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O PRÉ-CAPITALISMO EM

PERSPECTIVA
Estudos em Homenagem ao
Prof. Ciro F. S. Cardoso
Editores
BASTOS, Mário Jorge da Motta
DAFLON, Eduardo Cardoso
FRIZZO, Fábio
KNUST, José Ernesto Moura
MELO, Gabriel da Silva
PACHÁ, Paulo

O PRÉ-CAPITALISMO EM
PERSPECTIVA
Estudos em Homenagem ao
Prof. Ciro F. S. Cardoso

Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas


sobre Marx e o Marxismo
Seção Pré-Capitalismo
(NIEP-MARX-PréK)

Ítaca Edições
Rio de Janeiro
2014
Copyright © by Mário Jorge da Motta Bastos,
Eduardo Cardoso Daflon, Fábio Frizzo, José Ernest Moura Knust,
Gabriel da Silva Melo, Paulo Pachá, 2014.

ISBN: 978-85-63289-13-1

Edição:
Alexandre Santos de Moraes

Desenho da Capa:
Álvaro Figueiró

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O Pré-capitalismo em perspectiva : estudos em


homenagem ao Prof. Ciro F. S. Cardoso /
editores Mário Jorge da Motta...[et al.]. --
Rio de Janeiro : Ítaca Edições, 2014.

Vários autores.
Outros editores: Eduardo Cardoso Daflon, Fábio
Frizzo, José Ernesto Moura Knust, Gabriel da Silva
Melo, Paulo Pachá
ISBN 978-85-63289-13-1

1. Capitalismo - História 2. Cardoso, Ciro F.


S. 3. Economia - História 4. História antiga
5. História medieval I. Bastos, Mário Jorge da Motta.
II. Daflon, Eduardo Cardoso. III. Frizzo, Fábio.
IV. Knust, José Ernesto Moura. V. Melo, Gabriel da
Silva. VI. Pachá, Paulo.

14-08327 CDD-900
Índices para catálogo sistemático:
1. Pré-capitalismo : História antiga e medieval
900
Sumário

Apresentação 7
Ao homenageado 11
Sobre os autores 12
As Forças Produtivas e as Transições Economicossociais no Egito
antigo (do Predinástico até o final do IIo milênio a.C.)
Ciro Flamarion Cardoso ................................................................... 15
Origen de la Industria Rural a Domicilio en el Feudalismo Castellano
Carlos Astarita ................................................................................. 81
A economia escravista romana. Reflexões sobre conceitos
e questões de números na historiografia do escravismo
Carlos Garcia Mac Gaw .................................................................... 141
O Processo de Hierarquização Social Germana (Século I a.C.-II d.C.)
Eduardo Cardoso Daflon .................................................................. 165
Circulação e Exploração no Império Egípcio do Reino Novo:
uma análise da tributação da região do Levante
Fábio Frizzo ..................................................................................... 199
Quem eram os mercadores na democracia ateniense? Reflexões a
partir do corpus demostênico
Gabriel da Silva Melo ....................................................................... 219
Controle e Exploração dos Escravos Rurais na República Romana
José Ernesto Moura Knust ................................................................ 247
Estructuras de Señorío, Método Comparativo y Transición al Capitalismo
Laura da Graca ................................................................................. 263
Luta de Classes e Transição Histórica – A Alta Idade Média Ocidental
Mário Jorge da Motta Bastos ............................................................ 297
Comércio na Alta Idade Média: uma crítica da teoria
Paulo Pachá ...................................................................................... 321
Revoltas Camponesas e a Historiografia do Campesinato
Romano Tardo-Antigo
Uiran Gebara da Silva ....................................................................... 347
Apresentação

Ao nosso pequeno e restrito “mundinho dos historiadores” vem


impondo-se, há algumas décadas, um paroxismo que chega às raias
do absurdo: à plenitude do direito de cidadania conquistado nos
programas de pós-graduação, e ao reconhecimento internacional
tributado às pesquisas nacionais dedicadas ao estudo das sociedades
antigas e medievais parecem equiparar-se apenas o preconceito e as
tentativas mais ou menos veladas da sua desqualificação e negação
pela confraria brasileira de Clio! Situar-se-ia, portanto, nas
fronteiras do campo da especialidade em questão a arena principal
dos seus enfrentamentos cotidianos? Não!
Por razões diversas, e complexas demais para serem abordadas
aqui, a História Antiga e a Medieval vêm constituindo-se – e de
longa data – em abrigo seguro à reprodução de um amplo leque
de posições teóricas reacionárias que abarcam desde o positivismo
factual mais rasteiro e ultrapassado às mais irracionalistas e pós-
modernas concepções do social fragmentado e aprisionado nas
malhas do discurso. Se, denunciado o quadro gravoso, buscássemos
um diagnóstico ainda mais extremo, não seria difícil nos depararmos
com altivos defensores de uma perspectiva de abordagem que
rejeita toda e qualquer tentativa de análise que imponha, a uma
temporalidade mais ou menos remota como aquela de que nos
ocupamos, conceitos e categorias que não tomem por base as
“concepções” elaboradas pelas “sociedades” do período em questão.
O recurso, afirmam, a qualquer instrumental analítico forjado pelo
corpo das ciências humanas contemporâneas resultaria em uma
deformação, senão profanação, do passado. E assim, orgulhosos de
sua erudição e refugiados num outrora tranquilizador, cumprem,
tanto antiquistas quanto medievalistas, a assumida função de
reproduzir no presente os mitos e visões de mundo hegemônicas
de elites que jazem em alguma fatia de duração do passado!

7
Ora, se a História tem no tempo a sua essência, ela é a
disciplina do contexto e do contraste. E não há contraste mais
vigoroso, em especial no caso de historiadores de temporalidades
remotas, do que a contemporaneidade que nos assola. Vivendo a
contradição insuperável de nos lançarmos sobre sociedades que
sabemos consideravelmente outras, inscritos e atuantes numa
contemporaneidade que constitui o pólo principal do binômio no
qual operamos, acabamos por nos movimentar numa espécie de
fio da navalha ou corda bamba: a queda para qualquer dos lados
nos faz sucumbir ao anacronismo, tanto o que nega a História
pela eternização do presente, quanto o que a reduz ao simplismo
previsível da teleologia.
E foi em busca de um eficaz e poderoso antídoto às mistificações
triunfantes nas reapropriações do passado hegemônicas em nossa
disciplina que se constituiu, no âmbito do Núcleo Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-MARX/UFF),
a seção dedicada à pesquisa das sociedades pré-capitalistas à luz do
marxismo. Em outras palavras, visando o objetivo autoproclamado
do “desvendamento da anatomia do macaco” e a afirmação do vigor
do marxismo como instrumento insuperável de apreensão do
real em sua plena historicidade, o NIEP-MARX-PréK objetiva,
acima de tudo, favorecer a constituição de um fórum perene de
abordagem marxista das sociedades pré-capitalistas que agregue,
paulatinamente, pesquisadores brasileiros e estrangeiros de várias
latitudes. Enunciada a meta, convém persegui-la de imediato e de
forma academicamente consistente, dando a conhecer aos membros
da comunidade algumas das pesquisas atualmente realizadas pelos
integrantes do grupo e por colegas de outros núcleos, em especial de
nossos(as) parceiros(as) na Argentina, que gentilmente aceitaram
participar desta empreitada. Que fique claro, por fim, e desde já, que
as sociedades a que nos reportamos consistiram em importantes
“laboratórios humanos” cujos sentido e importância superam,
inclusive, qualquer limitada perspectiva acerca de heranças diretas
suas que possamos reconhecer ainda “(sobre)vivas” em nosso meio.

8
Cadinho de vigorosas e múltiplas experiências humanas, essa “fatia
de duração” nos transcende e interessa pelo que ali caracterizou a
luta dos homens contra a opressão e pela liberdade de existência,
expressões de que somos, em grande parte, manifestação. Muito
menos do que um passado perdido no tempo, era remota, objeto
de curiosidade de “antiquários”, o que as sociedades pré-capitalistas
nos ajudam a desvelar é o que temos de mais específico, distintivo e
marcante em nossa contemporaneidade: a sua historicidade.
Assim, é firme e criticamente ancorados nas vigorosas
considerações - e quão plenas de potencialidade! - dos fundadores
do materialismo histórico relativas às formações sociais pré-
capitalistas que a coletânea de artigos que ora propomos reúne onze
trabalhos dedicados a estudos de casos variados, mas articulados
pelo mesmo esforço, anseio e intenção primordiais: o de manter
vivo um rico manancial teórico-metodológico que, ainda que
legado em filigranas, nos permite como nenhum outro dissipar as
brumas que o idealismo triunfante insiste em fazer recobrir uma
longuíssima duração de nossa existência. Quão auspiciosas podem
ser à crítica do fim da história, e do capitalismo como sua conclusão,
as análises de momentos diversos da produção e reprodução
humanas reveladas na sua historicidade? Quão profícuas podem
ser ao desvendamento – dialógico, por excelência – da constituição
do próprio tempo presente as análises dos mecanismos de
expansão das forças produtivas, das relações de produção, dos
processos de dominação e resistência e das manifestações do
capital comercial vivenciados no Egito, na Grécia, em Roma ou
na Península Ibérica em temporalidades outras que, no entanto,
ecoam ainda plenamente em nossos sentidos, encharcadas de
contemporaneidade? As páginas que seguem devem, portanto,
interessar aos historiadores de todos os tempos e, sobretudo,
àqueles que anseiam pela redenção dos tempos futuros!

Os Editores
Inverno de 2014

9
Ao Homenageado

Se conheceres os livros, tudo irá muito bem para ti. (...)


Um único dia na escola (já) te será proveitoso, mas o
trabalho, (como) as montanhas, Dura pela eternidade.
(Sátira das Profissões, texto egípcio do II Milênio a.C.)

Os antigos egípcios, conhecidos por suas crenças numa


existência pós-vida, viam o trabalho do escriba como um elo com
a eternidade. E é assim que perpetuamos a existência do amigo
Ciro Cardoso com a publicação deste livro. Além de viver em cada
um de nós através de seu trabalho como professor, apostamos que
o artigo por ele assinado nesta coletânea será apenas o primeiro
de muitos textos inéditos a serem publicados, mantendo-o vivo
e influente na área de estudos do pré-capitalismo, que ajudou a
fundar e a consolidar no Brasil. Com isto, homenageamos este
escriba que continua sendo nosso mestre: Ciro Cardoso, presente!

11
Sobre os Autores

Ciro Flamarion Santana Cardoso (1942-2013) foi uma vida dedicada


à docência e a pesquisa em História, sua vocação, além de grande e
saudoso mestre da maioria dos autores que participam desta obra
coletiva publicada em sua homenagem.

Carlos Astarita é doutor em História e professor de História Medieval


na Universidad de Buenos Aires e na Universidad Nacional de La Plata
(Argentina). Especialista em História Econômica e Social, é autor
de diversos artigos publicados em vários periódicos especializados
internacionais, e de dois livros, intitulados Desarrollo desigual en los
orígenes del capitalismo (1992) e Del feudalismo al capitalismo (2005).

Carlos García Mac Gaw é doutor em História e professor de História


Antiga na Universidad de Buenos Aires e na Universidad Nacional de
La Plata (Argentina). É autor de diversos artigos publicados em vários
periódicos especializados internacionais. Publicou Le problème du
baptême dans le schisme donatiste (2008) e, em colaboração, Rapports de
subordination personnelle et pouvoir politique dans le Méditerranée Antique
et au-delà (2013), El Estado en el Mediterráneo Antiguo (2011) e La
ciudad en el Mediterráneo antiguo (2007), entre otros.

Eduardo Cardoso Daflon é mestrando em História Social no PPGH-


UFF, desenvolvendo um projeto de pesquisa financiado pelo CNPq que
visa compreender a configuração estatal na Alta Idade Média Ibérica.
É membro dos grupos de pesquisa Translatio Studii e do NIEP-Marx-
PréK, além de pertencer à equipe editorial da revista Plêthos.

Fábio Frizzo é mestre e doutorando em História Social no PPGH-


UFF, com bolsa do CNPq. Foi  Visiting Scholar  no Departamento de
Egiptologia da Universiteit Leiden (Holanda) e atua como professor de
História Antiga, Medieval e Teoria da História na Universidade Estácio
de Sá e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da
Universidade Cândido Mendes (IUPERJ-UCAM). É membro do
NIEP-Marx-PréK.

Gabriel da Silva Melo é mestrando em História Social no PPGH-UFF,


com bolsa da CAPES e pesquisa dedicada à atuação de comerciantes e

12
mercadores na democracia ateniense. Realizou, entre os meses de março
e junho de 2014, um estágio de pesquisa na Argentina (UNLP e UBA)
com bolsa de mestrado-sanduíche de programa de cooperação da mesma
agência. Atua na área de História Antiga, História Econômica e Teoria
da História e é membro do NIEP-Marx-PréK e do Nereida.

José Ernesto Moura Knust é mestre e doutorando em História Social no


PPGH-UFF, com financiamento da FAPERJ, e foi Research postgraduate
visiting student no Departamento de Arqueologia da Durham University,
com financiamento da CAPES. Possui interesse em História Econômica
e Social da Roma Antiga. É membro do NIEP-Marx-PréK.

Laura da Graca é doutora em História e professora de História Medieval


na Universidad de Buenos Aires e na Universidad Nacional de La Plata
(Argentina). É autora de diversos artigos sobre questões de História
Econômica e Social na Alta e na Baixa Idade Média. Publicou, em 2010,
o livro intitulado Poder político y dinámica feudal, e participou da obra
coletiva Studies on Pre-Capitalist Modes of Production (no prelo).

Mário Jorge da Motta Bastos é doutor em História Social e professor


do departamento de História da UFF, onde atua também no programa
de Pós-Graduação. É autor de diversos artigos publicados em periódicos
nacionais e estrangeiros, organizou vários livros e publicou, em 2009,
O Poder nos Tempos da Peste e, em 2013, Assim na Terra como Céu... É
membro dos grupos de pesquisa Translatio Studii e NIEP-Marx-PréK.

Paulo Pachá é mestre e doutorando em História Social no PPGH-UFF,


com bolsa da CAPES. Realizou estágio doutoral na Espanha (CSIC -
Madri) com bolsa da mesma agência. Pesquisou, no mestrado, as formas
de intercâmbio como elementos de dominação social no alto medievo
ibérico e estuda, no doutorado, as relações de dependência pessoal como
lógica social geral do Reino Visigodo de Toledo. É membro do NIEP-
Marx-PréK e do Translatio Studii.

Uiran Gebara da Silva é doutor em História Social, pesquisando


Império Romano, revoltas rurais na Antiguidade Tardia e Memória e
História das classes subalternas na Antiguidade. Foi professor do Ensino
Médio na ETEC Carlos de Campos do Estado de São Paulo e hoje é
professor dos cursos de História da Faculdade Sumaré e da FASB.
Membro do LEIR-MA-USP e do NIEP-Marx-Prék (UFF).

13
As Forças Produtivas e as
Transições Economicossociais no
Egito antigo (do Predinástico até o
final do IIo milênio a.C.)

Ciro Flamarion Cardoso

As forças produtivas: um conceito frequentemente


ausente ou mal empregado

Os marxistas, em sua maioria, trabalham os temas ligados


às transições economicossociais prestando atenção insuficiente a
tudo o que tem a ver com as forças produtivas − sobretudo ao
se tratar do pré-capitalismo, já que, no tocante por exemplo à
Revolução Industrial, o difícil, pelo contrário, seria ignorar de todo
esse aspecto da questão −. Muitas vezes, as forças produtivas, ainda
por cima, são consideradas unicamente em seu aspecto técnico.
Este texto vai ilustrar, com o caso do antigo Egito (basicamente, do
Predinástico até o final do IIo milênio a.C.), o papel que coube às
forças produtivas − sua configuração, seu potencial, sua extensão
a novas regiões − em duas das transições perceptíveis na longa
História Economicossocial daquela parte do Velho Mundo.
Começarei, no entanto, por ilustrar o que quero dizer quando
falo num manejo inadequado do conceito de forças produtivas por
autores marxistas, coisa que é possível exemplificar facilmente,
mesmo com nomes famosos.
Na década de 1970, um texto de Samir Amin, cujo tema era
o desenvolvimento desigual das formações sociais, foi saudado em
certos ambientes marxistas como uma tentativa eficaz de vencer

15
os esquemas eurocêntricos acerca da evolução das sociedades; que,
por exemplo, soíam pôr no núcleo principal das considerações
o feudalismo europeu e, desse modo, privilegiavam a História
europeia e ocidental. Embora o texto em questão contenha alguns
elementos valiosos − entre eles, a consideração estrutural da
diferença entre excedentes obtidos no interior e no exterior das
formações sociais e as consequências disso, e uma consideração
histórica pertinente dos problemas étnico e nacional −, nele
observamos, porém, uma desistorização radical do conceito de
modo de produção, como se fosse possível considerar toda a carga
histórica datável somente do lado das formações economicossociais
(formações sociais no vocabulário de Amin). Estas aparecem
como resultado de uma combinatória de modos de produção
abstratos e intemporais que são, na verdade, esquemas frouxos,
destinados a colocar no centro de todo o pré-capitalismo − uma
vez despachado o modo de produção comunitário primitivo, “o
único que, por razões evidentes, é anterior a todos os outros” − um
“modo de produção tributário”, por sua vez subdividido em: (1)
“formas atrasadas”; e (2) “formas evoluídas”, basicamente, o modo
de produção feudal. Este último, porém, bem como o modo de
produção escravista e o “modo de produção de pequeno mercado
simples” (que corresponde ao que é chamado mais habitualmente
de “pequena produção mercantil”), são considerados periféricos no
grande conjunto precapitalista.
As forças produtivas nada têm a ver, no sistema de Samir
Amin, com a definição central dos modos de produção − para
distingui-los, a noção de “excedente” e as formas de sua extração
é que parecem ser cruciais −, nem, na verdade, das formações
sociais. Raramente mencionadas, elas são confundidas com a mera
tecnologia. Por exemplo: “O progresso tecnológico −o nível de
desenvolvimento das forças produtivas − é cumulativo”...; ou “Duas
formações sociais da mesma época tecnológica − caracterizadas

16
pelo mesmo nível de desenvolvimento das forças produtivas −
combinam diferentes modos de produção”.1 Esta segunda citação
deixa sobejamente claro que as forças produtivas nada têm a ver
com a definição, neste caso, das formações sociais: estas não se
relacionam com forças produtivas específicas (mesmo porque
o autor reduz estas últimas unicamente à tecnologia). A partir
daí, muitos absurdos teóricos se tornam possíveis. Eis aqui um
deles: “Todas as sociedades pré-capitalistas associam os mesmos
elementos, naturalmente em combinações diferentes”.2 Se fosse
assim, as formações sociais resultariam de uma combinatória de
elementos invariantes, não de alguma estruturação sensu stricto;
e o marxismo se tornaria una espécie de estruturalismo vulgar.
Outro exemplo: “O modo de produção chamado ‘asiático’, que
nós preferimos chamar tributário, é muito próximo do modo de
produção feudal”.3 Isto lhe parece, naturalmente, porque em ambos
os casos Amin enxerga a estruturação da sociedade em duas classes
essenciais: os camponeses organizados em comunidades e a classe
dominante que concentra as funções de organização política e
impõe um tributo às comunidades rurais. A diferença estaria
em que o senhor feudal possui a propriedade absoluta do solo
(falso), enquanto no modo de produção tributário a propriedade
pertence à comunidade rural (o que, no caso egípcio por exemplo,
é absolutamente falso). Seja como for, bastaria ter considerado
estruturalmente a questão das forças produtivas em cada caso para
enxergar diferenças essenciais e, não, similaridades superficiais
criadoras de esquemões que atravessam, impertérritos, os milênios.
Mesmo se se olhasse, simplisticamente, só para o aspecto técnico,
a aldeia egípcia da Idade do Bronze (com sua tecnologia neolítica
de pedra/corda/madeira e sua produção interna da totalidade

1
AMIN, Samir. Sobre el desarrollo desigual de las formaciones sociales. Barcelona:
Anagrama, 1974. p. 74.
2
Id, p. 64.
3
Id., p. 59.

17
dos insumos de produção da associação aldeã de artesanato/
agricultura) e a parcela camponesa feudal numa época de
generalização do equipamento metálico na produção básica (em
que os insumos de produção dependiam também de relações com
o exterior) configuram lógicas heterogêneas entre si. A explicação
da reprodução social, num caso e no outro, conduzem, para longe
de similaridades superficiais, a diferenças muito básicas.
Um segundo exemplo pode ser o trabalho, aliás muito
relevante e também ele contendo elementos de enorme interesse
e inovações de método, do antropólogo Eric Wolf, ao estudar as
relações da Europa com o que chama de “pessoas sem História”. Em
matéria de modos de produção, escolhe trabalhar unicamente com
três: o capitalismo, o modo de produção tributário e o modo de
produção baseado nas relações de parentesco. O conceito de modo
de produção é definido por Wolf como “um conjunto − específico,
historicamente existente − de relações sociais por meio das quais
o trabalho é exercido para extrair energia da natureza mediante
ferramentas, habilidades [skills], organização e conhecimento”.4 A
forma em que tal conjunto se estrutura ou vem a ser é deixada
vaga. Tal como no texto de Amin, o “modo de produção tributário”
− em que o trabalho é “mobilizado e voltado para a transformação
da natureza primariamente por meio do exercício do poder e
da dominação − mediante um processo político −”5 subsume
numerosíssimas sociedades num mesmo esquema, aliás com a
mesma agenda politicoideológica: colocar o modo de produção
feudal em posição menos proeminente do que no marxismo clássico,
em nome de uma espécie de posição antieurocêntrica ou Terceiro-
Mundista, por enxergar na atitude tradicional um desejo de opor
a liberdade ocidental à opressão ou ao despotismo característicos

4
WOLF, Eric R. Europe and the people without history. Berkeley-Los Angeles:
University of California Press, 1982. p. 75.
5
Id., p. 80.

18
de outras partes do mundo.6 Ache-se o que se quiser de uma tal
agenda − que nos dias que correm tem muito mais a ver com o
pós-modernismo e sua concepção do “desprivilegiamento” desejável
do Ocidente “culpado” do que com o marxismo −; mas misturar
alhos com bugalhos num único pretenso modo de produção cujo
núcleo, aliás, é político, e cuja definição é das mais frouxas, não
me parece promissor para esclarecer como as sociedades humanas
produzem, se reproduzem, entram em contato umas com as outras
e eventualmente mudam.
Um terceiro exemplo, aliás bem semelhante nas premissas
aos dois já considerados, é o livro, muito mais recente, de Chris
Wickham. De novo, trata-se de um volume estimável e útil sob
muitos pontos de vista. Mas também este autor, ao comparar
organizações sociais alternativas, nada tem de essencial a dizer ou a
ver com o conceito de forças produtivas. Considera que, em termos
empíricos, só existem três modalidades básicas de organizar a
agricultura, as quais se diferenciam “na maneira em que a força de
trabalho é organizada”. Daí o autor parte para afirmar que Marx as
distinguiu como “modos de produção” (o que, na verdade, significa
empobrecer radicalmente este conceito marxiano, sem se poder
imputar qualquer culpa disso a Marx, claro) sublinhando, “acima
de tudo”, que “as relações de dominação e expropriação, subjacentes
à totalidade social, eram estruturadas diferentemente se um
senhor alimentava e dirigia seus escravos, ou se um senhor extraía
excedentes de um camponês dedicado à lavoura de subsistência,
ou se um empregador pagava e dirigia um operário, que a seguir
usava o dinheiro ganho para pagar independentemente por
comida e abrigo”. Assim teríamos os modos de produção escravista,
feudal, e aquele que se verifica no capitalismo agrário. Wickham
diz que vai agregar a esses três modos de produção um quarto: “os
padrões de economia camponesa que podem ser achados quando
os proprietários da terra ou o Estado não extraem excedente de

6
Id., p. 81.

19
uma maneira sistemática”, que ele denomina “modo camponês de
produção”. De modo coerente com tais premissas, a transição do
escravismo ao feudalismo, por exemplo, é por ele situada bem cedo
no tempo (nos séculos II e III, em todo caso antes do ano 400),
nas poucas regiões em que o escravismo chegara a ser importante,
devido a que a relação senhor-escravo já cedera o lugar, na prática,
à relação senhor-camponês.7 Não lhe ocorre perguntar quanto
a isso, entretanto, em que circunstâncias históricas e estruturais
se tornara possível, factível ou necessária uma ampla organização
social específica centrada na parcela camponesa, em paralelo a que
a possibilidade de propriedades importantes com mão-de-obra
escrava se tornava, pelo contrário, de realização cada vez mais difícil.
Isto seria perfeitamente abordável, de se considerar o conceito
correto de forças produtivas, já que este inclui o elemento humano
como fator de produção (sua disponibilidade quantitativa, as
formas politicamente factíveis de acesso a diferentes modalidades
de mão-de-obra dependente, as formas de socialização e preparação
dos trabalhadores, etc.). Felizmente, a circunscrição do livro só
aos aspectos agrários de certas sociedades evita que apareça um
esquemão tão vasto como o “modo de produção tributário” de
Samir Amin ou de Eric Wolf. Mas as consequências de não levar
em conta, estruturalmente, as forças produtivas se fazem sentir
também na obra de Wickham.
O último exemplo a ser abordado é, talvez, o pior, porque
finge levar em conta centralmente o conceito de forças produtivas
(embora sem maiores detalhes a respeito e relegando-o só aos
aspectos técnicos) sem o fazer de verdade. Falo de um artigo de
Melekechvili, publicado na época em que, na revista La Pensée,
desenvolvia-se um debate internacional acerca do modo de
produção asiático. Nesse artigo, G. A. Melekechvili, que apresenta

7
WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages: Europe and the
Mediterranean 400-800. Oxford- New York: Oxford University Press, 2005. pp.
261-262.

20
um esquema simplificador dos modos de produção sob o pré-
capitalismo, análogo ao que pouco depois seria proposto por
Samir Amin, sustenta que, da dissolução da comunidade primitiva
até o fim da Idade Média, não se produziu um salto qualitativo
das forças produtivas capaz de fazer preponderar uma forma dada
de exploração social. Ora, algo de tal magnitude é afirmado na
ausência total de argumentação, dado ou comprovação: trata-se
de uma mera frase; mas dela se retiram consequências de enorme
dimensão.8

O aspecto natural das forças produtivas


no antigo Egito

O fator mais importante quanto a isto, dado o caráter central


que tinha no antigo Egito o sistema social centrado no regadio, é a
consideração diferencial das condições a esse respeito nas diversas
partes do Egito, cujas regiões apresentavam problemas específicos e
dificuldades maiores ou menores no tocante à irrigação organizada
em função de bacias naturalmente formadas pelo rio e só em parte
modificadas pelo trabalho humano: o Vale meridional, ao norte de
Gebel es-Silsila, era a região mais favorável quanto a isso, devido
ao tamanho manejável de suas bacias naturais; e o Médio Egito
era especialmente problemático (fora do Bahr Yusuf, um braço
do rio que conduz à depressão do Fayum), devido à presença de
bacias naturais excessivamente extensas, de difícil utilização dado
o sistema técnico disponível:

Distinguem-se três “ecozonas” maiores no Egito:


o Delta, o Fayum e o vale do Nilo. Este último

8
MELEKECHVILI, G. A. Esclavage, féodalisme et mode de production
asiatique dans l’Orient ancien. O artigo foi publicado acompanhado de uma
crítica ao mesmo de PARAIN, Charles. Comment caractériser un mode de
production? La Pensée, n. 132, março-abril, 1967. pp. 31-52.

21
divide-se por sua vez em dois grandes conjuntos:
(1) a Tebaida, de Assuã até o antigo centro
religioso de Abydos, sendo que quase não há
terra cultivável entre Assuã e as pedreiras de grés
de Gebel es-Silsila; (2) o Médio Egito, que vai de
Abydos aproximadamente até Mênfis, ao norte,
onde os cultivos se estendem ao longo da margem
esquerda, graças ao Bahr Yusef, que flui para o norte
paralelamente ao Nilo e desemboca no Fayum.9

Dada a importância central dessa configuração do país, é


possível ver boa parte da história das forças produtivas no antigo
Egito como uma tentativa − coroada de êxito a muito longo prazo
− de modificação desses dados naturais mediante processos de
colonização agrária, alguns deles multimilenares.
Os próprios egípcios percebiam seu país dividido em dois
espaços: o Egito propriamente dito, por sua vez duplo (Alto
e Baixo Egito), ou “terra negra”; e a “terra vermelha”, ou deserto.
Poderíamos dizer que a oposição “terra negra”/“terra vermelha”
distingue o espaço permanentemente ocupado pelos egípcios −
coberto por seus campos e cidades − e o espaço esporadicamente
ocupado por meio de campanhas militares punitivas contra as tribos
do deserto, e de expedições que demandavam as pedreiras e minas
situadas no deserto e no Sinai, ou os portos do mar Vermelho: com
efeito, eram muito raros os assentamentos egípcios permanentes
em tais regiões, havendo de ordinário somente acampamentos
temporários. Por tal razão, os empreendimentos de mineração ou
para obter pedra tomavam a forma de expedições cuja logística era,
em parte, militar.10 Poderíamos completar esta forma de encarar

9
MANNING, Joseph G. Irrigation et état en Égypte antique. Annales. Histoire,
sciences sociales, n. 57, 3, 2002. pp. 617-618.
10
Cf. por exemplo ROTHENBERG, Beno et al. Sinai: Pharaohs, miners,
pilgrims and soldiers. Washington: Joseph J. Binns, 1979.

22
o espaço lembrando uma terceira modalidade: o espaço externo
anexado pelas armas, na Núbia e na Síria-Palestina, no primeiro
caso desde o terceiro milênio a.C., no segundo, a partir sobretudo
do Reino Novo. Quanto à oposição entre Alto e Baixo Egito,
dando forma ao caráter duplo do reino dos faraós, suas bases eram
históricas mas também demográficas − ou seja, estavam ligadas
a uma distribuição desigual das concentrações populacionais − e
ecológicas, em função das diferenças de meio ambiente entre o
Vale e o Delta do Nilo, coisa que já mencionamos.
Na dependência de tais contrastes ecológicos, demográficos
e históricos, a geografia do Egito na época faraônica confirma a
oposição entre Vale e Delta. Este último era zona de colonização
rural, contava com os melhores vinhedos e colmeias, com as
pastagens mais extensas: sabemos, por exemplo, que os rebanhos do
Vale tinham direitos de transferir-se sazonalmente ao Delta, num
processo de pecuária transumante, em plena fase de luta contra os
hicsos. Também no Baixo Egito ficava o centro metalúrgico mais
famoso do país – Mênfis − e o mais renomado em produção têxtil
− Saís.11 Quanto ao Alto Egito, era ao sul que apresentava a maior
concentração demográfica, devido, como vimos, à presença, na
região entre Gebel es-Silsila e Kift, de tanques irrigáveis menores e
mais manejáveis: entre Kift e a outra zona muito povoada em torno
de Mênfis e do Fayum, os tanques ou bacias naturais, demasiado
extensos, exigiam maior esforço e melhores técnicas para se

11
KUÉNY, G. Scènes apicoles dans l’ancienne Égypte. Journal of Near Eastern
Studies, n. 10, 1951. pp. 84-93; LEAHY, M. A. Excavations at Malkata and the
Birket Habu 1971-1974: The inscriptions. Warminster: Aris & Phillips, 1978.
pp. 19-20; HAYES, William C. Inscriptions from the palace of Amenhotep III.
Journal of Near Eastern Studies, n. 10, 1951. pp. 35-40, 82-104, 156-183, 231-
242; EL-SAYED, Ramadan. Documents relatifs à Saïs et ses divinités. Le Caire:
Institut d’Archéologie Orientale, 1975; NEWBY, P. H. Warrior pharaohs.
London: Faber & Faber, 1980. pp. 20-21; SETHE, Kurt. Urkunden der 18.
Dynastie (IV. Abteilung). Leipzig: Hinrich, 1906, parágrafo 73.

23
tornarem utilizáveis, razões pelas quais foi tardia − e instável − a
ocupação densa nessa faixa.12 O Alto Egito continha, no conjunto,
a maior densidade agrária e populacional, o que deve ter influído
no fato de que daquela região partisse o impulso para a unificação
política do Egito, completada por volta de 3100 a.C.
Se passarmos agora a examinar os aspectos especificamente
agrários da organização do espaço, é interessante notar de saída um
fato só na aparência contraditório: apesar do caráter maciçamente
rural do antigo Egito, e de existir abundante iconografia agrária,
não dispomos de representações de aldeias, salvo um caso,
mesmo assim duvidoso, da época de Amarna (segunda metade do
século XIV a.C.).13 A contradição é só aparente e se esclarece se
considerarmos a origem social das representações iconográficas
rurais: estas se encontram nas paredes das tumbas de funcionários,
aos quais os camponeses interessavam exclusivamente na qualidade
de mão-de-obra ou de contribuintes ao fisco, e não, nos aspectos
privados de sua organização social (e espacial).
A terra cultivável do Egito era dividida em duas grandes
categorias em documentos do Reino Novo: kheru ou “terra baixa”
e nekheb ou “terra alta”, termos que designavam respectivamente
o solo que nunca deixava de receber a inundação, e o terreno
normalmente produtivo mas que, em anos de cheia insuficiente,
podia ficar a seco.14 O Encantamento no 317 dos Textos dos

12
BUTZER, Karl W. Physical conditions in Eastern Europe, Western Asia and
Egypt before the period of agricultural and urban settlement. In: EDWARDS, I.
E. S. et al. (orgs.). Prolegomena and Prehistory. Cambridge: Cambridge University
Press, 1970. pp. 62-69. “The Cambridge Ancient History”; BUTZER, Karl
W. Early hydraulic civilization in Egyp: A study in cultural ecology. Chicago:
The University of Chicago Press, 1976, capítulos 6 e 8; BUTZER, Karl W.
Perspectives on irrigation civilization in pharaonic Egypt. In: SCHMANDT-
BESSERAT, Denise (org.). Immortal Egypt. Malibu (Caifórnia): Undena, 1978.
pp. 13-18.
13
ALDRED, Cyril. Akhenaten and Nefertiti. New York: The Brooklyn Museum-
The Viking Press, 1973. p. 140, Figura 64.
14
KEES, Hermann. Ancient Egypt: A cultural topography. Chicago: The
University of Chicago Press, 1961. capítulo 1.

24
sarcófagos mostra com clareza que o princípio desta distinção já
estava presente no Reino Médio.15 Uma terceira categoria estava
constituída pelas ilhas (iuu) que o rio forma ocasionalmente ao
baixarem as águas: funcionavam como “terra baixa”; e sabemos que
eram consideradas, por definição, propriedade direta do faraó.16
A organização econômica dos domínios rurais egípcios tinha
um aspecto espacial definido. Os campos cultivados de linho
e cereais, junto ao rio, nos tanques periodicamente inundados,
distinguiam-se dos vergéis, vinhedos e jardins, situados em lugares
mais elevados e dependentes da irrigação artificial (manual ou, a
partir do século XIV a.C., mediante o shaduf). E a zona agrícola
em seu conjunto, por sua vez, opunha-se aos pântanos − região
de criação de gado (sendo que agricultura e pecuária eram sempre
rigorosamente separadas na administração rural em todas as fases
da História faraônica, tanto nas unidades de produção públicas
quanto nas privadas), de caça e pesca− e às zonas desérticas, a que
os domínios rurais também enviavam caçadores. Com frequência
a aparência física e a indumentária dos pastores e caçadores são
diferentes, na iconografia, das dos camponeses, refletindo o dado
de que se recrutassem, muitas vezes, entre as tribos do deserto.17
As unidades relativamente importantes e aquelas que podemos
chamar efetivamente de grandes, no âmbito da exploração rural
− seja que pertencessem pessoalmente ao rei ou a seus familiares,
a órgãos do Estado, aos templos, a funcionários (em caráter de

15
BUCK, Adriaan de. The Egyptian coffin texts. Chicago: The University of
Chicago Press, 1935-1941, 7 vols. IV, 119, 121; FAULKNER, Raymond O.
The ancient Egyptian coffin texts. Warminster: Aris & Phillips, 1973, 3 vols. I.
pp. 241-2.
16
LANGE, H. O. Das Weisheitsbuch des Amenemope aus dem Papyrus 10,474
des British Museum. Copenhagen: Bianco Lunos, 1925. pp. 26-27 (Amenemope
1,17).
17
ALDRED, Cyril, op. cit., p. 147; VERCOUTTER, Jean. El Imperio Antiguo.
In: CASSIN, Elena et al. Los imperios del antiguo Oriente: Del Paeolítico a la
mitad del segundo milenio. Madrid: Siglo XXI de España, 1970. pp. 236-239.
“Historia Universal Siglo XXI”, 2.

25
propriedade “de função” ou de propriedade familiar transmissível)
ou a outras pessoas − não formavam, cada uma, um bloco único,
mas sim, se dividiam em múltiplos domínios (cada um dos quais
podendo ser bem pequeno), às vezes espalhados por todo o Egito.
As razões disto parecem ter sido, por um lado, aproveitar recursos
regionalmente variáveis, por outro, compensar falhas locais da
colheita com bons resultados obtidos em outras partes do país.18
Baseando-se principalmente no Papiro Wilbour (século
XII a.C.), David O’Connor tentou definir uma “topografia dos
assentamentos” no Egito do Reino Novo. Suas conclusões, que
exigiriam uma comprovação bem mais ampla, indicam um papel
ativo do Estado na organização do espaço:

Os dados [do Papiro Wilbour] revelam, então,


duas concentrações densas, predominantemente
de agricultores, em torno das capitais dos nomos
de Ninsu e Hardai. Entre tais concentrações está
uma região com uma população menor, mais
dispersa, que se ocupava principalmente em fazer
pastar os animais. Não há diferenças conhecidas
de solo, vegetação, etc. que pudessem explicar tal
distribuição, que pode portanto ter resultado de
uma política deliberada. O controle estreito do
governo nacional sobre a agricultura e a pecuária
(...) tinha como objetivo, não só assegurar um
abastecimento adequado de alimentos para a
população local, quanto produzir um excedente,
recolhido anualmente em forma de impostos, que
ficava à disposição do Estado. Seria claramente mais
conveniente ter os produtos mais pesados, como os

18 VERCOUTTER, Jean, Id., p. 236. Para a noção de “domínio” como uma


unidade administrativa rural constituída por parcelas localizadas em diversos
lugares, em raciocínio baseado no Papiro Wilbour, do século XII a.C., cf.
JANSSEN, Jac. J. Prolegomena to the study of Egypt’s economic history during
the New Kingdom. Studien zur altägyptischen Kultur, n. 3, 1975. p. 142.

26
cereais, produzidos perto dos centros principais de
coleta fiscal, tais como as capitais dos nomos [...].19

O autor arrola outras razões para uma organização desse


tipo − controle dos recursos humanos para a corveia real ou o
serviço militar, preferência da maioria dos habitantes do campo
por estar perto de cidades, interesses dos citadinos que possuíssem
propriedades ou arrendamentos rurais, etc. − e termina por
generalizar o que afirma para “a maior parte do Alto Egito”.
A hidrografia do Nilo é muito mais regular e passível de
previsão do que a de outros rios sujeitos a cheias sazonais. Estas
dependem, no seu caso, de duas províncias climáticas: as monções
e o derretimento das neves na atual Etiópia durante o verão; e as
chuvas equinociais (bianuais) no que são hoje Uganda e Tanzânia.
Águas das duas procedências juntam-se antes de penetrar na zona
saariana onde fica o Egito e provocam a cheia do rio, mais cedo
ao sul, mais tarde ao norte, entre julho − e sobretudo agosto −
e novembro, quando as águas da inundação se retiram e o rio
atravessa um período de progressiva diminuição de seu débito, sem
nunca secar totalmente.
Quando ocorre o transbordamento e o rio abandona o seu
leito, os sedimentos mais pesados que carrega − basicamente
areias − se depositam nas margens: assim se formam, dos dois
lados do rio, “diques” naturais (na ausência de termo específico
em português, traduzo levées, a palavra habitual em Egiptologia
para designar as terras mais altas imediatamente ao lado do rio,
em ambas as margens, como “diques” naturais), bem mais altos do
que o resto da planície aluvial. Obviamente, à medida que as águas
se espraiam, sua velocidade diminui, e só sedimentos ou aluviões
mais leves (limo, argila) são carregados e depois depositados,

19
O’CONNOR, David. The geography of settlement in ancient Egypt. In:
UCKO, P. J.; TRINGHAM, R.; DIMBLEBY, G. W. (orgs.). Man, settlement
and urbanism. London: Duckworth, 1972. pp. 695-696.

27
criando um dos solos mais ricos do planeta. A profundidade média
das cheias sobre a planície é de um metro e meio. A permanência
média da água é de quatro a seis semanas.
Os rebanhos podiam trazer um complemento de adubo ao
pastarem nos campos após a colheita, comendo o que restasse
das plantas cerealíferas. Na medida, porém, em que a natureza
fertilizante dos aluviões carregados pelo rio foi estudada
quimicamente e é indubitável,20 não me parece, pelo menos
no tocante à Antiguidade, que se deva aceitar a opinião que faz
depender estreitamente a fertilidade da terra irrigada do Egito
da união entre a pecuária (sobretudo como fonte de esterco) e a
agricultura, em conjunto com sistemas de pousio e de rotação de
cultivos.21 A administração das terras e a dos rebanhos, no antigo
Egito, eram estritamente separadas, o que não seria de se esperar
no caso de uma união visceral entre pecuária e agricultura, como
a que esta hipótese implica. E a constatação de ser o couro uma
matéria-prima consistentemente escassa e cara leva à conclusão de
terem sido limitados em número os rebanhos disponíveis.22
A planície nilótica do Egito se caracteriza por ser tanto
naturalmente inundável quanto naturalmente drenável, devido a
ser sua topografia do tipo chamado convexo. A água, saindo do
rio que cresce, penetra − por pequenos canais naturais ou por
pontos mais baixo dos “diques” também naturais das margens −
em bacias (de novo, naturais) cuja extensão varia de poucos km2

20
Sobre o conteúdo dos aluviões do Nilo, cf. CARRIÈRE, Pierre. Le Nil. In:
LECLANT, Jean et al. Dictionnaire de l’Égypte ancienne. Paris: Albin Michel,
1998. pp. 269-270.
21
Ver, para tal hipótese: KAMIL, Jill. The ancient Egyptians: Life in the Old
Kingdom. Cairo: The American University in Cairo Press, 1996. p. 170; HUNT,
R. C. Agricultural ecology: the impact of the Aswab Dam reconsidered. Culture
and Agriculture, n. 31, 1987. pp. 1-6.
22
Cf. NIBBI, Alessandra. A note on the value of animal skins in ancient Egypt.
In: MENU, Bernadette (org.). La dépendance rurale dans l’antiquité égyptienne
et proche-orientale. Cairo: Institut Français d’Archéologie Orientale, 2004. pp.
103-107.

28
até mais de cem km2, que se estendem entre o Nilo e o deserto. Ao
baixarem as águas, estas voltam ao rio por uma série de correntezas
naturais, ou se evaporam sobre as bacias − com exceção de áreas
pantanosas residuais, mais baixas −. No Delta, a diferença consiste
em que o rio se abre em leque, correndo por muitos braços grandes
e pequenos. Como a inclinação do terreno e a força da corrente são
menores, o material mais pesado não pode ser carregado em grande
quantidade: os “diques” naturais são mais baixos; e as bacias, com
maior frequência, podem tornar-se pântanos ou lagos perenes,
sobretudo perto do mar, junto ao qual se misturam com lagunas
salobras separadas do Mediterrâneo por barras de areia. Mais para
o sul, porém, o Delta conta com maiores extensões secas.
A partir de 3300 a.C., aproximadamente, em pleno
Predinástico, em duas fases distintas − a primeira até a época
da unificação política do Egito, por volta de 3100 a.C., a outra
durante o terceiro milênio a.C., completando-se sob a VIa dinastia
(que terminou por volta de 2150 a.C.) −, a queda radical da
pluviosidade reduziu drasticamente a flora e a fauna no que é
hoje em dia o deserto mais próximo ao rio, ao secarem os vales de
pequenos tributários do Nilo.23
Acreditava-se, no passado, na imutabilidade das condições
ecológicas do Egito, perturbadas somente, achava-se, por flutuações
cíclicas de curta duração da altura da cheia do Nilo − flutuações
estas da maior importância para a agricultura irrigada: se a água,
nas bacias, não tivesse entre 1 e 1,5 m de profundidade no auge
da inundação, o ano agrícola seria ruim e haveria fome. Note-se
que, pelo contrário, sendo a cheia gradual, uma inundação muito
alta era raramente catastrófica, pois, haveria tempo suficiente
para constatá-la antes que chegasse ao auge e, assim, tomar as
providências necessárias. A pesquisa − geológica, paleoecológica e,
para o terceiro milênio a.C. em diante, baseada também nos textos e
na iconografia − modificou as ideias antes predominantes. Por um

23
Ver as obras citadas na nota número 12.

29
lado, constatou-se que o rio mudou de leito mais de uma vez, que os
leitos de braços secundários no Vale, bem como as bocas do Delta,
variaram em sua localização e às vezes em seu débito ou volume de
água. Por outro lado, demonstrou-se que, além das flutuações de
curta duração, houve fases mais longas com tendências a cheias,
seja de nível decrescente (por exemplo todo o terceiro milênio
a.C., agravando-se talvez a situação entre 2250 e 1950 a.C.; e a
fase entre 1200 e 900 a.C., aproximadamente), seja muito altas, às
vezes ameaçadoras (como entre 1840 e 1770 a.C., permanecendo
depois ainda bastante altas até por volta de 1200 a.C.; e entre os
séculos IX e VII a.C.). Estes ciclos mais longos foram estabelecidos
de diversas maneiras, por vezes documentalmente sólidas − a
Pedra de Palermo registra a queda do nível da inundação durante
as primeiras dinastias; os relevos das tumbas do terceiro milênio
a.C. demonstram iconograficamente mudanças na fauna e na flora;
certas correlações com datações pelo C14 foram possíveis; inscrições
no cais de Karnak registram cheias muito altas no primeiro milênio
a.C., etc. −, outras vezes menos concludentes − em especial ao
basear-se na interpretação de textos ambíguos ou fragmentários,
ou de dados arqueológicos de entendimento duvidoso −. Por
tal razão, permanece alguma insegurança quanto à datação dos
ciclos longos e acerca das possíveis correlações dos mesmos com a
História econômica, social e política do Egito antigo.24
Falta-nos, agora, referir-nos à questão dos recursos naturais
não-agrícolas.

24
Além das obras de Butzer já citadas, ver: BELL, Barbara. The oldest records
of the Nile floods. Geographical Journal. n. 136, 1970. pp. 569-573; BELL,
Barbara. The Dark Ages in Ancient history: I. The first Dark Age in Egypt.
American Journal of Archaeology. n. 75, 1971. pp. 1-26; BELL, Barbara. Climate
and the history of Egypt: the Middle Kingdom. American Journal of Archaeology,
n. 79, 1975. pp. 223-269. E ver a crítica fundamentada às análises de Barbara
Bell: VERCOUTTER, Jean. Égyptologie et climatologie. Les crues du Nil à
Semneh. Cahier de Recherches de l’Institut de Papyrologie et d’Égyptologie de Lille,
n. 4, 1976. pp. 139-172. Ver ainda: HOFFMAN, Michael A. Egypt before the
pharaohs: The prehistoric foundations of Egyptian civilization. London: Routledge
& Kegan Paul, 1980. pp. 307-312.

30
As atividades de pesca e coleta eram setores econômicos
essenciais, a primeira em função de ser o Nilo muito piscoso. A
coleta também se associava estreitamente ao rio, objetivando plantas
como o papiro de múltiplas utilidades alimentícias e artesanais
(construção de cabanas e barcos; fibras para cestas, esteiras,
cordas, móveis; material para escrever), os juncos e caniços para
cestas, cordas, móveis e barcos de pesca, e o barro para tijolos crus e
cerâmica. Quanto à caça, menos importante economicamente, em
tempos faraônicos era sobretudo um esporte: mas também provia
um complemento alimentar, e animais a domesticar; praticava-se
nos pântanos marginais do Vale e sobretudo nos tremedais do
Delta, onde abundavam animais aquáticos e aves, bem como no
deserto. Apesar da diminuição da fauna constatável no terceiro
milênio a.C. − quiçá em parte devido à ação humana, além da
incidência da mudança climática já mencionada −, fazendo
desaparecer certas espécies (elefantes, girafas, rinocerontes) e
tornando escassos os representantes de outras (leões, leopardos,
carneiros selvagens), ela continuou sendo abundante e variada nas
zonas pantanosas da planície fluvial, mas bem menos no deserto,
onde quase só restaram antílopes e gazelas.25
As colinas que enquadram o Vale, mais ainda o deserto
oriental e a adjacente península do Sinai, forneciam pedra para
construção, pedras semipreciosas, pedras duras para ferramentas,
e minérios. Das colinas vinha, ao sul do Cairo atual (em Tura) e
na região ocidental de Tebas, a pedra calcária. Da parte meridional
do Vale se obtinha o arenito; ainda mais ao sul, no limite com a
Núbia, encontrava-se excelente granito rosado. O alabastro era
achado em Hatnub, perto do lugar onde, no século XIV a.C., foi
construída a cidade de Akhetaton (Tell el-Amarna atual), mas já
no deserto − de onde também vinha o basalto (região do Fayum)
e a quartzita (a nordeste do Cairo, em Gebel Ahmar) −. O deserto
Arábico, ou oriental, era particularmente rico em pedras − diorita,

25
BUTZER, Karl. Early hydraulic..., op. cit., pp. 26-27.

31
dolerita, xisto, pórfiro, esteatita, etc. − e em gemas semipreciosas
(ágata, ametista, calcedônia, jaspe, ônix, turquesa, entre outras).
Quanto ao sílex, encontradiço em todo o Vale, era uma das bases
do sistema técnico vigente mesmo em tempos dinásticos, servindo
para facas e ferramentas. O Sinai fornecia turquesas.
Quanto aos minérios, o ouro vinha do deserto Arábico, mas
faltava a prata (do mesmo deserto provinha, porém, uma liga
natural de ouro e prata, o electro). Quanto ao cobre, era extraído
no deserto oriental e no Sinai. A dúvida persistente sobre a grande
antiguidade da mineração de cobre pelos egípcios na península do
Sinai foi superada por escavações ali realizadas. Em forma análoga,
agora se pretende que algum estanho vinha do deserto Arábico, ao
contrário do que antes se pensava.26
Apesar da riqueza mineral indubitável com que os egípcios
podiam contar em territórios sob sua administração desde muito
cedo − aos que veio somar-se a Núbia, rica em ouro, diorita e
ametista −, deviam importar minério adicional (cobre de Chipre,
estanho da Ásia), lápis-lazúli (vindo do Afeganistão e obtido no
Oriente Próximo asiático), obsidiana da costa da Etiópia e da
Somália; o arsênico, necessário para endurecer o cobre antes da
(tardia) difusão da metalurgia do bronze, ao que parece, vinha da
Ásia.
O Egito é pobre em madeiras de alta qualidade, devendo
importar, desde antes da unificação política, cedro e pinho do

26
ROTHENBERG, Beno et al., op. cit., pp. 137-172; WERTIME, Theodore
A. Tin and the Egyptian Bronze Age. In: SCHMANDT-BESSERAT,
Denise (org.). Immortal Egypt, op. cit., pp. 37-42. Recentemente, alguns autores
voltaram a duvidar da mineração de cobre no Sinai e no deserto oriental, a
não ser em épocas bastante tardias, e de que os egípcios houvessem efetuado
a mineração do estanho. No caso do cobre, entretanto, há dados suficientes
comprovando a mineração da malaquita para não aceitar tal posição. Quanto
ao estanho a coisa é menos segura, não havendo provas cabais de sua mineração
em território egípcio, mesmo onde se constata geologicamente a existência do
minério (cassiterita): cf. LUCAS, A. Ancient Egyptian materials and industries.
4a ed. ampliada e revista por J. R. Harris. London: Histories & Mysteries of
Man, 1989. pp. 199-217, 253-257.

32
Líbano, pelo porto fenício de Biblos. No próprio Egito obtinha-se
madeira medíocre de tamareira, acácia, sicômoro, tamarindo.
Se Biblos recebia a maior parte da navegação egípcia no
Mediterrâneo (embora ela também atingisse Chipre, Creta e
outras regiões), dos portos do mar Vermelho partiam expedições
de troca ao “país de Punt” (cuja situação geográfica na África
variou no tempo: em certa época, parecia situar-se na costa da
Somália), depois de atravessar por terra um vale desértico, o
Wadi Hammamat, em busca de incenso, animais e outros artigos.
Certas controvérsias acerca da navegação no mar Vermelho
foram resolvidas pela Arqueologia: um porto da XIIa dinastia foi
descoberto em Wadi Gawasis em 1976-1977; e foram esclarecidas
de vez questões relativas ao canal deixado inacabado que planejara,
na XXVIa dinastia, o faraó Nekau, e à sua completamente lendária
expedição de circumnavegação do continente africano.27 Rotas
terrestres percorriam o deserto Líbico e seus oásis, e atravessavam
o Sinai em direção à Palestina.
Quanto às comunicações internas, dependiam quase
totalmente da navegação no rio Nilo. O cavalo e o carro − de uso
tardio (meados do segundo milênio a.C.) − tiveram emprego
principalmente militar. Os veículos de rodas (carros de boi) eram
de uso limitado, sendo carregadores humanos e burros de carga
os principais meios de transporte terrestre − já que o dromedário
não foi introduzido senão muito mais tarde −. Tanto a planície
aluvional do Nilo quanto as areias do deserto se prestavam mal
ao estabelecimento e manutenção de estradas e, em contraste,
as condições da navegação no Nilo eram muito favoráveis: a
correnteza fluvial no sentido sul-norte e as velas para aproveitar
o vento constante no sentido norte-sul, completadas quando

27
SAYED, Abdel Monem A. H. The recently discovered port on the Red Sea
shore. The Journal of Egyptian Archaeology. n. 64, 1978. pp. 69-71; LLOYD,
Alan B. Necho and the Red Sea: some considerations. The Journal of Egyptian
Archaeology. n. 63, 1977. pp. 142-155.

33
necessário pelos remos, proporcionavam um excelente meio de
transporte e comunicação durante o ano inteiro.28
Uma comparação das condições naturais no Egito e na
Mesopotâmia −as principais civilizações de regadio do antigo
Oriente Próximo − indicará sobretudo fortes diferenças. Na
Mesopotâmia, a ausência total não só de minérios mas, também,
de pedra e madeira (mesmo a de má qualidade era muito escassa)
e as condições específicas de ocorrência das cheias dos rios Tigre
e Eufrates configuraram, de um lado, um incentivo desde tempos
muito antigos (o IVo milênio a.C.) a frequentes expedições ao
exterior, destinadas a obter matérias-primas essenciais. Ao mesmo
tempo, a agricultura irrigada só foi possível mediante a instalação
progressiva e a manutenção trabalhosa de um complexo sistema
radial permanente de diques e canais. Em contraste, o Egito
dominava territórios que lhe garantiam uma gama muito maior
de matérias-primas de todos os tipos (mesmo sendo verdade que
devia importar madeira e minérios) e dispunha de um sistema
de irrigação natural baseado em bacias que o próprio rio havia
formado, de muito mais fácil exploração e, ao mesmo tempo,
muito produtivo. Aí temos outros tantos elementos que ajudam
a explicar uma transformação técnica muito mais lenta no caso do
Egito e também uma incidência menor e mais tardia dos fatores de
transformação vinculados às trocas a longa distância.
Um tema relevante que não será tratado aqui diz respeito à
origem e processo de domesticação dos cultígenos e dos animais
típicos do Neolítico egípcio. Embora algumas tentativas de
domesticação ainda se prolongassem ao IIIo milênio a.C. (hienas,
grous, antílopes), sendo abandonadas posteriormente, o essencial
deste assunto difícil e cheio de controvérsias já estava definido

28
Acerca dos recursos naturais, ver ainda: JAMES, T. G. H. An introduction to
ancient Egypt. London: British Museum Publications, 1979, capítulo 1; KEES,
Hermann. Ancient Egypt: A cultural topography. Chicago: The University of
Chicago Press, 1961, capítulos 3 a 5.

34
antes do período − iniciado com a última parte do IVo milênio
a.C. − em que se concentra este texto.29

O aspecto humano das forças produtivas


no antigo Egito

O conhecimento do homem como força produtiva passa, de


início, pela História Demográfica. Esta, no entanto, no sentido
exato da expressão, não é possível no caso do Egito faraônico,
devido à ausência de fontes utilizáveis. Embora recenseamentos
fossem realizados pelo Estado egípcio regularmente e desde muito
cedo, essa documentação não nos chegou.
Talvez convenha começar por recordar que o antigo Egito
era uma típica sociedade precapitalista, marcada por um padrão
demográfico que, de estudos realizados para o período de domínio
romano naquele país, foi generalizado plausivelmente também
para as etapas mais antigas. O Egito antigo era, portanto, uma
sociedade em que, abaixo de uma ínfima classe privilegiada,

O resto da sociedade vivia em relativas pobreza


e simplicidade. A sua cultura material diferia
pouco da dos tempos neolíticos e pode não ter
sido tão próspera. Tanto a elite quanto os que a
ela não pertenciam tinham muitos filhos. Isto era
necessário para sua mera reprodução ou para o
aumento demográfico, pois, só uma minoria de
crianças sobrevivia até a idade adulta. Os adultos
não podiam, com confiança, esperar ter carreiras
longas. Os dados do Egito romano sugerem uma

29
Cf. por exemplo: STRUEVER, Stuart (org.). Prehistoric agriculture. New
York: The American Museum of Natural History Press, 1971; COWAN, C.
Wesley; WATSON, Patty Jo (orgs.). The origins of agriculture: An international
perspective. Washington; London: Smithsonian Institution Press, 1992. Ver
também os dois primeiros livros listados na nota número 82 abaixo.

35
esperança de vida de 29,1 aos 14 anos de idade.
A esperança média de vida ao nascer deve ter sido
muito inferior a 20 anos. Estes dados podem parecer
surpreendentes, mas a sua plausibilidade para toda
a população, com exceção da elite, é corroborada por
várias fontes.30

Karl Butzer, interessado em estimar a população egípcia em


diferentes épocas, como não se conservaram os censos antigos,
teve de apoiar-se, em seus esforços de reconstituição de tendências,
na Arqueologia de Assentamentos, isto é, nos dados acerca da
distribuição e do número dos assentamentos humanos por
períodos − reunidos mediante paciente trabalho de concatenação
e classificação dos achados de mais de um século de escavações
levadas a cabo por numerosos especialistas −, em cálculos a partir
dos rendimentos agrícolas, bem como na analogia com outros
casos. Os resultados por ele obtidos − alguns dos quais se acham
reunidos na Tabela 1 e no Gráfico 1 − devem ser encarados, na
melhor das hipóteses, unicamente como ordens de grandeza
proporcionais, no tempo, aos dados reais, nunca como cifras
autênticas. O próprio Butzer o admite e, já no concernente aos
próprios métodos de cálculo, opina que a margem de erro é de 15%
para mais ou para menos. Sua análise postula um povoamento
mais denso no Vale do que no Delta: a população desta última
região teria alcançado a do Vale em termos absolutos na época
Raméssida, ou seja, no final do segundo milênio a.C., mas não
em densidade; e também aceita, como se supõe habitualmente
com base em dados diversos, que se tenham dado diminuições de
população nos assim chamados Períodos Intermediários, épocas
difíceis politicamente, talvez relacionadas em certos casos com
tendências de duração relativamente longa à diminuição do nível
médio das cheias anuais do Nilo.31

30
BAINES, John. Society, morality, and religious practice. In: SHAFER, Byron
E. (org.). Religion in ancient Egypt: Gods, myths, and personal practice. London:
Routledge, 1991. pp. 132-133.
31
BUTZER, Karl W. Early hydraulic..., op. cit., pp. 81-98.

36
Butzer propõe que, em estudos paleoecológicos como o seu, o
meio ambiente, a tecnologia e a população sejam consideradas como
variáveis independentes, enquanto a organização e estratificação
sociais formariam, no seu conjunto, a variável dependente.32 Mesmo
sem que nos pronunciemos sobre esta hipótese − discutível, já que
as relações entre variáveis como estas podem ser muito complexas
e mutáveis no tempo e no espaço −, somos obrigados a constatar
a impossibilidade de pô-la à prova no sentido forte da expressão,
sendo o que é a documentação disponível. Assim, uma suposição
do tipo da que apresenta Hoffman baseando-se teoricamente
em Ester Boserup, em que trata o crescimento demográfico
como o fator dinâmico por excelência, que teria provocado
um aumento de competição e de produtividade em momentos
cruciais da Protoistória e da História do Egito, seguindo-se fases
de estabilização, ao serem atingidos os limites de elasticidade das
técnicas disponíveis, pode ser considerada como mais ou menos
convincente, mas não há como prová-la.33

Tabela 1:
População, área cultivada e densidade demográfica hipotéticas no Egito
faraônico segundo cálculos de Karl Butzer

Km2 cultiváveis Habitantes por km2


Ano a.C. Habitantes disponíveis de terras cultiváveis
3.000 870.000 15.100 57,61
2.500 1.600.000 17.100 93,57
1.800 2.000.000 18.450 108,40
1.250 2.900.000 22.400 129,46

Referência: Karl W. Butzer. Early hydraulic civilization n Egypt. Chicago:


University of Chicago Press, 1976. p. 83 (com simplificações).

32
BUTZER, Karl W. Early hydraulic..., op. cit., p. XIV.
33
HOFFMAN, Michael A. op. cit., p. 310.

37
Gráfico 1:
Desenvolvimento demográfico hipotético no Egito antigo segundo
Karl Butzer (de 5 000 a.C. até 1 000 a.D.)

Referência: Idem, ibidem, p. 85.

Ao trabalhar com as forças produtivas humanas no Egito


antigo, uma hipótese central, suficientemente comprovável, me
parece ser a seguinte: as fraquezas do sistema técnico egípcio
− tema de que se tratará adiante − puderam compensar-se
mediante extrema racionalização de outro aspecto (o humano,
precisamente) das forças produtivas. Isto implica um lado
quantitativo (a manipulação e emprego eficientes, quando
necessário, de grandes massas humanas agindo em cooperação
simples − isto é, executando paralelamente tarefas análogas −)
e um lado qualitativo: mecanismos que garantiam, naquelas
atividades que o exigissem, uma divisão e especialização adequadas
do trabalho. Note-se, porém, que nossos conhecimentos são
bastante inadequados e insuficientemente detalhados no tocante
aos processos de socialização envolvidos na preparação de novas
gerações de trabalhadores no Egito antigo. Sabemos ter existido
uma forte tendência à hereditariedade de funções em todos os
níveis. O que se supõe acerca das tendências demográficas implica
uma coexistência curta entre pessoas de gerações sucessivas.

38
A hipótese de que se acaba de falar vincula-se a outra, que, aliás,
se reflete nos dados da última coluna da Tabela 1 que derivamos
de Butzer. Referimo-nos à hipótese do caging effect ou “efeito de
confinamento”, devida a Michael Mann: com a desertificação,
completada no terceiro milênio a.C. tanto no que veio a ser o
deserto Líbico quanto no que se transformou no deserto Arábico,
a população do antigo Egito, a partir do terceiro milênio a.C.,
ficou necessariamente confinada no Delta do Nilo, na estreita
fita fértil do Vale e em uns poucos oásis ocidentais, configurando
altos níveis de densidade populacional, pouco habituais no mundo
antigo. Esta circunstância permitiu que o Estado faraônico,
mediante um quase monopólio da navegação do Nilo, conseguisse
um grau de controle sobre o país e sua mão-de-obra que excedia
o de outros governos premodernos dotados de meios de ação
comparáveis.34 Este controle incluía a manipulação bem-sucedida
dos trabalhadores disponíveis; e, quando isso fosse necessário, a
sua realocação espacial.
Um fator essencial nesse controle da mão-de-obra foi a
urbanização. A separação entre cidade e campo é o fundamento
inicial de toda divisão social do trabalho.35 Por tal razão, embora
sejam muitas as definições de cidade, é imprescindível, para
considerar como urbana uma aglomeração, que, entre os seus
habitantes, uma parte pelo menos não se dedique a atividades
rurais. Por tal razão, ao cumprir-se tal requisito, pode haver
autênticas cidades em escalas extremamente variadas de grandeza.
No caso do antigo Egito, por exemplo, a pequena cidade funerária
da rainha Khentkaues, em Giza, tinha uma extensão de somente
0,65 hectares; Elefantina, importante cidade fronteiriça, tinha só
4,5 hectares de superfície, em contraste com os 460 hectares de
Mênfis.

34
MANN, Michael. The sources of social power. Cambridge: Cambridge
University Press, 1986, 2 vols. I. pp. 110-114.
35
SOUTHALL, Aidan. The city in time and space. Cambridge: Cambridge
University Press, 1998. p. 15.

39
Uma definição de cidade especificamente cunhada para
aplicar-se ao antigo Egito parece bem próxima da tradição a
respeito da natureza do urbano derivada do arqueólogo australiano
Vere Gordon Childe: “uma localidade central dos pontos de vista
geográfico e cultural, exercendo um controle político regional,
com uma população relativamente grande e densa, uma divisão
complexa do trabalho e estratificação social interna”.36
John Wilson publicou há tempos um artigo, cuja influência foi
considerável por várias décadas, em que qualificava o Egito faraônico
como “civilização sem cidades”.37 Desde então − e sobretudo a partir
da década de 1970 −, enormes progressos foram feitos na História
Urbana egípcia, tanto no tocante à publicação de escavações e ao
uso sistemático das fontes escritas quanto à elaboração de estudos
críticos e às vezes teorizados. O Reino Novo (1540-1069 a.C.)
é, de longe, o período mais bem documentado e estudado no
concernente a esta área de pesquisas egiptológicas.38 Mesmo sendo
verdade que, no conjunto, uma parcela da população total do Egito
antigo bem menor do que o que ocorria na Mesopotâmia antiga
viveu em cidades durante a Antiguidade, o fenômeno urbano,
começado já no Período Predinástico − tendo início no sul do Vale
do Nilo egípcio e expandindo-se depois para o norte, até o Delta −,

36
HOFFMAN, Michael A.; HAMROUSSH, H. A.; ALLEN, R. O. A model
of urban development for the Hierakonpolis region from Predynastic through
Old Kingdom times. Journal of the American Research Center in Egypt. n. 23,
1986. p. 175.
37
WILSON, John A. Civilization without cities. In: KRAELING, C. e
ADAMS, R. McC. (orgs.). City invincible. Chicago: The University of Chicago
Press, 1960. pp. 124-164.
38
Uma boa descrição sumária dos achados arqueológicos acerca de numerosas
cidades egípcias antigas acha-se em: UPHILL, Eric P. Egyptian towns and
cities. Princes Risborough: Shire Publications, 1988 (“Shire Egyptology”); uma
síntese mais recente desaponta devido à absoluta falta de embasamento teórico-
metodológico: SOULIÉ, Daniel. Villes et citadins au temps des pharaons. Paris:
Perrin, 2002.

40
não pode ser escamoteado. Ele teve, no Egito, fortes especificidades,
por ter chegado, após origens lentas e descentralizadas (mesmo
no terceiro milênio a.C., aristocracias locais tiveram considerável
influência sobre alguns dos processos de urbanização), a um
desenvolvimento maior já sob a égide de um Estado unificado,
que entre os egípcios surgiu meio milênio antes do que no sul da
Mesopotâmia. É assim que, no antigo Egito, foram relativamente
frequentes as cidades implantadas deliberadamente pelo Estado
como centros administrativos, de controle de mão-de-obra e de
armazenagem de produtos agrícolas, algumas delas habitadas
quase exclusivamente por funcionários, artesãos empregados
em manufaturas estatais e sacerdotes vinculados a um ou mais
templos. Sem abalar de verdade os dados sobre uma prioridade
demográfica e política do Vale, as pesquisas arqueológicas recentes
revelaram, no Baixo Egito, centros populacionais, alguns deles
claramente urbanos, bastante consideráveis.39
A ligação urbano/rural, numa sociedade como a egípcia,
era comandada pelo caráter maciçamente agrícola e natural da
economia, cujo corolário era a presença constante de aspectos
e elementos rurais no interior do espaço urbano e na própria
organização deste último. Talvez o testemunho mais claro disto
seja a descrição da capital raméssida de Per-Ramsés, situada no
Delta oriental, feita, no final do século XIII a.C., por um escriba
encantado não somente com a riqueza das provisões que a cidade
recebia dos campos à sua volta e dos barcos que a demandavam,
como também com os peixes e aves de seus próprios tanques e

39
Sobre as origens do urbanismo egípcio, ver: WILKINSON, Toby A. H. Early
dynastic Egypt. London-New York: Routledge, 1999. pp. 323-343; KEMP,
Barry J. Unification and urbanization of ancient Egypt. In: SASSON, Jack M.
(organizador principal). Civilizations of the ancient Near East. vols. II. New York:
Charles Scribner’s Sons; Simon & Schuster; Macmillan, 1995, 4 vols. pp. 679-
690.

41
canais, seus bosques de tamareiras, suas plantações de melões −
elementos, estes, que estavam situados dentro do espaço urbano
−.40
Uma terceira hipótese atinente às forças produtivas humanas
tem a ver com o detalhamento de um aspecto crucial da realocação
espacial de trabalhadores de que já se falou. Temos aí, de fato, uma
permanência de muito longa duração, comprovável nas fontes
egípcias de todo tipo. Ao se completar a unificação do Egito
num único reino, por volta de 3100 a.C., a situação demográfica
e econômica consistia, no essencial, em uma concentração muito
maior dos recursos humanos e agrícolas ao sul, no Vale do Nilo.
O Delta, mesmo contendo mais terras potencialmente férteis do
que o Vale, tinha população e agricultura muito menos densas.
Assim, transformou-se em zona de colonização interna, em
processo multimilenar. Os faraós, altos funcionários e outras
pessoas fundaram reiteradamente novas unidades agrícolas ou
de criação de gado no Delta ao longo dos séculos. Na época dos
Ramsés, isto é, nos séculos XIII e XII a.C., a população total do
Delta equiparou-se à do Vale. Entretanto, no tocante à densidade
humana e agrícola, somente sob os Ptolomeus (séculos IV-I a.C.)
o Delta ultrapassou, por fim, o Vale do Nilo.
Este longuíssimo processo de colonização agrária interna
vinculava-se estreita e explicitamente à guerra, também desde
tempos muito antigos. Assim, nos anais régios primitivos fixados
na Pedra de Palermo, a respeito do faraó Snefru, da IVa dinastia
(2613-2589 a.C.), lemos ter ele criado 35 domínios agrícolas, com
os trabalhadores a eles ligados, e 122 domínios especializados na
criação de gado, no ano em que se efetuou o sétimo censo em seu
reinado.41 Ora, isto se vincula em forma direta a outra informação

40
Papiro Anastasi III, 1,11 a 3,9: GARDINER, Alan H. Late-Egyptian
miscellanies. Bruxelles: Fondation Égyptologique Reine Élisabeth, 1937. pp.
20-3 (texto); CAMINOS, Ricardo A. Late-Egyptian miscellanies. London:
Oxford University Press, 1954. pp. 73-75 (tradução).
41
MALEK, Jaromír. In the shadow of the pyramids: Egypt during the Old Kingdom.
London: Orbis, 1986. p. 68.

42
que também consta da mesma fonte: Snefru, em data anterior,
declarara ter capturado como presa de guerra, quando de uma
campanha na Núbia, 7 mil “prisioneiros vivos” e 200 mil cabeças
de gado maior e menor.42 Em outras palavras, a documentação
egípcia, desde pelo menos a IVa dinastia (iconograficamente, desde
muito antes), vincula em forma direta a captura de prisioneiros
estrangeiros e de gado, efetuada militarmente, com a colonização
do norte do país.
No período mais bem documentado do Reino Novo ou fase
imperial do Egito (séculos XVI-XI a.C.), isto continuava sendo
verdade, mas a origem da mão-de-obra assumia duas formas
distintas. (1) As fontes régias que dão conta da atividade militar
dos monarcas, estereotipadas e muito construídas ideologicamente,
sempre detalham o butim de guerra, com especial atenção à mão-
de-obra capturada. Assim, em relação à primeira campanha
chefiada na Síria por Amenhotep II (1425-1398 a.C.), a inscrição
comemorativa achada em estelas de Mênfis e Karnak (Tebas)
declara ter sido a quantidade de butim trazida pelo rei a Mênfis,
ao retornar ao Egito: “500 guerreiros da elite dos hurritas, 240 de
suas esposas, 640 canaanitas, 252 filhos dos chefes, 323 filhas dos
chefes, 270 concubinas dos chefes de todas as terras estrangeiras e
os adornos de prata e ouro em seus braços. Total: 2 214 pessoas.
820 cavalos, 730 carros de guerra, incluindo todas as suas armas de
guerra”.43 Quanto à segunda campanha, ao relatar a presa de guerra
relativa à Samaria, as quantidades listadas são bem menores, como
seria de se esperar. (2) Uma modalidade diferente de transferência
de mão-de-obra para o Egito (às vezes também para a Núbia, onde
os egípcios estavam, no período imperial, fundando cidades de
tipo egípcio) era a deportação, na época de existência do império

42
BREASTED, James Henry. Ancient records of Egypt, vol. II. London: Histories
& Mysteries of Man, 1988, 5 vols. II. p. 66.
43
CUMMING, Barbara; DAVIES, Benedict G. Egyptian historical records of
the later Eighteenth Dynasty, v. I. Warminster: Aris & Phillips, 1982-1992, 4
vols. p. 31.

43
asiático do Egito, feita sob a alegação de razões de segurança
quanto à fronteira egípcia com a Ásia. Eis aqui vários exemplos
dos séculos XV e XIV a.C.: Thotmés III deportou mais de 7 300
asiáticos; seu filho Amenhotep II declarou ter feito o mesmo com
nada menos de 89 600 pessoas de Canaã; mais tarde, Thotmés IV
disse, por sua vez, ter despovoado a cidade canaanita de Gezer,
deportando sua população para Tebas; por fim, Amenhotep
III, sem citar cifras, afirmou que seu templo de milhões de
anos no oeste tebano (o tipo de templo que em Egiptologia era
denominado antigamente “templo funerário”) estava “cheio de
cativos masculinos e femininos, filhos dos chefes de todas as
terras estrangeiras capturadas por Sua Majestade, cercado por
assentamentos (de gente) da Síria”. A quantidade de deportados
declarada por Amenhotep II, em especial, parece incrivelmente
elevada; mas os arqueólogos acharam, no relativo a essa ocasião,
dados que mostram a destruição de muitos sítios canaanitas,
esvaziando certos vales férteis, o que provocou, depois de saídos os
deportados, uma reacomodação de populações na própria Ásia.44
No Reino Novo, os templos e seus domínios agiam como
instância intermediária na aplicação da política interna de fomento;
assim, uma parte majoritária da mão-de-obra obtida na guerra,
mediante tributo (síria, líbia, núbia, mais tarde proveniente dos
Povos do Mar), ou por deportação, era transferida às administrações
templárias.45 Em certos casos, o rei fixava estrangeiros capturados,
dotados de formação militar, diretamente em estabelecimentos ao
mesmo tempo agrários e militares, no Delta e no norte do Egito
Médio, onde deviam, por exemplo, produzir forragem para os
cavalos dos carros de guerra, bem como prover serviço militar
quando convocados.

44
REDFORD, Donald B. Egypt, Canaan, and Israel in ancient times. Princeton
(N.J.): Princeton University Press, 1992. p. 208.
45
Id., pp. 209, 221-227, 297.

44
Bernadette Menu estudou em detalhe o processo que ia da
captura à integração dos cativos como mão-de-obra dependente na
estrutura social egípcia. Usando a rica documentação disponível, a
respeito, para o Reino Novo – iconográfica e escrita –, ela analisou
o status dos hemu, a mão-de-obra em questão, mostrando que tal
status era alcançado por etapas:46

[...] recordemos uma observação judiciosa feita


no passado por Jules Baillet: “Mas, justamente,
as palavras que designam em forma ordinária
os prisioneiros de guerra cessam de lhes
serem aplicadas uma vez que eles tenham sido
transplantados ao Egito, onde se tornam hemu,
meret [uma outra categoria de trabalhadores
dependentes – C.F.C.] etc.” É que de fato, entre as
duas situações mencionadas, existe um interstício,
esta fase juridicamente intermediária em que
insisti, durante a qual o cativo é inserido na ordem
do direito faraônico e recebe uma educação que
fará dele um egípcio completo. Seu nome pode
ser egipcianizado, mas acima de tudo ele aprende
a língua, o comportamento, os usos e costumes de
seu novo país.

Menu, que não acredita na existência da escravidão no antigo


Egito – uma polêmica em que não posso entrar aqui –, atenua
consideravelmente a exploração e os maus tratos sofridos por essa
mão-de-obra dependente. É verdade, no entanto, que existia o
processo de aprendizagem a que se refere; e que, tradicionalmente,
os escravos do Estado egípcio, no curso de umas poucas gerações,
terminavam por integrar-se aos estratos populares da população
egípcia, social e economicamente dependentes mas juridicamente

46
MENU, Bernadette. Captifs de guerre et dépendance rurale dans l’Égypte
du Nouvel Empire. In: MENU, Bernadette (org.). La dépendance rurale dans
l’Antiquité égyptienne et proche-orientale. Le Caire: Institut Français d’Archéologie
Orientale, 2004. pp. 187-209 (a citação é das pp. 204-205).

45
livres. As instituições públicas a que os cativos eram distribuídos
quando de sua aprendizagem variavam. Em certos casos, tratava-se
de estabelecimentos militares fortificados, por exemplo. Mas havia
outras possibilidades: dispomos de uma carta de uma dama da
cidade-harém de Miur, no Fayum, ao rei Séti II (por volta de 1199
a.C.) em que ela recorda como, no passado, treinara em fiação e
tecelagem asiáticos que lhe foram confiados.47 Nem toda a mão-de-
obra resultante das campanhas militares participava, portanto, da
colonização agrária do Delta. Esta última, no entanto, está muito
bem comprovada e, sem dúvida, dependia dos cativos resultantes
da deportação, do butim de guerra ou do tributo.

O aspecto técnico das forças produtivas


no antigo Egito

Na busca de uma base teoricometodológica para o estudo do


aspecto técnico das forças produtivas egípcias, selecionei certas
indicações, a meu ver proveitosas, de alguns autores.
Bertrand Gille proporciona uma linha útil de trabalho, ao
propor uma análise estrutural das técnicas do passado que utilize
noções como:
(1) conjunto técnico: técnicas cuja combinação concorra para
um ato técnico definido. Por exemplo, ao se tratar da fusão dos
metais, entram em jogo problemas de energia, insumos −minério,
combustível−, instrumental: forno, fole, ferramentas, moldes, etc.;
(2) sistema técnico: em regra geral, todas as técnicas em uso numa
dada sociedade são dependentes umas das outras em diversos
graus; e existe entre elas um certo equilíbrio e uma certa coerência
que permitem, justamente, definir o sistema técnico vigente −se
bem que as ligações internas que dão forma a um tal sistema sejam

47
GRIFFITH, Frank Ll. The Petrie Papyri: Hieratic papyri from Kahun and Gurob,
vls. I e II. London: Bernard Quaritch, 1898, 2 vols. pp. 94-98 e lâmina 40.

46
mais numerosas no caso das técnicas complexas dos períodos
recentes−.48
Além destas noções, tomo de Lewis Mumford a concepção
de que existem, nos “complexos tecnológicos”, como ele chama
o que para Gille é o “sistema técnico”, técnicas dominantes, isto é,
aquelas que exercem, por sua importância central, um efeito de
subordinação sobre as demais.49
Em outra ordem de ideias, André Haudricourt afirma, com
razão, que “o transplante de uma técnica de sua região de origem
a uma outra é, em si mesmo, um fator de progresso e invenção”.50
Por que não considerar o que significou, por exemplo, a extensão
das forças produtivas egípcias disponíveis ao Fayum durante o
Reino Médio, colonizando 450 km2, com os grandes trabalhos
de drenagem e ocupação agrícola da XIIa dinastia na região?51
Outrossim, já vimos que a história agrária do antigo Egito esteve
marcada por um processo multimilenar de colonização do Delta:
tal processo significou o transplante não somente de pessoas e
gado ao norte do país, mas também de instrumentos e técnicas de
produção gerados e desenvolvidos no Sul, por muito tempo mais
desenvolvido.
Recorde-se, ainda, que uma “difusão indireta” ou “por estímulo”,
mesmo quando ligada a uma migração de grupos numericamente
limitados − como no caso dos hicsos no Egito e da colonização
agrária que acabamos de mencionar − é virtualmente idêntica a
um processo de invenção independente.52
A introdução permanente ou ininterrupta de novas técnicas é
típica somente do capitalismo avançado. Em todas as sociedades
precapitalistas, o que temos são fases de “revolução” − um termo

48
GILLE, Bertrand. Histoire des techniques. Paris: Gallimard, 1978. pp. 10-21.
49
MUMFORD, Lewis. Technique et civilisation. Paris: Seuil, 1950. pp. 105-106.
50
HAUDRICOURT, André. L’origine des techniques. Le Courier Rationaliste.
n. 12, 1965. p. 35.
51
BUTZER, Karl W. Early hydraulic..., op. cit., p. 92.
52
HOFFMAN, Michael A. op. cit., p. 293: o autor refuta, neste ponto, a
pretensa migração mesopotâmica.

47
inadequado mas usual − ou mutação técnica rápida em que surgem
novidades, ou técnicas já antigas mas pouco usadas até então se
difundem, seguidas por períodos mais ou menos longos em que
o nível técnico é explorado e às vezes aperfeiçoado, estendendo-se
talvez a novas regiões, sem mudanças radicais.
No centro do sistema técnico do Egito antigo esteve sempre
a irrigação baseada nas bacias ou tanques naturais formadas pelo
rio Nilo, só bem gradualmente mudadas pelo trabalho humano
mediante diques, eclusas e canais, pela divisão dos tanques grandes
demais ou, pelo contrário, pela reunião de várias bacias para formar
uma unidade mais importante. Este sistema de irrigação foi típico
do Egito desde os inícios da civilização faraônica até o século XIX
depois de Cristo, quando a primeira represa de Assuã começou
a mudar radicalmente os parâmetros da agricultura irrigada no
país. Acha Butzer que, já no final do Predinástico, teve início,
timidamente, a irrigação artificial, talvez estimulada ao longo do
terceiro milênio a.C. pelo processo de diminuição − primeiro
progressiva, depois catastrófica − do nível médio das cheias anuais
do Nilo, assunto que já abordamos. Quanto à eventual ação estatal
na construção de obras de irrigação de certa importância, inexistem
provas suficientes antes do final do Reino Antigo.53
Além desse sistema básico vinculado ao uso e controle
da inundação anual do Nilo, desde tempos muito antigos está

53
BUTZER, Karl W. Early hydraulic..., op. cit., p. 89; ENDESFELDER,
E. Zur Frage der Bewässerung im pharäonischen Ägypten. Zeitschrift für
ägyptische Sprache und Altertumskunde. n. 106, 1979. pp. 37-51; SCHENKEL,
W. Die Bewässerungsrevolution im alten Ägypten. Mainz: Zabern, 1978. A
tese de Schenkel, de uma eclosão da irrigação artificial somente no Primeiro
Período Intermediário, é insustentável; mas não há dúvida de que, desde então,
os dados a respeito se tornam bem mais numerosos. É possível, também, que o
desenvolvimento das técnicas de organização do trabalho, ocorrido quando da
fase de construção das grandes pirâmides no terceiro milênio a.C., tenha dotado
o Estado egípcio de meios mais adequados para suas eventuais incursões em
obras de irrigação consideráveis a partir do início do segundo milênio a.C. O
controle da irrigação, mesmo assim, permaneceu local.

48
comprovada, em paralelo, uma irrigação baseada no transporte
e elevação de água para o cultivo de legumes, de jardins, de
pomares, e para a viticultura. Até o século XIV a.C., isto era feito
manualmente, mediante dois recipientes atados às duas pontas de
um pau passado pelos ombros; ou, simplesmente, carregando a
água em potes. Este método primitivo e laborioso foi comentado
negativamente na Sátira das profissões, cuja primeira redação é
atribuída ao Reino Médio.54 No período de Amarna ainda era
usado,55 paralelamente ao shaduf (mecanismo simples mas eficiente
de elevação de água baseado no contrapeso) que aparece então −
ou seja, no século XIV a.C. − representado no Egito pela primeira
vez.56
A irrigação por meio dos tanques, aproveitando a cheia, era
o coração da economia egípcia: sua falha por qualquer razão
representava a catástrofe.57 Sendo assim, surpreende à primeira vista
o quanto tardou a aparecer nos textos escritos; que, aliás, mesmo
nos casos em que existem, não configuram uma documentação
suficientemente detalhada e informativa.
A primeira fonte importante de informação é a literatura
funerária. Já nos Textos das pirâmides é mencionada a irrigação do
solo que emerge dos tanques ou bacias (em egípcio she: a tradução
corrente desta palavra como “lago”, neste contexto, oculta em
muitos casos o fato de tratar-se de tanques de irrigação) ao baixar
o rio (parágrafo 388), e fala-se do uso de valas para a irrigação
dos campos (parágrafo 857). Os Textos dos sarcófagos, do Reino

54
SIMPSON, William Kelly. The literature of ancient Egypt. New Haven: Yale
University Press, 1973, p. 332. parágrafo 12.
55
Museu de Brooklyn, Nova York, peça no 65-16: fragmento de relevo amarniano
achado em Hermópolis.
56
DAVIES, Norman de G. The rock tombs of El-Amarna. London: Egypt’s
Exploration Fund, 1973, 2 vols. I. lâmina XXXII.
57
VANDIER, Jacques. La famine dans l’Égypte ancienne. Le Caire: Institut
Français d’Archéologie Orientale, 1936.

49
Médio, são ainda mais explícitos, contendo a mais antiga descrição
insofismável conhecida da abertura dos diques que comunicavam as
bacias entre si e com o rio. Outrossim, observando-se em conjunto
aquelas coleções de textos, é possível detectar o vocabulário relativo
aos tipos básicos de canais: meru, iteru e menyut; isto é, canais
maiores, canais radiais e valas.58
O controle básico da irrigação incumbia a conselhos locais,
sediados nas províncias e aldeias do Egito. O fato de ser desde
o início, e continuar sendo no período histórico, de caráter local
o controle da irrigação não quer dizer que o governo central não
se interessasse pela cheia do Nilo e por certo grau de supervisão
dos trabalhos de regadio, tão essenciais para o Egito. O rei chegou
mesmo a ser miticamente responsabilizado − em sua qualidade de
encarnação do deus Hórus − pelos homens, as terras, o rio e sua
cheia, as plantas e especialmente os cereais: de sua munificência a
humanidade obtinha a saciedade e os deuses as suas oferendas.59
Há uma cabeça de tacape cerimonial que data do período das
guerras de unificação, no final do IVo milênio a.C., em que muitos
autores − com os quais estou de acordo − acreditam ver o rei
Escorpião trabalhando (supõe-se que simbólica ou ritualmente),
seja na abertura de um canal, seja em abrir uma brecha num dique
para dar vazão à água da bacia, chegado o momento adequado.60

58
Quanto ao corte dos diques: BUCK, Adriaan de. op. cit., IV, 138 b-c (texto);
FAULKNER, Raymond O. The ancient Egyptian coffin texts, op. cit.. I, p. 246
(tradução). Quanto ao vocabulário dos canais: FAULKNER, Raymond O. The
ancient Egyptian pyramid texts. Warminster: Aris & Phillips, Oak Park (Illinois):
Bolchazy-Carducci, s.d. [fac-simile da edição de 1969]. p. 151: parágrafo
848, p. 152; parágrafo 857; BUCK, Adriaan de. Id., I, 173; FAULKNER,
Raymond O. The ancient Egyptian coffin texts, op. cit., I, p. 120, nota 1, relativa
ao Encantamento 140.
59
ALLEN, Thomas George. The Book of the dead or going forth by day. Chicago:
The University of Chicago Press, 1974: Encantamentos: 15.A.3, parágrafo S 2,
p. 18; 162 variante, parágrafo S 2, p. 158; 185.A, parágrafos S 1, 2 e 4, pp. 203-4;
Pleyte 168, parágrafo 34, p. 219.
60
VANDIER, Jacques. Manuel d’archéologie égyptienne, t. I, vol. I. Paris: A. et
J. Picard, 1952-1978, 6 tomos. pp. 600-602. A Pedra de Palermo demonstra,
para as primeiras dinastias históricas, o interesse monárquico pela cheia do rio
e pela irrigação.

50
Heródoto (II, capítulos 99, 124 e 127)61 atribui ao primeiro
faraó, “Menés”, e também ao rei Khufu, da IVa dinastia, a execução
de obras hidráulicas, em forma mais do que duvidosa. É verdade,
porém, que no Metropolitan Museum of Art, de Nova York, um
recipiente de pedra do início da Ia dinastia comemora a abertura de
um “lago” em Mênfis, sendo possível tratar-se, na verdade, de um
tanque de irrigação.62 Ainda no terceiro milênio a.C., temos um
caso comprovado de um faraó cortando um canal para inundar um
terreno, em texto de Pepi I (aproximadamente 2289-2255 a.C.).63
É a partir do final do mesmo milênio, porém, sob o Primeiro
Período Intermediário (aproximadamente 2181-1963 a.C.),
que começamos a ter textos mais específicos relativos a obras
consideráveis de irrigação: nesse período de colapso da monarquia,
tal coisa reflete, na verdade, a regionalização do poder.64 Os faraós
da XIIa dinastia inauguraram a realização, no Fayum, do que
podem ser consideradas grandes obras de irrigação. Neste último
caso, Heródoto (II, capítulos 149-50) também induziu a erro
muitas gerações de egiptólogos, ao pretender que o Birket Kharun,
ou “lago Moeris”, fosse artificial.65

61
A edição de Heródoto utilizada é: Herodotus. The Persian wars. Edição de
GOOLD, G. P. Cambridge (Mass.); London: Harvard University Press, 1999,
4 vols. “Loeb Classical Library”. pp. 117-120. As passagens pertinentes a nosso
assunto encontram-se no Livro II, contido no primeiro dos quatro volumes da
edição mencionada.
62
Ver HOFFMAN, Michael A. op. cit., p. 313.
63
SETHE, Kurt. Urkunden des alten Reiches. I Abteilung. Leipzig: Hinrich, 1933,
parágrafos 220-222 (texto); DUNHAM, Dows. The biographical inscription
of Nebhebu in Boston and Cairo. The Journal of Egyptian Archaeology. n. 24,
1938. pp. 1-8 (tradução).
64
BREASTED, James H. op. cit., I, pp. 188-189. Para uma tradução atualizada,
ver JAMES, T. G. H. Pharaoh’s people: Scenes from life in Imperial Egypt. London:
The Bodley Head, 1984. pp. 115-116. Trata-se da inscrição do nomarca Akhtoy,
a mais explícita desse período sobre a irrigação.
65
É possível que uma fase excepcionalmente alta do nível do lago, vinculada a
cheias também muito altas, haja levado, ainda na Antiguidade, à confusão de
se chegar a pensar ser tal lago artificial, já que, sem dúvida, houve trabalhos
importantes vinculados à irrigação na região do Fayum, em especial sob
Amenemhat III: cf. VANDERSLEYEN, Claude. L’Égypte et la vallée du Nil. 2.
De la fin de l’Ancien Empire à la fin du Nouvel Empire. Paris: Presses Universitaires
de France, 1995. pp. 104-107 (“Nouvelle Clio”).

51
Um ponto em que Heródoto parece mais confiável − apesar
de certa confusão presente também neste caso − é ao permitir-
nos perceber que a incidência de cheias muito fortes do Nilo no
primeiro milênio a.C. − comprovadas pelas inscrições no cais
de Karnak entre os séculos IX e VII a.C. −66 tenha provocado
uma intensificação dos trabalhos forçados para realizar obras de
proteção das cidades, talvez também para adaptar o sistema de
irrigação, sob os reis etíopes (Heródoto, II, capítulo 137).
Sabemos que, no Reino Novo, entre as obrigações do tjaty
(“vizir”) estava a supervisão das obras de irrigação na instância mais
alta. O texto conhecido como As obrigações do vizir, atribuído ao
início da XVIIIa dinastia mas contendo provavelmente um núcleo
mais antigo, afirma ser o vizir “aquele que despacha os conselheiros
do(s) distrito(s) (rurais) para constuir os canais no país inteiro”
(R 24-5).67 Isto deve entender-se como uma supervisão das obras
de irrigação, atribuição, em cada localidade, da quenbet local (os
“conselheiros” de cada distrito rural são exatamente os membros da
quenbet local: quenbetyu nu u, ou seja, “conselheiros do distrito”).
Da mesma XVIIIa dinastia é um escaravelho de Amenhotep
III, fabricado em numerosos exemplares para comemorar a
inauguração, pelo monarca em pessoa, de um grande tanque de
irrigação que mandara estabelecer em um dos domínios rurais
pertencentes à “grande esposa real”, a rainha Tiy, sua consorte.68

66
VON BECKERAT, Jürgen. The Nile level records at Karnak and their
importance for the history of the Lybian period. Journal of the American Research
Center in Egypt. n. 5, 1966. pp. 43-55; VENTRE, A. F. Crues modernes et crues
anciennes du Nil. Zeitschrift für ägyptische Sprache und Altertumskunde. n. 34,
1896. pp. 95-107; KITCHEN, Kenneth A. The Third Intermediate Period in
Egypt. Warminster: Aris & Phillips, 1973. passim.
67
VAN DER BOORN, G. P. F. The duties of the vizier: Civil administration in
the Early New Kingdom. London-New York: Kegan Paul International, 1988. p.
234. Note-se que esta passagem é a única disponível que explicita tal atribuição
do vizir.
68
NEWBERRY, Percy E. Ancient Egyptian scarabs. Chicago: Ares, 1979,
lâmina 33-2 (publicado originalmente em 1905); YOYOTTE, Jean. Le bassin
de Djâroukha. Kêmi. n. 15, 1959. pp. 23-33.

52
Hayes afirmou que a corveia real seria uma espécie de tributo
exigido pelo Estado faraônico em troca da utilização, por todos os
habitantes, das instalações de irrigação, que portanto pertenceriam,
em última análise, ao Estado.69 Não há dúvida, entretanto, de que
a propriedade privada sobre instalações de irrigação tenha sido
admitida, pelo menos em época tardia: sob a XXIIa dinastia, a
estela de Dakhleh faz uma diferença taxativa entre a “água de
homens livres” e a “água do faraó”.70
Apesar de que, a partir do Reino Médio e ainda mais sob o
Reino Novo, o poder faraônico tomou iniciativas de peso quanto
à irrigação, parece-me que a natureza de sua intervenção foi
limitada e não levou a qualquer mudança básica no controle do
aproveitamento da cheia do Nilo e da irrigação. No essencial,
então, tal controle continuou sendo exercido nos nomos e aldeias
− ou seja, num nível regional e local −,71 por mais que o governo
central exercesse uma supervisão global, intervindo onde e quando
lhe parecesse necessário ou conveniente; com maior frequência,
como é lógico, ao tratar-se da irrigação de terras pertencentes ao
rei, a membros da família real ou à organização palacial.
Um fator adicional que forçava a deixar aos níveis regionais
e locais as decisões acerca da irrigação e seu aproveitamento era

69
HAYES, William C. Egypt: internal affairs from Tuthmosis I to the death of
Amenophis III. In: EDWARDS, I. E. S. et al. (orgs.). History of the Middle East
and the Aegean region c. 1800-1380 B.C., v. II, parte I. Cambridge: Cambridge
University Press, 1973. p. 384 (“Cambridge Ancient History”).
70
GARDINER, Alan H. The Dakhleh stela. The Journal of Egyptian Archaeology.
n. 19, 1933. pp. 19-30: trata-se de um documento do ano 5 de Sheshonk I,
aproximadamente 940 a.C.
71
Cf. EYRE, Christopher J. The agricultural cycle, farming, and water
management in the ancient Near East. In: SASSON, Jack M. (organizador
principal). Civilizations of the ancient Near East, v. I. New York: Charles
Scribner’s Sons-Simon & Schuster-Macmillan, 1995, 4 vols. pp. 178-80; o
controle continuava a ser local na Baixa Época: LLOYD, Alan B. The Late
Period, 664-323 BC. In: TRIGGER, Bruce et al. Ancient Egypt: A social history.
Cambridge: Cambridge University Press, 1983. p. 326.

53
a diversidade de condições a esse respeito em diferentes partes
do Egito, cujas regiões apresentavam problemas específicos e
dificuldades maiores ou menores no tocante à irrigação em bacias,
assunto de que já se tratou.
O fato de se acreditar num controle local e, não, na
centralização da administração da irrigação não quer dizer que se
esteja minimizando a importância histórica da cheia do Nilo, da
construção ou reforço de diques ou canais. O sistema de irrigação
foi fator central na formação de estruturas regionais do poder
− que no reino unificado seriam os spaut ou nomos −, mas não,
em forma direita e linear, na emergência do Estado faraônico.
Continua sendo verdade, no entanto, que o aumento da produção
de alimentos − que dependeu da irrigação primeiro natural e
depois crescentemente artificial (no sentido de ampliar as terras
cultiváveis e de atenuar os efeitos das flutuações na altura da cheia
do rio) − foi uma condição necessária (mas não suficiente) para
todos os processos de concentração do poder em níveis cada vez
mais amplos, desde o Predinástico72, quiçás a partir da fase de
Nagada II.73
No caso do antigo Egito, como se viu, é preciso considerar
a irrigação baseada em tanques ou bacias (naturais, mas
progressivamente adaptadas e modificadas pelo trabalho humano)
como técnica dominante. Em torno da irrigação, tomou forma,
pelo menos desde o terceiro milênio a.C. (se não antes), um
conjunto técnico central − o da agricultura irrigada − que, por sua

72
BUTZER, Karl W. Early hydraulic…, op. cit., pp. 109-111; HOFFMAN,
Michael A. op. cit., pp. 310-317. Um dos pioneiros na refutação da “hipótese
causal hidráulica” (a irrigação como causa central do surgimento do Estado) foi
ADAMS, Robert McC. Early civilizations, subsistence and environment. In:
KRAELING, C. e ADAMS, R. McC. (orgs.). City invincible. Chicago: The
University of Chicago Press, 1960. pp. 269-295.
73
ATZLER, M. Untermchungen zur Herausbildung von Herrschaftsformen in
Ägypten. Hildesheim: Pelizeus Museum, 1981.

54
vez, ao funcionar a contento no sentido de garantir, mediante um
constante processo de adequação e aperfeiçoamento, um equilíbrio
ecológico/técnico/demográfico simples mas eficiente, constitui-se
no elemento articulador principal do sistema técnico egípcio.
Isto significa que ao definir o conjunto técnico da agricultura
irrigada estamos, no essencial, definindo também o próprio
sistema técnico que se organizava à sua volta. Para entender bem
isto é preciso, antes de mais nada, abandonar uma distorção de
perspectiva que vem da visita aos museus possuidores de grandes
coleções egípcias. Tais coleções, constituídas de objetos escavados
majoritariamente em templos e tumbas, remetem em sua quase
totalidade a um artesanato muito especializado e sofisticado.
Este, no entanto, era parte ínfima do sistema egípcio de produção:
este último estava dominado maciçamente pela agropecuária (com
nítido predomínio da agricultura sobre a pecuária),74 suplementado
pela coleta vegetal, animal e mineral (alimentos; complexo pedra/
madeira/corda para implementos agrícolas; caça e pesca; pedra para
ferramentas; barro para tijolos e cerâmica; areia e barro para diques)
e associada a um artesanato doméstico grosseiro, que fabricava, no
que agora interessa, todos os implementos para a produção agrária,
bem como para a construção/conserto/ampliação das obras de
irrigação. Tais meios de trabalho configuravam, se quisermos usar
o vocabulário de Mumford, um complexo tecnológico do tipo
madeira/corda/sílex. As pedras talhadas destinadas à construção
de templos e tumbas, os minérios, as madeiras finas importadas,
bem como as pedras preciosas e semipreciosas não contavam, ou
quase, no nível da economia de base.
A pesquisa efetuada por Karl Butzer mostrou que, enquanto
no antigo Egito certas técnicas se transformaram só muito

Como já se mencionou, Alessandra Nibbi mostra que o couro bovino, no antigo


74

Egito, era uma matéria-prima escassa e cara, o que demonstra indiretamente


não serem os rebanhos tão extensos como se poderia pensar.

55
lentamente, aquelas vinculadas diretamente à irrigação mudaram
sem cessar − isto é, foram repetidamente melhoradas no período
faraônico − para operar os reajustes necessários em função das
variações de longa duração na altura média das cheias do Nilo,
para intensificar o uso da terra e expandir o solo cultivável, assim
aumentando a produtividade e a produção (atenuando ao mesmo
tempo o impacto das variações de curta duração da cheia), bem
como para adaptar-se a disponibilidades variáveis de tempo e força
de trabalho.75
Como explicar técnicas de irrigação que evoluem
dinamicamente, mesmo se com lentidão − e por vezes com
atraso em relação às necessidades imediatas de adaptação a novas
circunstâncias cujo efeito é catastrófico −, e técnicas agrícolas
que se mantêm grosso modo invariáveis ao longo de três milênios,
pois, antes da dominação romana, que intensificou muito a
produção de ferro, os instrumentos metálicos não foram correntes
na agricultura?76 Por que a adoção do cobre e depois do bronze
para armas e em ferramentas para a mineração e o artesanato
especializado, mas não para o instrumental agrícola?
Ocorre que a adoção de técnicas militares atualizadas era
essencial para a defesa − como foi demonstrado pela invasão e
domínio dos asiáticos hicsos, os quais, justamente, introduziram
tais técnicas (e outras) no país −, ou para uma expansão “imperial”
como a que foi empreendida sob o Reino Novo; e que ferramentas
de metal (em especial de bronze, mais duro do que o cobre) eram
muito mais eficientes do que as de pedra e madeira para o trabalho
nas minas e pedreiras, bem como permitiam um artesanato
especializado mais produtivo e de melhor qualidade. O mesmo
não acontecia com as técnicas da agricultura, dadas as condições

BUTZER, Karl W. Early hydraulic..., op. cit., pp. 89-91, 108.


75

JAMES, T. G. H. An introduction to ancient Egypt. London: British Museum


76

Publications, 1979. p. 34.

56
específicas do Egito: alta fertilidade e grande produtividade naturais
do solo irrigado, que além disso, na maioria dos casos, era fácil
de trabalhar. No barro semilíquido onde se plantava na época da
retirada das águas, não havia grande diferença em se usar uma
enxada ou arado de madeira ou de metal!
O forte contraste, ao se tratar da metalurgia no mundo antigo,
entre o bronze e o ferro foi ressaltado muitas vezes; recentemente,
o tema foi abordado por Jorgen Christian Meyer. O Período do
Bronze se caracteriza por uma presença baixa do equipamento
metálico na produção de base − ao contrário do que acontece com
a produção de armas e os instrumentos de produção usados nas
grandes construções e no artesanato destinado à elite, setorees em
que a tecnologia metálica é essencial −. Permite um controle estatal
do suprimento de cobre e estanho (seja mediante fontes locais de
aprovisionamento, seja, mais frequentemente, por meio do controle
de rotas não muito numerosas de importação desses minérios) e,
desse modo, o estabelecimento de um monopólio razoável, pelo
Estado, da produção de armas e, portanto, do emprego da violência.
O minério de ferro é muito menos escasso em sua ocorrência do que
o cobre e o estanho. Desse modo, uma vez superadas as dificuldades
da transição do bronze ao ferro − basicamente técnicas: têm a ver,
por exemplo, com a obtenção das altas temperaturas necessárias
nos fornos de fundição −, inaugurou-se uma fase de uso muito
mais intenso do equipamento metálico nas produções de base e,
outrossim, caracterizada pela dificuldade ou impossibilidade de
conseguirem os Estados um verdadeiro monopólio da violência
mediante o controle da produção de armas.77
Outro fator deve ter incidido poderosamente, no antigo
Egito, no sentido contrário ao de um desenvolvimento intenso das

77
MEYER, Jorgen Christian. Trade in Bronze Age and Iron Age empires: a
comparison. In: BANG, Peter F.; IKEGUCHI, Mamoru; ZICHE, Hartmut
G. (orgs.). Ancient economies, Modern methodologies: Archaeology, comparative
history, models and institutions. Bari: Edipuglia, 2006. pp. 89-106.

57
técnicas: na maior parte da História dinástica, o suprimento de
mão-de-obra, embora variável, foi suficientemente abundante e,
como já se mencionou, bem controlado e manipulado. Assim, se
bem que, por exemplo, uma foice de bronze (que permite cortar
os talos dos cereais) seja inegavelmente mais eficiente na colheita
do que uma de madeira com dentes de sílex (com a qual os talos
não são cortados, e sim serrados, o que envolve maiores esforço
e lentidão), a abundante população de trabalhadores rurais
egípcios, suplementada pelos prisioneiros de guerra estrangeiros
escravizados − cujo número foi aumentando quase sempre ao
longo do terceiro e até fins do segundo milênio a.C., para cair
depois, é o que parece − pode ter tornado desnecessário ampliar
a produção metalúrgica a ponto de tornar possível, no campo, o
abandono de uma tecnologia do tipo madeira/corda/sílex em favor
do uso de metais em ferramentas agrícolas. Note-se que isto não
envolveria somente uma questão técnica: significaria igualmente
que ferramentas até então produzidas pelos próprios aldeães
passassem a provir de metalurgistas especializados.
Toda a longa história faraônica caracterizou-se pela vigência
do mesmo sistema técnico − aquele cuja estrutura acabamos
de discutir −.78 No século V a.C., ao visitar o Egito, Heródoto
percebeu confusamente, ao que parece, entre outras peculiaridades
do país, a de tal sistema, notando seu contraste com o grego. Ao
encabeçar a lista dessas peculiaridades com o clima e o regime do
rio Nilo, mostra-nos também ter compreendido o peso da cheia
fluvial − em função da agricultura irrigada − na explicação do
caráter específico da vida egípcia (Heródoto, II, capítulos 35-6).
As transformações perceptíveis nas técnicas foram lentas. O
Egito apresenta nítido atraso quanto à adoção de certas técnicas
básicas − fabricação do bronze e depois do ferro, instrumento para
elevação de água (shaduf), tear vertical, torno rápido para cerâmica,
etc. − quando comparado à Ásia Ocidental.

78
GILLE, Bertrand. op. cit., p. 198.

58
Pareceria que a explicação mais importante do relativo
atraso egípcio, da lenta evolução das técnicas no país, reside na
eficiência de um sistema técnico formado muito cedo, cujo centro
era a agricultura irrigada. Nas condições especiais do Egito, tal
sistema permitiu que se atingisse um equilíbrio ecológico/técnico/
demográfico à base, sobretudo, de uma evolução lenta e não linear,
mas constante, do sistema de irrigação, enquanto outras técnicas
pouco ou nada mudavam. A outra grande civilização do Oriente
Próximo baseada na inundação fluvial − a da Baixa Mesopotâmia
−, devido a condições naturais mais difíceis, conseguia também
ótimos resultados agrários, mas ao preço de um esforço muito
maior, incluindo-se aqui a instalação, manutenção e ampliação de
um sistema perene de irrigação do tipo radial, bem mais complexo
do que o do Egito.79 Em contrapartida, este investimento social,
desde muito cedo, numa irrigação bem mais complexa teve,
provavelmente, consequências favoráveis para a tecnologia geral
mesopotâmica e também para a economia e a sociedade como um
todo.
Outro fator que deve ter agido é o da organização social
da produção, como consequência de uma estrutura social
rigidamente estratificada. Harris chama a atenção para o fato de
que as condições em que os artesãos egípcios eram treinados para
o trabalho não favoreciam a inovação. Uma oficina era, no Egito,
um local de trabalho onde cada artesão se formava para atuar
como mero executante de instruções, segundo uma divisão fixa e
imutável de tarefas, de acordo com regras também intocáveis e com
uma disciplina rígida.80 Eis aí circunstâncias que não favoreciam as
mudanças.

79
WOOLLEY, Leonard. Los comienzos de la civilización. In: HAWKES,
Jacquetta e WOOLLEY, Leonard. Historia de la humanidad: Desarrollo cultural
y científico, vol. I. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1966. pp. 488-493.
80
HARRIS, J. R. Technology and materials. In: HARRIS, J. R. (org.). The
legacy of Egypt. Oxford: Clarendon, 1971. pp. 84-85.

59
Uma das consequências de um nível técnico deficiente em
muitos aspectos era que, apesar da habilidade já mencionada
na direção do trabalho e na divisão de tarefas, certas operações
− em especial as que envolvessem blocos de pedra − levavam
necessariamente muito tempo para realizar-se. A extração de um
único obelisco, durante o reinado da rainha-faraó Hatshepsut
(1479-1458 a.C.), deve ter demorado sete meses, apesar de que
centenas de homens fossem empregados; isto, sem contar o tempo
gasto depois em remover o monumento da pedreira, em seu
transporte fluvial e em sua ereção e decoração em Karnak.81

As forças produtivas nas transições ocorridas no


Egito até o segundo milênio a.C.

Primeira transição: surgimento do Estado e da sociedade


estratificada em classes

Apoiando-se em longa etapa pré-histórica − em que se


desenvolveram técnicas agrícolas e de criação de gado, de cerâmica,
de trabalho do couro, de fiação e tecelagem, de cordoaria e
fabricação de cestas e esteiras, de trabalho elementar da madeira
e da pedra (para ferramentas) −, o sistema técnico próprio da
história antiga do Egito formou-se no final do Período Predinástico
e ao longo de boa parte do terceiro milênio a.C., mas tendo como
fase inicial e mais importante de transformações os anos 3400-
2700 a.C. aproximadamente. Todos os setores de atividades
foram então renovados tecnicamente. Os bifaces de sílex foram
substituídos pelas lâminas, surgiram pela primeira vez os tijolos
crus, começou-se a fabricar faiança, apareceu uma verdadeira

81
DOLL, Susan K. Crafts and tools. In: BORRIAU, Janine D. et al. Egypt’s
golden age: The art of living in the New Kingdom 1558-1085 B.C. Boston:
Museum of Fine Arts, 1982. p. 51.

60
mineração e aprimorou-se a metalurgia do cobre (alguns autores
achavam que, anteriormente, o que se usara no Egito era o metal
natural martelado a frio e, não, a fusão do minério e seu trabalho
em moldes: tal concepção é objeto de controvérsia), o que por sua
vez − ao surgirem ferramentas metálicas − permitiu a emergência
da verdadeira carpintaria, aperfeiçoou-se a tecelagem (ainda à base
do tear horizontal), começou a fabricação da cerâmica de torno
(de fato uma roda manual lenta) e cozida em fornos, e − o mais
importante − chegaram ao termo as experiências de domesticação
de animais e plantas e teve início a agricultura baseada numa
irrigação já parcialmente artificial. A partir da IIIa dinastia, pela
primeira vez no mundo, usou-se a pedra lavrada (em contraste com
blocos de pedra em estado bruto ou com manipulação limitada,
usados muito antes, por exemplo, nas construções megalíticas
europeias) para grandes construções − uma prioridade egípcia
indubitável −.82
A que se deveu este surto de transformações tecnológicas?
Tradicionalmente, era costume atribuí-lo a uma invasão ou
migração proveniente da Mesopotâmia − uma hipótese de alta
improbabilidade, embora, de vez em quando, ainda apareça
quem a queira restaurar −.83 Aliás, parece necessário repetir uma

82
BREWER, Douglas J.; REDFORD, Donald B.; REDFORD, Susan.
Domestic plants and animals: The Egyptian origins. Warminster: Aris & Phillips,
s.d.; BREWER, Douglas J. e FRIEDMAN, Renée F. Fish and fishing in ancient
Egypt. Warminster: Aris & Phillips, 1989; HARRIS, J. R. op. cit., pp. 87-
88; ENGELBACH, R. Procedimientos mecánicos y técnicos. Materiales. In:
GLANVILLE, S. R. K. (org.). El legado de Egipto. Madrid: Pegaso, 1950. pp.
191-247; MONTET, Pierre. Les boeufs égyptiens. Kêmi. n. 13, 1954. pp. 43-
58; KUÉNY, G. Scènes apicoles dans l’ancienne Égypte, op. cit.; LUCAS, A.
Copper in ancient Egypt. The Journal of Egyptian Archaeology. n. 13, 1927. pp.
162-170; MADDIN, R. et al. Old Kingdom models from the tomb of Impy:
metallurgical studies. The Journal of Egyptian Archaeology. n. 70, 1984. pp. 33-
41; HOFFMAN, Michael A. op. cit., pp. 207-208.
83
HARRIS, J. R. Id., defende a hipótese da origem mesopotâmica; contra tal
hipótese, cf. os excelentes argumentos de HOFFMAN, Michael A. Id., pp. 129,
245, 292-3, 340-4. Não se confunda, porém, a refutação da hipótese de uma

61
e outra vez algo óbvio: uma migração minoritária, como a que
neste caso se julgava ter ocorrido, só poderia transformar em tal
profundidade as técnicas vigentes no país do Nilo se uma evolução
interna possibilitasse e exigisse a transformação. Deve salientar-se
que, se a ideia da agricultura e a da pecuária vieram provavelmente
para o Egito da Ásia Ocidental (onde tais atividades foram mais
antigas), as soluções egípcias para os problemas da domesticação
de espécies vegetais e animais e da estruturação mesma do setor
agropecuário foram, desde o Neolítico, extremamente originais. E
valeria a pena perguntar: se o sistema técnico do Egito histórico foi,
como se pretendia, “importado” já pronto da Ásia, por que, então,
isto se deu com exclusão da metalurgia do bronze, no entanto bem
conhecida na Ásia Ocidental antes de 3000 a.C.,84 e havendo, como
já vimos, disponibilidades de cobre (segundo alguns, também de
estanho: de não ser assim, este poderia ser importado, como o era
para a Mesopotâmia) em territórios que o Egito controlava desde
o terceiro milênio a.C.?
Não é possível, entretanto, estudar o surgimento do sistema
técnico do Egito sem atentar para o contexto social em que ele
ocorreu − fator que ajuda a explicar, por exemplo, o forte contraste
entre a história do Egito e da Mesopotâmia antigos.
Ao examinar as formas de trabalho no terceiro milênio a.C.,
Ann Roth tem a dizer o seguinte sobre o sistema de equipes
rotativas de trabalhadores, conhecidas por sua designação grega,
phylé:

O conceito de um governo centralizado e por


conseguinte de uma burocracia não jorrou

“raça dinástica” vinda da Ásia com uma negação das indubitáveis influências e
importações de traços culturais da Mesopotâmia no Egito, posto que ambas
as regiões mantinham contatos indubitáveis desde o Predinástico egípcio: cf.
MARK, Samuel. From Egypt to Mesopotamia: A study of Predynastic trade routes.
College Station (Texas): Texas A & M University Press, London: Chatham
Publishing, 1997.
84
HODGES, Henry. Technology in the ancient world. Harmondsworth: Penguin,
1971. pp. 79-80.

62
totalmente formado da mente de Narmer (ou de
Aha)85 mas, sim, desenvolveu-se a partir dos clãs
e das sociedades aldeãs do Egito predinástico. A
evolução das phylé como instituição ocorreu em
paralelo ao desenvolvimento do Estado. Emergindo
de seu caráter original como um sistema totêmico
de clãs que serviam para identificar e regulamentar
as lealdades pessoais e familiares que formam a
base de uma sociedade primitiva, desenvolveu-se
como um mecanismo burocrático que organizava
numerosas pessoas para tarefas tão variadas quanto
construir pirâmides ou lavar e vestir a estátua de
um rei morto. Durante seu desenvolvimento, o
sistema perdeu algo de sua complexidade primitiva
e de sua associações com o rei (...) No entanto, [há
elementos duradouros que] sugerem que as raízes
preistóricas das instituições sociais primitivas eram
mais fundamentais para a sofisticada sociedade
egípcia do Reino Antigo do que pareciam.86

Meu acordo com a interpretação assim sugerida para o


sistema econômico egípcio, no caso específico aquele da época das
pirâmides (terceiro milênio a.C.), significa um desacordo total com
esta outra, proposta por Jan Assmann:

[...] antes do desenvolvimento da sociedade


estratificada no final da Pré-História, a sociedade
egípcia era indubitavelmente “segmentária” -
organizada horizontalmente em clãs e, não,
verticalmente em governantes e súditos −. Estas
estruturas clânicas preistóricas foram, porém,
sistematicamente desmanteladas no Reino Antigo.

85
A autora está se referindo ao faraó fundador da monarquia unificada, sobre
cuja identidade há controvérsias: Narmer pertence à “dinastia zero”, enquanto
Aha é o primeiro monarca da Ia dinastia.
86
ROTH, Ann Macy. Egyptian philes in the Old Kingdom: The evolution of a
system of social organization. Chicago: The Oriental Institute, 1991. p. 216.

63
O rei reinava, com a ajuda de seus funcionários, sobre
uma massa indiferenciada. As fontes extremamente
fragmentárias para o Reino Antigo das dinastias
IV e V não contêm referências de qualquer tipo a
estamentos, classes, tribos, clãs e famílias, príncipes
locais ou magnatas, nem a centros ou concentrações
de poder. O rei e sua claque exerciam um controle
absoluto sobre uma massa informe de súditos.87

O autor projeta sobre a realidade social egípcia as


representações do Estado faraônico sobre si mesmo, especialmente
sua reivindicação de um controle absoluto sobre tudo e sobre
todos; mas, ao contrário do que afirma, as fontes - que sem dúvida
são fragmentárias e longe de ideais - iluminam uma realidade
social e econômica, abaixo do rei, bem mais estratificada e
diferenciada do que ele acredita. Outrossim, o Egito nunca deixou
de ser uma sociedade baseada em aldeias dotadas de organização
interna consistente, um dado que Michael Hoffman resume muito
adequadamente:

[...] existe (...) uma forte continuidade entre os


agricultores aldeães do Predinástico e seus similares
do período dinástico, posto que a passagem da
sociedade predinástica à dinástica foi muito mais
organizacional e política do que tecnológica e
cultural. O Egito dos faraós permaneceu (...)
essencialmente uma sociedade agrária de base
aldeã.88

87
ASSMANN, Jan. The mind of Egypt: history and meaning in the time of the
pharaohs. New York: Metropolitan Books, 2002. pp. 50-51.
88
HOFFMAN, Michael. Egypt before the pharaohs: The prehistoric foundations
of Egyptian civilization. London; Henley: Routledge & Kegan Paul, 1980.
p. 17; ver também: TRIGGER, Bruce G. “The rise of Egyptian civilization”.
In: TRIGGER, Bruce G. et al. Ancient Egypt: A social history. Cambridge:
Cambridge University Press, 1983. pp. 2-70. A ausência de qualquer corte
radical na cultura material do Alto Egito quando da unificação do país e mesmo
até o final da segunda dinastia é uma das conclusões do estudo arqueológico de

64
Em outras palavras, foi no quadro do sistema aldeão tradicional,
modificado a fundo (por exemplo, a partir da fase histórica, não
há qualquer sinal, no antigo Egito, de propriedade coletiva de
comunidades camponesas) mas mantido em suas linhas essenciais
− duas das mais importantes sendo a união do artesanato e da
agricultura em cada aldeia e o fato de que no interior destas se
produziam todos os insumos econômicos necessários às atividades
de base − que se deu o aumento da população (constatado nos
estudos de Karl Butzer) e o surto das técnicas que funcionaram
como “plataforma de lançamento” que abriu a possibilidade de
transformações como o surgimento do Estado, a urbanização e a
estratificação em classes sociais.
Note-se que uma opinião contrária a essa significaria, na
prática, o seguinte: se o Estado egípcio nascente decidisse acabar
com a estrutura aldeã existente até então e substituí-la por alguma
outra de sua lavra, isto implicaria desistir de um sistema em
que as aldeias reproduziam-se por si mesmas, cada uma em seu
próprio interior, pela união de agricultura, pecuária e artesanato
grosseiro − incluindo a fabricação da totalidade dos implementos
agrícolas, todos muito simples −. Teria o Estado unificado, em seus
primórdios, os meios para um reordenamento de tal magnitude?
Mesmo na época da construção das grandes pirâmides, tal coisa
parece muito improvável − sendo, portanto, impossível seguir
a interpretação de Assmann −. Mesmo porque, uma sociedade
complexa, como já era a egípcia de então, sem estratificação
alguma, a não ser entre o pequeníssimo grupo dirigente e “os
outros” (entendidos como “massa indiferenciada”), é algo de que
não há registro na informação sociológica ou antropológica. E o
“controle total” exercido por um Estado só existe em teoria ou
ideologicamente, nunca na prática. Os meios de ação limitados

HENDRICKX, Stan. The relative chronology of the Naqada culture: problems


and possibilities. In: SPENCER, Jeffrey (org.). Aspects of Early Egypt. London:
British Museum Press, 1996. p. 63.

65
de que poderia dispor, o próprio fato de ter de governar um país
dez vezes mais longo do que largo, cujas lentas comunicações
dependiam da navegação no Nilo, eram dados a exigir que o poder
faraônico do terceiro milênio a.C. se apoiasse em estruturas locais
do poder, a ele sem dúvida subordinadas, que preexistiram ao
Estado egípcio e demoraram muito a ser eliminadas ou assimiladas
a padrões unificadores estritos.
Dito isto, é uma hipótese razoável supor que as formas de
controle logístico da mão-de-obra e dos recursos desenvolvidas
pelo Estado egípcio a partir do início da época da construção dos
grandes conjuntos funerários régios, em meados do IIIo milênio
a.C., tiveram consequências mais gerais, incluindo maiores
possibilidades de gestão e manipulação no tocante às forças
produtivas naturais, humanas e técnicas.89

Segunda transição: a passagem à fase imperial

Durante o Reino Médio (2023-1648 a.C.) ocorreram poucas


mudanças de peso nas forças produtivas egípcias. Quanto ao seu
aspecto técnico, deu-se o início do uso do bronze no Egito em certas
ferramentas e em jóias, e isto, ao que parece, mediante a importação
de lingotes já preparados, ou a fusão de minérios em que cobre
e estanho estivessem mesclados naturalmente − não, ainda, uma
verdadeira fabricação −. Foi também no Reino Médio que se deu a
introdução do carneiro lanígero, vindo da Ásia Ocidental.90
A imigração dos asiáticos hicsos no Segundo Período
Intermediário (1648-1540 a.C.) pôs o Egito em contato mais direto

89
Ver, a respeito, MALEK, Jaromir. On the shadow of the pyramids: Egypt during
the Old Kingdom. London: Orbis, 1986. pp. 65-85.
90
CLÈRE, J. J. Histoire des XIe et XIIe dynasties égyptiennes. Cahiers d’Histoire
Mondiale. n. 1, 1954. pp. 660-661; HARRIS, J. R. Id., p. 97; BUTZER, Karl A.
Early hydraulic…, op. cit., p. 91; DUNHAM, Dows. Notes on copper-bronze in
the Middle Kingdom. The Journal of Egyptian Archaeology. n. 29, 1943. pp. 60-62.

66
e seguido com a Palestina e com a Ásia Ocidental em geral. Nessa
época os egípcios adquiriram, em primeiro lugar, a plena metalurgia
do bronze; e conheceram uma nova era de transformações técnicas
que, no entanto, não destruiu o seu sistema técnico tradicional
− cujo núcleo era e continuou sendo a agricultura irrigada em
tanques ou bacias, com instrumentos agrícolas de pedra, madeira
e corda −. Note-se ainda que, apesar de tudo, o metal continuava
sendo tão precioso, no Reino Novo, que as ferramentas metálicas
eram pesadas antes de serem confiadas a artesãos. Mesmo assim, o
novo surto trouxe grandes mudanças na tecnologia militar (uso do
carro de guerra puxado por cavalos, do arco composto, de flechas
com ponta metálica, de espadas de bronze, de armaduras e elmos
com partes de metal), a introdução do tear vertical, do gado zebu,91
do torno rápido com pedal para fabricação de cerâmica.92
O Reino Novo (1540-1069 a.C.), sobretudo em sua primeira
dinastia, a XVIIIa, foi marcado por aperfeiçoamentos dessa
tecnologia mais avançada (foles melhores para a metalurgia, por
exemplo) e por inovações isoladas, como o início da fabricação
de vidro e principalmente a introdução do shaduf, mecanismo
para elevação de água baseado no contrapeso, conhecido na Ásia
Ocidental desde mais ou menos 2000 a.C., mas adotado pelos
egípcios, segundo parece, só no século XIV a.C. O shaduf pode
ter permitido pela primeira vez, no Egito, a agricultura irrigada
de verão nos diques naturais situados de ambos os lados do rio (a
qual exigiria também o uso de fertilizantes nitrogenados), se bem
que isto seja somente uma hipótese ainda carente de comprovação.
Karl Butzer, formulador da hipótese em questão, calcula que,
como consequência, na época Raméssida isto pode ter levado a um
aumento da superfície cultivada da ordem de 10 a 15%.93

91
ALDRED, Cyril. An unusual fragment of New Kingdom relief. Journal of
Near Eastern Studies. n. 15, 1956. pp. 150-152.
92
HARRIS, J. R. op. cit., p. 89.
93
BUTZER, Karl W. Early hydraulic..., op. cit., p. 82.

67
À luz deste quadro resumido da evolução das técnicas, é
importante notar que, por limitadas que fossem, as transformações
representadas pela fase inaugurada no período hicso e continuada
− em especial com a introdução do shaduf − sob a XVIIIa dinastia
tiveram repercussões indubitáveis, em conjunto com a extensão
das terras cultivadas e o aumento muito considerável da população,
permitindo um aumento também considerável da divisão social
e técnica do trabalho. Equiparando-se em tecnologia militar à
Ásia Ocidental, o Egito pôde passar a numerosas e prolongadas
ofensivas bélicas na Síria-Palestina e na Núbia que deram origem
à sua fase imperial, de grandes consequências econômico-sociais:
incremento das atividades mercantis, avanço do individualismo
e da propriedade privada, expansão da escravidão, relativo
enfraquecimento das comunidades aldeãs.
Note-se que a equiparação com a Ásia Ocidental, em matéria
de tecnologia, durou somente cerca de meio milênio. Embora os
egípcios usassem desde tempos muito remotos, em escala ínfima, o
ferro natural (meteórico) e conhecessem, desde a XVIIIa dinastia,
objetos de ferro oriundos de verdadeira atividade metalúrgica,
importados da Ásia Ocidental em pequena quantidade, não há
prova de uma verdadeira metalurgia do ferro no próprio Egito
antes do século VI a.C. E só no período romano o uso desse metal
pelos egípcios se intensificou de fato.94 Em contraste, a passagem
do bronze ao ferro, na Ásia Ocidental, embora ocorresse num
processo relativamente lento a partir dos últimos séculos do IIo
milênio a.C., teve repercussões economicossociais muito grandes,
que no Egito tardaram muito mais a se manifestar.

94
LUCAS, A. Ancient Egyptian materials and industries. 4a ed. ampliada e
revista por J. R. Harris. London: Histories & Mysteries of Man, 1989. p. 240;
HARRIS, J. R. Id., p. 90; JAMES, T. G. H. An introduction to ancient Egypt,
op. cit., p. 218; WAINWRIGHT, G. A. Iron in Egypt. The Journal of Egyptian
Archaeology. n. 18, 1932. pp. 3-15.

68
Conclusão

O conceito essencial de forças produtivas é relativamente difícil


de definir; ao contrário do de relações de produção, Marx e Engels
não deixaram a respeito uma definição clara. Trata-se de noção
destinada a designar uma forma histórica, concreta, dos objetos
e meios de trabalho − dos meios de produção, mais os próprios
trabalhadores vistos em suas capacidades físicas e mentais −. Eis
aqui a definição das forças produtivas proposta pelo antropólogo
Maurice Godelier: “o conjunto dos fatores de produção,
recursos, ferramentas, homens, que caracterizam uma sociedade
determinada e que é preciso combinar de maneira específica para
produzir os bens de que tal sociedade tem necessidade”.95
Quisemos mostrar, neste trabalho, tratar-se de conceito a ser
considerado obrigatoriamente cada vez que se estudarem temas
de História Economissocial numa perspectiva marxista. Quando
− como é frequente − é deixado de lado ou usado em forma
inadequada, sem o detalhe suficiente, os processos de análise caem
com facilidade em esquemas inconsistentes, abrangentes e frouxos
demais, deformando o que se pretendia abordar e, muitas vezes,
convencendo ilusoriamente o historiador que efetua o estudo de
serem as coisas de muito mais fácil compreensão do que de fato
são.
No caso específico do antigo Egito, foi a observação dos efeitos
diferenciais das forças produtivas consideradas em seus aspectos
natural e técnico sobre o seu aspecto humano que me levou,
num estudo da História Economicossocial, a demonstrar que as
relações de produção, em especial ao longo do segundo milênio
a.C., tornam-se explicáveis principalmente segundo o seguinte
jogo de variáveis:

95
GODELIER, Maurice. Horizons, trajets marxistes en anthropologie. Paris:
François Maspero, 1973. p. 188.

69
(1) Desde pouco antes do ano 2000 a.C., as relações de
produção parecem ter variado principalmente em função
da oferta global de trabalhadores, por sua vez vinculada
à agricultura irrigada e seu êxito ou fracasso, conforme
os períodos, em assegurar uma base sólida à expansão
demográfica. Nas fases em que, com a diminuição da
população, ou devido a outros fatores (como o declínio da
expansão imperial e da captura de escravos na XXa dinastia
tardia), as disponibilidades de mão-de-obra tornavam-se
inadequadas a uma gestão direta das unidades rurais –
opção que se acompanhava do predomínio da remuneração
em rações–, difundia-se a exploração indireta, mediante a
intensificação dos arrendamentos (sendo estes últimos com
frequência em dois níveis). Os dois sistemas coexistiram,
entretanto, em proporções que não podemos determinar,
em vários períodos.

(2) As lógicas complementares do trabalho fixo, atado de


facto senão de jure à terra, e das equipes móveis de mão-de-
obra –formadas, seja por trabalhadores permanentemente
ligados a tal sistema, como no caso dos escravos do Estado
e dos templos, seja por trabalhadotres convocados para
a corveia real por tempo delimitado–, foram um fator
permanente da história econômica do Egito faraônico.96

96
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma interpretação das estruturas econômicas do
Egito faraônico, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1986
(tese em concurso para Professor Titular). pp. 297-298.

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79
Origen de la Industria Rural
a Domicilio en el Feudalismo
Castellano

Carlos Astarita

En la concepción clásica sobre la génesis de la subsunción del


trabajo por el capital (Verlagssystem), que implica la primera fase
del modo capitalista de producción, la declinación del feudalismo
es considerada como el ineludible prerrequisito del nuevo régimen
de producción1. Cuando Marx, por ejemplo, estudia la primera
etapa de la manufactura rural en Inglaterra, afirma que el sistema
feudal había comenzado su disolución2. En continuidad con
este juicio, Maurice Dobb postuló, en sus Studies, que la premisa
histórica del nuevo régimen de producción fue la crisis estructural
del feudalismo3. El posterior modelo de proto-industria de Kriedte,

1
Para algunos autores el Verlagssystem. es una forma de transición a causa
del desajuste entre relaciones sociales capitalistas y fuerzas productivas
precapitalistas. Para otros, aun cuando el empresario controla el acceso al
mercado, en la medida en que el trabajador controla la producción, constituía
un estadio feudal con gérmenes del nuevo modo de producción. En el presente
estudio se considera que fue la primera forma de producción capitalista: si
bien el capital no ha modificado el conjunto de la producción y predomina la
plusvalía absoluta, una parte de los medios de producción se han transformado
en capital y el objetivo es el acrecentamiento del valor. Es lo que MARX, K. El
Capital. Capítulo VI (inédito). Buenos Aires: Signos, 1971. p. 54, denominó la
subsunción formal del trabajo por el capital, que constituye “...la forma general
de todo proceso capitalista de producción, pero a la vez es una forma particular
respecto al modo de producción específicamente capitalista”.
2
MARX, Karl. Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Frankfurt : Wien,
1976-1977. p. 744: “In England war die Leibeigenschaft im letzten Teil des 14.
Jahrhunderts faktisch verschwundem”.
3
DOBB, M. Estudios sobre el desarrollo del capitalismo. Buenos Aires: Siglo
XXI, 1975. pp. 51-105. Publicado originalmente en 1947, asimilaba una
tradición que se había continuado en MANTOUX, P. The industrial revolution
in the eighteenth century. Londres: Routledge Library Editions, 1928. pp. 208-

81
Medick y Schlumbohm participa de este criterio, al concebir que las
relaciones de producción correspondientes a este sistema surgieron
no sólo donde el feudalismo se había debilitado o había iniciado su
desintegración sino también en áreas económicamente marginales4.
Aunque aceptan que la industria rural a domicilio pudo darse bajo
dominio señorial, como en lugares de Europa Oriental, enfatizan
una relación causal entre vínculos feudales declinantes y un orden
social más libre que permitía la aparición del nuevo sistema. El
esquema se ha perpetuado, en buena medida conectado con la
diferenciación social del campesino5. Todas estas elaboraciones
comparten un mismo criterio de base, que consiste en pensar el
proceso de transición a partir de lo que podría denominarse una
lógica de segregación, en la medida en que la crisis del feudalismo,

209 ó COORNAERT, E. Un centre industriel d’autrefois. La draperie-sayatterie


d’Hondschoote (XIVe-XVIIIe siècles). Paris: Presses Universitaires de France, 1930.
4
KRIEDTE, H.; MEDICK, H.; SCHLUMBOHM, J. Industrialización antes de
la industrialización. Barcelona: Editorial Crítica, 1986. pp. 19, 30-57, 306, en los
lugares donde los señores feudales y los municipios disponían de poder coactivo
impidieron o retrasaron el desarrollo de las manufactureras.
5
SECCOMBE, W. A Millenium of Family Change. Feudalism to Capitalism in
Northwestern Europe. Londres – Nueva York: Verso, 1995. pp. 183: “Proto-
industrial production thus tended to mushroom in pastoral areas of weak
manorial control and poor soil, in upland and moorland zones, where poverty
was endemic and underemployment acute”. EPSTEIN, S. An Island for Itself.
Economic Development and Social Change in Late Medieval Sicily. Cambridge:
Cambridge University Press, 1992; EPSTEIN, S. Cities, Regions and the
Late Medieval Crisis: Sicily and Tuscany Compared. Past & Present, n. 130,
1991, establece una relación entre cambio institucional y posibilidad de
industria rural. DYER, C. Everylife in Medieval England. Londres-Nueva York:
Bloomsbury Academic, 2000. p. 327, bajo la premisa de que un campesinado
liberado podía ser la base del trabajador asalariado, resume : “A numerous body
of yeomen, farmers and clothiers were produced by the peculiar combination
of low population, falling landlord incomes and expanding rural clothmaking
that recurred after 1348/9 and especially after 1400”. También SOBOUL, A.
Problèmes paysans de la révolution (1789-1848). Études d’histoire révolutionnaire.
París: F. Maspero, 1976. p. 11, “…c’est le processus particulier de la dissociation
de l’économie féodale, ou (mais c’est l’aspect fondamental du même phénomène)
le mode de différentiation de la paysannerie, qui a déterminé les traits les plus
caractéristiques de la formation et de la structure du capitalisme dans chaque
pays.”

82
entendida como un período de no reproducción de las relaciones
dominantes o debilidad del señorío jurisdiccional, fue la condición
histórica para el surgimiento del primer capitalismo.
No obstante este consenso, muchas investigaciones muestran
que el nacimiento de las manufacturas rurales no estuvo en todos
lados condicionado por una previa declinación del señorío6. Como
se verá en el presente acápite, ésta es la situación del área central
castellana entre mediados del siglo XIV y comienzos del XVI. Estas
comprobaciones imponen un cambio con referencia a la noción
clásica del prerrequisito, ya que presuponen estudiar el mecanismo
por el cual, en el proceso de funcionamiento del feudalismo, se
generaba el nuevo régimen económico. Ésta es la matriz teorética
que establece Guy Bois en su estudio sobre la Normandía Oriental,
elaborado como una versión sofisticada del conocido modelo
demográfico maltusiano. Aun cuando su análisis se encuadra en
la crisis del feudalismo, inaugura un cambio de interpretación
estableciendo la génesis capitalista desde el interior de la dinámica
feudal.
El desarrollo de esta perspectiva es el objeto de este artículo,
aunque el estudio revelará también que las condiciones de origen del
capitalismo no pueden explicarse bajo el esquema de autorregulación
demográfica. Se tratará de establecer que la industria rural surge
como un subproducto de la dinámica feudal con independencia
de las oscilaciones del ciclo demográfico, lo cual implica analizar
el movimiento de la estructura en el nivel en que se concretan las
relaciones sociales de producción, las comunidades de aldea. Esta
perspectiva presupone una lógica unitaria de reproducción y cambio,
enunciado que condensa el principio epistemológico del estudio.

6
OGILVIE, S. C. Social Institutions and Proto-Industrialization. In: OGILVIE,
S.C. y CERMAN, M. European Proto-Industrialization. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996. pp. 28-30; OGILVIE, S. C. Proto-Industrialization in
Germany. In Id. pp. 123-125 y 130-131; OGILVIE, S. C. State Corporation
and Proto-Industry: The Württemberg, Black Forest, 1580-1797. Cambridge:
Cambridge University Press, 1997. pp. 40-42 y 403 y s. MYSKA, M. Proto-
Industrialization in Bohemia, Moravia and Silecia. In OGILVIE, S.C. y
CERMAN, M. op. cit., pp. 188-207.

83
En el nivel celular del análisis se encuentra no sólo la
posibilidad de conocimiento sino también la primera dificultad de la
investigación. La industria rural a domicilio, originada de rutinarias
actividades campesinas que no parecían dignas de ser registradas, está
débilmente reflejada en los documentos de los siglos XIV y XV, y es
por esto que muchas veces los medievalistas ignoraron la cuestión7.
Pero esta dificultad es más aparente que real, ya que el nacimiento
de la industria rural no se resuelve tanto con la descripción del
hecho en sí como con la determinación de sus condicionamientos,
es decir, con el estudio de los atributos estructurales regionalmente
delimitados que, en su funcionamiento, crearon las condiciones de
un sistema cualitativamente distinto del tradicional.
Este estudio se concentra en la Extremadura Histórica
castellana, donde prevalecía la organización social de los concejos.
En ese marco se constata desde la Baja Edad Media y principios de
la época Moderna la existencia de la industria rural a domicilio.

Dinámica feudal y proletarización

Observemos en principio la herencia recibida sobre la dinámica


feudal.

7
En Castilla tuvieron industria doméstica lugares como Riaza y Sepúlveda, pero
de esto no informan las colecciones diplomáticas sino documentos accesorios:
GARCÍA SANZ, A. Desarrollo y crisis del Antiguo Régimen en Castilla la vieja.
Economía y sociedad en tierras de Segovia (1500-1814). Madrid: Akal, 1977. pp.
210-211. No es casual entonces que los historiadores conocieran la existencia de
Verlagssystem en Castilla sólo a partir del estudio de IRADIEL MURUGARREN,
P. Evolución de la industria textil castellana en los siglos XIII-XIV. Factores de desarrollo,
organización y costes de producción manufacturera en Cuenca. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 1974. Sobre otras regiones, ZELL, M. Industry in
the Countryside Wealden Society in the Sixteenth Century. Cambridge: Cambridge
University Press, 1994. p. 7: “It is difficult to discover much about the Weal den
woolen industry during its formative stages, but scattered unlagers accounts show
that broadcloths were being produced in the villages of the central Weald by the
mid fifteenth century.”

84
En las últimas décadas ha prevalecido en el análisis de la
economía medieval el modelo de los ciclos seculares de crecimiento
y decrecimiento demográfico. Inaugurado por Postan hacia 1950,
el esquema se basa en una traslación de nociones de Malthus y
de Ricardo a las economías preburguesas. Su lógica es sencilla e
ingeniosa. Desde un punto de partida dado por el posicionamiento
en las tierras más fértiles, se establece un crecimiento demográfico
sostenido. Debido al carácter de la reproducción social, ese progreso
demográfico sólo puede concretarse mediante la propagación
espacial de las economías domésticas. La ocupación de tierras lleva
entonces a invadir áreas marginales, hecho que provoca la suba de
precios agrarios por aumento del costo de producción, y, aun más
significativo, una tensión creciente entre recursos en disminución y
población en aumento. Esta tensión se resuelve por la abrupta caída
demográfica y una nueva fase secular recesiva, que constituye un
mecanismo correctivo. Con el declive de población, la contracción
en mejores tierras, y el incremento de la productividad, el sistema
está en condiciones de recomenzar un nuevo ciclo con su inicial paso
por la expansión hasta que encuentre ésta su propio freno. Como
han señalado sus críticos, en esta teoría el cambio estructural no es
explicado8.
Entre muchos historiadores que adoptaron el modelo figura
Guy Bois. En sus análisis reconocemos dos avances significativos
con respecto a la explicación inaugural de Postan (que en general
se repitió sin variantes). En primer término, proporciona una
versión refinada de los impulsos iniciales del crecimiento. Estos se
justificarían por particularidades del modo de producción feudal
en su fase de madurez (sin prestaciones personales de servicio, es
decir, con predominio de renta en dinero). En la medida en que
el campesino controlaba la producción (el señor sólo ejercía una

8
El primer objetor de este fallo fue KOSMINSKI, E. Peut-on considérer le XIVe
et XVe siècle comme l’époque de la décadence de l’économie européenne?. In: Studi in
onore di Armando Sapori. Milano-Varese: Institute Editoriale Cisalpino, 1957,
crítica que luego reiteró BRENNER, R. “Agrarian Class Structure and Economic
Development in Pre-Industrial Europe”. Past and Present, n. 30, 1976.

85
presión externa), lograba deteriorar la tasa de imposición. Con
esta caída del tributo, la familia campesina hallaba las condiciones
para su crecimiento, provocando la multiplicación de las economías
domésticas y el aumento del volumen de renta, que compensaba
la disminución de la tasa de renta. En segundo término, Bois
pretende superar la dificultad de la escuela maltusiana para explicar
la transición. Para ello, incorpora a los mecanismos de regulación
homeostática del ciclo efectos secundarios conducentes al cambio
estructural9. Éste es el aspecto que ahora nos interesa. A pesar de
los desacuerdos que aquí se indicarán, esa incorporación de efectos
secundarios en el ciclo establece un cambio de perspectivas con
referencia a tratamientos tradicionales.
Bois sitúa su análisis en la tendencia secular de acumulación
feudal, que exhibe dos rasgos originales: su discontinuidad,  por
una parte, y su despliegue contradictorio, por otra, en tanto
el proceso reunió, desde la fase A de crecimiento, un nuevo
fenómeno dado por la generación de trabajo asalariado. El exceso
de población se plasmaba en un fraccionamiento creciente de las
posesiones campesinas, y el productor comenzaba a buscar recursos
alternativos de vida vendiendo su fuerza de trabajo por salario. De
acuerdo al esquema, la mortalidad catastrófica del siglo XIV, que
induce el cambio de dirección cíclica, afectó en primer lugar a los
campesinos con pocas tierras (fue el factor que corrigió la brecha
entre población y recursos), y crecieron entonces las oportunidades
de instalación disminuyendo en consecuencia la marginalidad y
el trabajo asalariado. Con la caída demográfica, las posibilidades
capitalistas se diluían. Es por ello que, según Bois, sólo a través de
nuevas oleadas acumulativas, cuyos efectos se desplegaron cada vez
más lejos, se produjo un vuelco de situación pasando a primer plano
el trabajo asalariado como motor de la dinámica social, hecho que
señalaba el inicio de la producción de valores de cambio.

9
BOIS, G. Crise du féodalisme. Economie rurale et démographie en Normandie
Orientale du debut du 14e au milieu du 16e siècle. París: Presses de la Fondation
nationale des sciences politiques, 1976. pp. 342 y s.

86
Notemos que Bois trata de establecer una relación orgánica,
profunda, es decir, situada en los fundamentos estructurales, entre
dinámica feudal y génesis de trabajo asalariado. En ese vínculo
radica el carácter altamente creativo de su tesis, aunque no escapa a
una crítica inevitable si se la somete al veredicto del cuadro histórico
real. La objeción más seria se refiere a la consecuencia estructural del
colapso demográfico.
De acuerdo a comprobaciones fácticas, las condiciones de génesis
del capitalismo rural no se desplazan necesariamente a un segundo
o tercer estadio acumulativo feudal posterior al tardo medioevo sino
que se presentan en el transcurso mismo de la depresión demográfica.
Fue en ese período cuando aparece un fenómeno crucial para el
nacimiento de la manufactura rural: la extrema fragmentación de
la posesión campesina. Esta fragilidad campesina fue coincidente
con otro fenómeno, también revelador de inconvenientes para la
instalación campesina, como fue el aumento de los vagabundos. A
este fenómeno tan decisivo podría agregarse como síntoma de los
problemas de acceso a la tierra un micro regulador demográfico
como la fecundidad: es posible que entonces haya comenzado un
nuevo patrón dado por tardía edad de casamiento y elevado nivel
de celibato10. El aspecto básico es que tanto la fragmentación de la

10
Cortes de 1351, 1369, 1419; GEREMEK, B. La población marginal entre el
medioevo y la era moderna. In: SERENI et al. Agricultura y desarrollo del capitalismo.
Madrid: Alberto Corazón, 1974. Sobre el modelo de matrimonio, LASLETT, P.
El mundo que hemos perdido explorado de nuevo. Madrid: Alianza, 1987, capítulo 4,
con datos confirmados para Inglaterra y otras zonas del oeste y noroeste de Europa.
También, y en especial para Castilla, PÉREZ MOREDA, V. La crisis de mortalidad
en la España interior, siglos XVI-XIX. Madrid: Siglo XXI, 1980. p. 55. A pesar de que
la mayoría de los autores acepta que el modelo se generalizó desde el tardo medioevo,
pudo haber anomalías regionales y debe tomarse este indicador cautelosamente,
sobre esto, BARBAGLI, M. “Interventi”, Metodi, resultati e prospettive della storia
economica, secc. XII-XVIII. Prato: Istituto F. Datini, 1989 y RAZI, Z. The Myth of
the Immutable English Family. Past & Present, n. 140, 1993. La edad de casamiento
estaba ligado a las posibilidades de instalación. Al respecto, ver comparativamente
la situación que describe GAUNT, D. The Peasants of Scandinavia, 1300-1700. In:
SCOUT, T. (ed.). The Peasantries of Europe from the Fourteenth to the Eighteenth

87
unidad doméstica como los trastornos que encontraba el campesino
para lograr la normal reproducción de su unidad familiar, alteraron
la economía de subsistencia, y deriva de ello el crecimiento del
vínculo salarial como recurso de vida alternativo. La génesis de la
industria rural a domicilio fue, en buena medida, un resultado de
este proceso, y en cierto modo, el tamaño de la tierra campesina
pasaba a ser un aspecto decisivo, en tanto condicionaba las pautas
de reproducción, el vínculo del campesino con el mercado, y, por
último, el tipo y la forma del trabajo11. El problema es entonces
establecer cómo en una coyuntura demográficamente depresiva
no existieron mejores oportunidades para la propiedad campesina
sino que, por el contrario, ésta disminuyó. Esta situación evidencia
una incompatibilidad insalvable entre la situación histórica real y la
regulación que propone el modelo demográfico.

Centuries. Londres – Nueva York: Longman, 1998. pp. 325-327: Finlandia fue el
único país de Escandinavia donde hubo, en la Baja Edad Media, temprana edad de
casamiento (en el resto se dio lo que el autor llama el modelo occidental), excepción
relacionada con tierras disponibles para la instalación y que dio por resultado una
alta tasa de crecimiento demográfico. Es la misma situación de casamiento precoz
de la mujer que se dio en el dominio carolingio en fase expansiva; al respecto,
TOUBERT, P. Le moment carolingien (VIIIe-IXe siècle). In: BURGUIÈRE,
A.; KLAPISCH-ZUBER, Ch.; SEGALEN, M. ; ZONABEND, F. Histoire
de la famille. París: A. Colin, 1986. El estudio comparativo también objeta, por
otra parte, la teoría, según se desprende de RAZI, Z. Family, Land and the
Village Community in Later Medieval England. Past & Present, n. 93, 1981: en
Inglaterra, en determinadas comunidades, como en el manor de Halesowen, al
oeste de Birmingham, mientras que en la fase anterior a la peste (1250-1350),
con crecimiento poblacional y escasez de tierras había estabilidad de la posesión
campesina y determinadas prácticas obstaculizaban la diferenciación de la
comunidad por sobre acumulación de los kulaks, la polarización social creció
entre 1350 y 1430.
11
En sentido interpretativo general, HATCHER, J. England in the Aftermath
of the Black Death. Past & Present, n. 144, 1994, p. 25: “Landholding not only
played a major part in the determination of the quantities of food which needed
to be purchased or could be sold, it was also a prime influence on the amount of
time that could be spared for casual laboring or the amount of help that needed
to be hired”.

88
La cuestión planteada admite dos resoluciones lógicas. La
primera consistiría en revisar la teoría maltusiana que conduce a
explicar la regulación secular y no el cambio de la estructura. La
segunda consistiría en insistir en la diferencia que ha establecido
tradicionalmente la literatura del problema (desde Maurice Dobb
por lo menos) entre crisis sistémica (siglo XIV) y transición (siglos
XV y XVI), considerándolos como dos momentos diferenciados
y sólo muy laxamente vinculados en la secuencia histórica, siendo
pasibles de distintos exámenes. Este último camino es el que toma
Bois en su más reciente tratado12. A pesar de admitir que la industria
rural a domicilio aparece en el siglo XIV, postula resolver la transición
mediante un análisis específico del siglo XV. En términos analíticos,
la insuficiencia de la teoría maltusiana lo ha llevado a un retroceso
teórico con respecto a la conquista intelectual que significaba unir
dinámica feudal y transformación de las relaciones sociales.
Estas dos resoluciones son pertinentes si decidimos permanecer
en el campo de la dinámica sistémica. La aclaración se refiere
a que es posible proceder a una alteración absoluta del objeto
reorientándonos hacia otras determinaciones. Este procedimiento
ya fue ensayado con el recurso al llamado factor mercado en
interpretaciones que, como las de Sweezy y más tarde las de
Wallerstein, estaban inspiradas por los añejos estudios de Pirenne.
La tesis subyacente, tácita o explícita, del modelo de mercado, era
la imposibilidad de concebir la transformación “interna” del sistema
feudal. Sus intérpretes recurrían entonces a lo que consideraban un
factor exógeno, la circulación monetaria y mercantil, que actuaba
como disolvente de la economía natural del feudalismo. Otra variante
estuvo representada por los influyentes ensayos de Robert Brenner,
opuesto tanto al modelo de mercado como al demográfico. Pero
Brenner, nuevamente, desplaza el eje problemático. Su preocupación
no es el sistema sino la denuncia de las insuficiencias maltusianas

12
BOIS, G. La gran depresión medieval: siglos XIV-XV. El precedente de una crisis
sistémica. Valencia: Universitat de València, 2001.

89
para dar cuenta de la formación del capitalismo, y presenta una
alternativa basada en las distintas correlaciones de fuerzas de clase
como solución de las transformaciones. El desafío planteado por los
maltusianos, y aun más, las evidencias sobre una conexión orgánica
entre ciclo y transición, quedan anuladas. Es necesario, pues, volver
a la situación histórica.
Cuando nos abocamos a observar el fenómeno en el nivel regional
elegido, advertimos que la célula básica campesina, que idealmente
debía guardar una extensión mínima con sus tierras comunes
complementarias13, se encontraba dramáticamente amenazada. La
lucha rutinaria de los campesinos castellanos durante los siglos XIV
y XV por ampliar sus labranzas, incluso sobre reservas señoriales,
revela que el déficit de espacio se había convertido en una cuestión
crítica, circunstancia que se daba independientemente de las
oscilaciones demográficas, como atestigua la falta de heredades aun
en períodos de alta mortalidad y en un área que nunca se caracterizó

13
PUJOL Y ALONSO, J. Una puebla en el siglo XIII. (Cartas de población de
El Espinar). Revue Hispanique, vol. II, 1904, pp. 248-249, en El Espinar (Segovia)
la unidad de producción debía tener cuatro obradas; la obrada = 0,4 hectáreas,
o sea una huerta. DUBY, G. Economía rural y vida campesina en el Occidente
medieval. Barcelona: Península, 1973. p. 46, la superficie para una familia era de
120 acres o 120 jornales. Para POUNDS, N. J. G. Historia económica de Europa
medieval. Barcelona: Crítica, 1981. pp.194-195, el mínimo serían 10 hectáreas,
lo que sumado a huertas, prados y bosques, daría que para una comunidad
de 50 fuegos se requerían no menos de 10 kilómetros cuadrados. FURIÓ, A.
Reproducción familiar y reproducción social: familia, herencia y mercado de la tierra
en el país valenciano en la Baja Edad Media. In: GARCÍA GONZÁLEZ, F. (ed.).
Tierra y familia en la España meridional, siglos XIII-XIX. Murcia: Departamento
de Historia Moderna, Contemporánea y de América, 1998. p. 29: en las tierras
valencianas que se repoblaban a partir de la reconquista la medida, que se puede
considerar más apropiada, era de 9 hectáreas. Los campesinos tenían conciencia de
que su reproducción dependía de los comunales, como se ve en, DEL CANTO
DE LA FUENTE, C.; CORBAJO MARTÍN, S. y MORETA VELAYOS,
S. Ordenanzas municipales de Zamora. Siglos XV y XVI. Zamora: Disputación,
1991, Ordenanzas de Zamora, tit. 87, año 1448. p. 69.

90
por exceso poblacional14. Lejos de una causalidad maltusiana, esta
situación se originaba en la actividad de señores y caballeros urbanos
que en el período intensificaron la apropiación de comunales para
destinarlos a la ganadería como respuesta a los estímulos del mercado
de lana15. Es así como se delineaba el camino para el desarrollo

14
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SÁEZ, E. Colección Diplomática de Sepúlveda. Segovia: Segovia, 1956. doc. 17.
15
DEL SER QUIJANO. op. cit. 1987. docs. 9, 15, 22, 36, 77; BARRIOS
GARCÍA, A.; LUIS CORRAL, F. y RIANO PÉREZ, E. Documentación
medieval del archivo municipal de Mombeltrán. Ávila: Ediciones de la Obra
Cultural de la Caja de Ahorros de Avila, 1996. doc. 23. LUIS LÓPEZ, C. y
DEL SER QUIJANO, G. Documentación medieval del Asocio de la Extinguida
Universidad y Tierra de Ávila, 1. Ávila: Obra Cultural de la Caja de Ahorros de
Avila, 1990. docs. 13, 55, 67, 70, 71; BARRIOS GARCÍA, A.; MONSALVO
ANTÓN, J. M. y DEL SER QUIJANO, G. Documentación medieval del
archivo municipal de Ciudad Rodrigo. Salamanca: Ediciones de la Diputación de
Salamanca, 1988. docs. 19, 20, 41, 44, 164, 166, 167, 168, 169. Sáez, 1956, docs. 16,

91
de la estructura social que ha señalado Bois: fraccionamiento
de tenencias, marginación social y trabajo asalariado, aunque
las cualidades del fenómeno contradicen la tesis maltusiana. La
potencial autorregulación sistémica se encontraba interferida por los
propietarios señoriales que adaptaban las relaciones de apropiación
sobre la tierra a requerimientos económicos. Esto no constituía
un hecho excepcional; por el contrario, de manera habitual, la
conducta de las clases dominantes no se resignaba a la declinación
de los rendimientos sin ofrecer respuestas reorientándose hacia
economías especializadas16. Tampoco encontramos en este marco
una productividad decreciente por avance sobre suelos marginales

40; DE FORONDA, M. Las Ordenanzas de Ávila, Boletín de la Real Academia


de la Historia, n. LXXI, 1917. leyes 21, 38, 62, 113; RIAZA, R. Ordenanzas
de ciudad y tierra, Anuario de Historia del Derecho Español, n. XII, 1935. p.
479. Mem. Hist. Esp. 1, doc. CII; SÁEZ. op. cit., 1953, tit. 169; CASTRO A. y
DE ONIS, F. Fueros leoneses de Zamora, Salamanca y Alba de Tormes. Madrid:
Impr. de los Sucesores de Hernando, 1916, Fuero de Salamanca, tit. 72; LUIS
LÓPEZ, C. Documentación del archivo municipal de Piedrahíta (1372-1549). Ávila:
1987. doc. 65; LACREU, A. Conflictos sociales en Castilla durante los siglos XIV,
XV y principios del XVI. Revisión de una tesis historiográfica sobre la lucha de
clases. Anales de Historia Antigua Medieval y Moderna, n. 31, 1998, p. 95 y s. En
Cuenca los caballeros apremiaban a los labradores para que les vendan comunales,
ver, CABAÑAS GONZÁLEZ, M. D. La reforma municipal de Fernando de
Antequera en Cuenca. Apéndice documental, Anuario de Estudios Medievales,
n. 12, 1982, p. 394.
16
ÁLVAREZ LLOPIS, E.; BLASCO CAMPOS, E. y GARCÍA DE
CORTÁZAR, J. A. Colección diplomática de Santo Toribio de Liébana (1300-
1515). Santander: Fundación Marcelino Botín, 1994, doc. 93, p.129. LÓPEZ
GARCÍA, J. M. La transición del feudalismo al capitalismo en un señorío monástico
castellano: El abadengo de Santa Espina (1147-1835). Valladolid: Consejería de
Cultura y Bienestar Social, 1990. p. 27 y s.; 45 y s. Por otro lado, la productividad
descendente en tierras marginales es difícil de compatibilizar con la historia de los
cistercienses (sobre esta orden en Castilla, ÁLVAREZ PALENZUELA. op. cit.,
1978). Se recuerda que estos monjes llegaron tarde al reparto de tierras debiendo
conformarse muchas veces con áreas marginales, recibieron donaciones pequeñas
de señores que sufrían el pleno fraccionamiento del poder político, y los mismos
monjes, por razones doctrinales, acentuaron su aislamiento. Nada de esto impidió
que con una organización muy racional de la economía lograran altos rendimientos.

92
como consecuencia del ascenso demográfico, como establece la
teoría de Ricardo: la obtención de un excedente comercial implicaba
el abandono de tierras antiguas y la adquisición de otras para la
explotación pecuaria, estrategia que incrementaba conjuntamente
la productividad y el despoblamiento17. Observemos también

17
GERBERT, M.-C. L’élevage dans le royaume de Castille sous les rois catholiques
(1454-1516). Madrid: Casa de Velázquez, 1991. p. 27: «Dans les terres peuplées, les
usurpateurs s’emparèrent de maisons mais empêchaient quiconque de construire,
de même que leurs ancêtres avaient naguère favorisé les désertions de villages en
évinçant les habitants. En effet, un village ou un hameau ne rapportait à son seigneur
que 500 à 600 mrs par an (à raison de 24 mrs par vecino: feu) mais, dépeuple,
transformé en dehesa baillée à ferme por l’élevage, eventuellement les cultures, il
pouvait rapporter, en 1496, de 30.000 à 40.000 mrs. par an». También, BARRIOS
GARCÍA, A. Poder y espacio social: reajustes del poblamiento y reordenación del
espacio extremadurano en los siglos XIII-XV. In: Despoblación y colonización del
Valle del Duero. Siglos VIII-XX. León: Fundación Sánchez-Albornoz, 1995. Para
Castilla la teoría maltusiana no es adecuada: MONSALVO ANTÓN, J. M. Paisaje
agrario, régimen de aprovechamiento y cambio de propiedad en una aldea de la
tierra de Ávila durante el siglo XV: La creación del término redondo de Zapardiel
de Serrezuela. Cuadernos Abulenses, n. 17, 1992; LADERO QUESADA, M. A.
La Corona de Castilla: transformaciones y crisis política. 1250-1350. In: Europa en
los umbrales de la crisis (1250-1350). Pamplona, Departamento de Educación y
Cultura, 1995; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, M. Poblamiento de la Baja Andalucía:
de la repoblación a la crisis (1250-1350). In: Europa en los umbrales de la crisis
(1250-1350). Pamplona: Departamento de Educación y Cultura, 1995. Sobre
la influencia del mercado en el ordenamiento productivo inglés tardo medieval, en
un marco conceptual crítico a la teoría de Ricardo de rendimientos decrecientes,
ver, CAMPBELL, B. M. S. Ecology versus Economics in Late Thirteenth- and
Early Fourteenth-Century English Agriculture. In: Sweeney, D. (ed.). Agriculture in
the MiddleAges. Technology, Practice, and Representation. Filadelfia: University of
Pennsylvania Press, 1995. Para esa reestructuración agraria en el área oriental de la
Península Ibérica, ver, FURIÓ, A. Temps de represa i creixemen : La recuperació del
final de l’edat mitjana i l’inici de la moderna. In: Història agraria dels Països Catalans.
vol. 2. Barcelona: Edicions de la Universitat de Barcelona, 2004. p. 196 y s. Afirma
que “molts d’aquests nous cultius eren presents en el país des de feia molt de temps,
introduïts en molts casos pels àrabs; però només a partir del segle XV, pels seus
elevats rendiments i per la seva gran demanda comercial, començaren a substituir
amb avantatge l’antiga hegemonia cerealista i a transformar profundament el
paisatge agrari en algunes comarques”. Id. p. 213, y agrega que la consolidación
de este procesodependía de la manera en que “s’ajustessin les expectativas de les

93
que esta especialización, con sus variantes regionales, sólo puede
descifrarse en relación con un plano en el que se cruzan tradiciones
productivas, estímulos de mercado, oportunidades de beneficios y
correlaciones de clase. En Europa Oriental, por ejemplo, con ese
estímulo se desarrolló el servicio personal del campesino, mientras
que en el área que concentra nuestra atención, la ampliación de las
reservas de pastos se correspondía con la consolidación del sistema
de producción mercantil simple de los caballeros villanos, y a nivel
del reino, con la expansión de fuerzas señoriales.
En estas condiciones, la reproducción campesina se encontraba
comprometida tanto a nivel cotidiano (reproducción simple)
como intergeneracional (reproducción extensiva) al impedir
el desdoblamiento espacial de nuevas unidades productivas18.
De manera inevitable, surgía una creciente pulverización de las
tenencias, y el campesino, que por fraccionamiento de sus tierras
no reunía una cuantía mínima de bienes, quedaba separado de la
tributación, y por lo tanto fuera de las relaciones básicas del sistema
pasando a constituir una especial categoría de marginado19. Privado

diferents classes agràries o de la força i la capacitat d’unes i altres per imposar les
seves o per resistir les imposicions de les altres”.
18
Las reservas señoriales de pastos impedían la ocupación de despoblados, como
ejemplo, MARTÍNEZ SOPENA. op. cit., 1985, Ap doc., p. 825. Id, p. 80-81 y
114-116, describe la reproducción espacial de la unidad campesina. LUIS LÓPEZ,
C. La comunidad de villa y tierra de Piedrahíta en el tránsito de la Edad Media a la
Moderna. Ávila: Deputación Provincial de Avila 1987. p. 378, en Piedrahíta se
concede a los nuevos matrimonios el derecho de “cerrar un pradillo”. BARRIOS
GARCÍA; LUIS CORRAL y RIANO PÉREZ. op. cit., 1996, doc. 23 de 1432.
p. 54, cuando el delegado del señor toma tierras, prohíbe a utilizarlas a los vecinos;
DEL SER QUIJANO. op. cit., 1995, doc. 33, de 1486, por falta de dehesas para
los animales nadie quería vivir en Arévalo. El despoblamiento realizado por el señor
en LUIS LÓPEZ y DEL SER QUIJANO, op. cit., 1991. pp. 749, 750 y 751.
19
Propiedad fraccionada en, VACA LORENZO, A. Documentación del archivo
parroquial de Villalpando (Zamora). Salamanca: Universidad de Salamanca,
1988. docs. 154, 170, 176, 194, 220; Sáez, 1956, docs. 123, 124, 125, 126, 127,
128, 129, 132, 133, 145, 150; Luis López, 1987b, p. 381. El mínimo era una
cantidad variable de bienes; RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ, J. Los fueros locales

94
parcialmente de la subsistencia en la economía doméstica, este
campesino se inclinaba al trabajo asalariado en propiedades de
caballeros urbanos o de campesinos ricos20. Un punto analítico clave
para las posibilidades de evolución posterior de una nueva forma de
producción social, estriba en que el campesino era desposeído de
sus medios de subsistencia pero no de sus medios de producción21.
El yuguero, por ejemplo, retenía en sus manos el buey y el arado
(gozaba para ello de derechos de pasto en los comunales) con lo cual
disponía de condiciones materiales para contratarse por salario, de
la misma manera que cualquier otro miembro de la aldea sin tierras
suficientes podía conservar su rudimentario telar. El campesino
comenzaba así a negarse como campesino antes de afirmarse como
proletario. De todos modos, y aun cuando la privatización de
comunales tuvo consecuencias perdurables en la estructura, esta
práctica encontró la constante oposición de los campesinos y del
señor del concejo (interesado en garantizar el pago de la renta) con lo

de la provincia de Zamora. Salamanca: Consejería de Cultura y Bienestar Social,


1990, doc. 44 de 1222, “Iugarius de quarto non pectet” ; CASTRO Y DE ONIS,
op. cit. 1916, en Salamanca la valía mínima para tributar era 10 mrs.; LUIS
LÓPEZ, op. cit. 1987b, pp. 184-185, al morador que sólo tenía casa, bueyes para
arar, una vaca, ropa de cama y vestido no pagaba.
20
SÁEZ, op. cit. 1953, tit. 112; FORONDA, Marques de. “Las Ordenanzas de
Ávila”, Boletín de la Real Academia de la Historia, LXXI 1917, ley 2; UREÑA Y
SMENJAUD, R. Fuero de Cuenca. (Formas primitiva y sistemática: texto latino,
texto castellano y adaptación del fuero de Iznatarof). Madrid: Ediciones de la
Universidad de Castilla-La Mancha 1935, tit. 32,2. VILLAR GARCÍA, op. cit.
1986, p. 501; SANTAMARÍA LANCHO, M. Una fuente para el estudio del
poblamiento y la renta agraria en la Castilla del siglo XIII: las distribuciones de los
‘préstamos’. Hispania Sacra, v. XXXV, 1983. Para un lugar de señorío privado fuera
del área, FERNÁNDEZ CONDE, F. J.; TORRENTE FERNÁNDEZ, I. y
DE LA NOVAL MENÉNDEZ, G. El monasterio de San Pelayo de Oviedo.
Historia y Fuentes, t. 3, Colección diplomática (1379-1449). Oviedo: 1987, docs.
33, 44, 118.
21
Esto fue indicado por BRENNER. op. cit. y destacado por WOOD, Ellen.
Wood. The Origin of Capitalism. Monthly Review Press, 1999, p. 53 y 95, como
rasgo general de las condiciones de la transición al capitalismo.

95
cual el fenómeno reflejaba las vicisitudes de una lucha con resultados
cambiantes, y a largo plazo, esto se tradujo en un desarrollo sólo
perceptible como tendencia22.
De esta situación se desprende entonces que el trabajo
asalariado no surge del nexo demografía-espacio-recursos sino de
la contradicción entre los mecanismos reproductivos de la unidad
campesina y las relaciones de propiedad privada sobre la tierra. La
situación es expresable en una ecuación de variables antinómicas
con el esquema maltusiano: lugares sin exceso demográfico dieron
como resultado la pulverización de unidades domésticas, de lo que
derivó la exclusión de parte de la población de las relaciones sociales
básicas del sistema y el crecimiento del trabajo asalariado23.
Con estas conclusiones preliminares, este análisis se aleja tanto
del modelo maltusiano como de sus críticos radicales, que anulan
el problema relacional entre demografía, espacio y producción. En
el curso del presente estudio, por el contrario, esa relación es el
primer aspecto que concentra la atención, en la medida en que el
feudalismo se presenta como un modo de producción estructurado
sobre el espacio, y de su forma específica de reproducción extensiva,
surgen sus aspectos disfuncionales. Pero, a diferencia del modelo

22
DEL CANTO DE LA FUENTE, CORBAJO MARTÍN Y MORETA
VELAYOS, op. cit. 1991, tits. 33, 39. Hacia 1575-1580 esta tendencia continuaba,
ver, SALOMÓN, N. La vida rural castellana en tiempos de Felipe II. Barcelona:
Editorial Planeta, 1973, p. 140. El rey enviaba jueces que, en general, fallaban a favor
de los campesinos. En otros lugares, donde no había una motivación económica
impulsando la privatización del espacio, actuaron mecanismos maltusianos, ver,
SEBASTIÁN AMARILLA, J. A. Propiedad señorial, captación del producto
agrario y estrategias de comercialización: el ejemplo de un monasterio leonés de
comienzos del siglo XVI a 1835. Noticiario de Historia Agraria, 4, 1992, pp. 257-
258.
23
Puede considerarse como un ejemplo entre muchos el caso de Segovia, de donde
provienen muchos testimonios de trabajo asalariado y que al mismo tiempo
tenía poca densidad de pobladores, según se desprende de documentación de
1392, al respecto, DE COLMENARES, D. Historia de la insigne ciudad de
Segovia y compendio de las historias de Castilla. Segovia: Academia de Historia y
Arte de San Quirce, 1969, p. 177.

96
de Ricardo, no se entiende aquí esa relación como un fluctuante
equilibrio y desequilibrio del ecosistema, sino como una cualidad
derivada de las formas históricas concretas de propiedad. También
esta explicación se aleja de la perspectiva que en su momento había
proporcionado Dobb sobre la declinación del feudalismo. Afirmaba
que la sobre explotación del señor habría agotado al campesino, o,
según su gráfica expresión, habría matado a la gallina que ponía los
huevos de oro para el castillo, argumento recogido parcialmente por
Brenner cuando justificaba incidentalmente la caída demográfica
por una crisis de productividad, debida a las relaciones de extracción
de excedentes. El problema con esta tesis como eje exclusivo de la
dinámica estructural es que cuesta comprender cómo la misma
relación social que en un período anterior impulsó procesos
de acumulación, por movilización de trabajo campesino, era la
responsable del hundimiento catastrófico del sistema24.
Esta crítica a la teoría de la explotación como causa de la
declinación del feudalismo no pretende desconocer, sin embargo,
aspectos contradictorios de este sistema derivados de las prácticas
sociales de extracción de excedentes. Efectivamente, además de la
incidencia de las relaciones de propiedad sobre los mecanismos
de reproducción de la unidad doméstica, los testimonios revelan
otras cuestiones vinculadas que incidían para que el campesino se
empobreciera y cayera en estado de marginación.
En principio, la renta como causa de pauperización es una
evidencia, aunque no debe entenderse con abstracción de las
relaciones de propiedad sino como un agravante de la situación de
los campesinos faltos de tierras. El señor requería un nivel regular
de pagos y ello provocaba que una porción de la comunidad, sin

24
La explicación de DOBB. op. cit., en su capítulo sobre declinación del
feudalismo, de que habían crecido los gastos de lujo y de guerra de la nobleza
así como el número de sus miembros, no son convincentes. Si esas variables se
orientaban a la suba, también creció la demografía campesina, la intensidad del
trabajo y el producto.

97
condiciones para hacer frente a esas exigencias, perdía tierras25. En
conexión con la renta, los manejos jurídicos y coercitivos también
tenían su responsabilidad en este proceso. Usualmente, el agente
señorial prendaba los bienes del campesino cuando la renta no se
satisfacía, y la confiscación presentaba así una naturaleza dual como
mecanismo de reproducción con efectos disfuncionales, aspecto
sobre el cual el señor exhibía una lúcida conciencia cuando ordenaba
no tomar el arado para preservar la fuerza de trabajo26. Como es
esperable, las crisis de subsistencia o las guerras agravarían estos
efectos27. Cada una de esas coyunturas no debería comprenderse,
sin embargo, con independencia de la dinámica estructural sino
como uno de sus momentos particulares, y es por ello que el cambio
que aquí se describe no debe atribuirse a una simple fluctuación
temporaria.
En un punto de intersección entre los componentes estructurales
y la coyuntura se sitúan las alteraciones en la composición familiar.
El sistema tributario incidía negativamente sobre la reproducción
social en una de las fases más difíciles de la unidad doméstica, la
representada por las viudas, que constituían una elevada fracción
de las comunidades tanto por la superior longevidad femenina una

25
GAIBROIS DE BALLESTEROS, M. Historia del reinado de Sancho IV de
Castilla, 3. Madrid: Tip. de la “Revista de achivos, bibliotecas y museos”, 1922-
1928, t.3, doc. 347; RUIZ GÓMEZ, F. Las aldeas castellanas en la Edad Media.
Madrid: CSIC, 1990, p. 80. Cortes, t.3, p.83.
26
Cortes 1308, art. 12, p.325. La preocupación por no afectar el nivel productivo
en Cortes de 1288, p. 105; de 1293, p.111-112 y 121-122; de 1301, p.146-147;
CHACÓN GÓMEZ MONEDERO, F. A. Colección diplomática del concejo de
Cuenca 1190-1417. Cuenca: Departamento de Cultura, 1998, doc. 26 de 1286.
Muestra una racionalidad calculadora, GARCÍA LUJÁN, J. A. Códice diplomático
procesal del monasterio de Santo Domingo de Silos (1346). Córdoba: Universidad
de Córdoba, 1996, pp. 99, 106, 108, 109, 110, 111, 118, 119.
27
La situación general se expresa en muchos testimonios, como las Cortes de
1351 o de 1367; DE COLMENARES. op. cit. 1969, p. 445; ROSELL, C. T.
Crónicas de los Reyes de Castilla, “Crónica de Alfonso XI”. “Crónica de Pedro I”,
Biblioteca de Autores Españoles, LXVI. Madrid: Atlas, 1953, Crónica de Alfonso
XI, pp. 197, 257 y Crónica de Pedro I, p. 461.

98
vez superada la etapa de muerte puerperal como por las dificultades
para el nuevo casamiento28. El alto porcentaje de viudas con
problemas para abonar las rentas que presenta la documentación, y
que debían vender sus tierras, exime de todo comentario adicional
sobre los efectos de esta circunstancia en la economía campesina29.
Relacionado con el ciclo familiar estaría el caso del joven que llegada
la hora de su incorporación al trabajo encuentra la posesión familiar
ocupada por los hermanos mayores y los padres debiendo recurrir al
trabajo asalariado alternativo30. Cuando estos últimos desaparecen
puede integrarse a la unidad doméstica, y en este caso tendríamos

28
ALONSO MARTÓN, M. L. y PALACIO SÁNCHEZ-IZQUIERDO,
M. L. Jurisdicción, gobierno y hacienda en el señorío de abadengo castellano en el
siglo XVI. Edición y estudio de las informaciones de Carlos V de 1553. Madrid:
Editorial Complutense, 1994, pp. 90, 92, 93, 115, 158. Sobre el problema general,
ver, BRESC, H. Un monde méditerranéen. Economie et société en Sicile, 1300-
1450. 2 vols. Rome: École Française de Rome, 1986. p. 388.
29
El debilitamiento se muestra en la rebaja del tributo para viudas y huérfanos,
ALONSO MARTÓN, M. L. y PALACIO SÁNCHEZ-IZQUIERDO,
M. L. Jurisdicción, gobierno y hacienda en el señorío de abadengo castellano en el
siglo XVI. Edición y estudio de las informaciones de Carlos V de 1553. Madrid:
Editorial Complutense, 1994, pp. 110, 177, 196, 197. Compra de tierras a
viudas, LUIS LÓPEZ Y DEL SER QUIJANO. op. cit. 1990, docs. 40, 47,
53. SÁNCHEZ BENITO, J. M. Criminalidad en época de los Reyes Católicos.
Delincuentes perseguidos por la Hermandad. In: ÁLVAREZ PALENZUELA,
V. A.; LADERO QUESADA, M. A y VALDEÓN BARUQUE, J. (coord.),
Estudios de Historia Mediev. Homenaje a Luis Suárez Fernández. Valladolid:
Universidad de Valladolid, 1991, p. 134, hubo un 30 por ciento de viudas entre
los vendedores de tierras en Cuenca en el siglo XIV. Los huérfanos sufrían
también serias consecuencias, ver, FRANCO SILVA, A. Pedraza de la Sierra.
El proceso de formación de unas ordenanzas de villa y tierra en los siglos XIV
y XV. Ordenanzas y acuerdos capitulares de la villa de Pedraza (siglos XIV
y XV). Historia. INSTITUCIONES. DOCUMENTOS, 18, 1991, P. 122.
FERNÁNDEZ ALCALÁ. op. cit. 1991, docs. 5, 19. BARRIOS GARCÍA,
MONSALVO ANTÓN Y DEL SER QUJANO. op. cit. 1988, doc. 3.
30
Muchos pastores eran jóvenes, ver, LUIS LÓPEZ Y DEL SER QUIJANO.
op. cit. 1990, doc. 75; de la misma manera se ven aprendices de oficios o sirvientes.
DUPAQUIER, J. Relazione introduttiva. Popolazione e famiglie. In: Metodi, resultati
e prospettive della storia economica, secc. XII-XVIII. Prato: Istituto Datini, 1988,
59 p.: “l’adolescence constituait une sorte de purgatoire rappelent les épreuves des
jeunes oiseaux privés de nids par les sujets adults.”

99
una marginalidad oscilante, donde las etapas del agente económico
dependen de oportunidades de instalación. En términos generales,
toda la problemática del marginal asalariado está imbuida de una
dinámica que no permite concebirla como forma estática. Por
ejemplo, la lucha por la tierra puede cambiar situaciones particulares,
o la muerte precoz de un poseedor supone inesperados trueques de
situación para los herederos.
Otro aporte para la comprensión del fenómeno se obtiene
desde una doble perspectiva genética y estructural. Un estrato de
campesinos empobrecido aparece desde las primeras evoluciones
del sistema feudal como una forma general constituida por
dependientes sin tierras suficientes ni animales para el arado,
constituyendo un marginado potencial contenido en los marcos
del señorío31. En regiones donde no había servicio personal, el
campesino pobre y sin capacidad para tributar dejaba de estar
contenido por el sistema pasando a ser un marginal asalariado. En
alguna medida, este último es la continuación del campesino pobre
de las áreas de prestaciones en otro contexto, y su trabajo por salario
se corresponde con el servicio de brazos. La inexistencia de renta
trabajo, en señoríos originados por subordinación política y sin
componente patrimonial jurídicamente sancionado, multiplicaba
el número de productores separados del sistema, y el marginado
potencial de los dominios tradicionales se transformaba en una
realidad. Ello era concurrente con el incremento de la circulación

31
DOPSCH, A. Fundamentos económicos y sociales de la cultura europea (de César a
Carlomagno). México: Fondo de Cultura Económica, 1986, p. 432. FOURQUIN,
G. Au seuil du XIV siècle. In DUBY, G. y WALLAN, A. (dir.), Histoire de la France
rurale, 1, Des origines à 1340. París  : Seuil 1975, p. 347. Hubo una progresión
general del campesino sin tierras, según, LIS C. Y SOLY, H. Poverty and Capitalism
in Pre-industrial Europe. Bristol: Humanities Press, 1979, p. 15, hacia 1300 entre
el 40 y el 60 por ciento del campesinado de Europa occidental tenía tierras
insuficientes para mantener a la familia. Los campesinos se diferenciaban también
por los animales: a) sin bueyes, b) con uno solo, c) con yunta, d) con caballo; sobre
esto, RODRÍGUEZ, J. Los fueros del reino de León, 2, Documentos. Madrid:
Ediciones Leonesas, 1984, passim.

100
mercantil y de los recursos monetarios para que su subsistencia
fuera ocasionalmente atendida por el salario. De una u otra manera,
en el feudalismo se generaba una franja social con pocos medios de
producción que entraba en relación de trabajo con los señores, ya
fuera en la forma de prestación personal o como asalariado32.
La observación comparativa revela diversas formas en que se
combinaban las variables, sin excluir el factor político. En Mallorca,
por ejemplo, la pérdida de tierras del campesino, que ya era evidente
entre 1410 y 1430, se intensificó en la segunda mitad de esa centuria
con las represalias que siguieron a la revuelta campesina de 1454,
y se tornaría aguda con la represión posterior al estallido de las
germanías, de 1521-1523.
En lo que acabamos de ver se revelan cuadros sociales
diferenciados entre distintas áreas. Esto se inscribe en una cuestión
general, ya que en realidad, lo que tratamos como una tendencia
inherente al feudalismo (generación de trabajo asalariado) no era
un resultado indubitable de la evolución; se daban distintas formas
sociales de acuerdo a las regiones. Así por ejemplo, en antiguos
señoríos del norte hispano la exención tributaria por pobreza no
era la regla (inhibiendo, aunque fuera parcialmente, el surgimiento
de asalariados), y estas formas diferenciadas deben ser adjudicadas
a desiguales condiciones comunitarias tanto en lo que se refiere a
la polarización campesina como a la circulación monetaria y a la
división social del trabajo33. Una consideración similar es pertinente

32
PÉREZ CELADA, J. A. Documentación del monasterio de Carrión (1047-
1300). Palencia: Ediciones J.M. Garrido Garrido, 1988, doc. 101. ÁLVAREZ
PALENZUELA, V. A. Monasterios cistercienses en Castilla (siglos XII-XIII).
Valladolid: Universidad, Secretariado de Publicaciones, 1978, p. 60. MARTÍNEZ
SOPENA, P. La Tierra de Campos Occidental. Poblamiento, poder y comunidad
del siglo X al XV. Valladolid: Institución Cultural Simancas de la Diputación
Provincial de Valladolid, 1985, p. 242-243.
33
DA GRACA, L. Problemas interpretativos sobre las behetrías. Anales de
Historia Antigua y Medieval, 29, 1996. Es necesario multiplicar los estudios
comparativos para establecer el origen del asalariado y las variantes de su inserción
funcional en la economía. Sobre esto, VASSALO, R. Estudio comparativo de

101
en el problema de la herencia. En algunas áreas el señor imponía que
se mantuviera la tenencia sin subdividir en un solo heredero34, y si
bien con ello se evitaba la pulverización de la heredad, la exclusión
de una parte de los jóvenes era altamente probable, y se concretaba
en términos absolutos, aunque pudieran conservar ciertos derechos
menores. En otros lugares, la división de las herencias llevaba a la
muy pequeña propiedad35, aunque el reordenamiento por canje o
por compra-venta entre herederos no era en principio desechable
para reconstruir la unidad productiva. Estas diferencias pueden
explicarse por las características originarias de las comunidades, y
hasta cierto punto, la fragmentación de tierras de la Extremadura
Histórica era un resultado de la sucesión igualitaria y de la existencia
de familias nucleares desde los tiempos primitivos de la comunidad36.
Si bien aquí hablamos de los sistemas de herencia (igualitarios o no)
de una manera abstracta, ya que no necesariamente uno de estos
principios es sinónimo de regla exclusiva, y podían darse acciones
contra la norma predominante, en un sentido general, las distintas
transmisiones intergeneracionales tuvieron una incidencia relativa
en los resultados del proceso social. En otro aspecto, sin embargo,
los sistemas de herencia debieron producir diferentes modos de
marginalidad, desde el momento en que el régimen de transmisión
con preservación del indiviso inclinaría la balanza hacia una
tipología centrífuga (o expulsora de la comunidad), mientras que el
caso opuesto daría una tendencia centrípeta por la cual el marginal
era retenido en la aldea.

los jornaleros em la Extremadura castellano leonesa y Andalucía (siglos XIII-


XVI). In: VACA, A. (ed.). El Trabajo en la historia. Salamanca, 1996.
34
ÁLVAREZ LLOPIS, BLASCO CAMPOS Y GARCÍA DE CORTÁZAR.
op. cit. 1994, docs. 165, 182, 183, 188, 190, 191.
35
FERNÁNDEZ CONDE, TORRENTE FERNÁNDEZ y DE LA
NOVAL MENÉNDEZ. op. cit. 1987, docs. 33, 44, 118.
36
GAUTIER DALCHÉ, J.. Formes et organisation de la vie rurale dans le fuero de
Cuenca. Anuario de Estudios Medievales, 12, 1982; GIBERT, R. Estudio histórico-
jurídico. In: SÁEZ, E.. Los fueros de Sepúlveda. Segovia: Segovia, 1953; UREÑA Y
SMENJAUD. op. cit. Fuero de Cuenca cap. X

102
El marginal se presenta, efectivamente, en dos versiones que se
distinguen por la posesión o no de vivienda con su fracción de tierra37.
Por una parte, el feudalismo segregaba una masa errante, desligada
de todo lazo comunal, cuya existencia es notoria en los testimonios
españoles bajo medievales y modernos38. Sin medios de subsistencia,
los vagabundos lograban una miserable libertad de movimiento
alternando el trabajo ocasional con el delito39. La preocupación
expresada permanentemente en las Cortes por controlar a una
masa dispersa y peligrosa nos dice mucho acerca de lo difícil que era
absorber a esa población “sobrante”. La normativa sobre trabajadores
contratados de los municipios es una referencia para explicarnos esa
dificultad. Si para lograr la rutina laboral del asalariado residente
en la aldea se requería de coerciones físicas, cuánto mayores serían
los obstáculos que se oponían al aprovechamiento productivo de esa
población indisciplinada. La imposibilidad de absorción laboral de
los no instalados, sin condiciones de socialización básica, era en igual
medida un resultado de su indiferencia hacia el estímulo monetario
(lo revelan los salarios en alza junto a la persistencia de vagabundos
irreductibles) como de lo poco atractiva que resultaba su fuerza de
trabajo para el empleador40. Resultado de evoluciones estructurales,

37
Cortes de 1329, p. 410-411; ALONSO MARTÍN Y PALACIO SÁNCHEZ
IZQUIERDO. op. cit. 1994, Padrones de Bureba, p. 179.
38
Cortes de 1351, pp. 19-20; de 1369, p. 164-165. GEREMEK, B. La estirpe de Caín:
La imagen de los vagabundos y de los pobres en las literaturas europeas de los siglos XV
al XVII. Madrid: Mondadori España, 1991, passim; GRICE HUTCHINSON,
M. El pensamiento económico en España (1174-1740). Barcelona: Editorial Crítica,
1982, pp. 176-179 y 184-186 MARTZ, L. Poverty and Welfare in Habsburg Spain.
Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 67 y s.
39
En las Cortes de 1351, p. 76, relación entre marginados y asalariados. También,
Cortes de 1369 y Ordenamiento de 1387. Para los marginados urbanos en otro
ámbito, GEREMEK, B. Les marginaux parisiens aux XIVe et XVe siècles. París:
Flammarion, 1976.
40
Cortes de 1435, pet.38; de 1379, pet. 30; de 1469, pet. 23. LÓPEZ ALONSO,
C. La pobreza en la España medieval. Estudio histórico-social. Madrid: Ministerio
de Trabajo y Seguridad Social, 1986, p. 572, la pena para vagabundos era la
misma que para los ladrones. GEREMEK. op. cit. 1991, la no asimilación de estos

103
este marginal tenía consecuencias sociales antes que económicas en
sentido riguroso, y es por eso que, a pesar de su espectacularidad,
tiene ahora para nosotros una importancia secundaria. La disciplina
laboral se erige como una de las cuestiones centrales de la evolución
económica, y este problema no se resolvía con el vagabundo, por más
que el estado ensayara sus primeras funciones represivas en el drama
de la llamada acumulación originaria de capital (y esta notable
intervención estatal es posible que confunda al investigador acerca de
la verdadera entidad del problema)41. Pero, por otra parte, la riqueza
de determinaciones que proporciona la realidad histórica bajo
medieval daba un principio de resolución para el aprovechamiento
productivo del marginal.
Como muestran los testimonios, el trabajo temporal por salario
en diferentes actividades rurales se nutría de aquellos que, habiendo
sido excluidos del sistema tributario por pauperización, conservaban
su lugar en el interior de las aldeas con residencia, huerta y núcleo
familiar42. El uso de comunales, como reconocimiento de derechos
otorgados por la residencia en la aldea, donde el asalariado podía
realizar pequeños cultivos o alimentar a sus animales, contribuía a

vagabundos fue un problema generalizado desde la Baja Edad Media y durante la


Época Moderna; en lo que respecta a España, su rechazo al trabajo será un tópico
literario.
41
En este aspecto debe revisarse el relato de Marx en El Capital sobre la
acumulación originaria, aunque el sentido general del proceso sobre el campesino
desposeído como condición del capitalismo es el aspecto central vigente. Desde
el punto de vista conceptual sobre esto, SECCOMBE. op. cit..
42
Situación representada en el área y también en otras zonas, ver, MUÑOZ Y
ROMERO, T. Colección de Fueros Municipales y cartas-pueblas de Castilla, León,
Corona de Aragón y Navarra. Madrid: J. M. Alonso, 1847, p. 521; RODRÍGUEZ
FERNÁNDEZ. op. cit. doc. 9, tit.10; doc. 44; CASTRO, Y DE ONIS. op.
cit. Fuero de Zamora, tit. 67; Fuero de Ledesma, tits. 337, 340, 342, 328, 329;
LUIS LÓPEZ Y DEL SER QUIJANO. op. cit. doc. 13; SÁEZ. op. cit. 1953,
tit. 131; DE HINOJOSA, E. Documentos para la historia de las instituciones de
León y Castilla (Siglos X-XIII). Madrid: Est. tip. de Fortanet, 1919, doc. CV;
RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ. op. cit. doc. 7; DEL SER QUIJANO. op. cit.
doc. 36 p. 90; doc. 45 p. 112; FRANCO SILVA. op. cit. pp. 131, 136, 139, 140,
124 PÉREZ CELADA. op. cit. doc. 97, p.186.

104
la estabilidad del hábitat; y esto nos dice que el índice salarial es
inadecuado para establecer sus niveles de vida43. Es posible que
en esta práctica se reconozcan tradiciones muy antiguas de las
comunidades, que entendían la utilización de prados y bosques
como un complemento del fundo particular. En definitiva, en
las estructuras comunales había un espacio para asegurar la
reproducción social, y todo menesteroso de la comunidad estaba en
condiciones de recibir alguna ayuda solidaria de los vecinos44.
Esta estabilidad de residencia permitía que se estableciera
un principio de control social sobre este sector, ejercido por las
autoridades de los municipios y de las aldeas, y se concretaba en
consecuencia, un requisito para su inclusión en el trabajo estacional,
aunque ello no impidió que la rapiña cotidiana entrara también en su
repertorio de recursos45. Sin desmerecer estos factores (residencia,
usos comunales) uno de los instrumentos más importantes para
el encuadramiento social de los asalariados estuvo a cargo de los

43
RIAZA. op. cit. pp. 475, 483, 484; LUIS LÓPEZ y DEL SER QUIJANO.
op. cit. doc. 92, p. 413; CASTRO y DE ONIS. op. cit. Fuero de Ledesma tit. 257;
DE FORONDA. op. cit. ley 18; DEL SER QUIJANO. op. cit. 1987, docs. 12,
14, 22, 25, 23, 27, 28; del CANTO DE LA FUENTE, CORBAJO MARTÍN
y MORETA VELAYOS. op. cit. Ordenanzas de Zamora, tit. 7, p.32. Mem.
Hist. Esp., 1, doc. LXVI, p. 256. SÁEZ. op. cit. 1953, tit. 131; BARRIOS
GARCÍA, MONSALVO ANTÓN y DEL SER QUIJANO. op. cit. docs. 19
y 158. CALDERÓN ORTEGA, J. M. Ordenanzas municipales de la villa de
Jodar ( Jaén) en el tránsito de la Edad Media a la Moderna. (Fines s. XV-XVI).
In: Estudios en recuerdo de la professora Sylvia Romeu Alfaro. Valencia: Universitat
de Valência, 1989, p. 200. Plantar hortalizas era um hecho generalizado que se
extendía por los comunales.
44
ÁLVAREZ LLOPIS, BLASCO CAMPOS Y GARCÍA DE CORTÁZAR.
op. cit. doc. 398, P. 568.
45
CASTRO, Y DE ONIS op. cit.. FUERO DE ZAMORA, tits. 57, 68; FUERO
DE ALBA DE TORMES, tits. 76, 115, 138; UREÑA Y SMENJAUD. op. cit..
FUERO DE CUENCA., tits. 36,7; 36,8; 38,1; 43, 16; LUIS LÓPEZ Y DEL
SER QUIJANO. op. cit. doc. 13; SÁEZ. op. cit., 1953, tit. 129; SÁNCHEZ
BENITO. op. cit., 1991, pp. 415-416.

105
campesinos ricos de las aldeas mediante la regulación del mercado
de trabajo46.
La ambivalencia del asalariado, participando y saliendo de la
producción, ganándose la vida de acuerdo a los requerimientos del
sistema, pero también contradiciéndolos cuando incurría en el delito,
establecía aspectos de continuidad con prácticas consuetudinarias.
El marginado vendía su fuerza de trabajo en el mercado local como
el campesino comerciaba los pequeños excedentes de su producción.
En ambos casos se trataba de una enajenación forzada (el campesino
estaba obligado por la renta y el asalariado por obtener recursos de
existencia) y este contacto con el mercado estaba interferido por
múltiples regulaciones sociales. De la misma manera, los períodos
en que regía el contrato laboral, opuestos al ciclo de inactividad,
eran una manifestación exacerbada del carácter no continuo de
toda ocupación campesina. En un aspecto sustancial, sin embargo,
el marginado imponía una diferencia básica con el campesino
arquetípico en cuanto perdía su capacidad de reproducción
autónoma, y su existencia era una función de otras clases sociales,
no sólo por su necesidad de los comunales sino también por
quedar fuertemente subordinado a los segmentos superiores de la
comunidad adquiriendo una modalidad informal de dependencia
económica. En esta disminución de la autonomía económica es
posible que encontremos una causa de la peligrosa exposición de
este sector a las crisis de subsistencia47.

El señor del paño

Cuando el asalariado instalado en tierras comenzaba a trabajar


para el “señor del paño”, se verificaba un cambio cualitativo pasando

46
RIAZA. op. cit. pp. 472 y 485.
47
Los campesinos sin bueyes debían alquilarlos; un año de mala cosecha hacía
peligrar su subsistencia por imposibilidad de afrontar el arriendo, ver, LUIS
LÓPEZ. op. cit. 1987a, doc. 125 de 1529.

106
a producir valores de cambio en un sistema con potencialidad de
reproducción ampliada, es decir, en una “industria industrializante”
(al menos en teoría) por la posibilidad que ofrecía, ante la falta
de limitaciones corporativas, para la reinversión productiva del
beneficio. El fenómeno sólo admite una evaluación cualitativa48.
En este proceso subyace un fenómeno esencial para la génesis
del nuevo sistema, que se desplegó en paralelo con la pauperización
de una parte de la comunidad. Se trata de la polarización social,
que se expresó hacia fines de la Edad Media en un consolidado
segmento de labradores ricos49. Es posible que una precondición

48
Es lo opuesto de lo que dice BRITNELL, R. The Commercialization of
English Society, 1000-1500. Manchester: Manchester University Press, 1996.
Reconoce que si bien después de la Peste Negra, las rentas y los salarios en
Inglaterra se realizaron de manera cada vez más contractual, y la industria
textil hacia fines del siglo XV presentaba signos de una creciente dependencia
del empresario mercader del paño, cree que se ha sobrestimado el proceso de
transición al capitalismo. Razona en términos cuantitativos, despreciando el
significado cualitativo y la potencialidad de cambio estructural que el nuevo
régimen implicaba. Dice que estos desarrollos, “…cannot have affected more
than a few thousand people by 1500. Within the terms of Marx’s own ideas,
the emphasis that has long been placed upon the late Middle Ages as a period
of transition from feudalism to capitalism lacks adequate foundations, and
seriously misrepresents the magnitude of earlier change” Id. p. 234.
49
ASENJO GONZÁLEZ, M. Labradores ricos: nacimiento de una oligarquía
rural en la Segovia del siglo XV. En la España Medieval, IV, 1984, ASENJO
GONZÁLEZ, M. La ciudad medieval castellana. Panorama historiográfico.
Hispania, 175, 1990, p. 806; GINESTET, M. Aldeanos, participación y poder
político. San Bartolomé de los Pinares (Ávila) en la segunda mitad del siglo XV.
Anales Historia Antigua, Medieval y Moderna, 31, 1988; MONSALVO ANTÓN,
J. M. El sistema político concejil. El ejemplo del señorío medieval de Alba de Tormes y su
concejo de villa y tierra. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1988, p.
127 y 128; MARTÍN CEA, J. C. El mundo rural castellano a fines de la Edad Media.
El ejemplo de Paredes de Nava en el siglo XV. Valladolid: Consejería de Cultura y
Turismo, 1991, p. 149; de DE MOXÓ, S.. Campesinos hacendados leoneses en
el siglo XIV. León medieval. Doce estudios, León, 1978, pp.165 y s.; Id. Repoblacion
y sociedad en la Espana cristiana medieval. Ediciones Rialp, 1979, pp. 429 y 430.
BARRIOS GARCÍA, MONSALVO ANTÓN y DEL SER QUIJANO. op.
cit. doc. 67; Cortes de 1422, p. 144. BERNAL ESTÉVEZ, A. El concejo de Ciudad

107
de esto se encuentre contenida en la propiedad privada individual
de la primitiva comunidad de la Extremadura Histórica, forma que
posibilitaba acumulaciones diferenciadas50. De esa antigua forma
comunitaria deriva también el alto grado de uniformidad jurídica
aldeana, que exponía al campesino a una elevada desigualdad
económica, situación contrapuesta a las regiones en las que la rígida
fijación legal debía reducir la movilidad social51. Sobre estos factores
se desenvolvió el comercio, y posiblemente encontremos aquí la
principal causa de enriquecimiento de una fracción comunitaria.
El intercambio vinculaba las unidades de producción, y a través del
acaparamiento y de precios elevados, se establecía un mecanismo
de apropiación de valor a través de la circulación52. Disponiendo
de capital dinero, el aldeano rico acentuaba el flujo monetario en
el interior de la aldea mediante préstamos a otros campesinos, con
la consecuente pérdida de tierras por insolvencia de los deudores,
mecanismo de acumulación que se sumaba al proporcionado por la
producción de lana para exportación53. Es posible que los estudios

Rodrigo y su tierra durante el siglo XV. Salamanca: Ediciones de la Diputación de


Salamanca, 1989, pp. 207-209, padrón fiscal de Benavente de 1486: tributarios
mayores: 26,42 %; medianos: 9,35 %; menores: 52,71 % y no tributarios: 11,50 %
(incluyéndose en este último escalón un ínfimo porcentaje de privilegiados).
50
La forma primitiva de comunidad analizada en detalle en ASTARITA, C.
Estructura social del concejo primitivo de la Extremadura castellano-leonesa.
Problemas y controversias. Anales de Historia Antigua y Medieval, 26, 1993.
51
Por consiguiente, estamos ante una forma de señorío jurisdiccional que
favorece la tendencia capitalista. Esta conclusión se opone a COMNIMEL,
G. C.. English Feudalism and the Origins of Capitalism. Journal of Peasant
Studies, vol. 27, 4, 2000, que plantea que el señorío banal fue un obstáculo para
el capitalismo. Basa su análisis en las diferencias entre Francia, con señorío
banal, e Inglaterra, donde predominaba el manor. En Castilla es posible que el
dominio tradicional (equivalente al manor), por el contrario, no haya favorecido
la diferenciación social de las comunidades y la división del trabajo.
52
Cortes de 1537, p. 677; DE FORONDA. op. cit. ley 67; ESTEBAN
RECIO. op. cit. pp. 26 y 27.
53
BARRIOS GARCÍA, LUIS CORRAL y RIANO PÉREZ. op. cit. doc. 32;
DEL SER QUIJANO. op. cit. 1995, doc. 30; SÁEZ SÁNCHEZ, C. Colección

108
comparativos nos permitan concebir razones suplementarias. Así por
ejemplo, Richard M. Smith refiriéndose a las comunidades inglesas
da importancia a la coyuntura inflacionaria que habría permitido
acumular a campesinos que pagaban rentas en dinero fijadas por la
costumbre y que se beneficiaban además, al contratar trabajadores,
con la baja de salarios. El segundo factor enunciado pudo haber sido
de significación para nuestro caso, a pesar del aumento nominal del
salario en el largo plazo (comprobable, por ejemplo, entre 1351 y
1367). También en épocas de aumento de los precios agrarios por
crisis de las cosechas (que estuvieron presentes en los siglos XIV
y XV), las posesiones grandes se habrían beneficiado de manera
no proporcional con relación a las pequeñas que se quedaban sin
excedente para el mercado54.
La posesión individual y el origen del señorío, signado por una
primitiva comunidad independiente que establecía con el poder
superior relaciones de reciprocidad, se vincularon causalmente con

diplomática de Sepúlveda, 2, 1076-1485. Segovia: Diputación Provincial, 1991,


docs. 156, 170, 171, 172; LUIS LÓPEZ. op. cit. 1987a, doc. 14. SÁEZ. op. cit.
1953, doc. 12. DIAGO HERNANDO, M. Soria en la Baja Edad Media: espacio
rural y economía agraria. Madrid: Editorial Complutense, 1993 (b), pp. 125 y
s. CASADO ALONSO, H. Las relaciones poder real-ciudades en Castilla en la
primera mitad del siglo XIV. In: Génesis medieval del estado moderno: Castilla y
Navarra (1250-1370). Valladolid: Ambito, 1987, p. 523. Ver comparativamente
que en Mallorca, desde la segunda mitad del siglo XV, y en Cataluña, durante
todo el siglo XVI, el endeudamiento y el mercado de tierras llevaron a la
polarización social campesina (FURIÓ. op. cit. 2004, pp. 220 y s.).
54
Ver comparativamente, ABEL, W. La agricultura: sus crisis y coyunturas.
Una historia de la agricultura y la economía alimentaria en Europa Central desde
la Alta Edad Media. México: Fondo de Cultura Económica, 1986, p. 52 y s.
En la búsqueda de razones contingentes o específicas de diferenciación debe
procederse con plasticidad. Por ejemplo, en áreas donde prevalecía la no división
de la herencia, con precios agrarios en crecimiento, salarios en declinación y
obligaciones señoriales fijas, las elites campesinas podían prosperar, como lo
hicieron en partes de Alemania en el siglo XVI. Sobre esto, ROBISHEAUX,
T.. The Peasantries of Western Germany, 1300-1750. In: SCOTT, T. (ed.), The
Peasantries of Europe from the fourteenth to the Eighteenth Centuries. Londres –
Nueva York: Longman, 1998, p. 123.

109
la libertad que tenía el campesino rico para el emprendimiento de
distintas iniciativas, como contratar asalariados, comprar tierras de
campesinos pobres, ejercer la usura o acaparar tareas burocráticas.
Contribuía a consolidar esta relativa libertad de movimiento la
legitimación de su autoridad en la aldea por parte del señor, que se
apoyaba en este estamento para efectivizar el cobro de las rentas.
Pero más allá de los rasgos específicos de la región analizada, en esta
actividad del campesino rico subyace el principio estructural del
feudalismo de la debilidad de la cohesión social, o sea, la autonomía
relativamente alta de sus distintas esferas socioeconómicas y
sociopolíticas, en las que se incluye la comunidad campesina que
dirige sus condiciones de existencia.
Se configuraba así un sujeto social que combinaba actividades
ganaderas, agrarias, mercantiles y burocráticas55. Por su misma
naturaleza, sus complejas unidades económicas presentan una
contradictoria dualidad. Se establecía por un lado un objetivo de
producción de valores de uso por mediación mercantil, como
muestran los bienes suntuarios consumidos por miembros no
privilegiados del concejo, revelando el agente social un afán por
asimilarse a las pautas culturales de los segmentos superiores
urbanos o nobiliarios56. La economía del campesino rico ostenta
en este comportamiento una ignorancia sobre el ideal de ganancia

55
ESPOILLE DE RUIZ, M. E.. Repoblación de la tierra de Cuenca, siglos XII a
XVI. Anuario de Estudios Medievales, 12, 1982, p. 220, DIAGO HERNANDO,
M.“Expansão territorial na Terra de Soria em Transtamare tempo”. Celtiberia, n.74,
1987, p. 46 y s.; ASENJO GONZÁLEZ, M. Segovia: La ciudad y su tierra a fines
del medioevo. Segovia: Diputación Provincial, 1986, p.302 y s. 340 y s.; MARTÍN
CEA, J. C.. El mundo rural castellano a fines de la Edad Media: El ejemplo de Paredes
de Nava en el siglo XV. Valladolid: Consejería de Cultura y Turismo, 1991, p.148
y s; GARCÍA SANZ, A. El crédito a principios del siglo XVI en una ciudad de
Castilla: la nobleza urbana como financiadora del comercio y de la industria en
Segovia, 1503-1504. Studia Historica. Historia Moderna, V, 1987, pp. 86-87.
56
ASENJO GONZÁLEZ, M. La villa de Aguilafuente. Vida social y actividades
económicas a través de sus ordenanzas (1481-1527). Estudios Segovianos, 94, 1996,
pp.137-139. La prohibición para los no privilegiados de consumo suntuario es
constante, por ejemplo, Cortes, t. 3, p. 344.

110
monetaria como objeto de su actividad para buscar beneficios
socioculturales significativos. Pero por otro lado, y en la medida
en que este campesino comercializaba una proporción creciente
de excedente, el intercambio alteraba las bases consuetudinarias de
su economía doméstica que pasaba a depender de la circulación,
y la producción para vender se establecía paulatinamente como
objetivo. Con los fundamentos de la “economía campesina” (en
sentido chayanoviano), comenzaba entonces a convivir un esquema
de cálculo encaminado a incrementar el capital dinero, que implicó
un principio de alteración de la tradicional lógica comunitaria, con
lo cual, y a diferencia de la economía doméstica arquetípica donde
el comercio sólo surge como un subproducto del autoconsumo, se
abre paso aquí una producción destinada a la obtención de valores
de cambio, y se establecen los fundamentos de la acumulación
monetaria.
De esta dualidad de lógicas derivan las dudas de los historiadores
para encuadrar estas empresas como formas tradicionales o como
innovaciones capitalistas57. En este campesino rico, la producción
mercantil simple, definida por producción para el mercado con
un objetivo de consumo, no era más que una forma inestable
hacia la producción con objeto de lucro, y se contraponía en este
rasgo con el régimen del caballero villano que era, en virtud de los
condicionamientos institucionales, una forma inmutable. Entre
otras cosas, el beneficio que obtenía el campesino rico no debía
ser destinado de manera obligatoria a los expendios del status, y
quedaba disponible para ampliar la reinversión productiva58.
Esta actividad estaba a su vez sobredeterminada por el rol

57
Por ejemplo, GLENNIE, P. In? Search of Agrarian Capitalism: Manorial
Land Market and the Acquisition of Land in the Lea Valley c.1450-c.1560.
Continuity and Change, 1988, pp. 29-30, tratando la misma cuestión para el
acumulador inglés.
58
Se verifica con esta comparación que el comercio genera transformaciones de
las relaciones de producción sólo en determinadas circunstancias estructurales
y político legales.

111
político que el señor le asignaba al segmento superior de la aldea. La
distribución no equitativa del tributo, regulada por la elite vecinal, se
incorporaba a los mecanismos de desigualdad comunitaria, desde el
momento en que a partir de un determinado nivel de bienes, cuanto
más se ascendía en la escala social menor era el monto relativo a
pagar59. Con este procedimiento, el señor se aseguraba en la aldea la
fidelidad de un segmento social que actuaba tanto en la recaudación
como en la domesticación del conflicto, por lo cual, el privilegio que
obtenía de pagar proporcionalmente menos rentas era un requisito
del sistema de dominación. Es por esto que esta distribución
diferencial no debe confundirse con una supuesta disminución de
la renta; por el contrario, es posible que, con el perfeccionamiento
del procedimiento fiscal y las necesidades militares, aumentara
su volumen en términos globales60. El dominio señorial sobre la

59
ASENJO GONZÁLEZ, M. Repartimientos de pechos en Tierra de Segovia.
In: La ciudad hispánica durante los siglos XIII al XVI. Madrid: Universidad
Complutense, 1985; MONSALVO ANTÓN. op. cit. 1988, p. 252; DIAGO
HERNANDO, M. Estructuras de poder en Soria a fines de la Edad Media.
Valladolid: Junta de Castilla y León, 1993, pp. 243 y s. LADERO QUESADA,
M. F. La ciudad de Zamora en la época de los Reyes Católicos. Zamora: 1 Diputación
de Zamora, 1991, p. 242. BARRIOS GARCÍA, MONSALVO ANTÓN y
DEL SER QUIJANO. op. cit. doc. 67. CHACÓN GÓMEZ MONEDERO,
A. y MARTÍNEZ ESCRIBANO, P. Actas municipales del ayuntamiento de
Cuenca. Años 1417,1419 y 1420. Cuenca: Ediciones Ayuntamiento de Cuenca,
1994, p. 69. La recaudación daba lugar al fraude y se favorecía a la elite aldeana,
ver, BARTOLOMÉ HERRERO, B. Una visita pastoral a la diócesis de Segovia
durante los años 1446 y 1447, Apéndice. Cuaderno de la visita realizada a la
diócesis de Segovia durante los años 1446-47. En la España Medieval, 18, 1995,
p. 344.
60
Los tributos en GRASSOTTI, H. Un abulense en Beaucaire. Cuadernos de
Historia de España, XLIII-XLIV, 1967, pp. 135-137. UBIETO ARTETA, D.
Colección diplomática de Cuellar. Segovia: Diputación Provincial de Segovia, 1961,
docs. 21, 30, 32, 34, 54, 55, 93. Sáez, 1953, tits. 203, 223; DE COLMENARES.
op. cit. p. 437; SÁEZ. op. cit. 1956, docs. 29 y 75; FORONDA. op. cit., leyes
43, 45, 46; UBIETO ARTETA, D. Colección diplomática de Riaza (1258-1457).
Segovia: Segovia, 1959, ley 10a.; CASADO ALONSO, H.“Las relaciones poder
real-ciudades en Castilla en la primera mitad del siglo XIV”, In: Génesis medieval

112
comunidad, lejos de debilitarse, se fortalecía por la intermediación
del segmento superior comunitario, y en la medida en que el señor
acentuaba su exacción, se profundizaba la diferenciación social,
configurándose un proceso en el cual el protagonismo de las fuerzas
comunales endógenas no debería confundirse con un supuesto
carácter autónomo del movimiento social61.
De este mecanismo surgía también una especial forma de
vinculación entre los miembros superiores de la aldea y el conjunto
de los moradores signada por una subordinación política legitimada
por el señor. Se comprende la estratégica importancia de este factor
para el nacimiento del nuevo régimen de producción si se tiene en
cuenta que de este campesino rico surgiría el empresario del paño62.
Ello se vincula con el hecho de que se reunían en las aldeas de la zona
central castellana (en Segovia, Cuenca, Zamora y lugares cercanos)
las condiciones primarias (acumulación de dinero, proletarización
y autoritarismo local) que posibilitaron la subordinación del
trabajo por el capital. Es decir, se dieron entonces las condiciones

del estado moderno: Castilla y Navarra (1250-1370). Valladolid: 1987, p. 289 y 297.
Esto originó conflictos, ver, UBIETO ARTETA. op. cit., doc. 17.
61
En otros marcos analíticos se ha propuesto una visión estrictamente auto
centrada de la diferenciación económica de la comunidad, desligando la evolución
de la tensión social entre señores y campesinos. Al respecto, GLENIE. op. cit.
pp. 14-20.
62
Es difícil determinar el origen social de estos empresarios, pero las indicaciones
llevan a establecer que nacen de los tributarios ricos, ver, CABAÑAS
GONZÁLEZ, M. D. La caballería popular en Cuenca durante la Baja Edad Media.
Madrid: s.n., 1978, pp. 56, 57, 71, 76; RUIZ MARTÍN, F. Rasgos estructurales
de Castilla en tiempos de Carlos V. Moneda y Crédito, 96, 1966, p. 102; García
Sanz. O. Cit. 1987, Ap. doc. 2; en Madrid los tributarios tenían oficios textiles,
MILLARES CARLO, A. y ARTILES RODRÍGUEZ, J. Ayuntamiento de
Madrid. Archivo de villa: libros de acuerdos del concejo madrileño 1464-1600. Madrid:
Madrid Artes Gráficas Municipales, 1932, pp. 81, 173, 246, 349. Lo mismo se ve
en otras regiones, ver, KELLENMBEZ, H. Industries rurales en Occident de la fin
du Moyen Age au XVIII siècle. Annales, Economies, Sociétés, Civilisations, 5, 1963,
p. 840, DYER. op. cit. p. 325, y en especial, ZELL. op. cit. pp.189 y s. Esta tesis se
confirma por la interpretación general del proceso.

113
para la metamorfosis del dinero en capital y para el nacimiento de
una manufactura de paños de baja calidad destinados al consumo
popular, con variantes que incluían desde un control meramente
externo del mercader sobre productores independientes hasta el
característico Verlagssystem63. Como condición coadyuvante debe
anotarse la debilidad de la industria urbana tradicional y la ausencia
de reglamentaciones gremiales64.
Debemos entender entonces a este empresario como algo más
que un simple acumulador monetario dispuesto a invertir en capital
variable. Sus vínculos con la aldea eran extensos y múltiples, no
limitados a la esfera estricta de su empresa, y su accionar económico
se impregnaba de connotaciones culturales y políticas. La convivencia
con los moradores pobres, las relaciones de clientela, el control del
mercado laboral y la dirección política de la aldea, permitían al
“señor del paño” resolver el decisivo problema de la subordinación
y la vigilancia del trabajo, cualidades que están lejos de indicar
una disolución de la ancestral interacción comunal legalmente
sancionada (asambleas de concejos rurales, elección de autoridades,
etc.)65. Es por esto que debe recalcarse la importancia que adquirió
la sólida formación del sector marginal asalariado con residencia
en la aldea para que se concretara la subordinación capitalista del
trabajo. Mientras que las esperanzas del empresario para encauzar

63
GARCÍA SANZ. op. cit. 1977. IRADIEL MURUGARREN. op. cit.;
RUEDA FERNÁNDEZ, J. C. Introducción al estudio de la economía zamorana
a mediados del siglo XVI: su estructura poblacional en 1561. Studia Historica.
Historia Moderna, 3, 1984, p.125: en 1561, el 17,5 por ciento de la población activa
de Zamora se dedicaba a la producción textil; DÍAZ MEDINA, A. Cuenca en
1587: estructura socio-profesional. Studia Historica. Historia Moderna, 3, 1983, p.
21, en Cuenca en 1587, el 21 por ciento de la población censada trabajaba en el
paño.
64
DE COLMENARES. op. cit. pp. 380-381; MARTÍN EXPÓSITO, A. y
MONSALVO ANTÓN, J. M. Documentación medieval del archivo municipal
de Ledesma. Salamanca: Ediciones de la Diputación de Salamanca, 1986, doc. 2.
65
GARCÍA SANZ. op. cit. 1977, p. 211. Las asambleas de las comunidades eran
una institución central de la gestión.

114
al vagabundo bajo una relación económica regular chocaban con su
desordenada indolencia, se le ofrecía en compensación, en las aldeas,
una opción más favorable, la del asalariado con residencia, que por
una parte, ya asimilado como fuerza de trabajo complementaria en
la producción agraria, proporcionaba la mano de obra apropiada
para la producción textil, y por otra parte, en tanto individuo libre
de la dependencia económica señorial, acentuaba su supeditación
al segmento superior aldeano66. Es por ello de importancia decisiva
para el nacimiento de la industria rural el hecho de que la elite
comunitaria dispusiese de autonomía para actuar en la subordinación
de la fuerza de trabajo.
A esto se adicionaban una serie de condiciones favorables para el
surgimiento de una nueva rama económica. Si en el trabajo temporal
agrario los marginados residentes adquirían un entrenamiento en la
rutina ocupacional, su desamparo gremial y el sometimiento a una
relación personalizada, donde el empleador gozaba de derechos de
coacción física, abrían el camino de la sobreexplotación con ritmos
de trabajo intensos y reducción salarial67. Con la industria textil, la
falta de agremiación de estos trabajadores se perpetuó, y el conflicto
social adquiría una connotación individualizada que desdibujaba el
antagonismo entre clases68. Pero además, con el asalariado residente
se resolvía un aspecto estructural del primer capitalismo productivo,

66
IRADIEL MURUGARREN. op. cit. Apéndice, docs. 32, 25; VACA
LORENZO. op. cit. doc. 201. Artesanos poseedores de tierras en, DEL SER
QUIJANO. op. cit. 1987, doc. 63, 156, 163 y 164; UBIETO ARTETA. op. cit.
1961, docs 59, 137, 160.
67
SÁEZ. op. cit. 1953, tit. 131, el trabajo de los asalariados era reglamentado, y
estaban bajo un rígido control, idem, tits. 112, 128, 131; UREÑA y SMENJAUD.
op. cit. Fuero de Cuenca, 38,1. 46,16, 36, 7 y 36, 8. CASTRO y DE ONIS. op.
cit. Fuero de Zamora, tit. 68 y de Alba de Tormes, tit. 115, 76, castigos. También,
FRANCO SILVA. op. cit. pp. 130, 122-123; de los Llanos DE LOS LLANOS
MARTÍNEZ CARRILLO, M. La ganadería lanar y las ordenanzas de ganaderos
murcianos de 1383. Miscelánea Medieval Murciana, IX, 1982, p. 151.
68
ASENJO GONZÁLEZ, M. Transformación de la manufactura de paños en
Castilla. Las ordenanzas generales de 1500. Historia. Instituciones. Documentos,
18, 1991, p. 37.

115
que requería de un trabajador establecido en una unidad doméstica
con un mínimo de medios, estableciéndose así una continuidad
parcial con la forma de producción tradicional69. En esta persistencia
del antiguo modo material de producción se expresa la inmutabilidad
precapitalista de las fuerzas productivas en la primera transición, y
ello se corresponde con la debilidad de la inversión en capital fijo en
relación con el capital circulante70. Esto último es un aspecto más
que permitió la transformación del campesino rico en empresario del
paño, ya que en sus comienzos la industria rural requirió de un capital
monetario relativamente modesto. Por último, con la manutención
del marginal asalariado en los intersticios comunitarios y en su
pequeña tierra propia se daban las premisas materiales para que
la sobreexplotación pudiera realizarse, y como sostiene el análisis
clásico, desde Adam Smith en adelante, con esa base económica
se eximía el empresario de pagar el total de la reproducción de la
mano de obra. A pesar de estas condiciones favorables para que el
capitalista ejerciera un estrecho control coercitivo sobre la mano
de obra, la disciplina laboral estuvo lejos de resolverse en forma
satisfactoria: el trabajador pobre, que había hecho del hurto un
complemento de vida, difícilmente permutaba su conducta en el
nuevo marco productivo71. En el período nos limitamos a observar
los inicios de un escollo que se interponía a la creación de valores de
cambio, y que iba a desplegarse como problema económico y social a
lo largo de la llamada acumulación originaria de capital.

69
Referencias sobre el tejedor en su unidad doméstica,IRADIEL MURUGARREN.
op. cit. Apéndice, docs.10, 12, 20, 24, 13, año 1510, Ordenanzas de los tundidores
de Cuenca, p. 290.
70
GARCÍA SANZ, A. Segovia y la industria pañera, siglos XVI-XIX. In: Actas
del Congreso de Historia de la Ciudad Segovia 1088-1988. Segovia: 1991, p. 393; DE
SAN MARTÍN, A. Los Códigos españoles concordados y anotados. Madrid, 11,
1872-1873, t.11, la carencia de medios no había impedido la formación del nuevo
nexo laboral. La mayor proporción de capital circulante asimila a esta manufactura
a las tradicionales.
71
IRADIEL MURUGARREN. op. cit. Apéndice, docs. 6, 10.

116
Coexistencia entre feudalismo e industria rural

Este análisis remite entonces a una dinámica estructural que


se traduce en una compatibilidad originaria entre sistemas de
producción diferentes. Esta concurrencia de lógicas desiguales
se revela por una parte en el interior mismo de la aldea, donde
el objetivo de valores de cambio, que rige al empresario pañero,
coexiste con las formas tradicionales campesinas orientadas
hacia valores de consumo. Por otra parte, el mismo criterio de
articulación entre sistemas diferenciados permite comprender,
desde una doble perspectiva práctica y teórica, la existencia de
un sector limitado de producción capitalista en el seno de una
totalidad dominada por el régimen feudal de producción. Desde
el momento en que el proletario del Verlagssystem se originaba en
el campesino que por falta de recursos había caído por debajo del
mínimo para tributar, su trabajo para el empresario no afectaba
la renta del señor, que aceptaba la nueva forma de producción no
cualificada de las aldeas, e incluso la alentaba, ya que recuperaba
con el impuesto a la circulación del paño lo que había perdido por
exacción directa72. Esta circunstancia, que aumenta el volumen de

72
Id. Apéndice, docs. 28, 30; el trabajo no calificado doc. 24, el paño barato, doc.
31. ASENJO GONZÁLEZ. op. cit. 1991, p. 7, en 1497, los Reyes Católicos
preguntaban a los oficiales de Vitoria sobre la conveniencia de instalar sesenta
telares para que los pobres trabajen paños. Sobre industria rural en señoríos:
Luis LÓPEZ. op. cit. 1987b, p. 440; GONZÁLEZ ARCE, J. D. La industria
de Chinchilla en el siglo XV. Albacete: Diputación de Albacete, 1993, pp. 120,
158; PORTELA SILVA, E. La colonización cisterciense en Galicia (1142-1250).
Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela, 1981, p. 186;
RODRÍGUEZ LLOPIS, M. Señoríos y feudalismo en el reino de Murcia. Los
dominios de la Orden de Santiago entre 1440 y 1515. Murcia: Universidad de
Murcia, 1984, pp. 258 y s; IRADIEL MURUGARREN. op. cit. Apéndice,
doc. 20, p. 338. En Zamora, donde no había Verlagssystem sino un sistema de
pequeños productores que vendían a mercaderes, entre 1477 y 1495 el impuesto
a la venta de paños pasó de 80.000 maravedíes a 188.000 y las rentas de lana
hilada que se vendía para tejer se duplican, ver IRADIEL MURUGARREN,
P. “El Mediterráneo medieval y la idea de Europa.” Revista d’història medieval,

117
la renta, permite comprender que lugares como Segovia y Cuenca
fueran simultáneamente ámbitos de industria rural a domicilio y
de tributos señoriales sin encuadrarse en zonas marginales73. Por
consiguiente, de ninguna manera supone esto una disminución
de los controles jurisdiccionales de las aristocracias urbanas, que
siguieron garantizando la percepción de los tributos, entre ellos
los que gravaban la compra y venta de mercancías74. En más de un
aspecto, aquí se manifiesta la continuidad de antiguas prácticas de
los señores que protegían actividades secundarias y terciarias en
busca de mayores rentas75.
En otros aspectos, la industria rural a domicilio se veía
favorecida por prácticas consuetudinarias que se combinaban con
nuevas formas sociales. Cuando esta manufactura incorporaba de
manera creciente la mano de obra femenina para la producción del
hilado, es posible que se basara en una tradición general de mujeres

1995., pp. 528-529. También, DEL SER QUIJANO. op. cit. 1995, doc. 35 y
36; CHACÓN GÓMEZ MONEDERO y MARTÍNEZ ESCRIBANO. op.
cit. pp. 74-78, 81; DE FORONDA. op. cit. ley 47; DE MOXÓ, S. Campesinos
hacendados leoneses en el siglo XIV. León medieval. Doce estudios, León, 1978;
LADERO QUESADA, M. A. La hacienda real de Castilla en el siglo XV. La
Laguna de Tenerife, 1973, pp. 61 y s. Las rentas sobre la circulación dan una idea
sólo aproximada de la verdadera importancia de la industria rural, ya que habría
muchas operaciones que eludían los controles. Sobre esto para otra área, DYER.
op. cit.
73
La producción rural de textiles pudo darse en tierras estériles para la agricultura,
ver, IRADIEL, MURUGARREN. op. cit. Apéndice, doc. 28, pero en general, se
implantó en distintas áreas, incluidas las de altos excedentes de economía rural.
También, id, 1983, 1974, p. 53 y Apéndice, docs.1, 2, 3. Para revisar el concepto
de tierras marginales, BAILEY, M. The Concept of the Margin in the Late
Medieval English Economy. Economic History Review, XLII, 1989; HARVEY, B.
F. Introduction: The “Crisis” of the Early Fourteenth Century. In: Campbell, B. M. S.
(ed.). Before the Black Death. Studies in the “Crisis” of the Early Fourteenth Century.
Manchester: Manchester University Press, 1991, pp. 9-11.
74
Los “señores del paño” estaban bajo el mismo tratamiento en materia de rentas
que cualquier otro tributario, hecho que además habla de su origen plebeyo, ver,
CHACÓN GÓMEZ MONEDERO y MARTÍNEZ ESCRIBANO. op. cit.
pp. 76, 77, 81.
75
Por ejemplo, la producción del vino, ver, BARRIOS GARCÍA, MARTÍN
EXPÓSITO y DEL SER QUIJANO. op. cit. doc. 11 año 1268.

118
campesinas que trabajaban para pequeños mercados locales76. Por
su parte, los jóvenes segregados de la unidad doméstica campesina,
pero no desplazados a la condición de vagabundos, podían
encontrar en estos primeros talleres alternativas de existencia77.
También las aristocracias urbanas aportaron su contribución al
nuevo régimen económico mediante un flujo de créditos hacia los
empresarios fabricantes78, con lo cual adquiere una cierta relevancia
para la comprensión de los mecanismos específicos que en la región
posibilitaron el nacimiento del nuevo sistema, la existencia de una
producción mercantil simple en manos de los caballeros villanos.
Otras condiciones eran concurrentes para que se consumara
este desarrollo, como el ganado lanar en la aldea o cursos de agua
adecuadamente preparados.

Una comprensión de totalidad

En el caso que aquí se estudió, la industria rural a domicilio no


se origina en la declinación del feudalismo. El problema consistió
en analizar cómo la reproducción feudal originaba condiciones de
génesis del nuevo sistema. Con la creación de excedente primario

76
ASENJO GONZÁLEZ. op. cit. 1991, p. 26. IRADIEL MURUGARREN.
op. cit. doc. 20; DEL CANTO DE LA FUENTE, CORBAJO MARTÍN y
MORTEA VELAYOS. op. cit. pp. 80-81 y 135; PÉREZ BUSTAMANTE,
R. El régimen municipal de la villa de Potes a fines de la Edad Media. Apéndice
documental, Revista Altamira, 1979-1980, Apéncice Documental, pp. 201 y 203;
ÁLVAREZ LLOPIS, BLASCO CAMPOS y GARCÍA DE CORTAZAR.
op. cit. doc. 336.
77
IRADIEL MURUGARREN. op. cit. Apéndice, doc.13, p. 291-292, el
reclutamiento de los aprendices estaba sujeto a control; RUBIO VELA, A.
Infancia y marginalidad: En torno a las instituciones trecentistas valencianas
para el socorro de los huérfanos. Revista d’Historia Medieval, 1, 1990, siendo los
huérfanos una fuente de marginación, se colocaba a las niñas como sirvientas y
como aprendices a los varones.
78
GARCÍA SANZ. op. cit. 1987.

119
destinado a mercados externos, surgía una situación dual, de
polarización social en las aldeas y de preservación del régimen
señorial79. El empobrecimiento campesino se presenta así como
el costo social de un reordenamiento productivo que elevaba el
porcentaje de tierras destinadas a generar bienes comerciales frente
a los espacios de subsistencia. A esto se sumaban efectos propios
del régimen feudal que coadyuvaron a la polarización social en
las aldeas, como la renta o el constreñimiento jurisdiccional. En
estas condiciones, la reproducción del feudalismo generó efectos
secundarios disfuncionales (no una crisis terminal), evidenciándose
así una única racionalidad que, afirmando al señorío, establece un
principio de su negación. El problema teórico que subyace en este
análisis consiste en comprender que los aspectos contradictorios
del funcionamiento del modo feudal de producción se originan
en la oposición entre la creciente apropiación señorial del espacio
y los mecanismos de reproducción campesina, con lo cual, toda la
cuestión estriba en observar la pareja de estabilidad-modificaciones
de las relaciones de propiedad sobre la tierra con independencia del
esquema maltusiano. La parcelación de la tenencia no se dio en un
contexto de sobrepoblación. Este resultado de la dinámica feudal
tuvo como presupuesto condiciones que se dieron en determinadas
regiones, en particular, en aquellas donde las elites aldeanas gozaron
de libertad de acumulación y donde el campesino pobre quedaba
exento de tributación. Esa libertad no representó, por otra parte,
un síntoma de debilidad del señorío sino una de sus condiciones
de existencia, desde el momento en que el segmento superior de
las comunidades garantizaba el control social y la renta. Las nuevas
relaciones de producción fueron en parte una consecuencia de
efectos no intencionales de las relaciones de coacción y de propiedad

79
El señorío privado cohabitó con el de la Corona. Sobre esto UBIETO
ARTETA. op. cit. 1959, docs 35, 37, 46; SÁEZ. op. cit. 1956, docs. 155, 156,
157 y 158; CLAVERO, B. Mayorazgo. Propiedad feudal en Castilla. 1369-1836.
Madrid: Siglo XXI, 1989, pp. 103 y 104.

120
del feudalismo, es decir, de una evolución independiente de la fase
particular del ciclo demográfico, y en parte una consecuencia de la
voluntaria orientación hacia la producción de valores de cambio que
adoptó el segmento superior de la aldea como respuesta a las nuevas
condiciones80.
Esta articulación entre el sistema feudal y el nuevo régimen
económico no debe entenderse, sin embargo, de manera abstracta
y formalista. La compatibilidad inicial entre feudalismo e industria
rural (compatibilidad que presenta a la renta como la razón global del
feudalismo) se transforma, en el acaecer histórico, en una oposición
entre los objetivos de acumulación del empresario y el marco
sociopolítico dominante. El régimen tributario, en virtud del cual
los señores aceptan y estimulan en un principio la industria rural,
se manifiesta, en el mismo proceso, como un condicionamiento
negativo para la nueva manufactura81. De la misma manera fueron

80
Desde un punto de vista teorético, este encuadre presenta una similitud
con la proposición de BRENNER, R. The Low Countries in the Transition
to Capitalism. Journal of Agrarian Change, vol. 1, nº 2, 2001, p. 174, cuando
afirma que, “...the emergence of capitalist from feudal social-property relations
will occur only as an unintended consequence of lords and peasants pursuing
feudal type economic behaviour in order to achieve feudal goals”; también, p.
185 y s. Pero si bien este análisis se diferencia del esquema neoclásico, basado en
la racionalidad del actor individual, no cae en su simétrica antinomia objetivista,
desde el momento en que las acciones voluntarias de los agentes tuvieron su
significación en el marco estructural. Sobre un proceso independiente del ciclo
demográfico, idem, p. 203, proporciona una interesante ejemplo comparativo: en
las afueras de Courtrai y Lila, en el siglo XIII, con plena ocupación del espacio
por sobre población, encontramos campesinos produciendo para industria rural
a domicilio, y a fines del siglo XIV, en tiempos de caída demográfica, está el
ascenso de la industria del lino en los alrededores de Gante.
81
Cortes de 1436, p.260-262. ÁLVAREZ VÁZQUEZ, J. A. “Notas sobre el
comercio y precios de paños y lienzos en Zamora desde el siglo XVII al siglo XIX”,
Studia Historica. Historia Moderna, III, 1990, p. 40. ASENJO GONZÁLEZ,
M. Actividades económicas, aduanas, y relaciones de poder en la frontera norte
de Castilla en el reino de los Reyes Católicos. En la España Medieval, 19, 1996.
DOMÍNGUEZ ORTIZ, A. La desigualdad contributiva en Castilla durante el
siglo XVII. Anuario de Historia del Derecho Español, XXI-XXII, 1951-1952, p.

121
factores contrarios al nuevo sistema, la exportación de lanas o la
importación de manufacturas. Contra este conjunto de condiciones
se pronunciaron los empresarios del paño, desde comienzos del siglo
XV hasta culminar en la revolución de las comunidades castellanas
de 1520-152182. La derrota de las comunidades decidió la posterior
historia económica de Castilla. Con abstracción de otros atributos,
los gravámenes de la circulación mercantil (un símbolo elocuente
del entorno feudal) fueron un factor de bloqueo de la industria rural
a domicilio castellana, y esto se reflejó en la manufactura de paños
de Segovia y de Cuenca que, si bien alcanzó un pico de crecimiento
hacia la primera mitad del siglo XVI, sufrió desde entonces, y
hasta principios del XIX, estancamiento e incluso retroceso83. La
precisión interesa por los problemas interpretativos.
El estudio de la primera transición del feudalismo al
capitalismo, ha discurrido por dos carriles, que podemos denominar
como la dinámica estructural o la lucha de clases. El primero está

1226: el impuesto a la circulación afectaba más a los trabajadores que, sin producción
propia, debían adquirir bienes de primera necesidad. Muchos son los ejemplos en
los que se ve al señor autorizando ferias y mercados como medio de extracción de
rentas. La alcabala como causa de la ruina de las manufacturas españolas es una
opinión que se encuentra en SMITH, A. Investigación sobre la naturaleza y causas
de la riqueza de las naciones. México: Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 797.
82 
Este conflicto se planteó muy agudamente en lugares de predominio de
caballeros ganaderos y de industria rural a domicilio; ver, BENITO RUANO, E.
Lanas castellanas: ¿Exportación o manufacturas. Archivum, XXV, 1975, pp. 123
y s.; IRADIEL MURUGARREN. op. cit. pp. 172 y s., Apéndice, doc. 18, pp.
327 y 328; ASENJO GONZÁLEZ. op. cit. 1986, pp. 205-206 y 216; GARCÍA
SANZ. op. cit. 1977, p. 212. A nivel del reino, Cortes, 3, pp. 340, 721-723. El eje
de análisis que aquí planteamos, en PEREZ, J. La revolución de las comunidades
de Castilla (1520-1521). Madrid: Siglo XXI, 1977, passim, y espec. p. 682 como
conclusiones, muestra la formación de este bloque y la participación de las
aristocracias locales junto a los señores. También, YUN CASALILLA, B. Sobre la
transición al capitalismo en Castill: Economía y sociedad en Tierra de Campos (1500-
1830). Junta de Castilla y León: Consejería de Educación y Cultura, 1987, p. 94.
83
GARCÍA SANZ. op. cit. 1977, p. 56; Id. 1991, p. 388, en el año 1561 de la
población activa de Segovia el 57,4 por ciento se ocupaba del obraje de los paños,
en 1586 bajó al 50,8. También, DÍAZ MEDINA. op. cit. pp. 33-34.

122
representado por Guy Bois, y es el que deparó nuestra atención en
este estudio, y el segundo por Robert Brenner. La observación del
proceso, en el campo aquí delimitado, autoriza a combinar las dos
perspectivas, y obtener proposiciones interconectadas en una visión
de conjunto.
La explicación del conflicto de clases no es por sí misma evidente.
La razón es sobriamente empírica: la lucha de los campesinos
medievales tuvo una fase secular deprimida, desde los siglos VIII o
IX hasta mediados del siglo XIV. La lucha de clases se nos presenta
así atada al movimiento del feudalismo.
Los análisis de Hilton84, han establecido que los programas de
transformación revolucionaria no surgieron del campesino pobre
o medio sino del campesino rico, que era también un acumulador
capitalista. El problema consiste entonces en examinar el origen de
ese sujeto de la transición, o sea, de una estructura de clases que no
puede explicarse, como sostiene Brenner, en sus propios términos85.
Necesariamente la atención debe dirigirse hacia el movimiento de
la estructura. Ésta fue la preocupación de Bois, que concibe una
única lógica de funcionamiento y de transformación. Reconocido su
mérito, agreguemos de inmediato que su fallo estuvo en el esquema
homeostático maltusiano.
Liberados de esa prisión conceptual por la riqueza del objeto
real en su puro estado fáctico, constatamos que es la dinámica feudal
la que crea al nuevo sistema por una causalidad que hunde sus raíces
en relaciones de propiedad y de apropiación del excedente. Ese

84
HILTON, R. Siervos liberados: Los movimientos campesinos medievales y
el levantamiento inglés de 1381. Madrid: Siglo XXI, 1978; HILTON, R. The
English Peasantry in the Later Middle Ages. Oxford: Clarendon Press, 1978.
85
En una declaración anterior a sus célebres artículos que desencadenaron el
debate, BRENNER, R. The Origins of Capitalist Development: A Critique
of Neo-Smithian Marxism. New Left Review, 104, 1977, p,68, afirma : “…
the emergence of this specific and crucial set of class relationships cannot
be explained in terms of so-called objetive, or economic, forces, but must be
understood, at least to some extent, in its own terms: that is, as the autcome of
political processes, in particular a series of previous class struggles”.

123
mismo núcleo problemático permite comprender la crisis de auto
subsistencia campesina, que, sumada a factores exógenos como la
peste, dio una mortalidad catastrófica. La explicación remite a los
fundamentos del modo de producción. El nuevo régimen económico
surgía entonces en compatibilidad con el régimen dominante,
aunque en esa compatibilidad radica la causa de la incompatibilidad.
Ante el empresario capitalista se abría la alternativa de la acción
para liberarse de todo el entramado sociopolítico y socioeconómico
que restringía su desarrollo. El movimiento de la estructura y el
movimiento del sujeto no son pues dos polaridades que se excluyen
mutuamente. Por el contrario, entran en el drama de la llamada
acumulación originaria con roles protagónicos diferenciados en
escenas separadas e íntimamente conectadas.
Con el sujeto de la transición, se presenta la lucha de clases,
y con ella (en la medida en que los resultados del enfrentamiento
no están nunca decididos por anticipado) los meros accidentes. La
historia es el campo de la más estricta necesidad y de la más aleatoria
contingencia. Es la negación del indeterminismo irracional y de
la determinación teleológica. No es ésta una premisa teórica sino
una fórmula que conceptúa las divergentes trayectorias históricas
de los países. En Inglaterra, los acumuladores capitalistas que se
rebelaron en 1381 terminaron por obtener sus reivindicaciones en
la centuria siguiente. Inglaterra lograba así una posición excepcional
en la marcha al capitalismo, y ello se habría debido al resultado
del conflicto, sin incidencia de una crisis de la clase dominante86.

86
Hacia 1520, cuando los comuneros de Castilla eran derrotados, empresarios
del paño ingleses habían logrado una considerable acumulación de riquezas, ver,
Cornwall, 1964-1965. Se han discutido los alcances de 1381 en el desarrollo
de Inglaterra. En especial, si el aumento de la libertad campesina y de los
arrendamientos capitalistas en el siglo XV fueron resultado de la lucha de
clases, tesis tradicional marxista, o fueron resultado de fuerzas económicas.
Aquí seguimos la primera explicación. Pero aun rechazándola en su forma
más contundente, debe admitirse que 1381 no detuvo la marcha hacia mejores
condiciones de acumulación capitalista. Entre 1330 y 1500 cayó la servidumbre,
mejoraron las condiciones de comercialización para el campesino y crecieron las
áreas textiles. Ver, BRITNELL. op. cit. pp. 202 y s.

124
Un círculo de explicaciones políticas que en cierto momento se
imaginaron deberían abandonarse: los señores ingleses no sufrieron
pérdidas con la prolongada guerra con Francia ni se empobrecieron
con la lucha entre los York y los Lancaster87. En Castilla, por
el contrario, la derrota de los empresarios del paño llevó a un
prolongado bloqueo del desarrollo capitalista.

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139
A economia escravista romana.
Reflexões sobre conceitos
e questões de números na
historiografia do escravismo

Carlos Garcia Mac Gaw

A escravidão é uma instituição que esteve presente em um


importante número de sociedades estudadas pela História. Como
observou Patterson,1 seus aspectos sociológicos revelam elementos
que se repetem nas diferentes sociedades em que aparecem e
permitem desenvolver alguns critérios de aproximação unitária
para seu estudo. Todavia, os aspectos econômicos não são tão
uniformes. Em geral, parte-se da ideia de que existiram, por um
lado, sociedades com escravos e, por outro, sociedades escravistas
ou sociedades nas quais se instalou o “sistema escravista”.2 As
primeiras são recorrentes na história humana, as segundas não
passam de um punhado. Entre este último grupo se encontram
o mundo Greco-romano e o sul dos Estados Unidos, o Caribe e
o Brasil do século XVII ao XIX, duas áreas que têm sido objeto
de estudos comparativos especialmente centrados nos aspectos
econômicos.
A análise da escravidão antiga tem sido fortemente
condicionada pela moderna, e não podia ser diferente. Não vale a
pena debater aqui a pertinência de “reconstruir” o passado, ou de

1
PATTERSON, O. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
2
DAL LAGO, E. & KATSARI, K. The Study of Ancient and Modern
Slave Systems. In: (ed.). Slave Systems. Ancient and Modern. Cambridge: The
University of Campbridge Press, 2008. p. 3.

141
observar uma sociedade passada“tal como ela foi”, como se se tratasse
de um processo arqueológico de dar à luz um objeto enterrado que,
porém, neste caso, dar-se-ia através do discurso histórico. Afirmo
apenas que entendo que este passado é recuperado através de seus
testemunhos, mas ressignificado no presente. A intenção deste
artigo é refletir sobre alguns aspectos específicos do estudo da
escravidão antiga, relacionando-os a certas perspectivas que têm
sido construídas desde a modernidade.
Moses Finley3 traçou o caminho seguido pelo estudo da
história da escravidão antiga, ligando-o, em sua origem, ao começo
do século XIX, com o avanço das ideias abolicionistas.4 Torna-
se claro que o interesse pela escravidão antiga foi desencadeado
pela centralidade que adquiriu a problemática socioeconômica
da escravidão moderna em relação à revolução industrial e, desde
então, ambas têm andado de mãos dadas. O autor faz distinção
entre dois tipos de enfoque nos estudos sobre a escravidão, o moral
e o sociológico.5 O segundo destes enfoques foi desenvolvido
principalmente por aqueles autores que Finley qualifica como
“economistas”, que desde meados do século XVIII “examinaram a
riqueza, o trabalho, a produção e o comércio em termos que hoje
chamaríamos ‘econômicos’ e que, frequentemente, utilizavam-se
de uma dimensão, ou perspectiva, histórica”.6 O ponto principal
que se destacou em tais estudos foi a ineficiência relativa do

3
FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Graal,
1991. pp. 13-68.
4
Id. “[…] a opinião geral, hoje, é que o interesse moderno pela escravidão antiga
‘despertou com a ideia de liberdade no século XVIII, com o início da moderna
crítica social construtiva’ e de que o clímax deste impulso inicial ocorreu em
1847, com a publicação da Histoire de l’esclavage dans l’antiquité de Henri Wallon”
(a citação é de S. Lauffer). Ver, acerca da evolução desta instituição entre a
antiguidade e o mundo moderno, PHILIPS JUNIOR, W. D. La esclavitud
desde la época romana hasta los inicios del comercio transatlántico. Madrid: Siglo
XXI Ed., 1989.
5
Id., pp. 13-14.
6
Id., p. 30.

142
trabalho escravo em relação ao livre, em razão de seus maiores
custos. Poderíamos dizer que uma parte do substrato analítico da
escravidão moderna se susteve principalmente em perspectivas
econômicas que analisaram a mesma como um fator de produção
da empresa capitalista, quer dizer, o fator trabalho, habilitadas
em boa medida pela visão que inaugurava a economia liberal
de mercado. Desta forma, abriu-se caminho para um tipo de
raciocínio mais próprio do discurso econômico que histórico para
a análise da escravidão e que, junto com os critérios humanistas
que sustentaram as posições abolicionistas, embasou argumentos
a favor e contra a eficiência do trabalho escravo, especialmente no
período pré-guerra norteamericano.
A problemática da escravidão americana teve um ponto de
inflexão com o desenvolvimento da luta pelos direitos civis na
década de 1960. De acordo com Carandini, este movimento
acabou com a “invisibilidade histórica dos afroamericanos”7 e, a
partir deste momento, os estudos se multiplicaram. Uma etapa
fundamental deste debate se abriu com o livro de Fogel e Engerman,
Time on the cross, no qual era questionado o corrente pressuposto
da superioridade produtiva do trabalho livre sobre o escravo.
Nesta relação entre os períodos históricos, a escravidão tem
sido o nexo, mas o núcleo central desta articulação, de forma
inconsciente ou explícita, é o sistema de plantation. Contribuíram
para isto, entre outras coisas, a disponibilidade fragmentária
das nossas fontes, a tentação de “reconstruir” a escravidão
antiga complementando-a com os dados socioeconômicos mais
completos que provêm da moderna, o desenvolvimento dos estudos
comparativos e, finalmente, a própria natureza do corpus mais
completo de que nós antiquistas dispomos: os agrônomos latinos.
A plantation escravista é o modelo sobre o qual se organizou a
exploração do trabalho forçado na América moderna e esse modelo

7
CARANDINI, A. (ed.). Settefinestre. Una villa schiavistica nell’Etruria romana.
Modena: Ed. Panini, 1985. p. 187.

143
tem sido tomado também para o mundo antigo, em particular para
o romano.
A princípio não tenho objeções ao método histórico
comparativo, especialmente quando nossos dados são
fragmentados. A maioria de nós estaria imediatamente disposta
a indicar certas precauções a serem tomadas na medida em que a
comparação entre estas sociedades escravistas supõe uma brecha
de 2000 anos. Todavia, de fato, é bastante comum ler nos textos
sobre o mundo antigo clássico pelo menos algumas referências
ao tipo de organização do trabalho escravo agrícola relacionadas
às plantations americanas. Analisaremos isto de forma um pouco
mais profunda.

A sociedade escravista e o “sistema escravista”

Observemos primeiro a maneira pela qual se constrói a


percepção da sociedade escravista antiga. Quer dizer, em função
de que elementos consideramos que uma sociedade é “escravista”
enquanto outra não é. Para isto, os historiadores elaboraram
diferentes explicações. Uma foi indicada com clareza por Hopkins
e pressupõe um número relativo de escravos em relação aos livres,
que oscilava entre 30 e 35%.8 Finley retomou algum desses números,
mas para criticar o que ele chamava de “jogo dos números”, já que
entendia que “o testemunho não permite uma quantificação real”9.
Em ambos os casos a referência às porcentagens da escravidão
americana estão presentes. Desta maneira, é interessante observar

8
HOPKINS, K. Conquistadores y Esclavos. Barcelona: Ed. Península, 1981. pp.
127-129.
9
FINLEY, M. op. cit. p. 82. Cf. PATTERSON, O. op. cit., pp. 483-505,
com tabelas comparativas de diferentes sociedades. Para o autor, os sistemas
escravistas de ampla escala eram aqueles em que a estrutura social era
decisivamente dependente da instituição da escravidão. Dependência que era
frequentemente, mas não necessariamente, econômica.

144
que esta definição não é ingênua, para além da crítica feita por
Finley. A proporção de escravos em relação aos livres pressupõe
uma escala da instituição que terá consequências significativas
no conjunto da sociedade, seja de um ponto de vista cultural, em
relação à estrutura familiar, no plano econômico etc.
A segunda maneira de resolver a questão de se uma sociedade
é escravista está relacionada a aspectos que foram indicados no
parágrafo anterior. Novamente, Finley resume a ideia ao indicar que
o lugar dos escravos em uma sociedade não está relacionado com
seu número total, mas com sua situação em dois aspectos: quem
são os seus proprietários e que papel eles ocupam na economia.10
De acordo com alguns dados analisados, o autor entende que os
escravos sobressaíam na produção em grande escala no campo e
nos setores urbanos e, portanto, “proviam a maior parte da renda
imediata obtida com o direito de propriedade”.11
As definições de Dal Lago & Katsari se ajustam
aproximadamente à proposta de Finley: para eles, a escravidão
define um “sistema escravista” provendo o fundamento de uma
economia na qual (a) a riqueza da elite e a propriedade escrava
eram duas noções intrinsecamente conectadas; (b) uma grande
parte do comércio girava ao redor da compra e venda de escravos;
(c) uma alta porcentagem dos trabalhadores estava escravizada; (d)
as propriedades rústicas e outros tipos de instituições se baseavam
nos benefícios realizados pela escravidão para sua prosperidade.12
Argumentar que a escravidão define o sistema escravista
poderia parecer tautológico. Contudo, devemos ter em conta que

10
FINLEY, M. op. cit., pp. 83.
11
FINLEY, M. op. cit., p.84; STE. CROIX, G. E. M. de. The Class Struggle in
the Ancient Greek World: From the Archaic Age to the Arab Conquests. Nova York:
Cornell University Press, 1981. pp. 160 ss., tem uma posição similar e, ainda que
amplie a ideia ao assinalar que a classe dos proprietários extrai a maior parte de
seu excedente da população trabalhadora mediante o trabalho não livre, admite
que é possível falar de uma “economia escravista”, mesmo que com reticências.
(cf. pp. 71 e 161).
12
DAL LAGO & KATSARI. op. cit., pp. 4-5.

145
os autores tratam aqui de realizar uma abstração sobre o conceito
de “sistema escravista”. Para eles, a escravidão define o sistema
escravista porque provê os fundamentos da economia. Convém
deter-se nisto para afirmar completamente que, quando falamos
da sociedade romana entre os séculos II a.C. e II d.C., estamos
falando efetivamente de uma sociedade “baseada no sistema
escravista”. Isto supõe analisar o alcance de tal “sistema escravista”,
assim como do conceito de “fundamento da economia” (entendendo
que ele significa pensar no que funda, o que estrutura e organiza o
funcionamento da economia de uma sociedade).
Para Dal Lago & Katsari, o uso do termo “sistema escravista”
refere-se explicitamente à difusão da instituição da escravidão
(uma instituição baseada no modo de produção escravista e
no sistema de trabalho) na economia e na sociedade daquelas
regiões, países e Estados que eram partes interconectadas de uma
área de mercado unificado.13 Ainda assim, assinalam que, em
certo sentido, o conceito de “sistema escravista” se articula com
a definição de “sociedade escravista”, primeiramente formulada
por M. Finley e logo utilizada por K. Hopkins e I. Berlin. De
acordo com esta definição, diferentemente de uma “sociedade com
escravos”, em uma “sociedade escravista” a escravidão se encontrava
no coração da vida econômica e social de uma cultura particular e a
influenciava de tal forma que criava uma extensa classe de senhores
escravistas que efetivamente detinha um grande poder e o exercia
sobre a população não escrava. Esta última afirmação articula o
sistema escravista com o modo de produção escravista e o sistema
de trabalho, algo que é bastante frequente. O modo de produção
escravista, identificado com o sistema de trabalho, aparece como o
fundamento da economia.
Deixemos de lado essa imagem impressionista (“o coração da
vida econômica”) usada para explicar os fundamentos do sistema
econômico e nos concentremos nas ideias que parecem mais

13
Id., p. 5.

146
vigorosas. É interessante destacar que Finley afirma que os homens
livres dominavam a agricultura de subsistência, enquanto “os
escravos predominavam, e quase monopolizavam a produção em
larga escala no campo e na cidade”. Por consequência, “os escravos
proviam a maior parte da renda imediata obtida com o direito de
propriedade pelas elites econômicas, sociais e políticas,”14 o que
corresponde ao ponto (c) de Dal Lago & Katsaris. O fundamento
desta explicação, surpreendentemente, não é numérico. Finley indica
que em todas as unidades produtivas maiores do que as domésticas
o trabalho constante era composto por escravos. Se nestas
unidades existia arrendamento camponês, então se reproduzia o
esquema: ou se baseava na unidade doméstica camponesa ou, no
caso das grandes unidades arrendadas, empregavam-se escravos.
Na realidade, a questão não se resolve facilmente e deve ser tratada
de forma mais detalhada.
À medida que avançamos, fica claro que o “enfoque qualitativo”
que deveria sustentar a caracterização da sociedade escravista
nos faz retroagir a aspectos quantitativos. Enumero alguns: (1)
a qual porcentagem do total correspondia a produção agrícola
escrava em relação à livre proprietária no Império Romano?; (2)
a qual porcentagem corresponde a renda da terra dos colonos
(camponeses livres arrendatários) em relação aos escravos nos
grandes domínios?; (3) qual a porcentagem dos proprietários de
terra que conformam a elite que obtém a maior parte dos seus
rendimentos da renda escrava em relação àqueles que os obtém da
renda paga pelos colonos?15 Estes três pontos são suficientes para
organizar uma análise que não nos conduz a resultados evidentes.
Sobre o primeiro ponto, boa parte dos historiadores concorda
que o grosso do PIB do Império Romano estava composto pelo

14
FINLEY, M. op. cit., pp. 84.
15
Refiro-me à elite econômica, social e política como está indicada por Finley, na
medida em que o autor afirma, com justo critério, a importância de saber quem
eram os proprietários de escravos. Id., p. 83-84.

147
produto proveniente do trabalho do pequeno proprietário.16
Ademais, seria importante conhecer qual era o número de escravos
que trabalhava nas unidades domésticas ou nas pequenas oficinas
cujo produto se somava ao dos pequenos proprietários. Isto é,
existe um percentual da renda escrava que compõe o produto do
trabalho livre além da plantation escravista. Poderíamos pensar
em aplicar para Roma o modelo que Jameson desenvolveu para
Atenas, que supõe uma contabilidade distinta e põe em discussão
o sistema de trabalho da plantation como elemento econômico
básico da sociedade escravista.17
O segundo ponto indica a impossibilidade de chegar a algum
número que permita estimar o percentual da renda escrava no
componente da renda agrária dos grandes domínios.18 Os colonos
eram um componente central da organização do domínio e
provavelmente esta era a forma de exploração do trabalho mais
difundida no território do Império.19 Os escravos dos colonos

16
FINLEY, M. op. cit., p.80. Sobre a coexistência do trabalho livre com o
escravo em tempo e espaço cf. Rathbone que afirma a interdependência de
ambos para garantir a rentabilidade da villa escravista em RATHBONE, D.
W. The Development of the Agriculture in the ager Cosanus during the Roman
Republic: problems of evidence and interpretation. Journal of Roman Studies. n.
71. Londres: The Roman Society, 1981. pp. 13-15.
17
JAMESON, M. H. Agriculture and Slavery in Classic Athens. Classical
Journal. n. 73, 1977/1978.
18
Vale a pena esclarecer que se tomamos por modelo de plantation a villa, ficam
de for a outros tipos de grandes propriedades. Cf. meu trabalho em que critico,
por um lado, a maneira em que têm sido lidos os agrônomos latinos e, por outro,
a pretendida uniformidade dos grandes domínios. GARCIA MAC GAW,
Carlos. La transición del esclavismo al feudalismo y la Villa esclavista. DHA,
2006. pp. 32-37.
19
Para a Itália: Cat De Agr. 1.3, 6, 136; Var. RR 1.16.4, 1.17.2; Col. RR 1.7;
Plin. Ep. 3.19.6; 7.30.2-3; 9.15.1, 36.6 e 37. KEHOE, Dennis P. Investment,
Profit and Tenancy. The Jurists and the Roman Agrarian Economy. Michigan:
University of Michigan Press, 1997. pp. 3-5; GARNSEY, Peter, Famine and
Food supply in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge University
Press, 1988. pp. 94-96; STE. CROIX, G. E. M. de. op. cit., p. 161.

148
contribuíam com um montante incerto para o trabalho desses. Se
estes colonos exploravam pequenas parcelas, então este trabalho
escravo estava organizado fora da lógica da grande plantation
e reproduzia a estrutura doméstica. Se, por outro lado, tratava-
se de grandes colonos que só usavam trabalho escravo, temos
um caso típico de plantation escravista. Mas se estes colonos
combinavam a exploração do trabalho escravo centralizado com o
subarrendamento de terras do domínio, então a estrutura anterior
se repete. Convenhamos que o mais provável seja que certas áreas
do domínio fossem exploradas diretamente por meio de escravos,
enquanto outras eram exploradas indiretamente através de
arrendatários.20
O terceiro ponto nos leva a relacionar o problema com as
classes proprietárias. Suponhamos que não nos importemos com
as objeções levantadas no segundo ponto e tomemos como válido
o critério de Finley21 e Ste. Croix22 para caracterizar a sociedade
romana como escravista, visto que o grosso da produção dos
patrimônios da classe proprietária provinha da força de trabalho
escrava. A dita renda era obtida nas terras que tradicionalmente
têm sido apontadas como o coração escravista do Império, Itália e
Sicília,23 quer dizer, as áreas nas quais o “sistema escravista” havia
se desenvolvido plenamente. Imediatamente, apresenta-se um
problema: de acordo com a definição de classe escravista proposta
por nossos autores, devemos supor que o grosso da renda escrava
era apropriada nas propriedades situadas em determinadas regiões.
Abrem-se, assim, várias hipóteses: (1) Se a elite possuísse
suas terras ao longo de toda a extensão do império, então deveria

20
Vejam-se as fontes citadas na nota anterior. Sobre Plínio veja-se também
MAC GAW, C. La ciudad-estado y las relaciones de producción esclavistas en
el Imperio Romano. In: GALLEGO, J. & MAC GAW, C. (orgs.). La Ciudad
en el Mediterráneo Antiguo. Buenos Aires: Ed. Del Signo, 2007. pp. 103-110.
21
FINLEY, M. op. cit., p. 83.
22
STE. CROIX, G. E. M. de, op. cit., p. 161.
23
FINLEY, M. op. cit., p. 82.

149
ocorrer que a renda obtida com o trabalho livre em cerca de 80%
de tais terras (trata-se de uma estimativa frouxa) não chegava a
se equiparar à renda agrária escravista produzida pelos 20%
restantes, representados pela Itália e pela Sicília e, por isso, o
componente da renda escravista seria percentualmente maior, para
os proprietários, do que a renda proveniente dos colonos. Isto já se
mostra falso mesmo antes de considerarmos os aspectos relativos
à distinta eficiência produtiva de ambos os sistemas de trabalho.
(2) Pelo contrário, se a elite possuísse terras apenas na Itália e na
Sicília, quer dizer, em 20% do total das terras do Império, então
deveríamos nos perguntar nas mãos de quem estavam as terras
distribuídas pelo resto das províncias. O que nos levaria à suposição
de que havia outra elite proprietária tão ou mais poderosa do que
a itálico-siciliana escravista, de acordo com o volume de terras de
que dispunham.24 Tal ideia é um absurdo.25
A conclusão óbvia é que a classe proprietária dispunha
de terras aleatoriamente por toda parte além da Itália; que,
provavelmente, boa parte dessas terras não fazia parte do “coração
escravista” e que, portanto, fossem trabalhadas em sua totalidade,
ou majoritariamente, por colonos e, em menos proporção, pelos
escravos.

24
Uma suposição que de forma matizada nos recorda a análise de Staerman,
em que o fim do período escravista é produto do enfrentamento entre a classe
dos proprietários escravistas representados pelo governo do Principado e a
classe dos latifundiários representados pelo governo triunfante do Dominato.
STAERMAN, E. La caída del régimen esclavista. In: BLOCH, M. et al. La
Transición del esclavismo al feudalismo. Madrid: Akal, 1981. pp. 102-104.
Cf. também McKEOWN, N. The Invention of Ancient Slavery? Londres:
Duckworth, 2007. pp. 52-76.
25
A composição da classe senatorial indica por um lado que a elite provinha de
diferentes zonas do império, especialmente a partir do Principado em diante.
Por outro lado, parte dos aristocratas romanos possuía terras ao longo de todo
o império. Desta forma podemos falar de uma aristocracia proprietária e não
de duas ou mais. Em suma, podemos assinalar a existência de uma aristocracia
central (cuja origem varia ao largo do tempo) ligada ao aparato do Estado
republicano ou imperial e de aristocracias locais provinciais que se integravam
àquela por mecanismos complexos de cooptação. O governo do Império era
produto da articulação destes dois níveis da classe dominante e não de uma
competição entre eles.

150
Não encontro nenhuma razão satisfatória para priorizar a
renda produzida pelo trabalho escravo nas propriedades da Itália-
Sicília sobre aquela produzida pelo trabalho livre no resto das terras
imperiais na hora de caracterizar a classe dominante. E vale a pena
recordar que, voltando ao segundo ponto, devemos problematizar
o componente da renda escrava nas unidades produtivas escravistas
da Itália e da Sicília.
Como se pode observar, voltamos às questões numéricas
sem resolução. O alcance relativo ou, caso prefira-se, a difusão
do escravismo na sociedade romana não é quantificável dada a
carência de fontes. No máximo podemos realizar boas suposições.
O que nos leva a desenvolver um tipo de análise que não poderá se
sustentar em testemunhos quantitativos e envolverá uma boa dose
de especulação. Isto não quer dizer que os raciocínios não tenham
fundamento, mas deve se deixar claro que nunca poderemos
realizar o tipo de afirmação que desejaríamos na hora de
caracterizar a economia romana como definitivamente escravista,
algo como: “45% dos trabalhadores rurais do império eram escravos
e, portanto, a produção rural estava baseada majoritariamente na
exploração da força de trabalho escrava”.
Neste sentido, creio que a resolução do debate acerca do papel
do escravismo na economia romana basear-se-á, de forma mais
adequada, em apreciações conceituais ligadas, de certa maneira, a
aspectos factuais. Referir-se a “apreciações” obviamente marca um
grau de incerteza em relação aos fatores que são utilizados para a
construção de tais conceitos.

Aspectos comparativos: alcance do sistema e classe


dominante

Para aprofundar a análise dos elementos observados até


aqui, utilizarei em meu auxílio um estudo de caso de um período

151
e um lugar distintos. Engerman e Genovese26 resenharam o
trabalho de Martins Filho e Martins sobre o funcionamento da
economia escravista na região de Minas Gerais, Brasil, por volta
do ano de 1870. Esta zona estava ligada diretamente a regiões cuja
produção era voltada para a exportação, entre as quais a do café
era dominante na vizinha Zona da Mata exportadora. Contudo,
nesta região não existiam produtos exportáveis que expliquem a
importância contínua da escravidão. Os autores comparam o caso
com a economia da Virgínia, em 1860, onde havia alguns poucos
produtos alimentícios exportáveis – inclusive trigo – assim como
escravos para abastecer o sul. Se alguém observasse isoladamente a
Virgínia, como o Kentucky ou a Carolina do Norte, poderia ficar
perplexo com a importância da escravidão e as razões de sua longa
existência e sobrevivência. De fato, poder-se-ia ter perguntado
se a Virgínia seria capaz de manter a escravidão sem depender
de sua integração em uma economia mais ampla exportadora de
bens primários produzidos por escravos. Engerman e Genovese
afirmam que não há nada neste artigo que refute a tese corrente de
que a existência da plantation voltada para a exportação constituiu
a condição sine qua non da possibilidade e da sobrevivência da
escravidão como sistema de trabalho.
Engerman e Genovese se apoiam na ideia de que o sistema
comercial de escravos africano demonstra que a economia de Minas
Gerais, ainda que autárquica, deve ser analisada no contexto da
sociedade brasileira em seu conjunto. O abastecimento de escravos,
que os autores reconhecem como vital para a economia provincial,
seria impensável sem o sistema da plantation exportadora vigente
nas outras províncias. Os autores se perguntam, por exemplo, qual
teria sido o preço dos escravos se a escravidão brasileira em seu
conjunto tivesse possuído as características da economia de Minas

26
ENGERMAN, Stanley & GENOVESE, Eugene. Comments on “slavery in
a Nonexport Economy” III. The Hispanic American Historical Review, vol. 63,
n°3, aug. 1983.

152
Gerais, e se os escravistas de Minas Gerais teriam sido capazes de
pagar pelas importações de escravos se não tivessem dependido dos
retornos do setor exportador. Ainda que o intercâmbio estrangeiro
não precise ter sido gerado por exportações externas para permitir
aos escravistas de Minas a compra de escravos e mercadorias
variadas, os fundos indispensáveis para tanto devem ter sido obtidos
ou através de vendas no Brasil ou a residentes locais que podiam
estar ligados a mercados mais amplos. Em caso contrário, teria
ocorrido, obrigatoriamente, uma acumulação prévia de riqueza
pelos senhores escravistas. Assim, subsiste a questão das origens
dos fundos e de suas possíveis implicações internacionais. E, na
medida em que os preços dos escravos brasileiros permaneceram
altos até 1880, também subsiste o tema relativo a que mercadorias
os escravos produziam e se (e onde) eram vendidas.
Engerman e Genovese27, apoiando-se em Marx, sugerem que
um colapso total do mercado teria levado os escravistas do Novo
Mundo a alguma forma de economia natural e, provavelmente,
a meios mais apropriados de organização e coerção do trabalho.
Neste sentido fundamental, a escravidão, e inclusive as
sociedades escravistas, como as do sul da União norte-americana,
permaneceram sempre enredadas ao modo de produção capitalista
e não podiam gerar um modo de produção escravista alternativo
nostálgico daqueles do mundo antigo. O que se demonstra no livro
que resenham, segundo Engerman e Genovese, não é que o sistema
escravista pode existir sem o mercado mundial, mas que o sistema
escravista – neste caso o do Brasil como um todo, que dependia
do mercado mundial – podia expulsar e sustentar subsistemas
econômicos baseados na escravidão e, não obstante, isolados do
setor de mercado.
Se a sobrevivência da escravidão em Minas Gerais dependia
da sobrevivência da escravidão no setor exportador da plantation
na economia brasileira mais geral, e se podia se esperar que as

27
Id., p.588.

153
condições específicas da economia provincial gerariam formas
não-escravistas de coerção do trabalho, o que de fato deveria
ser perguntado é por que a escravidão persistiu ao invés de dar
lugar a alternativas que se mostravam mais atraentes tanto para
os senhores quanto para os trabalhadores em outros períodos
históricos e em outras partes do mundo. Nas áreas produtoras
de açúcar do Nordeste, haviam coexistido desde muito tempo
relações escravistas e senhoriais, de modo que a transição direta de
uma forma de trabalho compulsório a outra não pôs em questão
o poder dos senhores de engenho. Os autores imediatamente
pensam em formas nas quais a escravidão se transformara para dar
lugar à servidão.
Como se pode perceber, alguns dos elementos que estão
presentes na discussão têm fortes pontos de contato com o
escravismo romano. O primeiro é aquele definido no subtítulo
por “alcance do sistema”. O argumento de Engerman e Genovese
critica a ideia de um sistema escravista independente das relações
mercantis capitalistas e do circuito exportador da economia do
Brasil. Os autores indicam que os estados do Sul da União “sempre
permaneceram articulados ao modo de produção capitalista e
não poderiam gerar um modo de produção escravista alternativo
reminiscente daquele do mundo antigo”. 28 Creio entender que
o argumento é que no mundo antigo o sistema escravista não
dependia de sua inserção em um sistema econômico maior. Esta
perspectiva me parece equivocada.
Pelo menos no caso romano, o escravismo se insere no interior
do modo de produção tributário antigo como um subsistema
menor. A articulação da exploração do trabalho escravo (o
“sistema escravista”) com o trabalho livre arrendatário (os coloni)
e sazonal (os mercenarii) na villa é produto da imensa capacidade

28
“(…) always remained enmeshed in the capitalist mode of production and
could not generate an alternate slave mode of production reminiscent of that of
the ancient world”. Id., p. 589.

154
de acumulação econômica decorrente da rápida expansão
mediterrânica (neste sentido é comparável àquilo que foi destacado
por Engerman e Genovese: uma acumulação prévia de riqueza por
parte dos senhores escravistas, ainda que eu prefira designá-los
simplesmente de classe proprietária de terras).
Este sistema escravista, que tem sido visto como “fundamento”
da economia romana é, na realidade, consequência de situações
excepcionais, entre as quais se encontra o aumento das relações
mercantis como produto da integração de diversas áreas
mediterrânicas. Seria enganoso negar este fato, porém vale a
pena considerar que não é necessária a exploração da força de
trabalho escrava para a produção de mercadorias, como demonstra
a produção de azeite de oliva no norte da África. Não obstante,
o sistema escravista permite uma rápida resposta, desde que a
provisão de força de trabalho seja barata e estável, para a exploração
direta do domínio fundiário.
Por outro lado, a circulação é, de certa forma, dependente
da acumulação tributária, como têm destacado Hopkins29 e
Wickham.30 A articulação entre os espaços escravistas e não-
escravistas (tanto dentro quanto fora da Itália-Sicília) é que deve
ser analisada para entendermos a lógica do funcionamento amplo
do sistema em seus aspectos econômicos.
O segundo elemento se relaciona com a caracterização
da classe dominante como “escravista”. Engerman e Genovese
destacam o caso das áreas produtoras do Nordeste brasileiro onde

29
HOPKINS, K. Taxes and trade in the roman Empire, 200 BC-AD 400, JRS,
n. 70, 1980; Id., Rome, taxes, rents and trade. In: SCHEIDEL, Walter & VON
REDDEN, Sitta (eds.). The Ancient Economy. Nova York: Routledge, 2002.
30
WICKHAM, C. Marx, Sherlock Holmes, and late roman Commerce. JRS,
n. 78, 1988. Cf. GARCIA MAC GAW, C. La ciudad-estado y las relaciones de
producción esclavistas en el Imperio romano. In: GALLEGO, J. & GARCÍA
MAC GAW, C. (comps.). La ciudad en el Mediterráneo Antiguo. Buenos Aires:
UBA – Ed. del Signo, 2007. pp.259-267, no qual são analisadas as relações
mercantis dentro do marco da Cidade-Estado.

155
haviam coexistido relações escravistas e senhoriais, argumentando
que a transição de uma forma de trabalho para outra não implicou
o questionamento do poder dos senhores de engenho. No mundo
romano, de acordo com a caracterização realizada anteriormente
no ponto 1,31 as rendas dos patrimônios dos grandes proprietários
não estavam fundamentadas no trabalho escravo, posto que eram
compostas por excedentes apropriados em sua maior parte dos
trabalhadores livres e, em menor quantidade, dos escravos.32
A diferenciação entre uma classe burguesa adequada ao
funcionamento pleno das relações capitalistas em contraposição
a uma classe escravista periférica ligada à economia através da
exportação de matérias primas tem sentido, por exemplo, no
sul americano pré-guerra. Não obstante, a diferenciação entre
uma classe proprietária de terras escravista e uma não-escravista
não agrega nada ao caso romano, posto que em ambos os casos
trata-se do mesmo grupo social, como no exemplo destacado por
Engerman e Genovese para certas áreas do Brasil. Na verdade, o
fato de um proprietário de terras romano explorar escravos ou
colonos não alterava sua posição social. A real diferença entre as
classes proprietárias de terras estava dada por seu maior ou menor
controle do aparato do Estado e isto é central para a caracterização
da classe dominante romana.
Isto explica porque não há uma crise do sistema escravista,
no sentido de uma transição do sistema de trabalho cujo colapso
arrastasse a classe dominante. Se tivermos que pensar em uma
transição, deveríamos voltar à ideia sugerida por Engerman e
Genovese: na transição do sistema escravista ao servil, este existiu
concomitantemente com o primeiro durante sua “fase dominante”.
Todavia, em meu entendimento, a mudança mais semelhante ao

31
No que foi indicado como “ponto quantitativo 2”, em relação ao “enfoque
qualitativo” da definição de sociedade escravista.
32
A isto deve-se somar o produto dos recursos apropriados através da renda
tributária estatal, que chegavam aos proprietários de terras por diversos
mecanismos.

156
que se entende por tal transição estaria relacionada com o aumento
progressivo da exploração indireta, que já estava presente como
norma nos domínios dos grandes proprietários, e com uma retração
e abandono da exploração direta através da escravidão em equipes
– que havia chegado a ser dominante apenas em certas regiões
específicas da Itália e Sicília. Esta transformação no emprego da
força de trabalho escrava supõe o aumento do uso de formas que
se desenvolveram com o “sistema da plantation escravista”, como os
servi quasi coloni e os servi casati, que não são de maneira alguma
o expoente de formas escravistas tardias.33 Os historiadores não
conseguem chegar a um consenso sobre o momento da crise do
sistema escravista, ao mesmo tempo em que o apontam como
estrutura econômica fundamental do Império Romano. Talvez
a resposta esteja no fato de que não existe tal “fundamento” da
economia e de que estamos olhando para o lugar errado.
Se o sistema escravista é uma forma entre outras de organizar
a exploração dos escravos, então o escravismo não pode reduzir-

33
A transição para formas de escravidão semelhantes à servidão é um aspecto
central da discussão sobre as sociedades escravistas e está ligada especialmente
à questão da eficiência relativa do trabalho escravo em relação ao trabalho livre.
Deliberadamente, deixo-a de fora da análise, posto que o espaço disponível não
permite o tratamento do tema. Alguns aspectos destacados em SCHEIDEL,
Walter. The comparative economics of slavery in the Greco-roman world. In:
DEL LAGO & KATSARI (eds.). op. cit., pp.105-126; FENOALTEA, Stefano.
Slavery and supervision in Comparative Perspective: a Model. The Journal of
Economic History. vol. 44, n. 3, sep. 1984; FINDLEY, R. Slavery, Incentives, and
Manumission: a theoretical Model. The Journal of Political Economy, vol. 83, n. 5,
oct. 1975; e ENGERMAN, Stanley. Some Considerations relating to Property
rights in Man. The Journal of Economic History, vol. 33, n. 1, the tasks of Economic
History, March 1973. Sobre os servi quase coloni ver Digesto 15.3.16; 40.7.14,
e também 40.1.40.5. Cf. VEYNE, Paul. Le dossier des esclaves colons romains.
Revue Historique, n. 265.1, 1981; GILIBERTI, G. Servus quasi colonus. Nápoles:
1988; CAPOGROSSI COLOGNESI, Luigi. Grandi propietari, contadini e
coloni nell’Italia romana (I-III d.C.). In: GIARDINA, Andrea (ed.). Società
romana e Impero tardoantico. I. Istituzioni, ceti, economie. Roma – Bari: Laterza,
1986. pp.344-348, que indica a presença dos testemunhos jurídicos indica a
difusão e normalidade desta instituição.

157
se a tal “sistema de trabalho”. O desaparecimento progressivo
desse sistema de plantation simplesmente deve ser considerado,
provavelmente, em sua relação com o abastecimento do circuito
mercantil. Isto tampouco quer dizer que exista uma crise mercantil,
já que pode ser efeito de uma realocação dos fatores econômicos
na geografia do Império. Por isso, não se pode falar de uma crise
da economia imperial, mas de uma substituição das unidades
produtivas que alteraram os fluxos de circulação mercantil.
Nos termos da produção geral no império, a substituição dos
produtores de vinho itálicos pelos hispânicos não supõe uma crise,
mas uma realocação. Nas áreas “escravistas”, isto não implicou no
desaparecimento dos escravos, mas da exploração direta que os
utilizava como força de trabalho básica, ou seja, novamente se trata
de uma realocação.
Se o sistema escravista é uma forma entre outras de explorar
os escravos, a modificação de tais formas não torna mais ou menos
escravista a classe que se apropria da renda que aqueles produzem.
Do contrário, cairíamos no paradoxo de qualificar como escravistas
os proprietários de escravos que organizavam a exploração de suas
terras sob o sistema de plantation, mas esses mesmos proprietários
não seriam escravistas se seus escravos fossem explorados de
maneira similar a colonos livres arrendatários. Aceitar isto nos
levaria a reconsiderar, então, o alcance da definição de escravo.

Conclusões

A instituição da escravidão tem sido dependente de outras


formas socioeconômicas dominantes nas sociedades em que se
desenvolveu profundamente, não importa se adquirindo a forma
do sistema de trabalho padronizado, ao qual me referi aqui em
associação à plantation. Como instituição reforçou as estruturas
socioeconômicas dominantes em diferentes estruturas sociais
(sistemas escravistas americanos periféricos à centralidade

158
do modo de produção capitalista central, sistemas escravistas
romanos desenvolvidos a partir da dinâmica econômica permitida
pela acumulação de recursos do modo de produção tributário
antigo)34. Desta forma contribuiu para cimentar o poder das
classes dominantes.
No mundo moderno, esse reforço foi principalmente de ordem
econômica, na medida em que foi através do funcionamento do
sistema econômico que se organizou a apropriação do excedente
pela classe dominante. A constituição da classe capitalista
americana precisou do complemento da força de trabalho escrava
para organizar um mercado de trabalho que não funcionava de
acordo com as necessidades do sistema capitalista, na medida
em que a classe trabalhadora podia ter acesso facilmente aos
meios de produção pela disponibilidade de terras, o que elevava
exageradamente o custo do salário. Disto resultou a centralidade
da questão da eficiência relativa do trabalho escravo em relação ao
livre.
Nas sociedades precapitalistas, os mecanismos sobre os
quais se organiza a exploração por parte da classe dominante são
de ordem extra-econômica. Na sociedade romana, o escravismo
reforça o lugar de classe dos grandes proprietários de terras em
relação ao controle do aparato estatal. O sistema de trabalho da
plantation não é determinante, para além de suas consequências
econômicas, posto que o controle sobre as terras através do
sistema da Villa reforça o papel essencialmente político da classe

34
Sobre o papel das instituições como modo de reprodução ver
MEILLASSOUX, Claude. Antropología de la esclavitud. Madrid: 1990. pp. 351-
352. BLACKBURN, Robin. Slave exploitation and the elementary structures
of enslavement. In: BUSH, M. L. (ed.). Serfdom and Slavery. Studies in Legal
Bondage. Londres – N. York: Longman, 1996. p.162: A escravidão muitas
vezes pareceu funcionar como uma falso limbo social, estendendo o alcance ou
a capacidade de uma formação social – normalmente do seu grupo dominante
– mas não alterando fundamentalmente os princípios da organização social.
Ela foi, provavelmente, mais comumente uma instituição conservadora do que
inovadora.

159
proprietária de terras romana em relação às estruturas da cidade-
estado. Disto resulta a consideração de que sua caracterização se dê
especialmente em relação à terra, e não por uma forma específica
de exploração da força de trabalho dependente que é variável de
acordo com as regiões e os períodos específicos.
A comparação entre a escravidão antiga e moderna geralmente
resulta em uma apreciação do escravismo como uma categoria
transistórica, na qual as relações sociais dominantes no sistema
econômico em seu conjunto passam a um segundo plano, deixando
expostas, em primeiro lugar, aos olhos dos observadores as relações
escravistas. Porém, é necessário destacar que estas não possuem
uma substância econômica própria. Seu papel econômico se define
em relação ao marco mais amplo do contexto socioeconômico em
que se inserem. Da mesma maneira, não teria sentido realizar o
estudo do trabalho assalariado independentemente das condições
históricas em se que inserem, ignorando que no capitalismo ocupa
um lugar central como mercadoria porque antes se produziu a
alienação dos trabalhadores em relação aos meios de produção,
coisa que não ocorre em outros sistemas sociais. O escravismo,
equiparado à categoria de fator de produção, adquire esse papel
em relação ao Capital na economia de mercado moderna. Não
deveríamos partir dos mesmos parâmetros para entender seu
funcionamento na sociedade romana.

Bibliografia

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163
O Processo de Hierarquização
Social Germana (Século I a.C.-II d.C.)

Eduardo Cardoso Daflon

A Idade Média, a despeito de opiniões mais otimistas, é um


período que segue carregado de preconceitos, um mero lapso
temporal entre duas épocas radicalmente mais valorizadas: o
Império Romano e o Renascimento. Diversos historiadores se
esforçaram para conseguir desvincular essa imagem tenebrosa
do medievo – ainda que, muitas vezes, tenham o transformado
na idade do onírico e do maravilhoso –, contudo, ao fazer isso
acabaram por concentrar os adjetivos pejorativos nos primeiros
séculos desse período1.
Isso é ainda mais evidente quando nos referimos a contextos
em que o grau de germanismo se apresenta de maneira mais
acentuada, como no caso das primeiras organizações políticas que
sucedem o Império. Associando-se geralmente aos supostamente
“primitivos” germanos uma incapacidade de assimilar as complexas
estruturas administrativas legadas pelos romanos. Dessa forma, a
fim de desmistificar essa realidade, convém retrocedermos para
bem antes das penetrações dos séculos III e V, objetivando traçar
uma caracterização positiva desses povos que tradicionalmente
receberam a alcunha de “bárbaros”.
Assim sendo, pretendo demonstrar que ao adentrarem o
Limes os povos germânicos já não seriam mais grupos tribais
que tenderiam ao igualitarismo e sim sociedades hierarquizadas

1
O exemplo mais famoso seria: LE GOFF, Jaques. A Civilização do Ocidente
Medieval. Bauru: EDUSC, 2005. pp. 19-42.

165
familiarizadas com as estruturas romanas. Para tanto, inicio o texto
com um diálogo com autores de diversas tradições no sentido de
compreender o fenômeno da diferenciação social e posteriormente
traço um quadro geral daquelas sociedades, voltando-me tanto às
fontes escritas como também em diálogo com a Arqueologia.

Hierarquização Social Germânica, um panorama


bibliográfico

Comecemos pelo já centenário clássico A Origem da Família,


da Propriedade Privada e do Estado2, que, apesar de apresentar
problemas por sua desatualização, é essencial para abrir esse
debate. Uma primeira condição imposta pelo autor para a ascensão
de um Estado é o processo de formação de classes sociais, fruto de
uma concentração de riquezas, e a consequente ruptura dos laços
tradicionais entre os homens pelas especializações e diversificações
das atividades:
(...) o primeiro sintoma na formação do Estado
consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo
os membros de cada gens em privilegiados e não
privilegiados, e dividindo estes últimos em duas
classes, segundo seus ofícios, e opondo uma à outra.3

Engels ainda atribui à guerra uma importância crucial


nesses processos de surgimento e consolidação das hierarquias.
Isso porque com a atividade guerreira (a atividade de conquista
e incorporação de novos grupos alheios às estruturas tribais) há
a destruição dos laços familiares tradicionais e, quando realizada
constantemente, serve para consolidar a posição de comando do
chefe militar, tornando seu poder até mesmo hereditário4.

2
ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da propriedade Privada e do Estado.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
3
Id., p. 122.
4
Id., p. 185.

166
O autor ainda afirma que“o Estado pressupõe um poder público
especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o compõe.”5 Ou
seja, aqui se enuncia uma diferença entre Estado e sociedade civil6,
algo que Gramsci mais tarde desenvolve de maneira muito mais
clara e que é altamente criticável para análises do pré-capitalismo,
já que as distinções entre público e privado são extremante difíceis
de delimitar nesses contextos.
Maurice Godelier afirma, por sua vez, que a hierarquização
social se dá por duas vias complementares. Uma primeira estaria
vinculada à concentração desigual de riqueza (gado ou terras, por
exemplo), nas mãos de poucos indivíduos do clã ou da tribo, o que
se manifesta mesmo em sociedades que tendiam ao igualitarismo,
pois muitas vezes o desenvolvimento demográfico e ecológico dos
grupos humanos pode favorecer a acumulação por uma pequena
fração do todo social7. A segunda, por sua vez, está ligada à geração
regular de excedentes8. Esse autor julga fundamentais esses dois
aspectos, pois, com os excedentes se concentrando e sendo gerados
regularmente, um pequeno grupo passa a ser capaz de redistribuir
sua parcela de riqueza. A redistribuição de bens, os mais variados
que sejam, geram relações de dependência da comunidade para
com essa “elite” que gradativamente se forma. Além dos princípios
redistributivos, é possível notar que os excedentes tornam-se
comercializáveis, permitindo à elite tribal adquirir bens de prestígio
inacessíveis à maioria dos indivíduos por serem raros ou vindos
de regiões longínquas, atuando dessa forma como diferenciadores
sociais que cumprem um papel de legitimação do poder9.

5
Id., p. 105.
6
Ibid.
7
GODELIER, Maurice. The mental and the material. Londres: Verso, 1986. p.
102.
8
GODELIER, Maurice. Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edições 70, 1973.
pp. 147-151.
9
Id., pp. 175-176.

167
O autor destaca, ainda, o papel desempenhado pela ruptura
nas relações de parentesco nesse contexto de surgimento de uma
concentração de riqueza. Segundo Godelier:

O problema da passagem às sociedades de classes


e ao Estado reconduz-se, portanto, ao de saber em
que condições as relações de parentesco deixam de
desempenhar o papel dominante, de unificar todas
as funções da vida social?10

Em outras palavras, a criação de laços sociais que excedem


o âmbito familiar é para o autor essencial para a constituição de
formas mais complexas de organização.
Em outro momento, o autor fala do papel da guerra e da
conquista para a formação de estruturas sociais mais complexas:
“(...) a guerra e as conquistas elevam certas comunidades vitoriosas
acima das outras, sendo que a sua dominação necessita de
estruturas políticas e econômicas novas, estaduais.”11 Ou seja, a
defesa e o ataque por si já demandam a existência de um chefe
capaz de comandar um séquito. A conquista principalmente gera
a necessidade de estruturas estatais que permitam a administração
dos povos subjugados, em outras palavras a incorporação de grupos
estranhos à tribo faz com que a família se torne incapaz de mediar
os conflitos existentes.
Timothy Earle afirma que a existência de funerais e objetos
de luxo é um claro elemento de distinção, pois o primeiro é um
evidente indício do estabelecimento de linhagens e o último de
definidores sociais e econômicos no seio dos grupos humanos12.
Ele destaca ainda que a incorporação de população através das

10
Id., p. 194.
11
Id., p. 165.
12
EARLE, Timothy. The evolution of chiefdoms. In: EARLE, Timothy (org).
Chiefdoms: Power, economy and ideology. Cambridge: Cambridge University
Press, 1991. p. 3.

168
guerras consolida o poder dos chefes13. O autor aponta também
que não podemos deixar de enquadrar as sociedades de chefias
como sociedades em constante contato externo, havendo inclusive
muitas ligações entre diversas elites, várias vezes mais do que com
a população que domina diretamente, de acordo com Earle14.
Em outro trabalho, esse autor reforça a necessidade do controle
sobre a mão de obra em sociedades pré-industriais. Earle pondera
que o controle sobre o trabalho só é possível com coerções ou como
troca. Ou seja, o chefe extrai a produção a partir de parâmetros
de reciprocidade baseadas, segundo ele, nas suas habilidades
sobrenaturais que o inserem na produção ao nível do simbólico15.
Em um de seus textos, Kristian Kristiansen defende que a
estratificação de uma dada sociedade deve ser vista como uma
mudança estrutural16. Sendo as sociedades estratificadas a base
do desenvolvimento Estatal, apresentando, contudo, algumas
características particulares, como a diferenciação econômica e
social e um maior apego ao território. Contudo, esses elementos
não trazem consigo a formação efetiva de uma burocracia17.
Jonathan Friedman concorda em dar aos excedentes um papel
de destaque na hierarquização das sociedades. Contudo, para ele
não é meramente a produção de excedentes o fator fundamental,
e sim a maior capacidade de extração desses por uma pequena
aristocracia privilegiada18. Seja essa extorsão imposta a um número
específico de indivíduos ou a grandes populações.
Dessa forma, para o autor, a burocracia surge da necessidade
de uma classe/Estado de gerir a reprodução da sociedade e de taxá-

13
Id., p. 6.
14
Id., pp. 13-14.
15
EARLE, Timothy, op. cit., pp. 71-74.
16
KRISTIANSEN, Kristian. Chiefdoms, states, and systems of social evolution.
In: EARLE, Timothy, op. cit., p. 19.
17
Id., p. 18.
18
FRIEDMAN, Jonathan. Tribes States and Transformation. In: BLOCK M.
(ed). Marxist Analyses and Social Antropology. Londres: Malaby Press, 1975. p.
180.

169
la, criando funções específicas para cada grupo social, reforçando
o seu próprio status e assumindo a função de gestora19. Quando se
trata de entender de que forma a “elite” se legitima nessas funções
ele o associa ao plano do simbólico, com a ligação direta dos chefes
ao homem/deus fundador da tribo e também pela monopolização
do acesso ao sagrado.
Já para Morton Fried, a gênese da sociedade hierarquizada está
ligada à generosidade e a redistribuição (não retribuídas) como
formas de obter prestígio social e obrigações de outros para com
as “elites tribais”. A visão que ele tem da hierarquização é a de que
se trata do processo através do qual se limita legalmente o acesso
ao poder e ao status à maioria dos membros da comunidade. A
riqueza se caracterizaria pelo que se distribui e não pelo que se
acumula, assim sendo, o chefe consiste em um príncipe entre os
homens, um generoso, e é disso que deriva sua posição20.
Segundo o referido autor, nas sociedades que tendem ao
igualitarismo, as diferenças seriam principalmente pautadas pela
idade e/ou pelo sexo21. Para ele, a estratificação social ocorre
quando a organização social e produtiva passa a ser baseada
no fator econômico, ou seja, com a cristalização de um acesso
e controle diferenciado dos meios de produção (terra, água,
ferramentas, matéria prima etc.)22. Como consequência dessa
restrição na acessibilidade decorre uma concentração da riqueza
nas mãos daqueles que os controlam. Dessa forma, a quantidade
de pessoas capazes de exercer a generosidade (redistribuição)
diminui. Redistribuir consiste em uma das poucas maneiras
de obter prestígio em sociedades menos complexas e, portanto,
de submeter à dependência. Dessa forma, aqueles poucos que

19
Id., p. 195.
20
FRIED, Morton. A evolução da sociedade política. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976. p. 147.
21
Id., p. 37, 59, 130, 184.
22
Id., p. 59, 111, 184.

170
concentraram os meios de produção, e a riqueza decorrente desse
acesso privilegiado, passam também a concentrar o prestígio de
maneira proporcional23.
Fried também ressalta o papel desempenhado, neste processo,
pelo contato entre sociedades complexas e “simples”24. Usando o
exemplo dos aborígenes australianos, ele explica que o contato
com os ocidentais desestruturou internamente as tribos locais que
viviam mais ou menos de forma autônoma. Essa desestruturação
permitiu que os vários grupos desconexos incorporassem elementos
externos, aglutinando-se e formando entidades maiores. O principal
fruto desse processo seria a formação de estruturas “estatais” que
permitissem controlar o conjunto social ampliado, uma vez que os
laços de parentesco, que tradicionalmente regulavam as relações
interpessoais, ficaram enfraquecidos e progressivamente foram
dando lugar a outras relações sociais, formando-se gradualmente
uma identidade grupal em torno do chefe25.
Marshall Sahlins, por outro lado, enxerga as sociedades
hierarquizadas encabeçadas por um chefe, por ele chamadas de
chefia, como uma tentativa de articulação social que supere o
parentesco propriamente dito. Trata-se da tentativa de estabelecer
uma superestrutura política, e nessa base uma maior integração
econômica, cerimonial, ideológica e de outros aspectos da cultura26.
Para o autor, essa superestrutura se consolida no bojo das alianças
defensivas e ofensivas no contexto das pilhagens que favorecem
uniões e laços entre os homens e as tribos27. Portanto, seguindo
nessa linha ele diz que as chefias se consolidam por pressão externa.

23
Id., pp. 116-119.
24
Id., p. 103. A palavra “simples” não possui qualquer carga de preconceito e
negatividade, uso aqui só para me referir a uma sociedade que não possui
hierarquização.
25
Id., pp. 181-182.
26
SAHLINS, Marshall. Sociedades Tribais. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1974. p. 37.
27
Id., p. 61.

171
Sahlins ainda ressalta que é necessária para a fundamentação
da hierarquia a presença de bens de luxo. Porém, sua mera presença
não cria qualquer vínculo entre os indivíduos, para que haja
lealdade é necessário que os bens de prestígio sejam acompanhados
de redistribuição28. Sendo assim, a circulação de bens, subindo na
escala hierárquica, é a base da economia política nas sociedades de
chefias. Ou seja, um presente não retribuído na íntegra compele à
lealdade.
Ele ainda vê a chefia como um meio importante de aumentar
a produção, pois o chefe força a tribo a produzir excedentes para
que ele possa redistribuí-los29. Garantindo o bem estar da tribo e
aumentando o seu prestígio e seu status, dando aos membros do
seu grupo e aos que integram o seu séquito presentes e banquetes30.
Os que o seguem estão, inclusive, mais interessados em promessas
de glória do que em qualquer ligação de parentesco que possa
existir entre eles e o chefe no seio de um grupo mais verticalizado31.
Dessa forma, a distribuição de presentes seria fundamental
para a “carreira política” dos chefes. Citando Sahlins: “Eles [os
chefes] transformavam o desequilíbrio econômico em desigualdade
política.”32 O presente não correspondido cria um desequilíbrio nas
relações sociais; aquele que não retribui encontra-se em débito. “A
assistência do chefe ao seu povo é sua ligação com ele.33 (...) Assim,
a generosidade cria a liderança, criando liderados.”34
Finalmente, resta apresentar a posição de Hans Hummer,
cujo objeto de análise está mais diretamente vinculado ao
deste trabalho. Ele tenta explorar as questões identitárias que

28
Id., p. 76.
29
Id.
30
Id., p. 124.
31
Id., p. 63.
32
Id., p. 138.
33
Id., p. 136.
34
Id., p. 138.

172
permitiram a congregação de diversas tribos em confederações
tribais entre o século II-V da nossa era. Chega à conclusão que
para isso se processar e surgirem estruturas administrativas mais
complexas foi necessário o desnível na riqueza entre os indivíduos
e a distinção no acesso a bens de prestígio inacessíveis aos demais35.
Ele dá ainda grande peso à guerra, contudo por outro viés; a guerra
para ele é importante não só no momento da conquista, mas por
ser o componente pelo qual se formam alianças entre as elites das
diversas tribos36.
Tendo em vista essas ideias expostas é possível notar que eles
apresentam percepções similares. Contudo, como em qualquer
ramo das Ciências Humanas, discordam entre si em diversos
pontos, aos quais gostaria de me ater.
Para Godelier, Friedman e Fried é necessário ao processo de
hierarquização uma geração de excedentes, ainda que esses não
sejam suficientes para efetivá-lo. Nessa perspectiva, haveria o
surgimento de excedentes37, seja por diversidades demográficas
ou adversidades climáticas, que, sendo expropriados do conjunto
por um pequeno grupo, gestaria uma “nobreza”. “Nobreza” essa que
se especializa em funções que traduzem prestígio e que a excluem
do processo produtivo direto, passando a viver de expropriação do
restante da comunidade. Parece-me ser esta a perspectiva que mais
faz sentindo, o que me leva a discordar de Sahlins, que pensa o
contrário, afirmando que um(ns) membro(s) do todo se afasta(m)
da produção e assume(m) funções de comando e impõe(m) que o
resto do grupo produza mais para satisfazer às suas necessidades.

35
HUMMER, Hans. The fluidty of barbarian identity: the ethnogenesis of
Alemanni and Suebi, AD 200-500. Early Medieval Europe, n. 7, 1, pp. 1-27,
mar., 1998. p. 2.
36
Id., p. 2, 8, 17.
37
A título de exemplo, para Fried, isso começa a ocorrer com a “Revolução
Neolítica”, quando inovações técnicas teriam permitido a produção acima da
necessidade de subsistência. Já para o caso dos germanos, creio que os excedentes
seriam oriundos das pilhagens.

173
Todavia, ressalto a extrema incoerência dessa visão, tendo em vista
que a formação de hierarquias inscreve-se na longa duração, não
se realizando através de “vontades particulares”, mas sim a partir
de contradições promovidas ao longo de gerações. Nesse ponto
compartilho a interpretação de Engels, uma vez que os câmbios
sociais se processam a partir das tensões no interior da sociedade e
dos atritos entre grupos que se congregam em torno de interesses
específicos e com isso se desenvolvem e se consolidam classes
sociais antagônicas.
A perspectiva de Friedman a respeito da constituição
hierárquica parece completar bem a apresentada por Godelier.
Pois esse último explica como se legitima o poder nas sociedades
que caminham para diferenciações mais agudas, através da
redistribuição. Entretanto, não basta ter prestígio para que se
venha a constituir estruturas estatais; é necessária a capacidade
de atuar diretamente na administração dos recursos produzidos e
de expropriá-los. O que explica em alguma medida o “desnível de
riqueza” apresentado por Hummer .
Ambos os autores defendem, ainda, ideias conjugáveis no
que tange à legitimidade do poder. Godelier vincula esta função
legitimadora a uma base material, relacionada às condições de acesso
diferenciado aos meios de produção. Por outro lado, Friedman dá
grande ênfase às construções ideológicas que justificam a ordem
social existente, como a ligação do chefe a um ancestral importante
(real ou mítico) corroborando sua posição de comando. Penso
que ambas as visões devem complementar-se, sendo um equívoco
separar a “materialidade” do “simbólico”.
Kristiansen e Friedman discordam em uma questão
fundamental: a existência de burocracias no interior de sociedades
que começam a conhecer níveis mais rígidos de diferenciação social.
Sobre essa questão, comungo da visão do primeiro uma vez que não
há uma burocracia como entendemos hoje, uma parte do aparato
de Estado, impessoalizada. Acho que faz mais sentido supor que
as classes dominantes que se formam e vem se consolidando nesses

174
contextos de hierarquização assumem o papel de extratores do
excedente, mas mediadas ainda por um alto grau de “pessoalidade”
e ritualização. Ou seja, como, segundo Earle, o chefe se insere
simbolicamente no processo produtivo, os excedentes extraídos
constituem uma espécie de contra-dom.
A distensão dos laços familiares tradicionais no interior de
sociedades que conheciam parcos níveis de diferenciação é apontada
por Engels, Earle, Fried e Godelier como um fator importante
para o advento de estruturas estratificadas. Estes autores, no
entanto, focam em aspectos distintos para ver o “enfraquecimento”
do parentesco. O primeiro foca na atividade militar, em grande
medida responsável por esse fenômeno, além da especialização das
funções no interior da sociedade, e o segundo segue também na
linha de dar importância à atividade guerreira, só que no sentido
de que ela aumenta o contingente das populações submetidas e
rompe os laços de parentesco. Morton Fried frisa que o contato
entre sociedades com Estado e sociedades “igualitárias” favorece
esse processo, pois há uma desagregação das várias pequenas
unidades que são compelidas a unirem-se para fazer frente à
outra sociedade mais complexa. O segundo, apesar de não dizê-
lo explicitamente, relaciona essa ruptura à própria concentração
de riqueza e à redistribuição desigual, uma vez que a criação de
dependências “extra-parentais” enfraquece a estruturação do
relacionamento pautado na família. Nesse ponto oponho-me a
Sahlins, e pelo mesmo motivo: ele vê a consequência como causa!
O autor afirma que a chefia, por ser uma tentativa de articulação
do conjunto, acaba por enfraquecer os laços de parentesco, como
uma imposição de cima para baixo, deixando de explicar as razões
primárias do surgimento da própria chefatura.
A questão do conflito parece também fundamental para
entender a gênese das estruturas estatais. Mais uma vez, a
conjugação das perspectivas dos autores parece-me muito
proveitosa. Sahlins e Hummer nos dizem que a criação de alianças
entre indivíduos e tribos para exercer a pilhagem ou defesa contra

175
um inimigo em comum facilita a aproximação. No entanto, após
esses ataques ou proteções conjuntos, quando uma tribo se impõe
sobre a outra, incorporando-a, a ótica de Godelier encaixa-se
perfeitamente: para regular as relações entre dois grupos bastante
diferentes alheios a qualquer laço de sangue impõe-se a existência
de uma estrutura de administração mais complexa. Ou seja, o
conflito primeiro aproxima os homens e depois os organiza em
estruturas hierárquicas independentes de laços tradicionais.
A respeito de um elemento de crucial importância para a
constituição das hierarquias, Fried, Godelier e Sahlins estão de
acordo quanto a um aspecto: a redistribuição. Trocar presentes
cria um laço de solidariedade entre os homens, sejam parentes ou
não. Se o presente não for correspondido, além dessa solidariedade
cria-se uma dependência do recebedor em relação ao doador.
Surge então uma dicotomia, na qual os polos diferenciam-se pela
riqueza e principalmente pelo status. A presença e redistribuição
dos bens de luxo é ainda destacada por Sahlins e Godelier, pois
esses permitem a diferenciação social e a possibilidade de trocas
(e consequentemente de alianças) em um nível horizontal entre
os chefes de diferentes tribos. Temos aqui, potencialmente,
outro fator que favorece a formação de unidades maiores, graças
à subordinação de um chefe a outro, através da concessão de um
presente, que possivelmente jamais será capaz de retribuir. Algo
que cria um laço no qual o recebedor fica obrigado com o doador38,
o que permite a formação de unidades maiores graças a essa relação
de dependência.
Timothy Earle, em um artigo de caráter teórico, avança
elaborações gerais que pretendem explicar a formação de
hierarquias, constituindo uma síntese do abordado aqui: (1)
através de endividamentos; (2) dando infraestrutura para
a produção de subsistência; (3) dominando o uso da força

38
Para esclarecimentos acerca desse conceito GODELIER, Maurice. O Enigma
do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 15.

176
internamente; (4) forjando alianças externas; (5) aumentando o
tamanho da população dependente; (6) controlando os princípios
de legitimidade (o passado ou o sobrenatural); (7) criando ou se
apropriando de princípios legitimadores; (8) assumindo o controle
da riqueza e de sua distribuição interna; (9) assumindo controle de
fontes externas de riqueza39.
Temos que considerar, na sequência, como esses modelos
se encaixam ao nosso estudo de caso para tentar compreender
as mudanças que vinham se apresentando no seio dos grupos
germanos desde antes do período da conquista da Gália pelos
romanos. Passemos a isso.

Análise do conjunto e composição de um quadro

Com base nesse debate e nas conclusões obtidas, debruçar-me-


ei sobre as sociedades germânicas abordando-as diacronicamente,
valendo-me de documentação escrita e arqueológica. Comecemos
pela caracterização da primeira fonte, o De Bello Gallico40, a qual
foi redigida por Júlio César entre 58 a.C. e 52 a.C. enquanto este
ainda estava na região da Gália. César desenvolve ao longo do texto
toda uma retórica que se dirigia à construção de um discurso que
o engrandecesse como general frente a seus adversários políticos
do fim do período republicano. Nesse sentido, o autor valoriza os
gauleses e a Gália usando como contraponto a Germânia e os povos
que lá habitavam. A própria ideia de populações tão claramente
separadas pelo Danúbio cria para os romanos a noção de conquista
de todo um povo. Dessa forma, a lógica do general é: quanto mais
poderoso o inimigo, mais valorosa ainda é a vitória sobre ele.
Algo que é bastante marcado pelo autor são as questões
ligadas ao “barbarismo” e o “primitivismo” desses povos. Ou seja,

EARLE, Timothy, op. cit., p. 5.


39

40
JÚLIO CÉSAR. Comentário sobre a Guerra Gálica (De BelloGallico).
Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesarPL.html.

177
constrói-se a ideia do outro como um povo estático no tempo e o
desenvolvimento viria com os romanos, argumento diversas vezes
aceito em maior ou menor grau pelos estudiosos de hoje em dia
que olham para a periferia do Império Romano a partir de Roma.
Essa vertente de pensamento colonialista deve ser criticada, pois
diminui a relevância das iniciativas dos próprios povos em sua
condição de sujeitos das mudanças estruturais por eles passadas41.
Vejamos, então, a caracterização geral da sociedade germânica
patente a partir dessa fonte.
César trata longamente, em seus comentários, da atividade
guerreira das tribos germânicas, que assinala como fundamental:
“Toda a sua vida se passa em montarias e no mister das armas
(...)”42. A atividade era fundamental à reprodução social daqueles
grupos:

Afirma-se possuírem cem cantões, de cada um dos


quais tiram mil homens todos os anos para fazer
guerra aos vizinhos. Os demais permanecem nos
cantões, e se sustentam a si e aquel’outros. Estes
no seguinte ano pegam em armas pelo seu turno,
permanecendo aquel’outros nos cantões. Assim
nem se interrompe o trabalho da agricultura, nem
o da milícia.43

Para além dos números, claramente exagerados pelo general


que objetivava ressaltar a grandiosidade de seus feitos, vemos que
havia um mecanismo de rodízio que permitiria a todos o acesso à
atividade guerreira. A importância disso advém da guerra ser uma
das principais formas de obtenção de recursos materiais naquelas

41
WEBSTER, J. Etnografity barbarity: colonial discourse and Celtic warrior
societies. In: WEBSTER, Jane e COOPER, N. (eds). Roman Imperialism:
Post-Colonial Perspectives. Leicester Archeology Monographs. Leicester, n. 3,
1996, p. 113.
42
JÚLIO CÉSAR, op. cit., livro 6, parte 21.
43
Id, livro 4, parte 1.

178
comunidades com as quais César teve contato no contexto da
expansão romana pela Gália. Ou seja, se a partir da pilhagem é
que se gera uma grande parte da riqueza naquelas sociedades, o
revezamento na atividade era fundamental como expressão dos
níveis de igualitarismo interno entre os membros da tribo. Desse
fragmento ainda temos claramente um indicativo da ausência de
especialização no seio das tribos germânicas, uma vez que todos
participam do trabalho agrícola e realizam a guerra.
A incipiente divisão social do trabalho aparece ainda no
seguinte trecho: “Assim, nem têm druidas, que presidam as coisas
divinas, nem sacrifícios.”44 Vemos, então, que não havia “funções”
que traduziam, com a sua prática, maior ou menor prestígio.
César, posteriormente, faz a seguinte referencia: “A terra é
comum entre eles, e não se demoram mais de um ano num lugar para
agricultá-la.” 45 Aqui, nota-se claramente um romano abordando
uma sociedade outra estranha à sua, pois a ideia de uma “terra
comum” faz referência à ausência da propriedade privada da terra.
Isso é algo completamente coerente com uma sociedade na qual a
agricultura não é a principal atividade produtiva, essencialmente
dedicada à pecuária, à caça e coleta, como notamos em: “Não
fazem muito uso do trigo; vivem principalmente de leite e carne de
seu gado, e são grandes caçadores (...).”46.
Essas características lhe chamam tanto a atenção que ele volta
ao tema e nos diz que os germanos “não se esmeram na agricultura,
e a maior parte de seu sustento consiste em leite, queijo e carne.
Nenhum tem campo demarcado ou de sua propriedade (...).”47
Mais uma vez, a inexistência de propriedade privada aparece e
reforça o nosso argumento de que isso se relaciona com a relativa
pequena importância da agricultura em relação à pecuária.

44
Id., livro 6, parte 21.
45
Id., livro 4, parte 1.
46
Id., livro 4, parte 1.
47
Id., livro 6, parte 22.

179
Outra referência do autor clássico que corrobora esse
argumento é:

Reputam a maior glória da nação o existir em volta


dela quanto mais dilatado espaço de terra inculto,
como indício de lhes não poderem as demais cidades
suportar o jugo. Assim, de um lado afirma-se terem
cerca de seiscentos mil passos de campos incultos
nas imediações.48

A necessidade de possuir vastas áreas incultas atesta a


necessidade de pasto para o gado. É possível notar ainda que a
guerra e a posse de alargados patrimônios fundiários não é em
benefício de um chefe, mas sim de todo o grupo.
Somos capazes de entender melhor essa última citação quando
a conjugamos com outro fragmento do texto:

(...) os magistrados e os principais designam cada


ano às gentes e parentelas, que vivem em comum,
tanto espaço de campo para lavrar, quanto e onde
parece conveniente, e os obrigam no seguinte ano a
passar para outra parte.49

A necessidade de espaços alargados para as tribos da Germânia


faz todo o sentido, uma vez que claramente está desenhada uma
sociedade ainda marcada por certo seminomadismo. Compreende-
se ainda a importância da família como unidade básica de produção,
pois é atribuição familiar a realização das diversas atividades.
Faço a ressalva de que nesse trecho devemos ler esse
“magistrado” ou “principais” de que nos fala César, não como alguém
consolidado numa posição de poder oriunda da hierarquização
social ou da divisão em classes. Trata-se, neste caso, do mais velho
de uma tribo ou um guerreiro ocupando uma posição de comando
bastante efêmera formada em um quadro específico.

48
Id., livro 4, parte 3.
49
Id., livro 6, parte 22.

180
Júlio César, membro da mais alta aristocracia fundiária
romana, não estava familiarizado com a “posse coletiva” dos
campos e muito menos com sua constante redistribuição.
Buscando entender o porquê dessa prática, Cesar nos permite
entrever como se organizava a propriedade da terra: “Muitas são
as razões que dão desta usança, tais como: — para não trocarem,
demovidos pelo hábito, o ardor guerreiro pela agricultura, não
procurarem alargar cada um o seu campo, o mais poderoso a custo
do mais fraco (...).”50 Ou seja, as redistribuições anuais dos campos
impediam uma diferenciação social e estabilizavam a formação de
classes sociais distintas, pois “(...) cada um iguala em riqueza ao
mais poderoso.”51
Por fim, vemos hierarquias extremamente voláteis:

Quando qualquer cidade, ou repele a guerra


de invasão, ou a faz, elegem-se, para dirigi-la
autoridades, que exercem o direito de vida e morte.
Durante a paz não há autoridade alguma comum,
mas os maiorais dos cantões e aldeias distribuem
justiça entre os seus e terminam as contendas.52

Em outras palavras, não existe um grupo que tenha se


diferenciado nessas sociedades e as próprias dinâmicas que as
regem tentam impedir que isso ocorra. Reitero que interpreto
esses “maiorais” com pessoas mais velhas no seio das tribos.
É bom destacar que ao lermos o De Bello Gallico, não somos
capazes de encontrar contradições no que se refere ao modelo
de sociedade apontado, ratificando seu uso como fonte histórica
válida para a compreensão desse objeto de estudo.
Analisando o que foi apresentado até aqui, vemos que os
povos da Germânia em meados do século I a.C. tendiam a um

50
Id., livro 6, parte 22.
51
Id., livro 6, parte 22.
52
Id., livro 6, parte 23.

181
igualitarismo econômico e conheciam parcas clivagens no que
tange à divisão social do trabalho. Tratando-se, portanto, de
sociedades seminômades que conheciam hierarquias bastante
efêmeras. Vejamos agora as mudanças processadas no transcorrer
de 150 anos.
Tácito, em seu texto Germania53, escrito um século e meio
após a elaboração da obra de Julio Cesar, por volta de 98 d.C., tem
como objetivo criar um espelho de moralidade para os romanos.
Em seus escritos, relativamente não tão distantes assim do
anteriormente considerado, já nos apresenta outra estruturação
social radicalmente distinta.
Somos apresentados pelo célebre historiador romano à
descrição de uma sociedade que passou a conhecer, no decorrer
do período, níveis extremos de verticalização, impensáveis em fins
do primeiro século antes de Cristo. “Os reis são escolhidos entre a
nobreza, os generais pelo mérito. Nem os reis desfrutam de infinito
e livre poder, e os chefes se impõem mais pelo exemplo do que pela
autoridade (...).”54 Aqui se faz alusão a uma “nobreza”, do interior
da qual saem os reis e chefes. Isso é possível somente através de
mudanças estruturais que se processaram naquelas sociedades,
algo relacionado especialmente ao diferente acesso a terra.
Vemos que desaparecem as referências às redistribuições dos
lotes de terra e notamos que agora ela passa a ser concentrada por
uma nova classe que se formou e estabilizou, concentrando esse
recurso: “Todos os moradores de uma cidade segundo seu número
ocupam os campos que são partilhados entre eles, conforme a
qualidade (dignidade) de cada um (...)”55. A partir dessa passagem
podemos inferir que começa a haver alguns tipos de mediadores
para acessar à terra que estavam para além do simples pertencimento

53
CORNÉLIO TÁCITO. Germânia. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.
org/eLibris/germania.html.
54
Id., cap. 7.
55
Id., cap. 26.

182
à comunidade e a constituição de grupos mais abastados no seio
da própria tribo. Diferenciação no acesso que gera desigualdade
na divisão social do trabalho, ou seja, a submissão de uma parcela
da comunidade sob formas de exploração que lembram aquilo que
chamamos de servidão, como em:

Não se servem de outros escravos  como fazemos


nós, que empregamos cada um em seu mister:
qualquer deles tem sua casa, e governa os seus
penates. E o senhor faz-lhe pagar um tributo em
grão, ou em gado (ovelha), ou em vestes, como
se fora um lavrador: porque a mulher e os filhos
prestam outros serviços à casa.56

Por sua vez, a guerra ainda constitui uma atividade importante,


mas agora ela não mais é desempenhada por todos da tribo. Ela
passou a ser exclusivamente exercida pela elite, por chefes e seus
séquitos: “Assim como em combate é desonroso ao chefe não
exceder em coragem, é vergonhoso à companhia não igualar em
valor ao chefe.”57
As elites se diferenciam usando símbolos de poder tais como
bens de luxo inacessíveis aos demais membros da comunidade:
“Poucos possuem couraças, apenas um ou outro tem capacete de
metal ou de couro.58 (...).Os mais abastados não se distinguem por
vestes largas/folgadas como as dos sármatas e dos partas, mas por
justas, que revelam cada membro do corpo. (...).”59 Existem também
os produtos de estrangeiros que a raridade e dificuldade de obter
davam aos que os possuíam grande destaque: “Entre eles veem-se
vasos de prata oferecidos a seus chefes (...).”60. Produtos esses que

56
Id., cap. 25.
57
Id., cap. 14.
58
Id., cap. 6.
59
Id., cap. 17.
60
Id., cap. 5.

183
muitas vezes não circulavam através do comércio, como podemos
deduzir dessa passagem, mas sim através de presentes que, como
a Antropologia demonstrou, são essenciais para a construção de
laços entre membros da classe dominante.
Temos o retrato de uma sociedade extremamente mais rígida
do que a descrita pelo general que conquistou a Gália. Isso fica
evidente no seguinte trecho:

O silêncio é imposto pelo sacerdote, que tem o


direito (autoridade) de censurar (reprimir). Em
seguida o rei ou o chefe, pela ordem da idade de
cada um, segundo a nobreza, segundo a hierarquia
guerreira, segundo a eloquência, se fazem ouvir,
mais pela autoridade de persuasão do que pela
própria força.61

Lê-se nesse trecho a descrição de como se constituíam as


hierarquias desse momento histórico. Nota-se a especialização na
divisão do trabalho para além da faixa etária e do gênero, surgindo
funções sociais que denotam o prestígio de quem as exercem,
como a de sacerdote (que sequer existia a época de César) ou a de
guerreiro, agora um membro diferenciado no interior da tribo. A
figura do camponês, que já vimos que existia como parte integrante
daquela comunidade e que realizava atividades fundamentais
à reprodução da nobreza, era completamente relegada para fora
dos espaços de decisão da tribo e a sua própria atividade era
menosprezada pelos nobres, pois “nem arar a terra ou esperar a
colheita anual é tão fácil para eles como provocar o inimigo e ser
ferido; acreditam, além disso, ser preguiça inépcia adquirir pelo
suor o que se poderia obter pelo sangue.”62
Há, ainda, uma diferença crucial entre o relato de César e o de
Tácito. No primeiro a guerra era feita por todos da mesma tribo,

61
Ibid., cap. 11.
62
Ibid., cap. 14.

184
consistindo basicamente todos de uma mesma família, usando
uma concepção alargada do termo, já o segundo nos apresenta
laços familiares mais flexíveis: “Se a cidade em que nasceram, em
longa paz e ócio entorpece, a maior parte dos nobres adolescentes
procura aquelas outras nações que se empenham em guerra, porque
o repouso é desagradável (...)”.63 Dessa forma, já se torna possível
a criação de entidades maiores, para além da tribo, o que constitui
um primeiro movimento em direção ao que ficou conhecido como
confederações tribais.
Os integrantes do séquito, diferentemente dos guerreiros da
época de César, não mais lutam em prol do grupo, mas sim de si
mesmos e de seus chefes: “Na verdade é para toda vida e infamante
a sobrevivência na guerra ao seu chefe: defendê-lo, garanti-lo,
acrescer-lhe a sua glória as suas próprias proezas constitui o seu
principal juramento: os chefes lutam pela vitória, os companheiros
pelo chefe.”64 Por sua vez, o chefe, como recompensa aos que a
ele se aliaram, faz a redistribuição do butim. Ou seja, o doador
aumenta sua influência sobre seus dependentes concedendo-lhes
infinitamente mais do que poderão retribuir. Assim, “(...) exigem,
pois, da liberalidade dos chefes o mesmo cavalo na guerra, e a
sangrenta frâmea da vitória, acepipes e adornos abundantes ainda
que grosseiros preferem em vez de soldo.”65
O local para realizar essa cerimônia de redistribuição era nos
banquetes, uma vez que por si só dividir a mesa com o chefe e por
ele ser alimentado já perfaz uma distribuição (e esbanjamento) de
riqueza:

Empenham-se também nos banquetes em


reconciliar os inimigos, de contratar casamentos
e de eleger seus chefes, e finalmente das coisas da
paz e da guerra, porque em outra ocasião o espírito

63
Ibid.
64
Ibid.
65
Ibid.

185
(ânimo) não está mais apto para as cogitações
simples, não entusiasma tanto para as grandes
empresas.66

Outro espaço no qual essas alianças são reforçadas são nos


funerais: “(...) incineram os corpos dos varões ilustres com certo
lenho. E não lançam à fogueira nem vestes nem perfumes: só
queimam nela as armas do morto, e algumas vezes o cavalo.”67 Esse
ritual em si causa já causa grande impacto, a toda comunidade, pois
à cremação de um corpo é necessária grande quantidade de calor.
Ou seja, mobiliza-se grandes quantidades de trabalho para coletar
o combustível que possibilite uma fogueira queimar por dias a fio,
algo visualmente impactante. Além disso, a cerimônia fúnebre é
um espaço para a reafirmação pelas novas gerações de alianças
anteriores, pois: “(...). [Nas sepulturas,] Deixam bens as lágrimas
e os prantos, e tardiamente a dor e a tristeza.”68. Aqui, a troca de
presentes se manifesta para a reprodução daquela estrutura social.
A existência de uma cerimônia como essa indica a formação de
linhagens de poder que são herdadas, como se atesta em: “Nobreza
insigne ou grandes méritos dos pais emprestam aos adolescentes a
mesma dignidade de chefe (...).”69
Vemos, por volta do século II d.C., a configuração de entidades
políticas mais dilatadas que se formam em torno dos chefes capazes
de prover conquistas e alianças.

É costume das cidades fornecer espontânea e


separadamente aos chefes certa quantidade de
rebanho ou de cereais, aceitos como uma honra, que,
além disso, vêm em auxilio de suas necessidades. O
que mais apreciam são os donativos dos povos

66
Id., cap. 22.
67
Id., cap. 27.
68
Ibid.
69
Id., cap. 13.

186
vizinhos, não só os remetidos pelos particulares,
mas também pelo público (governo): cavalos
escolhidos, pesadas armas, arnéses e colares (...).”70

Aquilo que o autor interpreta aqui como feito de livre vontade


é, em geral, negociado ou imposto. Com base nessa relação desigual,
que se manifesta nas fontes sob a forma de troca de presentes, laços
de dependência mais permanentes se estruturam. Sendo assim, é
razoável supor que esse processo esteja na base de constituição
das chamadas confederações tribais. Em outras palavras, a
cristalização de hierarquias entre as próprias tribos é o que
permite a formação de estruturas mais complexas, ultrapassando
a identidade comunitária e formando ligações que extrapolam o
parentesco. Os chefes, além dessas “doações” e das rendas oriundas
do seu patrimônio fundiário, retiram ainda receitas da execução
da justiça: “Parte da multa pertence ao rei ou à cidade, parte ao
próprio ofendido, ou aos seus próximos (parentes).”71
Percorrido esse trajeto para o entendimento das referências
que se pode recolher da Germania, vemos também que apresenta
coerência interna. O quadro que podemos construir dessas
sociedades do segundo século da nossa era é de tribos que se
hierarquizaram rapidamente e mudaram de forma drástica suas
estruturas sociais e suas formas de reprodução interna.
Apesar de considerar que esses documentos são grandes
fontes de informação sobre os germanos, na bibliografia
especializada é corrente a crítica de que eles refletiriam sobre as
questões específicas do contesto histórico de Roma e não sobre as
sociedades por elas descritas. César teria meramente construído
um inimigo a sua altura, a fim de justificar a renovação se seu
consulado, ou que Tácito somente teria feito um contraponto
moral aos romanos usando os povos que descreve. De minha

70
Id., cap. 15.
71
Id., cap. 12.

187
parte, creio que mesmo que esses documentos estejam orientados,
em suas elaborações, por perspectivas particulares dos autores
e sejam muito embasadas pelo olhar de um romano, eles foram
escritos nos relatando elementos cruciais sobre a Germânia de
meados do século I a.C. a fins do I d.C.. Associo esse ataque aos
documentos diretamente a uma forma de abordagem da História
que insiste em circunscrevê-la meramente ao âmbito do discurso
sendo, segundo essa perspectiva, a realidade inapreensível por nós.
Poderíamos, a partir dessa interpretação, no máximo apreender a
visão da aristocracia romana sobre esse outro.
Não posso concordar com essa visão reducionista que se
prende basicamente à descrição documental, permeada por uma
perspectiva muito pouco crítica, e pouco capaz de contribuir com
o papel social do historiador. O qual deve ser a compreensão
e ação no presente72 observando o passado, não como um mero
antiquário, mas como um campo fundamental de disputas73.
Portando, travei contato com reflexões feitas por arqueólogos,
caminhando no sentido de reunir elementos que me auxiliem não
só a legitimar meus argumentos, mas também a própria utilização
dessas fontes, extremamente ricas para o estudo das comunidades
germânicas. Os arqueólogos, apesar de serem críticos a essas fontes,
trazem muitos elementos que corroboram a análise que desenvolvi
aqui.
Iniciarei o debate por Kristian Kristiansen, que nos mostra
em uma de suas obras que a proto-história europeia é bem mais
complexa do que se imagina. O foco nesse caso recai sobre a
Escandinávia da Era do Bronze (entre 1700 a.C. e 500 a.C.), e as
relações de aliança de longa distância dos vários grupos da região,
sendo que o método utilizado para tal estudo concentrou-se na

72
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. p. 63.
73
BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu...: Paganismo,
Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (Séculos IV-
VIII). São Paulo: EDUSP, 2013. p. 240.

188
análise dos vestígios materiais remanescentes das atividades de
intercâmbio de produtos. Notou-se, a partir disso, que os artefatos
produzidos na região escandinava atingiam localidades longínquas
e que havia redes de relações de consideráveis proporções74.
Contudo, como ele bem destaca, para que essa realidade
acima descrita possa existir é necessário que exista produção de
excedentes, e eu reitero o que já foi discutido mais acima: não
só produção, mas também expropriação dessas “sobras” por um
indivíduo (ou grupo de indivíduos). Ou seja, temos um processo
de diferenciação social que remonta a fins do segundo milênio
antes de Cristo. O meu ponto de divergência com o autor e com
outros que se inserem nessa linha de pensamento é justamente
o fato de que ele vincula o colapso das rotas comerciais75, em
princípios da Era do Ferro (500 a.C.), à desestruturação dessa
hierarquização em um jogo de causa e consequência que parece um
tanto simplista. Inclusive, recentemente vem sendo posta em xeque
essa interpretação relativa à ocorrência de um colapso. Atualmente,
tende-se a entender as mudanças processadas da passagem do
Bronze para o Ferro mais como fruto de uma reorganização social
do que de uma desestruturação.
Kristiansen contribui ainda para nosso objetivo ao demonstrar
que, durante a Era do Ferro (150 a.C. – 200 d.C.), a terra passou
a ser vista como um recurso finito capaz de ser acumulado por
pressões populacionais ou ecológicas76. Além disso, afirma ainda
existir uma ideologia igualitária nos enterramentos entre 500 a.C.
e 200 d.C., havendo um maior número de tumbas dispondo de
uma menor concentração de riqueza em seu interior77.

74
KRISTIANSEN, Kristian. Center and periphery in Bronze Age Scandinavia.
In: ROWLANDS, M. et al. Center and Periphery in the Ancient World.
Cambridge: Cambridge University Press, 1987. p. 129.
75
Id., p. 133.
76
Id., p. 134.
77
Id., p. 130.

189
Outro autor fundamental à proposição que viso discutir aqui
é Lotte Hedeager. Para ela, a própria expansão romana é embasada
nos processos de estratificação que se processaram nas regiões da
Gália e da Germânia antes da chegada de César78. Isto é, para a
autora o expansionismo romano alcança apenas as regiões que já
conhecem níveis mais elevados de diferenciação social. Sendo assim,
segundo sua interpretação, os últimos povos celtas e germanos
que habitavam justamente o Limes serviriam como zonas tampão
para defesa contra invasões e como mediadores para a chegada
de produtos vindos de locais situados mais para o interior79, em
especial, escravos.
Essa atividade comercial na fronteira que atingia regiões
interioranas da periferia é mostrada também por Daphne Nash80,
evidenciando-se pela ampla distribuição de ânforas de vinho e
cerâmica do primeiro século pelo território gaulês. Havendo a
formação de alianças de Roma com as comunidades gaulesas
autônomas. Dessa forma, a Gália e a Europa Central passaram
a ser os principais polos de comércio de escravos oriundos das
perenes guerras correntes entre os germanos nos contextos de fins
do primeiro século antes de Cristo.
Hedeager, de maneira a sustentar seus argumentos, confirma
o que a última autora afirma, e fala que a disposição da cultura
material não é de maneira nenhuma aleatória. Há registro de
grandes quantidades de moedas de baixo e médio valor nas áreas
fronteiriças, o que atesta um comércio feito cotidianamente. Por sua
vez, mais ao norte não há registro monetário expressivo, contudo,
encontra-se uma concentração de bens de prestígio romanos,
usados de maneira a legitimar o poder dos chefes que começa a
aparecer de forma mais acentuada no período estabelecido por

78
HEDEAGER, Lotte, op. cit., p. 135.
79
Ver também MENDES, Norma Musco. Sistema político do Império Romano
do Ocidente: um modelo de colapso. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
80
HEDEAGER, Lotte, op. cit., p. 126.

190
Hedeager, que abarca do ano 1 ao 400 da nossa era. Logo, a autora
está se referindo à abertura de imensas novas possibilidades
de hierarquização graças ao contato com a sociedade romana;
não que elas não existissem anteriormente, mas se intensificam.
Tais possibilidades a autora, assim como Kristiansen, associa
muito fortemente à reabertura das rotas de comércio. Hedeager
reconhece que esse fator promove o crescimento das distinções
hierárquicas, mas ressalta que já havia um background de estruturas
minimamente diferenciadas.
Essa autora ainda avança uma explicação para a formação das
confederações tribais:

Num nível local a distribuição parece sugerir que as


mercadorias de prestígio romanas agora circulavam
entre a nova elite, em um sistema regional de
redistribuição. Em outras palavras, elas eram
distribuídas a uma distância maior para pequenos
chefes por um grande chefe em troca de bens e
serviços. (...). Velhos nomes tribais são substituídos
por novas de configurações regionais: sendo os
Francos, Saxões, Frisos, que continuaram Idade
Média adentro. (...). Os bens de prestígio romanos
eram parte de um processo no qual poder e influência
foram criados em combinação com expansão militar
e econômica, trouxe significativas mudanças sociais
e na paisagem política da Germânia livre nos 400
anos do Império Romano.81

É razoável supor que a atividade comercial favorece a formação


de estratos sociais e que a redistribuição de riquezas é fundamental
à construção de alianças tribais, parece, inclusive, que sem a lógica
do dom e contra dom elas não se sustentariam. Porém, como já
vimos é mais do que isso, há que se somar o que Engels, Hummer,
Sahlins e Godelier já nos mostraram a respeito da atividade
guerreira.

81
Ibid., p. 131.

191
Hedeager ainda nos mostra como a mudança nos
enterramentos traduz câmbios sociais. Ocorre, em princípios da
ocupação romana, um grande número de tumbas sem grande
concentração de riqueza nelas. Por outro lado, em fins do Império
a quantidade de túmulos era extremamente menor, contudo,
concentravam muito mais riquezas.
Outra interpretação interessante consiste na variedade de
armamentos, pois:

Grandes exércitos com armamentos variados


implicam em guerreiros bem treinados e uma
estrutura de comando que é pouco provável de
ter sido tirada de comunidades camponesas. Aqui
talvez, de maneira mais clara que em qualquer outro
lugar nós vemos o resultado material do contato
com o Império Romano, principalmente com seus
exércitos, os quais os povos germânicos tinham se
tornado bem familiarizados com o curso de séculos
de atividade guerreira nos dois lados da fronteira.82

Além disso, Hedeager aborda também a mudança no padrão


de habitação: em fins da era republicana, a habitação era dispersa
e as casas de tamanho reduzido; já em fins do período imperial,
elas eram grandes conjuntos de moradias conjugadas. Esta
diferenciação, para a autora, permite supor que a terra não mais
era redistribuída, mas era apropriada privadamente pelo chefe e
pelo seu séquito e de forma comunal pelas famílias83.
Colin Haselgrove,84 em um de seus textos, afirma que,
após a conquista da Gália, “o aumento da atividade guerreira
e o comércio externo propiciaram um ciclo de acumulação de
riqueza sem precedentes para grupos bem sucedidos em conjunto

82
Ibid., p. 132.
83
Ibid., p. 134.
84
HASELGROVE, Colin. Culture process on the periphery: Belgic Gaul and
Rome during the late Republic and early Empire. In: ROWLANDS, M., op.
cit., p. 100.

192
com a sua expansão territorial e demográfica.”85 Esse autor tem
uma percepção apurada e nos mostra como a dicotomia entre
enriquecidos e empobrecidos contribui para deteriorar os laços de
parentesco, pois haveria entre eles disputas e competição na forma
de ouro, moedas, armas, banquetes, ornamentos, gado e o apoio
de um séquito de guerreiros. O autor destaca que a formação de
estruturas complexas dificilmente ocorre de maneira isolada, logo,
ele nos fala sobre as entradas nos comércios de longa distancia,
o que favorece a acumulação de riqueza, algo que na opinião do
autor é fundamental para que haja disputas por posição a partir da
troca de presentes.
Converge ainda em sua análise o elemento guerreiro, atestando
que em fins do período republicano e princípios do Império,

somente no extremo norte e leste nas áreas costeiras


habitadas pelos Nervii, os Germani Cisrhenani e
outros grupos populacionais, através do Reno, que
encontramos um padrão de ocupação disperso e
outros elementos de comunidades genuinamente
acéfalas.86

Então percebemos, mais uma vez, que a hierarquização


percebida nos registros literários de César e Tácito encontra apoio
no registro material observado por Haselgrove.
Cotejando todas as informações apesentadas a partir dos textos
De Bello Gallico e Germania, da Arqueologia e das referências da
Antropologia é possível a apreensão mais apurada das realidades
retratadas. Resta-nos, então, tentar inferir o porquê das diferenças
tão marcantes que apareceram tanto na escrita quanto na cultura
material.
Algo que os arqueólogos nos mostraram é que as mudanças
nessas sociedades não vieram junto com as legiões romanas. As

85
Ibid.
86
Ibid., p. 111.

193
tribos germanas não eram estáticas ou imutáveis no tempo.
Contudo, é inegável que com a chegada dos romanos as mudanças
assumiram uma velocidade acelerada.
Em primeiro lugar porque as estruturas de comando voláteis,
que se formavam e se diluíam de tempos em tempos de acordo
com as guerras movidas, se cristalizaram, decorrendo da fixação do
Limes na linha do Danúbio e as constantes incursões de soldados
romanos na Germânia. Ou seja, a presença dos exércitos romanos
tornou os conflitos uma ameaça perene, forçando os chefes a
assumirem permanentemente essa posição, o que restringiu a
atividade militar, progressivamente, à intervenção de um grupo
específico, não mais havendo um rodízio.
Os chefes, agora rígidos em seus postos, passam a redistribuir
a riqueza sempre para o mesmo conjunto social, favorecendo a
formação da elite guerreira que então se especializa nessa atividade.
Aqueles excluídos da guerra, que como já vimos era uma forma
de obter excedente, passam progressivamente a uma condição
social inferiorizada e a potencial submissão como mão de obra
camponesa.
Os chefes mais poderosos passaram ainda a submeter outras
chefias de menor porte, seja pela conquista, seja pela aliança
exteriorizada pela troca de presentes. Algo que é fundamental para
poder fazer frente ao poderio militar de Roma. Isso enfraquece
os laços de parentesco, algo que já vimos ser fundamental para
constituição de entidades maiores e é exatamente o que está
ocorrendo nesse momento histórico.
A presença romana ainda facilita a inserção dos grupos
dominantes em rotas de comércio bastante extensas, passando a
ter acesso a bens de prestígio vindos de regiões distantes. Muitas
vezes, esses objetos que serviam como diferenciadores sociais
eram inclusive fornecidos por Roma, com o intuito de estabelecer
alianças com as tribos com as quais fazia fronteira.
A passagem de uma sociedade baseada na criação de gado,
caça e coleta para uma sociedade onde a agricultura desempenha

194
um papel mais central é marcada também por um controle mais
rígido sobre as terras, e é esse o movimento percebido no período
situado entre César e Tácito e visto na mudança no padrão de
moradias. Esse maior controle sobre os campos é fundamental
para a cristalização de estruturas de poder baseadas na diferença
de classes, pois caracteriza o acesso a um meio de produção básico
para a extração de riqueza de um grupo explorado e expropriado.
Essa diferenciação não cessa e continua seu movimento em
direção à constituição de estruturas de poder de caráter Estatal.
Portanto, não creio que os germanos tenham posto fim ao
grandioso e poderoso (basicamente moderno, segundo a concepção
de Weber) Estado Imperial Romano por serem primitivos e
desconhecerem as formas organizativas romanas. Talvez o próprio
Império, inclusive, possuísse estruturas mais condizentes com as
lógicas germânicas, pessoalizadas e não burocráticas, algo que as
sobrevalorizações e as análises modernistas insistem em turvar...

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197
Circulação e Exploração no Império
Egípcio do Reino Novo: uma análise
da tributação da região do Levante*1

Fábio Frizzo

O período da história faraônica conhecido como Reino Novo


inicia-se com a expulsão dos invasores hicsos e núbios do território
que os egípcios tinham estabelecido como seu durante o Reino
Médio. Seguiu-se a isto um período de expedições e conquistas
militares direcionadas ao sul e ao norte, iniciando a construção
de um império no Antigo Oriente Próximo, governado por uma
elite central liderada pela família real tebana da XVIIIª Dinastia,
consolidada com a ajuda dos conflitos militares. Cerca de 130
anos após o início da guerra de expulsão dos hicsos, o Egito já
alcançara o esplendor de sua territorialidade e influência na região
do Crescente Fértil. A área controlada, direta ou indiretamente,
pelo centro imperial de Tebas estendia-se da quarta catarata do
Nilo à cidade de Kadesh, nas margens do rio Orontes – atual
Síria Ocidental. Expedições militares partiam para alcançar o rio
Eufrates em busca de butim e os tentáculos das redes de trocas
atingiam a ilha de Creta ao norte e o Sudão Central ao sul,
impulsionando bens no sentido centrípeto para a “terra negra”.
Nosso principal objetivo é avaliar a circulação internacional de
bens – tratando mesmo a incorporada Wawat como estrangeiro
–, já que a circulação interna da sociedade egípcia era, como a

1
* Texto apresentado no Primero Encuentro de Jóvenes Investigadores sobre
Precapitalismo, ocorrido na Universidade Nacional de La Plata, Argentina, em
2011.

199
das outras sociedades da Era do Bronze, compartimentada2.
Neste sentido, bens de prestígio eram uma exclusividade da classe
dominante, auxiliando na manutenção de seu domínio sobre os
demais.
Concordamos com Godelier que a estrutura econômica das
sociedades pré-capitalistas era multicentrada, ou seja, não havia
equivalência total entre os bens. Mesmo na existência de moeda,
seja como padrão ideal de equivalência ou em sua existência física,
determinadas pessoas não poderiam ter acesso a certos bens de
prestígio, por exemplo. Segundo o antropólogo francês:

A inexistência de um modo único de circulação dos


bens em numerosas sociedades primitivas e rurais
explica-se, por um lado, pelo caráter limitado das
trocas, a ausência ou fraco desenvolvimento de
uma verdadeira produção mercantil, e, por outro
lado, pela necessidade de controlar o acesso (...) aos
estatutos sociais privilegiados, que são em número
limitado dentro dessas sociedades.3

Um primeiro passo para o estudo da circulação imperial é


distinguir as diferentes relações de dominação do centro sobre a
periferia. No presente caso, é unanimidade entre os egiptólogos a
existência de sensíveis divergências nas relações do Egito com suas
diferentes áreas dominadas. De início, notaram-se distinções entre
a exploração das regiões do norte, na Síria-Palestina, por um lado,
e do sul, da Núbia, por outro4. Mais tarde, a hipótese mais aceita

2
GODELIER, Maurice. Antropologia Econômica. In: Antropologia: Ciência
das Sociedades Primitivas? Lisboa: Edições 70, 1988. pp. 141-189. A citação é
da p. 177.
3
Ibid., p.178.
4
KEMP, Barry. Imperialism and Empire in New Kingdom Egypt (c. 1575-1087
B.C.). In: GARNSAY, P. D. A. & WHITTAKER, C. R. (orgs.). Imperialism in
the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1978. pp. 7-57. A
citação é das pp. 19-20.

200
passou a ser a de que a dominação das regiões da Síria-Palestina e
de Kush (ainda que autores divirjam em relação ao limite geográfico
exato da dominação direta egípcia no sul) contrastava com aquela
exercida em Wawat5. Trataremos, neste artigo, basicamente da
porção norte da periferia imperial.
A princípio, o império egípcio baseava-se no estabelecimento
de uma série de protetorados mais ou menos frouxos na região
da Síria-Palestina através de juramentos de fidelidade, tornando-
os territórios vassalos. O texto de um destes juramentos chegou a
nós através da Estela de Gebel Barkal, ordenada por Thutmés III.
Nela, o escriba se refere à jura feita pelo governante derrotado após
a Batalha de Megiddo:

Não repetiremos o mal contra o rei Menkheperra


– que se lhe conceda a vida!, nosso senhor, durante
nosso período de vida, posto que presenciamos seus
poderes. Ele nos concedeu o alento porque ele quer.
Seu pai é quem o fez, [Amon-Rá senhor dos tronos
das Duas Terras], e não a ação dos homens”.6

Estabelecido o vínculo, a área passava a compor a periferia


do império egípcio. Segundo Galán, a autoridade do faraó
se manifestava justamente na possibilidade de tributar esses
territórios e, muitas vezes por meio deles, ter acesso a trocas com

5
Esta posição parte da obra de Robert Morkot e foi seguida por outros
arqueólogos especializados na Núbia como Stuart Smith e José Galán. Cf.
MORKOT, Robert G. Nubia in New Kingdom: The Limits of Egyptian
Control. In: DAVIES, W. D. (ed.). Egypt in Africa. Nubia from Prehistory to
Islam. London: British Museum Press, 1991. pp. 294-301; SMITH, Stuart
Tyson. Askut in Nubia: the economics and ideology of Egyptian imperialism in
the second millenium B.C. London: Kegan Paul International, 1995; GALÁN,
José M. Victory and Border. Terminology related to Egyptian Imperialism in the
XVIIIth Dinasty. Hildesheim: Gerstenberg, 1995.
6
Estela de Gebel Barkal, traduzida em GALÁN, José M. (ed.). El Imperio
Egipcio. Inscripciones, ca. 1550-1300 a.C. Barcelona: Universitat de Barcelona,
2002. p. 121.

201
grandes reinos mais distantes7. A estratégia era manter, ao máximo,
as estruturas locais, diminuindo os custos da empreitada imperial,
já que o Egito dispunha de recursos materiais e humanos limitados
para uma manutenção de toda área de influência somente através
da coerção.
Em certos casos, poderia haver um documento pré-
estabelecendo as quantias esperadas para as entregas de tributos,
conforme nos mostram os Anais de Thutmés III do seu trigésimo
terceiro ano de trono solo: “As escalas proporcionaram tudo como
seu imposto, como (indicava) seu documento (nt-a) anual, junto
com a contribuição do Líbano, como (indicava) seu documento
anual, junto com os chefes do Líbano...”8
A ação faraônica para com esses protetorados era diferenciada.
Dependendo dos seus interesses, uma liderança local poderia
ser apoiada inclusive com envio de riquezas. Por outro lado, o
descontentamento do monarca poderia resultar na retirada do líder
local e sua substituição por outro mais próximo da corte egípcia.
Este era, inclusive, o sentido da política de sequestro dos filhos das
elites periféricas e sua educação junto aos príncipes da “terra negra”.
A administração imperial dividiu a Síria-Palestina em
três regiões, Canaã, Upe e Amurru, ainda que este sistema não
estivesse de todo formalizado. Os principais centros egípcios
nestas localidades eram, respectivamente, Gaza, Kumidi e Sumur.
A administração ficava nas mãos dos príncipes locais, considerados
pelos egípcios como “prefeitos” responsáveis pela coleta e envio do
tributo.
Um exemplo do poder do faraó sobre estes prefeitos é dado em
uma carta enviada a Aziru, rei de Amurru, no atual Líbano. Nela,
o monarca egípcio mostra toda sua insatisfação ao questionar seu
vassalo acerca de seu comportamento e exigir sua presença em
Tebas para prestar explicações.

7
Ibid., p. 25.
8
Id., p. 90.

202
Diga a Aziru, governante de Amurru: Este é o rei,
teu senhor, falando: (...)
Tu não escreveste para o rei, meu senhor, dizendo:
“Eu sou seu servo como foram todos os prefeitos
anteriores desta cidade”? (...)
E se tu agiste lealmente, ainda assim todas as coisas
que tu escreveste eram inverdades. Na verdade, o rei
refletiu sobre elas da seguinte forma: “Tudo que tu
disseste não é amigável.” (...)
Contudo, se tu desempenhares teu serviço para o
rei, teu senhor, o que o rei não fará por você? Se por
qualquer razão, de alguma maneira tu prefiras fazer
o mal e se tu conspirares mal, coisas traiçoeiras,
então, tu, junto com toda tua família, morrerás pelo
machado do rei.9

A ameaça ao governante de Amurru está ligada a uma série


longa de cartas acusatórias do rei da cidade de Biblos, Rib-Hadda,
datadas ainda do governante anterior, de Abdi-Ashirta, pai de
Aziru, que estaria agindo de forma contrária ao faraó e favorável
a outros grandes poderes do Oriente Próximo, como Hatti. Há
dezenas de missivas no arquivo de Amarna10 com reclamações de
Rib-Hadda, requisitando uma providência do monarca egípcio,
principalmente com o envio de tropas para resistir aos assédios das
tropas de Amurru.

Os Apiru mataram Aduna, rei de Irqata, mas


ninguém disse nada sobre Abdi-Ashirta, então
eles continuam tomando territórios para si. Miya,
chefe de Arasni, apoderou-se de Ardata e há pouco

9
MORAN, William L. (ed.). The Amarna Letters. London: Johns Hopkins
University Press, 1992. Carta EA 162. p. 248-250.
10
Arquivo epistolar encontrado no palácio de Amenhotep IV/Akhenaton na
cidade de Akhetaton, atual Tel el-Amarna, composto por cartas, escritas em
cuneiforme, trocadas com governantes de grandes e pequenos reinos da área do
Levante.

203
os homens de Ammiya mataram seu senhor. Estou
com medo. Que o rei fique informado de que o rei
de Hatti tomou todos os reinos que eram vassalos
do rei de Mittani. Veja, ele é rei de Nahrima da terra
dos grandes reis e Abdi-Ashirta, o servo e cachorro,
está tomando todas as terras do rei. Mande
arqueiros.11

As súplicas constantes do rei de Biblos ao faraó insinuam que,


provavelmente, este não as atendia facilmente, o que demonstra
outra face da política imperial egípcia, a saber, o descaso e mesmo
o incentivo às disputas entre os chefes subordinados. Segundo
Carla Sinopoli, uma das características dos impérios antigos
era justamente a construção de mecanismos para administrar a
diversidade e, em muitos casos, apoiar a diferença e a competição
entre diferentes elites regionais contribuindo para a prevenção do
surgimento de uma unidade contrária à hegemonia imperial12.
Deslocar tropas para as cidades submetidas era algo constante
pela necessidade de sufocar revoltas, garantir a segurança de rotas
de troca e proteger os vassalos. De qualquer maneira, exércitos não
são auto-sustentáveis. O trânsito de soldados requeria uma infra-
estrutura preparada para o provimento das tropas onde quer que
elas fossem requisitadas.
A utilização da marinha real para o abastecimento das
guarnições egípcias estabelecidas em cidades portuárias na costa
da Síria-Palestina, que serviam de base para as incursões militares
no interior, é comprovada desde o final do segundo período
intermediário, conforme nos indicam as Estelas de Kamés13. Entre

11
MORAN, W. op. cit., EA 75. pp. 145-146.
12
SINOPOLI, Carla. Imperial Integration and Imperial Subjects. In:
ALCOCK, Susan (ed.). Empires. Cambridge: Cambridge University Press,
2001. pp. 195-200. A citação é da p. 196.
13
As duas estelas estão traduzidas para o português, publicadas e analisadas em
CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus,
1997. A tradução encontra-se nas páginas 48-50.

204
os portos estratégicos estava o da cidade de Biblos, imprescindível
para garantir a ação militar expedicionária ou coercitiva na região
do Levante e mais para o leste. Um trecho do relato do butim
conquistado na tomada de Megiddo por Thutmés III legou-nos
uma pista acerca dessa lógica de funcionamento imperial:

Os campos de cultivo foram convertidos em parcelas,


as quais foram dadas aos agentes do Palácio – v.p.s.
– para recolher sua colheita. Relação da colheita
que sua majestade trouxe das parcelas de Megiddo:
207.300 sacos de trigo, além do que foi consumido
pela tropa de sua majestade [...].14

O gerenciamento da colheita foi deixado aos administradores
reais provavelmente para evitar o roubo. Mas o que foi feito com
a quantidade imensa de cereais colhida? Spalinger estima que
seriam necessários aproximadamente 5.635 animais de carga
para transportar os grãos até o Egito. Partindo da ração mensal
de um trabalhador das tumbas reais de Tebas, o autor afirma que
o montante capturado serviria para alimentar um montante de
33.320 pessoas pelo período de tempo de um mês15. O transporte
para Tebas ou para qualquer cidade no Delta egípcio provavelmente
era custoso demais e o benefício – real ou ideal – não era tão
grande neste momento, já que o Egito ainda dispunha de terras
não cultivadas e de uma produção crescente a partir da utilização,
desde o fim do II Período Intermediário, de novas tecnologias
agrárias. Assim, o mais provável é que a produção agrícola tenha
sido distribuída pelas cidades vizinhas da Palestina, que serviriam
de base para o reabastecimento das tropas egípcias durante
suas campanhas levantinas, bem como de sedes das guarnições
faraônicas locais.

14
GALÁN, José M. El Imperio…, op. cit., p. 85.
15
SPALINGER, Anthony. War in Ancient Egypt. Oxford: Blackwell Publishing,
2005. p. 95.

205
Havia, portanto, uma lógica administrativa imperial que se
assemelha à integração econômica redistributiva, que, segundo
Polanyi, era a forma hegemônica nas civilizações hidráulicas do
Oriente Próximo. Não à toa, o egiptólogo polanyiano de origem
norte-americana Edward Bleiberg elaborou uma teoria acerca do
modelo de tributação imperial que diferencia um tipo de taxação
voltada para distribuição local de outra doada para o tesouro
pessoal do faraó16.
Segundo Bleiberg, as transações econômicas egípcias eram
nomeadas de acordo com a fonte e o destino dos bens envolvidos,
bem como as pessoas que participavam. O termo BAkw(t) deriva
da raiz bAk, que pode ser traduzida como trabalhador ou servidor.
O estudo do egiptólogo norte-americano parte basicamente dos
Anais de Thutmés III, nos quais é notada a diferenciação entre dois
tipos de tributos conseguidos no exterior: o bAkw(t) e o inw.
O bAkw(t) era uma forma de transação econômica relativa
unicamente à aquisição de produtos de distintas áreas geográficas,
grupos de profissionais e príncipes estrangeiros. Neste sentido,
um templo, por exemplo, poderia receber bAkw(t) de uma cidade,
ou de áreas mais extensas. Entre as localidades envolvidas nessa
relação, aparecem nas fontes egípcias: Wawat, o Líbano, os “Países
estrangeiros de Retenu”, Kush, “A terra da Áisa e/ou Djahy”, a
“Terra Vermelha”, o “Sul e o Norte”, “Todas as terras estrangeiras”,
“Os países estrangeiros do sul”, “Os países estrangeiros do norte”, as
“terras” e “todas as terras”.
Em relação aos grupos de profissionais e príncipes estrangeiros,
as fontes contêm citações a “trabalhadores do campo”, “Príncipes de

16
O autor elabora sua teoria em dois artigos: BLEIBERG, Edward. The King`s
Privy Purse During New Kingdom: An Examination of INW. Journal of the
American Research Center in Egypt. vol. 21. American Research Center in Egypt,
1984. pp. 155-167; e BLEIBERG, Edward. The Redistributive economy in
New Kingdom Egypt: An Examination of BAku(t). Journal of the American
Research Center in Egypt. vol. 25. American Research Center in Egypt, 1988.
pp. 157-168.

206
...”, “Príncipes de todas as terras estrangeiras”, “arqueiros”, “povo (do
Egito)”, “mercadores” e “pescadores”.
Quanto aos usos da taxação, Bleiberg afirma:

Ao menos três usos para o bAkw(t) podem ser


determinados a partir das fontes existentes. Eles
incluem decorar o templo, prover oferendas Htp-nTr
para o deus e aprovisionar os portos para operações
militares. Este último demonstra a função
redistributiva do bAkw(t).17

Bens doados sob forma de bAkw(t) variavam dos mais comuns


aos de produtos de luxo, como metais preciosos, como ouro,
electrum e madeiras de lei, utilizados comumente na decoração dos
templos para construção e ornamentação de portais, por exemplo.
A imensa maioria desses bens era proveniente de fora da “terra
negra”. No caso das oferendas divinas (Htp-nTr), pelo contrário, as
fontes eram egípcias.
Se o caso das doações de bens de consumo para templos
são exemplos claros da lógica redistributiva do bAkw(t), o
aprovisionamento de portos segue no mesmo rumo, conforme o
fragmento seguinte do reinado de Thutmés III: “Agora os portos
estavam abastecidos com tudo de acordo com sua arrecadação e
com seu costume, em conjunto com o bAk do Líbano de acordo
com seu costume, em conjunto com os príncipes do Líbano...”18
Uma vez tendo recebido bens, um templo poderia ainda
repassá-los. Bleiberg levanta a possibilidade da existência de
doações templárias para financiar atividades militares, como
uma espécie de adicional à benção divina que deveria garantir a
vitória. Assim, segundo o autor, os templos seriam financiadores
de expedições de conquista, em conjunto com os fundos reais. Tal
afirmativa parece se confirmar se entendermos os templos como
parte do aparato estatal em conjunto com o palácio.

17
BLEIBERG, Edward. Redistributive… op. cit., p. 161.
18
Ibid., p. 162.

207
O financiamento templário de campanhas militares é uma
forma clara de comprovação do caráter redistributivo do bAkw(t),
uma vez que a mesma palavra era utilizada para os bens que
eram doados para os templos e para os enviados por estes para o
financiamento das expedições.
Se o bAkw(t) é doado a templos, há outro tipo de instituição
econômica que flui direto para as reservas do faraó, o inw. Este é
traduzido mais comumente como tributo ou doação, numa ligação
complexa com a ideologia teocrática faraônica que será discutida
posteriormente. Bleiberg, por outro lado, critica as traduções e
interpretações usuais do termo, afirmando que elementos como o
bAkw(t) e o inw são realidades únicas da economia egípcia, não
correspondendo a nenhum conceito moderno. O autor chega
ao extremo de acusar os egiptólogos de julgarem moralmente os
egípcios como mentirosos por estarem menos interessados em dar
nome a conceitos reais do que em aproximar as realidades antigas
das contemporâneas.
Bleiberg parte da teoria de Polanyi de que as economias
antigas devem ser analisadas de forma inseparável com as relações
sociais daquelas civilizações para tentar determinar o que era
o inw. Neste sentido, apóia-se na visão da economia egípcia
trabalhando a partir da lógica da redistribuição, baseada em
templos principalmente. Enquanto todos os egípcios participavam
dos circuitos redistributivos, somente o faraó, por sua posição de
soberano, estava excluído:

Ele estava apto a existir fora desse sistema porque


ele tinha outra fonte de renda em um sistema sócio-
econômico paralelo, cujo maior componente era o
inw. Inw era uma fonte de renda privada para o rei.
Não estava incluída necessariamente na economia
redistributiva mais ampla.19

19
BLEIBERG, Edward. The King`s… op. cit., p. 156.

208
A separação do restante da lógica econômica redistributiva
oficial dava-se pelo fato de que o inw deveria ser utilizado para
necessidades pessoais do rei – ainda que, em última instância,
algumas delas fossem sociais, já que ele era o responsável por
manter a existência universal. Neste sentido, os bens conseguidos
com o inw eram revertidos para a doação de dádivas aos deuses,
aos chefes estrangeiros e para manutenção da família direta do
monarca.
São três os argumentos basilares de Bleiberg para comprovar
sua tese de que o inw compunha uma espécie de reserva privada do
faraó. O primeiro deles seria o fato de que este tipo de contribuição
era visto como um atributo da monarquia, distinto da idéia geral de
que tudo no universo pertence ao rei. Neste sentido, o Egito recebia
inw como resultado de uma intervenção divina direcionada ao
faraó, que lhe garantia as entregas por parte de povos estrangeiros,
a exemplo do caso de Hatshepsut: Os deuses falaram a Hatshepsut
em sua viagem para o norte: “Que tu cortes as cabeças dos soldados,
que tu captures os chefes de Retenu, possuindo o terror do tempo
de teu pai, seu inw consistindo em homens, etc.20
O segundo argumento de Bleiberg é baseado no fato de que
o monarca em pessoa ou um de seus representantes imediatos
recebia diretamente o inw, ao contrário de outras trocas de bens.
Conforme o autor, os produtos recebidos deveriam ser coletados
e ordenados a partir de um sistema específico que visava evitar ao
máximo a intervenção da burocracia de Estado.
Ao contrário do bAkw(t), que poderia ser recebido por
qualquer representante estatal, o inw caracterizava uma relação
pessoal entre o doador – ainda que algumas entregas não fossem
voluntárias – e o faraó. Os Anais de Thutmés III contam com
listas de entregas anuais de inw por enviados estrangeiros de áreas
submissas ou não, como aquelas do ano 33 de seu reinado:

20
BLEIBERG, Edward. The King`s… op. cit., p. 157.

209
Relação dos produtos trazidos pelos chefes
das terras estrangeiras para sua majestade: 513
dependentes homens ou mulheres (...).
Produtos da grande Hatti neste ano: 8 aros de prata
que somam 401 deben, 2 pedras grandes brancas
valiosas, madeira-tchagu (...).
Contribuição do maldito Kush neste ano: 155
deben e 2 qidet de ouro (...).
Contribuição de Wawat neste ano: ouro...21

Conforme o que se pode observar neste fragmento, a entrega
de inw era feita tanto pelo grande reino de Hatti, rival do Egito
em seu poder, quanto por áreas submetidas de diferentes formas,
como o Líbano, Kush e Wawat. Todavia, parece-nos razoável que
o recebimento de inw de Hatti seja uma reconstituição ideológica
de uma troca de presentes, feita para o público interno, ocultando
o que do Egito ia para os “grandes reis”, “irmãos” do faraó no trato
internacional.
O faraó quase certamente não via esta relação como sendo
composta por partes iguais. Os relevos das cerimônias de
recebimento de inw mostram os entregadores como subservientes,
prostrados frente ao monarca da “terra negra”. Um exemplo é o das
imagens do hb-sd de Amenhotep IV/Akhenaton encontradas em
talatat (blocos de pedra) no templo de Karnak.

GOHARY, Jocelyn. Akhenaten’s Sed Festival at Karnak. London and New


York: Kegan Paul International, 1992.

21
GALÁN, José M. El Imperio… op. cit., pp. 90-91.

210
Na figura, é possível identificar uma série de homens
prostrados frente ao faraó. Da esquerda para a direita, encontram-
se, na primeira sequência, um sírio, dois amoritas, vindos da
Babilônia, e um núbio. Na segunda sequência, estão presentes um
sírio, um amorita e um núbio.
Por fim, o terceiro argumento apresentado por Bleiberg
para confirmar sua tese de que o inw é parte da renda pessoal
do monarca é o dos usos desta riqueza. As principais formas de
utilização são na manutenção do palácio real, na doação para
templos e no pagamento de trabalhadores em obras funerárias.
Havia, ainda, uma estrutura administrativa especial para lidar
com o inw. Este deveria ser apresentado em ocasiões formais,
como o hb-sd, tomando a forma de um desfile frente ao faraó,
conforme formulado por Cyril Aldred a partir da observação de
cenas de tumbas da classe dominante da época de Akhenaton-
Tutankhamon:

Ele [o faraó] recebe um alto funcionário,


normalmente o dono da tumba, que (...) se mostra
como único protagonista na apresentação dos
portadores de tributos e legados da Ásia e Kush e,
raramente, do Egito mesmo. (...) as cenas não têm
nada a ver uma parada de espólios de guerra, mas
representam uma cerimônia pública, muito próxima
dos ritos de coroação, na qual a larga soberania do
novo governante era reconhecida por sua recepção
de presentes e homenagens das nações estrangeiras,
bem como dos representantes de seu próprio povo.22

Segundo Bleiberg, as cerimônias de entregas não podem


ser reduzidas à ocasião da coroação. Neste sentido, o egiptólogo
acredita na existência de eventos especiais para a apresentação

22
ALDRED, Cyril. Year Twelve at el-Amarna. Journal of Egyptian Archaeology.
vol. 43. Egypt Exploration Society. dez., 1957. pp. 114-117. A citação é da p.
114.

211
de inw. A representação deste momento numa tumba particular
explica-se tanto pela vontade do proprietário de se mostrar entre
aqueles que tiveram a honra de comparecer frente à Sua Majestade
durante a cerimônia de apresentação dos tributos, quanto pelo
fato de que os funcionários deveriam contribuir com “presentes” de
comida e bebida para o júbilo régio.
Ainda na lógica da administração do inw, Bleiberg aponta
para a existência de depósitos especiais, conhecidos como gs-
pr, utilizados para armazenar as riquezas conseguidas daquela
maneira. Em complemento, havia um grupo de burocratas,
nomeados Ssp inw, responsáveis por lidar com tais bens.
Para nós, o fundamental é a ligação clara do inw com
o imperialismo egípcio, uma vez que este era composto por
uma série de bens de consumo ou de luxo enviados pelas áreas
vizinhas, dominadas ou não, diretamente para o faraó e, portanto,
para o centro imperial. No caso das áreas submetidas, direta ou
indiretamente, o inw servia como uma espécie de tributo – como
é comumente traduzido. Por outro lado, as grandes potências
regionais ofereciam o inw como dádivas em reconhecimento da
grandeza do império da “terra negra”.
Uma abordagem teórica possível para a relação entre transações
como o inw e o bAkw(t), por um lado, e o fluxo de bens do centro
para a periferia, por outro, é o modelo criado por Terence D’Altroy
e Tomothy Earle para explicar o império inca – ainda que haja
necessidade de alguma modificação para uma adaptação coerente
ao caso egípcio.
D’Altroy e Earle estudam o financiamento – no sentido de
manutenção econômica – do império inca, dividindo suas rendas
em duas categorias: a finança básica (staple finance) e a finança de
riqueza (wealth finance)23.

23
D’ALTROY, Terence & EARLE, Timothy. Staple Finance, Wealth Finance,
and Storage in the Inka Political Economy. Current Anthropology. vol. 26, n. 2,
Chicago: The University of Chicago Press, 1985. pp. 187-206.

212
A primeira envolveria pagamentos obrigatórios de bens
necessários à subsistência do Estado, como grãos e gado, por
exemplo, sendo utilizada para a manutenção dos representantes
do império. Neste sentido, a finança básica tornar-se-ia um
mecanismo fundamental para o funcionamento de um sistema
imperial que necessariamente tem que lidar com a diversidade de
atividades dispersas, que passam a ser mantidas por mobilizações
regionais.
Não por coincidência, os autores associam a finança básica
à economia redistributiva como forma de integração econômica,
pensada por Polanyi. Desta maneira, facilitam nosso caminho em
identificá-la com a instituição econômica egípcia conhecida como
bAkw(t). Se os grãos e o gado captado na periferia do império
egípcio eram muito volumosos para serem transportados para seu
centro deveriam, como visto, permanecer em locais estratégicos da
periferia para sustentar o pessoal administrativo e, principalmente,
as guarnições militares fixas ou enviadas para algum fim.
A finança de riqueza, por outro lado, seria formada
principalmente por bens de luxo e produtos secundários, que
poderiam ser utilizados como formas de pagamento, incluindo
metais preciosos, por exemplo. D’Altroy e Earle afirmam que tais
bens poderiam ser calculados a partir da equivalência com outros
de natureza similar, mas que variavam em sua conversibilidade
em relação aos produtos básicos – o que coaduna, de certa
forma, com a lógica das diferentes modos de circulação. Os bens
de luxo apropriados dessa maneira deveriam fluir diretamente
das populações subservientes para a autoridade central, sendo
utilizados como pagamentos para funcionários do núcleo imperial.
No caso egípcio, a finança de riqueza pode ser relacionada
ao inw, que fluía diretamente para as reservas reais, necessitando
apenas de uma pequena adaptação. Os pagamentos ou ofertas de inw
para o faraó comportam não só bens de luxo, mas também alguns
produtos básicos, como gado. Acreditamos que estes produtos
básicos, nas quantidades enviadas, poderiam ser transportados

213
devido à relativa facilidade de trânsito proporcionada pelo Nilo.
Stuart Smith afirma ainda que houvesse um fluxo de produtos
básicos de alto valor como madeiras, azeite e vinho, por exemplo,
seja através do Nilo ou mesmo por meio de caravanas com tropas
de mulas24. Todavia, a maioria desses produtos deveria continuar
nas áreas periféricas. Bens de luxo, por outro lado, não deveriam
permanecer na periferia, sendo enviados para a decoração de
templos, para serem presenteados a membros da elite central, para
serem enviados a outras partes do império no sentido de manter
as elites locais fiéis ao faraó ou para serem remetidos como dádivas
nas relações internacionais do Egito com grandes ou pequenos
reinos.
Enquanto a finança básica destinava-se à manutenção e ao
bom funcionamento do sistema imperial, a finança de riqueza
era utilizada basicamente como mecanismo de reprodução das
classes dominantes do império, uma vez que os bens de luxo
serviam como ostentação na decoração de tumbas, por exemplo, e
na continuidade de sua fidelidade ao governante. Posteriormente,
parte dessa finança de riqueza deveria fluir para a periferia, numa
tentativa de cooptar as elites locais, integrando-as ao sistema.
Stuart Smith chega a afirmar que havia uma demanda de
bens de luxo por parte das elites egípcias. Tais bens que fluíam por
meio do inw, criando uma espécie de economia privada separada
da redistribuição estatal, através do investimento dessas riquezas
em trabalho acumulado25. Esta relação depende de uma associação
direta entre o valor de uso das riquezas e uma quantidade de
trabalho que poderia ser paga com este valor, utilizando a medida
de ração diária recebida por um trabalhador como equivalência.
Isto nos parece, entretanto, uma forma de forçar a realidade da
Antiguidade para aceitar algo intrínseco à sociedade capitalista,

24
SMITH, Stuart Tyson. Wretched Kush. Ethnic Identities and Boundaries in
Egypt’s Nubian Empire. New York: Routledge, 2003. p. 71.
25
Ibid., p. 73.

214
que é o valor no sentido de quantidade de trabalho socialmente
necessário, dependente, como visto, da existência de uma noção de
trabalho abstrato26. O próprio Stuart Smith não tem problemas
em se posicionar no lado modernista da Economia Antiga, ainda
que defenda a insuficiência das duas correntes (modernistas/
formalistas e primitivistas/substantivistas), propondo a utilização
de uma mescla delas.
Apesar de discordarem da circulação limitada dos bens
de prestígio através da lógica da reciprocidade (assimétrica) de
dádivas, D’Altroy e Early crêem na possibilidade de que a finança
de luxo estivesse ligada a esta forma de integração econômica. A
inserção do inw na lógica da troca de dádivas também é afirmada
por Bleiberg.
Por fim, a permanência de vários modos de circulação no
império egípcio é assegurada tanto pelo fato de que havia uma
forma específica de tributos voltada para a manutenção das
classes dominantes, central e periférica – redistribuída a partir
da reciprocidade –, quanto da existência de outro circuito de
trocas extração de taxas, compostas essencialmente por bens
primários básicos, voltadas para a manutenção local das demandas
necessárias à conservação da dominação periférica e à expansão do
império, fosse através de conquistas territoriais ou de expedições
de pilhagem.

26
A afirmação da inexistência de trabalho abstrato na Antiguidade não significa
a concordância obrigatória com a idéia de que não há racionalidade econômica
na Economia Antiga. Esta discussão necessita da diferenciação entre “trabalho
concreto” e “trabalho abstrato”. O primeiro é o fator mediador da relação entre
homem e natureza, enquanto o segundo está relacionado a uma dimensão
social única intrínseca à atividade laboral no capitalismo, a saber, o fato de
que o trabalho não media apenas a relação do homem com a natureza, mas
todas as relações sociais. Neste sentido, no pré-capitalismo não há uma noção
de trabalho abstrato por não haver transformação do trabalho em mercadoria,
o que não implica, todavia na inexistência de uma noção abstrata do trabalho
concreto. Esta diferença pode ser encontrada em POSTONE, Moishe. Capital
and Historical Change, trabalho apresentado na conferência “Marxian Horizons:
Critical Social Theory for the 21st Century” na Cornell University (Ithaca,
NY), em 13 de março de 2004 e disponível em   http://www.countdownnet.
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217
Quem eram os mercadores na
democracia ateniense?
Reflexões a partir do corpus
demostênico

Gabriel da Silva Melo

Introdução

Desde o século XIX as pesquisas acerca dos aspectos das


sociedades antigas que hoje chamaríamos de “econômicos” têm
se multiplicado. Entre idas e vidas, dois debates se constituíram,
tornando-se hoje incontornáveis para os estudiosos que se
debruçam sobre temáticas relativas à dita Economia Antiga.
O primeiro deles, iniciado na virada dos anos 1800 para os
anos 1900, foi alcunhado de “Primitivistas x Modernistas”. Entre os
primeiros, em maior ou menor medida seguidores do economista
alemão Karl Bücher, estão aqueles que apontam para a ausência ou
irrelevância de traços bastante desenvolvidos no funcionamento da
economia capitalista, como, por exemplo, o comércio, a pujança dos
mercados formadores de preço, o impacto das flutuações monetárias
na vida cotidiana das pessoas, etc. Contra essa perspectiva, o
historiador alemão Eduard Meyer levantou forte resistência,
apontando, que, diferentemente do que seu compatriota advogava,
os documentos nos sugeriam que, pelo contrário, se havia alguma
diferença entre as economias antiga e moderna, ela faria sentido
apenas do ponto de vista quantitativo, permanecendo incólumes as
características gerais de funcionamento quando comparadas uma
com a outra.

219
A partir da década de 50 do século XX, outro debate,
desenvolvido a partir deste primeiro, veio à luz entre aqueles
pesquisadores que se dedicavam ao estudo das sociedades pré-
capitalistas. O antropólogo húngaro Karl Polanyi ressaltou que
a pesquisa feita até então não reparava que a economia ocupava
um lugar distintivo nas sociedades industriais, um lugar sui generis
que tinha, portanto, uma origem histórica específica, passível de
ser analisada e interpretada por seus contemporâneos. Não se
poderia, desta forma, considerando que cada sociedade diferente
do capitalismo também tinha suas peculiaridades históricas, tentar
analisar os aspectos econômicos das sociedades pré-mercantis
ou pré-industriais utilizando o mesmo arcabouço teórico-
metodológico, as mesmas concepções, que norteavam os estudos
desses aspectos em nossa sociedade. A esses que tentavam fazê-
lo chamou de “formalistas”, pois entendiam a economia de uma
maneira formal, como um conjunto de leis gerais trans-históricas,
ou melhor, a-históricas, que regiam o comportamento dos homens
na interação com a natureza e entre si para a satisfação de suas
necessidades materiais ao longo de todo o tempo/espaço em que o
ser humano habitou a Terra. Como uma alternativa interpretativa,
cunhou aquilo que chamou de “economia substantiva”, ou seja,
as características que reconhecemos hoje como sendo de cunho
econômico seriam encontradas nas sociedades pré-industriais
incrustradas (embbeded) nas instituições vigentes em cada uma das
sociedades historicamente específicas que se procurasse explicar1.
Toda a historiografia sobre a economia e sociedade gregas têm
de lidar com esses debates em algum grau, mesmo que seja com
a intenção de superar os limites postos por cada um dos tipos de
abordagem consagrados2. O que o marxismo pode trazer como

1
POLANYI, Karl. La economía como actividad institucionalizada. In:
Comercio y mercado en los imperios antigos. Barcelona: Labor Universidad, 1976.
pp. 289-315.
2
Para uma análise detalhada das principais problemáticas, avanços e limitações
que caracterizam os debates citados, cf. MORRIS, Ian. Hard Surfaces. In:

220
contribuição aos estudos da antiguidade clássica3, no entanto, é
realçar tanto os atributos materialistas da sociedade, o primado do
ser sobre a consciência4, bem como os aspectos inexoravelmente
históricos de qualquer sociedade. Essa sintonia fina entre o que é
geral, marcante no gênero humano, e o que é particular, específico
de cada época e cultura históricas, só pode ser acessado, no entanto,
a partir da problematização dos próprios paradigmas a partir dos
quais se indaga o passado.
Pretendo elaborar a seguir um conjunto de reflexões que
ajude a explorar melhor, considerando os limites e avanços
da historiografia desenvolvida ao redor das querelas entre
primitivistas e modernistas, substantivistas e formalistas, uma
determinada questão de cunho mais específico, a saber: o estatuto
social e a atuação dos mercadores de longa distância na democracia
ateniense durante o século IV a.C5, tomando como referência os
textos atribuídos a Demóstenes e que chegaram até os nossos dias.

II – Os Mercadores Gregos na Historiografia

O historiador alemão Johannes Hasebroek, já citado, inicia sua


obra prima, aqui referida na tradução inglesa, Trade and Politics in
Ancient Greece6, alertando para a importância de se compreender

Money, Labor and Land: Approaches to the Economics of Ancient Greece. New York:
Routledge, 2002. pp. 8-43; CARTLEDGE, Paul. The Economy (Economies)
of Ancient Greece. In: The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002. pp.
11-32.
3
STE CROIX, G. E. M. de. Karl Marx y la historia de la antiguedad clasica. In:
Arethusa, v.8: El marxismo y los estúdios clásicos. Madrid: Akal, 1985. pp. 7-35.
4
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
5
Todas as datas históricas referidas no presente trabalho se referem ao período
anterior à nossa era, salvo exceções explicitadas no corpo do texto.
6
HASEBROEK, Johannes. Trade and Politics in Ancient Greece. London: G.
Bell and sons Ltd, 1933.

221
que tipo de pessoas realizavam as tarefas diretamente ligadas
ao comércio, caso se quisesse entender com propriedade a vida
econômica grega e a maneira pela qual o Estado grego abordava
esse aspecto da vida social. Realizar essa tipologia dos mercadores
e precisar seu significado econômico-social era, nas palavras de
Hasebroek: “uma das tarefas mais urgentes da História Econômica
da Antiguidade”. Definir para si mesmo e para seu leitor os termos
nos quais se baseará sua pesquisa é, então, o ponto de partida de
seu livro. Ainda hoje, após mais ou menos 80 anos, permanece
sendo um ponto de partida necessário. Sendo assim, é dele que
partirei na busca de uma caracterização do mercador durante o
quarto século em Atenas.
Hasebroek aponta a existência de três tipos de mercadores,
ou seja, pessoas que realizavam as tarefas de fazer circular os
bens produzidos em uma sociedade que já começa a se acostumar
com a existência de um mercado. Seriam eles: [1] kapelos, o
comerciante local, normalmente residente no mesmo lugar ou
próximo ao espaço onde exerce a atividade mercantil e que é um
responsável pela circulação interna dos produtos que circulam pela
venda a varejo; [2] naukleros, o dono de navio que colocava sua
embarcação à disposição de quem quisesse pagar para transportar
uma carga que fosse ser vendida em outro lugar; e finalmente o
[3] emporos, aquele que, não tendo navio, pagava a um naukleros
para que transportasse seus produtos de um local a outro em
busca das melhores condições para realizar a atividade comercial.
Enquanto o primeiro tipo está confinado ao comércio local, os dois
últimos estão relacionados ao comércio exterior, prioritariamente
marítimo (embora raro, no entanto, o comércio terrestre de longa
distância também existia, além do comércio fluvial, principalmente
nas colônias do Mediterrâneo Ocidental) e são categorias que,
com o passar do tempo, passarão a se confundir, podendo um só
indivíduo ser encaixado em ambas simultaneamente7. A presente

7
Ibid., pp. 1-6.

222
pesquisa tem como objeto especificamente os mercadores que se
encaixam nas categorias naukleros e emporos, ou seja, tem como
pano de fundo o desenvolvimento das atividades do comércio
externo e sua relação com a pólis dos atenienses. Concordo e me
baseio nessa tipologia básica ao longo do meu texto.
Hasebroek afirma também que “Na Grécia Antiga, então,
comércio era uma forma de atividade econômica distinta e
claramente definida, levada a cabo por uma classe de comerciantes
profissionais de tempo integral.”8. Esta definição é importante, pois
é o primeiro passo para distinguirmos a figura do mercador de
outros sujeitos sociais que, uma vez ou outra ao longo de sua vida,
acabava atuando na kapelia ou emporia. No entanto, ela é limitada
por ser excessivamente restritiva. Ao contrário do que Hasebroek
afirma, era improvável que os mercadores se dedicassem o ano
inteiro às atividades comerciais, pois, como se sabe por conta
de pesquisas realizadas posteriormente à época do historiador
alemão, o ano mercantil, ou seja, o período comercialmente
navegável durava mais ou menos seis meses diante das mudanças
climáticas e necessidades do circuito da produção e reprodução
que abasteciam os mercadores9. Durante esse período do ano os
mercadores poderiam se dedicar a outras atividades, ao reparo
de suas embarcações, à manutenção dos contatos de suas redes
de sociabilidade em outros portos e cidades e até mesmo a outras
ocupações que não necessariamente tinham relação direta com a
sua “profissão”.

Nossa ignorância de que tipo de trabalho os emporoi


faziam fora da estação de navegação de forma

8
Ibid., p. 4.
9
CASSON, Lionel. The Ancient Mariners: Seafarers and Sea Fighters on the
Mediterranean in Ancient Times. New Jersey: Princeton University Press, 1991.
p. 100; BRESSON, Alain. L’Économie de la Grèce des Cités. 2 v. Paris: Armand
Colin, 2007-2008.; REED, Charles M. Maritime Traders in the Ancient Greek
World. New York: Cambridge University Press, 2003. p. 8.

223
alguma altera o irônico resultado: de que metade
do ano, provavelmente a maioria dos emporoi
não ganhava a vida através de atividades que nos
induzem a chamá-los de emporoi.”10

O caráter “profissional” é outro obstáculo na definição de


Hasebroek. Prefiro seguir o historiador americano Charles
Reed quando enfatiza que, ainda assim, o que importa é que os
mercadores viviam primordialmente de sua atividade no comércio
e é esse traço distintivo, em comparação com outros grupos sociais
daquela sociedade, que nos permite dizer que eles eram mercadores,
mais do que uma definição absoluta, ideal e não historicizada.
Apesar de Hasebroek ter se destacado na elaboração de
uma tipologia acertada dos mercadores, outro traço de sua obra,
igualmente enraizado na historiografia posterior, no entanto, me
parece equivocado. Hasebroek, primeiro, e Finley11, depois, os
bastiões da concepção primitivista da economia das sociedades
antigas, têm visões limitadoras acerca da atividade desses indivíduos
em sua sociedade. Há uma ideia de que, com o deslocamento da
atividade comercial das mãos da aristocracia, no período arcaico,
para outros setores da sociedade, no período clássico, a riqueza e o
prestígio, antes em uma relação de determinação em que o último
promovia o primeiro, acabam por, aparentemente, se inverter12. É
com esse processo de transformação de um comércio aristocrático
em um comércio mais amplamente socializado, ou seja, em um
comércio no qual tomam parte outros grupos sociais que antes não
apareciam tanto na cena das trocas mercantis, em que o mercado
desempenha papel mais relevante, que Hasebroek e Finley
enxergam o crescimento de uma small fry, ou seja, uma “arraia
miúda”, uma pauperização dos sujeitos dedicados às atividades
mercantis.

10
REED, Charles M., op. cit., p. 8.
11
Cf. FINLEY, M.I. A Economia Antiga. Porto: Afrontamento, 1980.
12
Cf. TANDY, David W. Warriors into Traders: The Power of the Market in
Early Greece. California: University of California Press, 2000.

224
É preciso atentar para o fato de que o século IV testemunhou
um aprofundamento e um alastramento da atividade comercial
em Atenas e, portanto, seguindo a lógica dos dois autores
supracitados, deveríamos observar na documentação uma maior
ocorrência de indivíduos pobres (com relação a outros segmentos
da sociedade) protagonizando tarefas de cunho mercantil. Como
pode-se observar na tabela, não é essa a tendência que se verifica,
ao menos diante do conjunto de fontes utilizado nesta pesquisa,
conjunto emblemático e exemplar do universo de fontes que temos
à disposição. (ver Tabela 1).
A discussão acerca do estatuto social do mercador é uma das mais
controversas indagações presentes na historiografia econômico-
social da Grécia Antiga. Essa questão se divide, prioritariamente,
em dois tópicos que, apesar de estarem relacionados, permanecem
distintos, a meu ver. Um diz respeito à condição financeira dos
mercadores. Outro, a sua condição jurídica. Quanto ao primeiro,
além dos já apresentados defensores da teoria da arraia-miúda,
há, por outro lado, os defensores de uma proto-burguesia bem
sucedida e potencialmente rica de empreendedores individuais que
teriam revitalizado a pólis através do comércio, em um primeiro
momento, mas cuja continuidade e aprofundamento social de sua
atividade a corroeria com os valores do individualismo exacerbado
acima do apregoado bem-comum, valor ideologicamente caro à
democracia. Aqui podemos citar dois historiadores modernistas
que, partilhando uma abordagem formalista, diferem em seu juízo
de valor quanto a suas consequências:

O quinto século a.C foi excepcionalmente favorável


ao crescimento do individualismo. A ampliação do
comércio, os grandes melhoramentos técnicos na
agricultura e na indústria, a supremacia da Grécia
nos mercados mundiais, sua produção de óleo,
vinho, manufaturas e artigos de luxo para todos
os países nos quais seus colonos haviam penetrado
foram condições que permitiram aos gregos mostrar

225
sua iniciativa no setor das finanças e abandonar os
métodos mais primitivos em favor de um sistema
capitalista e de uma produção destinada a um
mercado ilimitado que uma procura aumentava
cada vez mais.13

O poder do dinheiro tudo contagia e corrompe as


consciências. Os que contam com o necessário para
viver ambicionam tornar-se ricos; os ricos querem
enriquecer ainda mais. É o triunfo dessa paixão
insaciável pelo lucro que os gregos chamavam
pleonexía. Não há mais profissão que escape às
garras do capitalismo, da khrêmatistikê. (...) Pelo
luxo e pelo lucro, fazem-se e desfazem-se fortunas,
com igual rapidez. Os novos-ricos (neóploutoì) eram
os galos do terreiro.14

Diante do antagonismo primitivista/modernista que


compartilha a naturalização das relações sociais do mundo a
partir do qual essas visões são produzidas, é preferível adotar uma
postura que relacione as questões que se colocam a partir de hoje e
as especificidades históricas da realidade sobre a qual o historiador
se debruça. A disputa quantitativa acerca do caráter da economia
antiga e, consequentemente, do lugar e da proeminência financeira
de seus pretensos “agentes”, ou seja, os mercadores, é uma falsa
questão que, por sua vez, só pode levar a falsas conclusões. Refletir
acerca da riqueza dos mercadores só deve ser feito a partir de uma
reflexão sobre o papel da riqueza naquela sociedade e dos níveis de
acesso a essa riqueza dos grupos sociais então existentes.
A outra face da discussão sobre a caracterização dos
mercadores na Grécia Antiga está ligada a uma concepção de
história profundamente legalista, a partir da qual se supõe aquilo

13
ROSTOVTZEFF, Mikhail. História da Grécia. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1977. p. 217.
14
GLOTZ, Gustave. A Cidade Grega. Lisboa: Difel, 1980. pp. 256-257.

226
que se deve explicar: falo da associação direta que muitas vezes se
fez entre a figura do mercador e o estatuto jurídico do estrangeiro
residente, ou seja, o meteco15.
Os metecos não faziam parte da comunidade dos cidadãos e
portanto não tinham plenos direitos políticos (como participar da
Assembléia, do Conselho e dos Tribunais), além de não gozarem
também do direito de possuir propriedade imóvel/fundiária.
Estavam ainda submetidos a uma taxa (metoikion16) que, apesar de
não ser tão onerosa, tinha como finalidade a demarcação do lugar
social ocupado por eles em relação aos cidadãos, que não eram
sujeitos a esse tipo de imposto17. Ao contrário do que se pensava,
no entanto, pesquisas recentes que rastrearam a documentação
disponível em busca de informações acerca dos mercadores na
Grécia Antiga têm concluído que a atividade mercantil não coincide
com nenhum estrato específico da sociedade, estando, na época
clássica, difundida e sendo praticada por cidadãos, estrangeiros,
metecos e libertos (que ganhavam o status de meteco frente ao
corpo cívico após a liberdade) quase indiscriminadamente. Um
catálogo importante é o que está presente no livro de Reed18, que
afirma ter encontrado todas as referências explícitas a mercadores
nas fontes gregas para o período, concluindo, em seguida, que a
quantidade de mercadores metecos e mercadores cidadãos era
próxima o suficiente para impedir qualquer associação direta entre
atividade mercantil e status por parte dos historiadores.
É necessário romper com a visão clássica sobre os metecos,
mostrando que mesmo com um status social considerado inferior
ao dos cidadãos vários deles, inclusive mercadores, gozavam de
certo prestígio frente à comunidade, alguns chegando inclusive a

15
Sobre essa relação direta: GOMME, 1937, apud REED, Charles M., op. cit.;
COHEN, 1973 apud. REED, id.
16
Essa taxa era de 12 dracmas por ano para os homens adultos e 6 dracmas por
ano para as mulheres adultas que vivessem por si mesmas.
17
AUSTIN, M. M.; VIDAL-NAQUET, P. Economic and Social History of
Ancient Greece: An Introduction. California: University of California Press,
1977.
18
REED, C. M., op. cit., pp. 93-132.

227
ser condecorados pelo corpo cívico com a cidadania ateniense e
outros chegando ao nível de possuir algumas das maiores fortunas
de Atenas em seu tempo. Além, é claro, de haver razões suficientes
para que muitos metecos fossem execrados em Atenas sem que
essas razões estivessem atreladas ao seu estatuto jurídico específico.
Portanto se faz necessária uma abordagem que não se limite a
encarar o quadro social políade apenas com relação ao status das
pessoas, mas sim que, ao se abordar esse aspecto da sociabilidade
ateniense – e antiga, em geral –, que se busque explicar os motivos
de o estatuto jurídico desempenhar um papel de distinção social
específico naquela sociedade, a despeito de não ser o único (e
talvez nem o principal) determinante dos modos de se relacionar e
reproduzir a vida na Atenas do século IV19.
Antes de partir para a análise mais detida da documentação
e a exposição, afinal, de quem eram e o que faziam os mercadores
gregos dos anos 300, uma última questão precisa ser explicitada: a
natureza eminentemente privada da atividade comercial na Grécia
Antiga.
É uma temática comum aos estudos da pólis essa dicotomia
entre público e privado em Atenas. A despeito de esses universos
passarem progressivamente a se mesclar, conforme o espaço público
catalisado pelo aprofundamento da democracia se alastrava sobre
o espaço privado e tradicional, por outro lado havia uma forte
limitação da atuação do Estado em determinados aspectos da vida
social. Um desses aspectos era o comércio. Basicamente, havia
duas maneiras de o público, na figura do Estado, da democracia,
da coletividade, do conjunto dos cidadãos, etc, se relacionar com
o comércio, atividade privada, das relações pessoais, das redes de
sociabilidade e contato, do lucro individual, etc: [1] intervenção;
[2] envolvimento20.

19
Cf. MANSOURI, Saber. Athène vue par ses métèques (V-IV siècle av. J.-C.).
Paris: Tallandier, 2011.
20
Essas categorias são utilizadas por BISSA, Errietta M. A. Governmental
Intervention in Foreign Trade in Archaic and Classical Greece. Boston: Brill, 2009.
p. 19.

228
No tocante à presente temática e diante da documentação
consultada, veremos que o aspecto da intervenção aparece muito
mais do que o do envolvimento. O Estado regulava, legislava,
fiscalizava, incentivava ou proibia determinados traços específicos
das atividades comerciais, mas muito raramente tomava parte,
enquanto entidade coletiva e pública, nessas atividades. A
atividade dos mercadores, portanto, se desenvolvia com certa
autonomia: respeitadas as “regras do jogo”, previamente discutidas
e publicizadas, não era da alçada da coletividade, enquanto tal,
tomar partido na maneira como se desenvolviam as relações entre
os mercadores e seus interlocutores sociais durante o processo
de compra/venda, enfim, na circulação de produtos na forma de
mercadoria.
Antes de adentrar com mais profundidade a análise da
documentação, cabe fazer ainda uma intervenção a respeito das
características específicas do funcionamento do comércio no século
IV e os desdobramentos da centralidade relativa que ele adquiriu
como mecanismo mantenedor da hegemonia ateniense após a
derrota na Guerra do Peloponeso (431-404) e o consequente
esfacelamento do Império, das relações de subjugação política sob
as quais Atenas mantinha seus aliados e garantia, dessa forma,
um fluxo constante de riquezas na forma de impostos, bem como
neutralizava possíveis concorrentes políticos regionais, trazendo-
os para sua alçada e zona de influência.

III – Dikai emporikai e a institucionalidade para o


comércio

Do século IV chegam até nós textos importantes que apontam


o interesse crescente do Estado ateniense em regular alguns
aspectos do comércio, basicamente aqueles ligados ao comércio de
grãos, necessário para alimentar a população ática.

229
Em sua Constituição dos Atenienses21, datada da década de 320,
Aristóteles indica a existência de magistraturas especificamente
dedicadas a esse tipo de regulamentação:

São também designados por sorteio dez agoranomes


[“inspetores dos mercados”, ou “responsáveis
pelas leis da ágora”], cinco para o Pireu e cinco
para cidade. A estes, é definido pelas leis zelarem
para que todos os artigos postos à venda sejam de
qualidade autêntica e não adulterados.
São também designados por sorteio dez metronomes
[“inspetores dos pesos e medidas”]. Eles têm a
responsabilidade sobre os pesos e medidas e devem
zelar para que os vendedores que os empreguem
sejam justos.
Havia também dez sitophylaque [comissários dos
grãos] designados por sorteio, cinco para o Pireu e
cinco para a cidade; eles são nos dias de hoje vinte
para a cidade e quinze para o Pireu. Primeiro, eles
zelam para que, na ágora, o grão bruto seja vendido
a um preço justo, em seguida para que os moleiros
vendam a farinha em proporção ao preço da cevada e
para que os padeiros vendam os pães em proporção
ao preço do trigo e para que estes últimos tenham o
peso que eles [os sitophylaque] fixaram; na verdade,
a lei determina que eles o fixem.22

Não é certo quando essas magistraturas foram criadas,


mas, segundo Garnsey, é possível que elas sejam remanescentes
do período da Guerra do Peloponeso, tendo sido reforçadas
e ressignificadas após a restauração da democracia sem a base

21
Todas as referências à documentação de época foram consultadas e analisadas
sob o cotejo de sua tradução direta para o inglês com sua versão original em
grego antigo através das edições Loeb Classical Library. Todos os textos de
época aqui referidos se encontram disponíveis também na plataforma Perseus:
http://www.perseus.tufts.edu.
22
ARISTOTLE. Athenian Constitution. 51.3-4. Disponível na plataforma
Perseus.

230
imperial do século V23. É certo que, apesar de Aristóteles escrever
no período derradeiro da pólis de Atenas, já por volta de 386 há um
discurso do orador Lísias nomeado Contra os comerciantes de grãos
(Katà tôn sitopolôn) em que as preocupações de regulamentação
deste comércio que podemos inferir de Aristóteles, já se faz
presente24.
Além dessas magistraturas especificamente destinadas a
regular a atividade comercial concernente aos grãos, a criação
de um novo tribunal, especialmente dedicado à resolução das
querelas envolvendo mercadores, comerciantes locais, pessoas que
emprestavam dinheiro, enfim, atividades diretamente ligadas ao
comércio, foi criado no decorrer do século IV: os dikai emporikai,
nos quais atuaram oradores como Demóstenes, por exemplo. De
acordo com Garnsey:

Esses tribunais atraíam os mercadores porque


eles ofereciam julgamentos rápidos nos meses de
inverno, quando a navegação era desaconselhável,
e eram acessíveis aos atenienses e não-atenienses,
metecos ou não-metecos.25

De acordo com textos remanescentes de oradores do século


IV a.C pode-se perceber o indicativo de uma divisão do trabalho
desatrelada da condição de status, diferentemente daquilo que
é proposto nos modelos de cidade ideal de Platão e Aristóteles.
Na democracia ateniense real, metecos, cidadãos pobres, escravos
e libertos compartilhavam muitas vezes os mesmos espaços
cotidianos e não havia correlação direta entre o status e ocupação
exercida26.

23
GARNSEY, Peter. Famine and Food Supply in the Graeco-Roman World –
Responses to Risk and Crisis. New York: Cambridge University Press, 1989. pp.
141-142.
24
LYSIAS, Against the graindealers. 22. Disponível na plataforma Perseus.
25
GARNSEY, Peter, op. cit., p. 139.
26
Cf. MANSOURI, Saber. Athène vue par ses métèques (V-IV siècle av. J.-C.).
Paris: Tallandier, 2011.

231
Essas são apenas algumas transformações institucionais típicas
do século IV (se não totalmente originárias deste período, com um
protagonismo realçado diante de novas condições históricas) que
se deve levar em consideração quando se analisa o desenvolvimento
da atividade comercial na Grécia Antiga

IV – Demóstenes entre a História e a


Análise de Conteúdo

A pesquisa ora apresentada teve como fundamento a análise


do corpus demostênico, ou seja, o conjunto de textos do século
IV cuja autoria é reputada ao orador e líder político ateniense:
Demóstenes. Importa dizer a título de introdução que essas fontes
primárias requerem, como toda fonte histórica, um tratamento
específico diante de sua natureza. Desta forma, antes de mergulhar
na triagem e análise dos dados que vieram a ser extraídos dos textos,
se faz necessária uma explanação acerca das especificidades desses
documentos. Considerando haver nos discursos dos oradores
áticos, principalmente nos de Demóstenes, dados relevantes sobre
o status e a atuação do mercador e sobre o papel do comércio
na democracia ateniense, foi preciso buscar um arcabouço de
conhecimentos específicos que me permitissem lidar com o corpus
escolhido. São esses temas aos quais pretendo passar agora.
Primeiramente, é importante apresentar a biografia de
Demóstenes, autor dos textos tomados aqui como referência.
Demóstenes, nascido por volta de 384, em Atenas, era filho de
um cidadão do demo de Peania, também chamado Demóstenes.
Demóstenes, o pai, era produtor de espadas e segundo Plutarco
(Dem. 4.1)27 ele era denominado “o cuteleiro” (machairopoiós)
porque possuía uma grande oficina (ergastérion) com vários

27
Plutarch, Plutarch’s Lives. Cambridge, MA/London: Harvard University
Press/Heinemann, 1919. Disponível na plataforma Perseus.

232
escravos-artesãos especializados em cutelaria nela trabalhando. É
possível mapear a família de Demóstenes a ponto de encontrar uma
ascendência aristocrática, mas, pelo menos na geração de seu pai,
a família já não contava mais com prestígio de outrora, o que era
indicado, inclusive, pelo estilo de vida de Demóstenes (o pai) que,
além de não ser um grande proprietário de terras, também parece
não ter buscado ser uma figura central na vida política ateniense
de sua época, pelo contrário, há indícios de que sua discrição tinha
por objetivo evitar os olhares mais aguçados dos cobradores de
impostos28. É de se notar que não há nenhum registro de o pai
de Demóstenes ter tido problemas durante o período dos Trinta
Tiranos, interregno da democracia ateniense em que muitas figuras
eminentes na cena política foram perseguidas. Era, portanto, ao
mesmo tempo, parte de uma aristocracia decadente e um “novo
rico”, expressão do momento histórico em que a riqueza passava a
ter um papel de maior relevância na pólis, podendo alçar algumas
pessoas e famílias a um status elevado na comunidade.
Por volta dos sete anos de idade, Demóstenes perdeu seu pai,
ficando sob a tutela de alguns parentes. Em alguns discursos, como
é o caso de Dem. 27, essa questão é discutida, pois tais parentes,
de forma escusa, se apropriaram (e dilapidaram) da herança que
caberia a Demóstenes; o que se tornou uma questão pessoal pela
qual o orador dispendeu esforços durante boa parte de sua vida. É
provável que a determinação por recuperar os bens deixados por
seu pai tenha estimulado Demóstenes no estudo da oratória e da
retórica, o que é indicado pelo fato de que, assim que terminara
o serviço militar obrigatório e fora considerado pleno cidadão
ateniense, a sua primeira atitude foi processar Áfobo, um de seus

28
BADIAN, E. The Road to Prominence. In: WORTINGTHON, Ian.
Demosthenes: statesman and orator. New York: Routledge, 2000. p. 13. Plutarco
(op. cit.) também menciona que, segundo Ésquines, a mãe de Demóstenes seria
filha de uma bárbara com um cidadão exilado da cidade por traição; o que não
se pode confirmar ao certo.

233
antigos tutores e parente29. Os desdobramentos do processo não
são de interesse específico do presente texto, mas podem ser
levantados na documentação disponível.
É relevante ressaltar que, a partir de então, Demóstenes
se consolidou como um promissor orador. Diferentemente de
seu pai, interessou-se pela vida pública ateniense, foi o principal
orador anti-macedônico durante o avanço de Felipe II e,
posteriormente, de Alexandre III (que viria a ser conhecido pela
alcunha de “O Grande”), e viria a se tornar um dos líderes políticos
da democracia. Em 322, cometeu suicídio após a derrocada do
regime político ateniense que vigia até então. Durante sua vida
Demóstenes destacou-se como defensor de Atenas frente às
ameaças macedônicas e foi assim que ganhou o reconhecimento de
ser um grande orador e um mestre da retórica. Outras atividades,
no entanto, são mais interessantes no que dizem respeito à temática
aqui perseguida.
Não foram apenas os discursos públicos que alçaram
Demóstenes ao posto de um dos dez grandes “oradores áticos”
imortalizados pelos alexandrinos no século I como compondo o
cânone da oratória antiga30. O corpus demostênico é composto
também de discursos proferidos por Demóstenes em casos
particulares (como aqueles em que ele discute os destinos da
herança de seu pai, alegando ter sido lesado por seus tutores) e
também por discursos encomendados por terceiros ao orador,
que, nesse caso, trabalhava como logógrafo – ou seja, a pessoa que
escreve discursos para serem proferidos por outras pessoas nos
tribunais atenienses31. É aí que reside a maior parte de informações

29
Ibid., p. 17.
30
PHILLIPS, David. Athenian Political Oratory. New York: Routledge, 2004.
p. X.
31
Este termo também é utilizado em outros contextos, como, por exemplo para
se referir aos antigos historiadores e cronistas da tradição grega. Neste trabalho
o termo se restringe exclusivamente ao personagem social acima descrito, ou
seja, alguém ligado à atividade jurídica que se exercia na Atenas do século IV.

234
cruciais acerca do comércio e da atuação dos mercadores no século
IV, pois diversos desses casos eram litígios entre mercadores, donos
de navio, emprestadores de dinheiro, banqueiros, dentre outras
figuras centrais do comércio marítimo ateniense.
Analisar socialmente a obra de um autor, é, no entanto, dentro
do paradigma teórico do materialismo histórico, que embasa
esta pesquisa em todas as suas dimensões, não apenas escrutinar
a vida do indivíduo pesquisado, mas saber que este indivíduo,
dialeticamente, compõe, constrói e é construído pelo meio social do
qual faz parte32. Essa assertiva, bastante difundida pelos marxistas
no debate acerca das relações entre História e Literatura, pode ser,
do meu ponto de vista, estendida para todos os campos da produção
discursiva, não apenas no capitalismo, mas em qualquer tipo de
sociedade humana. Partindo desse pressuposto, é necessário, para
compreender Demóstenes e o impacto de sua atuação política
através de seu discurso, compreender também quais são os vetores
sociais em ação no momento de sua produção.
Ser um líder político na Atenas do século IV a.C é,
naturalmente, algo bastante diferente de ser um “político” na
acepção moderna do termo. De maneira resumida, pode-se dizer
que havia dois tipos de líderes políticos na democracia ateniense:
os generais (strategoi) e os oradores (rhetores). Durante o auge do
imperialismo ateniense (séc. V) essas duas funções muitas vezes
se mesclavam numa mesma pessoa. E mesmo durante o século IV
havia indivíduos que construíam sua liderança na pólis atuando no
campo de batalha e nos fóruns da democracia. No entanto, com
a restauração democrática após 404, houve uma especialização
cada vez maior dessas tarefas e passou a ser mais comum que os
generais se dedicassem às questões militares e da gerência dos
fundos públicos dedicados à guerra e que os oradores fossem os
responsáveis por conduzir a política da pólis de um ponto de vista
mais estrito, tentando influenciar a assembleia a tomar as decisões

32
Cf. LUKÁCS, György. O Romance Histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.

235
que este ou aquele grupo político achassem mais adequadas pelos
mais diversos motivos33. Demóstenes foi um desses oradores que
se destacaram como lideranças políticas durante o século IV a.C.
Para além das discussões acerca da existência de partidos políticos
na Atenas Clássica, da empregabilidade do termo “político” para
se referir aos homens que tentavam ditar, por sua influência, os
rumos da democracia, dentre outras questões abordadas pelos
especialistas, é possível se ater ao fato de que alguns indivíduos,
representando interesses de grupos políticos bastante mutáveis,
mas com alguma solidez ao longo do tempo, se destacavam como
figuras capazes de realçar suas opiniões no momento das tomadas
de decisão pelo corpo dos cidadãos.
Como é de se esperar, esses indivíduos se diferenciavam
dos cidadãos comuns por seu notável nível de conhecimento da
intrincada lei ateniense, dos fatos passados da pólis e do mundo
conhecido; por terem suporte de outros cidadãos nos discursos que
proferiam e, acima de tudo, por dominarem técnicas de oratória e
retórica que exigiam muito estudo e treinamento34.
Uma das sendas pela qual vale à pena seguir é a reflexão
quanto à retórica e oratória áticas, pois esse foi o veículo discursivo
que elevou Demóstenes ao patamar de ícone político ateniense
e, também que fez com que seus discursos fossem eleitos pelas
gerações futuras de copiadores como dignos de serem legados à
posteridade. Portanto, conhecer minimamente os meandros dessa
forma discursiva é imprescindível para acessar com qualidade o
conteúdo das fontes que importam para este trabalho.
Nos limites deste texto, é importante apenas ressaltar que o
objetivo da retórica ática é a persuasão. Os meandros desse tipo de
construção discursiva precisam ser considerados e compreendidos

33
HANSEN, Mogens Herman. The Athenian Democracy in the Age of
Demosthenes – Structure, Principles, and Ideology. Oxford: Blackwell, 1991. cap.
11.
34
HABINEK, Thomas. Ancient Rhetoric and Oratory. Malden: Blackwell
Publishing, 2005.

236
pelo pesquisador quando se pretende indagar essa qualidade
de texto. Os estudantes de retórica eram treinados para vencer
qualquer discussão e rebater qualquer argumento, muitas vezes
independentemente dos fatos. O procedimento padrão da retórica
ática era o “argumento da probabilidade (eikos)” através do qual os
ouvintes eram levados a concluir, diante dos discursos, que aquilo que
os oradores diziam era provável, portanto, aceitável como verdade.
Um exercício de retórica consistia em estabelecer um argumento
com dois lados antagônicos plausíveis e testar os estudantes para
que eles convencessem a audiência, consecutivamente, de ambos os
argumentos.
Quando o historiador analisa essa espécie de texto, portanto,
deve ter o cuidado de não fazê-lo de forma acrítica e meramente
formal, mas sempre pensando-o ao mesmo tempo como produto
de uma determinada configuração social, bem como mecanismo
ideologicamente informado daquelas pessoas para intervir nessa
mesma configuração a fim de influenciá-la e transformá-la em
alguma direção.

V. Os mercadores emergem dos oradores

Diante dos textos de Demóstenes, a despeito de sua variada


natureza e das dúvidas insolúveis que rondam as disputas acerca
de sua autoria, é importante pensar que eles conservam indícios
da complexa relação da sociedade grega do século IV com as
atividades comerciais e do lugar peculiar que os mercadores
ocupavam naquela sociedade35.
Quantitativamente falando, é possível identificar 38
mercadores diferentes ao longo dos textos escolhidos, todos

35
Cf. MOSSÉ, Claude. The “World of the Emporium” in the private speeches
of Demosthenes. In: Trade in the Ancient Economy. London: Chatto&Winus,
1983, pp. 53-63.

237
atuando dentro do recorte cronológico proposto nesta pesquisa (e
se ampliássemos o corpus seria possível identificar muitos outros,
se pudermos confiar no catálogo de Reed36). O número absoluto
é um dado que não revela basicamente nada. Mas, ao refinar esta
cifra é possível perceber, de maneira relativa, a importância de tal
ou qual ocupação, estatuto jurídico, nível de riqueza, possibilidade
de se fazer ouvir, dentre outros aspectos da vida dos mercadores.
No tocante à atividade específica que eles engendravam,
voltando à categorização de Hasebroek, foi possível perceber que
21 desses mercadores eram emporoi, 13 atuavam como naukleroi
e 2 agiam primordialmente como agentes sob comando de
outrem ao lidar com as atividades mercantis. Além disso, há 19
mercadores em que é possível reconhecer a atuação também como
emprestadores de dinheiro37. Quando se passa à análise qualitativa
desses números, ou seja, à materialidade dos textos a partir dos
quais foram depurados, percebe-se que essas atividades não são
estanques e tão bem delimitadas como as tabelas de Análise de
Conteúdo podem fazer, erroneamente, parecer. Ao contrário, há
uma imbricação entre elas, de maneira que naukleria, emporia
e empréstimos comerciais estão intrinsecamente relacionados,
muitas vezes sendo ocupações exercidas pelas mesmas pessoas.
Essa imbricação foi investigada ao perseguir as possíveis
parcerias que os indivíduos dedicados ao comércio poderiam
forjar entre si. Com isso foi possível perceber que, a despeito de
praticamente todos os mercadores (30, considerando-se as parcerias
de curto prazo ou esporádicas) que aparecem nas fontes estarem

36
REED, Charles M., op. cit., pp. 93-132.
37
A questão específica dos empréstimos na Grécia Antiga, bem como, por
extensão, dos bancos, não era objeto primordial da pesquisa, portanto foi
tratada apenas com relação aos aspectos ligados diretamente às atividades
comerciais. Para maiores detalhes dessas atividades ver MILLET, Paul. Lending
and Borrowing in Ancient Athens. Cambridge: Cambridge University Press,
1991; COHEN, Edward E. Athenian Economy & Society: a Banking Perspective.
Princeton: Princeton University Press, 1992.

238
envolvidos em alguma forma de parceria, elas são sempre muito
pequenas, limitadas, não havendo, portanto, nada parecido com a
formação de uma classe burguesa, de uma consciência de classe
ou mesmo de um corporativismo profissional que pudesse motivar
sua união para a transformação da realidade em que viviam com
vistas a uma configuração social em que estivessem mais próximos
das tomadas de decisão, do poder e, consequentemente, de traçar
os destinos da sociedade.
Comparando-se sua condição material com a de outros setores
da sociedade, foi possível perceber que dentre os mercadores
rastreados, 5 podiam ser considerados ricos, 12 podiam ser
considerados não pobres e não havia informação a respeito sobre
21 deles. Nenhum mercador que aparece nos textos de Demóstenes
pode ser realmente considerado pobre. Se por um lado isso é um
indício interessante que coloca em xeque as visões primitivistas
acerca da pobreza dos agentes históricos dedicados ao comércio
na Grécia Clássica, por outro lado a ausência de informação nos
impede de afirmar, como fazem os modernistas, que este grupo
social gozava de privilégios econômicos exacerbados e que alçavam
sua existência a níveis mais altos da estratificação social. Casos
de ascensão (e descenso) eram possíveis, mas, em vez de estarem
atrelados diretamente à quantidade de riqueza possuída, estavam
mais relacionados à maneira como esses mercadores empregavam
tal poder material, quando dele dispunham (por exemplo suprindo
a cidade com carregamentos de grãos em época de escassez e sem
cobrar um preço alto por isso, ou presenteando personalidades
cívicas diante de um grande feito).
A querela acerca do estatuto jurídico desses mercadores parece
pender para o lado das pesquisas mais recentes que indicam que a
atividade comercial e o status do indivíduo não se determinam de
maneira direta em Atenas. Dos 38 mercadores, 10 são estrangeiros
não-residentes, 7 são metecos, 10 são cidadãos, 1 é escravo, não
temos informações sobre 6 deles e há ainda alguns outros cuja
inserção jurídica é ambígua. Como não sabemos se os números

239
que temos correspondem de maneira realista ao universo de
mercadores que pode de fato ter existido durante o século IV, o
mais prudente parece ser afirmar que não é possível tirar nenhuma
conclusão definitiva sobre a atividade comercial estar reservada a
este ou aquele nicho de pessoas conforme o prestígio de que gozam
naquela sociedade, embora se possa, de maneira razoavelmente
categórica, negar a validade das teses que se baseiam na analogia
direta metecos/mercadores.
Outro dado que derruba interpretações tradicionais é aquele
acerca do lugar que o comércio ocupa no discurso dos oradores.
Tendo natureza mais pragmática, esses textos são menos voltados
à reflexão teórico-intelectual do que os textos dos filósofos em que
normalmente se baseiam as análises que relegam o comércio a uma
posição secundária dentro do que seriam as prioridades sociais
gregas. Carregando consigo outros preconceitos, no entanto,
esses textos são ilustrativos, por sua espontaneidade e necessidade
de solucionar problemas concretos e imediatos, do local que o
comércio realmente ocupa na visão das pessoas daquela época.
Dado que a quase totalidade deles é proferida diante de um júri
popular de cidadãos comuns, muitas vezes camponeses pobres e
citadinos sem ocupação fixa, os oradores, que dependem dos votos
dessas pessoas para solucionar seus problemas eminentes, não
podem realizar discursos que sejam muito descolados da realidade
e do senso comum partilhado pelo público. Tendo isso em vista,
o fato de que o comércio ocupa um lugar central em 6 discursos,
um lugar relativo em 3 e um lugar periférico em 6 é indicativo
de que o comércio, como outros assuntos que permeavam a vida
social e assolavam os gregos da democracia do século IV, não era
nenhuma unanimidade quanto a um juízo de valor socialmente
compartilhado. Some-se a isso que em 12 discursos não há
qualificação específica do comércio como sendo uma atividade boa
ou má, proveitosa ou dispendiosa para a pólis, desejável ou execrável;
em 3 ocasiões, todas em discursos proferidos por mercadores, o
comércio é exaltado em algum momento; e nenhuma vez é visto

240
da maneira negativa como alguns filósofos da mesma época dos
oradores fazem crer em seus escritos.

VI - Conclusão

Levando em conta esses apontamentos é possível perceber


que alguns preconceitos cristalizados na historiografia não passam
de projeções teóricas insustentáveis ou, pior, naturalizações das
relações sociais que, no presente, de alguma maneira fazem com
que os historiadores lembrem das relações analisadas no passado.
Nós vivemos em uma sociedade em que o comércio não é apenas
algo banal. É compulsório. A relação social mais presente de nossa
época é a da compra e venda. Em uma sociedade em que tudo,
potencialmente, é mercadoria, em uma sociedade em que até
mesmo as relações humanas aparecem como relações entre coisas,
é difícil olhar para o passado, principalmente para a Grécia, aquele
que se convencionou ao longo do tempo como o nosso passado,
o passado da civilização ocidental, e ver algo diferente disso. O
estudo do comércio e dos mercadores e, principalmente, o estudo
deste momento em que podemos ver o processo do início de uma
certa banalização destas atividades é ainda mais perigoso no que
diz respeito às naturalizações. É preciso estar atento para que o
brilho das semelhanças não ofusque a concretude das diferenças.
É através da problematização, da comparação e do cotejo
dos modelos teóricos com as fontes de época, mediados por uma
metodologia consciente e consequente, além de uma concepção
histórica que compreende e dá espaço às transformações; é só
assim que os historiadores da dita Economia Antiga poderão
avançar no desvelamento das relações sociais que existem por trás
das aparências que as fontes, tão escassas e socialmente enviesadas,
nos legam.

241
Tabela-1:
Compilação de alguns dados presentes na documentação analisada
Envolvidos Lugar do Qualificação
Estatuto Envolvidos Mercadores
Quem Nível de em comércio do comércio
jurídico em com que profrem
eram Riqueza parcerias no discurso no discurso
Atenas Empréstimos discursos
comerciais geral geral
Emporoi: Estrangeiros Ricos: Sim: 23+(7) Estrangeiros Central: Positiva:
2+ (2) não- 5 19+(3) não-residentes: 6 3
residentes: 0
Naukleroi: 10+(2) Não Pobres: Sem Relativo: Neutra:
13+(2) 12 informação: Metecos: 3 12
Metecos: 16 1
Outros 7+(2)+[1] Pobres: Periférico: Negativa:
[agentes]: 0 Cidadãos: 6 0
2+(1) Cidadãos: 3
10+[1] Sem
Total: 38 informação: Outros
mercadores Escravos: 6 [emprestador
1+[1] de dinheiro,
cidadão,
Sem porém não
informação: comerciante]:
6 1

Legenda:
( ) – Grande possibilidade, porém a informação não é suficientemente conclusiva
[ ] – O mesmo indivíduo teve estatutos jurídicos diferentes ao longo da vida

242
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245
Controle e Exploração dos Escravos
Rurais na República Romana

José Ernesto Moura Knust

Entre os séculos II e I a.C., a Itália romana testemunhou


importantes transformações em sua economia rural. Uma complexa
interação de processos históricos levou ao desenvolvimento
de novas relações de produção no campo. O império romano
havia se estendido por todo o Mediterrâneo através de uma
mobilização militar cada vez mais longa de uma parcela da
população de cidadãos cada vez maior, numa proporção cada vez
mais impressionante. Repetidos sucessos militares permitiram
que os romanos trouxessem para a Itália enormes quantidades de
riquezas, nas formas de moedas, tesouros saqueados e escravos1.
A elite romana investiu parte desta nova riqueza em gastos
sociais (ostentatórios, ligados a emulação de status) e políticos
(relacionados à busca por ascensão na carreira política na
República) em Roma e outras cidades italianas. Esses gastos
permitiram novas oportunidades de sustento nas cidades, tanto
para homens livres como escravos de ganho e libertos, nas mais
diversas atividades. Esta nova realidade acabou por atrair grandes
contingentes populacionais para estes centros urbanos, fazendo
crescer a demanda por alimentos, especialmente na capital. Roma
foi uma metrópole grandiosa, com uma população excepcional para
uma cidade pré-industrial. A existência de demanda tão expressiva
inevitavelmente influenciaria as áreas produtoras que tivessem
disponibilidade de acesso a ela. O crescimento da demanda de

1
HOPKINS, Keith. Conquerors and Slaves Sociological Studies in Roman History.
London: Cambridge University Press, 1978. pp. 29-47.

247
alimentos gerado pelo crescimento do mercado urbano romano foi
atendido em parte pela importação de alimentos sob a forma de taxas
das províncias, em uma forma de abastecimento administrado pelo
Estado romano, mas também estimulou intensificação, expansão e
mudança de estratégias na produção agrícola em diversas regiões,
especialmente na Itália2.
Além deste efeito sobre a urbanização e consequente demanda
por alimentos, os ganhos da expansão imperial estimularam uma
concentração de riqueza exorbitante e inédita3. Ao ficarem mais
ricos, os membros da elite romana investiram parte considerável
de suas riquezas em terras agricultáveis na Itália, pois as
possibilidades de adquirir e preservar riqueza através da produção
manufatureira ou do comércio eram limitadas e, principalmente,
arriscadas, dado o nível de desenvolvimento das forças produtivas4.
Essa elite concentrou a propriedade da terra muitas vezes
desalojando camponeses cidadãos. Muitos destes camponeses
expulsos de suas terras migraram para a cidade de Roma, para
aproveitar as oportunidades que lá surgiam ou para aderir ao
exército, ou, ainda, migraram para a recém aberta planície do
norte da Itália, estabelecendo um novo campesinato romano nas
áreas conquistadas na Itália pela expansão imperial5. De qualquer
forma, este processo não significou a extinção do campesinato
tradicional italiano, como algumas interpretações foram acusadas
de afirmar. Os camponeses permaneceram um setor fundamental
da economia romana, mesmo em áreas onde predominavam as

2
MORLEY, Neville. Metropolis and Hinterland. The City of Rome and the Italian
economy (200 B.C.-A.D. 200). Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
3
SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. Roma Antiga e Ocidente
Moderno. São Paulo: Edusp, 2005.
4
BRUNT, Peter. Social Conflicts in the Roman Republic. New York: The Norton
Library, 1971. pp. 20-23 (Ancient Culture and Society Series).
5
HOPKINS, Keith, op.cit., p.48-56; GARNSEY, Peter. Cities, Peasants and
Food in Classical Antiquity. Essays in social and economic history. Cambridge:
Cambridge University Press, 1998. p. 98.

248
grandes propriedades escravistas da elite. Estes camponeses eram,
inclusive, fundamentais para tais propriedades escravistas, por
fornecerem o trabalho sazonal nos períodos de maior demanda
por trabalhadores6.
A expansão de um novo padrão de exploração da terra e do
trabalho, baseada na escravidão e na venda de uma parte importante
da produção tanto para os crescentes mercados das tropas e das
cidades, em especial Roma, como para o recém aberto mercado
das elites provinciais é o grande dínamo das transformações
sociais no campo romano. A arqueologia rural atesta um amplo
adensamento da ocupação do meio rural iniciado no século II
a.C. ligado ao surgimento de edifícios rurais de médio e grande
porte7, e data deste período, o início do século II a.C., um dos mais
antigos textos em prosa em língua latina que trata justamente da
exploração agrícola – o De Agri Cultura, escrito por Marco Pórcio
Catão, eminente homem público de seu tempo8.
Este texto foi amplamente utilizado por historiadores como
fonte para o estudo da realidade rural italiana, sendo visto como
manancial de informações de técnicas e relações de produção no
campo romano. Recentemente, uma matização importante desta
utilização vem sendo defendida, pois não podemos pensar em tal

6
EVANS, John. Plebs Rustica. American Journal of Ancient History, n. 5, 1980.
pp. 23-26 ; MARTIN, René. Familia Rustica: les esclaves chez les agronomes
latins. In: Actes du Colloque 1972 sur l’esclavage. Annales littéraires de l’Université
de Besançon. Paris: Les Belles Lettres, 1974. p. 220-222.
7
GUARINELLO, Norberto. Ruínas de uma Paisagem: Arqueologia das casas
de fazenda da Itália Antiga (VIII a.C. – II d.C.). São Paulo: USP – Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1993. p. 110-115 (Tese de
Doutorado).
8
Desconhece-se a data exata de composição desta obra. A teoria mais sólida é
a de que o livro é uma compilação de pequenas anotações de Catão sobre suas
propriedades juntamente com alguns capítulos escritos para compor a obra. Ver
CARLSEN, Jasper. Vilici and Roman estate managers until AD 284. Analecta
Romana Instituti Danici. L’Erma di Bretschneider, 1995. p.17. Catão viveu entre
234 e 149 a.C.

249
tratado como um retrato fiel da realidade rural de sua época9. De
qualquer maneira, tomando-se os devidos cuidados metodológicos,
o texto de Catão continua a ser uma fonte importantíssima para o
estudo das relações de produção escravistas na Itália romana. Tais
cuidados metodológicos traduzem-se na ênfase da pesquisa na
identificação das preocupações que estruturam o texto, buscando
entender como estas se relacionam com as transformações da
realidade rural italiana.
O fato mais marcante no texto de Catão é a caracterização
deste novo tipo de exploração da terra e do trabalho em torno do
conceito de uilla rustica. Trata-se de uma propriedade de porte
médio, que não excedesse as possibilidades de investimentos do
proprietário (Catão, De Agri Cultura I.3). A produção estava
voltada para produzir o máximo daquilo que fosse necessário
internamente sem recorrer a compras e também daquilo pudesse
ser vendido: para Catão o proprietário deveria ser sempre um
vendedor, nunca um comprador (Agr.II.7). Os trabalhadores
residentes da propriedade eram escravos, mas, como dissemos, o
campesinato vizinho era uma importante fonte de trabalho em
momentos de maior necessidade de trabalho, como a colheita
(Agr.I.2)10.
A uilla rustica descrita por Catão não é administrada
pessoalmente por seu proprietário, pois este, além de possuir mais
de uma propriedade, precisa viver na cidade para dar conta de seus
interesses políticos11. Esta administração se dá através da chefia de
um escravo de confiança, o uilicus. Este escravo é a figura central

9
JOLY, Fábio Duarte. Libertas Opus Est. Escravidão e Cidadania à Época de
Nero. São Paulo: USP – Programa de Pós-Graduação em História Econômica,
2006. p.43 (Tese de Doutorado).
10
EL BOUZIDI, Sayd. La conception de Villa Rustica chez Caton. Entreprise
Agricole où simple ferme rurale? Gerión, 21, n.1, 2003. p. 174; e MARTIN,
René, op.cit., pp. 220-222.
11
MARÓTI, Egón. The vilicus and the villa-system in ancient Italy. Oikumene,
n. 1, 1976. p. 110.

250
na organização do trabalho rural, sendo o elo hierárquico entre as
ordens senhoriais e a execução desta pelos trabalhadores. Através
das listas de obrigações que este uilicus deve seguir presentes
no texto de Catão, podemos refletir sobre as preocupações na
relação com os trabalhadores rurais, especialmente os escravos,
que norteiam a reflexão da classe proprietária romana acerca das
relações de produção agrárias.
A importância fundamental da figura do uilicus cria uma mais
que compreensível preocupação com a subordinação e obediência
deste para com o senhor. Obviamente, a organização do trabalho só
efetivará uma eficiente exploração dos trabalhadores se o uilicus se
submeter ao que o senhor ordenou, agindo de maneira obediente
e não autônoma, que se reflete em diversas obrigações listadas por
Catão (Agr. V.3-5)
Percebemos, também, uma grande preocupação nestas listas
quanto a qualificações morais do uilicus e a retidão em suas
atitudes, para que o escolhido para o cargo seja digno deste e para
que sirva de exemplo para outros trabalhadores. Esta preocupação
se reflete tanto em ordens sobre o comportamento do uilicus (ter
bom caráter, não se dar a determinadas práticas religiosas, etc.)
quanto em ordens na relação entre uilicus e os outros trabalhadores
(demonstrar reconhecimento com aqueles que ajam de maneira
correta, punir com o castigo correto aqueles que cometerem faltas).
Esta presença maciça de preocupações morais muitas vezes foi
enfatizada por autores que pretendiam contrapor estas à existência
de considerações mais elaboradas de cunho econômico12. Pretende-
se com isso destacar os limites ou até mesmo a impossibilidade de
desenvolvimento econômico na antiguidade
Porém, acredito que tal oposição é equivocada. A obra de Catão
é estruturada a partir de uma ótica moralista “conservadora”, sendo
a agricultura valorizada como a forma de obter rendimentos mais
digna segundo o costume dos antepassados. Porém, a agricultura

12
FINLEY, Moses. A Economia Antiga. Porto: Afrontamento, 1984. p. 22.

251
não é somente a forma mais digna, mas a forma mais segura de se
obter rendimentos (Agr. Prefácio). A partir disto, Catão associa
intimamente qualidades morais, trabalho eficiente e ganhos
retirados da agricultura. Isto é, aspectos morais são vistos como
fundamentais para a eficiência da realização do trabalho rural.
Catão pretende que seu uilicus tenha qualidades morais, e que
estas sejam exemplo para o resto dos trabalhadores, não apenas
por causa de valores estritamente morais, mas também porque
relaciona estas qualidades com a eficiência e a produtividade no
trabalho.
A preocupação com a eficiência no trabalho, relacionada
ou não com aspectos morais aparece em diversas das obrigações
listadas por Catão ao seu uilicus: fazer os trabalhadores cumprirem
bem e com facilidade suas obrigações para afastá-los daquilo que é
mal e alheio (Agr. V.2)., trabalhar bem e ser o primeiro a acordar e
o último a dormir, para servir de exemplo (Agr. V.5), e cuidar para
que sua esposa faça tudo aquilo que é necessário para a chegada
do senhor (Agr. CXLIII), por exemplo. O uilicus deve, também,
controlar estes trabalhadores, não só em um sentido estritamente
moral, como já vimos, mas também coibindo brigas entre eles e
verificando, no momento de trancar a casa, se todos estão em seus
devidos lugares (Agr. V.2 e V.5).
Desta forma, para Catão, é fundamental que este uilicus seja
alguém digno de confiança e submisso às ordens senhoriais, mas
também alguém que controle (tanto no aspecto moral como
produtivo) os trabalhadores ao mesmo tempo em que serve de
exemplo (novamente, tanto moral como produtivo). O uilicus deve
manter a ordem entre os trabalhadores e, principalmente, fazê-los
manter a retidão em seus atos através do foco no trabalho. Este
aspecto é central no pensamento catoniano acerca da organização
do trabalho. Seja através do exemplo, seja através da punição
correta, o uilicus deveria manter seus subordinados dentro de uma
rígida disciplina que associa retidão moral e eficiência no trabalho.
O que acontece na construção conceitual que estrutura estas idéias

252
de Catão, não é a invasão de conceitos moralizantes sobre o aspecto
produtivo, mas uma associação entre estes dois campos.
Ou seja, os desenvolvimentos das relações de produção e das
formas de intercâmbio transformaram a realidade da agricultura
italiana, e tais transformações impuseram aos proprietários
romanos problemas que precisavam ser resolvidos e possibilidades
que poderiam ser aproveitadas. A experiência histórica desta
classe proprietária a levou a desenvolver estratégias de organização
do trabalho agrícola, mas tais estratégias foram construídas e
refletidas dentro de um contexto ideológico específico, que serviu
de arcabouço conceitual ao mesmo tempo em que moldou e deu
sentido a estas estratégias. A presença de preocupações moralizantes
no texto de Catão não demonstra um baixo desenvolvimento de
preocupações com a exploração do trabalho rural, mas sim uma
ideologia específica acerca desta exploração, em desenvolvimento
concomitante com o das novas relações de produção escravistas.
Em meados do século I a.C., por volta da década de 50, nos
deparamos com um novo tratado sobre a agricultura do qual temos
conhecimento do texto completo: a De Re Rustica do erudito Marco
Terêncio Varrão13. Os processos de transformações da realidade
rural italiana, que no século II a.C. começavam a tomar formas
mais definidas, já se encontravam muito mais desenvolvidos no
século I a.C.. A população urbana na Itália continuava a crescer,
principalmente na capital14; o imperialismo romano consolidava-
se sobre a Península Ibérica com a supressão da revolta de Sertório
e sobre o Mediterrâneo Oriental com a derrota do rei Mitrídates
do Ponto, além da conquista da Gália com as campanhas de

13
A exata data da composição do texto da De Re Rustica por Varrão é um tanto
controversa. Na introdução o autor afirma ter oitenta anos ao escrever a obra,
o que nos daria como data de composição o ano de 36 a.C. Porém, Martin
argumenta, a meu ver de maneira convincente, que tal data marcaria apenas a
junção de dois livros posteriores a um livro I composto anteriormente, por volta
da década de 50. MARTIN, René, op.cit., p. 223.
14
MORLEY, Neville, op.cit. p. 220.

253
Júlio César. A ocupação rural atingiu seu apogeu, com inúmeros
edifícios encontrados pela Arqueologia tendo sua construção
datada para este período, assim como reformas e ampliações em
edifícios de construção mais antiga. Possui a mesma datação,
também, a implementação de custosos equipamentos para o
beneficiamento da uva em diversos edifícios rurais15. Além disso,
são datadas desta época as ânforas de tipo Dressel 1, usadas pelos
mercadores romanos para transportar vinho no período final
da República e encontradas por arqueólogos nas mais diversas
regiões, da Inglaterra ao norte da África, mas principalmente na
Gália, o que demonstra a expansão da produção de vinhas voltadas
para a mercantilização e do consumo destas nas províncias durante
este período16.
O aspecto mercantil da produção também aparece mais
desenvolvido em uma comparação entre os tratados de Catão
e Varrão. Neste último autor, por exemplo, desaparece a relação
com a vizinhança ainda baseada na prestação de serviços mútuos,
pessoais ou comunitários que ainda pode ser percebida no autor
anterior. Varrão descreve uma agricultura intensiva e uma pecuária
em grande escala, uma economia rural dinâmica e produtiva,
voltada para o mercado17. Desta maneira, no tocante às relações
de produção percebidas no texto de Varrão, podemos esperar um
desenvolvimento maior das preocupações no tocante à exploração
do trabalho dos escravos e outros trabalhadores da uilla. Porém, o
desenvolvimento do mercado para os produtos agrícolas italianos
não foi o único processo histórico a influir nas preocupações de
Varrão em seu texto.
Entre 135 e 70 a.C., três revoltas escravas de proporções épicas
ocorreram dentro do Império Romano, sendo as duas primeiras na
Sicília e uma, a famosa rebelião de Espártaco, na região de Cápua,

15
GUARINELLO, Norberto, op.cit. pp. 163-169.
16
Id., pp. 162-163.
17
Id., p. 161.

254
sul da Itália, não muito distante da capital romana. A magnitude
exata destas revoltas é tema de alguns debates, mas ninguém chega
a negar que foram rebeliões de impacto imenso, envolvendo ao
menos dezenas de milhares de escravos e que impressionaram
durante muito tempo a elite romana18. Varrão escreveu seu texto
menos de vinte anos depois do fim da última dessas revoltas,
provavelmente a mais impactante delas para a elite romana, e
podemos identificar certas preocupações com o controle dos
escravos que, acredito, derivam do medo de novas revoltas.
A figura do uilicus também tem muito destaque no texto
varroniano, mas em passagens importantes de prescrição sobre
os trabalhadores, como o capítulo 17 do livro I, cede espaço para
um termo mais genérico sobre a chefia, praefectus, que designa
todos aqueles escravos incumbidos de algum cargo de chefia. Ao
falar destes praefectus, Varrão preocupa-se com as características
daqueles a serem escolhidos para tal posição, sendo importante
que tais características permitam uma chefia que estimule
a produtividade, a fidelidade ao senhor e a aceitação pelos
subordinados, sendo esta última preocupação a de maior destaque
no texto (Varrão, De Re Rustica 1.17.4-5). Varrão considera que
três características são fundamentais para a aceitação da chefia
pelos outros trabalhadores: experiência no trabalho (exerceriam a
chefia aqueles que melhor conhecem o trabalho a ser realizado),
idade mais avançada (os mais velhos seriam mais bem vistos em
posições de chefia) e moderação nos castigos (um chefe não deveria
punir com chicotadas se o mesmo resultado pudesse ser obtido
com as palavras).
Esta ênfase dada por Varrão na questão da autoridade dos
chefes sobre seus subordinados e, especificamente, a preocupação
com a moderação nos castigos pode ser mais bem compreendida

18
BRADLEY, Keith. Slavery and Rebellion in the Roman World. 140-70 b.C.
Blooming-Indianapolis-London: Indiana University Press – B.T. Batsford Ltd.,
1989. p. 64.

255
quando analisamos a visão da elite romana sobre as causas das
revoltas escravas. Por influência do estoicismo, difundiu-se entre
os meios letrados romanos a concepção de que o modo injurioso
com que alguns senhores temerários haviam tratado seus escravos
teria sido a razão para as rebeliões servis (e.g. Diodoro da Sicília,
Biblioteca Histórica 34/35.2). Além disso, a autoridade dos chefes
escravos servia como elemento de mediação entre escravos e
senhores, garantindo o exercício da violência e a ordenação do
trabalho ao mesmo tempo em que manteria o senhor num relativo
distanciamento do excesso de violência19.
Contudo, as preocupações de Varrão com as relações de
produção ficam mais claras na parte final deste capítulo 17 (R.R.
I.17.5-7). Neste trecho, Varrão afirma que é necessário manter os
escravos satisfeitos, esforçados, aplicados ao trabalho, ligados a terra
com boa vontade e fieis ao senhor através da concessão de certos
incentivos materiais (generosidade nos alimentos e vestimentas,
garantia de um pecúlio) ou “psicológicos” (generosidade nos
descansos, tratamento com consideração).
Há nessa passagem, portanto, a preocupação em criar entre
os escravos uma postura produtiva e fiel ao senhor, através de
uma postura benigna do senhor com relação aos seus escravos.
Esta postura benigna, idealizada por Varrão, porém, nos mostra
claramente os conflitos das relações de produção escravistas
na Itália romana de seu tempo. A preocupação em estimular a
produtividade do trabalho escravo através de incentivos materiais
ou psicológicos, e não simplesmente pela coerção física, tem duas
explicações: primeiro, como já dito, o medo de novas revoltas entre
a elite romana estava intimamente ligado à idéia de que as revoltas
foram causadas pelo mau tratamento dado aos escravos por
senhores temerários; e, segundo, o tipo de trabalho desempenhado
por esses escravos, principalmente a plantação de vinhas e olivas

LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência. Escravos e Senhores na Capitania


19

do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. p. 166.

256
e a fabricação do vinho e do óleo, requeria habilidades específicas
e possibilitava em grande escala a sabotagem, o que forçava os
senhores a certas concessões no conflito diário destas relações de
produção20.
Além disso, os principais “incentivos” que Varrão enumera para
a criação destas posturas de produtividade e fidelidade servem, em
si, como meio de controle de fugas e revoltas da escravaria. Por
exemplo, Varrão afirma que os chefes (praefectus) devem possuir
esposas que lhes dêem filhos, pois desta forma eles se tornam mais
firmes no trabalho e mais presos à terra (R.R.I.17.5). Isto é, o
próprio benefício que serve de incentivo, a criação de uma família,
serve ao mesmo tempo de mecanismo de controle. A melhor
socialização possibilitada pelas relações de parentesco torna, para
o escravo em cativeiro, mais custosa a ruptura com a exploração
escravista, seja via fuga, seja via insurreição.
Outro “incentivo” que apresenta esta mesma característica é a
concessão de um pecúlio em forma de gado para os escravos, com
a formação de uma “economia interna escrava” (termo cunhado
no estudo do escravismo moderno21). Eduardo Silva e João José
Reis, estudando realidade similar no contexto da escravidão
brasileira, afirmam que o aspecto de segurança sobrepõe-se aos
interesses em minimizar os custos de manutenção da força de
trabalho, motivo que poderia ser apontado automaticamente ao se
analisar a concessão de pequenos rebanhos ou pequenos cultivos
aos escravos22. O mesmo pode ser percebido no texto de Varrão. A
idéia de diminuir os custos de manutenção através desta concessão

20
Ver a relação entre “incentivos por recompensa” e “trabalhos de habilidade”
feita por FENOALTEA, Stefano. Slavery and Supervision in Comparative
Perspective: A Model. The Journal of Economic History, vol. 44, n. 3, 1984. pp.
636-640.
21
SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e Recordações na formação
da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999. p. 200.
22
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito. A Resistência negra
no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 29.

257
aparece, mas a ênfase recai nas posturas escravas estimuladas com
tal concessão: aplicação, zelo, firmeza no trabalho, satisfação, boa
vontade e lealdade ao senhor (R.R.I.17.5 e I.19.3).
Robert Slenes buscou, em seu mais famoso trabalho sobre
a escravidão brasileira, recuperar as esperanças e recordações
construídas no cativeiro a partir da formação de uma economia
interna e de famílias escravas, ao que ele chamou de “flor na
senzala”23. Slenes não nega que tais instituições serviam como
formas de controle social, mas ressalta que também permitiam
a criação de espaços de resistência dentro da escravidão. Porém,
acredito que vale lembrar uma velha metáfora que também envolve
flores:

O apelo para que abandonem as ilusões a respeito


da sua condição é o apelo para abandonarem uma
condição que precisa de ilusões. [...] A crítica
arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não
para que o homem os suporte sem fantasias ou
consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor
viva brote24.

O que podemos aprender nesta passagem de Marx é que


exatamente por garantir certas perspectivas para o escravo que
a constituição de uma família ou a formação de uma economia
interna consegue funcionar como um instrumento de controle
social por parte dos senhores.
O texto de Varrão apresenta, desta maneira, uma apreciação
mais complexa e profunda das relações de produção escravistas,
demonstrando o desenvolvimento da reflexão da elite romana
frente às transformações econômicas no campo e também frente

23
SLENES, Robert, op. cit., p. 201.
24
MARX, Karl. Introdução à Critica da Filosofia do Direito de Hegel. In:
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
pp. 145-146.

258
ao próprio contexto da luta de classes empreendida com os
escravos, já que em Varrão fica clara a preocupação em evitar fugas
e insurreições.
Acredito que estes dois tratados romanos sobre o campo são
exemplares de uma lógica de exploração e dominação escravistas
sendo construídas ao longo do desenvolvimento destas relações de
produção durante os dois séculos finais da República Romana.

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261
Estructuras de Señorío, Método
Comparativo y Transición al
Capitalismo

Laura da Graca

El objeto de este estudio es la existencia y grado de desarrollo


de la diferenciación social campesina en distintas formas de
señorío castellano, las cuales se someterán a comparación con el
objeto de contribuir al problema general de las condiciones de
posibilidad de procesos acumulativos en el feudalismo tardío.1 Por
diferenciación social se entiende, de acuerdo al criterio de Lenin,
el conjunto de contradicciones internas del campesinado, es decir,
el surgimiento de un sector de labradores enriquecidos que tiende
a convertirse en capitalista a costa de otro sector que tiende a la
pérdida de los medios de producción y que acabará vendiendo a los
primeros su fuerza de trabajo; existe diferenciación social cuando
la dinámica capitalista surge de los productores directos, lo cual
presupone cierto grado de emancipación de restricciones feudales
como condición de posibilidad, según la formulación de Lenin del
llamado “capitalismo desde abajo”.2
Este criterio ha sido aplicado por los historiadores marxistas
británicos a la primera fase de la transición en Inglaterra, donde
se constata el crecimiento y protagonismo de campesinos
enriquecidos en un contexto de liberalización de restricciones
feudales, resultado de la conmoción que representa el levantamiento

1
El presente trabajo sintetiza problemas tratados en DA GRACA, L. Poder
político y dinámica feudal. Procesos de diferenciación social en distintas formas
señoriales. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2009.
2
LENIN, V. I. El desarrollo del capitalismo en Rusia. Buenos Aires: 1969, y El
programa agrario de la socialdemocracia en la primera revolución rusa de 1905-
1907, In: Obras Completas, vol. 13, Buenos Aires: Cartago, 1960.

263
de 1381, tras el cual se desarrolla un proceso emancipatorio que
posibilita la acumulación.3 Rodney Hilton ha probado el aumento
del tamaño de la tenencia del grupo enriquecido en las décadas
siguientes a la revuelta, comparando información de 1341 y
1477 en un dominio de Leicester; este incremento, que implica
el pasaje de economías domésticas a granjas protocapitalistas, se
relacionaría con la posibilidad de desarrollo de un mercado de
tierras tras la declinación del control señorial, que obstaculizaba
ese tráfico, y la virtual desaparición de la condición servil, que
prohibía al campesino villein comprar tierras.4 El crecimiento de
un sector campesino acomodado entre fines del XIV y fines del
XV, y la centralidad del intercambio de tierras como mecanismo
de diferenciación social había sido señalado con anterioridad
por Tawney, quien observaba también en el periodo procesos
de reagrupamiento y cercamiento de la tenencia por parte del
grupo campesino enriquecido.5 Christopher Dyer documenta
en un dominio de Worcester la resistencia organizada al pago de
rentas durante el siglo XV, proceso que implica una redistribución
del ingreso a favor de los tenentes, lo cual habría permitido la
formación de capital aldeano. Este proceso tiene como condición
de posibilidad el declive del tribunal señorial como instrumento de
coerción, que se verifica después de 1381 incluso en las áreas que
no participaron del levantamiento, lo que demuestra el alcance de
los efectos de la lucha de clases sobre las transformaciones sociales.6

3
DOBB, M. Estudios sobre el desarrollo del capitalismo. Buenos Aires: Siglo XXI,
1975, cap. 2; HILTON, R. The decline of serfdom in medieval England. Londres:
Melbourne Macmillan, 1969.
4
HILTON, R. The economic development of some Leicestershire estates in the 14th
and 15th centuries. Oxford: Oxford Univ. Press, 1947.
5
TAWNEY, R. H. The agrarian problem in the sixteenth century. London:
Longmans & Co., 1912. pp. 72-97.
6
DYER, Ch. Lords and peasants in a changing society. The estates of the bishopric
of Worcester, 680-1540. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. Entre
los historiadores que siguen la línea de la escuela de Birmingham WHITTLE,
J. The Development of Agrarian Capitalism. Land and Labour in Norfolk 1440-
1580. Oxford: Oxford University Press, 2000.

264
En Castilla no se produce en el siglo XV una emancipación de
la servidumbre, entendido este concepto en el sentido de dominio
político (en grados diversos) sobre la persona. Al contrario, el
siglo XV ha sido considerado un periodo de recuperación y
feudalización plena, que se manifiesta en un incremento general
del volumen de renta. Se constata, no obstante, cierto desarrollo
de procesos acumulativos, aunque este no es un rasgo general
sino una situación que varía según la forma específica de señorío:
ciertas estructuras coercitivas resultan más favorables que otras
para el desarrollo de la diferenciación social; estas estructuras se
manifiestan en las modalidades específicas de gestión del señorío,
que involucran en mayores o menores grados a sectores no feudales
y a sectores tributarios. Estas particulares estructuras de clase de
los sistemas de gestión condicionan la práctica campesina; se trata
precisamente de establecer los mecanismos concretos por los que
las formas políticas, constitutivas del modo de producción feudal,7
inciden sobre la evolución y estructura interna de las comunidades.
Estos mecanismos se descubren en el estudio empírico de la
práctica social, y se valoran en el análisis comparativo.

El problema de la comparación

La comparación no es una práctica difundida entre los


historiadores de enfoque socioeconómico. Para el caso de la
Edad Media castellana los estudios comparativos provienen de
la historiografía positivista, que privilegia la comparación de
normas; entre los historiadores no positivistas predominan los

7
Se sigue el criterio de ANDERSON, P. El Estado Absolutista. México: Siglo
XXI, 1987, conclusiones. Sobre la centralidad de las formas políticas en
sociedades precapitalistas LUPORINI, C. “Crítica de la política y crítica de la
economía política de Marx”. In: MARRAMAO, G. et al. Teoría marxista de la
política. México: Pasado y Presente , 1981, y LUKÁCS, G. Conciencia de clase.
In: Historia y conciencia de clase. México: Grijalbo, 1969.

265
estudios monográficos centrados en un dominio o un concejo,
los cuales no establecen comparaciones con otras formas sociales.
El comparativismo en cambio ha tenido desarrollo fuera de la
disciplina, en los modelos de la sociología histórica. En muchos
de esos estudios el método comparativo sirve para cuestionar
la generalidad de un modelo, lo cual puede resultar fructífero
cuando se trata de contrastar una teoría cuya validez depende de la
observación de resultados uniformes; tal el caso de la explicación
que atribuye el cambio a la demografía, desbaratada por Brenner en
base a un principio comparativo básico (observación de tendencias
demográficas iguales en x e y; resultados sociales distintos en x e
y).8 En otros casos el método tiene un alcance más limitado, por
ejemplo en los estudios sobre las vías de transición agraria, donde
se comparan diversas regiones para concluir que éstas informan
sub-variantes. Aquí el examen de otros casos y o z no aporta a la
comprensión de x, cuya singularidad se establece en el contraste
con un modelo previo (por ejemplo, las vías transicionales de
Lenin).9 El problema se relaciona con las variantes del método
comparativo. Entre los muchos criterios de clasificación posibles
el más visible opone la comparación ordenada en base a casos de
estudio a la que se realiza en base a variables. En los trabajos de
la sociología histórica predomina la primera opción: se estudia
un caso, luego otro, luego un tercero, y se exponen al final las
diferencias. Esta tendencia puede obedecer a la identificación del
ordenamiento por variables con estudios técnicos, aunque también
se relaciona con la naturaleza de la evidencia empírica utilizada,
consistente en fuentes secundarias o de segunda mano. Esta
limitación de la sociología histórica enfrenta al comparativista con
el problema de qué material seleccionar, cómo tratar la diversidad

8
BRENNER, R. Estructura de clases agraria y desarrollo económico en la
Europa preindustrial. In: ASTON, T. H. y PHILPIN, C. H. E. (eds.). El debate
Brenner. Barcelona: Crítica, 1988.
9
BYRES, T. Capitalism from above and capitalism from below. London: Macmillan
Press, 1996.

266
de interpretaciones, etc., lo que determina el método comparativo
a seguir: el ordenamiento por variables exige descender a un nivel
de especialización que no se condice con los requerimientos de
síntesis de estos estudios, ni con las posibilidades de manipulación
del sociólogo o el economista; es de notar que los estudios de la
sociología histórica utilizan mayormente bibliografía general
(historias nacionales, etc.), lo cual naturalmente conduce a ordenar
la comparación en base a casos de estudio. La generalización que
estos trabajos practican se presenta así como síntesis de estudios
generales, lo que en muchos casos implica renunciar a conocer por
las diferencias. Otros estudios de la sociología histórica, ordenados
también por casos, practican sin embargo la comparación, como
puede verse por ejemplo en la obra de Barrington Moore. Aquí
el orden en que se presentan los casos es fundamental, ya que las
conclusiones de un caso de estudio determinan las variables que
se analizarán en el siguiente. Por ejemplo, se ha establecido que
la autonomía de la nobleza y la aniquilación del campesinado
son factores cruciales para la evolución de Inglaterra hacia la
democracia; el siguiente caso, Francia, tendrá como punto de
partida evaluar si esos fenómenos se verifican, y en qué grado, con
lo cual la especificidad del caso acabará estableciéndose en forma
negativa (no hay cercamientos, no hay una nobleza de tipo burgués,
etc.). La especificidad se resuelve, así, en referencia a otro caso que
deviene típico-ideal.10 Este procedimiento anula la posibilidad de
evaluar un desarrollo histórico particular, del cual podrían seguirse
otros elementos de causalidad.
Estas modalidades de comparación han sido en gran parte
superadas por el estudio comparativo de Chris Wickham Framing
the Early Middle Ages,11 que al tiempo que comprende un arco

10
MOORE JUNIOR, B. Los orígenes sociales de la dictadura y de la democracia.
El señor y el campesino en la formación del mundo moderno. Barcelona: Península,
1973.
11
WICKHAM, Ch. Framing the early Middle Ages. Europe and the Mediterranean
400-800. Oxford: Oxford University Press, 2005.

267
espacio temporal similar por su amplitud al de los grandes estudios
de la sociología histórica procede a una comparación empíricamente
fundada, propia de un historiador. El estudio empírico, a su vez,
no se orienta a la comparación de normas sino al examen de la
práctica social. Este es sin dudas el gran mérito de la obra y la
razón por la que debe considerarse un hito historiográfico. En el
estudio de Wickham la comparación tiene como objeto principal
refutar hipótesis generales mediante el contraste con otros casos,
a fin de desmantelar construcciones elaboradas desde paradigmas
localistas y establecer causalidades e hipótesis generales a partir de
la identificación de similitudes: la existencia de patrones comunes
en un extenso conjunto de sociedades permite no sólo desbaratar
explicaciones localistas sino postular algo general: el predominio
de campesinos libres en la mayor parte de Europa Occidental en
la temprana Edad Media, producto de la involución del estado (y
no de fenómenos particulares de cada lugar como por ejemplo la
Reconquista). El análisis de las diferencias, en cambio, no está al
servicio de la construcción de hipótesis generales, limitándose a
la refutación de paradigmas (tal como lo ejemplifica el modelo de
Brenner) o a establecer sub-variantes.12 El estudio comparativo
de Chris Wickham, en suma, tal como el mismo autor concede,
aunque representa un gran avance, no ha logrado postular
afirmaciones generales a partir de las diferencias.13
Esto es lo que se intentará a continuación: se procederá a un
análisis comparativo de la existencia y desarrollo de la diferenciación
social en distintas estructuras señoriales, contrastando variables
con el objeto de obtener hipótesis generales a partir del registro de
las diferencias.

12
El método comparativo de la obra Framing the Early Middle Ages ha sido
analizado en DA GRACA, L. Reflexiones metodológicas sobre el estudio
comparativo de Chris Wickham, Edad Media, Revista de Historia, n. 9, 2008.
13
WICKHAM, Ch. The problem of comparison, Historical Materialism.
Research in Critical Marxist Theory. vol. 9, 1, 2011.

268
Diferenciación social y estructuras de coerción en
Castilla en la Baja Edad Media

Tomaremos como unidades de comparación tres formas


básicas de gestión señorial que pueden entenderse como subtipos
del modo feudal de producción, en tanto implican variaciones en
las modalidades de gestión política: a) el señorío concejil, que se
corresponde con los grandes concejos de realengo y de particulares
del sur del Duero, b) el señorío solariego o no concejil y c) la
behetría, con alto grado de difusión en el norte del Duero. La
diferencia entre estas formas se encuentra en las estructuras de
clase que constituyen en cada caso el sistema político que efectiviza
la coerción. Mientras el señorío nobiliar o solariego presenta
una estructura de clase plenamente señorial y personalista, sin
incidencia de otras fuerzas políticas, en concejos existen otras
instancias de mediación que conectan al señor con el productor
directo tributario.14 Los concejos se definen como señoríos
colectivos de la aristocracia villana sobre las aldeas del alfoz; la
institución concejil, dominada por el sector específico de caballeros
villanos, aparece como instancia intermedia o subsistema entre el
ámbito de aplicación de sus atribuciones jurisdiccionales y el poder
superior, que impide la instrumentalización del concejo por parte
de la elite urbana dirigente. La especificidad del sector de caballeros
y de su funcionalidad en la gestión de los grandes concejos no tiene
equivalente en el señorío nobiliar y de behetría, donde aun cuando
existe proyección sobre espacios jurisdiccionales amplios los
sistemas organizativos se inscriben en la lógica señorial (vasallática
o clientelar) sin constituir subsistemas autónomos dominados por

14
Esta taxonomía básica ha sido planteada por MONSALVO ANTON, J. M.
Poder político y aparatos de estado en la Castilla bajomedieval. Consideraciones
sobre su problemática. Studia Historica. Historia Medieval, n. IV, 2, 1986. El
autor sin embargo no toma en cuenta la behetría, que aquí agregamos siguiendo
su criterio general.

269
sectores sociales con intereses diferenciados. La especificidad de
los caballeros villanos, a la vez, está dada por su origen campesino,
que determina la proximidad social con los miembros de esa clase.
El sistema concejil, por último, implica altos grados de autonomía
en los concejos rurales, dominados por sectores tributarios
aldeanos. En cuanto a la behetría, se trata de una forma señorial
que predomina entre el Cantábrico y el Duero, y cuyos rasgos
esenciales son a) la presencia de numerosos señores (los diviseros o
naturales) ejerciendo derechos sobre un mismo lugar de señorío, lo
que determina una estructura con múltiples extractores de renta,
al menos hasta el siglo XIV; b) la posibilidad, para los labradores,
de elegir señor libremente o entre los miembros de un linaje y c)
la presencia jurisdiccional del rey, que detenta en las behetrías la
justicia superior. Esta concurrencia de fuerzas sociales expresa una
estructura original, cuyo rasgo distintivo es la disputa continua entre
fracciones de clase con intereses contradictorios, potenciada por la
facultad de elección de señor que tienen los pobladores. Al igual que
en el señorío solariego o no concejil, las estructuras organizativas
de la behetría responden a la lógica señorial que controla a la
población a través de sus agentes directos, generalmente hidalgos
y escuderos adscriptos a los bandos en pugna, y que escasamente
delega funciones coercitivas en sectores tributarios, cuyas luchas se
orientan a la obtención de mayor autonomía.15
Se comparará entonces la existencia y desarrollo de procesos
de diferenciación social en las comunidades tributarias de estas tres
formas de señorío, tomando para el señorío concejil el ejemplo de
Avila, Zamora y Piedrahíta; para la behetría, Becerril de Campos y
otras behetrías aledañas, y para el señorío nobiliar documentación
de la casa de Velasco y relevamientos generales.

15
Un ejemplo de estas luchas en OLIVA HERRER, R. H. Memoria colectiva y
acción política campesina: las behetrías de Campos hacia las Comunidades. Edad
Media. Revista de Historia, n. 4, 2001.

270
Por último, desde el punto de vista del método comparativo,
se recurre al contraste por variables antes que a la yuxtaposición
sucesiva de casos. Esas variables no provienen de la sublimación
de un caso de estudio, como suele ocurrir en los grandes estudios
comparativos, sino del examen de las elaboraciones clásicas sobre
la diferenciación social, propuestas centralmente por Lenin y el
marxismo británico.
Comenzaremos por una de las variables centrales para el estudio
de la estructura social de las comunidades campesinas, según la
perspectiva de Lenin: la composición de la renta. Al respecto pueden
apuntarse algunas notas generales. El ámbito de señorío nobiliar se
caracteriza por la importancia relativa de la explotación directa;
por la generalización del sistema de arriendo; por el predominio
de la renta en especie; por la vigencia de prestaciones de trabajo.
Ninguno de estos caracteres puede aplicarse al área de concejos,
donde predomina el tributo en dinero y no se registran servicios
en trabajo. El predominio de la renta en dinero y la ausencia de
rentas territoriales implican en principio mayores posibilidades
de actuación para los tributarios, en tanto éstos pueden decidir su
dedicación productiva y emprender una especialización al menos
parcial de su economía. La renta en dinero, por otro lado, impulsa
por principio la realización mercantil del producto y el contacto
de los productores con el mercado, lo cual favorece la tendencia
a la transformación de estos últimos en productores simples de
mercancías, criterio que ha subrayado Lenin, siguiendo a Kautsky
y a Marx,16 y que ha sido aplicado por Kosminsky y Dobb al caso
de Inglaterra.17

16
LENIN, V. I., op. cit., cap. 2; MARX, 8 vol., México: Siglo XXI, 1990,
III/8, XLVII; KAUTSKY, K. La cuestión agraria. Estudio de las tendencias de
la agricultura moderna y de la política agraria de la socialdemocracia. París: Ruedo
ibérico, 1970, cap. 2.
17
KOSMINSKY, E. A. Studies in the agrarian history of England in the thirteenth
century. Oxford: Blackwell, 1956; DOBB, M. Del feudalismo al capitalismo y
Respuesta. In: HILTON, R. (ed.). La transición del feudalismo al capitalismo.
Barcelona: Crítica, 1987.

271
En behetrías el aspecto más saliente del sistema tributario
es el predominio de tributos de hospitalidad, considerados
especialmente gravosos y abusivos, y el alto grado de arbitrariedad
en la imposición de rentas, que se deriva del fuerte nivel de
conflictividad y violencia que implica el carácter mutable de esta
forma señorial y que en algunos casos se expresa en la imposición de
prestaciones de trabajo, lo cual supone una sociedad relativamente
homogénea y débilmente organizada.18
Junto al problema de la composición de la renta deben
considerarse los sistemas de reparto del tributo, que permiten una
aproximación a la tasa de explotación relativa. En la Baja Edad
Media las comunidades se encuentran estratificadas; el origen de
esta estratificación se remonta tal vez al momento de conformación
institucional de las comunidades. Esto tiene un reflejo en el
establecimiento de cuantías (una estimación del nivel de fortuna de
cada contribuyente), por lo cual cada tributario paga en principio
de acuerdo a lo que tiene. Este principio se encuentra firmemente
establecido en concejos desde el siglo XIII,19 mientras en behetrías
y en el ámbito de señorío predominan tributos uniformes o
individuales hasta el siglo XIV, lo que pude interpretarse como
el reflejo de una sociedad poco estratificada al momento de la
imposición de las obligaciones.20 En el siglo XV el reparto por
cuantías se generaliza. Sin embargo, los sistemas de reparto varían
según la forma de señorío. Mientras en behetrías y lugares de señorío
predominan los sistemas de reparto proporcionales a la cuantía de
los contribuyentes, en concejos se institucionaliza el sistema de
reparto por cáñamas o tramos de riqueza. Este sistema establece

18
La diferenciación social de las comunidades determina según Dobb su “grado
de explotabilidad”, condicionando en el caso inglés la implantación de una
“segunda servidumbre”, DOBB, M. Estudios…, op. cit., cap. 2.
19
ASENJO GONZALEZ, M. Segovia. La ciudad y su tierra a fines del
medioevo. Segovia: Diputación Provincial de Segovia, 1986. p. 468: se trata
de un documento de 1256 que alude a pecheros enteros, medieros, cuarteros,
octaveros, etc.
20
MARTINEZ DIEZ, S. I. Libro Becerro de las Behetrías. 2 vols., León: Centro
de Estudios e Investigación San Isidoro, 1981. passim.

272
un máximo imponible más allá del cual el tributo no varía; de esta
manera los más ricos del padrón realizan una ventaja diferencial,
eximiendo de tributos una proporción significativa de sus bienes.21
El sistema proporciona así un mecanismo de enriquecimiento,
en tanto implica una importante reducción de la tasa de renta y
mayor disponibilidad del excedente para los tributarios situados
en la escala superior del padrón. El sistema de reparto por cáñamas
actúa además sobre las posibilidades de acumulación, ya que
estimula la ampliación de la tenencia por parte del pechero rico,
por cuanto las nuevas tierras que éste adquiera quedarán exentas
de renta. Al respecto se ha comprobado que los mayores pecheros
de concejos ampliaban la tenencia a través de la compra de tierras
a otros campesinos, llegando incluso a monopolizar ese mercado.22
Se observan asimismo prácticas campesinas especulativas, como
el mecanismo de concentrar la titularidad de los bienes en un solo
miembro de la familia, liberando de rentas tenencias sustanciales
que quedan integradas en una única unidad fiscal, cuyas nuevas
dimensiones, dada la existencia de un máximo imponible, no
modifican la cantidad a pagar.23

21
Puede verse un padrón y la diferencia entre el tributo y la cuantía para caa escala
del padrón en DEL SER QUIJANO, G. Documentación medieval en archivos
municipales abulenses. Avila: diciones de la Obra Cultural de Caja de Ahorros
de Avila, 1998, Bonilla de la Sierra, doc. 25 (en adelante Archivos Municipales
Abulenses); sobre las quejas de los tributarios medios acerca del sistema de
reparto ASENJO, Segovia, Apéndice documental; sobre la forma específica en
que se reparte el tributo a las aldeas LUIS LÓPEZ, C. Documentación medieval
de Piedrahíta: estudio, edición crítica y fuentes. vol. I (1372-1477). Ávila: Ediciones
de la Institución “Gran Duque de Alba”, 2007, doc. 36, 40 a 45, 48 a 53, 56, 59
a 61, 64, 68 a 73, 76 a 82.
22
SANTAMARIA LANCHO, M. Del concejo y su término a la comunidad
de ciudad y tierra: surgimiento y transformación del señorío urbano de Segovia
(S.XIII-XVI). Studia Histórica. Historia Medieval, vol. III, n. 2, 1985.
23
Cortes de los antiguos reinos de León y Castilla, Real Academia de Historia, I.
Madrid: Impr. de la real casa, 1861; II, Madrid: Impr. de la real casa, 1863; III,
Madrid: Impr. de la real casa, 1866; IV, Madrid: Impr. de la real casa, 1882; V,
Madrid: Impr. de la real casa, 1903. “De dos o tres pecheros que eran de ante tornan
se en uno”, Cortes de Burgos de 1453, pet. 5.

273
Otro contraste entre los sistemas de reparto de las distintas
formas de señorío es el desigual criterio respecto a la exención por
pobreza. El sistema tributario de concejos establece una cuantía
mínima imponible, contemplando la existencia de personas que no
alcanzan un nivel mínimo de fortuna y que por este motivo quedan
excluidas de la obligación de tributar.24 La exención de tributos
de sectores empobrecidos favorece su empleo como asalariados,
apareciendo además esta forma de explotación como un régimen
en principio compatible con el sistema de renta, al nutrirse de
sectores desplazados de la tributación y por ende fuera del interés
del señor. A su vez, la exención otorga ventajas al empleador, que
cuenta con dependientes de cuyas obligaciones no debe hacerse
cargo y a quienes podrá subordinar plenamente.
En lugares de behetría predomina en cambio la tributación
indiscriminada, sin que se reconozca nunca la calidad de exentos
a los sectores empobrecidos.25 El hecho implica menores
posibilidades de desarrollo de otro régimen socioproductivo, ya
que no se consuma la salida del productor del sistema tributario,
que favorece la circulación del trabajo como mercancía.
En base al estudio de los padrones de concejos, la
información sobre tasación de bienes y los niveles de fortuna que
los contemporáneos atribuyen a los pecheros más ricos, se ha
calculado que éstos explotan parcelas de más de 40 has. y poseen
entre 200-500 cabezas de ganado, lo cual concuerda con la riqueza
de un campesino yeoman.26 En behetrías, según información

24
LUIS LOPEZ, C. y DEL SER QUIJANO, G. Documentación medieval del
Asocio de la Extinguida Universidad y Tierra de Avila. Avila: Institución Gran
Duque de Alba, 1990, doc. 8.
25
MARTINEZ DIEZ, S. I. op. cit., passim; OLIVA HERRER, H. R.
Ordenanzas de Becerril de Campos (circa 1492). Transcripción y estudio. Palencia:
Institución Tello Téllez de Meneses, CECEL-CESIC, Diputación de Palencia,
2003, p. 141, FERNANDEZ MARTIN, P. Las ventas de las villas y lugares de
behetría, Anuario de Historia Económica y Social, I, 1968, p. 261.
26
ASENJO GONZALEZ, M. op. cit., apéndice documental; DEL SER
QUIJANO, G. op. cit., doc. 25. Sobre los niveles de fortuna de campesinos

274
bibliográfica los sectores más prósperos del campesinado no llegan
a reunir 20 has., y sólo excepcionalmente alcanzarían fortunas
de 30 has., mientras la propiedad de ganado nunca supera las
100 cabezas.27 Las explotaciones de los sectores enriquecidos de
behetrías se mantienen mayormente dentro de los límites de una
economía doméstica, mientras las de los pecheros ricos de concejos
necesariamente requieren mano de obra adicional, según las
estimaciones de los especialistas en sistemas agrarios, que sitúan
en 25 hectáreas el umbral a partir del cual se requiere trabajo
asalariado, y en 40 has. las dimensiones que suponen el predominio
de esta forma de explotación por sobre el trabajo familiar.28
En concejos se observan prácticas sociales específicas del sector
campesino acomodado tendientes a obtener la exención tributaria.
Las variadas posibilidades de promoción estamental afectan el
desarrollo de procesos acumulativos, puesto que la evasión de
tributos o su exención legal implican para la economía campesina
la disposición de los excedentes anteriormente apropiados como
renta y la posibilidad de desarrollo de otro régimen de producción

yeomen DYER, Ch. Niveles de vida en la Baja Edad Media. Barcelona: Crítica,
1991, p. 186. Perfiles completos de este sector en DYER, Ch. Were there any
capitalists in fifteenth-century England? In: Everyday Life in Medieval England.
London: Hambledon, 1994.
27
OLIVA HERRER, R. H. La Tierra de Campos a fines de la Edad Media.
Economía, sociedad y acción política campesina. Valladolid: Secretariado de
Publicaciones e Intercambio Editorial/Universidad de Valladolid, 2002.
28
ALLEN, R. Enclosure and the yeomen. The agricultural development of the south
midlands. 1450-1850. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 50; LENIN,
V. I. op. cit., cap. 2, divide al campesinado en los siguientes grupos: los que
cultivan entre 5 y 10 desiatinas (campesinos pobres); entre 10 y 25 (campesinos
medios); entre 25 y 50, y los que cultivan más de 50. Los dos últimos grupos
corresponden a campesinos acomodados. 1 desiatina= 1,0925 hectáreas.
Según Furió el campesino acomodado, considerado en general, detenta entre
10 y 40 has.; el autor no considera la diferencia cualitativa que implican estos
niveles, FURIÓ, A. Las elites rurales en la Europa medieval y moderna. Una
aproximación de conjunto. In: RODRÍGUEZ, A. (ed.). El lugar del campesino.
En torno a la obra de Reyna Pastor. València: Universitat de València y CSIC,
2007.

275
entre aquellos que se sustraen del sistema tributario. Se ha
establecido el menor nivel de explotación relativa del campesino
enriquecido con respecto a sus vecinos en el área concejil. Las
desigualdades se acrecientan cuando el campesino rico consigue
liberarse totalmente de pagar. Esta posibilidad, que se manifiesta
en un conjunto de prácticas, se basa en relaciones de tipo clientelar
con las autoridades urbanas: con el favor de los caballeros villanos
los campesinos enriquecidos integran sus bandos-linaje; se hacen
pasar por excusados suyos; se presentan como sus allegados;
son quitados de los padrones; son armados caballeros por otros
caballeros; consiguen prestado el equipo militar; entablan pleitos
de hidalguía, cuya resolución en gran parte depende del gobierno
local, donde pueden fraguarse los datos.29
En behetrías no se observan estas posibilidades de promoción
social y estamental. Al contrario, la relación de los campesinos
prósperos con el sector privilegiado es hostil y conflictiva, lo que se
relaciona con el papel de los grupos de privilegio, principalmente
hidalgos y escuderos, que predominan en los cargos concejiles y
de gestión y participan activamente en la lucha de bandos, aspecto
ligado al carácter mutable de la behetría. El privilegio de Juan II de
1454, según el cual todos los vecinos deben tributar, incluidos los
hidalgos recientemente llegados al lugar, obedece a la necesidad de
pacificar los lugares e impedir la actuación de múltiples clientelas de
hidalgos en las localidades de behetría;30 se deduce que son pocas

29
CHACON GOMEZ MONEDERO, F. A. Colección diplomática del concejo
de Cuenca (1190-1417). Cuenca: Publicação de governo estadual ou província,
1998, doc 194 (1412) y 197 (1413); DEL SER QUIJANO, G. op. cit., doc. 9,
12, 17; Cortes de los antiguos reinos…, op. cit., Cortes de Burgos de 1453, pet. 2;
Cortes de Madrigal de 1476, pet. 7; Cortes de Valladolid de 1440, pet. 23.
30
El privilegio en FLORANES, R. Apuntamientos curiosos sobre behetrías,
In: Colección de documentos inéditos para la historia de España. Madrid: La viuda
de calero, 1872, tomo XX. pp. 407-475. Los contenidos se reiteran en las
Ordenanzas de Becerril de Campos, 51 (1501), donde se regula extensamente
el problema de los privilegios de hidalgos y escuderos y se intenta mitigar la
influencia de estos sectores.

276
las posibilidades de exención tributaria y promoción estamental
para tributarios ricos, cuyos reclamos en relación a este problema
concuerdan con los de tributarios medios del área de concejos,
tendientes a elevar la tasa de renta de los sectores acomodados.31
En concejos la proximidad social entre tributarios ricos
y caballeros se manifiesta también en la participación de los
primeros en el gobierno urbano: los campesinos ricos normalmente
son regidores y alcaldes en pequeños concejos (por ejemplo
Mombeltrán o Villatoro) y ocupan regidurías en grandes concejos
urbanos como Segovia o Sepúlveda. En Piedrahíta desempeñan
generalmente el cargo de mayordomo de concejo y el de fiel,
y dominan absolutamente los concejos aldeanos, llegando en
algunos casos a constituir concejos cerrados, según se observa en
aldeas de Segovia.32 En behetrías en cambio los oficios concejiles
están en manos de hidalgos y escuderos o personas ajenas al sector
tributario, que por lo general responden a los bandos nobiliarios
que se disputan el señorío sobre el lugar.33 Los lugares de behetría,
además, constituyen núcleos independientes no integrados en
alfoces, lo que reduce la posibilidad de actuación autónoma de
los tributarios. Se constata un alto grado de intervención señorial
sobre la elección de los oficios, al igual que sucede en el ámbito
de señorío nobiliar o no concejil, donde el señor normalmente

31
ASENJO GONZALEZ, M. op. cit., p. 481 cita documentación sobre los
reclamos de pecheros medios al respecto.
32
BARRIOS GARCIA, A.; LUIS CORRAL, F.; RIAÑO PEREZ, E.
Documentación medieval del Archivo Municipal de Mombeltrán, Ávila: Ediciones
de la Obra Cultural de la Caja de Ahorros de Avila, 1996, doc. 158; LUIS
LOPEZ, C. Colección Documental del Archivo Municipal de Piedrahíta (1372-
1549). Avila: Ediciones de la Obra Cultural de la Caja de Ahorros de Avila,
1987, II, doc. 8; ASENJO GONZALEZ, M. op. cit., p. 493 n. 195. Ofrece
datos al respecto MONSALVO ANTÓN, J. M. La participación política de
los pecheros en los municipios castellanos de la Baja Edad Media. Aspectos
organizativos. Studia Historica. Historia Medieval, VII, 1989.
33
OLIVA HERRER, H. R. op. cit., pp. 162-163; pp. 190-191.

277
designa directamente a los oficiales o coloca criados suyos.34 Las
modalidades que se observan en behetrías, donde los criados del
señor llegan a sustituir a los oficiales en funciones, expresan una
forma extrema de gestión del señorío según describe Weber la
administración patrimonial: los “funcionarios” son reclutados de
entre los dependientes y servidores domésticos, cuya obediencia
incondicional se basa en la fidelidad que surge del vínculo personal,
sin llegar a constituir una administración política.35
Las divergencias señaladas reflejan desiguales niveles de
organización política de los tributarios en cada forma señorial.
En el área de concejos el estado de los pecheros constituye una
institución relativamente poderosa, con participación directa en
el gobierno urbano y con incidencia política indirecta mediante
la apelación a la monarquía, además de dominar los concejos
rurales. Este superior nivel organizativo implica un mayor
protagonismo campesino en la vida económica y política de la
comunidad, y por ende mejores condiciones para el desarrollo de
procesos de diferenciación social, en tanto éstos suponen que un
sector del campesinado conduce la dinámica de transformación,
la cual depende del grado de autonomía de la pequeña producción
campesina. Esta autonomía es particularmente patente en los
concejos aldeanos, cuya subordinación al concejo cabecera es
bastante relativa; esto se manifiesta en la capacidad de autogobierno

34
MOXÓ, S. de. Los señoríos: cuestiones metodológicas que plantea
su estudio. AHDE, XLIII, 1973; ALVAREZ LLOPIS, E.; BLANCO
CAMPOS, E.; GARCIA DE CORTAZAR, J. A. Documentación medieval de
la Casa de Velasco referente a Cantabria en el Archivo Histórico Nacional, Sección
Nobleza, II. Santander: Fundación Marcelino Botín, 1999, doc. 281. Sobre la
gestión mediante criados ver el conflicto que describe y documenta OLIVA
HERRER, R. H. Libertad de behetría y ofensiva señorial a fines del medioevo:
la señorialización de la behetría de Osorno de Yuso. Historia, Instituciones,
Documentos, n° 27 (2000).
35
WEBER, M. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica,
1992. pp. 771-776.

278
de los concejos rurales, que llegan incluso a elaborar su propia
normativa con independencia de las regulaciones urbanas.36
Otra variable a comparar es la posibilidad de aprovechamiento
de comunales, que favorece la posibilidad de una especialización
ganadera.
El acceso campesino al usufructo de comunes varía según la
forma de señorío. En el área concejil los comunales son libres; en
el ámbito de señorío se comparten con el señor, lo que estimula su
apropiación y conversión en propiedad eminente. Se confirma una
mayor injerencia señorial en ámbitos de señorío y behetría, donde
se observa la invasión sistemática de tierras comunales por parte
del señor sin que esto implique transformaciones en las relaciones
sociales, ya que las tierras apropiadas generalmente se entregan
en arriendo a los tributarios.37 Esta transformación no genera la
figura del arrendatario capitalista sino la del “rentero”, asociada
a un mayor grado de explotación y dependencia dominical. El
conflicto por la ocupación de comunales en concejos involucra
generalmente a caballeros villanos o señores comarcanos, y los
litigios se resuelven a favor de los tributarios, confirmándose
frecuentemente la restitución de los bienes.38 La monarquía protege
a las comunidades porque éstas constituyen su base impositiva; el
éxito de las causas judiciales se relaciona entonces con la tipología
señorial. En behetrías y señorío no concejil, en cambio, la derrota
de las comunidades en los pleitos por ocupación señorial de

36
Archivos Municipales Abulenses, Navarredonda de Gredos, 1, contiene
ordenanzas aldeanas.
37
ALONSO MARTIN, M. L., PALACIO SANCHEZ-IZQUIERDO,
M. L.: Jurisdicción, gobierno y hacienda en el señorío de abadengo castellano en el
siglo XVI. Edición y estudio de las informaciones de Carlos V de 1553, Madrid:
Editorial Complutense, 1993, passim.
38
BARRIOS GARCIA, A; CASADO QUINTANILLA, B; LUIS LOPEZ,
C; DEL SER QUIJANO, G.: Documentación del Archivo Municipal de Avila
(1256-1474), Avila: Institución Gran Duque de Alba, 1988, doc. 36, 39 a 42, 46
a 52, 54, 56, 61, 65, 69 a 71, 81, 104, entre otros.

279
comunales es lo más frecuente, presentándose la usurpación de
comunales como un bloqueo a las posibilidades de acumulación de
los sectores más prósperos.39
El estudio del cuaderno de acuerdos del concejo aldeano
de Navarredonda de Gredos, del ámbito concejil de Piedrahíta,
permite apreciar otros aspectos relacionados a la problemática
de los comunales. Se observan prácticas que involucran a los
miembros más destacados de la aldea, la mayoría oficiales o
allegados y parientes suyos. Estos sectores acomodados realizan
trueques y negociaciones con el concejo aldeano, a través de los
cuales consiguen reagrupar sus posesiones, emprender cultivos
intensivos, mantener tierras ocupadas en los comunales y cerrar
al aprovechamiento colectivo las posesiones en régimen de campo
abierto.40 De esta manera los sectores enriquecidos realizan
cercamientos, previo reagrupamiento de sus posesiones a través del
trueque, obteniendo derechos de pasto exclusivos o la posibilidad
de sustraerse de las reglamentaciones colectivas. Estos cercamientos
se realizan a través de la negociación con las autoridades aldeanas
(por ejemplo cediendo al concejo una tierra a cambio de un
permiso para cercar otra), y tienen como condición de posibilidad
la autonomía relativa del concejo aldeano respecto al núcleo
urbano, un rasgo tipológico de los concejos como señoríos. Las
heredades cercadas posibilitan el desarrollo de especializaciones
productivas como la producción de lana o de cultivos industriales
como el lino, que pudieron abastecer de materias primas a una
industria rural de paños, cuyo desarrollo se confirma en el área;

39
ALVAREZ LLOPIS, E., BLANCO CAMPOS, E. y GARCIA DE
CORTAZAR, J. A: Colección diplomática de Santo Toribio de Liébana. 1300-
1515. Santander: Fundación Marcelino Botín, 1994, doc. 294; PORRO, N.:
En el ocaso de las behetrías. Apéndice documental. CHE, XLV-XLVI, 1967,
doc. IV.
40
DEL SER QUIJANO, G. op. cit., Navarredonda de Gredos, doc. 1, problema
estudiado en DA GRACA, L. Intercambio de tierras y otras prácticas agrarias
en concejos castellanos (siglo XV). Anales de la Universidad de Alicante. Historia
Medieval, n. 14, 2003-2006.

280
esta industria dispersa incipiente probablemente se alimentaba de
los sectores desplazados del acceso a los comunales por el proceso
de cercamientos campesinos detectado en el área, que disminuyen
la posibilidad de acceso directo a la subsistencia para una parte de
la población.
En tanto favorece un proceso de singularización y
privatización de la tenencia y correlativa desposesión campesina, el
concejo aldeano aparece cumpliendo funciones de la acumulación
originaria. Esto se apoya en el alto grado de autonomía del concejo
rural en el ámbito concejil, que permite a los aldeanos perpetrar
estas prácticas sin interferencia del control señorial y urbano,
problema que aparece denunciado en los documentos.41
Los mercados locales presentan rasgos específicos según se
trate del ámbito de concejos, behetría o señorío no concejil. Se
observan diferencias en el tipo de conflictividad con respecto a
la venta de los excedentes en los mercados locales: en behetrías y
en lugares de señorío, donde predomina el tributo en especies, el
señor realiza la renta en los mercados locales, por lo que éstos se
presentan como lugares potencialmente conflictivos. En concejos,
en cambio, el predominio de la renta en dinero implica una menor
intervención del señor sobre las prácticas de comercialización
locales. Constituye un ejemplo el caso de la villa de Potes, del
ámbito de señorío, que mantiene un pleito con el monasterio de
Liébana a raíz de que los monjes venden en la villa de Potes el
vino que obtienen de los censos que tienen en el lugar, y lo hacen a
menores precios que los productores locales, ocasionando su ruina.
Las reglamentaciones proteccionistas de las comunidades son
aquí avasalladas por el señor, que transgrede la prohibición local
de introducir vino foráneo.42 En concejos, en cambio, donde rige
la misma normativa, no se produce enfrentamiento sistemático

LUIS LOPEZ, C. op. cit., 39 (1488), 61 (1499), 65 (1499).


41

42
ALVAREZ LLOPIS, E., BLANCO CAMPOS, E. y GARCIA DE
CORTAZAR, J. A. op. cit., doc. 336. Las ordenanzas de Potes, que el
monasterio pasa por alto, en PEREZ-BUSTAMANTE, op. cit.. pp. 204-205.

281
con el señor, pues éste no realiza la renta en los mercados locales.
Contrariamente, las reglamentaciones proteccionistas favorecen
a los sectores que producen para el mercado, ya que les permite
imponer precios monopólicos; el sobreprecio aparece aquí como
una de las fuentes de enriquecimiento de los sectores campesinos
acomodados. La organización institucional favorece entonces
la ganancia por vía comercial de los acumuladores. Se observan,
además, prácticas mercantiles nuevas, como la regatonía a gran
escala, todo lo cual demuestra la creciente mercantilización de la
economía del campesino rico.43 Otro elemento a contrastar es la
vigencia de franquicias a la circulación, que constituye un estímulo
al desarrollo de procesos acumulativos. Todos los lugares analizados
del ámbito concejil cuentan con ferias y mercados francos.44 Esta
liberalización parcial del comercio no se concreta, en general, en
behetrías, donde en los pocos casos donde existen privilegios de
exención de impuestos éstos no son respetados por el señor, cuya
actuación se caracteriza por la apropiación de las atribuciones de
la monarquía (por ejemplo, la apropiación de la alcabala).45 En
lugares de señorío se observa un mayor grado de liberalización que
en behetrías, aunque significativamente menor que en concejos.46
Por último, para evaluar la polarización social resta analizar las
relaciones de los miembros de la comunidad tributaria entre sí, que
hemos entrevisto en el caso del concejo aldeano de Navarredonda
de Gredos y que analizaremos ahora en términos más generales.
Una de las formas de vinculación económica interna es el arriendo

43
Cortes de los antiguos reinos…, op. cit., Cortes de Palenzuela de 1425, pet. 34,
entre otros.
44
LADERO QUESADA, M. A. Las ferias de Castilla. Siglos XII-XV. CHE,
LXVII-LXVIII, 1982; OLIVA HERRER, H. R. op. cit., doc. 18, 23, 45 y 46.
45
OLIVA HERRER, R. H. Memoria colectiva…, op. cit., p. 67 y p. 72 n. 62.
46
Se deduce la ausencia de franquicias en GARCIA DE CORTAZAR, J. A.
Documentación medieval de la Casa de Velasco…, op. cit., doc. 221 (1440). Un
panorama de las ferias en lugares de señorío en YUN CASALILLA, B. Sobre la
transición al capitalismo. Junta de Castilla y León: 1987. pp. 82-86.

282
de tierras entre campesinos. Esto se confirma abundantemente en
concejos.47 En behetrías y señorío, en cambio, las referencias son
escasas, o relativas a arriendos ente hidalgos y campesinos;48 por
otro lado, donde predomina el sistema de arriendo como forma
principal de ingreso señorial, el eventual subarriendo de la parcela
tiene como limitación la obligación de satisfacer la renta en especie
establecida por el señor, lo que implica un condicionamiento a la
dedicación productiva y al desarrollo de relaciones económicas
libres entre campesinos.
La relación de arrendamiento a veces encubre la práctica del
préstamo, lo que nos introduce al problema del endeudamiento
entre campesinos. La información es muy copiosa en concejos,
donde se observan pedidos de moratorias a la monarquía por
parte de campesinos con tierra insuficiente. Estos documentos
hacen referencia a la pobreza de los deudores y a la riqueza de los
acreedores, lo cual expresa un proceso de diferenciación social.49 Si
bien en algunos casos la monarquía concede moratorias, en otros se
observa la ejecución de los bienes del deudor,50 para lo cual existen,
además, métodos concretos.51 Aquí el endeudamiento constituye
un mecanismo de ampliación de la tenencia, un problema que se
denuncia además en las reuniones de Cortes,52 donde abundan
también las referencias a la usura practicada por campesinos.53 En

47
Por ejemplo Ordenanzas de Avila, doc. 18, ley 14, Ordenanzas de Zamora,
Ordenanzas de la Tierra, I, 1, 8, 10, 11, 14, 16, 33.
48
OLIVA HERRER, H. R. op. cit., Ordenanzas de Becerril de Campos, 50, p.
195.
49
SAEZ SANCHEZ, C.: Colección diplomática de Sepúlveda (1076-1485), II.
Segovia: 1991, doc. 156, 170, 171, 172, 174, 177.
50
CASADO QUINTANILLA, B. Documentación Real del Archivo del Concejo
Abulense (1475-1499). Avila: 1994, doc. 68.
51
CANTERA MONTENEGRO, E. Una familia de prestamistas y
arrendadores judíos en tiempos de la expulsión: los Soto de Aranda del Duero.
Espacio, Tiempo y Forma, III, 12, 1999. p. 20.
52
Cortes de los antiguos reinos… op. cit., Cortes de Toledo de 1480, pet. 94.
53
Id., Cortes de Madrid de 1453, pet. 35; Id., Cortes de Toledo de 1480, pet. 53;

283
ámbitos de señorío y behetría se observa otro tipo de situación: los
acreedores suelen ser hidalgos o allegados al señor, y las referencias
documentales mencionan únicamente la pobreza generalizada
de los vecinos, de lo cual se deduce la debilidad de un proceso de
acumulación en el interior de la comunidad tributaria.54
El indicador más importante de la existencia de procesos de
diferenciación es el empleo de trabajo asalariado. En el ámbito de
concejos se constata el empleo regular y constante de trabajadores
asalariados, mayormente adultos con residencia aparte o alojamiento
temporal, cuya jornada laboral se encuentra claramente definida y
el salario establecido en términos que oponen al empleador y al
obrero, según se sigue de la normativa que contempla descuentos
en el jornal.55 La forma social del empleo de dependientes no
puede adscribirse al ámbito de la familia ni a modalidades
domésticas de explotación, expresando en cambio una relación
de antagonismo. El empleo de asalariados por parte de pecheros
ricos se realiza crecientemente bajo modalidades económicas,
orientadas a la obtención de beneficio y con interferencia cada vez
menor de la instancia política, que interviene fundamentalmente
para garantizar el disciplinamiento de la mano de obra, una de las
funciones del estado en los comienzos de la relación del capital,
y para regular la competencia por la mano de obra disponible.
Se confirma entonces un proceso de diferenciación social en los
términos de Lenin, que acentuaba el surgimiento de una relación
antagónica dentro del campesinado.
En los lugares de señorío y behetría analizados el empleo de
jornaleros no es la forma más difundida de trabajo dependiente.

Id., Cortes de Valladolid de 1537, pet. 117.


54
GARCIA DE CORTAZAR, J. A. Documentación medieval de la Casa de
Velasco…, op. cit., doc. 280, 281; OLIVA HERRER, H. R. op. cit., Ordenanzas
de Becerril de Campos. pp. 204-207.
55
LADERO QUESADA, M. F. La ciudad de Zamora en la época de los Reyes
Católicos. Economía y gobierno. Zamora: 1991, Apéndice documental: Ordenanza
de la Obreriza; RIAZA, R. Ordenanzas de Ciudad y Tierra. AHDE, XII, 1935.

284
Predominan, en cambio, otras figuras: criados, mozos, paniaguados,
etc., mayormente jóvenes que viven con el empleador y que pueden
considerarse en el ámbito del trabajo familiar.56 La circulación de
criados entre las familias es una práctica extendida, y se observa
asimismo la indistinción social entre quienes toman criados y
quienes los ceden; la normativa incluso establece distinciones entre
el empleo de sirvientes y de obreros: en el ámbito señorial de la
casa de Velasco, por ejemplo, se prohíbe a los moradores judíos
tener servidores cristianos en sus casas, aunque se les permite
emplear asalariados; la norma evidentemente se orienta a reprimir
la sociabilidad entre los dos grupos, la cual tiene una expresión
en el vínculo de servicio.57 En el caso de los lugares de behetría,
el contexto en que aparecen los criados, y la mención constante
a su corta edad sugiere también que la práctica de la adopción
se encuentra muy extendida, lo cual podría relacionarse con los
efectos de la violencia señorial sobre la demografía.58
La diferencia fundamental entre los dependientes que aparecen
en behetrías y los de grandes concejos está dada por último por
su funcionalidad. En el área concejil el pechero rico destina su
producción al mercado con el objeto de obtener beneficios; el
asalariado participa entonces de la producción de valores de
cambio. En behetrías no se constata el mismo tipo de vínculo con
el mercado. El asalariado, al igual que los otros dependientes, está
destinado a reproducir el consumo de la economía doméstica; su

56
OLIVA HERRER, H. R. op. cit. Ordenanzas de Becerril de Campos, cap. 20,
24, 35, 47, 56; PEREZ BUSTAMANTE, R. El régimen municipal de la villa
de Potes a fines de la Edad Media. Altamira: 1979-80; GARCIA LUJAN, J. A.
Una minoría urbana en el estudio nobiliario de los Velasco: los judíos a través de
las ordenanzas del primer conde de Haro (1431-1476). Apéndice documental,
en Tolède et l’expansion urbaine en Espagne (1450-1650). Actas du colloque
organisé par la Junta de Comunidades de Castilla-La Mancha et la Casa de
Velázquez. Madrid: 1991.
57
GARCIA LUJAN, J. A. op. cit., Apéndice documental.
58
OLIVA HERRER, H. R. op. cit. Ordenenzas de Becerril de Campos, doc. 24,
27, 29, 35, 47, entre otros.

285
trabajo se inscribe entonces en la producción de valores de uso.

Conclusiones

Las prácticas analizadas se relacionan con características


estructurales de cada forma señorial. Al respecto se han distinguido
diferentes modalidades de coerción, que implican sistemas políticos
con estructuras de clase específicas. En concejos la coerción se
efectiviza mediante el señorío colectivo de las oligarquías urbanas,
con jurisdicción sobre amplios alfoces de cuyo control directo el
titular se desentiende. Gran parte de la práctica social conducente
a procesos acumulativos tiene como condición de posibilidad
esta forma de gestión señorial: el sistema de cáñamas se apoya
en las estructuras administrativas que sustentan la extracción del
excedente y los mecanismos de recaudación; las prácticas específicas
de los pecheros mayores (evasión tributaria, fraude en la tasación de
bienes, préstamo con interés, exención de dependientes, formación
de cercados sobre el ager abierto, etc.) dependen del protagonismo
del sector en la gestión de la renta, de su proximidad social con el
sector dirigente de caballeros, del peso político de sus estructuras
organizativas, del control de los concejos rurales, de la autonomía
de los concejos rurales respecto al núcleo principal y de la prioridad
que tiene el ámbito concejil para la monarquía, que se traduce en la
concesión de ferias y mercados francos, protección de comunales,
limitación de las atribuciones del grupo dirigente, correlación de
fuerzas favorable frente a la intromisión de otros poderes, etc.
En behetrías el dominio político sobre los productores se
ejerce en forma directa: el señor aplica la coerción por sí mismo y
a través de agentes vinculados a él personalmente, lo cual también
se observa en el ámbito de señorío nobiliar. En las primeras etapas
de existencia de la behetría como forma de señorío predomina
una estructura de múltiples extractores individuales de renta, que
concretan su dominio a través de la exigencia in situ de tributos

286
de hospitalidad, de carácter gravoso y continuidad relativa hasta la
época moderna. El aumento tendencial del número de diviseros, que
es un rasgo del sistema político pues se deriva de la multiplicación de
los linajes con derechos en las behetrías, conlleva un aumento de la
tasa de renta e implica la no evaluación de la capacidad contributiva
de los pecheros, lo cual convierte la sobreexplotación en un rasgo
estructural, y la behetría en una forma a largo plazo inviable, lo
cual se confirma en la debilidad organizativa y económica de las
comunidades de behetría en épocas tardías.
El sistema político en el siglo XV se caracteriza por la
actuación de fracciones de clase con intereses contradictorios,
cuyo dominio tiene carácter mutable, de lo cual se deriva una
situación de conflictividad internobiliar continua por el señorío
de la behetría y el protagonismo de sus agentes a nivel local,
principalmente hidalgos y escuderos o dependientes personales
extraños a las comunidades, cuya presencia se comprueba incluso
en núcleos agrarios de escasa entidad poblacional. Nuevamente
la práctica social, que en este caso obstaculiza la diferenciación
social, tiene relación con los caracteres descriptos. El control de
los concejos locales por parte de sectores ajenos al campesinado
responde a la necesidad de los bandos en pugna de imponerse en
el lugar, para lo cual apelan a sus clientelas de hidalgos y escuderos,
que reproducen el conflicto a escala local, o aun a sus dependientes
personales, que llegan a sustituir a los oficiales legítimamente en
funciones; lo mismo se aplica a la gestión de la renta, mayormente
en manos de sectores hidalgos, que monopolizan su arrendamiento;
la apropiación sistemática de comunales y propios, al igual que el
robo, el saqueo y la violencia directa sobre los productores es la
forma en que se manifiesta la lucha por la imposición del señorío;
el desconocimiento por parte del señor de eventuales franquicias
otorgadas por la monarquía se inscribe en el marco del combate
señorial por la apropiación de la jurisdicción regia; la división de
las comunidades en parcialidades, que multiplica la violencia a nivel
local y estimula el enfrentamiento entre vecinos, obstaculizando el

287
desarrollo de la lucha de clases, responde a la facultad de elección
de señor.
Las particulares estructuras de clase condicionan en cada
caso la práctica campesina de la cual depende el desarrollo de la
diferenciación social. Este último proceso, que expresa la dinámica
del sistema, puede considerarse entonces lógicamente conectado
con la estructura del feudalismo en sus diversas variantes.
Estas consideraciones conducen al problema general de las
condiciones de posibilidad de un proceso de diferenciación social.
La literatura especializada ha vinculado esas condiciones al declive
del feudalismo. Brenner ha llevado este planteo a su formulación
extrema, al negar toda posibilidad de acumulación en sociedades
dominadas por una lógica precapitalista.59 Dobb y Hilton
argumentaron en cambio que la diferenciación social acompaña
la desintegración del feudalismo (Kosminsky incluso plantea que
la acumulación tiene un primer desarrollo dentro del modo de
producción feudal), y que se desplegará plenamente en la medida
en que los productores logren liberarse del control señorial, proceso
que se verifica en la Inglaterra del siglo XV y que es producto de
la lucha de clases. (En el caso de Castilla la redistribución de la
renta a favor del campesino se confirma parcialmente cuando
los pecheros ricos se sustraen del sistema tributario mediante la
exención o liberan de renta prácticamente la totalidad de sus bienes,
constituyendo un régimen de producción simple de mercancías.)
La esencia del planteo se encuentra en la obra de Lenin, que asocia
las condiciones de la diferenciación social al grado de influencia de
las instituciones señoriales, que es nulo en Norteamérica, donde
se daría la expansión plena de la diferenciación social, y débil en
las regiones de Rusia donde se constata la descomposición del
campesinado.
En la Castilla del siglo XV, tal como hemos planteado al inicio
de este estudio, no se verifica una declinación de la servidumbre.

59
BRENNER, R. The Low Countries in the Transition to Capitalism. Journal
of Agrarian Change, 1, n. 2, 2000.

288
Se constata, no obstante, un proceso avanzado de diferenciación
social en algunas áreas. Estas áreas no se caracterizan por una
situación de feudalización débil; al contrario, corresponden a las
estructuras de señorío de mayor volumen de renta, más sólidamente
implantadas y con más amplio desarrollo jurisdiccional: los
grandes concejos de realengo y de particulares del sur del Duero.
Se ha considerado a la behetría como la forma señorial que más
obstáculos presenta a la diferenciación social. No hay sin embargo
entre las especies de señorío castellano una estructura política de
mayor inestabilidad: el señorío singular aparece sujeto a principios
electivos y a definición constante entre múltiples poderes y no
comprende la justicia superior, concretándose además el dominio
sobre núcleos agrarios independientes y de escaso volumen de
renta. Los intentos señoriales por forzar la conversión en solariego,
por obtener derechos de justicia en el lugar o por imponer nuevas
rentas remiten incluso a los periodos de concentración de violencia
que los historiadores describen cuando refieren la implantación
del señorío banal; también en behetrías la imposición del señorío
superior se produce en un contexto de lucha de clases y conflicto
internobiliario. Las condiciones de posibilidad de la diferenciación
social no responden entonces al grado de consolidación de las
estructuras feudales, ni suponen tampoco necesariamente su
debilitamiento. Son las estructuras específicas de coerción las que
interfieren la práctica social de las comunidades o proporcionan a
los productores directos la autonomía necesaria para desarrollar
procesos de diferenciación social, autonomía que en otras regiones
se alcanza mediante la lucha de clases, como lo ilustra el caso de
Inglaterra. La acumulación se presenta entonces como un proceso
contingente, que puede desarrollarse en sociedades plenamente
feudalizadas, aunque bajo ciertas condiciones, en nuestro caso
una forma de gestión del señorío cuyo rasgo principal es el
protagonismo político del campesinado. Esta conclusión surge
del análisis comparativo, que ha puesto en evidencia un conjunto
de contrastes, a partir de los cuales hemos obtenido una hipótesis

289
general, conociendo a través de las diferencias.

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295
Luta de Classes e Transição
Histórica – A Alta Idade Média
Ocidental

Mário Jorge da Motta Bastos

Considerado o período situado entre os séculos V e X d.C.,


grosso modo, no Ocidente europeu, e em suas linhas de força
essenciais, ele foi marcado pela expansão da grande propriedade
fundiária senhorial, calcada em procedimentos e mecanismos
diversos, mas fundamentalmente orientada para a incorporação
da pequena propriedade camponesa, um processo de expropriação
específico que fomentou a constituição e a articulação das classes
sociais na formação social em questão: um campesinato dependente
e uma classe dominante senhorial terratenente. Tais relações
assumiram uma forte conotação pessoal, tanto ao subordinar entre
si aristocratas de maior e menor expressão nos famosos vínculos
de vassalagem, quanto ao constituí-los em famílias amplas que
assim interligadas afirmavam, em conjunto, a ascendência vis a vis
ao campesinato.1
O quadro geral que acabo de estabelecer remete-nos a uma
transcendental transformação ocorrida na história das sociedades
ocidentais européias, congregando e articulando os elementos
essenciais da transição da Antiguidade ao Medievo. Mas, dispor
tais elementos num quadro marcadamente descritivo não resolve
uma das questões essenciais que deveria impor-se no horizonte do
ofício do historiador: como e, fundamentalmente, por que, mudam
as sociedades humanas? Se, ao menos a meu juízo, tal indagação

1
Ver BERNARDO, João. Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal
no Regime Senhorial, Séculos V-XV. vol. I. Porto: Afrontamento, 1995, passim.

297
deveria constituir numa espécie de profissão de fé do historiador
– em que pese o fato de que a História, estranhamente, tem sido
muito mais um discurso sobre a continuidade do que sobre a
mudança – a fatia de duração sobre a qual nos debruçamos faz
desta necessidade uma exigência incontornável. Não constituem,
os séculos alto-medievais, um período de transição entre dois
mundos? Não se deu então – posso tomar por consensual esta
referência geral, não? – a passagem da Antigüidade à Idade Média,
ainda que pareça impossível atingirmos qualquer grau superior de
concordância acerca da velocidade, das características e da forma
como essa transição se processou? Seja qual for a perspectiva
individual e “corrente interpretativa” as quais se vinculem os
especialistas, os períodos históricos de transição nos impõem,
irremediavelmente, a sensação da mudança, o trato com a incerteza,
a angústia da difícil apreensão da desordem, a percepção do
movimento da História. Será possível considerá-la aleatoriamente,
ou derivará desta impossibilidade o enfadonho e estéril inventário
estatístico das sobrevivências romanas e germânicas, tão comum
nas “análises” dedicadas ao período?
Parece-me faltar, em primeiro lugar – ou delas abdicaram os
historiadores – as teorias relativas à mudança, que viabilizem a
sua abordagem como um processo global articulado e apreensível,
e não como manifestações aleatórias cujas correlações no interior
de um conjunto, se existem, não são discerníveis. O diálogo de
surdos que em muitos casos caracteriza o “debate” da transição da
Antigüidade à Idade Média decorre, antes de mais, do fato de que
as partes intervenientes “falam muitas vezes de lugares” diversos
tratando, aparentemente, do mesmo assunto. Já faz algum tempo
que Chris Wickham2 denunciou o tópico: na análise da transição
aquele especialista se concentra no nível da cultura, aquele outro
no da política, aquele terceiro no da religião e aquele sentado lá ao
fundo no da economia!

2
WICKHAM, Chris. The Other Transition: From the Ancient World to
Feudalism. Past and Present, n. 103, May, 1984. pp. 3-36.

298
Quais são os fatores determinantes na transformação das
sociedades humanas? Será possível supor que existam, uma vez e
sempre, atuante nestes processos? Enquanto tomamos fôlego para
encaminhar, quem sabe um dia, este debate, queria favorecê-lo com
apenas uma observação. Parece-me que a par da superação, pelas
vertentes analíticas atuais, dos vários preconceitos, juízos de valor
e do catastrofismo que faziam enfermar as análises pioneiras do
contexto aqui em questão, o que acabou também expurgado das
abordagens foi toda e qualquer consideração da incidência das
contradições e do conflito social como ingredientes fundamentais
da transformação e do curso da História.
Ora, o que a documentação do período revela, apesar de seus
consideráveis limites, remete-nos, se apoiados por um referencial
teórico adequado, a um processo decorrente não da intervenção
da vontade soberana de uma classe única, mas das contradições
e do jogo de ações e reações que materializam os conflitos e o
movimento da História. Os conflitos sociais não são fenômenos
isolados, mas uma expressão do próprio funcionamento do
sistema, isto é, eles são a manifestação sensível das contradições
que o caracterizam.3 Eles materializam o tempo e são, por isso,
o fundamento da história. A transição da Antigüidade à Idade
Média foi pautada por manifestações de antagonismo social
muito diversificadas, o que nos permite considerar que o âmbito
dos confrontos era, então, o da própria sociedade.4 Como destaca
Edward P. Thompson, “jamais houve época em que a dialética da
imposição da dominação e da resistência a essa imposição não
fosse central no desenvolvimento histórico.”5

3
BERNARDO, João. Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no
Regime Senhorial, Séculos V-XV. vol. II. Porto: Afrontamento, 1997. p. 10.
4
Id., passim. Ver também BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra
como no Céu...: Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade
Média Ibérica (Séculos IV-VIII). São Paulo: Edusp, 2013.
5
THOMPSON, Edward P. Folclore, antropologia e história social. In:
NEGRO, Antonio Luigi & SILVA, Sérgio (eds.). As peculiaridades dos ingleses e
outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 156.

299
A dissolução do latifúndio romano e a constituição do regime
senhorial na Alta Idade Média carrearam manifestações diversas
de lutas sociais que se inscrevem, plenamente, num quadro de
relações triangular.
Entre a resistência dos explorados a formas de exploração
arcaicas ou inovadoras e o sonho de reconstituir uma comunidade
rural já extinta, ou condenada a desaparecer, criaram-se condições
para o reforço da solidariedade de magnates com grupos de
camponeses, nas disputas internas da aristocracia. Desta tripla
tensão resultaram movimentos sociais novos, que condicionaram
a evolução do regime e acabariam por transformá-lo inteiramente.6
O alvorecer do século V presenciou a transformação de vastas
regiões de um Império Romano Ocidental combalido em palco
de violentos confrontos sociais. Apresentam-se ao primeiro plano
da cena histórica, mais uma vez, os Bacaudae, insurretos assim
designados quando das revoltas ocorridas no noroeste da Gália
em fins do século III, a despeito das raízes mais profundas do
movimento. Desde 407, foram assoladas pelas revoltas diversas
regiões da Gália, dos Alpes e da Península Ibérica. Aqui, os
Bacaudae agiram à luz do dia na província Tarraconensis e na
Gallaecia, cuja região bracarense foi palco de pilhagens e saques
promovidos pelos camponeses.
A frequência e, talvez mais até do que ela, a latência de tais
movimentos, constantemente derrotados, porém dificilmente
suprimidos, permitem atribuir-lhes o cumprimento de um
papel considerável não apenas na derrocada do edifício imperial
e no seu sistema de arrecadação de impostos, como também,
e essencialmente, na constituição de novas formas de relações
econômico-sociais. Na medida em que os revoltosos englobavam
escravos e camponeses dependentes em fuga, favorecendo a
deserção de outros tantos, os ataques lançados contra os grandes
patrimônios fundiários promoviam, para além de muita destruição

6
BERNARDO, João, vol. I, op. cit., p. 21.

300
física imediata, a emancipação de grande parte dos produtores
diretos, permitindo a ex-escravos e a livres apoderarem-se de
parcelas de terra que passavam a cultivar por sua conta e em seu
benefício. Como bem observou Pierre Dockès,7 a ação direta dos
escravos na obtenção de direitos sobre a terra pressionou por sua
fixação como casati, concorrendo assim à transformação do sistema
produtivo e da organização social.
A concessão de liberdade com reserva de obsequium, ou
a simples fixação do “escravo nominal” num lote de terreno às
suas expensas não teve por determinante primário a deliberação
calculista dos grandes proprietários fundiários, mas resultaram
dos vários séculos de lutas travadas pelos próprios escravos,
que tiveram nas fugas cotidianas e nas deserções maciças uma
das expressões de maior visibilidade. Creio possível atribuir à
aristocracia medieval ao menos uma racionalidade econômica de
base: impunha-se sempre “negociar” as taxas de exploração e, com
relativa freqüência, consentir em reduzi-las em prol da manutenção
da força de trabalho que perigava evadir-se, e evadia-se. Permitam-
me uma menção de soslaio aos limites da perspectiva jurisdicista
que campeia ainda na historiografia dedicada ao período: para
muitos de seus especialistas,8 o nível de extração de rendas foi,
em terras ibéricas, bastante tênue, tendo em vista que a legislação
visigótica a limitou a 1/10 da colheita. Sob tal perspectiva, jamais
houve intervenção econômica estatal mais vigorosa do que aquela,
constituindo-se o estado visigodo no maior exemplo de economia
palaciana da História!
Justiça seja feita, portanto, a Marc Bloch, que expressou
claramente alhures a percepção de que a revolta camponesa foi
ingrediente tão intrínseco ao regime senhorial quanto a greve o é

7
DOCKÈS, Pierre. La Libéracion Médiévale. Paris: Flammarion, 1979.
8
GARCÍA MORENO, L. A. El fin del Reino Visigodo de Toledo. Decadencia
y Catastrofe. Una Contribución a su Crítica. Madrid: Universidad Autónoma,
1975; BARBERO, Abilio & VIGIL, Marcelo. La Formación del Feudalismo en
la Península Ibérica. Barcelona: Crítica, 1979.

301
da grande empresa capitalista, além de ter configurado o caráter
duplo daqueles movimentos, ressaltando que o grande senhorio
jamais absorveu plenamente as comunidades camponesas e que as
grandes revoltas ocorridas, em surtos periódicos, até a Revolução
Francesa tinham por razão a contradição essencial entre ambas as
instituições.9
Mas, para além das explosões de violência, a fuga parece ter
configurado a forma mais típica e constante da resistência no
período. As suas manifestações maciças e episódicas vinculadas
aos grandes movimentos e insurreições foram perenizadas em
manifestações menos espetaculares, porém efetivas, um fluxo
cotidiano de fugas de escravos e cultivadores livres aos quais os
senhores pretendiam reter em suas terras e em gravosa situação.
“Fugir parece ter sido, e não só nesta época, o recurso constante
dos camponeses, e um dos mais eficazes.”10 A legislação de época
e a iniciativa dos poderosos visaram, por instrumentos diversos e
com potencial cada vez mais draconiano, conter a deambulação
aparentemente generalizada da mão de obra no período. Mas,
também a este nível uma perspectiva marcadamente jurisdicista
faz enfermar, com freqüência, a abordagem do tema, limitando
as possibilidades e a amplitude de sua compreensão. A de todos
conhecida elevada freqüência com o que o tema é abordado na
documentação de época serviu, a autores como Pierre Bonnassie,11
como índice a atestar a importância, a amplitude e o vigor do
escravismo na Alta Idade Média Ocidental, civilização que merece,
portanto, a inequívoco epíteto de escravista.
Ainda que comum aos códigos jurídicos romano-germânicos,
o problema é objeto de um tratamento especial – em termos tanto

9
BLOCH, Marc. Les Caractères Originaux de l’Histoire Rurale Française. vol. I.
Paris: Armand Colin, 1960-1961.
10
BERNARDO, João, vol. II, op. cit., p. 25.
11
BONNASSIE, Pierre. Supervivencia y extinción del régimen esclavista en el
Occidente de la Alta Edad Media (siglos IV-XI). In: Del esclavismo al feudalismo
en Europa occidental. Barcelona: Crítica, 1993.

302
qualitativos quanto quantitativos – na legislação visigótica, e parece-
me não haver sentido em restringi-lo a uma mera manifestação
retórica jurídico-formal. Mas tamanha extensão e transcendência
viriam a ser tomada, pelo referido autor, como índice do vigor da
instituição e da falta de liberdade e mobilidade que caracterizava
a mão de obra do período. Como bem destacou João Bernardo,
seria grande a possibilidade de superarmos muitos dos “diálogos de
surdos” que infestam de ruídos a arena do ofício se os historiadores
calcassem, com clareza, a total irredutibilidade do funcionamento
das relações sociais aos conceitos jurídicos. “O direito constitui
uma técnica classificadora que, por um lado, arrasta a herança
de formas jurídicas anteriores e, por outro lado, serve ao grupo
social que a usa, ou para defender o seu estatuto numa situação de
declínio, ou para afirmar um estatuto superior quando se encontra
em ascensão.”12 À categoria jurídica que predomina no discurso da
época, dada a natureza predominantemente normativa das fontes
que subsistiram, deve ser conferida uma acepção estritamente
social.
E o formalismo jurídico pode chegar a redundar em paroxismos
extremos. Considerando-se a legislação com base na qual Pierre
Bonnassie confere àquela sociedade o epíteto de “escravista”,
verificamos, em primeiro lugar, de sua disposição diacrônica, que
as dificuldades de enquadramento do escravo em seu estatuto e
condição agravaram-se ao longo do período. Como ressaltou o
próprio Finley, “... vinte e uma disposições sobre fugitivos em um
código visigodo sugere que a lei era violada com regularidade”.13 Os
primeiros dispositivos legais, estabelecidos por Eurico, mantiveram
a sua relevância durante todo o período de vigência do reino
visigodo, recebendo emendas e adições régias desde Leovigildo até
Égica. No alvorecer da oitava centúria o quadro parecia ainda mais

BERNARDO, João, vol. I, op. cit., p. 11.


12

13
FINLEY, Moses I. La Grecia Antigua. Economía y Sociedad. Barcelona:
Crítica, 1984.

303
gravoso. Cerca de 702, a novella IX, 1, 21 afirma que a extensão
das fugas assumira tamanha dimensão a ponto de que não havia
lugar do reino onde não houvesse escravos fugitivos, situação que
derivaria da incúria dos responsáveis pela repressão. Contudo, não
é difícil adivinhar que dessa avaliação decorreram medidas ainda
mais duras. Por esta lei de Égica acima citada, ficavam os habitantes
de qualquer localidade à qual afluíssem “suspeitos” diretamente
responsabilizados pela perseguição. Reunidos todos os membros
da comunidade, deviam averiguar em conjunto a quem pertencia
o suposto fugitivo, quando e de onde se dera a pretensa fuga, e
reintegrá-lo imediatamente ao patrimônio de seu senhor. Ficava,
a partir de então, envolvida a coletividade local com o destino do
cativo, uma vez que o descumprimento da lei previa a pena de
duzentos açoites a cada um de seus integrantes.14 Qual terá sido
a contraface de medidas repressivas tão duras? A ampla simpatia
suscitada pelos fugitivos entre as comunidades camponesas que
os acolhiam? Destaque-se que a luta dos subjugados hispânicos
não era excepcional: as leis dos burgúndios atestam o mesmo
fenômeno de escravos que escapavam e eram assistidos por livres
ou por companheiros de sua mesma condição, e na Itália os servi
do século VII, além do apoio popular, e possivelmente graças a
ele, se organizavam para atacar os domínios e liberar escravos,
movimento que se consolidou na centúria seguinte.15
Todo este anseio de intervenção punitiva permite divisar,
entre outros aspectos, a formação de uma rede de solidariedades
“plebéias” atuando em benefício dos “trânsfugas” diversos. Parece
que de fato não era incomum que fossem escravos a acobertar a
fuga de seus confrades. Duas leis antiquae euricianas, atualizadas
por Leovigildo, consideravam a possibilidade de um escravo

14
ZEUMER, K. (ed.). Lex Visigothorum. Monumenta Germaniae Historica.
Leges Nationum Germanicarum. Tomus I. Hannoverae et Lipsiae: Impensis
Bibliopolii Hahniani, 1973.
15
BONNASSIE, Pierre, op. cit., p. 64.

304
ocultar um fugitivo (IX, 1, 1) ou de auxiliá-lo na fuga, rompendo
inclusive as correntes que o atavam, se as houvesse (IX, 1, 2).
Pelo dispositivo da lei IX, 1, 16, o senhor de um escravo fugitivo
que contraíra núpcias com uma mulher de condição livre podia
reclamar o casal, os seus eventuais bens materiais e sua prole. Um
documento asturiano datado de 858 acusa o casal constituído por
Letasia, de estatuto livre, e o servus Ataulfo, com quem viveria
em adultério, de terem comido quatro vacas e sessenta queijos
de Hermegildo, senhor do patrimônio fundiário.16 O processo
judicial em questão veicula, para além do caso explícito, mesmo
se condenado, de união mista, a prática contumaz do furto dos
bens do senhor referido em fontes várias, inclusive nos cânones
conciliares visigodos. Trata-se, neste caso, de uma das muitas ações
que expressam o quanto a força de trabalho da época podia ser
indócil, inclinada a mostrar sua má vontade com o trabalho imposto
e a desafiar o sistema mediante sabotagens cotidianas, revelando-
se o grau de dificuldade enfrentado pelas elites dominantes na sua
tentativa de enquadramento efetivo dos produtores diretos.17
Será razoável continuar afirmando-se, em face do quadro
estabelecido, que teria caracterizado a Espanha Visigótica ao longo
de todo o período o predomínio absoluto de um regime de trabalho
calcado na total ausência da liberdade e na rigidez da fixação do
produtor à propriedade senhorial? Parece-me que a perspectiva
só pode ser preservada se nos alinharmos com o discurso e com
as medidas punitivas impostas, denunciando o crime e exigindo
a condenação dos culpados pelo desrespeito à ordem e pela
transgressão das leis. Não seria a primeira, e de certo tampouco será
a derradeira ocasião em que um historiador legalista, deliberada
ou inadvertidamente, cumpre a função de reforçar e fazer ecoar

16
FLORIANO, Antonio C. Diplomática española del período astur, 718-910.
Oviedo: Instituto de Estudios Asturianos, 1949-1951. p. 294.
17
Capitula Martini, 5, VIVES, Jose (ed). Concílios Visigóticos e Hispanoromanos,
Madrid: CSIC, 1963. p. 57.

305
os ditames dirimidos por alguma elite dominante qualquer do
passado, reproduzindo, não sem um certo orgulho de sua erudição,
as posições de classe e a fundamentação das desigualdades sociais.
É bastante provável que eu esteja exagerando, mas apego-me, em
minha tentativa de defesa, à premissa de que se trata de um embate
de extremos. Senão, vejamos.
Pierre Bonnassie, no artigo já referido e dedicado à memória
de Marc Bloch, restabelece em bases novas a proposição deste autor
em relação ao possível papel cumprido pela Igreja e pela religião
cristã na liberação da força de trabalho. Em que pese a reafirmação
de um juízo global negativo em relação ao tópico, para Bonnassie
os edifícios de culto, sobretudo aqueles erigidos nos meios rurais
do ocidente – capelas privadas de grandes proprietários – teriam
assumido ares de centros de sociabilidade favoráveis a uma espécie
de “autorreconhecimento” por parte dos escravos. A freqüência
às igrejas fomentou a convivência destes com os camponeses
livres, ainda que pobres e submetidos a semelhantes vexações, o
que daria ensejo a algo muito mais vigoroso em seu potencial de
transformação do que as relações de solidariedade.
Pelo simples fato de adentrarem os edifícios sagrados, [os
escravos] tiveram a prova cabal de sua humanidade. E esta certeza
desmentia o condicionamento a que estavam submetidos, que
visava fazê-los assumir uma identidade repulsiva, vilíssima,
uma identidade de bestas. (...) Os escravos encontraram nos
sacramentos a justificativa de sua aspiração à condição de humanos
e, por conseguinte, à sua liberdade!18
Manifesta-se, aqui, em seu pleno vigor, o equívoco da
superestimação do grau de imposição da hegemonia em qualquer
período da História – a quimera superior das elites dominantes
– concebendo-se-lhe vigorosa até o ponto de impor ao senso
comum dos dominados as categorias insuperáveis das relações de
dominação. Será razoável considerar que os escravos perceberam a

18
BONNASSIE, Pierre, op. cit., p. 45.

306
si próprios como feras brutais e animalescas na civilização ocidental
até que o cristianismo viesse a salvar-lhes das trevas, tornando-os
cônscios de sua humanidade? Se assim o foi, é de impressionar
a capacidade de mobilização e de articulação violenta tantas
vezes demonstrada, desde a civilização romana, pelos... rebanhos
de gado! Não é difícil entender porque se nega tantas vezes aos
interessados diretos qualquer participação ativa no processo de sua
liberação.
A referência à união entre uma livre e um servo, tão duramente
condenada nas fontes quanto, aparentemente, corrente, manifesta a
seu nível a rede de solidariedades que pavimentaram o caminho da
superação dos preconceitos de status entre os setores subalternos.
Há que se considerar, de certo, que em tal tendência se faz manifesto
o processo de homogeneização dos estatutos e das condições de
vida do campesinato medieval, submetido progressivamente,
ainda que sob velocidades e níveis desiguais nas várias regiões do
ocidente, às relações de dependência. A par daqueles cujo estatuto
pessoal os mantinha na condição estamental de escravos, devia
ser elevado no período o número dos libertos, manumitidos por
testamento desde, pelo menos, o Baixo Império. A legislação e as
fórmulas notariais do período permitem vislumbrar a tendência
de agravamento da sua condição. Desde Ervígio foi legalmente
consolidada a possibilidade da revogação da liberdade concedida,
além de reafirmada a determinação da submissão do escravo
manumitido ao seu senhor. Àqueles que tentassem evadirem-se
destes laços foi imposta a pena da perda dos bens em benefício
de seus patronos, penalidade que contrariava frontalmente uma lei
antiqua que reconhecia ao liberto o direito de eleger o seu senhor.
A documentação visigótica nos reservou a possibilidade –
caso raro, senão único no contexto em questão – de conhecer um
caso nominado de tensão manifesta na relação. Segundo os bispos
reunidos no II Concílio de Sevilha, em 619, um escravo de nome
Eliseo, pertencente à igreja de Cambra, ato contínuo à conquista
da liberdade, e per superbiam, tentou envenenar o bispo, causando

307
danos irreparáveis à igreja e devendo, por isso, ser castigado com
a reintegração à sua antiga condição. Os bispos admoestam, pelo
cânone quinze do Concílio de Mérida, em 666,19 os presbíteros
que, ao caírem enfermos, atribuíam as suas mazelas à magia e aos
malefícios realizados pelos escravos, que eram então submetidos
às mais duras penalidades, dentre elas a amputação de membros.
Se considerarmos a freqüência com que as legislações romano-
germânicas condenaram o delito da magia talvez seja possível
considerá-la como uma das armas disponíveis aos oprimidos na
sua luta contra os poderosos, favorecida pela crença generalizada
na efetividade de uma tal intervenção. Parece-me factível, do
exposto, considerar que, quando a legislação visigótica estabelecia
que o liberto podia ser acusado de injuriar, de golpear ou de acusar
a seu senhor, não estejamos diante de uma simples conjectura ou
de um caso hipotético, mas de uma efetiva expressão dos perigos e
da violência intrínseca àquela conflituosa relação social.
Mas, não foram apenas os servi e os libertos a promover, com suas
ações, o enfrentamento da ordem social que se impunha. Também
os camponeses livres e empobrecidos fomentaram movimentos
de grande repercussão no contexto dos enfrentamentos correntes
no período. O “banditismo social” é um fenômeno sociológico
profusamente estudado em sociedades diversas, estando o seu
incremento intimamente associado aos contextos de particular
efervescência social. Trata-se de uma manifestação típica de
“contrassociedade” na qual predomina a origem subalterna da
maioria de seus componentes. Em sendo estes, com freqüência,
marginalizados sociais, valem-se comumente do apoio das classes
populares da sociedade, indispensável à sua manutenção. Assim,
uma lei antiqua (IX, 1, 19) determina penalizações duríssimas –
açoites, expropriação de bens – a todo indivíduo livre ou escravo
que prestasse apoio ou ocultasse bandidos e ladrões.20

19
VIVES, Jose, op. cit., p. 154.
20
ZEUMER, K., op. cit., p. 189.

308
Intimamente vinculados ao habitat de bosques e florestas
próximas a rotas de circulação e a centros urbanos, começavam
por desafiar a ordem estabelecida pela “inversão” do estilo de vida
predominante: baseavam-se na economia dos incultos, de onde
partiam para complementá-la com o assédio freqüente às áreas
agrícolas! Podemos imaginar a atmosfera social das regiões agitadas
por esta subversão. É reiterada a referência a vagabundos que
povoavam os caminhos, e muitos escravos que fugiam encontravam
nestes grupos sociais, em cumplicidade com ingênuos, uma opção
para subsistir e opor-se às perseguições. Encontramos também,
nas crônicas do período, referências, lamentavelmente abreviadas,
a insurreições reprimidas com dificuldade considerável.
A violência intrínseca às insurreições e a pressão constante
exercida pelas fugas consubstanciou a contribuição camponesa
para a desagregação do aparato institucionalizado de poder
desde o fim do mundo antigo, favorecendo o livre e vigoroso
curso das forças centrípetas. Seguindo-se a perspectiva proposta
por Chris Wickham,21 os grandes proprietários, cada vez menos
apoiados pelo enquadramento repressivo do estado, tomaram-
no progressivamente como um concorrente que limitava as suas
possibilidades de exações. Desta convergência de interesses
resultou, em um mesmo movimento, um dos componentes da
classe servil, o fracionamento do exercício da autoridade e a
constituição progressiva dos grandes patrimônios fundiários
como quadros fundamentais ao exercício das novas formas de
poder, o que deu ensejo a uma das características decisivas da
classe senhorial. Incapazes de combater, paralelamente e com igual
denodo, os grandes proprietários e o aparato central de poder, os
camponeses criaram as condições – alianças com a aristocracia
e hegemonização, em seu benefício, do poder de coerção – que
viriam a enfraquecer as insurreições mais amplas. De qualquer
forma, “nem os conflitos são homogêneos, nem são unívocos os

21
WICKHAM, Chris, op. cit., passim.

309
seus resultados; e o insucesso de dadas formas de luta é ainda
uma expressão das tensões existentes.”22 A sociedade feudal da
Alta Idade Média decorreria, desde o século VI e até as grandes
transformações que se processariam a partir do século X, do
resultado conjunto destes processos.
No longo período em questão não faltaram nem mesmo
as revoltas violentas, expressão mais vigorosa das lutas sociais.
Contudo, predominaram as manifestações de conflito e de formas
de resistência mais cotidianas, atingindo tanto regiões inteiras
quanto aldeias mais específicas, e muitas vezes mesmo certas casas
e famílias camponesas que, com considerável frequência, recorriam
aos tribunais. Finalizarei este artigo com a elaboração de um breve
inventário tipológico dessas manifestações.23
Segundo Wickham, a primeira categoria de conflitos que
opôs camponeses e senhores esteve relacionado ao estatuto legal
dos primeiros. São relativamente numerosos os documentos
altomedievais provenientes de cortes judiciais nos quais os
terratenentes pretendem afirmar a dependência pessoal dos
camponeses vinculados ao patrimônio, em especial nos casos em
que esses pretendem dispor de um estatuto pessoal de liberdade.
Estes casos acabavam, em geral, com a vitória do senhor, ainda
que ocasionalmente, como em Canaveilles, nos Pirineus orientais,
em 874, ou em Cusago, próximo a Milão, em 901, os camponeses
tenham vencido. Evidentemente, os senhores não tinham interesse
em preservar os documentos em casos de derrota em juízo, mas,
se considerarmos o registro rotineiro de suas vitórias nas coleções
documentais, talvez seja possível considerar que fosse este o
resultado habitual.24

22
BERNARDO, João, vol. II, op. cit., p. 27.
23
Sigo de perto as referências de WICKHAM, Chris. Espacio y sociedad en los
conflictos campesinos en la Alta Edad Media. In: RODRÍGUEZ, Ana (ed.). El
lugar del campesino. En torno a la obra de Reyna Pastor. València: Universitat de
València-CSIC, 2007. pp. 33-60.
24
WICKHAM, Chris. Espacio y sociedad…, op. cit., p. 40.

310
Convém esclarecer que a liberdade legal podia favorecer o
camponês com a atenuação do peso das rendas a que se submetia.
Conforme verificamos nos polipticos francos, por exemplo, até pelo
menos a primeira metade do século IX as taxações que incidiam
sobre um rendeiro de origem livre eram comparativamente mais
baixas do que aquelas que afetavam os servos domésticos.
A segunda categoria de conflito envolvia formas diversas
de exação senhorial, em especial a renda da terra, remetendo-
nos a uma disputa que se situava no âmago das relações entre
camponeses e senhores. Chris Wickham assinala, contudo, que
a documentação que lhe diz respeito é significativamente menos
abundante neste do que nos períodos posteriores. Para o autor, tal
escassez relativa deve-se, provavelmente, à condição majoritária
dos rendeiros não-livres que, na Alta Idade Média, tinham vedado
o seu acesso aos tribunais públicos, foro por excelência de onde
provém a documentação. É provável também que, neste tipo de
situação, os senhores atuassem mais diretamente pelo recurso à
violência direta e à intervenção armada, tendo-se em vista que
os costumes que regiam a fixação das rendas eram ciosamente
defendidos pelo campesinato.
O conjunto de exemplos mais conhecido no qual se vincula a
liberdade às obrigações relativas à renda é o de Limonta, no Lago
de Como, no período entre 882 e 957, quando os camponeses,
afirmando a sua liberdade, negaram-se a cultivar os olivais de
seu senhor, o mosteiro de Santo Ambrósio de Milão. Este –
falsamente, como demonstrou Ross Balzaretti – alegou que todos
eram servi, e sua alegação de que estavam obrigados ao referido
cultivo baseava-se no costume, estabelecido a longo tempore, e não
no poder arbitrário dos senhores sobre os não-livres.25
Um terceiro campo de disputas articulou-se em relação direta
com a ocupação e a exploração do espaço, estando mais explícito
nos casos em que os senhorios disputavam os direitos silvipastoris

25
Id., p. 42.

311
com as comunidades locais. Neste âmbito tiveram lugar as
mais renhidas disputas, tanto em razão do caráter coletivo dos
direitos comunais, que mantinha unida de forma mais efetiva as
comunidades, quanto pelo vigor interno daquelas que preservavam
tais direitos, e ainda pela tendência de que aqueles direitos fossem
regulados por um intrincado conjunto de costumes que se
sobrepunham em muitos casos. Um exemplo clássico de conflito
silvipastoril encontra-se documentado em um formulário de St.
Gall, relativo a uma disputa entre o mosteiro e uma comunidade
camponesa de sua vizinhança acerca da demarcação do bosque e ao
pastoreio dos animais, datada da primeira metade do século IX. A
conclusão do processo legal deu ensejo à divisão do bosque, o que
caracteriza uma vitória parcial da comunidade local em questão.
Provêm, contudo, das regiões do norte da Península Ibérica
os mais fartos e elucidativos registros dos conflitos pelos direitos
de uso das terras incultas, em especial durante os séculos X e
XI, com a afirmação do poder régio e aristocrático na região
da Meseta situada a norte do rio Douro. Atividade econômica
primordial de comunidades camponesas locais que se mantiveram
autônomas por quase dois séculos, a pecuária envolvia uma série
de direitos pastoris que deram o tom à reação camponesa em face
da implantação aristocrática na região.
Reyna Pastor demonstrou que, se em muitas ocasiões as
comunidades perderam por completo os seus direitos de exploração
das áreas de pastoreio, por vezes foram capazes de forçar as igrejas
(principal senhorio local) à divisão dos espaços em disputa, como
fizeram com os monges de Pardominio (província de Leão), em
944, ou com o poderoso mosteiro de San Millán de la Cogolla,
na região de Navarra, em 1050. Dispomos de exemplos nos quais
as comunidades mobilizaram-se para rechaçar outros poderes
senhoriais, como no caso de Castrojeriz (província de Burgos),
que obteve, em 974, um privilégio (fuero) do conde de Castilla
que defendia os seus direitos pastoris, ainda que tivessem que

312
agir elas próprias para se defenderem das ações de roubo de gado
perpetradas por aristocratas locais ao longo de todo o século X.26
A quarta categoria enunciada por Chris Wickham configura,
a seu juízo, as manifestações mais explícitas do protagonismo
campesino, cuja ocorrência estaria expressa, por exemplo, na
proibição imposta pelo rei Rotário, datada de 643, na Península
Itálica, a qualquer rebelião (seditio) camponesa, testemunho de
que esses podiam agrupar-se em coletivos (concilii) rebelados
contra as ações de um determinado senhor (dominus). Este tipo
de manifestação teria um horizonte bastante restrito, referindo-
se apenas a camponeses que resistiam, pela força, ao exercício das
prerrogativas senhoriais de um dado aristocrata sobre os seus
dependentes. Parece ter sido esse o caso de uma rebelião ocorrida
na zona rural de Nápoles, em 592, na qual vários camponeses
dependentes de senhores diversos levantaram-se contra o
administrador papal de Nápoles e o atacaram. Alguns séculos mais
tarde, os camponeses da região franca situada entre os rios Loire e
Sena constituíram uma associação juramentada (coniuratio) para
repelir as invasões vikings, razão pela qual viriam a enfrentar a ira
dos aristocratas locais, que os dizimaram no ano de 859. Esta forma
de protagonismo camponês, mesmo que voltada ao enfrentamento
de um inimigo supostamente comum, constituía um risco para as
elites, e sua reação deixa claro a quem tomavam, naquela altura,
por seus verdadeiros opositores.
Em quinto lugar, Chris Wickham reúne as autênticas, e
escassas, revoltas camponesas da Alta Idade Média, como a que
teve lugar no reino das Astúrias, por volta do ano de 770, e a
dos Stellinga, ocorrida na região da Saxônia em 841-2. Convém
considerarmos, contudo, um elemento que escapa à percepção do
referido autor. Desde o início do período abarcado por este estudo,
diversas regiões ocidentais do Império Romano foram palco de
violentos confrontos sociais, em especial algumas regiões da atual

26
Id., p. 45.

313
França e Espanha nas décadas de 430 e 450. Reunindo escravos
e camponeses dependentes em fuga, além de um campesinato
livre empobrecido e progressivamente submetido à dependência
aristocrática, os ataques lançados contra os grandes patrimônios
fundiários promoveram, “além de muita destruição física imediata,
a emancipação de grande parte dos produtores diretos, permitindo
a ex-escravos e a livres apoderarem-se de parcelas de terra que
passavam a cultivar por sua conta e em seu benefício.”27 Destaque-se
que tais movimentos, designados bacaudae, conheceram irrupções
diversas que, mesmo vencidas pelo aparato repressivo romano
nunca chegaram a ser, aparentemente, plenamente suprimidas,
subsistindo em estado latente entre os séculos II e V, em meio às
várias eclosões. Assim, as revoltas ocorridas nos séculos seguintes
não foram um fato absolutamente novo, ainda que saibamos muito
pouco acerca das mesmas.
As elites do período nunca se dedicaram à tentativa de
compreender as motivações dos camponeses quando estes punham
em xeque, de forma tão deflagrada e, a seu juízo, inaceitável, as
estruturas político-ideológicas dominantes. Além disso, carecemos
do registro detalhado dos cronistas que abordaram as revoltas
camponesas ocorridas no século XIV.28
Com relação a Astúrias em 770 dispomos apenas de algumas
linhas registradas em crônicas elaboradas por volta do ano de 900,
em que se afirma que os camponeses dependentes levantaram-se
contra os seus senhores, até que o rei Aurélio os reduzisse, após
ter matado muitos, a sua anterior servidão. É provável que, na
pequena e montanhosa Astúrias de então, o processo de dominação
aristocrática estivesse ainda em seus primórdios, assumindo a
revolta o caráter de oposição violenta por parte de comunidades
rurais ciosas de sua tradicional autonomia. Essa é, inclusive, a
vertente interpretativa mais comumente adotada em relação à

27
Ver BERNARDO, João, op. cit., vol. II, p. 22.
28
WICKHAM, Chris. Espacio y sociedad…, op. cit., p. 40.

314
revolta dos Stellinga. A Saxônia não era uma região submetida
a controle aristocrático quando foi alvo da sangrenta conquista
movida por Carlos Magno, em fins do século VIII, o que se pode
deduzir da ampla participação do campesinato na assembleia anual
que congregava as diversas comunidades locais.
Na primeira metade do século IX, contudo, tantos os
aristocratas nativos quanto os francos instalados, em especial as
instituições eclesiásticas, incrementaram a concentração fundiária
e a extensão das relações de dependência. Quando a guerra civil,
iniciada em 840 em razão das querelas sucessórias carolíngias,
pôs em xeque a hegemonia aristocrática, os camponeses livres e
os libertos29 reagiram e deflagraram a revolta dos Stellinga.30
Seu principal alvo era a aristocracia saxônica, e afirma-se que
os sediciosos pretendiam restabelecer os “costumes dos antigos
saxões”. Mantiveram a Saxônia sob seu controle durante o inverno
e a primavera de 841-42, sofrendo em seguida uma violenta
repressão por parte da aristocracia local. Essa revolta nos mostra,
em especial, “que o campesinato do período era capaz de reconhecer
e de opor-se à ampliação global do poderio aristocrático (...) além
de eleger a conjuntura favorável à deflagração do movimento.”31
Como ressaltamos no início deste artigo, o estudo sistemático
das manifestações da resistência camponesa e dos conflitos sociais
na Idade Média Ocidental está, ainda, por ser realizado. Contamos
com obras clássicas, como as de Rodney Hilton32 e Reyna Pastor,33
pioneiras na abordagem do tema, mas suas diversas expressões
locais e cronologia ainda são pouco conhecidas, situação de certo

29
Frilingi e lazzi, respectivamente.
30
“Companheiros”, “confrades”.
31
WICKHAM, Chris. Espacio y sociedad…, op. cit., p. 45.
32
HILTON, Rodney. Bond Men Made Free: Medieval Peasant Movements and
the English Rising of 1381. London: Routledge, 1988.
33
PASTOR, Reyna. Resistencias y luchas campesinas en la época del crecimiento y
consolidación de la formación feudal. Castilla y León, siglos X-XIII. Madrid: Siglo
XXI, 1980.

315
favorecida por uma vigorosa inflexão historiográfica que tornou
a História Medieval, nas últimas décadas, campo por excelência
de domínio das perspectivas reacionárias e pós-modernas,
com perdão da redundância. Assim, por exemplo, o fascínio
exercido sobre a generalidade dos medievalistas pelo que designei
alhures34 por “precedência ontológica” concedida às concepções
dos “medievais” para a compreensão daquela sociedade constitui
um verdadeiro obstáculo à superação da ideologia da tripartição
social, visão sublimada elaborada pelas elites do período para
afirmar a harmoniosa convivência entre “sacerdotes”, “guerreiros”
e “trabalhadores”, negar as contradições e divulgar o suposto
equilíbrio social dominante. Ora, como atentar, no quadro de
tal perspectiva ingênua e simplista, porém hegemônica, para as
manifestações de fenômenos que constituem a negação mais
peremptória da vigência de uma sociedade medieval supostamente
idílica que tanto seduz os seus estudiosos?
Urge, portanto, que redimensionemos a caracterização global
do milênio pré-capitalista medieval, bem como outras fatias de
duração sua, superando, com base na melhor tradição da teoria
crítica marxista, as visões idealistas que põe em xeque, mais do que a
decifração do passado, a compreensão da historicidade que instituiu
o nosso presente em curso. Nesse sentido, impõe-se enquadrar no
centro daquela formação social essencialmente agrária a diversidade
de relações, de práticas sociais e de experiências do campesinato,
em sua luta cotidiana pela existência, reprodução material e
social e resistência à dominação aristocrática.35 O que seus ecos
quase inaudíveis perdidos na noite dos tempos nos revelam não

34
Ver BASTOS, Mario Jorge da Motta e PACHA, Paulo Henrique de
Carvalho. Por uma negação afirmativa do ofício do Medievalista! In: BOVO,
Claudia Regina et al. (ed.). Anais Eletrônicos do IX Encontro Internacional de
Estudos Medievais: O oficio do Medievalista. Cuiabá: ABREM, 2011. pp. 506-
515. (Disponível em http://www.abrem.org.br/biblioteca.php).
35
Ver SCOTT, James C. Weapons of the weak: everyday forms of resistance. New
Haven and London: Yale University Press, 1985, além da obra citada na nota 7.

316
é o tom prosaico de estranhos eventos vividos por um “outro” no
qual, por tão longínquo, não conseguimos nos reconhecer, mas a
amplitude temporal e a riqueza da experiência humana vivenciada
em condições de opressão e da luta contra ela, além dos efeitos de
movimento e transformação que essa luta produz. Aquilo que a
dissipação das Brumas de Avalon daquele passado nos desvela é
uma sociedade medieval marcada por acirrada violência de classe,
por desigualdades e exploração intensas, e pela luta cotidiana e
diversa contra as suas manifestações, expressões perturbadoras
que, ao ecoarem das fontes, maculam a Idade Média onírica que
aprendemos a celebrar.
Por fim, na análise das lutas sociais convém considerar, como
destacamos anteriormente, com João Bernardo, que predomina,
mesmo em vertentes teóricas tão díspares quanto a historiografia
liberal e a de tradição marxista, uma concepção redutora da
amplitude e diversidade daquelas manifestações históricas,
limitando-as a um certo tipo de fenômeno, em geral definido
em função do número de participantes, do caráter explícito, ou
preferencialmente violento dos movimentos, da veiculação de
reivindicações sistemáticas e, acima de tudo, do objeto dessas
exigências, “que deveria corresponder ao que os historiadores
consideram ser a esfera do econômico. Tudo que não satisfaça estas
condições é excluído das lutas sociais, pelo que haveria apenas
uma temporalidade, marcada na regular periodicidade em que
funcionam os sistemas”. 36
Visando a ampliação da nossa capacidade de apreensão
das expressões diversas dos conflitos na História, é possível
considerar como, no período desta análise, o enfrentamento
entre o cristianismo, religião em afirmação, e as crenças e
práticas condenadas por sua ortodoxia como pagãs articulam-
se, diretamente, ao âmago do processo de implantação de novas
formas de poder e da resistência que lhe foi oposta. Apesar dos

36
BERNARDO, João, vol. II, op. cit., pp. 15-21.

317
limites impostos pela natureza das fontes disponíveis, as sucessivas
condenações de crenças e práticas ditas pagãs pela ortodoxia cristã
parecem revelar que as comunidades camponesas preservaram
uma base de contínua elaboração e reelaboração de uma
cosmovisão irredutível, plenamente, às fórmulas ditadas pelas elites
eclesiásticas, expressando suas formas autonômicas de apreensão
da natureza e das forças produtivas ideais, consubstanciadas em
ritos de fertilidade, de proteção dos campos, das colheitas e dos
rebanhos etc. Tomá-las como expressões da disfunção do sistema,
como manifestações culturais “desencarnadas”, ou ainda, ao assumir
a perspectiva das autoridades de época, condená-las como restos
de um passado fadado ao desaparecimento, implicará, em qualquer
um dos casos, em abdicar do que me parece constituir duas
orientações básicas essenciais à análise dos processos históricos,
em especial daqueles que configuram as transições: atentar para as
manifestações das contradições sociais que revelam as dinâmicas
dos sistemas, e visar – sem postergá-la para um futuro remoto
– a síntese, isto é, a compreensão do funcionamento – em suas
defasagens e articulações – das globalidades sociais e históricas
estruturadas.

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320
Comércio na Alta Idade Média:
uma crítica da teoria

Paulo Henrique de Carvalho Pachá

A efetiva superação da oposição binária entre modernismo


e primitivismo ocorre através de uma análise que seja capaz de
demonstrar a transformação oriunda do processo histórico. Ou
seja, que enfatize a diferença fundamental do pré-capitalismo em
relação ao capitalismo, mas que o faça sem perder de vista que
o processo histórico une tais momentos de forma inseparável.
Para escapar aos abismos representados pelo primitivismo e
modernismo, o historiador deve ser capaz de demonstrar como o
pré-capitalismo se transformou em capitalismo.
Um pequeno passo, mas não menos necessário, de tal
proposição é a elaboração de um modelo explanatório capaz de
fornecer as bases de análise das diversas formas do intercâmbio
pré-capitalista. Se o nosso objetivo atual restringe-se à análise de
tais formas no alto-medievo, suas possibilidades de generalização
para outras sociedades pré-capitalistas dependem de seu emprego
e adaptação. No presente momento, contudo, é suficiente
demonstrar o seu poder explanatório para esse recorte específico.
De acordo com o modelo aqui proposto, o dom (ou troca de
presentes) aparece como a forma de intercâmbio dominante, e o
comércio pré-capitalista como a forma de intercâmbio subordinada.
O dom é caracterizado primordialmente por seu caráter conflituoso
e existe aqui como forma da dominação do agente superior

321
na relação. O comércio pré-capitalista é caracterizado por sua
especificidade histórica em relação ao comércio (capitalista), tendo
como aspecto central ser a forma de circulação de meros objetos, e
não de mercadorias. Dom e comércio pré-capitalista se articulam,
respectivamente, como forma dominante e forma subordinada,
pois o primeiro fornece o quadro de relações socialmente
necessárias para o desenvolvimento do segundo. Ainda que o
dom frequentemente assuma a forma de relações mercantis pré-
capitalistas (e assim seja identificada por vários historiadores),
a análise da totalidade das relações que vinculam os agentes do
intercâmbio é capaz de desvelar o caráter de troca de presentes que
subjaz tais relações. Quando tal desvelamento não é possível, i.e.,
quando se trata de uma relação que deve ser caracterizada como
comércio pré-capitalista, este ainda depende da troca de presentes
como estrutura geral da relação a partir da qual se desenvolve.
Desta forma, aparece em oposição (e, portanto, em relação) ao
dom e, como tal, é extensamente normatizado.
Dessa forma, especificar que a forma do intercâmbio pré-
capitalista que a historiografia denomina como comércio é,
na verdade, “comércio pré-capitalista” significa, por um lado,
reconhecer a história como procedimento retrospectivo – o qual,
necessariamente, figura relações e práticas do passado a partir do
presente – e, por outro lado, enfatizar que tal identidade é real a
partir de uma lógica histórica de desenvolvimento e emergência.
Dessa forma, tal procedimento analítico é capaz de reconhecer os
vínculos entre duas relações historicamente específicas e afirmar
sua diversidade. O que está em questão, portanto, é a análise das
relações historicamente específicas que se articulam em torno da
forma de intercâmbio que denominamos como “comércio pré-
capitalista”.

322
II

Em um célebre artigo de 1959 – “Comércio na Idade das


Trevas: uma crítica da evidência”1 –, Philip Grierson apresentou
um panorama da história econômica do alto-medievo dominado
pelo debate em torno da obra de Henri Pirenne (em especial, seu
artigo de 1922, “Maomé e Carlos Magno”2). Tal artigo desenvolvia
a tese de que “mesmo após as invasões, o Ocidente permanecia
sob a dominação econômica do Oriente”3, qualquer “emancipação
econômica não ocorreria até o fim do período Merovíngio, e
quando esta aconteceu, foi quase sinônimo de colapso econômico”4.
Segundo Grierson, o resultado geral após trinta e cinco anos de
debate parecia ser que tanto Pirenne quanto seus críticos estavam
igualmente equivocados, pois o apelo aos mais variados vestígios
documentais parecia demonstrar que o “comércio na Idade das
Trevas era muito mais considerável em volume do que havia
sido geralmente assumido, ainda que menos organizado do que
seria em séculos posteriores”5. É justamente contra essa última
conclusão que Grierson constrói seu argumento, enfatizando que
ela decorreria de

uma falha para distinguir entre três tipos diversos de


evidências: (i) evidência da existência de mercadores,
i.e., de pessoas que sobrevivem através do comércio;
(ii) evidência do comércio, no sentido restrito

1
GRIERSON, Philip. Commerce in the Dark Ages: a critique of the evidence.
Transactions of the Royal Historical Society, 5th series, vol. 9, London, 1959. pp.
123-140.
2
PIRENNE, Henri. Mahomet et Charlemagne. Revue belge de philologie et de
l’histoire, n. I, 1922. pp. 77-86.
3
GRIERSON, Philip, op. cit., p. 123.
4
Id., p. 123.
5
Id., p. 124.

323
da venda de bens especializados ou excedentes
diretamente entre produtores e consumidores, sem
nenhuma intervenção de terceiros; e (iii) evidência
da distribuição de bens, particularmente bens de
luxo e dinheiro, por meios inespecíficos6.

O equívoco mais grave residia na indistinção entre troca


e distribuição e o conseqüente “hábito de tratar os registros da
distribuição de bens de luxo e moeda como se estes fossem nada
mais que o testemunho suplementar da existência e atividade de
mercadores”7. Dessa forma, Grierson sintetiza os erros de tais
investigações ao notar que

Toda a abordagem, calcada no acúmulo de evidência


para a existência do comércio em lugar de tentar
estabelecer uma moldura geral de como e em que
medida os bens materiais mudavam de mãos, é em
si mesma profundamente enganosa, e pode resultar
apenas em conclusões que estão longe da verdade8.

Segundo o autor, tais equívocos emergem menos da confusão


entre mercadores e comércio, do que da “pressuposição de que
bens e dinheiro necessariamente passavam de uma mão para outra
apenas por meio do comércio”9. O argumento do autor encaminha-
se então para a caracterização e avaliação da importância relativa
de formas alternativas do intercâmbio, nomeadamente, o roubo e
o dom. De acordo com tal caracterização, “‘roubo’ incluiria todas
as transferências de propriedade unilaterais que podem ocorrer
involuntariamente – saques na guerra seria o tipo mais usual –
e ‘dom’ serviria para cobrir todas aquelas que ocorrem com o

6
Id.
7
Id., p. 125.
8
Id.
9
Id., p. 129.

324
consentimento livre do doador”10. Ainda que tais caracterizações
sejam extremamente simplórias, estas são importantes como uma
primeira aproximação do tema e incitam o seu aperfeiçoamento.
Em parte, este é alcançado pelo próprio autor, ao notar que entre o
roubo e dom existiria uma série variada de intercâmbios (resgates,
pagamentos, multas, dotes etc)11.

Figura 1
Formas do Intercâmbio Medieval – Philip Grierson (1959) –
Modelo 1.

Formas de Intercâmbio
V
Comércio

V V
Comércio de Comércio
larga escala local

V V
Pagamentos Trocas Pagamento de
Roubo Resgates Multas Dotes Dom
V
V

Diplomáticas
V

V
V

V
Políticos Mercenários
V V V
V V V

Saque Tributos Compensações

De acordo com a interpretação proposta pela figura acima,


o modelo de Grierson agruparia as formas de intercâmbio alto-
medievais em dois conjuntos: o primeiro é caracterizado pela
troca mercantil (comércio) e suas formas específicas (comércio de
larga escala e comércio local); o segundo pelos diversos matizes
que se localizam entre o roubo e o dom. Dessa forma, roubo e dom
vinculam-se como extremos de uma mesma relação, enquanto o
comércio aparece como uma relação diversa.

10
Id., p. 131.
11
Id.

325
Tal distinção entre as formas de intercâmbio no alto-medievo
suscitam uma abordagem pioneira de Grierson acerca da troca de
presentes (dom) como uma forma de intercâmbio extremamente
importante em tal período12. A partir da obra de Marcel Mauss,
o autor destaca que, embora o dom seja apenas um vestígio na
sociedade moderna, “em tempos antigos este era uma forma
de atividade social primordial, tendo uma função análoga à do
comércio em garantir a distribuição de bens e serviços”13. A troca
de presentes é então caracterizada pelo autor como uma “troca
mútua de dons” (uma vez que “o costume requeria que todo dom
fosse compensado, cedo ou tarde, por um contra-dom”), a qual
difere do comércio por não ter como objetivo o “‘lucro’, material
e tangível”, resultado da diferença de valor entre o que é vendido
e comprado, mas do “prestígio social vinculado a generosidade”. O
“‘lucro’ consiste em colocar outras pessoas em uma dívida moral,
pois um contra-dom é necessário para que o recipiente retenha
sua alto-estima”. A título de conclusão, Grierson propõe que, “o
fenômeno do dom e do contradom deve ter assegurado um lugar
conspícuo em qualquer quadro que se esboce da troca no alto-
medievo”14.

III

Assim como a investigação de Pirenne foi um marco em


torno do qual o debate acerca do comércio na Alta Idade Média
se desenvolveu na primeira metade do século XX, a análise de
Grierson estabeleceu os elementos em torno dos quais esse debate

12
De acordo com Florin Curta, Grierson é efetivamente o pioneiro desse campo.
CURTA, Florin. Merovingian and Carolingian Gift Giving. Speculum, n. 81,
2006. pp. 671-699.
13
GRIERSON, Philip, op. cit., p. 137.
14
Id., pp. 137-139.

326
continuou ao longo da segunda metade do mesmo século. O artigo
de Patrick Geary intitulado “Sacred Commodities: The Circulation
of Medieval Relics”15, publicado em 1986, se inscreve nessa mesma
genealogia teórica, seja pela generalidade de seus objetivos, seja por
tomar o artigo de Grierson como sua principal referência.
O objetivo principal de Geary no referido artigo é uma análise
das formas de circulação das relíquias medievais, tendo como um
de seus objetivos secundários uma análise geral dos mecanismos
de circulação alto-medievais. Assim, se Geary reconhece que
a caracterização das relíquias medievais como mercadorias
constitui um esforço de alargamento extremo da definição de
“bens destinados à circulação e à troca”, não vê nenhum problema
em argumentar que, a despeito das diferenças, “entre os séculos
VIII e XII, as relíquias eram compradas e vendidas, roubadas
ou divididas, tanto quanto qualquer outra mercadoria”16. O que
jamais é considerado pelo autor, contudo, são definições mais
específicas de mercadoria, sejam essas medievais ou não. De nada
adianta saber que as relíquias faziam parte dos mesmos circuitos de
trocas que outras mercadorias, se não sabemos o que exatamente
são essas mercadorias ou tais circuitos de trocas. Trata-se de uma
tautologia da indefinição: mercadorias são bens destinados à
circulação e troca; as relíquias medievais não podem ser encaixadas
nessa definição; contudo, as relíquias medievais sofriam as mesmas
operações que quaisquer outras mercadorias medievais. Logo, as
relíquias medievais podem ser caracterizadas como mercadorias!
Em meio a um percurso que desafia qualquer lógica, o autor
perde de vista o fato de que não apenas permanece restrito à definição

15
GEARY, Patrick. Sacred Commodities: The Circulation of Medieval Relics.
In: APPADURAI, Arjun (ed.). The Social Life of Things: Commodities in
Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. O texto
foi republicado em 1994, em uma coletânea de artigos do autor: GEARY,
Patrick. Living with the Dead in the Middle Ages. Ithaca: Cornell University
Press, 1994. pp. 194-218.
16
Id., p. 169.

327
de mercadoria que atestou como inadequada para contemplar as
relíquias medievais (sem propor-lhe qualquer alternativa), mas que
também é, provavelmente, inadequada para contemplar até mesmo
o que Geary chama de “qualquer outra mercadoria” medieval. Que
mercadorias são essas e o que, exatamente, significa vender ou
comprar no alto-medievo são perguntas ignoradas por completo
pelo autor.
As possibilidades de generalização de tais proposições decorrem
do postulado de Geary que “o mundo das relíquias pode ser um
microcosmo ideal, ainda que pouco usual, para a análise da criação,
valoração e circulação de mercadorias na Europa tradicional”17.
Ecoando as proposições teóricas de Arjun Appadurai e Igor
Kopytoff18, destaca que “tal como escravos, relíquias pertencem
à categoria, pouco usual na Sociedade Ocidental, de objetos que
são tanto pessoas quanto coisas”19. A despeito do pouco que foi
estabelecido até então, o autor argumenta que “refletir acerca da
produção, troca, venda e mesmo roubo das relíquias sagradas nos
permite melhor entender os parâmetros culturais do fluxo de
mercadorias na sociedade medieval”20. Que ainda não tenhamos
uma idéia clara do que são as mercadorias na sociedade medieval,
não parece constituir nenhum obstáculo para que Geary possa
projetar “os parâmetros culturais de seu fluxo”. Trata-se de um
percurso metodológico que atribui arbitrariamente a qualidade de
mercadoria a determinado objeto para então acalentar a esperança
que a análise da circulação desse seja capaz de esclarecer o sentido
do conceito de mercadoria.
É revelador observar a sutileza com a qual Geary desliza
para o abismo representado pelo debate entre primitivismo

17
Id.
18
APPADURAI, Arjun. Introduction: Commodities and the Politics of Value.
In: The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge:
Cambridge University Press, 1986. pp. 3–63.
19
GEARY, Patrick, op. cit., p. 169.
20
Id.

328
e modernismo. Ao desenvolver uma crítica ao núcleo do
primitivismo, isto é, à noção de “economia natural”, o autor termina
por enquadrar a questão unicamente nos termos dualistas de tal
debate e, por fim, acaba por empreender uma análise calcada no
modernismo. Pois se a economia natural pressupõe o escambo
e os pagamentos em espécie como suas características centrais,
trata-se então de estabelecer a enorme importância do dinheiro,
da cunhagem e do comércio para períodos cada vez mais recuados.
Tal esforço de negação (e não de crítica) orienta-se então não para
a desestabilização da noção de economia natural, mas apenas
para a rejeição de sua aplicabilidade ao medievo. E o esforço
empreendido é tão desmedido que parece razoável até mesmo
negar o recurso ao conceito de “economia camponesa” (para o
autor, irremediavelmente vinculado à idéia de economia natural)
em relação à Idade Média, pois “camponeses presumivelmente
não usam capital, mas dinheiro; lucro e acumulação de capital em
uma escala sempre crescente não devem fazer parte de estratégias
camponesas”21. Assim, sanciona Geary, “no Ocidente, mesmo por
volta do século IX essa imagem [da economia camponesa] só pode
ser aplicada com alguma dificuldade”22.
A conjugação de tais aspectos – isto é, uma extrema confusão
conceitual acerca do termo mercadoria e uma análise que se dá,
ainda que não explicitamente, no quadro do modernismo – tem
como conseqüência uma leitura extremamente deficitária do célebre
artigo de Grierson, o qual aparece como o fundamento central da
análise de Geary. Tal insuficiência torna-se explícita quando Geary
faz paráfrases de Grierson alterando bens (goods) por mercadorias
(commodities), ou introduzindo a idéia de escambo (barter) no
argumento daquele autor, um termo que não aparece em nenhum
momento no artigo original. Assim, segundo Geary:

21
GEARY, Patrick, op. cit., p. 170.
22
Id.

329
Grierson sugere, por contraste [com Pirenne e os
historiadores que seguiram seus passos], que troca
não é de forma alguma o único ou mesmo o meio mais
usual pelo qual mercadorias [commodities] trocam
de mãos. Boa parte da rede de trocas que conectava
os monastérios do século IX provavelmente operava
por escambo e não por venda [...].23

Enquanto em Grierson encontramos as seguintes passagens:“A


distorção da imagem emerge menos da confusão entre mercadores
e troca, e mais da pressuposição que bens (goods) e dinheiro
necessariamente trocam de mãos apenas por meio da troca”24, e “em
ambas as transações [entre monastérios], nos estamos na presença
não de comércio, mas de uma forma de troca de presentes [a form
of gift-exchange]”25.
O destaque de tal alteração não é mero preciosismo, mas
demonstra que Geary utiliza os termos como plenamente
intercambiáveis, como se não houvesse nenhuma diferença entre
o conceito de “mercadoria” e a noção de “bem”, ou entre o “dom”
e o “escambo”. Dessa forma, ainda que utilize o quadro geral
estabelecido por Grierson como fundamento de sua análise, não
faz sem alterações ou retrocessos.
Segundo Geary, “a circulação de relíquias [...] partilhava
características da circulação de outras mercadorias valiosas no
Ocidente Latino. Assim, nos devemos começar examinando esses
mecanismos”26, quais sejam, o dom, o roubo e a venda. A figura
abaixo (Fig. 2) representa o modelo de Geary acerca da articulação
entre as formas do intercâmbio alto-medieval.

23
Id., p. 172.
24
GRIERSON, Philip, op. cit., p. 129.
25
Id.
26
GEARY, Patrick, op. cit., p. 181.

330
Figura 2
Formas do Intercâmbio Medieval – Patrick Geary (1986) – Modelo 2.

Formas de Intercâmbio

V
Mercadorias

V V V
Comércio Roubo Dom

A principal transformação que observamos no modelo de


Geary (Fig. 2) em relação ao de Grierson (Fig. 1) é o papel central
que ocupa o conceito de mercadoria. Se em Grierson permanecia
em aberto o estatuto do objeto que circulava pelos diversos circuitos
de intercâmbio (e provavelmente era a forma do intercâmbio o
critério definidor do estatuto do objeto), em Geary todos os objetos
são primordialmente mercadorias, as quais podem então circular
através do dom, do roubo ou do comércio. Também em contraste
com o modelo proposto por Grierson, não há nenhuma relação
que vincule o dom e o roubo como os extremos de um mesmo
continuum. Ao contrário, dom e roubo aparecem como formas em
tudo paralelas ao comércio. Para Geary:

Ainda que a sociedade alto-medieval fosse uma


sociedade tradicional, não era de forma alguma
simples ou homogênea. A troca de bens pode ter
servido para criar laços entre doador e recebedor,
mas aqueles também eram desejados por si próprios.
Podiam ser e de fato eram, em determinados
momentos, convertidos em dinheiro ou mesmo
capital; assim, coexistiam tanto um sistema de

331
mercadorias objetificadas e alienáveis e um sistema
de troca de presentes subjetivos e inalienáveis.27

De forma semelhante, ainda que o autor pareça, em breves


momentos, caracterizar o dom como a forma de intercâmbio
primordial no alto-medievo, estes sempre redundam em afirmações
da vitalidade de um comércio “puro”. Por exemplo, Geary reconhece
que “a circulação de artigos de elevado prestígio, dos quais as
relíquias são apenas um tipo [...], não ocorria primariamente
em uma estrutura comercial”28, ou que “mesmo quando uma
compra encontra-se no coração de tais trocas, contemporâneos
provavelmente as encaravam com suspeição ou as entendiam
no contexto de uma ou outra forma de circulação de bens mais
significativas, roubo e dom”29. Contudo, projeta imediatamente
uma esfera mercantil independente e jamais caracterizada em
seu artigo, pois “tais compras de fato ocorreram, e por vezes uma
produção real e um sistema mercantil existiram para a criação e
distribuição de mercadorias prestigiosas”30.
É revelador, portanto, que ao enquadrar o comércio como
mecanismo de transferência das relíquias, Geary não é capaz de
empreender nenhum tipo de análise acerca de tal mecanismo, mas
limita-se à mera descrição de dois casos específicos (e extremamente
inconclusivos) e à projeção da possível existência de outros agentes
imersos em relações comerciais.
Tal limitação, contudo, não é acidental, mas conseqüência
direta de perspectivas metodológicas que o autor apresenta no
próprio artigo. Pois, de acordo com Geary, não se trata de

postular um modelo de desenvolvimento da


transição de uma economia fundada no dom para

27
Id., p. 173.
28
Id., p. 174.
29
Id.
30
Id., p. 174.

332
uma fundada na mercadoria, deve-se examinar as
circunstâncias sociais e políticas específicas que
podem favorecer a circulação de bens [goods ] por
um meio ou outro.31

Ainda que proponha um “exame geral da natureza do comércio


alto-medieval”, Geary termina por projetar um exame de cada
momento singular (logo, de todos os infinitos momentos singulares
que podem ser encontrados nas fontes). Dessa forma, ao concluir
seu artigo, o autor é capaz de enumerar mais elementos que não
foi capaz de analisar do que os resultados que sua investigação
produziu.
Em síntese, quase quatro décadas após a publicação do artigo
de Grierson, Patrick Geary não apenas não avança nem um passo
em relação àquele, mas faz parecer que o nosso conhecimento
acerca das formas de intercâmbio alto-medievais retrocede em
pontos fundamentais. Pois se Grierson, em uma análise pioneira
e exploratória, foi capaz de destacar a importância central do
dom em relação a outras formas de intercâmbio no alto-medievo,
Geary reconhece que “gostaríamos de ser capazes de estabelecer a
importância relativa da troca de presentes em oposição ao roubo
ou a venda de relíquias. Mas aqui, novamente, não temos a menor
idéia”32!
Por fim, é quase paradoxal que o autor destaque a necessidade
de “mais estudos comparativos e modelos teóricos da mercadoria,
que possam elucidar alguns dos processos que foram discutidos”,
justamente elementos patentemente ausentes de sua investigação!
Claramente, nos deparamos com becos sem saída insolúveis
sob o prisma de determinada historiografia de matiz pós-moderno.
Pois a confusão conceitual extrema que detectamos na análise de
Geary tem origem tanto na sua aparente aversão a qualquer tipo de

31
Id.
32
Id., p. 189.

333
modelo, conforme mencionamos acima, quanto no quadro teórico-
conceitual implicitamente adotado33. Trata-se, portanto, de uma
situação em que pressupostos metodológicos implícitos impedem
a formulação de modelos teóricos explícitos, o que redunda em
uma confusão conceitual extrema que, ao fim e ao cabo, impede
que a questão seja corretamente analisada. O rompimento com tal
situação depende primordialmente de um esforço de clarificação
dos principais conceitos relacionados ao problema das formas
de intercâmbio no alto-medievo, dom e comércio. Estabelecidos
alguns parâmetros básicos acerca de cada forma de intercâmbio
específica, é imprescindível a elaboração de modelos provisórios
que nos permitam enquadrar a questão sob nova ótica.
Em outras ocasiões, analisamos detidamente o problema
da troca de presentes no alto-medievo, seja como uma forma do
intercâmbio, seja como relação de dominação. Tendo em vista os
limites da presente comunicação e considerando as inescapáveis
referências à troca de presentes que tal análise pressupõe, nos
restringimos aqui a uma análise da forma comercial do intercâmbio.

IV

Consideremos, portanto, algumas referências extraídas das


Atas dos Concílios Visigóticos e Hispanoromanos34, conjunto
documental riquíssimo que abrange os registros de trinta e
sete concílios eclesiásticos – com participação diversificada
da aristocracia laica ao longo do tempo – desde o Concílio de
Elvira (300-306), o primeiro celebrado na Hispania, até o último
registrado em ata, Toledo XVII (694).

33
Tal quadro de referências teórico-conceituais encontra sua síntese no artigo de
APPADURAI, Arjun, op. cit., 1986, que apresenta a coletânea na qual se insere
o artigo de Geary que analisamos.
34
VIVES, José (ed.). Concílios Visigóticos e Hispano-romanos. Madrid: CSIC, 1963.

334
As deliberações conciliares são extensas e legislam sobre um
amplo leque de questões, desde a gestão do patrimônio eclesiástico
– considerando também doações e presentes – e normatizações
litúrgicas, até a resolução de conflitos e choques entre os poderosos
do reino. Dessa forma, os concílios não apenas se destacam como
o momento privilegiado para a resolução de conflitos internos à
aristocracia, mas veiculam, na descrição desses conflitos, figurações
diversas acerca da sociedade alto-medieval.
O cânone XIX do Concílio de Elvira (300-306), intitulado
“Dos clérigos que se dedicam ao comércio e recorrem ao mercado
[nundinas35]” determina:

Que os bispos, presbíteros e diáconos não negociem


fora de seus lugares, nem andem de província em
província em busca de grandes benefícios [nec
circumeuntes provintias quaestiosas mundinas36
sectentur]. Verdadeiramente, para buscarem o
sustento necessário enviem a seu filho, liberto,
empregado [mercennarium], amigo ou qualquer
outro. E se quiserem se dedicar ao comércio, que
seja dentro da província [et si voluerint negotiari,
intra provinciam negotientur].37

Por sua vez, com objetivos semelhantes (e provavelmente


fazendo referência ao cânone anterior), o cânone II do Concílio
de Tarragona (516), intitulado “Que aos clérigos não se permita
comprar a um preço baixo para vender mais caro [Ut clerici emendi

35
Mercado [nundinas] tem aqui o sentido de “dia do mercado” ou “feira”, e não
de esfera impessoal onde se realizam as trocas. Ainda que a tradução do termo,
mais uma vez, adote uma palavra com conotação moderna, parece desnecessário
enfatizar essa questão novamente. Cf. DU CANGE et al., Glossarium mediae
et infimae latinitatis, éd. augm. T. 5. Niort: L. Favre, 1883-1887, col. 624b.
Disponível online em: http://ducange.enc.sorbonne.fr/NUNDINAE.
36
A variação (nundinas e mundinas) ocorre na edição utilizada: VIVES, José
(ed.), op. cit.
37
Id., p. 5.

335
vilius vel vendendi carius non permittantur]” decide que “Segundo
estabelecem os cânones, qualquer um que queria permanecer no
clero, não se dedique a compra a preço baixo para vender mais
caro. E se quiser se dedicar verdadeiramente a tal, seja expulso do
clero”38.
As referências que mencionam eclesiásticos desempenhando
atividades usualmentes caracterizadas como comerciais poderiam
ser multiplicadas. Contudo, os dois exemplares acima são suficientes
para estabelecer o problema e uma proposta de enquadramento no
complexo de relações que estamos investigando.
Analisando essas evidências de acordo com os modelos
propostos por Grierson e Geary, esses cânones demonstrariam
a existência inequívoca da troca comercial no alto-medievo a
partir de dois percursos: de acordo com o Modelo 1, não sendo
possível seu desvelamento como relações de dom dado o nível de
generalidade com o qual a cânone caracteriza a atividade comercial,
restaria enquadrar tal relação no percurso “Formas de Intercâmbio
 Comércio  Comércio local”; para o Modelo 2, tendo em vista
a sua simplicidade e o pressuposto de que independendo da
forma da circulação, todos os objetos são potenciais mercadorias,
a atividade descrita por tais cânones seria descrita pelo percurso
“Formas de Intercâmbio  Mercadorias  Comércio”. Uma vez que o
Modelo 1 tem como principal objetivo demonstrar a existência de
formas de intercâmbio alternativas ao comércio, a documentação
citada acima não tem nenhum potencial disruptor. De forma
análoga, se o Modelo 2 tem como principal consequência um
enquadramento de todos os objetos – independentemente de seu
forma de intercâmbio – como potenciais mercadorias, a evidência
de relações comerciais em nada desestabiliza o modelo.

38
Id., p. 35.

336
V

Tanto na abordagem de Grierson quanto de Geary, comércio


é sempre um termo indefinido, i.e., tratado como uma relação
transparente, em tudo evidente. Trata-se de uma tendência
bastante generalizada no medievalismo (e mesmo na antropologia),
como se as relações que nos são contemporâneas se apresentassem
de forma tão explícita e óbvia que seria desnecessária qualquer
explanação. Dessa forma, o comércio (e a mercadoria) é sempre
enquadrado como uma relação evidente, a qual dispensa maiores
análises. No artigo de Grierson, tal relação jamais é caracterizada
de fato, mas apenas expressa nas duas formas mencionadas pelo
autor: o comércio de larga-escala e os mercados locais abastecidos
e frequentados por camponeses. O primeiro seria responsável
pela inserção da lógica do lucro na sociedade medieval, enquanto
o segundo teria como consequência apenas um leve aumento no
padrão de vida dos envolvidos. Ambos os tipos, contudo, estariam
contrapostos à forma “natural” de reprodução econômica familiar, a
autossuficiência como ideal. Em Geary, conforme já demonstramos,
o mesmo ocorre.
Ao contrário do que ocorre com o dom, nem comércio
nem mercadoria são conceitos ou categorias de larga tradição
acadêmica, seja na economia, antropologia ou história. Não foram
cunhados no conforto dos gabinetes nem sob as intempéries dos
trabalhos de campo, mas invadiram o vocabulário acadêmico a
partir do uso cotidiano que tais termos desempenham nas línguas
modernas. Exceto por algumas exceções, poucos foram aqueles
que dispensaram qualquer atenção mais detida para tais conceitos,
sendo a regra um uso escudado nos sentidos oriundos do senso-
comum e da prática cotidiana.
A partir da franca indefinição dos termos no binômio
comércio/mercadoria florescem uma série de abordagens
extremamente diversas, ainda que todas pretendam falar a mesma

337
língua e da mesma coisa. Assim, por (in)definição, todo e qualquer
medievalista que pretenda analisar o comércio como forma do
intercâmbio (logo, as mercadorias como objeto de tal transação)
imediatamente lança mão de tais termos sem jamais explicitar
como os define.

VI

Na análise de tais cânones, o primeiro aspecto que deve atrair


nossa atenção é a especificidade do termo latino, nundinas – isto é,
dia do comércio, dia da feira – em oposição à generalidade do termo
comércio. Enquanto o primeiro denota uma situação específica,
o segundo faz referência á uma esfera abstrata, impessoal, onde
ocorrem as trocas de mercadorias. Se recorremos à clássica (e
irônica!) descrição de Marx da esfera das trocas no modo de
produção capitalista como um “verdadeiro paraíso dos direitos
inatos do homem” onde “só reinam [...] liberdade, igualdade,
propriedade e Bentham”39, torna-se imediatamente explícito o
quanto difere tal esfera de qualquer mercado potencial na Alta
Idade Média. Pois mesmo os modernistas mais empedernidos que
se apressam em atestar a existência do mercado e do capitalismo
em toda a história são incapazes de, no mesmo movimento, ignorar
que liberdade, igualdade e propriedade são idéias socialmente
determinadas, resultados de processos históricos específicos
e transformadas no decorrer do tempo. Que isso seccione o

39
“Liberdade, pois o comprador e o vendedor de uma mercadoria – a força
de trabalho – por exemplo, são determinados apenas pela sua vontade livre.
Contratam como pessoas iguais, juridicamente iguais. [...] Igualdade, pois
estabelecem relações mútuas apenas como possuidores de mercadorias e trocam
equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um só dispõe do que é seu.
Bentham, pois cada um só cuida de si mesmo”. MARX, Karl. O Capital - Crítica
da Economia Política, Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.
206.

338
argumento modernista em duas partes que não podem jamais se
encontrar, apenas demonstra que qualquer idéia de comércio ou
mercadoria para o pré-capitalismo deve ser capaz de se desenvolver
em paralelo à idéias de liberdade, igualdade e propriedade bastante
diversas daquelas que nos são contemporâneas, se não efetivamente
inexistentes. Tal conclusão nos fornece alguns indícios das razões
para os termos comércio e mercadoria serem tão pouco discutidos
em tal corrente interpretativa: ao menor sinal de exame, tal posição
desmorona como um castelo de cartas.
A especificidade histórica do mercado nos indica a
especificidade da mercadoria. Dentre os poucos autores que se
dedicaram à análise da mercadoria como um complexo de relações,
nenhum o fez com tal profundidade como Marx. Elegendo a
mercadoria como o ponto de partida de sua investigação – “a
célula econômica da sociedade burguesa”40 – Marx não apenas
examinou e definiu minuciosamente a mercadoria e sua circulação
(o que denominamos aqui o binômio comércio/mercadoria), mas
demonstrou e enfatizou seu caráter radicalmente histórico.
Em um resumo abusivo de seu argumento, a mercadoria
segundo Marx é o produto de um tipo específico de trabalho, o
trabalho produtor de mercadorias. Este trabalho não é apenas
o processo material de transformação de objetos naturais tendo
em vista um fim determinado, não é, portanto, trabalho em geral,
mas trabalho abstrato. Para Marx, a especificidade do trabalho
produtor de mercadorias não é ser produto de indivíduos privados
(ou ser uma abstração conceitual que emerge do agrupamento
dos resultados destes trabalhos privados), mas que é necessária
a intermediação de outro processo, socialmente específico, o
processo da troca de mercadorias41.

40
Id., p. 16.
41
PEPPERELL, Nicole. Disassembling Capital. Melbourne: School of Global
Studies, Social Science and Planning, 2010. p. 109 (PhD Thesis).

339
O trabalho produtor de mercadorias pressupõe, portanto,
determinadas características sociais específicas, como a igualdade
entre todos os tipos de trabalho humano e a determinação do
trabalho social pelo tempo de trabalho socialmente necessário42.
Tais elementos, por sua vez também historicamente específicos,
são inexistentes em contextos pré-capitalistas.
Se o esforço de caracterização das mercadorias deve enfatizar,
primordialmente, sua especificidade histórica, aparece como
abusiva sua extensão para um contexto tão diverso quanto o alto-
medievo (ou o pré-capitalismo em geral). Não se trata, porém, de
negar a existência de qualquer tipo de comércio no alto-medievo
ibérico, mas de avaliar que tipo de comércio é expresso pela
documentação e não, como é regra na historiografia, considerá-lo
como imediatamente idêntico à troca capitalista.
Dessa forma, se as duas deliberações conciliares analisadas
não podem ser imediatamente enquadradas na lógica do dom,
são reveladoras no que tange as especificidades do comércio pré-
capitalista. A normatização conciliar pretendida tem dois objetivos:
por um lado, definir o escopo de ação no qual é permitido aos
eclesiásticos o recurso ao mercado (novamente, no sentido de local
físico: mercado local, feira etc., em oposição à esfera impessoal e
abstrata onde ocorrem as trocas de mercadorias). No primeiro
cânone, do Concílio de Elvira (300-306), encontramos uma
determinação bastante flexível, pois os eclesiásticos não apenas
podem recorrer ao mercado “para buscar o sustento necessário
[Sane ad victum sibi conquirendum]”, como, se desejarem se dedicar
ao comércio [negotiari], podem fazê-lo, desde que no interior da
província.
Ao comparar tal cânone com o citado cânone II do Concílio
de Tarragona (516), portanto, quase dois séculos após o primeiro,
encontramos uma transformação sensível nas determinações
conciliares, pois a participação em tais práticas comerciais é

42
Id., p. 110.

340
explicitamente proibida aos eclesiásticos, sob pena de expulsão do
clero.
Ora, tal comparação revela, por um lado, uma transformação
efetiva desde o domínio romano na península até o estabelecimento
dos visigodos; e, por outro lado, a progressiva redução do papel
da forma de intercâmbio comercial em prol de sua alternativa
principal, nomeadamente, a troca de presentes. Tal transformação
na relevância comparativa de cada forma é expressa, por exemplo,
no crescente número de determinações conciliares que buscam
a normatização das doações, heranças e manumissões, formas
clássicas da troca de presentes. Dentre essas, podemos citar o
cânone VII do Concílio de Braga (561) – “Dos bens da Igreja. Dos
bens eclesiásticos, como devem ser divididos” – acerca da correta
repartição das doações que são entregues às igrejas43; o cânone III
do Terceiro Concílio de Toledo (589) – “Que nada se aliene das
coisas da igreja sem necessidade”44, em que se indicam as situações
específicas em que é permitido doar posses da igreja, “respeitando
os direitos da igreja”45; o cânone VI do mesmo Concílio – “Que
o servo da igreja manumitido pelo bispo nunca se afaste do
patrocínio da Igreja, e os que os libertos de outros sejam defendidos
pelo bispo”46; ou o cânone LXXII do Quarto Concílio de Toledo
(633) – “Dos libertos encomendados ao patrocínio da igreja”47 – o
qual versa sobre a “proteção” que os bispos devem desempenhar em
relação aos libertos sob o patrocínio da igreja.
Tal como argumentamos antes, não se trata de registrar todos
os inúmeros cânones que testemunham a crescente normatização
eclesiástica da troca de presentes como forma de intercâmbio

43
Segundo o cânone, “os bens eclesiásticos [se dividem] em três partes: uma para
o bispo, outra para os clérigos, e a terceira para a restauração ou iluminação da
igreja”. VIVES, José (ed.), op. cit., p. 72.
44
Id., pp. 125-126.
45
Id., p. 126.
46
Id., p. 127.
47
Id., p. 216.

341
alto-medieval e, portanto, evidenciam a sua também crescente
importância. Ao contrário, nosso objetivo é delinear uma dinâmica
geral que se encontra plenamente fundamentada na análise do
testemunho documental.
Soma-se a isso a posição relativa que tais formas de intercâmbio
assumem na legislação régia visigótica. Assim, tomando como
exemplo o Livro V do Forum Iudicum - “De Transactionibus [Sobre
as transações/acordos]”48, dos sete títulos que compõem o livro
em questão quatro legislam acerca de relações que envolvem
diretamente a troca de presentes49 e apenas três50 versam sobre
relações que poderíamos caracterizar como parte do complexo que
articula o comércio pré-capitalista. Na legislação régia, tal como
nas atas conciliares, toda a variedade de questões relacionadas às
formas do intercâmbio pressupõem e indicam frequentemente
considerações sobre os estatutos dos agentes envolvidos nas
relações e, em especial, a preocupação de vincular tais agentes
através de relações de dependência.
Dessa forma, desenvolvemos um modelo das formas de
intercâmbio no alto medievo (Fig. 3) em que comércio pré-
capitalista existe como uma forma subordinada à troca de
presentes, não apenas a partir de um critério quantitativo, mas
como uma forma de intercâmbio cuja existência e transformação
depende do quadro geral de relações criado e reproduzido pela
troca de presentes. Assim, só pode existir comércio pré-capitalista
em relação ao dom. Não há circuito comercial que independa de
tais relações e possa prescindir das relações de dependência pessoal
expressas pelo dom.

48
ZEUMER, K. & WERMINGHOFF, A. Leges Visigothorum. Hannoverae et
Lipsiae, Impensis Bibiopolii Hahniani, 1902. p. 351.
49
Título I (“Assuntos eclesiásticos”), Título II (“Das doações em geral”), Título
III (“Das doações dos patronos”) e Título VIII (“Da libertação e dos libertos”).
50
Título IV (“Sobre trocas e vendas”), Título V (“Da responsabilidade sobre
a propriedade alheia e empréstimos”) e Título VII (“Das garantias e dívidas”).

342
Figura 3
Formas do Intercâmbio Medieval – Modelo 3.

Formas de Intercâmbio

V
Dom
(Forma dominante)

V
Comércio Pré-Capitalista
(Forma Subordinada)

Estabelecidas essas questões, duas soluções são possíveis: por


um lado, seccionar o binômio comércio/mercadoria – vinculação
extremamente orgânica com a qual trabalhamos até esse momento
– e estabelecer que embora mercadoria não seja um conceito
operacional para o pré-capitalismo, comércio o é. Ou seja, trata-
se de ignorar os íntimos vínculos que unem tal binômio – pois,
efetivamente, um é definido em relação ao outro: mercadoria é
a forma historicamente específica do objeto que circula através
do comércio; comércio é a forma do intercâmbio através do qual
circulam as mercadorias. Contudo, tal equívoco poderia ser
encoberto, á maneira de Alain Guerrau, pela substituição da palavra
comércio por algum termo em latim, por exemplo, negotium.
Por outro lado, se desejamos fugir das falsas soluções, outro
caminho se apresenta: é possível, em um só movimento, reconhecer
e enfatizar a especificidade histórica do conceito de comércio
(em sua íntima vinculação com o conceito de mercadoria) e, com
pequenas adaptações, salvaguardar sua extensão para contextos
pré-capitalistas, como a Alta Idade Média. Pois se toda história
é, forçosamente, retrospectiva, não é mera casualidade que as

343
relações que ora analisamos tenham sido identificadas pela
historiografia como relações comerciais, muito embora não o
sejam completamente. Tal movimento apenas reconhece que
essas relações pré-capitalistas existiram como embrião a partir do
qual emergiram relações capitalistas. Ainda que o “comércio pré-
capitalista” não possa ser, jamais, completamente identificado com o
comércio (capitalista), não é possível ignorar a vinculação histórica
que faz o primeiro aparecer como condição de possibilidade para a
emergência do segundo.
O seccionamento do binômio comércio/mercadoria não é, aqui,
mero golpe de força, ocultação intelectual, mas o reconhecimento
que tal vinculação (que se apresenta como extremamente orgânica)
é, de fato, produto da história. Tal proposição defende que antes
da vinculação entre comércio e mercadoria ocorrer, era possível
distinguir um “comércio pré-capitalista” como a forma de circulação
não de mercadorias, mas de meros objetos.
Delineadas as especificidades conceituais das formas de
intercâmbio pré-capitalistas e suas relações mútuas, a tarefa
que se apresenta é o expansão da comparação de tais formas de
relação. Aprofundar a articulação entre o comércio pré-capitalista
e o sistema de relações expresso pela troca de presentes no alto-
medievo ibérico apresenta-se como um caminho profícuo para,
através do contraste, desenvolver a especificidade do comércio pré-
capitalista.

Bibliografia

APPADURAI, Arjun. Introduction: Commodities and the


Politics of Value. In: The Social Life of Things: Commodities in
Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press,
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ZEUMER, K. & WERMINGHOFF, A. Leges Visigothorum.
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345
Revoltas Camponesas e a
Historiografia do Campesinato
Tomano Tardo-Antigo

Uiran Gebara da Silva

Estudar revoltas camponesas na Antiguidade Tardia significa


estudar fundamentalmente dois grupos revoltosos: os bagaudas e
os circunceliões. Bagaudas é o nome que se deu a grupos rurais
insurgentes na Gália no séc. III, imediatamente após a ascensão
de Diocleciano, e no séc. V, em meio às ações dos povos bárbaros
na Gália e na Hispânia. Circunceliões é o nome dado a grupos
de desafiadores da ordem imperial nas regiões rurais da África do
meio do séc. IV ao início do séc. V, principalmente da Numídia e
cujas ações geralmente aparecem associadas ao cisma cristão dos
donatistas. Embora a historiografia sobre ambos seja considerável,
é difícil chegar a uma definição clara das origens sociais desses
revoltosos, principalmente porque essa historiografia é bem
confusa em relação a isso. Há para os bagaudas interpretações
que apontam como elementos-chave de sua constituição desde
escravos1 até potentados locais, senhores da guerra de um império
em crise2. Enquanto para os circunceliões, as propostas vão desde
trabalhadores sazonais3 até monges errantes fanáticos4.

1
DOCKES, Pierre. Medieval Slavery and Liberation. Chicago: University of
Chicago Press, 1982.
2
VAN DAM, Raymond. Leadership and Community in Late Antique Gaul.
Berkeley: University of California, 1985.
3
SAUMAGNE, Charles. Ouvriers agricoles ou rôdeurs de celliers? Annales
HE, vol. 6, 1934. pp. 355-364.
4
CANER, David. Wandering Begging Monks. Spiritual Authority and the
Promotion of Monasticism in Late Antiquity. Berkeley: California University,
2002.

347
Minha proposta aqui é demonstrar que a melhor interpretação
para uma definição das origens sociais desses grupos revoltosos é
a de que ambas sejam duas revoltas ligadas ao campesinato das
duas regiões do Império Romano. Ao fazer isso, porém, também
é necessário lidar com um problema derivado dessa caracterização
como camponeses: as mudanças na historiografia a respeito das
relações de trabalho e das condições de vida nas zonas rurais da
Gália e da África romanas entre os séc. III e V, discussão com a
qual pretendo encerrar esta apresentação.
Assim, inicialmente, apresentarei uma breve síntese dos
lugares na documentação de onde se pode partir para uma
definição das origens sociais de ambos os grupos. Nem todos os
documentos sobre esses grupos são isoladamente proveitosos para
uma investigação sobre eles, embora uma visão de conjunto possa
surpreender o pesquisador que acha que tem pouco material.
Assim, começando pelos bagaudas, suas ações no séc. III
aparecem em três panegíricos escritos alguns anos após as revoltas
e em dois breviários de meio século depois. Em todos estes textos o
combate às revoltas é descrito como a primeira ação de Maximiano
sob Diocleciano, que há pouco havia ascendido ao título de
imperador.
No primeiro panegírico, pronunciado em Trier em 289 para
Maximiano já coimperador, este é comparado a Hércules ao lado
de Júpiter (Diocleciano) em seu combate aos revoltosos. Tal
comparação é significativa, pois a descrição dos revoltosos se baseia
em uma metáfora da Gigantomaquia, o enfrentamento dos filhos
da Terra por parte de Hércules:

E não foi isso similar ao mal de monstros biformes


nestas terras, que eu não sei se mais teria sido pela
tua força reprimido, César, ou pela tua clemência
mitigado: quando camponeses ignorantes buscaram
trajes de soldados, e quando soldados de infantaria
foram imitados por fazendeiros (aratores), cavaleiros
por pastores, e hostes de bárbaros por rústicos

348
devastadores de seus (próprios) cultivos? (Panegirici
Latini 2 (10) 4.3)

Contudo, o termo bagaudas só foi associado a essas revoltas


no Livro dos Césares de Aurélio Vítor5 e no breviário de Eutrópio.

[...] Aeliano e Amando através da Gália, por meio


de um bando revoltoso de camponeses e ladrões,
que os locais chamam de bagaudas, amplamente
atacavam os campos devastados e muitas das
cidades [...]. (Aurélio Vítor, Liber de Caesaribus:
XXXIX, 16-19).

[...] quando camponeses promoveram tumulto na


Gália e à sua facção impuseram o nome de bagaudas
(Bacaudarum), tendo, além disso, como generais
Amando e Aeliano, [Diocleciano] para sujeitá-los
enviou o César Maximiano Hercúleo, que com
batalhas ligeiras domou os agrestes e restituiu a paz
na Gália. (Eutrópio, Breviarium, IX, 20)

No panegírico o que se descreve é claramente uma revolta


de trabalhadores agrícolas (agricolae), através da figura dos
monstros biformes, de camponeses, fazendeiros e pastores, que
ousam assumir armas. Já em Aurélio Vítor o termo fundamental
que descreve os bagaudas é outro sinônimo para trabalhadores
agrícolas (agrestes), embora ele também coloque ao lado a descrição
destes como ladrões (latrones). Por sua vez, Eutrópio se vale de
ainda outro sinônimo para trabalhadores agrícolas (rusticani e
depois repete o agrestes presente em Aurélio Vítor.). Em todos
os três casos as palavras utilizadas para definir os revoltosos
apontam para habitantes das zonas rurais que a historiografia, a

5
Há uma menção aos bagaudas do séc. III na Crônica de Jerônimo e no Historia
Adversus Paganus de Orósio que repete quase exatamente a mesma descrição de
Aurélio Vítor. Há uma parte da historiografia que propõe uma fonte comum
para todas essas obras.

349
partir de outras fontes documentais do período, tende a associar
a um campesinato livre. Isso é, não é possível afirmar com certeza
alguma que os agricolae, agrestes e rusticani aqui mencionados são
escravos ou mesmo os coloni da legislação imperial. Outro termo
que se faz presente, embora em apenas um dos textos, é latrones,
o que permitiu a alguns historiadores pensar os bagaudas em
termos de bandidagem. Algo semelhante também se encontra nos
estudos sobre os circunceliões. Não me aprofundarei nessa questão
aqui, mas a resposta a isso é a comparação dos textos sobre esses
revoltosos com outras menções a banditismo, por meio da qual
se constata que existe uma dimensão de inversão social ausente
nos textos sobre banditismo e que só se encontra na literatura
sobre revoltas de escravos, ou em textos associados à temática das
Saturnálias, como as comédias de Plauto.
Quando o termo bagaudas volta a ser mencionado no séc. V,
é na obra de Salviano de Marselha, De Gubernatione Dei. Este é
talvez o texto mais rico para se entender essas revoltas, porque além
de situá-las dentro de uma narrativa sobre as condições de vida dos
camponeses da Gália, também estabelece relações de causa e efeito
entre os males da civilização romana e tais insurgências. A descrição
que faz dos bagaudas traça um paralelo entre aqueles que buscam
exílio entre os bárbaros e os que optam em se tornar bagaudas
(Salviano de Marselha. De Gubernatione Dei 5.5). Mas a impressão
que o texto dá é que, enquanto os primeiros são de origem nobre,
os bagaudas são uma das opções das classes subalternas. O termo
que Salviano utiliza nesse caso é humiliores, pois imediatamente
após definir os bagaudas como romanos expulsos da romanidade,
afirma:

E assim, portanto, acontece com quase todos os


pobres (humiliores); pois são reduzidos por uma
coisa a duas bem diversas: uma suprema violência
exige que desejem aspirar à liberdade, mas a mesma
violência os compele a querer o que não os permite
poder [fazer] (5.7).

350
Em seguida Salviano explica como alguns desses humiliores,
que ele também chama de pauperes, optam pelo exílio por causa
tanto dos pesados impostos, quanto da manipulação adicional
que os ricos locais fazem dos impostos extraordinários e isenções
(5.7). E mais à frente, em lugar de ir para os bagaudas, podem
também optar por se tornar protegidos de proprietários mais
ricos, abdicando de suas propriedades e assim se tornando o que
ele chama de coloni. Mas é significativa a ênfase que Salviano dá
nessa descrição à ilegalidade de tal transformação e à imoralidade
dela, quando a delineia como uma caridade aos pobres que é
vendida pelos ricos (5.8). A impressão que fica, portanto, é que,
embora ele fale da categoria ampla dos humiliores, Salviano associa
os pequenos proprietários à fuga aos bagaudas.
Posteriormente a De Gubernatione Dei, outro texto que
menciona os bagaudas é a Crônica de 452, de um autor anônimo
e que, no entanto, acrescenta mais uma possibilidade, a de que os
bagaudas sejam escravos.

A Gália profunda, tendo seguido Tibato, líder da


rebelião, abandonou a sociedade romana; lugar
inicial a partir do qual, quase todos os servos das
Gálias conspiraram em direção à Bagauda (Chronica
Gallica de 452: a.435).

O termo utilizado é servitia, cuja tradução imediata para o


português seria o coletivo de escravos, mas poderia também ser
uma referência pejorativa ao conjunto de trabalhadores rurais.
Muitos autores leram assim esse trecho. Penso que uma leitura
literal, entendendo que os bagaudas sejam todos escravos, porém,
entra em contradição com quase todas as outras menções aos
bagaudas ou a essas revoltas. Contudo, acho que não é necessário
exagerar os dilemas impostos por este trecho. O que ele diz é
que a Gália profunda (minha tradução livre para Galia ulterior,
termo não encontrado em nenhum outro lugar), isso é, o conjunto
de habitantes daquela região, abandonou a sociedade romana

351
e então quase toda a servitia das Gálias passou a conspirar para
acompanhar os bagaudas. Assim, seja lá como se traduza servitia
(só escravos, incluindo os coloni ditos semilivres, ou incluindo
todos os camponeses em processo de degradação social), este
termo não se refere necessariamente aos bagaudas, mas à sedução
que a rebelião ocorrida na Armórica exerceu sobre os membros das
classes subalternas do resto das Gálias.
O mesmo Tibato e a referência à Armórica são mencionados na
Vida de São Germano (28;40), escrita entre 475-480 por Constâncio
de Lion. Eles aparecem também no contexto da rebelião na região.
E a rebelião é um evento estruturador da narrativa da segunda
parte da obra, pois Germano realiza uma viagem até Ravenna para
pedir perdão ao Imperador pelos revoltosos, a fim de impedir que
o General Aécio, ofendido pela insolência e orgulho dos habitantes
da Armórica, destruísse a região usando os exércitos dos alanos.
Aqui, novamente não há menção clara à composição social dos
revoltosos e o termo que Constâncio de Lyon usa para descrevê-los
é populus, além disso não se menciona o termo bagaudas, embora
seja difícil negar que seja o mesmo evento relatado na Cônica de
452.
E por fim, na Crônica de Hidácio, em cidades da Tarraconense,
na região do rio Ebro, o termo bagaudas é usado sem que nenhuma
explicação seja dada ao seu significado, e nenhuma definição
adicional acompanha sua menção, embora seu contexto de uso
seja o de ações violentas de pessoas de baixo estatuto social, já que
estão sempre presentes as ideias de audácia e insolência. É como se
o autor entendesse que bagaudas fosse uma categoria de sentido
imediato para os seus leitores.6
Assim, em todas essas ocorrências de bagaudas ou de menções
a revoltas que podem ser a elas associadas, a impressão que tenho
é que se trata de uma composição social heterogênea, que pode
envolver em princípio trabalhadores rurais livres, mas que exerceu
alguma espécie de sedução sobre os trabalhadores rurais não livres.

6
Hydatius Cronica (Galliciae, c 468): 125, 128, 141, 142, 158.

352
Tal impressão poderia ser reforçada com as descrições presentes
na poesia De Redito Suo de Rutílio Namaciano e na comédia
Querolus, que, porém, apresentam uma associação um pouco mais
discutível à temática dos bagaudas por causa de sua difícil datação
e corrupção nos manuscritos.
Passando agora para as descrições dos circunceliões, a
documentação apresenta um conjunto bem maior de textos, e os
que mais diretamente nos concernem, por estarem mais próximos
dos eventos, são os de Optato, Agostinho e Possídio.7 Uma
dificuldade a mais relativa aos circunceliões está no esforço dos
autores que os descrevem em classificá-los como hereges. Esses
textos foram escritos em meio à disputa que ocorreu na África entre
o que se poderia chamar de dois partidos cristãos, os donatistas
e os cecilianistas. Os donatistas eram defensores de uma maior
ênfase na santidade do martírio e na desconfiança das relações
entre Império e Igreja; e os cecilianistas, que se autointitulam na
documentação produzida por eles mesmos como os “católicos”,
sentiam-se mais confortáveis com a proximidade ao Império e
defendiam uma menor ênfase na santidade do martírio e maior
ênfase na unidade da hierarquia da Igreja.8 A documentação que
temos sobre essa disputa é quase toda do partido cecilianista e nela
a associação com os circunceliões é um dos eixos fundamentais de
difamação dos donatistas.
A menção mais antiga aos circunceliões está na obra Contra
Donatistas de Optato, bispo de Milevis, publicada entre as décadas

7
Estou desconsiderando o trecho atribuído a Ticônio, e as menções de autores
não africanos seguindo a problematização e recusa destes textos feita por Brent
Shaw, cf. SHAW, Brent D. Who were the Circumcellions? In: MERRILLS,
A. (org.) Vandals, Romans and Berbers. Ashgate: Aldershot, 2004. pp. 227-258.
8
A síntese mais célebre está no estudo de W.H.C. Frend, cf. FREND, W.H.C.
The Donatist Church. Oxford: Oxford University, 1951. Uma crítica recente à
simpatia dos autores modernos pelos cecilianistas é o estudo de Maureen Tilley,
cf. TILLEY, Maureen. The Bible in Christian North Africa. The Donatist World.
Minneapolis: Fortress, 1997.

353
de 360 e 380: “[...] pelos locais vizinhos e por todas as feiras enviou
arautos, chamando pelo nome circunceliões agonísticos” (Optato de
Milevis, Contra Donatistas 3.4).
Quando Optato acusa os donatistas de convocar os
circunceliões, essa convocação se dá em feiras (nundinae), o que
significa que esse deve ser o local onde mais comumente seriam
encontrados. E, embora não haja nenhuma outra menção clara de
suas origens sociais, o caráter rural do movimento aparece na sua
descrição das ações subversivas deles. Optato descreve as ameaças
que esses circunceliões agonísticos ofereciam à ordem social, tais
como a expulsão de credores das regiões dominadas por eles,
assim como episódios de inversão da posição social de senhores
e escravos. Isso é colocado lado a lado com práticas de martírio
suicida, nas quais estes se jogariam de precipícios ou forçariam
viajantes em estradas a os assassinarem (Optato, Contra Donatistas
3.4). Essas três características serão repetidas à exaustão na obra de
Agostinho, do fim do séc. IV à terceira década do V, e por fim, eles
são repetidos na Vida de Agostinho escrita por Possídio na década
de 430 (o que não há em Optato são os trechos ambíguos que
permitem a interpretação de que sejam monges errantes, presentes
em um sermão de Agostinho e na biografia dele feita por Possídio).
Nas menções presentes na obra de Agostinho, junto com
as descrições de ações subversivas contra os ricos e credores, das
ações violentas contra bispos cecilianistas e das acusações de que
praticavam um martírio autoinfligido, o termo audacia rusticana
é frequentemente usado, mesmo quando as ações são realizadas
em contexto urbano. Enquanto que Possídio, além de repetir o
programa agostiniano, curiosamente também os descreve como
“bacantes pelos campos e grandes propriedades” (Possídio, Vita
Sancti Agostini 12).
Optato os chama de circunceliões agonísticos (circumcelliones
agosnitici). Quanto a agonistici, em um texto de Agostinho
(Enarrationes in Psalmos, 132.6), ele explica que é o termo pelo
qual os bandos violentos a serviço dos donatistas prefeririam ser

354
chamados, em lugar de circunceliões, enfatizando sua disposição
em lutar por Deus como soldados de Cristo. Por outro lado,
Agostinho em Contra Gaudentium (1.28.32) explica que são
circumcelliones porque vagam ao redor (circum) das cellas rusticanas.
E a maior dificuldade para as interpretações foi causada por
diferentes tentativas de dar sentido a cella, que pode significar
desde despensa de bebida, comida, até um santuário. Na tentativa
de dar uma resposta a isso, Frend9 demonstrou o uso desse termo
como túmulo dos mártires africanos, o que constituiu uma das
bases da interpretação de que os circunceliões fossem monges
errantes violentos. Essa leitura é muito difícil de conciliar com o
conteúdo de uma lei dirigida ao combate contra o donatismo. Na
lei 16.5.52 de 412 do Código Theodosiano, os circunceliões são
descritos como uma espécie de ordem passível de multa se não
deixassem de ser hereges, localizando-se logo abaixo de plebeus na
hierarquia de multas, mas não sofrendo as punições corporais que
seriam comuns para ordens sociais não livres. A partir dessa lei, há
outra vertente de interpretação que pensa os circunceliões como
trabalhadores temporários livres que eram contratados em feiras
para o trabalho da colheita.10 Recentemente Brent Shaw resgatou
tal leitura demonstrando que o uso da palavra cella em Agostinho
quase sempre coincide com despensa de bebidas e propôs que o
lugar de contratação dessa mão de obra temporária seria adegas
rurais, geralmente localizadas nas feiras (Shaw, 2011, p. 630-
674).11 E é exatamente por causa desse sentido de cella proposto
por Shaw ter sido confirmado pelo estudo do uso recorrente do
termo na obra do próprio Agostinho é que tendo a aceitar essa

9
FREND, W.H.C. The Cellae of the African Circumcellions. Journal of
Theological Studies, vol. 3, 1952.
10
SAUMAGNE, Charles, op. cit..; DIESNER, Hans-Joachim. Kirche und
Staat in spätrömischen Reich: Aufsätze zur Spätantike und zur Geschichite der alten
Kirche. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1963.
11
SHAW, Brent D. Sacred Violence. African Christians and Sectarian Hatred in
the Age of Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

355
leitura. E como demonstra Shaw, entender a palavra circunceliões
dessa forma permite inclusive enriquecer as referências feitas por
Agostinho às bebedeiras desses homens, e principalmente o uso do
termo bacantes por Possídio.
E como fica então a definição das origens sociais desses
rondadores de adegas? Ora, esse tipo de trabalhador itinerante,
ao mesmo tempo em que não está desempenhando um trabalho
integral de produção agrária típica de camponeses arrendatários ou
pequenos proprietários, é característico de sociedades camponesas
com algum excesso de mão de obra. Algo que não parece ser difícil
de imaginar no contexto social da produção rural africana dos séc.
IV e V.
Olhando para os dois conjuntos documentais, com exceção
talvez do De Gubernatione Dei de Salviano, não é possível extrair
deles nenhuma descrição direta das condições sociais dessas duas
revoltas, mas quando os termos utilizados para se referir tanto
aos bagaudas quanto aos circunceliões são postos no contexto
geral das representações documentais e dos estudos a respeito das
regiões agrárias da Gália e da África, fica difícil negar o caráter
camponês de ambos os grupos. No entanto, outro problema
surge ao se tentar operar essa contextualização. E esse problema
é a incompatibilidade da historiografia sobre essas revoltas com
as transformações pelas quais passaram nas últimas décadas os
estudos sobre as relações de trabalho e condições sociais das classes
rurais trabalhadoras dentro do Império Romano. Uma das maiores
dificuldades em lidar com a historiografia já estabelecida sobre
bagaudas e circunceliões é que a maior parte dos autores escreveu
a partir de paradigmas e modelos anteriores às mudanças recentes
na historiografia atual sobre o mundo agrário romano tardio. Por
isso, os modelos de sociedade romana e de cenário agrário com
os quais essa historiografia trabalha entram em choque com as
investigações das últimas três décadas.
Por um lado, do ponto de vista dos debates estabelecidos na
historiografia sobre o fim do Mundo Antigo, estes estudos são

356
profundamente marcados pela ideia de colonato e patrocínio, noções
que têm sido duramente criticadas nas últimas décadas. Por outro,
houve uma série de desdobramentos no campo da arqueologia das
zonas rurais romanas que ainda não foi incorporada nos modelos
de sociedade que se aplicam à Antiguidade Tardia, principalmente
no que concerne às classes subalternas nas zonas rurais (o mesmo,
por exemplo, não é o caso dos pobres urbanos, cuja compreensão
das condições de vida é um pouco mais bem estabelecida).
Uma mudança semelhante na historiografia aconteceu com o
paradigma do Mundo Antigo como um sistema escravista. Muito
em conta do avanço da arqueologia nesse campo, a historiografia
desconfia da ideia de escravidão como única forma de relação
de produção no Mundo Antigo, agora reconhecido como muito
mais heterogêneo no que concerne às formas de trabalho rural.
Por outro lado, a ideia de uma crise da escravidão começando no
séc. III também não é mais tão aceita como o fora (sendo parte
fundamental tanto da visão marxista, quanto da weberiana do fim
do Mundo Antigo).12
Pretendo aqui delinear um esboço simples das mudanças que
aconteceram na historiografia. A instituição do colonato romano,
até o começo dos anos 1980, era um terreno consensual entre os
historiadores do Império Romano tardio.13 Talvez a expressão

12
Para uma discussão dessas mudanças cf. WICKHAM, Chris. Framing the
Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean 400-800. Oxford: Oxford
Univesity Press, 2005; GIARDINA, Andrea. Marxism and Historiography:
Perspectivs on Roman History. In: WICKHAM, Chris. (org.) Marxist History
Writing for the Twentieth-First Century. Oxford: Oxford University Press, 2007.
pp. 15-31 e WICKHAM, Chris. Memories of Underdevelopment: What Has
Marxism Done for Medieval History and What Can It Still Do? In: Marxist
History Writing for the Twentieth-First Century. Oxford: Oxford University
Press, 2007. pp. 31-48. Na academia brasileira, cf. GUARINELLO, Norberto
Luiz. Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano.
Revista Brasileira de História, vol. 24, n. 48, 2004. pp. 13-38 e JOLY, Fabio. A
escravidão na Roma Antiga. São Paulo: Alameda, 2005.
13
A bibliografia sobre a história moderna da ideia de colonato romano pode

357
mais clara do conteúdo desse consenso seja o artigo de Jones sobre
o colonato romano.14 O colonato seria dessa perspectiva uma
instituição legal criada pelo Império ao longo do séc. IV e teria
prendido parte dos camponeses à terra. O principal debate em
torno do colonato é se este fora criado de cima para baixo pelos
imperadores, ou se fora um reconhecimento posterior de relações
de patronagem estabelecidas entre os grandes proprietários e
seus arrendatários ou antigos pequenos proprietários que teriam
perdido suas terras.
No entanto, um debate sobre a real validade dessa instituição
foi inaugurado com um artigo relativamente curto de Jean-Michel
Carrié (Le “colonat du Bas-Empire”: un Mythe Historiographique?,
1982).15 Neste artigo, Carrié atacou os fundamentos ideológicos
por trás da criação historiográfica dessa instituição nos séc.
XVII, XVIII e XIX. Centrando fogo principalmente em Fustel
de Coulanges e seu projeto historiográfico, Carrié defendia que
os historiadores do séc. XIX transformaram em uma instituição
do passado romano o que teria sido claramente uma invenção de
historiadores modernos.

ser encontrada em CLAUSING, Roth. The Roman Colonate. The Theories of


its Origins. New York: Columbia University, 1925; CARRIÉ, Jean-Michel.
Un roman des origines: les généalogies du “colonat du Bas-Empire”. Opus. n. 2,
1983. pp. 205-51. MARCONE, Arnaldo. Il colonato tardoantico nella storiografia
moderna (da Fustel de Coulanges ai nostri giorni). Como: Edizioni New Press,
1988; GILIBERTI, Giuseppe. Servi della terra: ricerche per una storia del colonat.
Torino: G. Chiapelli, 1999.
14
JONES, A.H.M. The Roman Colonate. Past & Present, n. 13, 1958, pp. 1-13.
A presença do colonato aparece ainda mais desenvolvida no seu grande estudo
sobre o Império Romano tardio, cf. JONES, A.H.M The Later Roman Empire.
284 –602. Baltimore: Johns Hopkins, 1992. Desenvolvendo as hipóteses
de Jones, cf. STE. CROIX, G.E.M. de. The class strugle in the Ancient Greek
World. Ithaca: Cornell University, 1998 e FINLEY, Moses I. Ancient Economy.
Berkeley: University of California, 1999.
15
CARRIÉ, Jean-Michel. Le «colonat du Bas-Empire»: un Mythe
Historiographique? Opus, vol. 1, 1982, pp. 351-371.

358
Em um segundo artigo, Carrié16 buscou demonstrar que não há
nada nas fontes legais do fim do Império que sustentasse a visão de
que a palavra colonatus significasse uma espécie de semiescravidão.
A legislação teria apenas o objetivo de garantir a continuidade fiscal,
isto é, que os camponeses se mantivessem trabalhando nas terras
às quais estavam associados nas listas de cobranças de impostos.
Por isso, claramente ligado às necessidades das reformas fiscais
da Tetrarquia, “o colonato” das leis também não teria sua origem
em relações diretas de patronagem entre os grandes proprietários
de terras e os camponeses, fossem ex-pequenos proprietários,
arrendatários ou escravos. O colonato presente nas fontes legais
não parecia também atender aos desejos aristocráticos de controle
do trabalho agrário, e todas as limitações sobre as liberdades
dos camponeses e trabalhadores livres poderiam ser claramente
associadas às exigências da taxação, não devendo ser extrapoladas
para fora desse contexto.
A crítica de Carrié não foi nem imediatamente,17 nem
integralmente aceita, mas iniciou um processo de desconstrução
dessa teoria do colonato e seu impacto em longo prazo resultou
num cenário no qual “a Historiografia sobre o ‘colonato’ romano está
mais fragmentada do que nunca”, nas palavras de Walter Scheidel
em um artigo-resenha de 2000, que ao analisar dois livros sobre
o colonato,18 fazia uma boa apresentação do estado da questão

16
CARRIÉ, Jean-Michel. Un roman des origines: les généalogies du «colonat
du Bas-Empire». Opus, vol. 2, 1983, pp. 205-51.
17
Para uma resposta indignada ver Arnaldo Marcone, cf. MARCONE, Arnaldo.
Il colonato del Tardo Impero: um mito storiografico? Athenaeum, vols. III-IV, n.
63, 1985, pp. 513-520.
18
MIRKOVIĆ, Miroslav. The Later Roman Colonate and Freedom. Philadelphia:
Transactions of the American Philosophical Society, vol. 87, 1997 e LO
CASCIO, Elio. Terre, proprietari e contadidni dello’impero romano. Roma: La
nuova Italia Scientifica, 1997. Além desses há também: MARTINO, Francesco
de. Il colonato fra economia i diritto. In: SCHIAVONE, A. (org.) Storia
di Roma. vol. III. Torino: Giulio Einaudi, 1993. pp. 789-822; MARCONE,
Arnaldo. Il lavoro nelle campagne. In: SCHIAVONE, A (org.), op. cit., pp.

359
na época. De acordo com Scheidel, esse cenário fragmentado
corresponde à tentativa de adequar os antigos debates sobre o
colonato romano à desconstrução proposta por Carrié.
Em meio a tal fragmentação, Cam Grey19 defende a busca
de consenso na historiografia, mas propôs a consolidação da
interpretação da fixação dos camponeses como um instrumento
puramente fiscal, de longo processo de implementação, com boa
parte das leis respondendo mais a problemas locais e imprevistos
e com um impacto social profundamente variado quando se olha
para o todo do Império Romano. Complementarmente, propõe
observar as oportunidades abertas à iniciativa dos camponeses
(individual ou coletiva), que poderiam tirar proveito da mudança
na legislação, por exemplo, colocando possíveis poderosos uns
contra os outros20. Chris Wickham21, por sua vez, defende que
essas leis pudessem ser utilizadas para reforçar as relações de
dominação direta no campo. Assim, mesmo que ele concorde
com a perspectiva de que os objetivos de criação da legislação do
colonato sejam puramente legais, defende que elas poderiam ser
apropriadas em favor dos interesses dos grandes proprietários. O
que me parece ser comum aos dois autores, porém, é a consciência
de uma variação determinada pelas condições das comunidades
locais nisso que, por muito tempo, os historiadores se acostumaram
a chamar de estatuto pessoal do colonato.
Paralelamente a isso, também foi retomada outra discussão
diretamente relacionada: o debate sobre a patronagem no Império

823-843; SIRKS, Boudewjin. The Farmer, the Landlord and the Law in the
Fitfth Century. In: MATHISEN, R. W (org.). Law Society and Authority in
Late Antiquity. Oxford: Oxford University, 2001; VERA, D. Morfologie Sociale
e Culturali in Europa fra tardo antiquitá e alto medioevo. Settimana di studio del
centro italiano sull alto meioevo, n. 45, 1998, pp. 293-345.
19
GREY, Cam. Constructing Communities in the Late Roman Countryside.
Cambridge: Cambridge University, 2011, p. 159.
20
Id., pp. 206-212.
21
WICKHAM, C. op. cit. pp. 521-527.

360
Romano e a ideia do surgimento ou fortalecimento da instituição
do patronato rural e das leis de Patrocinium na Antiguidade Tardia.
Assim, de forma muito similar ao desenvolvimento da ideia de
colonato como instituição, um consenso surgiu entre o final do
séc. XIX e meados do XX de que teria acontecido no final do
Império Romano um processo de fortalecimento das relações de
patronagem rural22. Este consenso foi construído a partir, de um
lado, de um conjunto de leis do Código Theodosiano batizado
de De Patrociniis Vicorum e uma lei posterior presente no Código
Justiniano, do outro pelos relatos de Libânio sobre a situação rural
na Antioquia e de Salviano sobre a situação rural na Gália.23
Um dos pontos centrais para essa visão anterior é muito
provavelmente a natureza das fontes. A investigação histórica
sobre o patronato romano urbano, que pode aparecer inicialmente
sob o nome de patrocinium, clientes, e posteriormente como
suffragium,24 lida com as redes de clientes dos aristocratas romanos,
fundamentalmente na cidade de Roma, e progressivamente passa
a tratar de temáticas talvez semelhantes, como a relação de alguns
senadores com cidades inteiras que pode aparecer no linguajar
do patronato. Nas fontes desse período, contudo, são raríssimas
as menções ao patronato rural. Mas quando a documentação
na Antiguidade Tardia passa a apresentar algumas menções,
como as de Libânio ou Salviano, a temática do patronato acaba
sendo transplantada para esse cenário. Assim, o debate sobre
as relações de patronagem, que até o Alto Império aparece
fundamentalmente em textos que se referem ao cenário urbano,
teria sido posteriormente projetada sobre as relações rurais no
Império Tardio. Um dos pontos de partida de boa parte dessas
críticas é o estudo sistemático realizado por Krause25.

22
GREY, C. op. cit., pp. 5-7 e 206-212.
23
CTh XI.24 (360-415; CJ); CJ. XI.54.I; Libanius, Orationes, XLVII; Salvianus,
De Gubernatione Dei V.8.38.
24
STE. CROIX, G. E. M de. Suffragium: From Vote to Patronage. British
Journal of Sociology, vol. 5, 1954, pp. 33–48.
25
KRAUSE, Jens-Uwe. Spätantike Patronatsformen im Westen des Römischen
Reiches. München: C.H. Beck, 1987.

361
A outra questão que se passou a colocar contra este
fortalecimento do patronato rural no Império tardio é também
similar a críticas que se tem feito à teoria do colonato. Autores
mais recentes fazem objeção à generalização do conteúdo das leis
ou dos relatos de Libânio e Salviano para o Império como um todo.
Essa crítica à generalização foi acompanhada de uma suspeita das
agendas ideológicas orientadoras dos relatos mais substanciosos,
como no caso de Libânio.26 E finalmente, há autores que também
buscam demonstrar a centralidade da orientação fiscal das
leis que organizam as relações de patronato, de forma similar à
problemática do colonato.27
Assim, a ideia de que esta legislação específica sobre o
patronato expressasse um processo de fortalecimento das relações
de patronagem também hoje é contestada e a historiografia,
fragmentada. Alguns autores passaram a defender que as relações
de patronato se mantiveram tão sólidas como eram no Alto
Império, negando qualquer fortalecimento.28 E já outros autores
passaram a ver essa legislação também como um sinal de crise das
relações de patronagem rural, causada pela presença de outros
personagens poderosos na figura de líderes das comunidades
nas zonas rurais romanas, como bispos e santos, ou por outras
opções de trajetória dos camponeses (como a fuga para territórios

26
CARRIE, Jean-Michel. Patronage et propriété militaire au IVe s.: Objet
rhétorique et objet reel du discours sur les patronages de Libanius. BCH, vol.
100, 1976, pp. 159-76.
27
GREY, Cam. Constructing Communities in the Late Roman Countryside.
Cambridge: Cambridge University, 2011. pp. 209-212.
28
GARNSEY, Peter, e WOOLF, Greg. Patronage of the rural poor in the
Roman world. In: WALLACE-HADRILL, Andrew. Patronage in Ancient
Society. London,: Routledge, 1989; WHITTAKER, C.R. Rural labour in
Three Roman Provinces. Land, City and Trade in the Roman Empire. Aldershot:
Variorum, 1993, pp. 73-99; WHITTAKER, C.R. Landlords and warlords. In:
RICH, J.; SHIPLEY, G. (org.) War and society in the Roman world. London:
Routledge, 1995. pp. 277-302.

362
controlados pelos bárbaros ou pelos bagaudas)29. Espero, assim,
ter ficado claro que a existência dessas duas instituições não pode
mais ser inocentemente aceita hoje como era há alguns anos.
A partir da exposição acima de que é possível definir as origens
sociais dos revoltosos como camponeses, mas que a especificação das
condições sociais e de trabalho deles depende da contextualização
dessa documentação das revoltas em relação a uma historiografia
mais ampla das classes subalternas rurais, e também partindo da
problematização recente dos modelos historiográficos anteriores
das relações de trabalho no campo romano e da constatação de que
a grande maioria dos autores sobre esses dois grupos revoltosos
usa esses modelos anteriores, penso que uma situação bem curiosa
se apresenta: a especificação dessas condições sociais e de trabalho
pode variar radicalmente dependendo do modelo que se adote.
Isso também terá profundas implicações sobre uma discussão
derivada a respeito das causas e motivações das revoltas. A guisa
de conclusão, tenho pensado em interpretar as condições sociais
originais dos bagaudas e circunceliões a partir do modelo proposto
por Chris Wickham30 de que haveria uma crise de hegemonia
nas relações de trabalho rural nas regiões ocidentais do Império
Romano, de maneira que as insurgências desses dois grupos
possam ser pensadas como expressões dessa crise, o que implicaria
retroceder no entanto essa crise para o séc. IV. Os estudos mais
recentes de John Drinkwater sobre os bagaudas e o trabalho de
Leslie Dossey sobre o campesinato africano vão nessa direção, mas
a demonstração disso fica para outra oportunidade31.

29
DRINKWATER, John. Patronage in Roman Gaul and the problem of
the bagaudade.In: WALLACE-HADRILL, A. Patronage in Ancient Society.
London: Routledge, 1989.
30
WICKHAM, Chris, Framing…, op. cit., passim.
31
DRINKWATER, John. The Bacaudae of the fifht-century Gaul. .ELTON, H.
& DRINKWATER, J. (org.) Fifth-Century Gaul: a crisis of Identity? Cambridge:
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