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o papel da historiografia: levar a refletir sobre o a interpretação do fenômeno com

os olhos daquele presente


Como disse o historiador José Murilo de Carvalho, “não há nada que mude tanto
como o passado”.
Esses agoras são essenciais para compreender os diversos aspectos da
Revolução. Os ecos da Revolução como mostra Michel Volvelle.

A Revolução Francesa dos


historiadores: os trabalhos
que formaram o nosso
conhecimento sobre o tema
A historiografia da Revolução Francesa é tão antiga quanto a
própria revolução. As abordagens ao longo da história foram
profundamente marcadas por contextos sociais, econômicos e
políticos.

por Daniel Gomes de Carvalho

7 de outubro de 2019

 11 

ARevolução Francesa foi um processo revolucionário que, na interpretação


clássica, entende-se de 1789 a 1799, e foi caracterizado por suas várias
reviravoltas, golpes de Estado e períodos distintos. Assim como o próprio
movimento revolucionário, também são díspares e controversas as avaliações
que são feitas sobre a Revolução, que recebeu diversas alcunhas: “esplêndida
aurora” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel), “equivalente aos mitos e epopeias
da Grécia antiga” (Thomas Carlyle), “a maior catástrofe que caiu sobre a raça
humana” (Goldwin Smith), “mãe de todos nós” (Albert Soboul) ou “centro
estratégico da história moderna” (Alfred Cobban).
François Furet diz que os trabalhos dos historiadores (historiografia) são tão
conflitivos e complexos quanto os próprios acontecimentos que marcaram a
Revolução: “seu desenvolvimento é comparável ao desenvolvimento da
própria Revolução: atravessada de contradições e de batalhas espetaculares,
como se o caráter teatral do evento tivesse sido legado a seus historiadores,
única parte não dividida de uma herança conflituosa.” [1]

Ocorre que a Revolução Francesa teve a sorte de possuir grandes


historiadores, que foram capazes de imputar aos acontecimentos
interpretações que perduraram por décadas. Contudo, apesar das divergências,
parece existir um consenso, ainda que tácito, entre os estudiosos da
Revolução: ela foi um “caos político”. Mas entenda-se caos não como
desordem, mas no sentido que a mitologia grega atribuiu à palavra: um caos
criador e criativo, que reformulou a linguagem política e deu o tom, com
fortes doses de ineditismo, ao debate político contemporâneo.
Conservadorismo e progressismo, ditadura revolucionária e império das leis,
partilha da propriedade e imposto progressivo, liberalismo conservador e
democrático, moderação e moderantismo, dentre várias outras categorias do
debate político contemporâneo, estavam presentes no calor dos
acontecimentos franceses.

O assassinato de Jean-Paul Marat por um simpatizante dos girondinos,


Charlotte Corday, no dia 13 de julho de 1793. Tela de Jean-Joseph Weerts
(1847-1927). Wikipédia.
Essa fertilidade dos fatos revolucionários fez a Revolução Francesa ter sido
especialmente permeável aos acontecimentos políticos dos últimos séculos:
ora para o bem, ora para o mal, os acontecimentos revolucionários têm sido
frequentemente revistos à luz das grandes guerras, do stalinismo, da crise do
socialismo real e, mais recentemente, das novas demandas igualitárias, das
propostas de uma historia “global” e mesmo dos direitos dos animais [2].

Neste artigo, meu objetivo é mapear e explicar o desenvolvimento da chamada


“historiografia clássica “da Revolução Francesa, isto é, os principais autores e
obras que marcaram o nosso conhecimento sobre o tema. Para isso, o artigo
será divido em cinco fases: 1) A Revolução por seus testemunhos (1790-
1820); 2) Hegemonia Democrático-Liberal e Socialista (1820-
1856); 3) Hegemonia Conservadora (1856-1885); 4) A Institucionalização da
Revolução e a Hegemonia Jacobina (1885-1964); 5) Hegemonia Revisionista-
Liberal (1964 -1989).[3]

Da década de 1990 até hoje, a historiografia da Revolução Francesa tem


vivido uma nova “fase”, marcada por novos objetos, novos autores, novas
abordagens e novas interpretações. Mas essa sexta fase historiográfica será
objeto de uma bibliografia comentada, a ser publicada em breve aqui no Café
História.

A Revolução por seus testemunhos (1790-1820)

A Revolução Francesa foi um movimento que, de forma impressionante,


historiou-se a si mesma. No mundo britânico, foram feitas as primeiras
reflexões de impacto sobre os processos revolucionários. Dentre os vários
testemunhos e intérpretes da Revolução, é preciso destacar a obra-prima do
irlandês Edmund Burke (1729-1797), Reflexões sobre a Revolução em
França, publicada em 1790.

Burke pretendeu mostrar que entre a Revolução Inglesa e a Revolução


Francesa havia não uma diferença de grau, mas de natureza: enquanto aquela
resgatava os direitos tradicionais britânicos, esta fazia tábua rasa de toda as
tradições gestadas com sabedoria há séculos, destruindo a comunidade
humana e tornando os homens nada mais que “moscas de verão”.

Outro nome de destaque no período é o do britânico Thomas Paine (1737-


1809), já célebre pelo seu Common Sense (1776), elaborou a mais conhecida
resposta à Burke com o livro Os Direitos do Homem (1791-1792), uma defesa
em alto tom da Revolução. Burke, para ele, criou um “Adão Político”, de
modo que a defesa da tradição significaria que a comunidade dos mortos
deveria governar os vivos – e os vivos, argumenta Paine, têm o direito a
reinventar-se.

Hegemonia Democrático-Liberal e Socialista (1820-1856)

No século XIX, os grandes historiadores foram autodidatas ou futuros homens


de política, e não historiadores formados em universidades francesas – para
muitos deles, a história é, abertamente, uma arma política. Os fatos, além
disso, pareciam imitar a história da Revolução, como disse o próprio Karl
Marx em suas célebres passagens no 18 Brumário de Luís Bonaparte. Na
França, terminada a chamada Era Napoleônica, em 1814-1815, o ciclo
revolucionário se repetiu. Assim como 1789 derrubou a monarquia Bourbon
de Luís XVI, a Revolução de 1830 derrubou o regime autoritário de Carlos X;
assim como 1793 alçou os jacobinos e seu discurso de democracia social ao
poder, a Revolução de 1848, acrescentando a “fraternidade” à “liberdade e
igualdade”, derrubou o regime “burguês” de Luís Felipe de Orléans; o golpe
de Estado de Luís Bonaparte, em 1851, finalmente, mimetiza o golpe do tio
Napoleão.

A historiografia liberal do período apoia-se na publicação póstuma (1818)


de Madame de Staël (1766-1817), Considerações sobre a Revolução
Francesa. Em defesa da Revolução contra
uma historiografia contrarrevolucionária, a filha de Jacques Necker, o
encarregado da economia na França de Luís XVI, esforçou-se por desvincular
Revolução e jacobinismo. Para ela a Revolução Francesa teve um caráter dual:
os valores de 1789, análogos aos da Inglaterra livre, não poderiam ser
confundidos com as “distorções jacobinas”.

Adolphe Thiers (1797-1877), Francois-Auguste-Marie-Alexis Mignet (1796-


1884) e François Guizot (1787-1874), expoentes da escola histórica da
Restauração, engajados em resgatar os valores revolucionários contra Carlos
X, viam o Terror não como uma “falsa Revolução”, mas como uma
necessidade história, gestada, infelizmente, pelos próprios excessos da
monarquia e da aristocracia. Contudo, encerrado o regime de Carlos X, e
instaurado o regime “burguês” de Luís Felipe de Orléans,
a historiografia revolucionária conheceu um novo giro.

Em 1829, a publicação do livro de Philippe Buonarroti (1761-


1837), Conspiration de Babeuf (1829), alimentou uma nova visão da
Revolução Francesa, o qual capta e enfatiza seu aspecto radical e
“antiburguês.” Radicais e socialistas das décadas de 1830 e 1840, assim,
passaram a enxergar na igualdade defendida pelos jacobinos uma maneira de
mobilizar as massas contra a burguesia – por isso, Robespierre passa a ser
valorizado, por exemplo, por pelo socialista católico Philippe Joseph
Benjamin Buchez (1796-1865) e pelo líder cartista Bronterre O’Brien
(1804-1864),

Em 1847, apareceram duas obras que resumem o espírito de 1848:


as Histórias da Revolução Francesa, do socialista moderado Louis
Blanc (1811-1882), e a História dos Girondinos de Alphonse de Lamartine
(1790-1869), expoentes da historiografia romântica. Nenhuma delas, contudo,
é comparável à História da Revolução Francesa de Jules Michelet (1798-
1874), livro mais importante de toda a historiografia da Revolução Francesa.
Ele rejeita, a um só tempo, o fatalismo de Mignet, o socialismo de Blanc e
Buchez e as concepções monárquicas e aristocráticas vigentes do período, da
mesma forma exalta 1789 contra a violência jacobina de 1793 e não hesita em
dizer: “eu não teria sido jacobino.”

Hegemonia Conservadora (1856-1885)

Após a Revolução de 1848, a ascensão de Luís Bonaparte é um golpe fatal


para a historiografia romântica que esperava ver na Revolução de 1830 uma
realização da liberdade. A historiografia, então, conheceu uma nova
transformação.

Dentre as várias obras críticas da Revolução Francesa (Thierry, Montégut,


Rémusat) gestadas nesse momento, é a de Alexis de Tocqueville (1805-
1859), O Antigo Regime e a Revolução (1856), a mais original e mais
significativa dentro da mentalidade liberal. A obra é verdadeiramente
paradigmática, sendo a primeira a dar densidade ao conceito de Antigo
Regime e ao de Pré-Revolução. Modelo ímpar de análise sociológica,
Tocqueville depreende-se da ótica dos fatos e testemunhos para mostrar a
centralização como herança da Revolução Francesa – entre o Antigo Regime e
a Revolução, por isso, havia mais continuidades do que se poderia supor.

À desmistificação da Revolução Francesa segue-se a desmistificação de


Maximilien de Robespierre, bem como a promoção de Georges Jacques
Danton, feita por nomes como Eugène Despois (1818-1876) e Alfred
Bougeart (1815-1882). O duplo choque da derrota na Guerra Franco-
Prussiana (guerra que termina com a derrota da França e vitória da Alemanha,
agora unificada) e da Comuna de Paris, em 1871, vieram a acentuar o
pessimismo da historiografia liberal, como faz Ernest Renan (1823-
1892), autor de La Réforme intelectuelle et morale, 1871), ao relacionar o
Terror e a Comuna.
Alex de Tocqueville, um dos principais historiadores da Revolução Francesa.
O célebre filósofo liberal oerleanista, Hippolyte Taine (1823-
1893), em Origines de la France contemporaine, reforçou essa crítica. Para
ele, a ideia puramente “filosófica” de um homem abstrato, anterior à história,
que guiaria os homens revolucionários, estaria na fonte de muitos de seus
delírios. Antítese do espírito romântico, para Taine a natureza humana é má e
o povo com sua escória um monstro em potência, de maneira que a arte do
bom governo consiste em refrear os instintos dessa fera social.

A institucionalização da Revolução e a Hegemonia


Jacobina (1885-1964)

Na década de 1880, já afastado Napoleão III e derrotada a Comuna de Paris,


os republicanos assumiram a direção da França, e a historiografia da
Revolução Francesa conheceu um novo giro. A chamada Terceira República
(1870-1940) institucionalizou a Revolução: os novos programas escolares
difundem os Direitos do Homem e a Tomada da Bastilha torna-se Dia
Nacional da República Francesa.

Em 1885, criou-se a cadeira de História da Revolução Francesa na


Sorbonne. Alphonse Aulard (1849-1928), jornalista e membro do partido
radical, foi, por mais de 40 anos, o titular dessa cadeira. Republicano e sob
impacto do pensamento positivista, exaltava a Revolução como progressista e
certa, ao passo que o jacobinismo teria sido fruto das circunstâncias criadas
pelo rei e pela aristocracia.

Se Aulard, assim, representava uma tentativa de institucionalização da


Revolução, duas histórias erguem-se contra ele. Augustin Cochin (1876-
1916), autor de a Crise de l’histoire révolutionnaire, Taine et M.
Aulard, publicado em1909, utilizando-se dos métodos sociológicos modernos,
mostra uma revolução que não é fruto nem de uma conspiração, nem das
circunstâncias, mas da tirania impessoal das “sociedades de pensamento”, que
manipulam e enganam o verdadeiro povo.

Com impacto mais efetivo que Cochin, Jean Jaurés (1859-1914), em


sua História Socialista da Revolução Francesa, tornou-se o primeiro
expoente do que depois será a historiografia jacobina: entre a Revolução
Francesa de ontem e a revolução socialista de amanhã há uma filiação direta e
positiva. Modelo de tomada de poder por uma classe, a Revolução Francesa é
um ensinamento vivo para classe operária. Robespierre, volta ao centro dessa
história: “estou com Robespierre e é a seu lado que vou me sentar entre os
jacobinos”, diz, em oposição à Michelet. As reformas sociais dos jacobinos,
nesse sentido, eram mais democráticas que o voto censitário dos grupos
girondinos.

Georges Lefebvre (1874-1959) assumiu em 1937 a cátedra de Revolução


Francesa e tornou-se, o principal historiador do assunto na primeira metade do
século XX. Ele, a um só tempo, demonstrou a venalidade de Danton e
desmentiu o “socialismo” dos robespierristas, os quais nunca se opuseram à
propriedade privada. Com Lefebvre, que cunhou o termo “história vinda de
baixo”, a tradição socialista enraizou-se na academia – a Revolução Francesa
é como produto do conflito entre as forças de produção capitalista e as antigas
relações sociais de origem feudal, em suma, entre nobreza e burguesia, nesse
momento ainda aliada ao povo. Embora burguesa em seu sentido maior,
dentro da Revolução Francesa estariam contidas várias outras revoluções
(nobiliárquica, camponesa e das camadas urbanas).

A hegemonia desta visão jacobina sobre a Revolução Francesa foi tamanha


que comemoração do sesquicentenário (150 anos) foi vista pelos mais
conservadores como obra de “ateus e comunistas”. O governo de Vichy
simpático ao fascismo, queimou todos os exemplares do 1789 de G. Lefebvre,
e o Instituto de Internacional de História da Revolução Francesa se transferiu
para os Estados Unidos durante a 2ª Guerra Mundial.

A tradição de G. Lefebvre foi perpetuada na França por Albert Soboul (1914-


1982). Sua narrativa na História da Revolução Francesa[4]de 1984 , obra
póstuma, é até hoje reproduzida de forma quase idêntica nos livros didáticos
de ensino médio e fundamental no Brasil.  Na Inglaterra, tal visão foi
sustentada por Richard Cobb (1917-1996) e George Rudé (1910-1993) e, na
Itália, por Armando Saitta (1919-1991). Após a morte de Soboul, a cátedra
da Sorbonne de Revolução Francesa é ocupada pelo ex-comunista Michel
Vovelle (1933-2018), cuja pesquisa, original e altamente relevante, se
concentrou no campo da história cultural ou das “mentalidades”.

Hegemonia Revisionista-Liberal (1964 -1989)

Na década de 1950 foi lançada uma obra que, nem revisionista, nem marxista,
teria impacto imenso na historiografia em finais do século XX e início do
século XXI: The Age of Democratic Revolution: A Political History of Europe
and America, 1760-1800, de Robert Roswell Palmer (1909-2002), derivada
de seus trabalhos com outro historiador, Jacques Godechot (1907-1989).

Para ele, as Revoluções Americana e Francesa possuem mais semelhanças do


que diferenças, de modo que seus motivos centrais também estavam presentes
na Grã-Bretanha, Irlanda, Holanda, Bélgica, Suíça, Alemanha, Hungria,
Polônia, Itália, Espanha e Rússia.

A obra opunha-se tanto a uma historiografia nacionalista, que negava o caráter


revolucionário da Independência das Treze Colônias (futuro Estados Unidos),
quanto a uma historiografia marxista que reduzia o período revolucionário a
uma “etapa” burguesa. Trata-se de um levante internacional fundamental para
a construção das sociedades democráticas, e não mera antessala do socialismo.
Por muito tempo, Palmer foi visto como um apologista da OTAN. Contudo,
terminada a Guerra Fria, as noções de uma Revolução Transatlântica foram
retomadas, de forma que as ideias essenciais da pesquisa de Palmer nunca
foram tão estudadas quanto na atualidade.

Mas o debate na segunda metade do século XX foi dominado pela disputa


entre marxistas e revisionistas, e a visão de Palmer – seu livro, infelizmente,
não foi traduzido para o português ou para o francês – levaria mais algumas
décadas para se impor. Duas obras, lançadas pouco depois do primeiro
volume de Palmer, representam o tom do debate do período.

Em primeiro lugar, On Revolution (1961), de Hannah Arendt (1906-


1975), exemplo mais radical de separação entre as Revoluções Norte-
americana e Francesa. Para a autora, na Revolução Norte-americana, buscava-
se a liberdade, isto é, participação nas coisas públicas, ao passo que na
Revolução Francesa surgiu a noção de libertação, isto é, de que a Revolução e
o Estado devem nos alforriar da necessidade. Segundo ela, quando a política é
regida pela necessidade abre-se caminho para a tirania: “pode ser mais
obsoleto do que a tentativa de libertar a humanidade da pobreza por meios
políticos; nada pode ser mais inútil e perigoso” [5].

Em segundo lugar, Eric Hobsbawm (1917-2012) lançou o clássico A Era das


Revoluções (1962), no qual, embora em perspectiva distinta à Arendt,
enfatizava também a excepcionalidade da Revolução Francesa, vista por ele
de forma muito semelhante a Lefebvre. Sem negar a importância fundamental
do livro, é notória a desqualificação do levante das 13 Colônias (atuais
Estados Unidos), completamente excluído de seu clássico conceito de “dupla
revolução”, qual seja, de que a Revolução Francesa teria sido determinante
para moldar a política contemporânea, ao passo que a Revolução Industrial
inglesa teria sido sua base econômica.

François Furet: historiador referência entre os chamados “revisionistas” da


Revolução Francesa.
Mas, não obstante a força da obra de Arendt, a alcunha de “pai do
revisionismo” deve-se ao historiador britânico Alfred Cobban (1901-
1968), The social interpretation of French Revolution, de 1964, seguido,
principalmente, por Denis Richet (1927-1989) e François Furet (1927-
1997), autor de A Revolução Francesa.

O revisionismo critica essencialmente a ideia de que a Revolução Francesa foi


uma revolução social necessária ou “burguesa”, um passo inevitável no
desenvolvimento histórico da sociedade moderna e a transferência de poder de
uma classe para outra. A Revolução é, sobretudo, um fenômeno político-
ideológico, um discurso a ser desconstruído.

O argumento revisionista é baseado em quaro pilares: 1. A teoria da elite: no


final do Antigo Regime francês, mais do que luta de classes entre burguesia e
nobreza, o que predominava era uma integração crescente entre ambas, a
ponto de constituírem uma única elite de notáveis ilustrados. O conflito não
era de classes, mas entre sociedade e Estado; 2. A derrapagem da
Revolução: dada a crescente disfuncionalidade do Estado e sua incapacidade
em se reformar, a elite recorre à Revolução (política, que é a primeira
Revolução), mas com a entrada em cena das massas, a revolução vai sofrer
uma derrapagem, um acidente de percurso, isto é, vai escapar ao controle dos
notáveis. 3. O arcaísmo e o inconsciente sexual dos sans-culottes: as
massas populares urbanas trouxeram à cena política sentimentos e
comportamentos arcaicos, passadistas e violentos, alguns de origem
sexual. 4. Não há unidade do processo revolucionário mas três revoluções,
de forma que só a primeira (liberal e democrática) anuncia a sociedade do
amanhã[6].

No contexto de crise do “socialismo real”, entre os anos 1970 e 1990, o


revisionismo ganhou espaço. No segundo centenário da Revolução Francesa,
foram escritos mais textos contra a Revolução do que a seu favor. Furet
tornou-se nas palavras do, The Economist (24/12/88), o “rei do bicentenário”.

A vivacidade da revolução francesa

Walter Benjamin nos disse que “a história é objeto de uma construção cujo
lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’.”
A historiografia da Revolução Francesa, de forma bastante peculiar, sempre
serviu aos mais diversos “agoras”, e também, claro, soube servir-se deles. Nos
últimos trinta anos, como veremos na parte II deste artigo, não foi diferente.
Tocqueville, por isso, continua tendo razão quando diz: “As grandes
revoluções que são bem sucedidas (…) chegam a ser incompreensíveis
justamente pelo seu sucesso.”

Notas

 FURET, François La gauche et la révolution au milieu du XIX siècle. Edgar


[1]

Quinet et la question du Jacobinisme 1865-1870. Editora Hachette, Paris,


1986, p.7.

 Por exemplo, SERNA, Pierre, Comme des bêtes. Histoire politique de


[2]

l’animal en Révolution (1750-1840), Paris, Fayard, 2017.

 Quando é utilizado o termo hegemonia (de hégémon, que designa liderança),


[3]

não se pretende falar em totalidade, mas tão somente de predominância,


levando em conta a circulação dos textos nos meios acadêmicos e
educacionais. Cada uma dessas fases serão explicadas do ponto de vista
histórico.

 SOBOUL, Albert.A Revolução Francesa. São Paulo: Difel, 2003.


[4]

 ARENDT, Hannah. Da Revolução.Brasília: Editora Universidade de


[5]

Brasília, 1988, p. 90.

 FLORENZANO, M. ; Os Pes-De-Barro do Revisionismo. Novos Estudos, v.


[6]

47, p. 211-217, 1997.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: Editora Universidade de Brasília,


1988.

FLORENZANO, M. ; Os Pes-De-Barro do Revisionismo. Novos Estudos, v.


47, p. 211-217, 1997.

FURET, François La gauche et la révolution au milieu du XIX siècle. Edgar


Quinet et la question du Jacobinisme 1865-1870. Editora Hachette, Paris,
1986.

SERNA, Pierre, Comme des bêtes. Histoire politique de l’animal en


Révolution (1750-1840), Paris, Fayard, 2017.

SOBOUL, Albert.A Revolução Francesa. São Paulo: Difel, 2003.


NAPOLEÃO BONAPARTE
A construção de um mito sob diferentes visões

Napoleão Bonaparte (1769-1821) é um dos personagens históricos mais


ambíguos do século XIX. Para muitos foi um brilhante estrategista militar, um
homem com determinação, iniciativa e liderança. Para outros, foi um tirano
arrogante, sanguinário e egoísta.  Seus inimigos o temiam e o respeitavam. O
duque de Wellington, que o venceu em Waterloo, alegou que Napoleão
Bonaparte, em campo de batalha, valia 40 mil homens.
Inspirou reis, príncipes e líderes, como D. Pedro I e Simón Bolívar.
Influenciou na história das Américas desencadeando os movimentos de
independência nas colônias espanholas. Levou a família real portuguesa a fugir
para o Brasil, fato que mudou os rumos da nossa história. Depois dele, a Europa
nunca mais seria a mesma. Hitler, quando ocupou Paris, em 1940, fez questão
de visitar o túmulo de Napoleão Bonaparte e de ficar um tempo, a sós, no local.
Milhares de livros foram escritos sobre Napoleão Bonaparte e nenhum
deles esgotou o assunto. Sua vida privada e pública, seu governo e campanhas
militares continuam inspirando pesquisas, exposições, filmes, jogos e series
para televisão. As visões sobre o imperador francês mudaram várias vezes ao
longo da História.
Por isso, para trabalhar a chamada Era Napoleônica, é interessante o
professor confrontar fontes diversas. Selecionamos algumas entre textos
literários, pinturas, música e comentários sobre o imperador francês. Essa
coletânea permite ao aluno identificar opiniões opostas e perceber que o herói
nacional é uma construção histórica de uma determinada sociedade, produto
dos valores dominantes em seu meio e em seu tempo.
Pode-se, dessa forma, estudar esse personagem histórico sob diferentes
visões. Veja como Napoleão Bonaparte foi visto:

1. por Jacques-Louis David, um pintor da corte.


2. por Beethoven, compositor alemão.
3. por León Tolstoi, escritor russo.
4. por Suchodolsku, pintor polonês.
5. por Tchaikovsky, compositor russo.
6. por um soldado francês.
7. por um militar inimigo.
8. pelo Senado francês.
9. por ele mesmo.
10. pela França.

1. Napoleão Bonaparte por Jacques-Louis David, pintor da corte

Durante seu governo, Napoleão Bonaparte procurou cuidar de sua


imagem pública encomendando a grandes artistas pinturas e esculturas que o
representassem em posses heroicas e vitoriosas. Ele mesmo dizia que pertencia
à “raça fundadora de impérios”. E dessa forma se fez representar fixando sua
imagem de grande líder militar e político.
Observe como isso está presente na tela “Napoleão
Bonaparte atravessando os Alpes” ou “Napoleão Bonaparte na passagem de São
Bernardo”, de Jacques-Louis David, 1802.

“Napoleão Bonaparte atravessando os Alpes”, óleo sobre tela, Jacques-Louis David, 261
cm × 221 cm, 1802.
A pintura mostra Napoleão Bonaparte conduzindo suas tropas através
dos Alpes na campanha militar de 1800, contra os austríacos que acabaram
derrotados na Batalha de Marengo. É essa vitória que a pintura
comemora. Napoleão gostou tanto do quadro que encomendou mais três
versões e uma quinta ainda foi produzida. Elas foram realizadas entre 1801 e
1805. Duas versões estão em Paris, uma em Madri e uma em Milão.
Observe os detalhes da pintura:
- Napoleão Bonaparte foi representado desproporcionalmente grande em
relação aos soldados, no fundo da tela, o que destaca seu protagonismo como
condutor da nação francesa. A alusão à França está nas cores predominantes do
quadro: vermelho, azul e branco.
- Ele mantém o controle da montaria mesmo com o cavalo empinado,
segurando suas rédeas somente com a mão esquerda. Olha de frente e direto
para o espectador apontando para o alto, os Alpes prestes a serem atravessados.
O gesto alude, também, à liderança política e militar de Napoleão Bonaparte. É
ele quem indica o caminho vitorioso aos seus súditos.
- Nas pedras (nos pés do cavalo) está escrito em letras douradas o nome
Bonaparte e de dois heróis: Aníbal, general que enfrentou Roma Antiga, e Carlos
Magno, rei dos francos que conquistou um império. Napoleão associa-se, então,
a um herói da Antiguidade e a um imperador medieval, colocando-se como
herdeiro e sucessor desses grandes líderes do passado.

2. Napoleão Bonaparte por Beethoven, compositor alemão

O compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) admirava


Napoleão Bonaparte, considerando-o o Grande Libertador, o Herói do Povo na
luta pelos ideais de liberdade e igualdade. Dedicou-lhe a Sinfonia nº 3, chamada
Heroica (1804), mas, ao saber que Napoleão Bonaparte se coroara imperador,
ficou indignado e retirou a homenagem.
Anos depois, em 1814, celebrou a derrota de Napoleão Bonaparte em
Waterloo com a sinfonia “A Vitória de Wellington” (nome do almirante inglês
que venceu Napoleão Bonaparte). Nela inseriu tiros de canhões e hinos
militares.
Sinfonia nº 3, “Heroica”
https://www.youtube.com/watch?v=OVtev_GnPiE

Sinfonia “A Vitória de Wellington (segunda parte)”


https://www.youtube.com/watch?v=R_ibES7i-HU

O filme Eroica, produzido pela BBC para a televisão é uma reconstituição


artística da história dessa sinfonia. É ambientado em Viena, em 9 de junho de
1804, data da primeira apresentação da Sinfonia nº 3, mais tarde conhecida
como “Heróica”. A data ficou conhecida como “o dia que mudou a música para
sempre” – expressão usada por Haydin que assistiu aquela apresentação no
palácio de um príncipe alemão, patrono de Beethoven. Nos minutos finais do
filme, quando a sinfonia é executada pela segunda vez, o filme faz um salto para
futuro e mostra Beethoven em uma taberna onde é informado que Napoleão
Bonaparte havia se declarado imperador. Furioso, o músico amassa a página da
partitura onde estava o título de sua sinfonia que, originalmente, era
“Bonaparte”.
Filme Eroica, dirigido por Simon Cellan Jones, 2003.
https://www.youtube.com/watch?v=M3PzPKD5ACA

3. Napoleão Bonaparte por León Tolstoi, escritor russo

León Tolstoi (1828-1910) não foi contemporâneo de Napoleão Bonaparte,


mas as lembranças de seus feitos militares ainda eram bem vivas. A Rússia
infringiu uma humilhante derrota ao imperador francês quando este tentou
conquistá-la, em 1812.
Esse episódio inspirou Tolstoi a escrever sua célebre obra Guerra e Paz.
O enredo abrange o período de 1805 a 1820 e traça um admirável perfil da
aristocracia russa mostrando o preconceito e a hipocrisia da nobreza, as
tradições religiosas, a vida cotidiana dos servos e dos soldados.
Com centenas de personagens e mais de mil páginas na versão original,
Guerra e Paz, levou sete anos de trabalho intenso até sua publicação, em 1869.
É um clássico da literatura russa e uma das maiores obras da literatura
universal pela maneira como aborda a condição humana em seus momentos
mais difíceis e dolorosos.
Um trecho dessa obra trata da invasão da Rússia pelo exército francês. O
fragmentado abaixo, descreve a entrada de Napoleão Bonaparte em Moscou, em
setembro de 1812, com milhares de soldados. Vaidoso e confiante, o general
francês imagina-se já senhor de todo Império Russo. Aguarda a chegada do czar
ou seu representante para negociar a paz. Mas ninguém aparecerá.

“Napoleão Bonaparte, a cavalo no meio das suas tropas, examinava do alto


de uma colina o panorama que se lhe desenrolava aos pés. A luz matutina
inundava Moscou de uma claridade fantástica. Com os seus jardins, igrejas, o rio,
as cúpulas brilhantes como lingotes de ouro aos raios do Sol, as construções de
uma arquitetura estranha, a cidade parecia viver a sua existência habitual. Ao
contemplá-la, Napoleão Bonaparte sentia uma curiosidade inquieta e cheia de
cobiça (…).
– ‘Esta cidade asiática, com as suas inúmeras igrejas, aqui a tenho
finalmente! Cidade famosa! Já era tempo.’
Desceu da montaria e mandou que lhe desdobrassem o mapa de Moscou.
Comovido, quase assustado com a certeza da posse, observava à sua volta e
estudava a planta comparando os pormenores com o que via.
– ‘Ei-la, pois capital orgulhosa, ei-la à minha mercê! Bastar-me-ia fazer
um gesto e a cidade dos czares seria destruída para sempre. Mas a minha
clemência está sempre pronta a descer sobre os vencidos. Por isso serei
misericordioso: inscreverei nos seus antigos monumentos de barbárie e
despotismo palavras de justiça e de paz. Do alto do Kremlin ditarei leis
prudentes; lhes farei compreender o que é a verdadeira civilização, e as gerações
futuras de boiardos serão forçadas a lembrarem com amor do nome de quem
conquistou Moscou. Daqui a pouco lhes direi: Boiardos, não quero aproveitar-me
do triunfo para humilhar um soberano que estimo; proporei condições de paz
dignas da Rússia e dos meus povos! A minha presença os exaltará, pois, como
sempre, falarei com nitidez, majestade e grandeza. Tragam os boiardos!’ –
exclamou voltando-se para a comitiva. E logo um general os foi buscar.
Decorreram duas horas. Napoleão almoçou e regressou ao mesmo lugar
para receber a delegação. Tinha o discurso preparado, cheio de dignidade
majestosa, pelo menos segundo o seu conceito. Extasiado pela generosidade com
que queria oprimir a capital, a imaginação já lhe mostrava uma reunião no
palácio dos czares com os grandes senhores russos a confraternizarem com os
notáveis da sua corte. Nomeava um prefeito que lhe alcançaria o coração das
populações, distribuía benesses e esmolas, pensando que, se em África achara útil
vestir-se de albornoz e orar numa mesquita, aqui em Moscou devia mostrar-se
generoso, a exemplo dos czares.”
Adaptado de TOLSTOI, León. Guerra e Paz. Lisboa: Verbo, 1990. p. 178-180.  

Vocabulário
Kremlin: acrópole com igrejas e palácios e cercada por muralhas; o Kremlin de
Moscou, construído no século XII, era o centro político e religioso da Rússia
imperial.

boiardos: aristocratas rurais que formavam a classe social dominante da Rússia


imperial. benesses: vantagens, favorecimentos. albornoz: manto de lã com
capuz usado pelos árabes.

4. Napoleão Bonaparte por Suchodolsk, pintor polonês

Napoleão Bonaparte encontrou Moscou deserta e sem provisões. Nem o


czar nem seu representante apareceram para negociar a paz. Semanas depois,
diante da proximidade do inverno (era, então, 18 de outubro) e sem roupas
apropriadas e alimentos suficientes, o general francês ordenou a retirada do
Exército. Encontraram cidades despovoadas, incendiadas e plantações
destruídas. Os soldados franceses morreram de frio, fome e doenças.
Em Borondino, o exército francês foi surpreendido pelo exército russo.
Seguiram-se dezesseis horas de combate ininterrupto que causou pesadas
perdas aos franceses. A campanha napoleônica na Rússia foi um desastre
completo. Dos 500 mil soldados do início da campanha, somente 10% voltaram
para casa.
Um registro da dramática saída da Rússia é a tela “Retirada de Berezina”,
de January Suchodolsk, c. 1858. Ela representa a travessia do rio Berezina pelo
exército francês, ocorrida em 28 de novembro de 1812, quando foi necessário
construir pontes flutuantes para atravessá-lo.  Os construtores trabalharam com
água gelada até os ombros, o que custou a vida da maioria deles. Cerca de 40 mil
soldados conseguiram sobreviver à travessia, mas aproximadamente 25 mil
morreram sob o pesado bombardeio russo.
“Retirada de Berezina”, January Suchodolsk, c. 1858.

5. Napoleão Bonaparte por Tchaikovsky, compositor russo

O compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893) inspirou-se na


campanha militar de Napoleão Bonaparte na Rússia para compor uma de suas
obras-primas: “Abertura 1812”. Composta em 1880, essa sinfonia faz uma
descrição musical da invasão francesa.
É possível perceber, pela melodia e ritmo, as seis etapas daquele
episódio:
- a marcha do exército napoleônico até Moscou, ao som da A Marselhesa, o hino
francês;
- o canto de paz dos camponeses russos;
- a chegada do inverno que pega os franceses sem agasalhos suficientes;
- a retirada desastrosa dos franceses em meio ao frio e ao ataque russo;
- os canhões russos abafando o hino francês;
- o toque dos sinos de Moscou e o coro em júbilo cantando a libertação dos
russos.  

Abertura 1812 (segunda parte), de Tchaikovsky


https://www.youtube.com/watch?
time_continue=67&v=qW4C2h3lPac&feature=emb_title

https://www.youtube.com/watch?v=cbCYxlffPSE
6. Napoleão Bonaparte por um soldado francês

“Nossas marchas eram forçadas e cansativas, mas o imperador partilhava


de nossa fadiga, dia e noite a cavalo, repleto de lama como nós e nos conduzindo
como uma luz para todo lugar onde ele achava ser necessária sua presença
estimuladora (…).
O imperador discursava para nós à maneira dos imperadores romanos,
falava da situação do inimigo, do projeto de uma grande batalha e da confiança
que ele depositava em nós.
Apesar da chuva, da neve, enfim de um tempo horrível, um frio cortante,
a maior parte dos soldados de pés descalços punha-se diariamente em marcha.
Nada os impedia aos gritos de “Viva o imperador!” (…). Apesar de nossa
miséria, a presença de nosso imperador e o nosso sucesso nos faziam suportar
tudo.”
Diário do capitão François. In: CASTA, M.; DOUBLET, F. (Coord.) Histoire Géographie.
4. ed. Paris: Magnard, 1998. p. 75.

7. Napoleão Bonaparte por um militar inimigo

“Você não devorará mais nossas crianças: nós não queremos mais seu
alistamento militar, sua milícia, sua censura, seus fuzilamentos noturnos, sua
tirania. E não é apenas nós, mas a espécie humana que o acusa. Ela nos pede
vingança em nome da religião, da moral e da liberdade. Onde você não levou a
desolação? Em que canto do mundo uma família escapou de suas devastações?
A voz do mundo o declara o maior culpado que jamais houve sobre a
terra, pois não foi sobre as pessoas bárbaras e sobre as nações degeneradas que
você verteu tanto mal; foi no meio da civilização, num século de luzes, que você
quis reinar pela espada de Átila e pelas sentenças de Nero.”
François-René de Chateaubriand. De Buonaparte et des Bourbons, 1814. In: CASTA, M.;
DOUBLET, F. (Coord.) Histoire Géographie. 4. ed. Paris: Magnard, 1998. p. 75.

“A Retirada de Napoleão Bonaparte de Moscou”, de Adolph Northen, c1860. Uma imagem do


imperador francês muito diferente aquela feita por Jacques-Louis David.
8. Napoleão Bonaparte condenado pelo Senado francês

“Considerando que Napoleão Bonaparte levou a cabo uma série de


guerras em violação ao artigo 50 da Constituição que estabelece que a
declaração de guerra deve ser proposta, discutida, decretada e promulgada
como uma lei; (…)
— Procurando fazer considerar como nacional uma guerra que não tinha
outra motivação senão o interesse de uma ambição desmedida; (…)
— Considerando que a liberdade de imprensa, estabelecida e consagrada
como um dos direitos da nação, foi, constantemente, submetida à censura
arbitrária de sua polícia (…);
— Pelo abuso que fez de todos os meios que lhe foram confiados,
humanos e financeiros;
— Pelo abandono dos feridos sem remédios, sem socorro e sem meios de
subsistência;
— Por diversas ações cujas consequências eram a ruína das cidades, o
despovoamento dos campos, a fome e as doenças contagiosas;
(…) O Senado declara e decreta o seguinte:
Artigo 1º. Napoleão Bonaparte é deposto do trono e o direito de
hereditariedade é abolido para sua família.”
Decreto do Senado, 3 de abril de 1814. In: FREITAS, G. 900 Textos e Documentos de
História. Lisboa: Plátano, 1978. v. III. p. 62.

9. Napoleão Bonaparte por ele mesmo

“Na minha carreira se encontrarão erros, sem dúvida; mas (…) eu soterrei
o abismo anárquico e pus ordem no caos. Eu limpei a Revolução, enobreci os
povos e fortaleci os reis. (…) Minha ambição foi a de consagrar o império da
razão (…). Milhares de séculos decorrerão antes que as circunstâncias
acumuladas sobre minha cabeça encontrem um outro na multidão para
reproduzir o mesmo espetáculo.”
Napoleão Bonaparte. O Processo Napoleão. In: FREITAS, G. op. cit., p. 124.

10. Napoleão Bonaparte para a França

Napoleão Bonaparte faleceu em 5 de maio de 1821, na ilha de Santa


Helena onde estava exilado havia cinco anos e meio. Ao morrer, estava onze
quilos mais magro em consequência do câncer no estômago e dos remédios
utilizados na época, à base de arsênio e solventes.
Sua morte não provocou, inicialmente, uma comoção na França. No
entanto, ao longo daquela década, um verdadeiro culto a Napoleão foi ganhando
força. Passou a circular, entre o povo, estampas do imperador falecido, relatos e
canções populares que contribuíram para a formação do mito do herói militar,
do salvador da pátria, do herdeiro da Revolução Francesa.
Cortejo fúnebre dos restos mortais de Napoleão Bonaparte, gravura, 1840.

Foi durante o reinado de Luís Filipe (1830-1848) que se obteve a


aprovação do governo britânico para transferir os restos mortais de Napoleão
para a França. O esforço fazia parte da política de Luís Filipe de exaltar “todas
as glórias da França”. Para isso, ele já tinha transformado o Palácio de Versalhes
em museu nacional e mandara esculpir em um de seus frontões “A todas as
glórias da França”.
Decidiu-se que os restos mortais do imperador seriam trazidos por um
esquadrão militar e não por um navio isolado. Na imprensa, começou uma
acalorada discussão sobre onde sepultá-los. Foram sugeridos muitos locais: a
basílica de Saint-Denis onde estavam enterrados os reis da França, o Panteão
onde estão sepultados os heróis nacionais, aos pés do Arco do Triunfo ou da
Coluna de Vendome, a igreja de Madeleine.
Ao final, votou-se fazer o sepultamento no Hôtel des Invalides (Palácio
dos Inválidos), edifício onde o imperador realizou as cerimônias oficias de
entrega das condecorações da Legião de Honra aos oficiais. Decidiu-se, também
que ninguém mais, no futuro, seria enterrado nos Invalides, que permaneceriam
reservados para Napoleão. O retorno de Napoleão foi saudado por escritores,
artistas e poetas:

“França, você o viu de novo! seu grito de alegria, ó França,


Cubra o barulho de seu canhão;
Seu povo, um povo inteiro que se precipita em suas praias,
Estenda seus braços a Napoleão”
(Casimir Delavigne, 1840)

“Céu congelado! sol puro! Oh! brilha na história!


Do triunfo fúnebre, a tocha imperial!
Que o povo guarde você em sua memória para sempre.
Dia tão belo quanto a glória,
Frio como o túmulo.”
(Victor Hugo, 1840)
Na manhã do dia 15 de dezembro de 1840, os restos mortais de Napoleão
Bonaparte chegaram a Paris. Sob um frio de –10 graus, uma multidão ocupou as
ruas por onde passou o cortejo fúnebre. Das janelas e dos telhados, muita gente
acenou para a carruagem puxada por 16 cavalos que levava o corpo de Napoleão
Bonaparte.
O cortejo passou sob o Arco do Triunfo, construído em 1806 por ordem
de Napoleão Bonaparte, em comemoração às suas vitórias militares. Seguiu
para o Hôtel des Invalides onde foi sepultado. Por nove dias (de 16 a 24 de
dezembro), a igreja de Les Invalides permaneceu aberta ao pública e iluminada
como o dia da cerimônia. O corpo do imperador permaneceu ali até ser
concluída sua tumba monumento em 1861.

- Arco do Triunfo, inspirado nos arcos triunfais do Império Romano, porém em


dimensões muito maiores.
- Túmulo de Napoleão Bonaparte, no Hôtel des Invalides, Paris.

Para alojar o enorme sarcófago, foi feita uma escavação circular sob a
cúpula dos Les Invalides. O sarcófago de quartzito vermelho da Finlândia,
esculpido com coroas de louro, foi colocado sobre uma base de granito verde. Ao
redor do túmulo, estão doze “Vitórias”, figuras femininas simbolizando as
campanhas militares de Napoleão Bonaparte. O nome das oito vitórias mais
famosas estão gravados no chão de mármore policromado que rodeia o túmulo.
O retorno do corpo de Napoleão à França teve dois objetivos: melhorar a
imagem da Monarquia de Julho e garantir uma certa glória para os
organizadores, Thiers e o rei Luís Filipe. O sucesso do empreendimento,
contudo, foi efêmero. A popularidade do rei diminuiu nos anos seguintes e ele
foi forçado a abdicar em fevereiro de 1848.
Cem anos após o retorno das cinzas de Napoleão Bonaparte, em 15 de
dezembro de 1940, a Alemanha devolveu à França os restos mortais do filho do
imperador com Maria Luísa, Napoleão Francisco Carlos José Bonaparte. Morto
em 1832, ele havia sido enterrado em Viena. A iniciativa de Hitler, em plena
Segunda Guerra Mundial, era um esforço para melhorar sua imagem junto aos
franceses, cujo país estava, então, ocupado pela Alemanha nazista. Os restos do
filho de Napoleão foram sepultados nos Les Invalides, ao lado do sarcófago do
pai. Na ocasião, os parisienses sussurram: “Eles nos tiram o carvão e nos
devolvem as cinzas!”. Em 18 de dezembro de 1969, o túmulo de Napoleão
Francisco foi removido para a cripta de Les Invalides e encontra-se, hoje, sob
uma placa de mármore.
Napoleão Bonaparte ajudou a criar as bases da França atual. No entanto,
esse modelo de Estado organizado foi alcançado por meio de vitórias militares e
trabalho escravo. Os que criticam o legado napoleônico lembram que o 
imperador cancelou a abolição da escravidão, em 1802, e criou um Código Civil
que colocava as mulheres em posição subalterna. Os historiadores, contudo,
consideram essas críticas como um anacronismo, um olhar do passado com os
olhos do presente, quando deveríamos compreender as ações das pessoas pelos
olhos do seu tempo (Zamoyski, 2020).
Fonte
ENGLUND, Steve. Napoleão: uma biografia política. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005.
BERTAUD, Jean-Paul. A queda de Napoleão. Rio de Janeiro: Zahar,
2014.
COLSON, Bruno (org) e BONAPARTE, Napoleão. Sobre a guerra. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileria, 2015.
LENTZ, Thierry. Napoleão. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
ZAMOYSKI, Adam. Napoleão, o homem por trás do mito. São Paulo:
Crítica, 2020. _________. 1812, a marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou.
Rio de Janeiro: Record, 2014. Entrevista de Andrew Roberts, autor de Napoleon
a life.

Leia aqui.
NEVES, Lúci Maria Bastos Pereira. O imperador e o monstro. Revista de
História de Biblioteca Nacional.

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