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Trabalho Final – América I

Lucca Dutra Santos de Castro


CCH – UNIRIO
Escola de História, terceiro período

O Silenciamento da Revolução Haitiana: impactos na América Latina e no mundo


oitocentista.

Os acontecimentos ocorridos em São Domingos no final do século XVIII e início do século


XIX tiveram influência marcante no continente americano majoritariamente colonial. O caso do
Haiti fora extremamente peculiar e, como disse Michel-Rolph Trouillot, um acontecimento
inconcebível até mesmo quando já havia acontecido. A revolução capitaneada por homens negros
ex-escravizados ou descendentes de escravizados tornou a porção ocidental da ilha o segundo país
independente do continente Americano, porém seu processo chocou muito mais do que aquele
ocorrido nas Treze Colônias britânicas.
Diferentemente da revolução americana, a haitiana fora comandada pelos subalternos, algo
impensável para a época, comandada por homens negros e realizada através da rebelião de diversos
escravizados de São Domingos. Após a independência se tornaram um governo da população negra
para a população negra, tendo um imperador negro ex-escravizado (Jean-Jacques Dessalines) e
tendo a escravidão abolida definitivamente em conjunto com a sua declaração de independência em
janeiro de 1804. Tal peculiaridade gerou uma indagação por parte das elites americanas e europeias,
como afinal os escravizados daquela colônia – tão importante para a economia francesa – se
sublevaram e conseguiram derrotar seus colonizadores bem como a Inglaterra e a Espanha e ainda
se manter independentes apesar dos embargos econômicos proporcionados pelas potências
europeias e os Estados Unidos? Essa questão parece ser inconcebível para muitos contemporâneos e
ainda estudiosos posteriores (como aponta Trouillot), dessa forma, o próprio registro desse
acontecimento, sob os olhos de periodistas e políticos contemporâneos, era de descaso, desprezo e
até em certa medida, temor. Esse temor de uma sublevação escravizada andava junto com o
desprezo, o silêncio sobre o acontecimento era quebrado apenas para tratá-lo como uma simples
insurreição, algo passageiro e não digno de preocupações (como tratado por Hipólito da Costa,
redator do Correio Braziliense) e assim omitido em detrimento da revolução (francesa) ocorrendo
na Europa, como sendo a única importante. Seja para criticar ou não, a revolução francesa era ainda
assim reconhecida como uma revolução e era amplamente falada, enquanto a haitiana era
sistematicamente omitida ou então não tratada com sua devida magnitude. Tal silenciamento da
memória da revolução haitiana se dá desde seus contemporâneos, sua importância na Era das
Revoluções é de grande magnitude, principalmente para o continente americano, porém, foi omitida
justamente por ser temida e dessa forma fora silenciada, tendo seu papel excluído da maior parte do
ensino básico (em comparação com as revoluções europeias) e de obras sobre o período, afinal, a
revolução haitiana não tem destaque no “Era das Revoluções” de Hobsbawn.
O ponto do silenciamento da memória da revolução haitiana está ligada aos acontecimentos
da revolução francesa, quase como se uma fizesse uma sombra na história da outra, sombra essa que
se mantém até hoje e só fora expressa sua ligação pela primeira vez com a obra Jacobinos Negros
de C.R.L James. Escrito em 1938, James apresenta uma visão muito mais ativa da revolução
haitiana, ligada à história social onde os seus atores principais são a massa popular escravizada que
se rebela contra o colonialismo, ingressando em lutas jurídicas por sua liberdade frente ao cenário
da sua metrópole revolucionária, integrando o contexto revolucionário do Haiti com a revolução
francesa. Como o próprio título indica, a revolução não se manteve apenas nas fronteiras da
metrópole. James entretanto atribui à revolução haitiana uma tentativa de buscar no passado um
movimento de massas que atendesse à sua perspectiva trotskista, que se distanciava do socialismo
presente na União Soviética de Stalin, resgatando assim outras experiências populares, no caso do
Haiti o combate à revolução burguesa, esta sendo não suficiente para a real emancipação das
massas.
Além de C.R.L James, Robin Blackburn estabelece uma relação entre os acontecimentos,
afinal os ideais iluministas e medidas do governo central tinham reflexos em São Domingos. Na
França revolucionária haviam aqueles que eram abolicionistas e apoiavam o movimento que ocorria
na colônia, alguns desses indivíduos constituíam o grupo Amis des Noirs, membros da ala mais
radical dos revolucionários (os jacobinos, lembrando a relação que C.R.L James apresenta)
apoiavam uma abolição da escravidão por completo e uma igualdade entre brancos e negros.
Entretanto, os Amis des Noirs eram um grupo bastante pequeno, ignorado e criticado também pelos
revolucionários conterrâneos, sendo mais um exemplo desse silenciamento.
Um exemplo notório de um francês apoiador do processo haitiano e abolicionista (embora
não fosse alinhado com o grupo já supracitado) foi o caso do Ábade Henri Gregóire que se tornou
uma espécie de mentor ideólogo da revolução haitiana, mantendo ligações com seu líder Toussaint
L’ouverture enquanto este era governador na ilha. Conforme exemplificado no artigo O Abade
Gregóire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século XIX do professor Marco Morel,
Gregóire já advertia que o processo revolucionário haitiano iria tomar de assalto e servir de
inspiração para outros movimentos no continente americano, inclusive nos Estados Unidos. Tal
concepção evidencia que já se tinha uma noção da magnitude e potencial da consequência dos
acontecimentos na ilha de São Domingos, tanto quem temia (buscava silenciar) e quem era
simpatizante constatavam a mesma coisa, a importância da revolução haitiana para aquele momento
histórico seria notável, dessa forma explica a razão do lado que temia a revolução buscasse silenciá-
la, rebaixá-la e derrotá-la o quanto antes, seguindo a ideia de, para eles, ser inconcebível, como
aponta Trouillot, que os escravizados se levantassem e tomassem a joia francesa das Antilhas, dessa
forma, o próprio Ábade Gregóire e os Amis des Noirs eram bastante criticados em seu país,
sofrendo bastante resistência daqueles mais conservadores à abolição e emancipação do Haiti.
Além da obra de C.L.R James, a historiadora Carolyn Fick também apresenta diversas
ligações com a revolução francesa ligadas ao Haiti, reafirmando que o processo francês não se
manteve restrito em suas fronteiras, possuindo reflexos em suas colônias. O desejo por emancipação
e autonomia no Haiti já vinha desde 1791, após diversos levantes e choques entre escravizados e
homens brancos, sendo uma influência dos acontecimentos na metrópole. Após a tomada de Le Cap
(e outras brigas internas entre a população branca, mestiça e negra), a Assembleia Nacional
Legislativa aceitou representantes (um de cada grupo étnico, tendo sido possível graças à declaração
de cidadania os negros nascidos livres pela Assembleia em 1792) para integrar o parlamento
revolucionário na França, fazendo com que Saint-Domingue gozasse cada vez mais de
representação política.
Ainda que a participação política da colônia no início da revolução francesa fosse bem
limitada, algumas mudanças aconteceram, e como aponta Fick, a mais importante delas veio na
contradição envolvendo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde ao mesmo tempo
dizia que o Homem era igual a outro qualquer perante a lei e também dizia que todo Homem tinha o
direito inviolável à propriedade, logo uma questão se fez, o escravizado merecia a igualdade perante
o homem branco ou era inviolável a sua libertação pois isso seria danoso ao direito à propriedade de
seu senhor? Fick estabelece um panorama desse debate da época, onde se questionava o nível de
“humanidade” de um homem negro, se estavam no mesmo nível de igualdade do homem branco ou
se eram distantes ao ponto de serem apenas propriedade. Esse racismo escancarado, ao ponto de
questionar a humanidade do homem negro é uma peça chave para entender o porquê os
acontecimentos no Haiti foram desprezados pela história, o porquê foram considerados
inconcebíveis e tratados por seus contemporâneos como apenas uma revolta escrava com os dias
contados, como algo inferior às revoluções europeias, onde a ligação com a revolução francesa fora
ignorada. Tal concepção aparece justamente disso, pois os revoltosos eram vistos como inferiores,
como sem capacidade para construírem algo nessa magnitude, um Estado independente gerido por
homens negros era simplesmente inconcebível, pois esses supostos “subhumanos” não
conseguiriam tomar a colônia mais rentável da França e constituir seu governo próprio.
A abolição veio apenas em 1794, concedida pelo governo jacobino, tendo sido abolida
meses antes por decreto de Leger-Felicite Sonthonax, nomeado comissário da colônia pela
Assembleia, designado para tentar apaziguar a instabilidade na colônia. Sonthonax não aboliu a
escravidão por ser um apoiador da causa, muito pelo contrário, a abolição veio após a mobilização
de um exército rebelde (liderado por nomes como Biassou, L’ouverture e Christophe) contra as
medidas da administração colonial, se aliando à Espanha, inimiga da França revolucionária que
governava a porção oriental da ilha. Para conseguir apoio político e militar, com medo da potência
rival ocupar a parte ocidental da ilha e para conseguir homens para a luta contra a invasão
concomitante da Espanha e Inglaterra, Sonthonax garantiu a liberdade para os escravizados em
1793. Tal medida funcionou em partes, L’ouverture e outros desertaram de volta para a França, sob
a condição que seus direitos fossem garantidos, apesar disso Biassou e uma parte do exército
continuaram ao lado da Espanha, fazendo com que os anteriormente aliados combatessem em lados
opostos. A Convenção jacobina reiterou a medida de Sonthonax em 1794, estendendo-a não só a
Saint-Domingue, mas também a todas as colônias francesas. Tal medida garantiu a liberdade
política para os homens de cor no Haiti, considerados iguais, porém como Fick aponta, na prática os
agora ex-escravizados continuaram a trabalhar de forma semelhante nas plantações para manter a
economia da ilha, agora sob uma suposta “liberdade”.
L’ouverture, se aliando novamente aos franceses, subiu à patente de general, comandando as
tropas coloniais contras as investidas espanholas e inglesas, expulsando as forças estrangeiras por
completo em 1798, já exercendo o cargo de governador desde o ano anterior. Sonthonax (que havia
sucedido o governador Lavaux retornando para um segundo mandato de comissário) fora expulso
por L’ouverture, se tornando governador da colônia em nome da França. Entretanto, apesar da
mudança, o novo governador manteve diversas medidas utilizadas nos governos anteriores,
incluindo as medidas de Sonthonax referentes ao trabalho nas lavouras. Apesar de serem
trabalhadores livres e terem (pelo menos na teoria) direitos, os ex-escravizados agora convertidos
em uma massa camponesa continuavam trabalhando em condições semelhantes à escravidão. A
mudança não fora tão brusca pois São Domingos não poderia se desvencilhar tão facilmente de sua
economia de plantation, onde o comércio de açúcar era bastante lucrativo para a elite colonial e
metrópole, dessa forma, para evitar que a economia fosse afetada, o trabalho compulsório fora
mantido, ainda que disfarçado com alguns direitos e um pagamento ínfimo aos trabalhadores por
seus serviços.
Segundo Fick, os protestos dos ex-escravizados eram reprimidos ideologicamente pois a eles
era atribuído a responsabilidade do retorno à escravidão ou não. Sonthonax dizia que sua lealdade
era para com a França revolucionária, já que ela fora a responsável por sua emancipação, dessa
forma por uma questão de lealdade deveriam combater os inimigos da revolução e produzir para
alimentar a economia colonial. Caso contrário, se não se provassem o bastante e se mantivessem
hostilidades e protestos, o regime escravista poderia voltar e seus irmãos tanto nas colônias quanto
na África poderiam voltar a sofrer.
“Se os trabalhadores continuassem com os seus comportamentos
negativos, então as consequências iriam afetar os seus irmãos da
Martinica, Guadalupe, Guiana e outras colônias francesas, que se
tornariam presa dos poderes inimigos que, desse modo, as fariam
voltar à escravatura, continuariam a traficar escravos e despovoar
as costas da África.” (FICK, 370 [2004])

Dessa forma, a ameaça de volta à escravidão fazia os camponeses se contentarem com essa
nova definição de liberdade, afinal eles nunca tiveram essa experiência, essa liberdade seria bem
melhor do que retornar à escravidão. A ameaça de retorno à sua antiga condição mantinha os
habitantes produzindo e lutando a serviço da França, mantendo-os na linha, apenas como meros
serventes, pois até a França da Liberté, Egalité e Fraternité os via ainda, na prática, como
inferiores, contribuindo para a imagem de inferioridade e a não-importância do processo haitiano.
O governo de L’ouverture não significou mudanças nesse aspecto, houve no caso uma maior
militarização de Saint-Domingue visando a proteção contra possíveis novas investidas estrangeiras,
já que ainda eram hostis à França revolucionária. Tal militarização porém, se intensificou
principalmente no conflito com a frança de Napoleão e no pós independência, onde o Haiti sofreu
com diversos embargos e ameaças de invasão e recolonização, especialmente após a restauração
Bourbon na França.
Em 1801, Napoleão Bonaparte – Cônsul Vitalício – reestabelece a escravidão nas colônias,
buscando manter a economia colonial lucrativa para a metrópole, dessa forma, reacendendo o
conflito contra os franceses em São Domingos. É interessante notar que a independência veio
somente após mais de uma década de revoltas e conflitos, talvez a emancipação dos escravizados e
essa dominação ideológica através do medo tenha cooptado os revoltosos cessar as hostilidades
contra a França revolucionária e direcionar seus esforços para lutar contra as outras potências
estrangeiras, essas que voltariam a escravizá-los. Ao escolher o colonialismo francês em detrimento
dos outros, se fez por um certo pragmatismo, especialmente dos líderes negros, esses que não
pensariam de jeito nenhum em retornar ao antigo regime da ilha, dessa forma combatendo a
Inglaterra e Espanha, porém, como não eram camponeses (L’ouverture por exemplo nunca fora
escravizado, era inclusive dono de pequenas plantações), não se preocupavam com a exploração
exacerbada do trabalho no campo. Os franceses, seriam dos males o menor, eram dos colonialistas
os mais progressistas (apesar de ainda explorarem a mão de obra da população negra da mesma
forma).
Talvez se não houvesse a abolição da escravidão em 1793/94 e as medidas coloniais
tivessem se mantido as mesmas de 1791, onde as primeiras revoltas eclodiram, a independência
poderia ter sido mais acelerada. É evidente então que não se tinha essa perspectiva desde cedo, isso
é demonstrado pelo pragmatismo nas alianças dos líderes negros, hora contra a França, hora com a
Espanha e hora com a França contra a Espanha e Inglaterra. Tais mudanças advém justamente dos
interesses dos revoltosos, em especial de seus líderes, quando seus interesses eram atendidos ou até,
não havia mais uma perspectiva no caminho em que estavam, mudavam completamente seu lado
nas longas guerras que se sucederam em São Domingos. Esse pragmatismo é um reflexo direto das
medidas e acontecimentos ocorridos na França em seu processo revolucionário, refletindo
diretamente nos desdobramentos na colônia como aponta Blackburn em sua obra A Queda do
Escravismo Colonial 1776-1848.
O fato é que o processo de independência – que vinha acontecendo desde 1791 mas sem
esse propósito – apenas se engatilhou quando a França bonapartista buscou limitar novamente a
autonomia do governo de São Domingos e impor o retorno à escravidão nas colônias, motivado por
questões econômicas. Pela maior parte do tempo, a revolução comandada por L’ouverture sempre
buscou atender a seus interesses porém sempre se submetendo a uma dominação colonial, seja no
momento de aliança com os espanhóis seja com os franceses, negociando sempre com os últimos
para se manter no poder, porém em nome da França, chegando inclusive a atacar a Espanha,
detentora da porção oriental da ilha, em nome da França revolucionária. A independência veio já
fora do comando de L’ouverture, e foi uma espécie de “último recurso”, já que foi visto que não
conseguiriam se manter, governando aquela terra com seus próprios interesses sem organizar um
Estado independente por eles mesmos, longe de qualquer domínio colonial branco. Dessa forma, a
emancipação veio como uma solução final de garantir os interesses da população negra em São
Domingos.
Em resposta às medidas de Bonaparte, L’ouverture estabeleceu uma constituição própria
para São Domingos, porém ainda sem declarar sua independência, ainda se prostrariam diante da
dominação francesa. Como mostra no livro O Maior Revolucionário das Américas de Sudhir
Hazareesingh – apesar de possuir uma narrativa um tanto épica e heróica – L’ouverture não estava
muito interessado em empreender-se num movimento independentista, como mostram os
acontecimentos, haviam conflitos e negociações, porém a independência propriamente dita não foi
feita sob seu comando. Essa nova constituição realizada em 1801, estabelece L’ouverture como
governador vitalício (ainda em nome da França), reafirma sua autonomia prevista pela constituição
do Diretório – onde cada colônia poderia ter sua autonomia para proclamar sua própria legislação –
constituição essa que Napoleão descartou em 1799, rapidamente substituindo-a por outra após seu
coup d’etat. A constituição de L’ouverture também estabelece que a escravidão estaria abolida de
São Domingos e por lei jamais poderia retornar.
Esse “cabo de guerra” ocorrido entre a autoridade colonial de L’ouverture e a autoridade
metropolitana de Bonaparte ocasionou em conflito deste último tentando sobrepor a vontade da
metrópole sob a colônia. Em 1802, uma armada liderada por Charles Leclerc, cunhado de Napoleão,
invadiu a ilha, desta vez vencendo o exército de L’ouverture, capturando-o e submetendo os outros
líderes revolucionários à autoridade francesa, esses conservando sua autoridade e posto militar
servindo ao novo governador, o próprio Leclerc. Toussaint L’ouverture acabaria falecendo no ano
seguinte, em uma prisão na França, seus antigos aliados estavam alinhados novamente com a
metrópole, a revolução parecia ter tido seu fim.
A imposição de autoridade à força teve seu efeito inicialmente, Trouillot em seu livro
Silenciando o Passado – poder e a produção da história fala sobre a “guerra dentro da guerra” que
ocorrera entre as forças submetidas a Leclerc, comandadas por Dessalines e Christophe, e aqueles
que continuaram as hostilidades contra a França, comandados por Sans Souci, ex-escravizado
congolês. Trouillot expressa o esquecimento que esse conflito sofreu, especialmente sobre o
posterior governo de Henri Christophe, responsável pela supressão desses homens e o assassinato
de seu líder congolês. Tal evento expressa que o silenciamento da revolução haitiana era por vezes
realizado por seus próprios líderes em nome da França, que buscavam uma legitimação de seus
feitos, escondendo outros líderes da revolução, como o caso de Sans Souci.
Entretanto, a dominação à força não teve um resultado duradouro, em fins de 1803 (já fora
da dominação de Leclerc, que fora substituído por Rochambeau após o primeiro ter sido convocado
de volta para auxiliar a França na Europa), os líderes negros se revoltaram novamente, dessa vez
buscando se desvencilhar da França e de quaisquer outros domínios coloniais. Sob a liderança de
Jean-Jacques Dessalines, que se autoproclama governador, os revoltosos expulsam as tropas
francesas presentes em São Domingos. Em janeiro de 1804, Dessalines declara formalmente a
independência de São Domingos, rebatizado agora de Haiti, nome de origem Arauaque – grupo
indígena presente na ilha durante a conquista de Colombo no final do século XV e que sofreram um
extermínio na mão dos colonizadores – tal nome, de significado “terra de montanhas” serviu como a
primeira medida de criação de uma identidade nacional própria, longe das amarras coloniais
francesas.
A independência entretanto não trouxe paz ao Haiti, sua autonomia não fora reconhecida e
tentativas de retomar o território foram realizadas após a restauração da monarquia Bourbon. O país
sofreu com embargos e instabilidade, os Estados Unidos sob o governo de Thomas Jefferson,
instaurou um bloqueio comercial no país, a economia (mantida após a independência) que dependia
do comércio externo do açúcar fora sufocada. O bloqueio fora suspendido apenas com o
reconhecimento da República do Haiti pelos Estados Unidos sessenta anos depois.
O não reconhecimento do novo país, de seu povo e de sua revolução só corroboram para
evidenciar esse apagamento do papel da revolução haitiana, o temor que o ocorrido se espalhasse
pelas outras colônias (ou nos Estados Unidos) fez com que, de todo modo, houvesse uma censura
sobre o acontecimento, a negação do que estava acontecendo diante de seus olhos, refletindo no
literal não reconhecimento do país como um Estado autônomo, como se não existisse. Tal medida é
a expressão mais clara da rejeição da história haitiana, tais reflexos que perduram até
hodiernamente.
Com o não reconhecimento, as repetidas intervenções estrangeiras e a instabilidade política
(decorrente desse contexto de guerras, reflexos do colonialismo e bloqueios econômicos), o Haiti
tentou batalhar também nesse campo de propaganda, buscando por vezes se parecer com um Estado
europeu. Dessalines, se espelhando em Napoleão, se autoproclama imperador em 1804, fazendo da
recém formada República, um Império. Suas medidas – envolvendo uma economia baseada em
trabalhos forçados nas plantações – sofreram uma rejeição forte, principalmente daqueles que não
eram partidários de uma monarquia e eram contra seu Estado forte, tal instabilidade ocasionou o seu
assassinato em 1806. O país então se torna novamente uma república sob a liderança de Alexander
Pétion. Porém, essa instabilidade é quebrada novamente cinco anos depois, quando – por
divergências políticas entre os revolucionários – o país se dividide em dois e cada Estado fora
governado por dois líderes da revolução. Ao norte, Henri Christophe se torna Henri I, rei do Estado
do Haiti, já ao sul, Petión se mantém presidente da República do Haiti, tal divisão expressa a não
concordância em determinar os rumos do país, bem como seu sistema de governo.
Em ambos os “Haitis” entretanto, buscou-se passar uma imagem europeizada, se afastando
da caricatura que tinham de bárbaros e incivilizados, buscando provar sua civilização baseada nos
moldes europeus. Cada Estado buscou se parecer, seja pela via monarquista (se baseando nas
monarquias europeias) ou pela via republicana (se baseando no modelo estadunidense, que muitas
repúblicas hispânicas na América viriam a se inspirar posteriormente) se legitimar frente ao mundo
que dizia que naquele lugar, regido por negros ex-escravizados e não por homens brancos
civilizados, só se encontrava barbárie e guerra. Henri Christophe por exemplo, investiu em obras
suntuosas e palácios inspirados naqueles da Europa, como o caso do palácio de Sans Souci (nome
dado a seu antigo inimigo), inspirado em um palácio prussiano. Trouillot diz que as obras
empreendidas por Henri I tentam provar (e lembrar) para o mundo que os homens negros
conseguiam realizar obras faraônicas tal como os egípcios, o autor diz que ao visitar o palácio

‘Se seu guia for tarimbado o bastante, saberá guardar o grande


efeito para o final: tendo seduzido sua imaginação, ele
concluirá, com um toque de orgulho, que toda esta extravagância
era feita para impressionar os blan (brancos, estrangeiros), para
oferecer ao mundo aprova irrefutável da capacidade da raça
negra.” (TROUILLOT, 67 [2016)

A tentativa de se modernizar e mostrar como eram capazes de capitanear seu próprio país expressa
justamente essa luta pela credibilidade e legitimação para então se constituir como um Estado
soberano, autônomo e com uma identidade nacional própria.
O Haiti só se vira unificado novamente em 1820. Frente à sua impopularidade, oposição
republicana e pressão do sul, o rei Henri Christophe se suicida, fazendo com que o norte seja
englobado na República do Haiti, sob o governo de Jean-Pierre Boyer, sucessor de Pétion e então
presidente vitalício, cujo cargo ocupará até 1843, governando também, a partir de 1822, a porção
oriental da ilha, que fora tomada dos espanhóis.
Os líderes do Haiti nas primeiras décadas do pós independência foram notáveis por serem
militares, fortes, chegando a serem chamados de ditadores. Tal política interna seria mais um
exemplo da crise que o país recém criado sofria. Com os embargos, uma indenização exorbitante
cobrada pela França (afinal, buscava-se compensar a perda econômica sofrida com a
independência), crescentes intervenções e o não reconhecimento de sua própria existência como
país acabava causando a existência de governos fortes, centralizados e militarizados. A instabilidade
interna, o reflexo das guerras e convulsões sociais da década de 1790 (até 1803) e a crise econômica
(já que tentavam se desvencilhar da economia colonial de exportação) também contribuíam para
esse cenário.
As origens dessa atribuição à barbárie da revolução haitiana, à caracterização do processo
revolucionário como algo meramente insurrecional remonta ao início dos acontecimentos, em 1791
nas revoltas lideradas por Boukman. Conforme expressa Jeremy Popkin em seu artigo Uma
Revolução Racial em perspectiva – relatos de testemunhas oculares da insurreição do Haiti, os
brancos na colônia já relatavam os acontecimentos testemunhados por eles como algo anárquico,
extremamente violento, como se houvesse um assassinato indiscriminado e sistemático de brancos
sob as mãos dos negros revoltosos. O próprio caráter da religiosidade dos escravizados – cujo teve
um papel importante nas revoltas iniciais (vodoo) – contribuiu para essa estigmatização e
barbarização dos revoltosos, como se a sua resistência fosse meramente animalesca, primitiva e até
satânica. Popkin diz que:

“Ao passo que os panfletos políticos publicados pelas autoridades


brancas invariavelmente retratam o levante como uma explosão
cega de violência destrutiva, os relatos em primeira pessoa
mostram que os insurgentes estavam construindo uma contra-
sociedade, na qual os brancos seriam instrumentalizados para
servir aos propósitos dos membros da outra raça. Processo
exatamente igual ao que os próprios brancos haviam estabelecido,
ao construir uma ordem racial de exploração dos demais grupos.”
(POPKIN, 298 [2008])

Dessa forma, o racismo e a crença de superioridade moldaram a forma como a elite branca –
seja europeia, seja americana – percebeu a revolução haitiana. O choque causado pela perda de uma
colônia extremamente rentável não para colonos brancos, mas para os seus ditos “inferiores” causou
uma negação e um silenciamento sistemático, pois não era possível o fato ter ocorrido e,
posteriormente, não deveria se sustentar por muito tempo (diversas tentativas de dominar
novamente o território), tal amontoado de relações e visões sobre o acontecimento fizeram com que
houvesse uma ampla propaganda sobre o ocorrido, inclusiva havendo a atribuição de razões ou
desculpas para que a revolução haitiana ocorresse.
O redator do periódico Correio Braziliense, Hipólito da Costa – como informa Soraya Matos
de Freitas em seu artigo – afirma diversas vezes que se evita falar dos acontecimentos nas colônias
francesas de São Domingos e por outras vezes, afirma que os acontecimentos ocorridos lá não são
de grande importância, não é tratado nem como uma revolução. Ao responder um deputado sobre a
possível independência do Brasil de forma repentina, da Costa afirmou que:

“Diz o Deputado Girão, no meio de mil declaraçoens


intempestivas, e irrelevantes, que se o Brazil arvorar o estandarte
estrelado; isto he se se declarar independente; ou a mãy pátria
usará de seus direitos; ou naçoens ambiciosas irão colonizar as
províncias, que mais conta lhe fizerem; ou os escravos renovarão
as scenas de S. Domingos.” (COSTA, 2001: 61-67)

Ou seja, para o redator, os eventos de São Domingos não passavam de “cenas”, não era visto como
algo sério. Porém, o mesmo trecho exprime um certo temor, um temor que os eventos supostamente
bárbaros capitaneados pelos escravizados se faça no Brasil, levando assim a uma espécie de temor
ao “perigo haitiano”. Todavia, há outro trecho de da Costa onde o mesmo deixa esse temor de lado e
afirma justamente o contrário, concordando com a fala de outro deputado o redator estabelece um
cenário distante para que o que ocorreu em São Domingos ocorra no Brasil:

“A terceira alternativa foi amplamente respondida pelo deputado


Andrade, em sua falla, que copiamos a p. 64; até ridicularizando a
idea, de que os negros do Brazil, na Bahia só um terço dos
habitantes, n’outras províncias só um décimo, pudessem
assoberbar todo o resto da população, que lhe he tam superior em
todos os sentidos.” (COSTA, 2001: 183-185)

Dessa forma, da Costa afirma que a insurreição em São Domingos só ocorrera pelo desequilíbrio no
número de brancos e negros escravizados na ilha, afirmando que no Brasil isso não poderia ocorrer.
Essa “desculpa” para o processo revolucionário haitiano expressa como a visão de incapacidade era
atribuída aos revoltosos na colônia francesa, como se só tivessem conquistado a vitória por serem
ampla maioria. Esse trecho por outro lado também pode expressar um certo grau de temor com
locais muito populosos em relação aos escravizados, gerando uma sensação de iminência em sua
revolta e podendo inclusive, aumentar a repressão em relação a eles.
O medo de uma revolta como ocorrera em São Domingos permeou o continente no século
XIX, a iminência de um levante de escravizados foi levado em conta diversas vezes como algo
possível, sempre comparando com o ocorrido na ilha caribenha. Os acontecimentos, ainda que
silenciados e não reconhecidos, tiveram um papel fundamental na situação dos escravizados em
outras colônias, os motivando ideologicamente, e os inspirando a se revoltar, pois fora visto por eles
que era possível. Flávio Gomes em seu artigo Experiências Transatlânticas e significados locais:
idéias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil Escravista cita alguns exemplos disso,
entre eles:

“Em 1805, um ano após Jean Jacques Dessalines proclamar a


independência do Haiti, o Ouvidor do Crime da Crote do Rio de
Janeiro mandou ‘arrancar os peitos de alguns cabras e crioulos
forros o retrato de Dessalines, Imperador dos negros na ilha de São
Domingos’. E estes ‘estavam empregados nas tropas da milícia do
Rio de Janeiro, onde manobravam habilmente a artilharia.”
(GOMES, 2002 [211])

O choque proporcionado pela revolução, naquele contexto colonial e escravista agiu como
um terremoto e proporcionou um medo muito grande de uma repetição dos acontecimentos nessa
proporção. O cenário de matança e desordem fora reproduzido como um governo anárquico
causado por um povo bárbaro e inferior, esse discurso então fora repetido diversas vezes como uma
forma de invalidar e silenciar a revolução no Haiti. Os reflexos desse silenciamento podem ser
sentidos até hoje, no ensino básico e a forma como se percebe a história das Américas, quase nunca
ou nunca é posto a devida importância na revolução haitiana, muito se fala da independência dos
Estados Unidos, seu pioneirismo na luta anticolonial e ainda dos reflexos da revolução francesa mas
se esquecem do reflexo imediato desse espelho, a Revolução Haitiana.
Referências Bibliográficas:
- BLACKBURN, Robin, A Queda do Escravismo Colonial – 1776-1848. Editora Record, Rio de
Janeiro, 2002.
- FREITAS, Soraya Matos de, Entrelinhas da Revolução: o dito e o não dito nas páginas do
Correio Braziliense e da Gazeta do Rio de Janeiro sobre a Revolução Haitiana (1808-1822).
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