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O DESPOTISMO ESCLARECIDO

Ao contrário do que se verificou na monarquia absolutista francesa do século XVIII, houve


diversos Estados absolutistas nos quais os respectivos monarcas e seus ministros tentaram de
alguma forma pôr em prática certos princípios da Ilustração, sem abrir mão, é claro, do próprio
absolutismo - tal foi, em essência, o absolutismo ilustrado.

Convém chamar a atenção do leitor para a sinonímia que estabelecemos entre despotismo
esclarecido, absolutismo ilustrado e governo ilustrado apenas para facilitar a própria exposição.
Na realidade, a expressão mais correta é absolutismo ilustrado, exatamente porque, ao
associar duas noções básicas - a de absolutismo e a de ilustração -, permite marcar as
diferenças essenciais entre o fenômeno ao qual remete e a ilustração política, esta sim, a
verdadeira herança política do iluminismo, apropriada pelas correntes e ideológicas do século
XIX - liberalismo, democratismo, socialismo - e viva ainda em pleno século XX.

No absolutismo ilustrado, a principal mudança operada no campo da teoria política do


absolutismo clássico consiste na redefinição da natureza do poder do príncipe, ficando intacto
o Estado em si. Trata-se de modificar os métodos e objetivos da ação do Estado, através da
ampliação da esfera da governamentalidade, a qual se expressa, em nível ideológico, pela
afirmação de que o príncipe é apenas "o primeiro servidor do Estado"; algo bem diverso,
portanto, daquela afirmação geralmente atribuída a Luis XIV - "L'État c'est moi". Agora, o
Estado não existe apenas para o príncipe; ele existe, sim, para atender às necessidades,
aspirações e interesses de todos os súditos, ideal esse que se traduz através da noção de
felicidade pública.

O modelo comum a todos os indivíduos ou grupos que, nas monarquias absolutistas do século
XVIII, propugnavam por formas mais eficientes e justas de governo, era a Inglaterra. Mas muito
mais em função das realizações materiais e políticas do que pelas práticas administrativas e
pela teoria constitucional desse país. A especulação política reformista no continente centrava-
se na concepção do príncipe benevolente e iluminado. Seus principais adeptos foram os
enciclopedistas, especialmente Voltaire e Diderot, cuja anglofilia levava-os a elogiar as
liberdades inglesas e a sabedoria do seu sistema político, mas sem ver perspectiva de governo
constitucional para os outros países senão num futuro muito distante, ao longo de um caminho
que passava necessariamente pela monarquia ilustrada. Apesar de confiarem no progresso,
eram cautelosos quanto às consequências indesejáveis de mudanças radicais, capazes de
colocar em perigo a propriedade e a hierarquia social: "Somos todos iguais como homens, mas
não somos iguais na sociedade"(Voltaire). A subversão da ordem, a revolução política e social
deviam ser temidas pois trariam o povo à tona dos acontecimentos, e esse povo, sem
instrução, embrutecido, entregue apenas aos seus próprios instintos, não passava de uma ralé,
uma canaille, que deveria ser mantida no "seu lugar". Diderot é um exemplo típico desse
pensamento: por um lado, um moralista sentimental, o que o aproximava de Rousseau no ódio
aos privilégios e na preocupação em remediar as desigualdades sociais, e, por outro, um
admirador de "despotismo legal", que esperava o progresso vindo "de cima" e pregava o
respeito às leis existentes, condicionando a cidadania à propriedade: "É a propriedade que faz
o cidadão: todo aquele que tem propriedades no Estado é interessado no Estado..."
Em resumo, o que se pretendia era a conciliação racional da autoridade com os direitos
naturais e a liberdade civil. O Estado é necessário e o próprio absolutismo pode ser tolerado.

A nós parece evidente que os "filósofos" oscilavam com frequência entre suas simpatias (ou
interesses) pessoais e suas convicções racionais, entre o apego àquilo que, embora imperfeito,
era conhecido - a tradição monárquica identificada com a ordem - e o ideal utópico da
perfeição, que era o desconhecido e o incerto - as exigências do individualismo em ascensão.
Explica-se talvez desse modo que suas reivindicações quanto ao governo ilustrado possam ser
contraditórias ou, pelo menos, de difícil conciliação: autoridade absoluta do príncipe e
liberdade de pensamento em todos os campos, aí incluída a liberdade de sua manifestação
através da imprensa; manutenção da ordem e a exigência da liberdade de associação e de
crítica às inquietações e às práticas econômicas e políticas; defesa do pacifismo e elogio aos
príncipes constantemente envolvidos em guerras e disputas diplomáticas. Em síntese: não se
contesta a monarquia absoluta em si mesma; impõe-se apenas que seja Iluminada, isto é,
inovadora, racional, dirigida por um príncipe esclarecido, um verdadeiro filósofo - alguém que
admire e ouça os conselhos filosóficos ou, melhor ainda, que tenha sido educado por um
filósofo desde cedo - é a antiga questão da educação do príncipe adaptada agora ao espírito
das "luzes". Somente assim, pensava-se, o absolutismo adquiriria um caráter policiado:
reformista, civilizador, inimigo dos privilégios absurdos, do obscurantismo clerical e do
parasitismo aristocrático.

(...) Para terminarmos, é preciso que avaliemos o "despotismo esclarecido" em si mesmo, pelo
que pretendeu realizar e pelo que efetivamente realizou; mas é forçoso também que o
avaliemos no contexto mais geral do processo histórico como um todo.

Avaliado em si mesmo, o "despotismo esclarecido" revela à curiosidade do leitor uma variada


gama de princípios e práticas, de intenções e realizações, que desvendam continuidades e
descontinuidades, heranças e rupturas, êxitos e fracassos. Para a tradição historiográfica, trata-
se do domínio por excelência dos grandes "heróis"- príncipes e ministros.

(...) Afinal, como se salda esse "despotismo"? No plano do governo e da administração, em


busca da racionalização e da centralização, através dos avanços da burocracia, os progressos
foram em geral significativos, principalmente quanto às finanças, aos exércitos, à ampliação da
esfera de competência do Estado e à organização da justiça. Cooptando ou neutralizando a
nobreza, reduzindo o poder eclesiástico, modernizando aquilo que era possível, o reformismo
ilustrado lutou sempre contra os fantasmas da corrupção e da incompetência. E nem sempre
foi vitorioso. Sua atuação foi bem maior no nível do poder central, uma vez que no nível local
foi preciso fazer concessões maiores e menores aos respectivos poderes tradicionais. Em
relação ao campesinato, grandes foram talvez as intenções mas foi também aí que se colheram
os maiores reveses, ao menos do ponto de vista "filosófico". Na economia, a agricultura foi
bafejada pelos ventos da fisiocracia, sem que com isso tenha realmente sofrido mudanças
sensíveis, dado o imobilismo persistente de suas estruturas. O comércio e as manufaturas
assinalam, praticamente por toda parte, realizações significativas, embora sob a inspiração
ainda do mercantilismo em muitos casos. As burguesias mercantis e, em escala menor, as
burguesias manufatureiras cresceram, prosperaram e enriqueceram, arrastando na sua esteira,
em vários casos, segmentos maiores ou menores da própria aristocracia.

Talvez possamos localizar nos planos pedagógico, cultural e assistencial algumas das
realizações mais importantes e duráveis do reformismo ilustrado como um todo.
Principalmente, cremos nós, se aí situarmos também as medidas em prol da tolerância
religiosa e aquelas destinadas a suprimir ou diminuir a presença eclesiástica no conjunto das
diversas sociedades por nós estudadas.

O fato essencial, todavia, é que, a despeito das reformas, ou justamente por sua causa, nem o
absolutismo nem a sociedade de ordens foram alterados, salvo talvez em termos de um
fortalecimento ainda maior. E é neste ponto que passamos à segunda avaliação referida logo
ao início destas conclusões.

A partir de uma perspectiva de conjunto, o absolutismo ilustrado coloca-se numa posição


marginal frente à ilustração política. Como já indicamos, a Ilustração política tem como
premissa a divisão entre o indivíduo e o súdito. A liberdade de consciência moral, reservada ao
primeiro, aos poucos adquire um caráter político, que implica a crítica ao Estado absolutista e,
em consequência, a sua negação.

É na França que a crítica iluminista atinge a plenitude da sua autoconsciência moral e revela
implicitamente a vacuidade das pretensões embutidas no dualismo em que se fundamentava o
poder do Estado absolutista, expondo a sua imoralidade iminente. Transcendendo a esfera
privada e passando à esfera da opinião pública - política por definição -, a crítica levada a cabo
pela burguesia tornava impossível, naquele país, o que identificamos como absolutismo
ilustrado.

Bem diversa é a questão quando a situamos no contexto das monarquias absolutas ilustradas.
Nessas monarquias não havia uma burguesia iluminista que pelo número, pelo poder
econômico e pela pujança intelectual pudesse se constituir, com sua crítica, em fator
desestabilizador do Estado absolutista. A crítica iluminista em tais Estados carecia da
densidade, enraizamento social e representatividade, vindo a desenvolver-se apenas no
interior das lojas maçônicas e, ainda assim, já quase ao findar o século. Sem embasamento
social, a crítica não poderia jamais converter-se dialeticamente em fator de crise do Estado
absolutista.

Preferimos a linha explicativa acima sintetizada àquela outra, mais difundida, segundo a qual a
principal razão das diferenças entre o que ocorreu na França e o que sucedeu nas demais
monarquias foi simplesmente uma consequência da insensibilidade ou falta de visão política
dos dirigentes franceses, ao contrário dos "déspotas esclarecidos" que, capazes de perceber as
ameaças e perigos iminentes, para evitá-los, avocaram a si a tarefa de pôr em prática, de cima
para baixo, as propostas iluministas. Tal "explicação" padece de diversos erros e equívocos,
constituindo o maior deles, talvez, a identificação que implicitamente estabelece entre duas
coisas totalmente distintas - as propostas de ilustração política e as propostas do absolutismo
ilustrado -, fazendo crer que a apropriação pelos "déspotas" e seus ministros de um parte dos
enunciados iluministas, na ordem do discurso, no plano da retórica, tenha representado algo
mais do que a simples instrumentalização dos tópicos da crítica iluminista que podiam ser
utilizados em benefício do fortalecimento do Estado absolutista - exatamente o alvo da referida
crítica.

Não é difícil compreender a distância que em geral separa o nível dos discursos ilustrados e as
realidades das práticas reformistas, sem que para isso seja necessário recorrer a explicações
que levam a supor o "despotismo esclarecido" como uma prática maquiavélica ou conspiratória
dos príncipes. Coube de fato ao Estado absolutista ilustrado assumir de forma genérica a
reivindicação moral iluminista em nome de um interesse geral ou "bem comum", do qual só o
próprio Estado era juiz. Foi esse mesmo "interesse público" que permitiu dar aparência nova às
estruturas já existentes, eliminando os elementos arcaicos inúteis, assegurando, em suma, a
sobrevivência do Antigo Regime. Pelo menos até a chegada das tropas da Revolução e do
Império.

Em síntese, o que desejamos deixar claro é que do nosso ponto de vista não havia como que
duas vias possíveis ao Estado absolutista: a da Reforma e a da Revolução. Daí o sem-sentido de
atribuirmos a uns a cegueira e a outros a clarividência por haverem escolhido o "mal menor".
Tal raciocínio é, quando muito, uma espécie de ensaio de "futurologia retrospectiva".

Fragmentos de FALCON, Francisco José Calazans

Despotismo Esclarecido

Ed. Ática - SP - 1996.

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