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Lx)uis Althusser

Montesquieu
a Política e a História

Tradução de
LUZ CARY
e
LUISA COSTA

bditorial Presença - 1972


Título original:
M O N T E S Q V IE U
L A P O L IT IQ U E
E T U H IS T O IR E

© Copyright t>y Presses Universitalres de France^ Paris

Oapa de
F . O.

Distribuidores para o Brasil;


Livraria Martins Fontes
Praça da Independência, 12
Santos — S. P. — Brasil

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à


Editorial Presença, Lda. Av. João XXI, 56- 1 .» — LISBOA
«Transportar para séculos recuados todas
as idelas do século em que se vive, é a
mais fecunda das fontes do erro. As pessoas
que querem tomar modernos todos os sé­
culos antigos, direi o que os padres do
Egipto disseram a Solon: Oh atenienses,
sois como as crianças!»

Eaprit des Lois, XXX, 14.

«Montesquieu mostrou...»

M M E DE STAEL

«A França perdera os sens títulos de nobreza;


Montesquieu reconquistou-lhos»

VOLTAIRE
A B R E V IA T U R A S

-U esp rit des L ois é designado por; EL. O algarismo


romano designa o número do Livro, O algarismo
árabe designa o número do capítulo do Livro.
Exemplo: EL, XI, 6: E sp rit des L ois, capítulo 6 do
Livro XI.

-L a D éfense de VEsprit des Lois é designada por:


Véfetise de VEL.
INTRODUÇÃO

Não tenho a pretensão de dizer algo de novo


sobre Montesquieu.
Gostaria apenas de dar deste personagem
que vemos nos mármores uma imagem mais
viva. Não me refiro tanto à vida interior do
senhor de La Brède que foi tão enigmático que
ainda hoje se discute se alguma vez terá acre­
ditado, se terá correspondido ao amor da mu­
lher, se teve, passados já os trinta e cinco anos,
paixões de vinte. Nem tanto à vida quotidiana
do presidente de Parlamento fatigado do Parla­
mento, do senhor absorvido pelas suas terras,
do produtor de vinhos atento à produção e às
vendas. Outros que devem ser lidos o fizeram
antes de mim. Refiro-me a uma outra vida, que
os tempos cobriram de sombra e os comentários
esbateram.
Esta vida é antes de mais a de um pensador
em quem a paixão pelos domínios do direito e
da política se manteve viva até ao fim, e que se
debruçou sobre os livros, interessado em ganhar
o único troféu que a morte lhe não roubaria:
a sua obra acabada. Que ninguém se engane

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pois: todo o Montesquieu não é a curiosidade
pelo objecto, mas a inteligência deste. Ele que­
ria apenas compreender. Temos algumas ima­
gens suas que provam este esforço e orgulho
em si próprio. Penetrava na massa infinita dos
documentos e dos textos, na imensa herança das
histórias, crônicas, recolhas e compilcíções,
apenas para lhes captar a lógica, para lhes
perceber a razão. Queria agarrar o «fio» da,quela
meada que séculos e séculos tinham emara­
nhado, agarrar o fio e dobá-lo, para que o conhe­
cesse todo. E conhecia. Outras vezes julgava-se
naquele universo gigantesco de dados minús­
culos, perdido como nas ondas do alto --mar.
Queria que o mar encontrasse a praia, queria
dar-lha e abordá-la. E conseguia. Ninguém o
precedeu nesta aventura. Este homem, que tem
tanto amor pelos navios que lhes estuda o
desenho dos cascos, a altura dos mastros e a
velocidade que podem adquirir; que se interessa
pelos primeiros périplos a pontos de seguir os
cartagineses ao longo das costas da Ãfrica,

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e os espanhóis até ás Índias, sentia como que
uma afinidade com todos os destinos do mar.
Não é em vão que o evoca quando se surpreende
'na imensidão dos espaços do seu tema pre-
dilecto: a última frase do seu livro celebra a
praia que enfim se aproxima. É verdade que
partia para o desconhecido. Mas também para
este navegador, o desconhecido era a desco-
beria de novas terras.
Assim sentem-se em Montesquieu as ale­
grias profundas de um homem que descobre.
Sabe-o. Sabe que traz em si idéias novas, que
patenteia uma obra sem precedentes e se as
suas últimas palavras são para saudar a terra
enfim conquistada, a primeira é para advertir
que partiu s 6, sem mestres, sem um pensamento
por pai. Adverte também de que fala uma lin­
guagem nova visto que diz verdades novas. Até
no pormenor da linguagem se sente o orgulho
de um autor que carrega as palavras comuns
que herda com os novos sentidos que descobre.
Sente, no próprio instante em que está como
que surpreendido por o ver nascer e tomado

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por éle, e ao longo dos trinta anos de trabalho
que foram a sua carreira, que o seu pensa­
mento abre para um mundo novo. Adquirimos
o hábito desta descoberta. E quando celebramos
a sua grandeza, não podemos evitar que Mon-
tesquieu não se fixe na necessidade da nossa
cultura, como uma estrela no céu, não conce­
bendo já quanta audácia e paixão lhe foi pre­
ciso, para nos abrir este céu em que o fixámos.
Mas ainda me refiro a outra vida. Ã que
muitas vezes encobrem as próprias descobertas
que lhe devemos. Ãs preferências, às aversões,
numa palavra às tomadas de partido de Montes-
quieu nas lutas do seu tempo. Uma tradição
demasiado apaziguadora pretende que Montes-
quieu lançou sobre o mundo o olhar de um ho­
mem sem interesses nem partido. Não foi ele
próprio quem disse que era historiador precisa­
mente por estar desligado de quálquor facção,
ao abrigo do poder e das suas tentações, livre
de tudo devido a uma conjuntura miraculosa?
Capaz precisamente de compreender tudo, por­
que livre de tudo? Concedamos-lhe esse direito.

14
que é ãe todo o historiador, o de acreditar não
ffròpriamente nas suas palavras, mas na sua
obra. Pareceu-me que esta imagem era um mito,
e espero conseguir proná-lo. Mas ao fazê-lo, não
queria que se pensasse que a tomada ãe partido
apaixonada de Montesquieu nas lutas do seu
tempo, tenha alguma vez reduzido a sua obra
ao puro comentário dos seus votos.
Outros antes dele partiram para Oriente e
descobriram-nos índias a Ocidente.

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U M A R E V O L U Ç Ã O WO M É T O D O

I>eclarar Montesquieu o fundador da ciên­


cia política é uma verdade adquirida. Disse-o
Auguste Comte, repetiu-o Durkheim e nunca
ninguém contestou sèriamente tal afirmação.
Mas talvez seja preciso recuar um pouco para
o distinguir dos seus predecessores e compreen­
der o que 0 distingue deles.
Já Platão escrevera que a política é o objecto
de uma ciência, e como prova temos dele a Re­
publica, o Político e as Leis. Todo o pensamento
antigo viveu sob a convicção não de que uma
ciência do político era possível, o que é uma con­
vicção crítica, mas de que era necessário fazê-la.
E os modernos retomaram esta tese que vemos
expressa em Bodin, Hobbes, Spinoza e Grotius.
Acho que se deve recusar aos antigos, não a
pretensão de reflectirem sobre a política, mas
a ilusão de lhe terem construído a ciência. Por­
que a ideia que faziam da ciência provinha

17
directamiente dos conheeimentos que tinham.
E estes, para além de certas regiões matemá­
ticas não unificadas antes de Euclides, não
passavam de visões imediatas ou de projecções
da filosofia nas coisas, eram estranhos à nossa
idéia de ciência, visto que não lhe conheciam
ainda o exemplo. Mas os modernos! Como expli­
car que o espírito de um Bodin, de um Maquia-
vel, de um Hoibbes ou de um Spinoza, contempo­
râneo das disciplinas já rigorosas que triunfa­
vam em matemáticas e em física, tenha podido
permanecer cego ante o modelo do conheci­
mento científico que herdámos?
Ê verdade que, a partir do século XVI, se
assiste ao nascimento e ao desenvolvimento,
num movimento conjunto, de uma primeira fí­
sica matemática e à exigência de uma segunda
a que depressa se chamará física moral ou 'polí­
tica, e que aspirará ao rigor da primeira. Ê que
a oposição entre as ciências da natureza e as
ciências do homem não surgiu ainda. Os mais
metafísicos exilam em Deus essa ciência da po­
lítica ou da história que aponta o conjunção dos
acidentes da fortuna ou dos decretos da liber­
dade humana: tal Lebniz. Mas só se põem nas
mãos de Deus os defeitos da mão do homem
— e Leibniz confiava de facto a Deus a ideia
humana de uma ciência do homem. Quanto
aos positivistas, moralistas, filósofos do direito
e ao próprio Spinoza, não duvidam nem por
um instante que as relações humanas pos­
sam ser tratadas como relações físicas. Hobbes

18
só vê entre as matemáticas e as ciências so­
ciais uma diferença: as primeiras unem os
homens; as segundas dividem-nos. Mas é apenas
por esta razão que nas primeiras a verdade
e o interesse dos homens não se encontram
em oposição, enquanto nas segnudas sempre
que a razão é contrária ao homem o homem
é contrário à razão. Também Spinoza pretende
que se trate das relações humanas como se
trata das coisas da natureza, e pelas mesmas
vias. Leiam-se as páginas de introdução ao
Tratado político: Spinoza denuncia os filóso­
fos puros que, como os aristotélicos sobre a
natureza, lançam sobre a poilítica o imaginário
dos seus conceitos ou do seu ideal, e propõe
em vez destes sonhos a ciência real da história.
Deste modo, como pretender que Montesquieu
tenha aberto vias que encontramos já traçadas
muito antes dele?
Na verdade, se ele parece seguir vias já
conhecidas, não vai ao mesmo objecto. Helve-
tius diz de Montesquieu que tem a «subti­
leza» de Montaigne. Possui a mesma curioisi-
dade e tem a mesma maneira de reflectir.
Como Montaigne e todos os seus discípulos,
compiladores de exemplos e de factos inquiridos
em todos os lugares e em todos os tempos,
tinha por objecto a história inteira de todos os
homens que viveram. E não foi por acaso que
teve esta ideia. Pensemos de facto nesta dupla
revolução que abala o mundo entre os séculos
XV e XVI. Uma revolução no espaço do

19
mundo. Uma revolução na sua estrutura. Ê o
tempo da Terra descoberta, das grandes explo­
rações que abrem à Europa o conhecimento
e a exploração das Índias do Oriente e do
Ocidente, e da África. Os viajantes trazem
então nos seus cofres as especiarias e o ouro
e, na memória, o relato de costumes e de
instituições que abalam todas as verdades esta­
belecidas. Mas este escândalo não teria pro­
vocado mais que um rumor de curiosidade, se
no seio dos próprios países que assim lança­
vam os seus navios em busca de novas terras,
outros acontecimentos não tivessem também
resolvido os fundamentos destas convicções
estabelecidas. Guerras civis, revolução religiosa
da Reforma, guerras de religião, transforma­
ção da estrutura tradicional do Estado, as­
censão dos plebeus, decadência dos grandes
— estas transformações cujo eco se ouve em
todas as obras deste tempo, conferem à maté­
ria dos escandalosos relatos trazidos de além­
-mar a dignidade contagiosa de factos reais
e plenos de senso. O que anteriormente não
eram mais que temas a compilar, bizarrias
para satisfazer as paixões dos eruditos torna-se
como que o espelho das inquietações presentes,
0 eco fantástico daquele mundo em crise. Ê este
0 fundamento desse exotismo politico (até a
história conhecida, a Grécia e Roma, se toma
esse outro mundo em que o mundo presente
procura a sua própria imagem) que domina o
pensamento a partir do século XVI.

20
Tal é o objecto de Montesquieu. Esta obra,
diz ele acerca do Esprit des lois, tem por objecto
as leis, os costumes e os diversos usos de todos
os povos da terra. Pode dizer-se que o assunto é
imenso pois abarca todas as instituições exis­
tentes entre os homens b Ê precisamente este
objecto que o distingue de todos os autores
que antes dele entenderam fazer da política
uma ciência. Porque antes dele, nunca ninguém
teve a audácia de reflectir sobre todos os usos
e leis de todos os povos do mundo. A história
de Bossuet ,pretende-se universal: mas toda a
sua universalidade consiste em dizer que a Bí­
blia já disse tudo, que toda a história provém
dela, como uma cadeia da sua extremidade.
Quanto aos teóricos como Hobbes, Spinoza e
Grotius, propõem mais do que a fazem, a idéia
de uma ciência. Não reflectem sobre a totali­
dade dos factos concretos, mas sobre alguns
deles (como Spinoza sobre o estado judeu e
a sua ideologia no Tratado teológico-político),
ou sobre a sociedade em geral como Hobbes
em De eive e Leviathan, como o próprio Spi­
noza no Tratado político. Não fazem uma teo­
ria da história real, fazem uma teoria da essên­
cia da sociedade. Não explicam determinada
sociedade particular, nem determinado período
histórico concreto, e muito menos o todo das

1 Defena ão EL, II Parte: Ideia geral.

21
sociedades e da história. Analisam a essência da
sociedade e dão dela lun modelo ideal e abs-
tracto. Pode dizer-se: a ciência destes autores
está separada da ciência de Montesquieu pela
mesma distância que separa a fisica especulativa
de um Descartes da física experimental de um
Newton. Uma atinge directamente nas essências
ou naturezas simples a verdade a priori de todos
os factos físicos po'Ssíveis, a outra parte dos fac­
tos, observa as suas variações para deles extrair
as leis. Esta diferença no oibjecto implica, de­
termina uma revolução no método. Montesquieu
não foi 0 primeiro a conceber a ideia de uma
física social, mas foi o primeiro a querer dar-
-Ihe o espírito da física nova, a querer partir,
não das essências, mas dos factos e a partir*
dos factos extrair as leis.
Assim se vê simultâneamente o que une
Montesquieu aos teóricos que o precedem e o
que o distingue deles. Tem em comum com
eles um mesmo projecto: edificar a ciência
política. Mas m o tem o mesmo ohjecto, uma
vez que se propõe fazer a ciência, não da socie­
dade em geral, mas de todas as sociedades con­
cretas da história. E por isso não tem o mesmo
método, pois o que se propõe não é captar
essências, mas descobrir leis. Esta unidade no
projecto e esta diferença no objecto e no mé­
todo, fazem de Montesquieu simultaneamente o
homem que deu às exigências científicas dos
seus predeoessores a forma mais rigorosa — e

22
o adversário mais decidido da abstracção da­
queles.
O projecto de constituir uma ciência da polí­
tica e da história supõe que a política e a his­
tória podem ser objecto de uma ciência, isto é
contêm uma necessidade que a ciência pretende
descobrir. Logo, é preciso destruir a ideía cép-
tica de que a história da humanidade não é
senão a história dos seus erros; de que um
só princípio pode unir a prodigiosa e desencora-
jante diversidade dos costumes: a fraqueza hu­
mana; de que uma só razão pode esclarecer
esta desordem infinita: a irracionalidade do
homem. Ê necessário dizer: Comecei por exa­
minar os homens e concluí que na infinita di­
versidade das leis e dos costumes, não eram
conduzidos apenas pelas suas fantasias (EL,
Prefácio), mas por uma razão profunda que,
embora nem sempre razoável, é pelo menos
sempre racional; por uma necessi'dade cujo
‘poder é tão forte que nela entram não só insti­
tuições bizarras, mas até o próprio acaso que
faz com que se perca ou ganhe uma batalha e
pode determinar uma conjuntura qualquer
Através desta necessidade racional é rejeitada,
com o cepticismo que lhe serve de pretexto,
toda a tentação apologética pascaliana que pro­
cura a todo 0 transe na desrazão humana a

2 EL, X, 13 (Pultava). Considerações, X V in .

23
prova de uma razão divina; e todo o recurso a
princípios que no homem passam por cima do
homem, como a religião, ou lhe impõem fins,
como a moral. A necessidade que governa a
história, para começar a ser científica, deve
deixar de beber a sua razão em qualquer ordem
que transcenda a história. É portanto necessá­
rio varrer do caminho da ciência pretensões de
uma teologia ou de uma moral que pretende-
riam ditar-lhe leis.
Não é à teologia que cabe enunciar a ver­
dade dos factos da política. Velha querela, esta.
Mas hoje imaginamos dificilmente quanto pe­
sava sobre a história o decreto da Igreja.
Basta lermos Bossuet em guerra aberta contra
Spinoza, culpado de ter esboçado uma histó­
ria do povo judeu e da Bíblia, ou contra Ri-
chard Simon, que concebeu o mesmo projecto
no seio da própria Igreja, para termos uma
idéia da violência do conflito entre a teologia
e a história. Este conflito ocupa toda a Défense
ãe 1’Esprít des lois. Acusam Montesquieu de
ateísmo, de deísmo; de ter calado o pecado
original; justificado a poligamia, etc; numa
palavra, de ter reduzido as leis a causas pura­
mente humanas. Montesquieu responde: intro­
duzir a teologia em história, é confundir as
ordens e misturar as ciências, o que é o meio
mais seguro para as deixar na infância. Não,
o seu propósito não é fazer de teólogo; não é
teólogo, mas jurisconsuito e político. Está de
acordo em que todos os objectos da ciência

24
política .possam ter também um sentido reli­
gioso, que se possa discutir o celibato, a
usura, a poligamia, como teólogo. Mas todos
estes factos relevam também e anites de mais
de uma ordem estranha à teologia, de uma or­
dem autônoma que tem os seus princípios pró­
prios. Deixem-no pois em paz. Não proíbe que
se ajuize como teólogo. Cedam-lhe portanto em
troca disso o direito de ajuizar como 'político.
E não se procure teologia na sua política. Há
tanto de teologia na sua política como de cam­
panário de aldeia no óculo através do qual um
cura vê a lua
A religião não pode portanto impedir a
história de tomar foros de ciência. A moral
também não. Montesquieu avisa, cuidadosa­
mente e desde o início, que é preciso não se
ler moral onde escreve política. Assim a pro­
pósito da virtude. Não é uma virtude moral
'nem uma virtude cristã, é a virtude política
{EL, Avertissement). E se volta uma série de
vezes a este aviso, é para ferir o mais profundo
dos preconceitos: em todos os países do mundo
as pessoas aspiram à moral {EL, Avertisse­
ment). Já Hobbes e Spinoza tinham o mesmo
discurso: todos os deveres do mundo não dão
um só passo no sentido do conhecimento; na
moral própria a estes deveres que pretende

3 Defesa ão EL, i Parte, H: Resposta à 9.* objecção.

25
fazer do homem aquilo que ele não é, o homem
confessa com demasiada evidência que as leis
que 0 governam não são morais. Que se decida
pois rejeitar a moral se se quiser penetrar
estas leis. Objectam a Montesquieu as virtudes
humanas e as virtudes cristãs quando este pro­
cura comipreender os usos escandalosos dos chi­
neses e dos turcos! Mas não é com estas ques­
tões que se fazem os livros de física, de política,
de jurisprudência *. Também neste aspecto con­
vém distinguir as ordens distintas: nem todos
os vícioe políticos são vícios morais, e nem to­
dos os vícios morais são vícios políticos (EL,
XIX, 11). Visto que cada ordem tem as suas
leis, só as defende a elas. Montesquieu res­
ponde aos teólogos e aos moralistas que apenas
quer falar humanamente da ordem humana das
coisas e politicamente da ordem política. De­
fende a sua mais profunda convicção: que uma
ciência do político jamais poderá fundar-se em
algo que não seja o seu objeeto próprio, na
autonomia radical do político como tal.
Mas a causa ainda não está exposta. Não
basta distinguir as ciências e as suas ordens:
na vida, as ordens entrançam-se umas nas ou­
tras. Admitindo que a verdadeira religião, a
verdadeira moral, enquanto princípios de ex­
plicação, estejam excluídas da ordem política.

* Defesa do EL, II Parte: Clima.

26
pertencem no entanto a esta ordem pelas con­
dutas ou pelos escrúpulos que inspiram! Ê aqui
que o conflito se agudiza. Porque se pode par-
feitamenite dar à moral o que é da moral e ajui­
zar apenas em termos de pura política. Tudo
corre bem quando se fala da horrível moral dos
japoneses ou da tenebrosa religião dos turcos.
Todos os teólogos do mundo gostariam de o
fazer ou de o ver feito. Mas quando por acaso
se encontra a verdadeira moral! E a verda­
deira religião! Poderão também ser tratadas
«humanamente», como coisas puramente hu­
manas? Poder-se-á mostrar, como se faz rela­
tivamente às pagãs, que a moral e a religião
cristãs se explicam pelo regime político, dois
graus de latitude, um céu demasiado rude, por
costumes de comerciantes ou de pescadores?
Poder-se-á afirmar que foi a diferença dos
climas que conservou o catolicismo no Sul da
Europa, e generalizou o protestanitismo no
Norte? Poder-se-á autorizar assim uma so­
ciologia -política da religião e da moral? 0 con­
tágio do mal obriga assim que se regresse à
origem deste, e ver-se-ão os teólogos como que
dilacerados pelo destino reservado a Maomé
ou aos chineses. Porque era da vontade de to­
dos que estas religiões falsas não fossem mais
que criações do homem e portanto caíssem sob
os olhares da ciência, mas como evitar que
este olhar não abarque as verdadeiras reli­
giões ? Daí o teólogo que fareja a heresia numa
teoria demasiado humana das rehgiões falsas.

27
E Montesquieu que se bate e se defende na
margem terrivelmente estreita que separa as
suas convicções de crente (ou as suas precau­
ções de espírito maligno), das suas exigências
de estudioso. Porque não há dúvida de que
Montesquieu expõe muitas vezes, através dos
seus exemplos, toda a argumentação de uma
verdadeira teoria sociológica das crenças reli­
giosas e morais. Religião e moral, às quais re­
cusa precisamente que julguem a história, não
ipassam de elementos internos relativos a socie­
dade dadas, elementos que moldam a forma e
a natureza dessas sociedades. O princípio que
analisa uma sociedade, explica-lhe também as
crenças. Que resta então da distinção das or­
dens? A distinção, se a quisermos reter, o que
aliás é muito necessário, passa assim através
da própria ordem do religioso e do moral. Dir-
-se-á portanto que a religião pode ser encarada
no seu sentido e no seu papel humanos (que
recaem no campo de estudo de uma sociologia),
ou no seu sentido religioso (que lhe escapa).
E deste modo Montesquieu recua, não querendo
dar o salto.
Daí a acusação de ateísmo e a fragilidade
da sua defesa. Porque embora pondo vigor nas
suas respostas, não pôde imprimir força às
suas razões. Querem convencê-lo de que é ateu?
Tem por único argumento: não é de ateu es­
crever que este mundo que segue sozinho o seu
curso e as suas leis, foi criado por uma inteli­
gência. Afirmam-no adepto do spinozismo, da

28
religiÊío natural? A sua única réplica é: a reli­
gião natural não é ateísmo, e aliás não pro­
fesso a religião natural. Todas estas «retira­
das» não enganaram nem os seus adversários
nem os seus amigos. Aliás, a melhor defesa
que faz da religião, o elogio que dela faz aber­
tamente na Segunda Parte do Esprit des Lois,
tanto pode ser de um cínico como de um crente.
Veja-se a polêmica com Bayle {EL, XXIV, 2,
6). Bayle queria que a religião fosse contrária
à sociedade (é o sentido do paradoxo sobre
03 ateus). Montesquieu opõedhe que ela lhe
é indisipensável e proveitosa. Mas contudo,
permanece dentro do princípio de Bayle: fun­
ção social, utilidade social e política da reli­
gião. Toda a sua admiração se resume a mos­
trar que a religião cristã, que apenas aspira
ao céu, é muito conveniente à terra. Mas to­
dos os «políticos» utilizaram esta linguagem
e sobretudo Maquiavel. Nesta linguagem tão
«humana», não há lugar para a fé. São por­
tanto necessárias razões muito diferentes, para
se conquistar um teólogo.
Estes dois princípios prévios a toda a ciên­
cia política: que é preciso não ajuizar da his­
tória através de critérios religiosos ou morais,
que, pelo contrário, é preciso colocar a religião
e a moral dentro dos factos da história, e sub­
metê-los à mesma'ciência, não distinguem no
entanto radicalmente Montesquieu dos seus pre-
decessores. Hobbes e Spinoza disseram em li­
nhas gerais a mesma coisa, e como ele foram

29
acusados de ateus. A singularidade de Montes-
quieu está precisamente em atacar estes teó­
ricos de quem é no entanto o herdeiro, e de se
opor decisivamente às teorias ão direito natu­
ral de que foram, pelo menos na sua grande
parte, os doutrinários.
Precisemos este ponto. Na sua obra sobre
a teoria política, Vaughan ®mostra que todos
os teóricos políticos dos séculos XVII e XVIII
são, à excepção de Vico e de Montesquieu, teó­
ricos do contrato social. Que significa esta
excepção? Para avaliarmos dela, convem-nos
ter uma perspectiva rápida da teoria do di­
reito natural e do contrato social.
O que une os filósofos do direito natural,
é 0 facto de colocarem o mesmo problema:
qual a origem da sociedade? e de o resolverem
pelos mesmos meios: o estado natural e o con­
trato social. Hoje pode parecer muito singular
que se levante tal problema de origem, e que
se coloque a interrogação de como é que os
homens, cuja existência, até física, supõe sem­
pre um mínimo de existência, social, puderam
passar de um estado nulo de sociedade a rela­
ções sociais organizadas e como é que trans­
puseram este limiar imaginário e radical. Ê
este no entanto o problema da reflexão polí-

* VAUGHAN, History of political Philosophy, II,


pp. 253 sg.

30
ti'ca da época, e se a sua forma é estranha, a
sua lógica é profunda. Para se mostrar a
origem radical da sociedade (pense-se em Lei-
bniz querendo caiptar «a origem radical das
coisas»), é preciso tomar os homens antes da
sociedade: no estado nascente. Saindo da terra
como abóboras, diz Hobbes. Como nus, dirá
Rousseau. Despidos não só de todos os meios
da arte, mas sobretudo de todos os laços hu­
manos. E tomá-los num estado que seja como
que o nada de sociedade. Este estado origi­
nário recebe traços diferentes segundo os au­
tores. Hoibbes e Spinoza vêm nele o reino do
estado de guerra, o triunfo do forte sobre o
fraco. Locke, a paz. Rousseau, a solidão abso­
luta. Os diferentes traçados do estado natural
ora se lançam no desenho das razões que os
homens tiveram para sair dele, ora esboçam
as forças geradoras do estado social que está
para vir e o ideal das relações humanas. Para­
doxalmente, este estado ignorante de todo o
tipo de sociedade, contém e prefigura o ideal
de uma sociedade a criar. É o fim da história
inscrito na origem. Assim a «liberdade» do
indivíduo em Hobbes, Spinoza e Locke. Assim
a igualdade e a independência do homem em
Rousseau. Mas todos estes autores têm em
comum 0 mesmo conceito e o mesmo problema:
0 estado natural é apenas a origem de uma
sociedade de que querem descrever a gênese.
Ê o contrato social que assegura a passa­
gem do nada de sociedade à sociedade exis-

31
tente. Também neste aspecto pode parecer es­
tranho que se represente que o estabeleci­
mento de uma sociedade seja o efeito de uma
convenção geral, como se toda a convenção não
supusesse já uma sociedade estabelecida. Mas
temos de aceitar esta problemática visto que
foi considerada necessária e pergnntarmo-nos
apenas o que significa este contrato, que não é
um simples artifício jurídico, mas a expressão
de razões muito profundas. Dizer que a socie­
dade dos homens provém de um contrato equi­
vale de facto a declarar pròpriamente humana
e artificial a origem de qualquer instituição
social. Ê dizer que a sociedade não é o efeito
nem de uma instituição divina, nem de uma
ordem natural. É portanto recusar uma velha
ideia do fundamento da ordem social e pro­
por outra nova. Vemos assim que tipo de adver­
sários se levantam diante da teoria do con­
trato: não só os teóricos da origem divina de
toda a sociedade, que podem servir muitas
causas, embora então servissem na maioria
dos casos, a da ordem estabelecida, mas so­
bretudo os partidários do carácter «natural»
(e não artificial) da sociedade, os que pensam
as relações humanas prèviamente desenhadas
numa natureza que não é mais que a projecção
da ordem social existente, numa natureza em
que os homens estão prèviamente inscritos em
ordens e estados. Numa palavra: a teoria do
contrato social revoluciona de uma maneira
geral as convicções próprias à ordem feudal,

32
a crença numa desigualdade «natural» exis­
tente entre os homens, na ^recessidade das
ordens e dos estados. Substitui pelo contrato
entre iguais, por uma obra da arte humana,
o que os teóricos feudais atribuíam à «natu­
reza» e à sociabilidade natural do homem. Na
época, um índice seguro de descriminação
entre as tendências é considerar-se que a
doutrina da sociabilidade natural ou do ins­
tinto' de sociabilidade designa uma teoria de
inspiração feudal, e a doutrina do contrato
social, uma doutrina de inspiração «burguesa»,
mesmo quando está ao serviço da monar­
quia absoluta (como por exemplo em Hobbes).
De faoto, a ideia de que os homens são os
autores da sua sociedade através de um pacto
originário, que por vezes se. desdobra num
pacto de associação (civil) ou num pacto de
domínio (político) é então uma ideia revolucio­
nária, fazendo, na teoria pura, eco aos conflitos
sociais e políticos de um mundo em gênese.
Esta ideia é simultaneamente um protesto
contra a antiga ordem e um programa para
a ordem nova. Priva a ordem social estabele­
cida e todos os problemas políticos então deba­
tidos do recurso à «natureza» (pelo menos
à «natureza» fonte de desigualdades), denun­
cia em tais argumentos uma impostura e funda
as instituições que os seus autores defendem,
inolusivamente a monarquia absoluta em luta
contra os feudais, na convenção humana. Dá
assim poder aos homens de irejeitarem as ins-

33
tituições amtigas, de fundarem novas institui­
ções e se necessário, de as revogar ou reformar
através de uma convenção nova. Nesta teoria
d(' estado natural e do contrato social, que nos
surge como pura especulação, vemos uma or­
dem social e política decadente, e homens que
fundam, assente em princípios engenhosos, a
ordem nova que querem defender ou edificar.
Mas este caracter polêmico e reivinãicativo
da teoria do direito natural explica precisa­
mente a sua abstracção e o seu idealismo.
Disse anteriormente que estes teóricos estavam
agarrados ao modelo de uma física cartesiana
a qual conhece apenas essências ideais. Na
verdade não é só a física que está em causa.
E os que pretendem ajuizar de Montesquieu
referindo-o a Descartes, como já se fez ® , ou
a Newton, reduzi-lo-iam a uma aparência ime­
diata, mas abstracta. O modelo físico, neste
caso, não é mais que um modelo epistemoló-
gico; as suas verdadeiras razões são-lhe em
parte exteriores. Se os teóricos de que falo
não se propuseram o objecto de Montesquieu:
compreender a infinita diversidade das insti­
tuições humanas de todos os tempos e luga­
res, não foi apenas pela simples aberração de
um método inspirado no modelo cartesiano da

« LiANSON, Revue do métaiphysique et de mo-


ralc, 1896.

3d
ciência, foi também por motivos de origem
muito diferente. Não pretendiam explicar as
instituições de todos os povos do mundo, mas
combater uma ordem estabelecida ou justificar
uma ordem nascente ou em vias de nascer. Não
pretendiam compreender todos os factos^ mas
funda/r, isto é, propor e justificar uma ordem
nova. Ê esta a razão pela qual seria aberrante
procurar em Hobbes ou em Spinoza uma ver­
dadeira história da queda de Roma ou do sur­
gimento das leis feudais. Não iam aos factos.
Rousseau dirá prontamente que é preciso
começar por afastar todos os factos \ Iam ao
direito^ isto é ao que deve ser. Para eles os
factos não eram mais que matéria para o exer­
cício desse direito, como que a ocasião simples
e 0 reflexo da sua existência. Mas por isso
mesmo permaneciam naquilo a que se pode
chamar uma atitude polêmica e ideológica.
Faziam do partido que tomavam a razão da
história. E os seus princípios, que tinham na
conta de ciência, não eram senão valores com
uma função nos combates do tempo — valores
que eles tinham escolhido.
Não quero dizer que tudo seja vão nesta
empresa gigantesca: poderiamos mostrar-lhe
os efeitos que são grandes. Mas vemos como

T ROTJSSEAU, D iscurso sohre a origem da desi­


gualdade. Introdução (Edição portuguesa, Ed. Pre­
sença, Lisboa), 1971.

35
os propósitos de Montesquieu o afastam destas
perspectivas e nesta distância distinguem-se
melhor as suas razões. São duplas, políticas e
metodológicas, estreitamente ligadas entre si.
Que se medite pois nesta ausência de con­
trato social em Montesquieu. Há um estado
natural, de que o livro primeiro do Esprit des
Lois nos dá uma descrição rápida, mas não um
contrato social. Nunca ouvi falar do direito
público, diz pelo contrário Montesquieu na 44.-'"
Lettre Persane, sem que não se comece por
procurar cuidadosamente qual é a origem das
sociedades: o que me parece ridículo. Se os
homens não vivessem em socied.ade, se se aban­
donassem e fugissem uns aos outros, seria
necessário determinar a razão de tal coisa e
procurar saber porque é que se mantinham
separados. Mas já nascem unidos; um filho
nascido junto do pai, permanece com ele: aqui
está a sociedade e a causa da sociedade. Isto
diz tudo. Condenação do problema da origem:
absurdo. A sociedade precede-se sempre a si
própria. O único problema, se ele existisse,
seria saber porque é que os homens não têm
sociedade. Não há contrato algum. Para expli­
car a origem da sociedade basta um homem
e 0 seu filho. Assim, não surpreende, na rápida
análise do estado natural do livro I, o facto
de uma outra lei ocupar o lugar deste contrato
ausente: o instinto de sociedade. Aqui está
uma indicação que permite qualificar Montes­
quieu como adversário da teoria do direito

36
natural por razões provenientes de uma to­
mada de partido anti-fevdal. Toda a teoria
política do Esprit des Lois contribuirá para
sedimentar esta convicção.
■ Mas a recusa consciente do problema e dos
conceitos da teoria do direito natural conduz
a uma segunda indicação já não política, mas
metodológica. A novidade radical de Montes-
quieu está bem patente sob este aspecto. Ao
rejeitar a teoria do direito natural e do con­
trato, Montesquieu rejeita também as implica­
ções filosóficas destas problemáticas, e sobre­
tudo, o idealismo dos seus métodos. Situa-se
do lado oposto, pelo menos na sua deliberação
de ajuizar os factos pelo direito e de propor,
a coberto de uma gênese ideal, um fim para as
sociedades humanas. Apenas conhece factos.
Se não ajuiza o que é pelo que deve ser, é que
não extrai os seus princípios dos seus precon­
ceitos, mas da natureza das coisas {EL, Pre­
fácio). Preconceitos; ideia de que a religião e
a moral podem julgar a história. Este precon­
ceito constituía um princípio base de alguns
dos teóricos do direito natural. Mas preconceito
é também: a ideia de que a abstracção de um
ideal político, mesmo revestido pelos princí­
pios da ciência, possa ser tomado por história.
Assim Montesquieu rompia radicalmente com
os doutrinários do direito natural. Rousseau
não se enganava ao escrever: O direito polí­
tico ainda está por nascer... O único moderno
capaz de criar esta grande e inútil ciência te-

37
ria sido o ilitstre Montesquieu. Mas só se inte­
ressou em analisar os princípios do direito
político; contenta-se com tratar do direito po­
sitivo dos governos estabelecidos; e não há
nada no mundo tão diferente como estes dois
estvÂos. Portanto, aquele que quiser ajuizar
convenientemente os governos tal como eles
existem, é obrigado a servir-se de ambos: para
se ajuizar do que existe, é preciso saber-se o
que deve existir (Emile, V).
Este Montesquieu que, iprecisamente, se re­
cusa a ajuizar o que existe pelo que deve exis­
tir, que apenas quer dar à necessidade real da
história a forma da sua lei, extraindo esta lei
da diversidade dos factos e das variações des­
tes, este homem está só diante da sua tarefa.

38
II

U M A W O VA T E O R íA D A LES

Recusa de submeter a matéria dos factos


(políticos a princípios religiosos e morais, re­
cusa de a submeter aos conceitos abstractos
da teoria do direito natural, que não são mais
que juízos de valor mascarados, é isto que
afasta os preconceitos e abre a estrada real
da ciência. É isto que introduz às grandes revo­
luções teóricas de Montesquieu.
A mais célebre destas revoluções teóricas
cabe em duas linhas que definem as leis. As
leis... são as relações necessárias que derivam
da natureza das coisas {EL, I, 1). O teólogo
da Défense, que não é tão ingênuo quanto
Montesquieu o quer fazer, não acredita nos
seus próprios olhos. As leis, relações! Isto
pode-se lá conceber? No entanto, não foi sem
intenção que o cmtor alterou a definição vulgar

30
das leis ^ E não se enganava. Diga ele o que
disser, a intenção de Montesquieu era de alte­
rar algo na definição estabelecida.
Conhecemos a longa história do conceito
de lei. A sua acepção moderna (o sentido de
lei científica) só surge nos trabalhos dos físi­
cos e dos filósofos dos séculos XVI e XVII.
E mesmo nessa época traz ainda marcas do
seu passado. Antes de adquirir o novo sentido
de uma relação constante entre variáveis feno­
menais, isto é, antes de estar ligada à prática
das ciências experimentais modernas, a lei per­
tencia ao mundo da religião, da moral e da
política. Estava impregnada de exigências di-
rectamente ligadas às relações humanas. A lei
pressupunha portanto seres humanos ou seres
à imagem do homem. Era pois mandamento.
Queria portanto uma vontade para ordenar e
vontades para obedecer. Um legislador e súb-
"ditos. A lei possuía assim a estrutura da acção
humana consciente: tinha um ohjectivo, desig­
nava uma finalidade, ao mesmo tempo que
exigia uma espera. Para os sujeitos que viviam
soh a lei, oferecia o equívoco do constrangi­
mento e do ideal. Ê este sentido e os seus
harmônicos que domina inteiramente o pen­
samento medieval de Santo Agostinho a S. To­
más. Visto que a lei tinha uma única estrutura,

1 Defesa do EL, I Parte, I: I obj,ecçãx5.

40
podia-se falar na lei divina, nas leis naturais,
nas deis positivas (humanas) num mesmo sen­
tido. A mesma forma de mandamento e de fim
achava-se em todos os casos. A lei divina do­
minava todas as leis. Deus dera as suas ordens
a toda a natureza e aos homens, e assim, fixa­
ra-lhes os seus respectivos fins. As outras leis
não eram mais que o eco deste mandamento
originário, repetido e atenuado no universo
inteiro, na comunhão dos anjos, nas socieda­
des humanas, na natureza. Sabe-se que é pró­
prio dos que dão ordens, pelo menos em certos
corpos, gostar de serem obedecidos.
A ideia de que a natureza podia ter leis que
não eram ordens, levou tempo a libertar-se
desta herança. Veja-se Descartes querendo
atribuir a um decreto de Deus as leis que des­
cobre nos corpos: conservação do movimento,
queda, choque. Com Spinoza, nasce a consciên­
cia de uma primeira diferença. Ê por metáfora
que se vê a palavra lei aplicada às coisas na­
turais, pois normalmente quando se diz lei,
diz-se mandamento Este longo esforço con­
segue, no século XVn, encontrar um domínio
próprio para o novo sentido de lei: o da natu­
reza, o da física. Ao abrigo do decreto de Deus,
que lá das alturas protegia ainda a antiga
forma da lei, salvando as aparências, desen-

2 SPINOZA, Tratado teolóffico-poKtico, IV.

41
volvia-«e uima nova forma de lei, que a pouco
e pouco, passando de Descartes a Newton, to­
mou a forma que Montesquieu enuncia: Uma re­
lação constantemente estabelecida entre termos'
variáveis, e tal que cada, diversidade ê unifor­
midade, cada transformação, constância (EL,
I, 1). Mas de que valiam os corpos caindo e
entrechocando-se, e os planetas seguindo a sua
órbita, se se co^ncebia ainda mal que se pu­
desse fazer disso um modelo universal?! O an­
tigo sentido da lei, que é ordem e fim enun­
ciados por um senhor, conservava as suas
posições de origem: o domínio da lei divina,
o domínio da lei moral (ou natural), o domí­
nio das leis humanas. E verifica-se inclusiva-
mente, o que à primeira vista é paradoxal, que
os teóricos do direito natural que referimos
davam à antiga acepção da lei o apoio dos
seus conceitos. É claro que também eles tinham
«laicizado» a «lei natural» e que, para eles, o
Deus que a ditara ou o decreto desse Deus,
de guarda junto dela, eram tão inúteis como
o Deus de Descartes: nada mais que um espan­
talho contra os ladrões. Mas tinham conser­
vado a estrutura teológica da sua antiga acep­
ção, 0 seu caracter de ideal mascarado sob as
aparências imediatas da natureza. Para eles,
a lei natural não era só um dever, era uma
necessidade. Todas as suas reivindicações en­
contravam refúgio e apoio numa definição da
lei ainda estranha à nova definição.

42
Ora, em duas linhas, Montesquieu propõe
muito simplesmente que se rejeite a antiga
aeepção da palavra lei, dos domínios em que
ela ainda imperava. E que se consagre para a
totalidade dos seres, de Deus à pedra, o reino
da definição moderna; a lei-relação. Neste
sentido, todos os seres têm as suas leis: a di­
vindade tem as suas leis, o mundo material tem
as suas leis, as inteligências superiores ao ho­
mem têm as suas leis, os animais têm as suas
leis, o homem tem as suas leis {EL, I, 1). Isto
diz tudo. Desta vez, é o fim das reservas inter­
ditas. Imagina-se o escândalo. É claro que
Deus continua no seu posto para imprimir o
movimento senão as alterações. Criou o mundo.
Mas não é mais que um dos termos das rela­
ções. É a razão primitiva, mas as leis põem-no
em pé de igualdade com os seres: As leis são
as relações existentes entre ela (a razão pri­
mitiva, isto é Deus) e os diferentes seres, e a
relação destes diversos seres entre si (EL,
I, 1). E se acrescentarmos que o próprio Deus
que institui estas leis, criando os seres, vê o
seu próprio decreto originário submetido a uma
necessidade do mesmo tipo, o próprio Deus é,
do interior, invadido pelo contágio universal da
lei! Se fez estas leis que governam o mundo, é
que elas têm relação com a suo. sabedoria e a
sua potência. Resolvidas as coisas no que se
refere a Deus, tudo o resto cai. O melhor meio
para aniquilar o adversário é pormo-nos ao lado
dele. Perscrutava os antigos domínios. EHos

43
abertos diante de Montesquieu, e para começar
o mundo inteiro da existência dos homens nas
suas cidades e na sua história. Pinalmente,
vai poder impôr-lihes a sua lei.
Vejamos bem de frente o que esta revolu­
ção teórica implica. Supõe que é possível
aplicar às matérias da política e da histó-
, ria uma categoria newtomiana da lei. Supõe
que é possível extrair das próprias insti­
tuições humanas matéria para pensar a sua
diversidade numa unidade, a sua mudança
numa constância: a lei da sua diversificação, a
lei do seu devir. Esta lei não será já uma ordem
ideal, mas uma relação imanente aos fenô­
menos Não será dada na intuição das essên­
cias, mas extraída dos próprios factos, sem
idéias preconcebidas, pela investigação e pela
comparação, por taeteamentos. No momento da
descoberta será apenas hipótese e só se tomará
princípio uma vez verificada por toda a espé­
cie de fenômenos diversos: Seguia o meu

3 Evidente ressonância newtomana das fórmulas de


Montesquieu: o autor, diz de si ipróprio, «não fala das
causas, não compara as causas; mas fala dos efeitos
e compara os efeitos» (D efesa do E L , I Parte, I:
Resposta à 3.“ objeegão). Cf. igualmente esta noita sobre
a poligamia: «JSTão é de modo nenhum uma questão de
cálculo quando se raciocina sobre a sua natureza; pode
ser uma questão de cálculo quando se combina os seus
efeitos» (D efesa do E L , EC Parte: I>a poligamia).

44
ohjecto sem plano: nãxD conhecia nem as regras
nem as excepções; se encontrava a verdade,
era para a perder em seguida: mas quando
descobri os meus princípios, tudo o que pro­
curava veio a mim {EL, Prefácio). Estabelecí
os princípios e vi os casos particulares dobra-
rem-se-lhes por si mesmos, a história de todas
as nações não serem mais que a consequên­
cia deles... {EL, Prefácio). Embora sem a ex­
perimentação directa, é de facto o próprio
ciclo de uma ciência empírica à procura da lei
do seu objecto que assim encontramos.
Mas esta revolução teórica supõe igual­
mente que não se confunda o objecto da inves­
tigação científica (neste caso as leis civis e
políticas das sociedades humanas) com os re­
sultados da investigação em si: não se pode
brincar com a palavra lei. Aqui está uma peri­
gosa confusão que provém do facto de Montes-
quieu, que em todos os objectos do conheci­
mento extrai dos factos as leis, procurar aqui
conhecer este objecto particular que são as leis
positivas das sociedades humanas. Ora as leis
que se encontram na Grécia no século V, ou no
Reino da Primeira Raça dos Francos, não são
leis no sentido primeiro da palavra: leis cien­
tíficas. São instituições jurídicas de que Mon-
tesquieu pretende enunciar a lei (científica)
de constituição ou de evolução. Di-lo muito
claramente, disitinguindo as leis e o espírito
destas: Não trato das leis, mas do espírito das
leis... este espírito consiste em diversas rela­

45
ções que as leis podem ter com diversas
coisas... (EL I, 3). Montesquieu não confunde
portanto as leis do seu objecto (o espírito das
leis), com o seu objecto em si (as leis). Julig'o
que esta distinção simples é indispensável para
evitarmos cair num erro. No mesmo Livro Pri­
meiro, após ter mostrado que todos os seres
do universo, inclusive Deus, estão submetidos
a leis-relações, Montesquieu encara a diferença
de modalidade destas leis. Distingue assim as
leis que governam a matéria inanimada e que
nunca conhecem qualquer espécie de variação,
das leis que regulam os animais e os homens.
À medida que os graus do ser se vão elevando,
as leis perdem em fixidez e a observação des­
tas em exactidão. O mundo inteligente deve
ser tão bem governado como o mundo físico
(EL, I, 1). Assim o homem, que tem sobre os
outros seres o privilégio do conhecimento,
está à mercê do erro e das paixões. Daí as suas
oscilações: Como ser inteligente que é, o ho­
mem viola constantemente as leis estabeleci­
das por Deus, e do mesmo modo transforma
as que ele próprio estabeleceu (EL, I, 1). Pior
ainda: nem sempre observa as que ele próprio
criou. Ora é preoisamente eSte ser errante atra­
vés da sua história, que é o objecto das investi­
gações de Montesquieu: um ser cuja conduta
nem sempre obedece às leis que lhe são dadas,
e que além disso pode ter leis particulares fei­
tas por ele: as leis positivas, sem que isso queira
dizer que as respeite.

46
Estas reflexões podem ser interpretadas
como de um moiralista deplorando a fraqueza
do homem. Parecem-me no entanto mais de
um teórico que se depara neste campo com um
equívoco profundo. Pode-se de facto dar desta
distinção da modalidade das leis duas interpre­
tações diferentes, que representam duas tendên­
cias no próprio Montesquieu.
Na primeira, poder-se-á dizer: com base
no princípio metodológico segundo o qual as
leis de relação e de variação que se podem
extrair das leis humanas são distintas dessas
leis, os erros e as oscilações dos homens rela­
tivamente às suas próprias leis nada põem em
causa. Ê que o sociólogo não depara, como o
físico, com um objecto (o co:rpo) que obedeça
a um determinismo simples, e siga uma linha
de que não se afasta— mas com um tipo de
objecto muito particular: os homens, os ho­
mens que se afastam até das leis que eles pró­
prios criaram. Que dizer então dos homens na
sua relação com as leis deles ? — ■ Que as alte­
ram, as contornam ou violam. Mas nada disto
afecta a ideia de que se pode extrair, desta
conduta indiferentemente submetida ou re­
belde, uma lei que os homens seguem sem o
saberem e a verdade dos erros que cometem.
Para se perder a coragem de descobrir as
leis da conduta dos homens, é preciso cair
na ingenuidade de tomar as leis que os ho­
mens se dão a si próprios pela necessidade
que os governa! Na verdade, o erro, a aber­

47
ração dos htumores, a transifoirimaçãx> e a vio­
lação das leis por eles próprios criadas, fazem
pura e simplesmente parte da conduta dos ho­
mens. O que interessa é determinar as leis da
violação das leis ou da transformação desitas.
É precisamente isso que Montesquieu faz em
quase todos os capítulos do Esprit des Lois.
Abre-se um livro de história (as sucessões entre
os romanos, a justiça nos primeiros tempos da
feudalidade, etc.); vê-se que o erro e a variação
humana constituem precisamente o seu objecto.
Esta atitude supõe um princípio de método
muito fecundo, que consiste em não tomar os
motivos da acção humana pelos seus móbeis,
os fins e as razões que os homens se propõem
conscientemente pelas causas reais, na maioria
dos casos inconscientes, que os levam a agir.
Montesquieu apela constantemente para causas
que os homens ignoram: o clima, o terreno,
os costumes, a lógica interna de um conjunto
de instituições, etc., para explicar as leis hu­
manas e a desfazagem entre a conduta dos
homens e as leis «primitivas» (que são as leis
naturais da moral), por um lado, e as leis
positivas. Tudo leva a crer que Montesquieu
não tenha querido enunciar também o mau
espírito humano das leis: a lei da violação des­
tas, num mesmo princípio.
Esta interpretação permite talvez dar um
sentido mais a um tema que aparece constan­
temente em Montesquieu, e que parece dizer
respeito aos «deveres» da lei. De facto, multas

48
vezes Montesquieiu, ao falar das leis humanas
e sobretudo, das leis humanas existentes apela
para leis melhores. Estranho paradoxo da parte
de um homem que recusa ajuizar do que é pelo
que deve ser — e que no entanto cai assim no
desvio que ele próprio denuncia! Diz por exem­
plo (o que destoa de todas as leis desprovidas
desta razão que descreve no seu livro) que a
lei em geral é a razão humana, na medida em
que é ela que governa todos os povos da tema
(EL, I, 1). Diz ainda que as leis devem ser
relativas ao povo, que devem ser relativas ã
natureza e ao princípio do governo, que devem
ser relativas às características físicas do país,
etc. 0 número destes deveres é infindável. E
quando se ,pensa, na definição que Montesquieu
dá da natureza e do princípio, ter captado a
essência de um governo, é com espanto que se lê :
O que não significa que numa república se seja
virtuoso, mas que se deveria sê-lo sem o que o
governo seria imperfeito (EL, III, 11). O próprio
despotismo, para ser «iperfeito», e sabe Deus de
que gênero de perfeição, tem deveres a respei­
tar! A partir destes textos conclui-se de uma
maneira geral: é o teórico do ideal ou o legis­
lador que toma o lugar do estudioso. Este quer
apenas factos, o outro propõe-se fins. Mas tam­
bém aqui 0 mal-entendido repousa em parte no
jogo de palavras entre as duas leis: as leis que
ordenam realmente as acções dos homens (as
leis que o estudioso investiga) e as leis orde­
nadas pelos homens. Quando Montesquieu pro-

49
põe deveres às leis, rofere-se apenas às leis
que os homens criam. E este «dever» não é
mais que o apelo para que se ponha fim à
distância que separa as leis que governam os
homens sem que estes o saibam das leis que
eles fazem e que iconhecem. Trata-se pois de
um apelo ao legislador, um apelo para que o
legislador, instruído das ilusões da consciência
comum, crítico desta consciência 'ceiga, se reigule
pela consciência esclarecida do estudioso, isto é
pela ciência, e na medida do possível ponha ©m
conformação as leis conscientes que dá aos ho­
mens com as leis inconscientes que os gover­
nam. Não se trata portanto de um ideal abs-
tracto, de uma tarefa infinita que afectaria
os homens porque impotentes e errantes. Tra­
ta-se de uma correcção da consciência errante
pela ciência adquirida^ da consciência incons­
ciente pela consciência científica. Trata-se por­
tanto de passar as aquisições da ciência para
a própria .prática política, corrigindo esta prá­
tica dos seus erros e da sua inconsciência.
Tal é a primeira interpretação possível que
esclarece a imensa maioria dos exemplos de
Montesquieu. Assim compreendido, Montes-
quieu é de facto o precursor consciente de toda
a ciência .poilítica moderna, para quem a ciên­
cia só o é se for crítica, que extrai as leis reais
da conduta dos homens das leis aparentes que
eles criam, .para criticar estas leis aparentes e
para as modificar, regressando assim à histó­
ria dos resultados adquiridos no conhecimento

50
da história. Elste recuo científico relativamente
à. história, e este regresso consciente à história,
podem, é claro, se se tomar o objecto da ciên­
cia pela ciência, servir de ipretexito à acusação
de idealismo político (veja-se Poincaré: a ciên­
cia está no indicativo; a acção, no imiperaitivo)!
Mas para que todo este tipo de acusações seja
destruído, basta verificar que a distância dita
ideal entre o estado existente e o projecto de o
reformar corresponde neste caso ao recuo da
ciência relativamente ao seu Objecto e à sua
consciência comum. No laparente ideal que a
ciência propõe ao seu objecto, o que faz é devol­
ver-lhe o que lhe tirou: o seu próprio recuo,
que é o conhecimento.
Mas devo dizer que destes textos que co­
mento há uma outra interpretação possível que
pode ser defendida com argumentos do próprio
Montesquieu. Vejamos então como introduz as
leis humanas no concerto das leis gerais: Os
seres particulares inteligentes podem ter leis
que eles fizeram: mas também têm algumas
que não fizeram. Antes de existirem, os seres
inteligentes eram possíveis: tinham portanto
relações possíveis e, por conseguinte, leis pos­
síveis. Antes de haver leis feitas, havia rela­
ções de justiça possíveis. Dizer que não há mais
nada ãe justo ou de injusto do que ordenam
ou proíbem as leis positivas, equivale a dizer
que antes de se ter traçado o círculo, nem todos
os raios eram iguais. Portanto têm de se admi­
tir relações de equidade anteriores à lei positiva

51
que as estabeleceu... {ELj I, 1). E estas leis
«primitivas» são as de Deus. Estas leis de
uma justiça que se precede sempre, indepen­
dente de todas as condições concretas da
história, remetem assim para o antigo tipo
de leis, para a lei-'mandamento, para a lei-dever.
Pouco importa que ela seja divina e se exerça
através do 'ministério da religião; natural ou
m.oral e se exerça através do ensinamento dos
padres e dos senhores ou por essa voz da na­
tureza, que Montesquieu diz, antes de Rousseau,
ser a mais doce das vozes; ou política. O que
está em questão não são as leis humanas posi­
tivas estabelecidas em condições de existência
concretas, a partir das quais o estudioso deve
precisamente extrair a lei. É um dever fixado
aos homens pela natureza ou por Deus, o que
é o mesmo todo. E esta característica com­
porta, é claro, a confusão das ordens: a lei
científica desaparece por detrás da lei-ordem.
Esta tentação está claramente patente no fim
do primeiro capítulo do Livro I. Os textos que
serviram de base à primeira interpretação sur­
gem agora com um sentido novo. Deste modo,
tudo se passa como se, a errância humana, essa
parte indivisa da conduta dos homens, deixasse
de ser um objecto da ciência, para se toraar a
razão profunda que justifica a existência das
leis, isto é dos deveres. Se os corpos não têm
leis (positivas) é porque não têm espírito para
desobedecer às leis deles! Porque se os homens
têm aquele tipo de leis, é menos devido à im­

52
perfeição humana (quem, por um homem, não
daria todas as pedras do mundo?), que pela
sua capacidade de insubmissão. O homem: Tem
de se conduzir a si próprio; e no entanto, ê um
ser limitado; está sujeito à ignorância e ao
erro como todas as inteligências finitas; e
ainda perde os fracos conhecimentos que pos­
sui. Como criatura sensível que é, fica sujeito
a mil paixões. Um ser desta espécie poderia a
todo o momento esquecer o criador: Deus cha­
mou-o a si, pelas leis da religião; um ser desta
espécie poderia a todo o momento esquecer-se
de si próprio: os filósofos aconselharam-no com
as leis da moral; feito para viver na sociedade,
poderia esquecer nela os outros homens: os
legisladores chamaram-no aos seus deveres
através das leis políticas e civis {EL, I, 1).
Perante isto, rendemo-nos e de uma vez para
sempre. Estas leis são ordens. Ordens contra
o esquecimento, ordens de lembrança que re­
põem o homem na sua memória, isto é no seu
dever, que o colocam face ao fim que quer
queira quer não tem de prosseguir, se quiser
realizar o seu destino de homem. Estas leis já
não têm nada a ver com a relação exis­
tente entre o homem e as suas condições de
existência, têm a ver com a natureza humana.
A margem de dever-ser destas leis já não diz
respeito, como antes, à distância que separa
a inconsciência humana da consciência das suas
leis, ela concerne a condição humana. Natureza
humana, condição humana, eis-nos lançados

53
num mundo com o qual pecosávamos ter rom­
pido já. Num mundo de valores fixos no
céu, para que o olhar dos homens seja desviado
para lá.
Montesquieu entra assim ajuizadamente na
mais insípida das tradições. Há valores eternos.
Leia-se o seu enunciado no capítulo 1 do Li­
vro I: obediência às leis; gratidão para com
os nossos benfeitores; obediência para com o
criador; punição para o mal cometido. Singu­
lar enumeração esta! Será completada por
uma segunda: Livro I, capítulo 2, para que se
aprenda: que a «natureza» nos dá a ideia de
um criador e nos leva a ele; que quer que viva­
mos em paz; que comamos; que sejamos incli­
nados para o sexo oposto; e desejosos de viver
em sociedade. O resto está disperso por vários
textos: que um pai deve ao filho alimento, mas
não forçosamente herança; um filho, sustento
ao pai se este estiver na rua; que a mulher deve
submissão ao marido; e sobretudo que as con­
dutas relacionadas com o pudor pesam, mais
do que tudo, no destino humano (quer se trate
da mulher na maior parte dos seus aotos, nas
combinações dos casamentos ou nos dois sexos
conjugados em encontros abomináveis); que o
despotismo, a tortura e por vezes a escrava­
tura, ferem sempre a natureza humana. Enfim,
meia dúzia de reivindicações liberais, outras
tantas políticas e grandes banalidades assu­
mindo foros de usos bem enraizados. Nada que
se pareça, nem de longe, com os atributos gene­

54
rosos que outros teóricos, já não vergonhosos,
mas resolutos ou ingênuos, dão ou darão à
«natureza humana»: liberdade, igualdade e até
fraternidade. Estamos de facto noutro mundo.
Creio que esta faceta de Montesquieu não é
indiferente. Que não representa apenas uma con­
cessão isoilada num conjunto de exigências ri­
gorosas, o tributo pago aos preconceitos do
mundo para que lhe dessem paz. Montesquieu
'precisava deste recurso e deste refúgio. Como
precisava do equívoco do seu conceito de lei
para combater os seus adversários mais fero­
zes. Releia-se a sua resposta ao teólogo em
estado de alerta. Estas leis que se precedem a
si próprias, estes raios iguais desde a eterni­
dade antes que alguém, Deus ou homem, tenha
traçado algum círculo, estas relações de equi­
dade anteriores a todas as leis positivas pos­
síveis, servem-lhe de argumento contra o pe­
rigo de Hobbes. O autor pretende atacar o
sistema de Hobbes: sistema terrível, que, fa­
zendo depender todos os vícios e todas as vir­
tudes do estabelecimento das leis que os ho­
mens fizeram, destrói, como faz Spinoza, as
bases da moral e da religião * O teóloigo en­
contrará nisto razões de contentamento. Mas
a causa que está em jogo é outra. Não as leis
que comandam a moral e a religião, mas as leis
que governam a política, leis decisivas, aos

■* D efesa do E L , I Parte, I; Resposta à 1." objecção.

55
olhos do (próprio Montesquieu. Ê o fundamento
desitas leis que está em causa em Hobbes atra­
vés do contrato. Estas leis eternas de Montes-
quieu, preexistentes a todas as leis humanas,
são sem sombra de dúvida o refúgio onde se
.protegerá do seu adversário. Se há leis
antes das leis, compreende-se que já não exista
contrato, nem nenhum dos perigos políticos
em que só a ideia do contrato compromete os
homens e os governos. Ao abrigo das leis eter­
nas de uma natureza sem estrutura igualitária,
pode-se combater o adversário de longe. É es­
perado no terreno da natureza, terreno esco­
lhido antes de ele o escolher como as armas
convenientes. Tudo está disposto para a defesa
de uma outra causa que não a sua: a de um
mundo abalado que se pretende recolocar sobre
as mesmas bases.
O facto de Montesquieu se servir assim das
causas antigas com idéias de entre as quais,
as mais fortes são inteiramente novas, não
constitui paradoxo. Mas é tempo de o seguir
nos seus pensamentos mais conhecidos que são
também os mais secretos.


m

A D IA L É C T IC A D A H IS T Ó R IA

Tudo o que até ‘aqui foi dito apenas se


refere aos métodos de Montesquieu, aos pres­
supostos e sentidos desse método, que aplicado
ao seu objecto é incontestàvelmente novo. Mas
e/mbora novo, um método pode ser inlitil se não
-produzir nada de novo. Quais são então as
descobertas positivas de Montesquieu?
Comecei par examinar os homens, e achei
que na infinita diversidade das leis e dos cos­
tumes não eram apenas conduzidos pelas stias
fantasias. Estábeleci os princípios e vi os casos
particulares vergarem-se-lhes por si próprios, eus
histórias de todas as nações não serem mais
q<we a sua consequência e cada lei particular
ligada a uma outra lei ou depender de uma lei
mais geral. Tal é a descoberta de Montesquieu:
não consiste em habilidades de pormenor, mas
no estabelecimento de princípios universais
que permitem a inteligência de toda a história

57
humana c de todos os 'pormenores desta.
Quando descobri os meus princípios, tudo o
que procurava veio a mim {EL, Prefácio).
Quais são então estes princípios que tor­
nam a história inteligível? Uma vez colocada,
esta questão levanta numerosas dificuldades
que dizem directamente resipeito à composição
do Esprit des Lois. A grande obra de Montes-
quieu, que se abre com as páginas que comen­
tei, não possui de faoto a ordenação esperada.
Começamos por encontrar nela, do Livro II ao
Livro XIII, uma teoria dos governos e das di­
ferentes leis que dependem quer da natureza
quer do princípio destes: em suma, uma tipo­
logia, bastante abstraota, embora alimentada
por exemplos históricos e que surge como um
todo isolado do resto, «oibra prima acabada
numa obra inacabada» (J.-J. Chevalier). Pas­
sado o Livro XIII, dir-se-ia que se entra num
mundo diferente. Julgávamos que tudo estava
dito sobre os governos, a partir do conheci­
mento do tipo destes, mas eis que o clima
(Livro, XIV, XV, XVT e XVII), depois a qua­
lidade do terreno (Livro XVIII), depois os
costumes (XIX), e o comércio (XX, XXI), e
a moeda (XXII), e a população (XXIII), e por
fim a religião (XXIV, XXV), vêm por sua vez
determinar estas leis de que pensávamos já ter
o segredo. E para maior confusão, quatro li­
vros de história: um que trata da evolução das
leis romanas sobre as sucessões (XXVII), três
para expor as origens das leis feudais

58
(XXVIII, XXX, XXXI), e, no meio destes, um
livro sobre a «maneira de eompor as leis»
(XXIX). Princípios que se propõem ipôr ordem
na história, poderíam ao menos tentar pô-la no
tratado que os expõe.
Onde encontrá-los então? O Esprit des Lois
parece composto de três partes acrescentadas
umas às outras, como que idéias vindas ao espí­
rito do autor e que este não quis perder. Onde
está então a bela unidade esperada? Será pre­
ciso procurar os «princípios» de Montesquieu
nos 13 primeiros livros, ficando-lhe assim a
dever a ideia de uma tipologia pura das formas
de governo, a descrição da sua dinâmica pró­
pria, a dedução das leis em função da sua na­
tureza e do seu princípio? Seja, mas então tudo
0 que se refere ao clima e aos diversos factores,
depois à história, embora com interesse, surge
como que por acréscimo. Os verdadeirois prin­
cípios estarão pelo contrário na segunda parte,
na ideia de que as leis são determinadas por
diversos factores, uns materiais (clima, ter­
reno, população, economia), outros morais
(costumes, religião) ? Mas qual é então a razão
obscura que une estes princípios de determina­
ção aos primeiros princípios ideais e aos es­
tudos históricos? Se se quiser reunir tudo numa
unidade impossível, idealidade dos tipos, deter­
minismo do meio materiál ou moral, e histó­
ria, é-se apanhado por contradições sem saída.
Dir-se-á Montesquieu dilacerado^ entre um ma-
teriaiismo mecanicista e um idealismo moral,

59
entre estuturas kiteomporais e uma gênese his­
tórica, etc. Maneira de dizer que se ele fez real­
mente descobertas, estas só têm por unidade
a desordem do seu livro, o qual prova contra
ele que não fez a descoberta que juilgava.
Gostaria de tentar combater esta impressão
e de mostrar a cadeia que liga umas às outras
as diferentes «verdades» do Esprit des Lois,
cadeia essa de que Montesquieu fala no Pre­
fácio.
A primeira expressão dos novos princípios
de Montesquieu está nas poucas linhas que
distinguem a natureza e o princípio de um go­
verno. Cada governo (república, monarquia,
de^otismo) possui a sua natureza e o seu prin­
cipio. A sua natureza é aquilo que faz com que
seja como é, o seu principio, a paixão que o faz
agir {EL, III, 1).
Que entender por natureza do governo? A
natureza do governo responde à questão: quem
detém o poder? Como é que o detentor do po­
der o exerce? Assim a natureza do governo
republicano quer que o povo inteiro (ou Tima
parte do povo) detenha o poder soberano. A
natureza do monárquico, que seja um só a
governar mas mediante leis fixas e estabeleci­
das. A natureza do despotismo, que seja um
só a governar, mas sem leis nem regras. De­
tenção e forma do poder, tudo aqui permanece
puramente jurídico e, afinal de contas, formal.
Pelo princípio, penetramos na vida. Por­
que um governo não é uma forma pura. Ê a

60
forma de existência concreta de uma sociedade
de homens. Para que os homens submetidos a
um tipo particular de governo lhe sejam justa
e duràveimente submetidos, não basta a sim­
ples imposição de uma forma política (na­
tureza), é preciso ainda uma disposição dos
homens para essa forma. Ê preciso, diz Mon-
tesquieu, uma paixão específica. Por necessi­
dade, cada forma de governo implica a sua pai­
xão própria. A república quer a virtude, a
monarquia, a honra, o despotismo, o temor.
0 princípio do governo extrai-se da sua forma,
pois dela deriva «naturalmente». Mas esta con­
sequência é menos o efeito que a condição da
forma de governo. Por exemplo, a república.
O principio próprio à república, a virtude, res­
ponde à questão; mediante que condição um
governo que dá o governo ao povo e lhe permite
que o exerça através das leis, poderá existir?
Na condição de os cidadãos serem virtuosos,
isto é na condição de se sacrificarem pelo bem
público e, seja em que circunstância for, pre­
ferem a pátria às suas próprias paixões. O
mesmo para a monarquia e para o despotismo.
Se o principio dò governo é a sua mola, o que
o leva a agir, significa que ele é, enquanto
vida do governo, a sua condição de existência.
A república não pode, perdoe-nos o leitor a
expressão, andar só a virtude, como alguns
motores a gasolina. Mas sem virtude a repú­
blica cai, como a monarquia cai sem honra e
o despotismo sem temor.

61
Montesquieu tem sido acusado de forma­
lismo devido à maneira de definir um govearno
pela sua natureza, que é efectivamente um
conceito de direito constitucional. Mas esque­
ce-se que a natureza de um governo é formal
para o próprio Montesquieu, desde que sepa­
rado do seu princípio. Então, é necessário
afirmar: num governo, uma natureza sem prin­
cípio é inconcebível e não existe. Só é conce­
bível, porque real, a totalidade natureza-prin-
cípio. E esta totalidade já não é formal porque
não designa uma forma jurídica pura, mas
uma forma política comiprometida na sua vida
própria, nas suas condições de existência e de
duração próprias. Embora definidas com uma
palavra: virtude, honra, temor, estas condi­
ções são muito concretas. Como paixão em ge­
ral a paixão pode parecer abstracta, mas com)o
princípio exprime politicamente toda a vida
real dos cidadãos. A virtude do cidadão é a
totalidade da sua vida submetida ao bem pú­
blico: esta paixão, dominante no estado, equi­
vale, num homem, ao domínio de todas as suas
paixões. Pelo princípio é a vida concreta dos
homens, pública e privada que entra no go­
verno. O princípio está portanto no ponto de
encontro da natureza do governo (forma polí­
tica) e da vida real dos homens. É assim o
ponto e a figura a que politicamente a vida real
dos homens se deve resumir para se inserir
na forma de um governo. O princípio é o con­
creto do abstracto que é a natureza. Só a uni-

62
dade, a totalidade de ambos é real. Onde está
o formalismo?
Este aspecto é decisivo para se captar todo
o alcance da descoberta de Montesquieu. Nesta
ideia da totalidade da natureza e do 'princípio
do governo, Montesquieu propõe uma nova
categoria teórica que lhe dá a chave de uma
infinidade de enigmas. Antes dele os teóricos
políticos tinham tentado captar e explicar a
diversidade e a multiplicidade das leis de
um governo dado. Mas apenas tinham con­
seguido esboçar uma lógica da natureza dos
governos, quando não se ficavam, o que
era ainda mais corrente, por uma simples
descrição de elementos sem unidade interna.
A imensa maioria das leis, como as que fixam
a educação, a partilha das terras, o grau de
propriedade, a técnica da justiça, as penas e
as recompensas, o luxo, a condição das mulhe­
res, a icondução da guerra, etc. (EL, IV-VII),
ficavam banidas desta lógica, visto que a ne­
cessidade delas não era compreendida. Mon­
tesquieu esclarece assim soberanamente este
velho debate, descobrindo e verificando nos
factos a hipótese segundo a qual o Estado é
uma totalidade real e todos os detalhes da
sua legislação, instituições e costumes não são
mai^ que o efeito e a expressão necessários da
sua unidade interna. Estas leis, aparentemente
fortuitas e sem razão, submete-as ele a uma
profunda lógica e remete-as para um centro
único. Não pretendo afirmar que Montesquieu

63
tenha sido o primeiro a pensar que o Estado
constituía por si mesmo uma totalidade. Esta
ideia está já presente na reflexão de Platão
e encontramo-la tamhém a trabalhar o pensa­
mento dos teóricos do direito natural, sobre­
tudo em Hobbes. Mas antes de Montesquieu,
esta ideia entrava apenas na construção de um
estado ideal, sem descer até ao ponto de permi­
tir a inteligência da história concreta. Com
Montesquieu, a totalidade, que era uma ideia,
torna-se uma hipótese científica destinada a
analisar e interpretar os factos. Toma-se a
categoria fundamental que permite pensar, já
não a realidade de um Estado ideal, mas a
diversidade concreta e até então ininteligível
das instituições da história humana. A histó­
ria deixa de ser aquele espaço infinito para
onde são desordenadamente atiradas as inú­
meras obras da fantasia e do acaso, espaço que
faz esmorecer a vontade de conhecimento, que
a partir dele só pode concluir da pequenez do
homem e da majestade de Deus. Este espaço
tem uma estmtura. Possui centros concretos
para os quais remete todo um horizonte local
ãe foxtos e de instituições: os Estados. E no
coração destas totalidades que são como indi­
víduos vivos, há uma razão interna, uma uni­
dade interior, um centro originário funda­
mental: a unidade da natureza e do princípio.
Hegel, que na sua filosofia da história deu um
alcance prodigioso à categoria de totalidade,
sabia bem quem fora o seu mestre quando atri-

64
buía esta descoberta ao espírito de Montes-
quieu.
No entanto, também aqui o formalismo nos
espreita. É verdade que esta categoria de tota­
lidade realiza a unidade dos primeiros livros
do Esprit des Lois. Mas diremos também que
se limita a eles e que enferma do defeito desses
primeiros livros: que se refere a modelos pu­
ros, a uma república verdadeiramente republi­
cana, a uma monarquia verdadeiramente mo­
nárquica, a um despotismo verdadeiramente
despótico. Reflexões sobre tudo isto, diz Mon-
tesquieu (EL, III, 11): São estes os princípios
dos três governos: o que não significa que se
seja virtuoso numa república, mas que se de­
veria sê-lo. O que também não significa que
numa monarquia determinada se tenha honra
e que num Estado despótico particular se tenha
temor, mas que se dbeveria tê-lo: sem o que o
governo seria imperfeito. Não será isto a prova
de que se tomou por uma categoria aplicável
a todos os governos existentes uma ideia que
só é válida, para modelos puros e formas polí­
ticas perfeitas? Não será isto cair numa teoria
das essências e no desvio ideal que precisa­
mente se pretendia evitar? Então, sendo-se
historiador, não é precisamente uma determi­
nada república, uma determinada monarquia,
forçosamente imperfeitas, e não uma república
e uma monarquia puras que se tem de analisar?
Se a totalidade só é aplicável à pureza, que fa­
zer dela na história que é toda impura? Ou,

65
o que é a mesima coisa, oomo .pensar a história
dentro de uma categoria ligada por essência
a puros modelos intemporais ? Deparamo-nos
de novo com a dificuddade da disparidade do
Esprit des Lois: de que maneira unir o prin­
cípio e o fim, a tipologia pura e a história?
Julgo que é necessário ter o cuidado de não
ajuizar sobre Montesquieu a partir de uma
frase, mas, como ele aliás nos aconselha, tomai
a sua obra no conjunto sem separar o que diz
aqui do que diz além. Na verdade, é notável
o facto de este teórico dos modelos puros
nunca ter dado, (ou quase nunca) na sua obra,
senão exemplos impuros. Até na história de
Roma, que para ele é o mais perfeito tema de
experiência, como que um «corpo puro» da ex­
perimentação histórica, a pureza ideal só tem
um momento, na origem; todo o resto do tempo,
Roma vive na impureza política. Seria inacre­
ditável que tal contradição tenha deixado Mon­
tesquieu insensível. Com certeza não conside­
rava que contradizia os seus princípios, mas
sim que lhes dava um sentido mais profundo
do que aquele que lhes atribuem. Estou de
facto convencido que a categoria de totalidade
(e a unidade natureza-principio que é o seu
núcleo central) é uma categoria universal, que
não respeita apenas às adequações imperfeitas:
república-virtude, monarquia-honra e despo-
tismo-temor. Manifestamente Montesquieu con­
sidera que em todo o Estado, seja ele puro ou
impuro, reina a lei desta totalidade e da sua

66
unidade. Sendo o estado puro, a unidade será
adequada. Mas se ele for impuro, a unidade
será contraditória. Todos os exemplos histó­
ricos impuros dados por Montesquieu, exemplos
esses que constituem o maior número, são
exemplos desta unidade contraditória. Assim,
Roma, passados os primeiros tempos e vindas
as primeiras grandes conquistas, vive no Es­
tado de uma república que vai perder, perde,
perdeu o seu princípio: a virtude. Dizer que a
unidade natureza-princípio continua a subsis­
tir então, mas se tornou contraditória, é o
mesmo que afirmar que é a relação existente
entre a forma política de um governo, e a pai­
xão que então lhe serve de conteúdo que deter­
mina o destino deste Estado, a sua vida a sua
subsistência, o seu futuro e, portanto, a sua
essência histórica. Se esta relação for não-
-ccmtraditória, isto é se a forma republicana
encontrar a virtude nos homens que governa,
a república subsiste. Mas se esta forma repu­
blicana só tentar impor-se a homens que abdi­
caram da virtude e caíram no interesse e nas
paixões privadas, etc., então a relação será
contraditória. Mas é precisamente esta contra­
dição na relação, portanto a relação contradi­
tória- existente, que ditará a sorte de uma
república: perecerá. Tudo isto, que se pode
extrair dos estudos históricos de Montesquieu,
e em particular das considerações sobre a
causa da grandeza e decadência dos Roma­

67
nos esitá claramente exposto no capítulo 8
do Esprit des Lois, que trata a corrupção
dos governos. Dizer, como o faz Montesquieu,
que um governo que perde o seu princípio é
um governo perdido, significa muito olara-
mente que a unidade natureza-princípio reina
igualmente nos casos impuros. De contrário,
não se compreenderia porque é que, uma vez
quebrada esta unidade, pudesse quebrar o
governo a que corresponde.
É pois um erro grave duvidar que Montes­
quieu tenha tido o sentido da história, ou que
a sua tipologia o tenha desviado de uma teoria
da história ou que tenha escrito livros de his­
tória por uma distracção que o afastava dos
seus princípios. Este erro provém sem dúvida
do facto de Montesquieu não entrar na ideo­
logia já propagada e que depressa haveria de
se tomar dominante, na crença de que a his­
tória tinha um fim, que se aproximava do reino
da razão, da liberdade e das «luzes». Montes­
quieu é sem dúvida o primeiro antes de Marx
a pensar a história sem lhe emprestar um
fim, isto é sem projectar no tempo da história
a consciência dos homens e as suas esperanças.
A crítica que lhe é feita volta-se portanto para
0 lado de Montesquieu. Fcà o primeiro a pro­
por um princípio positivo de explicação uni­
versal da história; um princípio não apenas

1 Publicado na Editorial Presença, Col. Clássicos.


Tradução de Ruy Belo.

68
estático: a totalidade explicando a diversidade
das leis e instituições de um governo dado; mas
dinâmico: a lei da unidade da natureza e do
princípio permitindo-lhe pensar também o de­
vir das instituições e a transformação destas
na história real. Na profundidade destas inú­
meras leis que passam e mudam, está portanto
descoberta uma relação constante, que une a
natureza ao 'princípio de um governo; e no
âmago desta relação constante eis enunciada
a variação interna da relação, a qual, fazendo
passar a unidade da adequação à inadequação,
da identidade à contradição, permite a inteli­
gência das transformações e das revoluções
nas totalidades concretas da história.
Mas Montesquieu foi tamibém o primeiro
a dar uma resposta ao problema, tornado clás­
sico, do motor ãa história. Retomemos a lei do
devir histórico. Tudo é determinado pela rela­
ção existente entre a natureza e o princípio
na sua unidade. Se estes dois termos concor­
dam (Roma republicana e romanos virtuosos),
a totalidade do Estado é pacífica visto que os
homens vivem numa história sem crises. Se estes
dois termos estiverem em contradição (Roma
republicana e romanos que perderam a virtude),
a crise declara-se. O princípio deixa então de
ser aquele que quer a natureza do governo.
Daí uma série de reacções em cadeia: a forma
do governo vai cegamente tentar reduzir esta
contradição, vai mudar, e esta mudança vai
arrastar consigo o princípio do governo, até

69
que, com o auxílio das circunstâncias, uma
nova concordância se esboce (Roma imperial-
■ 'desipótica e romanos vivendo sob o temor)
ou uma catástrofe que é o termo deste percurso
arquejante (a conquista bárbara). É bem visí­
vel a dialéctica deste procesiso cujos momen­
tos extremos são, quer a paz dos dois termos
do par, quer o seu conflito; é bem visível, no
conflito a interacção dos termos e a maneira
como a modificação de um deles provoca ine-
vitàvelmente a modificação do outro. Verifi­
ca-se portanto a interdependência absoluta da
natureza e do principio na totalidade móvel
mas embrionária do Estado. Mas não se vê
de onde vem a primeira mudança nem a última
não na ordem do tempo, mas na o.rdem das
causas. Não se vê qual destes dois termos,
ligados no destino da sua totalidade, é o termo
preponderante.
Na sua obra sobre a Philosophie de VAu-
fklãrung, Cassirer louva Montesquieu por ter
assim fundado uma teoria «compreensiva» mo­
derna da história, isto é por ter pensado a
história sob a categoria da totalidade, e os
elementos desta totalidade numa unidade espe­
cífica, renunciando precisamente à ideia de que
um elemento pudesse eliminar a influência dos
outros, quer dizer que pudesse existir um mo­
tor da história. A história não seria mais que
realidade móvel, de que se poderia compreender
a unidade, captar o sentido dos movimentos
internos, mas sem nunca a explicar, isto é sem

70
atribuir movimentos de interacção a um ele­
mento determinante. E de facto, esta interpre­
tação parece estar de acordo com numerosas
passageais de Montesquieu, nas quais ele remete
constantemente a forma de governo para o
seu iprincípio, e do princípio à forma. São as
próprias leis republicanas que produzem a vir­
tude que lhes permite serem republicanas; as
instituições monárquicas que engendram a
honra que as sustenta. Como a honra o é da
nobreza, o princípio é simultâneamente o pai
e o filho da forma do governo. É por isso que
toda a forma particular produz no seu princí­
pio as suas próprias condições de existência,
e se antepõe sempre a si própria, embora ao
mesmo tempo seja o princípio que se exprime
nessa forma. Estaríamos assim muna totalidade
circular expressiva, em que cada parte é como
0 todo: pars totalis. E o movimento desta esfera
que pensamos movida por uma causa, não seria
mais que a sua rotação sobre si própria.
Quando uma bola rola, cada ponto da sua
superfície passa de cima para baixo, para vol­
tar a cima e assim por diante até ao infinito.
E todos os seus pontos por lá passam. Numa
esfera não existe alto nem baixo, visto que
toda ela está concentrada em'cada um dos seus
pontos.
Creio no entanto que esta intuição dema­
siado moderna não exprime o pensamento pro­
fundo de Montesquieu. Este quer em última
instância um termo determinante: o principio.

71
A força ãos princípios arrasta tudo. É esta
a grajnde lição do livro VIII, que abre com esta
frase: a corrupção dos governos começa quase
sempre peta dos princípios. A corrupção (por­
tanto, o estado de impureza de que falei)
constitui uma espécie de situação experimental
que permite penetrar nesta unidade indivisa
naturezanprincípio e decidir qual é o elemento
decisivo deste par. Através dela se descobre
que é afinal o princípio que determina a natu­
reza e lhe confere sentido. Quando os princí­
pios do governo se encontram corrompidos, as
melhores leis tornam-se más e viram-se con­
tra o Estado; quando os princípios se encon­
tram no estado são as más leis que fazem as
vezes das boas (E L , VIII, 11). Um Estado
pode mudar de duas maneiras: ou porque a
constituição é corrigida ou porque a constitui­
ção se corrompe. Se tiver conservado os seus
princípios e a constituição mudar, é sinal
de que esta se corrige; se tiver perdido os
seus princípios e por isso a constituição vier a
mudar, é sinal de que ela se corrompe {EL,
XI, 13). Vemos aqui claramente a passagem do
caso da situação experimental da corrupção ao
caso geral da modificação (para o bem ou para
o mal) da natureza do Estado. É pois o prin­
cípio que é, em última análise, a causa do
devir das formas e do sentido destas. A tal
ponto que a imagem clássica da forma e do
conteúdo (sendo a forma o que informa, a efi­
cácia) tem de ser posta em causa. Ê o prin­

72
cípio qoie, neste senltido, é a verdadeira forma
desta forma aiparente que é a natureza de
um governo. Há poucas leis que não sejam,
hoas enquanto o Estado não perdeu ainda os
seus princípios; e como dizia Epicuro ao falar
das riquezas: não é o licor que está corrom­
pido; é a bilha {EL, VIU, 11).
Isto não exclui, é claro, a eficácia da natu­
reza sobre o princípio, mas dentro de certos
limites. Senão não se podería compreender que
Montesquieu tivesse podido conceber leis des­
tinadas a conservar ou a tornar mais forte o
princípio. A urgência destas leis não é mais
que a confissão do seu caracter subordinado:
exercem-se num domínio que pode escapar-Hies
não só per mil e uma razões acidentais e exte­
riores, mas ainda e sobretudo pela razão fun­
damental de que esse domínio reina sobre elas
e decide até do seu próprio sentido. É assim
que existem situações limites em que as leis
que pretendem impor costumes são impotentes
contra os próprios costumes e se voltam contra
0 fim que pretendiam servir, visto que os cos­
tumes colocam as leis no oposto da finalidade
destas. Por mais arriscada que seja a compa­
ração que anuncio com todas as precauções, o
tipo de determinação em última instância pelo
princípio, determinação que delimita no en­
tanto toda uma zona de eficácia subordinada
à natureza do governo, pode ser aproximado
do tipo de determinação que Marx atribui em
última instância à economia, determinação que

73
delimita no entanto toda uma 2?ona de eficá­
cia subordinada à política. Em ambos os casos
estamos ©m presença de uma unidade que pode
ou não ser contraditória; em ambos os casos
eixste um elemento determinante em última
instância; em ambos os casos esta determina­
ção deixa no entanto ao elemento determinado
toda uma, região de eficácia, mas subordinada.
Esta interpretação faria assim com que sur­
gisse uma unidade real entre a primeira e a
última parte do Esprit des LcÁs, entre a tipo­
logia e a história. Mas continua a existir uma
dificuldade: esta segunda parte, tão variada,
que põe em jogo o clima, o terreno, o comércio
e a religião, não conterá novos princípios, aliás
heteróclitos e que destoam da unidade que
acabo de mostrar?
Comecemos por examinar os novos facto-
res determinantes que nos são propostos.
Antes do clima, (liv. XIV), encontramos..outro
elemento importante, várias vezes evocado e
em particular no livro VIII: a dimensão do
Estado. A natureza do governo depende da
extensão geográfica do seu império. Um Es­
tado pequeno será republicano, um Estado mé­
dio, monárquico, um Estado imenso, despótico.
Aqui está uma determinação que parece revo­
lucionar as leis da história, visto que é a geo­
grafia que decide directamente das formas des­
tas. O clima vem reforçar este argumento,
visto que a temperatura do ar vai desta vez
distribuir os impérios — os despotismos situar-

74
-se-ão sob céus violentos, os moderados sob
céus amenos — e decidir iprèviamente quais
serão os homens livres e os escravos. Aprende-se
então que o império do clima é o primeiro de
todos os impérios (EL, XIX, 14), mas ao
mesmo tempo que tal império pode ser vencido
por meio de leis bem concebidas que se apoiem
sobre os seus excessos para evitar aos homens
0 3 seus efeitos. Aparece então outra causa:
a natureza do terreno ocupado por um povo.
Conforme for fértil ou árido, nele encontrare­
mos um governo de um só ou de vários; con­
forme for montanhoso ou plano, continente
ou ilha, veremos triunfar nele a liberdade ou
a servidão. Mas também neste caso a causa­
lidade evocada pode ser combatida: os países-
não são cultivados devido à sua fertilidade mas^
à S I M liberdade {EL, XVIII, 3). Mas eis que
os costumes ou o espírito geral de uma nação,
vêm’‘ acrescentar a sua eficácia às antigas; e
depois, o comércio e o dinheiro; depois a popu­
lação e por fim, a religião. Temos uma sensa­
ção de desordem, como se Montesquieu tivesse
querido esgotar a série de princípios que des­
cobre e depois, à falta de melhor, os amon­
toasse. Várias coisas governam os homens: o
clima, a religião, a leis, as máximas do go­
verno, os exemplos das coisas passadas, os cos­
tumes, as maneiras... {EL, XIX, 4). A unidade
de uma lei profunda faz-se pluralidade de cau­
sas. A totalidade perde-se na enumeração.

75
Não quero que se entenda que pretendo
salvar Montesquieu de si próprio, e dar à viva
força esta desordem por uma ordem. Gostaria
no entanto de indicar brevemente que através
desta desordem se desenha por vezes como que
uma ordem que não é estranha ao que está
adquirido.
O que é de facto notável relativamente à
maioria destes factores, que determinam ou a
própria natureza do governo (assim a exten­
são geográfica, o clima, o terreno), ou certo
número destas leis, é que agem apenas indi-
rectamente sobre o seu objecto. Vejamos o
exemplo do clima. O clima tórrido não implica
imediatamente a existência do déspota, nem
o temperado a do monarca. O clima só age
directamente sobre o temperamento dos ho­
mens, através de uma fisiologia que, dilatando
ou contraindo as extremidades, afecta a sensi­
bilidade global do indivíduo e lhe imprime
desde necessidades e tendências próprias, até
um estilo de comportamento. São os homens
assim feitos e condicionados que são próprios
a tais leis e a tais governos. São as diferentes
necessidades nos diferentes climas que cons­
tituiram as diferentes maneiras de viver, e
estas diferentes maneiras de viver formaram
as diferentes espécies de leis... (EL, XIV, 10).
As leis que o clima produz são portanto o
último efeito de toda uma cadeia, da qual o
penúltimo efeito, produto do clima e causa das
leis, é esta maneira de viver que é a face exte­

76
rior dos costumes {EL, XIX, 16). Veja-se o
terreno: se as terras férteis são propícias ao
governo de um só, é porque' o camponês é
demasiado ocupado com elas e suficientemente
bem recompensado dos seus esforços para le­
vantar o nariz do chão e das suas economias.
O comércio não age direotamente sobre as
leis, mas por intermédio dos costumes: por
toda a parte onde há comércio há costumes
dóceis... (EL, XX, 1) — daí o espírito pacífico
dü comércio, conveniente a certos governos
impróprio a outros. Quanto à religião que entre
estes factores de caracter material parece caída
do céu, age no entanto da mesma maneira:
confere a um povo maneiras de viver o direito
e de praticar a moral; só atinge o governo atra­
vés da conduta dos cidadãos e dos súbditos.
ÍJ na medida em que é mestra no temor que a
religião maometana diz tão bem como os go­
vernos despóticos: fomece-os de escravos,
maduros para a servidão. Ê na medida em que
é mestra de moralidade que a religião cristã
diz tão bem com os governos moderados: De­
vemos ao Cristianismo no governo um certo
direito político e na guerra um certo direito
das gentes... (EL^ XXIV, 3). Todas estas cau­
sas que pareciam estar radicalmente separa­
das, se unem portanto, no momento de agirem
sobre o governo e de determinarem algumas
das suas leis essenciais, num ponto comum:
os costumes, as maneiras de ser, de sentir e de

77
agir que confere aos homens que vivem sob o
seu império.
Do encontro delas surge aquilo a que Mon-
tesquieu chama o espirito de uma nação. De
facto escrevia: Várias coisas governam os ho­
mens: o clima, a religião... etc., mas era para
concluir: Dai resulta a formação de um espi­
rito geral {EL, XIX, 4).
Ê portanto este resultado: costumes, espí­
rito geral de uma nação, que determina então
quer a forma do governo, quer um certo nú­
mero das suas leis. Perguntamo-nos assim se
não encontramos aqui uma determinação
conhecida. Recorde-se efeotivamente o que foi
dito sobre o principio do governo, e sobre as
profundezas da vida concreta dos homens que
ele exprime. Considerado não do ponto de vista
da forma do governo, isto é das suas exigên­
cias políticas, mas do ponto de vista do con­
teúdo, isto é das origens, o principio é bem a
expressão politica do comportamento concreto
dos homens, isto é dos costumes e do espíriito
'destes. Montesquieu não diz no entanto tex­
tualmente que os costumes ou o espírito de uma
nação constituem a essência do principio do
governo desta. Mas com o princípio passa-se
o mesmo que com as formas puras do governo:
é na corrupção que surgem em toda a sua
verdade. Quando o princípio se perde, aper-
cebemo-nos de que os costumes ocupam efecti-
vamente o lugar de principias: sejam eles (os
costumes) a perdição ou a salvação daqueles

78
(os princípios). Veja-se a República que a vir­
tude abandona: deixa de haver respeito pelos
magistrados, pelos velhos e pelos.... maridos.
Deixará de haver bons costumes, amor pela
ordem, virtude enfim (EL, VIII, 2). Ê difícil
dizer mais daramente que o princípio (a vir­
tude) é a expressão dos costumes. Veja-se
Roma: entre provas e revezes, enquanto os
acontecimentos abalavam todas as formas, per­
maneceu firme como um navio que duas pode­
rosas âncoras protegiam da tempestade: a
religmo e os costumes {EL, VIII, 13). Veja-se
finalmente os Estados modernos: A maioria
dos estados da Europa são ainda governados
pelo costume... {EL, VIII, 8), que os protege
do despotismo, em parte senhor das suas leis.
Como poderemos duvidar de que as leis, mais
vastas e extensas que o princípio, sejam o
fundamento e a base real deste, quando vemos
desenhar-se entre o costume e as leis a mesma
dialéotica que entre o princípio e a natureza
de um governo? As leis são estabelecidas, os
costumas são inspirados; os últimos estão li­
gados ao espírito geral, as primeiras a uma
instituição particular: ora é tão perigoso ou
mais alterar o espírito geral que modificar uma
instituição particular (EL, XIX, 12). Conce-
ber-se-ia mal que fosse mais perigoso mudar
os costumes do que mudar as leis se os costu­
mes não tivessem sobre as leis mais império
que o princípio tem sobre a natureza: o de as

79
determinar em última análise Daqui a ideia
tantas vezes enunciada de uma espécie de vir­
tude pr imiti va dos costumes. Se um povo
conhece, ama e defende sempre mais os seus
costumes que as suas leis {EL, X, 11), é que
os costumes são mais profundos e originários.
Era assim que entre os primeiros romanos,
os costumes eram suficientes para manter a
fidelidade dos escravos; não eram precisas leis
{EL, XV, 16). Mais tarde, como o costume se
perdeu, houve necessidade de leis. E entre os
próprios primitivos, se os costumes precedem
as leis e tomam o lugar destas {EL, XVIII,
13), é porque de certo modo têm origem na na­
tureza \{EL, XVI, 5). fi para este fundo último
que remetem a forma e o estilo de conduta que
se exprimem politicamente no princípio; para
este fundo último do qual Montesquieu enu­
mera — clima, terreno, religião, etc. — as com­
ponentes essenciais.
Parece-me que esta analogia substancial dos
costumes e do princípio nos permite compreen­
der também a estranha causalidade circular
destes factores, que de princípio surgem como
mecânicos. Ê verdade que o iOlima e o terreno,
etc., determinam leis. Mas podem ser comba­
tidos por elas e toda a arte do legislador escla-

1 «Em todas as sociedades, que não são senão uma


união dos espíritos, forma-se um carácter comum. Esta
alma universal adopta uma forma de pensar que é
efeito de uma cadeia de causas infinitas que se multi-

80
recido consiste em jogar neste aspecto. Se
este recurso for possível, é que a determinação
não é directa, mas indirecta e que se aco^lhe
e concentra inteiramente nos costtumes e no
espírito de uma nação, entrando pelo princí­
pio, que é a abstracção e a expressão política
dos costumes, na totalidade do Estado. Ora
como no seio desta totalidade, é possível uma
certa acção da natureza sobre o princípio, e
portanto uma certa acção das leis sobre os
costumes, e por conseguinte sobre os compo­
nentes e as causas destes, não é de espantar
que o clima possa ceder às leis.
Sei que me podem opor textos e que me
podem acusar 'de pôr Montesquieu nos pínca­
ros. Mas parece-me que todas as reservas que
se 'poderiam exprimir se situam apenas em
torno de um ponto: o equívoco do conceito de
princípio e do conceito de cõ^ümes. Mas julgo
que este equívoco é real em Montesquieu. Eu
diria que exprime simultâneamente o seu de­
sejo de introduzir por completo a clareza e a
necessidade na história, mas também a sua
impotência— ^não falando já na sua escolha.

plicam e se combinam de século para século. Desde


que o tom foi dado e recebido, é só ele quem governa e
tudo 0 que os soberanos, os magistrados, os povos
podem fazer ou imaginar, quer pareçam chocar com
esse tom ou segui-lo refere-se sempre a ele e aí domina
até à total destruição» (Pensées).

81
Porque se a região da natureza do governo é
sempre definida icom clareza, se a dialéotica
da unidade e da contradição natureza-princípio
e a tese do primado do princípio ressaltam
nitidamente dos seus exemplos, o conceito de
princípio e o conceito de costum a ipermanecem
vagos.
O princípio exprime, dizia eu, a condição
de existência de um governo e remete para a
base concreta deste: a vida real dos homens.
As causalidades paralelas da segunda parte do
Esprit des Lois revelam-nos claramente as com­
ponentes desta vida real, isto é as condições
reais, materiais e morais da existência do go­
verno — e resumem-nos nos costumes que aflo­
ram no principio. Mas dos costumes ao prin­
cípio, das condições reais às exigências
políticas da forma ide um governo, que se en­
contram no prhicípio, vê-se mal a passagem.
Os próprios termos que utilizei ao falar de
costumes expriminão-se politicamente no prin­
cípio, traem esta dificuldade— ^visto que esta
expressão está como que dilacerada entre a sua
origem (os costumes) e as exigências da sua
finalidade (a forma do governo). O equívoco
de Montesquieu situa-se inteiramente nesta di-
íaceração. Sentiu que a necessidade da histó­
ria só poderia pensar-se na unidade das suas
formas, nas condições de existência destas e
na dialéctica desta unidade. Mas foi buscar
todas estas condições, por um lado aos costu­
mes, que são de facto produzidos por condições

82
reais, mas cujo conceito permanece vago (a
síntese de todas estas 'condições nos costumes
é apenas acumulativa); e por outro lado ao
principio, que, dividido entre as suas origens
reais e as exigências da forma política que
deve animar, pende muitas vezes apenas para
estas exigências.
Dir-se-á que esta contradição e este equí­
voco são inevitáveis por parte de um homem
que pensa identro dos conceitos do seu tempo,
e que não pode ultrapassar os limites dos
conhecimentos adquiridos, relacionando apenas
aquilo que conhece e não podendo procurar nas
condições que descreve uma unidade mais pro­
funda, que teria de supor já toda a economia
política h Ê verdade. E é já admirável que
Montesquieu tenha definido e designado numa
concepção genial da história esta zona ainda
obscura que apenas ilumina um conceito vago :
a zona dos costumes e atrás dela a zona das
condutas concretas dos homens na sua relação
com a natureza e com o passado.
Mas nele, outro homem que não o estu­
dioso encontrava vantagens neste equívoco.

1 Veja-se agora Voltaire: «Montesquieu não Unha


nenhum conhecimento dos princípios políticos relativos
à riqueza, às manufacturas, às finanças, ao comércio.
Estes princípios ainda não tinham sido descobertos...
Foi-lhe também impossível tratar tanto das riquezas
de Smith como dos princípios matemáticos de Newton».

83
o homem de um partido político que justa­
mente precisava da eminência das formas sobre
os seus princípios e queria que houvesse três
espécies de governos, para fazer, ao abrigo da
necessidade do clima, dos costumes e da reli­
gião, a sua escolha.

84
IV

«H A T R Ê S G O VERW O S »

Há portanto três esipécies de governo. A


República, a Monarquia e o Despotismo. Exa­
minemos de perto esta totalidades.

I — A República

Gostaria de ser breve soibre a República.


Embora Faguet não se canse de dizer que Mon-
tesquieu é republicano, este não acredita na
República e por uma razão muito simples:
o tempo das Repúblicas já passou. As Repú­
blicas só se aguentam em Estados pequenos.
Estamos na era dos Impérios, médios e 'gran­
des. A s Repúblicas só se mantêm na virtude
e 'na frugalidade, na mediocridade geral, to­
mada no seu sentido de origem, que consiste
no facto de os homens se 'contentarem com
pouco para serem felizes. Estamos num tempo

85
d<? luxo e de 'comércio. A virtude tornou-se tão
dura de suportar que seria caso para se deses­
perar dos seus efeitos se estes não pudessem
ser atingidos por meio de regras mais ligeiras.
Por todas estas razões, a República recua para
os tempos longínquos da história: a Grécia,
Roma. É sem dúvida por isso que é tão bela.
Montesquieu, que não hesita em declarar insen­
sata a pretensão de Richelieu em querer para rei
um anjo, de tal maneira a virtude é rara, admite
que na Grécia e em Roma tenha havido, em
certas épo'cas, anjos em número suíficiente para
constituírem cidades.
Este angelismo político faz da demo'cracia
(por agora ponho de lado a atristocracia que
é um misto instável de de-mocracia e de monar­
quia) um regime de excepção e como que a
síntese de todas as exigências da política. Esta
é de facto um regime político, isto é um regime
que atinge a verdadeira esfera do político: a
da estabilidade e da universalidade. Na demo­
cracia, os 'homens que são «tudo», não estão
no entanto entregues às suas fantasias. Os ci­
dadãos não são déspotas. O poder de que usu­
fruem submete-os a uma ordem e a uma estru­
tura políticas que reconhecem, e que os ultra­
passam enquanto homens singulares: a ordem
das leis, sejam elas fundamentais, isto é cons­
titutivas do regime, ou ocasionais, isto é de­
cretadas para responder ao acontecimento. Mas
esta ordem que os faz cidadãos, não é uma
ordem recebida do exterior, como por exemplo

86
a feudal, a desigualdade «natural» dos estados
na monarquia. Na democracia, os cidadãos
possuem o privilégio único de serem eles a
produzir consciente e voluntariamente na le­
gislação a própria ordem que os governa.
Sendo filhos das leis, são igualmente os pais
destas. Só são súbditos na medida em que são
soberanos. São senhores submetidos ao poder
das leis. Vê-se assim que esta síntese do súb­
dito e do soberano no cidadão, síntese que tanto
preocupou Rousseau, obrigue o homem a ser
mais homem e, sem fazer dele exactamente um
anjo, 0 faça cidadão, anjo verdadeiro da vida
pública.
Esta categoria do cidadão realiza no homem
a síntese do Estado: o cidadão é o Estado no
homem privado. E é esta a razão pela qual a
educação ocupa um lugar tão importante na
economia deste regime (EL, IV, 5), em Mon-
tesquieu como em Rousseau. iMontesquieu mos­
tra que a democracia não pode sofrer a divisão
da educação que caracteriza os regimes mo­
dernos. De facto, o homem moderno está sub­
metido a duas educações opostas: a dos pais
e dos mestres por um lado, a do mundo por
outro. Uma prega-ilhe a moral e a religião.
A outra, ensina-lhe a honra. A primeira ensi­
na-o a esquecer-se sempre de si próprio. A outra
en.sina-lhe o contrário. E aquilo a que Hegel
chamará a lei do mundo, que regulamenta as
relações humanas reais, triunfa da lei do cora­
ção que tem por refúgio a Igreja (EL, IV, 45,

87
5). Niuma democracia, nada disto acontece: a
família, a escola e a vida falam a mesma lin­
guagem. A vida toda é uma educação sem fim.
É que, na sua ,própria essência, a democracia
supõe, sob as aparências desta educação e desta
edificação sem termo, que é como que a sua-
figura temporal, uma verdadeira conversão do
homem privado no homem público. Se na de­
mocracia todos os delitos privados são crimes
públicos, o que justifica os censores, se o di­
reito civil e o direito político são um e um só,
é que toda a vida privada do homem consiste
em ser um homem público — sendo as leis a
perpétua «lembrança» desta exigência. Este
cículo da democracia, que não é mais que a
educação permanente da democracia, este cír­
culo singular de um regime que se dá assim
a sua existência por tarefa infinita, realiza o
dever específico dos cidadãos, que para serem
tudo como o são no Estado, devem, nas suas
próprias ipessoas, tornar-se o «todo» do Estado.
Conversão moral? É precisamente isto que
Montesquieu propõe quando descreve a virtude,
além de política, como a preferência do bem
público ao bem privado (EL, III, 5; IV, 5), como
o esqueoimento do indivíduo por ele próprio,
como o triunfo da razão sobre a paixão. Mas
esta conversão moral não é a de uma consciên­
cia isolada, é a de um Estado, inteiramente 'pe­
netrado desse dever, traduzido em leis. Através
das leis, esta república que quer cidadãos, tenta
forçá-los à virtude. A que preço pode a virtude

88
\

ser forçada? A preço de uma economia arcaica


e estagnada, a preço de costumes cuidadosa­
mente impostos pelas 'leis, pelos velhos e pelos
censores; a preço enfim e sobretudo de judi-
ciosas medidas políticas, que só q;uerem edificar
o povo para o manter sob o poder dos notáveis.
O que de facto é espantoso numa apologia
retrospectiva do governo popular que é a demo­
cracia (a aristocracia é muito menos exemplar,
porque, digamos, estabelece-se de imediato sobre
a divisão do povo), é o cuidado em distinguir
dois povos no povo. Quando se compara a repú­
blica de Montesquieu com a república de Rous-
seau e a virtude de uma com a virtude da outra,
é preciso não esquecer que a primeira é do pas­
sado e a segunda do futuro; a segunda, uma
república do povo, a primeira, uma república
de notáveis. Daí a importância ido problema da
representação popular. Rousseau não admite que
o povo soberano legisle através dos seus repre­
sentantes. A soberania não pode ser represen­
tada, pela mesma razõ.o que faz com que não
possa ser alienada; consiste essencialmente na
vontade geral e a vontade não se pode repre­
sentar (Contrato Social, n, 15). Uma democra­
cia que se exerce por delegação está a chegar ao
seu fim. Montesquieu afirma (pelo contrário que
uma democracia sem representantes é um despo­
tismo popular iminente. É que tem do povo' >uma
ideia muito particular confirmada pelas demo­
cracias antigas, em que a liberdade dos «homens
livres» era aquilo que contava enquanto a mul-

89
ti dão dos artesãos e dos escravos ficava na
somibra. Montesquieu não quer que esta 'plébe
*tenha o poder h Esta convicção profunda
esclarece todas as precauções fdo Livro II
(cap. 2). Abandonado a si próprio, o povo
(a plebe) é todo paixões. É incapaz de pre­
ver, de pensar, de ajuizar. Como é que a paixão
podería ser capaz de ajuizar de uma causa se
ela é a própria ausência de razão? Que o povo
seja pois privado de todo o poder directo, mas
que escolha representantes. É capaz de escolha
porque vê os homens de perto na sua conduta
e num instante pode discernir quais são os aptos
e quais os medíocres. Sabe escolher o bom ge­
neral, o bom rico, o bom juiz: e isto porque vê
o primeiro nas suas guerras, o segundo nas suas
festas, e o terceiro nos seus julgamentos. Tem
uma capacidade natural para discernir o mé­
rito, e a prova de que o mérito lhe salta à
vista, é que em Roma, embora o povo tenha
obtido 0 direito de designar plebeus para os lu­
gares públicos, não se resolvia a elegê-los, e que
em Atenas, embora se pudesse, pela lei de Arís-
tides, designar magistrados de todas as classes
sociais, nunca aconteceu, no dizer de Xenofonte,
que a arraia miúda pedisse para si senão aque­
las ( as magistraturas) que podiam interessar

1 «Nada há no mundo de mais insolente que os


repúblicas... A plebe é o tirano mais insol&nte que pode
existir» (Voyages).

90
a sua salvação e a sua glória. {EL, II, 2). Mara­
vilhoso dom madurai do povo, este que o leva a
confessar a sua impotência para ser o seu pró­
prio senhor e a escoílher por senhores precisa­
mente aqueles que têm sobre ele a vantagem da
estirpe e da fortuna. A própria democracia an­
tiga já defende pois todos os notáveis da his­
tória.
A democracia terá assim que dispor de algo
que fortifique esta inolinação judiciosa e, em
último recurso, de algo que a precavenha e esta­
beleça na sua vocação. Em particular, de leis
que dividam com suficiente discernimento o povo
em classes, para que o comum seja privado do
seu voto. Foi na forma de fazer esta divisão que
se salientaram os grandes legisladores. Assim
Servius Tullius, que teve a inteligência de colo­
car o direito de sufrágio nas mãos dos principais
cidadãos, de forma que eram os meios e as
riquezas e não as pessoas que davam o sufrá­
gio. Assim os legisladores romanos que com­
preenderam que o voto púhlico é uma lei funda­
mental da democracia, porque é preciso que a
plebe seja esclarecida pelos poderosos e tra­
vada pela gravidade de certos personagens
{EL, II, 2). O segredo do voto é privilégio dos
senhores da aristocracia pela simples razão de
que eles são os senhores de si próprios! Não
há dúvida: o meio mais seguro para manter uma
disposição tão natural, é produzi-la.
Cuidadosamente confinada no passado 'pelo
crescimento dos Estados modernos e pelo curso

91
do mundo que toma a virtude desumana, a de­
mocracia só tem ligação com o presente pela
máxima de experiência que Uie iega: no governo,
mesmo popular, o poder não deve cair nas mãos
da plebe (EL, XV, 18).

f! — Monarquia

Com a monarquia e o despotismo que são


como que o reverso e a tentação da democracia,
entramos no presente. Montesquieu está con­
vencido de que os tempos modernos pertencem
à monarquia feudal e que a monarquia feudal
pertence aos tempos modernos. A antiguidade
não conheceu verdadeiras monarquias (veja-se
que inclusivamente em Roma era a República
que se escondia sob as aparências da monar­
quia) por duas razões: ignorava a verdadeira
distribuição dos poderes e não sabia nada do
governo pela nobreza.
O que é a monarquia? Pela sua natureza, é o
governo de um só que dirige o Estado através de
leis fixas e estabelecidas. Pelo seu princípio, é
o reino da honra.
Um só governa: o rei. Mas que leis são estas
que têm o privilégio de ser fixas e estabeleci­
das? Montesquieu refere-se aqui àquilo que os
jurisconsultos designavam havia três séculos
pelas leis fundamentais do reino. A expressão
lei fundamental aparece muitas vezes no Esprit
des Lois. Todo o governo tem as suas leis funda-

92
mentais. Assim, a república tem, entre outras,
as leis do escrutínio. Assim o despotisimo, a no­
meação do vizir pelo déspota. Ao longo de um
desenvolvimento ficamos inclusivamente a saber
que o pacto colonial é uma lei fundamental da
Europa, relativamente às suas possessões <ie
além-mar i^EL, XXI, 21). Montesquieu utiliza
portanto a expressão largamente conferindo4he
o sentido de designar, num governo, as leis que
definem e fundam a «natureza» deste (em ter­
mos modernos; a sua constituição), distintas
das leis através das quais o governo governa.
Mas é evidente que no caso da monarquia esta
expressão contém o eco de polêmicas passadas.
Elstas polêmicas tinham por objecto a definição
dos poderes de monarca absoluto. A noção de
leis fundamentais do reino interveio para limi­
tar as pretensões do rei. Era rei ipela graça <ie
Deus, sem dúvida, mas também devido a leis
mais velhas que ele e que aceitava tàcitamente
subindo ao trono: a virtude dessas leis sentava-o
no ^trono sem que ele próprio agisse nesse sen­
tido. Os jurisconsultos citavam em geral, depois
da lei de sucessão pelo sangue, toda uma série
de 'disposições que tinham por objecto o re­
conhecimento das ordens existentes: nobreza,
clero, parlamentos, etc.. As leis fundamentais,
que punham o rei no itrono, queriam que em
troca, o rei as respeitasse. Ê de faoto este sen­
tido que, s0 'b a capa de um sentido mais geral,
Montesquieu retoma ao falar da monarquia.

93
Leia-se ateaiitameate o cajpítulo 4 do üviro II.
A iprimeira frase identifica a natureza do go­
verno moinárquico, o governo através de leis
fundamentais, com os poderes intermédios, su­
bordinados e dependentes. Estes poderes inter­
médios são em número de dois: a nobreza e o
clero, sendo a primeira o mais natural de entre
eles. «Corpos intermédios» seriam portanto leis!
Montesquieu cita noutro passo uma lei funda­
mental da monarquia: a lei de sucessão ao trono,
que interdita as intrigas e a dilaceração do
poder, não só por morte do príncipe, mas em
vida deste. Esta lei é realmente uma lei. Evoca
também a necessidade de um depósito das leis
independente da autoridade real, trata-se de uma
«lei» que fixa uma instituição política. Mas
a nobreza e o clero! Pensavamos em institui­
ções políticas e eis que surgem ordens sociais.
Na verdade, a palavra lei só designa neste caso
0 .=
^ corpos privilegiados para sublinhar que o
rei só é rei pela existência da nobreza e do
clero e que deve, em troca disso, reconhecê­
-los e conservar-lhes o privilégio.
Tudo se resume no seguinte; o poder inter­
mediário mais natural é o da nobreza. Esta
faz em certa medida parte da essência da mo­
narquia cuja máxima fundamental é: «sem
monarca não há nobreza, sem nobreza não há
monarca» {EL, II, 4). Penso que nos podemos
nesta altura esclarecer muito rapidamente so­
bre 0 caracter abstracto de pelo menos uma
parte da tipologia política de Montesquieu. Já

94
não há necessidade de se atingir o princí'pio
para se descobrir a vida concreta do Estado;
a partir da natureza deste, surge a ordem
política e social.
Estas leis fundaTnentais supõem necessària-
mente carnais médios por onde escorre o
poder {EL, II, 4). Estes canais são precisa­
mente a nobreza e o clero. Mas por nm arti­
fício de linguagem, eis-mos colocados em face
de um puro problema jurídico. O necessària-
rnente («estas leis fundamentais supõem neces­
sariamente canais...») vale assim o seu peso
de ouro fino. Porque até aqui ainda não se
viu a necessidade da nobreza e do clero! Não
é de modo algum uma necessidade originária.
Ê uma necessidade no sentido em que se fala
da necessidade que se tem de admitir tal meio,
supondo que se pretende atingir tal fim. Esta
necessidade consiste em que são precisas
ordens intermédias se sc quiser evitar que o
rei seja um déspota. Porque, na monarquia, o
príncipe é a fonte de todo o poder político e
civil; ora, se no Estado apenas existir a von­
tade momentânea e caprichosa de um só, nada
pode ser fixo, e, por conseguinte, não há lei
fundamental {EL, II, 4). Está tudo nestas
quatro linhas. A lei fundamental é portanto a
fixidez e a constância de um regime. Seja.
Estamos no campo do jurídico. Mas é também
a existência de ordens privilegiadas. Eis-nos
no campo do social. Deste raciocínio segue-se
que estas ordens estão unidas à fixidez e à

95
constância. A razão desta identidade tão sm-
gular é que um monarca sem no^breza e sem
ordens não é inconcebível, mas será despótico.
Os elementos da mecânica do poder (os canais)
servem a causa das ordens e combatem a do
déspota que é todo o príncipe que despreza o
papel político da nobreza. Co^ncluamos pois que
no essencial estas leis fixas e estabelecidas não
são mais que a fioÂãez ão estabelecimento da
nobreza e do clero.
Resolvido este problema, o argumento polí­
tico volta a entrar em cena. E Montesquieu
entrega-se ao prazer de descrever a dinâmica
própria deste regime de corpos intermédios,
como se se tratasse de uma forma pura de
distribuição política do poder.
B notável que a metáfora que caracteriza
o despotismo seja baseada na imagem de cor­
pos em choque — e a que caracteriza a monar­
quia na de uma fonte que se expande. A água
que corre de uma fonte alta passa por canais
que lhe travam e dirigem o curso — e alcança
0 fundo das terras que lhe devem a sua ver­
dura. A imagem do choque das bolas implica
a imediatidade no tempo e no espaço e a «força»
transmitida por meio do choque. Ê assim que
no despotismo o poder ou se exerce ou se dá.
A imagem da fonte irrigante implica pelo con­
trário espaço e duração. A água leva tempo a
correr visto que corre ao longo do seu curso.
Nunca escorre toda: uma fonte não se esvazia
como uma vazilha, contém sempre mais do

96
que aquilo que dá. E ao contrário da bola que
pode tser lançada para o oposto daquela com
que cbocou, visto que o choque de ambas as
separa, a água que corre nunca é cortada de si
própria. É da fonte à terra longínqua, a mesma
torrente ininterruipita.
Tal é o poder do príncipe. Nunca o abdica,
como faz o déspota, inteiramente nas mãos de
um terceiro. Por mais poder que dê aos minis­
tros, aos governadores, aos capitães, guarda
•sempre para si a maior parcela. E o mundo,
a extensão em que o exerce, os «canais» que
patenteia, impõem-lhe uma lentidão necessária
que é a própria duração do poder. A natureza
do governo monárquico supõe de facto um
tempo e uma duração reais. O espaço: o rei
não a ocupa sozinho, encontra nele uma
estrutura social extensa porque diferenciada,
composta por ordens e por estados que tem
cada um o seu lugar. O espaço que é a medida
da extensão do poder real é assim o limite da
sua potência. O espaço é obstáculo. A planície
infinita do despotismo será como que um estreito
horizonte perante o déspota, precisamente, por­
que não oferece esses acidentes que são as desi­
gualdades constituídas dos homens: está nive­
lada. São os obstáculos: a nobreza, o clero que
dão ao espaço a sua profundidade política,
assim como sebes, aldeias e campanários lhe dão
a sua profundidade visual. E o tempo do poder
real não é mais que este espaço eoeperimentado.
Como homem dotado do poder supremo, o rei

97
está votado à precipitação visto que é levado
a crer que tudo se resolve por decreto. Apren­
derá a lentidão do mundo que governa, das
ordens privilegiadas e deste co«rpo destinado,
numa monarquia digna desse nome, a ensinar-
-Iha: o depósito das leis. Esta lentidão será
como que a educação forçada da razão política
dc soberano pela distância real e plena que o
separa dos seus súbditos. Ê dela que receberá
a razão. O príncipe que, bem entendido, não é
um anjo, tornar-se-á razoável pela necessidade
do seu poder: o espaço e a duração deste serão
a razão prática de um rei, obrigado a tomar-se
sábio pela exiperiência, se não o for por nas­
cimento. Assim como na democracia, os notá­
veis, devido à sua estirpe e à sua fortuna
ocupam 0 lugar da razão do povo, também na
monarquia, o obstáculo da nobreza ocupa o
lugar de sapiência do irei.
Mas existe entre a democracia e a monar­
quia uma diferença essencial. B que na demo­
cracia é necessário que a virtude e a razão
estejam álgures, e que determinaÂos homens
sejam razoáveis por si e não que o possam vir
a ser por razões estranhas a eles próprios. Se se
pretender que a república seja democrática,
estes notáveis não podem deixar de ser vir­
tuosos. Na democracia, a sorte da razão é por­
tanto entregue, mesmo quando é delegada ape­
nas a alguns eleitos, nas mãos dos homens.
Na monarquia as coisas passam-se de uma
maneira diferente. A nobreza que deve impor

98
a razão ao rei, aaão é, em si razoável. Pelo con­
trario, a sua natureza é de o não ser. Ê incapaz
de reflexão, e de tal maneira que se vê obrigada
a procurar nos magistrados a memória das leis
que não quer perder! Donde vem pois a razão
da monarquia, se nela nada é razoável? Da no­
breza que a não possui, mas que a produz sem
que o queira ou o saiba, sem que faça nada para
isso. Tudo se passa portanto como se a monar­
quia produzisse a razão política como resultado
das suas desrazões privadas. Esta razão que não
figura em nenhuma rubrica existe no entanto
na base da monarquia. A lei mais profunda
desta é sem dúvida a de produzir assim o seu
fim. Se fosse necessário completar as leis fun­
damentais da monarquia, com uma última lei
que seria de facto a primeira, seria necessário
dizer que a sua lei original é este artifício ãa
razão.
fi ela que constitui a essência da honra,
princípio da monarquia. A verdade da honra
reside precisamente no faoto de esta última
ser falsa. Filosoficamente falsa, diz Montes-
quieu [EL, III, 7). Esta falsidade tem de ser
entendida em dois sentidos. O primeiro quer
que a verdade da honra não tenha nada a ver
com a verdade. O segundo, que a mentira pro­
duza apesar de tudo uma verdade.
A honra não tem nada a ver com a verdade
nem com a moral. Aqui está algo que fere todas
as aparências da honra, visto que a honra
quer a franqueza, a obediência, a bondade e a

99
generosidade. A franqueza? A honra quer ver­
dade nos discursos. Mas será por amor da
verdade? — De maneira nenhuma {EL, IV, 2).
Este amor da verdade e da simplicidade encon­
tra-se no povo, que não tem nenhum tributo
para com a honra, nem sabe que fazer dela,
que ama a verdade apenas porqite um homem
que a diz é valente e livre. A obediência? A
honra só a consente para engrandecimento de
si própria, não pela bondade ou pela virtude
de submissão mas pelos louros que colhe de­
vido a ter-se-*lhe submetido. A prova está em
que esta honra tão submissa, submete ao seu
arbítrio os títulos das ordens que recebe: deso­
bediência a todos os que julga que a infrin­
gem, a todos os que ferem as suas leis e os
seus códigos. A bondade e a generosidade, a
grandeza de alma? São de facto deveres que
todos os homens têm para com o seu seme­
lhante, se quiserem viver em conjunto e em
paz. Mas na honra, não é de uma fonte tão
pura que a hondade extrai a sua origem. Nasce
da vontade de dar nas vistas. É por orgulho
que somos hons e delicados: sentimo-nos lison-
geaãos de ter maneiras que provam que não
estamos na baixeza e que não vivemos com
aquela espécie de gente que em todos os tempos
tem sido abandonada {EL, IV, 2). A própria
generosidade, que parece provir da bondade,
não é senão a prova de que uma alma bem
nascida quer dar de ser a si própria, dispensan­
do-a, maior que a sua fortuna, e esquecendo-a.

100
mais destacada que a sua estiupe; como se pu­
desse negar esta vantagem de estirpe que é pre­
ciso ter pelo prazer de a negar. Todas estas apa­
rências da virtude são pois fàcilmente rebatidas.
A honra não está submetida à virtude, subme­
te-a. Esta honra bizarra quer que as virtudes
não sejam senão as que ela quer; impõe, por
sua alta recreação, regras a tudo o que nos é
prescrito; amplifica ou limita os nossos deveres
segundo a sua fantasia, quer eles provenham
da religião, da política ou da moral {EL, IV, 2).
Sendo assim, terá a honra alguma relação
com uma outra verdade que já não seria teó­
rica e moral, mas .prática e profana? Poderia­
mos admiti-lo, ao ver Montesquieu procurar
nas leis bárbaras, que submetiam as decisões
dos juizes à prova ipelo combate, a origem da
honra no ponto de honra. Recordamomos de
Hobbes exprimindo numa imagem extraordi­
nária o destino dos homens em luta. Na cor­
rida sem fim que é a nossa vida, estamos como
que numa pista onde iniciámos juntos a par­
tida. Até à morte, que é o abandono da corrida,
procurando continua mente ultrapassarmo-nos
uns aos outros. A honra é olhar para trás e
ver que há homens que ainda não chegaram
onde chegámos. Aqui está o conceito de honra
de Hobbes que exprime simultâneamente o de­
sejo humano de levar a melhor sobre o homem
e 0 mérito real e consciente de ter ultrapassado
03 homens. Mas esta não é a honra de Mon­
tesquieu. A honra não é ,para ele a mola da

101
condição humana, a paixão universal que sus­
cita a universal luta do prestígio e do reconhe­
cimento, na qual Hegel verá a origem do se­
nhor e do escravo e da consciência de si. Em
Montesquieu, os senhores e os escravos já
existem antes da honra; o triunfo desta não
celebra um triunfo real. Antes mesmo da par­
tida, a corrida está ganha. Se se quiser ainda
falar de corrida relativamente à honra, uns
têm, como diz Pascal, vinte anos de avanço
sobre os outros, e toda a corrida vai a passo.
Ê que, de facto, a honra, se implica «honras
e distinções», supõe primeiro a existência
consagrada destas e a sua atribuição regula­
mentada— numa palavra, supõe um Estado
em que reinem as preeminências e as estirpes
{EL, ni, 7). A honra é o ponto de honra não
de um mérito adquirido na luta, mas de uma
superioridade recebida por nascimento. A honra
é então a paixão de uma classe social. Se é
como que a mãe desta, visto que foi na origem
longínqua das leis bárbaras que ela a consti­
tuiu, quando os Francos venceram os Gaule-
ses, como mãe, visto que a mantém na
convicção da sua superioridade, é igualmente
filha da nobreza, visto que sem a existência da
nobreza não seria concebível. E toda a sua
falsidade consiste em dar a aparência da moral
ou do mérito a razões que não são mais que a
vaidade de uma classe.
Mas a honra não é falsa apenas porque
ilude a verdade. É falsa porque esta mentira

102
produz uma verdade. De facto, esta es-
trajiha paixão, tão bem regudamentada que
as suas bizarrias têm leis próprias e todo
um código, que parece transtornar a ordem
social pelo seu desprezo da ordem e da socie­
dade, impondo o seu imipério ao Estado, serve
com a sua própria desrazão, a razão desse Es­
tado. Por mais estranho à verdade que este
preconceito seja, vira-se no entanto em fa ­
vor da realidade política. Ê que a honra que
falseia a verdade e a moral é por sua vez
enganada pela sua própria falsidade. Julga
ignorar todo o dever que não seja aquele que
se reconhece para consigo própria: o dever de
se distinguir, de perpectuar a sua própria gran­
deza, de cuidar de uma certa imagem de si
que a eleva acima da sua vida e das ordens
que recebe. Na verdade, o que acontece é que
cada um vai ao hem comum, julgando ir aos
seus interesses particulares {EL, m , 7). Na
verdade, esta honra falsa é tão útil ao público
quanto o verdadeiro o seria aos particulares
que pudessem possui-lo. Estas virtudes, falsas
na sua causa, são verdadeiras nos seus efeitos:
obediência, franqueza, delicadeza e generosi­
dade. Que importa ao príncipe que as obtenha
da verdade ou da moral, da vaidade ou do
preconceito? O efeito é o mesmo e sem este
esforço sobre-^humano que é requerido da vir­
tude pela mesma causa. A honra é a econo­
mia da virtude. Dispensa e dá os mesmos
efeitos ,por menor preço.

103
Mas tem também outro mérito que diz pre-
cisamexite respeito ao ipríncipe que ocupa o
lugar mais proveitoso: não se deixa tomar por
nada, nem mesmo pelos prestígios do ipoder
supremo. Precisamente porque está acima de
todas as leis, não só religiosas e morais, mas
também políticas, a honra é o escolho dos ca­
prichos do rei. Embora o poder da honra seja
limitado poT aquilo que é a sua mola, {EL,
III, 10), embora os grandes só tenham a honra
em mente, esta suficiência basta-lhes. Não têm
outra ambição, seja ela fortuna a ganhar ou
poder a conquistar; se a honra é esta cegueira
dos grandes sobre os interesses do mundo, se a
loucura protege assim o príncipe das audácias
dos grandes, esta loucura protege também o
príncipe das suas tentações de homem. Porque
nunca poderá esperar que estes grandes entrem
nos seus objectivos por outras razões senão
as deles, por motivos desconhecidos desta es­
tranha honra. O príncipe pode pretender pôr
os grandes inteiramente ao seu serviço, mas
nunca obter a totalidade ida alma destes. E se
quiser ir além da razão e lançar-se em empre­
sas que excedem o poder legítimo, será retido
pela honra dos seus nobres que oporá as leis
do príncipe às ordens do príncipe e as fará
rebeldes. É assim que a razão remará no Es­
tado como a impotência de duas loucuras, e a
verdade, como duas falsidades contrariadas.
Através desta característica julgar-se-á se a
honra não desempenha neste governo como prm-

104
cípio o papel que a nobreza e os corpos iuter-
Ttiiédios deseiriipeniham nele -como natureza. E a
honra, longe de ser uma paixão geral — como a
virtude o -deve ser na república — não possa de
uma paixão de estado, que pode ser contagiosa,
como o -são em regra os exemplos, mas no en­
tanto não se partilha. Pode-se der, es:condida
num capítulo sobre o direito penal, uma frase
que diz que o vilão não sabe o que é a honra
(EL, VI, 10). O que implica que sofra no corpo
os suplícios dos seus crimes. A um grande, tortu-
ra-se-lhe a honra -que é a sua alma. Assim, a ver­
gonha -funciona para ele como roda de suplício.
Assim é a mo-narquia. Um príncipe prote­
gido dos seus exceS'SOs por ordens privilegia­
das. Ordens protegidas do príncipe pela sua
própria -honra. Um príncipe protegido do povo
e um povo protegido do povo por estas mesmas
ordens. Um poder menos temperado pela sua
essência pura ou pela sua atribuição que -pelas
condições sociais fixas e estabelecidas em que
ele se exerce e que lhe dão, como obstáculo e
como meio, essa lentidão e essa temperança que
são toda a sua razão. Cada um puxa para si,
visto que só tem em mente o seu absoluto, e o
equilíbrio surge sem que ninguém se aperceba
disso, dos próprios excessos contrariados. Po­
de-se bem dizer da razão da monarquia que ela
é uma contrariedade de loucuras. E como é
claro que esta ordem tem a preferência de Mon-
tesquieu, a sua estrutura pode esclarecer algu­
mas das escolhas do autor. E, principalmente, a

105
idéia que ele faz dos homens e da razão.
Porque, se há nele um verdadeiro entusiasmo
pela razão inteligente, não há quaiquer espécie
de paixão pela razão ideal. Montesquieu diz
por vezes que nem toda a razão é razoável e
que bem-fazer não é fazer bem. Se tem a vir­
tude republicana em tão grande conta, é que
a crê fora do alcance humano. Se lhe prefere
a moderação da monarquia e da honra, é
que a honra, com os seus desvios, é a via mais
directa da virtude e sobretudo esta via passa
por paixões que nascem por natureza de uma
condição e não por ascese de uma conversão.
Esta razão que sonha fazer reinar no Estado
é muito mais a razão que se joga nas costas
dos homens e que os relega para segundo plano,
dc que a razão que vive na consciência deles
e de que eles vivera. Vemos assim que a monar­
quia entra naturalmente nesta grande lei da
história já então descoberta segundo a qual
não é a consciência dos homens que faz a his­
tória. Mas vemos tamibém como é que uma
ideia tão geral pode servir uma causa tão
particular. Porque não se pode deixar de dizer
que Montesquieu escolheu a melhor de todas
as inconsciências políticas: a monarquia.

93b Despotismo

Na ordem das definições de Montesquieu o


despotismo é o último dos governos. Gostaria
de conseguir mostrar que é o primeiro no seu

106
espírito. Não na preferência, que vai eviden­
temente para a monarquia, mas, o que é a
mesma coisa, pela aversão. E que o seu objec-
tivo é fornecer à monarquia novas razões não
só para ser eleita, mas para ser estabelecida
sobre fundamentos verdadeiros, apondodhe o
espectáculo da sua decadência e do seu espan­
talho.
Que é o despotismo? De uma maneira dife­
rente da república e semelhante da monarquia,
é um governo existente. É o governo dos tur­
cos, dos persas, do Japão, da Ohina, e da maio­
ria dos países da Âsia. O governo de países
imensos com um clima devorador. Já a situa­
ção dos regimes despóticos indica a desmedida
destes. B o governo das terras estremas, das
extensões extremas, sob o mais ardente dos
céus. B 0 governo-limite e o limite do governo.
Pressentimos desde logo que o exemplo de
países reais não foi mais que um pretexto para
Montesquieu. Parece que aquando do congresso
de 1948, alguns auditores turcos, ao ouvirem
relembrar a céleibre fórmula que faz do des­
potismo o regime dos turcos, manifestaram
«os mais vivos e justificados protestos»
fi M. Prélot que relata este incidente. Mas,
mesmo sem sermos turcos, podemos suspeitar

2 M. PRÉLiOT, M ontesquieu et les form es de gou-


vernem ents, Recueil Sirey: Bicentenário do E spírito
das Leis, p. 127.

107
do exotismo político de um homem que não foi
além de Veneza e da fronteira da Áustria e
que só conheceu o Oriente através dos livros
de viagens entre os quais soube escolher os
que melhor lhe convinham. Já em 1778, numa
obra admirável consagrada à Legislação Orien­
tal, Anquetil-Duiperron já opunha 0 Oriente real
ao mito oriental de Montesquieu. Mas, denun­
ciada a miragem geográfica do despotismo,
resta uma iãeia do despotismo que nenhum
protesto turco conseguirá refutar. Se o Persa
não existisse, porque é que um nobre fran­
cês, nascido durante o reinado de Luís XIV,
havia de o ter coíicebido em mente ?
O despotismo é de facto uma ideia política,
a ideia do mal absoluto, a ideia do limite do
próprio político como tal.
Não basta de facto definir o despotismo
como o governo ^m que um só homem, sem
leis nem regras, obtém tudo pela sua vontade
e pelos seus caprichos. Esta definição perma­
necerá superficial enquanto não se descrever
a vida concreta de tal regime. De facto, como
é que um só homem pode realmente abarcar
com os seus caprichos o imenso império das
terras e dos povos submetidos ao seu decreto?
É este paradoxo que é preciso esclarecer se se
quiser descobrir o sentido desta ideia.
O traço essencial do despotismo é o de ser
um. regime político que não tem por assim dizer
uma estrutura. Nem jurídico-política, nem
social. Montesquieu diz por várias vezes que

108
o despotismo não tem leis, e nesta frase é
preciso ler também; não tem leis fundamen­
tais. Sei que Montesquieu cita uma lei funda­
mental segundo a qual o tirano delega todo o
seu poider no grão-vizir. {EL, II, 5), mas só
aparentemente é uma lei política. Na verdade,
é iprecisamente uma lei da paixão, uma lei psi­
cológica que revela o embrutecimento do tirano
e a divina surpresa que o faz descobrir, do fundo
da sua indolência — tal como o Papa citado por
Montesquieu que cede a administração dos seus
Estados ao sobrinho {EL, II, 5) — que o governo
dos homens é uma arte de criança: basta man­
dá-los governar por um terceiro! Na sua pre­
tensão, esta falsa lei, que converte impròpria-
mente a paixão em política, mostra que no des­
potismo toda a política apenas se reduz à
paixão. Nem sempre encontramos estrutura.
Contudo, sei perfeitamente que existe no despo­
tismo o substituto de uma lei fundamental: a
religião. Ê, de facto, a única autoridade
acima da autoridade e pode em algumas
circunstâncias moderar os excessos de cruel­
dade do príncipe e o terror dos súbditos. Mas
a sua essência é, também, feita de paixão, pois
no despotismo a própria religião é despótica:
é um medo associado ao medo {EL, V, 14). Por­
tanto, nem no vizirato, nem na religião, nada
existe que se assemelhe a uma ordem de condi­
ções políticas e jurídicas transcendentes às pai­
xões humanas. E, de facto, o despotismo não
conhece leis de sucessão. Nada que designe o

109
déspota de amanhã nos súhditos de hoje. Nem
mesmo o decreto arbitrário do désipota que uma
revo/lução de palácio, uma conjuração de ser­
ralho ou uma revolução popular, reduzem a
nada. Também não conhece outro tipo de leis
‘políticas senão o que rege esta estranha trans­
missão do poder, sempre absoluta, que se estende
do príncipe ao último chefe de família, passando
pelo primeiro vizir, governadores, paxás, repe­
tindo imperturbàvelmente de uma ponta a outra
do reino a lógica da paixão: indolência por um
lado, gosto de domínio pelo outro. Também não
conhece leis judiciárias. 0 cádi só tem por có­
digo o seu humor, por procedimento a sua im­
paciência. Mal deu ouvidos às facções, toma
decisões enérgicas, e imediatamente distribui
pauladas, ou faz voar cabeças. Enfim este es­
tranho regime nem se preocupa com o mínimo
de ordem que poderia regular as trocas e o
comércio. A «sociedade de carências» nem
mesmo é regida por essas leis inconscientes que
fazem um mercado, uma ordem econômica
transcendente na vida prática dos homens; não,
a lógica da economia faz a economia da lógica,
reduz-se às simples paixões dos homens. É, no
dia a dia, que o próprio comerciante vive no
medo de perder amanhã o que acumulara nesse
mesmo dia, semelhante ao selvagem da Amé­
rica que Rousseau citará, o qual de manhã vende
a cama onde dormiu, sem pensar que a noite
chegará novamente... Sem transcendência polí-

110
tica ou jurídica, portanto sem passado nem fu­
turo, o despotismo é o regime do instante.
Esta precaridade é, se se pode dizer, asse­
gurada pelo desaparecimento de toda a estru­
tura social. Na democracia, os magistrados têm
um estatuto, e a propriedade ou uma riqueza
relativa são garantidas pela lei. Na monarquia,
a nobreza e o clero são protegidos pelo reconhe­
cimento dos seus privilégios. No despotismo,
nada distingue os homens: é o reino da extrema
igualdade, que rebaixa todos os súbditos na
mesma uniformidade {EL, V, 14). Neste mo­
mento, Montesquieu diz que todos os homens
são iguais, não porque sejam tudo como na
democracia, mas porque são nada {EL, VI, 2).
É a supressão das ordens pelo nivelamento
geral. Nem ordem hereditária, nem nobreza:
não é necessário nobres de sangue neste
regime sanguinário. Nem tão-pouco nobres de
bens: o tirano não pode suportar a continuidade
de «famílias» que o tempo enriqueceu e as que
a sucessão e o esforço de gerações elevam na
sociedade dos homens. Ou melhor, não pode
tolerar nenhuma das grandezas de instituição
que ele próprio confere aos seus súbditos. Por­
que, enfim, são necessários um vizir, governa­
dores, paxás e cádis! Mas esta grandeza é só
de ocasião, retomada logo que é cedida e como
que efêmera. Nula, desde o momento em que
surge. Se todo o amanuense detém deste modo
todo o poder do déspota, vive em destituição
ou em assassinato protelados: eis toda a sua

111
■ liberdade, toda a sua segurança! É mais fácil
fazer, diz Montesquieu, de um homem 'grosseiro
um príncipe que de um príncipe um ho-mem
grosseiro {EL, V, 19). As diferenças sociais que
emergem deste deserto igualitário são apenas a
aparência de uma uniformidade universal. Con­
tudo, mesmo esse corpo tão necessário à ordem
ou ao terror, que é a polícia, não tem lugar
neste regime: constituiría um corpo demasiado
estável e demasiado perigoso na instabilidade
igeral. Quando muito, é necessário uma guarda
de janízaros, ligados à 'pessoa do príncipe e que
ele lança subitamente ao assalto de uma cabeça
antes de a encerrar na noite do Palácio. Nada
que distinga os homens, nada que se asseme­
lhe, nem minimamente, ao esboço de uma hie­
rarquia ou de uma carreira sociais, à organiza­
ção de um 'mundo social, onde, 'de an.temão,
durante o tempo de existência ou através do
crescimento das gerações, se abram os cami­
nhos do futuro — onde se possa ter a certeza
de ser 'nobre pela vida quando não se é pelo
nascimento, de se tornar .burguês na vida quando
se tiver merecido pelo trabalho próprio. O deis-
potismo não só não conhece estrutura nem
transcendência .política, como também não
conhece estrutura social.
Esta disposição dá um estranho comporta­
mento à vida deste regime. Este governo que
reina sobre es.paços desmedidos, é cO'mo que
privado de espaço social. Este regime, que no
exemplo da China, atravessou milênios, é cO'mo

112
que despojaxJo de toda a duração. O seu espaço
social e o seu tempo político são neutros e uni­
formes. Espaço sem lugar, tempo sem duração.
Os reis, diz Montesquieu, conhecem as diferen­
ças que existem entre as suas províncias e res-
peitam-nas. Os déspotas não só as ignoram,
como ainda as destroem. Não reinam senão na
uniformidade vazia, no vazio que é a incerteza
do amanhã, as terras abandonadas, um comércio
que expira ao nascer: no deserto. E o que o des­
potismo instaia nas suas fronteiras é o próprio
deserto, queimando as terras, mesmo as suas,
para se isolar do mundo, proteger-se dos contá­
gios e das invasões de que nada o pode guar­
dar. {EL, IX, 4, 6). Nada, com efeito, que
resista no vazio; se um exército estrangeiro
penetra no império, nada o poderá deter, nem
fortaleza, nem força, pois não as tem; é, por­
tanto, necessário enfraquecê-lo, antes de alcan­
çar a fronteira, opondo-lhe um primeiro de­
serto no qual se perderá. O espaço do despotismo
é só o vazio: acreditando governar um impé­
rio, o déspota apenas reina sobre um deserto.
Quanto ao tempo do despotismo, ele é o con­
trário da duração: o instante. O despotismo
não só não conhece nenhuma instituição, ne­
nhuma ordem, nenhuma família que durem,
mas os seus próprios actos brotam no instante.
O povo inteiro é à imagem do déspota. O dés­
pota decide no instante. Sem reflectir, sem com­
parar razões, sem pesar argumentos, sem com-

113
promissos, sem moderações {EL, III, 10). Ê que
para reflectir é preciso tempo e uma certa ideia
de futuro. Ora o déspota não tem outra ideia
de futuro, senão a do negociante que ganha
para comer e é tudo. Toda a sua reflexão
se reduz a decidir, e a legião dos seus funcioná­
rios precários repete até aos confins das pro­
víncias mais distantes o mesmo gesto cego.
Aliás sobre o que poderíam eles decidir? São
como juizes sem código. Ignoram as razões
do tirano que aliás não as tem. É necessário
que decidam! Pois decidirão: como ele, subita­
mente {EL, VI, 16). Também subitamente serão
destituídos ou enforcados. Partilhando até ao
fim a condição do seu dono que só aprende­
ría o futuro a partir da sua morte, se não
morresse.
Esta lógica do imediatismo abstracto, que
faz extraordinariamente pressentir alguns te­
mas críticos de Hegel, tem contudo uma ver­
dade e um conteúdo. Porque se este regime que
subsiste por assim dizer sob o político e o social,
confinado num grau inferior à sua generali­
dade e à sua constância, vive pelo menos na
vida inferior deste grau. E esta vida é unica­
mente a da paixão imediata.
Talvez já se tenha refleotido bastante no
facto de as paixões que constituem os princi-
pios dos diferentes governos não serem da
mesma natureza. A honra, por exemplo, não

114
é uma ipaixão simples, ou se se preferir, não é
uma paixão «psicológica». A honra é caprichosa
como todas as paixões, mas os seus caprichos
são dirigidos: tem as suas leis e o seu código.
Não seria mesmo necessário pressionar Mon-
tesquieu para lhe fazer confessar que a essên­
cia da monarquia é a desobediência, mas uma
desobediência dirigida, A honra é, iportanto, uma
paixão reflectida na sua própria intransigên­
cia. Por muito «psicológica», muito imediata
que se queira, a honra é uma paixão educada
pela sociedade, uma paixão cultivada e, se é
lícito arriscar o termo, uma paixão cultural e
social.
O mesmo diriamos acerca da virtude na
república. Também ela é uma estranha paixão
que nada tem de imediato, mas sacrifica no
homem os seus próprios desejos para lhe dar
o bem geral como objectivo. A virtude define-se
como a paixão do geral. E Montesquieu mos­
tra-nos com benevolência esses monges transfe­
rindo na generalidade das suas ordens as pai­
xões particulares que reprimem em si próprios.
Como a honra, a virtude tem pois o seu código
e as suas leis. Ou melhor, tem a siut lei, uma
lei única; o amor da pátria. A esta paixão do
universal falta uma escola universal: a de toda
a vida. Ã velha questão socrática, de saber se é
possível ensinar a virtude, Montesquieu respon-
deria que se deve e que o único destino da vir­
tude é precisamente o de ser ensinada.

115
A paixão que sustenta o despotismo não
conhece esse dever. O medo h ipois é preciso
chamado pelo seu nome, não necessita de edu­
cação, a qual, no despdtismo, é de qualquer
maneira nula {EL, IV, 3). Não é uma paixão
complexa ou educada, é uma paixão social. Não
conhece nem códigos nem leis. Ê uma paixão
sem carreira à sua frente, nem títulos atrás;
uma paixão em estado nascente que nada jamais
desviará do seu nascimento. Uma paixão do
instante que apenas se repete. Ê, entre as pai­
xões 'politicas, a única que não é política, mas
«psicológica», porque imediata. Contudo, é ela
que dá vida a este regime.
Se 0 tirano se demite por indolência ou por
tédio do exercício de governar, é porque se
recusa a ser homem público. É porque não quer
aspirar a esta ordem de impersonalidade pon­
derada que faz os homens de Estado. Por um
movimento de humor ou de enfado privado, que
ele reveste com maneiras solenes, deape-se da
personagem pública que passa a um iterceiro,
como um rei passa o seu manto a um servo,
para se abandonar às delícias das paixões priva­
das. O déspota já só tem desejos. Daí, o harém.

1 É de assinalar que Montesquieu reserva o medo


eó ao despotismo, ao passo que Hobbes, teórico do
absolutismo, o descobre no coração de todas as socie­
dades.

116
Esta abdicação do déspota é a figura geral
deste regime que renuncia à ordem do político
para se entregar ao destino das paixões únicas.
Por isso, nsjda de surpreendente ao ver-se repe-
tii' indefini damente as mesmas forças em todos
os homens que compõem o império. 0 último
súbdito é um déspota, pelo menos das suas
mulheres, mas também seu prisioneiro: o pri­
sioneiro das suas paixões. E quando sai de
casa são ainda os desejos que o movem. Sabe-se
assim que, no despotismo, o único desejo que
subsiste é o desejo das comodidades da nida ^:
Mas não é um desejo contínuo: não tem
tempo de criar um futuro. A s paixões do des­
potismo destroem-se umas às outras. Poder-
-se-ia dizer que a força do despotismo é tanto
o desejo como o medo. Porque em si mesmos
são 0 seu próprio reverso, sem futuro, tal como
dois homens ligados pelas costas, sem espaço,
sujeitos às suas cadeias. E é este tipo de paixão
que dá ao despotismo o seu estilo. Esta ausên­
cia de duração, estes movimentos súbitos e sem
retrocesso são precisamente os atributos dessas
paixões instantâneas e imediatas que recaem
sobre si próprias, como pedras que as crianças
desejariam lançar contra o céu. Se, como disse
Marx numa imagem de juventude, é verdade

1 E L , 17, 18; v n , 4. Cf. IX, 6: o despoüsmo é


o reino dos «interesses particulares».

117
que a política é o céu dos indivíduos, pode dizer­
-se do despotismo que é um mundo sem céu.
Ê evidente que Montesquieu quis represen­
tar nesta figura do despotismo ajlgo ;distinto do
Estado dos regimes orientais: a abdicação do
próprio político. Este julgamento de valor ex­
plica o seu paradoxo. Com efeito, está-se sem­
pre a ponto de dizer que o político não existe,
que é a tentação e o risco de outros regimes
corrompidos; e, no entanto, como regime que
existe, que pode mesmo corromper-se, emibora
corrompido por essência, nunca cai senão na
própria corrupção. Ê, sem dúvida, a sorte de
todo o extremismo condenado: é conveniente
representá-ilo como real para inspirar a aversão.
Ê bem necessária a imagem do Diabo para con­
servar a virtude. Mas importa também dar a
este extremismo todos os traços do impossível
e do nada; mostrar que não é o que pretende;
e destruir nele a aparência dos bens que se tem
de perder se alguma vez aí se cair. É por esta
razão que a imagem do despotismo se apoia no
exemplo dos regimes do Oriente, ao mesmo
tempo que se impõe e se recusa conuo ideia.
Deixemos portanto os Turcos e os Chineses
em paz, para fixar a imagem positiva de que
este perigo constitui o espantalho.
Temos textos suficientes e bastante categó­
ricos de Montesquieu e seus contemporâneos,
para adiantar que o despotismo só é ilusão geo­
gráfica, porque é alusão histórica. Ê à monar­
quia absoluta que se refere Montesquieu, se não

118
à monarquia absoluta em si, pelo menos, às
tentações que a esipreitavam b Sabe-se que Mon-
tesquieu ,pertencia por convicção a esse partido
de oposição de direita de condição feudal que
não aceitava a decadência política da sua classe,
e criticava as novas formas políticas instauradas
a partir do séc. XIV por terem suplantado as
antigas. Fénelon, Boulainvilliers, Saint-Simon,
pertenceram a este ipartido, que até à morte
depositou todas as suas esperanças no duque de
Bourgogne, de quem Montesquieu fazia um
herói É a este partido que se devem as mais

1 Of. La C X X X V n Lettre Persane. Retrato de


Luís XIV. Usbeque: «De todos os governos do mundo,
o dos Turcx» ou o do nosso augusto sultão agrad:ar-
-Ihe-á mais, taJ o seu interesse pela política orientai.
2 «Foi um duro golipe para o reino a morte do
último delfim...» Embora não tenham sido bem conhe­
cidos, a verdade é os planos do seu governo que tinha
as melhores idéias do mundo. Ê certo que não havia
nada no mundo que tanto odiasse como o despotismo.
Queria tornar todas as diversas províncias do reino
em Estados, como a Bretanha e o Languedoc. Quis que
aí houvesse conselhos e que os secretários de Estado
não fossem senão os secretários destes conselhos. Que­
ria reduzir os encargos da magistratura ao que fosse
necessário. Quis que o Rei tivesse uma espécie de lista
civil como em Inglaterra, para manutenção de sua
casa e da corte e que em tempo de guerra esta lista
civil fosse submetida a impostos como os outros fundos,
porque, dizia ele, não é justo que todos os súbditos so-
fram com a guerra e que o príncipe não sofra. Queria
que a sua corte tivesse costumes « ( S.picUège, p. 767.
Citado em Barrière, Montesquieu, p. 392)».

119
sérias críticas contra os excessos de Luís XIV.
A miséria dos camponeses, os horrores da
guerra, os abusos dos ministros e dos adminis­
tradores, as intrigas e as usurpações dos corte­
sãos, eis o tema das suas denúncias. Todos estes
textos famosos adquirem pela sua oposição
uma ressonância «liberal» e temo que figweim
muitas vezes nas antologias da «liberdade», ao
lado dos de Montesquieu e não sem uma aipa-
rência fundada de razão, pois esta oposição teve
realmente um papel singular na luta contra o
poder feudal, embora tivesse sido encarnada
pela monarquia absoluta: mas os proipósitos que
os inspiravam tinham tanto a ver com a liber­
dade como os clamores dos ultras contra a
sociedade capitalista, sob a Restauração e a
Monarquia de Julho, tiveram a ver com o socia­
lismo. Ao denunciar o «;despotismo», Montes­
quieu não defende a liberdade em geral contra
a política do absoluitismo mas as liberdades em
particular da classe feudal, a sua segurança
particular, as condições da sua prepetuidade e
a sua pretensão de retomar, nos novos órgãos do
poder, o lugar de que a história a privou.
Sem dúvida o «despotismo» é uma carica­
tura. Mas o seu fim é o de amedrontar e de se
instituir pelo próprio horror. Eis um regime em
que governa uma só pessoa, num palácio donde
nunca sai, entregue às paixões das mulheres e
às intrigas dos cortesãos. Caricatura de Versail-
les e da corte. Eis um tirano que governa atra­
vés do seu grão-vizir. Caricatura do minis-

120
tro ^que naida, iprincilpalmiente o seu nascimento,
designa para este iposto, a não ser o favor do
príncipe. E mesmo aos governadores todowpoide-
rosos colocados na província, como não reconhe­
cer a máscara grotesca dos intendentes encarre­
gados do poder absoluto do rei no seu domínio ?
Como não pressentir no regime do capricho, a
caricatura forçada do regime do «bom prazer», e
no tirano que é «todo o Estado» sem o dizer, o
eco deformado do príncipe que já o disse, ainda
que não completamente? Mas uma causa jul­
ga-se pelos seus efeitos. Basta apresentar a si­
tuação efectiva dos grandes e do poro no des­
potismo para conhecer os iperigos que tem de
evitar.
O paradoxo do despotismo é o de tanto se
enfurecer com os grandes, qualquer que seja a
sua origem (e como não pensar nos nobres, os
menos revogáveis dos grandes?) *, que o povo
fica como que posto de parte. O déspota tem
tanto que fazer para abater os grandes e destruir
a ameaça da sua condição renascente que o povo,
que nada sabe disso, encontra-se ao abrigo desta
luta desencadeada por cima da sua cabeça. De
uma certa maneira, o despotismo são os nobres

1 «Os piores cidadãos da França foram Richeileu e


Louvois» (PenséesJ.
2 Como a Instabilidado dos grandes faz parte da
na/tureza do governo despótico, a sua segurança faz
parte da natureza da monarquia (E L , VI, 21).

121
amedrontados e o povo tranquilo ocuipando-se
das suas paixões e dos seus trabalhos. Veem^se,
por vezes, diz Montesquieu, essas torrentes
engrossadas 'pelas tempestades e que tudo des-
troem à sua passagem. Mas à sua vodta, há
prados verdes e rebanhos que pastam. Assim,
0 déspota afasta os grandes, o povo, mesmo
miserável, conhece uma espécie de paz. Acre­
dito que apenas seja tranquilidade, a mesma
que reina nas cidades cercadas, pois é nes­
tes termos que Montesquieu a rectifica {EL,
V, 14), mas quem não a preferiría ao terror
dos grandes que atemorizados vivem à espera
dos golpes quando não da morte? Quando
reparamos nestas passagens que parecem ^ a -
par a Montesquieu (EL, XII, 12, 15, 19; III, 19)
vemos que a inadvertência não tem aí lugar.
Trata-se mais de um aviso que, aláás, tem como
fim o de chamar a atenção. A lição é clara: os
grandes têm tudo a temer do despotismo, do
terror até ao aniquilamento. O povo, esse, por
muito miserável que seja está protegido.
Protegido. Mas também ameaçando à sua
maneira. Porque o despotismo apresenta esse se­
gundo privilégio de ser o regime das revoluções
populares Nenhum outro regime deixa o povo
entregue às suas paixões e só Deus sabe até

1 E L , V, n ; cf. VI, 2: KTo despotismo «tudo se


passa de repente e sem que se possam prever as
revoluções».

122
que ponto o povo está sujeito a elas! Estas pai­
xões .populares precisam do freio da reflexão:
na república os «grandes» que se elegem; na
monarquia os corpos intermediários que exis­
tem. Mas no despotismo, onde reina a paixão,
como dominar os instintos do povo, sem
nenhuma ordem legal ou social que se lhe
imponha ? Quando as paixões dominam, o .povo,
que é paixão, acaba sempre por vencer. Só acon­
tece por um dia. Mas esse dia chega para tudo
destruir. De qualquer maneira, basta derrubar
o tirano durante os choques da revolução. Tudo
isto pode ler-se muito claramente no capítulo II
do Livro V ão Espírito das Leis E não deixa-

1 E L , V, n : «O governo monárquico tem uma


grande vantagem sobre o deapótieo, Como faz parte
da própria natureza que haja sob o príncipe várias
ordens que sustentam a Constituição, o Estado é mais
fixo, a Constituição mais inabaláved, a pessoa dos que
governam mais assegurada.
«Cícero crê que o ©stabeleoimento dos tribunos de
Roma foi a salvação de Roma». De facto, diz ele, a
força do povo que não tem nenhum chefe é mais ter­
rível. Um chefe sabe que o trabalho cai sobre ele e pensa
nisso; mas o povo, na sua impetuosidade, desconhece
o perigo em que se lança». Pode-se aplicar esta reflexão
a um Estado despótico que é um povo sem tribunos;
e também uma monarquia, em que o povo tem de
alguma maneira tribunos. De facto, vê-se por toda a
parte que, nos movimentos do governo despótico, o
povo, entregue a si próprio, leva sempre as coisas mais
longe do que podem ir; todas as desordens que oomiete

123
mos de ver aí uima segunda lição, que desta vez
já não se dirige aos grandes, mas aos tiranos
ou, por acréscimo, aos monarcas modernos sedu­
zidos pelo despotismo. Esta segunda lição tem
um significado claro: o despotismo é a via
segura que conduz às revoluções populares.
Príncipes, livrai-vos do despotismo se quiserdes
salvar o vosso trono das violências do povo!
Estas duas lições juntas constituem uma
terceira se o príncii>e se obstina contra os
grandes, os grandes aí perderão a sua condição
ou a sua vida. Mas, ao fazer isso, o príncipe
abrirá caminho ao :povo, que se voltará contra
ele e nada o protegerá contra os seus ata­
ques; aí perderá a coroa e a vida. Que o
príncipe compreenda então que necessita da
protecção dos grandes para defender contra o
povo a sua coroa e a sua vida. Este é o funda­
mento de uma boa aliança, razoável e com troca

são extremas; ao passo que nas monarquias as coisas


multo raramente são levadas ao extremo. Os checfes
temem por sl próprios; têm rruedo de serem abandona­
dos; os poderes intermediários dependentes não querem
que o povo avance demasiado...
«Por isso, todas as nossas histórias estão cheias de
guerras civis sem revoluções; as dos estados despó­
ticos estão cheias de revoluções sem guerras civis...
«Os monarcas que vivem sob leis fundamentais do
seu Estado são... mais felizes que os príncipes despó­
ticos, que nada têm que possa regrar o coração do seu
povo, nem o seu.»

124
vantajosa. Basta, enfim, reconhecer a nohreza
para assegurar o seu trono.
Tal é o desipotismo. Um regime existente,
oertamente, mas tamibém e sobretudo uma
ameaça existente que espreita outro regime
deste tempo: a monarquia. Um regime exis­
tente, certamente, mas também e sobretudo uma
lição de política, um aviso claro ao rei tentado
pelo ipoder absoluto. Vê-^se que, sob as suas
aparências desligadas, a enumeração primitiva
dissimula uma escolha secreta. Certamente, há
três espécies de governo. Mas uma, a república,
já não existe fora da memória da história. Res­
tam a monarquia e o despotismo. Mas o des­
potismo não é senão a monarquia excedida e
desnaturada. Resta, portanto, só a monarquia
que é necessário preservar do seu perigo. Isto
pelo que se refere aos tempos presentes.
Mas, dir-se-á, que se passa com o futuro?
E que fazer desta Constituição inglesa que
Montesquieu dá como ideal no célebre capí­
tulo 6 do Livro X L? Não é um novo modelo que
destrói todas as lições anteriores? Gostaria de
mostrar que não é nada disso e que a lógica
da teoria da monarquia constitui, se não todo
o sentido, pelo menos um dos sentidos impor­
tantes do famoso debate ãa separação ãos
poderes.

125
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o M!TO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

Este texto é célebre. Quem não conhece


a teoria que pretende que em todo o bom
governo se distinga rigorosamente o legisla­
tivo do executivo e do judiciário? Que se deve
assegurar a independência de cada poder para
obter desta separação os benefícios da mode­
ração, da segurança e da liberdade? Tal seria,
de facto, o segredo do Livro XI, concebido mais
tarde que os dez primeiros e inspirado a Mon-
tesquieu pela revolução de Inglaterra, onde
teria descoberto, por ocasião de um cerco em
29-30, um regime radicalmente novo, apenas
tendo por objectivo a liberdade. Antes do
Livro XI, Montesquieu teria apresentado uma
teoria clássica, distinguindo formas políticas
diferentes, descrevendo a sua economia e a
sua dinâmica próprias. Depois, teria abando­
nado a máscara do historiador sem paixão, e
mesmo, se é possível convencermo-nos disso,

127
dc, nobre partidário, para propor ao público o
ideal de um povo possuindo duas câmaras, uma
assemibleia do terceiro estado, e juizes eleitos.
Deste modo, Montesquieu a/tingia enfim para
alguns a esfera do político como tal e mostra­
ria o seu gênio numa teoria do equilíbrio dos
poderes, de tal modo dispostos que o poder
seria o limite do próprio poder, resolvendo
assim de uma vez por todas o problema polí­
tico que se reduz inteiramente ao uso e abuso
do poder; para outros, os problemas políticos
do f uturo ^ que não são tanto os da monarquia
em geral, como os do governo representativo
e parlamentar. O futuro seria como que a prova
desta interpretação. Não vimos nós todo o
século procurar em Montesquieu os argumentos
para derrubar a ordem monárquica, justificar
ós parlamentos e até a convocação dos Estados
Gerais? A Constituição americana do fim de
século e mesmo a Constituição de 1795 e de
1848 não consagraram nos seus considerandos
e nas suas disposições esses princípios da se­
paração dos poderes desejada por Montes­
quieu? Estes dois temas, a essência do ipoder
e o equilíbrio dos poderesi, não são ainda temas
actuais, sempre retomados e sempre debatidos,
com as mesmas palavras fixadas por Montes­
quieu ?

1 PRELOT, op., cit., pp. 123, 129 sg.

128
Gostaria de levar a pensar que se trata
aqui, em grande parte, de ilusão histórica e dar
as razões disso. Dentro deste espírito, quero
reconhecer tudo o que devo aos artigos do
jurista Charles Eisenmann h Desejaria reto­
mar aqui o essencial antes de prolongar as
suas conclusões.
A tese de Eisenmann é a de que a teoria
de Montesqudeu, e muito particularmente o
célebre capítudo sobre a Constituição de Ingla­
terra, engendrou um verdadeiro mito: o mito
ãa separação dos poderes. Encontramos toda
uma escola de juristas, particularmente no fim
do século XIX e princípio do XX, que adopta-
ram um certo número de fórmulas de Mon-
tesquieu para lhe atribuir um modelo teórico,
puramente imaginário. O ideal político de Mon-
tesquieu coincidiria com um regime, no qual
seria rigorosamente assegurada esta separa­
ção dos poderes. Deveriam existir três pode­
res: 0 executivo (o rei, os seus ministros), o
legislativo (a câmara baixa e a câmara
alta) e o judicial (o corpo de magistra­
dos). Cada poder recobriría exactamente uma
esfera própria, isto é, uma função própria,

^ Ver em particuilar: EISENMAjNN, VEsprit des


L ois et la séparation des pouvoirs (Mélanges Carré
de Malberg, Paris, 1&33) pp. 190 sg. L a pensée cons-
titutionnelle de Montesquieu, Recueü Sirey, pp. 133-160.

129
sem qualquer interferêmcia. Cada poder seria
assegurado em oada esfera por um órgão rigo­
rosamente distinto dos outros órgãos. Não só
não se poderia conceber nenhuma interferên­
cia do executivo no legislativo ou no judLcM,
nem nenhuma interferência recíproca da
mesma natureza; mais ainda, nenhum dos mem­
bros que fazem parte de um órgão pode per­
tencer a outro órgão. Por exemplo, não só o
executivo não poderia intervir no legislativo,
por meio de propostas de lei, ou no judiciário
por pressões, etc., como também nenhum minis­
tro poderia ser responsável perante o legisla­
tivo; além disso, nenhum membro do legislativo
poderia, a título pessoal, assumir funções exe­
cutivas e judicial, isto é, tornar-se ministro
ou magistrado, etc. Deixo de lado o pormenor
desta lógica sempre viva em alguns espíritos.
A primeira audácia de Eisenmann consis­
tiu em mostrar que esta famosa teoria muito
simplesmente não existia em Montesquieu.
Basta ler atentamente os seus textos para
descobrir, com efeito:

1. Que o executivo interfere no legisla­


tivo, ,porque o rei goza do direito de veto \

1 «o poder executivo fazendo parte do legisla­


tivo... ipela sua faculdade de impedir...» (E L , XI. 6).

130
2. Que o legislativo pode, em certa medida,
exercer um direito de vigilância sobre o execu­
tivo, pois controla a aplicação das leis que
votou e sem que se trate de «responsabilidade
ministerial» ipode pedir contas aos ministros
perante o Parlamento
3. Que o legislativo interfere sèriamente
no judicial pois, em três circunstâncias par­
ticulares, erige-se em tribunal: em todas as
matérias, os nobres, cuja dignidade é neces­
sário proteger de todo o contacto com as opi­
niões dos magistrados populares, serão julga­
dos pelos seus pares da câmara alta ^; em ma­
téria de amndstia *; e em matéria de processos
políticos, que serão julgados perante õ tribunal

1 o poder lêgislativo «tem o direito e deve ter


a faculdade de examinar de algum modo se as leis
que fez foram executadas...» os ministros devem «dar
conta da sua administração» (BL, XI, 6).
2 «Os grandes estão sempre expostos à inveja; e
se fossem julgados pelo povo, poderíam correr perigo
e não gozariam do privilégio que tem o menor dos
cidadãos num Estado livre, o dè ser julgado pelos seus
pares. E preciso, portanto, que os nobres sejam cha­
mados não perante os tribunais ordinários da nação,
mas diante dessa parte do poder legislativo composta
de nobres» (XI, 6).
3 «Podería acontecer que a lei... fosse, em certos
casos, demasiado rigorosa... E... por a parte do poder
legislativo que acabamos de dizér ser, noufra ocasião,
üm tribunal necessário, que ainda o é nesta; com,pete,
à sua autoridade suprema moderar a lei, em benefí­
cio da própria lei...» (XI, 6).

131
da câmara alta, sob a acusação da câmara
baixa b
Não se percebe muito bem, como conciliar
semelhantes e tão imiportantes interferências
dos poderes com a pretendida pureza da sua
separação.
A segunda audácia de Eisenmann consistiu
em mostrar que, na verdade, em Montesquieu
não se tratava de separação, mas de combina­
ção, de f usão, e de ligação dos poderes O
ponto essencial desta demonstração consiste em
compreender primeiro que o poder judicial
não é um poder no sentido próprio. Este poder

1 «Podería acontecer ainda que alguns cidadãos,


nos negócios públicos, violassem os direitos do povo...
em geral, o poder legislativo não pode julgar; e ainda
menos no caso particular em que representa a parte
Interessada que é o povo. Portanto, apenas pode ser
acusador. Mas perante quem acusa? Irá baixar-se
diante de tribunais da lei que lhe são inferiores e
aliás composto por pessoas que sendo do povo como
ele, seriam levados pela autoridade de um tão grande
acusador? Não; é preciso, para conservar a dignidade
do povo e a segurança do particular, que a parte
legislativa do povo acuse diante da parte legislativa
dos nobres, a qual não tem, nem os mesmos interesses
que ela nem as mesmas paixões». (XI, 6).
2 «O corpo legislativo... sendo composto de duas
partes, uma prender-se-á à outra... ambas serão liga­
das pelo poder executivo e este pelo legislativo (XI, 6).
«Os três poderes... são... distribuídos e fundidos...»
(XI, 7).

132
é invisível e como que nulo, diz Montesquieu
E, de facto, para ele, o juiz não passa de uma
presença e de uma voz. B um homem cuja
função consiste exolusivamente em ier e em
dizer a lei
Pode discutir-se esta interpretação, mas
deve reconhecer-se, ipelo menos, que nas maté­
rias em que o juiz corre o risco de ser outra
coisa que não um código animado, Mon­
tesquieu teve a preocupação de decretar garan­
tias já não jurídicas, mas 'políticas: basta, por
exemplo, ver quem julga os delitos e crimes
dos nobres e os processos políticos. Uma vez
tomadas estas precauções, que transferem
aquilo que o judicial pode ter de efeitos
políticos para órgãos propriamente políticos,
o que resta do judicial é, com efeito, como
que nulo. Encontramo-nos então em face de
dois poderes: o executivo e o legislativo. Dois
poderes, mas três potências para retomar uma
palavra do próprio Montesquieu *. Estas três
potências são: o rei, a câmara alta e a câmara
baixa. Isto é: o rei, a nobreza e o «povo».” ]
Ê aqui que Eisenmann mostra de maneira

1 «Os três poderes de que falamos, o de julgar é


de algum modo nulo». (XI, 6).
2 «Os juizes da nação não são senão... a booa
que pronuncia as palavras da lei, os seres linamlnados
que não lhe podem moderar nem a força nem o
rigor...» (XI, 6).
s Cf. o texto sobre Veneza, (XI, 6).

133
muito convincente que o verdadeiro abjectivo
de Montesquieu é precisaimente a combinação,
a ligação destas três potências b É que se
trata, em primeiro lugar, de um problema
político de relações de forças e não de um pro­
blema jurídico relativo à definição da legali­
dade e das suas esferas.
Assim se esclarece o famoso problema do
governo moderado. A verdadeira moderação
não é nem a estrita separação dos poderes nem
a preocupação e o resipeito jurídico da lega­
lidade. Em Veneza, por exemplo, temos preci­
samente três poideres e três órgãos distintos:
mas o mal é que estes três órgãos são forma­
dos por magistrados do mesmo corpo; o que
significa exactamente um mesmo poder {EL,
XI, 6). Assim é inútil dizer-se que o des'potismo
é o regime em que um só governa, sem regras
nem leis, ou que o désipota aparece em todo o
príncipe ou ministro como aquele qu ultrapassa
a lei e comete um abuso do poder. No fundo,
não é isso que está em causa, porque conhece­
mos esses regimes em que o despotismo reina
à sombra das próprias leis e é, segundo Mon­
tesquieu, a pior das tiranias A moderação
é uma coisa completamente diferente: não é o
simples respeito pela legalidade, é o equilíbrio

1 EISENMANN, op. cit., pp. 154 seg.


z «Não há tirania mais atroz do que aquela que
S0 exerce à sombra das leis e sob as cores da justiça»
(Considération, XIV).

134
dos poderes, isto é, a divisão dos poderes entre
as potências, e a limitação ou moderação das
pretensões de uma potência pelo poder das
outras. A famosa separação dos poderes não
passa da divisão .ponderada do poder entre po­
tências determinadas: o rei, a nobre2a , o
«povo».
Penso que as observações que apresentei
sobre o despotismo permitem ultrapassar estas
conclusões pertinentes. Este esclarecimento traz
em si mes.mo uma .pergunta: em benefício de
quem se faz a divisão? Contentando-se em reve­
lar, sob as aparências míticas da separação dos
poderes, a operação real de tima divisão dos
poderes entre diferentes forças políticas corre-se
o risco, parece-me, de alimentar a ilusão de
uma divisão natural que se exiplica por si e res­
ponde a uma equidade evidente. Passamos dos
poderes às potências. Mudaram os termos? O
problema continua o mesmo: trata-se sempre
de equilíbrio e de divisão. Este é o último mito
que desejaria denunciar.
O que pode esclarecer o significado desta
divisão e dos seus pressupostos é, bem enten­
dido, o facto de em Montesquieu se tratar de
combinação de potências e não de separação
de poderes, de se examinar quais são entre todas
as interferências possíveis de um poder sobre
outro, entre todas as combinações possíveis
dos poderes entre si, interferências e as
combinações absolutamente excluídas. Ora, eu
vejo duas que são de capital importância.

135
A primeira combinarão excluída é que o
legislativo .possa usurpar os poderes do exe­
cutivo; 0 que, por si, consumaria de imediato
a perda da monarquia no despotismo ipopu-
lar ^ Ora, a inversa não é verdadeira. Montes-
quieu admite que a monarquia possa subsis­
tir e mesmo conservar a sua moderação, se o
rei detiver além do executivo o poder legisla­
tivo Mas quando o povo é príncipe tud.o está
perdido.
A segunda combinação excluída é mais
célebre, mas, em minha opinião, tida por dema­
siado evidente, e por esse facto mal com­
preendida. Diz respedito à detenção do judi­
cial pelo executivo, pelo rei. Montesquieu
é categórico: esta disposição basta para fazer
cair a mo^iarquia no despotismo. Se o próprio
rei julgasse... A Constituição seria destruída,
os poderes intermediários aniquilados... {EL,
VT, 5) e o exemplo que Montesquieu cita na^
páginas seguintes, é o de Luís X in , querendo

. 1 «Se o poder legislativo participa da execução,


o poder executivo estará... perdido» (XI, 6).
«Se não houvesse monarca e o poder executivo
fosse confiado a um certo número de pessoas tiradas
do corpo legislativo, já não haveria liberdade» (XI, 6).
2 «iNas monarquias que conhecemos, o príncipe
tem poder .executivo e legislativo ou, pelo menos, uma
parte do legislativo, mas não julga». (XI, II). «Na
maior parte dos reinos da Europa, o governo é mo­
derado porque o príncipe que detém os poderes deixa
aos seus súbditos o exercício do terceiro» (XI, 6).

136
ele próprio, julgar um nobre. {EL^ VT, 5). Basta
aproximar esta exclusão e a sua razão (se o
rei julga, os corpos intermediários serão ani­
quilados) por um lado da disposição que
chama os nobres perante o único tribunal dos
seus pares, por outro lado das desgraças cujo
privilégio o déspota reserva aos grandes, para
se perceber que esta clátisula particular, que
priva 0 rei do poder de julgar, interessa antes
de mais à protecção dos nobres contra o arbí­
trio político e jurídico do príncipe, e que ainda
uma vez mais o despotismo com que Mon-
tesquieu nos ameaça designa umia política diri­
gida muito precisamente contra a nobreza.
Se efectivamente nos quisermos voltar
agora para o famoso equilíbrio dos poderes,
podemos, creio, avançar uma resposta à per­
gunta: em vantagem de quem se opera a
divisão? Se se considerar não já as forças in­
vocadas na combinação de Montesquieu, mas
as forças reais que existem no momento, tem
de se verificar forçosamente que a nobreza
ganha com o seu projecto duas vantagens con­
sideráveis: enquanto classe, toma-se directa-
mente uma força política reconhecida na câ­
mara alta; toma-se também, não só .pela cláu­
sula que exclui do poder real o exercício da
actividade jurisdicional, como pela que reserva
este poder à câmara alta, quando os nobres estão
em causa, uma classe cujo futuro pessoal, a po­
sição social, os privilégios e as distinções são
garantidas contra as violências do rei e do

137
povo. Desta forma, na sua vida, nas suas fa­
mílias e nos seus bens, os nobres estarão ao
abrigo tanto do rei como do povo. Não se pode-
ria garantir melhor as condições de perenidade
de uma classe decadente a quem a história
arrancava e disputava já as suas antigas prer­
rogativas.
A contrapartida destas certezas é uma
outra certeza, mas desta vez para iiso do rei.
A certeza de que o monarca será protegido
pela defesa social e política da nobreza contra
as revoluções populares. A certeza de que não
se encontrará na situação do déspota abando­
nado, só, em face do seu povo e das suas pai­
xões. Se o rei quiser compreender a lição do
despotismo, compreenderá que o seu futuro
vale bem uma nobreza.
Não só esta nobreza servirá de contrapeso
ao «povo», pois, através de uma representação
sem proporção com o número e os interesses
da maioria, equilibrará a representação do
povo no legislativo; mas ainda esta nobreza,
pela sua existência, os seus privilégios, o seu
brilho, e o seu luxo, ou seja a sua generosidade,
ensinará ao povo, dia após dia, na vida con­
creta, que as grandezas são respeitáveis, que
existe uma estrutura neste Estado, que este
está longe da paixão do poder, que no espaço
medíocre das monarquias a distância das con­
dições sociais e a duração da acção política
são de grande alcance: numa palavra matéria

138
ibasitante para desencorajar para sempre toda a
ideia de subversão, j
Não vejo em tudo isto nada que se afaste
da inspiração fundamental do teórico da mo­
narquia e do despotismo. O regime do futuro ^
é, certamente, em muitos pontos, diferente das
monarquias da Europa contemporânea. Elstas
ainda se ressentem da sua origem e a sua cons­
tituição rudimentar é ainda primitiva: estão
mail armadas para combater o perigo do des­
potismo que as ameaça e para resolver os pro­
blemas complexos de uma vida moderna. Mas
pode dizer-se que contêm em si próprias, na
sua estrutura política e social, tudo o que é
preciso para satisfazer esta exigência. A pró­
pria representação do povo que parece contra­
ditória com todo o seu passado e que fez com
S'’ acreditasse que Montesquieu era republi­
cano de coração e tomava o partido do Ter­
ceiro Estado, está dentro do espirito da monar­
quia.. Leia-se o capítulo 8 do Livro XI cuja
6.^ parte fala precisamente da Constituição
inglesa: ver-se-á aí que o princípio dos repre­
sentantes de uma nação numa monarquia, prin­
cípio totalmente estranho aos antigos, como o
de um corpo de nobreza, pertence às próprias
origens do governo gótico, a melhor forma de
governo que os homens puderam imaginar {EL,
XI, 8). É por isso que Montesquieu pode dizer
desse governo que parece olhar o futuro, que

1 PFÜÊLOT, op. clt., p. 123.


0-

139
os ingleses o encontraram nos bosques do seu
passado (EL, XI, 6).
A análise da Constituição inglesa conduz,
portanto, no essencial, lao mesmo ponto que
o exame da monarquia e do despotismo; ao
mesmo ponto que algumas razões dos princí­
pios teóricos do adversário das doutrinas do
contrato social: à escolha política de Montes-
quieu.
Esta escolha política pode ser mascarada
por duas razões. Primeiro, o modo de reflexão
de Montesquieu, a pure2a e abstracção jurídicas
das suas análises políticas. Creio ter demons­
trado, por um exemplo atento, que o espírito
jurídico de Montesquieu exprime por si próprio,
à sua maneira, o seu «parti pris». Mas esta
escolha pode também encontrar-se dissimulada
pela história: a que nos separa de Montesquieu
e a que Montesquieu viveu. Para bem com­
preender esta escolha é preiciso compreendê-la em
si mesma e na história que Montesquieu viveu:
naquela em que acreditava viver, e que contudo,
também ela, lhe virou as costas.

140
VI

o «PARTI PR!S» DE MONTESQUIEU

Já avançámos algoins degraus. Da separação


dos poderes ao equilíbrio das poitências, que
entre si o poder dividem. E deste aparente equi­
líbrio ao projecto de as restabelecer e consa­
grar uma entre as outras: a nobreza. Mas con­
tinuemos com Montesquieu.
Conseguimos com este exame passar do
cenário para os bastidores, das razões apa­
rentes às razões reais do autor. Mas ao fazê-lo,
seguimos as suas razões e aceitamos a divisão
de papéis que ele nos propunha, sem nada criti­
car. Veja-se Eisenmann : sente perfeitamente
que o problema não é jurídico, mas político e
social. Quando se trata justamente de enume­
rar as forças sociais em presença, reeencontra
as três forças de Montesquieu: rei, nobreza,
burguesia e não vai mais além. Esta triparti-
ção não é, aliás, só feito de Montesquieu, é a
tripartição de todo o século, de Voltaire, de

141
Helvetius, ide Diderot e de Condorcet e de uma
longa tradição que prosseguiu até ao sé­
culo XIX e que não está talvez completamente
morta. Devemos aceitar sem reflexão esta con­
vicção tão manifesta, esta evidência tão geral
que nenhum dos partidos no século XVIII e
mesmo no princípio da Revolução jamais pen­
sou revogar? Podemos entrar tão francamente
nas categorias de Montesquieu e do seu século
e decidir sem debate que ele distinguiu exacta-
mente as potências, não na sua combinação
mas na sua definição e as separou segundo as
suas «articulações naturais?»
Por isso, entendo que devemos fazer uma
pergunta muito simples, mas que pode modi­
ficar tudo: as categorias nas quais os homens
do século XVIII pensaram a história que vi­
viam, correspondem à realidade histórica? Em
particular, esta distinção tão nítida de três
potências está bem fundamentada ? O rei é
verdadeiramente uma potência no mesmo sen­
tido que a nobreza e a burguesia? O rei é
uma potência própria, autônoma, bastante dis­
tinta das outras, não na sua pessoa nem nos
seus poderes, mas no seu papel e na sua função,
para que se possa verdadeiramente pô-la no
mesmo plano que as outras, criticáda ou tran­
sigir com ela? A própria «burguesia», essas
figuras da magistratura, dos negócios e das
finanças, encontra-se nessa época tão adversa
e contrária à nobreza para que se possa já
declarar na câmara baixa que Montesquieu

142
■ lhe cede a primeira vitória teórica de um
comibate que devia triunfar na Revolução?
Ck)looar estas questões é pôr em dúvida as pró­
prias convicções dos homens do século XVIII,
e levantar o difícil proiblema da natureza da
monarquia absoluta por um lado, da burguesia
por outro, no período histórico que Montesquieu
viveu e sobre o qual pensa.
Ora, é forçoso constatar que toda a litera­
tura política do século XVIII foi dominada por
uma ideia: a de que a monarquia absoluta se
estabeleceu contra a nobreza e que o rei se
a.poiou nos iplebeus para equilibrar o poder dos
seus adversários feudais e reduzi-los à sua
mercê. A grande querela dos germanistas e
dos romanistas sobre a origem do feudalismo
e da monarquia absoluta desenrola-se sobre o
fundo desta convicção geral. Encontra-se o seu
eco em inúmeras passagens do Espírito das
Leis ^; e nos seus três últimos livros que nunca
se lêem mas que são inteiramente dedicados
a este tema e que se deviam ler para ver bem
em que partido Montesquieu se filia. De um
lado, os germanistas (Saint-Simon, Boulain-
villiers e Montesquieu, este último mais infor­
mado e variado, mas também mais firme) evo­
cam com nostalgia os tempos da monarquia

1 BL, VI, 18; X, 3; XI, 7, 9; XIV, 14; XVUI,


5, X V in , 22; etc.

143
primitiva: um rei eleito pelos nobres e par
entre os seus pares como era na sua origem
nas «florestas» da AlemanJia, para o opor à
imonarquia tomada absoluta: um rei comba­
tendo e sacrificando os grandes para conseguir
funcionários e aliados na plebe ^ Por outro
lado, o partido absolutista de inspiração bur­
guesa, os romanistas (o Abade Dubos, autor
de uma conjuração contra a nobreza {EL,
XXX, 10) e alvo dos últimos livros do Espi­
rito das Leis) e os enciclopedistas, celebram
quer em Luís XIV, quer no déspota esclarecido
o ideal do príncipe que sabe preferir os mé­
ritos e os títulos da burguesia laboriosa às
.pretensões caducas dos senhores feudais. As
posições tomadas são incompatíveis, mas o ar-
'gumento é o mesmo. Ora, justifica-se perguntar
se esse conflito fundamental que opõe o rei à
nobreza e essa pretendida aliança da monarquia
absoluta e da burguesia contra os feudais não
mascaravam a verdadeira relação das forças
históricas.
Não é preciso dissimular que os contem­
porâneos viviam a sua história pensando-a, e
que o seu pensamento, ainda em busca de cri­
térios científicos, carecia da necessária pers-

1 Cf. E L , XXXI, 21. Louis le Debonnaire: «Tendo


perdido toda a espécie de confiança na sua nobreza,
elevou pessoas do nada. Privou os nobres dos seus
cargos, afastou-se do palácio, chamou estrangeiros...»

144
pectiva que permite ao pensamenito tomar-se
a crítica da vida. Ao pensar uma história cujas
forças profundas lhes escapavam, sujeitavam-se
a limitar o pensamento às categorias imediatas
da sua vida histórica, tomando a maior parte
das vezes intenções políticas pela própria rea­
lidade, e conflitos de superfície pelo fundo das
coisas. Não há tanta diferença entre a história
e o mundo percebido. Cada um pode «ver» ime­
diatamente e com toda a evidência «formas»,
«estraturas», grupos de homens, tendências e
conflitos na história. Ê para esta evidência que
Montesquieu apela no famoso texto: Há três
espécies de governo: para descobrir a sua natu­
reza, basta a ideia que dela têm os homens
menos instruídos. (EL, II, I). É eisse gênero
de evidência que faz ver todo o poder de um
rei, os nobres sujeitos à corte ou reduzidos à
parcela política respeitante às suas terras, os
intrigantes e todo-.poderosos intendentes e os
plebeus que ascenderam. Basta abrir os olhos
para perceber estes factos, tal como basta abrir
os olhos sobre o mundo para imediatamente
aperceber as formas, objectos, grupos e movi­
mentos : esta evidência, que não precisa de
conhecimento, pode, contudo, aspirar a ele, e
pensar compreender o que se limita a perceber.
Ora, pelo menos, é preciso os elementos de uma
ciência para verdadeiramente compreender a
natureza profunda destas evidências, distin­
guir as estruturas e os conflitos profundos dos
superficiais e os movimentos reais dos apa-

145
rentes. Sem uma crítica destes conceitos ime­
diatos nos quais cada época pensa a história
que vive, fica-se no limiar de um conhecimento
verdadeiro da história, e prisioneiro das ilu­
sões que produz nos homens que a vivem.
Creio que seria conveniente, para escla­
recer os problemas ideológicos desse tempo,
tirar partido das aquisições recentes da inves­
tigação histórica e pôr em causa a ideia re­
cebida da monarquia absoluta da sua «aliança
com a burguesia» e da natureza da própria bur­
guesia.
Devo contentar-me com indicações muito
sumárias. No entanto, quero dizer que hoje
parece mais ou menos assente que o maior
perigo que espreita o historiador do sé­
culo XVII e mesmo do século XVHI, pelo menos
na sua primeira metade, consiste em projectar
sobre a «burguesia» desse tempo a imagem da
burguesia posterior, da burguesia que fez a
revolução e que dela saiu. A verdadeira bur­
guesia moderna que revolucionou completa­
mente a ordem econômica e social anterior,
é a burguesia industrial, com a sua economia
de produção de massa, inteiramente ocupada
com o lucro que se reinveste depois na produção.
Ora, esta burguesia era na sua generalidade
desconhecida no século XVTII. A burguesia deste
período era muito diferente: repousava essen­
cialmente nos seus elementos mais avançados
sobre a economia mercantil. Do facto de a eco­
nomia industrial surgir, numa dada altura, da

146
acuimuilação de que a ecomonia mercantil cons­
tituiu um momento, muitas vezes se conclui
que esta era, no seu princípio, alheia à socie­
dade feudal. Nada mais discutível. Com efeito,
basta ver em que sentido essa economia mer­
cantil jogava então para concluir que era uma
peça suficientemente integrada no próprio sis­
tema fendal: o mercantilismo é justamente a
política e a teoria desta integração. Toda a acti-
vidade econômica que então parece de vanguarda
(comércio, manuífacturas) está efectivamente
concentrada no aparelho de Estado, submetida
tanto aos seus lucros, como às suas necessi­
dades h Ê antes demais para fornecer a corte
com objectos de luxo, as tropas com arma­
mentos, e o comércio real com matérias de
exportação cujo lucro reverte para o tesouro,
que se fundaram as manufacturas. É antes
de mais para fazer entrar de novo no país, e
sempre mais ou menos em benefício da admni-
nistração real, as especiarias e os metais pre­
ciosos de além-mar, que se criaram as gran­
des companhias de navegação. Na sua estru­
tura, o circuito econômico desse tempo é por­
tanto orientado como fim último para o apa-

1 «E preciso (em monarquia) que as leis favore­


çam todo o comércio que a Constituição desse govemo
pode dar, a fim de que os súbditos possam, sem
perecer, satisfazer às necessidades sempre novas do
príncipe e da sua corte» {EL, V, 9).

147
relho de Estado. E a contrapartida desta orien­
tação é que os «burgueses», que dão num mo­
mento ou noutro vida a estas operações econô­
micas, não têm outro horizonte econômico e
pessoal senão a ordem feudal que serve este
aparelho de Estado: uma vez rico, o comer­
ciante não investe, com raras excepções, os seus
benefícios na produção privada, mas em terras
que compra para conseguir um título e entrar
na nobreza; em ofícios, que são funções de
administração, que comipra para usufruir dos
seus lucros como se fossem uma renda; e em
empréstimos de Estado que Ibe asseguram gran­
des benefícios. O fim da «burguesia» enrique­
cida pelo negócio consiste portanto em voltar
a entrar gwer directamente na sociedade da
nobreza, pela compra de terras ou pelo ingresso
numa família, através do casamento, quer direc­
tamente no aparelho de Estado, .por meio da
toga e dos ofícios, quer nos lucros do aparelho
da Estado por meio das rendas. É o que dá a
esta «burguesia» ascendente uma situação tão
particular no Estado feudal: primeiro toma lu­
gar entre a nobreza que não combate e, ao pre­
tender entrar na ordem que parece combater,
sustenta-a pelo menos tanto quanto a agita: todo
o circuito da sua actividade econômica e da sua
história pessoal continua então inscrito nos li­
mites e nas estruturai do Estado feudal.
Este ponto assente modifica evidentemente
quer o esquema clássico da aliança da monar­
quia absoluta com a burguesia quer a ideia

148
recebida da monarquia absoluta. Ê preciso
então perguntar qual a natureza e a função
da monarquia absoluta nos próprios conflitos
que a opõem à nobreza.
Até hoje, houve duas tentativas de resposta
a esta questão. Ambas abandonam a ideia que
fazia do rei, sob a grotesca caricatura do dés­
pota, o inimigo declarado dos feudais e substi-
tuem-na pela ideia de que o conflito fundamental
deste período histórico opõe não o rei aos feu­
dais, mas os feudais à «burguesia» nascente
ou ao povo^Mas o acordo não vai mais além.
Porque a primeira interpretação vê nesse
conflito a origem e a oportunidade da monar­
quia absoluta. 0 confronto e o equilíbrio for­
çado de duas classes antagonistas, cada uma
impotente para triunfar da outra e o perigo
em que a luta entre elas lançaria toda a socie­
dade teriam dado ao rei ocasião de se erguer
acima delas como árbitro da sua rivalidade e
de tirar toda a sua força do seu próprio poder
contrariado ou ameaçado pela potência con­
trária h Ê esta situação de excepção que per-

1 Cf. no próprio Marx (lãéologie allemanãe, ed.


GOSTES, t. VI, p. 194) um texto sobre Montesquieu
que se inclina ainda em 1845 neste sentido; Por exem­
plo, numa época e num país em que o poder real, a
aristocracia e a burguesia disputam entre si o domí­
nio, onde o domínio é portanto dividido, surge como
Ideia dominante a doutrina da divisão de poderes, que
então é enunciada como uma lei eterna».

149
•mitiria compreender o facto de o rei jogar com
uma classe icontra a outra alimentando a« es-
iperanças de uma, enquanto continuava o jogo
com a outra. Assim se explicaria que todos os
'partidos no séoulo XVIII disputem entre si o
rei, tanto os que querem vê-lo regressar à
origem das suas instituições e devolver os seus
direitos à nobreza, como os que esperam das
suas luzes que faça triunfar a razão burguesa
contra os privilégios e arbítrios. A base das
idéias comuns aos oponentes da direita (feu­
dais) e da esquerda (burguesia) relacionam-se
não com as ilusões dominantes e partilhadas,
mas com a realidade de um monarca absoluto,
convertido em árbitro real de duas classes ini­
migas por causa de uma situação de força sem
saída. Mas esta interpretação tem o perigo de
cair numa ideia da -burguesia que, penso já
tê-lo indicado, não corresponde à realidade.
Muito mais esclarecedora é a segunda res­
posta, a quem os trabalhos de Porchnev sobre
A Fronda e as Revoltas populares na França
do século XVII e do século XVIII ^ concederam
luma crescente autoridade. Segundo este ponto
de vista, a tese do rei-árbitro entre duas clas-
.ses inimigas iguais em força e impotência,
(repousa ao mesmo tempo -sobre um anacro­
nismo e sobre uma ideia mítica da natureza do

1 Ver a bibliografia.

150
EiStado. Sabemos que o anacronismo consiste
em atribuir à burguesia da monarquia abso­
luta os traços da burguesia posterior para po­
der considerá-la desde essa época como uma
classe radicaimente anfagónica da classe
feudod. Sabemos do que se trata. A ideia mí­
tica da natureza do Estado consiste ©m imagi­
nar que um poder político pode estabelecer-se
e exercer-se fora das classes e acima delas,
ainda que seja no interesse geral da sociedade.
Esta crítica conduz à seguinte perspectiva: a
monarquia absoluta não é o fim nem prossegue
o fim do regime de exploração feudal. Pelo
contrário, constitui, no período considerado, o
aparelho político indispensável. O que se mo­
difica com a aparição da monarquia absoluta
não é o regime de exploração feudal, mas a
forma da sua dominação política. Ã monarquia
primitiva celebrada pelos germanistas, às prer­
rogativas pessoais políticas dos senhores feu­
dais que usufruem desta independência que
fazia deles os pares do rei, sucedeu simples­
mente uma monarquia centralizada, dominante
e absoluta. Esta transformação política corres­
pondia à mudança das condições da actividade
econômica realizada no próprio seio do regime
feudal e, em particular, ao desenvolvimento da
economia mercantil, ao primeiro aparecimento
de um mercado nacional, etc. No período con­
siderado, essas modificações não atingem a
exploração feudal. E o regime político da mo­
narquia absoluta não passa de uma nova forma

151
política requerida para manter a dominação e
a exiploração feudais no período de desenvolvi­
mento da economia mercantil.
Que aos olhos dos senhores feudais des­
pojados, mesmo pela força, das suas antigas
prerrogativas políticas pessoais, o apareci­
mento da monarquia absoluta, a centraliza­
ção e 'Os seus epifenómenos (até esse campo
dourado de concentração política que era
Versalhes) tenham tomado o aspecto de uma
usurpação, de uma injustiça e de uma violên­
cia dirigidas contra a sua classe, nada há de
espantoso. Mas não se pode deixar de pensar
que se trata no seu caso de uma ideia fixa que
lhes ocultava a realidade e de um verdadeiro
mal-entendido histórico que os fazia confundir
as suas antigas prerrogativas políticas pessoais
com os interesses gerais da sua classe. Porque
é demasiado evidente que o rei da monarquia
absoluta representava os interesses gerais do
feudalismo, inclusive contra os protestos dos
senhores feudais atrasados pela sua nostalgia
e pela sua cegueira. E se o rei fosse árbitro não
seria do conflito da nobreza com a bimguesia,
mas dos conflitos internos do feudalismo, que
resolvia em seu interesse. Quando decidia, era
em geral unicamente para assegurar mesmo
contra alguns dos seus membros, o futuro da sua
classe e do seu domínio.
Ora é aqui que intervém uma outra potên­
cia diferente daquela que Montesquieu faz fi-
igurar na divisão do poder, uma outra potência.

152
diferente das que recebiam as honras da teoria
política: a «^potência» da massa do povo sobre
quem se exercia esta exploração feudal que o
aparelho de Estado da monarquia absoluta tinha
justamente por função manter e perpetuar.
Porchnev renovou e revelou parcialmente este
aspecto do problema e mostrou que o antago­
nismo fundamental não opunha então a monar­
quia absoluta aos senhçres feudais nem a no­
breza à burguesia que na sua totalidade se
integrava no regime de exploração feudal e
dele se aproveitava, mas o próprio regime feu­
dal às massas submetidas à ma exploração.
Este conflito fundamental não mereceu nem
o relevo nem os teóricos dos conflitos secun­
dários. Também já não reveste as mesmas
formas. Entre o rei, a nobreza e a burguesia
tudo se jogava num conflito contínuo de carác-
ter político e ideológico. Entre a massa dos
explorados camponeses submetidos aos direitos
feudais, pequenos artistas, logistas, pequenos
ofícios das cidades, por um lado, e a ordem
feudal e o seu ipoder político, ipor outro
não se tratava de debates teóricos, mas de
silêncio ou violência. Era urna luta entre o po­
der e a miséria que se determinava a maior
parte das vezes peia submissão e, em curtos
intervalos, por motins e armas. Estas revoltas
da fome foram muito numerosas nas cidades
e nos campos em todo o século XVII francês
que conheceu não só como a Alemanha do sé­
culo XVI as suas guerras de camponeses e

153
«jacqueries ^», mas também motins urbanos:
a repressão destes ilevantamentos era impie­
dosa. Viu-se então para que serviam o rei,
o poder absoluto e o aparelho de Estado e de
que lado se alinhavam essas famosas «potên­
cias» que ocupavam o cenário. Até se chegar
a algumas «jornadas populares» da Revolução,
as primeiras que conseguiram uma vitória e
introduziram uma certa desordem nas teorias
e nos poderes.
O privilégio desta quarta «potência», que de
tal modo ocupava os pensamentos dos outros,
é de pràticamente não estar representada na
literatura política desse tempo. Teria que se
esperar por um miserável cura de Cam^pagne,
como Meslier, cujo Testamento foi depurado
de todos os seus fragmentos políticos por Vol-
taire, e depois por Rousseau, para que esse
«povo», esse «baixo-povo», surgisse como potên­
cia, primeiro nos panfletos, e por fim nos con­
ceitos da teoria política. Anteriormente, apenas
disputava de uma existência teórica alusiva:
como no próprio Montesquieu que tem um

1 N. T. — Jacquerie — termo dado em francês para


designar as revoltas populares e cuja origem remonta
a um movimento insurreccionai dos camponeses fran-
ceseSj durante os primeiros anos da guerra dos Cem
Anos; «Jacquerie» é um derivado de Jacques, nome
pelo quaJ, depreciativamente, os nobres designavam
os camponeses.

154
grande cuidado em distinguir dele os nobres.
Como em Voltaire e na maior parte dos Enciclo­
pedistas. Mas esta quarta potência, esse objecto
da ignorância, da paixão e da violência, aparece,
contudo, muitas vezes nas alianças dos outros
como uma recordação, um esquecimento: pela
censura. A razão de esta potência es^tar ausente
dos contratos que lhe dizem respeito é pelo
facto de estes contratos estarem interessados
em a manter ausente ou, o que é o mesmo, em
consagrar a sua servidão.
Parece-me que se se tiver presente no es­
pírito esta natureza real das forças invoca­
das por Montesquieu: o rei, a nobreza, a «bur­
guesia» e o «povo», a interpretação da sua
escolha política e da sua influência explica-se
um pouco mais.
Esta análise real permite-nos escapar às
aparências da história retrospectiva. E, em par­
ticular, à ilusão de acreditar que Monstesquieu
é o arauto, mesmo disfarçado, da causa da
burguesia que devia triunfar na Revolução.
Vê-se o que esta famosa câmara baixa repre­
senta já tão bem enquadrada no projecto de
Constituição à inglesa ^: a parte entregue a

1 «A Inglaterra é actualmente o país mais livre


que existe no mundo ...mas se a câmara baixa se tor­
nasse mais importante o seu poder seria ilimitado e peri­
goso, porque teria ao mesmo tempo o poder executivo;
ao invés, no presente, o poder ilimitado encon­
tra-se no rei e no parlamento e o poder executivo

155
«ma burguesia que procurava o seu lugar na
ordem feudal e, tendo-o encontrado, já não pen­
sava em a ameaçar. Esta perspectiva permite
também julgar, pelo seu valor histórico real, as
«reformas» liberais de que Montesquieu era,
de facto, o porta-voz: reforma da legislação
penal, crítica da guerra, etc. Comprometiam
tão pouco o futuro da burguesia, que o próprio
Montesquieu, que considerava a tortura inu­
mana, queria que os nobres tivessem em todas
as causas o seu tribunal de classe: a câmara
alta. O que pareceu enfileirar Montesquieu
no partido da «burguesia», creio que foi con­
cebido por ele, em parte por palavras de bom-
-senso que teve a coragem de proferir em
público, em parte como mna medida bastante
hábil para atrair justamente a «burguesia» à
sua causa e engrossar a oposição feudal com
o apoio dos descontentes desta «burguesia»,
t ' que supõe, à falta de um juízo, um sentimento
bastante real dos objectivos desta burguesia.

no rei, cujo poder é ilimitado; (Notas sobre a Ingla­


terra. Citado em DEDIEU, Montesquieu, p. 31). — Cf.'
igualmente o instrutivo exemplo das monarquias pri­
mitivas: «O povo tinha aí o poder legislativo» (XI, II).
Ora «desde que o povo tivesse a legislação, podia, ao
menor capricho, aniquilar a realeza, tal como o fez
por toda a parte». E que nas monarquias da Grécia
heróica não havia então nenhum «corpo de nobreza»
(XI, 8). A representação do povo, mesmo pelos seus
notáveis, só é possível desde que equilibrada, no selo
do leglslartivo, pela representação dos nobres.

156
Mas esta análise permite compreender tam­
bém o paradoxo da posteridade de Montes^
quieu. Porque este opositor de direita serviu,
no decurso do século, todos os opositores de
esquerda, antes de dar, no desenrolar da his­
tória, armas a todos os reaccionários. Bviden-
temente no período mais agudo da Revolução,
Montesquieu desaparece. Robespierre tem pala­
vras muito duras sobre a separação dos pode­
res: sentimos o discípulo de Rousseau diante
de uma situação que permite judgar as teorias.
No entanto, todo o período pré-revolucio-
nário move-se em grande parte sobre os temeis
de Montesquieu, e esse feudal inimigo do des­
potismo tornou-se o herói de todos os adversá­
rios da ordem estabelecida. Por uma singular
viragem da história, aquele que olhava para
o passado parece que abriu as portas do fu­
turo. Penso que esse paradoxo, releva antes
de mais, do caráoter anacrônico da posição
de Montesquieu. Foi por defender a causa
de uma ordem ultrapassada que se tornou
adversário da ordem presente que outros de­
viam ultrapassar. Guardadas as devidas pro­
porções, acontece para o seu pensamento o
mesmo que acontecera para a revolta da nobreza
que precedeu a Revolução e donde Mathiez
concluiu que ela a precipitou. Para ele, apenas
interessava restabelecer nos seus direitos ul­
trapassados uma nobreza ameaçada. Mas pen­
sava que a ameaça vinha do rei. De facto, to­
mando partido contra o poder absoluto do rei.

157
ajxud'£uva ao derrube deste aiparelho de Estado
feudal que era o único suporte da nobreza.
Os seus contemporâneos tais como Helvetius
não se enganaram neste asipecto pois o julgavam
«demasiado feuralista ^», e contudo envolve­
ram-no nos seus combates. Pouco importa de
onde vieram os ataques, se eles atingem o
mesmo ponto. E se é verdade que esta posteri­
dade «revolucionária» de Montesquieu é um
mal-entendido, é preciso, contudo, fazer-lhe a
justiça de que não era mais do que a verdade
de um primeiro mal-entendido: o que lançara
Montesquieu na oposição de direita numa época
em que uma tal oposição àá não tinha sentido.

1 R éflexions morales, CXLVU. Cf. Igualmente


carta a Montesquieu e carta a Saurin.

158
COMCLUSÃO

E se, para acabar, é necessário retomar as


primeiras palavras, direi que este homem que
partiu só e verdadeiramente descobriu as novas
regiões da história, só pensava, no entanto, em
regressar a sua casa. Fingi esquecer que a
terra conquistada saudada na última página
era a do regresso. Um tal percurso para voltar
avi ponto de partida. A idéias envelhecidas de­
pois de tantas idéias novas. Ao passado depois
de tanto futuro. Como se esse viajante, que um
dia partiu para longe, tendo passado anos no
desconhecido, ao voltar para a casa, pensou
que 0 tempo tinha parado.
Mas tinha aberto o caminho.

159
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A c te s du Congrès Montesqwieu (Bordeaux, Delmas,
1956).

163
ÍNDICE

INTRODUÇÃO 11

I —■Uma revolução uo m étod o----------- 17


II — Uma nova teoria da l e i --------------- 39
n i — A idialéctica da história ----------- 57
I V — «Há três governos...> --------------- 85
V —'O mito da separação dos poderes 127
VI — O «parti prds» de Montesquieu — 141

CONCLUSÃO 159

BIBLIOGRAFTA . 161

PUBLICAÇÕES COLBCTTVAS 163

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