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A ilha sem fantasia

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BORIS FAUSTO

O Haiti tem um lugar na nossa realidade e na nossa imaginação, por várias razões. Entre elas, a
controvertida presença das tropas brasileiras na ilha, sob a bandeira da ONU, e a atração de
seus rituais de origem africana, que guardam parentesco com os nossos.

Além disso, podemos sempre nos consolar das mazelas nacionais abandonando a ambiguidade
proposta numa canção de Caetano e Gil, para afirmar, com boas razões: “O Haiti não é aqui”.

Entretanto o Haiti foi o primeiro país do continente americano a proclamar sua independência
pela via de uma longa insurreição de negros e mulatos (1804), que deixou profundas marcas
entre dominantes e dominados.

Assim, um sentimento de temor tomou conta dos senhores de escravos, do sul dos EUA ao Rio
de Janeiro, diante da possibilidade de que novas insurreições viessem a ocorrer, resultando, em
certos casos, no estabelecimento de controles ainda mais repressivos sobre a população
escrava.

Por outro lado, na região do Caribe, as notícias sobre a longa e vitoriosa insurreição haitiana
alentaram outras rebeliões, embora esmagadas, como ocorreu nas plantações de açúcar da
Venezuela.

Origem

Duas questões são básicas na história haitiana. Como se explica a “independência precoce” e
ainda mais pela forma como se deu? O que ocorreu, ao longo de dois séculos, para que o Haiti
se notabilizasse, tristemente, pela miséria e pela degradação? Neste texto, me dedico mais à
primeira questão e me limito apenas a algumas indicações sobre a segunda.

Nos últimos anos do século 18, a ilha Hispaniola, onde arribou Colombo, estava dividida em
duas partes geograficamente desiguais: uma a leste, sob domínio espanhol, e outra a oeste,
sob domínio francês. (ver mapa na pag. 49)

Haiti foi o nome ameríndio adotado pela ex-colônia francesa, substituindo a denominação
“Saint Domingue”, a partir da Independência, e que, para maior facilidade, vou doravante
utilizar.

Por volta de 1789, a então colônia era uma grande produtora de bens primários, a ponto de
suas exportações de café corresponderem à metade das exportações mundiais e as de açúcar
aproximarem-se das exportações combinadas de Brasil, Cuba e Jamaica.

Socialmente, a população haitiana compunha-se de quase meio milhão de escravos; cerca de


30 mil “pessoas de cor” livres ou libertas, em grande maioria mulatos, muitos deles
possuidores de plantações e de escravos; e algo em torno de 40 mil brancos  grandes
senhores num extremo e gente pobre no outro.

Personagens

A insurreição iniciada em agosto de 1791, nas plantações de açúcar, prolongou-se até


dezembro de 1803, envolvendo, de parte a parte, massacres e destruições em grande escala.
No curso da luta, ganhou grande destaque a figura de Toussaint L'Ouverture (a abertura, a
liberdade), cujo verdadeiro nome era Toussaint Bréda.

Filho de um príncipe africano escravizado e enviado para a ilha, Toussaint não era um rude
escravo, mas um liberto, membro respeitado da francomaçonaria, leitor de Maquiavel, senhor
de propriedades e de escravos, como mostra o livro de Madison Smartt Bell “Toussaint
Louverture – A Biography” (Pantheon Books, 352 págs., US$ 27. R$ 51), resenhado por David
Brion Davis em “The New York Review of Books”, de 31/5,, em que me apoio substancialmente.

Brilhante estrategista, Toussaint comandou as forças rebeldes, derrotando tropas invasoras da


Espanha e da Inglaterra. Afinal, preso numa cilada armada pelo general Leclerc, cunhado de
Napoleão, em 1803, quando sua vitória já se delineava, foi enviando à França, onde morreu
numa masmorra gelada, nas montanhas do Jura, pouco tempo depois.

Um conjunto de razões explica o êxito dessa guerra de independência igualitária e feroz.

Não necessariamente pela ordem de importância, destaquemos a elevadíssima concentração


de escravos em um pequeno território; a divisão entre os vários setores da população branca;
o papel desempenhado por Toussaint; uma conjuntura internacional favorável.

Sobre o último aspecto, lembremos que, na metrópole, os líderes da Revolução Francesa


(1789) ziguezaguearam em torno do problema haitiano, deixando de atuar como um poder
colonial unificado.

Papel negativo dos EUA

Por sua vez, os EUA durante a presidência de |John Adams [1789-1801], forneceram armas aos
rebeldes, com o objetivo de eliminar o poder da França nas Antilhas. Semelhante atitude
tiveram os espanhóis da parte leste da ilha (Santo Domingo), que cruzaram a fronteira e deram
apoio a Toussaint, em um primeiro momento.

O desastre haitiano posterior à Independência tem a ver, sem dúvida, com o papel negativo
desempenhado pelos EUA, que ocuparam o país entre 1915 e 1934, a pretexto de instaurar “a
lei e a ordem”, sem conseguir nem uma coisa nem outra.

Entretanto, ao mesmo tempo, é necessário considerar, guardadas episódicas exceções, a


incapacidade, a corrupção, a insensibilidade da elite haitiana, de que a família Duvalier [dos
presidentes François e Jean-Claude] é a pior, mas não a única, expressão.

O Haiti é um bom exemplo premonitório do que viria a acontecer em alguns países da África
pós-colonização: se o imperialismo tem aí grandes responsabilidades pela existência de um
quadro dramático, em toda a extensão da palavra, outros vilões concorreram e concorrem –
para a existência desse quadro.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico da Gacint (Grupo de Conjuntura
internacional), da USP. É autor de “A Revolução de 1930” (Cia. Das Letras).

Folha de São Paulo, domingo, 12/08/07

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