovens alfas, em visita a uma


escola infantil, cai nas gargalhadas ao saber que em certa época,
“antes do Nosso Ford”, os brinquedos eróticos eram considerados
anormais e imorais.
Para os adultos, a vida no mundo novo é um eterno prazer. Não
apenas as relações sexuais são totalmente livres, como a
promiscuidade sexual é estimulada. Casamento e família são noções
desconhecidas. Se algum cidadão ou cidadã começa a desenvolver
afeição demasiada por um parceiro sexual, passa a ser malvisto pela
comunidade. Décadas antes da invenção da pílula anticoncepcional,
Huxley faz suas personagens usarem um cinto malthusiano, que evita
a gravidez. Se o cinto falhar, existem clínicas de aborto
permanentemente disponíveis. O aborto não é apenas legalizado, mas
obrigatório: a simples ideia de uma mulher grávida é inconcebível e
repugnante.

Não há depressão nem tristeza: o Estado fornece a todos os cidadãos


doses diárias de Soma, uma droga social “com todas as vantagens do
cristianismo e do álcool, sem nenhuma de suas desvantagens”.14 Se
você está triste, tome um comprimido de Soma e tudo se resolverá.
Não existe solidão, nem tédio, nem privacidade. Os slogans oficiais,
que todos os cidadãos ouvem desde a infância, são insistentemente
repetidos:

“Todos são felizes agora.”15 “Cada um pertence a todos.”16

“Você não terá nada — e será feliz.”

Desculpem: esse último slogan não está em Admirável mundo novo.

Na sociedade descrita por Huxley, as pessoas têm nomes que fazem


referência a figuras históricas.

Vejamos alguns exemplos.

Bernard Marx: de Bernard Shaw (1856−1950), dramaturgo e


ensaísta irlandês, e Karl Marx (1818−1883), filósofo e economista
alemão.

Lenina Crowne: de Vladimir Lênin (1870−1924), revolucionário


russo, e John Crowne, dramaturgo inglês (1641−1712).
Mustafá Mond: de Mustafá Kemal Atatur (1881−1938), presidente
turco, e Alfred Mond (1868−1930), político inglês.

Henry Foster: de Henry Ford (1863−1947), industrial americano, e


Henry Foster (1796−1831), explorador e militar inglês.

Benito Hoover: de Benito Mussolini (1883−1945), líder fascista


italiano, e Herbert Hoover (1874−1964), presidente americano.

Darwin Bonaparte: de Charles Darwin (1809−1882), naturalista


inglês, e Napoleão Bonaparte (1769−1821), imperador francês.

Como se pode notar, Huxley batizou seus personagens com nomes


de políticos, cientistas, revolucionários e intelectuais cuja influência
moldou o mundo moderno. Não por acaso, nenhum desses nomes
remete à tradição judaico-cristã: a sociedade imaginada por Huxley
em sua distopia é totalmente materialista. Estamos diante da
terrestrialização absoluta da existência humana, sonhada por Antonio
Gramsci.

Durante a Guerra dos Nove Anos, todas as cruzes foram cortadas, o


que simboliza o abandono de qualquer vínculo com a transcendência.

Deus é um elemento estranho no


admirável mundo novo.
As pessoas não fazem o sinal da Cruz, mas o sinal do T. Não
exclamam “Oh, meu Deus!” ou “Pelo amor de Deus!”, mas “Oh, meu
Ford!” e “Pelo amor de Ford!”. O mundo é uma grande linha de
montagem, onde todos são escravos porque amam a própria
escravidão. De que vale a liberdade se tudo pode ser resolvido com
um comprimido de Soma?

“Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade


social sem estabilidade individual”.17 A frase é pronunciada por
Mustafá Mond, nada menos do que um dos dez administradores do
Estado Mundial, que ficamos conhecendo no terceiro capítulo de
Admirável mundo novo. Em tom professoral, o Administrador —
tratado por Vossa Fordeza — fala a um grupo de jovens estudantes que
visita o Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Central:
“— Lembram-se todos — disse o Administrador, com sua voz forte e
profunda — lembram-se todos, suponho, daquelas belas e inspiradas
palavras do Nosso Ford: ‘A História é uma farsa’. A História —
repetiu pausadamente — é uma farsa”.18

Entre as farsas que o Estado Mundial eliminou depois da Guerra dos


Nove Anos e do grande colapso econômico que a seguiu, estão todos
os antigos tesouros da alta cultura. Diante do grupo de estudantes
boquiabertos, com um simples gesto de mão, Mustafá Mond rejeita as
heranças civilizacionais, reduzindo-as a pó:
Agitou a mão, e dir-se-ia que, com um invisível espanador, sacudia um pouco de poeira, e a
poeira era Harappa, era Ur na Caldeia; algumas teias de aranha, que eram Tebas e Babilônia,
Cnossos e Micenas. Uma espanada, depois outra — e onde estava Ulisses, onde estava Jó,
onde estavam Júpiter, Gautama e Jesus? Uma espanada — e essas manchas de lama antiga
que se chamavam Atenas e Roma, Jerusalém e a China clássica — todas haviam
desaparecido. Uma espanada e o lugar onde era a Itália ficou vazio. Uma espanada —
desaparecidas as catedrais; uma espanada, mais uma — aniquilados o Rei Lear e os
Pensamentos de Pascal. Uma espanada, desaparecida a Paixão; outra — morto o Réquiem;
mais outra, acabada a Sinfonia; mais outra...19

A sociedade distópica de Huxley, à semelhança dos mundos de 1984


e de Fahrenheit 451, padece de mnemofobia — uma aversão absoluta
pela memória. Como resultado da amnésia fabricada por métodos de
engenharia social, a literatura superior é substituída pelo cinema
sensível (na verdade, uma exibição frenética de sons e imagens), a
música clássica cede lugar ao ritmo eletrônico (as catedrais foram
transformadas em imensas boates), a fruição intelectual dá lugar ao
entretenimento físico (nas horas vagas, quando não estão fazendo
sexo ou participando de festas orgiásticas, os cidadãos se dedicam a
esportes radicais como o golfe-obstáculo e o pelota-escalátor). Todos
são felizes agora.

A família, considerada um perigoso elemento de instabilidade na


ordem social, foi completamente eliminada pelo Estado. Não há mais
pais ou mães, nem filhos ou irmãos. A mera pronúncia de uma palavra
como “mamãe” é considerada um ato de obscenidade. Para o
Administrador, a família antiga não passava de uma fonte de
perversões e loucuras, “desde o sadismo até a castidade”. Mustafá
Mond descreve, com sarcasmo, uma cena do cotidiano familiar na
velha sociedade:
O lar era sórdido psíquica e fisicamente. Do ponto de vista psíquico, era uma toca de
coelhos, um monturo, aquecido pelos atritos da vida que nele se comprimia. Que
intimidades sufocantes, que relacionamento perigoso, insensato, obsceno, entre os membros
do grupo familiar! Insanamente, a mãe cuidada de seus filhos (seus filhos)... cuidava deles
como uma gata que falasse, uma gata que soubesse dizer e repetir uma e muitas vezes: “Meu
filhinho, meu filhinho!...”. E ainda: “Meu filhinho, oh, oh, ao meu seio, as mãozinhas, a
fome, este prazer indescritivelmente doloroso! Até que, finalmente, meu filhinho dorme,
meu filhinho dorme com uma bolha de leite branco no canto da boca. Meu filhinho
dorme...”.20

E os jovens estremecem de horror ao escutar as palavras de Vossa


Fordeza.

Mas (há sempre um mas), mesmo essa ditadura supostamente


perfeita — em que todos abrem mão da liberdade em troca do prazer,
da segurança e da ausência de problemas — não está livre de
elementos de instabilidade. Um alfa chamado Bernard Marx,
funcionário do Departamento de Psicologia, começa a apresentar um
comportamento estranho. Tem poucas parceiras sexuais, não gosta de
participar das orgias coletivas, recusa-se a tomar o Soma e desenvolve
um interesse romântico por uma colega de trabalho, Lenina Crowne.
O porte físico franzino de Bernard gera comentários entre os colegas
de trabalho; alguns desconfiam que ele foi resultado de uma falha de
oxigenação no sistema de clonagem.

Insatisfeito no trabalho, Bernard resolve tirar férias e fazer uma visita


a um lugar extremamente exótico: Malpaís, a reserva dos selvagens.
Trata-se de uma terra distante em que os remanescentes da antiga
sociedade vivem em um estado tribal, quase animalesco. Ali se
preservam resquícios das antigas religiões, culturas e hábitos sociais.
Em Malpaís, Bernard conhece John, um estranho jovem que utiliza
uma linguagem antiquada e enigmática. Filho natural de Linda, uma
beta que há muitos anos se perdeu na reserva dos selvagens, John
aprendeu a ler depois de encontrar, pouco depois de seu aniversário de
12 anos, um velho livro roído pelos ratos: Obras completas de
William Shakespeare.

Ao final de suas férias, Bernard toma uma atitude ousada: resolve


convidar John para conhecer Londres. John fica encantado com o
convite, e repete as palavras de Miranda em A tempestade, de
Shakespeare:
Ó maravilha!

Quantas criaturas grandiosas vejo aqui!

Que bela, a humanidade! Ó admirável mundo novo!

(Ato V, I)

Em suas aulas sobre a última peça de Shakespeare, o professor José


Monir Nasser observava que a tempestade é sempre um símbolo de
uma mudança súbita na ordem dos acontecimentos. E é precisamente
isso que acontece com a chegada de John Selvagem a Londres.

John Selvagem é o personagem central


de Admirável mundo novo e nos fornece a
chave interpretativa da distopia de Aldous
Huxley.
Rapidamente após sua chegada a Londres, John é transformado
numa espécie de celebridade. Todos querem conhecer o homem que
fala uma língua estranha, por vezes incompreensível, mas ao mesmo
tempo fascinante. Com os versos de Shakespeare, John traz até o
mundo novo a herança da alta cultura e os valores da civilização
antiga.

Lenina Crowne se apaixona pelo Selvagem e tenta seduzi-lo. No


entanto, ele também está apaixonado e se recusa a encarar Lenina
como um simples objeto sexual. Lenina abraça John, une os seus
lábios aos do moço de maneira tão suave que acaba pensando em um
filme de ação que acabara de ver no cinema sensível — Três semanas
em um helicóptero. De sua parte, John recorda as palavras do jovem
Ferdinando em A tempestade: “O antro mais escuro, o lugar mais
propício, a mais forte sugestão do pior demônio, nada poderá jamais
transformar minha honra em desejos impuros” (Ato IV, I).

O ápice da narrativa é o encontro entre John Selvagem e o Mustafá


Mond. Em seu longo diálogo com o jovem, o Administrador mostra a
ele um cofre onde guarda as obras antigas que não eram acessíveis aos
cidadãos comuns: não apenas Shakespeare, mas também a Bíblia
Sagrada, A imitação de Cristo e As variedades da experiência
religiosa. Mustafá se vira para o jovem e diz: “Deus não é compatível
com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. Nossa
civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade. Eis por
que é preciso que eu guarde esses livros no cofre. Eles são
indecentes”.21

Neste momento, John Selvagem percebe que aquele mundo tão


admirável era na verdade o Inferno.

Em 1946, quatorze anos depois do lançamento de Admirável mundo


novo, o autor escreveu um prefácio para sua obra no qual manifestou
arrependimento por ter dado um destino trágico a John Selvagem.
Huxley afirmou:
O Selvagem é posto diante de duas alternativas apenas: uma vida de insanidade na Utopia
ou a vida de um primitivo numa aldeia de índios. [...] Se eu reescrevesse o livro agora,
ofereceria uma terceira alternativa ao Selvagem. Entre as duas pontas de seu dilema, a
utópica e a primitiva, estaria a possibilidade de alcançar a sanidade de espírito.22

Poderíamos perguntar hoje: “Qual seria o caminho da sanidade?”.


Huxley tentou dar uma resposta ao defender a criação de uma
sociedade descentralizada, onde os cidadãos fossem educados para a
liberdade. Aos apóstolos materialistas da ciência e da educação
científica, Huxley foi sarcástico:
Construamos um Panteão para os professores. Deveria localizar-se entre as ruínas destruídas
da Europa ou do Japão, e acima da entrada eu inscreveria, em letras de seis ou sete pés de
altura, estas simples palavras: CONSAGRADO À MEMÓRIA DOS EDUCADORES DO
MUNDO. SI MONUMENTUM REQUIRIS CIRCUMSPICE.23
Independentemente da aplicabilidade das teorias de Huxley, o fato é
que a sua distopia literária se tornou realidade muito mais cedo do que
ele imaginava. Tanto que, em 1958, Huxley publicou uma coletânea
de ensaios intitulada Retorno ao admirável mundo novo, na qual
afirma:
A padronização genética dos indivíduos ainda é impossível; mas o Grande Governo e o
Grande Negócio já possuem, ou logo irão possuir, todas as técnicas de manipulação da
mente descritas em Admirável mundo novo, junto com outras que não tive muita
imaginação para sonhar.24

Como podemos fugir a esse destino? Creio que a resposta esteja na


restauração da alta cultura e do vínculo da humanidade com Deus. É
hora de ouvir o apelo de Próspero aos Selvagens de todos os tempos,
no epílogo da última peça de Shakespeare.
E o meu fim é o desespero Se não vier a salvação

No socorro da oração Cujo poderio invade

As muralhas da piedade E liberta os condenados. Se quereis ser perdoados,

De vossos próprios delitos, Perdoai este contrito.

Por indulgência e bondade, Dai-me agora a liberdade.25

Acho que você já entendeu, mas não custa dizer: nós somos os
Selvagens.
FAHRENHEIT 451: O DA VIDA
BOMBEIRO, O FOGO E A ÁRVORE
O livro se virou e lutou, como se fosse um animalzinho branco pego pelo fogo. Parecia muito querer viver, se
contorceu e se acendeu e um sopro de vapor gasoso emanou dele. Folha a folha, foi queimando, como se mãos de
fogo virassem cada página, explorando e queimando com o mesmo fogo. [...] O livro agora era uma tocha cada vez
menor. Só restava Shakespeare.

— Trecho de um livro inacabado de Ray Bradbury

M inha história com Fahrenheit 451 começou no longínquo ano de


1985. Mauro Rico, o diretor de nosso grupo amador de teatro,
disse-me antes do ensaio: — Cara, eu vi um filme incrível nessa
madrugada! O tal filme contava a história de uma sociedade do futuro
em que os livros eram proibidos e os bombeiros, em vez de apagar
incêndios, ateavam fogo nas bibliotecas. Com grande entusiasmo e
riqueza de detalhes, Mauro descreveu as situações e os personagens
do filme: o bombeiro, sua esposa, o capitão dos bombeiros, uma
garota que o bombeiro encontrava na rua, um velho professor que
amava os livros e uma incrível tribo de homens que decoravam obras
literárias para salvá-las da destruição.

Como já confidenciei, minha recordação mais antiga é a imagem de


meu pai lendo um livro na sala de nosso apartamento. Livros sempre
foram algo essencial para mim; por isso aquela história, que ouvi aos
14 anos, tocou profundamente meu coração e permaneceu dentro de
minha alma; eu estava certo de que um dia iria encontrá-la. Naquele
tempo não era tão fácil encontrar um livro ou um filme. Tudo que eu
sabia sobre Fahrenheit 451 era o nome do diretor do filme: um
francês chamado François Truffaut. Sabia que Ray Bradbury era um
autor de ficção científica, mas nem imaginava que o livro que deu
origem ao filme fosse dele. Só descobri que existia um livro chamado
Fahrenheit 451 em 1986, durante a visita da minha turma de colegial
a uma gráfica em São Paulo. Lembro-me como se fosse hoje daquele
volume, que não pude sequer tocar, porque estava preso em uma
redoma de vidro, ao lado de outros livros impressos pela gráfica.
Quando pensei em perguntar se aquele livro estava à venda, já era
hora de partir.
Vim a ler Fahrenheit 451 em 1989, quando
estava no primeiro ano de faculdade e
encontrei um exemplar na Biblioteca
Municipal de Londrina.
À época, eu ainda não sabia, mas Bradbury escreveu esse livro numa
biblioteca. Em 1950, ele se mudou para Venice, Califórnia, com a
mulher e as duas filhas pequenas. Seu escritório de trabalho era a
garagem da casa, onde ele instalou sua máquina de escrever
Remington sobre uma velha mesa. Mas havia um problema sério:
sempre que Ray começava a escrever, suas filhas iam até a janela dos
fundos e cantavam e batiam no vidro, chamando-o para brincar. Como
ele não tinha dinheiro para alugar um escritório, a solução encontrada
foi usar a sala de datilografia no porão da biblioteca da Universidade
da Califórnia. As máquinas de escrever ali eram alugadas por dez
centavos a cada meia hora. Em um artigo publicado em 1986, Ray
descreve o seu ritmo de trabalho:
Era só enfiar a moeda e o relógio começava a tiquetaquear loucamente, e eu datilografava
de forma insana até terminar, antes que a meia hora expirasse. Portanto, eu tinha dois
estímulos para ser o louco da datilografia: as crianças que haviam ficado em casa e o
temporizador da máquina de escrever. Ali, tempo era realmente dinheiro. Terminei o
primeiro rascunho em quase nove dias. Com 25 mil palavras, era a metade do romance que
ele se tornaria.26

Entre investir uma moedinha e outra, Bradbury circulava pelos


corredores da biblioteca, perdido de amor entre os livros, vasculhando
as estantes, lendo e relendo trechos dos grandes autores, respirando
aquele delicioso ar de papel velho e libertação que só as bibliotecas
têm. Não poderia haver um lugar melhor para escrever um livro sobre
a importância dos livros!

O título inicial do romance de Bradbury era O bombeiro. Guy


Montag trabalha há muito tempo no corpo de bombeiros de sua cidade
e se considera um cidadão normal, cumpridor de seus deveres. Ocorre
que na estranha sociedade do futuro imaginada por Bradbury os
bombeiros não apagam incêndios — eles os provocam. Em vez de
mangueiras de água, usam lança-chamas. Há muito tempo os
incêndios deixaram de ser um problema, desde que as casas passaram
a ser revestidas com um material anti-inflamável. Agora, os
bombeiros devem combater os livros, esses terríveis objetos que
provocam a infelicidade pessoal e a instabilidade social.

A figura do bombeiro-incendiário é um
poderoso símbolo da inversão ontológica
da realidade que caracteriza as sociedades
distópicas.
O bombeiro que provoca incêndios é o irmão do jornalista que
desinforma, do médico que se nega a curar, do juiz que desrespeita a
lei, do artista que abomina a beleza, do intelectual que se orgulha da
ignorância, do professor que não ensina, do liberal que defende a
censura, do tolerante que baba de ódio.

Três acontecimentos acabam por abrir os olhos de Guy Montag para


a realidade. O primeiro despertar é o seu encontro com Clarisse, uma
vizinha adolescente de 16 anos que aborda Montag no caminho do
trabalho para casa. Pela primeira vez em muitos anos, ele consegue
estabelecer um diálogo sincero e autêntico com alguém. A garota
revela um interesse genuíno pelos pensamentos e ideias de Montag;
não há entre eles uma relação utilitária ou mecânica. De repente,
Clarisse lhe faz uma pergunta perturbadora: “É verdade que
antigamente os bombeiros apagavam incêndios em vez de começá-
los?”.27

O segundo despertar ocorre quando Montag chega em casa e


descobre que sua esposa, Mildred, teve uma overdose ao ingerir 30
comprimidos para dormir. Desesperado, o bombeiro liga para o
serviço de emergência. Minutos depois, os socorristas instalam duas
máquinas em Mildred uma delas faz a limpeza estomacal; a outra
troca todo o sangue da paciente. “Eu vi a pior serpente do mundo”,28
dirá mais tarde Montag. Na manhã seguinte, quando Mildred acorda,
não se lembra de nada. Não imagina que tentou o suicídio.

O terceiro despertar de Montag acontece durante uma missão. Os


bombeiros são chamados a atender uma denúncia de posse de livros
em um determinado local da cidade. Quando Montag e seu chefe, o
capitão Beatty, chegam ao endereço informado, constatam que uma
mulher mantém uma biblioteca dentro de casa. A acusada, porém,
recusa-se a abandonar seus livros — e se deixa ser queimada junto
com eles. Aquele martírio causa uma profunda impressão em Montag.
Em casa, ele confessará à esposa:
Ontem à noite eu pensei em todo o querosene que usei nos últimos dez anos. E pensei nos
livros. E pela primeira vez percebi que havia um homem por trás de cada um dos livros. Um
homem teve de concebê-los. Um homem teve de gastar muito tempo para colocá-los no
papel. E isso nunca havia me passado pela cabeça. Às vezes pode levar uma vida inteira
para um homem colocar seus pensamentos no papel, depois de observar o mundo e a vida, e
aí eu chego e, em dois minutos, bum! Está tudo terminado.29

O professor José Monir Nasser costumava dizer que existem


basicamente quatro tipos de mentira: a mentira social, a mentira
instrumental, a mentira patológica e a mentira existencial. Dos quatro
tipos, a pior sem dúvida é a última. Trata-se da mentira que passa a ser
a razão da existência do indivíduo, a mentira que ele conta para si
mesmo, o autoengano perpétuo. Até ser despertado para a realidade
— ou tomar a red pill, como se diz por aí —, Montag vivia
mergulhado na mentira existencial.

O seu despertar não é fácil. Primeiro, ele descobre que sua vizinha
Clarisse, o ser angelical que havia tocado seu coração, desapareceu
repentinamente — provavelmente havia sido executada pelo governo.
Depois, ao revelar suas inquietações para a esposa, Montag confirma
que ela está vivendo em uma realidade paralela, da qual não pretende
escapar. A vida de Mildred resume-se a assistir às intermináveis
novelas que passam em imensas telas instaladas nas paredes e a
interagir com os personagens das novelas como se fossem pessoas da
família.
Mas a pior provação de Montag será enfrentar o capitão Beatty, o
chefe dos bombeiros. Montag decide desafiar a lei e guardar livros em
casa. Pior que isso, começa a lê-los. Certa noite, diante de Mildred e
suas aterrorizadas visitantes, Montag recita os versos de A Praia de
Dover, do poeta metafísico inglês Matthew Arnold (1822−1888):
Ah, o amor, sejamos sinceros

Um com o outro! Pois este mundo, que parece Estar para nós como um país de sonhos

Tão belo, tão diverso, tão recente, Não tem luz, nem amor, nem alegria,

Nem certeza, nem paz, nem pensa a dor; E aqui ficamos como em sombria planície Entre
loucos alarmes de luta e fuga, Onde exércitos cegos chocam-se à noite.30

Denunciado pela própria mulher, Guy Montag torna-se um fugitivo.


Para marcar sua ruptura completa com o sistema, ele usa o lança-
chamas contra o capitão Beatty no momento em que está prestes a ser
preso. Com a ajuda de Faber — um velho professor que ainda se
recorda dos tempos em que os livros eram permitidos —, Montag
foge da cidade, sendo perseguido por um terrível cão-robô, o Sabujo,
utilizado pela polícia para farejar livros e inimigos do povo. O Sabujo
claramente é uma representação da tecnologia usada contra o homem,
estando no mesmo caso das armas nucleares, uma questão que
preocupava bastante Ray Bradbury naquele porão da biblioteca
universitária.

Montag foge da cidade levando as roupas do velho professor, cujo


cheiro o Sabujo será incapaz de reconhecer.

Em outras palavras: a tecnologia não pode


vencer a alta cultura.
O ex-bombeiro mergulha então em um rio e se deixa ser levado pela
corrente das águas. Enquanto o protagonista escapa pelas águas, a
cidade é destruída com armas nucleares. Ao descrever a fuga de
Montag, o autor parece estar narrando uma cerimônia de batismo:
Tocou a água, só para ter a certeza de que era real. Entrou na água e despiu-se totalmente,
no escuro, lavando o tronco, os braços, as pernas e as cabeças com o licor puro; bebeu e
inalou um pouco pelo nariz. Depois, vestiu as roupas velhas e os sapatos de Faber. Atirou
suas próprias roupas no rio e viu-as sendo levadas pela corrente. Em seguida, segurando a
valise, avançou para dentro do rio até não encontrar mais pé, e foi tragado pela escuridão.31

De que maneira Montag emergirá da escuridão? Ele segue o caminho


que lhe foi indicado por Faber: uma antiga linha de trem abandonada.
Até que finalmente ele enxerga um grupo de homens reunidos em
torno de uma fogueira. Quase quarenta anos depois, eu me lembro da
emoção com que Mauro Rico descreveu esses homens encontrados
por Montag no interior do país. Desde aquele dia, eu queria conhecer
os homens-livro, esses seres que memorizam as grandes obras da
literatura, preservando as sementes da civilização para que um dia elas
possam germinar e florescer outra vez.

Na tribo dos homens-livro, o fogo deixou de ser um elemento de


destruição: agora, ele aquece e ilumina. E também purifica, tal como
as chamas do Purgatório. O senhor Granger, que parece ser um dos
líderes dessa maravilhosa tribo, pergunta ao seu novo amigo:
Montag, algum dia gostaria de ler A república de Platão?

Claro!

Eu sou A república de Platão. Gostaria de ler Marco Aurélio? O senhor Simmons é Marco
Aurélio.

Como vai? — disse o sr. Simmons.

Olá — disse Montag.

Quero que conheça Jonathan Swift, autor daquele pernicioso livro político, As viagens de
Gulliver. E esse sujeito aqui é Charles Darwin, e este aqui é Schopenhauer, este outro é
Einstein, e este aqui ao meu lado é o senhor Albert Schweitzer, um filósofo realmente gentil.
Estamos todos aqui, Montag. Aristófanes, Mahatma Gandhi, Gautama Buda, Confúcio,
Thomas Love Peacock, Thomas Jefferson e o senhor Lincoln, se você quiser. Somos
também Mateus, Marcos, Lucas e João.

Todos riram, tranquilos.32

Depois do sucesso mundial de Fahrenheit 451 — cujo título é uma


referência à temperatura em que o papel queima, correspondente a
233 °C —, Ray Bradbury por várias vezes afirmou que a principal
fonte de inspiração para sua história foi a leitura do romance
Escuridão ao meio-dia, de Arthur Koestler, publicado em 1940 (e que
no Brasil foi traduzido com o título de O zero e o infinito). Bradbury
ficou bastante impressionado com a descrição do regime comunista
feita por Koestler. Queimar livros não foi uma exclusividade do
nefasto regime nacional-socialista alemão dos anos 30. Além de
proibir a edição e circulação dos livros, o regime comunista
exterminou ou condenou ao silêncio toda uma geração de escritores.
As escritoras russas Anna Akhmátova e Nadezhda Mandelstam foram
exemplos de mulheres-livro da vida real: ao longo dos anos 30 e 40,
elas memorizaram centenas de poemas para que os textos não fossem
perdidos durante alguma batida da polícia secreta soviética.

Os livros, na obra de Bradbury, simbolizam a inteligência humana, o


espírito que atravessa os tempos e fundamenta a civilização. O
professor Olavo de Carvalho explicava que

uma civilização só pode se manter por


meio de três elementos: língua, alta cultura
e religião.
O livro é um símbolo perfeito dessa tríade. Tanto no português
quanto no inglês, a palavra livro está relacionada com outro símbolo
poderoso: a árvore. Livro vem do latim liber, a membrana que os
romanos extraíam para fabricar papel. E a palavra book está
relacionada ao termo germânico bok, que significa faia, uma árvore
usada na fabricação de papel.

Por isso, não é fruto do acaso a escolha da obra que Guy Montag faz
para se tornar ele próprio um homem-livro: “E do outro lado do rio,
está a árvore da vida que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês
em mês, e suas folhas servem para curar as nações”.33

Montag será o Livro do Apocalipse, o Livro da Revelação. E a


árvore da vida, que ele menciona ao fazer sua escolha, é exatamente
aquela que foi plantada no centro do Jardim, ao lado da Árvore do
Conhecimento do Bem e do Mal.

O bombeiro escolheu a vida eterna — e deve ser por isso que a sua
história tocou tanto o meu coração, quando a ouvi pela primeira vez,
há 40 anos.

Obrigado, Ray, por ter colocado aquelas moedinhas na máquina de


escrever.
MOSCOU 1979: O MARTÍRIO DE
ULYAN
— Mas quem vê valor positivo no sofrimento?

— perguntou ela.

— Só o Cristianismo. Ela olhou para ele com os olhos arregalados.

(Moscou 1979, p. 144)

T erminei a leitura de Moscou 1979 ao fim do primeiro mês do novo


governo socialista de nosso país. Mal acabo de escrever esta frase
e já me incomoda o uso do pronome possessivo: nosso. Os coletivistas
que tomaram o poder no Brasil, assim como as autoridades soviéticas
no livro de Erik e Christiane von Kuehnelt-Leddihn, não toleram a
existência de quem não reconhece o Estado como o centro de todas as
coisas. Eu e você não fazemos parte desse “nós”, e é assim sempre
que eles estão no topo. O mesmo ocorre em todas as grandes distopias
de nosso tempo, sejam elas literárias ou reais: 1984 e Sussurros, a
Rússia de Lênin-Stálin; Admirável mundo novo, a China de Mao-
Deng-Xi; Fahrenheit 451, a Alemanha da Stasi; Escuridão ao meio-
dia, o Camboja de Pol Pot; Nós, a Cuba de Fidel Castro; O senhor do
mundo, a Coreia de Kim Jong-un.

A distopia é a utopia que chegou ao poder.


Hoje há três grandes forças distópicas que disputam o controle total
do mundo, devidamente identificadas pelo professor Olavo de
Carvalho: o globalismo ocidental, o eurasianismo comunista e o
califado islâmico. Para usar uma imagem de meu amigo Bernardo
Küster, o trio de forças globais pode ser comparado a Cérbero, o cão
de três cabeças que guarda a porta do Inferno. Além das três temíveis
cabeças, Cérbero é descrito como possuidor de uma cauda em forma
de serpente de língua bífida — simbolizando o uso da mentira como
estratégia para a conquista do poder. No entanto, existe uma única
força capaz de vencer o Cérbero distópico: essa força se chama
Cristianismo. Diferentemente de Orwell em 1984 e Huxley em
Admirável mundo novo, e a exemplo de Robert Hugh Benson em O
senhor do mundo, a distopia do casal Kuehnelt-Leddihn mostra a
Igreja Católica, Corpo Místico do Cristo, como a única via de
salvação para a humanidade. Salvação que não se dará coletivamente,
mas no templo da alma de cada um.

Escrito nos anos 40, o romance dos Kuehnelt-Leddihn possivelmente


recebeu a influência de dois clássicos da distopia: Nós, de Ievguêni
Zamiátin, publicado em 1924, e Admirável mundo novo, de Aldous
Huxley, publicado em 1934. Mas qual é a marca d’água que diferencia
o romance do casal austríaco? Além da já mencionada centralidade da
fé católica, temos que os autores de Moscou 1979 possuíam uma visão
mais ampla da situação geopolítica mundial, portanto um horizonte
intelectual mais abrangente que o dos escritores mencionados.
Nascido em 1909, Erik von Kuehnelt-Leddihn frequentou a
Universidade de Viena e a Universidade de Budapeste, onde obteve
doutorado em ciências políticas com apenas 20 anos. Credenciais
acadêmicas, evidentemente, não o fazem superior a ninguém. Mas o
jovem aristocrata austríaco tinha algo especial: ele acreditava em ver
com os próprios olhos e tinha uma incomparável sede de
conhecimento presencial da realidade. Assim que obteve seu título de
doutor, em 1929, foi enviado como correspondente de um jornal
húngaro à União Soviética. Seu conhecimento do sistema comunista
não se baseia em ouvir falar ou em visitas oficiais regadas à vodca e
guiadas pela KGB (do russo, “Comitê da Segurança Nacional”): ele
presenciou a ascensão de Stálin ao poder, que levaria ao expurgo da
velha guarda bolchevique. Esse processo não se deu da noite para o
dia, mas se consolidou ao longo de alguns anos. A propósito, 1929 foi
ano em que Stálin expulsou Trotsky do território soviético. Não
duvido que o título Moscou 1979 contenha uma referência ao
centenário de Stálin e Trotsky, os dois homens que travaram uma luta
de vida e morte pela sucessão de Lênin. (Mais tarde, descobriu-se que
Stálin nascera em 1878, mas isso não vem ao caso).

Erik von Kuehnelt-Leddihn falava oito idiomas e tinha conhecimento


de outros 11. Visitou 76 países e conheceu os 50 estados americanos,
tendo vivido nos EUA por um longo período. No enredo de Moscou
1979, esse cosmopolitismo permite aos autores uma espantosa
descrição do futuro coletivista da humanidade —

esse futuro que, de muitas maneiras, é o


nosso presente, com um governo que
pretende controlar a vida dos cidadãos de
maneira completa e pormenorizada.
No país distópico de Kuehnelt-Leddihn, a mão de ferro sobre os
cidadãos pertence ao Revisorado, numa evidente alusão à KGB,
polícia secreta que hoje atende pelo nome de FSB, e que colocou um
agente na Presidência da Rússia.

A vida das personagens em Moscou 1979 é infernal. Não existem


mais famílias, não existem mais intermediários entre o poder do
Estado e os indivíduos. As crianças são concebidas de maneira
natural, geralmente em bordéis públicos denominados Gosnravstdom
(o que no idioma sueco significaria algo como “puro êxtase”), mas ao
nascer são imediatamente retiradas de suas mães e levadas para
creches estatais. As pessoas e locais públicos têm nomes carregados
de referências ideológicas: por exemplo, o sobrenome russo do
protagonista — Krasnoznamyaev — significa bandeira vermelha. É
curioso notar que o nome de batismo de Ulyan nos Estados Unidos —
Owen S. Boynton — faz referência a um dos principais socialistas
utópicos do século XIX, Robert Owen. Quando ele vira cidadão
soviético, recebe o patronímico “Karlovitch” — ou seja, filho de Karl,
o pai do socialismo “científico”. Ao frequentar o Gosnravstdom,
Ulyan apaixona-se por uma mulher chamada Barrikadka, nome que
evidentemente simboliza a mentalidade revolucionária. Juntos eles
têm um filho, mas Barrikadka morre no parto. A criança recebe o
nome de Oktyabrsky — em russo, Outubro. A bandeira vermelha e as
barricadas resultaram na Revolução, cujo rosto é o do cínico e
ressentido Ok. A morte de Barrikadka representa o fim da ilusão
libertária das ideologias. A verdadeira liberdade só é conquistada pela
revelação cristã: assim, o amor de Ulyan por Barrikadka desperta nele
o senso religioso a ponto de transformá-lo em arcebispo clandestino
da União Soviética. O cargo oficial ocupado por Ulyan é o de diretor
de uma fábrica de estátuas em gesso. Numa profunda ironia, essa
fábrica é a unidade modelo de toda a União Soviética. Em outras
palavras,

a economia socialista, como provou


Ludwig von Mises em seu célebre estudo
de 1920, não passa de uma ficção grotesca,
com a solidez de uma peça em gesso que se
desfaz em pedaços no chão.
Dentro desse sistema de mentiras e fingimento, o filho de Ulyan
ocupa a posição de um burocrata, um homem responsável pelo
balanço das ilusões econômicas. O maior sonho de Ok é finalmente
receber a autorização para morar em Leninsk — a cidade-modelo da
União Soviética, o paraíso comunista para onde são enviados os
cidadãos exemplares.

Insensível e ambicioso, Ok despreza seu pai, e se interessa por uma


bizarra e demoníaca teoria que começa a ganhar força dentro do
regime: o pan-comunismo facticista, cujo formulador é o arquivista
polonês Godlewski. Trata-se de um materialismo delirante que coloca
a humanidade inteira no mesmo nível das coisas inanimadas. O nome
Godlewski une “Deus” em inglês (God) com esquerdista em polonês
(lewski), o que se encaixa perfeitamente no caráter diabólico da
personagem. Uma das propostas radicais de Godlewski consiste em
castrar todos os bebês masculinos nascidos sob a tutela do Estado
soviético, criando assim uma nação de eunucos subservientes às
ordens governamentais.

As cenas de delírio coletivo nas cidades soviéticas, com a


aproximação do cometa que supostamente vai exterminar a
humanidade, revelam a fraqueza dos sistemas políticos erigidos sem
vínculo com a transcendência. O macabro espetáculo dos
esquartejamentos públicos faz lembrar as cenas de massacre do Terror
jacobino e outras explosões de ódio sanguinário das massas durante
processos revolucionários ao longo da história. É curioso notar a
semelhança dessas cenas de Moscou 1979 com alguns trechos do
romance O senhor do mundo, publicado em 1907. Por outro lado,
pode-se notar que os autores não entram em detalhes sobre o sistema
político que controla a América no período em que se passa a história.
Tudo que vem do outro lado do mundo são as transmissões
radiofônicas das rádios católicas sediadas na Groenlândia, cujas ondas
trazem algo do que se passa no Novo Vaticano, agora sediado em San
Francisco, na Califórnia. Na minha opinião, essas transmissões de
rádio simbolizam a superioridade do poder espiritual sobre o poder
político-militar — a supremacia da casta sacerdotal sobre a casta
guerreira, ou simplesmente a predominância do Espírito sobre a
matéria. E isso está além dos governos formais.

Especialmente impressionante é a descrição que os autores fazem da


Inglaterra do futuro, única parte da Europa não destruída pelos
bombardeios da guerra nuclear anterior. Ali se instaura um “governo
liberal-comunista de Sua Majestade”, que guarda uma espantosa
identidade com a agenda globalista em curso nas democracias
ocidentais atuais. Durante a visita de Ulyan a Londres, ficamos
conhecendo diversas leis que regulam aquela estranha sociedade: Ato
Travesti, Ato de Regulação Lésbica das Atividades Sexuais, Decreto
de Vacinação contra a Varíola Bovina, Lei de Transmissão de Germes
no Confessionário, Ato de Prevenção da Extrema-Unção, Lei
Anticoerção à Castidade e, finalmente, a proibição completa dos ritos
católicos no país. Nessa pérfida Albion descrita pelos Kuehnelt-
Leddihn, existem clínicas de eutanásia, estátuas de eugenistas,
louvores à Deusa Ciência e missas sussurradas clandestinamente em
apartamentos. Um interlocutor de Ulyan explica de que maneira os
membros da Igreja se afundaram nesse atoleiro de insanidades:
— Os católicos eram cidadãos muito assíduos em ir à Missa, pagar impostos, obedecer à lei,
afirmando o tempo todo que eram seres humanos “normais” como quaisquer outros. Mas o
católico não deve ser “normal” ou “mediano” no sentido mundano; ele deve se intoxicar da
sainte folie de la croix. Os católicos infelizes daqui copiaram seus concidadãos e se
esforçaram muito para estabelecer um “debate de ideias” que se mostrou fatal. Eles também
começaram a classificar as pessoas pela renda, começaram a acreditar que a doença era o
pior dos males, fizeram concessões em todos os sentidos, acreditaram no progresso e nas
bênçãos infinitas do governo da maioria. Por fim, essa imitação ficou tão perfeita que se
tornou uma segunda natureza para eles, e depois, a primeira. Assim, na sequência, apesar do
grande número de conversões, eles não conseguiram resistir à onda crescente de
humanitarismo enlouquecido.34

Hoje em dia, para o cidadão comum, as diferenças entre o


globalismo e o comunismo se mostram cada vez menores — como se
as duas forças distópicas se empenhassem numa rivalidade mimética
girardiana. Ambos são sistemas totalitários e coletivistas. De modo
semelhante, percebemos que a Inglaterra e a União Soviética do livro
são estranhamente parecidas. Os Kuehnelt-Leddihn sabiam quão
convergentes eram — e são — o Manifesto Comunista de Marx-
Engels e o programa da Sociedade Fabiana de H. G. Wells, G. B.
Shaw e associados.

Em 1917, a primeira coisa que Nossa Senhora mostrou aos


pastorinhos de Fátima foi uma imagem do Inferno. Nessa ocasião, a
Virgem fez uma séria advertência: se a humanidade não se
arrependesse de seus pecados e cumprisse algumas exigências
objetivas, “a Rússia espalhará seus erros pelo mundo”. Como se sabe,
os pedidos da Mãe de Deus não foram atendidos a tempo;

Moscou 1979 é um retrato dessa profecia


que estamos vendo se materializar diante de
nosso país.
Os erros da Rússia estão dominando o mundo e a única maneira de
vencê-los é fazer o que Ulyan fez: buscar a salvação das almas por
Cristo. Do contrário, seremos todos reaproveitados e enviados para
Leninsk, o lugar que não existe.
O SENHOR DO MUNDO: PADRE
BENSON NO VALE DE LÁGRIMAS
O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe em um só momento todos os reinos da terra, e
disse-lhe: “Eu te darei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero.
Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu”. Jesus disse-lhe: “Está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e
a ele só servirás”.

(Lc 5, 6−8)

Q
uando li pela primeira vez as três distopias mais famosas —
1984, Admirável mundo novo e Fahrenheit 451 —, eu era um
adolescente afastado de qualquer senso religioso. Jovem
militante, irritavam-me em Orwell as evidentes críticas ao sistema
comunista. Lembro-me de um ensaio de Isaac Deutscher (o biógrafo
de Trotsky) em que o autor atacava ferozmente a utilização de 1984
como propaganda anticomunista; e eu concordava com Deutscher. À
época, jamais me incomodou o espírito descrente de Orwell.
Tampouco o jovem idiota que eu era tinha horizonte intelectual para
compreender o espiritualismo oriental de Huxley ou para interpretar
as referências de Bradbury ao Eclesiastes e ao Apocalipse. E foi só
aos 50 anos — duas décadas depois de meu retorno à Igreja Católica
— que vim a conhecer O senhor do mundo, a distopia cristã que
Robert Hugh Benson publicou em 1907.

Em minha opinião, O senhor do mundo é


a maior e mais importante das distopias —
além de ser a primeira.
Frequentemente O tacão de ferro, de Jack London, é citado como a
obra pioneira do gênero, mas o romance de London foi publicado em
1908, um ano depois do livro do Padre Benson.

O que surpreende na obra de Benson não é apenas a qualidade


literária, a composição de personagens complexos e o domínio da arte
narrativa. Mais do que isso, O senhor do mundo espanta por sua
clarividência profética. Minha primeira leitura do romance — na
excelente tradução de Ronald Robson, publicada pela Sétimo Selo —
se deu durante a pandemia da covid-19, o cataclismo sanitário-
midiático que abalou o mundo entre 2020 e 2022. Durante esse tempo,
eu vi muitas profecias de Benson materializando-se diante dos meus
olhos.

Filho de um arcebispo da High Church na Inglaterra, Robert Hugh


Benson nasceu em 1871. Depois de ser ordenado sacerdote anglicano,
converteu-se à Igreja Católica Romana, seguindo o mesmo caminho
de intelectuais como G. K. Chesterton, e se tornou padre católico.
Chegou a ser nomeado camareiro do grande papa São Pio X. Dotado
de grande talento literário, escreveu diversas obras teológicas e
ficcionais. Para escrever sua obra mais famosa, inspirou-se em
acontecimentos políticos de seu tempo, como a Revolução Russa de
1905 — que Lênin chamou de “ensaio geral” para 1917 —, e em
leituras de autores revolucionários como o socialista utópico Saint-
Simon. Ao mesmo tempo, Benson estava atento aos debates
intelectuais na Inglaterra — onde a Sociedade Fabiana exercia grande
influência com seu projeto de socialismo lento, gradual, prudente e
sofisticado.

A ação de O senhor do mundo se passa no início do século XXI —


ou seja, em nosso tempo. A Inglaterra de Benson é governada pelos
comunistas. Assim como o próprio Marx, Benson imaginava que a
revolução socialista iria eclodir primeiramente nos países mais
desenvolvidos da Europa. Talvez esse tenha sido um dos únicos erros
de previsão do nosso autor. (Mas, considerando a relação mimética
entre o comunismo e o globalismo na atualidade, terá sido mesmo um
erro?).

Os acertos de Benson, todavia, são assombrosos. Em O senhor do


mundo, ele profetiza a agenda perversa do nosso tempo: governo
mundial, controle social, coletivismo, materialismo, restrições à
liberdade individual e aos direitos naturais, negação do livre-arbítrio,
desinformação, propaganda disfarçada de jornalismo, ódio aos
conservadores e religiosos, divinização da natureza, cultura da morte,
perseguição ao cristianismo e até comida sintética e clínicas de
eutanásia. Tudo isso imposto, é claro, em nome da paz, da tolerância,
da igualdade e da fraternidade universal.

Onze anos antes da eclosão da Primeira Grande Guerra, Benson já


imaginou, com espantosa precisão de detalhes, o uso de armas de
destruição em massa e de aeronaves como instrumentos de guerra
(lembremos que o avião foi inventado em 1906). Com quase um
século de antecedência, ele previu a divisão do mundo em três
grandes blocos geopolíticos. Há um bloco na América, uma espécie
de república socialista maçônica; há um bloco na Europa, que domina
a África e algumas outras partes do mundo, sob um regime comunista;
e um bloco que é o império do Oriente, juntando os misticismos
orientais e o islamismo. Acredite você ou não, a revolução comunista
na Europa, no livro de Benson, ocorre exatamente no ano de 1917.

O mundo descrito por Benson é o do


Anticristo. Um mundo que oferece paz e
segurança aos submissos e tirania e
perseguição aos dissidentes.
O Anticristo de Benson é corporificado em Julian Felsenburgh, um
líder maçônico americano que se apresenta como o novo Messias, o
verdadeiro Filho do Homem que promete salvar a civilização
divinizando a humanidade e expulsando Deus do paraíso terrestre.
Com ousadas manobras diplomáticas, o Senhor do Mundo consegue
estabelecer a paz em todo o planeta e é aclamado Presidente do
Mundo. Não por acaso, o nome Felsenburgh significa, em alemão,
Castelo de Pedra. O Senhor do Mundo é o governante da Cidade do
Homem descrita por Santo Agostinho, onde impera “o amor de si
mesmo até o desprezo de Deus”.

Em 1984, Winston Smith se levanta contra o Grande Irmão. Em


Admirável mundo novo, John Selvagem enfrenta Mustafá Mond. Em
Fahrenheit 451, Guy Montag abandona o lança-chamas para se tornar
um homem-livro. Em O senhor do mundo, o líder da resistência é um
jovem padre católico chamado Percy Franklin. Nele está a última
esperança dos cristãos. Durante uma visita a Roma, convocado pelo
papa, o sacerdote se põe diante de uma escolha de vida ou morte, de
luta ou desonra:
As duas cidades de Agostinho estavam à sua escolha. Uma era a do mundo autocriado, auto-
organizado, autossuficiente, interpretado por homens como Marx e Hervé, socialistas,
materialistas e, afinal, hedonistas, finalmente resumidos em Felsenburgh. A outra estava
descortinada na visão à sua frente, falando de um Criador e de uma criação, de um propósito
divino, de uma redenção e de um mundo transcendente e eterno do qual tudo se originava e
em direção do qual tudo se movia. Um dos dois, João ou Julian, era o Vigário — e o outro o
inimigo — de Deus... E o coração de Percy, em mais um espasmo de convicção, fez sua
escolha...35

Para organizar a resistência ao governo do Anticristo, o Padre Percy


leva ao Papa João XXIV a proposta da criação de uma nova ordem
disposta ao martírio para a defesa da fé:
— Uma nova Ordem, Santidade! Sem hábito, sem insígnia... Sujeita apenas à Sua
Santidade. Mais livres que os jesuítas, mais pobres que os franciscanos, mais mortificados
que os cartuxos. Tanto homens como mulheres. Os três votos com intenção do martírio; o
Pantheon de sua Igreja; cada bispo responsável pelo sustento deles; um tenente em cada
país... [...] E Cristo Crucificado como patrono.36

Felsenburgh aprendeu, com Nietzsche, que só se vence aquilo que se


substitui. Por isso, enquanto a Ordem do Cristo Crucificado cresce de
maneira milagrosa em várias partes do mundo, o Presidente cria um
culto estatal obrigatório: uma Religião Universal do Homem, da Paz e
da Tolerância, que pretende substituir a Igreja de Cristo. A partir daí,
o simples fato de ser católico ou acreditar em Deus se tornará crime
punível com a morte.

Segundo o novo evangelho demoníaco,


“não existe Deus algum senão o homem,
padre algum senão o político, profeta
algum senão o professor”.
(Não lhe parece uma frase típica de um progressista do nosso
tempo?).
Exatamente no dia em que todo o colégio cardinalício da Igreja está
reunido em Roma, o governo de Felsenburgh descobre a existência de
um suposto complô terrorista católico para matar milhares de pessoas
em Londres. O Presidente do Mundo ordena então a destruição de
Roma com um bombardeio aéreo. Toda a cúpula da Igreja é
exterminada, inclusive o Papa. Os poucos sobreviventes — entre eles
o Padre Percy, agora eleito Papa Silvestre III — reúnem-se em uma
aldeia da Palestina chamada Megido, próxima a Nazaré. Alguns
chamam esse lugar de Armageddon.

Enquanto a batalha final não se inicia, os católicos passam pela


Grande Tribulação. Em vários pontos da Europa continental, os
membros da Ordem do Cristo Crucificado são perseguidos até a
morte:
Em Paris, em um único dia queimaram vivos quarenta membros da recém-nascida ordem,
no Quartier Latin, antes que o governo interviesse. Da Espanha, Holanda e Rússia chegaram
outros nomes. Em Düsseldorf, dezoito homens e garotos, surpreendidos enquanto cantavam
as Laudes na Igreja de São Lourenço, tinham sido jogados, um por um, no depósito de
esgoto da cidade, cada um a cantar enquanto era atirado: “Christe, Fili Dei vivi, miserere
nobis”, e da escuridão subia a mesma canção entrecortada, até que foi silenciada com
pedras.37

Em Londres, turbas enlouquecidas trucidam os fiéis:


Diante de Mabel, se movia uma grande cruz, e sobre essa cruz uma figura com uma das
mãos pregada na madeira, o braço inerte, o corpo balançando no ritmo do movimento. Atrás
dela, um bordado se agitava ao vento. Em seguida, Mabel viu o corpo nu de uma criança,
empalada, branca e vermelha, com a cabeça caída sobre o peito e os braços balançando.
Surgiu, depois, a figura de um homem pendurado pelo pescoço, que parecia vestir uma
espécie de bata e capa preta.38

As notícias da carnificina são festejadas pela mídia:


A Catedral de Westminster havia sido saqueada, todos os altares destruídos; ultrajes
inimagináveis foram perpetrados ali. Um padre desconhecido mal pôde terminar o
Santíssimo Sacramento antes de ser agarrado e estrangulado. Um arcebispo, onze sacerdotes
e dois bispos foram enforcados na área externa de uma igreja. Trinta e cinco conventos
foram destruídos. Da Catedral de St. George só restaram cinzas. E os jornais chegaram a
relatar que, pela primeira vez desde a introdução do cristianismo na Inglaterra, talvez já não
restasse um tabernáculo num raio de trinta quilômetros da Abadia. [...] “Se uma infestação
atinge uma casa a esse ponto alarmante”, dizia o texto no jornal, “a única solução é a sua
destruição completa”.39
Caim e Abel apresentaram suas oferendas a Deus. Caim, que era
lavrador, ofereceu produtos do solo; Abel, pastor de ovelhas, ofereceu
as primícias e a gordura de seu rebanho. O fato é que Deus se agradou
mais das oferendas de Abel, o que deixou Caim irritado e abatido.
Deus notou o abatimento de Caim e lhe advertiu contra os perigos da
tentação; afinal, uma alma maldisposta é alvo fácil dos piores
pecados. Então, aconteceu o que todos já sabem: Caim chamou Abel
para caminhar nos campos e matou o irmão.

O diálogo que se segue entre Deus e Caim é uma passagem


devastadora. Deus, que tudo sabe, mesmo assim pergunta ao filho de
Adão:
O Senhor disse a Caim:

“Onde está teu irmão Abel?”. Caim respondeu:

“Não sei! Sou porventura eu o guarda de meu irmão?”.

O Senhor disse-lhe:

“Que fizeste! Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra”. (Gn 4,
9−10)

Marcado por Deus com um sinal para que ninguém o matasse, Caim
é condenado a vagar pelo mundo e vai morar na terra de Nod, a leste
do Éden.

Até este ponto, a história de Caim é conhecida por todos. Há, porém,
mais um detalhe sobre Caim que, em geral, fica esquecido. Após
conhecer sua mulher — cujo nome não sabemos —, Caim se torna
construtor da primeira cidade, a primeira pólis.

Em sua magnífica interpretação do Livro do Gênesis, o professor


José Monir Nasser ressaltava esse pormenor frequentemente ignorado
para mostrar que a sociedade humana — a sociedade política — é
fundada sobre um ato de inveja. Da mesma forma que o pecado de
Adão e Eva condenou o gênero humano à mortalidade, o primeiro
assassinato bíblico imprime sua marca nas sociedades políticas de
todos os tempos.
Estamos, portanto, condenados à política
assim como estamos condenados ao
pecado.
Há um cerne de traição e mentira, de inveja e ressentimento, em
todas as relações sociais do homem. Há uma gota do sangue
primordial de Abel na essência do poder. Tudo que podemos fazer,
diante dessa realidade inescapável, é fazer o que Caim não fez:
implorar a misericórdia de Deus.

Em suas palestras sobre o Livro do Gênesis, o psicólogo e escritor


Jordan Peterson fala sobre o complexo de Caim: essa rebelião
metafísica contra Deus que parece estar na origem das sociedades
distópicas. Peterson afirma: “Dê a Caim o poder suficiente e ele não
vai apenas matar Abel. Ele vai torturá-lo primeiro, de forma criativa e
infinita. Depois, e apenas depois, irá matá-lo. Então, irá para cima de
todos os outros”.40

Como explicava o professor Olavo de Carvalho, a palavra perdão


vem do latim perdonare, a união entre per (com o sentido de
completude) e donare (doar). Em suma, perdoar significa doar
completamente. Nesse sentido, o ato de criação de Deus é a forma
suprema do perdão. Assim como nenhuma palavra humana pode
expressar o Verbo, todo e qualquer perdão concedido é uma pálida
sombra do perdão de Deus, fonte de toda misericórdia.

Caim não pede perdão a Deus depois de cometer o seu terrível crime;
ele não se arrepende do que fez, porque prossegue em sua rebelião
metafísica contra o Criador. Entre os descendentes de Caim, está
Lamec, que diz a suas mulheres:
Por uma ferida matei um homem, e por uma contusão um menino. Se Caim será vingado
sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes. (Gn 4, 23−24)

O crime de Caim reverbera pelas gerações. A fidelidade de Abel, no


entanto, não será esquecida por Deus — e se perpetuará nos
descendentes de seu irmão mais novo, Set. Fundador da Cidade dos
Homens, Caim é o modelo existencial de Jules Felsenburgh, o
Anticristo, o Senhor do Mundo.

Em sua narrativa distópica, Benson descreve Felsenburgh e Padre


Percy como estranhamente parecidos: “[...] com não mais de 35 anos,
mas com cabelo totalmente branco; seus olhos cinzas, sob
sobrancelhas negras, tinham um brilho característico e eram quase
impetuosos, e seu nariz e queixo proeminentes e a extrema definição
de sua boca reasseguravam ao observador a sua determinação”.41

Felsenburgh e Percy são a imagem moderna de Caim e Abel. Os


irmãos primordiais voltam a se encontrar para um confronto final. A
principal diferença entre eles é a mesma que separava os filhos de
Adão e Eva. Ao oferecer um sacrifício de sangue, Abel estava
entregando a sua própria vida a Deus. E é exatamente isso que o Padre
Percy faz ao criar a Ordem do Cristo Crucificado. Ele crê que desta
vez a história será diferente.

As últimas páginas do romance do Padre Benson — na terceira parte


intitulada “A vitória” — encerram um profundo mistério. Para o
escritor e tradutor Ronald Robson, as descrições da batalha do
Armageddon, entremeadas por vozes angelicais que entoam o cântico
Tantum Ergo Sacramentum, escrito por Santo Tomás de Aquino, se
situam numa espécie de fronteira entre o tempo e a eternidade. Para
ele, nessa passagem final, um elemento crucial é a celebração do Dia
de Pentecostes, o que marca o encontro do Espírito de Deus com o
espírito dos homens, uma reintegração do tempo na eternidade, em
que a narrativa assume uma qualidade ritualística.

Então me lembrei de minha infância, quando rezava o terço e me


impressionava com aquele trecho da Salve Rainha:
A vós bradamos, os degredados filhos de Eva A vós suspiramos, gemendo e chorando neste
vale de lágrimas.

Ao ler o último capítulo do O senhor do mundo, tantos anos depois,


percebi que a resposta para minhas angústias estava no fim da mesma
oração:
Rogai por nós, santa Mãe de Deus,

Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Eis o único caminho para acordarmos do pesadelo da distopia.

CRÔNICA: A PIRA DOS LIVROS


CONSERVADORES
A s seis da manhã, a campainha tocou e o cachorro latiu.
Cisco, já completamente cego pela catarata, postou-se ao meu lado,
em posição de guarda, enquanto eu abria a porta. Estávamos só eu e
ele em casa. Há semanas, minha esposa e meu filho dormiam na casa
de parentes, pois já aguardávamos visitas desagradáveis.

Bom dia. Senhor Paulo Briguet? Bom dia, sou eu mesmo. Em que
posso ajudar? Somos da Comissão Checadora. Temos aqui um
mandado de busca e apreensão de livros.

O vira-lata latiu.

Quieto, Cisco! O agente continuou: O senhor possui livros


conservadores em casa? Defina livros conservadores.

Se fez esse comentário, é porque possui. De qualquer modo, temos


aqui um mandado e vamos entrar.

Eram oito agentes. Não, nove: além dos policiais fortemente


armados, havia uma mulher, com cerca de 45 anos, óculos de aros
redondos, cabelo tingido de vermelho e antebraços inteiramente
tatuados com motivos tribais. De blusa branca e calça jeans apertada,
ela reluzia em meio aos agentes sombrios. Todos usavam máscara
cirúrgica, inclusive ela, é claro. E exigiram que eu colocasse a minha.
A mulher era a consultora intelectual do grupo e tinha como
principal incumbência fazer a avaliação e confisco das obras. Seu
nome era Mara Lerna. Além do mandado, exibiu-me um resumo do
seu Lattes: Doutora em Antropologia Social pela UFRJ. Cisco latiu de
novo.

— Quieto, cachorro! Só me restava a fidelidade do Cisco.

Dra. Lerna — era essa a identificação em seu crachá — ficou de pé


no meio da sala; recusou meus oferecimentos de café e água. Mesmo
por trás da máscara, eu pude vislumbrar sua expressão de nojo.
Enquanto isso, os agentes percorriam os cômodos de meu pequeno
apartamento: o escritório, os dois quartos, os banheiros. Por toda parte
havia livros, que os sujeitos iam recolhendo até formar três grandes
pilhas diante da consultora.

Ela me lançou um olhar de profundo desprezo e apanhou o primeiro


volume de uma das pilhas. Os oito agentes formaram um círculo em
torno de nós, observando um silêncio reverencial. Aquilo não era uma
simples operação de busca e apreensão — era uma aula.

Os Lusíadas. O que dizer de uma obra que já na primeira linha


celebra “As armas e os barões assinalados”, e na segunda estrofe
ofende os povos africanos e asiáticos, ao dizer que os navegadores “as
terras viciosas/ de África e de Ásia andaram devastando”? Você tem
ideia de quanto sofrimento essa exaltação do colonialismo causa nas
pessoas? Vai pra pira!

O senhor dos anéis. Então você acredita mesmo que o mundo será
salvo quando vier um Rei? Espera o dia em que os Orcs sejam
exterminados? Caiu na conversa de um velho tradicionalista católico?
Acha que nossas crianças precisam ouvir histórias racistas e
preconceituosas? Vai pra pira!

Os sertões. Obra racista, eugenista, positivista e fascista. Euclides da


Cunha, um machista que considerava a esposa como sua propriedade
privada, tanto é que morreu por isso. Vai pra pira!
Arquipélago Gulag. A grande fake news da história do socialismo.
Provavelmente um livro escrito por agentes da CIA, que usaram esse
Soljenítsin como fantoche. É uma ofensa imperdoável contra os
trabalhadores que se ofereciam voluntariamente para trabalhar pela
construção do socialismo nos campos da Sibéria. Vai pra pira!

As confissões. A mera posse deste livro abjeto constitui um crime de


lesa-laicismo. Onde já se viu exaltar a superioridade do cristianismo
sobre outras religiões? Agora terá o mesmo destino de nossas avós
queimadas pela Inquisição. Vai pra pira!

O imbecil coletivo. O mais criminoso ataque já feito aos nossos


luminares acadêmicos. Quanto fogo será necessário para reduzir às
cinzas as infâmias que cobriram Marilena, Leandro, Emir, Moniz,
Fábio, Marisa e tantos outros? Vai pra pira! Junto com todos os outros
livros do Astrólogo.

O inquérito do fim do mundo. Peça de infâmia e mentira contra o


nosso Coletivo Supremo, em defesa de conhecidos criminosos, escrita
por um bando de ex-juristas. Onde há direita não há Direito! Vai pra
pira!

Otelo. Tá de brincadeira? Shakespeare, o escriba dos poderosos, dos


colonialistas, dos homens brancos? Esta peça é um manual de racismo
e misoginia, além de preconceito contra trabalhadores honestos que
ousam contestar o poder. Desagravemos Iago. Vai pra pira!

Macbeth. Outra do bardo maldito. Agora, o homem trai, tortura, mata


e a culpa é da mulher e das bruxas? Vai pra pira!

Mensagem. Exaltação do colonialismo e do genocídio dos povos


indígenas e islâmicos. Louvação de reis e nobres. Nacionalismo
chucro de direita. Merece ser queimado junto com os heterônimos. Vai
pra pira!

O alienista. Um virulento ataque à Ciência escrito por um capitão-


do-mato, falso negro que não se orgulhava de suas origens e jamais
militou em favor da liberdade de seu povo. Vai pra pira!
Apologia de Sócrates. A defesa de um velho reacionário e corruptor
da juventude feita por um discípulo inimigo da democracia e da
sociedade aberta. Deveriam ter dado cicuta para os dois. Vai pra pira!

Ilíada e Odisseia. Aventuras de homens brancos mortos. Apologia da


guerra e da masculinidade tóxica. Churrasco em todo canto.
Difamação da mulher (pobre Helena!). E toda a história começa com
um concurso de beleza, numa clara imposição de padrões estéticos.
Vai pra pira!

Édipo Rei. Qual é a tragédia no amor intergeracional? O que há de


errado com a quebra do tabu do incesto? E acima de tudo: que cidade
é essa que precisa de um rei? Vai pra pira!

O processo. “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma


manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Isso na versão dele...
Vai pra pira!

Moby Dick. O mais horrível manifesto antiecológico já concebido


pelo ser humano. Apologia da caça às nossas irmãs marinhas.
Preconceito contra negros, aborígenes e deficientes físicos.
Desagravemos Moby e Ahab. Vai pra pira!

Crime e castigo. Onde é que já se viu um rebelde encontrar paz na


conversão religiosa? Vai pra pira!

Contos de Flannery O’Connor. O que é que essa carola


estadunidense tem a dizer pra nós? Vai pra pira!

Escuridão ao meio-dia. Propaganda direitista contra a primeira


revolução socialista da história. O comunismo tem o direito — não: o
dever! — de aniquilar seus inimigos internos e externos. Vai pra pira!

Então, Dra. Lerna tomou em suas mãos um dos volumes mais


grossos da biblioteca e disse: A divina comédia. O único Paraíso que
existe é o que vamos construir aqui. E o único Inferno é para onde
vamos mandar seus livros. Tragam a pira!
Quatro dos oito agentes saíram do apartamento e cinco minutos
depois voltaram trazendo um objeto em forma de cone, de cor
cinzenta e metálica. Pela boca da pira, ela ia enfiando um a um os
pobres livros, enquanto a casa era tomada por uma fumaça negra e
atordoante. Foram abertas as janelas e distribuídas máscaras de
oxigênio, menos para mim. Enquanto os oito agentes e a Dra. Lerna
sobrepunham as máscaras de oxigênio às máscaras cirúrgicas, eu e
Cisco procuramos refúgio na varanda, em busca de ar respirável.
Felizmente, a fumaça produzida pela pira se dissipava rapidamente.

O último livro colocado na boca do monstro cinzento foi O mínimo


sobre distopias.

Então o Cisco latiu. Foi a última vez que o vi.

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N R
1 Hansard Parliamentary Debates. Adjourned debate. 12 mar. 1968. v. 190. col. 1517.

2 ORWELL, 1984, 2021, p. 11. (Os detalhes de cada edição se encontram na Bibliografia ao
final do livro).

3 Ibid., p. 24.

4 Ibid., p. 92.

5 Ibid., p. 158−159.

6 Ibid., p. 63−64.

7 ORWELL, A revolução dos bichos, 2021, p. 130.

8 Ibid.

9 ZAMIÁTIN, Nós, 2017, p. 319.

10 ORWELL, op. cit., p. 287.

11 Ibid., p. 34.

12 Relativo a Ivan Petrovich Pavlov (1849−1936), fisiologista russo, que ficou famoso por
suas experiências de condicionamento com cães, relacionando estímulos externos a respostas
fisiológicas.

13 HUXLEY, Admirável mundo novo, 2022, p. 52.

14 Ibid., p. 76.

15 Ibid., p. 117.

16 Ibid., p. 65.

17 Ibid., p. 64.

18 Ibid., p. 55.

19 Ibid., p. 56.

20 Ibid., p. 59.

21 Ibid., p. 280.
22 Ibid., p. 8.

23 Ibid., p. 9.

24 HUXLEY, Retorno ao Admirável Mundo Novo, 2021.

25 SHAKESPEARE, A tempestade, 2022.

26 BRADBURY, Zen na arte da escrita, 2020, p. 74.

27 BRADBURY, Fahrenheit 451, 2012, p. 20.

28 Ibid., p. 87.

29 Ibid., p. 63−64.

30 Ibid., p. 115.

31 Ibid., p. 155.

32 Ibid., p. 167.

33 Ibid., p. 180.

34 KUEHNELT-LEDDIHN; KUEHNELT-LEDDIHN, Moscou 1979, 2023, p. 114.

35 BENSON, O senhor do mundo, 2021, p. 139.

36 BENSON, O senhor do mundo, 2022, p. 132.

37 BENSON, op. cit., 2021, p. 179.

38 BENSON, op. cit., 2022, p. 194.

39 Ibid., p. 202.

40 PETERSON, 12 regras para a vida, 2018, p. 192.

41 BENSON, op. cit., 2021, p. 10.

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