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FILOSOFIA En

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POR UMA INTELIGÊNCIA

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Volume

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DA COMPLEXIDADE único

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Celito Meier
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MANUAL DO PROFESSOR

Celito Meier
Bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos Superiores
da Companhia de Jesus, atual FAJE (Faculdade Jesuítica).
Graduado em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores
da Companhia de Jesus, atual FAJE (Faculdade Jesuítica).
Licenciado em Filosofia pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (Unisinos).
Especialista em Educação, em Metodologia do Ensino
Básico pelo Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais
de Minas Gerais (CEPEMG).
1a edição
Mestre em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores São Paulo, 2017
da Companhia de Jesus, atual FAJE (Faculdade Jesuítica).
Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Professor de Filosofia no Ensino Médio e Superior.

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Coleção Integralis
Filosofia − Volume único
© IBEP, 2017

Diretor superintendente
Jorge Yunes
Diretora editorial
Célia de Assis
Gerente editorial
FILOSOFIA
Maria Rocha Rodrigues
POR UMA INTELIGÊNCIA
Assessora editorial de conteúdos
e metodologias DA COMPLEXIDADE
Márcia Cristina Hipólide
Celito Meier
Coordenadora editorial
Simone Silva
Editor
Cesar Costa
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO
Editora assistente
NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Thais Ayumi Ogassawara
M559f
Revisão
Beatriz Chaves, Cristiane Mansor, Denise Meier, Celito
Santos, Luiz Gustavo Bazana, Mariana Góis, Filosofia: por uma inteligência da complexidade : ensino médio, volume único /
Renata Tavares, Salvine Maciel, Thais Coutinho Celito Meier. - 1. ed. - São Paulo : IBEP, 2017.
il. (Integralis ; volume único)
Secretaria editorial e Produção gráfica
Fredson Sampaio ISBN 9788534246262 (professor) 9788534246255 (estudante)

Assistente de secretaria editorial 1. Filosofia - Estudo e ensino (Ensino médio). I. Título. II. Série.
Mayara Silva
16-32365 CDD: 100
Assistentes de produção gráfica CDU: 1
Elaine Nunes, Marcelo Ribeiro 15/04/2016 18/04/2016
Coordenadora de arte
Karina Monteiro
Assistentes de arte
Aline Benitez, Gustavo Prado Ramos,
Marilia Vilela
Iconografia
Bruna Ishihara, Cristiano Vieira, Victoria Lopes, 1a edição – São Paulo – 2017
Wilson de Castilho Todos os direitos reservados
Cartografia
Mario Yoshida
Processos editoriais e tecnologia
Elza Mizue Hata Fujihara
Av. Dr. Antônio João Abdalla, 260 – Bloco 400, Área D, Sala W1
Projeto gráfico e capa Bairro Empresarial Colina – Cajamar – SP – 07750-020 – Brasil
Departamento de Arte – IBEP Tel.: (11) 2799-7799 www.ibep-nacional.com.br editoras@ibep-nacional.com.br

Imagem da capa
Preto e violeta (1923), de Wassily Kandinsky.
Óleo sobre tela, 77,8 cm × 100,4 cm (detalhe)
Walter Bechtler Collection, Suíça
Diagramação
Departamento de Arte – IBEP

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APRESENTAÇÃO
Este livro de filosofia foi pensado e construído para ser instrumento a serviço da formação de uma
nova inteligência capaz de articular diferentes saberes na busca por uma compreensão mais radical
do pensamento e dos fenômenos que se referem à caminhada do ser humano.
A filosofia é aqui entendida como atitude e como saber. Como atitude, a filosofia é a busca
permanente pela verdade. Por essa razão, o diálogo ocupa lugar central na construção do conheci-
mento. A filosofia não deve ser vista como um saber acumulado que estudaremos, mas como uma
atitude investigativa a ser construída e como uma postura diferenciada diante da vida.
Em decorrência disso, o ato de filosofar parte da experiência da problematização como valor
metodológico; ou seja, é preciso aprender a estabelecer juízos críticos e sair da passividade de quem
acolhe saberes de modo comum. Por isso, a reflexão filosófica passa pelo despertar da consciência
para um olhar que aprende a ver o mundo de um modo diferente, compromissado com a ressigni-
ficação da própria existência, capaz de construir sentido, na interação com os outros, em atitude de
diálogo investigativo.
Enquanto saber, sua singularidade é seu caráter conceitual, resultado da busca por essências.
Por essa razão, a filosofia é um pensamento preocupado em descobrir fundamentos e pressupostos,
perseguindo, com rigor, um conhecimento sem contradições.
Sabemos, contudo, que a atitude e o saber filosófico não são espontâneos nem imediatos. Por
isso, é imprescindível visitarmos o passado e conhecer as muitas construções teóricas já realizadas, na
história da filosofia, sobre as grandes questões da vida. Para isso, o olhar histórico se torna recurso
legítimo e obrigatório, condição prévia para construir, com fundamentos rigorosos, um saber filosó-
fico comprometido com a problematização da vida social.
Assim, buscamos alcançar a reflexão filosófica com progressiva autonomia intelectual e ética, pre-
parando-nos para a inserção na vida adulta, no mundo do trabalho e das relações sociais mais amplas.

Bons estudos!

na

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CONHEÇA SEU LIVRO
ESTUDO DOS TEMAS
Seu livro está organizado em unidades que se dividem em eixos
temáticos. Cada eixo temático é composto por temas. Os temas
são apresentados no texto base, complementado por reflexões
de diferentes pensadores e filósofos, por imagens acompanhadas
de pequenos comentários que contextualizam, articulam e
estimulam a reflexão. Além disso, seções, sugestões de leitura e de
filmes contribuem para a reflexão e o debate dos temas, além de
aprofundar o estudo.

PROBLEMATIZANDO
Por meio da análise, interpretação e discussão das ideias articuladas
nos temas, imagens e textos filosóficos apresentados, você irá
desenvolver a atitude interrogativa e o espírito crítico, características
essenciais do pensamento filosófico.

PRODUÇÃO DE TEXTO
Por meio de propostas de redação de textos de natureza dissertativa
e argumentativa, priorizamos a construção conceitual, a explicitação
de relações e de justificativas, buscando articulações capazes de
proporcionar uma visão mais complexa do tema em questão. Nesta
seção desenvolve-se o momento fundamental para sistematizar e
sintetizar a aprendizagem construída.

OUTROS OLHARES
Você entrará em contato com pensamentos e
articulações de outras procedências, de múltiplas formas,
desenvolvendo o cultivo de habilidades e
competências relacionadas à leitura filosófica de
reflexões de outros gêneros e de outras áreas do saber.

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ATIVIDADES
Nesta seção, você encontrará atividades que o ajudarão a
compreender, interpretar, articular e sistematizar as temáticas
relacionadas à lógica.

PENSANDO CONCEITUALMENTE
Considerando que a filosofia é um pensamento conceitual, esta
seção traz uma reflexão sobre um conceito estruturante da filosofia
relacionado aos temas abordados em cada eixo temático.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAGEM


Somos seres em permanente formação. Por essa razão, para alimentar o espírito investigativo, esta
seção irá sugerir caminhos para o aprofundamento do estudo.

SUGESTÃO DE FILMES
Sugerimos alguns filmes e documentários que julgamos serem
excelentes instrumentos para a educação do nosso olhar e para a
aprendizagem do pensamento filosófico. Todo filme que julgamos
merecedor de nossa abordagem filosófica traz uma concepção de
conhecimento, de ser humano, de ética, de política ou de estética.

SUGESTÃO DE LEITURAS
No caminho para o aprofundamento de seus estudos e
aprendizagens, você poderá se orientar pelas indicações
bibliográficas que oferecemos, relacionadas a algumas temáticas.

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SUMÁRIO
UNIDADE 1 – A formação da consciência A caminhada da consciência mítica para a consciência
filosófica: da inquietude filosófica ...................................................................40
Problematizando ................................................................ 41
EIXO TEMÁTICO 1 – Condição humana ............. 14 Produção de texto .............................................................. 41
1. Natureza e cultura ................................................15 Pensando conceitualmente a consciência .......................... 43
Determinismo natural ................................................15
Condicionamento cultural ..........................................16 2. O nascimento da consciência filosófica ..................43
Os limites da liberdade ............................................... 16 A natureza, a necessidade e a
A cultura: processo e produto das linguagens .............18 [in]utilidade da filosofia .............................................43
A busca pela verdade e pela sabedoria ....................... 44
Outros olhares ................................................................... 18
Alimentando o espírito democrático ............................ 45
Problematizando ................................................................ 19 Postura crítica, radical, complexa e dinâmica ............... 45
Produção de texto .............................................................. 20 A inutilidade que realiza a filosofia ............................. 46
Sugestão de filmes ............................................................. 20 Problematizando ................................................................ 47
Pensando conceitualmente a natureza............................... 21 Produção de texto .............................................................. 47
Pensando conceitualmente o determinismo....................... 21 Sugestão de filme .............................................................. 48
2. O trabalho humano: fonte de cultura ...................22 Singularidade da filosofia como saber e atitude ..........48
Concepções de trabalho.............................................22 Habilidade de ver a realidade ..................................... 48
Problematizando ................................................................ 25 Sentimento e atitude de indignação ............................ 48
Desejo de conhecer radicalmente e processo de
Produção de texto .............................................................. 26
conscientização .......................................................... 49
Pensando conceitualmente a cultura ................................. 26 Habilidade de julgar com base em rigorosos critérios
Sugestão de filme .............................................................. 26 racionais .................................................................... 49
Pensando conceitualmente o trabalho ............................... 27 Permanente diálogo de busca ..................................... 49
3. Corpo e mente .......................................................27 Habilidade de contextualizar, relacionar, integrar ......... 50
Concepções dualista, monista e a solução dual ..........28 Filosofia: crítica das ideologias e do senso comum ......50
Concepção dualista .................................................... 28 A ideologia sob a ótica de A. Gramsci ......................... 51
Diferenciando ideologia e utopia ................................ 52
Problematizando ................................................................ 28
Diante da cultura do consumo .................................... 53
Concepção monista .................................................... 28
Solução dual .............................................................. 29 Problematizando ................................................................ 54
Problematizando ................................................................ 30 Outros olhares ................................................................... 55
Produção de texto .............................................................. 30 Produção de texto .............................................................. 56
Outros olhares ................................................................... 30 Sugestão de filmes ............................................................. 57

EIXO TEMÁTICO 2 – Experiência e UNIDADE 2 – Filosofia grega: origem,


racionalidade ..................................................... 32
fundamentos e sistematização
1. A consciência mítica ...............................................33
A identidade do mito .................................................33 EIXO TEMÁTICO 1 – Experiência e racionalidade ... 60
As funções do mito ....................................................34 1. Contexto: as novas condições históricas ................61
Problematizando ................................................................ 37 2. Os primeiros filósofos: naturalismo pré-socrático...62
Problematizando ................................................................ 38 A physis e a causalidade: o elemento primordial .........63
O mito contemporâneo ..............................................38 O logos e o Cosmo ....................................................64
Problematizando ................................................................ 40 As diversas escolas pré-socráticas ..............................64

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A Escola Jônica ..........................................................64 10. A lógica aristotélica ..............................................89
Tales e o princípio água .............................................. 64 Conhecendo conceitos e princípios da lógica ..............90
Anaximandro e o princípio indeterminado e ilimitado .. 65 Sentenças e proposições ............................................90
Anaxímenes e o princípio ar........................................ 65 Princípios da identidade, da não contradição e do
Problematizando ................................................................ 65 terceiro excluído ........................................................90
Pensando conceitualmente Cosmo e logos ........................ 66 A estrutura e as formas de uma proposição
Heráclito de Éfeso e o movimento dos contrários......... 66 declarativa.................................................................91
A luta e a harmonia dos contrários ............................. 67 Teoria do silogismo ....................................................94
O devir ....................................................................... 67 Estrutura e tipos de argumento ..................................94
O fogo, princípio explicativo ........................................ 67 Dedução .................................................................... 94
A Escola Eleática: Parmênides e a imutabilidade Indução...................................................................... 95
do ser........................................................................68 Analogia .................................................................... 96
Identidade entre ser, pensar e dizer ............................. 68 Regras fundamentais da inferência ............................. 96
Noções de validade, verdade e correção .....................96
Problematizando ................................................................ 69
Antecedente e decorrente (consequente)....................98
Outros olhares ................................................................... 69
As falácias no processo argumentativo .......................98
Pensando conceitualmente a essência ............................... 70 Falácias formais .......................................................... 99
Produção de texto .............................................................. 70 Falácias não formais ................................................... 99
3. Os sofistas e a oratória ..........................................71 Atividades ........................................................................ 101
Problematizando ................................................................ 73 Pensando conceitualmente dedução, indução, verdade
4. Humanismo e relativismo.......................................73 e validade ........................................................................ 103
Problematizando ................................................................ 74 Sugestão de leituras......................................................... 103
Produção de texto .............................................................. 74 EIXO TEMÁTICO 2 – Condição humana ........... 104
5. A busca dialética da verdade..................................75 1. A tripartição da alma............................................105
Aporia e consciência da busca ...................................76 A antropologia socrático-platônica ...........................105
Problematizando ................................................................ 77 Alegoria do cocheiro: o governo da alma racional ..... 106
Produção de texto .............................................................. 78 Problematizando .............................................................. 108
6. O conhecimento sensível e inteligível ....................78 2. A inquietude humana da busca: o amor,
Leitura epistemológica da alegoria da caverna: o amável, o belo ......................................................108
o visível e o inteligível ................................................80 Problematizando .............................................................. 109
Da dialética à intuição da verdade .............................81
3. O desejo da felicidade, fim absoluto ....................110
Problematizando ................................................................ 81
Problematizando .............................................................. 112
Produção de texto .............................................................. 82
Outros olhares ................................................................. 112
7. A filosofia e o espanto admirativo..........................82
Produção de texto ............................................................ 113
Problematizando ................................................................ 83
4. A dimensão política humana: a cidade
Produção de texto .............................................................. 83
e o cidadão ..............................................................113
8. Conhecimento, virtude e liberdade.........................83 Problematizando .............................................................. 114
Conhecimento e prática do bem.................................84
Conhecimento e conversão ética ................................84 EIXO TEMÁTICO 3 – Ética e política ................. 116
Problematizando ................................................................ 85 1. O nascimento da democracia ateniense ...............117
9. A metafísica e os campos do saber ........................85 Clístenes (565 a.C.-492 a.C.) ...................................117
As quatro causas: da potência ao ato .........................87 A era de Péricles ......................................................118
Problematizando ................................................................ 88 Problematizando .............................................................. 119
Produção de texto .............................................................. 88 2. O governante filósofo e a cidade justa .................119
Pensando conceitualmente a dialética ............................... 89 Problematizando .............................................................. 122

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3. Da democracia, da demagogia e da tirania ..........122 EIXO TEMÁTICO 2 – Condição humana ........... 149
Problematizando .............................................................. 123 1. O nascimento da filosofia medieval .....................150
4. Formas de governo...............................................123 Contexto histórico ...................................................151
Outros olhares ................................................................. 124 2. A antropologia patrística e medieval ....................152
Produção de texto ............................................................ 124 Agostinho, o pensador inquieto................................153
Pensando conceitualmente a virtude ............................... 125 Problematizando .............................................................. 154
Sugestão de leituras......................................................... 125 As antropologias cristãs de Agostinho e Tomás de Aquino .154
O ser humano como criatura na visão judaico-cristã .155
EIXO TEMÁTICO 4 – Arte e estética.................. 126 A questão do mal ....................................................156
1. A tragédia grega ..................................................127 Problematizando .............................................................. 157
A razão, o livre-arbítrio, a vontade e a graça .............158
2. A filosofia grega e a poesia ..................................128
Liberdade e vontade, razão e conhecimento .............. 158
Problematizando .............................................................. 130
Problematizando .............................................................. 159
3. O belo ..................................................................130 Na essência, o amor ................................................159
Produção de texto ............................................................ 131 As inclinações do amor ............................................. 159
4. Arte e técnica: a dimensão poiética......................131 Problematizando .............................................................. 160
Problematizando .............................................................. 132 Problematizando .............................................................. 161
5. Experiência, arte e ciência ....................................133 Produção de texto ............................................................ 162
Pensando conceitualmente a liberdade............................ 162
6. Mímesis e kátharsis..............................................134
Problematizando .............................................................. 135 EIXO TEMÁTICO 3 – Experiência e racionalidade . 163
Produção de texto ............................................................ 135 1. A filosofia medieval ..............................................164
UNIDADE 3 – Helenismo e filosofia medieval: 2. Subjetividade e interioridade ...............................165
da razão e da fé Problematizando .............................................................. 166
3. Fé e razão.............................................................166
EIXO TEMÁTICO 1 – As escolas helenísticas..... 138 Crer para entender e entender para crer ...................167
1. A passagem da era clássica para a Fé e razão: superioridade, complementaridade e
era helenística ....................................................... 139 não contradição.......................................................168
Contexto histórico ...................................................139 Tomás de Aquino e as vias que levam a razão
2. Epicurismo: felicidade e prazer da humana a Deus .......................................................170
vida oculta e moderada........................................140 Problematizando .............................................................. 171
A filosofia e a vida prazerosa ...................................140 4. A controvérsia sobre os universais .......................172
Verdadeiros e falsos prazeres ...................................141 As diferentes abordagens ........................................172
Problematizando .............................................................. 142 O realismo ............................................................... 172
Produção de texto ............................................................ 143 O nominalismo ......................................................... 173
O conceitualismo ...................................................... 173
3. Estoicismo: ética, destino e liberdade...................143
Problematizando .............................................................. 173
Problematizando .............................................................. 145
Entre a vida breve e a vida profunda ........................145 5. Nos caminhos da dúvida e da dialética ................174
Problematizando .............................................................. 145 A razão dialética em Abelardo..................................174
Problematizando .............................................................. 175
4. O ceticismo: conhecimento, suspensão de juízo
e serenidade ............................................................146 Produção de texto ............................................................ 175
Método: suspensão do juízo.....................................147 EIXO TEMÁTICO 4 – Ética e política ................. 176
Problematizando .............................................................. 147
1. Os dois poderes: a Igreja e o Estado ....................177
Produção de texto ............................................................ 147 Pode-se falar em Estado?.........................................177
Pensando conceitualmente a felicidade ........................... 148 O fundamento da autoridade ...................................177
Problematizando .............................................................. 148 A monarquia e o bem comum ..................................178
Sugestão de leituras......................................................... 148 Problematizando .............................................................. 179

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2. A felicidade como bem supremo ..........................179 Problematizando .............................................................. 209
O sentido da história e a responsabilidade humana ..179 Produção de texto ............................................................ 209
3. Teoria do direito em Tomás de Aquino..................180 4. O método científico e a nova ciência em Francis
Lei divina eterna, lei natural, lei humana e lei divina Bacon .......................................................................210
positiva ...................................................................180 A interpretação da natureza.....................................211
Problematizando .............................................................. 181 As falsas noções ou ídolos .......................................212
Problematizando .............................................................. 182 Ídolos da tribo .......................................................... 212
Ídolos da caverna ..................................................... 212
Produção de texto ............................................................ 182
Ídolos da feira ou do mercado .................................. 212
4. Ética da intenção..................................................182 Ídolos do teatro ........................................................ 212
Problematizando .............................................................. 183 As tábuas da investigação .......................................213
Problematizando .............................................................. 213
EIXO TEMÁTICO 5 – Arte e estética.................. 184
Produção de texto ............................................................ 213
1. Visão teocêntrica da arte......................................185
5. O racionalismo de René Descartes .......................214
2. A teoria do belo em Agostinho .............................186 Regras para o conhecimento seguro .........................214
3. Condições para a beleza em Tomás de Aquino.....188 A dúvida metódica...................................................215
Problematizando .............................................................. 189 Problematizando .............................................................. 217
Sugestão de leituras......................................................... 189 As ideias inatas, as ideias adventícias
e as ideias factícias ..................................................217
UNIDADE 4 – A filosofia e o espírito moderno Produção de texto ............................................................ 218
6. O empirismo de David Hume ...............................218
EIXO TEMÁTICO 1 – Condição humana ........... 192 Os sentidos: fonte do conhecimento .........................218
1. A mentalidade renascentista ................................193 Da origem das ideias ...............................................219
A virtude: conquista de si mesmo .............................194 Do nexo causal ........................................................219
Problematizando .............................................................. 194 Da força do hábito ...................................................220
2. A autonomia e a dignidade humana ....................195 Problematizando .............................................................. 221
Problematizando .............................................................. 195 Produção de texto ............................................................ 221

3. A dimensão social do ser humano ........................196 7. Nem racionalismo, nem empirismo: o racionalismo
Problematizando .............................................................. 197
crítico em Kant .........................................................222
A filosofia kantiana: o racionalismo crítico ................222
4. A diversidade cultural...........................................197 Juízos analíticos e juízos sintéticos ...........................223
Problematizando .............................................................. 198 Uma nova “revolução copernicana” .........................223
Produção de texto ............................................................ 199 Problematizando .............................................................. 224
5. O Iluminismo e o antropocentrismo moderno ......199 Formas da sensibilidade e do entendimento .............224
Formas a priori da sensibilidade ................................ 224
Problematizando .............................................................. 200
Formas a priori do entendimento .............................. 224
Crítica ao Iluminismo ...............................................200
O fenômeno e o noumenon .....................................225
Outros olhares ................................................................. 201
Produção de texto ............................................................ 225
Produção de texto ............................................................ 201
EIXO TEMÁTICO 3 – Ética e política ................. 226
EIXO TEMÁTICO 2 – Experiência e
1. Autonomia da política em Maquiavel ..................227
racionalidade .......................................................202
O realismo e a verdade efetiva .................................227
1. Noção de experiência em Leonardo da Vinci ........203 A virtude política .....................................................228
Problematizando .............................................................. 204 A relação entre virtù e fortuna .................................229
2. Do modelo aristotélico-ptolomaico ao A liberdade republicana ...........................................230
copernicano .............................................................204 Problematizando .............................................................. 231
Problematizando .............................................................. 206 Produção de texto ............................................................ 231
3. Galileu e Kepler: o nascimento da ciência 2. A utopia política em Thomas Morus .....................232
moderna ..................................................................206 Problematizando .............................................................. 233

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3. A soberania política em Jean Bodin .....................233 3. O padrão do gosto em David Hume .....................264
Problematizando .............................................................. 233 Problematizando .............................................................. 265
Produção de texto ............................................................ 233 4. A estética kantiana...............................................265
4. O direito natural e o direito positivo ....................234 A atitude estética contemplativa ..............................266
Produção de texto ............................................................ 234 O juízo estético ........................................................266
A universalidade do juízo estético ............................268
5. A hipótese do estado natural ...............................235
O estado natural em Hobbes ....................................235 Problematizando .............................................................. 269
Problematizando .............................................................. 237 5. Educação estética e moralidade em Schiller.........269
Direito de natureza e lei de natureza ........................238 Problematizando .............................................................. 271
Produção de texto ............................................................ 238 Produção de texto ............................................................ 271
Problematizando .............................................................. 239 6. A superação da arte em Hegel .............................271
O estado natural em Locke.......................................239 As realizações do espírito: arte, religião e filosofia ....271
Problematizando .............................................................. 240 O momento da arte como momento da exterioridade
O estado natural em Rousseau.................................240 sensível ...................................................................272
Problematizando .............................................................. 241 A necessidade do fim da arte ...................................273
6. Do estado natural ao corpo político .....................241 Problematizando .............................................................. 276
O pacto social em Hobbes........................................241 Sugestão de leituras......................................................... 277
Regras fundamentais para a vida em sociedade........241
O Estado absolutista ................................................243 UNIDADE 5 – Filosofia contemporânea: da
Problematizando .............................................................. 244 crise e da possibilidade
O pacto social em Locke: constitucionalismo liberal ..245
Da divisão dos poderes ............................................246 EIXO TEMÁTICO 1 – Condição humana ........... 280
Problematizando .............................................................. 246 1. Olhares contemporâneos .....................................281
O contrato social em Rousseau: o ideal da 2. Schopenhauer e o princípio da vontade ...............282
democracia ..............................................................246 A negação da vontade: arte, compaixão e ascese .....284
Problematizando .............................................................. 249 Problematizando .............................................................. 284
Produção de texto ............................................................ 249 Produção de texto ............................................................ 284
7. As três espécies de governo em Montesquieu ......249 3. Kierkegaard: a existência humana........................285
Problematizando .............................................................. 250 Problematizando .............................................................. 286
Produção de texto ............................................................ 251
4. Nietzsche: ser humano como paixão e vontade de
8. A filosofia moral em Kant.....................................251 potência ...................................................................286
Natureza e liberdade ...............................................251 O resgate dos valores da tragédia grega...................286
A boa vontade, a máxima e a virtude .......................252 Vida autêntica: o ser humano como fim ...................287
A vida racional e a ética do dever.............................253 O indivíduo soberano e a crítica à moral tradicional .......288
O sujeito autônomo .................................................254 Problematizando .............................................................. 288
Agir de acordo com o dever e agir por dever ............254 As três metamorfoses do espírito .............................289
Imperativos hipotéticos e categóricos .......................255
Produção de texto ............................................................ 290
Reino dos fins ..........................................................256
Problematizando .............................................................. 256
5. O existencialismo e a afirmação da liberdade ......290
Heidegger: vida autêntica e vida inautêntica ............290
Produção de texto ............................................................ 256
Problematizando .............................................................. 291
EIXO TEMÁTICO 4 – Arte e estética.................. 257 Outros olhares ................................................................. 291
1. O Renascimento artístico .....................................258 Sartre: a consciência e a náusea ...............................292
Princípios da estética renascentista ..........................260 A consciência, a liberdade e a indeterminação humana .... 292
Problematizando .............................................................. 261 Problematizando .............................................................. 294

2. Arte e consciência moderna .................................262 Produção de texto ............................................................ 294


O romantismo e o realismo ......................................262 6. O ser humano sob o olhar da neurociência ..........295

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Problematizando .............................................................. 296 e Friedrich Engels .....................................................324
Sugestão de filmes ........................................................... 296 A crítica da ideologia ...............................................325
Sugestão de leituras......................................................... 296 O materialismo histórico e dialético..........................326
Capitalismo: trabalho e alienação ............................327
EIXO TEMÁTICO 2 – Experiência e racionalidade 297
Problematizando .............................................................. 329
1.O positivismo e o progresso do espírito humano ..298 Produção de texto ............................................................ 329
A Revolução Industrial e o otimismo moderno ..........298
Pensando conceitualmente a ideologia e a alienação ...... 329
O progresso do espírito humano ..............................299
Problematizando .............................................................. 302 2. O sentido da política em Hannah Arendt .............330
Produção de texto ............................................................ 302 A banalidade do mal ...............................................330
Problematizando .............................................................. 332
2. A filosofia da linguagem e o positivismo lógico ...302
O positivismo lógico do Círculo de Viena ..................303 Produção de texto ............................................................ 332
A ação política ........................................................333
3. A lógica simbólica ................................................303
Proposição × paradoxo ............................................304 Da revolução ............................................................ 333
Proposições simples e compostas .............................304 Outros olhares ................................................................. 335
Negação (símbolo ~ ou ¬) .......................................305 Problematizando .............................................................. 335
Conjunção (símbolo ∧) ............................................306 Produção de texto ............................................................ 336
Disjunção (símbolo ∨) ..............................................306
Sugestão de leituras......................................................... 336
Condicional .............................................................307
Atividades ........................................................................ 308 3. Ética do discurso: da ação estratégica à ação
Equivalência (bicondicional) .....................................309 comunicativa............................................................336
Regras da proposição composta ...............................310 Problematizando .............................................................. 338
Atividades ........................................................................ 311 Sugestão de leituras......................................................... 338
Tautologia ...............................................................312
Contradição.............................................................313
4. Liberalismo e comunitarismo ...............................338
Contingência ...........................................................313 Problematizando .............................................................. 339
Atividades ........................................................................ 313 Produção de texto ............................................................ 340
4. A filosofia da ciência de Karl Popper ....................314 Sugestão de filmes ........................................................... 340
O problema da indução ...........................................315
EIXO TEMÁTICO 4 – Arte e estética.................. 341
Problematizando .............................................................. 315
1. Arte como intuição e criação subjetiva .................342
Produção de texto ............................................................ 316
Problematizando .............................................................. 344
Sugestão de filmes ........................................................... 316
5. A crise da razão: a Escola de Frankfurt .................316 2. Arte e cultura .......................................................344
Diferentes momentos do pensamento crítico da Produção de texto ............................................................ 345
Escola de Frankfurt ..................................................317 3. A arte de viver em Nietzsche ................................346
Problematizando .............................................................. 319 Problematizando .............................................................. 347
Produção de texto ............................................................ 319
4. Arte, fantasia e sublimação em Freud...................348
6. Bioética: princípios e fundamentos ......................319 Outros olhares ................................................................. 351
Princípios da bioética ...............................................320
Problematizando .............................................................. 351
O princípio da beneficência e o da não maleficência .. 320
O princípio do respeito à autonomia ......................... 320 5. Indústria cultural e cultura de massa ...................352
O princípio de justiça ................................................ 321 Problematizando .............................................................. 353
Problematizando .............................................................. 322 Produção de texto ............................................................ 353
Sugestão de leituras......................................................... 322 Sugestão de filmes ........................................................... 353
Sugestão de filmes ........................................................... 322
Para não concluir ............................................. 354
EIXO TEMÁTICO 3 – Ética e política ................. 323 O sobrevoo do pensamento criando conceitos ..........354
1. O materialismo histórico e dialético de Karl Marx Referências bibliográficas ................................................ 358

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A FORMAÇÃO DA
CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA:
DA INQUIETUDE
MUSEU HERMITAGE, SÃO PETERSBUGO, RÚSSIA

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1
Unidade
Unidade

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1
Eixo Temático

CONDIÇÃO
HUMANA

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
• A relação entre humanização e cultura.
Você

• A questão da liberdade e o determinismo


natural.
• A consciência do determinismo e a
dignidade humana.
• A liberdade situada.
• As diferentes concepções de trabalho.
• O fenômeno da alienação.
• As diferentes concepções sobre a relação
entre corpo e mente.

Converse com os estudantes sobre o que eles entendem por “condição humana”.

Temas:
1. Natureza e cultura
2. O trabalho humano: fonte de cultura
3. Corpo e mente

Este tema é comum à Sociologia. Busque uma abordagem interdisciplinar, especialmente com as Ciências Humanas, sem esquecer a Literatura. Existem diversos textos que interpelam o leitor
sobre a condição humana. Entre as muitas possibilidades de abordagem destacamos: a análise interdisciplinar do filme O enigma de Kaspar Hauser; a leitura interdisciplinar do livro de Primo
Levi, É isto um homem?; o poema "O bicho", de Manoel Bandeira. Trata-se de abordar o tema do processo de humanização/desumanização do ser humano, a passagem da natureza à cultura.

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CARLOS PAES/FREEIMAGES
1. NATUREZA E CULTURA

O barco segue a direção do vento (determinismo) ou o velejador usa a força do vento para navegar na direção escolhida,
inclusive contra o vento (liberdade e cultura)?

Quando nascemos, já somos humanos? Ou nos tornamos humanos ao longo da vida? Cada um de nós, ao
nascer, é acolhido dentro de uma tradição cultural, na qual é educado, e dentro da qual conhecerá os primei-
ros juízos morais. Para muitos filósofos e cientistas sociais, a humanização do ser humano acontece somente
na cultura, por mediação das linguagens humanas, da educação, do mito, da religião, do trabalho, da arte,
da ciência, da tecnologia etc. Segundo essa visão, sem essas mediações culturais não haveria possibilidade de
superarmos a nossa primeira natureza animal. Assim, existe no ser humano uma potencialidade que, sendo
cultivada, cria humanidade, cria cultura. Que potencialidade é essa? Qual é essa singularidade humana?

Determinismo natural
No mundo animal, o determinismo rege a vida. Não há possibilidade de liberdade, uma vez que o ins-
tinto natural conduz a vida dos animais. A vida animal é determinada por seu instinto. Dessa forma, o ser
humano, por participar da natureza animal, encontra-se também preso a determinismos: tem um corpo
sujeito às leis da física e da química; é um ser vivo que pode ser compreendido pela biologia; é um ser que
tem necessidades, determinismos constitutivos de sua natureza. Não há como negar os determinismos,
ignorá-los, viver sem eles.
No senso comum, costumamos ouvir as expressões “gostaria de ser livre feito um pássaro” ou “feliz
é a borboleta que voa para onde quer”. Contudo, o voo do pássaro não acontece devido a uma necessi-
dade imposta por sua natureza? Isso parece ser programação genética. E, sendo determinismo, pode-se
falar em liberdade? Assim, parece que o voo livre de uma borboleta ou de um pássaro é uma ilusão, uma
vez que esses animais têm suas ações determinadas por seu instinto de sobrevivência. Não há liberdade
quando o instinto governa. A liberdade acontece na medida em que reina a consciência, atributo exclu-
sivo dos seres humanos. Após a leitura do texto, converse com os estudantes sobre o significado de “determinismo natural”. Se possível, inicie a discussão
levantando as diferenças entre esse conceito e o que o senso comum diz a respeito.
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Condicionamento cultural
Sendo assim, será que podemos afirmar a absoluta liberdade humana? Estará
o ser humano acima do reino animal? Parece que incorremos em engano seme-
lhante ao considerarmos que o ser humano seja capaz de liberdade absoluta, pois
sempre estará também submetido tanto a determinismos naturais como aos con-
dicionamentos físicos e culturais, uma vez que ser humano é ser animal situado
em um contexto social e cultural.
Entretanto, o ser humano nunca será apenas determinismo, o que seria a au-
sência da liberdade. Ele é também consciência dos determinismos. Isso significa
que, ao tomar consciência da necessidade de certas ações, ele tem o poder ou
a capacidade de distanciamento crítico desse impulso físico. Ele deixa de ser um
JONATHAN DUTY/FREEIMAGES

animal submetido passivamente aos comandos do determinismo e passa a ser um


animal capaz de realizar uma ação consciente, capaz de trabalhar e gerenciar o
comando que vem de sua primeira natureza animal.
Vamos nos servir do exemplo de um velejador que, em alto-mar, é capaz de
navegar contra o vento servindo-se da própria força do vento. A embarcação
não necessariamente tem de ir para onde o vento a empurra. Assim, na medida
em que conhecemos as leis da natureza podemos melhor delas nos servir, para
imprimir a direção que pretendemos dar à nossa vida. Assim como o velejador
aprendeu a conhecer o mar, o vento, a vela, o casco e usa esse conhecimento
para saber como aplicar a inteligência e dirigir o barco para a direção escolhida,
o ser humano pode aprender a governar o próprio corpo. Da mesma forma que
O voo do pássaro é um aviador é capaz de voar alto, longe e velozmente, com base no conhecimento
expressão de uma lei das leis da aerodinâmica, o ser humano, conhecendo melhor a dinâmica de suas
natural. Trata-se de uma paixões e desejos, pode projetar-se melhor na vida, com consciência e liberdade
necessidade. e, por isso, com responsabilidade.
Há uma programação
genética no mundo animal Assim, diferentemente dos demais seres, a dignidade humana consiste na li-
que nos faz afirmar o berdade de poder fazer-se e destinar-se. Dessa forma, embora a dignidade huma-
determinismo, a ausência na seja inerente ao ser humano, é também conquista, pois deve ser cultivada; não
de liberdade, a ausência da
é algo dado e acabado. Com isso, afirmamos a dimensão perfectível da condição
capacidade de consciência e
distanciamento reflexivo. humana; ou seja, o ser humano encontra-se em formação, caminhando na dire-
ção de um horizonte maior, buscando perfeição.
Após a leitura do texto, converse com os estudantes sobre as relações entre condição humana
Os limites da liberdade equeliberdade absoluta. Solicite a cada estudante que dê exemplos de sua experiência pessoal
indiquem não haver a possibilidade de existir liberdade absoluta para os seres humanos.
Mas como podemos caminhar em direção a um horizonte se não nos coloca-
mos margens e limites, feito um rio que flui em direção ao mar? Como é possível
chegar a um lugar almejado, sem o limite do foco? A nossa história nos revela
Explore a abordagem que considera os limites que somos capazes de, livremente, vincular-nos a um limite para realizarmos a
ou os condicionantes da liberdade do ser nossa liberdade. Criamos leis para nos proteger e possibilitar a vida em socieda-
humano. Em termos interdisciplinares, pode-se
abordar com a Sociologia a ideia de fato social de. Dessa forma, a obediência à lei que nos impomos é liberdade, é obediência à
e relacionar essa reflexão com a concepção
estruturalista. nossa vontade guiada pela razão. Por isso, não há liberdade sem a garantia da lei;
ou seja, à margem da lei não há liberdade, há paixão cega, há domínio, imposi-
ção de uns sobre outros. Na liberdade, encontraremos a obediência, mas nunca
a servidão. E é tão somente pela força da lei, na busca do bem comum, que se é
capaz de obedecer a comandos dos seres humanos.
Quando falamos que a liberdade se coloca no horizonte da cultura, é muito
frequente a reação de estranhamento. Habitualmente, as pessoas não costu-
mam associar liberdade e cultura. Pensa-se na cultura somente como um limite
para a liberdade.

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Na condição de seres materiais e espirituais, de natureza corpórea e psíquica, somos necessidade e li-
berdade, dado e tarefa, situação e horizonte. Nunca nos encontramos prontos e concluídos, sentimo-nos
sempre ainda muito longe do que poderíamos ou gostaríamos de ser. E será na cultura que teremos a
possibilidade de nos fazermos, de forma imprevisível. Se a matéria é necessidade, uma vez que o corpo
está submetido às leis da natureza, a consciência (mente) é liberdade. E o existir humano é precisamente a
liberdade inserindo-se na necessidade e moldando-a em conformidade com sua projeção.
A partir de nossa consciência, considerando a situação na qual estamos inseridos, vamos nos modelan-
do ao longo da vida. Dessa forma, liberdade não significa ausência de necessidades e determinismos, mas
muito mais a consciência dos determinismos e condicionamentos e a capacidade de assumi-los na vida.
A condição humana sempre se realiza dentro de um meio sociocultural, que marca profundamente a
ação humana. Dessa forma, a cultura condiciona nossa forma de pensamento e de ação, ao mesmo tempo
em que somente podemos ser e agir na condição de seres situados em um contexto cultural. Por isso, a
cultura, ao mesmo tempo em que nos limita, é também a nossa possibilidade de projeção e realização.
Portanto, toda liberdade é situada; ou seja, não há liberdade absoluta. O ser humano sempre se encontra
situado em um corpo, em uma cultura, com formas singulares de pensamento.

GALERIA ISY BRACHOT, BRUXELAS, BÉLGICA/FOTOTECA RENÉ


MAGRITTE/LICENCIADO POR AUTVIS, BRASIL, 2015
Nostalgia (1928), de René Magritte. Óleo sobre tela,
102 cm × 81 cm.
Sendo menos adaptado à natureza e o mais frágil
dos animais, o ser humano encontra, em sua mente,
o poder de transcender e criar novos mundos,
adaptando a natureza a si, criando cultura.
Com as asas da imaginação, o ser humano vai se
distanciando do mundo natural.
ANNA LINK/SHUTTERSTOCK

Mesmo relativamente limitado em sua liberdade de ir e vir, o ser


humano permanece livre. Essa liberdade se realiza em contexto de
normas e de leis, que existem para garantir a integridade pessoal.
Assim, usar a faixa de pedestres, parar no sinal vermelho, aguardar o
sinal verde são limites que possibilitam a vida, pois a protegem.

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A cultura: processo e produto das linguagens
Converse com os estudantes sobre os símbolos que caracterizam a sociedade em que eles vivem.

Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou
nossos ancestrais antropoides em homens e fê-los humanos. Todas as civilizações se espalharam e
perpetuaram somente pelo uso de símbolos.
WHITE, Leslie. The symbol: the origin and basis of humans behavior. In: CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Otávio.
Homem e sociedade. 5. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1970. p. 180.

Quando você ouve a palavra cultura, em que pensa? Essa palavra vem sendo usada com diferentes signifi-
cações. Muitas vezes ouvimos expressões: “pessoa de cultura”, “cultura do café”, “cultura brasileira”, “cultura
de primeiro mundo”. Por isso, convém delimitarmos o sentido no qual falamos.
Partindo da etimologia, essa palavra deriva do verbo latino colere, que significa “cultivar”, “criar”,
“cuidar”. Assim, chamamos de cultura tudo o que foi cultivado e criado pelo fazer humano, tanto material
como espiritualmente; ou seja, tanto no mundo das coisas, como no universo das ideias e pensamentos.
Dessa maneira, a característica humana fundamental é ser cultural, criativo, ser transformador, construtor
de sentido.
Nas ciências humanas e sociais costumava-se atribuir a dimensão cultural somente aos seres humanos,
por apresentarem uma inteligência abstrata, um poder criativo, uma capacidade simbólica. Contudo, nas úl-
timas décadas, especialmente a partir de 1990, surgem significativas iniciativas no campo da antropologia,
relacionadas a um redimensionamento das concepções de natureza e cultura, influenciadas pela produção
dos pesquisadores que se dedicaram ao estudo do comportamento de grandes símios, especialmente os
chimpanzés. Esses pesquisadores afirmaram a existência de culturas em diferentes grupos de chimpanzés,
por apresentarem complexidade em seus comportamentos, cognição e inteligência.

OUTROS OLHARES
1. Vejamos o fragmento a seguir, sob a perspectiva da antropologia biológica.

No momento em que grupos de chimpanzés passaram a ser identificados como grupos sociais,
foi possível analisar as interações que estabelecem entre si pelas chaves da aliança e do conflito,
observando a importância do status e das vantagens adquiridas por cada chimpanzé no interior de
seu grupo, bem como os ganhos advindos de suas capacidades de dissimular diante dos mais fortes,
o potencial para reagir diante do inesperado e a transmissão de conhecimento adquirido aos mais
jovens, mediados pelo que os pesquisadores têm chamado de “tradição”. [...]
A reunião e a abordagem comparativa do material recolhido referente ao comportamento de di-
ferentes grupos de chimpanzés levou um conjunto de alguns dos maiores estudiosos do assunto a
afirmarem a existência de “culturas de chimpanzés”, devido à identificação dos fenômenos relacio-
nados à aquisição, à variabilidade e à transmissão de comportamentos duráveis e generalizáveis em
populações distintas.
RAPCHAN, Eliane Sebeika. Sobre o comportamento de chimpanzés: o que antropólogos e primatólogos
podem ensinar sobre o assunto? Horizontes antropológicos, Porto Alegre, v. 16, n. 33, 2010.

• Com base no texto, quais são os elementos que permitem a formulação do conceito “culturas de
chimpanzés”?
Vem crescendo o número de pesquisas e publicações que problematizam a ideia de irracionalidade, que caracterizaria genericamente os não humanos. Entre essas pesquisas destacam-se aquelas
relacionadas a complexos sistemas de comunicação que existiriam, por exemplo, em golfinhos, em cães-da-pradaria (roedores que vivem em deserto da América do Norte), em elefantes, em
babuínos e em papagaios, por exemplo. Sobre esse tema, acesse o site: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/07/140701_ciencia_chimpanzes_hb> (acesso em: 14 maio 2016).

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PROBLEMATIZANDO
1. No senso comum, liberdade não combina com limite. Se há limite, então, normalmente se diz não ha-
ver liberdade. Você se lembra da metáfora que usamos no texto sob o título “Os limites da liberdade”?
Um rio sem margem não chega a lugar nenhum. A margem, ao limitar o rio, propicia a força e o foco
necessários para fluir em direção ao mar.
• Observe a pintura abaixo e compartilhe com os colegas a sua reflexão sobre liberdade e limite,
posicionando-se sobre as questões a seguir:
MUSEU MUNCH, OSLO, NORUEGA/©THE MUNCH MUSEUM/THE
MUNCH ELLINGSEN GROUP/LICENCIADO POR AUTVIS, BRASIL, 2015

O dia seguinte (1894),


de Edvard Munch.
Óleo sobre tela,
115 cm × 152 cm.

a. A situação representada nessa imagem pode ser interpretada como fruto da liberdade?
b. O impulso é uma forma de comando?
c. Será isso humanidade? Será isso liberdade?
2. Leia a seguir um texto de Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço que viveu no século XVIII.

Em cada animal vejo somente uma máquina se entregam a excessos que lhes causam febre e
engenhosa a que a natureza conferiu sentidos morte, porque o espírito deprava os sentidos e
para recompor-se por si mesma e para defender- a vontade ainda fala quando a natureza se cala.
-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a des- Todo animal tem ideias, posto que tem sen-
truí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na tidos; chega mesmo a combinar suas ideias até
máquina humana, com a diferença de tudo fazer certo ponto e o homem, a esse respeito, só é
sozinha a natureza nas operações do animal, en- diferente da besta pela intensidade [...]. Não é,
quanto o homem executa as suas como agente li- pois, tanto o entendimento quanto a qualida-
vre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, de de agente livre possuída pelo homem que
por um ato de liberdade, razão porque o animal constitui, entre os animais, a distinção espe-
não pode desviar-se da regra que lhe é prescri- cífica daquele. A natureza manda em todos os
ta, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e animais, e a besta obedece. O homem sofre a
o homem, em seu prejuízo, frequentemente se mesma influência, mas considera-se livre para
afasta dela. Assim, um pombo morreria de fome concordar ou resistir, e é sobretudo na consci-
perto de um prato cheio das melhores carnes e ência dessa liberdade que se mostra a espiritua-
um gato sobre um monte de frutas ou sementes, lidade de sua alma. [...]
embora tanto um quanto outro pudessem ali- Mas, ainda quando as dificuldades que cercam
mentar-se muito bem com o alimento que des- todas essas questões deixassem por um instante
denham, se fosse atilado para tentá-lo (se ousas- de causar discussão sobre diferença entre o ho-
se experimentá-lo); assim, os homens dissolutos mem e o animal, haveria uma outra qualidade

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muito específica que os distinguiria e a respeito da cie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrá-
qual não pode haver contestação: é a faculdade de rio, ao fim de alguns meses, é o que será por toda
aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos,
circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas o que era no primeiro ano desses milhares. Por
as outras e se encontra, entre nós, tanto na espé- que só o homem é suscetível de tornar-se imbecil?
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 242-243.

• Explique as seguintes afirmações retiradas do texto de Rousseau:


a. “Os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte, porque o espírito
deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala.”
b. “A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência,
mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade
que se mostra a espiritualidade de sua alma.”
c. “O animal, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de mi-
lhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o homem é suscetível de
tornar-se imbecil?”

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o texto a seguir.

O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo tempo nascer no mundo e nascer do mundo. O mundo
está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído. Sob o primeiro aspecto,
somos solicitados, sob o segundo somos abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda
é abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca há determinismo e
nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua [...].
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes. 1999. p. 608.

• Com base nesse texto, justifique a afirmação: Não existe liberdade absoluta!

SUGESTÃO DE FILMES
Temática: Natureza e cultura em meio a interesses políticos, até o momento em que
Filme: O enigma de Kaspar Hauser (Alemanha, 1975). o ex-presidente John Quincy Adams (Anthony Hopkins),
Direção: Werner Herzog. O filme retrata a história de um abolicionista que ainda não havia se assumido pu-
um garoto que é criado em um porão, longe de qual- blicamente como tal, resolve sair de sua aposentadoria
quer contato humano, até completar 18 anos. Ele é voluntária para defender os africanos.
levado para a cidade, onde é objeto de curiosidade e
Temática: Diversidade e conflito cultural
desprezo da população.
Filme: Duelo de Titãs (Estados Unidos, 2000). Direção:
Temática: Diversidade e conflito cultural Boaz Yakin. No filme, Herman Boone (Denzel Washin-
Filme: Amistad. (Estados Unidos, 1997). Direção: Steven gton) é um técnico de futebol americano contratado
Spielberg. Costa de Cuba, 1839. Dezenas de escraviza- para comandar “os Titãs”, um time universitário que
dos se libertam das correntes e assumem o comando do se encontra dividido pelo racismo. Enfrentando gran-
navio negreiro La Amistad. Seu sonho é retornar para a des preconceitos por parte dos outros técnicos e de
África. Contudo, por não saberem nada de navegação jogadores do próprio time, o técnico vai trabalhando
se encontram obrigados a confiar em dois tripulantes com disciplina e adquire progressivamente o respeito e
sobreviventes, que os enganam. Desenvolve-se um lon- a admiração, figurando como exemplo para o time e a
go drama entre acusações e tentativas abolicionistas, cidade na qual atua.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE A NATUREZA
A nossa primeira ideia de natureza correspon- à consciência, o ser humano adquire um poder de
de parcialmente à concepção grega de phýsis, de distanciamento crítico em relação aos determinis-
onde vem a palavra físico, mundo físico, natural. mos, podendo inclusive agir contra as determina-
No senso comum, ao se falar em natureza é nor- ções de sua natureza. Esse poder de transcendên-
mal pensar ou fazer referência ao mundo natural, cia, contudo, é sempre limitado. Não se trata de
aos animais, às questões ecológicas, da vegeta- uma ruptura ou de uma independência.
ção, da água, do ar. Nesse sentido, ela é algo ex- Na consciência filosófica, a natureza não é
terior a nós, o lugar sobre o qual nós construímos pensada somente em sua dimensão de exteriori-
a nossa cidade ou o lugar para onde queremos ir dade; ela adquire nova dimensão, de interioridade.
e descansar. Com efeito, natural não é o mesmo Ela passa a expressar os elementos constitutivos
que normal. Algo pode normalmente ser visto en- do ser, as dimensões que determinam a identida-
tre nós, mas não ser natural, como é o caso da de do ser, que o fazem ser o que é. Trata-se das
pobreza e da miséria. características essenciais com as quais o ser nasce.
Inicialmente, a natureza pode ser compreen- Esse aspecto da interioridade pode ser pensado
dida como a realidade comum ao reino animal, tanto em relação ao indivíduo quanto em relação
reino de determinismo, de programação genética. à espécie.
Assim, na natureza não há liberdade nem cons- Nesses termos, há pensadores que defen-
ciência, atributos essenciais do universo humano. dem a existência de uma natureza humana, pois a
Por isso, ao falarmos de um pássaro ou de uma compreendem como a identidade essencial do ser
borboleta, não podemos falar em liberdade de humano, que abrange a consciência e a liberdade.
voo, apenas de programação, de uma necessida- Outros pensadores não concebem uma natureza
de biológica, instintiva. humana, mas uma condição humana, pois con-
Esse mundo animal também afeta o ser huma- cebem a natureza como algo determinado, como
no, que traz as marcas do determinismo natural, programação genética. É possível conjugar essas
das leis às quais seu corpo está submetido. Graças duas visões?

PENSANDO CONCEITUALMENTE O DETERMINISMO


Etimologicamente, é palavra derivada do la- dade. Embora não saibamos prever a decisão que
tim determinare, fixar ou marcar os limites, delimi- será tomada, pois não temos ciência do futuro, a
tar. Refere-se a algo necessário. O determinismo nossa opção seguirá a necessidade, imposta pelas
natural é físico e biológico, incluindo seres ina- circunstâncias. Por isso, a liberdade é uma ilusão.
nimados e animados. É o reino da absoluta ne- Para os defensores do determinismo, as nos-
cessidade, das consequências necessárias a partir sas escolhas estão de fato predeterminadas, obe-
de condições antecedentes. Nessa visão, todos os decendo ao princípio da causalidade universal, ou
acontecimentos do Universo estão submetidos a seja, tudo tem uma causa, inclusive as ações hu-
um sistema de causas e efeitos. manas. E entre essas causas algumas são impulsos
Há pensadores que aplicam o determinismo físico-químicos, outras são causas psicológicas,
às ações humanas. Nesse caso, trata-se da cor- decorrentes de experiências prazerosas ou doloro-
rente filosófica em conformidade com a qual as sas vividas no passado.
ações humanas não são livres, mas determinadas Embora algumas causas de nossas ações pos-
por circunstâncias anteriores, que excluem outras sam ser desconhecidas, isso não é justificativa
possibilidades. Os defensores do determinismo afir- para defender a existência da liberdade, pensam
mam a distinção entre determinismo e previsibili- os deterministas.

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Essa temática é de natureza interdisciplinar. São muitas as possibilidades de trabalhar com as Ciências Sociais: Diferenciar trabalho e emprego; verificar as formas de trabalho e emprego mais comuns
e significativas na cidade e no município onde a escola está inserida; fazer um levantamento dos maiores problemas sociológicos e antropológicos relacionados a essa questão. Problematizar a ideia de
trabalho como realizador da dignidade humana em oposição ao trabalho em situações análogas à de escravidão etc.

2. O TRABALHO HUMANO: FONTE DE CULTURA

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LEV OLSON/FREEIMAGES
CHARLESJSHARP (CC BY-SA 4.0)

KLETR/SHUTTERSTOCK
É correto, filosoficamente,
chamar de trabalho a ação
instintiva e repetitiva
dos animais?

Diante das abelhas, das formigas, dos “joões-de-barro”, dos primatas, o que
distingue o ser humano e sua atividade? Se considerarmos os animais que con-
vivem com os humanos, os animais domésticos, especialmente os cães, encon-
traremos claros sinais de aprendizagem, resultado de condicionamentos. Encon-
traremos linguagens, expressões visíveis para diferentes situações ou sentimentos
que os afetam.
Os elementos que caracterizam basicamente a ação animal são o instinto, a
repetição mecânica, a transmissão hereditária, a ausência de evolução histórica
e de transformação consciente, uma vez que as ações acontecem por inclinação
natural, ignorando a finalidade da própria ação, pois as dimensões da consciência
e da linguagem simbólica e articulada são atributos exclusivamente humanos.

Concepções de trabalho
A história nos mostra diversas e diversificadas formas de organizar o trabalho.
Segundo historiadores e antropólogos, nas primeiras formas de organização
social, atividades como caçar, guerrear e garantir a proteção eram reservadas aos
homens, enquanto os trabalhos domésticos e os cuidados com os filhos eram
reservados às mulheres.
Durante a Antiguidade, o trabalho foi considerado em várias culturas como
uma atividade menor, comparável à atividade animal. Por se considerar o ser
humano como um animal racional, valorizava-se especialmente o ócio, a reflexão
teórica e a participação política, discutindo os destinos da cidade.
Durante a Idade Média, predomina a ideia do trabalho como sendo inferior ao
ócio, à vida contemplativa. Assim, para a filosofia e a teologia cristãs, o trabalho

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não tinha por finalidade o enriquecimento, apenas a conservação da vida na condição na qual se nasce. O
ideal de vida estava representado na vida ascética, de renúncia, de absoluta confiança na providência divina.
Esse ideal de vida era praticado pelos monges, que se dedicavam à contemplação. Dessa forma, evitava-se
o pecado da avareza, da busca pela riqueza.
As ideias de Lutero (1483-1546) e de Calvino (1509-1564) trazem nova concepção de trabalho, que
passa a ser instrumento por meio do qual o ser humano realiza sua vocação de continuar a obra da criação
iniciada por Deus. Nesse sentido, o trabalho é uma bênção divina, e nele não há lugar para degradação ou
castigo. Calvino assim expressa:

Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há
trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os
olhos de Deus.
CALVINO, João. A verdadeira vida cristã. Trad. Daniel Costa. São Paulo: Novo Século, 2000. p. 77.

As virtudes éticas fundamentais defendidas por Calvino são trabalho, poupança e frugalidade (simpli-
cidade de vida e de costumes, sobriedade, temperança). Através do trabalho, a potencialidade humana se
realiza continuando a obra da criação. É inconcebível não trabalhar. Fugir do trabalho é desumanizante. Em
relação à poupança, um aspecto importante a observar é que não está destinada a objetivos de consumo,
mas ela tem uma dimensão social, destinada à ajuda aos irmãos na fé, que se encontram em necessidade.
Nessa esteira, o sociólogo Max Weber (1864-1920), em um de seus trabalhos mais expressivos, A ética
protestante e o espírito do capitalismo, associa a formação do capitalismo ao ethos do protestantismo.
Nessa reflexão, Weber mostra que os valores da educação protestante foram determinantes no desenvol-
vimento do capitalismo. Entre esses valores, destacam-se a disciplina religiosa, que valorizava o amor e a
dedicação ao trabalho; a abnegação e a austeridade de vida, que conduzia à poupança de um significativo
percentual de tudo o que era conquistado, com o consequente acúmulo e ganho de capital; o que, por sua
vez, conduz ao investimento e ao aumento da produção.
Para o filósofo F. Hegel (1770-1831), o trabalho é concebido como autoconstrução do ser humano. Por
meio do trabalho o ser humano produz o próprio ser, libertando-se de sua primeira natureza, distanciando-se
do mundo natural, ao criar cultura. Assim, o trabalho humano é, essencialmente, uma atividade espiri-
tual, na qual o próprio espírito humano vai evoluindo através dos muitos obstáculos do mundo exterior.
Realiza-se, aqui, a concepção do trabalho como mediação para a humanização do ser humano.

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MITCHELL POWELL/FREEIMAGES

Em todo trabalho humano, o projeto mental antecede a ação e o produto.

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Devido a essa capacidade humana de produzir a própria existência, o trabalho humano não se torna
somente um produzir e fazer coisas, mas se transforma em atividade de permanente construção e re-
construção de si, de configuração de si na configuração do mundo. Nesse sentido, o trabalho é a maior
fonte de humanização do ser humano, pois atualiza suas potencialidades, realiza e concretiza ideais
humanos possíveis.
É nessa dimensão que devem ser vistas as diferentes profissões, escolhas profissionais, como mediação,
como expressão da potencialidade do indivíduo, que se realiza na prestação de serviço à sociedade.
Contudo, Karl Marx (1818-1883) sinaliza para a dimensão negativa do trabalho na sociedade capitalista,
que tem no lucro e na mais-valia a sua força motriz. Na história da humanidade e em nosso cotidiano, o tra-
balho nem sempre cumpriu e cumpre essa função humanizadora e libertadora. São conhecidas as múltiplas
formas de escravização, nas quais a necessidade humana do trabalho fica reduzida à dura sobrevivência,
submetida à ação exploradora de indivíduos e grupos econômicos que transformam o ser humano em mero
objeto a serviço do lucro e do capital.
Assim, com o trabalho, podemos caminhar para a liberdade e autonomia da própria construção de si, ou
para a alienação de si, fenômeno no qual o ser humano se torna estranho a si mesmo, não se pertencendo,
vendendo sua força de trabalho em troca da sobrevivência. O fenômeno da alienação foi muito bem anali-
sado por Karl Marx, ao desenvolver uma profunda crítica ao sistema capitalista.
Esse fenômeno da alienação pode ser percebido tanto no trabalhador como no fruto do seu trabalho.
Considerando que o fruto do trabalho não pertence ao trabalhador, ocorre então o fenômeno da alienação
do produto do trabalho. E na medida em que o próprio trabalhador não participa com a consciência e a
liberdade, nem consegue atribuir sentido e significado à ação realizada, falamos em alienação do próprio
trabalhador, que atua de forma mecanizada.
A alienação é o processo de objetificação, coisificação ou reificação. Expressões essas que se referem ao
grande valor que a coisa assume e à aniquilação, à destruição ou ao pouco valor atribuído ao trabalhador,
tratado como coisa.
LATINSTOCK/CHAPLIN/UNITED ARTISTS / ALBUM/ALBUM CINEMA

WOLFTRACERARCHIVE/ALAMY/LATINSTOCK

Cenas do filme Tempos modernos (1936), de Charles Chaplin. Esse filme realiza uma das melhores críticas ao fordismo e
ao taylorismo. Ele expressa a dimensão da mecanização do trabalho, da produção em série e da alienação do trabalhador,
que não apresenta a consciência do processo do trabalho. Ele simplesmente realiza comandos, convertendo-se em apenas
mais uma peça da engrenagem.

Atualmente, é muito comum ouvirmos a expressão happy hour, para sinalizar o horário imediatamente
posterior à jornada do trabalho diário. Essa expressão é carregada de sentido, pois denuncia o sem sentido
do dia de trabalho; a hora feliz inicia quando o trabalho termina.
O processo de desalienação passa obrigatoriamente pela mudança de consciência, que é tanto uma
resultante de novas relações quanto construtora de novas relações.

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Leia o poema com os estudantes. Depois, registre no quadro de giz as palavras
que eles desconheçam e as esclareça. Em seguida, retome a leitura e discuta
PROBLEMATIZANDO o significado de cada trecho para que eles percebam os momentos em que o
processo de desalienação fica evidente.
1. Acompanhe, agora, o poema de Vinicius de Moraes, "Operário em cons-
trução", e procure perceber como acontece o processo de desalienação do
operário, que deixa de ser operário construído pela ideologia, alienado
aos interesses alheios e passa a ser operário em construção de si mesmo,
comunicando consciência e libertação.

Operário em construção
Era ele que erguia casas, Olhou sua própria mão
onde antes só havia chão. Sua rude mão de operário
Como um pássaro sem asas De operário em construção
Ele subia com as casas E olhando bem para ela
Que lhe brotavam da mão. Teve um segundo a impressão
[...] De que não havia no mundo
Mas ele desconhecia Coisa que fosse mais bela.
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa Foi dentro da compreensão
E a coisa faz o operário. Desse instante solitário
De forma que, certo dia Que, tal sua construção
À mesa, ao cortar o pão Cresceu também o operário.
O operário foi tomado Cresceu em alto e profundo
De uma súbita emoção Em largo e no coração.
Ao constatar assombrado E como tudo que cresce
Que tudo naquela mesa Ele não cresceu em vão
– Garrafa, prato, facão – Pois além do que sabia
Era ele quem os fazia – Exercer a profissão –
Ele, um humilde operário, O operário adquiriu
Um operário em construção. Uma nova dimensão:
Olhou em torno: gamela A dimensão da poesia.
Banco, enxerga, caldeirão E um fato novo se viu
Vidro, parede, janela Que a todos admirava:
Casa, cidade, nação! O que o operário dizia
Tudo, tudo o que existia Outro operário escutava.
Era ele que os fazia
Ele, um humilde operário E foi assim que o operário
Um operário que sabia Do edifício em construção
Exercer a profissão. Que sempre dizia SIM
Começou a dizer NÃO.
Ah, homens de pensamento [...]
Não sabereis nunca o quanto Uma esperança sincera
Aquele humilde operário Cresceu no seu coração.
Soube naquele momento! E dentro da tarde mansa
Naquela casa vazia Agigantou-se a Razão
Que ele mesmo levantara De um homem pobre e esquecido.
Um mundo novo nascia Razão porém que fizera
De que sequer suspeitava. Em operário construído
O operário emocionado O operário em construção.
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. p. 205-210.

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2. Considerando o poema “Operário em construção” e as reflexões realizadas sobre a natureza do
trabalho humano, converse com seus colegas sobre a realidade do trabalho em sua cidade. Nessa
conversa, considere as seguintes questões:
• Existem formas de trabalho em sua cidade que não precisariam ser feitas pelas pessoas? Em caso
afirmativo, quais? Por qual justificativa? Que decorrências isso poderia trazer?
• Em que sentido o trabalho deve ser diferenciado de mero emprego de força física para subsistência?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Explique a seguinte afirmação:
Ao transformar o objeto e o mundo, por meio do trabalho, o homem transforma também a si mes-
mo; ao configurar o mundo, configura-se a si.
2. Posicione-se a favor ou contra a seguinte afirmação:
O trabalho não pertence à natureza humana, é uma imposição cultural.

PENSANDO CONCEITUALMENTE A CULTURA


Etimologicamente, a palavra cultura deriva cultura à instrução escolar. Há muita cultura e sa-
do verbo latino colere, que significa “cultivar”, bedoria construídas e conquistadas, no cotidiano
“criar”, “cuidar”. Por isso, chamamos de cultura da vida, por pessoas que nunca tiveram acesso às
tudo o que foi cultivado e criado pelo fazer huma- letras formais, ao Ensino Fundamental. Em decor-
no, tanto no mundo das coisas, como no campo rência disso, falamos em diversidade cultural: cul-
das ideias e pensamentos. tura do campo, cultura urbana, cultura indígena,
Assim, a característica humana fundamental é cultura afro, cultura europeia etc.
ser cultural, criativo, ser transformador, construtor Sociologicamente, cultura significa o conjunto
e reconstrutor de sentido, de história. Por isso, filo- complexo de conhecimentos e saberes, técnicas e
soficamente, a cultura é um produto humano que normas, tradições e valores de determinada socie-
concebe e antecipa mentalmente, como projeto, a dade ou grupo. Dessa forma, a cultura se trans-
ação transformadora do trabalho, da arte, da edu- mite, se aprende, se reaprende e se reproduz, de
cação, das muitas linguagens humanas. Por essas geração em geração.
razões, costumamos dizer que nos outros seres do O tema do trabalho nos insere na dinâmica da
reino animal, marcados pela ausência da inteligên- realização humana e na transformação da natureza
cia abstrata e da liberdade, não encontramos cultu- em cultura. Trata-se de um conceito fundante da
ra, pois não encontramos processo de acumulação condição humana.
histórica e transmissão entre gerações que acolham Vamos pensar conceitualmente o tema do tra-
a herança construída e continuem a construção. balho e sinalizar para algumas aplicações, para os
É preciso superar a visão habitual que reduz a campos nos quais a reflexão poderá se concentrar.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAGEM

SUGESTÃO DE FILME
Temática: O trabalho humano: alienação ou libertação? contexto de depressão econômica levou grande parte
Filme: Tempos modernos (Estados Unidos, 1936). Dire- da população à fome e à miséria. O personagem clássi-
ção: Charles Chaplin. A vida urbana nos Estados Unidos, co de Chaplin, Carlitos, é a figura central do filme, que
nos anos 1930, imediatamente após a crise de 1929, é uma profunda crítica à era industrial e às suas decor-
é retratada por Charles Chaplin, nesse filme mudo. O rências degeneradoras da vida urbana.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE O TRABALHO
Filosoficamente, por meio do trabalho o ser cultura, ao contrário, o ser humano, por meio do
humano constrói o mundo e configura a si mes- trabalho, transforma a natureza em cultura, adapta
mo. Portanto, através do trabalho o mundo e o a natureza a seus projetos e interesses.
ser humano se ligam, a matéria natural adquire Assim, mediante o projeto mental do traba-
valor, a necessidade humana é atendida, os dons lho, que visa a uma finalidade previamente pen-
e as aptidões florescem, habilidades nascem e sada, o ser humano cria um distanciamento do
são cultivadas. mundo natural. Graças ao trabalho, a potenciali-
Nossa primeira aproximação ao tema fornece dade humana pode tornar-se atualidade. Assim, a
uma diferenciação do trabalho humano em relação inteligência abstrata é o que distingue os homens
à ação instintiva e repetitiva dos demais animais. Se da inteligência concreta de muitos outros animais
no reino animal podemos falar em adaptação ao e é responsável pela dimensão criativa do trabalho
meio, em programação genética, no universo da humano, fruto da imaginação.

No desenvolvimento desse tema, busque contribuições da psicologia e da neurociência, para que a abordagem da relação
corpo e mente seja a mais complexa possível, superando visões reducionistas. Seria muito enriquecedora a presença de um
profissional dessas áreas mencionadas, em algum debate ou seminário na escola. De modo interdisciplinar, sugerimos explorar
3. CORPO E MENTE o poema “As contradições do corpo” de Carlos Drummond de Andrade, e a letra da canção “Metade” de Oswaldo Montenegro.
Considerando o contexto contemporâneo de culto ao corpo, torna-se fundamental aprofundar a temática entre corpo e mente.

O tema corpo e psiquismo está profundamente vinculado à reflexão sobre natureza e cultura.
Contemporaneamente, o clássico tema “corpo e alma” reaparece com todo vigor em uma nova área da
filosofia: a filosofia da mente, em diálogo com a neurobiologia e a psicologia cognitiva. Na tradição filosó-
fica, essa temática sempre esteve inscrita na busca pelas essências. E sua abordagem sempre se deu nesse
horizonte. As perguntas e os posicionamentos fundamentais eram:
Existe alguma relação entre a alma e o corpo, entre psiquismo e corpo. Deve a mente comandar o físico?
Quando falamos em consciência, de que estamos falando? Que relação existe entre mente e cérebro? É o
cérebro que produz a mente?
Uma das respostas tradicionais tem

LIGHTSPRING/SHUTTERSTOCK
sido o dualismo. Nessa concepção, a
consciência é distinta da matéria e é
considerada como sendo a instância da
identidade pessoal, o “eu”, a alma. A
segunda posição diante dessa temática
constitui a concepção monista, na qual
a consciência é apenas uma dimensão
do físico, localizada no cerébro. E há
uma terceira concepção, a concepção
dual, que busca integrar essas duas di-
mensões, diferentes e relacionadas, que
constituem o ser humano.

Será que mente e cérebro são uma


coisa só? Há distinção entre físico
e psíquico? O ser humano é uma
unidade física ou uma dualidade
físico-mental, material-espiritual?

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Concepções dualista, monista e a solução dual
Concepção dualista
Para o dualismo, corpo e alma são substâncias bem distintas, e é impossível a redução de um aspecto
a outro. Em cada cérebro há uma consciência única, individual, inacessível a outras pessoas, inacessível a
qualquer pesquisa. A presença da mente, alma ou psiquismo é sempre presença de uma transcendência, de
um mistério que nos escapa. Diferentemente, o corpo é a dimensão física comum a todos. Dessa forma, o
cérebro é passível de investigação e conhecimento por terceiros.
Assim, para a hipótese dualista, o ser humano é constituído de duas substâncias distintas: por um lado,
a dimensão mental, expressa na consciência, nas emoções, desejos e crenças, não tem nem pode ter pro-
priedades físicas; por outro lado, a dimensão meramente física não pode apresentar propriedades mentais,
como o pensamento, a abstração, a imaginação etc. Assim, para o dualismo substancialista, são duas as
naturezas que nos constituem, essências diferentes, sem relação entre elas, independentes.
No diálogo Fédon, Sócrates, condenado à morte, discute com seus discípulos acerca da imortalidade da
alma e da sua prisão ao corpo. Nesse contexto, realiza-se a seguinte reflexão conduzida por Sócrates:

E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um en-
trave se na investigação lhe pedimos auxílio? Quero dizer com isso, mais ou menos, o seguinte: acaso
alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo
menos em relação a estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de nos repetir incessante-
mente, e que nem vemos nem ouvimos com clareza? [...] Quando é, pois, que a alma atinge a verdade?
Temos dum lado que, quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que seja,
o corpo, é claro, a engana radicalmente.
PLATÃO. Fédon. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972. [65b] (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Como você responde à pergunta inicial de Sócrates, presente no diálogo acima? Você concorda com o
raciocínio socrático-platônico?

Concepção monista
Diferentemente da perspectiva dualista, a concepção monista, conforme a palavra já expressa, não per-
cebe distinções significativas entre mente e cérebro.
Historicamente, o filósofo Spinoza, no século XVII, vem em defesa do monismo, contra o dualismo car-
tesiano, afirmando a unidade substancial existente entre as dimensões mental e física. Nessa mesma linha
de pensamento, os fisicalistas, a partir do século XX, reduzem os processos mentais aos físicos, afirmando
somente a existência de entidades físicas.
Dessa forma, para os fisicalistas existe uma conexão causal, empiricamente verificável, entre estados
cerebrais e estados mentais. Nessa abordagem, tudo o que acontece em nossa mente é um reflexo do
que acontece em nosso corpo; ou seja, a nossa consciência é fruto da configuração de nosso cérebro.
Assim, nosso cérebro é composto de células nervosas, e qualquer alteração que nelas houver, seja ela
química ou elétrica, afeta a mente, assim também com qualquer dor, em qualquer parte de nosso corpo.
Entre as extremidades de nosso corpo, dos pés à cabeça, há comunicações nervosas. Por exemplo, consi-
deremos o prazer que alguém sente ao saborear um pedaço de chocolate. O processo de saborear provoca
uma alteração física em determinada região de seu cérebro, devido à neurotransmissão entre as papilas
gustativas e o cérebro. Isso é cientificamente verificável, tanto positiva como negativamente; ou seja, no
caso de haver lesões cerebrais nessa zona do cérebro, o prazer não mais se verifica.

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Estamos no terreno da ciência e não da fé. O argumento cientificista afirma
que tudo o que acontece em nossa consciência é objeto de estudo das ciências.
O fato de ainda não sabermos mais ou não conhecermos a complexidade que
existe entre o cérebro e suas relações com os estados mentais não é motivo para
duvidarmos da ciência. Historicamente, o nosso saber está evoluindo. E existe a
possibilidade de, no futuro, o mistério atual ser desfeito. Assim, sustenta-se o
monismo ou o fisicalismo, para o qual a mente não é uma entidade separada e
independente do corpo.

MARIDAV/SHUTTERSTOCK

Dos pés à cabeça, somos


uma coisa só?

Solução dual
Contra essa posição fisicalista ou monista, a solução dual argumenta a favor
da insuficiência do tratamento científico dos processos físicos ligados à atividade
psíquica, enfatizando a inadequação da abordagem científica referente aos pro-
cessos mentais.
A concepção defendida por Thomas Nagel, conhecida como solução dual, con-
sidera os processos psíquicos como processos distintos dos físicos, que ocorrem no
cérebro. Contudo, não aceita o pressuposto do dualismo substancial da concep-
ção dualista, para a qual somos constituídos de uma alma, fonte de nossas expe-
riências psíquicas, e de uma substância corporal, sede de nossos processos físicos.
Para essa concepção de aspecto dual, a fonte ou a sede de nossas experiências
mentais é o cérebro. Contudo, assim sendo, a nossa consciência, o nosso uni-
verso psíquico, com todos os seus sentimentos e desejos, é processo que não se
reduz ao mundo físico do cérebro. Assim, o nosso cérebro não é somente a soma
dos processos físicos, mas apresenta também aspectos mentais.

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Dessa forma, resulta que os fenômenos físicos, como já argumentava a concepção dualista, podem
ser acessíveis a uma terceira pessoa; contudo, a consciência é sempre individual, e cientista algum, anali-
sando a constituição cerebral, conseguirá jamais ter acesso à experiência subjetiva, ao prazer sentido, por
exemplo, de quem está saboreando um sorvete ou comendo uma barra de chocolate.

PROBLEMATIZANDO
1. A afirmação de que existem doenças psicossomáticas é um bom argumento para sustentar a tese da
solução dual?
2. Leia o texto a seguir.

Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa
que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e
que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza. Mas por que
não lhe pertenceriam? Não sou eu próprio esse mesmo que duvida de quase tudo, que, no entanto,
entende e concebe certas coisas, que assegura e afirma que somente tais coisas são verdadeiras, que
nega todas as demais, que quer e deseja conhecê-las mais, que não quer ser enganado, que imagina
muitas coisas, mesmo mau grado seu, e que sente também muitas coisas como que por intermédio
dos órgãos do corpo? [...]
É certamente a ideia que tenho do espírito humano, enquanto é uma coisa pensante e não ex-
tensa, em lonjura, largura e profundidade, e que não participa de nada que pertence ao corpo, é
incomparavelmente mais distinta do que a ideia de qualquer coisa corporal. [...]
Pois, com efeito, quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas
uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa
única e inteira. E, conquanto, o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um
braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí
algo de subtraído a meu espírito.
DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 173-174; 177, 197. (Os pensadores).

• Qual é a concepção filosófica defendida nesse texto?


• Qual das três posições estudadas você julga mais sustentável?
• No seu entendimento, mente e cérebro são uma coisa só, uma unidade, ou há distinção entre o
físico e o psíquico, uma dualidade mente-espírito?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Escolha uma das três concepções que abordam a relação corpo-mente e redija um texto explicando
essa concepção.

OUTROS OLHARES
1. Leia alguns trechos do poema de Carlos Drummond de Andrade e busque relações com a temática
corpo e alma.

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As contradições do corpo
Meu corpo não é meu corpo, como senhor do meu Eu
É ilusão de outro ser. convertido em cão servil.
Sabe a arte de esconder-me [...]
E é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta. Se tento dele afastar-me
Por abstração ignorá-lo,
Meu corpo, não meu agente, Volta a mim, com todo o peso
meu envelope selado, De sua carne poluída,
meu revólver de assustar, Seu tédio, seu desconforto.
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei. Quero romper com meu corpo;
[...] Quero enfrentá-lo, acusá-lo;
Por abolir minha essência,
Meu corpo ordena que eu saia Mas ele sequer me escuta
em busca do que não quero, E vai pelo rumo oposto.
e me nega, ao se afirmar [...]
ANDRADE, Carlos Drummond de. As contradições do corpo. In: Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 7-8.

• Considerando a tensão dualismo-dualidade, como você interpreta este trecho do poema: “Meu
corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser”?

2. Leia também os trechos da canção de Oswaldo Montenegro e converse com os colegas sobre as
questões a seguir.

Metade
[...] Pois metade de mim é a lembrança do que fui
Porque metade de mim é o que eu grito A outra metade não sei
A outra metade é silêncio [...]
[...] Pois metade de mim é abrigo
Pois metade de mim é partida A outra metade é cansaço
A outra metade é saudade [...]
[...] Pois metade de mim é amor
Porque metade de mim é o que penso E a outra metade também
A outra metade um vulcão
[...] MONTENEGRO, Oswaldo. Metade. 25 anos ao vivo. CD.

• Essas expressões usadas por Oswaldo Montenegro podem ajudar a pensar a relação corpo e men-
te? Como?
• Trata-se de dualismo, de separação entre duas dimensões que não dialogam?
• Ou podemos pensar em dualidade, em articulação e complementaridade entre duas dimensões
fundamentais do ser humano?

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2
Eixo Temático

EXPERIÊNCIA E
RACIONALIDADE

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
Você

• As características da narrativa mítica.


• A função social de identidade comunitária
do mito.
• As relações entre o mito, o rito e a memória.
• As articulações entre o mito e a filosofia.
• A necessidade da filosofia no campo da
autorrealização humana.
• A relevância da reflexão filosófica para
o amadurecimento da democracia.
• A relação do saber filosófico com a crítica
ao senso comum e às ideologias.

Temas:
1. A consciência mítica
2. O nascimento da consciência filosófica

A abordagem desse tema introduz, de modo interdisciplinar, um dos capítulos centrais da Antropologia
Cultural. A relação entre mito e rito permite-nos abordar dimensões antropológicas fundamentais. Por essa
razão, sugerimos desenvolver esse tópico de modo interdisciplinar, especialmente com os componentes
curriculares Literatura e Sociologia. As questões de fundo podem ser: o que a existência de mitos revela sobre
o ser humano e a cultura? Que funções o mito desempenha no processo de socialização do ser humano?

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CAPELA SISTINA, MUSEUS E GALERIAS DO VATICANO
1. A CONSCI NCIA M TICA

A criação de Adão (1512), de Michelangelo. Afresco, 480,1 cm × 230,1 cm.


Os mitos estão presentes em todas as culturas? Quais são as grandes mensagens que os mitos comunicam? A filosofia estará
mais perto do mito, da arte ou da ciência?

A estrutura do ser humano apresenta processos mentais nos quais a consciência mítica tem lugar perma-
nente, radicada nas emoções e na dimensão intuitiva, muito relacionada à fragilidade humana e aos desejos
de segurança e eternidade.
Embora sejamos naturalmente propensos ao filosofar, uma vez que a razão é potencialidade inerente a
todo ser humano, a forma filosófica de ver o mundo não é a nossa primeira atitude diante da realidade. Por
isso, para compreender a origem da filosofia, como acontece o processo de filosofar na existência de cada
um de nós, e o processo histórico de nascimento da filosofia, é preciso compreender o que antecede, tanto
na história como na cultura circundante. Pense, por exemplo, em uma criança. Ela tem em si a potencialida-
de para a filosofia, mas essa potencialidade jamais despertará se antes não houver um significativo tempo e
cultivo de outro saber que, vindo antes, prepara o filosofar. Assim, será na formação da consciência mítica
que se inicia o caminho que poderá levar à consciência filosófica.
Vamos, então, iniciar a nossa caminhada filosófica considerando o berço da filosofia.

Ai e i e mi

O mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto,
um conceito, ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma [...] já que o mito é uma
fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. O mito
não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites
formais, mas não substanciais.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 131.

A primeira observação refere-se não ao conteúdo específico do mito, mas à sua forma. Assim, o que
define o mito é o fato de ser um sistema de comunicação, uma fala, uma narrativa. A primeira forma de
apreensão da realidade é uma espécie de intuição compreensiva. Diante da infinita grandeza e mistério dos

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fenômenos naturais (sol, chuva, trovão, raio etc.) e diante das situações limite, representadas pelos mistérios
da doença e da morte, o ser humano encontra-se perplexo. E, em decorrência desse estado de espanto,
mergulhado no mistério, ele recorre à narrativa mítica. Converse com os estudantes sobre este parágrafo e, se possível, faça a
transposição para a realidade deles considerando os fatos apresentados.
Assim, a linguagem mítica é um constituinte do ser humano que se situa em um plano diferente da razão
argumentativa, conforme o texto a seguir.

O mito é uma forma autônoma de pensamento e de vida. Nesse sentido, a validade e a função do
mito não são secundárias e subordinadas em relação ao conhecimento racional, mas originárias e
primárias, situando-se num plano diferente do plano do intelecto, porém dotado de igual dignida-
de. [...]
Portanto, a verdade do mito não é uma verdade intelectual corrompida ou degenerada, mas uma
verdade autêntica, embora com forma diferente da verdade intelectual, com forma fantástica ou
poética: “Os caracteres poéticos nos quais consiste a essência das fábulas nasceram, por necessidade
natural, da incapacidade de extrair as formas e as propriedades dos fatos”(Vico).
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 785.

Na narrativa mítica, atribuímos a origem de todas as coisas à força dos deuses ou do Deus supremo. Des-
sa forma, a narrativa mítica apazigua o espírito inquieto. Sendo a primeira forma de consciência do ser hu-
mano, a consciência mítica começa a ordenar e organizar o mundo. Assim, a formação dos mitos obedece a
uma necessidade inerente do ser humano e da cultura, considerando os limites da razão e dada a essencial
incompletude de nossa condição humana, também afetada pela dinâmica das emoções, da afetividade e
das crenças. Ou seja, nós não somos somente seres racionais. Nossa natureza é também impulsiva, emocio-
nal, necessitada de segurança. E será da nossa dimensão emotiva e intuitiva que nascerá a narrativa mítica.
No trecho a seguir, Nicola Abbagnano recorda o pensamento de Lévi-Strauss (1908-2009), um dos mais
consagrados antropólogos a refletir sobre a questão dos mitos.

Lévi-Strauss mostrou que o Mito não é uma narrativa histórica, mas a representação generalizada de
fatos que recorrem com uniformidade na vida dos homens: nascimento e morte, luta contra a fome e
as forças da natureza, derrota e vitória, relacionamento entre os sexos. Por isso, o Mito nunca reproduz
a situação real, mas opõe-se a ela, no sentido de que a representação é embelezada, corrigida e aperfei-
çoada, expressando assim as aspirações a que a situação real dá origem.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 786.

A e mi
Vimos que o mito tem origem em uma intuição compreensiva da realidade, sendo uma forma espontâ-
nea de situar-nos no mundo, expressando nossa capacidade inicial de compreendê-lo. Por isso, as raízes do
mito estão não na razão, mas na realidade vivida, pré-reflexiva, das emoções e da afetividade. Apoiados em
imagens e fortalecidos pelo afeto, explicamos a realidade concreta, conferindo significado e ordem a um
mundo aparentemente caótico e desorganizado.
Sendo narrativa pronunciada para ouvintes que a recebem como verdadeira, o mito traz a marca da fé e
da confiança. Assim, a verdade do mito está relacionada à confiança na pessoa do narrador, à sua autoridade.
Acredita-se que o poeta narrador seja um escolhido dos deuses, iluminado pelos deuses que lhe inspiraram
sobre as origens dos acontecimentos passados e lhe passaram a responsabilidade de transmitir essa verdade
para as gerações presentes e futuras. Sua palavra é sagrada porque vem de uma espécie de revelação divina.
Dessa forma, o mito se apresenta incontestável, inquestionável, sendo marcado pela ausência da percepção
de contradições.

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Os mitos são transmitidos de geração em geração, “porque assim os ancestrais o prescreveram”. Com
isso, os mitos cumprem uma importante função social, ao reforçarem a coesão social, alimentando a identi-
dade de grupo, a identidade comunitária. Enquanto o mito mantiver a força de identificação dos indivíduos
e da comunidade, ele permanecerá muito vivo. Nessa pintura de Henri Matisse, vemos o ritual da dança,
que atualiza a memória mítica. Solicite aos estudantes que observem a imagem e converse sobre os elementos míticos presentes nela. A forma
circular remete às narrativas míticas: as figuras representadas dançam de mãos dadas, formando uma roda.

MUSEU HERMITAGE, SÃO PETERSBUGO, RÚSSIA


A dança II (1910), de Henri Matisse. Óleo sobre tela, 260 cm × 391 cm.

Essas narrativas míticas fazem parte da tradição cultural de um povo. Por isso, não são produto de um
autor específico, de um indivíduo isolado que, em determinado momento, sentou-se e as escreveu, mas
nomes que remetem a uma coletividade. Homero é conhecido como o autor da Ilíada e da Odisseia, do
século IX a.C. A Hesíodo é atribuída a Teogonia, do século VIII a.C.
Mircea Eliade (1907-1986), filósofo romeno, um dos maiores historiadores das religiões e estudiosos dos
mitos, expressa a complexidade da linguagem mítica:

O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada
em perspectivas múltiplas e complementares [...]. O mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o
mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir. [...]. Os
mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a so-
brenaturalidade) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas e, algumas vezes dramáti-
cas, irrupções do sagrado (ou do sobrenatural) no mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente
fundamenta o mundo e o converte no que é hoje.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 4. ed. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 11.

Os mitos antigos ou primordiais exerciam a função de explicar o mundo e as relações humanas, além de

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transmitir um ideal de educação, essencial para a formação dos
MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

jovens. Por meio das narrativas míticas, as gerações mais velhas


ensinavam às gerações mais novas como deveriam ser para se
tornarem “excelentes”. Os heróis e deuses transmitiam modelos
exemplares de conduta para serem seguidos. Esse modelo estava
presente na areté (virtude) de cada herói.
O texto a seguir aborda o mito de Prometeu. Há três grandes
referências da narrativa desse mito. A primeira é Hesíodo, com
Converse com os estudantes sobre o que eles sabem
a respeito do mito do Cupido e pergunte como
obtiveram essa informação.

Cupido e Psiquê (1798), de François Gérard.


Óleo sobre tela, 186 cm × 132 cm.

Teogonia e Os trabalhos e os dias. A segunda versão encontra-se em Ésquilo, na tragédia Prometeu acor-
rentado. A terceira encontra-se em Platão, no diálogo Protágoras.
Apresentamos a seguir, uma versão simplificada dessa narrativa:

Quando chegou o momento de as raças mortais nascerem, os deuses as fabricaram através de uma
mistura de terra e fogo. Antes de as trazerem da terra para a luz, encarregaram os deuses irmãos
Prometeu e Epimeteu de repartirem os poderes entre os seres vivos, de modo a estabelecer uma or-
denação boa e equilibrada no mundo. Epimeteu pediu a Prometeu para deixá-lo fazer a distribuição,
permitindo que o irmão a verificasse ao final. Ao repartir os poderes, Epimeteu dotava uns de força e
lentidão, e dava velocidade aos mais fracos; ele “armava” uns (com membros) e aos que não tinham
“armas” ele dava outra capacidade de sobrevivência. Aos pequenos, deu asas para que pudessem
fugir; a outros deu tamanho grande, o que já lhes garantia a sobrevivência; na sua repartição, foi,
assim, compensando as diferentes capacidades, para evitar que uma ou outra raça fosse destruída;
depois de garantir a todos os meios de evitar a destruição mútua, começou a preparar para lhes pro-
teger contra os perigos das estações; deu a alguns pelos e peles grossas para o inverno e para servir
de cama, na hora de dormir; mas também deu, a outros, peles finas e poucos pelos, para o calor; a
uns ele deu cascos, a outros peles sem sangue; depois deu para cada um alimentos diferentes, a uns
plantas, a outros raízes; a uns deu como comida a carne de outros animais, dando-lhes também
uma reprodução mais difícil, para que fossem em menor número; às suas vítimas, garantiu repro-
dução abundante, assegurando a sobrevivência das espécies. Mas como não era exatamente sábio,
Epimeteu gastou, sem perceber, todos os poderes com os animais que não falam; faltava ainda a
raça humana, que não tinha recebido nada e ele ficou sem saber o que fazer! Enquanto ele estava
nesse impasse, chegou Prometeu e viu que todos os seres vivos estavam harmoniosamente providos
de tudo o que precisavam, mas que o ser humano estava nu, descalço, sem coberta e “sem armas”.
E o dia marcado para eles saírem da terra para a luz já estava chegando. Sem saber então o que fa-
zer para preservar os humanos, Prometeu resolveu roubar o fogo do deus Hefesto e o saber técnico
da deusa Atena, e dá-los de presente para os humanos. Desse modo, o ser humano passaria a ter o
necessário para a vida. Por causa dessa proximidade com os deuses, o ser humano foi o primeiro a

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reconhecê-los e a dedicar-lhes altares e imagens; depois, graças à sua técnica, começou a emitir sons
articulados e palavras, inventou as casas, as roupas e os calçados, as cobertas e os alimentos cultiva-
dos na terra. Assim equipados, os seres humanos viviam, primeiro, dispersos, pois não tinham cida-
des; ficavam expostos e, sendo mais fracos, eram

RIJKSMUSEUM, AMSTERDÃ, HOLANDA


mortos pelos animais selvagens; sua técnica, mesmo
sendo uma grande ajuda para conseguir alimentos,
era insuficiente na guerra contra os animais. De fato,
eles ainda não possuíam a técnica da política, da
qual faz parte a técnica da guerra. Eles tentavam se
reunir para garantir sua sobrevivência, criando cida-
des, mas eram injustos demais uns contra os outros,
se dispersavam e acabavam morrendo. Prometeu ha-
via dado aos humanos o saber técnico, sem o saber
político, que estava com Zeus. Só depois, Zeus, te-
mendo que nossa espécie se extinguisse totalmente,
mandou o deus Hermes levar para os humanos o Res-
peito (aidós) e a Justiça (díke), para estabelecer a or-
dem nas cidades e as relações de solidariedade e ami-
zade que reúnem os homens. Hermes perguntou a
Zeus como deveria distribuir o Respeito e a Justiça: Prometeu acorrentado por Vulcano (1623), de Dirck
do mesmo modo como distribuiu as outras técnicas, Van Baburen. Óleo sobre tela, 202 cm × 184 cm.
ou seja, poucos com cada uma, para servir muitos? Ou seria o caso de distribuir o Respeito e a Justi-
ça igualmente para todos? Zeus ordenou que ele fizesse de modo com que todos participassem
desses dois dons divinos, pois não seria possível ter cidades, se só alguns poucos os tivessem; orde-
nou também que fosse instaurada a seguinte lei: que fosse condenado à morte o homem que se
mostrasse incapaz de receber e exercer o Respeito e a Justiça.
Disponível em: <http://crv.educacao.mg.gov.br/sistema_crv/documentos/ra/em/Filosofia/2010-08/ra-em-fl-02.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2016.

A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das quali-
dades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados. São cosmogonias e teogonias. Gonos é uma palavra
grega que significa geração, nascimento, parto; e cosmo significa o mundo natural, regido por uma ordem. Por
isso, cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras divi-
nas. Teogonia é a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
Quando dizemos que os mitos fazem parte da estrutura humana, estamos afirmando a perenidade de
sua presença entre nós. De tempos em tempos, recorremos a mitos, dada a nossa insegurança e desejo
de segurança, e, acima de tudo, por causa do nosso desejo de conseguir uma visão de totalidade que nos
tranquilize, ao conferir um sentido para todas as coisas.

PROBLEMATIZANDO
1. Na narrativa mítica Prometeu acorrentado encontramos várias expressões que devem ser interpre-
tadas. Escolhemos duas afirmações para a sua interpretação. Converse com os colegas sobre elas:
• Com o fogo, o ser humano passa a ter o necessário para a vida.
• A melhor e maior proteção para os humanos foi a invenção da técnica da política, da associação,
que implica o respeito e a justiça.

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MITO, RITO E MEM RIA
A ime i li e m ei e i e i i , em mei
m e e . A im, i li e le e e , m il e-
l mem , lime e i l.
RENATO SOARES/PULSAR IMAGENS

No cotidiano, a consciência mítica pode ser alimentada e cul-


tivada no rito. Dessa maneira, o rito não será a simples comemo-
ração de um evento acontecido no passado, mas passa a ser o
tempo e o lugar em que o sagrado acontece novamente, reatu-
alizando o acontecimento originário. Para a consciência mítica, é
preciso que seja assim.
Através de códigos decifráveis, de símbolos que são mensa-
gens, celebrados nos ritos, a memória é preservada pela comuni-
dade. Dessa forma, a memória é expressão da vida, é resgate do
passado, é releitura. E, por isso, está aberta a constantes trans-
formações e atualizações.
Na esfera da consciência mítica e de sua atualização ritual,
encontramos os ritos de purificação, os banhos de purificação,
os retiros espirituais, o sacrifício de animais. Encontramos cele-
brações para atrair bênçãos.

Indígena Yawalapiti se pinta PROBLEMATIZANDO


para ritual do Quarup. Mato
Grosso, 2012. 1. Os ritos de iniciação podem receber formas diferentes, desde a acolhida
Os Yawalapiti vivem na afetiva, cercada de desejosa celebração, quanto de trotes, para os quais
porção sul do Parque os novatos se dirigem com medo, devido aos horrores e sofrimentos que
Indígena do Xingu, região podem causar.
conhecida como Alto Xingu,
em que grupos falantes • Converse com os colegas sobre essa relação entre mito, rito e memória,
de diferentes línguas sobre os ritos de iniciação, sobre a necessidade de “marcar” o corpo ou a
compartilham um mesmo memória do recém-chegado ao grupo.
repertório cosmológico. O
Quarup, conhecido como • Existem mitos parecidos em todas as culturas. Mudam as palavras, muda
ritual dos mortos, é um o contexto, mas a mensagem parece muito similar. Isso nos permite che-
conjunto de cerimônias em gar a quais conclusões?
homenagem à memória
dos antepassados. As
pinturas corporais se O mi em e
modificam de acordo com
os diferentes momentos do
ritual. O rito é um espaço de Se o homem moderno se considera constituído pela História, o homem
reatualização da memória das sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo número de
mítica e ancestral.
eventos míticos.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 4. ed. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 16.

Hoje em dia, com a consciência histórica e crítica, existem mitos? E, se hou-


ver, são da mesma natureza que os mitos antigos? A partir da descoberta e
da valorização da historicidade do ser humano, ainda há espaço para falar em
consciência mítica?

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Por causa da estrutura mítica do ser humano, o mito é uma realidade tam-

MARY A LUPO/SHUTTERSTOCK
bém contemporânea, apesar de vivermos em uma era do “pós”, pós-indus-
trial, pós-moderna, pós-cristão. O ser humano não é só razão, é também, em
boa parcela, irracional, emotivo e passional. Assim, o mito faz parte do jeito
humano de ser, de conhecer, de buscar e, portanto, sempre o acompanhará.
Por isso, embora alguns possam considerar o mito como ilusão, mentira ou
infância da humanidade, não devemos considerar o mito como uma infantili-
zação, ou um saber menor e deturpado, uma vez que o ser humano é um
complexo de dimensões constitutivas que se relacionam mutuamente.
O contexto pós-moderno no qual vivemos é conhecido como cultura da ima-
gem, do consumo, da provisoriedade. Os meios de comunicação são instrumento,
a partir dos quais se criam e se alimentam desejos, que acabam sendo transforma-
dos em necessidades. A linguagem visual explora anseios primordiais que carrega-
mos em nosso inconsciente.
A atuação dos meios de comunicação de massa, na fugacidade das imagens e Por sua importância e
influência no mundo
na rapidez das mudanças sociais e culturais, exalta múltiplos e fugazes personagens contemporâneo, alguns
e os povoa em nosso imaginário de forma também transitória. Isso faz com que as artistas, como o músico
características do mito contemporâneo sejam bem distintas do mito primitivo. britânico Paul McCartney,
são considerados mitos.

Converse com os estudantes sobre os mitos que


N mi em e , e m i e li e e- fazem parte do cotidiano deles, solicitando que
i mi l i imi i e i e e e me e e - expliquem os motivos e apresentem exemplos.
li e. C i me e mi i , l e e le i e e -
e e e i e m e e, i im , , m
e i i i l m e l e e, i i e e me
e e e e e em el , lme , , e ele m i i e
e me m , i e .

Atualmente, os mitos se referem a campos particulares e fragmentados,


sem a necessária articulação entre eles, como por exemplo, a sensualidade, a
maternidade, o esporte, a ciência. Você certamente já ouviu falar ou mesmo
persegue a “eterna juventude” ou a beleza de determinada modelo ou atriz
ou, ainda, a velocidade ou o caráter de determinado esportista idealizado e
eternizado na memória.
MARVEL ENTERTAINMENT/ARAD PRODUCTIONS, INC.

Poster do filme O espetacular


Homem-Aranha (2012).
A linguagem mítica das
mensagens televisivas e
cinematográficas explora
nossos anseios primordiais
inconscientes. Os heróis
passam a encarnar o Bem e a
Justiça, transformando-se em
nossos protetores imaginários.

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PROBLEMATIZANDO
1. Seguramente você já ouviu a expressão: “Ele é um mito”, ou alguma ex-
pressão similar.
• Qual é a ideia que está presente nessa noção de mito?
• Compartilhe sua percepção com os colegas.

A mi i i m i
i i l
Você já se perguntou sobre a história do pensamento, sua origem? Será que
COLEÇÃO WALLACE, LONDRES, REINO UNIDO

tudo começou com os mitos? É uma das abordagens possíveis. Tradições culturais
de um passado longínquo possibilitam-nos pensar que o ser humano é movido
pela busca do sentido.
No final do século VIII, o poeta Hesíodo, em sua Teogonia descreve a criação
do mundo e dos deuses, a partir de Caos, Gaia e Eros e narra como os humanos
finalmente ficaram libertos das tramas dos deuses, quando esses se instalam no
Olimpo. E, na narrativa Os trabalhos e os dias, Hesíodo descreve as cinco idades
pelas quais o ser humano passou: desde a idade de ouro, na qual convive com os
deuses, até a idade de ferro, na qual se encontra separado dos deuses, abando-
nado, condenada ao trabalho, à procriação etc.
Com essas narrativas, uma das ideias que passa a ser forte entre os gregos é a
de que os homens estão livres dos deuses ou de que os deuses abandonaram os
homens. Com isso, abre-se a perspectiva para a autonomia humana e, com ela,
a necessidade de pensar na própria existência. Essa é também uma maneira de
entender a origem do pensamento racional.
Outro elemento muito importante para considerar a origem de uma nova for-
ma de pensamento vem do terreno da política. No século VIII a. C, a história
São João Evangelista e a
visão de Jerusalém (1635), grega registra um renascimento comercial responsável pelo enfraquecimento das
de Alonso Cano. Óleo sobre aldeias, de linhagem tribal. Com isso, a sociedade vai se complexificando, dei-
tela, 83 cm × 44 cm. xando de ser o que até então era, aldeias de agricultores e artesãos, passando a
A consciência filosófica organizar a vida em torno da praça pública, a ágora, espaço dos novos encontros,
manifesta-se em cada das relações econômicas.
existência na habilidade
de ver, de admirar, de
Esse é o contexto do nascimento da pólis, de uma nova forma de organização
indignar-se e de buscar social e política, na qual o centro de referência não é mais uma aristocracia, mas
sentido e verdade. a democracia emergente. Com essa mudança, no centro das questões está a dis-
cussão política, o poder da palavra, que convence, que cria leis.

Essa revolução política foi fundamental para o desenvolvimento do pen-


samento humano. Na pólis, com os cidadãos em pé de igualdade, vence
quem sabe convencer. É preciso valer-se exclusivamente do raciocínio e da
correta exposição das ideias – em suma, do logos. Essa fórmula de racioci-
nar, de falar e até de polemizar não se limita à política [...]. Passa a ser o
critério para pensar qualquer coisa.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 18. (Os pensadores).

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De acordo com as hipóteses de pesquisadores e especialistas, entretanto, o século VI a.C. trouxe a pre-
sença de pensadores que marcaram a história, por serem representantes de uma nova forma de racionali-
dade, na qual o sentido das coisas, do mundo e da vida é buscado não em forças exteriores, mas na própria
natureza. Nesse momento, afirmam os especialistas, o raciocínio passou a ocupar o lugar que antes era da
narrativa mítica. Mudou a forma de referir-se às origens. Na narrativa mítica, o poeta atribuía aos deuses a
responsabilidade pelo que existe. Esses pensadores que iniciaram a mudança do mito para o logos, ou seja,
da narrativa para a razão, viviam nas colônias gregas da Jônia, em meados do século VI a.C.
Na narrativa mítica não encontramos uma consciência pessoal autônoma. O que verificamos é uma cons-
ciência submetida à massa comunitária, homogênea. Uma consciência receptiva do senso comum. É uma
consciência situada, extrínseca, desprovida de problematização.
Esse momento primeiro e inicial responde a uma dimensão e a uma necessidade estrutural do ser huma-
no, na medida em que lhe proporciona a segurança e a identificação comunitária. A partir dessa realidade,
a narrativa mítica alimenta e cultiva a capacidade imaginativa do ser humano. E, alimentando a imaginação,
o ser humano despertará para a filosofia, para a percepção das contradições presentes na narrativa mítica.

O mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não é da sua atribuição autorizar tudo o que
sugere. [...] O mito propõe, mas cabe à consciência dispor.
GUSDORF, George. Mito e metafísica. Trad. Hugo di Prímio Paz. São Paulo: Convívio, 1979. p. 308.

Estabelecendo um paralelo entre mito e filosofia, podemos afirmar, inicialmente, que o mito, enquanto
intuição compreensiva da realidade, narra as coisas como eram num passado imemorial e longínquo. Em
contrapartida, a filosofia se volta aos fundamentos racionais de as coisas serem como são. Em segundo
lugar, o mito primitivo narra a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas
e personalizadas, enquanto a filosofia explica a produção das realidades por elementos e causas naturais e
impessoais. Em terceiro lugar, o mito traz a ausência da percepção das contradições, devido à fé-confiança
depositada na figura do poeta narrador. Em contrapartida, a filosofia, deslocando o recurso da autoridade
pessoal para o argumento racional, busca uma explicação coerente, racionalmente bem fundamentada,
evitando contradições.

PROBLEMATIZANDO
1. Você consegue imaginar como seria a vida sem mitos? Qual a importância dos mitos na vida humana?
2. Considerando a vida humana, na existência de cada um de nós, a passagem da consciência mítica
para a consciência filosófica é algo natural, ou é um processo que necessita de uma mediação? Nesse
caso, qual ou quais seriam essas mediações?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia atentamente os trechos que seguem.
Te 1

Terra primeiro gerou igual a si mesma Céu constelado, a fim de cobri-la toda ao redor e de que
fosse aos deuses venturosos sede segura para sempre. E gerou altas montanhas, belas moradas das
deusas Ninfas que habitam as montanhas frondosas. E gerou também a infecunda planície impe-
tuosa de ondas, o Mar, sem desejoso amor.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995. v. 126-132.

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Te 2

Quando fornecemos calor a uma substância que se encontra no estado líquido, aumentamos a
energia de agitação de suas partículas, isto é, elevamos sua temperatura. Entretanto, dependendo da
substância e da pressão a que está sujeita, existe um limite de aumento da temperatura, além do qual
a estrutura molecular do líquido sofre mudanças. A partir dessa temperatura-limite, a energia recebida
pelo líquido é usada para a mudança na estrutura molecular e o líquido é transformado em vapor.
VILAS BOAS, Newton. Tópicos de Física. v. 2. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 61.

• Identifique e caracterize o tipo de conhecimento presente em cada um desses trechos.


2. Leia o texto a seguir e explique a tese defendida pelo autor.

O mito se opõe ao logos como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demons-
tra. Logos e mito são duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do
espírito. O logos, sendo uma argumentação, pretende convencer. O logos é verdadeiro, no caso de ser
justo e conforme à “lógica”; é falso quando dissimula alguma burla secreta (sofisma). Mas o mito tem
por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade mediante
ato de fé, caso pareça “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim,
atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria
natureza, é aparentado à arte, em todas as suas criações.
GRIMAL, Pierre. A mitologia grega. 3. ed. Trad. Carlos Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 8-9.

3. Leia a seguinte afirmação: No mito contemporâneo não encontramos a abrangência e a totalidade


características da mitologia primitiva.
• A partir dessa afirmação e de outras informações, redija um texto confrontando a natureza dos
mitos primitivo e contemporâneo.
4. Nas histórias em quadrinhos encontramos heróis, super-homens e supermulheres que são expressão
de nossas idealizações, fantasias e desejos. Faça uma pesquisa sobre um desses personagens, bus-
cando situações relacionadas com nosso cotidiano, mensagens e valores. Prepare um relatório para
apresentar aos colegas.
VOC SABIA
Etimologicamente, "mistério" significa "coisa secreta, fechada, inacessível à razão humana". Na
Antiguidade grega, tratava-se de uma cerimônia, de um rito reservado aos iniciados. Exemplificando,
temos os mistérios de Elêusis.
No cristianismo, “mistério” refere-se à divindade, à
MUSEU ANTIGO, BERLIM, ALEMANHA

verdade divina. Por exemplo, o mistério da Santíssima


Trindade, o mistério da encarnação de Deus na pessoa
de Jesus de Nazaré, o mistério da Ressurreição. Assim
mistério torna-se também um dogma, verdade aceita
na fé, que ultrapassa os poderes de compreensão de
nossa racionalidade.

Deméter e Metanira (c. 340 a.C.), do pintor Varrese.


Cerâmica de figuras vermelhas.
Os mistérios de Elêusis eram rituais de iniciação no
culto das deusas Perséfone e Deméter.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE A CONSCIÊNCIA
A consciência é sempre consciência de algu- Universo, que reflete sobre si mesmo e se percebe
ma coisa. Ou seja, nossa consciência é sempre di- sempre em situação, existe a consciência social e
recionada para objetos ou realidades. Assim, não política. Somos seres culturais. Assim, nosso existir
existe uma consciência vazia, do nada, ou cons- sempre acontece inserido em um meio, em uma
ciência pura. É isso que pretendemos dizer quan- cultura, em uma tradição. E essa consciência de
do afirmamos que a nossa consciência é sempre saber-se situado dentro de uma cultura, ao mes-
intencional; ela tende a algo. Esse é o sentido de mo tempo em que nos limita, abre-nos um hori-
intencionalidade. Portanto, não devemos confun- zonte de possibilidades de realização. Assim como
dir o sentido de intencionalidade, aqui aplicado à as margens de um rio.
teoria do conhecimento, com a ideia de intenção, Nossa condição de seres políticos, marcados
que existe no senso comum, quando pensa no ob- pela necessidade da convivência social, coloca-
jetivo de uma ação humana. nos diante da presença do outro. A existência do
Com efeito, a nossa mente ou consciência outro se torna o critério fundamental para ama-
percebe algo. Não é o corpo que percebe. O corpo durecer a nossa consciência ética e moral. À luz
tem as sensações. Através do corpo, com a ajuda da presença do outro nasce em nós a consciência
do corpo, a nossa consciência percebe e decifra de nossa própria identidade. Por isso, a presença
o real. Essas percepções são múltiplas, diferen- do outro, como limite e condição de possibilida-
tes, subjetivas, pois cada olhar percebe a partir de de de nossa realização em sociedade, é fonte da
uma situação real, na qual está encarnado, afeta- ética da responsabilidade, dos princípios que so-
do pelas sensações físicas. licitam nossa atitude de cuidado e de promoção
Uma primeira forma de consciência é a cons- da vida.
ciência mítica, uma espécie de animismo, na qual Portanto, existem diferentes e variados níveis
tudo tem vida e está interligado. Encontramos de consciência que solicitarão diferentes níveis de
aqui uma forma de consciência na qual o indiví- engajamento e comprometimento pessoal. Da
duo se reconhece como pertencente à mãe Terra, consciência que se volta para determinada reali-
ao ecossistema. dade, que tende para um objeto, nascerá deter-
Além dessa consciência de si, como parte do minada postura na vida.
Neste tema, abordaremos o movimento de expansão da consciência, a partir da singularidade da filosofia. Indicamos o poema “Eu etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade como um
dos recursos que pode auxiliar muito na percepção da necessidade de um distanciamento crítico em relação às muitas alienações culturais. Sugerimos desenvolver uma reflexão filosófica de
natureza interdisciplinar relacionada à (de)formação da consciência humana. Entre os muitos recursos, propomos a análise do livro Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; análise da canção
2. O NASCIMENTO DA CONSCI NCIA FILOS FICA "Admirável gado novo", de Zé
Ramalho; análise dos filmes
Converse sobre as questões a seguir com os estudantes e registre no Show de Truman , O quarto
quadro de giz as palavras-chave que mencionarem nas respostas. poder ou A onda.

S m lme e l e ei i e m m em l
Se e e e ee e i e i ,e el e
O e e e C mi e m e li e De i e i e I e e A i i
ei e e i e i i
O e i i e i i l i i m i
E e mi e l e e e im i m
Um m il, m e il. E l Se el il l e e iee i l

A e , e e i ee i ili e l
Quando alguém pergunta sobre a necessidade e a utilidade de estudar filosofia, está buscando pelo sen-
tido e pelo fundamento de algo. Essa postura é filosófica, pois é atitude investigativa dos fundamentos. Filo-
sofar, portanto, é problematizar, é buscar metódica e disciplinadamente os princípios, os pressupostos que
fundamentam as diferentes posturas diante de questões centrais da vida, em todos os campos de saber.

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Dessa forma, considerando a vitalidade das questões filosóficas nos diferentes âmbitos do cotidiano da
vida humana, é um grande mal-entendido pensar que a filosofia seja de natureza abstrata, no sentido de
se referir a reflexões teóricas sobre realidades distantes. Ao contrário, as grandes preocupações da filosofia
estão relacionadas com o bem viver em sociedade. Assim, na condição de humanos que buscamos uma
vida feliz e justa, encontraremos na filosofia os fundamentos e as reflexões que nos possibilitarão sermos os
sujeitos de nossa história, construtores de nosso destino, tanto pessoal quanto social.
Trabalhamos aqui com dois sentidos básicos de filosofia. Inicialmente, em momento de negatividade,
como atitude problematizadora, de crítica, de desmascaramento. Em seguida, em momento de positivi-
dade, como busca por fundamentos, em sua preocupação de integrar os diferentes olhares, partindo do
pressuposto de que a sabedoria buscada transcende as visões particulares.
Em suma, vamos trabalhar com a ideia de que a filosofia é um campo do saber que tem uma especifici-
dade, características próprias, objetivos e metodologias específicas. Contudo, trabalharemos também com
a concepção de que a filosofia é uma determinada atitude, uma postura, uma forma de ver e ler o mundo
e a própria vida.
PAPKIN/SHUTTERSTOCK

A nova inteligência que se


busca é a habilidade e a
competência de articular os
elementos ou perceber as
articulações existentes. Uma
inteligência da complexidade,
que percebe que tudo está
interligado. Assim, o olhar
filosófico se faz crítico
das visões simplistas ou
simplificadoras e superficiais,
buscando a verdade que se
encontra mergulhada nas
relações.

A busca pela verdade e pela sabedoria

O Amor [...] está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus
filosofa ou deseja ser sábio – pois já é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem tam-
bém os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da igno-
rância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim.
Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso. Quais
então [...] os que filosofam, se não são nem os sábios, nem os ignorantes? [...] São os que estão entre
esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria,
e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre
o sábio e o ignorante.
PLATÃO. O banquete. Trad. José Cavalcante de Souza. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 35-36. (Os pensadores).

Em sua obra O banquete, Platão (427-347 a.C.) identifica a filosofia como amor ao amado, no caso, o
desejo por sabedoria, desejo por aquilo que não possui. Dessa forma, o que caracteriza o amor é a carência
ou a falta, jamais a posse. Por essa razão, a filosofia jamais alcançará em sua plenitude o objeto de seu
desejo, por não ser nenhum deus.

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A partir disso, ao nos perguntarmos sobre a necessidade da filosofia, deveremos pensar na própria reali-
zação do ser humano, em sua condição de ser pensante. Ora, a vida feliz, almejada pela filosofia, não está
a serviço de nada, ela é o bem último, que todos buscamos como finalidade maior. Portanto, a necessidade
da filosofia não se coloca no campo da prática mercantil ou comercial, mas no terreno da autorrealização
humana. Considerando a inquietação humana fundamental, que busca conhecer verdadeiramente, desde os
fundamentos, a filosofia se coloca na busca pela verdade. Mas essa verdade almejada não se restringe a um
ponto de vista, como podem ser o olhar físico, biológico, químico, linguístico, paleontológico, entre outros.
Diferentemente, o olhar que caracteriza a postura filosófica busca articular as diferentes leituras e visões pos-
síveis para um mesmo tema, para uma mesma realidade.
Sobre a necessidade da filosofia, Karl Jaspers assim se expressa:

Todo aquele que se dedica à filosofia quer viver para a verdade. Vá para onde for, aconteça-lhe o
que acontecer [...] está sempre interrogando. É possível certa confiança, mas não a certeza [...]. A
filosofia se expõe a abismos diante dos quais não deve fechar os olhos, assim como não pode esperar
que desapareçam por encanto.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 138-147.

Dessa forma, a questão da necessidade do filosofar vincula-se à realização da possibilidade de um co-


nhecimento profundo, articulado, pois é preciso aprender a religar os diferentes pontos de vista. Chamamos
a sua especial atenção, aqui, para uma nova concepção de educação e de conhecimento. Conhecer não é
visto como separar, dividir, fragmentar; mas, ao contrário, só há conhecimento a partir de articulação, uma
vez que a vida é teia, rede de relações inclusivas.
Inicie essa reflexão recolhendo o saber prévio dos estudantes sobre a importância da filosofia
Alimentando o espírito democrático para a vida democrática, uma vez que a filosofia é apresentada como atitude e saber de natureza
dialógica, interdisciplinar, crítico, problematizador de posturas dogmáticas, de permanente busca
pela verdade.

A filosofia não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que
se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força.
SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Trad. de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2.

Nesse fragmento, aparece com muita nitidez que a filosofia não admite posturas dogmáticas, pois não se
trata de uma revelação, presente no âmbito da religião ou da crença. Ao contrário, a filosofia traz a marca
da dialética, do diálogo entre diferentes pontos de vista. Dessa forma, percebemos a relevância da reflexão
filosófica para o amadurecimento da vida democrática. Na medida em que diferentes pessoas, com dife-
rentes projetos, se relacionam e passam a conviver em um mesmo espaço, haverá o conflito. Esse conflito
se manifestará nas diferentes interpretações, nos diferentes desejos e interesses. Dessa forma, o conflito
revela a existência de pessoas autênticas e livres. E a postura filosófica se faz fundamental porque ela nos
ensina a dar as razões de nosso olhar e a reconhecer as razões do olhar do outro. A partir dessa habilidade,
característica do verdadeiro diálogo, alimentaremos a sociabilidade e a democracia nas relações humanas,
aprenderemos a cultivar os valores da vida em sociedade e a praticar a cidadania, que passa pela aceitação,
defesa e promoção das diferenças.

Postura crítica, radical, complexa e dinâmica


A reflexão filosófica é sempre uma reflexão a partir do seu tempo, crítica e instituinte de um novo viver,
na busca de uma sabedoria prática, iluminada pelo saber teórico. Por isso, a formação de uma consciência
filosófica é compromissada com a ressignificação da própria existência, capaz de construir sentido, na inte-
ração com os outros sujeitos e parceiros, em diálogo investigativo.

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Assim, considerando que a natureza da filosofia é ser amante da sabedoria,
mediante uma busca continuada de novas e aprofundadas leituras do mundo, a
atitude filosófica traz a marca da criticidade e da radicalidade, ou seja, da per-
cepção e do discernimento rigoroso dos pressupostos que subjazem às nossas
afirmações cotidianas, bem como às suas possíveis decorrências.
Peça aos estudantes que se manifestem a respeito dessas
questões, promovendo uma interação entre eles. Não é
A inutilidade que realiza a filosofia necessário que cheguem a uma resposta única, mas é
importante que exponham seus argumentos.
Quando dizemos que um martelo é muito útil ou que uma tesoura é muito
útil, entendemos o sentido de utilidade. Algo útil é meio para outro fim. Se al-
guém perguntar pela utilidade de um vaso, poderemos dar várias respostas. Mas,
se alguém perguntar pela utilidade do amor ou da felicidade, o que respondere-
mos? Para que serve o amor? Será que é sensato perguntar ou responder à per-
gunta: “Você quer ser feliz para quê?”. A felicidade parece ser o fim supremo da
vida, a finalidade última de nosso viver. Por isso, ela é inútil, não útil para outra
coisa que não seja ela mesma. Será o amor assim também? E a filosofia, será que
também ela não pode ser pensada como inútil, nesse sentido?

NIKONOMAD/SHUTTERSTOCK
O pensador (1904), de
Auguste Rodin. Escultura.
Na consciência filosófica,
o indivíduo mergulha em si
mesmo. Devo ou não devo?
Convém ou não convém
fazer o que eu quero? Estou
me deixando levar por um
impulso, ou é uma ação
refletida, consciente e livre?
Será o melhor a fazer? Que
decorrências poderão vir?
Estarei em condições de
assumir as decorrências
possíveis de meus atos e de
minhas atitudes?

A inutilidade da filosofia, como também da Física e da Matemática, está no


fato de buscar o conhecimento em si mesmo, sem a necessidade de aplicar esse
conhecimento em coisas práticas, como acontece com a engenharia e a arquite-
tura, por exemplo.
Ora, a filosofia é o amor à própria sabedoria, é vida reflexiva, que constitui a
nossa identidade e a nossa diferença no reino animal. Assim, o objetivo é o pró-
prio conhecimento, a própria atitude reflexiva, é cultivar o que somos, tornar-se
o que já se é em potencialidade. Eis aqui a tarefa humana fundamental, pois
sem a consciência a pessoa não se sabe, não se situa, não se projeta. É preciso
que aprendamos a atualizar, ou seja, concretizar, materializar a potencialidade
reflexiva inscrita em nosso ser, mediante o cultivo do filosofar. Importa aprender
a filosofar.

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VOC SABIA
PHILO SOPHIA: Duas expressões gregas: Philo: amigo, amante, e Sophia: sabedoria. Philosophia
é atitude e forma de saber relacionada à sabedoria. Filósofo é aquele que busca a sabedoria. Da
mesma forma como o amado procura a amada, nunca a possuindo, a filosofia busca a verdade,
lutando contra toda forma de dogmatismo. E é bom lembrar que a sabedoria não é o que entende-
mos por inteligência abstrata, mas competência e habilidade que abrangem tanto a compreensão
profunda da realidade na qual se está inserido como a vivência coerente com esse saber esclarecido.
Consequentemente, sabedoria tem direta relação com o saber viver. Assim, o philosopho é aquele
que busca o bem viver, capaz de dar as razões de suas ações e decisões.
COMPLEXIDADE: É característica do saber filosófico, uma vez que reconhece as múltiplas dimen-
sões integradoras da verdade. Cada ponto de vista colabora com a vista de um ponto. Será na
articulação desses pontos que se realiza a vocação filosófica. Pense em uma teia de aranha: ela é
um emaranhado de fios articulados, ao se mexer em um fio, mexe-se em todos. A inteligência da
complexidade compreende a vida em suas relações constitutivas. Dessa forma, a atitude filosófica,
superando o olhar da fragmentação, busca as relações.
RADICALIDADE: É característica do saber filosófico. Não devemos confundir radicalidade com
radicalismo. Enquanto a expressão radicalismo indica atitude extremada, intolerante e fechada ao
diálogo, a expressão radicalidade refere-se à atitude de quem vai às raízes, de quem não permane-
ce em saber superficial. Dessa forma, a atitude filosófica é comparada às raízes de uma árvore que
buscam mais profundidade. Na prática cotidiana, essa atitude implica não aceitar permanecer com
respostas simples e superficiais, mas lançar-se na aventura humana por conhecimento significativo,
de pergunta em pergunta, sempre problematizando e alargando o olhar. Com efeito, saber pergun-
tar constitui característica essencial da atitude e do saber filosóficos.

PROBLEMATIZANDO
1. Com base nessas reflexões acerca da necessidade, utilidade e inutilidade da filosofia, converse com
os colegas sobre a questão a seguir:
• Qual é a importância de a filosofia estar presente no currículo escolar?
2. Entrevista e debate. Entreviste seus pais, seus parentes, adultos próximos a você sobre a concepção
que eles têm de filosofia, sua importância, sua “utilidade” na vida, nas relações, no mercado de
trabalho, para realização pessoal.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. O texto que segue é do filósofo Michel de Montaigne (1533-1592), escritor renascentista, humanista.
Seu pensamento recupera as linhas gerais do ceticismo. Nesse texto, Montaigne nos fala sobre a ati-
tude que devemos cultivar nas crianças, nos adolescentes e nos jovens. O que ele propõe tornar-se-á
o espírito que deveremos cultivar nessa inicial aprendizagem sistemática do filosofar.

Ensaios
Tudo se submeterá ao exame da criança [e dos jovens] e nada se lhe enfiará na cabeça por simples
autoridade e crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estoicos ou dos epicuristas, seja seu
princípio. Apresentem-se-lhes todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder
fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta de sua opinião.

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“Não menos que saber, duvidar me apraz”, afirma Dante [...] A verdade e a razão são comuns a
todos e não pertencem mais a quem as diz primeiro do que ao que as diz depois. Não é mais, se-
gundo Platão, do que segundo eu mesmo, que tal coisa se enuncia, desde que a compreendamos.
[...] O proveito de nosso estudo está em nos tornarmos melhores e mais avisados. É a inteligência
que vê e ouve; é a inteligência que tudo aproveita, tudo dispõe, age, domina e reina. Tudo o mais
é cego, surdo e sem alma. Certamente tornaremos a criança servil e tímida se não lhe dermos a
oportunidade de fazer algo por si. [...] saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à
memória para guardar. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem
voltar os olhos para o livro. Triste ciência a ciência puramente livresca. Que sirva de ornamento,
mas não de fundamento, como pensa Platão, o qual afirma que a firmeza, a boa-fé, a sinceridade
são a verdadeira filosofia.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. Livro I, Cap. XXVI. p. 75-83. (Os pensadores).

• Com base nesse trecho de Montaigne, redija um texto sobre a natureza da filosofia, justificando
a afirmação:
“Só os loucos têm certeza absoluta de sua opinião.”

SUgESTÃO DE FILME
Assista ao filme Sociedade dos poetas mortos, dirigido por Peter Weier, tendo como atores Robin Williams, Ro-
bert Sean Leonard, Ethan Hawke, Josh Charlesé. O filme é ótima expressão para essa busca por sentido, harmo-
nia e beleza na vida. O desejo por uma vida extraordinária, fora do ordinário do senso comum, alimenta o espírito
da autenticidade do viver.

Si l i e l m e e i e
A filosofia se apresenta como saber e atitude que se diferencia da consciência mítica por buscar os
fundamentos e os princípios primeiros de modo racional e sistemático. Dessa forma, ela representa uma
disposição interior de cultivar o processo de apreensão das significações, com a consciência de que esse
processo é permanente. Para caracterizar a singularidade do saber e da atitude filosófica, apresentamos os
seguintes elementos:

Habilidade de ver a realidade


Considerando a inquietude e a percepção das contradições presentes na narrativa mítica, a origem da
atitude filosófica se localiza em uma habilidade específica de ver a realidade. No senso comum, percepção
inicial do mundo, as pessoas olham sem ver, sem captar articulações, muito menos incoerências e contra-
dições. Filosofar é ver diferente. É buscar a dinâmica de formação das realidades, seus elementos antece-
dentes e suas decorrências. Por isso, filosofar é lançar-se na busca de uma visão ampliada, superando a
fragmentação, o reducionismo de quem se apega a um ponto de vista.

Sentimento e atitude de indignação


Em decorrência dessa capacidade de ver de forma mais complexa a realidade, a filosofia se alimenta,
como condição fundamental, da capacidade de indignação diante de certas ações ou omissões humanas e
diante de certas configurações históricas e culturais do viver humano. Essa dimensão é condição de onde
deriva a capacidade de problematizar, compreender e construir.

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TÂNIA RÊGO/ABR

Manifestação de profissionais
da saúde, Rio de Janeiro, 2013.
A reflexão filosófica tem a
vida como seu conteúdo,
problematizando em vista
de um melhor viver, nas
dimensões locais e globais.

Desejo de conhecer radicalmente e


processo de conscientização
Motivada pela indignação ética, nasce outra experiência fundamental: o pro-
cesso de conscientização e de busca por um conhecimento mais profundo. É o
desejo de conhecer por dentro a realidade, em decorrência das questões que a
razão e a consciência despertas se colocam, uma vez que a experiência filosófica
é marcada pela dúvida e interrogativa: por que está sendo assim? Não haveria
outra forma melhor de viver?
Com essa atitude, a filosofia costuma ser motivo de incômodo. Não foram pou-
cos os filósofos que pagaram com a vida, ou com o exílio e a prisão, a ousada
postura de filosofar sobre o seu tempo à luz de um horizonte maior de sentido.
Assim, a filosofia não é somente interpretação do mundo, mas projeto de transfor-
mação do mundo, a partir da formação de um novo sujeito histórico. Dessa forma,
a filosofia é atividade humana indispensável, na busca de conferir sentido ao existir.

Habilidade de julgar com base em


rigorosos critérios racionais

CHRISTOS GEORGHIOU/ATSTOCK ILLUSTRATION


Para que a reflexão se revele filosófica, ela precisa ser marcada pela busca dos
fundamentos; por isso, a filosofia é uma reflexão em busca dos conceitos. Nessa
reflexão, a criticidade é marca distintiva da atitude filosófica, uma vez que a crítica
é a arte de estabelecer critérios rigorosos de julgamento e avaliação. Não se trata
de ser do contra. Não se trata de pessimismo, mas de superar uma consciência
ingênua, no caminho de um saber racionalmente fundamentado.

Permanente diálogo de busca


Dessa forma, outra característica que identifica o pensar filosófico é a dinami-
cidade ou processualidade dessa busca. É processo sem fim. A pretensão de ter
encontrado a verdade é a morte da filosofia; é dogmatismo totalitário, discurso A reflexão filosófica é como
único. A filosofia não é revelação, verdade anunciada, mas é diálogo, busca ra- a raiz de uma árvore que se
cional intersubjetiva. lança em busca de sempre
maior profundidade, uma
Por isso, ousadia e humildade, autenticidade e diálogo, abertura e conflito são vez que a verdade do ser
dimensões fundamentais de um saber filosófico, sempre em construção intersub- está oculta na aparência.
jetiva, entre sujeitos que interpretam o mundo de formas diferentes, passíveis de
serem integradas.

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Habilidade de contextualizar, relacionar, integrar
Em decorrência disso, temos como característica do pensamento filosófico a
busca pela totalidade ou complexidade da realidade, isto é, consideram-se os pro-
blemas dentro de um
THE M. C. ESCHER COMPANY, BAARN, HOLANDA
conjunto de fatos e va-
Côncavo e convexo (1955), lores relacionados entre
de M. C. Escher. Litogravura, si. Não se trata de ab-
33,5 cm × 27,5 cm. solutizar um ponto de
Cada ponto de vista não vista da realidade, entre
passa da vista de um ponto. os muitos que existem,
Por isso, a atitude filosófica mas de inter-relacioná-
busca sempre transcender,
-los, buscando o con-
superar e articular os
olhares, que são formas de senso possível, na apre-
leitura da realidade. Quanto ciação das diferenças.
maior for a capacidade de Portanto, a reflexão
articulação das diferentes filosófica, contextua-
leituras e interpretações, lizando problemas e
melhor será a aproximação
realidades, busca a ver-
ao sentido que podemos
conferir à realidade. dade de forma sempre
progressiva e articula-
da. Contudo, a verda-
de, por ser histórica, é filha do tempo, e será sempre caracterizada pelas supera-
ções. Tudo o que é histórico, por ser resultante da imprevisível ação humana, é
subjetivo, parcial, falível e aberto a um futuro, à medida que novas leituras serão
feitas do fato passado.

Fil : i i e l i e
Ao ler o título, problematize a relação entre ideologia e senso comum. Verifique o saber prévio dos
e m m estudantes sobre esses conceitos e se conseguem, inicialmente, perceber a relação entre eles. Por exemplo,
o senso comum pode ser o resultado de uma ideologia, ou ainda, pode ser portador de ideologias.

Seguramente, você já ouviu ou pronunciou, várias vezes, expressões como:


“Deus ajuda a quem cedo madruga”; “filho de peixe, peixinho é”; “todo político
é corrupto”. E você já se perguntou sobre o fundamento dessas ou outras expres-
sões? Quando a nossa atitude traz a dúvida, a interrogação, a problematização,
está nascendo a dimensão filosófica em nossa consciência.
A reflexão filosófica é filha do tempo. Assim, os conceitos são historicamente
construídos. Alguns conceitos podem receber diferentes interpretações e senti-
dos. É o caso do conceito “ideologia”, que recebeu diferentes leituras na história
do pensamento moderno e contemporâneo
Originariamente, em conformidade com o criador do termo, o filósofo francês
Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), ideologia significava a ciência das ideias que
sustentavam a vida social. Nesse sentido, o objetivo dessa ciência, chamada ideolo-
gia, seria o de estudar a origem e o desenvolvimento de nossas ideias.
Contudo, não demorou muito para que os intelectuais e revolucionários ale-
mães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1885) atribuíssem à ideo-
logia um sentido pejorativo, o sentido negativo de ilusão, de consciência defor-
mada ou invertida da realidade, produzida pela classe dominante. Nessa visão, a
ideologia é instrumento da classe hegemônica para mascarar a realidade, para
impedir nos dominados a consciência da dominação, da opressão. E o mais grave
é que a ideologia consegue fazer com que o oprimido coloque a culpa em si mes-
mo e não perceba a relação dialética entre o empobrecido e o enriquecido. Dessa
forma, a ideologia realiza uma inversão da vida real.

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Ai e l i m i l e m me e , e
me m , lie e l ei .

Essa ideologia é veiculada das mais diversas maneiras: pelos meios de comuni-
cação de massa, pela família, pela escola, pela igreja, pelo exército, pelas empresas
etc. É preciso perceber que não há neutralidade. Sempre há interesses em jogo. É
preciso discernir se o que está em jogo é o bem comum ou interesses particulares.
Nessa concepção de ideologia compartilhada por alguns autores, a filosofia
adquire uma concepção específica. Ela se torna instância crítica das ideologias.
Nesse contexto de universalização de uma única forma de pensar, de formatação
das mentes para não enxergarem a realidade, a postura filosófica se mostra na
pergunta: “Será?”. Aqui, a filosofia deve exercer o seu papel de crítica das ideo-
logias. É preciso diferenciar e não confundir uma realidade natural com uma re-
alidade normal. É normal, portanto cultural, vermos entre nós pobreza e miséria,
mas não são naturais a pobreza, a miséria, a exploração, uma vez que são criação
humana. Fazer essas distinções se torna fundamental para mudar a nossa postura
diante da vida.
Considerando o tema da ideologia em sua relação com a produção da aliena-
ção, a filosofia se realiza como saber desperto, crítico, atento às sutilezas, hábil no
diagnóstico de distorções presentes nos discursos e das contradições presentes na
sociedade.

A ideologia sob a ótica de A. Gramsci


Para o filósofo e cientista político italiano Antonio Gramsci (1891-1937), a
ideologia desempenha importante papel mobilizador da ação humana, pois refe-
re-se aos valores, princípios e ideais que identificam o grupo social. Nessa visão, a
ideologia é sempre uma construção historicamente originada e situada, cultural-
mente fundada. Para Gramsci, há ideologias que são “arbitrárias”, unilaterais e
fanáticas e necessitam de ser submetidas ao rigor da crítica. Contudo, outras
ideologias são fator de mobilização e de engajamento social e político, na luta por
melhorias e por uma sociedade justa.
Chame a atenção dos estudantes sobre as aspirações de Martin
MARION TRIKOSKO/BIBLIOTECA DO CONGRESSO/
WASHNGTON/ESTADOS UNIDOS

Luther King e converse com eles sobre a importância do


combate ao preconceito racial e ao racismo.

Martin Luther King Jr. (1929-1968) foi


pastor protestante e ativista político
comprometido com o movimento
dos direitos civis dos negros
estadunidenses, sua terra natal. Em
1964, recebeu o Prêmio Nobel da Paz,
em nome de sua luta pela igualdade
racial e pela não violência. Em 4 de abril
de 1968, foi assassinado, em Memphis.

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Com efeito, há ideologias historicamente necessárias, que organizam as comuni-
dades populares, formam o terreno sobre o qual as pessoas se movimentam, adqui-
rem consciência de sua posição, lutam e se comprometem por um mundo melhor,
como, por exemplo, a ideologia de Mahatma Gandhi, que mobilizava para a luta
pela paz, contra a violência. Assim, a ideologia se torna uma concepção de mundo,
que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em
todas as manifestações de vida, individuais e coletivas, e tem por função conservar a
unidade de pensamento do grupo ou comunidade, sua visão de mundo.
Essa concepção positiva da ideologia se aproxima do usual sentido atribuído à
expressão “filosofia de vida”. Dessa forma, cada um de nós é portador de ideolo-
gia, de princípios, de ideais e de valores, que impulsionam o caminhar, sendo hori-
zonte motivacional.
HOMERO SÉRGIO/FOLHAPRESS

Chame a atenção dos estudantes sobre as aspirações de Martin


Luther King e converse com eles sobre a importância do combate Francisco Alves Mendes Filho, conhecido
ao preconceito racial e ao racismo.
como Chico Mendes (1944-1988), foi um
seringueiro e ambientalista em Xapuri,
no estado do Acre. Sua luta política e
ambiental a favor dos seringueiros da Bacia
Amazônica, contra o desmatamento e em
defesa da preservação ambiental, lhe trouxe,
além do reconhecimento internacional, a
ira de fazendeiros da região do Acre. Após
várias ameaças de morte, foi assassinado
em 22 de dezembro de 1988, aos 44 anos.

Verifique, inicialmente, o conceito de utopia que os


Diferenciando ideologia e utopia estudantes trazem e pergunte sobre a importância
das utopias ao longo da história.
Para o sociólogo húngaro Karl Mannheim (1893-1947), a ideologia pode ser
vista sob dois ângulos. Em primeiro lugar, na esteira de Marx, como recurso legi-
timador e justificador do status quo, da ordem social. Em segundo lugar, a ideo-
logia pode ser considerada, em sua força subversidade, contestadora, crítica e
desejosa de nova ordem social; a essa dimensão ele deu o nome de utopia.
Nessa perspectiva de Mannheim:

O conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas emergentes do


conflito político, que é a de que os grupos dominantes podem, em seu
pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesses a uma situação
que simplesmente não são mais capazes de ver certos fatos que iriam so-
lapar seu senso de dominação. Está implícita na palavra “ideologia” a no-
ção de que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos
obscurece a condição real da sociedade, tanto para si como para os demais,
estabilizando-a portanto.
O conceito de pensar utópico reflete a descoberta oposta à primeira, que
é a de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente interessados na
destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que,
mesmo involuntariamente, somente veem na situação os elementos que
tendem a negá-la.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Trad. Sergio Magalhães Santeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 66-67.

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A distinção entre ideologia e utopia, tendo como referência o pensamento de Karl Mannheim, pode ser
feita se considerarmos a forma como elas se relacionam com a ordem social existente. Enquanto a ideologia
está vinculada à permanência, à perpetuação do status quo, a utopia caracteriza a dimensão revolucionária
que constitui o espírito dos grupos oprimidos, que se mobilizam para revolucionar a ordem ou o estado
atual da questão. Tanto a ideologia como a utopia são essencialmente coletivas, conferindo identidade ao
grupo. Sem a dimensão comunitária, a utopia perde a sua força revolucionária. Normalmente, as minorias,
quando não organizadas, acabam se adaptando ao sistema ou permanecendo inofensivas.

Ideias que posteriormente se mostraram como tendo sido apenas representações distorcidas de uma
ordem social passada ou potencial eram ideológicas, enquanto as que foram adequadamente realiza-
das na ordem social posterior eram utopias relativas.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Trad. Sergio Magalhães Santeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 228.

Aqui encontramos o elemento distintivo entre ideologia e utopia. A utopia tem, portanto, dimensão
realizável. Eis o critério da distinção conceitual entre ideologia e utopia. Para Mannheim, é a realização da
utopia que indica a sua diferenciação em relação ao aspecto ideológico. Historicamente, uma utopia deixa
de existir quando sua realização acontece. Mas, considerando o horizonte da dignidade humana, da luta
por melhores condições de vida, a utopia é uma afirmação da potencialidade humana, das infinitas possibi-
lidades que o ser humano traz inscrito em si, e clamam por atualização.

O desaparecimento da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se


transforma em coisa. Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja, o do
homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem
nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. [...] o homem perderia, com o abandono
das utopias, a vontade de plasmar a história e, com ela, a capacidade de compreendê-la.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Trad. Sergio Magalhães Santeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 285.

Seguindo essa distinção entre ideologia e utopia, a filosofia tem importante papel à medida que de-
nuncia ideologias e alimenta utopias, pois impulsiona o ser humano em busca de si mesmo, não aceitando
permanecer onde chegou. Essa atitude é expressão característica da filosofia, como amante da sabedoria,
que implica movimento de busca, nunca posse do ideal.
Em termos gerais, uma das maneiras de apresentar a filosofia é diferenciá-la tanto do mito como da
ideologia. Nessa ótica, diferentemente da narrativa mítica, a filosofia é busca racional dos fundamentos e
dos princípios. Diferentemente da ideologia, apresentada no sentido negativo, a filosofia não se restringe a
uma visão particular.
Problematize o título “Diante da cultura do consumo”. Embora o consumo seja necessário, vivemos em uma
Diante da cultura do consumo sociedade que criou uma cultura do consumo, da qual decorre o fenômeno da alienação. Nessa cultura, quem ou o
que está no centro de referência? Os indivíduos ou os objetos a serem desejados e consumidos?
Retomando a concepção marxista de ideologia como fonte de alienação, encontramos muitos temas
que podem e devem ser considerados. Por exemplo, o tema da alienação no trabalho, na religião, no con-
sumo, no lazer, na política, no esporte etc. Tomemos como exemplo o tema do consumo, realidade que está
afetando a sobrevivência da própria vida no planeta.
No consumo alienado, a relação que se estabelece é entre o consumidor que compra rótulos e grifes,
tornando-se “garoto(a) ou menino(a) de propaganda”. O poema de Carlos Drummond de Andrade, “Eu,
etiqueta”, revela bem esse fenômeno. O que podemos perceber é a ausência do verdadeiro prazer da coisa
adquirida. Opera-se uma transferência, e o consumo deixa de ser um meio para se tornar um fim em si

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mesmo. Chega a ser obsessão. E toda essa busca desenfreada e irresponsável pelo consumo está sendo ali-
mentada pela neofilia, isto é, pelo apetite da novidade, da eterna novidade, pelo igualmente infinito desejo
de distinção e inserção.

Eu, etiqueta
Em minha calça está grudado um nome Estou, estou na moda.
que não é meu de batismo ou de cartório, É doce andar na moda, ainda que a moda
um nome... estranho. seja negar minha identidade [...]
Meu blusão traz lembrete de bebida Com que inocência demito-me de ser
que jamais pus na boca, nessa vida. [...] eu que antes era e me sabia
Meu tênis é proclama colorido tão diverso de outros, tão mim mesmo,
de alguma coisa não provada ser pensante, sentinte e solidário [...]
por este provador de longa idade. [...] Por me ostentar assim, tão orgulhoso
Desde a cabeça ao bico dos sapatos, de ser não eu, mas artigo industrial,
são mensagens, [...] peço que meu nome retifiquem.
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, Já não me convém o título de homem.
escravo da matéria anunciada. Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Eu, etiqueta. In: Corpo: novos poemas. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 85-87.

PROBLEMATIZANDO
1. Estamos diante da desumanização ou da coisificação do ser humano e da humanização da coisa.
• Compartilhe com os colegas sua reflexão sobre a realidade do consumismo e suas implicações na
coisificação do ser humano.

Nessas reflexões, a filosofia exerce importante papel social e humano, uma vez que desperta as consciên-
cias, despindo ou desvelando o que estava velado. Olhando refletidamente para a etimologia do vocábulo
grego que corresponde à verdade (a-létheia, a-letheúein), isto é, “não esquecer”, vemos que a verdade
significa relembrar aquilo que estava esquecido. Nisso reside a vocação do filósofo: no desvelamento e na
rememoração do que está encoberto pelo costume, pelo convencional, pelo poder, pela ideologia.
GPOINTSTUDIO/SHUTTERSTOCK

Desejos artificialmente
criados são transformados
em necessidade. Será que a
qualidade de vida depende do
nível de consumo?

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OUTROS OLHARES
1. Observe a imagem a seguir.

WILSON DIAS/ABR
Catadores trabalham no Lixão da Estrutural, Brasília (DF), 2012.

Associe a imagem à reflexão realizada sobre a cultura do consumo e socialize a sua reflexão sobre:
• as decorrências do consumismo;
• o fenômeno da alienação;
• o fenômeno da exclusão;
• negação da dignidade e da alteridade.
2. Acompanhe um trecho da letra da canção "Ideologia", de Cazuza e Frejat.

Ideologia
Meu partido é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito. Ah! eu nem acredito...
Que aquele garoto que ia mudar o mundo, mudar o mundo,
frequenta agora as festas do Grand Monde...
Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver. Ideologia! Eu quero uma pra viver...
O meu prazer agora é risco de vida. Meu sex and drugs não tem nenhum rock ‘n’ roll
Eu vou pagar a conta do analista, pra nunca mais ter que saber quem eu sou.
CAZUZA; FREJAT. Ideologia. Pra sempre Cazuza. Universal Music, 2008. DVD.

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• Nessa letra, predomina uma visão positiva ou negativa da ideologia? Uma visão que se aproxima
mais da visão de Gramsci, de Mannheim ou de Marx? Exponha sua visão de forma argumentativa.
3. Acompanhe, agora, a letra da canção "Admirável gado novo", de Zé Ramalho. Nela, há muitas ex-
pressões que fazem referência à alienação, conforme seu significado etimológico expressa: perten-
cer a outro, ser estranho a si, não ter autonomia.

Admirável gado novo


Vocês que fazem parte dessa massa, que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber...
E ter que demonstrar sua coragem, à margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem já sente a ferrugem lhe comer [...]

Êeeeeh! Oh! Oh! Vida de gado, povo marcado Êh! Povo feliz!...

Lá fora faz um tempo confortável, a vigilância cuida do normal. [...]


Demoram-se na beira da estrada e passam a contar o que sobrou [...]
O povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos, contemplam essa vida numa cela [...]
RAMALHO, Zé. Admirável gado novo. Zé Ramalho em foco. Som Livre, 2006.

• Socialize sua percepção sobre o tema da alienação, com base em algum trecho da letra “Admirável
gado novo”.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir. Nele, Karl Jaspers reflete sobre a natureza da atitude filosófica, sua busca pela
verdade e sua consequente inquietude.

A filosofia no mundo
A filosofia se dirige ao indivíduo. Dá lugar à livre comunidade dos que, movidos pelo desejo de
verdade, confiam uns nos outros. Quem se dedica a filosofar gostaria de ser admitido nessa comu-
nidade. Ela está sempre neste mundo, mas não poderia fazer-se intuição, sob pena de sacrificar a
liberdade de sua verdade. [...]
A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática.
[...]. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendes-
se, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade
insólita [não habitual, estranha], teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.
[...]. O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. A
filosofia é, portanto, perturbadora da paz.
JASPER, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 138-140.

• Com base na leitura desse trecho, redija um texto dissertativo justificando a seguinte afirmação:
“A filosofia é perturbadora da paz”.

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2. Leia o trecho a seguir.
Dessa vez, Karl Jaspers reflete sobre a natureza e a dinâmica da verdade, objeto da busca filosófica.

E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do ser-verdadeiro se-
gundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdade única.
Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.
No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo, porém
o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade revelar-se a
seus olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transparente a
si mesmo. [...].
É preciso que a verdade múltipla seja verdade para convergir à unicidade. Jamais chegamos a pos-
suir essa verdade integral. Eu a nego quando vou ao extremo da afirmação, quando erijo o que sei
em absoluto. Eu a nego também quando tento sistematizá-la em um todo, porque a verdade total
não existe para o homem e porque essa ilusão o paralisa.
JASPER, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 138-147.

• A partir da leitura desse trecho, redija um texto sobre a identidade do pensamento filosófico e
sobre a natureza da verdade que ela busca.
3. Leia as seguintes afirmativas:

A filosofia só se realiza renunciando a coincidir com aquilo que exprime.


MERLEAU-PONTY, M. Elogio da filosofia. Trad. Antonio Braz Teixeira. Lisboa: Guimarães Editores, 1998. p. 75.

A filosofia não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que
se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força.
SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2.

• Com base na leitura dessas afirmações, redija um texto justificando a natureza dialética da filosofia.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE FILMES
Tem i : Manipulação ideológica Tem i : Mídia e manipulação
Filme: Show de Truman (Estados Unidos, 1998). Di- Filme: O quarto poder (Estados Unidos, 1997). Dire-
reção: Peter Weir. O personagem Truman, estrelado ção: Costa-Gravas. Um segurança demitido, no dese-
por Jim Carrey, não sabe que está vivendo uma rea- jo de reaver o emprego, ameaça a diretora do museu
lidade construída por um programa de televisão. onde trabalhava com uma espingarda. Por acidente, a
O filme mostra a vida dele sendo filmada, por cinco arma dispara e fere um ex-colega de trabalho. Crian-
mil câmeras, durante 24 horas por dia, e transmitida ças que visitavam o museu são retidas como reféns.
para todo o mundo, sem seu conhecimento. Dessa Rapidamente, todo o país acompanha uma história ab-
forma, suas emoções e reações são muito reais. A ci- solutamente manipulada pela imprensa, movida pelo
dade na qual Truman vive foi construída e planejada alto índice de audiência. Essa obsessão pelo sensacio-
para essa finalidade; seus habitantes compõem o gru- nalismo pode ser associada à fala final de um repórter:
po de atores e toda a equipe envolvida no programa. “Nós o matamos!”.

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FILOSOFIA GREGA: ORIGEM,
FUNDAMENTOS E
SISTEMATIZAÇÃO
IVY CLOSE IMAGES/ALAMY/LATINSTOCK

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2
Unidade
Unidade

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1
Eixo Temático

EXPERIÊNCIA E
RACIONALIDADE

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
Você

• A origem histórica e existencial da filosofia.


• As escolas pré-socráticas.
• Os sofistas e o relativismo.
• A teoria do conhecimento no pensamento.
socrático, platônico e aristotélico.
• Conceito de verdade.
• Conceitos de doxa e episteme.
• Método da maiêutica e da dialética.
• Teoria das quatro causas.
• Teoria do ato e da potência.
• Noções de lógica aristotélica.
Por uma questão de coerência, iniciamos esta
unidade com o eixo temático "Experiência e
racionalidade", uma vez que abordamos a passagem
do mito à filosofia. Esse eixo é o mais longo e denso da
obra, pois aborda os primórdios, a fundamentação e a sistematização da
filosofia grega. Não deve haver pressa. Importa que sejam assimilados
conceitos estruturadores da filosofia, como: mito, Cosmo, logos, doxa,
episteme, dialética, essência, virtude, liberdade, ato, potência, indução,
dedução, falácia.

Temas:
1. Contexto: as novas condições 6. O conhecimento sensível e inteligível
históricas 7. A filosofia e o espanto admirativo
2. Os primeiros filósofos: naturalismo 8. Conhecimento, virtude e liberdade
pré-socrático
9. A metafísica e os campos do saber
3. Os sofistas e a oratória
10. A lógica aristotélica
4. Humanismo e relativismo
5. A busca dialética da verdade

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KONSTANTINOS DAFALIAS/FREEIMAGES
1. CONTEXTO: AS NOVAS CONDIÇÕES HISTÓRICAS

Acrópole de Atenas, Grécia, 2007. Construída por volta de 450 a.C., por iniciativa do estadista, orador e general Péricles, em
homenagem à deusa Atena, protetora da cidade. Na acrópole, encontra-se o Partenon, templo dedicado a ela.

A revolução política, que implicou a passagem do mundo agrário para a formação da pólis, na qual a ha-
bilidade da oratória era fundamental às transações econômicas, à construção de consensos políticos e à
elaboração de leis, pode ser considerada um dos principais elementos que contribuíram para a formação do
pensamento filosófico.

Entre os séculos XII e VII a.C., o mundo grego viveu o período Homérico, no qual a base econômica era a
família, sendo ao mesmo tempo unidade de produção e de consumo. Os líderes de cada comunidade familiar
possuíam o poder econômico e político. Eles formavam uma aristocracia, que decidia o que deveria ser feito em
cada comunidade. Havia um relativo isolamento entre os diferentes povos gregos.
Por volta de 900 a.C., houve uma grande mudança nesse quadro: as relações comerciais no Mediterrâneo.
Com esse intercâmbio cultural, as populações aumentaram muito e começaram a se formar as primeiras cida-
des-Estado ou pólis, por volta de 700 a.C.
Dois aspectos característicos dessas cidades foram os mais relevantes: a ágora (a praça central) e a acrópole
(a cidade alta). Na ágora aconteciam os encontros dos cidadãos, que debatiam sobre os destinos da cidade.
Era o espaço das feiras, do mercado, das edificações de caráter público.
Por iniciativa de Péricles, governante da cidade, a acrópole de Atenas foi construída por volta de 450 a.C.,
em uma colina rochosa no alto da capital da Grécia, em homenagem à deusa Atenas, protetora da cidade.
Nessa cidade alta, na acrópole, a principal construção é o Partenon, templo dedicado à deusa Atenas. Hoje em
dia, encontramos as ruínas da acrópole, pela ação do tempo e por ter sido alvo de muitos ataques em guerras
que lá aconteceram.

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O primeiro legislador da pólis grega foi Drácon, um estadista conhecido pela severidade de suas decisões.
Em 621 a.C. ocorreu a redação do Código de Drácon, no qual a mesma pena era aplicada para praticamen-
te todos os crimes: a pena de morte. A crueldade dessas leis estava no pressuposto de que a lei ofendida ou
violada é um atentado aos deuses. Essa severidade, de onde se compreende a expressão “draconiano”, im-
pediu a livre interpretação das leis e das tradições pelos nobres, que historicamente as subordinavam aos seus
interesses. Com o estabelecimento de normas que valiam igualmente para todos, iniciou-se o movimento de
redução dos privilégios da aristocracia, histórica fonte de conflitos e instabilidades.
A crescente insatisfação dos cidadãos atenienses com a severi-
OS TESOUROS DO MUSEU BRITÂNICO, LONDRES, REINO UNIDO

dade e a inflexibilidade do Código de Drácon alimentou o desejo


por uma nova legislação. Após trinta anos de leis draconianas, que
acabaram por agravar os conflitos, mais do que os resolver, Sólon
(640-560 a.C.) recebeu a incumbência de ser o mediador dos confli-
tos. Por não ser um representante das aristocracias, sua posição e seu
reconhecimento social eram-lhe favoráveis.
Em 594 a.C. Sólon (640-560 a.C.) redigiu novo código, mais
igualitário. Sua legislação foi fundamento da democracia ateniense.
Sólon foi o responsável pela nova composição da boulé, como era
chamado o conselho dos 400 homens. A partir daquele momen-
to, os conselheiros não precisavam mais ser chefes ou aristocratas,
como acontecia anteriormente, mas qualquer homem livre, acima
de trinta anos, escolhido por sorteio.
Os pontos principais da legislação de Sólon podem assim ser
enumerados: a proibição de empréstimo que tem a pessoa do deve-
Sólon (1795), de Pierre Michel Alix. Aquarela. dor como garantia, ou o fim do direito da escravidão por motivo de
dívida, salvaguardando a liberdade do indivíduo e da família; a instituição do direito a prestar queixa, válido
para qualquer pessoa, no intuito de denunciar uma injustiça; o direito à apelação na corte do júri.
Dessa forma, em Sólon está a raiz do espírito das leis do mundo ocidental, instaurando a busca dos con-
sensos na articulação das forças políticas antagônicas.
Na abordagem da passagem da mitologia para o naturalismo, surge a oportunidade de proporcionar aos estudantes, de modo interdisciplinar, especialmente com os componentes curriculares
que compõem as Ciências da Natureza, a reflexão sobre a formação do pensamento científico, que se distancia do pensamento mítico, religioso e poético, inaugurando um novo método de
investigação.

2. OS PRIMEIROS FILÓSOFOS: NATURALISMO PRÉ-SOCRÁTICO


PHOTOTHEQUE R. MAGRITTE, MAGRITTE, RENÉ/
LINCENCIADO POR AUTVIS, BRASIL, 2015

De que elemento primordial (arché) é


feito o Cosmo?
Em seu princípio estará qual elemento?
O arché será a água? O ar? O fogo? Os
átomos?
Será o ápeiron, o ilimitado? Será o inde-
terminado?
Será o Cosmo feito de permanência,
substância essencial?
Ou, ao contrário, será eterno fluir, vir a
ser permanente?
O que queremos dizer quando dizemos
"pré-socráticos"?

A planície de ar (1940), de René Magritte. Óleo sobre


tela, 73 cm × 100 cm.

Os filósofos pré-socráticos são objeto de diferentes leituras. Alguns pesquisadores os consideram os


primeiros pensadores que se afastaram da mitologia, embora ainda preservassem muitos de seus aspectos.
Outros entendem que eles são os primeiros sábios do Ocidente. Outros, ainda, veem em suas obras uma
teologia natural, uma vez que o "divino" estaria no centro de suas especulações.

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De qualquer forma, nenhuma das interpretações capta inteiramente o que foi o fenômeno conhecido
como pensamento pré-socrático. Os filósofos pré-socráticos constituíram uma tradição filosófica que depois
se perdeu. Mas é possível resgatar alguns dos traços essenciais dessa tradição, que muito tem a nos dizer,
a nós que nos encontramos em uma crescente sensibilidade ecológica, cósmica. Ao falarmos em filosofia
pré-socrática, estamos nos referindo aos filósofos da natureza, conhecidos como físicos (physis, natureza).
Esses primeiros filósofos foram denominados por Aristóteles (384-322 a.C.) de physiólogos, o que vem a
significar estudiosos da natureza. Desta forma, o mundo natural (physis) passa a ser o objeto de estudo
desses primeiros filósofos, que inauguram entre nós a ciência.
A maioria dos pré-socráticos vem da Ásia Menor. Por essa razão, muitos historiadores acreditam nas
influências que esses pensadores teriam tido das religiões e das filosofias orientais. Apesar de ser uma possi-
bilidade, a maioria dos pesquisadores atribui aos gregos a originalidade do pensamento filosófico. Enquanto
as civilizações orientais permanecem muito ligadas à dimensão religiosa, com a temática da vida pós-morte
e das vias de purificação da alma, a civilização grega consegue elaborar um pensamento que se afasta das
explicações míticas e religiosas em direção às investigações científicas.
Todas as obras dos pré-socráticos foram perdidas. Restam alguns fragmentos que nos chegaram por
diferentes caminhos, principalmente através das citações feitas por filósofos posteriores, principalmente Pla-
tão, Aristóteles, os Estoicos, Sexto Empírico, Cícero, os Neoplatônicos e, especialmente, Diógenes Laércio.
Esse período começa no século VI a.C. e termina nos fins do século V a.C. O pensamento pré-socrá-
tico surge e floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias gregas da Ásia Menor, do
Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da Sicília, favorecido pelas liberdades democráticas e pelo bem-estar
econômico.
A preocupação central dos filósofos deste período refere-se aos problemas cosmológicos, nos quais a
tônica é estudar o mundo exterior nos elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudan-
ças a que está sujeito.
Converse com os estudantes sobre o que eles entenderam a respeito da importância dos pré-socráticos para o desenvolvimento da filosofia e das ciências. Se considerar importante, retome a
leitura do texto e registre as palavras-chave no quadro de giz para que o contexto de transição seja analisado novamente.
A physis e a causalidade: o elemento primordial
Para os pensadores pré-socráti-
ALBERTO RAMIREZ/FREEIMAGES

NICK BENJAMINSZ/FREEIMAGES
cos, o foco da busca era entender a
origem de todas as coisas, o arché,
o princípio, que está na origem de
uma realidade. Para esses filósofos,
existe um nexo causal natural entre
as coisas; eles buscam a relação entre
causa e efeito. Por isso, Aristóteles os
define como naturalistas ou filósofos
da natureza.
FLAVIO TAKEMOTO/FREEIMAGES

JON ALEX/FREEIMAGES

Para os filósofos naturalistas, há um


princípio primeiro (arché), a partir do
qual tudo se origina. Esse princípio é um
elemento natural, não personificado em
força divina.

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O logos e o Cosmo
Nossos primeiros filósofos fizeram, simultaneamente, duas grandes mudanças em relação ao passado.
Em primeiro lugar, tentaram entender o mundo com o uso da razão, sem recorrer à revelação, à religião,
ou ainda à autoridade e à tradição. E, em segundo, estimularam as pessoas à atitude de pensar, servindo-
-se da própria razão. Dessa forma, a filosofia nasce como saber aberto e em construção intersubjetiva. Não
se trata de um corpo acabado e sistematizado de conhecimentos a serem transmitidos. Ao contrário, o diá-
logo e a discussão, o debate e a argumentação são características fundamentais desse novo saber.
Buscar o logos é buscar o princípio de inteligibilidade, a racionalidade que move o mundo. Aqui se
pressupõe que haja uma ordem e uma harmonia no mundo. O Cosmo é o mundo natural regido por uma
ordem, por princípios racionais inteligíveis, nos quais se percebe uma ordem hierárquica, em que alguns
princípios estão na base. A falta de ordem e de organização da matéria é conhecida pela expressão caos.
Nesse contexto, é importante perceber um pressuposto de fundo. Para que o mundo possa ser conhe-
cido pela razão é preciso que haja princípios racionalmente inteligíveis. Assim, pode-se fazer ciência, tentar
explicar teoricamente o Cosmo. Daí resulta a expressão “cosmologia”, reflexão, estudo e explicação dos
processos naturais e do funcionamento do universo.

As diversas escolas pré-socráticas


Em conformidade com a abordagem realizada, e com o modo de resolver as questões que surgem, clas-
sificam-se os filósofos que floresceram nesse período em quatro escolas: Escola Jônica; Escola Itálica; Escola
Eleática; Escola Atomística.

A Escola Jônica
A Escola Jônica recebe esse nome por ter florescido nas colônias jônicas da Ásia Menor. É a primeira
escola do período naturalista, na qual os seus expoentes estão preocupados em encontrar o princípio do
mundo natural variado, múltiplo e mutável. Para os jônicos, o princípio (arché) das coisas deve estar em
uma matéria única, na qual deve estar a força ativa, de cuja ação derivariam precisamente a variedade, a
multiplicidade, a sucessão dos fenômenos na matéria una.
Essa escola floresceu precisamente em Mileto, colônia grega do litoral da Ásia Menor, durante todo o
século VI, até a destruição da cidade pelos persas no ano de 494 a.C. Entre os jônios, encontramos os anti-
gos e os posteriores. Os antigos consideram o universo do ponto de vista estático, procurando determinar
o elemento primordial, a matéria primitiva de que são compostos todos os seres. Os mais conhecidos são:
Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto. Os jônios posteriores imprimem outra
orientação aos estudos cosmológicos, encarando o universo no seu aspecto dinâmico, e procurando resol-
ver o problema do movimento e da transformação dos corpos. Os mais conhecidos são Heráclito de Éfeso,
Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômenas.
ERNST WALLIS

Tales e o princípio água


De acordo com Aristóteles (Metafísica, I, 983 b 20), Tales de Mileto (624-548 a.C.) foi
o fundador da filosofia dos “físicos”, que tinha como centro de preocupação a investi-
gação sobre os fundamentos naturais e não mais as especulações teológicas e sobrena-
turais, típicas de uma mentalidade mítica.
Tales sustentava ser a água o princípio (arché) de todas as coisas. A água, ao se
resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e
ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. A partir da observação
desses três estados em que vemos os corpos na natureza, ou seja, líquido, sólido e
gasoso, Tales é levado a concluir que a água pode se transformar ilimitadamente. Tales de Mileto em
ilustração de 1875.

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Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, tanto vege-
tais como animais. Tales teve como discípulo Anaximandro.

Anaximandro e o princípio indeterminado e ilimitado


Anaximandro de Mileto, (611-547 a.C.), discípulo e sucessor de
MUSEUS E GALERIAS DO VATICANO

Tales, é considerado geógrafo, matemático, astrônomo e político. É


atribuída a Anaximandro a autoria do tratado Acerca da natureza,
no qual estabelece como princípio (arché) um elemento indefinido,
conhecido como ápeiron (ilimitado), isto é, quantitativamente infini-
to e qualitativamente indeterminado, em movimento perpétuo.
O ápeiron é um princípio abstrato, dotado de vida e imortalidade,
que não está diretamente associado a nenhum elemento palpável
da natureza. Desse ilimitado, por um processo de separação ou "se-
gregação" derivam os diferentes corpos. Superando a visão de Tales,
Anaximandro caminha na direção da independência desse "princí-
pio" em relação às coisas particulares. O eterno e ilimitado, o ápeiron,
está em constante movimento, e disso resulta uma série de pares
opostos – água e fogo, frio e calor etc. – que constituem o mundo.
Em virtude desse princípio, do caos evolui a ordem do mundo.

Detalhe que representa o filósofo Anaximandro (ao centro)


na obra A Escola de Atenas (1509), de Rafael Sanzio.
Afresco, 500 cm × 770 cm.

Anaxímenes e o princípio ar
Da vida de Anaxímenes (588-524 a.C.) pouco se sabe, além de

PHOTO © TARKER/BRIDGEMAN IMAGES


ser discípulo e amigo de Anaximandro. Diferentemente do princípio
palpável de Tales (a água) e do princípio abstrato de Anaximandro
(o indeterminado), estabelece como princípio, que tudo comanda,
o ar, substância determinada. Tudo provém do ar, que é respiração
e vida. O ar é o princípio (arché) na medida em que torna vivo o
mundo, mantendo-lhe unido e sendo, assim, sua alma. Nossa alma,
como todas as coisas, é ar. O fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a
pedra são formas progressivamente mais condensadas do ar. Dessa
forma, as diversas coisas que existem, mesmo que qualitativamente
diferentes entre si, não passam de variações quantitativas (mais raro,
mais denso) desse único elemento.

Anaxímenes.
PROBLEMATIZANDO
1. É correto afirmar que a ciência do mundo ocidental tem nos filósofos pré-socráticos as suas raízes?
• Considerando a novidade e a importância desses primeiros filósofos, compartilhe com os colegas
sua reflexão.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE COSMO E LOGOS

COSMO nome caos está relacionado à ideia de vazio, de


Etimologicamente, a palavra grega Cosmo desordem primordial, de separação.
(kosmos) significa o mundo ordenado, o universo LOGOS
organizado, a sua estrutura universal, a totalida-
de das coisas que o compõem. Assim, a palavra Etimologicamente, a palavra grega logos signi-
cosmologia se refere à teoria científica que diz res- fica razão, palavra, discurso, inteligência. Assim, em
peito ao universo e às suas leis que regem seu fun- primeiro lugar, logos pode ser traduzido por discurso
cionamento e estabelecem a ordem e a harmonia. racional, pensamento racional sobre a realidade. Em
A cosmologia nasce com os filósofos natura- segundo lugar, o logos é a razão de ser da realidade,
listas, os pré-socráticos, para os quais a origem do o princípio de ordem dos fenômenos. Por isso, bus-
universo está vinculada não a divindades, mas a car o logos é buscar o princípio de inteligibilidade, é
um elemento natural, o que torna a própria natu- buscar, por meio da razão, a racionalidade que move
reza cognoscível através do pensamento. o mundo. Nesse sentido, em conformidade com a
Contrariamente a Cosmo, temos a noção de tradição cristã, o logos é o próprio Deus, expresso
caos (kaos). De acordo com Hesíodo, poeta Grego textualmente no prólogo do Evangelho de João “no
do século VIII a.C., caos é a primeira divindade. O princípio era o logos (verbo), e o logos estava em
Deus, e o logos era Deus”.

Heráclito de Éfeso e o movimento dos contrários

[...] o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a
discórdia. (Fragmento 8).
O mesmo é em (nós?) vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes, tombados
além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes. (Fragmento 88).
HERÁCLITO. In: Os pré-socráticos: vida e obra. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os pensadores).

Heráclito (540-470 a.C.) nasceu em Éfeso, cidade


GALERIA NACIONAL ESCOCESA, REINO UNIDO/FUNDAÇÃO GALA,
SALVADOR DALÍ/LICENCIADO POR AUTVIS, BRASIL, 2015

da Jônia. Conhece-se sua obra somente através de


curtos fragmentos.
Heráclito se apresenta como mensageiro de um lo-
gos, de um sentido que o ultrapassa e do qual é ape-
nas intérprete: O logos é aquilo segundo o qual todas
as coisas acontecem (fr. 1), governa o mundo (fr. 72)
e abriga-se na alma (fr. 45). O logos transmite-nos o
sentido, cabe a nós decifrá-lo na medida de nossas
possibilidades e forças.

Cabeça rafaelesca arrebentada (1951), de Salvador Dalí. Óleo


sobre tela, 43 cm × 33 cm.
Essa tela de Salvador Dalí permite-nos refletir a respeito da
tese de Heráclito, pois nela percebemos que a vida é movimento
permanente. Nada permanece igual, nem mesmo nosso
pensamento. É a mudança constante que nos define.

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A luta e a harmonia dos contrários
Para Heráclito, a natureza é a vida dos contrários; nela, as diferenças se harmo-
nizam, sem se anular mutuamente. Essa harmonia mantém-se sob tensão, pois os
contrários tendem a se separar, conforme dito no fragmento 8: "[...] o contrário
é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a
discórdia". Por isso, a identidade passa pela diferença e a diferença se encontra na
identidade. Assim, "a rota para cima e para baixo é uma e a mesma" (fr. 60) e "o
mesmo é em (nós?) vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes,
tombados além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes" (fr. 88).

O devir
Sua filosofia é perpassada pela ideia do devir eterno, pela transformação in-
cessante de todas as coisas. A realidade natural se caracteriza pelo movimento.
Tudo flui. Nada permanece o mesmo. O mundo é um perpétuo renascer e mor-
rer, rejuvenescer e envelhecer. "O sol é novo a cada dia". A vida se transforma
em morte e a morte em vida. "Aos que entram nos mesmos rios outras águas
afluem" (fr. 12). "Nos mesmos rios entramos e não

BEGOBEGO/MORGUEFILE
entramos, somos e não somos" (fr. 49 a).
Assim, o devir é metamorfose permanente das
coisas que se corrompem e se transformam. No devir,
encontramos a síntese da afirmação e da negação.
"Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio" (fr.
91). E nesse mesmo fragmento, Heráclito diz: "Nem
[é possível] tocar substância mortal duas vezes na
mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da
mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem
mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo)
compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se".
É aqui, no campo do devir, que a luta dos con-
trários acontece e nos possibilita conhecer algo. A verdade encontra-se no devir. Por que não é possível
"Pois a (coisa) sábia é uma só, possuir o conhecimento que tudo dirige através de entrar duas vezes no
tudo" (fr. 41). Resta-nos a impossibilidade de conhecer o fundamento: "o modo mesmo rio?
humano não comporta sentenças, mas o divino comporta" (fr. 78).

O fogo, princípio explicativo

NICK BENJAMINSZ/FREEIMAGES
Enquanto Tales de Mileto fizera da água o princípio de todas as coisas e Anaxi-
mandro escolhera o ar, Heráclito opta por ver no fogo o elemento explicativo dos
diferentes fenômenos.
"Transmudando repousa (o fogo etéreo no corpo humano)" (fr. 84). A plenitude
almejada não é possível enquanto estática, por isso está no devir. Para Heráclito: "O
fogo é fartura e indigência. A indigência é a organização do mundo segundo a sua
lei, mas o abrasamento do mundo é a fartura". Soa-nos estranho pensar a orga-
nização como indigência ou privação. Mas, na verdade, o nascimento do amanhã
vem da morte do hoje. Por isso, o fogo une e funde indigência e fartura. Tudo vem
do fogo e regressa ao fogo.
Heráclito, seguramente, encontra-se na base ou na origem do pensamento Por que podemos pensar
dialético da filosofia, uma vez que, em sua concepção, o fundamento da realidade no fogo como elemento
está na afirmação e na aceitação da luta dos contrários, na afirmação de que a primordial, capaz de explicar
contradição entre os seres é o motor do mundo. a origem?

Após a consideração dessa visão, pergunte aos alunos sobre a importância dessa concepção de luta e harmonia dos contrários para a filosofia e
para todos os que desejam e buscam a verdade. 67

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A Escola Eleática: Parmênides e a imutabilidade do ser
Temos poucos dados de Parmênides. Ele deve ter nascido por volta de
DE AGOSTINI PICTURE LIBRARY/GETTY IMAGES

515, século VI a.C., parece ter se encontrado com o jovem Sócrates e ter
sido discípulo de Xenófanes. Conhecia e discordava da teoria de Heráclito.
Por afirmar o movimento permanente, Heráclito é tido como representante
do mobilismo, concepção segundo a qual tudo está em mudança o tempo
todo. Parmênides e os eleatas são adversários dos mobilistas, defendendo
uma posição que podemos denominar como sendo monista, afirmando
uma realidade única.
De sua obra, escrita em versos, ficaram-nos 155 versos. O poema de Par-
mênides é conhecido como Da natureza, que distingue a verdade (alethéia)
da opinião (dóxa).

Parmênides, ao contrário de Heráclito, procura eliminar tudo o que


Busto de Parmênides. seja variável e contraditório. Se uma coisa existe, ela é esta coisa e
não pode ser outra, muito menos o seu contrário. [...] O ser é o ser,
ou resumidamente, o ser é. Segue-se logicamente que não-ser não é,
não pode existir.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo:
Nova Cultural, 1999. p. 32. (Os pensadores).

Identidade entre ser, pensar e dizer


Parmênides traz uma concepção grega, na qual o pensar e o falar é dizer o ser; quem diz, diz o que é.
Não se pode, ao dizer, referir-se ao que não é. Nesse sentido, dizer é produzir o ser. Torna-se impossível,
dessa forma, afirmar ao mesmo tempo uma coisa e seu contrário. O ser é e não pode não ser. O ser é
eterno, imóvel, indestrutível. Não tem origem, nada pode haver antes dele ou depois dele. Obrigatoria-
mente, o ser é uno e indivisível, pois se houvesse outro ser, o que ele seria? E se se dividisse, o que seriam
as outras partes? Outros seres? Isso não é possível. O ser é uno. Além disso, o ser é também pleno, não
admite o vazio, que é não ser.
Em decorrência, Parmênides se refere às aparências como fugazes, como ilusões. Portanto, quem se
concentra nas aparências não se concentra no ser, não se faz fiel ao ser, apenas no movimento e, por-
tanto, no não-ser.
Com Parmênides, o pensamento lógico se forta-
GRUM_L/SHUTTERSTOCK

lece, na medida em que ele evidencia os problemas


de se pensar a contradição e, com isso, problemati-
za a percepção das coisas como elas nos aparecem.
A diferença entre Heráclito e Parmênides nos
mostra os caminhos que fizeram nascer a filosofia.
Os pensadores que vieram depois não podiam mais
retroceder. Como articular o devir e o uno, a mu-
dança e a permanência? Como mostrar a ideia de
que é tão verdadeiro o que permanece idêntico a si
quanto a multiplicidade e o movimento?
No desenvolvimento do pensamento filosó-
fico naturalista, a natureza (physis) passará a ser É o mesmo ser ou não é o mesmo na mudança? O que
muda é a aparência ou o ser? Ou o ser é a aparência? A
concebida não mais como unidade, mas como
aparência nada tem a ver com o ser?
pluralidade.

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Seguem alguns trechos do poema parmenidiano.

Que o ser não é engendrado, e também é imperecível: com efeito, é um todo, imóvel, sem fim e
sem começo. Nem outrora foi, nem será, porque é agora tudo de uma só vez, uno contínuo. Que
origem buscarás para ele? Como e onde teria crescido? Do não ser, não te permito dizê-lo nem pen-
sá-lo: não é possível dizer nem pensar o que não é. [...]
E nem sequer do ser concederá a força da crença veraz que nasça algo diferente dele mesmo. [...]
E como poderia existir o ser no futuro? E como poderia nascer? Se nasce, não é; e tampouco é, se
é para nascer no futuro. E assim se apaga o nascer e desaparece o perecer. [...]
Nem existe o não ser que lhe impeça alcançar a plenitude.
Nem pode ser ora mais pleno, ora mais vazio porque é todo inteiro inviolável, igual a si mesmo
em todas as partes.
Os pré-socráticos: vida e obra. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 148-149. (Os pensadores).

A partir desse poema, Parmênides nos diz que o ser é e o nada não é. O nada não pode sequer ser pen-
sado. Portanto, ser e pensar são o mesmo. O nada, por não ser, é indizível.
Com Parmênides, introduzem-se na filosofia os dois princípios lógicos fundamentais de todo o pensar: o
princípio da identidade (“o que é, é e o que não é, não é”) e o princípio de não contradição (“o que é, não
pode não ser, e o que não é, não pode ser”).

PROBLEMATIZANDO
1. Você concorda com Parmênides quando ele atribui ao ser a imobilidade?

OUTROS OLHARES
1. Leia um trecho da letra da canção “Como uma onda”, de Lulu Santos e Nelson Motta.

Como uma onda


Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas como o mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo...
SANTOS, Lulu; MOTTA, Nelson. Como uma onda. O ritmo do momento. Rio de Janeiro: WEA, 1983. CD.

Considerando esse trecho, em paralelo com a doutrina segundo a qual “tudo flui”, de Heráclito,
como você se posiciona diante das afirmações a seguir?
• Não existe uma essência, algo que permanece em meio ao fluir.
• Algo permanece, mas os nossos sentidos só captam a aparência, que sempre muda.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE A ESSÊNCIA
Etimologicamente, a expressão latina essentia No pensamento existencialista contemporâ-
se refere à natureza de uma coisa, natureza de neo haverá outra concepção de essência ou mes-
esse (ser). Esse termo latino foi criado para tradu- mo descrença em relação à existência de essência.
zir o termo grego (ousia), essência, substância, ser. Nesse pensamento, a existência humana precede
Dessa forma, a concepção predominante na a essência. Ou seja, o ser humano, ao longo de
filosofia refere a essência àquilo que define ou diz sua vida vai construindo a sua essência, entendida
o “ser” da coisa, a sua verdade, sempre a mesma como caráter, personalidade.
e da mesma maneira, necessariamente. Assim, por Nessa visão, no fluxo constante das aparên-
exemplo a fala de Platão no diálogo Fédon: “A pró- cias, a identidade de um ser vai se construindo.
pria essência, que em nossas perguntas e respostas Em toda vivência, realiza-se uma aprendizagem.
definimos como o ser verdadeiro, é sempre a mes- Em toda experiência, acontece a construção do
ma e da mesma maneira [...] permanece necessa- caráter. Nessa concepção, a essência do ser não
riamente no mesmo estado e da mesma maneira”. é um traço de personalidade ou qualidade; mas,
Em decorrência, ao falarmos do ser humano, é a potencialidade mesma do ser, em construção.
a pergunta sobre a essência seria a pergunta so- Por isso, acolhendo a metáfora bíblica do mito da
bre o que identifica e diferencia esse ser de outros criação do homem e da mulher, a essência que
seres. Dessa forma, a essência fala do que é ne- nos une e define é o barro, imagem usada para
cessário para esse ser poder ser definido como hu- expressar tanto a nossa fragilidade, quanto a nos-
mano. Se faltar essa dimensão, a natureza do ser sa abertura para infinitas possibilidades. Portanto,
fica comprometida. Assim, por exemplo, ser alto a essência, mais do que algo pronto e acabado,
ou baixo, gordo ou magro, branco ou negro não é a permanente possibilidade de superação, que
é algo essencial, mas são tão somente aparências, existe em todo ser humano.
por meio das quais a essência se manifesta. Entre Nesse sentido, a existência humana traz a es-
os atributos essenciais que definem o ser humano sência da indeterminação. Ou seja, não está dito
estão a consciência e a liberdade. o que seremos, pois é a nossa liberdade essencial
Chamamos de acidente algo que não é ne- que construirá a vida, no próprio caminhar. Por
cessário, algo que é contingente, que está, mas isso, existir é projetar-se, criar-se e destinar-se. Em
que poderia não estar. Assim, os acidentes são as decorrência disso, torna-se incompatível com essa
modificações superficiais no ser. Exemplificando, a visão a existência de um destino prévio, de uma
altura e peso são formas acidentais do ser huma- trajetória já definida para o ser humano.
no. Isto é, sofrem alterações.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Considerando a decisiva contribuição dos filósofos pré-socráticos para a filosofia, redija um texto ex-
plicitando a diferença entre essa primeira forma de filosofia em relação ao pensamento mítico.
2. Leia os fragmentos a seguir, escritos por Heráclito:

O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns
fez escravos, de outros livres. (fr. 53)
[...] justiça (é) discórdia, e [...] todas (as coisas) vêm a ser segundo discórdia e necessidade. (fr. 80)
HERÁCLITO. In: Os pré-socráticos: vida e obra. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os pensadores).

• Com base nesses fragmentos e em outras informações, redija um texto justificando a afirmação:
“O conflito é o pai de todas as coisas”.

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A reflexão sobre o humanismo inaugurado pelos
sofistas e por Sócrates abre-nos a possibilidade
de uma reflexão filosófica relacionada
3. OS SOFISTAS E A ORATÓRIA ao poder e às funções da palavra. É uma
excelente oportunidade para trabalhar de modo
interdisciplinar com Linguagens, Códigos e suas
Conforme vimos, a filosofia pré-socrática do século VI a.C. estava centrada no Tecnologias. Sugerimos como objeto de estudo
a análise de discursos políticos, a percepção
problema cosmológico, da physis (mundo natural) e da busca do arché, isto é, das figuras de linguagem usadas, a força
mobilizadora da palavra, a relação da palavra
do princípio explicativo do movimento e do com a realidade ou com a verdade.

MARIE-LAN NGUYEN/MUSEU BRITÂNICO, LONDRES, REINO UNIDO


vir a ser dos fenômenos naturais. O olhar
humano era um olhar para fora de si, para
os céus e para a imensidão do mundo. Era
o período da chamada filosofia naturalista. Demóstenes (384-322 a.C.)
foi um dos mais famosos
Durante o século V a.C., o problema an-
oradores da política grega
tropológico vai tomando corpo, sobrepon- clássica. Ele aprendeu a
do-se, progressivamente, ao cosmológico. retórica assimilando os
Existem alguns antecedentes importantes discursos de oradores da
que exerceram grande influência para essa Grécia antiga. Seus discursos
foram importantes para
passagem. A reflexão filosófica se desloca persuadir os cidadãos
das colônias gregas da Ásia Menor para a atenienses na defesa da
Grécia continental, para Atenas, que acaba cidade contra as ameaças de
de sair vitoriosa da guerra contra os persas. invasão, por parte de Felipe II
da Macedônia.
O novo contexto urbano e comercial,
que caracterizava Atenas, estava fazendo
a transição da aristocracia para a democracia. Por isso, os ideais aristocráticos,
que defendiam uma concepção de virtude como traço vinculado ao sangue,
à herança genética dos “melhores por nascimento” serão superados por uma
visão democrática, e serão substituídos por uma ideia de virtude como aprendi-
zagem da arte do discurso, da persuasão, por meio da educação. Na educação
desse novo homem e cidadão, a grande virtude estará vinculada à excelência da
oratória, entendida como a virtude de falar em público, com o conhecimento e
o domínio das técnicas de persuasão, recorrendo a gestos, pausas, entonações,
olhar voltado para o público. É a habilidade de realizar um discurso bem estru-
turado, defendendo um ponto de vista, sabendo influenciar o comportamento
dos ouvintes.
Platão, em seu diálogo Protágoras, ocupa-se basicamente com o tema da vir-
tude, investigando se ela é ensinável ou não. Vejamos um fragmento, no qual
Protágoras se identifica como sofista, em diálogo com Sócrates.

Protágoras – Admito que sou sofista e que educo homens. Parece-me que
esta é a melhor das soluções, admitir em vez de negar. Para além desta, tenho
tomado outras precauções, embora, e afirmo-o diante dos deuses, nunca te-
nha sofrido nenhum mal por admitir que sou um sofista. [...] O meu ensino
destina-se à boa gestão dos assuntos particulares [...] e dos assuntos da
cidade.
Sócrates – Será que percebi bem as tuas palavras? Parece-me que falas da
arte de gerir a cidade e prometes transformar homens em bons cidadãos?
Protágoras – É esse precisamente, Sócrates, o objetivo que me proponho
cumprir. (Protágoras, 317b, 319)
PLATÃO. Protágoras. Adaptado por Olga Pombo. Disponível em:
<http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras/texto/index.htm>. Acesso em: 19 abr. 2016.

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A retórica dos sofistas foi fortemente criticada por Sócrates e Platão, por não apresentar compromisso
com a verdade. Na retórica, torna-se fundamental saber concatenar as ideias, pois tem como objetivo a per-
suasão, o convencimento. Trata-se de buscar, em cada questão e momento, o que parece ser mais decisivo
para persuadir. A retórica é mais abrangente do que a oratória, por não depender da presença de plateia
ou público. Por exemplo, saber convencer por meio de um texto é uma virtude retórica. Vejamos o trecho a
seguir do diálogo Górgias, o principal diálogo platônico sobre a retórica. Górgias era um dos mais famosos
sofistas e mestre na retórica e na oratória.

Górgias – [Por oratória] quero dizer a habilidade de convencer por meio do discurso um júri
num tribunal, membros de um conselho, votantes de uma assembleia e qualquer outra reunião
de cidadãos [...].
Sócrates – Que forma de convencer sobre o certo e o errado é produzida pela oratória nos tribunais
e em outros lugares, aquela que produz conhecimento ou aquela que produz apenas crenças sem
conhecimento?
Górgias – Aquela que produz crenças, obviamente.
Sócrates – Parece então que o convencer que a oratória produz sobre o certo e o errado é do tipo
que resulta da crença, não o que resulta do ensinar.
Górgias – Sim.
Sócrates – E o orador não ensina ao júri e outras comissões sobre o certo e o errado, apenas os per-
suade, dificilmente poderia ensinar a tantas pessoas em tão pouco tempo algo de tal importância.
PLATÃO. Górgias. Trad. Danilo Marcondes. In: Textos básicos de linguagem. De Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2009. p. 19.

A nova sociedade civil e urbana emergente, embora possuísse um ideal de homem e de cidadão dife-
rente da sociedade aristocrática, não tinha um sistema de educação para atingir esse ideal. Por isso, logo
percebeu a necessidade de uma educação capaz de satisfazer os ideais do homem da pólis.

O ingresso da massa na atividade política, causa originária e característica da democracia, é um


pressuposto histórico necessário para se colocarem conscientemente os problemas eternos que
com tanta profundidade o pensamento grego se colocou naquela fase da sua evolução e legou
à posteridade.
JAEGER, W. Paideia. Trad. Artur Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 337.

Em sociedade de perfil mais democrático, a última palavra não cabe mais ao critério hierárquico, cultua-
do através da tradição. Muitos são os que pretendem ingressar na vida política, alimentando o desejo de se
tornarem, um dia, dirigentes do Estado. No estado democrático, marcado pelas assembleias públicas e pela
liberdade da palavra, torna-se indispensável o poder da oratória. Dessa forma, a eloquência se converte no
grande objetivo da educação política dos futuros líderes. O elemento comum que une os sofistas é o fato
de serem mestres da areté política, concebida como persuasão.
Conforme muito bem expresso por Giovanni Reale:

Os sofistas, com efeito, operaram verdadeira revolução espiritual (deslocando o eixo da reflexão
filosófica da physis e do Cosmo para o homem e àquilo que concerne à vida do homem, como mem-
bro de uma sociedade) e, portanto, centrando seus interesses sobre a ética, a política, a retórica, a
arte, a língua, a religião e a educação, ou seja, sobre aquilo que hoje chamamos a cultura do homem.
Portanto, é exato afirmar que, com os Sofistas, inicia-se o período humanista da filosofia antiga.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia pagã antiga. Trad. Ivo Storniolo. Vol 1. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 127-128.

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PROBLEMATIZANDO
1. Os sofistas, em sua busca por vitória, recorrendo à arte da retórica, serviam-se da erística, uma arte
de argumentar que tem como objetivo exclusivamente desacreditar o oponente. Essa expressão
“erística” é uma referência à Éris, deusa grega da discórdia. Esse procedimento sofístico pode ser
avaliado como positivo? Ele pode ter alguma utilidade pedagógica ou educativa?

Estimule os estudantes a perceberem a relação que existe entre o lema dos sofistas

4. HUMANISMO E RELATIVISMO “O ser humano é a medida de todas as coisas”, expresso por Protágoras na citação
dos Diálogos de Platão, com o humanismo e o relativismo. Verifique se conseguem,
inicialmente, perceber a relação de decorrência.

MUSEU HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA


O ser humano é a medida de todas as coi-
sas, da existência das coisas que são e da
não existência das coisas que não são.
PLATÃO. Teeteto, 152a. In: PLATÃO. Diálogos: Teeteto. Sofista.
Protágoras. v. 1. Trad. Edson Bini.
São Paulo: Edipro. p. 57. (Clássicos Edipro)

Com esse lema de Protágoras, que estabelece


o homem como medida de todas as coisas, mer-
gulhamos no cerne do pensamento dos sofistas.
A palavra “sofista” significa “especialista
do saber”; sua raiz é sophos = sábio. Uma sin-
gularidade da atuação dos sofistas é seu foco
em objetivos práticos, e não mais contemplati-
vos ou teoréticos. O seu objetivo é exercer in-
fluência no presente, no cotidiano da vida da
cidade, especialmente na formação da habili-
dade persuasiva dos jovens, para sua participa-
ção política.
Para Protágoras (490-415 a.C.): “O homem
é a medida de todas as coisas, daquelas que são
por aquilo que são e daquelas que não são por
aquilo que não são”. Esse fragmento, de certa
forma, sintetiza a nossa compreensão a respeito
dos sofistas em duas ideias centrais sempre as- Demócrito e Protágoras (1664), de Salvatore Rosa. Óleo
sociadas: o humanismo e o relativismo. sobre tela, 185 cm × 128 cm.
A técnica argumentativa de Protágoras está Na passagem do naturalismo para o humanismo, a
presente em seu tratado Antilogia. Nele, como a preocupação se desloca da busca pelo elemento natural
primordial para temas antropológicos, éticos e políticos.
palavra já o diz, desenvolve a antilogia, a técnica
de mostrar os argumentos a favor e contra certas
posições, sendo ambas defensáveis. Infelizmente,
essa obra de Protágoras se perdeu.
Górgias de Leontino (487-380 a.C.) é outro grande sofista. Segundo Górgias, é impossível um conheci-
mento preciso e estável das coisas. E mesmo que fosse possível conhecer algo, nossa palavra seria impoten-
te para comunicar sua verdade. E disso resultaria a incompreensão da própria realidade.
Na impossibilidade de termos acesso à natureza das coisas, tudo o que podemos é proferir discursos,
que, no entanto, não podem ser verdadeiros, nem, se o fossem, reconhecidos como verdadeiros. O logos
pode e consegue ser persuasivo, e nisso está a sua importância.

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Para os sofistas, será por meio da educação e da formação de habilidades fundamentais, como a retó-
rica e a persuasão, que se formará o verdadeiro cidadão, hábil na participação política. É preciso conseguir
sobressair-se e refutar os argumentos alheios. No diálogo Eutidemo, o pensamento socrático-platônico faz
uma profunda crítica à habilidade erística dos sofistas: a arte de lutar com palavras e de contrapor tudo o
que se vai dizendo, seja falso ou verdadeiro.
Essa habilidade erística busca a vitória na argumentação, independentemente da verdade. Ela recorre
a diferentes técnicas de manipulação da palavra, como as falácias, que consistem em um raciocínio er-
rado com aparência de verdade, um argumento sem consistência, logicamente inválido em sua tentativa
de provar algo. Além das falácias, a erística recorre a silêncios e ambiguidades verbais, usando-as como
estratégias persuasivas.
De acordo com o pensamento socrático-platônico, o método da dialética será o caminho por excelência
para verdade; ele difere radicalmente da erística sofística. A dialética busca captar verdadeiramente a essência
do que permanece o mesmo, no jogo das contradições e das mudanças. Assim, a filosofia apresenta-se como
amante da sabedoria, em um caminhar em direção ao conhecimento verdadeiro, afastando-se das ilusões.

PROBLEMATIZANDO
1. No livro VI de A República, Platão discorre sobre as características que distinguem a postura filosófi-
ca da postura sofística. Acompanhe alguns fragmentos.

Socrátes – Assim, Glauco, com certa dificul- cem capazes de zelar pelas leis e as instituições
dade e ao término de uma longa discussão, da cidade.[...] Todos esses doutores mercenários,
diferenciamos os filósofos daqueles que o não que o povo denomina sofistas e considera seus
são. [...] Como estabelecemos que são filósofos rivais, não ensinam ideias distintas daquelas que
aqueles que podem chegar ao conhecimento do o próprio povo professa nas suas assembleias, e
imutável, ao passo que os que não podem, mas é a isto que chamam sabedoria. [...] Que diferen-
erram na multiplicidade dos objetos variáveis, ça existe entre este homem e aquele que reduz
não são filósofos, cumpre-nos ver a quem esco- sabedoria ao conhecimento dos sentimentos e
lheríamos para governar a cidade. [...] Devemos dos gostos de uma multidão composta de indi-
escolher para magistrados aqueles que nos pare- víduos de toda espécie?
PLATÃO. A República. Livro VI. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 191 e 202.

• Com base nesse texto, quais são os elementos que distinguem o filósofo do sofista?
• Os sofistas são conhecidos como os pensadores que inauguraram o relativismo. Em sua opinião, o
relativismo é expressão de sabedoria ou, contrariamente, pode ser lido como forma de individua-
lismo e indiferença? Discuta sua posição com os colegas, justificando-a.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia a afirmação a seguir:

O ser humano é a medida de todas as coisas, da existência das coisas que são e da não existência
das coisas que não são.
PLATÃO. Teeteto, 152a. In: PLATÃO. Diálogos: Teeteto. Sofista. Protágoras. v. 1. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro. p. 57. (Clássicos Edipro)

• Redija um texto explicando esse princípio fundamental, relacionando-o como a concepção sofísti-
ca de “virtude”.

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Sugerimos iniciar este tema com uma questão
5. A BUSCA DIALÉTICA DA VERDADE problematizadora: na busca pela verdade, pode haver
diálogos que não chegam à resolução, que não conseguem
concluir ou responder ao problema em discussão?

MUSEU METROPOLITANO DE ARTE, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS/COLEÇÃO


CATHARINE LORILLARD, WOLFE FUND
A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis David. Óleo sobre tela, 129,5 cm × 196,2 cm.
Sócrates buscava os conceitos essenciais por meio da dialética, da arte de confrontar diferentes pontos
de vista.

Será que existe uma verdade passível de ser encontrada?


Se uma verdade for acessível, será pela intuição da mente ou pela experiência dos sentidos?

Recordando a trajetória de Sócrates, sua busca e sua inquietude estavam voltadas para a descoberta da
verdade e para a construção do pensamento conceitual. Nessa busca, ele fazia menção à profissão de seus
pais. A exemplo de sua mãe, parteira, e de seu pai, escultor, ele se dizia “parteiro do conhecimento” e que
sua função era esculpir a pedra bruta do conhecer humano, para fazer vir à tona aquilo que as pessoas já
conheciam, mas que ignoravam conhecer, do qual não tinham consciência. Por essa razão, seu método foi
denominado de maiêutica (em grego, “parto”). E Sócrates fazia questão de salientar que, se sua mãe fazia
parto de corpos, ele ajudava no processo de parir novas ideias, que, ao virem à luz, mereciam, ainda, todo o
cuidado da lapidação.
A maiêutica começa pela parte considerada destrutiva, que envolve um método refutativo (chamado
elêntico). O método refutativo visa, através de uma sucessão de perguntas, levar o interlocutor a reconhecer
sua ignorância sobre o assunto em questão. Tal como aparece nos primeiros diálogos platônicos, Sócrates
se mostrava amigo do interlocutor, revelava-se admirador de sua capacidade e de seus méritos e lhe pedia
conselhos e ensinamentos. Nas discussões, iniciava com a confissão de nada saber, diante do oponente que
se dizia conhecedor de determinado assunto. Por meio de perguntas e problematizações desconstruía as
certezas que, até então, o interlocutor julgava saber. Nada mais restava ao interlocutor, senão confessar a
própria ignorância.

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Essa primeira fase da maiêutica estava a serviço da desconstrução de preconceitos, pois é preciso limpar
o terreno para poder construir. Por meio desse método, Sócrates tinha por objetivo que seu interlocutor
ampliasse seu espírito, ao desfazer-se de uma autossuficiência ilusória.
As pessoas que suportavam a ironia, primeira fase, não se aborrecendo e não indo embora, eram leva-
das, pelo diálogo com Sócrates, a responder coisas que jamais imaginavam saber: isto é, chegar a conceitos
precisos, frutos de longo diálogo construtivo. Assim nasce a episteme, a ciência, o conhecimento verdadeiro,
como o resultado do método.
Contudo, muitos diálogos não chegavam a alguma conclusão positiva, não chegavam ao conceito.
Eram diálogos inconclusivos, que terminavam em aporias. Aporia é sinônimo de “caminho sem saída”. Nos
diálogos aporéticos, não se chega à resposta do problema proposto para discussão. Para cada problema
apresentado no diálogo surgem muitos outros problemas relacionados. Muitas hipóteses são apresentadas
e abandonadas devido a uma dificuldade que parece insuperável. Com isso, os diálogos traziam uma clara
indicação de que a busca pela verdade deveria continuar.

Aporia e consciência da busca


A aporia socrática exerce um papel fundamental. Ela mostra aos interlocutores que eles não sabem o
que julgavam saber, seja porque suas definições são os preconceitos da maioria, seja porque consideravam
aspectos acidentais e não a essência do que se buscava. Por isso, o filósofo aparece como amigo, amante
da sabedoria, e não o seu possuidor.
Diferentemente dos sofistas, o pensamento socrático-platônico separa opinião e verdade, aparência e
realidade, percepção sensorial e pensamento racional. O objetivo era sair da multiplicidade das opiniões e
chegar à unidade da ideia. Para sair do particular e chegar ao universal, o método dialético é o procedimen-
to adotado por Sócrates e Platão. Não se pode agir racionalmente enquanto se permanecer preso às opini-
ões particulares. Somente quando se alcança um conceito capaz de dar conta de alguma multiplicidade se
pode pensar as coisas de modo isento de contradições. Como se pode julgar, por exemplo, se uma ação é
justa ou injusta se não se sabe o que é a justiça?
As questões que Sócrates privilegia são as referentes à moral, daí sua insistência em perguntar em que
consiste a coragem, a covardia, a piedade, a justiça etc. Diante de diversas manifestações de coragem, quer
saber em que consiste a coragem em si, o logos, o conceito. Dessa forma, o conceito é o fruto, o término,
o desfecho de um processo que, dialeticamente, leva da multiplicidade à unidade.
Quanto às finalidades do método socrático, primordialmente, temos a educação ética do cidadão,
o lapidar de sua alma. Ao entrar em diálogo com Sócrates, o interlocutor era levado a um “exame da
alma” e a uma prestação de contas da própria vida que levava. E foi esse “prestar contas da própria
vida” que lhe custou a própria vida, pois não é tarefa fácil aceitar ser corrigido, podado, lapidado. Isso
incomoda. Para muitos, calar Sócrates através da morte significava libertar-se de ter que desnudar a pró-
pria alma. Mas esse processo político pedagógico já estava tão presente que não mais o conseguiriam
deter, nem com o assassinato do próprio Sócrates, a tal ponto que Platão colocou na boca de Sócrates
verdadeiras profecias:

Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enga-
nados; essa não é uma forma de libertação, nem é inteiramente eficaz, nem honrosa. Esta outra,
sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor
possível. Com este vaticínio, despeço-me de vós que me condenastes.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. Trad. Jaime Bruna. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 26. (Os pensadores).

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Pode-se observar, pelo método de Sócrates, que a filosofia tem uma função de parteira que, após longa
gestação, auxilia no nascimento da ideia, a formação do conceito. Aqui não cabe dogmatismo, nem o prin-
cípio da autoridade. A verdade era objeto de permanente busca e não algo dado a priori.
No diálogo Mênon, Platão apresenta um diálogo de Sócrates com Mênon, no qual deixa explícita a sua
metodologia.

Vês a distância que ele já percorreu no percurso da reminiscência? A princípio, não sabendo o
lado do quadrado de oito pés, que aliás ainda não sabe, julgava sabê-lo e respondia com segurança,
como se soubesse, sem qualquer sentido da dificuldade. Agora tem consciência do seu embaraço e,
embora não saiba, pelo menos não julga que sabe. [...]
Veja como este jovem responde procurando comigo... e veja como consegue encontrar... enquan-
to não faço mais do que interrogar, sem nada ensinar-lhe.
PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglesias. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio / São Paulo: Edições Loyola, 2001.

Nesse fragmento, verificam-se os passos da metodologia adotada por Sócrates em seus dois tempos
constitutivos: a parte da refutação e a parte da busca.

PROBLEMATIZANDO
1. Leia os textos a seguir.

Texto 1 (Apologia de Sócrates)

[...] Já tive muitos acusadores antes de vós, há muitos e muitos anos, e sempre sem nada dizer de
verdadeiro. [...] Tentaram persuadir-vos de acusações não menos falsas contra mim: que há um tal
Sócrates, homem sábio, que especula acerca das coisas celestes, que investiga todos os segredos sub-
terrâneos, que torna as razões mais débeis nas mais fortes. Estes, ó cidadãos de Atenas, que espalha-
ram pelo mundo tais coisas a meu respeito, são os acusadores que mais temo, porque, ouvindo-os,
as pessoas creem que quem se ocupa de tais especulações não reconhece nem mesmo aos deuses.
[...] Os acusadores dizem as coisas habituais que são ditas contra todos os filósofos e que especulam
sobre as coisas do céu e sob a terra e que ensinam a não reconhecer os deuses e mostram como me-
lhores as piores razões. A verdade é que essas pessoas [os acusadores] se revelaram como gente que
tem o ar de saber tudo, mas que a verdade, naturalmente, não a querem dizer.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 62-72.

Texto 2 (Ditos e feitos memoráveis de Sócrates)

O que igualmente me assombra é o haver-se embrechado em certos espíritos que Sócrates corrompia
a juventude. [...] Pelo contrário, não desviou muitos homens dos vícios, fazendo-os amantes da virtude
e infundindo-lhes a esperança de, mediante a fiscalização de si mesmos, virem a ser um dia virtuosos?
[...] Como, pois, corromperia um homem desses a juventude? A menos que o incitamento à virtude
seja meio de corrupção.
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Livro II. Trad. Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores).

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• Considerando o texto 1, percebemos que há uma acusação que pesa contra Sócrates. Ele é acusado
de haver cometido crime. Esse crime de fato existiu?
• No texto 2, o autor afirma que Sócrates era acusado de ter corrompido a juventude. Mas não se
fala de que modo ele teria feito isso. Em outro trecho do texto 1, acusa-se Sócrates de ter introdu-
zido novas divindades na cidade e de negar os deuses da cidade. Isso procede?
• Será que houve, em realidade, outros motivos, não alegados, da condenação de Sócrates à morte?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. A diferença do pensamento socrático em relação ao pensamento sofístico pode ser descrita tanto no
seu objetivo quanto no seu método.
• Considerando o tema do conhecimento, redija um texto diferenciando essas duas posturas.
A abordagem das dimensões sensível e inteligível no pensamento de Platão abre-nos a possibilidade de um projeto de reflexão filosófica relacionado à compreensão das modalidades reais e
virtuais do mundo. Entre as muitas perspectivas, destacamos: a polissemia do termo “virtual”; os limites entre o real e o virtual no campo das relações humanas; as exclusões reais que existem
no mundo digital e virtual. Uma das estratégias poderá ser a análise do filme Matrix (1999). Sugerimos também o estudo da obra O que é o virtual?, do filósofo francês Pierre Lévy.
6. O CONHECIMENTO SENSÍVEL E INTELIGÍVEL
Platão pertencia a uma das mais nobres famílias atenienses. Seu nome era Arístocles, mas, devido à sua
constituição física, recebeu o apelido de Platão, termo grego que significa “de ombros largos”. Foi discípu-
lo de Sócrates, a quem considerava o mais sábio e o mais
ANASTASIOS71/SHUTTERSTOCK

justo dos homens. Depois da morte de seu mestre, em-


preendeu inúmeras viagens, por várias regiões.
Ao retornar a Atenas, por volta de 387 a.C., Platão
fundou sua própria escola filosófica, chamada Academia,
por localizar-se no jardim do herói grego Academos. Na
Academia ensinava matemática, ginástica e filosofia. Ele
valorizava muito a matemática, por ela exercitar nossa
capacidade de raciocinar sobre o que não é percebido
pelos sentidos.
No livro VII de A República, Platão elabora a alego-
ria da caverna para ilustrar seu pensamento, explicando
a evolução no processo de conhecimento e a diferença
entre a verdadeira realidade e o âmbito das incompletas
projeções que dela são feitas, as sombras.
Essa alegoria pode receber diferentes leituras. Nessa
Escultura de Platão na Academia de Atenas, Grécia. unidade, faremos uma leitura relacionada ao tema do
conhecimento (leitura epistemológica) e, na próxima
unidade, faremos uma leitura política. (Se você ainda não conhece a alegoria da caverna, segue o texto
para leitura).

Alegoria da caverna
Sócrates – Agora imagina a maneira como se- os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes
gue o estado da nossa natureza relativamente à de uma fogueira acesa numa colina que se ergue
instrução e à ignorância. Imagina homens numa por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros
morada subterrânea, em forma de caverna, com passa uma estrada ascendente. Imagina que ao
uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí longo dessa estrada está construído um pequeno
desde a infância, de pernas e pescoço acorrenta- muro, semelhante às divisórias que os apresen-
dos, de modo que não podem mexer-se nem ver tadores de títeres armam diante de si e por cima
senão o que está diante deles, pois as correntes das quais exibem as suas maravilhas.

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Glauco – Estou vendo. Não achas que ficará embaraçado e que as som-
Sócrates – Imagina agora, ao longo desse peque- bras que via outrora lhe parecerão mais verda-
no muro, homens que transportam objetos de deiras do que os objetos que lhe mostram agora?
toda espécie, que o transpõem: estatuetas de ho- Glauco – Muito mais verdadeiras.
mens e animais, de pedra, madeira e toda espécie Sócrates – E se o forçarem a fixar a luz, os seus
de matéria; naturalmente, entre esses transporta- olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a
dores, uns falam e outros seguem em silêncio. vista para voltar às coisas que pode fitar e não
Glauco – Um quadro estranho e estranhos pri- acreditará que estas são realmente mais distintas
sioneiros. do que as que se lhe mostram?
Sócrates – Assemelham-se a nós. E, para come- Glauco – Com toda a certeza.
çar, achas que, numa tal condição, eles tenham Sócrates – E se o arrancarem à força da sua
alguma vez visto, de si mesmos e dos seus compa- caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e
nheiros, mais do que as sombras projetadas pelo escarpada e não o largarem antes de o terem ar-
fogo na parede da caverna que lhes fica de fronte? rastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e
Glauco – Como, se são obrigados a ficar de ca- não se queixará de tais violências? E, quando ti-
beça imóvel durante toda a vida? ver chegado à luz, poderá, com os olhos ofusca-
Sócrates – E com as coisas que desfilam? Não dos pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas
se passa o mesmo? que ora denominamos verdadeiras?
Glauco – Sem dúvida. Glauco – Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates – Portanto, se pudessem se comuni- Sócrates – Terá, creio eu, necessidade de se habi-
car uns com os outros, não achas que tomariam tuar a ver os objetos da região superior. Começará
por objetos reais as sombras que veriam? por distinguir mais facilmente as sombras; em se-
Glauco – É bem possível. guida, as imagens dos homens e dos outros obje-
Sócrates – E se a parede do fundo da prisão tos que se refletem nas águas; por último, os pró-
provocasse eco, sempre que um dos transporta- prios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando
dores falasse, não julgariam ouvir a sombra que a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais
passasse diante deles? facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o
próprio céu do que, durante o dia, o Sol e a sua luz.
Glauco – Sim, por Zeus!
Glauco – Sem dúvida.
Sócrates – Dessa forma, tais homens não atri-
buirão realidade senão às sombras dos objetos Sócrates – Por fim, suponho eu, será o Sol, e
fabricados. não as suas imagens refletidas nas águas ou em
qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu
Glauco – Assim terá de ser.
verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar
Sócrates – Considera agora o que lhes acon-
tal como é.
tecerá, naturalmente, se forem libertados das
Glauco – Necessariamente.
suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se
liberte um desses prisioneiros, que seja ele obri- Sócrates – Depois disso, poderá concluir, a res-
gado a endireitar-se imediatamente, a voltar o peito do Sol, que é ele que faz as estações e os
pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a anos, que governa tudo no mundo visível e que,
luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via
o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os com os seus companheiros, na caverna.
objetos de que antes via as sombras. Que achas Glauco – É evidente que chegará a essa con-
que responderá se alguém lhe vier dizer que não clusão.
viu até então senão fantasmas, mas que agora, Sócrates – Ora, lembrando-se da sua primeira
mais perto da realidade e voltado para objetos morada, da sabedoria que aí se professa e daque-
mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mos- les que aí foram seus companheiros de cativeiro,
trando-lhe cada uma das coisas que passam, o não achas que se alegrará com a mudança e la-
obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? mentará os que lá ficaram?

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Glauco – Sim, com certeza, Sócrates. Sócrates – Imagina ainda que esse homem vol-
Sócrates – E se então distribuíssem honras e ta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar:
louvores, se tivessem recompensas para aquele não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se
que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da afastar bruscamente da luz do Sol?
passagem das sombras, que melhor se recor- Glauco – Por certo que sim.
dasse das que costumavam chegar em primei- Sócrates – E se tiver de entrar de novo em com-
ro ou em último lugar, ou virem juntas, e que petição com os prisioneiros que não se libertaram
por isso era o mais hábil em adivinhar a sua de suas correntes, para julgar essas sombras, es-
aparição, e que provocasse a inveja daqueles tando ainda sua vista confusa e antes que os seus
que, entre os prisioneiros, são venerados e po- olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à
derosos? Ou então, como o herói de Homero, escuridão exigirá um tempo bastante longo, não
não preferirá mil vezes ser um simples criado fará que os outros se riam à sua custa e digam que,
de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada,
sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilu- pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a
sões e viver como vivia? alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse
Glauco – Sou da tua opinião. Preferirá sofrer alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
tudo a ter de viver dessa maneira. Glauco – Sem nenhuma dúvida.
PLATÃO. A República. Livro VII. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural. 2000. p. 225-228.

Leitura epistemológica da alegoria da caverna:


o visível e o inteligível Inicie a análise dessa alegoria a partir da interpretação que os estudantes são capazes de fazer com base na leitura do
texto: do que trata a alegoria? Percebe-se a presença da filosofia nessa alegoria?

MUSEU DE LA CHARTREUSE, DOUAI, FRANÇA

A caverna de Platão (séc. XVI), anônimo. Óleo sobre madeira, 131 cm × 174 cm.

Antes de tudo, a alegoria da caverna, de acordo com a advertência no início do texto, diz respeito à
educação ou à falta dela. Platão procura mostrar que devemos separar luz e sombra. É preciso buscar a luz,
a verdade. E a palavra que os gregos usavam para designar o que chamamos de verdade era aletheia (a é
um prefixo que indica oposição, negação; lethe significa o esquecimento, o velamento, assim, verdade para
os gregos era o não esquecido, o lembrado, o não perdido, o não oculto, o real, o não dissimulado).

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Nessa caminhada em direção ao conhecimento verdadeiro, Platão distingue graus ou níveis evolutivos
de conhecimento. No âmbito sensível, encontramos a crença e a opinião (doxa); no âmbito intermediário,
encontramos raciocínio, que é o caminho capaz de proporcionar a saída da caverna. E, no último nível,
encontramos a intuição intelectiva, que capta a essência, chamada por Platão de ideia. As ideias são a
verdadeira realidade e conhecê-las é ter conhecimento verdadeiro.
Vejamos o fragmento a seguir, no qual Sócrates, personagem central no diálogo Fédon de Platão, con-
duz uma reflexão sobre a essência das coisas, a ideia.

Receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos
para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia
buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas. [...]
Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a ideia, que é, a meu juízo, a mais sólida,
tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma
causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro.
PLATÃO. Diálogos. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 106. (Os pensadores).

No âmbito do sensível está a particularidade da opinião do ser humano, prisioneiro do senso comum.
Dessa forma, o interior da caverna é expressão da ignorância, sendo o reino dos sentidos, das aparências,
das opiniões, da multiplicidade de formas fugazes. Em contrapartida, a esfera do inteligível é o âmbito do
conhecimento, da intuição intelectiva, das ideias, das essências, da imutabilidade do ser.
Para Platão, a ideia é a realidade última das coisas, intuída pelo intelecto. Ela não se confunde com as
aparências sensíveis. Tomemos como exemplo elementos do nosso cotidiano como as árvores. Há muitas
e diferentes árvores e elas nascem, crescem, se modificam com as estações e morrem. Contudo, a verda-
deira realidade última, a ideia, permanece.

Da dialética à intuição da verdade


A forma de pensar que possibilitará, portanto, a intuição da ideia é definida por Platão como dialética,
que é uma transformação do método socrático da maiêutica. Para Platão, a dialética consiste em examinar
teses contrárias sobre um mesmo tema, objetivando descobrir o que há de falso, para rejeitá-lo, e reter
apenas o que é verdadeiro. Com a dialética busca-se, ao seu término, a intuição intelectual de uma essên-
cia, ou ideia. Assim, verificamos que o objeto da ciência não é o sensível; mas, o inteligível, o universal, o
conceito, que será atingido através da intuição intelectiva, possível após longo processo de raciocínio e de
pensamento dialético.

PROBLEMATIZANDO
1. Considerando nossas experiências pessoais, podemos afirmar que os sentidos nos fornecem informa-
ções com base na aparência. Essas informações são desconexas, particulares e mutantes ou fugazes.
• Será que é correto afirmar que os sentidos nos enganam?
• Não seria mais adequado afirmar que o intelecto se engana ao considerar como verdadeiras as
informações dos sentidos?

2. A dialética é a arte da discussão mais elevada, que consiste em encontrar a essência das coisas. Para
ser capaz de agir de modo dialético, o pensador precisa estar em um nível mais evoluído em relação
ao senso comum. Justifique essa afirmação.

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PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia os trechos a seguir, extraídos de A República, de Platão.

A educação não é o que alguns proclamam que é, porquanto pretendem introduzi-la na alma onde
ela não está, como quem tentasse dar vista a olhos cegos. [...]
A educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios
mais fáceis e mais eficazes de o conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já
a tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encami-
nhá-lo na boa direção. [...]
Também chamas dialético àquele que compreende a razão da essência de cada coisa? E aquele
que não o pode fazer? Não dirás que possui tanto menos entendimento de uma coisa quanto mais
incapaz é de explicar a si mesmo e aos demais?
PLATÃO. A República. Livro VI. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 225, 229, 248.

• Com base nesses trechos, redija um texto sobre o papel que a educação desempenha na ótica de
Platão.

7. A FILOSOFIA E O ESPANTO ADMIRATIVO


ISTOCK

A filosofia nasce da admiração e do espanto. Sem essa


experiência e atitude inicial não se desenvolve a capacidade
problematizadora de quem busca conhecer radicalmente.

Para Aristóteles, existe uma condição e uma ati-


tude fundamental no homem que lhe possibilita
chegar ao conhecimento, à teoria, à contemplação.
Inicialmente, na abertura de sua obra Metafísica,
escreve: “Todos os homens desejam, por natureza,
saber” (ARISTÓTELES. Metafísica. Livro I. Trad. Ed-
son Bini. São Paulo: Edipro, 2012. p. 42.). Conhe-
cendo, realizamos nossa natureza de seres racio-
nais. Por isso, o conhecimento é fim em si mesmo,
uma vez que implica a máxima perfeição humana.
Para Aristóteles, os homens começam a filoso-
far a partir do espanto (to thaumázein). Não deve-
mos entender espanto no sentido usual, mas no
sentido de estranhamento e de encantamento, de
questionamento e de investigação das coisas tidas
como normais ou “óbvias” no senso comum. Tra-
ta-se de olhar para o mundo com uma nova atitu-
de. É o espanto que está na raiz do conhecimen-
to. Ao espantar-se, a pessoa reconhece a própria
ignorância, ao mesmo tempo em que se coloca na dinâmica da busca. Assim, ao filosofar a pessoa
afasta-se da ignorância. O espanto, que se traduz na capacidade admirativa, de ver de perto e ver com
novos olhos, realiza a singularidade da alma humana, desejosa de conhecer.

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PROBLEMATIZANDO
1. Por que a busca pelo conhecimento filosófico pressupõe, para Aristóteles, a experiência do espanto?
2. O que diferencia um filósofo de um ignorante?
3. Será que é possível encontrarmos pessoas que perderam a atitude do espanto, que não mais se ad-
miram ou se surpreendem com algo? Justifique sua resposta.
4. Na alegoria da caverna, Platão distingue graus ou níveis de conhecimento. Na base sensível está a
crença e a opinião (doxa); no nível intermediário, encontra-se o raciocínio. No nível mais elevado,
encontramos a intuição intelectiva, que capta a essência, a ideia.
• Faça uma aplicação dessa concepção ao seu roteiro pessoal de estudo, às suas dificuldades de com-
preensão e entendimento. Diante de uma dificuldade de compreensão de uma lei da física, por
exemplo, normalmente essa trajetória é feita por quem busca a intuição da verdade. Estabeleça
esse paralelo.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. A ignorância é um estado que pode e deve ser superado, mas jamais sem o reconhecimento da ig-
norância. Por isso, a filosofia é o saber construído que não perde jamais a consciência de que não
chegará ao fim de suas buscas. Explique essa afirmação.

8. CONHECIMENTO, VIRTUDE E LIBERDADE


© LUCE

Não faço outra coisa, em verdade, com este meu andar,


senão persuadir a vós, jovens e velhos, que não deveis cui-
dar nem do corpo, nem das riquezas, nem de qualquer
outra coisa antes e mais que da alma, para que ela se torne
ótima e virtuosíssima, e que das riquezas não nasce virtu-
de, mas da virtude nascem as riquezas e todas as outras
coisas que são bens para os homens, tanto para os cida-
dãos individualmente como para o Estado.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 81. (Os pensadores).

Sócrates (Espanha/Itália/França, 1971).


Direção: Roberto Rossellini.
Este filme permite um ótimo contato e uma
boa visão do pensamento socrático, de suas
buscas, seus métodos e seus conflitos.

Sócrates via o seu magistério como uma missão e tarefa que seu deus interior (daimon) lhe ordenara
executar para o bem da cidade. Assim, o ato de filosofar e buscar a verdade é um serviço à pólis.
Com efeito, o elemento decisivo aqui é a ciência ou o conhecimento, pois sem ele não será possível a
virtude, a liberdade, a justiça e outros valores morais. Por isso, a tarefa é proporcionar aos homens o acesso
ao conhecimento. Para Sócrates, é impossível conhecer o bem e não fazê-lo. Por isso, o reto pensar e o reto
agir são coisas inseparáveis. Assim sendo, a virtude resulta da ciência, ou, de outra forma, a ciência conduz
à virtude, pois razão e caráter são inseparáveis. Assim, o sábio é bom e justo, seu saber guia sua vida.

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Ao que nós chamamos de virtude, em grego se chama arete, significando o que torna uma coisa boa e
perfeita, transformando uma coisa no que ela deve ser. A virtude do homem outra coisa não pode ser senão
aquilo que faz com que a alma (a essência humana, a consciência) seja tal como a sua natureza determina
que seja, isto é, boa e perfeita.
Em decorrência, todos os valores tornam-se efetivamente valores se forem usados como o conhecimento
o exige, ou seja, em função da alma e de sua arete. Assim, se a riqueza, o poder, a fama, a saúde, a beleza e
semelhantes forem dirigidos pela ignorância, jamais serão valores, mas contribuirão para a ruína do homem.

Conhecimento e prática do bem


Para Sócrates, portanto, o conhecimento é condição necessária e suficiente para fazer o bem.
Dessa forma, a virtude (sabedoria prática, justiça, fortaleza, temperança) é conhecimento e o vício é igno-
rância. Por isso, a arete socrática é um valor espiritual, ou seja, relacionada à psique, à alma, à consciência.
Considerando a implicação prática e existencial do conhecimento, a excelência da alma humana (psi-
que) consiste no autodomínio (enkrateia), ou seja, no domínio de si mesmo, de suas paixões e impulsos.
Essencialmente, o autodomínio significa domínio de sua racionalidade sobre a sua própria animalidade. Em
decorrência, o homem verdadeiramente livre é aquele que consegue dominar os seus instintos e desejos, e
o homem que se torna vítima de seus instintos e desejos desordenados torna-se um escravo.
Vinculado ao conceito de autodomínio e liberdade está o conceito de autarquia, de ser suficiente a si
mesmo, de ser livre de necessidades e capaz de autodomínio. Estamos aqui diante de uma nova concepção
de herói. O herói, tradicionalmente, era o ser humano capaz de vencer todos os inimigos, os perigos, as
adversidades e o cansaço externos. Já o novo herói é o que sabe vencer os inimigos interiores.

Não descurava do corpo nem aprovava os que o fazem. Rejeitava o comer com excesso, para de-
pois não fatigar-se outro tanto, recomendando um repasto regulado pelo apetite e seguido de exer-
cício moderado. Este regime – dizia – conserva a saúde do espírito.
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Livro I. Trad. Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 37. (Os pensadores).

Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente.


JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 512.

Assim W. Jaeger define Sócrates. Com Sócrates, a educação recebe uma nova luz, não mais centrada nas
habilidades práticas a adquirir. A verdadeira essência da educação socrática é proporcionar ao ser humano
as condições para realizar o fim supremo e autêntico de sua vida, isto é, o conhecimento do bem, atuali-
zado na prática da virtude. Esse objetivo não se alcança de uma vez para sempre, mas ao longo de toda a
vida. Nascemos para a paideia, para a educação da interioridade. Esse é o valor maior, que nos permite a
comunhão com a divindade.
Portanto, o ser humano bom será aquele autoconstruído a partir do seu próprio interior, capaz de agir
em conformidade com as exigências de sua consciência, a alma.
Problematize com os estudantes a relação que pode haver entre conhecer o que
Conhecimento e conversão ética é o certo e fazer o que se julga ser o certo. Com base nessa problematização, eles
poderão compreender melhor a visão socrática dessa relação.

Como alguém poderá ser justo se não souber o que é a justiça? Considerando a profunda vinculação
entre o saber teorético e a vida prática, uma vez atingido o conhecimento racional, o ser humano estará em
condições de iniciar um processo de conversão ética e moral. A mudança no ser e no fazer tem origem no
conhecimento, da compreensão das essências.

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Para Aristóteles, a finalidade última da vida humana é encontrar a felicidade

NEIRFY/SHUTTERSTOCK
(eudaimonia), o que somente é possível por meio de uma vida racional e virtuosa.
Para chegar à virtude, o indivíduo depende do discernimento, da deliberação,
evitando os extremos do excesso e da falta. Assim Aristóteles compreende a vir-
tude: “uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa
mediania”. (Ética a Nicômaco). Cada indivíduo é sujeito de sua vida, é quem de-
libera sobre as melhores ações e meios de ação. É ele quem constrói o hábito, o
costume, em busca da justa proporção entre os extremos.
Aristóteles distingue as virtudes intelectuais ou dianoéticas das virtudes éticas
ou morais. As virtudes intelectuais ou dianoéticas compõem a parte mais elevada
da alma, a alma racional. São as virtudes da razão, relacionadas à aprendizagem,
necessitando de tempo e experiência. Aristóteles define cinco virtudes intelectu-
ais, das quais dá especial ênfase a três: a virtude da ciência (episteme), compre-
endida como a capacidade demonstrativa; a virtude da inteligência (noüs), com-
preendida como a capacidade de conhecer os princípios da ciência; e a virtude da
sabedoria filosófica (sophia), compreendida como a síntese ou a unidade entre
ciência e inteligência. Assim, a sabedoria filosófica é a maior dentre todas as O conhecimento é o
farol que ilumina a vida
virtudes intelectuais, por ter a capacidade tanto de conhecer os princípios como do ser humano. A luz
de demonstrá-los. Essa virtude maior coincide com a metafísica, que é a filosofia do saber possibilita o
primeira para Aristóteles, que tem por objeto as realidades mais elevadas. domínio das ondas da
paixão. Na ausência da luz,
predomina a ignorância.
PROBLEMATIZANDO Da ignorância brota o
vício. Em contrapartida, do
conhecimento nasce a
1. Leia as seguintes afirmações:
vida virtuosa.
• Ninguém faz o mal voluntariamente, com consciência de que seja um mal.
• Saber implica em ser e em fazer conforme o conhecimento.
• Você concorda com essa concepção? Discuta com os colegas seu ponto
de vista.

9. A METAFÍSICA E OS CAMPOS DO SABER


MUSEU METROPOLITANO, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS

O conhecimento verdadeiro é o
conhecimento das causas. Este
é o campo da metafísica. Outras
formas de saber não conseguem
chegar a esse conhecimento, como
é o caso da arte, do conhecimento
científico, da sabedoria prática e,
mesmo, da sabedoria filosófica,
que é razão demonstrativa.

A arlesiana: senhora Joseph-Michel Ginoux


(1889), de Vincent van Gogh. Óleo sobre
tela, 91,4 cm × 73,7 cm.
O verdadeiro conhecimento é de natureza
metafísica, no qual o entendimento capta a
verdade pelas causas primeiras e últimas.

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Toda ciência investiga os princípios, as causas e a natureza dos seres que são seu objeto de estudo. Em con-
formidade com Aristóteles, as ciências se dividem em três grandes grupos: as ciências teoréticas, voltadas para
a busca da verdade; as ciências práticas, cujo objetivo é proporcionar o aperfeiçoamento moral do ser humano;
e as ciências produtivas ou poiéticas, nas quais o conhecimento está vinculado à produção de uma obra espe-
cífica. Este último aspecto faz referências às artes, aos saberes práticos envolvidos na produção de artefatos.
PHOTO12/UIG/GETTY IMAGES

Academia de Platão (séc. I), mosaico de


autoria desconhecida.
O mosaico reflete dois grupos das ciências,
segundo Aristóteles. Na representação
da Academia de Platão, local que reunia
pensadores gregos, a obra indica a mais
importante ciência teorética, a metafísica,
que busca a substância e a essência do ser.
Na montagem que levou a constituição do
mosaico indica-se a ciência produtiva (ou
poiética) conectada aos estudos da estética.

A metafísica ou filosofia primeira é a ciência teorética mais importante, pois fornece os princípios pri-
meiros dos quais dependem os princípios das matemáticas e da física, que também são ciências teoréticas.
O objeto de seu estudo não é um ser particular, mas o “ser enquanto ser”, sua substância, sua essência.
As ciências práticas são aquelas que têm no homem o princípio agente, a causa da ação e cuja finalidade
é o próprio homem. É o campo da práxis, das ações racionais e refletidas que buscam alcançar um fim, um
bem. As ciências práticas são a ética e a política. A ética estuda a ação do homem enquanto indivíduo que
deve ser preparado para viver na pólis. Nessa reflexão ética, o foco estará voltado para os princípios racionais
que promovem a vida virtuosa do indivíduo. A política estuda a ação dos homens enquanto cidadãos, seres
sociais, políticos, objetivando o bem comum. E, finalmente, as ciências produtivas se referem a uma particu-
laridade da ação humana, à ação fabricadora, de saber produtivo, abrangendo os estudos de estética.
Entre todas as ciências, as mais altas e mais nobres são as teoréticas ou contemplativas, uma vez que
correspondem tanto ao que há de mais singular em nós, ou seja, o desejo de conhecimento, que tem seu
fim em si mesmo, como às causas de seus objetos, classificados como universais e necessários.
Vamos acompanhar a reflexão de Aristóteles neste fragmento:

A disposição em virtude das quais a alma possui a verdade, quer afirmando, quer negando, são
em número de cinco: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e
a razão intuitiva. [...]
O conhecimento científico é um juízo sobre coisas universais e necessárias, e tanto as conclusões
da demonstração como o conhecimento científico decorrem de princípios primeiros (pois ciência su-
bentende apreensão de uma base racional). Assim sendo, o primeiro princípio de que decorre o que é
cientificamente conhecido não pode ser objeto de ciência, nem de arte, nem de sabedoria prática; pois
o que pode ser cientificamente conhecido é passível de demonstração, enquanto a arte e a sabedoria
prática versam sobre coisas variáveis. Nem são esses primeiros princípios objetos de sabedoria filosófi-
ca, pois é característico do filósofo buscar a demonstração de certas coisas. [...] só resta uma alternativa
que seja a razão intuitiva que apreende os primeiros princípios.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro VI. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 102-106.

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Para Aristóteles, os primeiros princípios não são objeto de demonstração fi-
losófica. Eles são acessíveis pela sabedoria filosófica, a sophia, a virtude teorética
mais elevada.

As quatro causas: da potência ao ato


Tudo o que existe, de acordo com Aristóteles, é decorrência do movimento

OLLYY/SHUTTERSTOCK
de passagem de potência para ato, um movimento que abarca quatro causas.
Inicialmente, existe a causa material, que se refere à matéria de algo. Assim, po-
derá ser madeira, gesso, mármore etc. Em seguida, existe a causa formal. Com
ela, estamos nos referindo à forma que a matéria recebe. Por exemplo, a forma
de estátua. Essa causa formal é resultante de outra causa, a eficiente. Por causa
eficiente, Aristóteles entende a ação motora que trabalha a matéria e lhe dá de-
terminada forma. No caso da matéria “mármore”, que virou estátua, a causa efi-
ciente foi o escultor. Por fim, a causa final, que se refere ao objetivo, à finalidade
da ação. Considerando que o objetivo da produção da estátua seja a construção
de um monumento para homenagear ou eternizar a memória de uma pessoa, a
causa final teria relação com esse objetivo.
Essas quatro causas não possuem o mesmo valor, indo da causa inferior à
superior. Sendo a cultura filosófica grega uma cultura que valoriza a busca da Em toda ação humana há
sabedoria, o cultivo da contemplação, como finalidade última da vida, a causa uma matéria envolvida,
final tem valor superior à causa motora, eficiente. A causa eficiente, que é o a ser desenvolvida
em uma forma, para
fazer e o fabricar, é de valor menor, comparativamente com a atividade política alguma finalidade.
e contemplativa.
Considerando que a metafísica considera e busca o ser como um todo, ela não
fica restrita às partes, aos acidentes, ao mutável. Para falar de um ser é preciso
distinguir essência (substância) de acidente, atributo que o ser poderia ou não
possuir. O que faz um homem ser homem? Aristóteles dirá que a essência, a subs-
tância do homem é a racionalidade, ao passo que características como jovem,
alto, baixo, gordo ou magro são acidentes, pois mudam de ser para ser, mas não
mudam o ser em si.
Além da distinção entre substância e acidente, Aristóteles faz uso da distinção
entre matéria e forma. Todo ser é composto de matéria e forma. A matéria, pura
passividade, contém a forma em potência. Esse olhar permite captar e expressar
a dinamicidade da vida. Por isso, no ser individual é preciso distinguir o que está
atualmente e o que tende a ser (ou seja ato e potência): o grão é planta em po-
tência e a planta, como ato, é a realização da potência. A mudança universal é
passagem incessante da potência ao ato.
FABIO COLOMBINI

BUGDOG/FREEIMAGES

SAMO TREBIZAN/SHUTTERSTOCK

Uma semente, atualmente


existente, tem dentro de si
a potência para ser árvore;
a árvore, uma vez existindo,
atualmente, pode ser
transformada em uma casa.
Assim, o ser humano é uma
permanente atualização de
suas potências. Por isso, o
homem é concebido como
uma atividade permanente.

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Para Aristóteles, existe somente um ente sem potência, que é o ato puro, definido como motor imóvel.
No livro XII da obra Metafísica, Aristóteles aborda o tema do motor imóvel, que tudo move e por nada pode
ser movido. Vejamos um trecho:

Nossa investigação concerne à substância, já que os princípios e causas que buscamos são os das
substâncias. [...] Evidencia-se, assim, por força da explicação dada acima que há uma substância
que é eterna, imóvel e independente das coisas sensíveis, tendo sido também mostrado que essa
substância não pode apresentar qualquer magnitude, mas que é sem partes e indivisível, pois pro-
duz movimento num tempo infinito, e nada finito possui uma potência infinita. [...] Evidencia-se,
também, que essa substância é imperturbável e inalterável, uma vez que todos os demais tipos de
movimento são posteriores ao movimento no espaço. [...]
O primeiro princípio e ser primordial é imóvel tanto essencial quanto acidentalmente, mas produz
a forma primária de movimento, a qual é singular e eterna. Ora, como aquilo que é movido é neces-
sariamente movido por alguma coisa, e o primeiro motor tem que ser, em si, imóvel, e o movimento
eterno tem que ser produzido por alguma coisa eterna, e num único movimento por ser única coisa;
então, cada um desses movimentos no espaço tem também que ser produzido por uma substância
que seja em si mesma imóvel e eterna.
ARISTÓTELES. Metafísica. Livro XII. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012. p. 297-310.

PROBLEMATIZANDO
1. Para Aristóteles, o primeiro motor é a causa do movimento. Ele só pode ser ato puro. Ele somente
move, não pode ser movido. Na Idade Média, a teologia cristã se apropriou dessa visão aristotélica
do motor imóvel para falar de Deus.
• Você consegue perceber a relação entre essas duas imagens? Compartilhe com os colegas sua in-
terpretação.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o fragmento a seguir.

É por força de seu maravilhamento que os seres humanos começam agora a filosofar e,
originalmente, começaram a filosofar; maravilhando-se primeiramente ante perplexidades óbvias
e, em seguida, por um progresso gradual. [...] Ora, aquele que se maravilha e está perplexo sente
que é ignorante (de modo que, num certo sentido, o amante dos mitos é um amante da sabedoria
[um filósofo], uma vez que os mitos são compostos de maravilhas); portanto, se foi para escapar à
ignorância que se estudou filosofia, é evidente que se buscou a ciência por amor ao conhecimento,
e não visando qualquer utilidade prática.
ARISTÓTELES. Metafísica. Livro I. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012. p. 44-46.

• A partir desse fragmento, explique em que sentido é aceitável a afirmação da inutilidade da filosofia.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE A DIALÉTICA
Muitos são os filósofos consagrados pela sua pesquisa feita em comum, entrelaçando percep-
forma dialética de pensar. Destacamos: Heráclito, ções e proposições conflitivas. O mérito da dialéti-
Zenão de Eleia, Sócrates, Platão, Hegel e Marx. Nes- ca está em fazer aparecer as diferenças e possibili-
sa formas de conceber a dialética, ela aparece como tar a síntese dos contrários.
caminho entre as ideias, método de diálogo, atitude Com isso, a dialética se apresenta como ex-
que consiste na arte de perguntar e responder, cami- pressão do método da dúvida, do caminho per-
nhando com o interlocutor, buscando a essência de corrido pelo espírito em estado de alerta, de aten-
cada coisa. Uma forma de pensar a dialética consiste ção aos detalhes, nos quais está a diferença, que
na arte de contrapor à tese uma antítese. Assim, do faz a diferença.
conflito entre a tese e a antítese nasce a síntese, o Em suma, podemos considerar a dialética
elemento novo que traz as marcas dos momentos como a arte de dialogar e argumentar em busca
anteriores. Esta síntese é a nova tese que lutará con- da essência de algo. Podemos, igualmente, acom-
tra outra antítese fazendo nascer nova síntese. panhar a concepção contemporânea de dialética,
Essa atitude ou olhar dialético é marca da fi- pensando a realidade em seus opostos, em suas
losofia, pois revela compromisso com a busca da contradições, em suas tensões, de cujo confronto
verdade, na condição de amante da sabedoria; é brota a sua permanente transformação.

Ao fazer o planejamento das aulas, verifique com o professor de Matemática a possibilidade de


elaborar uma unidade de estudo interdisciplinar tendo como objeto a lógica clássica. Nessa obra,
dividimos a lógica em duas partes, situadas no eixo histórico. Caso julgue adequado, ela poderá
10. A LÓGICA ARISTOTÉLICA ser estudada no mesmo momento, seja no primeiro ou no segundo ano. Quanto ao terceiro ano,
julgamos ser melhor que ela seja somente revisitada, como revisão geral. O tema das falácias é
também muito propício à abordagem interdisciplinar, especialmente com a área de Linguagens
(especialmente, língua e literatura dos países de língua portuguesa e produção de texto).
MUSEU DE ARTE DE LOS ANGELES, ESTADOS UNIDOS

A traição das imagens (Isto não


é um cachimbo) (1929), de René
Magritte. Óleo sobre tela,
60,33 cm × 81,12 cm × 2,54 cm.
Isto, logicamente, não é um
cachimbo.

Pode haver argumento válido com premissas falsas?


Pode haver argumento inválido com premissas verdadeiras?
O que é um argumento correto?
Qual a diferença entre verdade e validade?
Como distinguir uma argumentação dedutiva de uma argumentação indutiva?
Uma sentença falsa pode ter valor de verdade?
Como identificar um pensamento falacioso?

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Conhecendo conceitos e princípios da lógica
A lógica é instrumento fundamental para organizarmos nossas

IGOR.STEVANOVIC/SHUTTERSTOCK
ideias de forma mais coerente e rigorosa, evitando conclusões inade-
quadas a partir de enunciados estabelecidos. A lógica mostra como
deve proceder o pensamento quando raciocina, qual deve ser sua es-
trutura, quais devem ser seus elementos, como é possível apresentar
demonstrações, que tipos e modos de demonstrações existem. A ló-
gica busca investigar a validade dos argumentos e dar as regras do
pensamento correto.
Essa habilidade fundamental de saber trabalhar com argumentos
é de extrema importância em nosso cotidiano. É por meio dos argu-
mentos que defendemos e justificamos as nossas afirmações e posi-
cionamentos sobre qualquer assunto. E quando queremos refutar ou Para resolver quebra-cabeças
discordar de um posicionamento o que fazemos? Inicialmente, anali- tridimensionais é essencial o uso
samos o argumento do outro e, em seguida, avaliamos se (e como) é do raciocínio lógico.
possível argumentar em resposta.
No âmbito da lógica, a condição mais importante para um ótimo aprendizado é o domínio das noções
de verdade, validade e correção. Assim, há argumentos que são logicamente válidos, embora apresentem
premissas falsas; outros argumentos podem ser logicamente inválidos, mas com sentenças verdadeiras.
Contudo, um argumento correto implica validade do argumento e verdade das proposições.
Vamos, agora, nos concentrar nos aspectos centrais da lógica, para aprendermos a construir um pensa-
mento mais rigoroso, logicamente bem estruturado, válido e correto.

Sentenças e proposições
Pode parecer estranho, mas uma sentença declarativa, mesmo sendo falsa, tem um valor lógico, pois
há algo que está sendo declarado e, como tal, seu conteúdo poderá ser verdadeiro ou falso. Por exemplo,
se alguém afirmar que “o estado de Sergipe é maior que o do Amazonas”, estaremos diante de uma pro-
posição. Toda proposição tem valor lógico, podendo ser verdadeira ou falsa. Outros exemplos de proposi-
ções: “Belo Horizonte é a capital de Minas Gerais”; “Paraíba é um estado brasileiro que pertence à região
centro-oeste”. Esta última proposição, embora seja falsa, tem valor lógico; ou seja, ela necessariamente é
verdadeira ou falsa.
Contrariamente às sentenças declarativas, as sentenças interrogativas, exclamativas e imperativas não
apresentam valor lógico, não são nem verdadeiras nem falsas. Considere, por exemplo, sentenças interro-
gativas: “Quem venceu a partida?”; “Qual o nome do autor desse livro?; “Que horas são?”. Para essas
sentenças não se pode atribuir um valor lógico, não serão verdadeiras ou falsas. O mesmo caso se aplica
às sentenças exclamativas, por exemplo: “Sucesso!”; “Prometo estudar mais!”. Igualmente, as sentenças
imperativas não apresentam valor lógico, por exemplo: “Acorde mais cedo!”; “Faça seu dever!”. Essas sen-
tenças não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas.

Princípios da identidade, da não contradição e


do terceiro excluído
Aristóteles determinou os princípios lógicos fundamentais e procurou demonstrar que são também prin-
cípios do ser, da realidade. São os princípios de identidade, de não contradição e do terceiro excluído.
Considere as proposições p e q:
p: Freud é psicanalista.
q: 8 é número ímpar.

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E como vamos representar graficamente isso? Vamos representar “valor lógico” por “VL”.
Ao afirmarmos que a proposição “Freud é psicanalista” é verdadeira, faremos a representação disso as-
sim: VL(p) = V. Com isso estamos dizendo que o valor lógico de p é verdadeiro. Considerando a proposição
q, percebemos que ela é falsa; dessa forma, a representação ficará assim: VL(q) = F.

A estrutura e as formas de uma proposição declarativa


Para Aristóteles, uma sentença declarativa tinha a seguinte estrutura: S é P. Caso a ligação entre os ter-
mos não fosse suficientemente explícita, poderia se fazer uma substituição explicativa no predicado. Por
exemplo: “O estudante acordou cedo”. Para ser mais explícito, podemos transformar a sentença em: “O
estudante é um ser que acordou cedo”.
Quanto às formas lógicas, Aristóteles acreditava haver somente quatro (4) tipos de proposições declarativas:

• Universal afirmativa (A): Todo X é Y


A proposição universal afirmativa pode ser escrita com diferentes expressões, por exemplo:

Todos os seres humanos são mortais.


O brasileiro é latino-americano.
Qualquer cearense é brasileiro.
Quem é alemão é europeu.

• Universal negativa (E): Nenhum X é Y


A proposição universal negativa pode ser expressa de várias formas. Por exemplo:

Nenhum ser humano é alado.


Não há círculo que seja quadrado.
Todos os peixes são não mamíferos.
Só há humanos não quadrúpedes.

• Particular afirmativa (I): Algum X é Y


A proposição particular afirmativa pode ser assim visualizada:

Muitos brasileiros são favoráveis à redução da maioria penal.


Há seres humanos cegos.
Existem pessoas que são brasileiras e budistas.
Pelo menos um brasileiro é canhoto.

• Particular negativa (O): Algum X não é Y

Alguns seres humanos não vivem em regiões frias.


Nem todos os brasileiros são católicos.
Há aves que não voam.
Pelo menos um brasileiro não é corrupto.

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Quadrado de oposições
A partir da lógica aristotélica, na Idade Média desenvolveu-se o instrumento lógico que ficou conhe-
cido como “quadrado das oposições”. Nesse quadrado:

A – refere-se a proposições universais afirmativas.


E – refere-se a proposições universais negativas.
I – refere-se a proposições particulares afirmativas.
O – refere-se a proposições particulares negativas.

A Contrárias E

Contraditórias
Subalterna

Subalterna

I Subcontrárias O

Considerando o quadrado das oposições, percebemos que:


a) A relação entre proposições universais afirmativas e universais negativas recebe o nome de “contrá-
ria”, pois são proposições contrárias: jamais podem ser ambas verdadeiras, mas ambas podem ser
falsas. Por exemplo:

A – Todos os brasileiros são corruptos.


E – Nenhum brasileiro é corrupto.

b) A relação entre proposições particulares vem denominada como “subcontrária”; e nessa relação: am-
bas as proposições podem ser verdadeiras, mas ambas não podem ser falsas. Por exemplo:

I – Alguns estudantes foram bem na prova.


O – Alguns estudantes não foram bem na prova.

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c) A relação entre proposições universais afirmativas (A) e particulares negativas (O) são denominadas de
contraditórias. Da mesma forma, é contraditória a relação entre proposições universais negativas (E)
e particulares afirmativas ( I ).
Assim, se quisermos negar uma afirmativa universal, basta mencionar ao menos uma particular negativa.
Com isso já se está negando a afirmativa universal. Por exemplo:

Se quisermos contradizer ou negar a proposição universal afirmativa: “Todos os brasileiros falam


português”, bastará afirmar: “Ao menos um brasileiro não fala português”. Outro exemplo: “Ne-
nhum mamífero é invertebrado”. Para negar essa afirmativa universal, diremos: “Algum mamífero
é invertebrado”.

d) A relação conhecida como subalterna acontece entre uma proposição universal afirmativa (A) e uma
proposição particular igualmente afirmativa ( I ), ou entre proposição universal negativa (E) e particular
negativa (O).
A palavra subalterno faz referência à subordinação, à obediência. Dessa forma, a proposição particular obe-
dece à proposição universal, não lhe é contrária, subcontrária ou contraditória.
No exemplo a seguir, verifica-se o caso de proposição subalterna, na qual existe uma subordinação ou
obediência:

• A – Todos os estudantes passaram na prova. I – Alguns estudantes passaram na prova.


• E – Nenhum estudante passou na prova. O – Alguns estudantes não passaram na prova.

Desta forma, o quadrado das oposições é um instrumento lógico que nos auxilia a negar corretamente as
proposições. Se uma sentença é falsa, sua negação deverá ser uma proposição verdadeira, e não outra falsa.
Exemplo: “Todo europeu é disciplinado”. Para negar essa afirmativa (A), não se deve recorrer a uma uni-
versal negativa (E): “Nenhum europeu é disciplinado”. Neste caso, à falsidade da proposição (A), colocamos
a falsidade da proposição (E). O correto, então, é afirmarmos (O): “Algum europeu não é disciplinado”.
Além disso, o quadrado das oposições corrige uma ideia muito comum na conversação. Ao ouvir dizer
que “alguns europeus são loiros”, intuitivamente, mas sem lógica, costuma-se pensar, então, que alguns
não sejam loiros. Dessa forma, se, por exemplo, afirmarmos que I – “Alguns estudantes passaram na pro-
va”, não teremos condições lógicas de afirmar que O –“alguns não passaram”, pois todos poderão ter pas-
sado. Mas também não poderemos afirmar logicamente que A –“Todos os estudantes passaram na prova”.
Por isso O e A permanecem indeterminados.
O quadro de oposições nos auxilia, então, a inferir mais facilmente a verdade ou a falsidade de propo-
sições. Assim:

• Se A for verdadeira, E será falsa: I será verdadeira, O será falsa.


• Se E for verdadeira, A será falsa: I será falsa, O será verdadeira.
• Se I for verdadeira, E será falsa: A e O serão indeterminadas.
• Se O for verdadeira, A será falsa: E e I serão indeterminadas.
• Se A for falsa, O será verdadeira: E e I serão indeterminadas.
• Se E for falsa, I será verdadeira: A e O serão indeterminadas.
• Se I for falsa, A será falsa: E será verdadeira, O será verdadeira.
• Se O for falsa, A será verdadeira: E será falsa, I será verdadeira.

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Teoria do silogismo
Em nosso jeito cotidiano de falar, muitas vezes, a argumentação não se formaliza claramente. Quando
expomos as nossas ideias, seja oralmente ou por escrito, às vezes começamos pela conclusão. Além do mais,
com frequência, omitimos premissas, deixando-as subentendidas. Por isso, um dos trabalhos de quem se
dedica à lógica é montar o raciocínio redescobrindo a sua estrutura e avaliando a verdade da conclusão. Por
exemplo: quando dizemos “claro que baú tem acento” estamos enunciando a conclusão de um raciocínio
subentendido. Raciocínio esse que pode ser montado assim:
Premissa 1. Toda palavra oxítona terminada em “i” ou “u” tônicos é acentuada quando precedida de vogal;
Premissa 2: Ora, na palavra baú o “u” tônico é precedido de vogal;
Conclusão: Logo, a expressão baú deve vir acentuada.
Considerando a lógica aristotélica, por silogismo entendemos o processo argumentativo formado por
duas premissas e uma conclusão. A palavra “silogismo”, provém do grego súllogos, que significa a ação de
reunir, de recolher, de interconectar palavras, tendo em vista o ato de raciocinar.

Estrutura e tipos de argumento


Assim, a estrutura de um argumento traz um conjunto de sentenças declarativas no qual uma é apre-
sentada como conclusão e as outras (as premissas) têm a função de justificar a verdade da conclusão. Entre
as expressões que usualmente introduzem premissas temos as seguintes: porque, porquanto, desde que,
posto que, tendo em vista que. E dentre as muitas expressões que antecedem a conclusão, temos: por con-
seguinte, infere-se que, logo, donde, consequentemente, portanto.
Tradicionalmente dividimos os argumentos em dois tipos: dedutivos e indutivos. Quanto à analogia,
permanece como uma forma de indução. Vejamos:

Dedução
Assim, qualquer argumento dedutivo que tenha uma forma válida é válido, independentemente do con-
teúdo das sentenças.
Por exemplo, o argumento que apresentar esta forma:

MUSEO DELL'OPERA DEL DUOMO, FLORENÇA, ITÁLIA


todo X é Y, todo Y é Z; logo, todo X é Z, é um argumento
válido, quaisquer que sejam os significados atribuídos às
letras X, Y e Z, Além disso, toda atribuição de significados
que produza premissas verdadeiras vai, necessariamente,
produzir também uma conclusão verdadeira.
Considerando a lógica aristotélica, há sempre três ter-
mos no silogismo: o maior, o menor e o médio. Em todo
silogismo, as sentenças precisam ter conexão. Assim, as pre-
missas ou as afirmativas, que antecedem e preparam a con-
clusão, não podem estar desconectadas. O elemento que
as une funciona como dobradiça, e ele constitui o termo
médio, unindo os outros dois termos, chamados de termos
extremos, sendo um termo maior e outro termo menor.
Se não houver conexão entre as premissas, não poderá
haver conclusão. Por exemplo:

Os italianos são emotivos.


Os russos são contidos. Platão e Aristóteles em painel de mármore de Luca
della Robbia (1400-1482), em Florença, Itália.
Conclusão: ... Fica inviável qualquer conclusão.

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Vejamos um exemplo de silogismo:

1. Nenhum mamífero é peixe;


2. ora, baleia é mamífero;
3. logo, baleia não é peixe.

Perceba que a conclusão deve sempre conter os termos menor (“baleia”), que será o sujeito da conclusão,
e o termo maior (“peixe”), que sempre será o predicado da conclusão. O termo médio (“mamífero”) jamais
aparecerá na conclusão, pois sua função é ligar os extremos, portanto, deve estar somente nas premissas.
Portanto, a conclusão é inferida das premissas pela mediação de um termo médio. A função do termo
médio é ligar os extremos. Sem essa ligação não há raciocínio nem demonstração. Por isso, a arte do silo-
gismo consiste em saber encontrar o termo médio que ligará os extremos e permitirá chegar à conclusão.
Veja o seguinte silogismo:

1. Todo animal é perigoso;


2. ora, o porco é um animal;
3. logo, o porco é perigoso.

Embora esteja corretamente estruturado, facilmente se percebe que é falsa a sua conclusão, pois parte
de uma premissa falsa.
Mas, se considerarmos como verdadeira a premissa 1 e aceitarmos como verdadeira a premissa 2, em
termos lógicos, a conclusão terá que ser essa que apareceu. Isso é uma forma dedutiva de argumentação.

Indução
A indução é uma forma de raciocínio ou de argumentação na qual se parte de uma série de dados parti-
culares e deles se infere uma conclusão geral. Considerando que se trata de uma generalização, o raciocínio
indutivo apresenta uma conclusão na qual o conteúdo tem maior abrangência do que aquele presente nas
premissas. Por essa razão, a conclusão permanece apenas provável. Ou seja, mesmo que todas as premissas
sejam verdadeiras, a conclusão poderá não ser verdadeira, devido ao processo de generalização.
Apesar da aparente fragilidade da indução, que não possui o rigor do raciocínio dedutivo, trata-se de
uma forma muito fecunda de pensar, sendo responsável pela fundamentação de grande parte dos nossos
conhecimentos na vida diária e de grande valia nas ciências experimentais.
Por exemplo, ao fazer uma prévia eleitoral, um instituto de pesquisa consulta amostras significativas dos
diversos segmentos sociais, segundo metodologia científica. Ao considerar que 48% votará no candidato X,
e 22% votará no candidato Y, conclui-se que a totalidade dos eleitores votará segundo a mesma proporção.
Veja outros exemplos de indução:

1. O cobre é condutor de eletricidade, o zinco é condutor de eletricidade, o ferro é condutor de


eletricidade, o ouro é condutor de eletricidade (Dados particulares suficientemente enumerados);
2. ora, cobre, zinco, ferro e ouro são metais;
3. logo, os metais são condutores de eletricidade.

Como foi dito, no argumento indutivo, o conteúdo da conclusão excede o das premissas, fornecendo-
nos tão somente probabilidades.

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Analogia
A analogia estabelece a relação de semelhança entre duas ou mais realidades distintas. Trata-se de uma
forma de raciocínio na qual a informação de um sujeito particular é transferida para outro sujeito, também
particular. Há um sentido de proporção presente no termo analogia.
Vejamos um exemplo de analogia:

1. Paulo sarou de suas dores de cabeça com este remédio;


2. logo, João há de sarar de suas dores de cabeça com este mesmo remédio.

Um raciocínio por semelhança fornece apenas uma probabilidade, não uma certeza. Mas desempenha
papel importante para a descoberta ou invenção científica. Grande parte de nossas conclusões diárias ba-
seia-se na analogia.
Por exemplo, se lermos um bom livro de determinado autor, provavelmente compraremos outro do mes-
mo autor, na suposição de que deverá ser bom também. Se formos bem atendidos numa loja, voltaremos da
próxima vez, na expectativa de tratamento semelhante.

Regras fundamentais da inferência


Para podermos dizer se o raciocínio é válido ou inválido e a conclusão verdadeira ou falsa, a inferência
do silogismo deve obedecer a regras fundamentais:
• Um silogismo deve ter um termo maior, um menor e um médio e somente três, nem mais nem menos.
• O termo médio, que figura nas duas premissas e jamais na conclusão, deve aparecer como universal
pelo menos uma vez, possibilitando, assim, a ligação do maior com o menor. Exemplificando:

Se eu disser que “os catarinenses são brasileiros” e “os mineiros são brasileiros”, torna-se inviável
qualquer conclusão, uma vez que o termo médio (“brasileiros”) sempre figurou como parte e nunca
como todo.

• Nenhum termo pode ser mais abrangente na conclusão do que nas premissas. Disso resulta que uma
das premissas deve ser sempre universal.
• Nenhuma conclusão se segue de duas premissas negativas, uma vez que o médio não terá ligado
os extremos.
• Nenhuma conclusão se segue de duas premissas particulares, pois o médio não figurou como uni-
versal pelo menos uma vez, não podendo ligar o maior com o menor.
• Sendo as duas premissas afirmativas, a conclusão, obviamente, será afirmativa.
• A conclusão sempre acompanha a parte mais fraca. Em outras palavras: se houver premissa particular,
a conclusão será particular; se houver uma premissa negativa, a conclusão será negativa; se houver
premissa particular negativa, a conclusão será particular negativa.

Noções de validade, verdade e correção


Para bem compreendermos a noção de validade e verdade, vamos concentrar a nossa atenção na relação
que existe entre validade e forma lógica, percebendo a diferença entre verdade e validade, bem como a no-
ção de argumento correto, ou seja, aquele argumento que é válido e no qual as premissas e a conclusão são
verdadeiras. A mesma circunstância que torna a premissa verdadeira, torna também a conclusão verdadeira.

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Podemos demonstrar a validade ou a invalidade de um argumento usando a ferramenta da teoria dos
conjuntos.

Quando, por exemplo, dizemos que todo X é Y, estamos dizendo que o conjunto X está contido
dentro do conjunto Y, conforme a ilustração.

X
Y

Podemos perceber que, se é verdade que todo X é Y, e todo Z é X, se torna impossível que Z esteja
fora de Y.

Z
X
Y

Vejamos um exemplo de argumento inválido: Todo X é Y. Ora, Z é Y. Logo, Z é X.

X
Z
Y

Aqui, percebemos que Y é maior que X, portanto não é correto afirmar que todo Z (que é também Y)
seja X. Assim, estamos diante de um argumento inválido.

Substituindo as letras X, Y e Z por outras extensões, teremos, por exemplo, os seguintes argumentos
válidos:

• Todo brasileiro (X) é sul-americano (Y); ora, Betinho (Z) é brasileiro; logo, Betinho é sul-americano.
• Todo brasileiro é torcedor do Flamengo; ora, Fidel Castro é brasileiro; logo, Fidel Castro é torcedor
do Flamengo.
• Todo brasileiro fala português; ora, Juruna é brasileiro; logo, Juruna fala português.
• Algum europeu é português; ora, todo português é loiro; logo algum europeu é loiro.

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Vejamos, agora, alguns exemplos de argumentos inválidos, lembrando da segunda forma (todo X é Y.
Ora, Z é Y. Logo, Z é X).

• Todo brasileiro é sul-americano; ora, Alberto é sul-americano; logo, Alberto é brasileiro.


• Todo cruzeirense é mineiro; ora, Felipe é mineiro; logo, Felipe é cruzeirense.
• Todo alemão é europeu; ora, Peter é europeu; logo, Peter é alemão.
• Algum latino-americano é argentino; ora, algum argentino é obeso; logo, algum latino-americano
é obeso.
• Todo metal é condutor de eletricidade; ora, algum condutor de eletricidade é líquido; logo, algum
metal é líquido.

Por isso, não basta a validade de um argumento para que tenhamos a verdade na conclusão de uma sen-
tença. Dessa forma, podemos tanto encontrar argumentos válidos com conclusão falsa, quanto argumentos
inválidos com conclusão verdadeira.
Vejamos os exemplos a seguir:

a) Todos os irlandeses são protestantes; ora, todos os protestantes jejuam.


Logo, todos os irlandeses jejuam.
b) Alguns irlandeses são protestantes; ora, alguns protestantes jejuam.
Logo, alguns irlandeses jejuam.

No caso do exemplo a, estamos diante de um argumento válido, apesar de ter premissas falsas e con-
clusão também falsa.
Em contrapartida, no caso do exemplo b, estamos diante de um argumento inválido, apesar de apresen-
tar premissas e conclusão verdadeiras. A verdade da conclusão não é sustentada pelas premissas apresenta-
das. Nenhum dos dois argumentos acima é, portanto, um argumento correto.
Vejamos um exemplo de argumento correto, no qual as premissas são verdadeiras e a conclusão também
é verdadeira e o argumento tem estruturação válida.

1. Todo belo-horizontino é mineiro;


2. ora, todo mineiro é brasileiro.
3. Logo, todo belo-horizontino é brasileiro.

Antecedente e decorrente (consequente)


Em termos de lógica, existe uma habilidade fundamental que deve ser muito cultivada: identificar o ele-
mento antecedente e o consequente de um argumento. Para tanto, há algumas expressões que sinalizam
para esses termos.
Por exemplo, as expressões “logo”, “dessa forma”, “por isso”, “segue”, “assim” indicam para o ele-
mento consequente. Enquanto as expressões “porque”, “considerando”, “partindo do pressuposto...” si-
nalizam para o elemento antecedente do argumento.

As falácias no processo argumentativo


Com o termo falácia, referimo-nos aos erros de raciocínio, às argumentações inconsistentes. Embora
com aparência de validade, são muitas as maneiras de um raciocínio ser inconsistente.
Existem as falácias formais (de forma) e as não formais (de conteúdo e não de forma).

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Falácias formais
Veja o exemplo que parece correto, mas é inválido:

1. Todos os homens são vertebrados;


2. ora, eu sou vertebrado;
3. logo, eu sou homem.

Este raciocínio, para o qual tendemos a dizer ser verdadeiro e correto, é formalmente inválido. Não importa
se a conclusão corresponde à realidade, mas sim se se trata de uma construção logicamente válida. Segundo
uma das regras do silogismo, o termo médio deve ser, pelo menos uma vez, universal. O termo médio (que no
caso é “vertebrado”) é aquele que aparece nas duas premissas e permite estabelecer a ligação entre os dois
termos. Essa regra não é atendida no raciocínio, pois os seres humanos são alguns dentre os vertebrados, e eu
sou um dos vertebrados. Para tornar mais clara a evidência, vamos substituir o sujeito “eu” por “meu cão”:

1. Todos os homens são vertebrados;


2. meu cão é vertebrado;
3. logo, meu cão é homem.

Este exemplo anterior é de uma falácia formal, pois não atende a uma regra do argumento válido (2a regra
do silogismo de Aristóteles, apresentada anteriormente).

Falácias não formais


Falácias da irrelevância
• Apelo à tradição (argumentum ad antiquitatem)
Argumenta-se que algo é bom por ser antigo. “Porque sempre foi assim.” Exemplo:

O cristianismo é a religião verdadeira, pois existe há mais de dois mil anos.

• Apelo à piedade, à emoção (argumentum ad misericordiam)


Apela-se à misericórdia para convencer o interlocutor de que a conclusão sugerida deve ser acolhida
como verdadeira. Exemplo:

Sr. Juiz, sou pai de família e trabalhador. Sou eu que sustento minha família. Tenho três filhos me-
nores de idade, minha esposa está doente. Por isso, senhor Juiz, a minha prisão é injusta.

• Apelo à ignorância (argumentum ad ignorantiam)


Determinada afirmativa deverá ser acolhida como verdadeira, pois não há provas contrárias. Ou, inver-
samente, deve ser rejeitada como falsa, pois ninguém conseguiu provar sua verdade. Exemplo:

A teoria da reencarnação é verdadeira, pois ninguém conseguiu provar que a reencarnação não
existe. Ou, inversamente, a teoria da encarnação é falsa, uma vez que ninguém conseguiu provar
sua verdade.

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• Apelo à força (Argumentum ad baculum)
Trata-se de um raciocínio que se serve da intimidação. Usa-se a coerção psicológica sobre o interlocu-
tor, para forçá-lo a aceitar a conclusão como verdadeira.Exemplo:

Se não entregarem o relatório, serão dispensados.

• Contra a pessoa (argumentum ad hominem)


Ataca-se a pessoa e não a tese em questão. Busca-se desvalorizar a pessoa, para fazer com que a
conclusão seja aceita. Exemplo:

A tua tese não tem nenhum valor, você ainda é uma criança. Ou ainda, Carlos diz que viu meu
irmão cometer um crime. Mas, Carlos é alcoólatra. Logo, o testemunho de Carlos é sem valor.

• Apelo à autoridade (Argumentum ad verecundiam)


Recorre-se a uma autoridade ou a uma personalidade famosa, mas cujo saber ou competência é irre-
levante para a matéria em questão. Exemplo:

Esse é o melhor creme hidratante. Uma celebridade anuncia esse produto na TV.

Falácias da insuficência
Entre as principais falácias da insuficiência destacam-se:
• Argumento circular ou petição de princípio (petitio principii)
É uma falácia de presunção. A inferência não é válida. A conclusão que se pretende afirmar como
verdadeira, já faz parte da premissa que se pressupõe como verdadeira. Exemplo:

Considere um diálogo entre dois personagens:


A: Deus existe!
B: Como você sabe?
A: Por que a Bíblia afirma!
B: E por que a Bíblia estaria certa?
A: Por foi escrita sob inspiração de Deus!

• Generalização apressada
A partir de um número muito limitado de dados, impõem uma conclusão que se pretende verdadeira.
Exemplo:

Ontem, eu andava perdido pelo centro da cidade, um francês me ajudou. Ele me levou gratuita-
mente até meu endereço. Realmente, os franceses são muito gentis.

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• Falsa causa
Na falácia da falsa causa, atribui-se a causa a um fenômeno que não foi a causa real. Algo que sim-
plesmente acontece “depois”, passa a ser visto como consequência. Exemplo:

Depois da Primeira Guerra Mundial, aconteceu a Segunda Guerra Mundial. A falácia consiste em
dizer que a segunda guerra foi consequência da primeira ou que a primeira guerra foi a causa da
segunda guerra. Não há uma conexão necessária entre esses dois eventos separados por aproxi-
madamente trinta anos.

Um outro exemplo:

O gato miou quando eu abri a porta. A falácia consiste em dizer: O gato miou porque eu abri
a porta.

Falácias da ambiguidade

• Da equivocidade. Consiste em usar, em uma argumentação, termos com duplo sentido, o que im-
possibilita o argumento de ser correto, devido à ambiguidade introduzida. Exemplo:

O fim da vida política é o bem comum, assim como o objetivo do direito é promover a justiça.
Dessa forma, o fim de algo é seu objetivo, sua plenitude. Por isso, a morte, que é o fim da vida,
consiste na plenitude da vida.

Outras vezes, podemos nos deparar com afirmativas do tipo: Errar é humano, portanto não faz senti-
do afirmar que houve ou que há atos desumanos. Humano (sentido biológico, faz parte da condição
humana) e desumano (sentido moral, cruel).

• Do falso dilema. Consiste em reduzir injustificadamente as opções possíveis. Exemplo:

Ou és meu amigo ou és meu inimigo.

ATIVIDADES
1. Reescreva as seguintes orações, partindo do antecedente para o consequente.
a. A pena de morte deve sempre ser condenada, pois ninguém nasce criminoso e ninguém tem o
direito de tirar a vida de alguém.
b. A pena de morte traz uma contradição em si mesma, uma vez que toda pena tem por objetivo a
cura e a ressocialização do indivíduo.
c. O professor é um racionalista, uma vez que defende a existência de verdades universais, e quem
defende a existência de verdades universais é racionalista.
d. Pedro teve a carteira de motorista apreendida porque foi pego dirigindo alcoolizado.
e. Considerando que todo filósofo brinca com as palavras, Débora pode ser uma excelente filósofa,
uma vez que brinca com as palavras.
f. O sistema de cotas para estudantes de escolas públicas no ensino superior é uma questão de jus-
tiça social, uma vez que, historicamente, foram excluídos dessa etapa de ensino.
g. Não há vagas para todos os estudantes brasileiros em universidades públicas, por isso, grande
parte dos estudantes frequenta faculdades particulares.

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h. A felicidade só existe no desespero, uma vez que todo aquele que espera nada faz, e a felicidade
é a ativa atitude de busca.
i. Porque a conquista é resultado da busca, quem espera nada alcança.
2. Distinguir argumentos dedutivos de indutivos.
a. Todo assassinato é crime. E todo crime deve ser condenado. Por isso, todo assassinato deve ser
condenado.
b. Maria foi curada da labirintite tomando o remédio "Ouvir", Pedro foi curado da labirintite to-
mando "Ouvir", portanto Priscila deverá ficar curada com o remédio "Ouvir".
c. A maioria dos estudantes declarou que votará a favor da chapa Revolução. Logo, a chapa Revo-
lução vai vencer a eleição.
d. Países pouco desenvolvidos apresentam principalmente altas taxas de insuficiência alimentar e
analfabetismo. O Haiti apresenta altas taxas de insuficiência alimentar e analfabetismo. Logo, é
um país pouco desenvolvido.
e. Lojas Fiori tem direito a decretar falência porque constitui uma grande rede de lojas, e toda gran-
de rede de lojas tem direito a decretar falência.

3. Responda às seguintes questões:


a. O que é um argumento válido?
b. O que é um argumento correto?
c. Podemos afirmar que um argumento correto é aquele que tem uma conclusão válida? Justifique
sua resposta:
• Exemplifique argumento válido com premissa falsa e conclusão verdadeira.
• Exemplifique argumento válido com premissa falsa e conclusão falsa.
• Exemplifique argumento inválido com premissa falsa e conclusão verdadeira.
• Exemplifique argumento inválido com premissas verdadeiras e conclusão verdadeira.
• Exemplifique, se possível, argumento válido com premissas verdadeiras e conclusão falsa.
4. A partir das sentenças abaixo, construa o quadrado das oposições.
a. Alguns vereadores atuam junto à comunidade.
b. Não existe banqueiro honesto.
c. Toda lei é justa.
d. Toda forma de preconceito é discriminatória.

5. Qual é a negação de cada uma das sentenças abaixo?


a. Todos os alunos vão entrar na universidade.
b. Todos os belo-horizontinos são atleticanos.
c. Nem todo brasileiro é fanático por futebol.
d. Existe pelo menos uma bicicleta de três rodas.
e. Somente os brasileiros são cariocas.

6. Converse com seu colega sobre a validade ou invalidade dos argumentos a seguir.
a. Nenhum mamífero é invertebrado. Gatos são mamíferos. Logo, gatos são vertebrados.
b. Alguns políticos são honestos. Logo, nem todos os políticos são desonestos.
c. Todas as verdades são relativas. Logo, não há verdades absolutas.
d. Todos os paulistas são palmeirenses. Telê era paulista. Logo, Telê era palmeirense.
e. Todo brasileiro adora carnaval. Obama não é brasileiro, portanto, não adora carnaval.
f. Alguns alunos passaram na prova do Enem. Logo, alguns alunos não passaram na prova do Enem.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE DEDUÇÃO, INDUÇÃO, VERDADE E VALIDADE
A indução refere-se a uma forma de argu- conclusão extrapola o conteúdo das premissas. Por
mentação que parte de uma série de casos par- isso, a conclusão fornece apenas probabilidade. O
ticulares. Esses casos são comparados. Verifica-se procedimento indutivo é marca distintiva das ciên-
elementos comuns, a partir dos quais seja possível cias experimentais, uma vez que tem por objetivo
uma universalização ou generalização. chegar à formulação de novas teorias, a partir do
Esse procedimento indutivo é o que carac- estudo e da comparação de casos particulares.
teriza a metodologia das ciências experimentais. A verdade de uma sentença diz respeito à
Com esse procedimento, muitas conquistas são correspondência com a realidade. Se o conteúdo
realizadas. Contudo, nos caminhos da pesquisa do enunciado estiver conforme a realidade, então
cientifica, muitas vezes, conclusões aceitas como temos uma sentença verdadeira.
verdadeiras, em determinado momento histó- A validade de um argumento é determinada
rico, passaram a ser problematizadas, devido a por sua forma lógica. Todo X é Y. Ora, Z é X. Logo,
novas descobertas. Z é Y. Para demonstrar a validade ou a invalidade
A indução refere-se a uma forma de argu- de um argumento costuma-se usar como ferra-
mentação na qual embora as premissas sejam menta a teoria dos conjuntos. Quando, por exem-
todas verdadeiras, a conclusão poderá ser falsa. plo, dizemos que todo X é Y, estamos dizendo que
Com efeito, a forma indutiva de argumentar reali- o conjunto X está contido dentro do conjunto Y.
za generalizações a partir da enumeração de casos Para determinar, portanto, a validade de um argu-
particulares. Nesse procedimento, o conteúdo da mento basta considerar sua forma lógica.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAGEM

SUGESTÃO DE LEITURAS
BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: MORTARI, Cezar A. Introdução à lógica. São Paulo:
Martins Fontes, 1997. Unesp, 2001.
BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São NOLT, J.; ROHATYN, D. Lógica. São Paulo: McGraw-
Paulo: Cultrix, 1994. -Hill, 1991.
COPI, Living M. Introdução à lógica. 2. ed. São Paulo: PESSANHA, José Américo Motta. Os pré-socráticos: vida
Editora Mestre Jou, 1978. e obra. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo:
FLEW, Antony. Pensar direito. São Paulo: Cultrix/Edusp, Nova Cultural, 1996. (Os pensadores).
1979. PINTO, Paulo R. Margutti. Introdução à lógica simbóli-
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ca. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
ilustres. Brasília: UnB, 1988. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia
LEGRAND, Gérard. Os pré-socráticos. Rio de Janeiro: pagã antiga. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.
Jorge Zahar, 1971.
MARCONDES. Danilo. Iniciação à história da filosofia:
dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008.

103

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2
Eixo Temático

CONDIÇÃO
HUMANA

bre :
r so
nde
e

pr
ia
va
Você

• A educação da alma no pensamento


socrático-platônico.
• A transmigração das almas em vários corpos
segundo a metempsicose de Platão.
• A alma tripartida na alegoria do cocheiro.
• O diálogo platônico sobre o amor.
• A felicidade (eudaimonia) como objeto da
busca humana e sua relação com a procura
pela sabedoria.
• A dimensão política em Aristóteles.

Sugerimos ler os itens com os estudantes e


estimulá-los a comentar o que eles sabem
sobre os temas que serão abordados.

Temas:
1. A tripartição da alma
2. A inquietude humana da busca: o amor, o amável, o belo
3. O desejo da felicidade, fim absoluto
4. A dimensão política humana: a cidade e o cidadão
A cultura ocidental é muito marcada pela antropologia grega e cristã. Nesse eixo temático, estudaremos a antropologia grega, na qual aparece o conflito entre corpo e alma, entre matéria e
espírito. Explore a temática do culto contemporâneo ao corpo e às aparências diante da valorização da atividade teorética ou intelectiva, defendida pelos mestres da filosofia grega.
As culturas moderna e contemporânea, marcadas pelo individualismo, diferem muito da concepção política grega, especialmente aristotélica, segundo a qual o ser humano é por natureza um ser
social. Uma das possibilidades de análise da temática pode ser o confronto entra a concepção grega de felicidade, vinculada ao conhecimento e à virtude, e as concepções contemporâneas de felicidade,
muitas delas associadas ao consumo.

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HELEN SIMONSSON (CC BY 3.0)
1. A TRIPARTIÇÃO DA ALMA

Ruínas do templo de Apolo, em Delfos, Grécia, 2012.

Certo dia, indo ao templo ou santuário de Apolo, em Delfos, Sócrates encontrou no frontispício do
templo a seguinte expressão: “Conhece-te a ti mesmo”. Ele fará de tal máxima e imperativo a chave mestra
de seu pensamento, a base de toda a sua reflexão filosófica que, daí por diante, passou a ser centrada no
ser humano e não mais no Cosmo. Desde então, ele deu início à sua missão de purificar os espíritos, de
discernir as realidades.
Sócrates (470-399 a.C.) nasceu em uma época em que Atenas se tornava uma potência política, eco-
nômica e militar, a cidade-estado hegemônica da Grécia. Nasceu no chamado “século de Péricles”, que
passou a governar Atenas quando Sócrates tinha vinte anos de idade. O século que o viu nascer foi o
chamado “século de ouro”, “época das luzes”, o “milagre grego”, sem similar na história do mundo oci-
dental. A democracia já era uma realidade desde que Clístenes introduzira suas reformas. Atenas era uma
cidade florescente.
O pensamento de Sócrates que predominantemente chegou até nós foi o de Platão. Por isso, vamos nos
referir ao seu pensamento como sendo socrático-platônico.

A l i i l i
Na visão socrática, a vida humana só tem sentido se referida a um princípio interior presente em cada
ser humano, que ele designou com o termo “alma“ (psyché). Nessa dinâmica, a antropologia socrática nos
traz, inicialmente, a clara noção da primazia da “alma“ racional, uma vez que é a nossa identidade e a nossa
diferença. A conhecida expressão zoón logikón (animal racional) encontra aqui a sua fonte.
Dessa forma, sendo essa nossa identidade radical, ser humano é viver em conformidade com as orienta-
ções da alma. Na busca de conceituação, a resposta de Sócrates é precisa: “O homem é a sua alma”, uma

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vez que é a alma que o distingue de tudo o mais. E por “alma” Sócrates entende a nossa razão e a sede de
nossa atividade pensante e eticamente operante. Em síntese: para Sócrates, a alma é a personalidade inte-
lectual e moral.

MUSEU PIO CLEMENTINO, VATICANO


Com essa ênfase no que identifica o que é humano,
o pensamento socrático-platônico estará voltado para o
tema da educação da alma, que possibilitará ao ser huma-
no aprender a controlar as paixões e os impulsos vincula-
dos à dimensão sensível.
Platão desenvolve uma teoria conhecida como “me-
tempsicose”. Nessa teoria, aborda-se a transmigração das
almas em vários corpos. Platão fala, portanto, em renasci-
mento da alma ou reencarnações. A tese da metempsicose
é um exemplo de dualismo, pois as formas puras e eter-
nas, que incluiriam a alma, seriam um domínio totalmente
separado do mundo material. Essa teoria, em diferentes
visões, pode ser vista no diálogo Fédon e na obra A Repú-
blica. Nessa visão platônica, “estar no corpo” representa
para a alma, de certa forma, uma prisão, um cárcere. A
purificação da alma acontece à medida que ela consegue
transcender o corpo, os sentidos, os prazeres, conquistan-
do novamente o mundo inteligível, espiritual, realidade
que lhe é conatural.
Busto de Sócrates.
A vida humana é uma peregrinação para o estágio final.
Através da reminiscência (recordação) e por meio da purificação (kátharsis), a alma se volta para o seu ideal.
Na medida em que o conhecimento nos possibilita a passagem de um nível para outro, do sensível para o
inteligível, ele também nos conduz da aparência para a essência, da falsa dimensão para a autêntica e ideal
dimensão do ser. Portanto, é por meio do conhecimento que a alma cura a si própria, purifica-se, converte-
-se, eleva-se e realiza-se. Nesse caminho de superação, o ser humano encontra a virtude.

Alegoria do cocheiro: o governo da alma racional


No Livro IV de A República, Platão apresenta sua visão de alma tripartida, isto é, divida em três partes. A
primeira dimensão, a mais inferior, seria a do corpo, da alma apetitiva ou concupiscível. Essa seria a dimen-
são irracional, impulsiva, situada na parte inferior, próxima à cicatriz umbilical, ligada aos sentidos. O se-
gundo elemento constitutivo seria a alma irascível, das vontades, impetuosa, responsável pela defesa contra
as agressões. Nesse nível estaria a ira, a cólera, situada na região do peito, do coração. Portanto, também
é mortal, e tem por objetivo justamente lutar contra as ameaças de morte ao corpo. O terceiro elemento,
verdadeiramente distintivo do ser humano, seria a alma racional. A mente seria o princípio divino que em
nós habita; por isso, representaria a dimensão imortal. É a partir dessa dimensão que se tornaria possível o
acesso às ideias, ao conhecimento do bem, do belo, da verdade, da justiça.
Cada alma seria regida por uma virtude própria e que deveria ser conquistada. A alma apetitiva ou con-
cupiscível deveria alcançar a virtude da moderação (sophrosyne), a alma irascível ou impetuosa necessitaria
conquistar a virtude da coragem (andreia) e a alma racional deveria conquistar a virtude da sabedoria (so-
phia), resultante do conhecimento (theoría). Pensar em justiça e em felicidade implicaria pensar no equilíbrio
dessas funções em nós.
Assim, o elemento racional deve agir sobre o elemento irascível, proporcionando-lhe a virtude da cora-
gem que, por sua vez, deve agir sobre o elemento irracional concupiscível e passional, proporcionando-lhe
a moderação. Nesse equilíbrio consiste a justiça, decorrente do verdadeiro conhecimento.
A parte mais nobre deve governar e a alma irascível deve ser aliada do governo racional. Conforme re-
flexão de Platão:

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Sugerimos conversar com os estudantes sobre o sentido de “alma” descrito até o momento e fazer uma
correlação com o sentido de “alma” que eles conhecem com base em suas percepções da realidade.

Portanto, não compete à razão governar, uma vez que é sábia e tem o encargo de velar pela alma
toda, e não compete à cólera ser sua súdita e aliada? [...]. E estas duas partes, assim criadas, instruí-
das e educadas de verdade no que lhes respeita, dominarão o elemento concupiscível (que, em cada
pessoa, constitui a maior parte da alma e é, por natureza, a mais insaciável de riquezas) e hão de
vigiá-lo, com receio de que ele, enchendo-se dos chamados prazeres físicos, se torne grande e forte,
e não execute a sua tarefa, mas tente escravizar e dominar uma parte que não compete à sua classe
e subverta toda a vida do conjunto.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Pereira. 8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,1996. [441e - 442a ].

Essa classificação da alma em três elementos, Platão descreve de maneira genial através da alegoria do
cocheiro, no diálogo Fedro. Considerando que nossas paixões tendem aos extremos, a superação de nossos
impulsos e sensações constitui um árduo caminho.
Na alegoria do cocheiro há uma carruagem conduzida por um cocheiro e puxada por dois cavalos. Um
deles é bom e dócil; o outro é furioso e indisciplinado.
A alma racional é o condutor, que deve conquistar a sabedoria; o cavalo obediente corresponde à alma
irascível, que representa a vontade e luta contra as ameaças; o cavalo rebelde, por sua vez, representa a
alma apetitiva, ligada aos sentidos.
Tanto o condutor como o bom cavalo precisam de muito esforço para controlar o cavalo rebelde, permi-
tindo, assim, a atuação conjunta.
Para chegar à sabedoria, portanto, é preciso que a razão conduza a vontade e os sentidos em busca do
que há de mais nobre – a contemplação da verdadeira realidade – o bem supremo.
Nessa alegoria, verifica-se a tripartição da alma. Na parte racional, representada pelo comando do co-
cheiro, encontra-se a referência humana fundamental, o guia da alma. O bom cavalo é a parte da força, da
cólera contra a injustiça, da coragem de lutar pela justiça e defender o corpo contra toda ameaça à vida. O
cavalo indisciplinado representa a parte inferior, rebelde e inquieta, das paixões cegas.
DIANA SURZHINA/SHUTTERSTOCK

De concepção platônica,
a alegoria do cocheiro
representa a alma
tripartida do ser
humano. O cocheiro
representa o elemento
racional que deverá
comandar o corpo,
representado por
dois cavalos: um
deles é o elemento
irascível da alma, da
força e da coragem;
o outro é o elemento
irracional, concupiscível
e apetitivo.

Podemos também relacionar a tripartição da alma com a reflexão de Platão sobre as diferentes almas:
de bronze, de prata e de ouro. Ele aplicou essa analogia aos diferentes grupos da sociedade grega, como
podemos ver no fragmento a seguir, retirado do Livro III de A República, de sua autoria. Nesse fragmento,
Sócrates se dirige a Glauco dizendo:

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[...] mas ouve o resto da fábula: “Na cidade sois todos irmãos”, dir-lhe-emos, prosseguindo nes-
sa ficção, “mas o deus que vos formou misturou ouro na composição daqueles que entre vós são
capazes de comandar: por isso, são os mais preciosos. Misturou prata na composição dos auxilia-
res; ferro e bronze na dos lavradores e na dos outros artesãos. Em geral, procriareis filhos seme-
lhantes a vós; mas, visto que sois todos parentes, pode suceder que do ouro nasça um rebento
de prata, da prata um rebento de ouro e que as mesmas transmutações se produzam entre os ou-
tros metais. Por isso, acima de tudo e principalmente, o deus ordena aos magistrados que zelem
atentamente pelas crianças, que atentam no metal que se encontra misturado à sua alma [...]”.
PLATÃO. A República. Livro III. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 111. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. A partir dessa reflexão de Platão, podemos concluir que os filhos não são necessariamente uma có-
pia dos pais, em termos de caráter, de valor ou interesse. Existem certas expressões que se costuma
ouvir na realidade da educação escolar: “Esse cara não gosta de estudar”. Essas expressões descre-
vem uma realidade objetiva ou são somente interpretações subjetivas?

2. A IN UIETUDE HUMANA DA BUSCA:


O AMOR, O AM VEL, O BELO
MUSEU METROPOLITANO DE ARTE, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS

Eros e Psiquê (1794), de Antonio Canova. Escultura em gesso, 134,6 cm × 81,3 cm.
A alma humana (Psiquê) anda inquieta. Em seu destino, encontra o amor (Eros).
O amor realiza o desenvolvimento da vida, a purificação e a superação dos
sofrimentos e das desconfianças. Ele é fonte de virtude e de felicidade, conduzindo
os humanos à imortalidade.

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A condição humana e a experiência humana do amor são o movimento do amado em busca por sabe-
doria, por beleza, por verdade. É a consciência da falta, ou da carência, que mobiliza a busca.
O banquete (sympósion) é o diálogo platônico sobre o amor (eros); de estilo fortemente teatral e poéti-
co, consiste em uma série de discursos em que o amor é apresentado sob diferentes aspectos. A passagem
aqui selecionada, uma das mais célebres dos diálogos de Platão, é a apresentação pela sacerdotisa Diotima
de Mantineia, sobre o amor como desejo – de beleza, de imortalidade, de sabedoria –, como processo de
elevação da alma em busca da perfeição.

[...] A questão é que nenhum deus persegue a sabedoria ou deseja tornar-se sábio, pois já o é; e
ninguém mais que seja sábio persegue a sabedoria. Nem o ignorante persegue a sabedoria ou deseja
ser sábio; nisso aliás, a ignorância é confrangedora: estar satisfeita consigo mesma sem ser uma pes-
soa esclarecida nem inteligente. O homem que não

GALERIA NACIONAL DE ARTE, LVIV, UCRÂNIA


se sente deficiente não deseja aquilo de que não sen-
te deficiência. [...]
Porque a sabedoria diz respeito às coisas mais belas
e Amor é o amor do belo; de modo que a necessida-
de de Amor tem que ser amiga da sabedoria e, como
tal, deve situar-se entre o sábio e o ignorante. [...]
Tal, meu bom Sócrates, é a natureza desse espírito.
Que você tenha formado outro conceito de Amor
não é surpreendente. Você supôs, a julgar por suas
próprias palavras, que Amor fosse o amado e não o
amante. O que o levou, imagino, a afirmar que o
Amor é tão belo. O amável, com efeito, é realmente
belo, suave, perfeito e abençoado; mas o amante é
diferente, como mostra o relato que fiz. [...]
Quando um homem foi assim instruído no conhe-
cimento do amor, passando em revista coisas belas
uma após uma, numa ascensão gradual e segura, de
repente terá a revelação, ao se aproximar do fim de
suas investigações do amor [...]. Começando pelas
belezas óbvias, ele deve, pelo bem da mais elevada
beleza, ascender sempre, como nos degraus de uma
escada, do primeiro para o segundo e daí para todos Retrato de Diotima de Mantineia (1855), de Hisef
os corpos belos; da beleza pessoal chega aos belos Sunnger. Óleo sobre tela, 210 cm × 141 cm.

costumes, dos costumes ao belo aprendizado e do aprendizado, por fim, àquele estudo particular
que se ocupa da própria beleza e apenas dela; de forma que finalmente vem a conhecer a essência
mesma da beleza. Nessa condição de vida acima de todas as outras, meu caro Sócrates, disse a mulher
de Mantineia, um homem percebe realmente que vale a pena viver ao contemplar a beleza essencial.
PLATÃO. O banquete. Trad. Danilo Marcondes. In: Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3. ed. Zahar: Rio de Janeiro, 2000. p. 27-30.

PROBLEMATIZANDO
1. Que lições você consegue extrair, desses fragmentos do diálogo, sobre a natureza do amor?
2. A última afirmação do texto faz referência a um ideal de vida. Converse com seus colegas sobre esse
ideal na Grécia Clássica.

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3. O DESEJO DA FELICIDADE, FIM ABSOLUTO

MARCO ANTONIO SÁ/PULSAR IMAGENS


Estimule o pensamento dos alunos no sentido
de perceberem, com Aristóteles, a existência
de muitos objetivos (bens) na vida e que
praticamente todos estão subordinados a um bem
final, último, que deve guiar nossas escolhas:
a felicidade. Faça uma sondagem prévia com
os alunos sobre o conceito de felicidade que
conhecem e/ou compartilham.

Grupo se apresenta em festa


do Maracatu rural em Nazaré
da Mata (PE), 2014.
O que é a felicidade para
você? Ela pode ter relação
com as expressões culturais?
Ela pode ser uma resultante
do esforço e da superação?

No pensamento socrático, platônico e aristotélico, o traço antropológico co-


mum identifica o ser humano como animal racional, que busca a felicidade como
fim último da vida. E essa felicidade (eudaimonia) tem relação com a permanente
busca pela sabedoria.
Considerando que o ser humano é um ser que age, e que todas as ações tendem
a fins, que são bens, Aristóteles percebe uma hierarquia na ordem dos fins, que não
se estende ao infinito. Existe um fim último. O conjunto das ações humanas e os
fins particulares para os quais elas tendem subordinam-se a um "fim último", que é
"bem supremo", que todos os homens concordam em chamar "felicidade". Mas,
o que é a felicidade? Para muitos, a felicidade é o prazer e o gozo (hedoné). Para
alguns, a felicidade é a honra e o sucesso. Existe, ainda, o grupo de pessoas para o
qual a felicidade tem vínculo com a posse de riqueza.
De acordo com Aristóteles, o fim de
FOTOS593/SHUTTERSTOCK

um ser é determinado pela sua forma


essencial, por aquilo que o diferencia
do outro e para o qual ele foi feito.
Assim, o bem supremo, a felicidade
(eudaimonia) realizável pelo ser huma-
no consiste em aperfeiçoar-se na hu-
manidade que o caracteriza. Em outras
palavras, tornar-se em ato o que ele já
é em potência, por meio da atividade
da razão, que o diferencia de todos os
outros seres. Na expressão eudaimo-
nia, percebemos que o prefixo grego
eu, significa bom, perfeito; e daimon,
como já vimos em Sócrates, refere-se
Felicidade pode ser ao espírito, ao que nos diferencia dos
pensada como a virtude outros animais e do comum dos mortais. Desta forma, felicidade (eudaimonia)
de caminhar com equilíbrio significa viver conforme o espírito perfeito.
entre o extremo e a falta.

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[...] nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo
de absoluto. Portanto, só existe um fim absoluto [...]. Ora, nós chamamos
de absoluto aquilo que merece ser buscado por si mesmo, e não com vis-
tas em outra coisa; por isso, chamamos de absoluto incondicional aquilo
que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.
Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. [...]
A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente, sendo também a
finalidade da ação.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro I. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim.
São Paulo: Nova Cultural. 1991. p. 1-7. (Os pensadores).

Portanto, felicidade, para o ser humano, não pode

BERKOMASTER/SHUTTERSTOCK
consistir no simples viver (vegetais), nem no viver a vida
sensitiva (animais). Resta-lhe a atividade específica de
sua alma: a razão. Viver a racionalidade é nossa voca-
ção e desafio. Desta forma, o ser humano é atividade,
isto é, passagem da potência ao ato; atividade da alma
racional, buscando tornar-se sempre melhor, mais jus-
to, mais virtuoso.
Se a felicidade não existe fora da vida virtuosa, se
a virtude é condição para ser feliz, e se a virtude não
é natural, como é possível tornar-se virtuoso? As virtu-
des intelectuais ou dianoéticas, por serem as virtudes
características da parte mais elevada da alma, da alma
racional, requerem aprendizagem e tempo. Já as virtu-
A felicidade não vem a
des éticas derivam do costume, são um produto do hábito; não havendo, então,
nós, nem acontece de
nenhuma virtude ética que se forme em nós por natureza. As virtudes éticas repente - encontra-se na
são a posição média entre dois extremos das paixões, dos sentimentos e das virtude, resultante de um
ações. Para Aristóteles, as virtudes éticas são: coragem, temperança, liberalida- estilo de vida reflexivo.
de, magnificência, justo orgulho, anonimato, calma, veracidade, espirituosidade, Quais são os bens que
amabilidade, modéstia, justa indignação, anseio por justiça. É na prática de atos verdadeiramente promovem
a vida feliz?
corajosos e justos, por exemplo, que se formarão em nós as virtudes da coragem
e da justiça. E será devido ao hábito que essas virtudes poderão ser uma constân-
cia na vida do individuo.
Retomando o conceito aristotélico, a virtude é uma disposição de caráter
relacionada com a escolha e consistente numa mediania. Para que o indivíduo
consiga bem escolher, ele precisa da sabedoria prática, da phrónêsis, que é uma
importante virtude intelectual, compreendida como a capacidade de deliberar
bem, de escolher os melhores meios para atingir o fim almejado. Ela tem um
caráter prático, requer experiência e exige um conhecimento tanto do universal
como do particular. Para almejar a saúde, por exemplo, é fundamental saber que
a carne branca é mais saudável (universal) e que peixe é carne branca (particular).
Com essa capacidade, a phrónêsis é a mais elevada virtude da parte deliberativa
da alma racional, que se refere às realidades humanas mutáveis.
Vemos assim que a phrónêsis não é ciência, uma vez que é prática e voltada
ao particular. Tampouco é inteligência (noüs), uma vez que a inteligência tem
por objeto as definições universais. Acima da phrónêsis está a sophia, que se
ocupa das realidades intelectuais, mais elevadas. É por essa razão que a sophia é
a maior das virtudes dianoéticas. Sendo capacidade de deliberação, a phrónêsis

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tem como finalidade última a sophia.
Nessa sabedoria prática, representada pela phrónêsis, relacionam-se a teoria e a prática, a capacidade
racional e a virtude moral, ambas construídas com esforço, com o passar do tempo e com a experiência.
Dessa maneira, o conhecimento e o hábito tornam-se exigências fundamentais para alcançar a vida feliz.
Sugerimos conversar com os estudantes sobre os conceitos de “felicidade” abordados até o momento e sobre outros que eles conheçam, principalmente os desenvolvidos pelas
grandes mídias.

PROBLEMATIZANDO
1. No texto a seguir, Aristóteles descreve a natureza da felicidade. Vamos nos concentrar nesse texto.

A felicidade
Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha,
têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que
todas as coisas tendem. Mas observa-se entre os fins certa diferença: alguns são atividades, outros
são produtos distintos das atividades que os produzem. Onde existem fins distintos das ações, são
eles por natureza mais excelentes do que estas. [...] Ora, alguns têm pensado que, à parte esses
numerosos bens, existe um outro [bem] que é autossubsistente e também é causa da bondade de
todos os demais.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro I. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 9 -11. (Os pensadores).

• Seguindo a reflexão aristotélica, todas as ações humanas tendem a fins [objetivo, finalidade] que
são bens. Assim, o ser humano é sempre movido por um bem, por algo que deseja. Você concorda
com a ideia de que todo fim pretendido é um bem?

OUTROS OLHARES
1. Vamos considerar esse tema das aptidões naturais, passíveis de se tornarem virtude, sob a ótica da
psicologia contemporânea. Vamos ler o trecho a seguir.

O talento humano é entendido como um fenômeno complexo e mutável ao longo do desenvol-


vimento do indivíduo. Múltiplos aspectos interferem no processo de desenvolvimento do potencial
superior: traços de personalidade, condições ambientais e características da área em que o indivíduo
está inserido. Ademais, a compreensão do talento, especialmente em adultos, é muitas vezes pautada
na relação entre habilidade, estudo deliberado, alto desempenho e produtividade. [...]
É consenso entre diversos estudiosos a importância do contexto para a manifestação do talento.
As características do indivíduo são compreendidas na interação com o ambiente em que está inse-
rido. Esse processo é mediado pela cultura, que imprime suas crenças e valores nos papéis, práticas
e expectativas sociais. Dessa maneira, a presença de estereótipos pode dificultar ou retardar a iden-
tificação, a promoção e a expressão de talentos. Esses estereótipos muitas vezes são internalizados e
passam a constituir barreiras internas à expressão do potencial latente no indivíduo.
PRADO, R. M.; FLEITH, D. S.; GONÇALVEZ, F. C. O desenvolvimento do talento em uma perspectiva feminina. In: Psicologia: Ciência e Profissão. v. 31, n. 1, 2011. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932011000100012&script=sci_arttext>. Acesso em: 19 abr. 2016.

• Você concorda com a ideia de que todos nós trazemos em nós todos os dons, e que é a disciplina
e o empenho que os transformam em habilidades e competências? Como o meio sociocultural
exerce influências nesse desenvolvimento?

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PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir:

Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é de-
sejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos em vista de outra (porque,
então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será
o bem, ou antes o sumo bem.
Mas não terá o seu conhecimento, porventura, grande influência sobre nossa vida?
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro I. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 9-11. (Os pensadores).

• Com base nesse trecho e em outras informações, redija um parágrafo padrão respondendo à ques-
tão que Aristóteles coloca no final de sua reflexão, sobre a relação entre conhecimento e felicida-
de. Lembre-se que felicidade é eudaimonia, a boa consciência, amadurecida pela reflexão.

4. A DIMENSÃO POL TICA HUMANA: Converse com os estudantes sobre o título desse tema e verifique de que
maneira eles relacionam “cidade” e “cidadão” no contexto das múltiplas
realidades que vivenciam.
A CIDADE E O CIDADÃO
Aristóteles define o ser humano, inicialmente, como um ser composto de psiquê e de soma de corpo e
alma, de uma estrutura biopsíquica. Nessa visão, o desenvolvimento da racionalidade interfere diretamente
sobre a vida da materialidade corporal.
Ao conceber o ser humano como zoón logikón, afirma a racionalidade como elemento que distingue a
alma humana de todos os outros seres da natureza.
Em segundo lugar, Aristóteles destaca a dimensão política como estruturante da personalidade. Meta-
foricamente, todo membro existe em um corpo e somente vinculado ao corpo consegue realizar-se. Dessa
forma, o indivíduo é o membro, a pólis é o corpo. Assim como no corpo há muitos membros e cada um com
funções específicas, da mesma forma, para a harmonia da cidade, cada cidadão tem suas funções. Dessa
forma, a felicidade do indivíduo participa da felicidade da pólis.
© NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE/CORBIS

Homens reunidos
na ágora
ateniense votam
o ostracismo
(banimento ou
exílio) de um
cidadão.

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Em seu livro A política, Aristóteles escreve sobre a natureza política da alma humana. Vejamos alguns
fragmentos desse escrito.

O homem é, por sua natureza, como dissemos desde o começo, ao falarmos do governo doméstico
e do dos escravos, um animal feito para a sociedade civil. Assim, mesmo que não tivéssemos ne-
cessidade uns dos outros, não deixaríamos de desejar viver juntos. Na verdade, o interesse comum
também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim princi-
pal, comum a todos e a cada um em particular. Reunimo-nos mesmo que seja só para pôr a vida em
segurança. [...] Mas não apenas para viver juntos, mas, sim, para bem viver juntos que se fez o Estado.
ARISTÓTELES. A política. Livro II. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 53.

Assim, em Aristóteles, a reflexão política é associada à reflexão ética. Enquanto a ética é o estudo da
conduta e do fim do ser humano como indivíduo, a política é o estudo da conduta e do fim do ser humano
como parte de uma sociedade.
A vida individual só se compreende referindo-se à vida comunitária. Assim, o bem do indivíduo é da
mesma natureza que o bem da pólis, mas o bem da cidade é mais belo e mais divino, porque se amplia da
dimensão do privado para a dimensão do social, para a qual o homem grego era particularmente sensível,
porquanto concebia o indivíduo em função da cidade-estado e não a cidade em função do indivíduo, como
acontecerá no contratualismo moderno.
Aristóteles é filho de seu tempo, e seu pensamento não consegue desvincular-se da forma de pensar
comum à época. Nesse horizonte, Aristóteles exclui da cidadania aqueles que estão dedicados à atividade
braçal, que não dispõem do tempo dedicado à contemplação, à discussão das ideias. Entre esses trabalha-
dores está a classe dos artesãos e dos comerciantes.
Nessa concepção aristotélica, está subjacente o valor subordinado que os antigos atribuíam ao trabalho
manual. No fragmento a seguir, podemos verificar o quanto as estruturas sociopolíticas marcam o pensa-
mento aristotélico.

Quanto à economia, [...] como os bens fazem parte da casa, os meios de adquiri-los também fazem
parte do governo doméstico; e, assim como nenhuma das artes que têm um objeto preciso e determi-
nado realiza sua obra sem seus instrumentos próprios, a economia também precisa deles para chegar
ao seu objetivo. [...] Chama-se “instrumento” o que realiza o efeito, e “propriedade doméstica” o que
ele produz. [...] O senhor não é senão o proprietário de seu escravo, mas não lhe pertence; o escravo,
pelo contrário, não somente é destinado ao uso do senhor, como também dele é parte. [...] O homem
que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a outro, é escravo por natureza: é uma posse e um
instrumento para agir separadamente e sob as ordens de seu senhor.
ARISTÓTELES. A política. Livro I. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.10-11.

PROBLEMATIZANDO
1. Na obra Política, Aristóteles apresenta duas formas de escravidão: por lei e por natureza. Ele critica
a escravidão por lei, argumentando que nem sempre as leis são justas. Contudo, ele afirma a escra-
vidão natural: uns são livres e outros escravos, por natureza. A escravidão seria necessária, pois a
natureza teria reservado o ócio a alguns. Para Aristóteles, “governar e ser governado são coisas não
só necessárias, mas convenientes” (Política).
• Com base no pensamento de Aristóteles, que reflexões você consegue fazer sobre igualdade e
desigualdades naturais, na Grécia clássica e nas sociedades modernas e contemporâneas?
2. No texto a seguir, Aristóteles reflete sobre a sociabilidade do ser humano.

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O homem, animal político conservam o nome e a aparência, sem a realida-
É, portanto, evidente que [...] o homem é de, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre
naturalmente feito para a sociedade política. com os membros da cidade: nenhum pode bas-
Aquele que, por sua natureza e não por obra tar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos
do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria outros homens [...] ou é um deus, ou um bruto.
um indivíduo detestável, muito acima ou mui- Assim, a inclinação natural leva os homens a
to abaixo do homem, segundo Homero: um este gênero de sociedade.
ser sem lar, sem família e sem leis. Aquele que O primeiro que a instituiu trouxe-lhe o maior
fosse assim por natureza só respiraria a guerra, dos bens. Mas, assim como o homem civiliza-
não sendo detido por nenhum freio e, como do é o melhor de todos os animais, aquele que
uma ave de rapina, estaria sempre pronto para não conhece nem justiça nem leis é o pior de
cair sobre os outros. [...] todos. Não há nada, sobretudo, de mais intole-
O Estado, ou sociedade política, é até mesmo rável do que a injustiça armada. Por si mesmas,
o primeiro objeto a que se propôs a natureza. as armas e a força são indiferentes ao bem e ao
O todo existe necessariamente antes da parte. mal: é o princípio motor que qualifica seu uso.
As sociedades domésticas e os indivíduos não Servir-se delas sem nenhum direito e unica-
são senão as partes integrantes da cidade, todas mente para saciar suas paixões ávidas de lucro
subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas é atrocidade, desumanidade. Seu uso só é lícito
por seus poderes e suas funções, e todas inúteis para a justiça. O discernimento e o respeito ao
quando desarticuladas, semelhantes às mãos direito formam a base da vida social e os juízes
e aos pés que, uma vez separados do corpo, só são seus primeiros órgãos.
ARISTÓTELES. A política. Livro II. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4-6.
IVY CLOSE IMAGES/ALAMY/LATINSTOCK

Cidade de Olímpia na
Grécia Antiga (1891),
de autoria desconhecida.
Gravura.

• A partir dessa reflexão de Aristóteles, posicione-se a respeito das seguintes questões:


. Se os homens apresentam uma “natural inclinação para a vida social”, qual será o papel da edu-
cação na vida das crianças, dos adolescentes e dos jovens?
. Para mostrar a relação indivíduo-cidade, Aristóteles se serve da metáfora do corpo e seus mem-
bros. Explique essa analogia.
. Para a cientista política e filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), no livro Entre o passado e o
futuro, a política grega é lugar e dimensão da liberdade, da não necessidade e da não violência.
É o âmbito da realização do cidadão. Considerando a política em contexto mais ampliado e con-
temporâneo, como você avalia esse posicionamento?

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3
Eixo Temático

ÉTICA E
POLÍTICA

bre :
r so
nde
e

pr
ia
va
Você

• As reformas políticas de Péricles e


Clístenes.
• A cidadania na democracia ateniense.
• A cidade justa e o governo do filósofo.
• As virtudes cívicas segundo Platão.
• A melhor forma de governar para Platão e
Aristóteles.

Sugerimos propor aos estudantes que conversem sobre como


cada um percebe, com base em sua vivência, o que é ética e
de que maneira ela está ou não vinculada à política.

Temas:
1. O nascimento da democracia ateniense
2. O governante filósofo e a cidade justa
3. Da democracia, da demagogia e da tirania
4. Formas de governo
Neste eixo temático, dedicado à ética e à política, sugerimos favorecer aos estudantes a experiência filosófica de tematizar a relação entre democracia e cidadania. Nessa abordagem, à luz das
exclusões que eram praticadas na democracia grega, interpele os estudantes à percepção dos excluídos de uma vida digna no regime democrático brasileiro. Para explorar isso, sugerimos o livro
de Herbert de Souza, Ética e cidadania; o poema "O analfabeto político", de Bertold Brecht; a letra da canção Justiça cega, de Zé Ramalho.

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1. O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA ATENIENSE
MUSEUS E GALERIAS DO VATICANO

A Escola de Atenas
(1509), de Rafael
Sanzio. Afresco,
5 m × 7,70 m.
No centro e ao
fundo da tela, Rafael
representou Platão
e Aristóteles. O
simbolismo da
mão apontada para
o alto, de Platão,
e para baixo, de
Aristóteles, indica,
de um lado, o
pensamento mais
racionalista, voltado
à dimensão das
ideias e, de outro,
o pensamento
voltado à
necessidade da
consideração
das experiências
empíricas.

Falar em democracia em Atenas implica referir-se ao movimento de reformas no campo social e político
empreendidas por Sólon, Clístenes e, posteriormente, por Péricles. Eles mudaram radicalmente a legislação
existente, que havia sido criada por Drácon, em 621 a.C.

Cl e e 5 5 .C. 4 2 .C.
Clístenes ficou consagrado como o pai da democracia ateniense. Era estadista, filósofo, político e legis-
lador. Sua presença é fundamental em Atenas, em contexto no qual a aristocracia estava empenhada em
reverter as reformas políticas construídas por Sólon.
Em 510 a.C., em assembleia, os cidadãos lhe entregaram a função de governar a pólis. Em seu governo,
entre as principais reformas que entraram para a história da cultura ocidental, destacamos, em primeiro lugar,
introdução da noção de isonomia, em conformidade com a qual todos os cidadãos têm os mesmos direitos.
E, aos homens que ameaçavam a democracia de Atenas, ele introduziu o ostracismo, ou seja, a cassação
dos direitos políticos, o banimento por dez anos, o exílio, o desterro, a exclusão.
Outra contribuição de Clístenes muito significativa para a formação da democracia foi a mudança que
ele produziu nas tribos existentes: transformou quatro tribos, fundamentadas em laços de sangue, em dez
tribos. Cada tribo participava do conselho com cinquenta membros, elevando, assim, para 500 os membros
do conselho (boulé), que se reunia diariamente, com a tarefa de fiscalizar tanto os funcionários como as fi-
nanças das cidades. Os conselheiros eram escolhidos por sorteio, com mandato de um ano e sem reeleição.
Além desse conselho, Clístenes instituiu a ekklesía, a assembleia geral de todos os cidadãos atenienses
com mais de dezoito anos, na qual eram discutidas as grandes questões que se referiam à cidade, princi-
palmente a respeito da paz e da guerra. A ekklesía reunida discutia os problemas mais importantes da co-

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munidade e escolhia os magistrados eletivos. Os magistrados eram eleitos por sorteio ou por voto popular.
Os eleitos por voto eram habilitados à reeleição, o que não acontecia com as magistraturas sorteadas. Entre
os magistrados eletivos, um dos mais importantes era o estratego, o comandante militar. Cada estratego,
após ser eleito por seu dêmos, era aprovado na ekklesía. Um dos estrategos mais famosos foi Péricles, que
exerceu liderança por mais de trinta anos. Outra magistratura muito importante era a dos nove arcontes, os
juízes que formavam o tribunal de justiça (areópago).
A ekklesía era convocada periodicamente e seu poder era maior que o poder do boulé. Contudo, esse con-
selho dos 500 preparava a agenda e presidia a ekklesía. As instituições democráticas começavam a se consolidar.

Ae e P i le
Péricles (495 a.C.- 429 a.C.) era sobrinho do estadista Clístenes. Teve como mestres precursores, que o
prepararam para a eloquência da oratória e para o amor à coisa pública, os pré-socráticos Anaxágoras e
Zenão de Eleia.
Péricles ficou conhecido como um dos homens públicos mais íntegros que a histórica já conheceu. Emble-
maticamente, sua personalidade é identificada em torno de um tripé de virtudes fundamentais. Em primeiro
lugar, inteligência altamente desenvolvida para prever, planejar e agir em conformidade com o momento. Em
segundo lugar, a habilidade da oratória, da eloquência ao falar, do poder de persuasão. Em terceiro lugar, o es-
pírito político que o animava na busca do bem da cidade estava acima de todo e qualquer interesse particular.
Por essas razões, durante 30 anos, Péricles foi sempre aclamado pela comunidade política como um dos
seus generais.

AKG-IMAGES/INTERCONTINENTAL PRESS
O discurso fúnebre de Péricles (1852),
gravura de Phillip Foltz.
Nessa pintura, encontra-se em destaque
Péricles, expoente da democracia grega, na
ágora ateniense. No fundo da imagem está
a Acrópole (acrópolis, significa cidade alta),
uma colina rochosa, na qual se encontram
algumas das mais famosas construções
do mundo antigo, como o Partenon. Na
imagem, aparecem em primeiro plano
escravos e uma mulher. Esse retrato não
é fiel à realidade da democracia ateniense,
na qual essas pessoas não tinham direitos
políticos e não podiam participar das
discussões na ágora.

Basicamente, precisamos mencionar duas grandes diferenças em relação às democracias modernas e con-
temporâneas. Em primeiro lugar, na democracia ateniense nem todos eram cidadãos. A cidadania, entendida
como possibilidade de participação efetiva na vida democrática da cidade, era exercida apenas pelos homens
adultos e naturais de Atenas. Portanto, ficavam excluídos dos direitos políticos as mulheres, as crianças, os es-
trangeiros e os escravos. E, em segundo lugar, a democracia não era representativa, como a nossa, mas direta
ou participativa, na qual os cidadãos participavam diretamente das discussões e das decisões, pelo voto. Não
eram aceitas distinções e privilégios entre os cidadãos. Dois são os princípios fundamentais que identificavam
a cidadania grega, ateniense: a isonomia, ou seja, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei; e a isegoria,
ou seja, o direito que todo cidadão tem de expressar-se publicamente, manifestando seu parecer, o direito a
ver sua opinião sendo discutida e presente na decisão dos cidadãos.

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Entre 440 e 404 a.C., durante o denominado ”século de Péricles”, o governo democrático de Atenas
chegou ao seu momento maior, situado antes do início da guerra do Peloponeso (431 a.C.) e seu fim
(404 a.C.). Nessa guerra, aconteceu o histórico conflito armado entre Atenas e Esparta. Atenas era o centro
político e Esparta era uma cidade-estado de tradição militarista. Depois da guerra do Peloponeso, a vida cul-
tural foi retomada: encontraremos muitos sofistas fazendo conferências com sua bela oratória, convidando
os jovens a serem seus alunos. Encontraremos, também, Sócrates ensinando nas ruas de Atenas. Um pouco
mais tarde, Platão funda a Academia e Aristóteles cria o Liceu.

PROBLEMATIZANDO
1. O desejo humano por liberdade é tão antigo quanto o próprio ser humano. Esse desejo nasce com
ele. Contudo, o indivíduo em sua condição natural traz uma impulsividade passional marcada pela
agressividade. Essa sua condição impulsiva necessita de ser lapidada para que haja vida social possível.
A vida social e política é justamente marcada pelo âmbito do direito, das normas e das tradições
culturais, no intuito de minimizar as manifestações da violência humana e de educar o ser humano
para a vida em sociedade.
• Por essa razão, como devemos pensar a relação entre lei e liberdade?
• Será que a lei limita a liberdade? Haveria liberdade política se não houvesse a lei?
• A lei pode ser vista como um fruto da liberdade?

2. O gOVERNANTE FIL SOFO E A CIDADE JUSTA


ARQUIVO DO PALÁCIO DO PRÍNCIPE DE MÔNACO

62ª Assembleia
Geral da ONU,
Nova York, 2007.

em e e e m i e
Um em l i e me e e
Se em i m e e l e , e e i e e l e i
i l i e e i e
A i e e m e e l e m , me me e e i l
A lei em e e e e i P e e lei i
N el i i e m i e, e e le e O i i i li m e l i e m

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Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos
não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem
num mesmo indivíduo [...], não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme
julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada.
PLATÃO. A República. Livro V. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 180-181.

Recordando a alegoria da caverna, vamos buscar, agora, uma interpretação


política dessa imagem. Sob o ponto de vista político, como influenciar as pes-
soas que não veem que se encontram nas sombras da ignorância? Voltando
à imagem da caverna: o filósofo é aquele que se libertou das correntes e alie-
nações do senso comum. Tendo contemplado a verdadeira realidade e tendo
passado da doxa à episteme, da opinião à ciência, o filósofo deverá lutar contra
qualquer tendência de ali permanecer, deverá retornar ao fundo da caverna,
onde se encontra o comum dos mortais e deverá ser orientação e auxiliar no
caminhar em direção à luz.
Dessa forma, os filósofos carregam a responsabilidade de governar a cidade,
justamente por não serem desejosos e ambiciosos pelo poder
político e, especialmente, por terem o conhecimento do que
GALERIA NACIONAL DE LONDRES, REINO UNIDO

seja o bem, a verdade, a justiça, a harmonia.


Recordando a tripartição da alma, busquemos a aplicação
política dessa ideia. Considerando que a justiça e a virtude
consistem no governo da razão sobre os apetites e a cólera,
a cidade justa será aquela na qual as diferentes funções da
alma realizam cada uma a sua específica virtude e capaci-
tação. Assim, aos comerciantes e artesãos caberá cuidar da
sobrevivência da cidade; aos guerreiros ou militares, a defesa
da cidade; e aos governantes caberá o exercício do poder
político na cidade. De acordo com Platão, os filósofos deve-
rão exercer o governo, por serem os melhores ou mais bem
preparados intelectivamente.
Não nos é difícil imaginar o que aconteceria com a cidade,
diz Platão, se os comerciantes ou os militares governassem a
cidade. “Quando numa cidade se honram a riqueza e os ricos,
a virtude e os bons são menos considerados” (A República,
Alegoria do tempo Livro VIII [551]). Se a classe militar governasse, teríamos no
governado pela prudência exercício do poder as pessoas que trazem o gosto pelo com-
(1565), de Tiziano bate e o prazer em lutar, buscando nisso sua glória.
Vecelli. Óleo sobre tela,
76 cm × 69 cm. Os governantes devem ser muito bem preparados para resistir tanto à possí-
vel corrupção do meio econômico como ao possível desejo de guerrear incutido
As três faces humanas:
juvenil, adulta e anciã pelo grupo militar. A grande exigência que se faz aos governantes é ter a ciência
relacionadas aos três política e o conhecimento da ideia de justiça. Para tanto, Platão, em A República,
animais: cão, leão e lobo. faz um longo percurso para chegar à ideia de justiça. Inicialmente, supera a visão
A prudência requer um dos comerciantes e do senso comum, representados por Polemarco, para os quais
diálogo entre a memória
(passado), a inteligência
a justiça é dar a cada um o que lhe é devido. Em seguida, no percurso, supera a
(presente) e previdência visão dos sofistas, representados por Trasímaco, para os quais a justiça é o poder
(futuro). Assim, a virtude do mais forte, seja por este possuir os meios para dominar seja pela astúcia em
da prudência é o grande fazer-se valer. E, finalmente, rejeita a visão de Glauco, para quem a justiça é pra-
governante da vida política.
ticada somente porque os homens temem os castigos se forem injustos.

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A expressão grega para melhores é aristoi. Daí que a forma de governo preferida e defendida por Platão é
a aristocracia intelectiva, uma espécie de sophocracia, governo dos sábios.
Portanto, a cidade justa é aquela na qual o filósofo governa, o militar pensa nas estratégias e organiza a
defesa da cidade e os que estão vinculados à virtude econômica cuidam do sustento e da sobrevivência dos
habitantes da cidade. O Estado justo possui, assim, quatro virtudes cívicas. As primeiras três correspondem a
cada um dos grupos sociais: moderação ou temperança, coragem e sabedoria prática (prudência). A quarta
virtude, à qual as três se encontram vinculadas e dependentes, é a justiça.
Glauco ilustra sua concepção trazendo o mito do anel de Giges. Vejamos um trecho do Livro II de A Re-
pública no qual encontramos esse mito.

Glauco – Vamos provar que a justiça só é pra- tinha esse poder e concluiu que ao virar a pedra
ticada contra a própria vontade dos indivíduos para dentro tornava-se invisível e ao girá-lo para
e devido à incapacidade de se fazer a injustiça, fora voltava a ser visível. Tendo certeza disso,
imaginando o que se segue. Vamos supor que se juntou-se aos pastores que iriam até o rei como
dê ao homem de bem e ao injusto igual poder representantes do grupo. Chegando ao palácio,
de fazer o que quiserem, seguindo-os para ver seduziu a rainha e com a ajuda dela atacou e
até onde os leva a paixão. Veremos com surpresa matou o soberano, apoderando-se do trono.
o homem de bem tomar o mesmo caminho que Vamos supor agora que existam dois anéis como
o injusto, este impulsionado a querer sempre este e que seja dado um ao justo e o outro ao in-
mais, impulso que se encontra em toda a natu- justo. Ao que parece não encontraremos ninguém
reza, mas ao qual a força da lei impõe limites. suficientemente dotado de força de vontade para
O melhor meio de testá-los da maneira como permanecer justo e resistir à tentação de tomar o
digo seria dar-lhes o mesmo poder que, segundo que pertence a outro, já que poderia impunemen-
dizem, teve Giges, o antepassado do rei da Lídia. te tomar o que quisesse no mercado, invadir as
Giges era um pastor a serviço do então soberano casas e ter relações sexuais com quem quisesse,
da Lídia. Devido a uma terrível tempestade e a matar e quebrar as armas dos outros. Em suma,
um terremoto, abriu-se uma fenda no chão lo- agir como se fosse um deus. Nada o distinguiria
cal onde pastoreava o seu rebanho. Movido pela do injusto, ambos tenderiam a fazer o mesmo e
curiosidade, desceu a fenda e viu, admirado, um veríamos nisso a prova de que ninguém é justo
cavalo de bronze, oco, com aberturas. E ao olhar porque deseja, mas por imposição. A justiça não é,
através de uma das aberturas viu um homem de portanto, uma qualidade individual, pois sempre
estatura gigantesca que parecia estar morto. O que acreditarmos que podemos praticar atos in-
homem estava nu e tinha apenas um anel de justos não deixaremos de fazê-lo.
ouro na mão. Giges pegou o anel e foi embo- De fato, todos os homens creem que a injustiça
ra. Mais tarde, tendo os pastores se reunido, lhes traz individualmente mais vantagens do que
como de hábito, para fazer um relatório sobre a justiça, e têm razão, se levarmos em conta os
os rebanhos do rei, Giges compareceu à reunião adeptos dessa doutrina. Se um homem que tives-
usando o anel. Sentado entre os pastores, girou se tal poder não consentisse nunca em cometer
por acaso o anel, virando a pedra para o lado de um ato injusto e tomar o que quisesse de outro,
dentro de sua mão, e imediatamente tornou-se acabaria por ser considerado, por aqueles que co-
invisível para os outros, que falavam dele como nhecessem o seu segredo, como o mais infeliz e
se não estivesse ali, o que o deixou muito es- tolo dos homens. Não deixariam de elogiar publi-
pantado. Girou de novo o anel, rodando a pedra camente a sua virtude, mas para disfarçarem, por
para fora, e tornou-se de novo visível. Perplexo, receio de sofrerem eles próprios alguma injustiça.
repetiu o feito para certificar-se de que o anel Era isso o que tinha a dizer.
PLATÃO. A República. Livro II. Trad. Danilo Marcondes. In: Textos básicos de ética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. [359b-360ª]. p. 31-32.

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Agora, leia o quadro que sintetiza as quatro virtudes cívicas, de acordo com Platão.

ALMA CAMADAS SOCIAIS VIRTUDES

Para essa camada social, que é expressão do


Concupiscível Os comerciantes e artesãos elemento mais baixo de nossa alma tripartida, a
apetitiva produzem os bens virtude solicitada é a em e ou moderação.
(aspecto mais econômicos e cuidam do Essa virtude é conquistada através da força de
elementar). sustento da cidade. vontade que governa sobre as paixões cegas, e
consegue sua submissão.

Para essa camada social, que é expressão do


Irascível
elemento intermediário de nossa alma tripartida, a
(colérica, volitiva).
Os soldados cuidam virtude solicitada é a da em, da fortaleza em
Homens assemelhados
da defesa cidade. agir contra os impulsos primários, cuja tendência
a cães de raça.
é sempre a desorganização, o excesso ou a falta,
Mansidão e ousadia.
formas viciadas de viver.

Para essa camada social, expressão do elemento


Racional
supremo e imortal de nossa alma, a virtude
Elemento mais nobre. Os filósofos são os
solicitada é a e i prática, a prudência
Faculdade do governantes da cidade.
decorrente da verdadeira ciência, da contemplação
pensamento.
do bem ideal, da verdade, do belo.

A i é a harmonia que se estabelece entre essas três virtudes. A justiça perfeita


se realiza quando os cidadãos e as camadas sociais desempenham da melhor
maneira as funções que lhes são próprias por natureza ou por lei.

PROBLEMATIZANDO
1. No texto que apresenta o mito do anel de Giges, Glauco afirma que os homens praticam a justiça
somente por medo do castigo que poderá vir se forem injustos.
• Como você se posiciona diante dessa afirmação? Discuta sua resposta com os colegas, procurando
justificá-la.

3. DA DEMOCRACIA, DA DEMAgOgIA E DA TIRANIA


Sugerimos que os estudantes, antes de ler o texto, escrevam duas palavras que definam, na visão de cada um, “democracia”, “demagogia” e “tirania”. No fim do estudo do tema, retome as
palavras que escreveram e analise de que maneira essas definições adquiriram novos significados.
LUCIANA WHITAKER/PULSAR IMAGENS

A expressão grega dêmos, que está na raiz


de democracia, refere-se, originariamente, ao
povo, à multidão que não tinha os direitos da
cidadania grega, seja por serem vistos como
“naturalmente” inferiores, seja por motivos
de marginalização política. Em diálogo com
Adimanto, Sócrates assim se expressa:

Eleitora vota em urna eletrônica, Rio de Janeiro (RJ), 2010.

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Pois, a meu ver, a democracia surge quando to, mesmo que a lei proíba ser magistrado ou
os pobres, tendo vencido os ricos, eliminam juiz, isso não evita que se possam exercer essas
uns, expulsam outros e dividem por igual com funções, se se desejar. À primeira vista, não é
os que ficam o governo e os cargos públicos. E uma condição divina e deliciosa? [...]
devo dizer, na maior parte das vezes, estes car- A mansidão da democracia para com certos
gos são atribuídos por sorteio.[...] Em primeiro condenados não é elegante? Não viste ain-
lugar, não são eles livres, e a cidade não é sobe- da num governo desta natureza homens fe-
jamente livre e de linguagem sincera e se pode ridos por uma sentença de morte ou de exílio
fazer o que se quer? [...]. Em todo lugar onde continuarem na sua pátria e circularem em pú-
tal liberdade impera, cada um organiza a vida blico? [...]
como melhor lhe convém. [...] Não é o desejo insaciável daquilo que a demo-
Nesse Estado não há obrigação de mandar se cracia considera o seu bem supremo [a liberda-
não se for capaz de tal, nem de obedecer se não de] que a perde? [...] Não é o desejo insaciável
se quiser, assim como a fazer a guerra quando desse bem, e a indiferença por todo o resto, que
outros a fazem, nem a ficar em paz quando ou- muda este governo e o obriga a recorrer à tira-
tros ficam, se não se pretender a paz. No entan- nia?
PLATÃO. A República. Trad. Livro VIII. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 273-280.

PROBLEMATIZANDO
1. Embora estejamos separados por milênios, você consegue vislumbrar alguma semelhança entre o
que Platão fala da democracia e a forma como a democracia existe em nosso país? Quais passagens
do texto mantêm-se atuais? Discuta sua resposta com os colegas, procurando justificá-la.
2. Tanto para Platão como para Aristóteles, a educação política assume papel fundamental, uma vez
que a qualidade da vida na pólis depende da vida virtuosa do cidadão, que requer ser educado para
a prática da justiça e para a discussão dos valores que promovem o bem comum.
• De que modo poderíamos melhorar a educação política no Brasil? Quais as estratégias que teriam
grandes possibilidades de êxito, considerando a realidade brasileira?

Recolha o saber prévio dos alunos sobre a melhor forma de governo ou regime político. Haverá lugar, nas
4. FORMAS DE gOVERNO sociedades contemporâneas, à aristocracia intelectiva e para a crítica à democracia propostas por Platão?

Sendo a condição humana essencialmente social, feita para a vida em sociedade civil, é preciso que haja
um governo que considere essa condição e tudo faça para promover o bem comum, a vida boa em socieda-
de. São muitas as formas que o Estado pode receber, ou seja, diferentes constituições, diferentes estruturas.
Qual é a melhor estrutura? Quem deveria governar a cidade?
Aristóteles, em A política, Livro IV (1289 b), relembra as análises feitas no Livro III (1279 a), em que es-
tabeleceu seis formas de governo, três delas corretas, pois buscam o bem comum, e três corruptas ou des-
viadas, voltadas para interesses particulares. As formas políticas retas são: monarquia, aristocracia e politeia.
Quanto às desviadas correspondem, respectivamente: tirania, oligarquia e democracia.
Se para Platão a melhor forma de governo era a sophocracia, a preferência de Aristóteles era por uma
forma de governo misto, uma república que atenderia ao critério da estabilidade e da durabilidade do po-
der, evitando os extremos de um governo constituído exclusivamente por ricos ou por pobres. De acordo
com Aristóteles, a politeia é a melhor constituição, por combinar três razões: acessibilidade à maior parte
dos homens, respeito às leis e bem comum.

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OUTROS OLHARES
1. No terreno da ética e da política, concentraremos nosso olhar sobre a qualidade da democracia
brasileira. O texto a seguir, do sociólogo Marco Aurélio Nogueira, torna-se uma excelente mediação
para pensarmos a política em seu sentido mais genuíno e, também, em suas formas de expressão na
realidade brasileira.

Mais política dos cidadãos


No mundo do capitalismo globalizado e da ticipar e interferir na tomada de decisões, como
modernidade radicalizada, a política também preocupação com a vida comum e a boa socie-
parece destinada a girar em falso, a mostrar pou- dade –, essa não padece do mesmo mal, nem se
ca eficácia e a produzir mais problemas que so- ressente de falta de prestígio, embora seja despo-
luções, fato suficiente para que seja vista, pelos jada de potência e efetividade. [...]
cidadãos, como um ônus. Um mal necessário. No mundo social fragmentado, individualiza-
Ela está gravemente posta em xeque pela vida e do e meio fora de controle em que se vive, é
pelas disposições éticas hoje prevalecentes. muito mais lógico participar e defender interes-
Há vários aspectos a serem considerados nessa ses do que se fazer representar. [...]
discussão. Primeiro: não é a política como um É na estrada da participação que estão as maio-
todo que está vazia, sem consensos e com pouca res esperanças de recomposição social e recu-
legitimidade. O que está em estado de sofrimen- peração política. Se a vontade de participar for
to é a política institucionalizada – os sistemas, devidamente politizada – isto é, se a luta em
as regras, a organização da democracia, as leis, defesa de direitos e a disposição participativa
os partidos – e mais ainda aquilo que podemos das pessoas forem vinculadas a um desenho de
chamar de “política dos políticos”, qual seja, vida coletiva – isso não somente dará corpo
praticada pelos políticos, à moda deles, focada e consciência à democracia, como também “re-
na conquista e no manejo do poder. A política generará” a representação. [...] Precisamos, em
como atividade dos cidadãos – como luta por suma, de mais “política dos cidadãos” e menos
direitos, como interesse cívico, vontade de par- “política dos políticos”.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. A reforma política, entre a expectativa e o silêncio. In: Governo do Estado de São Paulo. Fundação do Desenvolvimento Administrativo.
Políticas públicas em debate. Ciclo de seminários. Seminário Reforma Política. São Paulo, 10 ago. 2010.

• Justifique o título do texto.


• Qual é o caminho para a recuperação da política em seu sentido mais genuíno?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir.

Não é o desejo insaciável daquilo que a democracia considera o seu bem supremo [a liberdade] que
a perde? [...] Não é o desejo insaciável desse bem, e a indiferença por todo o resto, que muda este go-
verno e o obriga a recorrer à tirania?
PLATÃO. A República. Livro VIII. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 280.

• Redija um texto apresentando a crítica platônica à democracia e sua teoria da melhor forma de
governo.

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2. Leia os trechos que seguem.

[…] nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe natural-
mente pode formar um hábito contrário à sua natureza.
[...] Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a temperança, a bra-
vura, etc. […]
[…] no que tange às ações existe excesso, carência e um meio-termo. Ora, a virtude diz respeito às
paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-
-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são características da virtude. Em
conclusão, a virtude é uma espécie de mediania.
[…] o excesso e a falta são características do vício […].
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania
[…].
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro II. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural. 1991. (Os pensadores).

• Com base nesses trechos e em outras informações sobre a ética e a política aristotélica, justifique a vir-
tude como uma disposição do caráter consistente na mediania, relacionando-a com a aptidão natural.

PENSANDO CONCEITUALMENTE VIRTUDE


Etimologicamente, a palavra "virtude" tem nar-se cada dia melhor. Com isso, afirma-se que
origem na expressão grega areté. Desde a ética ninguém nasce virtuoso. Sem a educação e o cul-
aristocrática da Grécia Arcaica, inspirada nas epo- tivo, os dons e as potencialidades com os quais
peias de Homero, Ilíada e Odisseia, areté refere-se nascemos morrerão sem amadurecer e frutificar.
à excelência de humanos e de não humanos, deu- Ainda no contexto da filosofia grega clássica,
ses e animais. Nesse contexto, ela é atributo de a concepção de virtude tem relação com a concep-
nobreza. Prudência e astúcia, força e coragem são ção antropológica, segundo a qual o que define o
atributos nobres, que solicitam também o sentido homem é a sua alma racional. Em decorrência dis-
de dever moral, de conduta reta. so, virtude implicará o governo da razão sobre os
De acordo com Aristóteles, a virtude é uma impulsos ligados à dimensão sensível. Para Aristó-
resultante, uma habilidade ou um caráter que teles, a virtude pressupõe esforço e desse esforço
adquirimos, mediante a educação e o hábito de poderá resultar uma nova orientação para a vida,
cultivar, com disciplina, empenho e determinação, poderá se formar uma nova disposição de caráter.
os dons, as aptidões e as potencialidades que exis- Nessa dinâmica, há virtudes éticas e dianoéticas,
tem em nós. Dessa maneira, a virtude é resultado práticas e teoréticas, exemplificadas na prudência
das disposições morais e da luta interior por tor- e na sapiência.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE LEITURAS
ARISTÓTELES. A política. Trad. Roberto Leal Ferreira. PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São
São Paulo: Martins Fontes, 2002. Paulo: Nova Cultural, 2000.

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4
Eixo Temático

ARTE E
ESTÉTICA

obre:
e rs
d
en

pr
ia
va
• A tragédia grega como veículo de
questionamento político.
Você

• A crítica da poesia em Platão.


• A relação da contemplação das ideias
pelo homem com o belo.
• A ação poiética como fazer humano que
visa à produção de um artefato.
• A arte na hierarquia dos saberes de
Aristóteles.
• A imitação (mímesis) em Aristóteles como
um ato de criatividade.

Sugerimos propor aos estudantes que


conversem sobre como definem os conceitos
de arte e de estética.

Temas:
1. A tragédia grega: na passagem da 4. Arte e técnica: a dimensão poiética
aristocracia para a democracia 5. Experiência, arte e ciência
2. A filosofia grega e a poesia 6. Mímesis e kátharsis
3. O belo

Neste eixo temático sobre a relação entre filosofia e arte na Grécia Clássica abre-se a perspectiva de um projeto interdisciplinar de reflexão filosófica em torno do poder da imagem: Qual
é a relação entre imagem e conhecimento? A arte nos afasta da filosofia ou pode ser caminho filosófico? A arte se restringe à imitação da realidade? O livro O que é arte?, de Jorge Coli, é
uma oportunidade de introdução ao tema.

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GÖLIN DOORNEWEERD/SWIJNENBURG/FREEIMAGES.COM
1. A TRAg DIA gREgA

Antigo teatro em Atenas,


parcialmente restaurado,
Grécia, 2015.
Na visão platônica, a arte é
uma imitação da realidade.
Ela está no âmbito do
sensível.

Para nós, na contemporaneidade, a palavra “tragédia”, empregada no sen-


so comum, costuma indicar alguma catástrofe. Diferentemente dessa concep-
ção, para os gregos, tragikós referia-se a uma forma artística na qual eram
representados os grandes homens, os heróis.
O teatro foi uma manifestação cultural criada pela civilização da antiga Grécia.
Nasceu em Atenas, associado ao culto de Dionísio, deus do vinho e das festivi-
dades. As representações teatrais aconteciam ao ar livre, em espaços construídos
para tal fim. Havia dois gêneros de representações, a comédia e a tragédia. Fala-
remos da tragédia.
Esse gênero de espetáculo aborda o tema do destino infeliz do herói. Nele o he-
rói aparece inicialmente no auge de sua vida, com as virtudes da força, da astúcia e
da glória conquistada. Subitamente, depara-se, com o destino que é mais forte do
que ele. Assim acontece com Édipo, rei de Tebas; Agamêmnon, o rei de Micenas; e
com Prometeu, o titã que trouxe o fogo aos humanos. Os poemas de Homero são
uma ótima referência para quem quer conhecer exemplos da bravura desses heróis
em suas batalhas contra o destino.
Na Grécia, no período Arcaico, o monopólio do poder político, religioso e eco-
nômico estava com as famílias aristocráticas. Em 560 a.C., o tirano Pisístrato assu-
miu o poder, por uma espécie de golpe de estado, e governou até o final de sua
vida, em 527 a.C. Embora também fosse um aristocrata, Pisístrato manifestava
uma posição contrária à hegemonia da aristocracia em Atenas.
É sob sua autoridade que o gênero trágico chegou ao auge em Atenas. Ele ins-
tituiu os concursos de tragédias como celebrações públicas. As apresentações de
tragédias aconteciam durante o festival de Dioniso, com pompas e esplendor que
expressavam a grandiosidade de Atenas.
No primeiro dia acontecia a procissão que transportava a imagem de Dioniso,
do templo, que ficava na Acrópole, a um santuário nos arredores da academia
de Atenas. No segundo dia, Dioniso era levado ao teatro, onde aconteciam os
quatro dias de encenações dos concursos de tragédias. Quem participava de todo
esse movimento? Os magistrados e toda a comunidade de cidadãos.

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Claude Mossé, historiadora do mundo grego, assim descreve esse processo:

Temos bastante informação sobre como se processavam os concursos dramáticos. Todo ano o Ar-
conte, um dos nove magistrados sorteados e que dirigia principalmente a vida religiosa da cidade
designava três poetas trágicos [...] para participar da competição. Cada poeta trágico devia apre-
sentar três tragédias e um drama satírico [...]. Era também o Arconte que designava os coregos que
deviam financiar uma parte da representação [...], com efeito, cada corego devia recrutar e pagar o
coro (quinze pessoas) e o flautista. Devia também fornecer as roupas dos coreautas e as máscaras.
Os coregos rivalizavam entre si, porque, também para eles, tratava-se de um concurso em que a
vitória, tal como para os poetas, era motivo de orgulho. Os coregos pertenciam naturalmente às
classes abastadas.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica: de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 162.

Entre os séculos V e IV a.C., surgiram os maiores autores de tragédias que a Grécia conheceu: Ésquilo, Sófo-
cles e Eurípedes. Entre as obras que mais se destacaram temos Édipo Rei e Antígona. No palco, encontraremos
deuses e personagens aristocráticos, definidos pelos seus valores característicos, exemplificados em beleza
física, coragem na guerra e laços de sangue.
É sob o olhar público, no contexto da pólis, que conferia grande valor à palavra, ao argumento, à discus-
são, à resolução, que a tragédia ocupou espaço e suscitou um movimento de participação popular, de defesa
de ideias e de valores. É nesse ambiente espiritual que a tragédia tornou-se um veículo de questionamento
também político.
Embora a matéria e os personagens do drama trágico fossem vinculados à tradição dos heróis míticos, os
valores que a tragédia apresentava ao público eram os da democracia ateniense. Por isso, a resolução do dra-
ma não é dada por um herói. A tragédia traz uma grande lição: os deuses estão sempre presentes lembrando
aos humanos que o lugar deles é na ação politica, na construção de seus destinos.
Vejamos o trecho do texto dos historiadores Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet.

O domínio próprio da tragédia situa-se nessa zona fronteiriça onde os atos humanos vêm articu-
lar-se com as potências divinas, mas onde revelam seu verdadeiro sentido, ignorado até por aqueles
que os praticam e por eles são responsáveis, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e a
ele escapa.
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 17.

Prepare os estudantes para essa reflexão, problematizando a natureza do


gênero “poesia”. Ele pode pertencer ao discurso argumentativo? Ele pode

2. A FILOSOFIA gREgA E A POESIA pretender convencer? Que tipo de linguagem predomina nele? A quais objetivos
um poema pode servir? Essa problematização será favorecida em uma
abordagem interdisciplinar com a área de Linguagens.
Na tradição cultural grega, desde a mitologia, a poesia sempre foi considerada sua principal fonte de
conhecimento, capaz de responder às grandes questões que os humanos se colocavam sobre o sentido
da vida. Por isso, os poetas sempre foram vistos como autoridades supremas.
Nessa tradição, a oralidade constituiu a marca da cultura. Nela, há uma expressão consagrada: “Home-
ro, educador da Hélade”, educador de toda a Grécia. Essa expressão traduz muito bem a concepção que
reinava nessa época, na qual Homero era o maior de todos os poetas e a poesia tinha função educativa
de destaque. Nesse contexto, a educação dos cidadãos acontecia mediante a audição e a memorização de
trechos, especialmente da Ilíada e da Odisseia, proclamados, na esfera pública, por profissionais, os poetas
ou rapsodos, e na esfera particular da família, por anciãos ou pelos pais.
É preciso lembrar que a aceitação do poeta como educador tem relação com um universo de mentalida-
de mítico-religiosa, que marcava o período da Grécia Arcaica (século VII a VI a.C.). Nesse contexto, a palavra
do poeta é de inspiração divina e, portanto, portadora da verdade.

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Contudo, na Grécia Clássica, no contexto de pólis, a palavra que estava em vias
de valorização era a do logos argumentativo, demonstrativo. Isso foi decisivo para
que Platão pudesse realizar a sua crítica às pretensões da poesia. Nesse novo con-
texto, a filosofia, que é por excelência logos argumentativo, vai reivindicar o papel
de paideia, de educadora dos cidadãos.
Nesse clima, no qual a poesia era tida em alta estima, a crítica de Platão passa
a ser algo bem radical e não deve de ter sido fácil fazer frente a essa tradição edu-
cativa da poesia. Na crítica à poesia de Homero, Platão afirma que a poesia pode
ser agradável e encantadora, mas também enganadora. Ou seja, o prazer estético
pode desviar a mente humana do caminho da virtude.
Sendo assim, ao condenar a poesia como imitação, Platão afirma que sua be-
leza é apenas aparente, com ritmo e harmonia que seduzem e trazem desequilí-
brios no espírito.
GÖLIN DOORNEWEERD/SWIJNENBURG/FREEIMAGES

Partenon, em Atenas, 2015.


O Partenon, situado no alto da
cidade, na Acrópole, representa
o auge da arquitetura de Atenas.
Ele é um dos mais importantes
monumentos da Grécia
Antiga. Seu significado, “casa
da virgem” é uma dedicação
a Pallas Athena, deusa dos
atributos guerreiros
e deusa da sabedoria,
guardiã e protetora da
cidade-Estado Atenas.

Vejamos o trecho a seguir.

A imitação está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a uma pe-
quena parte de cada um, a qual, por seu lado, não passa de uma sombra. [...] Porém, se fosse mesmo
versado no conhecimento das coisas que imita, suponho que se dedicaria muito mais a criar do que
a imitar [...]. O imitador não tem nenhum conhecimento válido do que imita, e a imitação é apenas
uma espécie de jogo infantil. [...]
O poema imitador introduz um mau governo na alma da cada indivíduo, lisonjeando o que nela há
de irracional, o que é incapaz de distinguir o maior do menor [...]. E ainda não acusamos a poesia do
mais grave dos seus malefícios. O que mais devemos recear nela é, sem dúvida, a capacidade que tem
de corromper, mesmo as pessoas mais honestas, com exceção de um pequeno número. [...]
E, no que diz respeito ao amor, à cólera e a todas as outras paixões da alma, que acompanham cada
uma das nossas ações, a imitação poética não provoca em nós semelhantes efeitos? Fortalece-as, regan-
do-as, quando o certo seria secá-las, faz com que reinem sobre nós, quando deveríamos reinar sobre
elas, para nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de sermos mais viciosos e miseráveis.
PLATÃO. A República. Livro X. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 325-334.

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Assim, no Livro X de A República, encontramos a reflexão de Platão que destaca os motivos de a poe-
sia não poder ser usada como instrumento de educação política dos cidadãos e, muito menos, de busca
pela verdade. Não se trata, simplesmente, de banir a poesia da cidade. Ela pode apresentar dimensões
positivas. O que não se deve mais aceitar é o status ou o lugar que ela ainda vem tendo na cidade. Platão
afirma que esse papel de formadora do cidadão e de busca da verdade cabe à filosofia, que, portanto,
deverá retirar a poesia desse âmbito.
O que há de reprovável nos poetas, para Platão, é o fato de eles imitarem tudo, fingirem ser qualquer coisa,
qualquer ser. Esse tipo de poeta não será aceito na cidade ideal de Platão. Contudo, se o poeta for um imita-
dor somente de homens bons e nobres, ele poderá permanecer, pois nesse caso, ele exerce um papel positivo.
Ao expulsar da cidade o poeta imitador e aceitar o poeta que seja narrador de histórias mais austero e menos
aprazível, compreende-se a delimitação dessa expulsão. Trata-se de livrar a cidade daqueles poetas que sabem
somente agradar e sob seu agrado a vida da cidade perde nas virtudes ética e política.
Assim, se a poesia for instrumento capaz de motivar e valorizar a virtude ela poderá permanecer na cida-
de. Mas, sua tendência é ao vício, ao excesso ou à falta, à irracionalidade. Em suma, o grande argumento
está no fato de que a poesia abre muitas brechas para que a razão se perca.
A poesia, considerada uma mentira em palavras, recorre às ficções, a imagens para persuadir ou gerar
determinados sentimentos e comportamentos. Assim, ela poderá até ser útil para muitas coisas, como
por exemplo gerar um sentimento político de unidade. As palavras mentirosas podem até transformar-se
em nobres mentiras como, por exemplo, no médico que usa de palavras mentirosas para acalmar o pa-
ciente. Com isso, acaba proporcionando uma ficção benéfica. Contudo, no terreno filosófico, do logos
argumentativo, ela deve ser evitada, pois confunde os espíritos. É preciso, então, expulsar da poesia o
que ela tem de irracional e de mimético, de simples imitação generalizada, de cópia, aparência de real.
Portanto, trata-se de operar uma inversão. Determinada forma de poesia poderá continuar a existir,
desde que com função subordinada, auxiliar. Se for possível harmonizar a poesia com a vida virtuosa, não
há porque censurá-la nesse aspecto. Assim, permanece a possibilidade da presença de uma determinada
forma de poesia na cidade.

PROBLEMATIZANDO
1. A poesia exerce um encantamento que pode afastar o ser humano do caminho da racionalidade e
da virtude. Como você se posiciona diante dessa concepção platônica?

3. O BELO
MARIE-LAN NGUYEN/MUSEU DO LOUVRE
(CAMPANA COLLECTION, 1861), PARIS, FRANÇA
Partindo da ideia de arte como um conjunto de conhecimentos
voltado para a produção de algo, o artista apresenta uma habilida-
de prática no terreno da imitação, da cópia, da reprodução. O ar-
tista imita, pois, falta-lhe o conhecimento das essências. Seu fazer
produtivo está voltado à manipulação de objetos, de sentimentos
e de afetos.
Na pintura, o artista retrata uma imagem. Portanto, é cópia, imita-
ção. Essa atitude não tem relação com a ciência das essências, que é
a atividade mais nobre para um homem. Dessa forma, a arte está no
campo do mutável, do movimento, das aparências.

Cena de banquete ao som de música de aulos (c. 450 a.C.), de Euaion. Cerâmica de
figuras vermelhas.
A arte grega traz a dimensão naturalista, da reprodução mais próxima possível da
realidade sensível.

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VOC SABIA
Natureza-morta é um gênero das artes visuais,

MUSEO ARCHEOLOGICO NAZIONALE, NÁPOLIS, ITÁLIA


comum desde a Antiguidade, quando a arte exercia
função naturalista, de representação da realidade.
Nesse gênero, toma-se como conteúdo de represen-
tação objetos inanimados, retratados em suas for-
mas, cores, composições e texturas. Historicamente,
esse gênero de arte exerceu importante papel, à me-
dida que servia como fonte documental, que permi-
tia o registro e o acesso a descobertas.

Natureza-morta em afresco (c. 63-79 d.C.), de autor


desconhecido, retirado das ruínas de Pompeia, na Itália.

No racionalismo platônico, o foco está na busca das essências, no imutável.


Nessa atividade teorética reside a vocação humana. Portanto, é preciso afastar-se
do âmbito sensível, fonte de engano. Dessa forma, a excelência humana está em
sua perfeição, na beleza de sua alma refinada pela reflexão, dominando sobre a
impulsividade passional.
Com efeito, o belo e o bem andam juntos, tem relação com a finalidade ou a
função para o qual a natureza dotou o ser. Contudo, a beleza é uma ideia eterna,
que não se encontra no mundo sensível. A beleza é o brilho ou o esplendor da
verdade, que existe no âmbito inteligível, ou suprassensível. Por já haver con-
templado essa ideia de beleza, antes da encarnação na matéria, a alma humana
é capaz de reconhecer sombras dessa beleza em corpos materiais, que trazem
aparências da ideia de beleza. Por isso, a alma esclarecida não se engana e não se
apega a essas aparências, pois ela sabe que a verdadeira realidade está em outra
dimensão. É isso que a alegoria da caverna traduz muito bem.
Portanto, quanto mais o homem estiver voltado para a contemplação das ideias,
para a contemplação do belo, maior será o prazer que realiza a alma e mais bela
se tornará essa alma. Em decorrência, maior será o poder da mente na lapidação
do corpo, evitando os extremos do excesso e da falta. Com isso ela buscará sempre
maior equilíbrio, harmonia, proporcionalidade. Tornar-se-á cada vez mais bela.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. A alma humana encontra beleza na atividade teorética. Justifique essa afir-
mação, sob a perspectiva do racionalismo grego.

4. ARTE E T CNICA: A DIMENSÃO POI TICA


A palavra “arte” deriva da forma latinizada do grego techne, que significa um
corpo de conhecimentos e aptidões organizados para a produção de certos artefa-
tos, como as artes do sapateiro ou do couro. No pensamento dos filósofos pré-so-
cráticos, especialmente em Demócrito (século V a.C.), já encontramos essa noção.
Aristóteles desenvolveu uma abordagem sobre a arte dando ênfase à sua di-
mensão produtora de algum objeto. O termo grego para essa atividade é poiesis,
vem do vocábulo poiein, que significa fazer, produzir. Por isso, uma ação poiética
é aquela que se refere ao fazer humano que tem em vista a produção de um

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artefato, de um móvel, por exemplo. Para realizar essa ação, o meio
TROTZ (CC BY-SA 3.0)

será a técnica, a techne. Dessa forma, a razão poiética é uma razão


que funciona como serva, a serviço de algo fora dela mesma. Esse
é o sentido primeiro que conhecemos de arte.
Diferentemente desse primeiro e mais básico nível do campo
produtivo, do poiesis, os gregos estabelecem o âmbito da práxis, da
prática, no qual se realizam as dimensões da ética e da política, nas
quais se decide a felicidade humana. Nesse nível, a razão que será
valorizada não será a razão serva do produzir, mas a razão teorética,
a razão intuitiva, que capta as essências.
Recordando aqui a concepção platônica, nesse terreno da ativida-
de manual e mecânica acontece a imitação, a cópia, a reprodução. É
o âmbito do sensível. Dessa forma, a arte não ultrapassa a dimensão
das aparências. Platão insiste na passividade da imitação artística que
fornece uma modalidade de vida prazerosa que afasta o ser humano
do caminho de acesso ao conhecimento verdadeiro, pois o fixa na
mutabilidade, na metamorfose, nas variações da forma.
A função naturalista da arte (presente na Grécia Clássica) reme-
Monumento do sapateiro, localizado na
Praça 25 de abril, em São João da Madeira, te-nos ao mundo exterior, natural e cultural, como uma janela, fa-
Portugal. zendo referência aos objetos, deixando entrever uma realidade que
A arte está ligada à técnica da manipulação está fora do mundo artístico, nos objetos representados. Em con-
mais precisa possível de um instrumento na formidade com essa função, uma obra é bela quando sua represen-
produção de um artefato. tação permite clara identificação do objeto ou do tema, além de ser
portadora de profundo poder de persuasão.

LEV LEVIN/SHUTTERSTOCK
Fonte de Pallas Athena,
Áustria, 2014.
As esculturas gregas, sendo
arte da imitação, da cópia,
trazem acentuado realismo,
que aparece nos detalhes:
nervos, músculos, veias,
expressões muito vivas de
sentimentos.

PROBLEMATIZANDO
1. De quais critérios devemos nos servir para afirmar que uma obra de arte é
bela? Qual é o critério mencionado pelo racionalismo grego para identifi-
car beleza em uma obra de arte?

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5. EXPERI NCIA, ARTE E CI NCIA
No Livro I da Metafísica, Aristóteles afirma que o ser humano produz cinco tipos ou graus de conhecimen-
to. A arte integra um desses conhecimentos, mais especificamente, o terceiro tipo na escala.
Em uma abordagem diferente de seu mestre Platão, Aristóteles indica que nosso conhecimento começa
pelos sentidos e não por algum contato de nossa alma com uma dimensão espiritual, das ideias. Nesse pri-
meiro tipo de conhecimento, também comum aos animais, tudo se inicia pela sensação. Da sensação nas-
cem a percepção e a memória. Da memória brota a possibilidade da experiência empírica, que caracteriza
o segundo tipo de conhecimento humano, que é um conhecimento particular que não pode ser ensinado,
pois desconhece o porquê das coisas.
A arte é o terceiro tipo de conhecimento: é um saber que está acima da dimensão da experiência, pois
implica o raciocínio. No fragmento a seguir, Aristóteles discorre sobre isso:

Nós julgamos que há mais saber e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os
homens de arte mais sábios que os empíricos [...] Com efeito, os empíricos sabem o “quê”, mas não o
“porquê”. No passo que os outros sabem o “porquê” e a causa.
Por isso nós pensamos que os mestres de obras, em todas as coisas, são mais apreciáveis e sabem mais
que os operários, pois conhecem as causas do que se faz [...]. Não são, portanto, mais sábios os mestres
por terem aptidão prática, mas pelo fato de possuírem a teoria e conhecerem as causas.
Em geral, a possibilidade de ensinar é indício de saber; por isso nós consideramos mais ciência a
arte do que a experiência, porque [os homens de arte] podem ensinar e os outros não. Além disto,
não julgamos que qualquer das sensações constitua a ciência, embora elas constituam, sem dúvida,
os conhecimentos mais seguros dos singulares. Mas não dizem o “porquê” de coisa alguma, por
exemplo, porque o fogo é quente, mas só que é quente.
ARISTÓTELES. Metafísica. Livro I. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2. ed. 2012. p. 42-43.

No texto a seguir, Aristóteles apresenta a sua concepção de arte como conhecimento e como produção,
vejamos:

Na classe do variável incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadas. Há uma diferen-
ça entre produzir e agir. [...].
Ora a arquitetura é uma arte, sendo essencialmente uma capacidade raciocinada de produzir, e nem
existe arte alguma que não seja uma capacidade desta espécie, nem capacidade desta espécie que
não seja uma arte, segue-se que a arte é uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocínio.
Toda arte visa à geração e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma
coisa que tanto pode ser como não ser, e cuja origem está no que produz, e não no que é produzido.
Com efeito, a arte não se ocupa nem com as coisas que são ou que se geram por necessidade, nem com
as que o fazem de acordo com a natureza (pois essas têm sua origem em si mesmas).
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro VI. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 103-104.

Com esse recurso de fazer analogias com a arte produtora, Aristóteles abre caminho para uma nova con-
cepção da arte, de sua utilidade. Percebemos que a imitação, como mímesis, pode ser positiva, colaborando
para que o homem siga no caminho da virtude.
No quadro a seguir apresentamos, de modo sintético, a hierarquia dos saberes, tendo como um de nos-
sos objetivos a identificação da arte nessa escala de conhecimentos.

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MUSEU NACIONAL ROMANO, ROMA, ITÁLIA
HIERARQUIA DOS SABERES

1 – SENSAÇÃO (aisthesis): dimensão sensível (sentido da


visão). (Não sabe o porquê das coisas.)

2 – EXPERIÊNCIA (empeiria): (união da sensação e da me-


mória) (Não se sabe o porquê). É particular. Não pode ser
ensinada.

3 – ARTE: capacidade de fazer algo (saber o porquê de


algo). Arte é conhecimento universal. Pode ser ensinada.
Contudo, não se ocupa com o princípio que a causou.

4 – CIÊNCIA: ocupa-se com a causa que faz a coisa ser


o que ela é. Além disso, busca a demonstração do nexo
interno das coisas, para compreender o princípio de tudo.
Contudo, ela está subordinada aos princípios anteriores,
deles depende.
Discóbolo de Lancellotti (séc. II), cópia romana
da obra de Míron. Escultura em mármore.
A escultura representa um atleta concentrado,
5 – SAPIÊNCIA (sophia) = FILOSOFIA PRIMEIRA: união da
em preparação para o arremesso de disco.
ciência com a intelecção. Capacidade mais evoluída do ser Nessa representação que a arte faz, percebe-
humano: intuir o ser das coisas por meio do intelecto. É -se a harmonia que resulta da simetria das
forma suprema do saber, pois apreende o princípio, a cau- proporções corporais. No naturalismo, a beleza
sa, o porquê das coisas serem o que elas são. da obra está na perfeição da representação.

6. MÍMESIS E KÁTHARSIS
Retomando o pensamento aristotélico, vimos que a arte está em um nível acima da experiência empírica,
pois permite o ensino. A arte, como imitação, é também aprendizagem e está no caminho que pode possi-
bilitar aos seres humanos a progressão na busca pelo conhecimento.
Na obra Poética, Aristóteles se refere à mímesis e à kátharsis (purgação, purificação) em sentido positivo.
Vejamos.

É pois a tragédia imitação de um caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem orna-
mentada e com as várias espécies de ornamento distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação
que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que suscitando o terror e a piedade, tem por
efeito a purificação destas emoções.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 205.

Para Aristóteles, a imitação é uma das dimensões que integra a natureza humana. Na mímesis existe
um aspecto positivo: o resgate de valores, de recriação de uma situação nobre. Portanto, há um aspecto
de mediação simbólica que faz a imitação não ser somente passividade, mas criatividade, vinculada ao
ato de conhecer.

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CRIBEN/SHUTTERSTOCK

Atrizes da companhia
Teatro Tribueñe durante
encenação em um festival
de teatro, Ilhas Canárias,
2011.
No teatro, a imitação
adquire um grau mais
elevado, podendo
chegar à purificação das
emoções.

No que tange à kátharsis, estamos diante de um efeito produzido pela tragédia na alma do público. Na
conclusão da tragédia, as emoções do público passam por uma purificação, pela vivência da compaixão.
Essas emoções adquirem tal força de catarse que podem ser comparados à arte da medicina, gerando um
sentimento de cura, de agradável alívio após fortes abalos emocionais. E isso pode ser favorável ao homem,
no caminho evolutivo de seu espírito.
Em suma, em Aristóteles o que molda a excelência da existência humana não é o campo do produzir, mas
a dimensão ética e política. Por isso, o foco deverá estar no cultivo das virtudes da vida política: a prudência,
a justiça, a sabedoria.

PROBLEMATIZANDO
1. No início do século, com o surgimento da fotografia, ela passará a ser a forma de arte mais usada
para a representação, cópia ou reprodução da realidade. Com isso, você julga que a atividade ma-
nual do artista no desenho copista da realidade perdeu valor? Ou você julga que nela permanece
algo que deve ser resgatado e mais valorizado? Discuta sua resposta com seus colegas, procurando
justificá-las.
2. A catarse ou a liberação das emoções pode desempenhar um papel fundamental na cura do ser hu-
mano ou para o seu equilíbrio psíquico. Justifique essa afirmação.
3. A catarse pode ser também instrumento de alienação e massificação cultural? Justifique.
4. Considerando a diversidade cultural do povo brasileiro, quais são as expressões catárticas mais co-
muns em sua região?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. O conceito de belo ou de beleza é marcado pela historicidade. Assim, recebeu diferentes concepções
ao longo da história. Na Grécia Clássica, essa visão está relacionada tanto à função naturalista da
arte, quanto à dimensão idealista do racionalismo grego.
• Redija um texto, explicando essa tese.

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HELENISMO E FILOSOFIA
MEDIEVAL: DA RAZÃO E DA FÉ
ALAMY STOCK PHOTO/LATINSTOCK/ CAPELA SISTINA, MUSEUS E GALERIAS DO VATICANO

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3
Unidade
Unidade

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1
Eixo Temático

AS ESCOLAS
HELENÍSTICAS

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
Você

• A introdução das questões morais na


discussão filósofica.
• A questão da felicidade no período
helenístico.
• As naturezas do prazer em Epicuro.
• As virtudes essenciais para uma vida
harmoniosa e feliz segundo o estoicismo.
• A ética estoica.
• As diferenças entre o ceticismo acadêmico e
pirrônico.
• A busca pela ataraxia no epicurismo,
Sugerimos que você leia com a turma os temas estoicismo e ceticismo.
a seguir com a finalidade de identificar o que
os estudantes já sabem sobre eles e usar esses
conhecimentos prévios como ponto de partida
para a abordagem.

Temas:
1. A passagem da era clássica para a era 3. Estoicismo: ética, destino e liberdade
helenística 4. O ceticismo: conhecimento, suspensão
2. Epicurismo: felicidade e prazer da vida de juízo e serenidade
oculta e moderada

O contexto de destruição da pólis grega e de mergulho na vida privada, que caracteriza as escolas helenísticas, abre-nos a perspectiva de um projeto de reflexão filosófica que tematize os poderes da
meditação; a relação entre o corpo e a mente; a influência da meditação filosófica para uma vida feliz; e a relação entre meditação e cura.

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MUSEU ARQUEOLÓGICO DE NÁPOLES, ITÁLIA
1. A PASSAGEM DA ERA CLÁSSICA PARA A ERA HELENÍSTICA

Mosaico de Alexandre Magno (c. 150 a.C.), de autoria desconhecida. Mosaico de seixos, 272 cm × 513 cm.
Na história, registramos certas revoluções na visão de mundo que marcaram decisivamente o espírito do ser humano. A
grande expedição de Alexandre Magno (334-323 a.C.) foi um desses eventos históricos, que se transformaram em uma
verdadeira revolução no espírito do mundo grego.

Contexto histórico

As conquistas de Alexandre Magno ocasionaram a destruição do antigo e consagrado contexto vital da ci-
dade-Estado, da pólis grega, e fizeram também desmoronar um pensamento muito hegemônico no mundo
grego, até então. Nasce a cosmópolis, a cidade universal. E com ela nasce uma nova filosofia, uma nova
maneira de se relacionar consigo, com o tempo, com os outros.

O período helenístico situou-se entre a morte de Alexandre Magno, que aconteceu em 323 a.C., e a
conquista pelos romanos do Antigo Egito, em 30 a.C. Nesse período a cultura grega se difundiu por todos
os territórios conquistados por Alexandre. É nessa transição entre o apogeu grego e o apogeu romano que
se situou o período helenístico.
Filosoficamente, a mudança de pensamento foi radical. Não há mais o espaço da pólis, da discussão
política entre os homens livres, na praça. O novo contexto cosmopolita, da cidade universal, reúne gregos e
não gregos na mesma condição de súditos. As decisões não são mais tomadas na praça pública, em meio
às discussões, mas, no império, bem longe do cotidiano da vida das pessoas.

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Longe do centro das decisões políticas e delas ausente, o pensamento filo-
sófico, nesse período helenístico, volta-se mais uma vez para as questões mo-
rais e para o problema da felicidade humana, assim como já havia ocorrido
na passagem do naturalismo para o humanismo grego, especialmente com o
pensamento de Sócrates. Na retomada de questões focadas na interioridade da
alma humana, da angústia da existência, e do mistério do mal e da morte, as
escolas helenísticas servem-se da filosofia como instrumento de conforto e de
orientação moral.
Nesse contexto, nasce um acentuado individualismo, no qual as preocupações
centrais giram em torno da vida privada do indivíduo. A filosofia torna-se uma ten-
tativa de responder às angústias do indivíduo, em proporcionar à pessoa orientações
para sua salvação interior, para a busca da paz, da ataraxia, ou seja, da ausência de
perturbações. Este será o espírito das grandes filosofias da idade helenística: epicu-
rismo, estoicismo, ceticismo.
Vamos, incialmente, considerar algumas contribuições do epicurismo.
Converse com os estudantes sobre o processo que envolve as relações entre democracia, ocupação do espaço público, distanciamento dos cidadãos
das decisões políticas e crescimento do individualismo.

2. EPICURISMO: FELICIDADE E PRAZER DA


VIDA OCULTA E MODERADA
Com Epicuro de Samos (341-270 a.C.), aparece de forma mais sistemática uma
MUSEU BRITÂNICO, LONDRES, REINO UNIDO

primeira proposta de vida para as exigências espirituais desse novo tempo de in-
dividualismo e distanciamento da vida política. Epicuro, desde cedo, dedicou-se à
filosofia. Em Atenas, ele comprou uma pequena propriedade na qual aconteciam
as reuniões e discussões filosóficas. Seus amigos tornaram-se seus discípulos. Epi-
curo expôs sua doutrina em um grande número de escritos, muitos deles perdidos.

A filosofia e a vida prazerosa


Das reuniões e discussões, vinham palavras que se dirigiam potencialmente a
todos, uma vez que todos aqueles que buscam a paz de espírito têm direito a ela
e têm condições de atingi-la, desde que se voltem para si mesmos. Em Epicuro,
encontramos uma ética voltada para a busca do prazer. Contudo, este não é
entendido como o compreendemos a partir de um senso comum que diz prazer
Busto de Epicuro. pelo puro prazer, máximo de prazer. É um conceito diferente de prazer.
Nessa concepção, o prazer é entendido em dois sentidos fundamentais. Em
primeiro lugar, como aponia, que significa ausência de dor; em segundo lugar,
como ataraxia, compreendida como serenidade de espírito, tranquilidade de
alma, paz interior. Trata-se de uma ética que convida a uma vida marcada pela
capacidade de resistir e suportar a dor, o medo e o sofrimento que estão sempre
à nossa volta.
Epicuro, na Carta a Meneceu, aborda a maneira de como o ser humano
deve encarar a vida à medida que procura a felicidade. Qualquer pessoa, em
qualquer idade, pode buscar a felicidade, dedicando-se à filosofia. Basica-
mente, para sermos felizes seriam necessárias três coisas: liberdade, amizade
e tempo para meditar.
Dessa forma, para Epicuro, a filosofia é a arte da vida que possibilita co-
nhecimento do mundo e, mediante esse conhecimento, busca libertar o ser
humano dos grandes temores que ele tem a respeito da finitude da existência.

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Verdadeiros e falsos prazeres
Segundo Epicuro, os nossos prazeres são de três naturezas: em primeiro lugar, os prazeres naturais e neces-
sários: comer, beber e dormir, quando se tem necessidade. Em segundo, os prazeres igualmente naturais, po-
rém não necessários: beber vinhos, comer em pratos sofisticados, dormir em lençóis de seda. Essa dinâmica do
desejo não tem fim; segui-la, sem discernimento, implica o fim da paz interior. Em terceiro lugar, Epicuro fala
dos prazeres que não são nem naturais, nem necessários. Refere-se apenas aos que criamos para nós mesmos
e dos quais nos tornamos escravos: o luxo e a riqueza. Dessa forma, Epicuro combate a opção pelo prazer
desordenado e desmedido e tem plena consciência do preço que se paga ao se pretender seguir, sem
ponderação, as orientações do desejo: a alienação da liberdade, ou seja, uma vida na qual o sujeito se
torna servo de suas paixões ou de seus impulsos.
Com essa busca pela ataraxia, pela paz interior de uma vida tranquila, o princípio que move o pen-
samento e as ações de Epicuro solicita o ocultamento da vida, a retirada para a vida privada. Dessa
forma, percebemos uma resposta à nova situação política, na qual o homem deixa de ser cidadão e as
preocupações giram em torno da individualidade. Nesse contexto, a política torna-se sinônimo e fonte
de agitação. Enveredar na política é desperdiçar um precioso tempo que poderá ser investido no cuida-
do da própria alma. Dessa forma, em vez das infindáveis discussões na ágora, na praça pública, Epicuro
propõe o cultivo da amizade, pois não há felicidade sem amizade.
Nessa perspectiva, a valorização do prazer como algo natural e que deve ser buscado com moderação e
equilíbrio, para proporcionar a paz interior, se torna característica fundamental do epicurismo. A austerida-
de faz parte da vida feliz, mas não a supressão dos prazeres e desejos naturais.
Vamos ler alguns trechos desta bela carta de Epicuro a Meneceu.

A carta inicia-se com a exortação ao exercício da filosofia, como condição de vida feliz. O medo da morte,
como o mais aterrador dos males, deve ser superado, uma vez que o que importa não é viver eternamente,
mas a qualidade de uma vida refletida. Embora o prazer seja objetivo da vida, tendo em vista a saúde do
corpo e do espírito, faz-se fundamental o controle dos prazeres, uma conduta comedida, que conduza a
uma vida feliz. Essa sabedoria de vida, que se manifesta no discernimento dos prazeres que merecem ser
vividos e dos que devem ser evitados devido aos desprazeres que ocasionam, constitui a vida do sábio.

Carta sobre a felicidade (a Meneceu)


Que ninguém hesite em se dedicar à Filoso- do esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo
fia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo fazemos para alcançá-la. [...]
depois de velho, porque ninguém jamais é de- Embora o prazer seja nosso bem primeiro e ina-
masiado jovem ou demasiado velho para al- to, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há
cançar a saúde do espírito. Quem afirma que ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quan-
a hora de dedicar-se à Filosofia ainda não che- do deles nos advêm efeitos o mais das vezes de-
gou, ou que ela já passou, é como se dissesse sagradáveis; ao passo que consideramos muitos
que ainda não chegou ou que já passou a hora sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer
de ser feliz. maior advier depois de suportarmos essas dores
Desse modo, a Filosofia é útil tanto ao jovem por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui
quanto ao velho: para quem está envelhecendo um bem por sua própria natureza; não obstante
sentir-se rejuvenescer através da grata recorda- isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo,
ção das coisas que já se foram, e para o jovem toda dor é um mal, mas nem todas devem ser
poder envelhecer sem sentir medo das coisas sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar to-
que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar dos os prazeres e sofrimentos de acordo com o
das coisas que trazem a felicidade, já que, estan- critério dos benefícios e dos danos.

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Consideramos ainda a autossuficiência um doso que investigue as causas de toda escolha e
grande bem; não que devamos nos satisfazer de toda rejeição e que remova as opiniões falsas
com pouco, mas para nos contentarmos com em virtude das quais uma imensa perturbação
esse pouco caso não tenhamos o muito, hones- toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a
tamente convencidos de que desfrutam melhor prudência é o princípio e o supremo bem, razão
a abundância os que menos dependem dela; pela qual ela é mais preciosa do que a própria
tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil Filosofia; é dela que originaram todas as demais
é tudo o que é inútil. [...] virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida
Quando então dizemos que o fim último é o feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não
prazer, não nos referimos aos prazeres dos in- existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.
temperantes ou aos que consistem no gozo dos Porque as virtudes estão intimamente ligadas à
sentidos, como acreditam as pessoas que igno- felicidade, e a felicidade é inseparável delas. [...]
ram o nosso pensamento, ou não concordam Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras
com ele, ou o interpretam erroneamente, mas a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e
ao prazer que é a ausência de sofrimentos físi- com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás
cos e de perturbações da alma. Não são, pois, perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas
bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse viverás como um deus entre os homens. Porque
de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes não se assemelha absolutamente a um mortal o
ou das outras iguarias de uma mesa farta que homem que vive entre bens imortais.
tornam doce uma vida, mas um exame cuida- EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini e
Enzo Del Carratore. São Paulo: Unesp, 2002.

PROBLEMATIZANDO
1. Para Epicuro, felicidade e virtude são conaturais, ou seja, a existência de uma implica a presença da
outra. Discuta sua interpretação dessa tese, apresentando justificativas para essa afirmação.
2. Leia o trecho a seguir.

Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os
naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que
são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria
vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde
do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim
praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo. [...]
Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente
acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem
compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e
fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega
o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por ne-
cessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso instável,
enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

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• Quais são as razões que Epicuro apresenta para considerar o sábio como o homem mais feliz?
• Por quais razões esses motivos apresentados podem ser objetos de censura ou de louvor por parte de
muitos?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir.

Quando dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou
aos que consistem no gozo dos sentidos [...], mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos
e de perturbações da alma.
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Unesp, 2002.

• Com base nesse trecho e em outras informações sobre o epicurismo, explique a natureza dos pra-
zeres humanos e a função da filosofia para a vida feliz.

3. ESTOICISMO: ÉTICA, DESTINO E LIBERDADE


Zenão de Cítio (335-264 a.C.) é considera-

GALLO-ROMAN MUSEUM OF LYO, FRANÇA


do o fundador da escola estoica. O termo “es-
toicismo” tem origem da palavra grega stoa,
que significa pórtico, local onde os membros
da escola se reuniam.
A doutrina estoica foi desenvolvida pelos
discípulos de Zenão, Cleantes de Assos (330-
-232 a.C.) e Crisipo de Solis (280-208 a.C.).
Quais eram suas principais ideias? O pensa-
mento filosófico dos estoicos pode ser pen-
sado com base na metáfora da árvore. Assim
como a árvore, a filosofia também está estru-
turada em três partes: a física corresponde
à raiz; a lógica ao tronco; e a ética equiva-
le aos frutos. Assim como os frutos são as
coisas que mais buscamos na árvore, a ética
receberá maior atenção na filosofia estoica.
Mas não devemos jamais esquecer que assim
como os frutos não existem sem as raízes e
o tronco, a ética também não existe sem a
física e a lógica.
A física refere-se ao mundo natural, ao
Universo, que é um todo solidário, dirigido
por uma razão universal. Na visão estoica, o
Cosmo é um ser vivo, animado e racional, em
Busto de Zenão de Cítio.
que cada parte é governada por uma razão.
O ser humano vive dentro desse Universo, no interior das leis que regem esse macrocosmo. Por isso,
a conduta humana deve buscar uma vida em harmonia com esse Universo. Assim, a felicidade virá
dessa conduta ética, de uma vida em conformidade com as orientações da razão e em harmonia com
o mundo natural.

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Considerando a racionalidade que move o mundo natural, ele é perfeito. Tudo o que acontece nele tem
razão de ser, tudo que acontece existe por uma necessidade racional. Essa concepção estoica de necessi-
dade permite-nos falar em um determinismo ético, que implica em aceitar o curso ou o fluxo inevitável dos
acontecimentos, que obedecem à razão universal que tudo governa.
Com esse pensamento estoico, percebemos a ligação entre física e ética e entre natureza e conduta
do sujeito. Considerando os princípios e os valores da ação humana e tendo como horizonte de busca
a harmonia com o mundo e a vida feliz, os estoicos estabelecem algumas virtudes como fundamentais:
valorizam a inteligência que se manifestaria no conhecimento e no discernimento entre o bem e o mal;
destacam também a coragem que se mostraria no conhecimento e na ação, relacionados ao que deve
ou não ser temido; defendem a indiferença (apathea) e o autocontrole na aceitação dos acontecimen-
tos da vida.
Não devemos confundir indiferença com inação ou passividade. Cada ser humano deve fazer tudo que
estiver ao seu alcance e que julgar, com sua inteligência, que deve ser feito. Contudo, é preciso saber acei-
tar as coisas que acontecem, à luz das quais reconhecemos nossa impotência. Essa concepção ocasionou
interpretações segundo as quais a ética estoica traz uma ideia de destino ou de fatalismo.
A ética estoica é uma ética da felicidade (eudaimonia) que consiste em encontrar a imperturbabi-
lidade da alma (ataraxia), também compreendida como paz interior ou serenidade de espírito. Esse
estado espiritual é possível pela atitude de autocontrole, com a habilidade de não lutar contra o curso
dos acontecimentos.
Considerando a inteligência como aquilo por meio do qual o homem se torna livre e feliz, o sábio não
apreende o seu verdadeiro bem nos objetos externos. Ele
ALTE PINAKOTHEK, MUNIQUE, ALEMANHA

aprende servindo-se desses objetos com uma sabedoria


mediante a qual supera qualquer possibilidade de paixões
ou coisas exteriores governarem sua vida, conquistando a
ataraxia e a autarquia, ou seja, o poder sobre si mesmo, o
autocontrole e a independência interior.
Pensando que o Universo tem uma razão de ser que
escapa às nossas finitas capacidades de compreensão,
existe para nós a inapreensibilidade do mundo. Por isso,
em termos de conhecimento e de emissão de juízos sobre
a verdade de algo, torna-se importante aprender a não
fazer afirmações categóricas sobre a realidade que nos
transcende. Assim, os estoicos trazem a noção de suspen-
são de juízo (époche), de silêncio prudente, que também
está presente no ceticismo, onde aprofundaremos essa
noção.
A partir do século I, encontraremos o estoicismo em
Roma. Um dos representantes mais expressivos desse es-
toicismo latino foi Sêneca (4 a.C.-65 d.C.).
Morte de Sêneca (1613), de Rubens Peter Paul. Óleo Vejamos o trecho a seguir, no qual Sêneca reflete sobre
sobre painel, 185 cm × 154,7 cm. a importância da meditação e da vida reflexiva.

Ouvirá muitos dizerem: – Aos cinquenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre de
meus encargos. E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar
para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente a idade que já não serve para mais
nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca
a dos mortais, de adiar para o quinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir
deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!
SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. Trad. William Li. São Paulo: Nova Cultural, 1993.

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PROBLEMATIZANDO
1. Qual é a tese que Sêneca defende nesse fragmento? Converse com os colegas sobre a sua percepção
dessa concepção de vida.

Entre a vida breve e a vida profunda


No texto a seguir, Sêneca reflete sobre diferentes estilos de vida. A maneira como uns vivem a vida, torna
a vida breve. A forma como outros vivem a vida, torna a vida profunda.

Da brevidade da vida
A maior parte dos mortais, Paulino, queixa com isso; alguns não definiram para onde diri-
da malevolência da Natureza, porque estamos gir sua vida, e o destino surpreende-os esgotados
destinados a um momento da eternidade, e, se- e bocejantes, de tal forma que não duvido ser
gundo eles, o espaço de tempo que nos foi dado verdadeiro o que disse, à maneira de oráculo, o
corre tão veloz e rápido de forma que, à exceção maior dos poetas: “Pequena é a parte da vida
de muitos poucos, a vida abandonaria a todos que vivemos”. [Provável referência a Homero ou
em meio aos preparativos mesmos para a vida. Virgílio]
E não é somente a multidão e a turba insensata Pois todo o restante não é vida, mas tempo. Os
que se lamenta deste mal considerado universal: vícios atacam-nos, e rodeiam-nos de todos os la-
a mesma impressão provocou queixas também dos e não permitem que nos reergamos, nem que
de homens ilustres. Daí, o protesto do maior dos os olhos se voltem para discernir a verdade, man-
médicos: “A vida é breve, longa, a arte”. [Referin- tendo-os submersos, pregados às paixões. Nun-
do-se a Hipócrates] ca é permitido às suas vítimas voltar a si: se por
Não é curto o tempo que temos, mas dele mui- acaso acontecer de encontrarem alguma trégua,
to perdemos. A vida é suficientemente longa e ainda assim, tal como no fundo do mar, no qual,
com generosidade nos foi dada, para a realiza- mesmo após a tempestade, ainda há agitação, eles
ção das maiores coisas, se a empregamos bem. ainda assim são o joguete das paixões, e nenhum
Mas [...] não a empregamos em nada de bom, repouso lhes é concedido. [...]
então, finalmente constrangidos pela fatalida- Quantos não estão pálidos por causa de seus
de, sentimos que ela já passou por nós sem que contínuos prazeres! A quantos a vasta multidão
tivéssemos percebido. de clientes não dá nenhuma liberdade! [...] este
A maioria, que não persegue nenhum obje- é um servidor daquele, que o é de um outro,
tivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma ninguém pertence a si próprio.
vaga e inconstante leviandade, desgostando-se
SÊNECA, Lúcio Aneu. Da brevidade da vida. Trad William Li. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

PROBLEMATIZANDO
1. Sêneca denuncia a falta da meditação como a condição que pode estar na raiz da infelicidade. Você
concorda com essa ideia? Essa reflexão permanece atual?
2. Para Sêneca, a vida das pessoas muito ocupadas é muito breve. Como ele chega a essa conclusão e
que argumento(s) utiliza para justificar esse posicionamento?
3. Explique se é correto afirmar que o estoicismo apresenta e propõe uma ética fatalista e determinis-
ta. Discuta com os colegas a sua reflexão a respeito.

145

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4. O CETICISMO: CONHECIMENTO, SUSPENSÃO
DE JUÍZO E SERENIDADE
Você já ouviu falar em ceticismo ou em su-
PIO3/SHUTTERSTOCK

jeito cético? No senso comum, o ceticismo é


confundido com a atitude de descrença gene-
ralizada ou de dúvida sobre tudo. Contudo, é
preciso um olhar mais atento para compreen-
der a singularidade dessa corrente filosófica e
de postura de vida.
A Academia de Atenas, fundada por Platão
por volta de 387 a.C., conheceu uma fase céti-
ca sob a liderança de Arcesilau ( 315-240 a.C.)
e de Carnéades (219-129 a.C.). Nesse contex-
to, os filósofos comumente se referem a ela
como Nova Academia.
Assim, inicialmente temos um ceticismo
acadêmico, que se diferencia do ceticismo pir-
rônico, inaugurado por Pirro de Élis (360-270
Observe a imagem. É um cálice? São dois rostos que se
a.C.). Dentre as melhores fontes para conhecer
encontram? Se o conhecimento é uma interpretação ou uma
percepção subjetiva, onde fica a verdade? o ceticismo antigo estão os textos de Sexto Em-
pírico, que viveu entre os séculos II e III d.C.
Leiamos um trecho que ajuda na compreensão da distinção existente entre o ceticismo acadêmico e o
pirrônico.

O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou bem encontra o objeto
de sua busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser ele inapreensível ou ainda, persiste
na sua busca. O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia, e é provavelmente por
isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade, outros, que a verdade não pode ser apreendi-
da, enquanto outros continuam buscando. Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade são os
“dogmáticos”, assim são chamados especialmente, Aristóteles, [...] Epicuro, os estoicos e alguns
outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e os céticos
continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática,
a acadêmica e a cética.
SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas. Livro I. Trad. Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar –
Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC--Rio, Rio de Janeiro, n. 12, set. 1997. p. 115.

De acordo com a interpretação feita por Sexto Empírico, a principal diferença entre os acadêmicos e
os céticos está no fato de os primeiros serem representantes de um dogmatismo negativo, pois afirmam
ser impossível encontrar a verdade. Em contrapartida, os céticos continuam suas buscas. Esse sentido
de busca continuada encontra-se na etimologia da palavra grega skepsis, que significa “investigação”,
“indagação”. Para os céticos, a melhor atitude é suspender o juízo, ou seja, não decidir quanto à ver-
dade ou falsidade de algo. Essa postura cética encontra em Pirro de Élis sua fundamentação. O pen-
samento e o estilo de vida de Pirro chegaram a nós por seu discípulo Tímon, uma vez que Pirro parece
não ter escrito nenhum texto.

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Método: suspensão do juízo
O que sabemos do pensamento de Pirro é que ele se preocupava basicamente

DIGITAL GENETICS/SHUTTERSTOCK
com a questão da possibilidade de conhecer algo de modo seguro. O que são as
coisas e suas essências? Existirá um critério de verdade sobre o qual não caiba al-
gum questionamento? A reflexão de Pirro chega à aphasia, que significa ausência
de discurso, uma ideia parecida com suspensão do juízo, depois de reconhecer
que nem a razão, nem os sentidos são capazes de captar e de conhecer alguma
essência das coisas.
Portanto, podemos falar em um método, em uma forma de pensar que con-
siste na suspensão do juízo, com base na percepção de que não temos acesso a
um critério capaz de nos fornecer a verdade, a essência ou a natureza de algo.
Dessa constatação e atitude resulta a serenidade da alma, a ataraxia. Em outras
palavras, se não parece ser possível encontrar a essência de algo, o mais sensato
é evitar o juízo que afirma uma verdade ou que a nega categoricamente. Em
decorrência disso, colhe-se uma paz espiritual, uma quietude, uma tranquilidade. Um mesmo suco de laranja
Considerando que o objetivo da vida dos céticos é alcançar o estado de paz pode parecer doce a
interior, de ataraxia, de imperturbabilidade, um dos passos para alcançar esse ob- um e a outro parecer azedo,
jetivo é o método que podemos denominar como suspensão do juízo. Contudo, dependendo do alimento
que um ou outro ingeriu em
é necessário lembrar que essa ausência de um discurso afirmativo ou de negação instante imediatamente
não significa ausência de percepção, nem mesmo ausência de manifestação da anterior. Por isso, para os
percepção. Ao contrário, é justamente a manifestação e o reconhecimento da céticos, qualquer percepção
percepção como leitura particular. É nesse sentido que o cético não dogmatiza, sobre o sabor do suco de
laranja é particular. Trata-se
não afirma, nem nega categoricamente algo.
de uma situação que pede a
O ceticismo compartilha com outras escolas helenísticas essa busca por um suspensão do juízo.
ideal de vida de serenidade, especialmente com o estoicismo e o epicurismo. Elas
têm em comum essa ética eudaimonista, ou seja, uma ética da felicidade, que
implica moderação e paz interior. Temos aqui uma filosofia voltada para a vida
prática, com preocupações de natureza ética.

PROBLEMATIZANDO
1. Vimos que o ceticismo e o estoicismo trazem uma ideia de suspensão do juízo
como método, como forma de pensar na busca por conhecimento, que resulta
na ataraxia, na paz interior. Isso pode ser interpretado como relativismo?
2. É possível estabelecer uma relação entre o ceticismo e o movimento inau-
gurado pelos sofistas? Discuta sua resposta com os colegas, procurando
justificá-la.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia as afirmações a seguir.
a. O fim do cético é a serenidade diante da opinião e a moderação nas
paixões.
b. Na busca da serenidade, a inapreensibilidade do real conduz ao silêncio
prudente.
c. A grandeza humana está em reconhecer a própria pequeneza.
• Redija um texto estabelecendo uma relação entre essas afirmações e ex-
plicitando os pressupostos e o método do ceticismo.

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PENSANDO CONCEITUALMENTE A FELICIDADE
Na filosofia antiga, o objetivo da vida huma- em que seu objetivo é a felicidade. Segundo Epicu-
na era a felicidade, fim perfeito e soberano bem. ro, qualquer pessoa pode buscar a felicidade, de-
De acordo com Aristóteles, a felicidade é vida con- dicando-se à filosofia. Basicamente, o ser humano
forme a virtude, que implica consciência reflexiva. necessitava de três coisas para ser feliz: liberdade,
Tomando por base a natureza social e política do amizade e tempo para meditar. Um dos aspectos
ser humano, Aristóteles afirma que a felicidade comuns às escolas helenísticas é a consideração da
só existe na amizade. Nas palavras de Aristóteles: filosofia como instrumento de meditação capaz de
“Ninguém escolheria a posse do mundo inteiro sob contribuir decisivamente para a felicidade. A filo-
a condição de viver só, já que o homem é um ser sofia possibilita conhecimento do mundo e, assim,
político e está em sua natureza o viver em socieda- fornece ao ser humano as condições de se libertar
de. [...] Logo, o homem feliz necessita de amigos dos grandes temores a respeito da vida e da morte.
[...]. Pois é da natureza do amor amar, antes de ser Nessa maneira singular de conceber a vida,
amado.” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro IX). não há felicidade sem o sentimento de bem-es-
Segundo Aristóteles, a felicidade não se subordi- tar. De acordo com os estoicos e epicuristas, feli-
na a nenhum outro bem, pois é almejada por todos. cidade implica paz interior. Assim, felicidade não
Nesse sentido a felicidade é autossuficiente. O que é seria euforia, nem acarretaria, necessariamente,
meio para alcançar alguma outra coisa é útil para tan- a emoção intensa, que seria uma característica
to. Contudo, ninguém quer ser feliz tendo em vista da paixão. Dessa forma, os acontecimentos ex-
algum outro bem que não seja a própria felicidade. ternos não teriam, em si, o poder de dar ou de
Na consideração das escolas helenísticas, es- tirar a nossa felicidade. As coisas externas só te-
pecialmente no pensamento do epicurismo e do riam o poder que nós lhes damos. Assim, a feli-
estoicismo, encontramos o ideal de ética eudaimo- cidade seria um modo de lidar com as inevitáveis
nista, voltada para a felicidade (eudaimonia). dificuldades do cotidiano, e uma forma de seguir
Epicuro, na Carta a Meneceu, aborda a manei- adiante na vida, com moderação, em estado de
ra como o homem deve encarar a vida, na medida serenidade ou de paz interior.

PROBLEMATIZANDO
1. A felicidade é vida conforme a virtude, que implica consciência reflexiva. Em que sentido essa afir-
mação questiona uma concepção de felicidade muito difundida em nossa sociedade?
2. A felicidade só existe na amizade. Justifique essa afirmação, explicitando o pressuposto antropoló-
gico subjacente. Em que sentido essa afirmação questiona uma concepção de felicidade que existe
em nossa sociedade?
3. Os acontecimentos externos não teriam, em si, o poder de dar ou tirar nossa felicidade. Quais são as
concepções de homem e de felicidade que justificam essa afirmação?

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAGEM

SUGESTÃO DE LEITURAS
DUVERNOY, Jean-Francois. O epicurismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
INWOOD, Brad (Org.). Os estoicos. São Paulo: Odysseus, 2006.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: UnB, 2008.
PORCHAT, Oswaldo. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Unesp, 2007.

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2
Eixo Temático

CONDIÇÃO
HUMANA

obre:
e rs
d
en

pr
ia
va
Você

• As reflexões medievais com base na visão


filosófica cristã.
• As relações entre a filosofia patrística e a
argumentação racional no cristianismo.
• As três grandes influências na filosofia cristã
de Agostinho.
• O caráter espiritual do ser humano e a
concepção de tempo na perspectiva judaico-
-cristã.
• O mal como ausência e privação do bem.
• As duas visões do amor em Agostinho.
• A alma e o corpo em Tomás de Aquino.

Estimule os estudantes a expressar oralmente


o que conhecem sobre os temas que serão
estudados nesse eixo temático. Questione-os
acerca das referências que servem de base a esses
conhecimentos prévios.

Temas:
1. O nascimento da filosofia medieval
2. A antropologia patrística e medieval

O estudo da filosofia medieval latina, no contexto do teocentrismo, abre-nos a possibilidade de um projeto de reflexão filosófica sobre a relação entre
liberdade e destino. Entre as muitas possibilidades de abordagem destacamos as seguintes questões: Se há liberdade, é possível aceitar a ideia de destino?
O homem pode renunciar à liberdade sem cair em contradição? A ideia de criação divina envolve destino e ausência de liberdade?

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1. O NASCIMENTO DA FILOSOFIA MEDIEVAL

MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA


A missa de fundação da
Ordem da Santíssima
Trindade (1666), de Juan
Carreño de Miranda. Óleo
sobre tela, 500 cm × 315 cm.
Na fé cristã, a missa é um
ritual de atualização da
memória da vida, morte e
ressureição de Jesus Cristo, o
qual teria sido a encarnação
de Deus na história da
humanidade.

No texto a seguir, as reflexões do filósofo Alfredo Storck abrem nosso olhar


para uma perspectiva do que foi a filosofia medieval.

Por muito tempo, quando pensávamos na Idade Média, vinha-nos à mente


a imagem de um período em que a Europa era dominada por cavaleiros, que
lutavam para defender e conquistar castelos, por religiosos, que habitavam
abadias e construíam catedrais, e por uma grande massa de trabalhadores
rurais, geralmente pobres e subjugados. [...] O medievo teria sido, segundo
uma famosa frase, uma noite de mil anos finda nas luzes do Renascimento.
Além disso, quando se pensava nas relações entre árabes e cristãos durante a
Idade Média, pensava-se imediatamente nas cruzadas. [...]
Gradativamente, porém, nossa concepção desse período foi mudando e
aprendemos a ver complexidades e diferenças onde antes víamos precon-
ceitos. [...] O aspecto religioso foi sem dúvida marcante, mas não a ponto
de excluir uma explicação racional do mundo. [...] Descrever a filosofia
medieval é descrever um fenômeno complexo. Primeiramente porque não
podemos pensar que a única filosofia produzida durante a Idade Média
seja a cristã. O pensamento árabe ou judaico não é menos importante nem

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menos profundo do que o pensamento cristão. [...] A filosofia, grega em sua origem, passou a ser
romana e depois cristã. Os sírios transmitiram-na aos árabes e estes em boa medida aos judeus. Os
cristãos novamente a recuperaram, assimilando teses árabes e judaicas, e buscando mais uma vez
as fontes gregas. Os especialistas designam esse movimento de transmissão de translatio studiorum,
isto é, o deslocamento dos saberes.
STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. São Paulo: Jorge Zahar, 2003. p. 7.

Devido ao recorte estabelecido para essa temática, escolhemos como representante da filosofia medie-
val, a filosofia cristã, conscientes de que essa opção traz perdas e ganhos. Entre os pensadores que vão nos
auxiliar na reflexão antropológica, escolhemos Agostinho de Hipona (354-430), canonizado Santo Agosti-
nho pela Igreja Católica, e Tomás de Aquino (1225-1274). Ambos pensadores valorizaram a dimensão con-
templativa, com base em releituras de Platão (Agostinho) e de Aristóteles (Aquino), dentro do cristianismo e
de uma sociedade teocêntrica, ou seja, em um contexto que a perspectiva religiosa era predominante e sob
a concepção de que Deus estaria no centro de tudo.

C e i i
A Idade Média abarca um período tão extenso que pode ser difícil caracterizá-la sem incorrer no risco da
simplificação: são praticamente mil anos entre a queda do Império Romano do Ocidente (476), marco inicial
da Idade Média, e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1455), marco final do período. A Idade Média
pode ser dividida, histórica e filosoficamente, em dois períodos bem distintos. O primeiro período, também
conhecido como Alta Idade Média, corresponde ao contexto de instabilidade que segue à queda do Império
Romano, e abrange do século V ao século X. O segundo período, ou fase final, que se estende do século
XI ao século XV, vai da criação das universidades e o desenvolvimento da escolástica até o surgimento do
humanismo renascentista, que aconteceu após a crise do pensamento escolástico.
A Alta Idade Média traz a marca da desagregação da antiga ordem e da divisão do Império Romano em
diversos reinos bárbaros, formados após diversas invasões ao território romano. Vejamos o texto a seguir.

“A voz fica-me na garganta e os soluços in- perdiam a população para o campo, as provín-
terrompem-se ao ditar estas palavras: foi con- cias rebelavam-se.
quistada a cidade que conquistou o universo.” Nesse cenário, a divisão do Império no Oci-
Assim São Jerônimo (347-420) anuncia a in- dente e Oriente, tantas vezes realizada e depois
vasão e a pilhagem de Roma, pelos visigodos desfeita, tornou-se definitiva. Enquanto o Im-
comandados por Alarico. Antes mesmo desse pério sobreviveu, no Oriente, até 1453, quan-
golpe, as fronteiras do Império eram cada vez do Constantinopla caiu sob o domínio turco,
mais violadas por levas de migrações de vários o Ocidente transformou-se em um mosaico de
povos – as chamadas “invasões bárbaras” –, ao pequenos reinos ditos “bárbaros”, que iam as-
mesmo tempo que, internamente, a economia e similando em suas tradições alguns dos valores
a política estavam em crescente desorganização. romanos, principalmente, o cristianismo. Co-
Rotas comerciais eram abandonadas, as cidades meçava a Idade Média.
ABRÃO, Bernadette Siqueira. (Org.) História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural. 1999. p.103. (Os pensadores).

O desejo por uma nova unidade reaparece fortemente, com a progressiva difusão do cristianismo, a
partir de 313, ano em que Constantino sanciona oficialmente, com o Edito de Milão, a liberdade religiosa e
o fim das perseguições aos cristãos.

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2. A ANTROPOLOgIA PATR STICA E MEDIEVAL

BASÍLICA DE SANTA GIUSTINA (GALERIA DOS MÁRTIRES), PÁDUA, ITÁLIA


São Justino (séc. XX), de
autoria desconhecida.
Têmpera sobre parede.
O posicionamento de Justino
(100-165) e dos primeiros
padres da Igreja Católica era
de natureza apologética,
ou seja, defensora da
doutrina cristã, contra as
religiões pagãs. Um dos
elementos centrais dessa
doutrina cristã sustentava
que Jesus Cristo era o logos
do qual os filósofos gregos No princípio era o logos, e o
falavam. Essa concepção se logos estava voltado para Deus,
fundamentava nos escritos e o logos era Deus. [...] Tudo
bíblicos do Novo Testamento,
especialmente no Evangelho existiu por ele; e nada do que
de João, que teria sido escrito existiu, existiu sem ele.
por volta do ano 100. João, 1, 1-3.

O gnosticismo grego foi, com efeito, o grande adversário intelectual e


espiritual do cristianismo nos dois primeiros séculos. Sua antropologia
aprofunda o dualismo presente na tradição grega. [...] O dualismo preconi-
zado pelas correntes gnósticas implica uma condenação da matéria, obra
do princípio do mal, o que o coloca em oposição frontal à verdade cen-
tral do anúncio cristão, expressa no “fazer-se carne” do logos divino (João,
1,14). Ora, a antropologia patrística desenvolve-se toda à luz do mistério
da encarnação e é esse mistério que transpõe em um nível concreto, pela
referência a um arquétipo histórico, o tema da “imagem e semelhança”.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. p. 62-63.

A filosofia medieval latina dos primeiros séculos, elaborada pelos padres da


Igreja Católica, é denominada patrística. Inicialmente, essa filosofia tinha uma
preocupação apologética, ou seja, de defesa do cristianismo contra os ataques
dos chamados pagãos e das heresias, ou seja, de qualquer posicionamento con-
trário ou diferente daquele defendido pela doutrina cristã católica, no contexto
medieval. Esses posicionamentos heréticos eram vistos como deturpações e des-
vios da fé defendida pela Igreja Católica.
O cristianismo recorreu à filosofia, à argumentação racional, nos moldes da
filosofia grega clássica, buscando dar consistência à sua doutrina.
Historicamente, podemos dividir a patrística em dois períodos e correntes. Inicial-
mente, até o ano 200, ela foi de natureza apologética, como já mencionamos. Os
principais padres representantes desse momento foram Justino (100-165), São Cle-
mente de Alexandria (120-215) e Orígenes (184-254). Já a segunda fase da patrística
foi até o ano 450, período em que nascem os primeiros sistemas de filosofia cristã.

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As duas correntes desse pensamento são a patrística grega e a patrística latina.
O maior teólogo da patrística grega foi Orígenes. Em suas reflexões, pela primeira
vez, de modo profundo e conflitante, o cristianismo e o platonismo se encontram.
Na patrística latina, foi na obra de Santo Agostinho que a concepção antropo-
lógica cristã será mais desenvolvida.
PERSPECTIVESTOCK/SHUTTERSTOCK

Cristo pantocrator, mosaico


no interior da Catedral de
Cefalù. Sicília, Itália, 2012.
O mosaico de influência
estética bizantina representa
a figura do pantrocrator,
palavra de origem grega que
significa “aquele que tudo
rege”, definição semelhante à
do logos divino no Evangelho
de João. Na patrística, o
pantocrator também teria
essas características de
domínio sobre toda a criação.

A i , e i ie
Aurélio Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, Nu-

THE MUSEUMS OF FLORENCE, OGNISSANTI, FLORENÇA, ITÁLIA


mídia, província romana ao norte da África; hoje, Argélia.
Sua vida se transcorre nos últimos anos do Império Ro-
mano, período marcado pela decadência e dissolução.
Além da influência de sua mãe, que com a sua fé o moti-
vou para o cristianismo, Agostinho foi atraído para a filoso-
fia, através da leitura do livro Ortensio, de Cícero, no qual o
autor defende uma concepção helenística de filosofia como
sabedoria e arte do bem viver, que conduz à felicidade. Essa
nova concepção de filosofia influenciou o pensamento de
Agostinho, o conteúdo de suas preces, desejos e votos.
Em 373, com 19 anos de idade, Agostinho aderiu ao
maniqueísmo, uma religião fundada pelo persa Mani,
no século III, como um desdobramento do Cristianismo.

Om i e m m e eli i li , em
mi e m l m i i i em
i i , i i e i i i -
i , i ei , ei l e ei m ,
em e m l.
Oe i m em i me m e m i eleme
m em i me m . Santo Agostinho (1480), de Sandro Botticelli. Afresco,
152 cm × 112 cm.

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Tendo abandonado o maniqueísmo, Agostinho viajou para Itália, tornando-se professor de Retórica, inicial-
mente, em Roma; e, mais, tarde, em Milão. Foi em Milão, ao ouvir os sermões do bispo Ambrósio, que des-
pertou nele a admiração pela interpretação das sagradas escrituras e se converteu, em 386, ao cristianismo,
como referência religiosa para a sua vida. Em 387, Agostinho recebeu o batismo através do bispo Ambrósio.
No ano de 388, Agostinho retorna para a África. Durante o caminho de casa, sua mãe veio a falecer. Ao
chegar em Tagaste, Agostinho vendeu os bens paternos e fundou uma comunidade religiosa, dedicando-se
à vida monástica, à escrita. Em 391, quando se encontrava em Hipona, foi ordenado sacerdote, devido à
pressão e aclamação popular. Agostinho gozava de grande prestígio junto à população que o admirava pela
integridade de sua vida. Em 395, foi consagrado bispo. E é nesse período, no qual trava grandes embates
contra heréticos e cismáticos, ou seja, cristãos que romperam com algumas doutrinas da religião oficial, que
nascem as suas principais obras, dentre elas: o diálogo De magistro, dirigido a seu filho Adeodato, contra os
maniqueus; o diálogo Contra os acadêmicos, no qual critica o ceticismo e defende a possibilidade do conhe-
cimento da verdade, enquanto revelação divina; As confissões e os seus tratados teológicos, especialmente
Sobre a Trindade, Sobre a doutrina cristã e A cidade de Deus, sua última obra.

PROBLEMATIZANDO
1. Em que consiste o dualismo maniqueísta? Ele continua presente nos tempos atuais?

A l i i eA i
eT m eA i
Na elaboração de sua antropologia cristã, Agostinho teve três grandes influências. A primeira delas, o
neoplatonismo, nas interpretações de Plotino e de Porfírio, está bem visível no pensamento que Agostinho
desenvolveu em sua obra Confissões, especialmente na reflexão sobre a estrutura do homem interior, em
que a verdade divina habita como interior e superior.

ESCOLA DE DE SAN GIORGIO DEGLI SCHIAVONI, VENEZA, ITÁLIA


A visão de Santo Agostinho
(1502), de Vittore Carpaccio.
Têmpera sobre tela,
141 cm × 210 cm.
Na tela, Agostinho escutaria
a voz do teólogo Jerônimo de
Estridão, enquanto escreve
uma carta ao mesmo. Vittore
Carpaccio representou sua
visão idealizada das acomo-
dações de Agostinho. Observe
a clareza e a sofisticação na
organização do espaço e do
mobiiário. O artista pertence
ao contexto do Renascimento
e isso se manifesta na
maneira como representou
em sua obra o ambiente de
trabalho de Agostinho.

Agostinho recebeu a segunda grande influência da antropologia paulina, do apóstolo Paulo. Inspirado
por essa influência, ele irá formular a doutrina do pecado original e da graça, da liberdade e do livre-arbítrio.
A terceira influência, que marcou a sua concepção de ser humano, vem da antropologia presente na
narração bíblica da criação do ser humano. A noção do ser humano como imagem de Deus tornou-se o
paradigma de referência, o modelo à luz do qual a vida humana seria lida. Dentro dessa abordagem, um dos

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aspectos centrais da antropologia de Agostinho foi a ideia de homem itinerante, peregrino que estaria em
busca de Deus. Esse aspecto de sua antropologia encontra-se bem expresso na imagem das duas cidades,
presente no livro A cidade de Deus.
Outro aspecto que devemos dar atenção é a concepção de tempo em Agostinho, que não era circular,
como na antropologia platônica, mas linear. Contudo, essa noção linear de tempo não deve ser vista como
uma mera sucessão cronológica de fatos e eventos. Ao contrário, trata-se de um percurso evolutivo, de um
crescimento até a fase final. Nessa noção linear de tempo, a história e o ser humano estavam orientados
para Deus.

O e m m i i i i
ALAMY STOCK PHOTO/LATINSTOCK/ CAPELA SISTINA, MUSEUS E GALERIAS DO VATICANO

A queda e expulsão do paraíso (1510), Michelangelo. Afresco, 280 cm × 570 cm.


Nessa imagem, Michelangelo representou aquela que é considerada, na tradição judaico-cristã, a primeira experiência
dramática do ser humano: a tentação de Adão e Eva e sua expulsão do paraíso. De acordo com essa tradição, o pecado,
representado no ato de comer o fruto da árvore proibida, conforme consta na narrativa da criação, o Gênesis, seria a origem
de todos os males. O ato representa a pretensão humana de adquirir a ciência, que pertenceria somente a Deus.

Segundo a tradição judaico-cristã, o mundo seria uma criação divina, presente eternamente na mente
de Deus. Nessa concepção, Deus teria um plano racional eterno, que teria se exteriorizado e materializado
no ato da criação. Entre todas as criaturas, de modo muito singular, estaria o ser humano, criado à imagem
e semelhança de seu próprio criador. Dessa semelhança resultaria o caráter espiritual do ser humano, sua
alma racional, substância com capacidade para governar o corpo na direção do bem, que estaria assistida
pela graça divina.
Todas as criaturas teriam sido criadas para uma finalidade e seriam conduzidas pela providência no
sentido do fim que lhes é próprio. Ora, a finalidade da criação humana seria comunhão com a divindade.
Contudo, essa comunhão teria sido quebrada pelo mau uso do livre-arbítrio que, seguindo os impulsos das
paixões carnais, teria desviado a alma de seu objetivo maior, de sua felicidade, de Deus.
Por essa razão, teria surgido a realidade histórica do homem decaído, corrompido, afastado da co-
munhão e do poder de Deus. Devido à concretização dessa tendência carnal, ou seja, devido ao pecado,
o ser humano teria se afastado de Deus, e perdido, por isso, toda a sua força, seu poder, pois estaria
distante da graça divina.

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A e m l
Se Deus criador é amor e tudo criou por amor, de onde vem o mal? Eis uma das grandes questões que
inquietou Agostinho. Após ter caído vítima do maniqueísmo com suas explicações dualistas, Agostinho en-
controu em Plotino (205-270), uma grande contribuição para resolver essa questão que o afligia. De acordo
com Plotino, o mal não é um ser, mas uma deficiência e privação do ser.
Agostinho buscou em sua própria vida as experiências relacionadas com o mal. E começou bem cedo, na
infância, uma vez que o desejo e a capacidade para o mal seriam, para Agostinho, tão fortes na criança quan-
to no adulto. O que torna uma criança inofensiva não é a inocência de espírito, mas a fraqueza de seu corpo.

Que fruto nessa ocasião colhi eu, miserável, das ações que agora, ao recordá-las, me fazem corar
de vergonha, nomeadamente daquele roubo [de peras], em que amei o próprio roubo e nada mais?
Nenhum, pois o furto nada valia, e, com ele, me tornei mais miserável. Sozinho não o faria – lembro-
-me de que era esta a minha disposição, naquele momento; sim, absolutamente só, não era capaz de o
fazer. Portanto, amei também no furto o consórcio daqueles com quem o cometi. Amei, por isso, mais
alguma coisa do que o furto. Mas não: não amei mais nada, porque a cumplicidade nada vale.
AGOSTINHO. Confissões. Livro II. Trad. J. Oliveira e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os pensadores).

A questão do mal não é, portanto, somente acadêmica. Trata-se de uma experiência existencial de Agos-
tinho. Uma marca sempre presente no mal seria a vacuidade, o vazio, o nada, a ausência. Vejamos este
trecho de Agostinho, ao se perguntar pela procedência e residência do mal:

Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da von-
tade desviada da substância suprema – de vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas.
AGOSTINHO. Confissões. Livro VII. Trad. J. Oliveira e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 190. (Os pensadores).

Nesse fragmento, Agostinho aborda o mal com base na perspectiva metafísica. Por esse ponto de vista,
não existiria o mal no Cosmo. Não haveria uma entidade má no mundo. O que existiria seriam seres em
diferentes graus em relação a Deus, uns maiores, outros menores, até os ínfimos. Na verdade, tudo seria
momento articulado de uma grande harmonia cósmica.
Do ponto de vista moral, o mal seria o pecado. E o pecado teria relação direta com a vontade corrompida,
a má vontade, uma vontade desviada de sua finalidade boa. Naturalmente ou originariamente, a vontade
tenderia para o bem supremo, Deus. Contudo, dada a existência de muitos bens criados e finitos, a vontade
teria se desviado de sua direção e se subvertido preferindo bens finitos e inferiores aos bens supremos.
O pecado seria, portanto, uma escolha incorreta. O mal moral seria uma aversão a Deus e uma conversão às
criaturas. O mal se expressaria no mau uso desse bem. Dessa forma, o mal teria sua raiz na liberdade humana.
Com essa ideia, Agostinho cria o polêmico conceito de pecado original, que entrou para a história do cristianismo.
Agostinho construiu esse conceito com base em textos bíblicos. O apóstolo Paulo, em sua carta aos
romanos afirma que todos os homens estão implicados no pecado de Adão: “Pela desobediência de um
só homem, todos os homens se tornaram pecadores” (Romanos 5, 19). Segundo essa ideia de transmissão
do pecado, todos nasceriam contagiados por essa espécie de mancha original, não natural. É a privação da
santidade original que passaria a ser transmitida a todo ser humano em seu nascimento. Por isso, a Igreja
fornece o batismo para a remissão dos pecados, mesmo em crianças que não cometeram qualquer pecado
pessoal. Embora essa reflexão seja bíblica, o conceito de pecado original foi estabelecido com base nas re-
flexões de Agostinho, no século V.
Do ponto de vista físico, a maioria dos nossos males, como as doenças, sofrimentos e tormentos físicos e
espirituais, além da própria morte, seria consequência do mal moral, decorrência do pecado. Nossa nature-
za primeira e originária seria a de seres feitos para a comunhão com Deus. O pecado não faria parte dessa

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natureza, ele seria uma ruptura que criamos com o

MUSEU HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA


nosso livre-arbítrio.
Assim, o mal, sendo amor a si (soberba), tanto
individual como comunitariamente, seria sempre
uma corrupção ou da medida, ou da forma, ou da
ordem natural. Nenhuma natureza seria má. O mal
se manifestaria como desvio e carência do bem.
Em suma, a antropologia cristã concebe o ho-
mem como sendo criado à imagem do Deus cria-
dor, originariamente em comunhão com a graça
de Deus. Contudo, o mau uso do livre-arbítrio e a
pretensão do ser humano em querer para si a ciên-
cia do bem e do mal, que são atributos exclusivos
da divindade, o teriam levado a pecar. Como fruto
ou decorrência do pecado, o homem se encontraria
decaído, impotente, expulso da comunhão divina.
Encontrar-se-ia em uma condição histórica de afas-
tamento da graça, na qual consistiria sua miserabi-
lidade e fraqueza. Em razão disso, nada conseguiria
por suas próprias forças. Somente mediante a graça
de Deus seria possível o resgate e a salvação. Daí a
expressão: “Se Deus quiser”.

PROBLEMATIZANDO São Pedro e São Paulo


(c. 1600), de El Greco. Óleo
1. O mal não é um ser. Não existe o mal. O que existe é a privação do bem. sobre tela, 116 cm × 91,8 cm.
Como você se posiciona diante dessas teses agostinianas?
Uma das bases de reflexão
2. Agostinho nos diz que “o que torna uma criança inofensiva não é a inocên- da patrística eram os textos
cia de espírito, mas a fraqueza de seu corpo”. Que reflexões você consegue bíblicos. As catorze cartas
elaborar a partir dessa afirmação? que o apóstolo Paulo
teria escrito aos romanos
3. Ao confessar o roubo das peras, Agostinho relata que o prazer não estava nas fazem parte da Bíblia.
peras, mas no ato de roubar. Será que isso revela algo sobre uma possível incli- Delas, Agostinho extraiu
nação humana? Discuta com os colegas sua resposta, procurando justificá-la. algumas ideias iniciais para
conceitos como pecado
original e livre-arbítrio, em
que o ser humano teria se
PRODUÇÃO DE TEXTO distanciado de Deus por
decisão particular.
1. Leia o trecho a seguir.

Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim
uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de vós, ó
Deus – e tendendo para as coisas baixas.
AGOSTINHO. Confissões. Livro VIII. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. p.156. (Os pensadores).

• Com base nessa afirmação, como Agostinho responde à questão: “Se


Deus criador é amor e tudo criou por amor, de onde vem o mal?”.
• O texto que você irá redigir deverá integrar as expressões “bondade da
criação”, “liberdade humana”, “desmedida e desvios no afeto humano”.

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A , li e i , ee
Para Agostinho, a razão pode conhecer o bem e a vontade pode rejeitá-lo, uma vez que a vontade é uma
faculdade diferente da razão, com autonomia própria, mesmo que vinculada a ela.
A liberdade seria uma característica que decorre da natureza racional do ser humano. Por sua faculdade
interna, o homem seria livre e participaria decisivamente de seu destino, ajudado pela graça. Vejamos o
fragmento a seguir, de Étienne Gilson, que ilustra muito bem essa reflexão.

Deus criou o homem dotado de uma alma racional e de uma vontade, isto é, com um poder de es-
colher análogo ao dos anjos, já que os homens, como os anjos, são seres dotados de razão. Fica estabe-
lecido, portanto, desde esse momento, que a liberdade é uma ausência absoluta de constrangimento,
inclusive em relação à lei divina; que ela [a liberdade] pertence ao homem pelo fato de ele ser racional
e se exprimir pelo poder de escolha que sua vontade possui. [...] Deus criou o homem livre, porque lhe
deixou a responsabilidade do seu fim último. Cabe a ele escolher entre o caminho que leva à felicidade
e o caminho que leva a uma miséria eterna; o homem é um lutador, que nem tem que contar apenas
com suas próprias forças, mas que deve contar com elas; senhor de si, dotado de uma verdadeira inde-
pendência, colabora eficientemente para o seu destino.
GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 368.

Liberdade e vontade, razão e conhecimento


O fator decisivo para afirmar a liberdade é, portanto, a faculdade do intelecto, que não existe nos demais
seres da natureza. Graças ao conhecimento que tem das coisas, a vontade humana teria condições de fazer
escolhas, e não seria obrigada a seguir os apetites e os impulsos que governam a vida dos demais seres. A
partir dessas escolhas, a razão deveria buscar os melhores caminhos por meio dos quais melhor caminharia
para o objetivo de sua vida. Dessa forma, a escolha voluntária implica a ideia de consciência, de razão. Essa
vontade se torna o desejo da razão.

E e e e e e, ee ime e l e, e i l i e
e l e i i l. E me l el l ee m , e me eA i-
, em e l i e ei , e m e elei e m i , m em
, e e i m e mei .

Na reflexão de Agostinho, o livre-arbítrio vem identificado com o ato que a vontade realiza em escolher
uma determinada ação. Assim, o ato da vontade seria sempre livre, no sentido de não ser coagido, forçado,
pois seria expressão da razão humana. Dessa forma, onde há liberdade não há necessidade. Nesse sentido,
a causa do ato é o próprio sujeito que deseja. Nasce aqui a ideia de responsabilidade moral. Isso está sinte-
tizado nessa belíssima afirmação de Étienne Gilson:

Pode-se obrigar o homem a fazer uma coisa, mas nada pode obrigá-lo a querer fazê-la. Ou há vonta-
de, e não há violência, ou há violência e não pode mais haver vontade.
GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 373.

Tomás de Aquino, em seu tratado sobre o homem, na questão 83, discute o livre-arbítrio, em termos
de liberdade do ato voluntário, enquanto escolha racional. Em conformidade com Tomás de Aquino, o

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livre-arbítrio decorre da própria racionalidade humana e sem este não seria possível sequer pensarmos em
ética, em possibilidade de escolha e responsabilidade pessoal. Vejamos o texto a seguir.

Como diz o Eclesiástico (15,14), “Deus criou o homem no começo e o entregou ao seu próprio ar-
bítrio“, isto é, à liberdade de seu arbítrio. O homem possui livre-arbítrio, caso contrário seriam vãos
os conselhos, as exortações, as ordens, as proibições, as recomendações e as punições. [...]
[Ao contrário dos demais seres], o homem age com juízo porque, devido a sua capacidade cog-
nitiva, julga se deve fugir de alguma coisa ou procurá-la. Mas como seu juízo não resulta de uma
aplicação do instinto natural a uma ação particular, e sim de uma comparação realizada pela razão,
o homem age de acordo com seu livre juízo, podendo orientar-se para diferentes decisões. A razão
pode, com efeito, em relação ao contingente, seguir direções opostas, como nos mostram os silogis-
mos dialéticos e os argumentos retóricos [...].
Portanto, é necessário que o homem possua o livre-arbítrio pelo simples fato de ser racional.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. In: Textos básicos de ética. Trad. Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 65-66.

PROBLEMATIZANDO
1. Para Tomás de Aquino, o que justifica a existência da liberdade humana?
2. Agostinho afirma que a razão pode conhecer algo como sendo o melhor; mas, a vontade, ligada à
liberdade pode ir na direção contrária. Você concorda com esse pensamento de Agostinho?

N e i , m

LEVRANII/SHUTTERSTOCK
Para muitos autores, uma das decorrências da tradição cristã
cultivada na Idade Média seria um olhar marcado pelo negativismo
sobre a condição humana e a vida terrena. Nessa visão, seria preci-
so refugiar-se na igreja, a casa de Deus e porta do céu, pois fora da
igreja não haveria salvação.
Em Agostinho, porém, encontramos a noção de pessoa asso-
ciada aos atributos “vontade” e “liberdade”, o que faz o pensa-
dor enxergar no ser humano um reflexo de Deus, que seria trino,
em seus modos de ser, conhecer e amar. Visão contrária à socrá-
tico-platônica, que afirmava que ser bom e virtuoso é conhecer e
possuir a ciência.
Agostinho considera que o homem bom é aquele que ama, e
ama aquilo que deve amar. Existem, portanto, duas formas bem
diferentes de olhar esse amor, dependendo da sua direção e foco. Somos movidos pelo amor.

As inclinações do amor
Na medida que esse amor humano se dirige para Deus, sua realidade primeira e última, e, nesse sentido,
ama as pessoas e as coisas em função de Deus, esse amor é charitas. Mas, na medida que o amor do ho-
mem se direciona para si mesmo, para o mundo e para as coisas do mundo, esse amor é cupiditas.

P A i , e ime m me m em m i e me l: m i e
e .

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O critério que Agostinho propôs para auxiliar-nos na distinção e na vivência do verdadeiro amor é a
distinção entre o uti e o frui. Para Agostinho, as coisas que existem dividem-se em duas ordens distintas: a
coisa útil, e a coisa que merece nosso amor e deleite. As coisas do mundo, bens finitos, deveriam ser utili-
zadas a serviço da elevação espiritual; portanto, seriam meios. Elas não deveriam ser transformadas em fins,
como se fossem os objetos que merecessem o nosso gozo espiritual, o deleite.
Vejamos o fragmento a seguir, no qual Agostinho explicita o amor como sua força motivacional.

O corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para bai-
xo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim, o fogo encaminha-se para cima e a pedra para
baixo. Movem-se segundo seu peso. Dirigem-se para o lugar que lhes compete. O azeite derramado
sobre a água aflora à superfície; a água vertida sobre o azeite submerge-se debaixo deste: movem-se
segundo seu peso e dirigem-se para o lugar que lhes compete. As coisas que não estão no próprio
lugar agitam-se, mas quando o encontram, ordenam-se e repousam. O meu amor é o meu peso. Para
qualquer parte que vá, é ele quem me leva.
AGOSTINHO. Confissões. Livro XIII. Trad. J. Oliveira e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 382. (Os pensadores).

A mensagem agostiniana pode ser sintetizada quando ele expressa que a medida do amor consiste em
amar sem medida, em direção à plena realização da vida humana. Nessa dinâmica, podemos compreender
o conselho conclusivo de Agostinho: ame e faça o que quiser.

PROBLEMATIZANDO
1. Você concorda com a distinção que Agostinho faz entre o uti e o frui, ao pontuar que os grandes
problemas da vida humana são derivados da inversão que consiste em amar as coisas e em usar as
pessoas? Discuta com os colegas sua resposta, procurando justificá-la.
2. Segundo Agostinho, a medida do amor é amar sem medida. Mas, o amor é incondicional? O amor
não solicita medidas ou limites? Discuta o tema com os colegas, apresentando-lhes argumentos de
seu posicionamento.

A antropologia medieval buscou seus temas em três fontes principais que constituíram as autoridades
por excelência na vida intelectual da Idade Média: A Bíblia, denominada Sagrada Escritura, autoridade maior
e incontestável; os padres da Igreja Católica, dentre os quais se destaca a figura de Agostinho, referência
principal após a bíblica; e os filósofos e escritores gregos e latinos; entre eles, Aristóteles se afirmou, a partir
do século XIII, como o philosophus simplesmente.
Na reflexão antropológica medieval duas questões costumavam estar presentes: historicidade e corpora-
lidade. Em termos de historicidade, a tradição judaico-cristã traz uma nova concepção de tempo, não mais
cíclico, mas linear, conforme estudamos. Nessa óptica, toda a história, que se inicia no ato da criação divina,
está orientada para o fim em Deus. E o estudo do ser humano na Idade Média, de matriz cristã, para ser
bem compreendido, deveria acontecer no interior dessa concepção pressuposta. No que se refere ao tema
da corporalidade, uma das grandes questões refletidas pelos filósofos e teólogos medievais foi o problema
da união entre alma e corpo.
As grandes teses desenvolvidas pela antropologia clássica e bíblico-cristã encontraram uma síntese no
pensamento de Tomás de Aquino. Nessa síntese, encontramos três ideias nucleares.
A primeira delas é a retomada da concepção clássica que define o homem como animal racional. Porém,
a especificidade da reflexão medieval recairá sobre a relação entre alma racional e corpo, em uma concep-
ção unitária do ser humano. Tomás não aceitou uma visão dualista de ser humano. Embora exista uma
unidade, a alma é essencialmente espiritual e transcende a matéria.
A segunda ideia nuclear é a de que o homem é um ser na fronteira entre o corporal e o espiritual. Sendo

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racional ou intelectiva, a alma tem condições de buscar o fim para o qual ela foi criada que, na antropologia
cristã de Tomás, é sobrenatural. E aqui encontramos um dos pontos mais singulares da antropologia cristã:
o homem situa-se na fronteira do corporal e do espiritual, da temporalidade e da eternidade.
A terceira ideia, já presente no pensamento de Agostinho, decorre da antropologia bíblica, segundo a
qual o homem é criatura, à imagem e semelhança de Deus. Não podemos esquecer que o contexto é de teo-
centrismo, no qual a filosofia de Agostinho e de Tomás é feita com base na fé. A partir da ideia da imagem
e semelhança de Deus, o homem participaria relativamente da absoluta perfeição divina. Há uma ideia de
perfectibilidade do ser humano que, com a alma racional e a graça de Deus, teria condições de conhecer a
verdade e de agir moralmente em conformidade com essa verdade.

PROBLEMATIZANDO
1. Leia o texto a seguir e reflita sobre as problematizações.

A luta das vontades


O inimigo dominava o meu querer, e dele me forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a
luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e, se não se
resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que, por uma espécie de anéis entrelaça-
dos – por isso lhes chamei cadeia – me segurava apertado em dura escravidão.
A vontade nova, que começava a existir em mim [...] ainda não se achava apta para superar a outra
vontade, fortificada pela concupiscência. Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada,
uma carnal outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me a alma.
Por isso, compreendia, por experiência própria, o que tinha lido. Entendia agora como “a carne
tem desejos contra o espírito, e o espírito tem-nos contra a carne” (Gálatas, 5,17). Eu, na verdade,
vivia em ambos: na carne e no espírito. [...]
A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma dá uma ordem a si mesma, e
resiste! [...] Manda na proporção do querer. Não se executa o que ela ordena enquanto ela não qui-
ser. [...] Portanto, não é prodígio nenhum em parte querer e em parte não querer, mas doença da
alma. Com efeito, esta, sobrecarregada pelo hábito, não se levanta totalmente, apesar de socorrida
pela verdade. São, portanto, duas vontades.
AGOSTINHO. Confissões. Livro VIII. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 209-217. (Os pensadores).

• Problema: A i e e m
A reflexão de Agostinho, em A luta das vontades, e o pensamento desenvolvido por Tomás de Aqui-
no, consideram o ser humano como uma unidade que se encontra entre o corporal e o espiritual, entre
o temporal e o eterno.
Após a leitura dessa reflexão, pondere: a tensão entre as duas vontades pode ser mais branda ou
mais intensa em determinados momento da vida? Para algumas pessoas é menos ou mais angustiante
essa luta? Justifique seu parecer.

• Problema: Li e ee e i
Os temas da liberdade e do destino são polêmicos e complexos. Com base nas reflexões até aqui
desenvolvidas, seja no tema da ética estoica ou da relação entre fé e razão no pensamento patrístico,
é possível pensar em uma relação entre destino e liberdade? Discuta com os colegas sua resposta, pro-
curando justificá-la.

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PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Com base nos estudos realizados sobre a filosofia de Agostinho:
• Explique a estrutura conflitiva do ser humano.

PENSANDO CONCEITUALMENTE A LIBERDADE


O conceito de “liberdade” se contrapõe ao ponsabilidade por nossos atos e história. Vinculado
conceito de “determinismo”, segundo o qual à racionalidade humana, o universo da liberdade,
aquilo que rege o mundo são as relações causais por implicar a responsabilidade pelas consequências
e necessárias. Existem pensadores que atribuem o das ações, rejeitaria a noção de má-fé, no sentido
determinismo não somente aos fenômenos natu- atribuído a essa palavra por Sartre, referindo-se
rais, mas também o aplicam ao universo das ações ao fato de que não cabem desculpas ou pretextos
humanas, afirmando que as decisões dos seres para fugir de uma responsabilidade que seria nossa.
humanos não aconteceriam segundo a liberdade, Outra forma de conceber a liberdade é como
mas por relações de causalidade, determinadas autonomia, capacidade de autodomínio, de con-
pelas circunstâncias ou vivências. Onde há neces- trole das paixões, dos impulsos. Nessa perspectiva,
sidade, não há liberdade. deixar-se guiar pelas paixões cegas não é expres-
Segundo outros pensadores, diferentemente são de liberdade, mas de submissão à impulsivi-
do mundo animal, que seria marcado pelo reino dade passional. Nessa perspectiva de uma razão
do determinismo, o universo humano, marcado que deve guiar universalmente os seres humanos,
pela cultura, seria o tempo e o espaço da liberda- nasce a concepção de liberdade como fonte de
de. Nessa concepção, embora sejamos marcados autolimitação. Nesse âmbito, a lei é fruto da liber-
pelos determinismos que compõe a natureza ani- dade. Ao obedecer à lei, o indivíduo obedece a
mal, nunca seremos apenas um corpo comanda- si mesmo. Metaforicamente, a liberdade seria um
do por leis biológicas, pois o que nos distingue é a rio, que existe somente no interior de margens,
racionalidade, a capacidade reflexiva, a consciên- que o limitam e o possibilitam chegar ao mar.
cia de si e da situação. Contudo, embora se afirme Essa responsabilidade intrínseca à liberdade
a liberdade, ela nunca seria absoluta, pois sempre humana faria referência tanto à dimensão pesso-
estaria inserida nos condicionamentos sociocultu- al quanto coletiva. Nessa reflexão, o futuro seria
rais, sofrendo as influências do meio. uma decorrência das decisões de hoje, sobre as
Uma forma de abordar a liberdade é compre- quais atuaria sempre a liberdade e a racionalida-
endê-la como livre-arbítrio, como a capacidade hu- de. Não há nenhuma necessidade de as coisas se-
mana de fazer escolhas. Fala-se em liberdade ne- rem como são. A imprevisibilidade da história ou a
gativa, significando ser ou estar livre de coerções. ausência de um sentido certo ou preciso para ela
Não existiria a possibilidade da liberdade não fazer decorre dessa essencial liberdade humana.
escolhas. Em decorrência dessa realidade, para o Essa capacidade de refletir, de problematizar,
existencialismo contemporâneo de Jean-Paul Sar- de filosofar caracteriza a humanidade. Por isso,
tre o ser humano estaria condenado à liberdade. a identidade e o grande desafio da educação é
Com essa liberdade, que constituiria a essência assumir a potencialidade humana, moldando-a,
humana, combate-se a ideia de um destino prévio, para que o sujeito assuma com consciência e res-
uma vez que a liberdade implicaria a ideia de res- ponsabilidade a sua liberdade.

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3
Eixo Temático

EXPERIÊNCIA E
RACIONALIDADE

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
• A filosofia medieval e sua relação com a
teologia.
Você

• A reflexão de Agostinho na busca pelo


autoconhecimento.
• O acesso à verdade pela graça divina no
pensamento agostiniano.
• O conteúdo da fé como algo inteligível e
passível de demonstração racional.
• Uma proposta de prova racional do ser
designado pelo conceito de “Deus” no
pensamento de Tomás de Aquino.
• A questão dos universais no realismo,
nominalismo e conceitualismo.
Converse com os estudantes sobre qual ideia ou • A crítica ao princípio de autoridade no
visão têm do termo “medieval”. Permita que procedimento dialético de Abelardo.
falem livremente, incentivando-os a comentar
de onde vem essa ideia ou conhecimento.

Temas:
1. A filosofia medieval
2. Subjetividade e interioridade
3. Fé e razão
4. A controvérsia sobre os universais
5. Nos caminhos da dúvida e da dialética
Este eixo temático abre-nos a perspectiva para um projeto de reflexão filosófica que problematize a relação entre fé e razão, religião e ciência. É correto afirmar que a fé começa e reina
na ausência da razão? Ou, conforme Agostinho, Tomás de Aquino, Abelardo e outros pensadores do mundo latino e árabe, existe uma racionalidade e uma inteligibilidade na fé? A filosofia
e a teologia podem andar juntas? Podem se encontrar? Ou andarão sempre paralelamente? A fé torna a razão cega? Ou abre um novo horizonte? Um homem de fé pode fazer ciência?

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1. A FILOSOFIA MEDIEVAL
Neste eixo temático, nosso horizonte de reflexão abrange o tema do conhecimento e, nele, a busca
da verdade.
O elemento religioso estava marcadamente presente em toda a Idade Média. Contudo, fazia-se também
presente uma série de tentativas de explicação do mundo que não passava pelo viés da religião, mas se
concentrava em uma perspectiva racional.
Escrever sobre filosofia medieval envolve discorrer sobre a presença significativa de pensadores de ori-
gem judaica ou árabe, e a profunda influência que eles exerceram sobre os pensadores latinos, quando
estes buscavam os fundamentos racionais

UNIVERSIDADE DE GLASGOW, GLASGOW, INGLATERRA


para explicar os conteúdos aceitos pela
fé. Além disso, implica ficar atento à tra-
jetória da filosofia até chegar aos cristãos
latinos, sendo ela inicialmente grega e,
posteriormente, romana e árabe.
Um dos primeiros pensadores medie-
vais foi Boécio (480-524), um aristocrata
e cidadão de Roma. Seu projeto filosófico
era traduzir para o latim e comentar as
obras de Platão e de Aristóteles. Contu-
do, devido a sua morte aos 44 anos de
idade, conseguiu traduzir somente as
obras de Aristóteles.
Na consideração do mundo árabe,
lembramos que, entre os anos 340 e 630,
os árabes conquistaram a Síria, a Pérsia e Boécio e seus estudantes (c. 1385), iluminura do manuscrito A consolação
o Egito. Assim, começaram a ter contato da filosofia.
com a filosofia de origem grega, presente no pensamento cotidiano de muitos cristãos dissidentes. Nesse
sentido, praticamente todos os escritos de Aristóteles foram traduzidos para o árabe.
Entre os pensadores árabes mais expressivos nesse período destacamos Al-Kindi (801-873), Al Fârâbî
(870-950), Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198). Quanto aos modos de apresentação de seus pensa-
mentos, destacamos a paráfrase, usada especialmente por Avicena: trata-se de um método no qual o pen-
sador ou comentador retoma o pensamento, normalmente, de Aristóteles, e acrescenta por conta própria
análises feitas por outros pensadores ou comentadores posteriores.
Pensar em filosofia medieval, sob a perspectiva do teocentrismo cristão, é colocar-se a pergunta: trata-se
de filosofia ou de teologia cristã católica? A filosofia feita com base na fé permanece sendo filosofia? Nesse
contexto específico, a filosofia estava a serviço da teologia, da compreensão dos mistérios da fé.
Agostinho de Hipona (354-430), canonizado como santo pela Igreja Católica, é outro nome fundamen-
tal na filosofia medieval. Ele resgata o racionalismo platônico e não percebe nisso nenhum obstáculo para a
compreensão dos conteúdos aceitos na fé. Agostinho busca a racionalidade que existe na fé.
Embora seus textos possuam um valor de autoridade que transcende os poderes da razão, pois teriam
como fonte Deus, ele valorizava muito, assim como Boécio, a dialética, método de argumentação e de
exposição por perguntas e respostas, partindo de problemas, considerando opiniões conflitantes sobre
uma mesma questão. Encontraremos essa metodologia em muitos outros filósofos e teólogos, como Pedro
Abelardo e Tomás de Aquino.
Por uma questão de projeto pedagógico e educativo, inseridos na cultura cristã ocidental, a nossa abor-
dagem aqui se concentrará em alguns filósofos e teólogos cristãos. Com esse recorte, estamos cientes do
que estamos deixando, do que estamos perdendo. Sabemos que toda escolha tem um preço. Mas, tam-
bém, que em toda escolha se abrem possibilidades e perspectivas.
Iniciaremos nossa abordagem com o pensamento de Agostinho.

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DUDAREV MIKHAIL/SHUTTERSTOCK
2. SUBJETIVIDADE E INTERIORIDADE

Lembre os estudantes de que Agostinho faz


uma releitura de Platão. Isso influenciou o
pensamento agostiniano, segundo o qual a
verdade não está fora de nós. Essa abordagem,
contudo, será feita sob a perspectiva cristã.

Para encontrar a verdade,


todo esforço para fora de nós
mesmos dela nos afasta.

Em sua reflexão, Agostinho estava focado na busca da in-

PALÁCIO DE VERSALHES, VERSALHES, FRANÇA


terioridade, no mergulho na intimidade do próprio ser, pois é
no interior do ser humano que se encontraria a verdade. Nessa
concepção, Deus seria a fonte dessa verdade. Não se deveria
procurar no exterior o que se encontra na interioridade do ser
humano. O mais importante seria buscar o autoconhecimento.
Esse enfoque aparece claramente em sua obra Confissões,
livro autobiográfico em que Agostinho descreve suas fraquezas
e suas conquistas no percurso até a sua conversão ao cristianis-
mo. Nessa obra, ele afirma que as pessoas admiram as encostas
das montanhas, os vastos fluxos do mar, o girar dos astros e
abandonam e esquecem a si próprias.
Para Agostinho, o grande foco de preocupação e estudo
não deveria ser o Cosmo, o mundo ordenado e estruturado
pelo criador, mas o próprio ser humano, em sua liberdade, em
seu mistério. Em suas reflexões, Agostinho parte do ser huma-
no como indivíduo, ou seja, ser único e indivisível. Mas, tam-
bém, o considera como pessoa, ou seja, como ser relacional,
aberto, e que precisa do contato com o outro.
Ao falar dessa dimensão relacional, Agostinho toma por
base a fé cristã e afirma que o ser humano foi criado por
Deus à sua imagem e semelhança, para permanecer em co-
munhão com o próprio Deus. E será somente na comunhão
da graça de Deus que o indivíduo estaria em condições de
aproximar-se da compreensão da verdade, que será sempre
uma revelação divina.

A conversão de Santo Agostinho (1736),


de Charles-Antoine Coypel. Óleo sobre
tela, 63,5 cm × 112 cm.

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Não busques fora de ti [...] entra em ti mesmo. A verdade está no homem interior. E, se descobrires
que a tua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo. Lembra-te, porém, que, transcendendo a ti
mesmo, estás transcendendo a alma que raciocina, de modo que o termo da transcendência deve
ser o princípio onde se acende o próprio lume da

EVGENY ATAMANENKO/ISTOCK
razão. E, efetivamente, aonde chega todo bom
raciocinador senão à verdade? A verdade não é
algo que se constrói à medida que o raciocínio
avança; ao contrário, ela é aquilo a que tendem
os que raciocinam. Vês aqui uma harmonia que
não tem similares, e tu próprio conforme a ela.
Reconhece que não és aquilo que a verdade é; a
verdade não busca a si própria, mas és tu que a
alcanças, procurando-a não de lugar em lugar,
mas com o afeto da mente, para que o homem
interior se encontre com aquilo que nele habita
Na busca espiritual, no desejo da mente que busca a
com desejo não ínfimo e carnal, mas com sumo luz na própria interioridade, encontra-se a verdade.
e espiritual desejo.
AGOSTINHO. A verdadeira religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1987. p. 39-72.

PROBLEMATIZANDO
1. Nesse texto, Agostinho afirma: “A verdade não é algo que se constrói à medida que o raciocínio
avança”. Quais são os pressupostos de Agostinho para fazer essa afirmação? Considerando o pensa-
mento de Agostinho, como você justifica essa afirmação? Discuta suas considerações com os colegas.

3. F E RAZÃO Sugerimos que, ao iniciar este tema, você incentive os estudantes a conversarem sobre as diferenças existentes entre fé e razão e sobre as
possibilidades e maneiras de estabelecer relações entre elas.
ALEX EMANUEL KOCH/SHUTTERSTOCK

Nas situações-limite, fé e
razão são duas linguagens
do mesmo espírito humano
em sua permanente
busca por compreensão e
entendimento.

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Durante a Idade Média, no contexto do teocentrismo, em que o pensamento hegemônico afirmava que
o mundo era regido pela vontade divina, a filosofia aparece como subsidiária e subalterna da teologia. A
função da filosofia era preparar a mente humana para acolher as verdades reveladas e buscar sua compre-
ensão e explicação racional. Nesse sentido, é muito esclarecedor o alerta do apóstolo Paulo, em sua carta
aos Colossenses:

Vigiai para que ninguém vos apanhe na armadilha da filosofia, esse vão engano fundado na tra-
dição dos homens, nos elementos do mundo e não mais no Cristo [...], pois nele habita toda auto-
ridade e todo poder.
Carta de Paulo aos Colossenses, (2,8-10). Bíblia. Trad. Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1994.

Ce e e e ee e e e
Em termos de conhecimento, o pressuposto do qual partia a filosofia cristã de Agostinho afirmava que
a verdade se encontrava em Deus. Nessa concepção, a condição para ter acesso à verdade seria a fé, dom
de Deus. A verdade divina era um mistério insondável.
A razão não conseguiria, de forma autônoma e independente, conhecer e compreender essa verdade.
Assim, nessa perspectiva, o entendimento das verdades eternas pressupõe a fé. Esse pressuposto vem ex-
presso na afirmação do profeta Isaías, que diz: “Se não crerdes, não entendereis”. (Isaías, 7-9)

VOC SABIA
A Bíblia é um livro composto por vários livros. Para

RICHARD LOWTHIAN/SHUTTERSTOCK
a Igreja Católica, a Bíblia é composta por 73 livros, divi-
didos em 46 do Primeiro Testamento e 27 do Segundo
Testamento. Para os protestantes, a Bíblia têm 66 livros
(39 do Primeiro Testamento e 27 do Segundo Testamen-
to). Essa diferença se deve ao fato de alguns escritos he-
braicos (Primeiro Testamento) não serem aceitos pelos
protestantes. Os escritos cristãos são os mesmos, totali-
zando 27 livros. Na Bíblia encontram-se os fundamentos
da história do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.

Em decorrência dessa visão cristã, em que Deus é concebido como logos, verbo, e inteligência suprema
que tudo cria e ordena, o ser humano é entendido como ser racional e inteligente, por ter sido criado à
imagem e semelhança de seu criador.
Com a inteligência e o bom uso da razão e da liberdade, o ser humano teria condições para escolher o
melhor caminho. Contudo, segundo a concepção cristã presente na narrativa da criação, no livro do Gênesis,
os seres humanos teriam usado o livre-arbítrio de um modo que os afastara da vontade de seu criador. Com
base nessa experiência do ser humano, a teologia cristã fala em pecado, em ruptura de uma aliança com
Deus. Devido a esse pecado, os seres humanos se encontrariam em situação decadente, expulsos do paraí-
so, em peregrinação. Em decorrência dessa atitude e situação, o ser humano necessitaria da graça divina
para ter acesso à verdade. Somente a graça de Deus poderia iluminar a inteligência humana para que o ser
humano se volte à verdade eterna.

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F e : ei i e, m leme i ee
i
Segundo os pensadores cristãos aqui considerados, a base do conhecimento é a fé. Trata-se de crer para
compreender. O ponto de chegada também é a fé. Trata-se de compreender para crer. Dessa maneira, na
relação entre fé e razão aparece, inicialmente, a superioridade da fé em relação à razão. Essa superioridade
transparece na afirmação agostiniana:

Creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo
conheço, mas nem tudo que creio conheço.
AGOSTINHO. De magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 319.

De acordo com essa concepção cristã, expressa no pensamento de Agostinho, a graça divina potencializa
a inteligência e a inspira para buscar razões, argumentos que auxiliem na compreensão e na divulgação da
verdade acolhida na fé.
Embora exista superioridade da fé, há também uma relação de complementaridade e de harmonia entre
fé e razão. Agostinho aborda o fato de a inteligência e a fé serem duas formas de conhecimento, de olhar
para o mesmo horizonte da verdade.

A fé busca, o entendimento encontra; por isso o profeta diz: “Se não crerdes, não entendereis”.
Doutro lado, o entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou [...]. Logo, é para isso
que homem deve ser inteligente: para buscar a Deus.
AGOSTINHO. A trindade. Trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008. p. 481.

Com essa reflexão, Agostinho supera qualquer ideia que possa se referir à fé como algo ingênuo, irra-
cional ou alienado. É preciso buscar a inteligibilidade daquilo no qual se crê. É fundamental que o conteúdo
aceito na fé seja passível de receber as luzes da demonstração racional, sem contradição. Contudo, essa
demonstração será sempre parcial e pequena diante da grandeza do mistério insondável de Deus e de suas
verdades eternas.
Santo Anselmo (1033-1109), filósofo e teólogo italiano, reafirma a mesma superioridade da fé e confes-
sa a fragilidade da razão humana, em um dos seus mais belos textos. Vejamos um trecho:

Ó Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem a fim de que, ao
recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas, ela está tão apagada em minha mente por causa
dos vícios, tão embaciada pela névoa dos pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a
fizeste, caso tu não a renoves e a reformes. Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de
maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua
verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio
para compreender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender.
SANTO ANSELMO. Proslógio. Trad. Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.107.

Essa superioridade da fé em relação aos poderes da razão está também muito bem expressa no pensa-
mento de outro filósofo cristão e teólogo, Tomás de Aquino (1221-1274), que viveu no período da Baixa
Idade Média, marcado pela escolástica.

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VOC SABIA
E l i
Nas primeiras universidades europeias, entre os séculos XI-XII, eram ensinadas diferentes disciplinas,
como o Trivium, que consistia na Gramática, na Lógica e na Retórica, e o Quadrivium, composto por
Música, Geometria, Aritmética e Física. Contudo, o destaque especial era com a Teologia e a Filosofia.
Nesse contexto, a escolástica designa a filosofia cristã e o modo como ela era ensinada nessas univer-
sidades. Um dos métodos usados nesse ensino era o recurso à dialética para compreender a relação
entre fé e razão. Relação essa de superioridade da fé, de complementaridade e sem contradições.

No horizonte dessas reflexões, com base na fé, a razão se elevaria; e partindo da teologia, a filosofia se
aprimoraria. Por isso, fé e razão apresentam profunda complementaridade, embora as verdades da fé sejam
apresentadas como transcendentes, superando em muito os poderes de compreensão da razão humana.
Contudo, para Tomás de Aquino, a nossa natureza racional deveria sempre buscar maior compreensão
do mistério que acolhemos na fé. Assim, a partir dessa base racional, o diálogo com aqueles que não pro-
fessam a fé cristã, pagãos ou gentios, é sempre possível.
Na Suma contra os gentios, referindo-se à possibilidade de descobrir a verdade divina, Tomás afirma:

Existem a respeito de Deus verdades que ultrapassam totalmente as capacidades da razão humana.
Uma delas é, por exemplo, que Deus é trino e uno. Ao contrário, existem verdades que podem ser
atingidas pela razão: por exemplo, que Deus existe, que há um só Deus etc. Essas últimas verdades, os
próprios filósofos as provaram por via demonstrativa, guiados que eram pelo lume da razão natural.
AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 111.
EUROPEAN LIBRARY OF INFORMATION AND CULTURE, MILÃO, ITÁLIA

A Suma Teológica foi escrita entre 1265 e 1273.


Nesta obra de Tomás de Aquino está a base dogmáti-
ca do catolicismo. Nela, são abordadas a natureza de
Deus, as questões morais e a natureza de Jesus. A
obra está dividida em três partes, sendo que na se-
gunda parte, subdividida em duas, encontram-se 512
questões, cada uma delas subdividida em artigos.
Segundo Tomás de Aquino, a relação de comple-
mentaridade entre razão e fé não poderia admitir a
contradição, uma vez que na raiz dessas duas for-
mas de conhecimento se encontraria a mesma fonte:
Deus. E Deus seria incapaz de contradição, uma vez
que é a perfeição e imutabilidade. Vejamos o trecho
a seguir:

Página da Suma Teológica, de


Tomás de Aquino (1596).

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Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por isso
os princípios inatos naturalmente à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrena-
tural. É um fato que esses princípios naturalmente inatos à razão são absolutamente verdadeiros
[...]. Tampouco é permitido considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus confirmou de
maneira tão evidente [...]. Se Deus infundisse em nós conhecimentos contrários, a nossa inteligên-
cia seria com isso mesmo impedida de conhecer a verdade. Deus não pode fazer tais coisas.
AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 143-144.

De acordo com a filosofia cristã medieval, a serviço da teo-

IOSIF CHEZAN/SHUTTERSTOCK
logia, a verdade do Deus trino é acolhida na fé, como revela-
ção do próprio Deus. A principal função da razão consistiria
na busca por argumentos capazes de auxiliar na compreen-
são e nas tentativas de explicação desse mistério.
Os caminhos da razão e da inteligência na busca de com-
preensão do mistério de Deus estão muito bem ilustrados
nas cinco vias que levam a razão humana a Deus.

Representação da
Santíssima Trindade.
Na concepção cristã,
o ser humano é um
reflexo do Deus trino,
em seus modos de ser,
conhecer e amar.

T m eA i e i e le m m De
Tomás de Aquino (1221-1274) nasceu em Roccasecca, sul do Lácio, Itália. Fez seus estudos universitários
em Nápoles, na universidade recém-fundada por Frederico II. Nesse espaço, conheceu a ordem religiosa dos
dominicanos, que tinha uma forma de viver a vida religiosa mais voltada para as preocupações sociais e os
debates culturais. Além desses motivos, havia outro que muito lhe atraía na ordem dominicana, o espírito
liberto em relação aos interesses do mundo.
Na condição de discípulo de Alberto Magno, ficou conhecido pelo seu amor à especulação e à metafísica,
bem como a sua timidez e reserva, sendo chamado de “boi mudo”. Certo dia, convidado pelo mestre para fa-
zer a sua exposição sobre um tema que estava sendo discutido, Tomás de Aquino expôs o problema com tanta
clareza, profundidade e transparência que Alberto Magno teria dito que este moço, chamado de "boi mudo",
mugirá tão forte que se fará ouvir no mundo inteiro. De fato, a repercussão de seu pensamento foi, verdadei-
ramente, decisiva para a filosofia ocidental, especialmente devido à sua releitura do pensamento aristotélico.
Assim, a obra de Tomás está fundamentada no pensamento de Aristóteles, que ele relê, em contexto
medieval, sob a ótica cristã. Se formos organizar a vasta produção intelectual de Tomás de Aquino, podemos
agrupá-la em quatro estilos: Comentários, Sumas, Questões e Opúsculos. Contudo, sua principal obra, e tam-
bém a mais densa, é a Suma Teológica.
Em Tomás de Aquino encontramos uma tentativa racional, uma busca filosófica de provar ou demonstrar
a existência de Deus, recorrendo a cinco vias. Na Suma Teológica essa reflexão encontra-se, no primeiro
tratado, o Tratado de Deus, e nos artigos um, dois e três da segunda questão.

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Será que a existência de Deus é autoevidente? Com esse problema, Tomás inicia o primeiro artigo. Seu
procedimento consiste em analisar as teses favoráveis a essa questão e, em seguida, realizar a refutação. Em
sua conclusão geral, Deus não é autoevidente, uma vez que nós não
temos condições de conhecer a essência de Deus. Por essa razão, isso
deverá ser demonstrado por meio daquilo que conhecemos.
No segundo artigo, Tomás discute se a existência de Deus pode
ser demonstrada. Ele conclui que se pode demonstrar a existência de
Deus por seus efeitos. Para Tomás, pode-se conhecer o invisível por
meio do visível. É um procedimento regressivo. Podemos argumentar
com base no que para nós é secundário, ou seja, do efeito para a

GALERIA NACIONAL DE LONDRES, REINO UNIDO


causa. Portanto, embora não possamos conhecer Deus em sua es-
sência, podemos demonstrar sua existência, a partir dos efeitos que
conhecemos.
Em seu terceiro artigo, Tomás aborda as cinco vias da demonstra-
ção da existência de Deus. Na primeira via, inspirado na reflexão que
Aristóteles faz em sua obra Física, Tomás recorre à existência do movi-
mento no Universo. O movimento consiste na passagem de potência
a ato. Ora, esse movimento só é possível a partir de algo que esteja
em ato. Assim, o ser que se encontra em movimento deve ter a cau-
sa desse movimento fora dele mesmo, assim como o motor movido
deve ser movido por outro. Contudo, isso não pode ir ao infinito, se São Tomás de Aquino (1476), de
Carlo Crivelli. Têmpera sobre madeira,
quisermos explicar o movimento. Por isso, deve haver o motor imóvel 61 cm × 40 cm.
que tudo move: Deus.
Na segunda via, Tomás recorre à noção aristotélica de causa eficiente, de agente transformador. Nessa
argumentação, afirma que nada pode ser causa eficiente de si mesmo, pois para que isso fosse possível
esse ser teria que ser anterior a si mesmo. Tomás afirma que algo é causa ou efeito, e aquilo que agora é
causa deve ter sido efeito de outra causa. Contudo, novamente, isso não pode ir ao infinito. Deve existir
uma causa primeira ou última: Deus.
A terceira via é conhecida como argumento cosmológico. Nela, Tomás distingue dois conceitos funda-
mentais: substância e acidente ou necessidade e contingência. Nós existimos, mas poderíamos não existir;
ou seja, não somos necessários, somos contingentes. Se nós existimos é porque existe aquele que é o ne-
cessário, o imutável, o ato puro, no qual não há movimento ou mudança, de quem tudo deriva por criação
e a quem se deve nossa existência: Deus.
Na quarta via, Tomás recorre às ideias de perfeição e de graduação que existem nas coisas, que se refe-
rem a maior ou menor, melhor ou pior, mais ou menos. Ora, essa comparação só é possível se pressupormos
um termo de comparação que seja a perfeição, a beleza e a bondade absolutas. Essa ideia de bem absoluto
e imutável encontra-se em Deus.
Finalmente, na quinta via, também chamada de argumento teleológico (que se refere a telos, finalida-
de), Tomás se concentra na ideia de movimento ordenado para um fim. Tudo existe para uma finalidade.
As coisas caminham para um fim, não por acaso, mas por uma vontade absoluta, um desígnio eterno, um
plano racional e uma lei divina eterna.

PROBLEMATIZANDO
1. Como você avalia a proposta e a tentativa de Tomás de Aquino de buscar uma demonstração racio-
nal da existência de Deus? Quais são os alcances e os limites dessa tentativa? Tomás de Aquino parte
de quais pressupostos?
2. A afirmação da existência de Deus é possível em termos racionais ou permanece sempre sendo um
ato de fé?

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4. A CONTROV RSIA SOBRE OS UNIVERSAIS
Entre as áreas do conhecimento mais discutidas na Idade Média, encontram-se a lógica e a metafísica,
especialmente a ontologia, ou seja, a ciência do ser, que trata do ser enquanto ser, da natureza, da realidade
e da existência dos entes. Muitos pensadores medievais estiveram

BIBLIOTECA MEDICEA-LAURENZIANA, FLORENÇA, ITÁLIA


envolvidos e empenhados nessas reflexões.
Historicamente, essa temática começa na filosofia grega, espe-
cialmente com Aristóteles, em sua obra Metafísica, nas reflexões
sobre as categorias. Um dos primeiros estudiosos e comentadores
desses estudos de Aristóteles foi Porfírio (232-305). Seu estudo
encontra-se na obra Isagoge, termo grego que significa “introdu-
ção”. E essa obra, por sua vez, será estudada e comentada por
Boécio (480-525), filósofo e teólogo romano.
Nessa retomada da filosofia da antiguidade, a questão central
gira em torno dos universais, ou seja, dos conceitos, das ideias,
das essências que definem a identidade de um ser. Em suma, os
universais referem-se à natureza dos gêneros e espécies. Os gran-
des questionamentos que esses estudiosos se propuseram são:
• Os universais existem? São entidades em si mesmas ou se-
riam entidades mentais? E, se existirem de fato, são algo
material, corpóreo, ou algo imaterial, incorpóreo?
• São separados das coisas sensíveis ou estão a elas unidos?
Iluminura presente no manuscrito Codex
Poderiam existir separados das coisas ou existiriam somen-
Amiatinus (séc. VIII), que representa um
te nelas? monge escrevendo uma edição da Bíblia.
Pergaminho, 35 cm × 25 cm.

A iee e e
O realismo
A primeira abordagem dessa temática é encontrada na filosofia grega. A visão de Platão e de Aristóteles
é definida como realismo. No realismo de Platão, gêneros e espécies seriam entidades com existência autô-
noma. As ideias seriam entes reais, que existem em si e por si, constituindo o que seria o mundo inteligível,
distinto e separado do mundo sensível, das aparências e dos fenômenos. Assim, por exemplo, a forma de
um corpo particular belo participa da ideia universal de beleza, à luz da qual o particular é reconhecido e à
qual é possível alcançar somente pelo intelecto e não pelos sentidos.
Para os realistas, de influência platônica, entre os quais destacamos Guilherme de Champeaux (1070-
-1121), os universais são entes reais, subsistentes em si, ideias eternas e transcendentes que têm função de
arquétipo, de modelo, de paradigma em relação aos indivíduos concretos.
Fazendo uma aplicação e uma simplificação dessa reflexão no contexto medieval, podemos afirmar que,
para o realismo, estudar a linguagem significava estudar a realidade. Ora, considerando a realidade como uma
teofania, isto é, uma manifestação de Deus, estudar a realidade é estudar a própria manifestação de Deus.
Em coerência com esse pensamento metafísico, considerando os universais reais em si mesmos e presentes
em cada indivíduo, estes não diferem entre si em termos essenciais, mas tão somente em termos acidentais.
O ponto de partida de Aristóteles é a coisa tal como a vemos e sentimos. E, nela, ele distingue três ele-
mentos: a substância, a essência e o acidente. A substância seria a unidade que subsiste, o quid, o sujeito da
posição ao qual ou do qual falamos ou atribuímos algo. As essências seriam os predicados afirmados sobre
o sujeito que fazem com que ele seja o que é. São predicados que não podem faltar. Nesse pensamento de
Aristóteles, a forma se confunde com o conjunto das características essenciais que fazem as coisas serem o
que são. Os acidentes seriam os predicados não essenciais acerca do sujeito. Nesse último caso, mesmo que
certos predicados faltassem, a substância do ser continuaria a existir.

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Há ainda uma maneira de entender a substância como sendo a totalidade do ser individual, com seus
predicados essenciais e também acidentais. Assim, o que existe metafísica ou realmente são as substâncias
individuais, o sujeito, e não o conceito genérico de homem. Portanto, na realidade existem os indivíduos,
aos quais Aristóteles conceitua como substâncias primeiras. Contudo, ele também reconhece que as formas
dessas substâncias primeiras são reais, por isso ele as chama de substâncias segundas, existentes somente
como predicados.
Metaforicamente, Aristóteles pensa na ação de um escultor ao fazer uma estátua com uma finalidade,
ou na ação de um marceneiro ao fazer uma mesa. Assim, para Aristóteles, deveria haver uma causa inte-
ligente eficiente que pensou na finalidade de todas as coisas, em sua essência e imprimiu-lhe uma forma,
constituindo seu ser.
Assim, o pensamento metafísico de Aristóteles conduz a uma teologia, a uma teoria de Deus, pois a exis-
tência de algo implica necessariamente a existência de Deus. É precisamente o pensamento de Aristóteles
que será retomado na Idade Média por Tomás de Aquino.

O nominalismo
Ao realismo de Guilherme de Champeaux contrapõe-se o nominalismo de Roscelino de Compiégne
(1050-1120). Guilherme de Ockham (1285-1347), por sua vez, adota o nominalismo, que implica uma
crítica ao platonismo. Segundo o nominalismo, os universais são palavras criadas, nomes, emissões de
sons, sem nenhuma referência a algo objetivo, sem correspondência com um ente real. Assim, por um
lado, o universal é a referência de um termo, e não uma entidade real. Por outro lado, contudo, não se
trata apenas de uma palavra, uma vez que na mente existe o correlato, o conceito, graças ao qual é pos-
sível fazer a referência.
Para o nominalismo de Guilherme de Ockham, os termos e os conceitos são suficientes para falar dos
universais. Não é preciso supor a existência de entidades reais universais, como acontece no realismo pla-
tônico. Não é necessário multiplicar ao infinito a existência de entes, pois isso tampouco ajuda a explicar a
natureza das coisas particulares.

O conceitualismo
Pedro Abelardo (1079-1142) foi um dos pensadores que desenvolveu essa concepção conceitualista. Em
sua Lógica para principiantes, argumenta que os universais são conceitos que existem na mente e servem
como instrumentos para relacionar objetos particulares. Por exemplo, ao afirmar “isto é um boi”, o conceito
“boi” está unindo atributos ou qualidades comuns a objetos particulares. “Reflitamos primeiramente a respei-
to da causa comum. Cada um dos homens, distintos uns dos outros, embora difiram tanto pelas próprias es-
sências quanto pelas formas – como lembramos acima ao investigarmos a física da coisa – se reúnem naquilo
que são homens”, indica Aberlado em Lógica para principiantes.
Abelardo mantém a ideia de que os universais existem como pensamentos que têm referência no
particular das coisas. O universal, para Abelardo, não é somente um som ou uma emissão de voz, mas
um sermo, uma palavra com significado, devido ao seu uso referencial. Nesse sentido, o conhecimento
resulta desse processo de abstração, pois a distinção entre matéria e forma não existe na natureza, mas
é feita pelo intelecto.
Em suma, os conceitos universais como tais não são entidades reais ou metafísicas, como sustentavam
os realistas, nem palavras vazias, como afirmavam os nominalistas. Para Abelardo, portanto, a existência
dos universais está relacionada a uma intencionalidade do pensamento, a um pensamento que se volta para
um objeto. Os universais são discursos mentais que fazem a ligação entre a mente e a realidade concreta.

PROBLEMATIZANDO
1. Considerando a discussão sobre a questão dos universais, que relação há entre as palavras e a reali-
dade? Qual das três posturas apresentadas lhe parece mais sensata?

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5. NOS CAMINHOS DA DÚVIDA E DA DIAL TICA
THITI SAICHUA/SHUTTERSTOCK

Pedro Abelardo (1079-1142) foi filósofo escolástico e teólogo. Em sua obra


Sic et non, ou seja, Pró e contra, renovou o método de ensino da escolástica.
FÉ Esse método consistia em opor as afirmações positivas às negativas. Nesse pro-
RAZÃO cedimento dialético, ele realiza um exame crítico para resolver as controvérsias.
Com isso, ele não aceita passivamente a autoridade como critério de verdade. Ao
lançar a dúvida sobre cada uma das teses, aparentemente contrárias, que esta-
vam em disputa, ele fortaleceu o uso da razão crítica e o combate às afirmações
dogmáticas aceitas de modo acrítico.
Na concepção cristã
medieval, entre fé e
razão não poderia haver A i l i em A el
contradição, tampouco
irracionalidades, uma vez
que Deus, logos eterno, Em sua tentativa de compreender a verdade das coisas, Abelardo tinha consciên-
seria a fonte da razão e da cia dos limites da razão. Essa consciência foi fundamental para que valorizasse a
fé, e ele não se contradiria. permanente busca por maior compreensão. Abelardo reconhece o grande valor
da dúvida para a pesquisa tanto filosófica como teológica. Em sua percepção,
seria pela dúvida que poderíamos construir o caminho do conhecimento da ver-
dade. Portanto, ele estabelece a dúvida como ponto de partida, como método,
pois ela teria a vantagem de fomentar a atitude crítica e investigativa.
Uma vez estabelecida a dúvida, no caso de posições contrastantes, como ven-
cê-la e superar o impasse? O primeiro e fundamental passo seria efetuar a análise
linguística para, em seguida, comprovar a autenticidade do texto, usualmente
bíblico. O importante aqui é perceber uma preocupação de caráter científico apli-
cada à investigação.
Para Abelardo, esse recurso à dialética alimentaria a consciência e a atitude
crítica, condições fundamentais para que as afirmações não fossem somente aco-
lhidas com base na autoridade de quem fala, mas também com base nos argu-
mentos racionais de sustentação da fala. Sem essa dimensão dialógica, a Bíblia
seria como um espelho colocado diante de um cego.
Com a consciência da limitação da razão humana, Abelardo buscava tornar
mais compreensível o mistério cristão, e não profaná-lo ou degradá-lo. Em seu
procedimento pedagógico, ele partia de uma concepção na qual a fé não deveria
crer em algo absurdo. Mesmo que as verdades bíblicas possam ser incompre-
ensíveis, elas deveriam ser inteligíveis, no sentido de trazerem dentro de si uma
lógica, uma racionalidade, uma coerência. Por isso, deveria haver um diálogo com
a razão crítica, para que a leitura cristã não caísse no absurdo e no ridículo do
irracional, do ininteligível para pessoas inteligentes.
Com esse procedimento filosófico, Abelardo torna o discurso teológico aces-
sível à razão. Nesse procedimento, o que se buscava não era uma razão que
eliminasse a fé, mas uma atitude racional que tornasse o conteúdo da fé mais
transparente e inteligível.
Um dos grandes legados de Abelardo para a filosofia com seu procedimento
dialético, no qual a razão problematizava cada uma das afirmações em disputa,
foi a crítica ao princípio da autoridade como critério de verdade.
O procedimento dialético trouxe à vida pessoal de Abelardo muitos conflitos.
E esses conflitos, contextualizados, podem ser lidos como indicativos de um novo
contexto cultural.

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PROBLEMATIZANDO

FRIPPITAUN/SHUTTERSTOCK
ZURIJETA/SHUTTERSTOCK

Muçulmanos dão voltas ao redor da Caaba, dentro da Grande Mesquita, em Meca, na Cristãos católicos se reúnem na Praça
Arábia Saudita. de São Pedro, no Vaticano, para ouvir as
palavras do papa, em 2007.

1. No senso comum existe uma expressão que diz: “Onde termina a razão começa a fé” ou “nos limites
da razão inicia a fé”. Com base no pensamento de Agostinho e em conformidade com o pensamen-
to de Tomás de Aquino, é defensável esse ponto de vista?
2. Antecipando, historicamente, a afirmação sempre lembrada de Galileu: “A Bíblia não nos diz como
são feitos os céus, mas o que devemos fazer para chegar até lá”. Partindo dessa afirmação, você
julga ser viável um diálogo entre ciência e religião?
3. Considerando o fenômeno da fé, em sua relação com a razão, encontramos diferentes realidades
nas diversas culturas. Como você avalia a relação fé e razão na história da humanidade? Você acredita
que a fé torna a razão cega? Ou lança luzes que a potencializam? E a razão pode ajudar a explicar os
mistérios da fé?
4. Para o teólogo Alberto Magno (1196-1280), algo pode ser incognoscível, impossível de ser conhecido
através da razão, mas capaz de ser interpretado teologicamente, através da fé. A filosofia, permane-
cendo no limite da razão, não pode afirmar nem negar nada sobre a criação, eternidade do mundo
e imortalidade da alma. Em contrapartida, para o teólogo, que parte da fé, o mundo é criação divi-
na e a alma é chamada para a eternidade. Daí a conhecida afirmação: “As coisas teológicas não se
conjugam como filosóficas em seus princípios”. Essa afirmação implica necessariamente a oposição
entre filosofia e teologia? Justifique.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Considerando a controvérsia sobre os universais, Abelardo propõe uma solução diferente dos nomi-
nalistas e dos realistas.
• Apresente a solução de Abelardo, sinalizando para as diferenças e complementaridades.
2. Com base nas reflexões feitas nesse eixo temático, redija um texto sobre o modo como os pensado-
res cristãos latinos elaboraram a relação entre fé e razão.

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4
Eixo Temático

ÉTICA E
POLÍTICA

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
• As características formativas da noção de
Você

Estado moderno.
• A soberania e o problema do fundamento
da autoridade.
• A relação entre os poderes espiritual e
temporal.
• A história em busca da redenção humana,
na perspectiva cristã.
• As articulações entre lei divina eterna,
lei natural, lei humana e lei
divina positiva.
• As relações entre erro e intencionalidade.

Temas:
1. Os dois poderes: a Igreja e o Estado Na consideração da relação entre ética e política, uma das perspectivas temáticas para
um projeto interdisciplinar de reflexão filosófica pode ser a respeito da propriedade
privada e de sua função social. Sugerimos envolver as disciplinas de História, Sociologia
2. A felicidade como bem supremo e Geografia, para um estudo comparativo entre as concepções medievais, modernas e
contemporâneas de propriedade e sua relação com o tema da justiça.
3. Teoria do direito em Tomás de Aquino
4. Ética da intenção

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1. OS DOIS PODERES: A IGREJA E O ESTADO
Pode-se falar em Estado?

PANTEÃO DE PARIS, FRANÇA


Na Idade Média, pode-se falar em Estado, em sentido
compatível com a noção de Estado moderno? Quais são os
elementos principais que deveriam estar presentes para que
se possa falar em Estado?
Estudiosos afirmam que as organizações europeias surgi-
das depois do ano 1100 começaram a apresentar determi-
nadas características que se aproximam de uma possível e
razoável noção de Estado: extensão territorial, ideia de po-
der supremo, relativo grau de integração entre os súditos,
com a presença de um sentimento de identidade comum.
Essas características, atributos do Estado, podiam ser encon-
tradas na Igreja Católica, a partir do século XI, bem como a
estabilidade da instituição e a teoria do poder supremo.
Depois de um longo período de migrações, invasões e
conquistas, a Europa começou a vivenciar uma relativa es-
tabilização. Com isso, começaram a se formar instituições
duradouras e impessoais, que são uma das características
do Estado. Outro aspecto muito importante é o do consenso
quanto à necessidade de haver uma autoridade suprema,
que recebesse dos súditos a lealdade.
Entre os séculos XII e XIV, a formação dos Estados Nacio-
nais traz indicativos de uma mudança muito profunda na
concepção de poder político, especialmente em relação ao
problema do fundamento da autoridade.
Joana d’Arc na Catedral de
Reims durante a coroação
O fundamento da autoridade do rei Carlos VII (1890), de
Jules Eugène Lenepveu.
Afresco.
Um dos elementos ideológicos que constituíram o Estado moderno é a noção
Na concepção medieval,
de soberania. Na Idade Média, existiam muitos conflitos de jurisdição entre papas, o poder da Igreja, por ser
reis e imperadores. Esses conflitos estão na origem da ideia moderna de Estado de natureza espiritual e
soberano, ou seja, a noção de soberania exclusiva sobre um determinado território. compromissado com a
Dentre os modelos de legitimação do poder da autoridade, podemos falar salvação dos homens, é
superior ao poder
basicamente de dois: o modelo ascendente e o modelo descendente. Na perspec- temporal e terreno.
tiva ascendente, afirmava-se que o povo seria a fonte do poder, que escolheria
seus dirigentes. De modo diferente, o modelo descendente afirmava que o poder
pertenceria a um ser supremo. No cristianismo, esse ser supremo era Deus. Todo
poder viria de Deus. O representante de Deus, o papa, seria detentor do poder
supremo, podendo, até mesmo, dar posse a governantes temporais.
Aqui também é importante dar atenção a um aspecto fundamental na ideia
de poder soberano: o papa não seria uma pessoa física, e sim um cargo, e desse
cargo viria o poder. Essa visão do papa, que afirmava a jurisdição religiosa e se-
cular da Igreja Católica, encontrava um de seus fundamentos em uma passagem
bíblica, em que Jesus teria dito a Pedro: “Em verdade vos digo que tudo o que
ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desli-
gado no céu.” (Mateus, 18, 18).

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Outra aplicação dessa noção, em um modelo descendente de poder, foi a concepção do poder supremo
transmitido diretamente de Deus para os governantes. Historicamente, isso se verificou no Absolutismo
durante os séculos XVI e XVII.
Seguindo o pensamento de Tomás de Aquino, outra interpretação afirmou que o poder seria concedido por
Deus ao povo. E do povo viria a legitimidade do poder de reis e imperadores. Com base nessa fundamentação
seria possível, após o período da Reforma, uma argumentação contrária ao poder absoluto dos monarcas.
Durante a Idade Média, praticamente, não se duvidava ou se questionava a noção de que Deus seria
o legislador, o fundamento da lei. A questão disputada estava em torno da mediação, da representação.
Quem teria o poder de legislar em nome de Deus, considerado a fonte da lei? A concepção hegemônica
afirmava que o papa era o representante de Deus. Aos responsáveis pelo poder temporal era atribuída a
responsabilidade de administrar os assuntos humanos, em conformidade com as normas divinas.
Em termos culturais, a atuação da Igreja Católica foi fundamental, no sentido de preservar a memória
filosófica e a herança da cultura greco-romana nos muitos mosteiros que existiam na Idade Média. Consi-
derando o contexto da época, as questões mais importantes seriam as que se referiam à salvação e à vida
eterna. Por isso, o poder da Igreja seria de ordem superior, de
BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS, FRANÇA

natureza espiritual, e agiria sob as bênçãos especiais de Deus,


com a missão de conduzir as pessoas, por meio da educação
e da devoção, à contemplação das realidades últimas ou pri-
meiras. Em contrapartida, considerando a essência histórica
do poder temporal, sua função seria zelar pelas necessidades
humanas neste mundo, de ordem inferior.
A tensão entre os dois poderes assumiu diferentes expres-
sões no decorrer da história, criando inúmeros conflitos. Na
obra A cidade de Deus, Agostinho expressa esses conflitos na
convivência de duas “cidades”: “a cidade de Deus” e a “cidade
dos homens”, uma é o espaço da graça, da fé e da eternidade;
a outra é o lugar do pecado, da vaidade e da finitude.
Até o século XI, a formação dos pensadores medievais
estava fundamentada nos estudos dos pensadores da patrís-
tica. A partir do século XII, novas referências começaram a
romper a hegemonia que os clérigos exerciam no campo da
fundamentação teórica. O surgimento das universidades me-
rece destaque como núcleo de formação cultural e ideológica.
Nessas universidades, especialmente a de Bolonha, aprofun-
daram-se os estudos de direito, ética e política.
Encontro de doutores na Universidade de Paris
A partir do século XIII, começou a se divulgar nas univer-
(séc. XVI), ilustração extraída do manuscrito sidades a tradução para o latim de duas obras de Aristóteles:
Cânticos reais (1537). A política e Ética a Nicômaco. Com o acesso a essas leituras,
muitos estudiosos começaram a construir grandes reflexões sobre regimes políticos e iniciaram a fundamen-
tação para a supremacia do poder político dos reis.

A monarquia e o bem comum


No Ocidente medieval, as unidades políticas mais fortes eram os reinos e neles se fortaleciam as convic-
ções de que a monarquia seria o melhor regime político e a lei civil seria, acima de qualquer outra, a mais
indicada para regular as relações das pessoas na sociedade. Ao monarca cabia a função de garantidor do
bem comum, da paz e da estabilidade, sendo o árbitro das disputas internas, uma vez que sua presença
reunia um potencial de unidade e de universalidade.

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Houve um grande esforço dos pensadores medievais em resgatar da tradição grega clássica a importân-
cia pública do rei para o bem comum. De regno é uma das obras significativas da época, escrita por Tomás
de Aquino, por volta do ano de 1267, que se inspirou na sociedade política de Aristóteles. O conteúdo dessa
obra serviu como um modelo para as ações dos príncipes medievais. Partia-se da ideia de que o homem
seria um ser social e o rei teria a missão de governar a comunidade humana para o bem comum. Ele deveria
lutar contra as tentações da tirania.

PROBLEMATIZANDO
1. Considere a reflexão em torno dos fundamentos da autoridade e discuta com os colegas, buscando
justificar sua resposta:
• Quais eram as maiores convicções políticas do período medieval?

2. A FELICIDADE COMO BEM SUPREMO


A temática da felicidade como bem supremo, presente desde as reflexões de Aristóteles, foi retomada
na Idade Média. Na Unidade 2, nós refletimos sobre esse tema, sob a perspectiva antropológica. Nesse mo-
mento, sob a perspectiva da ética e da política, retomaremos esse aspecto.
Segundo Agostinho, a ética ou a filosofia moral é uma investigação acerca do bem supremo, daquele
bem absoluto, fim em si mesmo, a felicidade. Essa tradição de pensamento vem dos filósofos gregos. Con-
tudo, Agostinho trouxe uma novidade radical: o desejo de felicidade seria inseparável da ideia de imortali-
dade, de vida feliz em Deus, na eternidade.
Na obra A cidade de Deus, Agostinho traduziu essa concepção de felicidade, como bem supremo,
em Deus.

O bem supremo da cidade de Deus é paz perfeita e perpétua, não no nosso trânsito mortal do
nascimento à morte, mas em nossa liberdade imortal de toda adversidade. Essa é a vida mais feliz
– quem pode negá-lo? – e comparada a ela a nossa vida sobre a Terra, não importa quão abençoa-
da com a prosperidade externa ou os bens da alma e do corpo, é inteiramente miserável. Todavia,
aquele que a aceita e dela faz uso como um meio para aquela outra vida pela qual anseia e espera,
não pode de modo não razoável ser classificado como feliz mesmo agora – feliz mais propriamente
em esperança do que em realidade.
AGOSTINHO. A cidade de Deus. In: KENNY, Anthony. Filosofia medieval. Trad. Edson Bini.
São Paulo: Loyola, 2008. p. 286, v. 2.

Essa concepção de felicidade está profundamente vinculada a uma noção de que haveria uma história
da salvação, construída por Deus em comunhão com seres humanos. Vamos voltar nosso olhar a respeito
do sentido da história, à luz do pensamento de Agostinho.

O sentido da história e a responsabilidade humana


Para compreender o ponto de vista cristão das realidades terrenas, do governo das cidades e das es-
tratégias políticas, devemos considerar a visão de história que decorre da tradição judaico-cristã. Nessa
tradição, inaugura-se uma concepção de história que tem relação com a modificação da noção de tempo.
Sendo o tempo não mais visto como circular, mas linear, instaurou-se uma reflexão que pensou em início,
meio e fim. A história caminharia para a perfeição, existindo uma finalidade interna a ela, uma história
ordenada a uma finalidade, que nasce na criação e caminha para a salvação, para a redenção.

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Nessa forma de pensar, tudo tem um sentido, uma razão de ser, embora nossa inteligência possa não
compreender. Cada acontecimento passa a ser concebido como uma preparação para o momento seguinte.
Por isso, muitos alimentaram um ideal de vida contemplativa, de entendimento dos acontecimentos como
se fossem expressão de uma vontade divina. Afinal, Deus seria a origem, sentido e fim de todas as coisas.
Na articulação entre ética e política, recordando a primazia que o elemento espiritual exercia sobre o
temporal, o decorrer da história solicitaria a responsabilidade da criatura inteligente e racional, consciente e
livre. A ação humana deveria consistir no uso da razão para a correta administração da vida terrena.
Para bem entendermos os elementos aqui implicados, será fundamental considerarmos a teoria do di-
reito que Tomás de Aquino desenvolveu, na qual ele reflete sobre as relações que existiam entre a vontade
divina, expressa em sua lei eterna e na lei natural, e as leis humanas.

3. TEORIA DO DIREITO EM TOMÁS DE AQUINO


Retome com os estudantes a concepção linear de história, sob a perspectiva judaico-cristã. Nesse contexto, insere-se a teoria do direito de Tomás de Aquino.

Lei divina eterna, lei natural, lei humana e lei divina positiva
Na reflexão de Tomás de Aquino, a inteligência divina tudo governa. A ciência divina, que tudo saberia,
teria desejado manifestar-se eternamente, mediante a criação, e estabelecer comunicação com suas criaturas.
Retomando a reflexão inicialmente feita por Agos-

MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO


tinho, Deus teria criado o tempo e, nele, todas as cria-
turas. Os seres humanos teriam sido criados à imagem
e semelhança de Deus, livres e racionais.
No princípio, existiria uma vontade e lei divina eter-
na, que seria o plano racional de Deus e estabeleceria
a ordem do Universo. Essa ordem existiria na mente
de Deus, uma sabedoria que dirigiria todas as criatu-
ras para a finalidade de sua criação. Dessa lei divina
eterna derivariam as outras leis que constituem a teo-
ria do direito de Tomás de Aquino.
Com o ato da criação dos seres humanos, Deus
teria soprado na interioridade dos homens sua lei
eterna. Dessa forma, existiria uma lei natural inscrita
em nossos corações. As expressões dessa lei natural
seriam as nossas manifestações que dizem: “é proibi-
do matar”; “não é correto roubar”; “deve-se fazer o
bem e evitar o mal” etc. Contudo, as leis humanas se
tornaram necessárias devido à fragilidade da huma-
nidade e a possibilidade de mau uso do livre-arbítrio.
Derivada da lei natural nasceria a lei humana, isto
é, a lei jurídica, o direito positivo, que teria surgido
para desviar os indivíduos do caminho das práticas do São Tomás de Aquino (séc. XVIII), atribuído a Jesuíno do
mal, da violência e das injustiças. Monte Carmelo. Óleo sobre tela, 172 cm × 135 cm.

Se a lei humana derivou da lei natural, não deveria haver contradição entre elas. Caso a lei humana fosse
contrária à lei natural, ela deixaria de ser um guia para as nossas ações, se tornaria corrupção da lei natural
e, portanto, nos afastaria do ideal prescrito por Deus a nós. Nesse sentido, se houvesse uma orientação
humana contra a lei da natureza, essa orientação não deveria ser seguida. Acima da lei humana estaria,
portanto, a lei divina.
Devido às corrupções e ao afastamento da vontade divina, inscrita na lei natural, Deus teria feito duas
alianças fundamentais com os seres humanos na história. Da primeira aliança, teriam nascido as tábuas

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da lei, com Moisés. Contudo, as infidelidades e as corrupções humanas teriam continuado. Em momento
posterior, Deus teria enviado seu próprio filho, Jesus Cristo, ao mundo, para relembrar a sua vontade aos
humanos. Dessa passagem pela vida terrena, teriam surgido os evangelhos, os textos bíblicos de uma nova
aliança de Deus com os homens. Existiria, assim, uma dimensão histórica, encarnada e revelada dessa lei
divina, que se encontraria nos evangelhos. Essa lei divina positiva, escrita, teria por objetivo corrigir tanto as
imperfeições da lei humana quanto as equivocadas interpretações da lei natural.
O filósofo inglês Anthony Kenny expressa muito bem essa visão, ao falar da concepção política de Tomás
de Aquino. Vejamos o trecho a seguir.

Legisladores humanos, a comunidade política ou seus delegados utilizam sua razão com o intuito
de conceber leis para o bem geral de Estados particulares. Mas o mundo como um todo é regido pela
ação de Deus. O plano eterno do governo providencial, o qual existe em Deus como governante do
Universo, é uma lei no sentido verdadeiro. É uma lei natural inata em todas as criaturas racionais
sob a forma de uma tendência natural a buscar a conduta e meta a elas apropriadas.
É essa tendência que se torna articulada nos princípios fundamentais da razão prática.
Essa lei natural é simplesmente a participação das criaturas racionais na lei eterna de Deus.
Obriga-nos a amar a Deus e a amar ao nosso próximo como a nós mesmos. É pela aplicação desse
princípio que alcançamos regras morais específicas para reger a ação em áreas como homicídio,
relações sexuais e propriedade privada.
KENNY, Anthony. Filosofia medieval. Trad. Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2008. p. 301. v. 2.

PROBLEMATIZANDO
1. Segundo Tomás de Aquino, uma norma que contradissesse a lei natural não seria justa e, portanto,
não seria lei. Dessa maneira, a lei natural seria a expressão da lei divina eterna e a lei humana deve-
ria proceder dela e estar em sintonia com ela.
• Considerando essa reflexão, será que é possível ainda percebermos a atualidade dessa visão?
• Como você avalia a existência de uma lei natural?
• Existiriam leis humanas que contrariam essa suposta lei natural?

Nesse terreno da ética, da política e da legislação, existem muitos temas nos quais poderíamos buscar
a aplicação de reflexões feitas por pensadores medievais. Considerando a realidade brasileira, um desses
temas seria o da propriedade privada e sua função social. Optamos por trazer essa reflexão considerando
sua atualidade. A reflexão filosófica, de modo integrado com o olhar histórico, geográfico e sociológico,
poderá contribuir em muito para uma compreensão mais complexa dessa realidade.
Vejamos o texto a seguir, no qual o autor nos traz a visão de Tomás de Aquino sobre a propriedade.

O dever de justiça segundo Tomás de Aquino


Santo Tomás de Aquino, grande doutor da Igreja, faz parte da época posterior dos Padres da Igreja.
Ele é o primeiro a elaborar um tratado sobre a justiça do ponto de vista teológico. [...]
A definição dada por Santo Tomás sobre a justiça encontra-se na Suma Teológica (II-I.q.58.a.1): “Se
alguém quiser reduzir a definição da justiça a sua devida forma, poderá dizer que a justiça é o hábito
segundo o qual alguém, com constante e perpétua vontade, dá a cada qual seu direito”. Isto é, a
justiça é uma questão de direito, garantindo a cada pessoa a satisfação do próprio direito.

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O doutor da Igreja apresenta o bem comum, na linha do pensamento dos padres da Igreja, ressal-
tando o bem comum como horizonte de relacionamento entre o homem e as coisas. Ele afirma, na
grande obra Suma Teológica (II-II, q.66, art.1.), que o homem não deve ter as coisas terrenas como
próprias, mas como bem comum, para que todos possam usá-las quando precisarem. [...]
Deus é o verdadeiro senhor da criação, mas a ofereceu à humanidade para que a use em favor do
bem de todos. [...] A propriedade é importante, segundo Santo Tomás, porém sempre para conseguir
fins sociais. O fim não é o bem do indivíduo, mas da comunidade. [...]
Beneficiar os indivíduos, porém sem excluir ninguém e com equidade, é uma característica da
prioridade do bem comum e é um meio para uma justa distribuição dos bens, respeitando o di-
reito de que os bens devem beneficiar a todos e que cada um tem direito de usar do bem comum
para a própria vida. Por isso, a pessoa, segundo Santo Tomás, tem o direito de possuir as coisas,
mas tem também o dever de usá-las segundo o necessário para a vida, partilhando tudo aquilo
que excede o necessário. [...]
A justiça é, então, a virtude que incentiva a pessoa a estar atenta às necessidades do outro e a
respeitar também a alteridade de cada um porque cada pessoa é um outro. Tal alteridade torna-
se comunidade e igualdade, pois quando cada um receber aquilo que lhe é necessário e que lhe
pertence por direito, será alcançada a partilha dos bens da terra como Deus planejou e haverá
finalmente igualdade e comunidade. [...]
A propriedade privada não pode ter um caráter prioritário, mas deve ser subordinada ao bem comum.
O direito de propriedade não é um direito natural, mas é um direito positivo [escrito pelos homens]
que deve ser subordinado ao direito natural ou divino do bem comum. O direito à propriedade não
pode impedir que se satisfaça as necessidades fundamentais de todos. [...]
SELLA, Adriano. Ética da justiça. São Paulo: Paulus, 2003. p. 177-183.

PROBLEMATIZANDO
1. Releia o último parágrafo desse texto sobre Tomás de Aquino e responda:
• Como você se posiciona diante destas questões?
• Quais seriam as implicações práticas da aplicação desse princípio?

4. ÉTICA DA INTENÇÃO Inicie essa abordagem problematizando com os estudantes a noção de intenção no campo moral. Qual é a
importância da intenção? Ela deve ser considerada em nossos juízos?

Pedro Abelardo (1079-1142) é considerado o maior filósofo e teólogo do século XII. Sua principal obra é
a Dialética, que foi usada como manual de lógica, pois continha excelentes argumentos para a sustentação
dos debates filosófico-teológicos.
Em sua reflexão, um dos maiores destaques é também a ética da intenção, na qual afirma que o erro de
uma ação não consiste propriamente na ação, mas na intencionalidade, no movimento do espírito que a
realiza. Em sua reflexão ética, Abelardo deixou bem claro que a consciência é e deveria ser a fonte e o centro
de irradiação da vida moral e das intenções do agir. Sem a consciência, não se poderia qualificar uma ação
como boa ou má do ponto de vista moral.
Por isso, Abelardo não denominou como pecaminosa a primeira vontade ou a impulsividade do desejo,
mas, acima de tudo, o consentimento à vontade e ao desejo, pois ali se verificaria a intenção.
Essa diferença, em nossa vida, entre as dimensões do irracional e instintivo, de um lado, e a dimensão
racional e consciente, de outro, se tornou distinção fundamental para falarmos em esfera moral. As nos-
sas inclinações naturais, impulsos e desejos passaram a ser vistos como pré-morais, enquanto o campo
propriamente moral seria constituído pela iniciativa do sujeito, suas intenções e propósitos conscientes.

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Com isso, Abelardo trouxe uma dimensão fundamental para o campo moral:

MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA


a intentio, a intenção. Ele afirmou que a manifestação e a exteriorização dos atos
devem ser vistos como reflexões de uma interioridade.
Ao falar da importância da intenção, Abelardo deixou clara a sua convicção de
que nós não somos naturalmente maus, nosso corpo não estaria estruturalmente
possuído e poluído pela concupiscência, pelo prazer que nos arrasta para baixo,
e nem seríamos inevitavelmente arrastados pelo mal e para o mal. Essa era uma
visão comum na época e que alimentava uma ideia ordinária de que era impor-
tante fugir e abandonar a vida terrena.
Abelardo, enfaticamente, afirmou que as nossas inclinações e paixões humanas
não são pecaminosas, em si mesmas, senão em decorrência de sua adesão voluntária
e livre às solicitações dessas inclinações.

PROBLEMATIZANDO
1. As pessoas julgam umas às outras com muita facilidade. Normalmente, ig-
noram os reais motivos e as intenções do agente.
• E onde estaria a culpa, na ação em si, nas consequências do ato ou nas
motivações do agir?
2. As nossas inclinações naturais, impulsos e desejos passaram a ser vistos,
Pedro Abelardo (1853), de Jules
em Abelardo, como pré-morais, enquanto que o campo propriamente mo-
Cavelier. Escultura.
ral seria constituído pela iniciativa do sujeito, suas intenções e propósitos
conscientes. Assim, não se pode chamar de pecado a própria vontade ou o
desejo de fazer aquilo que não é lícito, mas sim o consentimento à vontade
ou ao desejo.
• Como você se posiciona diante dessas afirmações?
• Qual é a importância de se conceber os impulsos e os desejos como
pré-morais?

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5
Eixo Temático

ARTE E
ESTÉTICA

bre :
e r so
d
en
pr
ia
va
Você

• Vitrais, miniaturas, iluminuras como meios


de ensino do catolicismo.
• O deleite estético no pensamento de
Agostinho.
• Os critérios usados para definir a beleza
segundo Tomás de Aquino.

Temas:
1. Visão teocêntrica da arte O estudo desse eixo temático abre a possibilidade de um projeto de reflexão
filosófica, de estudo interdisciplinar, especialmente envolvendo Arte e Literatura,
tendo como objetivo a compreensão e o reconhecimento dos traços da filosofia
2. A teoria do belo em Agostinho medieval nas expressões artísticas mais significativas da época. Entre as muitas
perspectivas possíveis, sugerimos atenção aos elementos de fé que podem
3. Condições para a beleza em Tomás de Aquino ser percebidos nos estilos gótico e românico. Como as dimensões teocêntrica,
estamental e hierárquica estão presentes nas expressões artísticas da época?

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1. VISÃO TEOC NTRICA DA ARTE

CLAUDIO GIOVANNI COLOMBO/SHUTTERSTOCK


Vitrais no interior da
Durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, a cultura ocidental foi mar- Catedral de Chartres,
cada por uma filosofia condicionada por uma visão teocêntrica de mundo. Nesse França.
contexto, a produção artística também sofreu as influências e os condicionamen- Na cultura medieval latina,
tos socioculturais. os vitrais eram uma das
maneiras de proporcionar
Nessa cultura, na qual o pensamento religioso exercia hegemonia, a arte era uti-
o acesso aos conteúdos
lizada como meio de contemplação, adoração, instrução e catequese referente aos da fé.
conteúdos da fé. Dessa forma, mosaicos, pinturas e vitrais são exemplos de espaços
nos quais as pessoas tinham acesso à doutrina ou aos dogmas do catolicismo.
Um dado interessante para ser observado nas obras de arte desse período é a
não identificação dos autores das obras de arte. Uma das formas de explicação
disso pode ser a relação entre fé e ideologia religiosa, na qual Deus aparecia como
autor das obras, servindo-se dos humanos para realizar a sua vontade. A arte se-
ria instrumento para captar e representar uma totalidade de sentido que existiria
na criação realizada por Deus.
Por isso, os temas religiosos costumavam ser enfatizados nas formas de ex-
pressão artística mais comuns nesse período. Com efeito, para a mentalidade
reinante, toda verdade e todo conhecimento provinha de Deus. Ele seria o autor
da beleza da criação, princípio e fim de tudo o que existe. A beleza da criação
seria uma cópia da infinita beleza de Deus. Qualquer beleza somente seria assim
porque provinha e participava da beleza eterna de Deus.

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VOC SABIA
Uma das maneiras que os cristãos primitivos adotaram para

LUIZ FERNANDO BOTTER


identificar a si mesmos e às suas casas era uma representação de
peixe. O termo grego ichthus, significando "peixe", é o símbolo
do cristianismo. Na imagem ao lado, encontramos as referências
a Cristo, como a primeira e a última letra do alfabeto grego, alfa
e ômega, indicando o princípio e o fim de tudo o que existe.

2. A TEORIA DO BELO EM AgOSTINHO

GEMÄLDEGALERIE ALTE MEISTER, DRESDEN, ALEMANHA

Noite santa (1530), de Antonio


Allegri da Correggio. Óleo sobre
tela, 256,5 cm × 188 cm.
De acordo com a visão
agostiniana, em toda matéria
criada seria possível encontrar
as marcas da beleza do criador.

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Profundamente marcado pelo racionalismo platônico, o pensamento do filósofo e teólogo Agostinho
(354-430) concebe a arte em sua função subsidiária, secundária, a serviço do ideal contemplativo. Nessa
dinâmica, a arte poderia, inclusive, afastar o ser humano da vida ideal.
Uma expressão disso encontra-se na crítica que Agostinho faz aos espetáculos, por ser espaço e tempo de
ilusões, de fingimentos, de máscaras. Por essas e outras razões, a profissão de comediante costumava não ser
bem vista. Essa condenação ao teatro tem relação com a condenação a tudo o que é fictício. Nele encontra-se
o choro falso, a alegria não verdadeira. Julgava-se o costumeiro uso de máscaras como não agradável a Deus.
Além da ilusão, o teatro seria também expressão do ócio vazio, do tempo perdido.
Em Confissões, Agostinho literalmente confessa sua paixão inicial pelo teatro e sua luta para livrar-se dela.

Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios de imagens de minhas misérias e de alimento pró-


prio para o fogo das minhas paixões. [...]
Que compaixão é essa em assuntos fictícios e cênicos, se não induz o espectador a prestar auxílio,
mas somente o convida à angústia e a comprazer ao dramaturgo, na proporção da dor que experi-
menta? [...]. Amamos, portanto, as lágrimas e as dores. [...]
Em tempos passados, compartilhava no teatro da satisfação dos amantes que mutuamente se go-
zavam pela torpeza, se bem que espetáculos destes não passassem de meras ficções. [...]
Tal era a minha vida! Mas isso, meu Deus, podia chamar-se vida?
AGOSTINHO. Confissões. Livro III. Trad. J. Oliveira e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 80-82. (Os pensadores).

Para Agostinho, existe uma grande tentação no olhar humano, que consiste em se concentrar nas bele-
zas materiais e físicas. O perigo está em esquecer que elas são imperfeitas, pois são cópias, representações
que existem tão somente por trazerem as marcas de uma beleza imaterial. Por isso, elas devem ser instru-
mento que remeta o olhar ao autor e criador de toda a beleza.
MUSEU DE ARTE DE LOS ANGELES, ESTADOS UNIDOS

Santo Agostinho
(c. 1650), de
Phillippe de
Champaigne.
Óleo sobre tela,
78,7 cm × 62,2 cm.

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Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! E eis que habitáveis dentro de mim
e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme [sem beleza] lançava-me sob estas formosuras que criastes.
Estáveis comigo, e eu não estava convosco!
AGOSTINHO. Confissões. Livro X. Trad. J. Oliveira e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 285. (Os pensadores).

Na filosofia agostiniana, condicionada pela fé, toda a matéria que existe teria
sido criada por Deus. E mesmo antes da criação, do tempo, ela já estaria eterna-
mente na mente de Deus. Assim, toda criação brotaria da gratuidade e da perfei-
ção divina e traria, por isso, as marcas da beleza do criador.
Estando a beleza relacionada às marcas do criador, presentes em todo cria-
ção, a fealdade estaria relacionada à aversão, ao afastamento em relação a
Deus. Quanto mais próximo a Deus, mais brilho haveria; quanto mais distante,
maior palidez.
Dessa forma, o deleite estético não se encontraria no agrado dos sentidos,
mas na mente que reconhece no sensível a presença da beleza eterna. Essa seria
a ordem a ser vivida, pois a procura da verdade e da beleza se equivaleriam. Bon-
dade, beleza e verdade seriam correspondentes, encontradas no criador de toda
forma de vida.

3. CONDIÇ ES PARA A BELEZA EM TOM S


DE A UINO

PALAZZO MEDICI, FLORENÇA, ITÁLIA


A adoração dos anjos
(1460), de Benozzo Gozzoli
(detalhe). Afresco.
Segundo Tomás de Aquino,
cada anjo é uma criatura
espiritual única diante de
Deus, um ser imaterial,
incorpóreo, imortal e
incorruptível. Sendo
criaturas, os anjos também
contemplariam a beleza que
brota do criador.

Reinterpretando e atualizando a visão aristotélica de poiesis, que Aristóteles


desenvolve nas obras Ética a Nicômaco e Poética, Tomás de Aquino (1225-1274),
na Suma Teológica, concebe a arte como a aplicação do saber correto a algo que

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se produz. Portanto, a arte tem uma natureza primordialmente poiética, técnica, instrumental, voltada para
o operar, o fabricar. Em decorrência, existirão muitas formas de arte, necessariamente particulares, direcio-
nadas a finalidades específicas.
No pensamento de Tomás de Aquino, encontramos duas formas diferentes de artes: as artes liberais e
as artes servis ou mecânicas. As artes liberais, terreno do artista, eram formadas por sete disciplinas, clas-
sificadas em dois grupos. O trivium abrangia a gramática, a dialética e a retórica. O quadrivium abarcava
a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. As artes servis ou mecânicas, relacionadas à atividade
manual, estão no terreno da prática do artífice, do artesão.
O pensamento desenvolvido por Tomás de Aquino baseia-se em um pressuposto teológico, que é o ele-
mento de fé, segundo o qual tudo o que existe brota da bondade de Deus, que seria a fonte da verdade e
do bem. A singularidade da criação humana, como imagem e semelhança do criador, explicaria o fato de os
seres humanos terem uma atração para o belo e sentirem grande prazer ao contemplá-lo. Nessa experiência
contemplativa eles estariam em comunhão com o criador de toda beleza.
No pensamento de Tomás de Aquino, o belo seria transcendental, estaria relacionado ao ser divino e à
verdade eterna de Deus, onde habitaria a verdadeira harmonia. Com essa reflexão, o filósofo reforça a ideia
de contemplação como valor. Dessa maneira, há no belo, além da sensibilidade, campo da estética, uma di-
mensão intelectual, de contemplação.
E qual é a ideia de beleza que domina a reflexão filosófica e cristã de Tomás de Aquino? Em seu pensamen-
to, as condições ou os critérios que identificam a beleza apresentam três elementos fundamentais: integrida-
de, proporção e claridade.
Quando falamos em algo ou alguém que é integro, a que estamos nos referindo? Para Tomás, estaría-
mos nos referindo a uma unidade, ao ser verdadeiro, não falso, no qual não haveria oposição, divisão, va-
zios. Seria algo perfeito. Ao falarmos em proporção, estaríamos nos referindo à medida, à perfeita correção
entre as partes. No momento da contemplação aconteceria a fruição, o deleite espiritual. Na proporção,
o ser se revelaria como bom. Ao falar em claridade, Tomás concebe algo iluminado, uma manifestação de
luz. É nessa clareza que apareceria a verdade do ser. Diante da verdade aconteceria o esclarecimento. Tudo
ficaria claro na verdade.
Portanto, a unidade como integridade, a bondade como proporção e a verdade como clareza seriam as
expressões do verdadeiramente belo. E essa beleza original se encontraria somente em Deus, de onde deri-
variam os outros seres e as outras formas de beleza. Quanto mais belo fosse algo mais próximo do infinito se
encontraria. Assim se explicaria a nossa alegria ao contemplarmos a beleza de uma obra, pois ela nos reme-
teria ao ser transcendente.

PROBLEMATIZANDO
1. Leia a afirmação: Beleza tem luz, brilho, clareza; é integridade e perfeição, harmonia e proporcio-
nalidade.
• Essa concepção presente no pensamento de Tomás de Aquino permanece atual?
• Como você define beleza?
• Em conformidade com esse conceito, o que é o feio?

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE LEITURAS
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Étienne. História da fi- KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ociden-
losofia cristã. Petrópolis: Vozes, 1982. tal: filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 2008. v. II.
GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São STORK, Alfredo. Filosofia medieval. Rio de Janeiro:
Paulo: Martins Fontes, 2006. Zahar, 2003.

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A FILOSOFIA E
O ESPÍRITO MODERNO
TRIBUNA DE GALILEU, FLORENÇA, ITÁLIA

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4
Unidade
Unidade

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1
Eixo Temático

CONDIÇÃO
HUMANA

obre:
rs
nde
e

pr
ia • A transição da mentalidade teocêntrica medieval
va
para a mentalidade renascentista centrada na
iniciativa humana.
Você

• A concepção de virtude na Renascença.


• As reflexões de Pico della Mirandola sobre a
liberdade e a dignidade humana.
• A relação entre o aprimoramento do ser humano e
a qualidade do Estado segundo Leonardo Bruni.
• A amizade e a impossibilidade de instauração de
valores universais em Michel de Montaigne.
• A concepção de dignidade humana na filosofia
renascentista e moderna.
• A defesa da autonomia e da liberdade humana no
Iluminismo.
• O Esclarecimento como caminhada da menoridade
para a maioridade em Immanuel Kant.
• As críticas ao projeto iluminista de emancipação do
ser humano pela razão.

Temas: O tema da condição humana é um convite a um projeto de reflexão filosófica


sobre a dignidade humana. Entre as muitas possibilidades de construir a reflexão,
1. A mentalidade renascentista sugerimos algumas questões norteadoras: O princípio da dignidade é um princípio
absoluto, inerente a todo ser humano? O conceito de dignidade é uma construção
2. A autonomia e a dignidade humana cultural, uma noção relativa? Quais são as experiências negativas da humanidade
no que tange à dignidade humana? Quais são as formas de vida experienciadas
pelo povo brasileiro, que podem ser expressão de violência à dignidade? Existem
3. A dimensão social do ser humano pessoas que têm mais dignidade do que outras? Um excelente instrumento para
fazer esse estudo é considerar os princípios de nossa Carta Magna.
4. A diversidade cultural
5. O Iluminismo e o antropocentrismo moderno

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1. A MENTALIDADE RENASCENTISTA

CAPELA SISTINA, VATICANO

A sibila Eritreia (1509), de Michelangelo. Afresco, 360 cm 380 cm.


A sibila Eritreia (personagem da mitologia greco-romana, mulher
com poderes proféticos) está folheando um grande livro de profecias.
O conteúdo das profecias da personagem pode ser interpretado
pelos olhares apreensivos que as figuras no canto direito da imagem
exibem. Ao fundo da tela, dois assistentes estão representados: um
com a tocha acesa e o outro em momento de despertar.
Michelangelo usa o recurso da perspectiva e do sombreamento
claro-escuro, ideias que perpassam o espírito humano da Renascença.

Se na Idade Média o teocentrismo voltava-se para a contemplação dos ideais celestes, divinos e eternos,
o humanismo renascentista deu ênfase à autonomia humana. A transição do teocentrismo para o humanis-
mo foi uma revolução das ideias, uma profunda mudança na mentalidade. Durante o período medieval, a
primazia e a superioridade da fé subordinaram os poderes da razão à verdade previamente acolhida como
revelação divina.
Na transição para o pensamento moderno, a centralidade se colocou na iniciativa humana, servindo-se
da experiência e da razão autônoma, sem vínculos com a dimensão religiosa. Essa mudança ocorreu em
todos os aspectos da vida, envolvendo uma nova maneira de conceber o ser humano, o conhecimento, a
ética, a política, a estética e a cultura.
Nesse contexto, surgiu a teoria do jusnaturalismo, que defendeu a existência de direitos naturais, univer-
salmente válidos. Essa teoria estabeleceu o ser humano como agente principal de seu destino e a igualdade
natural entre os indivíduos. No jusnaturalismo o direito natural seria anterior a qualquer convenção, pois
decorreria da própria natureza humana. Essa condição tornará possível a construção de pactos ou contratos
(como veremos mais adiante nessa unidade, no eixo temático dedicado à ética e à política, ao estudarmos o
pensamento contratualista de Hobbes, Locke e Rousseau).

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A virtude: conquista de si mesmo
GALLERIA DELL'ACADEMIA, FLORENÇA, ITÁLIA

Em termos antropológicos, o humanismo acarretou uma con-


cepção de virtude que se afastou da concepção comum na Idade
Média. Os elementos centrais não foram mais a humildade, a re-
signação ou a obediência a uma vontade divina, mas o esforço em
assumir-se como construtor de seu destino.
Michel de Montaigne (1533-1592) foi um filósofo da Renascen-
ça. No texto a seguir, ele aborda a importância da atitude de su-
peração permanente de si mesmo. Nesse sentido, ele distingue a
virtude da bondade, dizendo que a virtude é mais louvável do que
a bondade. O título original desse texto, presente na obra Ensaios,
é “Da crueldade”. Contudo, a reflexão que escolhemos é sobre a
virtude. Por essa razão, tomamos a liberdade de alterar o título.
Vamos acompanhar a argumentação de Montaigne.

Davi, (1504), de Michelangelo. Mármore, 410 cm 133 cm.


Nessa escultura, Michelangelo buscou expressar o paradigma visual do novo
conceito de ser humano, que se construiu na mentalidade renascentista e
moderna. O destaque da obra está no equilíbrio entre emoção, sentimento
e razão. Esteticamente, a beleza transparece na harmonia, em sistemas de
medidas, que buscam a perfeição das proporções.

Da virtude
Parece-me que a virtude é coisa diferente, e supõe dificuldade e oposição e não pode existir
mais nobre do que as inclinações para a bonda- sem luta. Talvez seja por isso que qualificamos
de, que nascem em nós. [...] Mas a virtude revela Deus como bom, liberal, justo, mas não virtuo-
não sei o que de maior, mais ativo, do que dei- so, porquanto tudo o que faz é natural, não ne-
xar-se, sob a influência de uma feliz compleição cessitando nenhum esforço para realizá-lo. [...]
[inclinação], serenamente conduzir pela razão. A virtude recusa a companhia da facilidade;
Quem, por doçura e inclinação natural, esquece e que esse caminho cômodo, de declive suave,
as ofensas recebidas, comete uma bela ação, dig- pelo qual nos deixamos levar naturalmente, não
na de louvores; mas quem, profundamente feri- é o da verdadeira virtude. O caminho desta é
do e irritado, luta contra um terrível desejo de árduo e espinhoso. A virtude exige luta para se
vingança e pela razão consegue dominar-se, faz realizar, ou contra os obstáculos exteriores [...]
melhor sem dúvida. Aquele age certo, este virtu- ou contra as dificuldades íntimas provocadas em
osamente. O ato do primeiro é de bondade, o do nós por nossos desordenados apetites e as im-
segundo de virtude. Dir-se-ia que a virtude pres- perfeições da nossa natureza. [...]
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Livro II. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural,1991. p. 196-198. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. A concepção de virtude de Montaigne pode ser equiparada à noção de virtude que vem da tradi-
ção grega?
2. Que reflexões podem ser feitas sobre os dons pessoais e sua realização quando associamos a virtude
ao esforço, à luta e à superação?

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2. A AUTONOMIA E A DIGNIDADE HUMANA

GALLERIA DEGLI UFFIZI, FLORENÇA, ITÁLIA


Pico della Mirandola (1463-1494) é o pensador renascen-
tista que melhor reflete sobre os temas da liberdade e da
dignidade humana.
Em um contexto no qual as pessoas estão diante de novos
mundos a descobrir, por meio de extensas navegações e inten-
sos contatos culturais, seu pensamento consolida a ideia de que
o ser humano é o responsável por construir sua história, com
base na autonomia da razão, na liberdade e na potencialidade.
Para Pico, a dignidade humana, por estar vinculada à liber-
dade, não é algo dado ou acabado. Considerando a natureza
perfectível do ser humano, ele afirma que a pessoa tem o
desafio e a tarefa de conquistar-se a si mesma, de autodigni-
ficar-se. Para alcançar essa meta, a filosofia é indispensável.
Qual é essa nova concepção antropológica? Em que con-
siste a dignidade humana? Vamos acompanhar o raciocínio
do autor.
Pico della Mirandola
(c. 1400), em retrato de
Cristofano dell'Altissimo.

Não obstante tudo isso [a criação do Universo, minarás a tua sem estar constrito por nenhuma
pelo Supremo Arquiteto e Pai], ao término do seu barreira, conforme teu arbítrio, a cujo poder eu
labor, desejava o Artífice que existisse alguém ca- te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo
paz de compreender o sentido de tão grande obra, para que, daí, tu percebesses tudo o que existe no
que amasse sua beleza e contemplasse a sua gran- mundo. Não te fiz celeste nem terreno, mortal
diosidade. [...] Tomou então o homem, essa obra nem imortal, para que, como livre e soberano ar-
de tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro tífice, tu mesmo te esculpisses e te plasmasses na
do universo, falou-lhe nesses termos: forma que tivesses escolhido. Tu poderás degene-
“A ti, ó Adão, não te temos dado, nem um lu- rar nas coisas inferiores, que são brutas, e pode-
gar determinado, nem um aspecto próprio, nem rás, segundo o teu querer, regenerar-te nas coisas
qualquer prerrogativa só tua, para que obtenhas superiores, que são divinas”. [...] No homem, o
e conserves o lugar, o aspecto e as prerrogativas Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte
que desejares, segundo tua vontade e teus moti- que tivesse toda e qualquer variedade de vida. As
vos. A natureza limitada dos outros está contida que cada um cultivasse, essas cresceriam e produ-
dentro das leis por nós prescritas. Mas tu deter- ziriam nele os seus frutos.
MIRANDOLA, Pico della. A dignidade humana. Trad. Luis Feracine. São Paulo: Escala Educacional, 2006. p. 39-42.

Sugerimos que você leia com o grupo o texto de Pico della Mirandola e solicite aos estudantes que
PROBLEMATIZANDO identifiquem os trechos que fazem alusão à dignidade humana.

1. Esse tema refletido na Renascença será também muito explorado pelo existencialismo, na filosofia
contemporânea, especialmente na obra O existencialismo é um humanismo, de Jean-Paul Sartre,
que abordaremos na última unidade.
• Ao refletir sobre a singularidade humana, Pico della Mirandola faz uma distinção entre o ser hu-
mano e os demais seres. Ao abordar o tema “natureza e cultura”, na primeira unidade, já fizemos
essa reflexão. Como o autor apresenta a dignidade humana?

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3. A DIMENSÃO SOCIAL DO SER HUMANO
Na Renascença realizou-se uma releitura crítica

SAILKO (CC BY-SA 3.0)


ao aristotelismo, defendido por autores da escolás-
tica tardia.
Especialmente importante foi a atuação de
Leonardo Bruni (1370-1444), ao traduzir do gre-
go as obras A política e Ética a Nicômaco, de
Aristóteles. Os enfoques de sua reflexão huma-
nista eram o cultivo da dimensão política do ser
humano, que deveria assumir a tarefa de tornar-
-se bom e virtuoso na relação com os outros.
Com esse aprimoramento pessoal do ser huma-
no, o Estado se tornaria melhor, pois a qualidade
do membro auxiliaria na perfeição do corpo.
Nessa reflexão aparece a necessidade essencial
e cultural do ser humano por relações sociais, que
diferem dos impulsos possessivos de nossa primeira
natureza. Montaigne, assim como Aristóteles, reali-
zou uma reflexão sobre a amizade que difere muito
de nossa concepção contemporânea. Na reflexão
de Montaigne, é possível perceber traços de uma Mausoléu de Leonardo Bruni na Basílica de Santa Cruz, em
nova concepção de ser humano e de cultura. Florença, Itália.

Da amizade
A natureza parece muito particularmente inte- razão para que ela se verifique, entre pai e filho,
ressada em implantar em nós a necessidade de re- ou entre irmãos, os quais podem ter gostos to-
lações de amizade e Aristóteles afirma que os bons talmente diferentes. [...]. Nas amizades que nos
legisladores se preocupam mais com essas relações impõem a lei e as obrigações naturais, nossa von-
do que com a justiça. É verdade que a amizade tade não se exerce livremente; elas não resultam
assinala o mais alto ponto de perfeição na socie- de uma escolha, e nada depende mais de nosso
dade. Em geral, sentimentos a que damos o nome livre-arbítrio que a amizade e a afeição.
de amizade, nascidos da satisfação de nossos pra- [...]
zeres, das vantagens que usufruímos, ou das asso- Entre amigos, unidos por esse nobre sentimen-
ciações formadas em vista de interesses públicos to, os serviços e favores, elementos essenciais às
ou privados, são menos belos, menos generosos, outras amizades, não entram em linha de conta
e têm outras causas, visam a outros fins. Essas e isso porque as vontades intimamente fundi-
afeições, que se classificavam outrora em quatro das são uma só vontade. [...] Assim como não
categorias, segundo fossem ditadas pela natureza, sou grato a mim mesmo do serviço prestado
a sociedade, a hospitalidade ou as exigências dos por mim mesmo, assim também a união de tais
sentidos, nem em seu conjunto nem isoladamen- amigos atinge tal perfeição que os leva a per-
te atingem o ideal. der a ideia de se deverem alguma coisa. [...] Se
[...] nessa amizade a que me refiro, um pudesse dar
É a correspondência dos gostos que engendra alguma coisa ao outro, o benfeitor é que seria o
essas verdadeiras e perfeitas amizades e não há favorecido.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios I. Livro I. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 89-95. (Os pensadores).

Sugerimos que você converse com o grupo sobre o conceito de amizade expresso no texto e compare-o com o atual.

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PROBLEMATIZANDO
1. Com base na leitura desse texto, que aspectos da condição humana foram retratados por Montaigne?
Discuta sua resposta com os colegas, procurando justificá-la.
2. Quais são os argumentos que Montaigne usa para dizer que entre pais e filhos e entre irmãos não
há uma amizade natural?

4. A DIVERSIDADE CULTURAL

CIVITATES ORBIS TERRARUM, V. 5, COLÔNIA, ALEMANHA


Lisboa (1598), de Georg Bauer e Hogenberg. Gravura.
Em vários momentos da história da humanidade, o intercâmbio entre povos foi uma experiência positiva no combate
ao dogmatismo, uma vez que possibilitou o conhecimento de outras expressões culturais e colaborou para a noção de
relatividade dos costumes.

O contexto das navegações que marca a Europa renascentista e moderna proporcionou a experiência do
contato entre diferentes povos. Uma das primeiras reações dos colonizadores foi a de julgarem-se superiores
aos povos que encontraram. Damos o nome de etnocentrismo a essa atitude. Os processos de dominação
de um povo por outro foram realizados com base nessa pretensa superioridade.
Contudo, esse contexto alimentou também uma nova visão, muito bem refletida por Montaigne, que
não se cansou em reconhecer e afirmar a diversidade humana.
Diante da diversidade cultural, Montaigne refletiu sobre a impossibilidade de estabelecer padrões uni-
versais e valores ideais para toda a humanidade e diferentes culturas. Assim, ele suspendeu o juízo sobre
a melhor cultura ou o melhor valor. Isso aproxima Montaigne do ceticismo, que estabeleceu o prudente
silêncio como expressão de sabedoria.
Na obra Os canibais, Montaigne faz um confronto entre a cultura europeia (colonizadora) e a vida dos
nativos que sofreram invasões e foram chamados de bárbaros e selvagens pelos colonizadores. Vejamos
alguns trechos dessa reflexão.

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Os canibais
Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos;
e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só
podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costu-
mes do país em que vivemos. Neste

RIJKSMUSEUM, AMSTERDÃ, HOLANDA


a religião é sempre a melhor, a ad-
ministração excelente, e tudo o mais
perfeito. A essa gente chamamos
selvagens ou frutos que a natureza
produz sem intervenção do homem.
Esses povos não me parecem, pois,
merecer o qualitativo de selvagens
somente por não terem sido senão
muito pouco modificados pela in-
gerência do espírito humano e não
haverem quase nada perdido de sua
simplicidade primitiva. As leis da
natureza, não ainda pervertidas pela
imisção [mistura, intromissão] dos
nossos, regem-nos até agora e manti-
veram-se tão puras que lamento por
vezes não as tenha o nosso mundo
Canibalismo no Brasil em 1557 como descrito por Hans Staden
conhecido antes, quando havia ho- (1562), de Theodore de Bry. Gravura.
mens capazes de apreciá-las. Essa imagem pertence a um conjunto de ilustrações do relato feito
Não me parecesse excessivo julgar pelo alemão Hans Staden em sua viagem à colônia portuguesa no
bárbaros tais atos de crueldade, mas século XVI. De acordo com esse relato, os indígenas consumiam a
carne humana de seus inimigos em rituais antropofágicos.
o fato de condenar tais defeitos não
nos leve à cegueira acerca dos nossos.
Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto. E é pior esquar-
tejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos ou entregá-lo aos cães e porcos, a
pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conter-
râneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Livro I. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Montaigne não se posiciona contra o fato de podermos chamar determinados atos de “horror bar-
baresco” expressão usada por ele na obra Ensaios. A sua crítica se refere à cegueira cultural, de
quem não se reconhece em atos que pratica, que são muito mais cruéis do que aqueles que condena
nos outros. Como você se posiciona diante da problematização feita por Montaigne?
2. Montaigne indica no texto: “Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualitativo de selvagens. […]”
Em conformidade com o texto, por quais razões os nativos eram chamados de bárbaros?
3. Você já ouviu a expressão: “isso é um programa de índio”? É possível relacionar essa expressão con-
temporânea com o espírito presente na reflexão de Montaigne?
4. Voltando o olhar para a nossa realidade, que aspectos de “barbárie” você reconhece em nossa cultura?

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PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia as afirmativas a seguir.

Oxalá [interjeição que expressa desejo de que algo aconteça] nossa alma se deixe conduzir pela
santa ambição de superar a mediocridade e anele [deseje] por coisas mais sublimes, envidando esfor-
ços para consegui-las, dado que, se realmente quisermos, haveremos de concretizar.
A grandeza e o milagre do homem estão no fato de ele ser o artífice de si mesmo, autoconstrutor.
MIRANDOLA, Pico Della. A dignidade humana. Trad. Luis Feracine. São Paulo: Escala Educacional, 2006. p. 39-42.

• A partir desse trecho e de outras informações, redija um texto sobre a concepção da dignidade
humana promovida pela filosofia renascentista e moderna.
Estimule os estudantes a manifestarem o que já aprenderam sobre o Iluminismo. Faça uma sondagem com eles sobre o preconceito implícito na palavra Iluminismo, segundo o qual a
modernidade teria lançado “luzes” sobre um período anterior de “trevas”.

5. O ILUMINISMO E O ANTROPOCENTRISMO MODERNO


O Iluminismo foi um movimento cultural especialmente centrado no século XVIII, que afetou praticamen-
te todas as dimensões da vida humana. Com o Iluminismo, nasceu uma nova maneira de se conceber o ser
humano, a cultura, o direito, a política e a ética.
A palavra "Iluminismo" tem sua origem na expressão francesa Siècle des Lumières, da qual surgiu a palavra
em língua inglesa Enlightenment e a expressão alemã Aufklärung, com sentido de esclarecimento ou iluminação.
Essa visão de esclarecimento vem sendo desconstruída pelos estudos históricos contemporâneos, uma vez que
traz a ideia de que a Idade Média teria sido um longo período de trevas e escuridão.
Entre os aspectos mais destacados por esse movimento está a defesa da liberdade e da autonomia humana,
frente às imposições de uma mentalidade religiosa. Para os pensadores iluministas, o melhor caminho para se
alcançar a liberdade e a emancipação estava no uso da razão.
No texto a seguir, o filósofo Immanuel Kant expressou o projeto do Iluminismo como busca por Esclareci-
mento e emancipação do espírito humano, a caminhada da menoridade para a maioridade. É um texto clássico.
Vejamos a seguir alguns trechos.
CONRAD MARTENS

O navio HMS nas rotas


marítimas da Terra do
Fogo (1833), de Conrad
Martens. Aquarela.
Uma das formas
de expressão do
antropocentrismo
moderno traduz-se na
tentativa de transformar
o ser humano em senhor
que domina a natureza.

199

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Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?
Esclarecimento é à saída do homem da condição de menoridade autoimposta. Menoridade é a in-
capacidade de servir-se de seu entendimento sem a direção de um outro. Essa menoridade é autoim-
posta quando a causa da mesma reside na carência não de entendimento, mas de decisão e coragem
em fazer uso de seu próprio entendimento sem orientação alheia. Sapere aude! Tenha a coragem de
servir-te de teu próprio entendimento. Este é o mote do Esclarecimento.
Preguiça e covardia são as causas que explicam por que uma grande parte dos seres humanos,
mesmo após a natureza tê-los declarado livres da orientação alheia (naturaliter maiorennes), ainda
permanecem, com gosto e por toda a vida, na condição de menoridade. As mesmas causas explicam
por que parece tão fácil outros afirmarem-se como seus tutores. É tão confortável ser menor. Tenho
à disposição um livro que entende por mim, um pastor que tem consciência por mim, um médico
que me prescreve uma dieta etc. então não preciso me esforçar.
Não me é necessário pensar, quando posso pagar; outros assumirão a tarefa espinhosa por mim;
a maioria da humanidade (aí incluído todo o belo sexo) vê como muito perigoso, além de bastante
difícil, o passo a ser dado rumo à maioridade, uma vez que tutores já tomaram para si de bom grado
a sua supervisão. Após terem previamente embrutecido e cuidadosamente protegido seu gado, para
que estas pacatas criaturas não ousem dar qualquer passo fora dos trilhos nos quais devem andar,
os tutores lhes mostram o perigo que as ameaça caso queiram andar por conta própria. Tal perigo,
porém, não é tão grande, pois, após algumas quedas aprenderiam finalmente a andar; basta, entre-
tanto, o exemplo de um tombo para intimidá-los e aterrorizá-los por completo para que não façam
novas tentativas.
É, porém, difícil para um indivíduo livrar-se de uma menoridade quase tornada natural. Ele até
já criou afeição por ela, e, por suas próprias mãos, é efetivamente incapaz de servir-se do próprio
entendimento porque nunca lhe foi dada a chance de tentar. [...]
Para o Esclarecimento, porém, nada é exigido além da liberdade; e mais especificamente a liber-
dade menos danosa de todas, a saber: utilizar publicamente sua razão em todas as dimensões [...]
Se for perguntado: vivemos agora em uma época esclarecida? A resposta é: não, vivemos em uma
época de Esclarecimento. Falta ainda muito para que os homens em geral, nas condições atuais, es-
tejam habilitados a servir-se bem de seu próprio entendimento das questões religiosas sem o auxílio
da compreensão alheia. Porém temos claros indícios de que agora o campo lhes foi aberto para se
desenvolverem livremente e que gradualmente tornam-se menores os obstáculos ao Esclarecimento
geral e à saída de sua menoridade autoimposta.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento? Trad. Danilo Marcondes.
In: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 95-100.

PROBLEMATIZANDO
1. No texto que você leu, Kant usa as expressões “menoridade” e “maioridade”.
• Em que sentido essas expressões ajudam a entender o projeto do Iluminismo? Discuta sua resposta
com os colegas, procurando justificá-la.

Crítica ao Iluminismo
O grande projeto do Iluminismo seria libertar os seres humanos da alienação, especialmente religiosa,
e promover sua emancipação, por meio da razão. Contudo, muitas críticas foram feitas ao modo como as
ideias e os ideais do Iluminismo foram concretizados.

200

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Caso queira fazer essa crítica ao Iluminismo nesse momento, sugerimos ler com os alunos o texto Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, que se encontra no segundo
eixo temático da última unidade.
Uma dessas críticas ao Iluminismo é feita pela Escola de Frankfurt, conforme veremos no segundo
eixo temático da última unidade desta obra. Nessa crítica, a razão moderna seria uma razão técnica,
cuja ênfase estaria em usar os recursos naturais em favor de projetos que resultem em capital, em
crescimento econômico.
Nessa crítica da Escola de Frankfurt, o objetivo do Iluminismo não teria se realizado, uma vez que a razão
filosófica, que seria essencialmente crítica, deixou de refletir sobre os fundamentos para se converter em
uma razão pragmática, em um plano de ação, de intervenção no mundo natural, buscando o sucesso de
um projeto econômico que transforma a natureza em objeto de exploração.
Assim, a Escola de Frankfurt denuncia que a razão filosófica degenerou em uma razão técnica, calculista,
na qual a previsão, e não mais a reflexão crítica, passou a ser a essência da razão. É por isso que os pensa-
dores da Escola de Frankfurt afirmarão que o resgate da razão filosófica implicará a denúncia e o desmas-
caramento daquilo no qual a razão iluminista se converteu.

OUTROS OLHARES
1. Leia o poema de Fernando Pessoa.

Navegar é preciso

DEAGOSTINI/GETTY IMAGES
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a
[forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser
[o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
[para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. Caravela do navegador português Vasco
da Gama (c. 1568), ilustração extraída do
PESSOA, Fernando. Obra poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 15. manuscrito Memórias das armadas.

• Relacionando esse poema com o espírito ou a mentalidade do ser humano moderno, que análises
você consegue fazer? A que conclusões consegue chegar?
• Que implicações e repercussões você percebe na cultura moderna e contemporânea dessa ideia de
o ser humano ser o senhor da natureza?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Considerando as reflexões realizadas, redija um texto relacionando a modernidade com o projeto
do Iluminismo.

201

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2
Eixo Temático

EXPERIÊNCIA E
RACIONALIDADE

bre :
r so
nde
e

pr
ia
va
• A ciência como condutora da experiência em
Leonardo da Vinci.
Você

• As mudanças no pensamento cosmológico


e astronômico na transição entre o modelo
aristotélico-ptolomaico e o copernicano.
• A proposição de infinitude do Universo e a visão
panteísta de Giordano Bruno.
• A perspectiva física e empírica no pensamento de
Galileu, Kepler e Newton.
• A destruição dos ídolos para a construção do
pensamento científico segundo Francis Bacon.
• As regras do método científico de René Descartes.
• As sensações físicas no empirismo de David Hume.
O tema da revolução científica dos séculos XVI
e XVII é um convite a um projeto de reflexão • A fase crítica do pensamento de Kant e sua síntese
filosófica que aborde os modelos da ciência do racionalismo e do empirismo.
moderna e contemporânea. Esse projeto poderá
problematizar a concepção da neutralidade ou da
infalibilidade da atividade científica, com base na reflexão
sobre a ciência como atividade humana. Sugerimos construir
esse projeto de modo interdisciplinar, especialmente com as
disciplinas que compõem as Ciências da Natureza.

Temas:
1. Noção de experiência em Leonardo 4. O método científico e a nova ciência em
da Vinci Francis Bacon
2. Do modelo aristotélico-ptolomaico 5. O racionalismo de René Descartes
ao copernicano 6. O empirismo de David Hume
3. Galileu e Kepler: o nascimento da 7. Nem racionalismo, nem empirismo: o
ciência moderna racionalismo crítico em Kant

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1. NOÇÃO DE EXPERI NCIA EM LEONARDO
DA VINCI
Leonardo da Vinci (1452-1519) é um representante por excelência da geniali-

MUSEU DE ARTE DE LOS ANGELES, ESTADOS UNIDOS


dade humana. A complexidade de sua inteligência e as suas habilidades em arte
marcaram época.
Em seu pensamento já aparece a ideia que será um dos fundamentos da re-
volução científica do século XVII, a concepção de que a linguagem do mundo é a
matemática. Da Vinci elabora uma concepção mecanicista do Universo, de um
Universo que segue uma ordem, com leis de funcionamento necessárias, que
derivam do criador. E o ser humano, como criatura feita à imagem e semelhança
do criador, é um ser inteligente, que tem as potencialidades para decifrar essas leis
de funcionamento.
Dessa forma, por meio da experiência e da razão, o ser humano tem a missão
de desvendar a ordem do mundo, estudar sua linguagem matemática. Portanto,
a autoridade não mais será uma figura humana, mas o argumento fundamen-
Retrato de Leonardo da Vinci
tado na experiência. Com essa visão, o espírito renascentista prepara e lança as (séc. XIX), de Raffaello Sanzio
raízes da ciência moderna. Morghen. Gravura.
O conceito de experiência, como aparece em Leonardo da Vinci, nunca será
uma simples observação. Para que aconteça a experiência, será fundamental articu-
lar teoria e prática, observação e estudos matemáticos. O pressuposto básico é o de
que todos os fenômenos naturais têm uma razão de ser, que deverá ser descoberta.
A analogia que Leonardo estabelece em termos de conhecimento seguro é a
imagem de um timoneiro que entra em um navio com leme e bússola. A ausência
desses elementos seria como uma experiência sem a referência teórica, sem ciên-
cia. Assim, será a ciência que deverá conduzir a experiência.
MUSEU HET PRINSENHOF, DELFT, HOLANDA

Lição de anatomia do Dr.


Willem Van der Meer (1617), de
Michel Jansz Mierevelt. Óleo
sobre tela, 146,5 cm × 202 cm.
A ciência que está
nascendo encontra, na
experimentação e no estudo
investigativo, o caminho para
desvendar o que até então
era mistério inacessível.

Vamos acompanhar um texto de Leonardo da Vinci, no qual podemos ver essa


concepção de experiência.

203

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Nenhuma investigação humana pode dizer-se verdadeira ciência, se ela não passar pelas demons-
trações matemáticas: e se disseres que as ciências, que principiam e terminam na mente, têm verda-
de, isto não se concebe, mas se nega por muitas razões; ao contrário, em tais discursos mentais não
ocorre experiência, sem a qual nada dá certeza de si. [...]
A ciência é mais útil quando seu fruto é mais comunicável e, ao contrário, menos útil quando é
menos comunicável. [...]
Todavia, parece-me que sejam vãs e cheias de erros as ciências que não nasceram da experiência,
mãe de toda certeza, e que não terminam em experiência conhecida, isto é, que sua origem, ou meio,
ou fim, não passam por nenhum dos cinco sentidos. E se duvidamos da certeza de cada coisa que pas-
sa pelos sentidos, com muito maior razão devemos duvidar das coisas rebeldes a esses sentidos, como
a ausência de Deus e da alma e coisas semelhantes, pelas quais sempre se disputa e briga. E verdadei-
ramente ocorre que sempre onde falta a razão suprem os gritos, o que não acontece nas coisas certas.
DA VINCI, Leonardo. Tratado da pintura. In: REALE, G.; ANTISERI, D.
História da filosofia: do humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 127-128.

PROBLEMATIZANDO
1. A simples observação não é experiência, tampouco dá origem à ciência. Em que sentido a ciência
não começa pela observação? Discuta sua resposta com os colegas, procurando justificá-la.
2. Leia os fragmentos a seguir.

Nenhum efeito existe na natureza sem razão. [...]


Nenhuma investigação humana pode dizer-se verdadeira ciência, se ela não passar pelas demons-
trações matemáticas: e se disseres que as ciências, que principiam e terminam na mente, têm verda-
de, isto não se concebe, mas se nega por muitas razões.
DA VINCI, Leonardo. Tratado da pintura. In: REALE, G.; ANTISERI, D.
História da filosofia: do humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo.
São Paulo: Paulus, 2004. p. 127-128.

• Nesses fragmentos, Leonardo da Vinci sinaliza para uma nova forma histórica de pensar, para uma
nova metodologia de construção do conhecimento. Em que consiste essa novidade histórica?

2. DO MODELO ARISTOT LICO PTOLOMAICO


AO COPERNICANO
A concepção aristotélica de Cosmo trazia a noção de ordem, de um todo organizado, no qual cada
elemento que o constituía possuía o seu lugar. No centro, estaria o elemento mais pesado, a terra. Jun-
to à terra estaria o elemento água, também pesado. Na ausência de uma força externa aplicada sobre
esse elemento, ele tenderia a se mover em direção ao centro. Os elementos mais leves, como a água,
o ar e o fogo, formariam camadas concêntricas em torno, movendo-se espontaneamente para cima,
afastando-se do centro.
Nesse modelo de pensamento, existiria uma profunda distinção entre Terra e céu. A Terra, por ser matéria,
estaria sujeita às mudanças, às transformações. Em contrapartida, haveria os corpos celestes, que seriam es-
feras perfeitas e imutáveis, pois sua constituição não viria dos quatro elementos terrenos, mas de um quinto
elemento, o éter. Esses corpos celestes apresentariam movimentos circulares em torno da Terra, oriundos de
inteligências que estariam subordinadas a uma primeira e suprema inteligência, fonte de todo movimento.

204

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O pensamento cosmológico e astronômico do mundo ocidental ficou marcado, por quase catorze sé-
culos, pela concepção de Aristóteles (384-322 a.C.), que foi retomada por Cláudio Ptolomeu (90-168). A
estrutura desse modelo aristotélico-ptolomaico foi adotada durante toda a Idade Média ocidental, de na-
tureza cristã, com uma mudança significativa: transformou o mundo eterno em criado pela vontade divina.
THE STAPLETON COLLECTION/BRIDGEMAN IMAGES

Mapa celeste (1660),


de Andreas Cellarius,
publicado no
Atlas celestial.
Neste mapa celeste
aparece o modelo
geocêntrico de
Ptolomeu: esférico,
delimitado,
contornado pela
esfera das estrelas
fixas. É um mundo
fechado e finito.

Uma das primeiras reflexões na origem dessa desconstrução do modelo cosmológico de Aristóteles
ocorre na Renascença, no pensamento de Nicolau de Cusa (1401-1464), segundo o qual o Universo não
possuiria um centro. Por isso, também, os corpos não poderiam ocupar lugares hierárquicos.

Consequentemente, se considerarmos os diversos movimentos dos orbes celestes, constataremos


que é impossível para a máquina do mundo possuir qualquer centro fixo e imóvel, seja esse centro
a terra sensível, o ar, o fogo ou qualquer outra coisa.
DE CUSA, Nicolau. A douta ignorância. Livro II. In: KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito.
Trad. Donaldson M. Garschagen. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 14.

Será com Copérnico (1473-1543) que o modelo cosmológico aristotélico-ptolomaico sofrerá seu mais
significativo golpe, ao propor a teoria heliocêntrica. De acordo com Copérnico, o Sol ocuparia o centro do
Universo e os demais planetas girariam ao seu redor. Contudo, Copérnico ainda não falava em Universo
infinito. A ideia de hierarquia e de valor ainda estaria presente. O Sol, sendo visto como a fonte de toda luz,
recebia maior nobreza.

Mas no centro de tudo situa-se o Sol. Quem, com efeito, nesse esplêndido templo colocaria a luz em
lugar diferente ou melhor do que aquele de onde ela pudesse iluminar ao mesmo tempo todo o tem-
plo? [...] Assim, como que repousando no trono real, o Sol governa a circundante família de astros.
COPÉRNICO, Nicolau. Das revoluções dos orbes celestes. Livro I. In: KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito.
Trad. Donaldson M. Garschagen. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 30.

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Entre os adeptos da teoria de Copérnico, encontramos Giordano Bru-
WELLCOME LIBRARY, LONDRES, REINO UNIDO

no, Johannes Kepler e Galileu Galilei, pensadores que lançaram as raízes


da moderna revolução científica.
Giordano Bruno (1548-1600), embora tenha acolhido a visão de Co-
pérnico, deu um novo e decisivo passo, ao romper com a ideia de Univer-
so finito, e propor a infinitude do Universo. O mundo seria infinito, infinito
seria o movimento, eterna seria a mutação de todas as coisas. Nessa con-
cepção, nada morre, tudo se transforma.
Para Giordano, embora haja um princípio supremo, causa de todas as
coisas, esse elemento primordial não poderá jamais ser conhecido. Con-
tudo, esse princípio que anima o mundo está presente em todas as coisas.
Essa visão de Giordano Bruno foi classificada como panteísta, significando
com isso que o princípio motor do mundo não estaria fora dele, mas em
seu próprio interior. Com esse posicionamento, ele se afasta da posição
Retrato de Giordano Bruno, oficial da Igreja Católica, vinculada ao modelo aristotélico-tomista, segun-
filósofo italiano (1578), de autoria do o qual Deus seria o motor imóvel, a causa perfeita e absoluta de tudo,
desconhecida. Gravura. que teria existência separada de suas criaturas.

PROBLEMATIZANDO
1. Em fevereiro de 1600, Giordano Bruno foi condenado pelo Santo Ofício e queimado vivo, devido a
uma visão de Universo que ele defendia.
• Por quais razões o posicionamento de Giordano Bruno seria contestado pela Igreja Católica?
• Em que diferem os modelos geocêntrico (aristotélico-ptolomaico) e heliocêntrico (copernicano),
defendido por Giordano Bruno?
• Discuta suas respostas com os colegas, procurando justificá-las.

3. gALILEU E EPLER: O NASCIMENTO


DA CI NCIA MODERNA
No âmbito do conhecimento, a modernidade realiza uma verdadeira revolução espiritual. Nasce uma
nova visão de mundo, de Universo, de ciência, de metodologia científica. A natureza revolucionária do
pensamento científico moderno pode ser percebida na radicalidade das mudanças. Se, anteriormente, havia
a perspectiva metafísica, especulativa, dogmática, religiosa e mítica, agora a perspectiva é física, empírica.
O matemático e astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630) foi um dos pensadores fundamentais
da revolução científica do século XVII. Tornou-se conhecido por ter formulado as três leis fundamentais da
mecânica celeste. Juntamente com Galileu Galilei (1564-1642), afirmava a organização matemática do
mundo e que os fundamentos das ciências deveriam estar na comparação de hipóteses, fundamentados em
dados empíricos, observados experimentalmente.
Galileu Galilei, por dar grande valor à experimentação, foi o responsável por uma série de invenções
que iriam revolucionar o mundo: lentes, telescópios, termômetros, bússolas. Com o aprimoramento desses
instrumentos, ele pôde contradizer a teoria aristotélica, uma vez que conseguia enxergar a Lua e perceber
que nela não havia a perfeição da qual Aristóteles falava.
Com Kepler surgirá a ideia do Universo como um sistema dinâmico autogovernado. Essa visão será re-
forçada no pensamento mecanicista de René Descartes (1596-1650). Nesse contexto, Descartes se nega a
aplicar o conceito de infinito em sentido próprio a alguma realidade que não seja a divina. Somente Deus
é infinito. Nenhuma criação divina, e isso inclui o Universo, poderá ter esse atributo específico do criador.

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TRIBUNA DE GALILEU, FLORENÇA, ITÁLIA

Galileu demonstra a
lei da gravidade para
Dom Giovanni de Médici
(1839), de Giuseppe
Bezzuoli. Afresco.
A velocidade da queda
de um corpo depende
de sua massa?

Contudo, a grande síntese seria feita por Isaac Newton (1643-1727). Ele retoma e amplia a descrição do
movimento feita por Galileu, por meio das equações matemáticas. Com base no conhecimento de certas
condições iniciais, que seriam representadas pela posição e pela velocidade de um corpo em qualquer ins-
tante, Newton apresenta uma solução para o grande problema da mecânica, ao afirmar ser possível calcular
a trajetória que um corpo irá percorrer conhecendo as forças que agem sobre ele.
Com o estabelecimento dessas leis físicas do movimento, surge outro aspecto novo na ciência moderna,
verdadeiramente revolucionário, que é o seu caráter de previsibilidade. Assim, com Newton a revolução
científica moderna chega a seu auge.
O que se verifica na ciência moderna é a presença de um método que tem sua autonomia, sua lógica,
suas etapas, sem vínculo com elementos de fé religiosa, afastando-se de uma perspectiva especulativa.
O fragmento a seguir, de Galileu, mostra um novo olhar sobre a forma de se aproximar do estudo dos
fenômenos naturais. É um belíssimo texto que sinaliza para a radical mudança de pensamento que está em
curso. Na verdade, a reflexão teológica da Idade Média já apontava para a necessidade do uso da inteligên-
cia na busca de compreensão das realidades. A diferença de agora é que no horizonte da motivação já não
existe mais a fé como condição pressuposta.

Eu creria que a Autoridade das Sagradas Letras tivesse tido apenas a intenção de persuadir sobre
os homens os artigos e proposições que, sendo necessários para a sua salvação e superando todo
discurso humano, não podiam por outra ciência nem por outro meio tornar-se críveis, a não ser
pela boca do próprio Espírito Santo. Mas que aquele mesmo Deus que nos dotou de sentidos, de
discurso e de intelecto, tenha desejado, pospondo o uso destes, dar-nos com outro meio as notícias
que podemos conseguir por aqueles, não penso ser necessário crer nisso.
GALILEI, Galileu. Carta a Dom Benedetto Castelli. In: REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do humanismo a Descartes.
Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 127-128.

Nesse fragmento, Galileu reconhece que naquilo que possa se referir a verdades eternas, que trans-
cende o poder dos sentidos e do intelecto, dependeríamos de uma inspiração divina. Contudo, dife-
rentemente disso, no terreno das verdades do mundo natural ou físico, os homens deveriam usar os
sentidos, o intelecto, a capacidade do discurso que Deus lhes deu, como elementos fundamentais para
compreender essas verdades.

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No percurso das ciências, portanto, não deveríamos esperar uma resposta de
fora, de uma autoridade religiosa ou de especulação sem vínculo com a experi-
ência empírica.
No texto a seguir, Galileu critica o critério até então usado para definir algo
como verdadeiro. Ele propõe um critério novo e apresenta pressupostos que sina-
lizam para uma revolução na forma de pensar que irá caracterizar o século XVII.

Tenho a impressão de identificar em Sarsi a firme crença de que, para


filosofar, é preciso apoiar-se nas opiniões de algum autor célebre, de modo
que se a nossa mente não se casasse com o discurso de outra tivesse que
permanecer estéril e infecunda; e talvez imagine que a filosofia seja um
livro, uma fantasia de um homem, como a Ilíada e o Orlando furioso em
que a coisa menos importante é se o que está escrito neles é real. Senhor
Sarsi, as coisas não são bem assim. A filosofia é escrita neste grandíssimo
livro que permanentemente está aberto diante dos nossos olhos (falo do
Universo), mas que não pode ser entendido sem que antes se aprenda sua
língua e se conheçam os caracteres com os quais é escrito. Este livro, a
natureza, é escrito em língua matemática, e os caracteres são os triângu-
los, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente
impossível entender uma palavra sequer; sem elas, é como perambular
inutilmente em um labirinto escuro.
GALILEI, G. O ensaísta. In: REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do humanismo a Descartes. Trad. Ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 214- 216.

Nesse fragmento, verifica-se a crítica ao princípio da autoridade como funda-


mento para a verdade das coisas. Considerando a linguagem matemática do
mundo, é preciso conhecê-la. Ou seja, é preciso aprofundar-se nas linguagens
capazes de decifrar as leis do Universo. E isso está ao alcance de todos os seres
humanos, desde que se coloquem numa dinâmica que implique observações,
hipóteses, pesquisas, testes, experimentações, comparações etc.

PETER WILLI/GETTY IMAGES/ MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

Galileu Galilei perante os


membros do Santo Ofício
(1847), de Joseph-Nicolas
Robert-Fleury. Óleo sobre
tela, 196,5 cm × 308 cm.
Essa imagem representa o
momento em que Galileu
esteve diante do Tribunal do
Santo Ofício, em Roma, no
século XVI. Nessa ocasião, a
Igreja Católica exigiu
que Galileu negasse
a teoria heliocêntrica.

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PROBLEMATIZANDO
1. Para o pensamento moderno, o princípio da autoridade não mais serve como critério de verdade.
Contudo, você é capaz de perceber que esse recurso à autoridade continua sendo usado muitas ve-
zes para defender uma ideia?
2. Quais são os novos critérios de verdade que devem reger a atividade científica?

O texto a seguir, de Alexandre Koyré, ilustra de maneira brilhante o que foi a revolução científica do
século XVII, a começar pelo título da obra: Do mundo fechado ao Universo infinito.

Admite-se de maneira geral que o século XVII sofreu e realizou uma radicalíssima revolução espi-
ritual de que a ciência moderna é ao mesmo tempo a raiz e o fruto. Alguns historiadores viram seu
aspecto mais característico na secularização da consciência, seu afastamento de metas transcenden-
tes para objetivos imanentes, ou seja, a substituição da preocupação pelo outro mundo e pela outra
vida pela preocupação com esta vida e este mundo. Para outros autores, sua característica mais assi-
nalada foi a descoberta, pela consciência humana, de sua subjetividade essencial e, por conseguinte,
a substituição do objetivismo dos medievos e dos antigos pelo subjetivismo dos modernos; outros
ainda creem que o aspecto mais destacado daquela

MUSEU J. PAUL GETTY, LOS ANGELES, ESTADOS UNIDOS


revolução terá sido a mudança de relação entre te-
oria e práxis, o velho ideal da vida contemplativa
cedendo lugar ao da vida ativa.
Enquanto o homem medieval e o antigo visavam
à pura contemplação da natureza e do ser, o moder-
no deseja a dominação e a subjugação. [...]
Pode-se dizer, aproximadamente, que essa revolu-
ção científica e filosófica [...] causou a destruição do
Cosmo, ou seja, o desaparecimento dos conceitos
válidos, filosófica e cientificamente, da concepção
do mundo como um todo finito, fechado e orde-
nado hierarquicamente (um todo no qual a hierar- Astrônomo (c. 1665), de Gerrit Du. Óleo sobre tela,
quia de valor determinava a hierarquia e a estrutura 32 cm × 22 cm.
do ser, erguendo-se da terra escura, pesada e imperfeita para a perfeição cada vez mais exaltada das
estrelas e das esferas celestes), e a sua substituição por um universo indefinido e até mesmo infinito
que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis fundamentais, e no qual todos
esses componentes são colocados no mesmo nível do ser. Isto, por seu turno, implica o abandono,
pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em conceitos de valor, como perfei-
ção, harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a completa desvalorização do ser, o divórcio do
mundo do valor e do mundo dos fatos.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 13-14.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Vimos que a revolução científica do século XVII superou a visão de Cosmo, de um mundo ordenado
hierarquicamente, inaugurando a visão de Universo infinito.
• Com base no trecho que você leu de Alexandre Koyré, redija um texto sobre a revolução científica
provocada pela ciência moderna, justificando a afirmação a seguir: A revolução científica causou
a destruição do Cosmo.

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4. O M TODO CIENT FICO E A NOVA CI NCIA
EM FRANCIS BACON
GALERIA NACIONAL DE RETRATOS, LONDRES, REINO UNIDO

Francis Bacon (1561-1626), nascido em Londres, Ingla-


terra, foi filósofo, político e ensaísta, barão de Verulâmio e
visconde de Saint Alban. No terreno da filosofia, sua principal
obra, publicada em 1620, é o Novum organum, que pode-
mos traduzir por Novo instrumento. Nela, Bacon apresenta
uma nova metodologia para a atividade científica, comple-
tamente diferente daquela que até então se praticava, de
matriz aristotélica e medieval. Ele buscava um método in-
vestigativo, partindo da observação, da descrição, passando
pela classificação, comparação e eliminação. Após isso, pros-
seguia na busca de possíveis causas. O fragmento a seguir
nos permite pensar em um primeiro elemento importante
nessa nova metodologia:

Francis Bacon, visconde de


Saint Alban (c. 1618), de John
Vanderbank. Óleo sobre tela,
76,5 cm × 63,2 cm.

Nem a mão nua, nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito.


Todos os efeitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de
que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos.
BACON, Francis. Novum organum. Livro I, aforismo II. Trad. José Aluysio Reis de Andrade.
São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 33. (Os pensadores).

No fragmento a seguir, ele usa uma metáfora muito esclarecedora de seu po-
sicionamento, ao falar em empíricos e dogmáticos.

Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os


empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os ra-
cionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve
para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a maté-
ria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a
transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que
não se serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao
material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conser-
vado intacto na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo
intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda
não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional.
BACON, Francis. Novum organum. Livro I, aforismo XCV. Trad. José Aluysio Reis de Andrade.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 76. (Os pensadores).

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Ai e e e
Bacon parte da consideração do ser humano como sujeito capaz

ANDREAS PRAEFCKE (CC BY 3.0)


de interpretar a natureza. A condição para essa interpretação está
em uma ação guiada por método apropriado, que parta das luzes
que a própria natureza emite e, com base nelas, segue em direção
à experiência.
De acordo com Bacon, a ação sobre os fenômenos da natureza
depende do conhecimento de suas causas. Contudo, Bacon conside-
ra que, historicamente, essa interpretação ficou prejudicada por vá-
rios motivos, entre os quais o uso do critério de autoridade e leituras
subjetivas e equivocadas.
Assim, Bacon insiste na necessidade de uma nova forma e de uma
nova metodologia de conhecimento. Afirma a necessidade de um
acentuado investimento na educação científica, por meio da qual os
alunos aprenderiam a mobilizar seu pensamento com base em expe-
rimentações.
Para Bacon, a primeira grande exigência nesse processo de apren-
der a interpretar corretamente a natureza consiste em compreender
os fundamentos da própria ciência. Essa tarefa teria dois grandes Escultura de Francis Bacon na fachada da
momentos. Inicialmente, a parte destrutiva. Ela consistiria em livrar a Universidade de Londres.
mente dos ídolos, das falsas noções que historicamente a invadiram.
Podemos verificar essa ideia no fragmento a seguir:

A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única: enquanto admira-
mos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados.
A natureza supera em muito, em complexidade, os sentidos e o intelecto. Todas aquelas belas medita-
ções e especulações humanas, todas as controvérsias são coisas malsãs. E ninguém disso se apercebe.
BACON, Francis. Novum organum. Livro I, aforismos IX e X. Trad. José Aluysio Reis de Andrade.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 34. (Os pensadores).

Passada a primeira fase da limpeza e da purificação, viria a parte construtiva, que consistiria na exposição
das regras do método científico que permitiria aos seres humanos o conhecimento seguro, que passa pelo
caminho da indução, conciliando as experiências particulares com a formulação da teoria geral. Essa ideia
pode ser verificada no fragmento a seguir:

Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de experimentos [...]. Mas é preciso, ain-
da, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem diferente e um novo processo, para
continuar e promover a experiência. Pois a vaga experiência, deixada a si mesma, como antes já se
disse, é um mero tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas quando a
experiência proceder de acordo com as leis seguras e de forma gradual, poder-se-á esperar algo de
melhor da ciência.
BACON, Francis. Novum organum. Livro I, aforismo C. Trad. José Aluysio Reis de Andrade.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 79. (Os pensadores).

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A l e l
Para Bacon, na história da civilização, em sua busca por conhecimento, imperam falsas noções, que
figuram como ídolos que impedem a busca por conhecimento verdadeiro. O primeiro passo para a supe-
ração desses ídolos seria tomar conhecimento de sua existência. Esses ídolos ou falsas noções impedem os
homens de olhar como deveriam para a realidade e construir uma verdadeira ciência.
Com essa ideia de ídolos, Bacon denuncia todas as formas de preconceitos, buscando sua eliminação e
a purificação do saber científico dessas formas degenerativas de saber. Essas ilusões humanas impedem a
humanidade de caminhar na direção do conhecimento verdadeiro.

Ídolos da tribo
A primeira falsa noção vem denominada como "ídolos da tribo". Nesse âmbito, Bacon se refere à hu-
manidade como um todo, à raça humana como “tribo”. O ídolo surge quando o intelecto humano faz
uma leitura da realidade com base na tendência à simplificação, à leitura mais fácil. É, de fato, tentador
reduzir a complexidade a uma leitura simplificada. Mas isso nos afasta do conhecimento da realidade, que
é complexa. Para Bacon, a humanidade tenderia a fixar-se em apenas um ponto de vista, em uma única
perspectiva. Com isso, o gênero humano (tribo), ao se dirigir para a natureza, sofreria a influência dos afe-
tos, prejudicando o caráter científico do saber. Os seres humanos tenderiam a considerar verdadeiro aquilo
que eles preferem. E nessa preferência a pesquisa séria e demorada parece não ter lugar. Além de todos
esses aspectos, Bacon ainda se refere ao intelecto humano como apresentando tendências à abstração, à
imaginação, a considerar estável aquilo que é mutável. Isso vem ao encontro da inclinação à simplificação.

Ídolos da caverna
A segunda falsa noção é definida como "ídolos da caverna". Se o ídolo da tribo se referia à espécie hu-
mana, ídolos da caverna se referem a cada indivíduo particular, em sua própria caverna. Nesse âmbito, cada
um teria o hábito de ver a realidade a partir de uma luz que penetraria em sua própria caverna, oriunda da
educação recebida, dos contatos com outras pessoas, das leituras que fez. Assim o mundo seria percebido sob
diferentes óticas individuais. E como essa realidade poderia ser caminho para um conhecimento científico?
Essa série de ídolos está inspirada na alegoria da caverna, de Platão, que se encontra no Livro VII de A Re-
pública. Nessa alusão, os primeiros estágios do conhecimento que caracteriza o senso comum são a opinião
e a crença de que essa opinião corresponde à verdade essencial. Ora, o que caracteriza essa caverna é a
diversidade de opiniões fugazes.

Ídolos da feira ou do mercado


Em terceiro lugar, encontramos os "ídolos do foro" ou "ídolos do mercado", ou da feira. As imagens
da feira ou do mercado fazem referência aos encontros humanos mediados pela palavra, pela fala, que
atribuiria nomes às coisas segundo compreensões muito limitadas. Essa fala poderia interferir negativa-
mente no trabalho do intelecto, impedindo os raciocínios mais precisos, levando as pessoas a contro-
vérsias e a considerações banais. Na feira ou no mercado, palavras costumariam ser ambíguas, faltaria
clareza e rigor na comunicação. Bacon insiste muito na crítica a esses ídolos da feira, por não estabelece-
rem vínculo com a experiência. Nas feiras, as palavras ou discursos costumam arrastar e desviar as pessoas
da verdade. Nesse sentido cabe recordar o provérbio: “uma mentira repetida inúmeras vezes acaba sendo
aceita como verdade”.

Ídolos do teatro
Finalmente, os "ídolos do teatro" referem-se àquelas falsas noções originadas de sistemas filosóficos que
realizariam divagações e floreios, representações vazias, sem sustentação. Com essa caracterização, Bacon
critica as fábulas criadas no passado, pelos sofistas, pelos empíricos e pelos dogmáticos, todas marcadas
pela absoluta falta de comprovação científica.

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ÍDOLOS OU FALSAS NOÇÕES SEGUNDO FRANCIS BACON

ÍDOLOS DA TRIBO ÍDOLOS DA CAVERNA ÍDOLOS DO MERCADO ÍDOLOS DO TEATRO

Apegar-se às opiniões Percepções distorcidas, Controvérsias e


Representações sem
e ser levado pelas motivadas por hábitos ambiguidades do senso
comprovação científica.
preferências. aprendidos. comum.

Tendo sido denunciadas e superadas as falsas noções, a tarefa consistiria em buscar construir uma me-
todologia capaz de proporcionar conhecimento sólido. É disso que Bacon trata ao abordar as tábuas da
investigação.

A i e i
Em sua obra Novum organum, no Livro II: Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do
homem, Bacon afirma que o método indutivo deve ser orientado por princípios metodológicos, que ele
denomina de tábuas da investigação, a serem utilizados no estudo do objeto. Trata-se de referências, que
servem como guia ao pesquisador.
Inicialmente, um fenômeno deve ser estudado sob a tábua da presença ou afirmação. Nela, são estuda-
dos os casos que confirmam a presença de determinadas características. Se, por exemplo, o tema for o calor,
é preciso estudá-lo nessa tábua, sob a qual se investigará onde se verifica a presença de calor.
A segunda tábua seria a das ausências ou da negação, que é a tábua onde se verificam os casos em que
o fenômeno não ocorre. Essa abordagem deverá confirmar ou negar o estudo que vem sendo realizado.
Finalmente, a terceira tábua faria referência à percepção dos diferentes graus de variação que existem
no fenômeno que está sendo estudado. Seria a tábua das graduações ou comparações. Nessa abordagem
comparativa, seria possível perceber eventuais modificações ocorridas e suas correlações. Com isso, o co-
nhecimento se consolidaria.

PROBLEMATIZANDO
1. Francis Bacon chamou de “ídolos” as imagens, os preconceitos ou ideias falsas que dificultam o co-
nhecimento seguro da realidade.
• Quais são eles? Esses ídolos continuam a existir na trajetória de quem busca conhecimento cientí-
fico?
• Converse com os colegas, buscando justificar seu posicionamento.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho de Novum organum, a seguir.

Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das


formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos
extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária [...].
BACON, Francis. Novum organum. Livro I, aforismo XCV. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 76. (Os pensadores).

• Com base nesse trecho e em outras informações sobre o pensamento de Francis Bacon, redija um
texto apresentando a concepção de ciência desse filósofo.

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5. O RACIONALISMO DE REN DESCARTES
Retome rapidamente, com os estudantes, o pensamento racionalista de Platão. Solicite a eles o saber prévio acerca das características do racionalismo grego e do papel que a dúvida exerceu na
busca pelo conhecimento, tanto no pensamento grego como no pensamento medieval de Abelardo.

Eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o ver-


MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

dadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com
segurança nesta vida [...]. Aprendi a não crer demasiado firmemente
em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume.
DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior.
São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 33. (Os pensadores).

Retrato de René Descartes


(c. 1649-1700), de Frans Hals. Óleo
sobre tela, 77,5 cm × 68,5 cm.

Seguindo a dinâmica do pensamento de Francis Bacon, René Descartes (1596-1650) também é motiva-
do pela busca do rigor no pensamento, pela investigação acerca das regras que deveríamos seguir ou nelas
nos inspirar para alcançarmos um conhecimento objetivo. Em sua obra Discurso do método, Descartes afir-
ma que persegue o método do novo saber, inspirado na clareza e no rigor dos procedimentos geométricos.
O contexto da revolução científica permite-nos reconhecer que caía por terra uma forma de saber. Em
meio às dúvidas e incertezas desse momento, era preciso buscar uma nova filosofia, um novo método, ca-
paz de proporcionar conhecimento seguro. E essa solidez virá de um novo fundamento, não mais baseado
no fundamento aristotélico que sustentava toda a tradição anterior.

Re e ime e
Na obra Regras para a direção do espírito, Descartes começou a explicitar as regras de seu método. No
entanto, ele abandonou a obra antes de concluí-la. Nela constam 21 regras. Considerando que é uma obra
inacabada, essas provavelmente não são todas as regras que constituiriam seu método.
René Descartes descreve esse método, que ele mesmo sintetiza em seu Discurso do método, por meio
de quatro preceitos fundamentais na busca do conhecimento verdadeiro. Resumimos com as nossas pala-
vras essas quatro regras que, se bem observadas, conduzirão, de acordo com Descartes, ao conhecimento
verdadeiro do que se pode conhecer:

1a regra – D e i i i l: Jamais acolher alguma coisa como verdadeira sem conhecê-la como tal
pela evidência. Com isso, Descartes pretende fornecer critérios para conhecer proposições verdadeiras como
verdadeiras. Deve-se evitar a precipitação e a prevenção, que consiste na adesão acrítica de opiniões prévias.
A evidência é o princípio fundamental do método. A evidência consiste na clareza e na distinção, como sinais
da verdade das coisas, obtida por um ato intuitivo. Somente a intuição de uma mente pura é capaz de nos
fornecer um conceito claro.
O objetivo das outras três regras consistirá em proporcionar a conquista dessa evidência.

2a regra – D li e: Dividir cada problema de estudo em tantas partes quantas forem necessárias para
melhor resolvê-lo. O método analítico, por fragmentar o todo em partes, permitiria ao intelecto, na visão de
Descartes, afastar-se das ambiguidades. Com essa estratégia de analisar passo a passo, parte por parte, evi-
tam-se generalizações apressadas. A criação dessa estratégia de Descartes está fundamentada na concepção
segundo a qual o verdadeiro está misturado com o falso. Por isso, é preciso fazer o desmembramento em
tantas partes quanto possível. Essa decomposição do conjunto em partes elementares será uma mediação
fundamental para proporcionar a intuição, condição necessária para a evidência, que é indicativa da certeza.

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3a regra – Da síntese: Uma vez feita a fragmentação, torna-se fundamental reordenar as partes, reordenar
os pensamentos, começando pelos mais simples e fáceis de conhecer, para progressivamente subir, degrau
por degrau, até o conhecimento mais complexo. Será dessa reordenação que nascerá a síntese. No percurso
dessa síntese, o ponto de partida agora será recompor a ordem. Esse movimento do simples ao complexo
torna-se passo necessário para chegar à evidência.

4a regra – Do controle ou da enumeração: Tendo sido feita a divisão em partes e a reordenação dessas
partes, é preciso proceder a constantes e completas enumerações e revisões, para ter certeza de não haver
omitido nada. É preciso evitar a precipitação. Nessa regra, Descartes propõe a verificação de cada passagem
realizada. As duas palavras que bem expressam essa regra são: "enumeração", pois verifica a completude da
análise, e "revisão", pois verificará se a síntese está correta.

Com essas regras, Descartes nos apresenta o caminho de uma pesquisa rigorosa capaz de evitar as gene-
ralizações apressadas, as precipitações e as prevenções, e nos proporcionar a clareza e distinção.
Uma vez estabelecidas as regras, Descartes as aplica sobre tudo o que recebeu da tradição para verificar
se há alguma verdade tão clara e distinta que não admita a dúvida. Vejamos, então, a dúvida como método.

A dúvida metódica
Embora não fosse cético, Descartes considerava o ceticismo muito importante, devido às questões que
colocava sobre a possibilidade de um conhecimento seguro. Para ele, o esforço consistirá em refutar o ceti-
cismo. Inicialmente, assume o ceticismo, levando-o às últimas consequências. Descartes estabelece a dúvida
como seu método, a serviço de algo maior: a busca pela verdade. Não se trata da dúvida pela dúvida, da dú-
vida como princípio e fim. Tampouco se trata de suspender qualquer juízo. Trata-se de uma árdua tarefa, de
buscar clareza e evidência. Assim, a argumentação de Descartes começa com a dúvida metódica, mediante
a qual coloca em questão todo o conhecimento adquirido da tradição, a ciência clássica e as opiniões tidas
como certas até então. Se uma proposição admitir a dúvida, não deverá ser aceita como verdade. A tarefa
consistirá em examinar os fundamentos ou os princípios sobre os quais ela foi construída. Se os fundamen-
tos não resistirem à dúvida, todo o edifício sobre ele construído irá desmoronar.
Seguiremos o percurso que Descartes fez em sua obra Meditações. Na primeira meditação, Descartes es-
tabelece os argumentos para refutar o ceticismo e buscar a verdade que supera qualquer dúvida. No primeiro
argumento, contra a ilusão dos sentidos, Descartes inicia o caminho na busca pelo conhecimento verdadeiro.
Considerando a maneira como o saber que herdamos da tradição foi construído, Descartes explicita a
consciência de que boa parte do saber que ele herdou em momento algum foi por ele problematizado, acei-
tando opiniões como verdadeiras sem testar seus fundamentos. Por isso, ele adota a dúvida como método
para alcançar verdades indubitáveis, ideias claras e distintas. No excerto a seguir, Descartes reflete sobre isso.

Das coisas que se podem colocar em dúvida


Há já algum tempo eu me apercebi de que, dito, e começar tudo novamente desde os fun-
desde meus primeiros anos, recebera muitas fal- damentos, se quisesse estabelecer algo de firme
sas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo e de constante nas ciências. Mas parecendo-me
que depois eu fundei em princípios tão mal as- ser muito grande essa empresa, aguardei atingir
segurados não podia ser senão mui duvidoso e uma idade que fosse tão madura que não pudes-
incerto; de modo que me era necessário tentar se esperar outra após ela, na qual eu estivesse
seriamente, uma vez em minha vida, desfazer- mais apto para executá-la; o que me fez diferi-
-me de todas as opiniões a que até então dera cré- -la por longo tempo que doravante acreditaria

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cometer falta se empregasse ainda em deliberar motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará
o tempo que me resta para agir. para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não é
Agora, pois, que meu espírito está livre de to- necessário que examine cada uma em particular,
dos os cuidados, e que consegui um repouso o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a
assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei ruína dos alicerces carrega necessariamente con-
seriamente e com liberdade em destruir em geral sigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei ini-
todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será cialmente aos princípios sobre os quais todas as
necessário, para alcançar esse desígnio, provar minhas antigas dúvidas estavam apoiadas.
que todas elas são falsas, o que talvez nunca le- Tudo o que recebi, até presentemente, como
vasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me per- mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos senti-
suade de que não devo menos cuidadosamente dos ou pelos sentidos. Ora, experimentei algu-
impedir-me de dar crédito às coisas que não são mas vezes que esses sentidos eram enganosos,
inteiramente certas e indubitáveis, do que às que e que é de prudência nunca se fiar inteiramente
nos parecem manifestamente ser falsas, o menor em quem já nos enganou uma vez.
DESCARTES, René. Meditação primeira. Trad. Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1991. p. 167-168. (Os pensadores).

No segundo argumento da obra Meditações, Descartes considera a inexistência de um critério seguro para
distinguir o sono da vigília. Tudo o que ele acreditou perceber claramente poderia ser apenas expressão de um
sonho no qual ele se encontrara. Por esse argumento, nada há na realidade que lhe garanta não se tratar de
uma ilusão como num sonho, no qual ele vê as coisas de modo tão nítido que parece estar acordado.
Esse argumento, contudo, se apresenta ainda insuficiente. Embora o sonho não seja real, todo o
conteúdo sonhado foi construído sobre bases bem reais, sobre formas, cores, extensões, quantidades,
durações, lugares etc.
Levando a dúvida às últimas consequências, Descartes estabelece o terceiro argumento. No final do
segundo argumento, Descartes inicialmente havia livrado da dúvida hiperbólica a aritmética e a geometria,
devido à natureza de seu saber, pois, quer estejamos acordados ou dormindo, dois mais três sempre será
cinco. Disso não se poderá duvidar. Contudo, Descartes se recorda de um aspecto fundamental: as distra-
ções que sempre estão presentes em nossa mente.
Descartes pensa a hipótese de Deus ser um enganador: se Deus tudo pode, se ele me criou, ele poderia
estar me enganando o tempo todo, fazendo com que eu afirme algo como, por exemplo, que um triângulo
tem três lados. Mas essa representação poderia ser falsa se o onipotente Deus está me enganando.
Mas, caindo em si, Descartes percebe que esse argumento não se sustenta, pois sendo Deus essencial-
mente perfeito e perfeição implica acabamento, o ato de enganar seria uma imperfeição, que não poderia
ser predicado de um ser perfeito. Esse argumento (Deus ser um enganador) poderia ser refutado como
contradição. Portanto, ele conclui, Deus não pode ser enganador.
E como Descartes resolve isso, para continuar o processo da dúvida? Ele reformula o seu argumento
recorrendo à figura do gênio maligno. Tendo afirmado a impossibilidade de Deus nos enganar por ser per-
feito, de onde vem, então, a fonte de nosso engano, uma vez que nós de fato nos enganamos? Descartes
lança a hipótese de, então, não haver um Deus ótimo, bom, verdadeiro, mas um gênio maligno e muito
poderoso, que trabalha para nos enganar.
Trata-se de um artifício psicológico para evitar lançar sobre Deus a dúvida, lançando a dúvida sobre o
gênio maligno, como fonte de engano. Com isso, Descartes estende e universaliza a sua dúvida.
Descartes termina a primeira meditação com a dúvida universalizada. Será, então, que existe algo verda-
deiro, que não admita a dúvida?
Na segunda meditação, Descartes retoma o caminho da dúvida com a seguinte argumentação: se eu
aceitar que estou sendo enganado, se eu penso que o enganador está me enganando, devo também pensar
que o enganador só pode enganar a alguém que existe. Há aqui uma evidência. Enquanto eu duvido, o que
implica ato de pensar, se estou sendo enganado ou não, eu, efetivamente, sou. Então, enquanto penso, eu
existo. Disso eu não posso duvidar.

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Com base nesse raciocínio, Descartes conclui:

A proposição “Eu sou, eu existo” é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a enuncie ou
a conceba em meu espírito.
DESCARTES, René. Meditações. Trad. Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 174. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. A dúvida metódica de René Descartes apresenta uma diferença fundamental em relação à suspen-
são de juízo dos céticos.
• Quais são os papéis que a dúvida desempenha nessas duas visões, no que se refere à possibilidade
de conhecimento da verdade?
• Discuta sua resposta com os colegas, procurando justificá-la.

A i ei i , i ei e i e i ei i
Servindo-se das regras do método, Descartes alcança a primeira certeza fundamental, a consciência de si
como ser pensante. Mas esse ser pensante é um sujeito que tem muitas ideias. E essas ideias devem todas
elas ser examinadas com muito rigor. Será que alguma outra ideia pode ser autoevidente, como é autoevi-
dente a ideia do cogito (penso)?
Descartes classifica as ideias em três tipos: inatas, adventícias e factícias. As ideias inatas seriam as que
nascem em minha consciência. As ideias adventícias seriam as que se originam fora de mim e me remetem
a realidades completamente diferentes de mim mesmo. O que se pensa sobre algo, no senso comum. Isso
chega até mim. As ideias factícias seriam as ideias feitas, construídas, inventadas por mim mesmo.
Todas essas classes de ideias são atos mentais, dos quais tenho imediata percepção. Elas divergem quan-
to ao conteúdo. Qual dessas três classes de ideias poderá ser concebida como objetiva? Qual resistirá ao
princípio da clareza e da distinção?
No atual estágio de sua investigação, em sua busca por conhecimento, Descartes considera as ideias
factícias, construídas arbitrariamente por ele, também merecedoras de receberem a dúvida. E as ideias que
vêm dos sentidos, sendo os sentidos fonte de engano, como poderão conduzir à clareza e à evidência?
Na busca pela evidência, Descartes chega à ideia de Deus como ideia inata. A conclusão à qual chega é
que a ideia de Deus (um ser perfeito) não pode ser causada por um ser imperfeito (o homem), uma vez que
o efeito de uma coisa não pode ser mais ou maior do que sua causa. E essa ideia de Deus é uma ideia inata,
que nasce com a pessoa, é “a marca do criador em sua obra”. Ora, isso significa que Deus existe. Dessa
forma, com a prova da existência de Deus, Descartes chega à segunda verdade:

Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente,
onipotente e pela qual eu próprio e as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram
criadas e produzidas.
DESCARTES, René. Meditações. Trad. Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior.
São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 189. (Os pensadores).

Para Descartes, essa ideia de Deus está em nós mas não é nossa. Ela é como a marca do artesão impressa
em sua obra.

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PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Descartes é um representante do racionalismo moderno. Com base nessa
afirmação, redija um parágrafo que a justifique. Para isso, você deverá ca-
racterizar o pensamento racionalista.

Inicialmente, recolha o saber prévio dos


estudantes sobre o empirismo. Depois, . O EMPIRISMO DE DAVID HUME
questione-os para demonstrar o campo no qual
estamos, bastante diverso do racionalismo de O vocábulo grego empeiria significa
GALERIA NACIONAL DA ESCÓCIA

Descartes: Quais são as fontes possíveis para uma


criança saber que o fogo queima? Você poderia "experiência". Assim, o empirismo é a
falar sobre alguma coisa que não passou por um
de seus cinco sentidos? Seria possível? Como? doutrina filosófica moderna que se opõe
ao racionalismo e que afirma que o co-
nhecimento procede da experiência. Os
principais representantes são filósofos
ingleses que viveram entre os séculos
XVI e XVIII. Entre eles, destacam-se John
Locke e David Hume. Para compreender
o pensamento empirista, vamos abordar
o pensamento de David Hume (1711-
Retrato de David Hume (1766), de Allan
-1776), no qual o empirismo alcançou
Ramsay. Óleo sobre tela, 76,2 cm × 63,5 cm. sua maior expressão.

O e i : e e ime
Na busca de caracterização do empirismo, diremos que é uma corrente de pen-
samento vinculada ao tema do conhecimento segundo a qual não são possíveis as
ideias inatas, uma vez que todo o nosso conhecimento resulta da experiência.
Hume centra sua filosofia na busca dos limites do conhecimento humano, e
estabelece a experiência como sendo esse limite. Um dos princípios mais impor-
PAVLA/SHUTTERSTOCK

tantes de sua filosofia afirma que o conhecimento do mundo tem como base
as percepções. As percepções são fenômenos que acontecem dentro da mente,
dentro do espírito humano, formando as impressões e as ideias. As impressões
são a dimensão mais vívida, mais forte, advinda da experiência, como as emoções
e paixões internas, quando vemos ou ouvimos algo.
Para David Hume, nossos sentidos seriam excitados pelos objetos exteriores, com
os quais entramos em relação: vemos cores, degustamos sabores, sentimos odores,
ouvimos sons, tocamos objetos. Essa percepção seria dividida em duas categorias:
ela é primeiramente sentida (de modo vívido) como impressão e é pensada (de modo
mais fraco) como ideia. Assim, a impressão é originária e a ideia é dependente.
Como uma criança chega à ideia de que o fogo queima? David Hume dirá
que é a partir dos seus sentidos, seja por ter visto, seja por ter ouvido alguém
falar, seja por ter encostado a mão, seja por ter sentido o calor intenso do fogo.
A partir dos nossos sentidos, Somente após a impressão, que resulta dos sentidos, é que se formaria a ideia.
com base na experiência Igualmente, nós não podemos perceber uma cor simplesmente pensando-a. As
empírica, formam-se em impressões, então, são a causa das ideias.
nossa mente as percepções,
que são as impressões e as
Dessa maneira, a primeira conclusão de Hume é que todas as ideias simples pro-
ideias. E as impressões são vêm de suas correspondentes impressões. Com isso, Hume encerra a questão das
divididas em sensações, ideias inatas, conforme concebidas no racionalismo de Descartes. Como consequên-
desejos, paixões e emoções. cia dessa primeira conclusão, impõe-se a segunda, segundo a qual para provar a
validade de cada ideia que se discute é necessário apresentar sua impressão relativa.

218

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D i em i ei
No trecho da obra Investigações sobre o entendimento humano, David Hume
elabora sua reflexão sobre a origem das ideias. Acompanhe.

Nada, à primeira vista, pode parecer mais ilimitado que o pensamento


humano, que não apenas escapa a todo poder e autoridade dos homens,
mas está livre até mesmo dos limites da natureza e da realidade. [...] Mas,
embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade ilimitada, um
exame mais cuidadoso nos mostrará que ele está, na verdade, confinado a
limites bastante estreitos, e que todo esse poder criador da mente consiste
meramente na capacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir
os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem. Quando pen-
samos em uma montanha de ouro, estamos apenas juntando duas ideias
consistentes, ouro e montanha, com as quais estávamos anteriormente fa-
miliarizados. [...] Em suma, todos os materiais do pensamento são deriva-
dos da sensação externa ou interna, e à mente e à vontade compete apenas
misturar e compor esses materiais. Ou, para expressar-me em linguagem
filosófica, todas as nossas ideias, ou percepções mais tênues, são cópias de
nossas impressões, ou percepções mais vívidas.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. Seção 2: Da origem das ideias. Trad. Oscar de A.
Marques. São Paulo: Unesp, 1999. p. 25-26.

Sendo cada ideia cópia de uma impressão, e sendo a impressão necessaria-


mente particular, segue-se também que as ideias devem ser determinadas do
mesmo modo, individual e particular. Muitas vezes pensamos estar diante de
ideias gerais ou universais, mas essas nada mais seriam do que ideias particulares,
conjugadas a outras particulares. Devido ao fato de notarmos certa semelhança
entre as ideias de coisas que nos aparecem, pelo hábito da associação mental que
fazemos, parece-nos que estamos diante de uma ideia universal. Com o hábito
de associar experiências, palavras, sons, nasce em nós uma crença de estarmos
diante de algo universal.

D e l
DIACONU DANIEL/SHUTTERSTOCK

Ao olharmos para o alto e


perceber que as nuvens
estão escuras, carregadas de
água, dizemos: “Vai chover,
e muito!”. Essa nossa fala
provém do hábito de perceber
que, no passado, todas as
vezes que nuvens assim se
formaram, choveu. Contudo,
para o empirismo, nenhuma
certeza é possível em
afirmações dessa natureza.

219

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David Hume critica as ideias de universalidade e de necessidade. Essa crítica o leva a problematizar a
noção de relação necessária entre causa e efeito. Sobre isso, leiamos o texto a seguir:

Todos os raciocínios referentes a questões de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito.
É somente por meio dessa relação que podemos ir além da evidência de nossa memória e nossos
sentidos. [...] Um homem que encontra um relógio ou qualquer outra máquina em uma ilha deserta
concluirá que homens estiveram anteriormente nessa ilha. Todos os nossos raciocínios relativos a
fatos são da mesma natureza. E aqui se supõe invariavelmente que há uma conexão entre o fato
presente e o fato que dele se infere. [...]
Assim, se quisermos nos convencer quanto à natureza dessa evidência que nos assegu-
ra quanto a questões de fato, devemos investigar como chegamos ao conhecimento de cau-
sas e efeitos. Arrisco-me a afirmar, a título de uma proposta geral que não admite exceções,
que o conhecimento dessa relação não é, em nenhum caso, alcançado por meio de raciocínios
a priori, mas provém inteiramente da experiência, ao descobrirmos que certos objetos particu-
lares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. [...] Nenhum objeto jamais reve-
la, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efei-
tos que dele provirão. E tampouco nossa razão é capaz de extrair, sem auxílio da experiência,
qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou questões de fato. [...] Tal é a in-
fluência do hábito: quando ele é mais forte, não apenas encobre nossa ignorância, mas chega a
ocultar a si próprio, e parece não estar presente simplesmente porque existe no mais alto grau.
Todo efeito é um acontecimento distinto de sua causa. Ele não poderá, por isso mesmo, ser des-
coberto na causa, e sua primeira invenção ou concepção a priori deve ser inteiramente arbitrária. E
mesmo após ter sido sugerido, sua conjunção com a causa deve parecer igualmente arbitrária, pois
há sempre muitos outros efeitos que, para a razão, surgem como tão perfeitamente consistentes
e naturais quanto o primeiro. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer ocorrência
individual, ou inferir qualquer causa ou efeito, sem a assistência da observação e da experiência.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. Seção 4: Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento.
Trad. Oscar de A. Marques. São Paulo: Unesp, 1999. p. 44-49.

Portanto, a experiência, que é o critério de conhecimento, não nos fornece elementos para afirmar a
conexão necessária, que é apenas inferida pela nossa mente.

D i
No trecho a seguir, Hume explicita essa ideia referente ao hábito como o guia das ações humanas.

Sempre que a repetição de algum ato ou operação particulares produz uma propensão a realizar
novamente esse mesmo ato ou operação, sem que se esteja sendo impelido por nenhum raciocínio
ou processo do entendimento, dizemos invariavelmente que essa propensão é o efeito do hábito. [...]
Nenhum homem, tendo visto apenas um único corpo mover-se após ter sido impelido por ou-
tro, poderia inferir que todos os outros corpos mover-se-iam após um impulso semelhante. Todas
as inferências da experiência são, pois, efeitos do hábito, não do raciocínio. O hábito é, assim, o
grande guia da vida humana. É só esse princípio que torna nossa experiência útil para nós, e faz-nos
esperar, no futuro, uma cadeia de acontecimentos semelhante às que ocorreram no passado. Sem a
influência do hábito seríamos inteiramente ignorantes de toda questão de fato que extrapole o que
está imediatamente presente à memória e aos sentidos.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. Seção 5: Solução cética dessas dúvidas. Trad. Oscar de A. Marques. São Paulo: Unesp,
1999. p. 64-67.

220

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Uma vez formado, esse costume gera em nós uma crença que nos dá a impressão
de que estamos diante de uma “conexão necessária” e infunde em nós a convicção
de que, dado aquilo que nós chamamos “causa”, deve se seguir aquilo que nós cha-
mamos “efeito” (e vice-versa). Essa crença não nos permite afirmar com fundamento
algo seguro sobre o futuro.
THE GOATMAN/SHUTTERSTOCK

Considere uma jogada de


sinuca. Imagine que você
esteja treinando uma jogada.
Após nove tentativas com
êxito, vai tentar mais uma
vez. Será que haverá sucesso
mais uma vez? Pode ser! Não
há certeza. É preciso fazer a
experiência mais uma vez.

Em uma tentativa de síntese, diremos que o empirismo é uma corrente de pen-


samento vinculada ao tema do conhecimento, segundo a qual não há ideias inatas,
nem conceitos abstratos, pois o conhecimento se reduz a impressões sensíveis, par-
ticulares. Considerando que as ideias são cópias derivadas e enfraquecidas das im-
pressões, não será possível afirmar princípios de causalidade e conceitos abstratos,
como se fazia na metafísica.
O empirismo moderno recebeu a crítica de Immanuel Kant que, em sua Crítica
da razão pura (1781), estabeleceu uma clara distinção entre a experiência enquan-
to passo inicial do conhecimento e enquanto dado absoluto do conhecimento.

PROBLEMATIZANDO
1. Empirismo ou racionalismo? A verdade é possível pela experiência ou so-
mente pela razão?
• Converse com os colegas sobre esse tema, buscando justificar seu posi-
cionamento.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia outro trecho de Investigação acerca do entendimento humano, a seguir.

Todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas


ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da
vontade. [...] Todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de
nossas impressões ou percepções mais vivas.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1992. p. 70.

• Com base nesse trecho e outras informações, identifique e apresente ao


menos três características da concepção filosófica de conhecimento de
David Hume.

221

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. NEM RACIONALISMO, NEM EMPIRISMO: Antes de iniciar essa síntese proposta por Kant,
retome com os estudantes as principais características
do empirismo e do racionalismo. Solicite a eles uma
O RACIONALISMO CR TICO EM ANT apreciação crítica no sentido de perceberem e expressarem
os limites e os alcances de cada uma dessas posturas.
Immanuel Kant (1724-1804) é, seguramente, um dos mais desta-

COLEÇÃO PARTICULAR
cados filósofos da época moderna. Ele nasceu e viveu seus 80 anos
em Königsberg, localizada na Prússia Oriental (atualmente a cidade se
chama Kaliningrado e pertence à Rússia). Dedicou metade de sua vida
ao magistério na universidade, em sua cidade.
Suas reflexões críticas direcionaram o pensamento filosófico num
sentido novo e original. Partindo do pressuposto antropológico de que
os constituintes fundamentais do ser humano são a razão e a liberdade,
a filosofia kantiana buscará devolver o homem a si mesmo, devolvê-lo a
si naquelas dimensões de universalidade que o constituem.
Em seu texto O que é o esclarecimento?, Kant revela todo o otimis-
mo iluminista acerca das possibilidades de o ser humano, por meio de
sua razão, passar a construir o próprio destino, guiando a própria vida
com autonomia, superando a velha dependência, em relação às cren-
Retrato de Immanuel Kant (séc. XVIII),
ças, opiniões e decisões alheias. de autoria desconhecida.

A l i : i li m i
Seguindo uma tradição interpretativa do pensamento kantiano, podemos dividi-lo em dois momentos dis-
tintos: a fase pré-critica e a fase crítica. Em sua primeira fase, seu pensamento pode ser classificado como ra-
cionalismo dogmático. Contudo, após ler e estudar as obras de David Hume, Kant percebeu fundamentos no
posicionamento dos empiristas. Esses estudos despertaram Kant do sono dogmático, como ele mesmo gostava
de afirmar. E será com esse despertar do dogmatismo que se inicia o que podemos chamar de fase crítica.
No prefácio à edição de 1781 da Crítica da razão pura, Kant afirma aquilo que poderíamos colocar como
sendo sua grande intenção e projeto de trabalho: fazer uma consistente avaliação dos poderes e limites da
razão, colocar a razão diante de um tribunal que lhe assegurasse as pretensões legítimas e, em contraparti-
da, pudesse condenar todas as suas presunções infundadas.
Com esse exercício de crítica, Kant faz com que a razão, antes de querer lançar-se ao mundo para conhe-
cê-lo, volte-se a si mesma e verifique suas possibilidades e seus limites de conhecer. Para Kant, a filosofia é
a ciência da relação de todo o pensamento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana. A
partir dessa concepção, Kant estabelece as quatro questões essenciais ao ser humano:
1. Tema do conhecimento (metafísica), com a pergunta: O que posso saber?
2. Tema da ética e da moral, com a pergunta: O que devo fazer?
3. Tema da religião, com a pergunta: O que posso esperar?
4. Tema da antropologia, com a pergunta: O que é o ser humano?
A filosofia de Kant recebeu o nome de criticismo, pois entre seus grandes objetivos constava submeter
a razão a uma grande e profunda crítica, em busca de um conhecimento bem fundamentado. Ele faz uma
síntese entre o empirismo e o racionalismo, articulando essas duas visões que eram vistas como antagôni-
cas, contrárias, irreconciliáveis.
Nessa síntese entre empirismo e racionalismo, Kant afirma que a matéria de nosso conhecimento vem da
experiência, do mundo exterior, por meio de nossos sentidos. O ponto de partida do conhecimento estaria
na experiência, no a posteriori.
Para Kant, nenhum conhecimento precede a experiência. Para falar em conhecimentos, Kant usa a ex-
pressão a posteriori. Contudo, o fato de o conhecimento ter se iniciado com a experiência não significa que
dela dependa. Assim, Kant fala em conhecimento a priori, referindo-se a todo o conhecimento adquirido
independentemente de qualquer experiência. Em outras palavras, o conhecimento a priori mesmo tendo
origem na experiência, não é dependente dela.

222

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Encontramos a teoria do conhecimento de Kant em sua obra Crítica da razão pura. Nessa obra, ele
elabora a filosofia transcendental, onde considera as condições de possibilidade que o ser humano tem de
conhecer o mundo, sem ilusões, com conhecimento verdadeiro e confiável. Esse conhecimento será possível
por meio da ciência e não por especulações vazias e infundadas.

J l i e i i
Por "juízo" entendemos os julgamentos que emitimos e as afirmações que fazemos sobre uma realida-
de. Em busca de um conhecimento científico, Kant percebe a necessidade de distinguir juízos analíticos,
juízos sintéticos a posteriori e juízos sintéticos a priori.
O juízo analítico é aquele no qual o predicado já está contido no sujeito, não acrescentando nenhum
conhecimento novo. Por isso, trata-se de um juízo universal e necessário. Esse tipo de conhecimento é a
priori, que independe e antecede qualquer experiência. Por exemplo: "todo corpo é extenso". A ciência se
serve desse juízo para esclarecer ou para explicar alguma coisa. Mas esse juízo a priori nada acrescenta. Por
isso, a ciência não recorre a esse tipo de juízo quando ela amplia o seu conhecimento.
No juízo sintético a posteriori, construído depois da experiência, o predicado traz algo novo, que não
está presente imediatamente no sujeito. Por isso, esse juízo produz um conhecimento novo. O juízo é sinté-
tico porque o predicado acrescenta algo ao sujeito, que dele não é extraível pela mera análise. Por exemplo:
a rua está enfeitada. Entretanto, a ciência também não pode se basear nesse tipo de juízo, pois, devido ao
fato de dependerem da experiência, não são universais nem necessários.
A ciência se baseia em um tipo de juízo que une as exigências da universalidade, da necessidade e da fe-
cundidade. Kant denomina esses juízos de sintéticos a priori. São exemplos: as operações aritméticas, os juízos
da geometria, as proposições fundamentais da física. Quando se afirma que 6 + 7 = 13 não estamos fazendo
um juízo analítico, mas um juízo sintético. Como se chega a esse resultado? Efetuando o cálculo, intuitivamen-
te ou não. Assim, sinteticamente, surge um novo número.

Um e l e i
No âmbito do conhecimento, para que fosse possível alcançar os juízos sintéticos a priori, Kant realizou
uma nova “revolução copernicana”. Conforme já mencionamos, Kant insiste em um aspecto radicalmente
novo: antes de se lançar ao conhecimento do mundo, a razão precisa conhecer as condições de possibilida-
de e os limites para conhecer.
Ao chamar sua nova concepção pelo nome de "revolução copernicana", Kant faz referência à mudança
de paradigma que Copérnico realizou na ciência, ao substituir o modelo geocêntrico pelo heliocêntrico.
Kant propõe uma inversão na forma tradicional de compreender a dinâmica do conhecimento. O centro
de gravidade não estará mais no objeto. Não será mais a razão que deverá se adequar aos objetos, mas os
objetos teriam de se regular pelo sujeito, pois é ele que dispõe das formas do conhecimento. É o sujeito que
possui as condições de possibilidade de conhecer. As regras do conhecimento não devem ser buscadas no
mundo exterior, no mundo das coisas, mas no sujeito transcendental. Dessa forma, o sentido das coisas não
está nelas, ou no mundo, mas é o sujeito que atribui sentido a elas.

Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém
todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que
ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez
se não progredimos melhor nas tarefas da metafísica admitindo que os objetos têm que se regular
pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possibilidade de um
conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem
dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico [...]
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Prefácio à 2a edição. São Paulo: Abril Cultural, 1991. p. 14. (Os pensadores).

223

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Se até agora as teorias afirmavam que a razão humana teria de se adequar aos objetos, Kant realiza a
inversão ao propor que os objetos teriam de se regular pelo sujeito. Para Kant, o sujeito possui as condições
de possibilidade de conhecer os fenômenos; ele possui as regras pelas quais os objetos podem ser reconhe-
cidos. Assim, o que conhecemos é profundamente marcado pela maneira como conhecemos, indo até os
objetos com as nossas perguntas, fazendo os objetos falarem de acordo com os nossos questionamentos.
Vejamos outro fragmento de Kant sobre esse mesmo aspecto:

Quando Galileu deixou suas esferas rolar sobre o plano inclinado por um peso por ele mesmo
escolhido [...] acendeu-se uma luz para todos os pesquisadores da natureza. Compreenderam que a
razão só discerne o que ela mesmo produz segundo seu projeto, que ela tem de ir à frente com prin-
cípios dos seus juízos segundo leis constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas,
mas sem ter de deixar-se conduzir somente por ela como se estivesse presa a um laço [...].
A razão tem de ir à natureza tendo numa das mãos os princípios unicamente segundo os quais fe-
nômenos concordantes entre si podem valer como leis, e na outra o experimento que ela imaginou
segundo aqueles princípios.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Prefácio à 2a edição. São Paulo: Abril Cultural, 1991. p. 13. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Considerando a relação entre sujeito e objeto, será que a mente humana poderá chegar ao conhe-
cimento da verdade de um objeto?
• Converse com os colegas sobre essa questão e apresente as justificativas de seu posicionamento.

F m e i ili ee e e ime
Para Kant é fundamental juntar os sentidos e a razão, a sensibilidade e o entendimento. Ao se perguntar
sobre as condições que o sujeito tem para conhecer, Kant percebeu que existem no ser humano faculdades
ou capacidades inerentes, que fazem parte de sua natureza de ser. Assim, constatou que o ser humano
pode experimentar algo e refletir sobre o que experimentou. Isso não é algo particular ou subjetivo. Mas
está presente em todos os seres humanos.

Formas a priori da sensibilidade


Quais são as condições de possibilidade que temos para fazer alguma experiência, para conhecer algum
objeto? O que permite a alguém afirmar que a bola de futebol é maior do que a bola de sinuca ou que a
chave está em cima da mesa ou, ainda, descrever um objeto? Para Kant, a resposta está nas formas tempo
e espaço. Essas são as formas a priori da sensibilidade, que não existem como realidades em si mesmas, mas
são as condições que nos permitem perceber os objetos. Sem o tempo e o espaço não seria possível ao ser
humano experimentar algo.

Formas a priori do entendimento


Quais são as condições de possibilidade de o nosso entendimento julgar algo? As ferramentas que o ser
humano dispõe para pensar sobre aquilo que experimentou com base nos sentidos são as categorias. Elas
são as ferramentas do intelecto, os conceitos puros. Com eles, o ser humano consegue criar relações entre
as informações que vêm dos sentidos. Com isso, o ser humano consegue chegar ao conhecimento, ao juízo.
Assim o sujeito transcendental, que reúne as condições de possibilidade do conhecimento, é constituído por
categorias e pelas formas tempo e espaço. Para Kant, existiriam doze categorias. São elas:

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TABELA DAS CATEGORIAS

QUANTIDADE QUALIDADE RELAÇÃO MODALIDADE

Possibilidade ou
Unidade Realidade Substância e acidente
impossibilidade
Existência ou
Pluralidade Negação Causa e efeito
inexistência
Necessidade ou
Totalidade Totalidade Reciprocidade
contingência

Considerando que o ser humano possui em si as formas a priori da sensibilidade e as faculdades de


tempo e de espaço, que lhe permitem obter os dados da experiência e dispor das formas a priori do enten-
dimento, torna-se possível, então, alcançar verdades que ampliem o conhecimento humano e, ao mesmo
tempo, sejam universais e necessárias.
Resta saber, afirma Kant, o que podemos verdadeiramente conhecer. Será possível conhecer a essência
de algo ou será possível ter conhecimento somente daquilo que pode ser experimentado?

O e me e noumenon
Como vimos, de acordo com Kant, o conhecimento inicia pela experiência. Por isso, só poderá haver
ciência verdadeira, com conhecimento universal e necessário, a partir do fenômeno. Ele concluiu que é im-
possível conhecer as coisas tais como elas são em si mesmas (nou-

MUSEU DE ARTE MODERNA, NOVA YORK,


ESTADOS UNIDOS
menon), em sua imaterialidade. Podemos conhecer apenas a forma
como a nós as coisas aparecem, isto é, o fenômeno, a aparência.
Ao referirmo-nos a realidades metafísicas, tais como existência de
Deus e imortalidade da alma, nada podemos afirmar, pois não são
objetos de experiência, apenas de pensamento. É o limite da razão.
Aqui podemos entender a crítica que Kant realiza à metafísi-
ca tradicional, que busca conhecer para além da experiência, sem
qualquer tipo de vínculo com a experiência. A verdadeira metafísica
O espelho falso (1928), de René Magritte.
seria aquela que não teria a pretensão de conhecer o noumenon, Óleo sobre tela, 54 cm × 80,9 cm.
o ser enquanto ser, mas concentrar-se nos modos possíveis de co-
Essa obra de Magritte propõe uma
nhecimento, nas condições de possibilidade do conhecimento e da questão: é possível conhecer a
experiência humana. essência ou apenas a aparência?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o fragmento a seguir, extraído de Crítica da razão pura, de Kant.

Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos [...]. Tente-se
ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da metafísica admitindo que os objetos têm que
se regular pelo nosso conhecimento.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Prefácio à 2a edição. São Paulo: Abril Cultural, 1991. p. 14. (Os pensadores).

• Com base nesse fragmento, redija um texto conceituando e caracterizando a “revolução coperni-
cana” de Kant.

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3
Eixo Temático

ÉTICA E
POLÍTICA

bre :
r so
nde
e

pr
ia
• O afastamento do pensamento e do fazer
político moderno em relação à ética cristã.
va
• A metáfora do leão e da raposa e
Você

sua relação com a virtude política em


Maquiavel.
• A idealização de uma sociedade sem
desigualdades em Thomas Morus.
• A diferença entre a transitoriedade do
governo e a permanência da soberania do
Estado em Jean Bodin.
• A relação entre direito positivo e direito
natural.
• As diferentes hipóteses sobre o estado
natural do ser humano e o contrato social
em Hobbes, Locke e Rousseau.
• A articulação entre os poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário em Montesquieu.
• As reflexões sobre as questões morais e
éticas em Kant.

Temas:
1. Autonomia da política em Maquiavel 6. Do estado natural ao corpo político
2. A utopia política em Thomas Morus 7. As três espécies de governo
3. A soberania política em Jean Bodin em Montesquieu
4. O direito natural e o direito positivo 8. A filosofia moral em Kant
5. A hipótese do estado natural
No eixo temático dedicado à ética e à política desta unidade, em contexto de modernidade, estamos diante da possibilidade de um projeto de reflexão filosófica sobre as implicações do Estado
laico para uma sociedade democrática. Será que o Estado brasileiro é, de fato, laico? Como explicar os feriados religiosos em nossa sociedade, considerando a laicidade do Estado? O que dizer do
uso de símbolos religiosos do cristianismo em repartições públicas pertencentes ao Estado? Problematize essas questões com a turma.

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1. AUTONOMIA DA POL TICA EM MA UIAVEL
O pensamento político de Nicolau Maquiavel

PALAZZO VECHIO, FLORENÇA, ITÁLIA


(1469-1527) inaugura a política moderna: seu pensa-
mento se afasta da forma de fazer política predomi-
nante até então. A política que se praticava era atre-
lada à dimensão religiosa, vinculada à ética cristã. Por
isso, em Maquiavel encontraremos uma autonomia
da política, pois não haverá outros critérios acima da
política como referência para as ações.
Essa nova realidade ficou conhecida com a expres-
são “laicização do Estado”, como uma mentalidade
em um processo de secularização da consciência; ou
seja, a forma de pensar afasta-se da dimensão sa-
grada, divina e eterna e se desloca para o âmbito
secular, histórico, temporal.
Para compreender o pensamento de Maquiavel,
especialmente de suas ideias desenvolvidas na obra
O príncipe, será preciso considerar o contexto histó-
rico em que seu posicionamento surgiu.
No tempo de Maquiavel, a Itália encontrava-se
dividida. Os principais Estados eram: o Reino de Ná-
poles, os Estados Pontifícios, O Estado Florentino, o
Retrato de Maquiavel (séc. XVI), de Santi di Tito. Óleo sobre tela.
Ducado de Milão e a República de Veneza. Eram
constantes os conflitos. Nesse contexto, Maquiavel
alimentou a esperança e o projeto de unificar a Itá-
P18FL_M001
A ITÁLIA NO TEMPO DE MAQUIAVEL (SÉC. XV-XVI)
lia, para fortalecê-la contra ameaças externas e

MARIO YOSHIDA
construir a paz interna.

O e li m e e ee e i DUCADO
DE SABOIA Milão
Verona
R E
P
Pádua
Aquileia
REINO
DA
Caravaggio Ú B Veneza HUNGRIA
Turim L I
DUCADO DUCADO C A
DE MÂNTUA DUCADO D
Ao ler O príncipe, é importante observar que
DE MILÃO E
DE FERRARA
REINO DA FRANÇA

Parma V
DUCADO E
DE GÊNO DE Ravena N
E
CA Gênova VA Bolonha Forli Z
essa obra não deve ser entendida sob a perspectiva
MÓDENA
Cesena A IMPÉRIO
I
BL

Rimini

Lucca Prato OTOMANO


Pesaro
RE

REPÚBLICA Florença

de uma ética universalista, mas sob a óptica de uma DE LUCCA


Pisa
REPÚBLICA
DE FLORENÇA
Urbino Senigallia
Ancona
M
situação histórica na qual a Itália se encontrava, e
Siena Magione
Perúgia
ar
REPÚBLICA
A
DE SIENA d
ri
para a qual se faziam necessárias algumas orienta- ESTADOS
PAPAIS
át
ic
o
ções efetivas.
CÓRSEGA
Roma

A natureza dos textos de Maquiavel considera REINO


DE
a necessidade que a cena política solicitava. O que Nápoles
NÁPOLES

muda radicalmente em Maquiavel é o fundamento


REINO
DA Mar Tirreno
40º N SARDENHA

da política, do poder, do governo e do Estado.

Mar Jônico
Messina
Ma
r Medit
er REINO
râ DA SICÍLIA

e
n

o
Sacro Império 0 655 1 310 km
15º L

Fonte: MAQUIAVEL, Nicolau. O


príncipe. Trad. Maurício Santana A Itália no tempo de Maquiavel era uma península
Dias. São Paulo: Penguin Classics; fragmentada, geográfica e politicamente.
Companhia das Letras, 2010. p. 10.

227

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Mas, como a minha intenção é escrever algo útil para quem entender, pareceu-me mais conve-
niente ir diretamente à verdadeira realidade das coisas, do que me ater a representações imaginárias.
E muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca se viu nem se soube que tivessem real-
mente existido, pois há grande diferença entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que
abandona o que faz pelo que deveria fazer encontra antes a sua ruína, em vez de sua salvação. Pois
é inevitável que um homem disposto a ser bom em tudo fracasse entre tantos que não são bons.
Por isso, é preciso que um príncipe, para se manter, aprenda a poder não ser bom, e a sê-lo ou não,
segundo a necessidade.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe: com comentários de Napoleão Bonaparte. Trad. Mônica Baña Álvares. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 73-74.

Maquiavel insiste que será o olhar atento à circunstância que conseguirá pensar na melhor ação para o
momento. Haverá momentos em que as ações deverão ser mais suaves e marcadas pela bondade. Em con-
trapartida, haverá situações que exigirão ações enérgicas, como “remédios amargos para males amargos”.
Nesse realismo político, toda escolha do príncipe deve submeter-se ao critério da funcionalidade, tendo
em vista a eficácia do seu governo, a estabilidade do Estado, na preservação da ordem e da paz social.
Maquiavel reforça a concepção de soberania do poder do Estado e nunca da pessoa do príncipe, ou do
governante, que é passageira.
A metodologia que Maquiavel escolheu para escrever O príncipe consistiu em recolher exemplos de go-
vernos e governantes extraídos da história, mostrando exemplos que deram certo e outros que fracassaram.
Com esse recurso, ele reforça seu posicionamento, segundo o qual a realidade concreta seria fundamento
para a escolha das ações políticas.
Para Maquiavel, as cidades são marcadas pela disputa pelo poder. Em termos genéricos, existiriam três
grupos humanos: os que estão no poder e nele querem manter-se; os que não estão no poder, mas querem
lá estar; e o povo que não quer ser oprimido. De modo mais resumido, diria Maquiavel que são dois os
grupos: os poderosos que querem dominar, e o povo que não quer ser oprimido.
Com esse conhecimento da realidade politica como efetivamente se dá, o príncipe que pretende manter
o poder, perceberá que uma das ações políticas mais importantes será conseguir limitar a realização do
desejo de opressão dos poderosos contra o povo, pois o ódio que resulta da opressão desmedida levaria o
governante à ruína. Para Maquiavel, o príncipe deve antes procurar se aliar ao povo, que não quer ser opri-
mido, do que aos nobres, que sempre desejam tomar o poder. Esse é um elemento fundamental na filosofia
política de Maquiavel, que deve ser levado em conta na escolha da melhor ação.

Converse com o grupo sobre como entendem o conceito de virtude. Em seguida, questione os
A i e l i estudantes sobre como eles definem a virtude política atualmente, no Brasil e no mundo.

Em Maquiavel, a virtude do príncipe nada tem a ver com a virtude cristã. Ao contrário, será marcada por
uma habilidade política muito especial, a competência de saber adaptar-se às situações e agir para o bem do
povo, para a ordem social. Assim, a virtude é uma forma de astúcia política, que implica saber separar o que
vale na esfera privada, nas convicções pessoais, e o que vale na esfera pública, sob a ética da responsabilidade.
No trecho a seguir de O príncipe, Maquiavel esclarece quais são os critérios que orientam a ação de um
príncipe virtuoso.

Cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: apesar disso, deve cuidar de
empregar convenientemente essa piedade. [...] Não deve, portanto, importar ao príncipe a qua-
lificação de cruel para manter seus súditos unidos e leais, porque, com raras exceções, é ele mais
piedoso do que aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens, das quais podem
nascer assassínios ou rapinagem.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Cap. XVII. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Publifolha, 2010. p. 38.

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Com base nesse fragmento, percebemos que a virtude é mediação para a manutenção do poder a ser-
viço da ordem social, preservando o Estado, aliando-se ao povo e combatendo o desejo de dominação e
opressão que caracteriza os poderosos. Dessa forma, mesmo que seja possível alcançar o poder por outros
meios, como a fortuna ou a força, somente a virtude mantém o poder. Nessa concepção, terá virtù o go-
verno que reunir a capacidade de agir de acordo com as circunstâncias. Assim, a flexibilidade será uma das
marcas da virtude política.
Recolha o saber prévio dos estudantes referente às diferentes noções de
A el e e virtù e virtude, especialmente grega e cristã medieval, e de fortuna. Em seguida,
verifique com eles a singularidade dessas concepções em Maquiavel.

Na teoria política maquiaveliana, é fundamental compreender bem a relação entre virtù e fortuna. Nessa
abordagem, Maquiavel demonstra que a vida de um Estado ou de uma pessoa está sujeita a mudanças
inesperadas, pois há uma imprevisibilidade na história do ser humano. E a relação entre virtude e fortuna
acontece nesse contexto.
A fortuna representaria a mudança dos tempos e a virtù seria a capacidade e a habilidade racional e
estratégica do ser humano em agir, ao perceber a mudança em curso. Com isso, ele não ficaria submisso ou
sujeito à fortuna, mas garantiria a estabilidade no exercício do poder.
Diante dessa realidade, Maquiavel entende que a vida das pessoas está em parte em suas próprias mãos,
nas mãos da virtude, e em parte depende das eventualidades. A fortuna pode provocar eventos imutáveis
contra os quais fica estéril qualquer ação. Nesse caso, a virtude solicitaria a adaptabilidade para, reconhe-
cendo as exigências da nova situação, pensar nas melhores estratégias de ação.
E como uma pessoa pode atingir a virtù? Maquiavel responde indicando o estudo da história dos povos
antigos, pois desde o início dos tempos as mesmas paixões dos seres humanos estariam presentes. Leia o
fragmento no qual Maquiavel se refere a isso.

Quem considere as coisas presentes e as antigas verá facilmente que são sempre os mesmos dese-
jos e os humores em todas as cidades e todos os povos, e que eles sempre existiram. De tal modo
que quem examinar com diligência as coisas passadas facilmente preverá as futuras, em qualquer
república, prescrevendo os remédios que foram usados pelos antigos, pensará em novos, devido à
semelhança dos acontecimentos.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 121.

A virtude política implica as possibilidades de recurso à astúcia e à força, para a manutenção do Estado.
No texto a seguir, Maquiavel usa a metáfora do leão e da raposa, para simbolizar duas estratégias diferentes
de ação, quando a ação com base na lei não é suficiente.

Deveis saber, portanto, que existem duas formas de se combater: uma, pelas leis; outra, pela força.
A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes, a primeira
não é suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém, saber empre-
gar convenientemente o animal e o homem. [...] E uma sem a outra é a origem da instabilidade.
Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as quali-
dades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços, e a raposa, contra os lo-
bos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se fazem
unicamente de leões não entendem de Estado. Por isso, um príncipe prudente não pode nem deve
guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determina-
ram cessem de existir. Se os homens todos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que são
maus, e que não a observariam a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la para com eles.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Cap. XVIII. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Publifolha, 2010. p. 40.

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COLOMBO NICOLA/SHUTTERSTOCK
A virtude política consiste
em saber agir com a força
de um leão e a esperteza
de uma raposa.
A li e e e li
Pensando na melhor forma de governo, Maquiavel afirma que há três es-
pécies de governos e os que pretendem estabelecer a ordem em uma cidade
devem escolher, entre essas três espécies, a que melhor convém a seus objetivos:
o monárquico (podendo degenerar no despotismo); o aristocrático (podendo de-
generar na oligarquia); e o popular (podendo degenerar na permissividade). As
constituições simples sucedem-se muito rapidamente. Seu defeito é a instabilida-
de. As constituições das três formas de governo “boas” se corrompem com tal
facilidade que “podem também tornar-se perniciosas”.
Para Maquiavel, somente os regimes que contam com a efetiva participação
do povo em suas instituições são virtuosos. Sem o apoio do povo, não há poder
que dure. Com base nessas reflexões, tornou-se hoje consenso entre os estudio-
sos inserir o pensamento de Maquiavel na tradição republicana, que envolve a
presença da liberdade cívica, sob o regime da lei. Esse seria o bem comum.
O cidadão não deve apenas não ser oprimido, ele deve ter assegurada a sua
liberdade. É essa necessidade de garantia da liberdade que vincula Maquiavel ao
republicanismo. A liberdade republicana pressupõe a possibilidade de participa-
ção na vida pública, nas instituições públicas. Trata-se, portanto, de uma ideia de
liberdade positiva, uma vez que o povo, livre das opressões, poderá se envolver
diretamente na governabilidade da cidade.
Nessa reflexão sobre a liberdade positiva, percebe-se a ênfase na valorização
da vida ativa, em contraposição ao ideal da vida contemplativa, que predominou
durante muito tempo, especialmente no contexto medieval. O foco agora está na
liberdade de manifestação na esfera pública.

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PROBLEMATIZANDO
1. As reflexões precedentes permitem-nos afirmar que a separação da política em relação à esfera re-
ligiosa se faz necessária para uma eficaz administração da cidade.
• Como você se posiciona diante dessa afirmação?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o fragmento a seguir:

Mas, como a minha intenção é escrever algo útil para quem entender, pareceu-me mais convenien-
te ir diretamente à verdadeira realidade das coisas, do que me ater a representações imaginárias.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe: com comentários de Napoleão Bonaparte.
Trad. Mônica Baña Álvares. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 73-74.

• Com base nesse texto e em outras informações, explique a novidade política inaugurada por Ma-
quiavel.
2. Leia este trecho de O príncipe, de Maquiavel.

Para exemplo dos que foram príncipes pelo seu valor e não por boa sorte, cito como maiores
Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu [...]. E examinando-lhes a vida e as ações, conclui-se que eles não re-
ceberam da fortuna mais do que a ocasião de poder amoldar as coisas como melhor lhes aprouve.
Sem aquela ocasião, suas qualidades pessoais se teriam apagado, e sem essas virtudes a ocasião lhes
teria sido vã.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Publifolha, 2010.

• Com base nesse fragmento e em outras informações sobre o pensamento de Maquiavel, conceitue
virtude.
3. Leia o fragmento a seguir.

Será melhor ser amado que temido ou vice-versa? Responder-se-á que se desejaria ser uma e outra
coisa; mas como é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados, é muito
mais seguro ser temido que amado, quando se tenha que falhar numa das duas. É que os homens
geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes
fizeres bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos [...], desde que a necessidade
esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para a outra parte. E o príncipe, se confiou
plenamente em palavras e não tomou outras precauções, estará arruinado.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Cap. XVII. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Publifolha, 2010. p. 38.

• Com base nesse fragmento e em outras informações, redija um texto sobre a concepção maquia-
veliana de poder.

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Inicialmente, recolha dos estudantes o saber prévio referente às concepções que trazem de utopia. Em seguida, faça uma sondagem
com eles sobre a possibilidade de uma utopia, de ontem ou de hoje, tornar-se realidade em outro momento histórico.

2. A UTOPIA POL TICA EM THOMAS MORUS


Thomas Morus (1478-1535) é o autor de uma das mais conheci-
COLEÇÃO FRICK, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS

das obras da Renascença: Utopia. O livro foi publicado em 1516, duas


décadas após a chegada dos europeus à América. Seu livro nos per-
mite pensar em muitos temas políticos, como a justiça, a paz interna
e entre os povos, a guerra, as finanças, o comércio, a colonização.
Morus narra a viagem do personagem Rafael à ilha Utopia e des-
creve a sociedade que conheceu. Trata-se da projeção de um ideal
da mente humana, de uma sociedade que não existe historicamen-
te. A palavra “utopia” provém do grego, significando a ausência de
lugar, o não lugar, o que não existe.
Nessa sociedade idealizada, a capital chama-se Amauroto, que
se refere àquilo que se esvai, que se perde. Em Utopia existe um
rio chamado Anidro, sem água. E é muito sugestivo o nome do
príncipe da cidade: Ademo, que significa ausência de povo, prínci-
pe sem povo. Com essas expressões, Thomas Morus revela em sua
Retrato de Thomas Morus (1527), de Hans obra a busca por algo completamente diferente do que ocorria
Holbein (o Jovem). Óleo sobre madeira, na sociedade em que viveu: a ausência de desigualdades, miséria,
74,9 cm × 60,3 cm. concentração de renda etc.
Em suas últimas palavras em Utopia, Morus confessa que há nessa república muitas coisas que dese-
jaria ver em “nossas cidades”. E conclui, afirmando ser “coisa que mais desejo do que espero”. Ou seja,
não apenas Utopia não existe, como Morus não espera que venha a existir.
Essa obra de Morus nos faz pensar a respeito da ação de Estados e governos. Contudo, o livro não é
um ideário, embora sirva como farol para orientar e alimentar as ações humanas.
Vejamos alguns fragmentos de Utopia.

Utopia
Na Utopia... não se veem nem pobres nem enorme seara de crimes não cortou pela raiz? [...]
mendigos, e ainda que ninguém tenha nada de A própria pobreza, que parece ser a única a care-
seu, no entanto todo mundo é rico. Existe, na cer de dinheiro, diminuiria no instante mesmo,
realidade, mais bela riqueza do que viver alegre caso o dinheiro fosse completamente abolido.
e tranquilo, sem inquietações nem cuidados? E veja-se esta prova evidente: Suponde que ve-
[...] nha um ano mau e estéril, durante o qual uma
É justo que um nobre, um ourives, um usurá- horrível fome roube muitos milhares de vidas.
rio, um homem que não produz senão objetos de Sustento que, ao fim da calamidade, se fossem
luxo, inúteis ao Estado, é justo que tais indivídu- pesquisados os celeiros dos ricos, neles se en-
os levem uma vida caprichosa e esplêndida por contrariam imensas provisões de grãos. De sorte
entre ociosidade e ocupações frívolas, enquanto que, se essas provisões tivessem sido distribuí-
que um trabalhador, um carreteiro, um artesão das em tempo, nenhum dos infelizes que mor-
ou um lavrador vivam na negra miséria, mal po- reram de fraqueza e debilidade teria sido tocado
dendo alimentar-se? E, no entanto, os últimos es- pela inclemência do céu e a avareza da terra. Ve-
tão amarrados a um trabalho tão pesado e tão pe- des, pois, que, sem o dinheiro, a existência teria
noso que as bestas de carga mal suportariam. [...] podido e poderá ser assegurada a todos; e que a
Na Utopia a avareza é impossível, porque o di- chave de ouro, esta bem-aventurada invenção
nheiro ali não é de uso algum, e, por isso mesmo, que nos devia abrir as portas da felicidade, no-
que abundante fonte de males não estancou? Que -las fecha impiedosamente. [...]
MORUS, Thomas. Utopia. Trad. Luís de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1972. p. 308-311. (Os pensadores).

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PROBLEMATIZANDO
1. Embora a utopia refira-se a algo que não tem lugar, que não existe, ela exerce um importante papel
na história da humanidade.
• Você conhece algumas realidades que hoje já dão sinais de existência e que no passado não pas-
savam de utopia?
• Quais utopias você julga que nós deveríamos cultivar, no presente, pensando em sua progressiva
realização histórica?

3. A SOBERANIA POL TICA EM JEAN BODIN


Jean Bodin (1529-1596), jurista e escritor cristão, situa-se
entre o realismo político de Maquiavel e o utopismo de Tho-

PH. COLL. ARCHIVES LARBOR


mas Morus. É considerado o teórico da soberania. Em sua
obra Seis livros sobre a República, Bodin defende a necessi-
dade de uma forte soberania para a existência do Estado, que
manterá os membros sociais unidos em um só corpo.
Considerando o conceito de soberania como “poder supre-
mo”, verificamos que, na escala dos poderes, o poder inferior
é subordinado ao superior, que, por sua vez, se subordina a
outro poder superior, o summa potestas, que é o poder sobera-
no. Dessa maneira, onde há um poder soberano encontramos
um Estado. É o que podemos verificar na definição do próprio
Bodin: “Por soberania se entende o poder absoluto e perpétuo
de uma República [que é próprio do Estado]” (Livro I, cap.VIII).
O adjetivo “absoluto”, que Bodin atribui à soberania do
Estado, refere-se ao que não tem outros limites senão os da
lei divina e da lei natural. Dessa forma, entre as características
da soberania se encontra o fato de ela ser absoluta, perpétua
Jean Bodin.
e indivisível. O adjetivo “perpétuo” refere-se ao fato de que a
soberania não se identifica com a figura do governante, pois o governo passa. A soberania não é transitória,
não se transmite. Ela pertence ao Estado, que permanece. Quem estabeleceria a lei seria o soberano, mas
quem a administraria seria o governo. E a justiça teria relação com a administração da lei. Portanto, cabe ao
governo administrar a justiça, distribuir a cada um o que lhe é próprio.
Jean Bodin afirma a permanência ou a continuidade da República. Para ele, essa soberania deve ser
obtida mediante a justiça, fruto de um governo com base na razão. A soberania seria, assim, o verdadeiro
fundamento sobre o qual se constrói toda a estrutura do Estado e da qual dependem todas as leis, normas
e magistraturas. O Estado seria, então, o corpo perfeito no qual todas as famílias e corporações se encon-
trariam vinculadas e unidas.

PROBLEMATIZANDO
1. Considerando o conceito de soberania, que implicações poderiam surgir se julgássemos como sobe-
rano o governante e não o Estado?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Explique o conceito de soberania, em Bodin, explicitando o seu caráter absoluto, indivisível
e perpétuo.

233

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Retome com os estudantes a teoria do direito de Tomás de Aquino, no qual abordamos as ideias “direito natural” e “direito positivo”. Para auxiliar na problematização inicial, sugerimos os
questionamentos: De onde vem a proibição ao roubo, ao assassinato? Algo é proibido por que é errado? Ou algo é errado por que é proibido?

4. O DIREITO NATURAL E O DIREITO POSITIVO


No início do séc. XVII, a cultura ocidental vivia a forma-

RIJKSMUSEUM, AMSTERDÃ, HOLANDA


ção da teoria do direito natural. Os principais representan-
tes dessa teoria, também chamada de jusnaturalismo, são
Alberico Gentili (1552-1608) e Hugo Grotius (1583-1645).
Recordando a teoria do direito de Tomás de Aquino, na
Idade Média, podemos encontrar os elementos que for-
marão a base do jusnaturalismo, na Renascença. De acor-
do com essa teoria, os homens teriam direitos naturais.
Para alguns pensadores, esses direitos viriam de Deus
que, no ato da criação, teria inscrito nas criaturas a sua
lei. Nessa concepção, a lei natural teria sido instituída por
Deus, no coração de suas criaturas.
Sendo o direito natural de ordem divina, ele traria a
marca da universalidade e da imutabilidade, pois a perfei-
ção divina teria deixado sua marca nele.
Outros autores leem a lei natural sem referência a uma
divindade, a um criador. Os indivíduos, por meio da razão,
teriam condições para conhecer os princípios dessa lei na- Retrato de Hugo Grotius (1631), de Michiel Janz van
tural. Assim, natureza e razão seriam os fundamentos do Mierevelt. Óleo sobre painel, 63 cm × 55 cm.
direito natural.
Entre os direitos naturais, costumam ser destacados os direitos à vida, à felicidade, à propriedade, à li-
berdade, à dignidade. Com esse reconhecimento, estaria estabelecida a natural igualdade de todos os seres
humanos. Todos teriam os mesmos direitos. Seriam livres e iguais.
Dessa maneira, notamos que, historicamente, o jusnaturalismo apresenta diferentes visões, mas todas
reconhecem um elemento comum: normas logicamente anteriores e eticamente superiores às leis criadas
pelos seres humanos em sociedade.

O jusnaturalismo, que reivindica a existência de uma lei natural, eterna e imutável, distinta do siste-
ma normativo fixado por um poder institucionalizado (Direito Positivo), engloba as mais amplas ma-
nifestações do idealismo que se traduzem na crença de um preceito superior advindo da vontade di-
vina, da ordem natural das coisas, do instinto social, ou mesmo da consciência e da razão do homem.
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 124.

A existência da igualdade natural seria a condição fundamental para haver um possível pacto ou con-
trato entre os indivíduos. Assim, o jusnaturalismo estaria na base do contratualismo moderno. Este direito
natural, que antecede o direito criado pelos seres humanos, conhecido como direito positivo, teria validade
em si mesmo: seria anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deveria prevalecer.
Assim, o jusnaturalismo é uma doutrina que não deve ser confundida com o atual “positivismo jurídico”,
para o qual só há um direito, aquele estabelecido pelo Estado.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Somente a passagem do jusnaturalismo para o direito positivo é capaz de garantir vida justa em socieda-
de. Elabore um texto que justifique essa afirmativa.

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5. A HIP TESE DO ESTADO NATURAL
Inicialmente, estimule a imaginação dos estudantes na construção de hipóteses: existiria um estado
Oe l em H e natural, pré-civil? Como e por que teria acontecido a passagem para a vida em sociedade? Depois,
recolha o saber prévio dos estudantes acerca do pensamento contratualista moderno.

Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu em uma aldeia inglesa, Westport. Sua mãe, devido ao terror que
lhe causou a notícia da chegada da Invencível Armada Espanhola, deu-o à luz prematuramente. Esse acon-
tecimento vai marcar toda a trajetória de Hobbes.

MUSEU MARÍTIMO NACIONAL, LONDRES, REINO UNIDO


Derrota da Armada Espanhola (1796), de Philip James de Loutherbourg. Óleo sobre tela, 214,6 cm × 278,1 cm.
A tela representa a batalha naval de Gravelines, no Canal da Mancha, em 29 de julho de 1588. Esse foi o principal
enfrentamento daquela que ficou conhecida como Guerra Anglo-Espanhola. O objetivo do rei Filipe II era eliminar a
influência inglesa nos Países Baixos (atual Holanda) e consolidar o domínio marítimo espanhol. A Invencível Armada,
composta por 130 navios com forte artilharia, tripulados por 8 000 marinheiros que transportavam 18 000 soldados, foi
vencida pelos ingleses, que impediram o desembarque das tropas espanholas, impondo uma grave derrota política e
estratégica ao Reino da Espanha.

O contexto da vida política de Hobbes é marcado por movimentos revolucionários. A título de exemplo,
encontramos a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), envolvendo várias nações europeias; na Inglaterra,
Cromwell comandou a revolução puritana que destronou e executou o rei Carlos I (1649).
A partir do século XVI, as monarquias absolutistas constituíam um regime político difundido por toda a
Europa. No campo intelectual, buscava-se fundamentar e justificar esse poder ilimitado dos monarcas. Uma
resposta tradicional era: o poder real havia sido concedido pelo próprio Deus. Por isso, a autoridade real

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seria perpétua e absoluta, não havendo necessidade de justificar suas atitudes. Se o rei morresse, seu poder,
oriundo de Deus, continuaria para além do corpo do monarca. O poder seria transmitido ao seu sucessor.
Em meados da década de 1640, havia
GALERIA NACIONAL DE RETRATOS, LONDRES, REINO UNIDO

um fervoroso debate entre realistas, par-


lamentaristas e radicais sobre o conceito
de soberania. De acordo com a principal
doutrina dos parlamentaristas, o sujeito
da soberania é o povo. Ao criticar a tese
da soberania popular, Hobbes estabelece
uma importante distinção entre os pode-
res da soberania e os poderes do povo.
Conforme veremos adiante, o verdadei-
ro detentor da soberania para Hobbes não
seria nem o povo, nem a pessoa natural
do rei, mas uma pessoa jurídica e abstrata,
conhecida como Estado. Em suas críticas
aos parlamentaristas, Hobbes fazia frente
também às posições de determinadas cor-
rentes radicais, principalmente as que afir-
mavam a soberania popular e seu direito
de resistência.
Antes de enveredarmos no horizonte da
política, da sociedade civil, vamos conside-
rar a hipótese de um estado natural no qual
os seres humanos teriam vivido. Com enfo-
ques diferentes, tanto Hobbes como Locke
Thomas Hobbes (1670), de John Michael Wright. e Rousseau desenvolveram essa hipótese.
Óleo sobre tela, 66 cm × 54,6 cm.

O e m , em e e l, e e , em li e e e e i
-
e m ei e i e.P i , e i l e i , il e e lme -
i ll ei i e m e e , e em i ei imei , e ee e
i .E i i i , lme e, i i .T e e e i ei e e .

Que ninguém se engane: os homens não são irmãos. Ao contrário, são inimigos, capazes de matar
um ao outro. O homem, na verdade, é o lobo do homem. Nem por isso, porém, a humanidade,
obrigatoriamente, exterminará a si mesma. Há uma alternativa que pode instituir a paz e mantê-la.
E é precisamente essa saída que se desenha na obra de Thomas Hobbes.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 233. (Os pensadores).

Para Hobbes, todos os homens são iguais em suas paixões, em seus amores e em suas aversões, em
seus apetites ou desejos; ou seja, todos são movidos pelos mesmos fins: a aproximação do objeto dese-
jado e o afastamento daquilo que é indesejável. Nesse estado natural, Hobbes denomina como “bom”
aquilo que se busca e como “mau” aquilo a que se tem aversão. Não são portanto juízos morais, nem
descrições de algo que seja “bom” ou “mau” em si mesmo, mas apenas nomes dados aos nossos anseios
e às nossas aversões.

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Vamos considerar o fragmento a seguir:

Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria


A natureza fez os homens tão iguais quanto outros tendo em vista o lucro; a segunda, a se-
às faculdades do corpo e do espírito que, em- gurança; e a terceira, a reputação. [...]
bora por vezes se encontre um homem mani- Com isto se torna manifesto que, durante o
festamente mais forte de corpo, ou de espírito tempo em que os homens vivem sem um poder
mais vivo do que outro, mesmo assim, quando comum capaz de os manter a todos em respei-
se considera tudo isso em conjunto, a diferença to, eles se encontram naquela condição a que
entre um e outro homem não é suficientemen- se chama guerra; e uma guerra que é de todos
te considerável para que qualquer um possa, os homens contra todos os homens. [...]
com base nela, reclamar qualquer benefício a Numa tal situação não há espaço para a indús-
que outro não possa também aspirar, tal como tria, pois seu fruto é incerto; consequentemen-
ele. Porque quanto à força corporal, o mais fra- te, não há cultivo da terra, nem navegação, nem
co tem força suficiente para matar o mais forte, uso das mercadorias que podem ser importadas
quer por secreta maquinação, quer unindo-se pelo mar; [...], não há sociedade; e, o que é pior
com outros que se encontram ameaçados pelo do que tudo, um constante temor e perigo de
mesmo perigo. morte violenta. E a vida do homem é solitária,
Quanto às faculdades do espírito [...] en- pobre, sórdida, embrutecida e curta. [...]
contro entre os homens uma igualdade ainda Desta guerra de todos os homens contra to-
maior do que a igualdade de força. [...] dos também isto é consequência: que nada
Dessa igualdade quanto à capacidade deriva pode ser injusto. As noções de bem e de mal,
a igualdade quanto à esperança de atingirmos de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar.
nossos fins. Portanto, se dois homens desejam Onde não há poder comum não há lei, e onde
a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é im- não há lei não há injustiça. Na guerra, a força
possível ela ser gozada por ambos, eles tornam- e a fraude são as duas virtudes cardeais. [...].
-se inimigos. E no caminho para seu fim (que Outra consequência da mesma condição é que
é principalmente sua própria conservação, e não há propriedade, nem domínio, nem dis-
às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se tinção entre o meu e o teu; só pertence a cada
destruir ou subjugar um ao outro. [...] homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e
Na natureza do homem encontramos três apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É,
causas principais de discórdia. Primeiro, a com- pois, esta a miserável condição em que o ho-
petição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a mem realmente se encontra, por obra da sim-
glória. A primeira leva os homens a atacar os ples natureza.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Cap. XIII. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 107-111. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Converse com os colegas sobre as questões a seguir e apresente os argumentos em defesa de sua
posição:
• Com base nesse texto, como Hobbes percebe e descreve a natural igualdade dos seres humanos?
• Para Hobbes, quais são as causas da discórdia entre as pessoas e como elas se manifestam na história?
• Os indivíduos são movidos pelo interesse. O motivo da união em sociedade não é um interesse
particular? O que leva as pessoas a se unirem e a estabelecerem contratos?
• É possível falar em justiça ou em injustiça natural?

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Di ei e e e lei e e
Hobbes distingue direito de natureza e lei de natureza. No direito de natureza estaria a liberdade de usar
o próprio poder da maneira que melhor julgar para garantir sua preservação. Na lei de natureza constaria o
preceito racional que proibiria qualquer pessoa de atentar contra a própria vida. No âmbito do direito está
a liberdade; no âmbito da lei está a obrigação. É muito importante percebermos que o critério fundamental
de ação no estado natural deve atender ao princípio de autopreservação. Sendo ele natural, ele é conforme
a razão, conforme a lei de natureza. Considere o texto a seguir.

O direito de natureza, que os autores geral- outro. Pois o direito consiste na liberdade de fa-
mente chamam jus naturale, é a liberdade que zer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou
cada homem possui de usar seu próprio poder, obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a
da maneira que quiser, para a preservação de sua lei e o direito se distinguem tanto como a obri-
própria natureza, ou seja, de sua vida; e, con- gação e a liberdade, as quais são incompatíveis
sequentemente de fazer tudo aquilo que seu quando se referem à mesma matéria. [...]
próprio julgamento e razão lhe indiquem como Desta lei fundamental de natureza, mediante a
meios adequados a esse fim. qual se ordena a todos os homens que procurem
Por liberdade entende-se, conforme a signifi- a paz, deriva esta segunda lei: que um homem
cação própria da palavra, a ausência de impe- concorde, quando outros também o façam, e na
dimentos externos, impedimentos que muitas medida em que tal considere necessário para a
vezes tiram parte do poder que cada um tem de paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar
fazer o que quer, mas não podem obstar a que a seu direito a todas as coisas, contentando-se,
use o poder que lhe resta, conforme o que seu em relação aos outros homens, com a mesma
julgamento e razão lhe ditarem. liberdade que aos outros homens permite em
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um pre- relação a si mesmo. Porque enquanto cada ho-
ceito ou regra geral estabelecido pela razão, me- mem detiver seu direito de fazer tudo quanto
diante o qual se proíbe a um homem fazer tudo queira todos os homens se encontrarão numa
o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos condição de guerra. [...]
meios necessários para preservá-la, ou omitir Esta é a lei do Evangelho: Faz aos outros o
aquilo que pense poder contribuir melhor para que queres que te façam a ti. E esta é a lei de
preservá-la. Porque embora os que têm tratado todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri
deste assunto costumam confundir jus e lex, o ne feceris [Não faça aos outros o que não queira
direito e a lei, é necessário distingui-los um do que façam a ti].
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Cap. XIV. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 113-121. (Os pensadores).

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Considere o texto:

E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. [...] Desta guerra de todos os
homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. [...] É esta
pois a miserável condição em que o homem realmente se encontra por obra da simples natureza.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Cap. XIII. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 107-111. (Os pensadores).

• Com base na concepção de Hobbes, redija um texto sobre o estado de natureza do ser humano e
justifique a necessidade da busca pelo pacto.

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PROBLEMATIZANDO
1. Explique a afirmativa a seguir, extraída da obra O Leviatã, de Hobbes: “[...] a lei e o direito se distin-
guem tanto como a obrigação e a liberdade.”

Oe l em L e
Diferentemente de Hobbes, John Locke (1636-1704) não descreve o estado natural como um estado de
guerra de todos contra todos. Afirma que existe uma natural sociabilidade, na dimensão pré-civil.
Esse estado natural no qual o ser humano se encontra, embora seja um estado pré-político, ou pré-civil,
não é um estado pré-social, pois há uma convivência inicial, em liberdade e igualdade: cada indivíduo, dota-
do das mesmas faculdades por Deus, tem tanto poder quanto o outro e está submetido apenas à lei natural,
que lhe ordena conservar-se e, tanto quanto possível, preservar a humanidade.
MUSEU METROPOLITANO DE ARTE, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS

Entrada de uma vila


(c. 1665), de Meyndert
Hobbema. Óleo sobre
madeira, 75 cm × 110 cm.

Essa preservação implica a subsistência e a propriedade de si e de seus bens. No estado de natureza, os ho-
mens têm a liberdade de dispor de sua pessoa e de suas propriedades, dentro dos limites da lei natural. Sobre
a lei natural, devemos observar os princípios que a definem: liberdade, disposição da pessoa e propriedade.

Para Locke, por natureza, os homens seriam livres, iguais e independentes. Mas liberdade não é
licenciosidade, pois todos estão sujeitos à lei de natureza, isto é, à razão: cada um é livre para dispor
de seu corpo, mas ninguém deve abusar dessa liberdade para prejudicar os demais. Nem há por que
atentar contra a liberdade dos outros, pois, no estado de natureza, a terra e seus frutos são abundan-
tes e suficientes para a sobrevivência de cada um. Se a todos está assegurada a preservação, como
alguém pode cobiçar o que é dos outros?
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 242. (Os pensadores).

Locke afirma que o estado de guerra se inicia quando se corrompe a natureza humana, quando o ser
humano se degenera e passa a exercer a agressão contra seus semelhantes. Quem prejudica o outro trans-
gride a lei de natureza. E sobre ele pode ser exercido o direito de castigo.
Para Locke, o direito à propriedade pertence à natureza do ser humano. Todos têm o direito natural
de possuir bens, conquistados pelo trabalho. Contudo, no decorrer histórico, com a complexificação das

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relações e diante da finitude dos bens, surgiram conflitos, especialmente relacionados à questão da pro-
priedade. No estado natural não existe um juiz imparcial que possa cuidar da resolução desses conflitos.
Será dessa necessidade que virá a livre decisão do ser humano por associação formal, pela construção de
um pacto.
Vejamos o texto no qual Locke reflete sobre a fragilidade do estado natural.

Se o homem é tão livre no estado de nature- condições. Em primeiro lugar, ele carece de uma
za como se tem dito, se ele é o senhor absoluto lei estabelecida, fixada, conhecida, aceita e re-
de sua própria pessoa e de seus bens, igual aos conhecida pelo consentimento geral, para ser o
maiores e súdito de ninguém, por que renun- padrão do certo e do errado e também a medida
ciaria à sua liberdade, a este império, para su- comum para decidir todas as controvérsias entre
jeitar-se à dominação e ao controle de qualquer os homens. [...]
outro poder? A resposta é evidente: ainda que Em segundo lugar, falta no estado de natureza
no estado de natureza ele tenha tantos direitos, um juiz conhecido e imparcial, com autoridade
o gozo deles é muito precário e constantemente para dirimir todas as diferenças segundo a lei es-
exposto às invasões dos outros. [...] tabelecida. [...]
Por isso, o objetivo capital e principal da união Em terceiro lugar, no estado de natureza, fre-
dos homens em comunidades e de sua submis- quentemente, falta poder para apoiar e manter
são a governos é a preservação de sua proprie- a sentença quando ela é justa, assim como para
dade. O estado de natureza é carente de muitas impor sua devida execução.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 156-157.

PROBLEMATIZANDO
1. Quais são as diferenças fundamentais da visão de Locke em relação à de Hobbes no que se refere ao
estado natural?
2. Considerando a visão de Locke, o que falta no estado natural, que faz com que os homens decidam
fazer um pacto? O que motiva os indivíduos a buscarem uma associação?

Oe l em R e
Rousseau (1712-1778), inspirado na vivacidade e na riqueza da natureza, levantou a hipótese do homem
natural, originalmente íntegro, biologicamente sadio e moralmente justo. Dessa forma, a maldade e a in-
justiça não são naturais no indivíduo, mas derivadas da cultura que instituiu a propriedade privada, de onde
derivam todos os males da vida em sociedade: as discórdias, as guerras, a pobreza, a miséria etc.
No texto a seguir, Rousseau mostra sua concepção de ser humano no estado natural. Ele sempre agi-
ria pelo instinto selvagem, incapaz de abstrair-se do instante presente. Os seres humanos seriam movidos
exclusivamente por seus instintos e por suas percepções sensíveis imediatas. A expressão “bom selvagem”
traduz bem isso. Embora ele seja “bom”, ele é “selvagem”.

Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra
e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes, bem como sem qualquer desejo
de prejudicá-los [...], o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não
possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras
necessidades [...]. Se, por acaso, descobria qualquer coisa, era tanto mais incapaz de comunicá-la
quanto nem mesmo reconhecia os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia

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nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente
e, partindo cada uma do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com
toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie humana já era velha e o
homem continuava sempre criança. [...]
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, depois
de ter cercado um terreno, pensou em dizer “este é meu” e encontrou
pessoas que nele acreditaram, foi o primeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, conflitos e homicídios, misérias e horrores teria pou-
pado ao gênero humano aquele que, arrancando a cerca ou tapando o
fosso, houvesse gritado a seus semelhantes: “não deis ouvido a este im-
postor, estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e a
terra não é de ninguém!”.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 256, 257 e 259.

PROBLEMATIZANDO
1. Qual é a tese que Rousseau usa para justificar a origem da sociedade civil e
das misérias no mundo da cultura?
• Como você se posiciona diante desse argumentação de Rousseau?

. DO ESTADO NATURAL AO CORPO POL TICO

O i l em H e
Vimos que, no estado natural, a igualdade dos seres humanos também está

R.M. NUNES/SHUTTERSTOCK
em serem eles inimigos, uma vez que buscam a satisfação pessoal em tudo, o
que implica na destruição de qualquer ameaça. Esse estado natural de guerra de
todos contra todos, que estaria na raiz da busca por segurança, por autopreser-
vação, seria também fonte de muita insegurança.
Segundo a concepção de Hobbes, buscando a mesma autopreservação, os
seres humanos teriam seguido a lei de natureza, obedecido à razão e buscado
uma solução para afastar o medo da morte violenta e garantir a segurança e a
autopreservação. Dessa forma, nascem as regras racionais fundamentais para a
vida em sociedade.

Re me i i em ie e
Na obra O Leviatã, Hobbes evidencia o quanto o pacto implica e significa uma A Justiça (1961), escultura
renúncia, uma transferência de direito natural, com o objetivo de garantir algo de Alfredo Ceschiatti
que falta no estado natural. Essa transferência ou renúncia ao direito de tudo localizada em frente ao
prédio do Supremo Tribunal
poder fazer só terá condições de assegurar a autopreservação e a paz se houver
Federal, em Brasília (DF).
um poder impessoal, comum a todos e acima de todos.

241

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No fragmento a seguir, Hobbes descreve a natureza desse pacto entre os súditos.

Quando alguém transfere seu direito, ou a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que
reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera. Pois é um ato volun-
tário, e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos. [...] A
transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato. [...] Quando se faz um pacto em
que ninguém cumpre imediatamente sua parte, e uns confiam nos outros, na condição de simples
natureza (que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor
suspeita razoável torna nulo esse pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contra-
tantes, com direito e força suficiente para impor seu consentimento, ele não é nulo.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Cap. XIV. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 115. (Os pensadores).

Considerando o instinto de autoconservação, Hobbes, na obra O Leviatã, cita 19 leis fundamentais para
a vida social. Habitualmente, são recordadas somente as primeiras três, que são as principais. Essas regras
não são de Hobbes, mas são as que ele reconhece na natureza humana, e as defende, pois percebe que são
coerentes e fundamentadas na lei natural, permeadas por racionalidade. Considerando que tornam a vida
em sociedade possível, elas adquirem um valor moral e político.
A lei primeira e fundamental ordena que o ser humano se esforce por buscar a paz. “É preceito ou regra ge-
ral da razão que cada homem deva se esforçar pela paz quando tem esperança de obtê-la e, quando não puder
obtê-la, procure e use todos os recursos e benefícios da guerra.” Assim, temos, em primeiro lugar, a busca da
paz, e, em segundo lugar, a síntese do direito natural, que é defender-se com todos os meios possíveis.
Para garantir a paz é preciso que exista uma renúncia. E essa renúncia se faz a um direito natural. Trata-
-se do direito natural a todas as coisas. Se não houver essa renúncia, não haverá garantia de paz. Por isso a se-
gunda lei assim determina: que se renuncie ao direito sobre tudo, ou seja, àquele direito que se tem no estado
natural, que é precisamente o direito que desencadeia todas os conflitos.
A terceira lei impõe, uma vez que se tenha renunciado ao direito a tudo, que
se cumpram os acordos feitos. E daí nascem a justiça e a injustiça (justiça é man-
OLGA ROSI/SHUTTERSTOCK

ter os acordos firmados; injustiça é transgredi-los). A quarta lei prescreve que se


restituam os benefícios recebidos, de modo que os outros não se arrependam
de tê-los feito e continuem a fazê-los. Daí nascem a gratidão e a ingratidão. A
quinta prescreve que cada homem deve tender a se adaptar aos outros. Daí nas-
cem a sociabilidade e o seu contrário. A sexta lei prescreve que, quando se tiver
as devidas garantias, deve-se perdoar àqueles que, arrependendo-se, assim o
desejem. A sétima prescreve que nas vinganças (ou punições) não se deve olhar
para o mal passado recebido, mas sim para o bem futuro. A não observância
desta lei dá lugar à crueldade. A oitava lei prescreve que não se deve declarar
ódio ou desprezo pelos outros com palavras, gestos ou atos. A infração a essa
lei é chamada injúria. A nona lei prescreve que cada homem deve reconhecer o
outro como igual a si por natureza. A infração a essa lei é o orgulho. A décima lei
prescreve que ninguém deve pretender que seja reservado para si qualquer direi-
to que lhe agrade e não seja reservado a algum outro homem. A infração a essa
lei faz nascerem a modéstia e a arrogância. A décima primeira lei prescreve ao
Themis é uma divindade homem a quem é confiada a função de julgar entre um homem e outro, que se
grega, símbolo da justiça. comporte com equidade entre os dois. Daí nascem a equidade e a parcialidade.
Os símbolos da justiça
buscam a imparcialidade,
a equidade, a garantia dos
acordos e a repressão Em i me m , e lei m i i ie e, m
às ações violentas e e e m m e e i m e e i e me e -
agressivas que possam vir ei l : em e e l e im e ei ,
das paixões humanas. e em i i ei e e em.

242

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OE l i Sugerimos que, antes de iniciar o estudo do tema, converse com o grupo
sobre a definição de Estado absolutista, sob o ponto de vista histórico.

A busca pela paz não pode estar motivada apenas pelo medo da morte. Pois esse é um sentimento
instável. É preciso uma instância de poder que esteja acima dessas instabilidades, que seja mais forte que
os homens. Isso implicará na criação de um ser artificial, resultado de uma escolha, de um pacto entre os
indivíduos. Em favor desse ser novo e artificial, o Estado soberano, todos os súditos renunciam e transferem
o seu direito de autogoverno.
Na teoria de Hobbes, o soberano ou o Estado é o depositário dos direitos que lhe são transferidos para
que cumpra uma função específica que lhe cabe a partir do pacto: a de proteger os súditos. Esse será o
dever daqueles que exercem o poder soberano, seja apenas uma pessoa, seja uma assembleia.
Ele está acima da justiça (ver a 3a lei, que vale sempre para os cidadãos e não para o soberano). O ab-
solutismo desse estado é verdadeiramente total. Todos os âmbitos ficam submetidos ao Estado, inclusive a
Igreja, questões religiosas e de dogmática bíblica. Por isso, Hobbes adota o nome Leviatã para designar o
Estado e também como título simbólico que sintetiza todo o seu pensamento. Na imagem do Leviatã, seu
corpo é formado pela reunião dos indivíduos, com a ideia de que o pacto dos indivíduos dá origem ao poder
absoluto do soberano.
ABRAHAM BOSSE

Página de rosto da primeira


edição da obra Leviatã (1651), de
Thomas Hobbes.
Para fazer referência a essa
soberania indestrutível do
Estado, com poder absoluto
sobre seus súditos, que assim
o autorizam por meio do pacto
social, Hobbes recorre à imagem
do monstro marinho Leviatã,
cuja origem remonta à mitologia
fenícia, aparecendo também no
Livro de Jó, da Bíblia.

É sempre importante lembrar que a figura do soberano em Hobbes refere-se a uma função política e não
a uma pessoa. Embora possa o governante ser uma pessoa ou uma assembleia que exerce coletivamente o
poder, a soberania é uma função política que pertence ao Estado.
Considerando esse conceito de soberania, qual será a melhor forma de governo para Hobbes? No texto
a seguir, o autor de O Leviatã responde a essa questão.

243

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Das causas, geração e definição de um Estado
O único caminho para erigir um poder co- feita pelo pacto de cada homem com todo outro
mum que possa estar em condições de defender homem, de tal modo que, se cada homem dis-
os homens da agressão estrangeira e das injúrias sesse a todo outro homem: eu autorizo e cedo
recíprocas e, assim, tranquilizá-los de tal modo o meu direito de governar-me a mim mesmo a
que possam se nutrir e viver satisfeitos com sua esse homem ou a essa assembleia de homens,
própria indústria e com os frutos da terra, é o de com a condição que tu lhe cedas o teu direito e
conferir todos os seus poderes e toda a sua força a autorizes todas as suas ações da mesma forma.
um homem ou a uma assembleia de homens que Feito isso, a multidão assim unida em uma só
possa reduzir todas as suas vontades, por meio da pessoa é chamada de Estado, em latim civitas.
pluralidade das vozes, a uma só vontade. [...] [...] Àquele que é portador dessa pessoa se cha-
Isso é mais do que o consenso ou a concórdia; ma soberano, e dele se diz que possui poder so-
é uma unidade real de todos em uma só pessoa, berano. Todos os restantes são súditos.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Cap. XVII. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 141-143. (Os pensadores).

No texto a seguir, Hobbes fala sobre a soberania do governante ou da assembleia. Vejamos os elementos
dessa reflexão.

Dos direitos dos soberanos por instituição


É desta instituição do Estado que derivam to- tigo, dado que por instituição é autor de tudo
dos os direitos e faculdades daquele ou daqueles quanto seu soberano fizer.
a quem o poder soberano é conferido median- Em segundo lugar, dado que o direito de re-
te o consentimento do povo reunido. Em pri- presentar a pessoa de todos é conferido ao que é
meiro lugar, [...] aqueles que estão submetidos tornado soberano mediante um pacto celebrado
a um monarca não podem, sem licença deste, apenas entre cada um e cada um, e não entre o
renunciar à monarquia, voltando à confusão de soberano e cada um, não pode haver quebra de
uma multidão desunida. [...]. Assim, a dissensão pacto por parte do soberano. Portanto, nenhum
de alguém levaria todos os restantes a romper dos súditos pode livrar-se da sujeição, sob qual-
o pacto feito com esse alguém, o que constitui quer pretexto de infração. [...]
injustiça. Por outro lado, cada homem conferiu Visto que o fim da instituição é a paz e a defesa
a soberania àquele que é portador de sua pessoa; de todos, e visto que quem tem o direito a um
portanto, se o depuserem estarão tirando-lhe o fim tem direito aos meios, constitui direito de
que é seu, o que também constitui uma injusti- qualquer homem ou assembleia que detenha a
ça. Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz
soberano for morto, ou por ele castigado devido e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar
a essa tentativa, será o autor de seu próprio cas- ou dificultar estas últimas.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Cap. XVIII. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 145-148. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. No texto anterior, Hobbes caracteriza a soberania. Quais são os traços fundamentais da soberania
no pensamento de Hobbes?

244

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O i l em L e: i i li m li e l
Retomando as ideias de John Locke (1632-1704), no estado natural, no qual todos são juízes e execu-
tores da lei em causa própria, ficaria inviável uma julgamento imparcial e justo. Considerando as limitações
desse estado natural para assegurar o direito à propriedade, os seres humanos decidiram abrir mão do
direito natural de executar a lei de natureza. Com essa renúncia, cria-se o pacto e com ele a sociedade civil,
o corpo político.
Locke foi médico e pertencia a uma família de burgueses comerciantes, tendo ocupado diversos cargos
políticos e opondo-se à monarquia absolutista. Tornou-se conhecido como teórico do liberalismo.
No campo da política, sua principal obra é Dois tratados sobre o governo, escrita entre o final de 1679
e agosto de1689. Essa obra evidencia uma concepção de poder soberano do povo e a busca por um
governo compatível com essa ideia, na qual o povo tenha garantidos os seus direitos, especialmente a
liberdade e a propriedade.
O que dá origem à sociedade civil é a busca pela defesa da pro-

MUSEU HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA


priedade privada, considerada direito natural anterior à sociedade
civil. Esse direito, contudo, deve ser atualizado ou conquistado por
meio do trabalho, que transforma a coisa bruta em propriedade.
O Estado, que nasce da delegação de função representativa,
tem o poder de fazer as leis (Poder Legislativo) e de impô-las e
fazer com que sejam cumpridas (Poder Executivo). Os limites do
poder do Estado são estabelecidos por aqueles mesmos direitos
dos cidadãos para cuja defesa nasceu.
Portanto, os cidadãos mantêm o direito de rebelarem-se contra
o poder estatal quando este atua contrariamente às finalidades
para as quais foi instituído. E os governantes estão sempre sujeitos
ao julgamento do povo.
Essa reflexão política de Locke se encaminha para o constitucio-
nalismo liberal que se concretizou na Inglaterra, com a Revolução
de 1688. Nessa dinâmica, considerando a soberania popular, na Retrato de John Locke (1697), de Godfrey
origem do governo encontra-se a representação, a delegação, que Kneller. Óleo sobre tela, 76 cm × 64 cm.
recebe a função de representar e realizar os direitos da população. Por isso, a legitimidade do governo pro-
vém do acordo entre os homens, que mantêm o poder e o direito de resistência e insurreição, uma vez que
a soberania pertence ao povo, que delega função representativa ao governante.
No texto a seguir, Locke reflete sobre a relação entre governante e povo (e vice-versa) e sobre a situação
que permitiria destituir o governante de sua função política.

Da hierarquia dos poderes da comunidade civil


Pode-se questionar aqui o que acontecerá se o Poder Executivo, que detém a força da comunidade
civil, se utilizar dessa força para impedir que o Poder Legislativo se reúna e atue, quando a consti-
tuição fundamental ou as necessidades da vida pública o requererem? Eu respondo que o fato de se
servir da força contra o povo sem autoridade e indo de encontro à confiança depositada no autor de
ato equivale, por si só, a entrar em guerra contra o povo, que tem o direito de restaurar seu poder
legislativo no exercício de seu poder. [...]. Em todos os estados e em todas as condições, o verdadeiro
recurso contra a força exercida sem autoridade é opor-se a ela pela força. O uso da força sem auto-
ridade sempre coloca quem a usa em estado de guerra, como o agressor, o que lhe permite receber
como resposta o mesmo tratamento.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Cap. CXIII. Trad. Magda Lopes e Marisa L. Costa.
Petrópolis: Vozes, 1973. p. 176-177. (Os pensadores).

245

P18_col_integ_filo_unico_miolo.indb 245 06/09/17 12:13


D i i ee Retome com os estudantes a importância da divisão dos poderes. Peça a eles que mencionem algum
momento da história política brasileira no qual se reconheça essa divisão ou a violação dela.

Vamos acompanhar a reflexão de Locke sobre a divisão dos poderes Executivo e Legislativo.

Como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao poder, não con-
vém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder
de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram, e adequar a lei
à sua vontade, tanto no momento de fazê-la quanto no ato de sua execução, e ela teria interesses
distintos daqueles do resto da comunidade, contrários à finalidade da sociedade e do governo. Por
isso, nas comunidades civis bem organizadas, onde se atribui ao bem comum a importância que ele
merece, confia-se o Poder Legislativo a várias pessoas, que se reúnem como se deve e estão habili-
tadas para legislar, seja exclusivamente, seja em conjunto com outras, mas em seguida se separam,
uma vez realizada a sua tarefa, ficando elas mesmas sujeitas às leis que fizeram; isto estabelece um
vínculo novo e próximo entre elas, o que garante que elas façam as leis visando o bem público.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Cap. XII. Trad. Magda Lopes e Marisa L. Costa.
Petrópolis: Vozes, 1973. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Quais são as principais razões que Locke aponta em favor da separação dos poderes?
2. A divisão dos poderes, quando efetiva, é eficaz contra a corrupção e demais desvios do poder. Expli-
que essa afirmação.

O i l em R e : i e l em i
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra, na Suí-

MUSEU ANTOINE-LÁCUYER, SAINT-QUENTIN, FRANÇA


ça. Por ter perdido a mãe no momento do parto, recebeu uma edu-
cação infantil desordenada. Em 1728, deixou Genebra e em 1741
fixou estadia em Paris, onde estabeleceu amizade com Diderot e
outros enciclopedistas, como D’Alembert, Grimm e D’Holbach.
A formação de Rousseau e sua linha de pensamento difere mui-
to daquela que encontramos em Hobbes e em Locke. Para ele, os
homens jamais deveriam ter aceitado um contrato ilegítimo como
aquele proposto por Hobbes e por Locke, uma vez que nesse tipo de
contrato os pobres só têm a perder a liberdade. Ao conceder volun-
tariamente a liberdade, nenhum outro bem lhes restou.
Nessa lógica, ele não concorda com a ideia de que, por meio do
contrato, se encerre o estado de guerra e se alcance a segurança, con-
forme afirmado por Hobbes; muito menos com Locke, por associar o
contrato à garantia da propriedade privada. O que esses pensadores
teriam feito, na visão de Rousseau, foi transportar para o estado de
natureza as degenerações e os vícios do homem civilizado. Lembrando
que, para Rousseau, o ser humano é naturalmente bom e selvagem. Retrato de Jean-Jacques Rousseau
Rousseau reflete sobre a essencial liberdade humana, dizendo (séc. XVIII), de Maurice Quentin de La Tour.
Pastel sobre papel, 45 cm × 35,5 cm.
que é impossível alguém renunciar à liberdade e permanecer hu-
mano. Rousseau não abre mão do maior valor da humanidade, a liberdade. Por isso, nenhuma forma de
escravização é legítima. Com efeito, a vida em sociedade deverá estar fundamentada no direito, que não
autorizará a escravização.

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Vejamos o fragmento a seguir, no qual ele explicita essa ideia.

Da escravidão
Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz
qualquer direito, só restam as convenções como base de toda autoridade legítima existente entre os
homens. [...] Ora, um homem que se faz escravo de um outro, não se dá; quando muito, vende-se
pela subsistência. Mas um povo, por que se venderia? [...].
Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e até aos
próprios deveres.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Livro I. Cap. IV. Trad. Lourdes S. Machado.
São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 26-27. (Os pensadores).

O contrato, para ser legítimo, precisa assegurar a vontade geral, que é o fundamento da soberania e
se expressa nas leis, para poder verdadeiramente assegurar a liberdade de cada um. Mas como fazer isso?
Como garantir uma forma de associação que defenda e proteja cada associado, garantindo-lhe a liberdade?
Por meio do contrato social, ele passará por uma mudança radical. Vejamos o fragmento a seguir, no
qual Rousseau descreve e caracteriza essa mudança, suas perdas e o que ele ganha com isso.
Escreve Rousseau:

A passagem do estado de natureza para o estado civil determina ao homem uma mudança muito
notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que
antes lhes faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar
do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas a sua pessoa, vê-se forçado a agir basean-
do-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações. Embora nesse estado
se prive de muitas vantagens que fruem da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se
exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma
se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem frequentemente a uma
condição inferior àquela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou
para sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem. [...]
O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo
quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo
o que possui.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Livro I. Cap. VIII. Trad. Lourdes S. Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 36. (Os pensadores).

Na reflexão sobre a natureza do contrato social, Rousseau dá muito valor à legislação, pois serão as leis
que vão assegurar a liberdade e não o legislador. O legislador fica restrito a ação no interior do Estado. Ele
não participaria da soberania. O contrato precisa assegurar ao corpo político a soberania.
A soberania pertenceria ao corpo político. Dessa forma, cada indivíduo seria membro da soberania.
Onde existe o corpo político não haveria necessidade de qualquer justificativa ou garantia, pois esse corpo
não poderia agir contra si mesmo. Por essa razão, diz Rousseau:

O soberano, sendo formado tão só pelos particulares que o compõem, não visa nem pode visar a
interesse contrário ao deles, e, consequentemente, o poder soberano não necessita de qualquer garan-
tia em face de seus súditos, por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Livro I. Cap. VIII. Trad. Lourdes S. Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 35-36. (Os pensadores).

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Sendo a vontade geral a igual obediência de todos à lei, livremente elaborada pela comunidade, nin-
guém obedece ao outro, mas sim todos à lei, pois é fruto e expressão da vontade geral. Em sua obra O
contrato social, Rousseau escreve:

[...] Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, que é o
bem comum, porque, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento
das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Livro II. Cap. I. Trad. Lourdes S. Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 43. (Os pensadores).

Rousseau era um pensador profundamente sensibilizado pelo tema da desigualdade social. A existência
crescente da desigualdade, em seus diferentes níveis de manifestação, é a maior ameaça à democracia,
uma vez que vai na contramão da soberania do corpo político, que é a vontade geral e não a vontade de
alguns ou da maioria, que é apenas quantitativa, não atendendo ao critério qualitativo. Consideremos essa
reflexão de Rousseau:

A vontade geral é sempre certa e tende sempre à soberano conhece unicamente o corpo da na-
utilidade pública. [...] Há comumente muita dife- ção e não distingue nenhum que a compõe. [...].
rença entre a vontade de todos e a vontade geral. Enquanto os súditos só estiverem submetidos a
Esta se prende somente ao interesse comum; a tais convenções, não obedecem a ninguém, mas
outra, ao interesse privado e não passa de uma somente à própria vontade. [...]
soma das vontades particulares. [...] Deve-se O povo, por si, sempre quer o bem, mas por
compreender, nesse sentido, que, menos do que si nem sempre o encontra. A vontade geral é
o número de votos, aquilo que generaliza a von- sempre certa, mas o julgamento que a orienta
tade é o interesse comum que os une, pois nessa nem sempre é esclarecido. [...] Os particulares
instituição cada um necessariamente se submete discernem o bem que rejeitam; o público quer o
às condições que impõe aos outros. [...] bem que não discerne. Todos necessitam, igual-
O pacto social estabelece entre os cidadãos mente, de guias. A uns é preciso obrigar a con-
tal igualdade, que eles se comprometem todos formar a vontade à razão, e ao outro, ensinar a
nas mesmas condições e devem todos gozar dos conhecer o que quer. Então, das luzes públicas
mesmos direitos. Igualmente, devido à natureza resulta a união do entendimento e da vontade
do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato no corpo social, daí o perfeito concurso das par-
autêntico da vontade geral obriga ou favorece tes e, enfim, a maior força do todo. Eis donde
igualmente todos os cidadãos, de modo que o nasce a necessidade de um Legislador.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Livro II. Cap. III e IV. Trad. Lourdes S. Machado.
São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 46-50. (Os pensadores).

A substituição da vontade individual pela vontade geral é o princípio e o critério que torna possível a
vida social. É a vontade geral que garante a liberdade e promove a perfeita igualdade entre as pessoas. A
pergunta que Rousseau faz é sobre a forma de conseguir essa conversão para o bem comum. Como educar
os homens para a vontade geral, em uma sociedade que cultiva a propriedade privada, fonte de desigual-
dades e violências?
O itinerário pedagógico que Rousseau elabora, que se encontra em sua obra Emílio, mostra que a educa-
ção é um problema político e moral, problema relacionado à formação de um novo ser humano. Essa edu-
cação buscará bloquear, desde a infância, toda forma de egoísmo, especialmente o desejo pela propriedade
privada, garantindo a nova orientação humana na vida social.

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PROBLEMATIZANDO
1. Se a vontade da maioria é quantitativa, não passando da soma das vontades individuais, e se a von-
tade geral, expressa na lei, é qualitativa, pois busca o bem comum, por que devemos decidir com
base na vontade da maioria?
2. Entre os pressupostos dos filósofos contratualistas, existe a ideia da necessidade de um pacto entre
os seres humanos, de natureza artificial. Essa ideia alimenta uma concepção muito comum, segundo
a qual a natureza humana seria individualista e passional. Nessa mesma direção, o sociólogo Émile
Durkheim afirma que o papel da educação é preparar o homem para aprender a viver em sociedade.
• Você concorda com essa ideia? Apresente alguns exemplos para embasar seu posicionamento.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o texto a seguir.

O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo
quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo
o que possui.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Livro I. Cap. VIII. Trad. Lourdes S. Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 36. (Os pensadores).

• Com base nesse fragmento, diferencie liberdade natural de liberdade civil.

. AS TR S ESP CIES DE gOVERNO EM MONTES UIEU


Filósofo, cientista político e escritor francês,

MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA


Charles-Louis Secondat, conhecido como Charles
Montesquieu ou barão de Montesquieu (1689-1755),
construiu um pensamento político centrado na espe-
cificidade ou singularidade do aspecto político e social
do ser humano.
Nessa reflexão, que busca demarcar o horizonte e
o domínio da política e da sua ciência, Montesquieu
afirmou que as ações humanas em sociedade não de-
vem ser regidas por leis divinas, mas por leis humanas.
Insistiu, portanto, na necessidade da separação entre
política e religião. E foi no domínio da política que ele
afirmou a natureza da liberdade, entendida como o
direito de fazer tudo o que as leis permitem.
Lançando o olhar sobre os sistemas políticos, o im-
portante, para Montesquieu, não é julgar as espécies
de governos, mas compreender os princípios que re-
gem cada uma das formas de governo, analisar a na-
tureza de cada uma delas.
Quanto à república, afirmou que o que distingue a
natureza da república de outras espécies de governo Charles de Secondat, barão de Montesquieu (1783),
de Claude Michel (Clodion). Escultura em mármore,
está no fato de o poder soberano pertencer ao povo
1,64 m × 1,22 m × 1,22 m.

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como um todo ou a uma parcela dele. No primeiro caso, teremos a democracia; no segundo, a aristocra-
cia. Para Montesquieu, o princípio republicano é a virtude, concebida como amor à pátria, como busca
do bem comum. Por essa razão, torna-se fundamental o investimento na educação política, para que haja
cidadãos virtuosos.
O que identifica e diferencia a monarquia está no fato de que um só governa, em conformidade com as
leis fixas e estabelecidas. O princípio monárquico é a honra, compreendida como amor pelo Estado.
Bem diferente é o despotismo. Segundo Montesquieu, nesse tipo de governo exercido por uma só pes-
soa, não há obediência a leis e regras. O princípio despótico é o medo, e a população vive uma forma de
escravização.
Em qualquer forma de Estado, diz Montesquieu, há três tipos de poder: o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário, que correspondem a diferentes funções do Estado. O que Montesquieu propõe é que haja uma
articulação entre esses poderes, de modo que possa haver uma limitação recíproca ou mútua. Deve-se evitar
os extremos da independência e da fusão total, para poder combater e impedir as arbitrariedades.
No texto a seguir, Montesquieu trata das três espécies de governo e das virtudes de que elas dependem,
faz uma distinção das diferentes formas de soberania, distingue entre a força, a lei e a virtude. Trata-se de
um texto clássico, que merece a atenção de nosso olhar.

Existem três espécies de governo: o republica- Nas monarquias, o Estado subsiste indepen-
no, o monárquico e o despótico. [...] O governo dente do amor pela Pátria. [...] As leis ocupam o
republicano é aquele em que o povo incorpora- lugar de todas essas virtudes. [...] A virtude não
do, ou somente uma parte do povo, exerce o po- representa a mola desse governo. [...]
der soberano; o monárquico, aquele em que um Assim como é preciso que exista virtude numa
só governa, de acordo, porém, com as leis fixas república, e honra numa monarquia, é preciso
e estabelecidas; enquanto que no despótico, um também que exista temor num governo despó-
só indivíduo, sem lei e sem regra, submete tudo tico; quanto à virtude, ela não é neste necessá-
à sua vontade e a seus caprichos [...]. ria, e a honra ali seria perigosa [...]. Nos Estados
Quando, na república, o povo incorporado despóticos a natureza do governo requer uma
exerce o poder soberano, isto significa uma obediência extrema. [...].
democracia. Quando o poder se acha entre as Tais são os princípios dos três governos. O que
mãos de uma parte do povo, dá-se lhe o nome não significa, no entanto, que, numa república,
de aristocracia [...]. seja-se virtuoso, mas sim que se deveria sê-lo.
A força da lei no primeiro, no segundo o Isto também não prova que, numa certa demo-
braço do príncipe sempre erguido, regulam e cracia, se possua honra, e que num Estado des-
abrangem tudo. Mas num Estado popular, tor- pótico particular se possua temor; mas sim que
na-se necessário um dispositivo a mais, que é a seria necessário que se possuísse; sem o que o
virtude. [...] governo seria imperfeito.
MONTESQUIEU, Charles. O espírito das leis. Livros II e III. Trad. Gabriela Barbosa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 32-55.

PROBLEMATIZANDO
1. Com base na leitura desse texto de Montesquieu, quais são os pontos fortes e frágeis de cada forma
de governo?
2. Por que Montesquieu afirma que a república requer virtude e educação?
• Converse com os colegas sobre isso e apresente os argumentos que sustentam o seu posicionamento.

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PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o texto a seguir, extraído da obra O espírito das leis, de Charles de Montesquieu.

Os políticos gregos [...] não reconheciam outra força que os pudesse sustentar, a não ser a virtude.
Os de hoje não nos falam senão em manufaturas, em comércio, em finanças, em riqueza e mesmo em
luxo. Quando essa virtude desaparece, a ambição entra nos corações que a podem receber, e a avareza
penetra em todos eles. Os desejos mudam de objeto; aquilo que antes se amava não mais se ama; o
indivíduo era livre vivendo de acordo com as leis; hoje, cada qual quer ser livre trabalhando contra
elas. Cada cidadão é tal qual um escravo fugido da casa de seu senhor; aquilo que outrora era máxima
chama-se hoje rigor; o que era regra chama-se opressão; o que era atenção chama-se temor [...]
MONTESQUIEU, Charles. O espírito das leis. Livro III. Trad. Gabriela Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 46-47.

• Com base nesse texto de Montesquieu, em sintonia com o pensamento contratualista, redija um
texto justificando a seguinte afirmação: Sem lei não há liberdade.

Faça uma sondagem com os estudantes sobre o que pensam a respeito da


. A FILOSOFIA MORAL EM ANT possibilidade de existirem relações internacionais, direito internacional, acordos
entre nações. Que aspectos poderiam fundamentar a possibilidade de estabelecer
valores universais, válidos para todos os países?
AFRICA STUDIO/SHUTTERSTOCK

O que deve motivar as


nossas ações é a ação por
dever, livre e racional, e não
somente em conformidade
com o dever.

N e e li e e
Kant reflete sobre as questões éticas e morais principalmente nas obras Fundamentação da metafísica
dos costumes e Crítica da razão prática. As questões éticas não estão no domínio da razão teórica, mas no
campo da razão prática. Nessas reflexões, a ênfase, portanto, não estará no campo do conhecimento, mas
no campo da ação, como sujeito agente, racional e livre.
Se no mundo natural tudo gira em torno da relação causa e efeito, no universo da moral, o terreno da
razão e da liberdade, o homem se torna sujeito submetido aos princípios que nascem da razão. Portanto,
existe uma radical separação entre o mundo dos fenômenos naturais e o universo da moral. É no campo da
moral que encontraremos a liberdade. Será no terreno do “dever ser” que nos concentraremos e não no
campo do conhecimento teórico.

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No campo da moral, Kant tem um grande objetivo: estabelecer os princípios a priori da moral, ou seja,
os princípios racionais, universais e imutáveis, que solicitam a ação por dever.
No campo da razão prática, Kant parte de uma evidência, de um fato que se impõe: a consciência do
dever. O ser humano se sente responsável.

Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a repre-
sentação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as
ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão de-
termina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente
necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só
aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário,
quer dizer, bom.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 1995. p. 47.

Enquanto as leis da necessidade descrevem, as leis da liberdade prescrevem. As leis que se referem ao
mundo natural descrevem o funcionamento das coisas naturais, segundo sua necessidade. Em contraparti-
da, as leis que se referem à livre conduta humana são leis que prescrevem, tornam-se preceitos, orientações
da vontade, para a liberdade humana.

A e, m im e i e
Em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant começa a “Primeira seção da fundamen-
tação” com a seguinte declaração:

Não há nada em lugar algum, no mundo e até mesmo fora dele, que se possa pensar como sendo
irrestritamente bom, a não ser tão somente uma boa vontade.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida.
São Paulo: Barcarolla, 2009. p. 102.

A noção kantiana de boa vontade implica pensar em uma vontade incondicionalmente boa, boa sem res-
trição alguma. Certamente há muitas coisas boas, como a saúde e a felicidade, por exemplo; mas, somente
a boa vontade é boa em si mesma. Ela não pode ser má com respeito a nada. Sua bondade não pode ser
diminuída nem mesmo se ela não alcançar os bons fins que almeja ou mesmo ocasionar uma decorrência
não boa. Assim, diferentes combinações não conseguem tirar a essencial bondade de uma boa vontade;
mesmo assim, afirma Kant, ela brilharia por si mesma como algo que tem seu pleno valor em si mesmo.
Diferentemente dessa bondade, a bondade de outros bens fica diminuída quando esses bens são com-
binados com uma vontade que não é boa, podendo inclusive ser transformada em mal.
Para Kant, a moralidade começa no agir por dever, que é a necessidade de uma ação por respeito à lei.
Contudo, Kant não equipara o dever à boa vontade. O conceito de dever contém o de boa vontade, mas
sob certas restrições, pois o conceito de “boa vontade” é mais do que uma vontade que age por dever. O
conceito de agir por dever é mais restrito do que o de boa vontade.
Uma boa vontade, diz Kant, é boa apenas pelo seu querer, isto é, é boa em si mesma. O querer é uma
atividade dirigida para um fim e também para a escolha dos meios para eles. Quem quer o fim também
quer, na medida em que a razão tem influência decisiva sobre suas ações, o meio necessário para isso, que
está em seu poder.

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A máxima é o princípio subjetivo do querer. Uma má vontade também regula sua conduta por máximas,
mas essas máximas não estão de acordo com leis morais universais. Com essa reflexão, Kant afirma que
uma boa vontade é algo inteiramente diferente da virtude, pois a virtude é concebida como a força do ca-
ráter de alguém ao agir de acordo com suas máximas boas. Assim, alguém pode ter uma boa vontade, mas
não ser virtuoso, não apresentar a força de caráter para resistir às inclinações que são contrárias à orientação
para agir bem. Portanto, a falta de virtude pode coexistir com a boa vontade.
Além disso, pode acontecer também que alguém seja motivado por máximas más e, em decorrência,
pratique ações más. Mas, segundo Kant, a boa vontade, que é boa sem restrição e não perde nada de sua
bondade, não seria em nada afetada, mesmo que a ação tenha sido má, por falta de virtude.

A i i le i e e
É da racionalidade humana que derivam os princípios éticos. É da razão prática que brotam os princípios
éticos, as leis universais que definem os deveres das ações humanas, de todos os homens, em qualquer
circunstância. Nesse sentido, é correto afirmar que a ética kantiana é uma ética do dever.

O dever é uma necessidade de ação por respeito à lei. Ao objeto enquanto efeito da ação que me
proponho fazer posso ter, é verdade, inclinação, mas jamais respeito, exatamente porque ele é me-
ramente um efeito e não uma atividade de uma vontade. Do mesmo modo, não posso ter respeito
pela inclinação em geral, seja a minha seja a de outrem. [...] Ora, uma ação por dever deve pôr à
parte toda influência da inclinação e com ela todo objeto da vontade, logo nada resta para a von-
tade que possa determiná-la senão, objetivamente, a lei e, subjetivamente, puro respeito a essa lei
prática, por conseguinte, a máxima.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida.
São Paulo: Barcarolla, 2009. p. 127-129.

Dessa forma, a razão prática, por estar relacionada à nossa vontade, é razão legisladora, capaz de elabo-
rar normas universais que servirão de guia para a vida humana em sociedade. Ainda segundo Kant, é por
estar relacionada à vontade que essa razão é capaz de elaborar leis morais, isto é, tem força normativa para
o próprio agente, que é essencialmente livre.
Para a construção dessas leis morais, Kant parte de um pressuposto que poderia parecer estranho para
muitos: todos nós nascemos com um dom natural relacionado com a capacidade de distinguir o certo do
errado. Contudo, esse pressuposto é plenamente compreensível quando lemos a tese de Kant, segundo
a qual o ser humano é um ser moral, isto é, capaz de distinguir o certo e o errado, com o poder de agir
moralmente. Apenas isso não significa que ele o fará em todas as circunstâncias necessariamente. Mas
não poderíamos agir moralmente se não tivéssemos uma vontade naturalmente orientada a agir por de-
ver, ou seja, pelo amor à lei.

A moralidade consiste, pois, na relação de toda a ação com a legislação, através da qual somente
se torna possível um reino dos fins. Esta legislação tem de poder encontrar-se em cada ser racional
mesmo e brotar da sua vontade, cujo princípio é: nunca praticar uma ação senão em acordo com
uma máxima que se saiba poder ser uma lei universal, quer dizer, só de tal maneira que a vontade
pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 1995. p. 76.

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O ei m
Kant determina a autonomia como princípio supremo da moralidade. Para ele, a autonomia da vontade
é aquela na qual ela é para si mesma a lei, independentemente da natureza dos objetos do querer.
Em sua obra Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant escreve:

Se lançarmos um olhar para trás sobre todos os esforços até agora empreendidos para descobrir o
princípio da moralidade, não nos admiraremos ao ver que todos eles tinham necessariamente de
falhar. Via-se o homem ligado a leis pelo seu dever, mas não vinha à ideia de ninguém que ele estava
sujeito só a sua própria legislação, embora esta legislação seja universal, e que ele estava somente
obrigado a agir conforme a sua própria vontade, mas que, segundo o fim natural, essa vontade era
legisladora universal. Porque, se nos limitávamos a conceber o homem como submetido a uma lei
(qualquer que ela fosse), esta lei devia ter em si qualquer interesse que o estimulasse ou o constran-
gesse, uma vez que, como lei, ela não emanava da sua vontade, mas sim que a vontade era legal-
mente obrigada por qualquer outra coisa a agir de certa maneira. Em virtude desta consequência
inevitável, porém, todo o trabalho para encontrar um princípio supremo do dever era irremediavel-
mente perdido; pois o que se obtinha não era nunca o dever, mas sim a necessidade da ação partin-
do de um determinado interesse, interesse esse que ora podia ser próprio, ora alheio. Mas então o
imperativo tinha que resultar sempre condicionado e não podia servir como mandamento moral.
Chamarei, pois, a este princípio, princípio da autonomia da vontade, por oposição a qualquer outro
que por isso atribuo à heteronomia.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad.: Valério Rohden.
São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 138-139.

Na ação realizada por dever está contida a noção de autonomia e a ideia de liberdade. O sujeito racional,
sujeito de moralidade, é capaz de conhecer, com base na razão pura, o que deve ser feito, sem precisar
recorrer à experiência. Ele percebe que a obrigatoriedade da ação procede daquilo que deve ser feito. As-
sim, a obrigatoriedade vem de dentro da razão, e não de uma imposição externa. A partir desse princípio
da autonomia, o sujeito autônomo age por dever e não somente conforme o dever. Vejamos essa reflexão.

A i e m e e e i e e
A vontade humana pode agir de acordo com o dever, mas isso ainda não nos garante a moralidade
da ação. Kant usa o termo “dever” para referir-se às ações que se dão por uma coerção interna, por um
constrangimento moral interno, por respeito à lei moral. Mas quando, para realizar a ação, o agente tiver
incentivos diferentes do incentivo do dever, não se faz necessária nenhuma autocoerção racional. Nesses
casos, a ação não é nem pode ser realizada por dever.
Existe uma orientação da vida em sociedade que diz que não se deve mentir. E se essa ação de não
mentir for resultado de uma decisão pessoal que resulta de uma conveniência? Para que o meu nome seja
bem aceito é melhor eu não mentir. Nesse caso, embora seja uma ação de acordo com o dever, não é uma
ação por dever, em obediência à lei moral, pois o dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei, com
a autocoerção interna. Dito de outra maneira, por um exemplo, um homem que não rouba porque tem
medo, não pode ser chamado de moralmente honesto.
Convém ficar atento a um aspecto muito importante. Kant não está falando de obediência a qualquer
lei, mas à lei moral. Que lei é essa? Onde ela se encontra? Resumidamente, para Kant, a única lei que rege
a moralidade, sintetizada no imperativo categórico, afirma: devo proceder sempre de maneira que eu possa
querer também que a minha máxima se torne uma lei universal.

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O dever tem um caráter formal e desinteressado, ou seja, ele não depende de algum conteúdo específico
ou de alguma consequência que se queira. Ele não está baseado em nada. Ao contrário, é dele que depende
a moralidade de nossas ações. Ele é categórico. Tu deves, simplesmente. A consciência dessa lei é um fato
da razão, que se impõe por si mesma.
Assim, o que leva alguém a agir, sua motivação, a razão de onde brota a ação, vem de um imperativo
hipotético ou procede verdadeiramente de um imperativo categórico, absoluto?
Agir por dever é coagir-se a si mesmo, por meio da razão, a agir como alguém age quando o funda-
mento dessa autocoerção é o respeito que se tem pelo valor objetivo representado pela lei moral. Esse
autogoverno racional é a adoção de máximas, de princípios corretos e de ação em conformidade com os
princípios adotados.
Um dos aspectos fundamentais nessa análise é perceber que, para Kant, uma ação por dever tem seu
valor moral não no intuito prático a ser alcançado por meio dela, mas, sim, na máxima que motiva a decisão
do sujeito autônomo. Portanto, não depende da realidade efetiva do objeto da ação, mas tão somente do
princípio do querer.

Im e i i i e e i
O problema da ética é o problema do bem supremo. E os bens podem ser bons por alguma outra coisa
ou por si mesmos. A única coisa que é boa em si mesma, sem restrições, é a boa vontade. Com isso, o
problema moral se desloca das ações para a vontade que as produz. O objetivo de Kant consiste em reali-
zar uma ética do “dever ser”, que obrigue categórica ou absolutamente e não hipoteticamente, pois esses
últimos dependem de alguma condição.
De acordo com Kant, os imperativos dizem que seria bom praticar ou deixar de praticar qualquer coisa,
mas dizem isso a uma vontade que nem sempre faz qualquer coisa só porque lhe é representado que seria
bom fazê-la. Normalmente, as pessoas são guiadas por imperativos hipotéticos. Por exemplo: “se você
quiser ter boa saúde, é preciso que busque uma alimentação saudável”. Este imperativo só tem valor na
hipótese de que haja o desejo por uma vida saudável. Caso contrário, ele não tem valor.
Kant busca um imperativo para fundamentar a vida ética. Por isso, ele precisa de um imperativo categó-
rico, que obrigue absolutamente, sem condições, que solicite o dever. Não se trata, então, de fazer algo por
que se goste ou devido a algum outro sentimento. O que se busca é um princípio racional.

Ora, todos os imperativos comandam hipotética ou categoricamente. Os imperativos hipotéticos


representam a necessidade prática de uma ação possível, considerada como meio de chegar a algu-
ma outra coisa que se quer (ou, pelo menos, que é possível que se queira). O imperativo categórico
seria o que representaria uma ação como necessária por si mesma [...]. Este imperativo pode ser
chamado de imperativo da moralidade.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica de costumes. In: Os filósofos através dos textos: de Platão a Sartre.
Trad. Constança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. p. 174.

O que garante que uma ação conforme o dever tenha sido praticada por dever e não por outro motivo?
A dedução do imperativo categórico acontece de modo a priori, com base na razão.

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 59.

255

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Não é possível pela experiência saber se uma ação foi moral. Pois o critério da moralidade é a ação com
base no dever. Assim, nunca se saberá, pela experiência, se uma ação, mesmo que esteja conforme o dever,
tenha tido a verdadeira motivação moral, o motivo racional do dever ou se a motivação obedeceu a algum
sentimento. Assim, para Kant, nunca se conseguirá esclarecer empiricamente a máxima que orientou a ação.

Rei
“Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como na de qualquer outro, sempre
como um fim e jamais unicamente como um meio.” Assim Kant exprime toda a dignidade do homem como
ser racional e, por isso, distinto do mundo dos objetos. Assim, o ser humano é dotado de uma dignidade
intocável.
Com essa ideia de reino dos fins, Kant afirma, idealmente, que os seres humanos vivem em um reino,
o reino da razão e da liberdade, onde criam as leis. Ora, as leis determinam os fins segundo a sua validade
universal. E, nessa orientação universal, as leis estabelecem que os seres humanos devem sempre ser vistos
como fins. Para que esse ideal se concretize, é preciso que cada indivíduo particular se assuma como mem-
bro e como chefe desse reino.

Um ser racional pertence ao reino dos fins como seu membro quando é nele em verdade legislador
universal, estando porém também submetido a estas leis. Pertence-lhe como chefe quando, como
legislador, não está submetido à vontade de um outro.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 1995. p. 76.

PROBLEMATIZANDO
1. Em conformidade com o pensamento de Immanuel Kant, viver o espírito da lei não deve ser uma
questão de obrigação (exigência externa), mas de dever (exigência interna). Considerando que os
seres humanos, em termos gerais, não vivem na maturidade moral, mas fazem algo somente porque
são obrigados ou por medo da punição ou, ainda, por outros sentimentos e paixões, quais seriam as
estratégias possíveis e necessárias para se chegar a uma maturidade moral?
• Converse com os colegas sobre isso, apresentando as justificativas do seu raciocínio.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia os trechos a seguir.

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal. [...]
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer ou-
tro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 59 e 69.

• Com base nesse trecho e em outras informações, justifique a afirmação: A ética kantiana é uma
ética formalista e não conteudista.

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4
Eixo Temático

ARTE E
ESTÉTICA

obre:
e rs
d
en

pr
• Cosmologia renascentista e criações artísticas.
ia • As características da arte renascentista:
va
valorização da razão, da liberdade e
da corporeidade.
Você

• Conceito de beleza herdado da tradição


clássica: harmonia e proporção.
• A emancipação da arte do período moderno
em relação ao conteúdo religioso.
• A tese da existência ou não de um padrão
de gosto.
• A arte como dimensão particular do
conhecimento.
• Condições da sensibilidade e avaliação estética.
• Experiência estética como experiência
contemplativa desinteressada.
• Juízo estético e sentimento subjetivo.
• A arte, a religião e a filosofia como etapas da
realização do espírito humano.
• A estética como recurso de humanização.

Temas:
1. O Renascimento artístico 4. A estética kantiana
2. Arte e consciência moderna 5. Educação estética e moralidade em
3. O padrão do gosto em David Hume Schiller
6. A superação da arte em Hegel

O tema do Renascimento artístico permite-nos a construção de um projeto de reflexão filosófica


interdisciplinar em torno do tema da educação do ser humano. Propomos essa vivência com o objetivo
de compreender a educação como o fundamento da mudança sociocultural. Considerando a realidade
histórica do Brasil, existe uma trajetória de investimento significativo em educação? A qualidade e a
quantidade do investimento em educação tem relação com o IDH do país?

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1. O RENASCIMENTO ART STICO
MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

Monalisa (1505), de Leonardo da Vinci. Óleo sobre painel,


76,8 cm × 53 cm.
Nesta obra, como um todo, percebemos as ideias de movimento
e de inconstância, desde o curso sinuoso das águas do rio até
a expressão de Monalisa, conhecida também como Gioconda,
que em italiano significa “a sorridente”. Na técnica do sfumato,
utilizada na obra, de variação de luz e cor, transparece a
indeterminação, ideia também muito valorizada no humanismo
da Renascença, que se relaciona com o indivíduo racional e livre,
sujeito de autodeterminação.

Na passagem da Idade Média

GALERIA NACIONAL, LONDRES, REINO UNIDO


para a Renascença, encontramos a
era do gótico, que marcou um novo
período na história da arte. A arte
gótica, conhecida como “arte das
catedrais” ou “arte das ogivas”, sur-
ge na França, em fins do século XII.
Com um realismo muito alegre e co-
lorido, os pintores góticos, em seus
afrescos e painéis, superam a rigidez
dos quadros medievais e concen-
tram-se mais na ideia de movimento,
um dos traços muito valorizados na
estética renascentista.
Um dos traços do realismo gótico
será a observação e a descrição de ce-
nas do cotidiano. O pintor gótico ain-
da trazia forte sentimento religioso,
presente em sua expressão artística.

O casal Arnolfini (1434), de Jan van Eyck.


Óleo sobre painel, 57 cm × 83,7 cm.
O pintor holandês Jan van Eyck (1390-
-1441) apresenta especial sensibilidade
para representar os aspectos da cor, da
perspectiva, do movimento, características
da arte gótica.

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Diferentemente da arte medieval, na qual predominava o traçado reto, a arte renascentista, com os co-
nhecimentos da matemática, valorizava a harmonia, o equilíbrio e a perspectiva. Destacamos, aqui, a noção
de perspectiva como uma marca característica da Renascença, não somente da arte, mas da cultura, da vi-
são sobre a vida. Com a noção de Universo infinito, com o ideal de vida ativa, o ser humano deparou-se com
novas perspectivas.
A Renascença costuma ser qualificada como o período histórico que marcou a civilização europeia por
aproximadamente duzentos anos, entre fins do século XIV e o fim do século XVI, aproximadamente. O
traço fundamental dessa mentalidade está no resgate do humanismo, que já havia marcado a civilização
ocidental, na Grécia Clássica.
Realizou-se o movimento de passagem da esfe-

BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK
ra do sagrado, do eterno e do divino para a esfera
do humano, do temporal e do histórico, conhecido
como processo de secularização, no qual se busca-
ram explicações racionais e científicas para os fenô-
menos naturais e os acontecimentos. Nessa concep-
ção, o ser humano buscou compreender as leis que
regem esse universo. Dessa forma, diferentemente
da visão contemplativa, predominante na Idade Mé-
dia, surgiu o ideal da vida ativa e investigativa.
Entre os acontecimentos ou descobertas mais im-
portantes desse período, decisivos para a formação
Gutenberg, em sua oficina, exibe a primeira prova de sua
de uma nova mentalidade, destacamos as grandes prensa (s/d), de autoria desconhecida. Gravura.
navegações, entre os séculos XV e XVI, e o desenvol-
vimento da imprensa, a partir de 1440, iniciado por Johannes Gutenberg (1398-1468). Esses dois fatores
possibilitaram um melhor e maior intercâmbio de ideias e valores, o que foi determinante para a formação
de uma nova consciência.
GALLERIA DEGLI UFFIZI, FLORENÇA, ITÁLIA

O nascimento de Vênus (1485), de Sandro Botticelli. Têmpera sobre tela, 172,5 cm × 278,5 cm.
Sandro Botticelli tem muitas obras consagradas e conhecidas, entre elas destacamos O
nascimento de Vênus. Vênus é a deusa do amor e da beleza, do panteão romano, equivalente
a Afrodite, no panteão grego. A história do seu nascimento recebeu diferentes versões; em uma
delas, teria nascido das espumas do mar.

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Não faltam nomes de consagrados artistas renascentistas. Entre eles, citamos Donatello (1386-1466),
Sandro Botticelli (1445-1510), Leonardo da Vinci (1452-1519), Michelangelo Buonarroti (1475-1564) e Ra-
fael Sanzio (1483-1520).
A ciência influenciou a arte e a arte abriu novas

GALLERIA DELL'ACADEMIA, VENEZA, ITÁLIA


perspectivas para a ciência. A exatidão do cálculo
inspirou o projeto estético do artista renascentista,
que conseguiu maior realismo em suas expressões.
Sendo assim, entre as características singulares da
arte renascentista, encontramos a busca da perfei-
ção, que já se fazia presente na estética da cultura
greco-romana. Esse traço é expressão do humanis-
mo, da valorização do ser humano, que se tornou
o centro das referências.

Homem vitruviano (1492), de Leonardo da Vinci. Lápis, tinta


e aquarela sobre papel, 24,5 cm × 34,3 cm.
Uma das imagens mais consagradas da Renascença é a
obra Homem vitruviano, de Leonardo da Vinci (o nome
é derivado de Marcus Vitruvius, arquiteto romano que
viveu no séc. I a.C., estudioso das proporções). Nessa
representação do corpo, a harmonia é formada por
sistemas de medidas em um círculo e um quadrado
perfeitos. As proporções desse homem encontram-se
no interior desse espaço geométrico perfeito. E no centro
dessa representação do ser humano está o umbigo, o
centro gravitacional.

Pi i e i e e i

A em e e i m m i m im li m m m e m l i , e i e
m .E e m ,m m i i e, e i , i i .

O texto a seguir expressa muito bem essa passagem do teocentrismo para o humanismo.

Antes do movimento renascentista, a cosmologia medieval dividia o universo em dois mundos


diferentes: o sublunar e o supralunar. Eles eram incomunicáveis e as leis que valiam em um mundo
não valiam no outro. A pintura dessa época também procedia da mesma forma, representando um
céu que não tinha continuidade com a Terra. Em várias pinturas o céu é dourado, simbolizando o
sagrado que não estava acessível ao mundo terrestre, mundano e corruptível.
Já a pintura renascentista inventa a perspectiva e, com isso, a possibilidade de pensar e represen-
tar a infinitude do espaço. Percebemos uma mudança radical da concepção espacial. A partir do
Renascimento, o espaço é infinito. A criação da perspectiva possibilitou representar essa infinitude,
não sendo mais possível distinguir claramente o limite entre Terra e céu, porque esses mundos não
parecem mais incomunicáveis como eram na cosmologia medieval-aristotélica.
REIS, J. C.; GUERRA, A.; BRAGA, M. Ciência e arte: relações improváveis? História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro,
v. 13, out. 2006, p. 72. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13s0/04.pdf>. Acesso em: 3 maio 2016.

260

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Percebe-se assim que a arte favoreceu inclusive o caminho das ciências, estimulando a busca por conhe-
cimento das leis do mundo natural. Realizou-se a passagem da esfera religiosa para a dimensão secular.
Nesse movimento, ocorreu uma mistura de temas que ligam mitologia, religião e vida cotidiana. Nessa inte-
gração de dimensões e elementos, a estética renascentista caracterizou-se pela clareza, pela precisão, pelo
recurso à matemática e à ordem.
Assim, o renascimento cultural foi muito mais do que uma volta à herança clássica. Muitos foram os pro-
gressos realizados na arte, na literatura, nas ciências, na filosofia etc. Em todas as formas de expressão artística,
seja na arquitetura, na pintura, na escultura, os artistas exaltam a racionalidade, a liberdade e a dignidade
humanas. Dessa forma, o recurso à exatidão matemática, à perspectiva e ao uso do contraste claro-escuro dá
muito realismo a todas as obras.
Com isso, o mundo é visto como uma realidade a ser investigada e compreendida, e não mais sim-
plesmente como uma obra da criação divina, a ser contemplada.
ALTE PINAKOTHEK, MUNIQUE, ALEMANHA

A sagrada família Canigiani (1507), de


Rafael Sanzio. Óleo sobre madeira,
131 cm × 107 cm.
Nesta obra, Rafael retrata Isabel,
mãe de São João Batista, Maria,
mãe de Jesus, duas crianças e São
José, esposo de Maria. A estrutura
das figuras representadas mostra a
composição utilizada por Rafael: a
forma piramidal. Assim, verificam-se
traços da arte renascentista como
clareza, perspectiva e precisão
matemática conjugados com
o ideal de serenidade.

PROBLEMATIZANDO
1. A arte, a ciência, a filosofia e a espiritualidade renascentista permitem-nos uma leitura do espírito
de época que caracteriza a Renascença.
• Como a ideia de perspectiva sintetiza a passagem da idade medieval para a Renascentista e a
Moderna?

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2. ARTE E CONSCI NCIA MODERNA
LATINSTOCK/©AS400 DB/CORBIS/BETTMANN BY CORBIS

Cena do filme Tempos


modernos (1936), de
Charles Chaplin.
A arte moderna sofreu
influências da Revolução
Industrial: rompeu com
a rigidez das regras
tradicionais e buscou
um novo estilo que
expressasse o modo de
vida moderno.

A modernidade refere-se ao que é “novo” nos séculos XVII e XVIII. Em primeiro lugar, essa novidade
está na forma de ver a vida, o mundo, a sociedade e as relações. Assim, a modernidade, mais do que um
período histórico, é compreendida como uma visão de mundo, que tem seu início ainda no contexto do Re-
nascimento cultural. Contudo, costuma-se situar o início histórico no século XVII. Entre suas características
mais expressivas, que se iniciaram na Renascença, estão a racionalidade, a historicidade, a subjetividade, a
autonomia do sujeito e o individualismo.
O ser humano passa a ser visto como o sujeito, o agente livre de seu destino. Não se aceita a ideia de
destino ou de alguma instituição que tenha poder de controle sobre a vida das pessoas. Assim, o espírito
moderno é marcado tanto pela liberdade como pelo individualismo.
Por modernidade, entendemos uma nova atitude, relacionada ao contexto de grandes transformações,
em diferentes âmbitos da vida. Os elementos centrais da modernidade são a ascensão da burguesia, a revo-
lução industrial e o processo de industrialização, o mercado mundial, o livre comércio e as novas tecnologias
que afetam profundamente a sociedade. A arte moderna insere-se nesse contexto de crise e de mudanças.
A modernidade é marcada pelo desenvolvimento científico e tecnológico. No campo do conhecimento
científico, a verdade necessita passar pela experiência, pela comprovação empírica, pelos critérios da objeti-
vidade e da universalidade. Nesse novo contexto, a experiência desempenha papel de autoridade.

O m i m e e li m
Considerando a história da arte moderna, existem muitos estilos, escolas, movimentos e técnicas. So-
mente a título de exemplo, os artistas românticos adotam uma postura crítica em relação aos costumes
e às ideias predominantes. Contra a ênfase na precisão do desenho, os românticos passam a produzir
pinturas relacionadas a temas concretos e à história vivida, servindo-se das cores com mais liberdade.

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MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

A Liberdade guiando o povo (1830), de Eugène Delacroix. Óleo sobre tela, 260 cm × 325 cm.
Eugène Delacroix (1798-1863) representou a liberdade como sendo uma mulher robusta,
uma espécie de deusa guiando o povo. O rosto dessa mulher tornou-se também a alegoria
da república brasileira, desde a proclamação, em 1889.

Diferentemente dos românticos, os artistas vinculados ao realismo trazem um


novo olhar, focado na descrição do objeto, de forma sóbria e detalhista. Na re-
presentação da realidade, o artista busca objetividade, como um pesquisador em
busca de um documento, de um dado real, sem maquiagem. No realismo, a arte
serve como protesto ou denúncia das desigualdades, expondo o abismo entre
pobres e ricos.

GALERIA NEUE MEISTER, DRESDEN, ALEMANHA

Os quebradores de pedra,
(1849), de Gustave
Coubert. Óleo sobre tela,
165 cm × 257 cm.
Gustave Courbet
(1819-1877) foi um artista
que se posicionou contra
o idealismo e a pintura de
imaginação das tradições
anteriores. Em seu
realismo, pintava o que
via, cenas do cotidiano.

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3. O PADRÃO DO gOSTO EM DAVID HUME
Uma das primeiras concepções filosóficas a combater a visão metafísica, dogmática e medieval será o
empirismo. Alguns pensadores dessa corrente filosófica também realizam reflexões em torno da objetivida-
de do juízo do gosto. Vamos nos concentrar no pensamento de David Hume (1711-1776), que considera a
experiência como fundamento do conhecimento. Partindo da experiência como critério de conhecimento,
Hume nega a possibilidade de um conhecimento das essências ou de ideias universais.
Hume parte de uma constatação: há uma variedade de gostos existentes no mundo, que apresenta in-
consistência e contraditoriedade. As pessoas, em geral, são capazes de perceber que existem diferenças de
gosto, mesmo entre aquelas que receberam a mesma educação.
Vamos acompanhar a reflexão de Hume.

É natural que procuremos encontrar um padrão do gosto, uma regra capaz de conciliar as várias
opiniões dos homens; ou pelo menos uma decisão reconhecida, aprovando uma opinião e conde-
nando outra.
A beleza não é uma qualidade das próprias coisas, existe apenas no espírito que a contempla e
cada espírito percebe uma beleza diferente. É possível até uma pessoa encontrar deformidade onde
outra vê apenas beleza e qualquer indivíduo deve concordar com o seu próprio sentimento, sem ter
a pretensão de regular o dos outros. Procurar estabelecer uma beleza real ou uma deformidade real
é uma investigação tão infrutífera como procurar uma doçura real ou um amargor real. Conforme a
disposição dos órgãos do corpo, o mesmo objeto tanto pode ser doce ou amargo e o provérbio popu-
lar afirma, com muita razão, que gostos não se discutem. É muito natural e mesmo absolutamente
necessário aplicar este axioma ao gosto mental, além do gosto corpóreo e assim o senso comum,
que tão frequentemente diverge da filosofia, neste caso, está de acordo com esta decisão.
HUME, David. Do padrão do gosto. In: Ensaios morais, políticos e literários. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. São Paulo:
Abril Cultural, 1992. p. 261-271. (Os pensadores).

O reconhecimento dessa multiplicidade de percepções e afecções que existem nos diferentes indivíduos
faz com que Hume afirme que a experiência do gosto passa, inicialmente, pela percepção. Inicialmente,
cada indivíduo percebe determinadas propriedades que existem nos objetos. Em seguida, ocorre a afecção,
a dimensão afetiva, ou seja, surge o sentimento de prazer ou desprazer, conectado com a percepção.
Para Hume, há propriedades que pertencem ao objeto externo. E para perceber essas propriedades é
preciso que o indivíduo tenha sensibilidade, serenidade, concentração em sua mente e muita atenção ao
objeto. Com isso, parece que fica evidenciada a existência, na estrutura da mente humana, de princípios de
gosto, que poderão ser descobertos e deverão ser cultivados.

[...] há certos princípios gerais de aprovação ou de censura, cuja influência um olhar cuidadoso
pode verificar em todas as operações do espírito. Há determinadas formas ou qualidades que, devido
à estrutura original da constituição do espírito, estão destinadas a agradar, e outras a desagradar. Se
em algum caso particular elas deixam de ter efeito, é devido a qualquer evidente deficiência ou im-
perfeição do órgão. [...] Para todas as criaturas há um estado de saúde e um estado de enfermidade,
e só do primeiro podemos esperar receber um verdadeiro padrão do gosto e do sentimento.
HUME, David. Do padrão do gosto. In: Ensaios morais, políticos e literários. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. São Paulo:
Abril Cultural, 1992. p. 261-271. (Os pensadores).

Embora Hume se recuse a aceitar um suposto conceito universal de beleza, ele parece propor um
novo fundamento para a objetividade do juízo do gosto, associado às condições sociais de formação de
padrões de gosto.

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São muitos e frequentes os defeitos dos órgãos internos que evitam ou enfraquecem a influência
daqueles princípios gerais de que depende nosso sentimento da beleza ou da deformidade. Embora
alguns objetos estejam naturalmente destinados a provocar prazer, devido à estrutura do espírito,
não é de esperar que em todos os indivíduos o prazer seja igualmente sentido. Podem ocorrer de-
terminados incidentes e situações que, ou lançam sobre os objetos uma falsa luz, ou impedem a luz
verdadeira de levar à imaginação o devido sentimento e percepção.
HUME, David. Do padrão do gosto. In: Ensaios morais, políticos e literários. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. São Paulo:
Abril Cultural, 1992. p. 261-271. (Os pensadores).

Hume apresenta uma bela síntese de seu pensamento ao refletir sobre a necessidade de uma perfeita
serenidade de espírito, concentração do pensamento e devida atenção ao objeto. Mas a combinação dessas
habilidades comumente falta no espírito humano, caracterizando uma imperfeição.

[...] a maioria dos homens sofre de uma ou outra dessas imperfeições, e por isso acontece que o
verdadeiro juiz das belas artes, mesmo nas épocas mais cultas, seja uma personalidade tão rara. Só
o bom senso, ligado à delicadeza do sentimento, melhorado pela prática, aperfeiçoado pela compa-
ração, e liberto de todo preconceito, é capaz de conferir aos críticos esta valiosa personalidade, e o
veredicto conjunto dos que a possuem, seja onde for que se encontrem, é o verdadeiro padrão do
gosto e da beleza.
HUME, David. Do padrão do gosto. In: Ensaios morais, políticos e literários. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. São Paulo:
Abril Cultural, 1992. p. 261-271. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Sendo empirista, Hume negava a possibilidade de um conceito universal de beleza. Embora não se
possa chegar a um conceito universal, é possível reconhecer um padrão de gosto que seja cultural?
Como você se posiciona diante desse questionamento?
2. Com base na argumentação de David Hume, considerando a saúde da vida corporal e espiritual,
posicione-se a favor ou contra a afirmativa do senso comum: “Gosto não se discute”.

4. A EST TICA ANTIANA


Immanuel Kant admite três tipos de experiência: a cognitiva (na
ALBUM/AKG/NORTH WIND PICTURE ARCHIVES/LATINSTOCK

área do conhecimento), a moral (no campo da prática) e a estética.


Kant, recorrendo ao nosso cotidiano, lembra-nos de que vivemos ex-
periências estéticas a todo momento. Comumente, estamos diante de
uma tela, de um quadro, de um poema, de uma peça musical, de uma
escultura, de um filme ou assistimos a uma representação teatral. Nessas
vivências, há sentimentos de prazer que vão além da dimensão física ou
sensorial. Diante de um objeto, surge em nós uma emoção, um sentimen-
to. Assim, o objeto externo é a ocasião, por meio da qual acontece algo
em nosso interior.

Retrato de Immanuel Kant (c. 1790), de autoria


desconhecida. Óleo sobre tela, 33,9 cm × 42 cm.

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Nosso conhecimento surge de duas fontes principais do ânimo, cuja primeira é a de receber as
representações (a receptividade das impressões) e a segunda, a faculdade de conhecer um objeto
por essas representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira, um objeto nos é dado, pela
segunda é pensado em relação com essa representação (como simples determinação do ânimo).
Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo
que nem conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles nem intuição sem
conceitos podem fornecer um conhecimento. [...] A nossa natureza é constituída de um tal modo
que a intuição não pode ser senão sensível, ou seja, contém somente o modo como somos afetados
por objetos. Frente a isso, o entendimento é a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível. Ne-
nhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra. Sem sensibilidade, nenhum objeto nos seria
dado, e, sem entendimento, nenhum objeto seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios,
intuições sem conceitos são cegas.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p. 89.

A experiência estética está relacionada à intuição, com base nos objetos. O sentimento estético é des-
pertado pelo contato com o objeto. É preciso que haja um objeto que suscite o sentimento. Mas, rigoro-
samente falando, o objeto não é a causa do sentimento. Ao contrário, a essência do juízo estético está na
percepção do sujeito.
Ao observar o céu estrelado acima de nós, podemos ter duas sensações diferentes, uma objetiva e outra
subjetiva. Objetivamente, no terreno da ciência, temos o conhecimento dessa realidade. Subjetivamente,
temos o sentimento de prazer, na contemplação da aparente harmonia e ordem no céu estrelado (dado
objetivo), proporcionando o sentimento de beleza.

A i ee i em l i
A experiência estética não se relaciona ao tema do conhecimento ou da orientação prática em nossas
vidas. Trata-se de uma experiência gratuita, desinteressada, contemplativa. Por exemplo: uma flor, a tulipa,
tida por bela, sem essa beleza estar voltada para nenhum fim prático. Ela
JAIME PHARR/SHUTTERSTOCK

não está no terreno do útil, mas da gratuidade. Assim, a beleza tem rela-
ção com a forma, e não com o conteúdo ou matéria do objeto.
Com efeito, o que caracteriza essa atitude estética é a gratuidade, o
desinteresse. Quando nosso olhar não for movido pela busca da utilidade
do objeto contemplado ou por interesses econômicos e comerciais, então o
caminho está aberto para uma experiência estética, pois estaremos contem-
plando o objeto em si mesmo.
Com efeito, a experiência estética pressupõe liberdade de espírito. Por
isso, não se deve dizer: “Este quadro vai ficar muito bonito lá na minha
sala. Ele combina com os móveis”. Nesse caso, não há gratuidade, desin-
Tulipas. teresse ou contemplação da beleza do quadro em si.
Em segundo lugar, a atitude estética não se localiza no campo do conhecimento ou do estudo teórico.
Embora possamos verificar nosso conhecimento artístico visitando museus e identificando traços de movi-
mentos artísticos presentes em objetos de arte, a esperiência estética não consiste nessa atitude cognitiva,
mas na contemplação pura, desvinculada de interesses cognitivos ou morais.

O e i
Ao contemplar o objeto, o sujeito emite um juízo: “ele é belo, sublime!” ou “ele é horrível!”. O ato de
avaliar ou de julgar resulta em um juízo estético.

266

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[...] o sentimento de prazer e desprazer é somente a receptividade de uma determinação do sujeito,
de tal modo que, se o Juízo deve, em alguma parte, determinar algo por si mesmo, isso não poderia
ser nada outro do que o sentimento de prazer e, inversamente, se este deve ter em alguma parte um
princípio a priori, este só será encontrável no Juízo.
KANT, Immanuel. Primeira introdução à crítica do juízo. São Paulo: Abril, 1980. p. 174.

Ae e i i e i e e e i ee e l , e ei e e , e i ili e e e
e i i me e.

Para Kant, no juízo estético, encontramos uma experiência de satisfação desinteressada. Por isso, não se
trata de buscar sua utilidade, agradabilidade ou sua validade no campo da moral.
Embora Kant defenda que os juízos de gosto estejam associados a sentimentos de prazer, ele especifica
que se trata de um tipo especial de prazer que é desinteressado e isso significa, justamente, um prazer que
não é associado a desejos que são, por definição, interessados em obter os objetos de desejo.
A beleza resulta de uma contemplação gratuita, centrada no objeto. Por isso, a dimensão estética tem
tanto uma dimensão emocional e racional, sem ser puramente intelectual, como sensível, sem ser simples-
mente sensorial.

Pela denominação de um Juízo estético sobre um objeto, está indicado [...] que uma representação
dada é referida, por certo, a um objeto, mas, no Juízo não é entendida a determinação do objeto,
mas sim a do sujeito e de seu sentimento.
KANT, Immanuel. Primeira introdução à crítica do juízo. São Paulo: Abril, 1980. p. 184.
COLEÇÃO E. G. BÜHRLE, ZURIQUE, SUIÇA

O suicídio (1881), de Édouard Manet.


Óleo sobre tela, 38 cm × 46 cm.
A obra de arte pode representar a mediação
de uma experiência estética, que vai
depender da atitude estética, da forma
como o sujeito se volta para o objeto.

MUSEU MUNCH, OSLO, NORUEGA

Morte no quarto da doente


(1893), de Edvard Munch. Óleo
sobre tela, 160 cm × 134,5 cm.

267

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A i e li e e i
Considerando que o juízo estético é desinteressado e não afetado por desejos, inclinações, vontades
ou interesses, Kant considera legítimo que possamos esperar que outras pessoas, agindo dessa forma,
também possam ter a mesma experiência estética. Essa pretensão de esperar dos outros o mesmo juízo
é legítima.
Ao falar que um objeto é belo, após contemplação gratuita desse objeto, estamos afirmando sua bele-
za, embora seja um sentimento subjetivo. Teoricamente, devo poder esperar de outras pessoas a mesma
percepção, uma vez que ela não está vinculada à dimensão corporal ou passional dos indivíduos.

Portanto, o belo é o que satisfaz universalmente, embora não possamos conceituá-lo, uma vez
que não se trata de uma operação do intelecto, ou do cognitivo. Há uma universalidade subjetiva
presente no sentido do gosto, em nosso juízo estético, comum a todos os homens e, por isso, comu-
nicável, partilhável.
Belo é o que apraz universalmente. [...]. O objeto chama-se então belo e a faculdade de julgar me-
diante o prazer suscitado chama-se gosto.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 64.

O juízo de gosto é um sentimento de prazer, que requer ser válido para toda gente. Em todos os seres
humanos o que provoca prazer tem relação com “a coordenação, a composição interior, a harmônica
relação interna entre as partes. É disso que resulta o juízo sobre a beleza.
Portanto, embora subjetiva, a experiência estética não é uma opinião pessoal arbitrária, pois ela pode
ser compartilhada universalmente, uma vez que se trata de contemplação gratuita e pura de um sujeito
que se volta para um objeto e se deixa afetar por ele. Existe, portanto, uma atitude de admiração, de
olhar de perto, na qual acontece algo não trivial, corriqueiro, mas excepcional, diferente, estético.
Em suma, na experiência estética acontece uma transfiguração, uma transformação em nossa forma
corriqueira de ver. A atitude contemplativa traz uma nova noção de tempo, retira-nos da agitação e da
fugacidade do cotidiano e nos remete a uma experiência de eternidade, de suspensão do tempo.
TUPUNGATO/SHUTTERSTOCK

Na visita a uma
exposição de arte, é
possível verificar a
comunicabilidade da
experiência estética?

268

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PROBLEMATIZANDO
1. Devido à dimensão gratuita e desinteressada da contemplação estética,
Kant considera legítimo que possamos esperar dos outros o mesmo juízo
estético.
• Como você se posiciona diante dessa concepção?

5. EDUCAÇÃO EST TICA E MORALIDADE EM


SCHILLER

GOETHE HOUSE, FRANKFURT AM MAIM, ALEMANHA


De origem alemã, Friedrich Schiller (1759-1805) era
poeta, ensaísta, dramaturgo e filósofo. Foi amigo de
Goethe (1749-1832), também poeta, romancista, dra-
maturgo, teórico de arte e funcionário público. Schiller
exerceu profunda influência na formação do movimen-
to filosófico, artístico, político conhecido como Roman-
tismo, que apresentava uma visão crítica em relação ao
Iluminismo e ao racionalismo, dando ênfase na dimen-
são da subjetividade e da emoção.
Em fins do século XVIII ele escreveu a obra Educação
estética do homem. Na verdade, trata-se de uma série
de cartas, nas quais Schiller revela seu desencanto com
a Revolução Francesa que, em vez de liberdade e frater-
nidade, degenerou em múltiplas violências. Enquanto as
pessoas olham para a política, acreditando que é nela
que se decide o destino da humanidade, Schiller afirma:

Friedrich Schiller (1809), de Gerhard van Kügelgen.


Óleo sobre tela, 73 cm × 61 cm.

Resisto a essa amável tentação deixando que a beleza preceda a liberdade, e penso poder não apenas
desculpá-lo mediante minha inclinação, mas justificá-lo mediante princípios. [...] E mostrarei que para
resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza
que se vai à liberdade.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990. p. 26.

Para Schiller, a arte é a grande educadora para a liberdade. É por meio da


arte que os homens podem vivenciar a liberdade e ser preparados para lutar por
ela nos domínios da moral e da política. Assim, Schiller concentra-se na estética
como caminho da humanização do ser humano.
Um dos grandes méritos da arte está no fato de ela proporcionar a unificação
do ser humano, a integração das dimensões que a modernidade fragmentou.

269

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TAKASHI IMAGES/SHUTTERSTOCK

Monumento a Goethe e Schiller (1857), de Ernst Rietschel, em Weimar, Alemanha. Escultura


em bronze, 3,7 m.

Sobre essa fragmentação realizada pela modernidade, Schiller escreve:

Divorciaram-se o Estado e a Igreja, as leis e os costumes; a fruição foi separada do trabalho; o meio,
do fim; o esforço, da recompensa. Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento; ouvindo eterna-
mente o mesmo ruído monótono da roda que ele aciona, [o ser humano] não desenvolve a harmonia
de seu ser e, em lugar de imprimir a humanidade em sua natureza, torna-se mera reprodução de sua
ocupação, de sua ciência [...].
Vai-se aniquilando assim, pouco a pouco, a vida concreta individual, para que o abstrato do todo
prolongue sua existência precária, e o Estado continua eternamente estranho a seus cidadãos, pois
que o sentimento não pode encontrá-lo em parte alguma. Forçada a simplificar a multiplicidade dos
homens pela classificação e recebendo a humanidade somente por representações de segunda mão,
a parte governante acaba por perdê-la completamente de vista, já que a mistura a um mero produto
do entendimento, e a parte governada não pode receber senão com frieza as leis que são tão pouco
endereçadas a ela.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki.
São Paulo: Iluminuras, 1990. p. 41-42.

A superação da cisão do homem interior e a constituição de uma nova huma-


nidade não virá do Estado ou da política, mas da estética, da arte. É nela que se
forma o espírito humano. Aqui se reconhece a afinidade que existe entre Schiller
e o Romantismo, no desejo pela unidade, pelo resgate do afeto, na recuperação
do sentimento na vida cotidiana. A experiência estética articula emoção e razão.
Para Schiller, o reequilíbrio desses dois princípios, do sentimento e do entendi-
mento, será fundamental para podermos chegar tanto ao conceito de beleza
como à harmonia da vida humana.

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No trecho a seguir, é possível inferir a grande contribuição da estética para a humanidade.

Pois, se lembramos que justamente essa liberdade lhe havia sido tomada pela coerção unilateral
da natureza na sensação e pela legislação exclusiva da razão no pensamento, temos de considerar a
capacidade que lhe é devolvida na disposição estética como a suprema de todas dádivas, a dádiva
da humanidade.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990. p. 110.

PROBLEMATIZANDO
1. Em que sentido Schiller afirma que a arte educa para a liberdade?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Redija um texto justificando, com base na reflexão de Schiller, a afirmativa a seguir:
Sem a educação estética, não é possível uma educação harmônica do ser humano.

. A SUPERAÇÃO DA ARTE EM HEgEL


Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão, foi um

ANTIGA GALERIA NACIONAL, BERLIM, ALEMANHA


dos fundadores da escola filosófica conhecida como idealismo alemão.
Sob a ótica de Hegel, a história é marcada pelo movimento de
mudança. E será a compreensão do sentido do decorrer da história
que constituirá o grande objetivo de sua vida. Como transcorre esse
processo? Há algo que evolui nele? Existe algum sentido ou alguma
dinâmica específica nesse processo histórico de mudança?
Para Hegel, trata-se da trajetória do espírito, que passará por várias
etapas. A obra na qual Hegel expõe essa trajetória é Fenomenologia do
espírito (1807).
Nessa obra, ele tem por objetivo compreender as etapas pelas
quais a consciência passa, desde a apreensão inicial do mundo até
encontrar-se em si mesma, em uma totalidade final, envolvendo su-
jeito e objeto.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1831), de
Jacob Schlesinger. Óleo sobre tela.
A e li e e i : e, eli i
e l
No sistema de Hegel, o espírito se realiza na filosofia, passando pela arte e pela religião. Há, portanto,
uma hierarquia composta por arte, religião e filosofia, respectivamente. São etapas para a realização do
espírito, até chegar à dimensão do espírito absoluto.
Para Hegel, a trajetória do espírito começa em um ponto marcado pela indiferenciação, no qual a consci-
ência humana se encontra confundida com os objetos. Seria o ponto inicial da indistinção. Aqui se iniciaria
a primeira etapa de uma longa trajetória da consciência. E o primeiro momento seria a afirmação da própria
consciência diante do todo. Ela tomaria uma primeira distância do objeto. Seria uma primeira objetivação.
Esse seria o nível da percepção, no qual a consciência percebe o objeto como objeto. Nessa primeira etapa
já existe, portanto, uma negação e uma afirmação. Afirmar-se como a consciência implica negar a indife-
renciação, a difusão da consciência em um todo indiferenciado.

271

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Uma das características da percepção é a fugacidade ou transitorieda-
de. No campo das percepções sensíveis tudo passa muito rapidamente. Isso
impossibilita identificar algo. Na sequência da trajetória da consciência,
chegará o momento de representar intelectualmente o que for percebido. Tra-
ta-se da etapa do entendimento, marcada pela elaboração das leis que regem
os fenômenos. O espírito evolui para a etapa das ciências naturais. Nessa etapa
verifica-se mais uma vez uma negação e uma afirmação. Acontece a negação
dos dados sensíveis, no sentido de serem ultrapassados ou superados na afir-
mação das leis gerais. Dentro dos limites da consciência nessa etapa de sua
trajetória, constitui-se um primeiro conhecimento possível. Nesse momento, a
consciência passa a ser consciência de si, que se sabe como diferente do objeto
e que estabelece as leis de funcionamento do objeto.
Em todo o processo histórico, o espírito se manifesta progressivamente, tor-
nando-se presente no pensamento e nas ações dos seres humanos e operando
realizações, tendo passado por diferentes negações, afirmações e sínteses até
chegar ao momento absoluto, a síntese final.

O m me e m m me
e ei i e e el
Nesse percurso evolutivo do espírito, o momen-
IGOR BULGARIN/SHUTTERSTOCK

to da arte é o momento da exterioridade sensível,


apreendida pela intuição. A especificidade da arte
está nessa manifestação sensível. O espírito já se
encontra livre de sua sujeição à natureza e tem
condições de criar. A arte é pensada por Hegel
como um momento constitutivo do movimento
dialético no qual o espírito começa a tomar cons-
ciência de si.

Orquestra de Câmara da Ucrânia apresenta-se na Rússia,


em 2015.
Na arte, Hegel percebe diferentes graus. E esses graus são
indicados pela maior ou menor dependência da matéria.
Nesse sentido, a liberdade do espírito é maior na palavra
e na música do que na escultura e na arquitetura, onde
está presa à matéria bruta. Quanto mais o espírito puder
abstrair, maior será a variedade de expressões.

A arte será, portanto, um momento do espírito, no qual ele se adapta à


matéria, ao elemento sensível. Assim entende-se a arte como exterioridade,
pois o espírito ainda não está em si mesmo, sua realização ainda está vinculada
à matéria. Sendo manifestação do espírito, a arte tem como tarefa realizar a
consciência em sua representação sensível, ou seja, expor sensivelmente uma
realidade superior.

272

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A bela arte é [...] um modo de trazer à consciência e de exprimir o divino, os interesses mais pro-
fundos do ser humano, as verdades mais abrangentes do espírito.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. v. 1. Trad.
Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001. p. 32. (Clássicos).

Nas diversas culturas, a arte tem sido expressão do divino, das necessidades e exigências do espírito. Des-
sa forma, pode-se compreender a religião de um povo por meio de sua arte. O que, então, difere a arte da
filosofia e da religião? Principalmente, o fato de somente ela ser capaz de fazer uma representação sensível
das ideias mais elevadas. E aqui está todo o seu valor e sua função primordial.
É por essa razão que a arte supera a imitação, supera o imediatismo da cópia natural. Ela é manifesta-
ção da totalidade da vida. Na manifestação artística, a poesia ocupa o lugar mais nobre, é o mais alto grau
da expressão espiritual, uma vez que ela é manifestação da arte absoluta, da liberdade e da autonomia
do espírito.
Assim, o conteúdo da arte é o espírito em sua expressão sensível. Esse momento deverá ser superado
pela religião, momento da interioridade, apreendida pela representação e, finalmente, pelo pensamento
filosófico, de natureza reflexiva e conceitual, como união e realização final das etapas anteriores, da objeti-
vidade da arte e da subjetividade da religião.

A e e i e m e
Considerando o pensamento de Hegel, os momentos ou estágios vão sendo superados dialeticamente. O
termo “dialética” havia sido empregado por Platão e Aristóteles e também foi empregado na Idade Média. Em
Platão, a dialética almejava chegar à verdade, por um procedimento de comparação de opiniões contrárias,
por meio do diálogo. Diferentemente, em Aristóteles, a dialética estava presente no procedimento indutivo,
no qual formas particulares sensíveis eram comparadas até que fosse possível chegar a uma verdade geral. A
dialética significava essa elevação ou a ascensão do sensível ao inteligível. Na Idade Média, a dialética tornou-se
presente nas disputas, nas questões, no confronto das opiniões.
Em Hegel, a grande diferença consistiu em apresentar a dialética não somente como um método ou uma
forma de pensar a realidade. Dialética é a própria estrutura do ser, dialético é o próprio espírito que chega
à síntese final, tendo passado por várias afirmações e negações.
Considerando essa concepção hegeliana de dialética, pensar em fim da arte é pensar na trajetória evolu-
tiva do espírito. Assim, o que existe de grande e nobre na arte não é só o fato de ela ser produto do espírito,
mas o fato de nela o espírito reconhecer-se em uma de suas manifestações.

O fato é que a arte não mais proporciona aquela satisfação das necessidades espirituais que épocas
e povos do passado nela procuravam e só nela encontraram. [...]. Os belos dias de arte grega, assim
como a época de ouro da baixa Idade Média, passaram. A cultura da reflexão, própria de nossa vida
contemporânea, faz com que a nossa carência esteja, ao mesmo tempo, em manter pontos de vista
universais e em regular o particular segundo eles, seja no que se refere à vontade, seja no que se
refere ao juízo, de tal modo que para nós, as formas, leis, deveres, direitos e máximas, enquanto
universais, devem valer como razões de determinação e ser o principal governante.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. v. 1. Trad.
Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001. p. 24-25. (Clássicos).

Na arte, o espírito se revela no particular, no sensível. Mas, em sua evolução, o particular terá que ser
superado, em nome de um universal, puro, eterno. Assim, a arte teve uma trajetória de ascensão, vitalidade
e declínio. Nessa trajetória evolutiva, Hegel afirma que a arte cumpriu muito bem o seu papel de mediação,
enquanto era necessário.

273

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Na trajetória evolutiva do espírito, surge uma nova etapa, o momento da repre-
sentação do divino. Essa representação não tem mais que acontecer por referência
à natureza ou ao sensível. Essa é a etapa da religião, momento da interioridade,
apreendida pela representação. A religião, ao contrário da exterioridade da arte, cor-
responde à subjetividade, à dimensão do sujeito em sua relação com a divindade.
Para Hegel, a concepção cristã de verdade superou o estágio no qual a arte era
vista como o modo mais elevado de manifestação do absoluto. É nesse sentido
que ele fala em fim da arte, ou melhor, na finalidade de uma concepção de arte.
Essa ideia está presente no fragmento a seguir:

Há uma versão mais profunda da verdade, na qual ela não é mais tão
aparentada e simpática ao sensível para poder ser recebida e expressa ade-
quadamente por meio deste material. A concepção cristã de verdade é desse
tipo, e, sobretudo, o espírito do mundo atual, ou melhor, o espírito de nossa
religião e de nossa formação racional se mostra como tendo ultrapassado o
estágio no qual a arte constitui o modo mais elevado de o absoluto se tornar
consciente. A maneira peculiar da produção artística e de suas obras já não
satisfaz nossa mais elevada necessidade. Nós nos elevamos sobre o nível de
poder venerar e adorar obras de arte divinamente.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. v. 1. Trad. Marco Aurélio Werle.
São Paulo: Edusp, 2001. p. 34. (Clássicos).
AKG-IMAGES/LATINSTOCK

A promessa (1950), de René Magritte. Óleo sobre tela, 42 cm × 30 cm.


Na reflexão sobre a religião, Hegel afirma que o desenvolvimento histórico do espírito
também se mostra aqui. A religião é, essencialmente, uma experiência pessoal de
comunicação com o transcendente. É por essa razão que Hegel se refere inicialmente
ao judaísmo, pois nessa religião não há representação de Deus sob a forma de imagens.
No cristianismo, essa presença da subjetividade em sua relação com a divindade
estaria melhor expressa no protestantismo, por se despir do excesso de ritualismo e da
veneração de imagens, dimensões ainda muito ligadas à matéria sensível.

274

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A obra de arte é então incapaz de satisfazer nossa necessidade última de
sentido. Hoje, não se venera mais uma obra de arte, e nossa atitude em re-
lação às criações da arte é muito mais fria e intelectual. [...] Respeitamos a
arte, a admiramos; apenas não vemos mais nela alguma coisa que não po-
deria ser ultrapassada, a manifestação íntima do absoluto; a submetemos
à análise de nosso pensamento, e isto não com a intenção de provocar a
criação das obras de arte novas, mas bem mais com o objetivo de reconhe-
cer a função da arte e seu lugar no todo de nossa vida.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. v. 1. Trad. Marco Aurélio Werle.
São Paulo: Edusp, 2001. p. 23-24. (Clássicos).

Sendo expressão muito limitada do absoluto, o conhecimento que a arte nos


proporciona é superado pela religião e pela filosofia; nesse último nível, o espírito
encontra-se na consciência de si, liberto da necessidade de representação sensível.
Sobre o modo de compreender a necessidade do fim da arte, em Hegel, Ro-
drigo Duarte assim se expressa:

[...] a arte clássica é superada pela “arte romântica”, que significa, para
Hegel, aquela produzida a partir do início da era cristã e que se caracteriza
por um “excesso” de espiritualidade, implícito na nova ideia de interio-
ridade que adveio com o cristianismo, o qual começa a extrapolar suas
manifestações sensíveis até transbordar e não caber mais na “limitação da
esfera da arte”. Esse é um modo de compreender a “necessidade” do fim
da arte na estética de Hegel.
DUARTE, Rodrigo. A desartificação da arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias. Artefilosofia,
Ouro Preto, n. 2, p. 19-34, jan. 2007. Disponível em: <http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_02/
artefilosofia_02_02_filosofia_01_rodrigo_duarte.pdf>. Acesso em: 4 set. 2017.

A religião, contudo, também será etapa a ser superada pelo espírito, por ela
ser somente o momento do para si, da subjetividade, e nela o absoluto buscado
permanecer transcendente. O absoluto que Hegel busca deve ser realizável na
história, como realidade total, fazendo a síntese perfeita entre o “em si”, que é
a exterioridade, campo da arte, e o “para si”, a subjetividade, campo da religião.
Essa presença da síntese final, da história em sua totalidade, acontecerá, para
Hegel, na filosofia.

A história é, segundo o conceito da sua liberdade, o desenvolvimento


necessário dos momentos da razão, da consciência de si e da liberdade
do espírito, a interpretação e a realização do espírito universal.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1997. p. 274.

Toda a reflexão de Hegel tem como tese uma concepção de história como tra-
jetória de realização do espírito. Assim, a história não é uma cega irracionalidade,
que caminha imprevisivelmente.

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GALLERIA DEGLI UFFIZI, FLORENÇA, ITÁLIA
La Pietà (1499), de
Michelangelo. Escultura
em mármore,
174 cm × 195 cm.
A arte é uma
manifestação
do espiritual, por
meio do sensível.
Gradativamente, o
espírito vai transcender
essa forma de
expressão, passando
pela religião,
até realizar-se na
filosofia,
no pensamento puro,
reflexivo-conceitual.

O belo artístico é superior ao belo natural, por ser um produto do espírito


que, superior à natureza, comunica esta superioridade aos seus produtos e,
por conseguinte, à arte; por isso é o belo artístico superior ao belo natural.
Tudo quanto provém do espírito é superior ao que existe na natureza, a pior
das ideias que perpassa pelo espírito de um homem é melhor e mais elevada
do que a mais grandiosa produção da natureza – justamente porque essa
ideia participa do espírito, porque o espiritual é superior ao natural.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. v. 1. Trad. Marco Aurélio Werle.
São Paulo: Edusp, 2001. p. 4. (Clássicos).

Percorrendo sua trajetória, que é sua história, o espírito se realiza plenamente na filosofia. Torna-se espí-
rito absoluto. Assim, o absoluto é o resultado de um processo histórico que passou por várias contradições,
negações, sínteses. Considerando o início do processo, compreendemos que a consciência tinha de sair de
si para encontrar-se com o espírito absoluto.
O absoluto é, então, o autoconceber-se do espírito, sua identidade, no qual não existe mais separação
entre sujeito e objeto, entre conceito e substância. O sujeito não está mais exterior ao objeto. O espírito
alcança sua máxima expressão, realizando a síntese entre objetividade e subjetividade.

PROBLEMATIZANDO
1. Vejamos o texto a seguir, no qual Hegel reflete sobre a relação da arte com o desenvolvimento do
espírito.

276

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Pode-se inicialmente postular que o espírito tem a capacidade de se observar, de ter uma cons-
ciência e, na verdade, de ter uma consciência pensante sobre si mesmo e sobre tudo o que dele
recorre. Pois é justamente o pensar que constitui a natureza mais íntima e essencial do espírito. Este
somente se comporta segundo sua natureza essencial quando está verdadeiramente presente nesta
consciência pensante de si e de seus produtos, não importando o grau de liberdade e de arbítrio
que ainda possam ter. [...] A arte já está mais próxima do espírito e de seu pensar do que a natureza
apenas exterior e destituída de espírito. [...]. A verdadeira tarefa da arte consiste em levar os mais
altos interesses do espírito à consciência.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética. v. 1. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001. p. 36-37. (Clássicos).

• Qual é a relação entre arte e espírito em Hegel?


• Explique o momento que a arte representa na trajetória do espírito e apresente a justificativa da
necessidade de a arte ser superada.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE LEITURAS
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo KNELLER, George. A ciência como atividade humana.
aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Compa- São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
nhia das Letras, 1992. KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo in-
BIGNOTTO, Newton. As origens do republicanismo finito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2001. _____. Estudos de história do pensamento científico.
BRONOWSKI, Jacob. O olho visionário: ensaios sobre Rio de Janeiro: Forense, 1982.
arte, literatura e ciência. Brasília: UnB, 1998. MACPHERSON, Crawford. A teoria política do indivi-
BURKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itá- dualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janei-
lia: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ro: Paz e Terra, 1979.
BURTT, Edwin Arthur. As bases metafísicas da ciência OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro:
moderna. Brasília: UnB, 1983. Campus, 1991.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: _____. A sensibilidade do intelecto. Rio de Janeiro:
Unicamp, 1992. Campus. 1998.
DE MICHELLI, Mario. As vanguardas artísticas do sécu- PINZANI, Alessandro. Maquiavel e o príncipe. Rio de
lo XX. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Janeiro: Zahar, 2005.
FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdu- REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia:
ção à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Unesp, do humanismo a Descartes. São Paulo: Paulus, 2004.
1995. ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. São
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo: Paulo: Unesp, 1992.
Martins Fontes. 1990. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São
FRASCINA, Francis; BLAKE, Nigel; FER, Briony. Moder- Paulo: Companhia das Letras, 1987.
nidade e modernismo: a pintura francesa no século SANTOS, Francisco de Araújo. A emergência da mo-
XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. dernidade. Petrópolis: Vozes, 1990.
GOMBRICH, Ernst. A história da arte. Rio de Janeiro: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento polí-
Guanabara Koogan, 1993. tico moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. STANGOS, Nikos. Conceitos de arte moderna. Rio de
São Paulo: Ática, 1996. Janeiro: Zahar, 1991.
JAPIASSÚ, Hilton. A revolução científica moderna. Rio TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaio de filosofia
de Janeiro: Imago, 1985. ilustrada. São Paulo: Brasiliense, 1987.

277

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA:
DA CRISE E DA POSSIBILIDADE
MUSEU DE BELAS ARTES DA BASILEIA, SUIÇA

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5
Unidade
Unidade

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1
Eixo Temático

CONDIÇÃO
HUMANA

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
• O pensamento contemporâneo como crítica
ao idealismo hegeliano.
Você

• O princípio da vontade na filosofia de Arthur


Schopenhauer.
• A imprevisibilidade da existência humana em
Soren Kierkegaard.
• O impulso passional e a luta contra o destino
em Nietzsche.
• Os conceitos de “super-homem” e de “eterno
retorno”.
• A crítica à moral tradicional proposta por
Nietzsche.
• Liberdade, consciência e indeterminação na
visão existencialista.
• A concepção fisicalista do ser humano na
perspectiva da neurociência.

Temas:
1. Olhares contemporâneos 5. O existencialismo e a afirmação da
2. Schopenhauer e o princípio da vontade liberdade
3. Kierkegaard: a existência humana 6. O ser humano sob o olhar da
neurociência
4. Nietzsche: ser humano como paixão e
vontade de potência
Neste eixo temático que aborda a condição humana no contexto da sociedade contemporânea, marcada pelas reflexões em torno do tema da liberdade e seus limites, abre-se a perspectiva
de um projeto de reflexão interdisciplinar, especialmente com Sociologia, que aborde os mecanismos de controle social, explicitando os condicionamentos socioculturais das ações individuais
e problematizando o conceito e a realidade da liberdade.

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1. OLHARES CONTEMPORÂNEOS
Quando, onde, com que ou com quem se inicia a filosofia contemporânea? Delimitar um ponto a partir
do qual ela teria começado é uma questão insolúvel. Para muitos, a Revolução Francesa seria um dos marcos
do início da época contemporânea.
Por convenção, estabelecemos como contemporâneos os pensadores cuja vida e pensamento são de-
senvolvidos a partir de meados do século do XIX, durante o século XX e no século XXI. Agrega-se também
a isso uma forma de pensar que apresenta uma mudança de perspectiva em relação ao modo moderno de
pensar. Esse é o terreno de um pensamento insurgente, um pensar que se faz crítico, especialmente em
relação ao idealismo de Hegel, que propunha um saber absoluto acima da arte, da religião e da ciência.
Surgem pensadores como Arthur Schopenhauer, Soren Kierkeggard, Friederich Nietzsche, Sigmund Freud,
Wilhelm Dilthey, entre outros, que refletem sobre a irracionalidade, sobre a força da vontade ou da vitali-
dade da paixão humana, sobre a liberdade. No mesmo terreno de crítica ao idealismo encontramos Max
Stirner, Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Friederich Engels, sob a denominação de materialistas. Igualmente,
encontraremos ainda pensadores no campo da epistemologia, da política e da estética.
Qual é o lugar da filosofia na sociedade contemporânea? Se lançarmos o olhar para o lugar que ela ocu-
pava na Grécia Clássica, facilmente perceberemos que ela era a expressão máxima do saber. Durante a Idade
Média, ela se torna subordinada à teologia. Durante os séculos XVI e XVII, a filosofia volta a adquirir grande
visibilidade com o resgate de um pensamento mais focado no ser humano e em suas potencialidades. Após
a revolução científica moderna, do século XVII, podemos afirmar que a física e a engenharia passam a ocu-
par uma posição de destaque. E, na atualidade, na passagem do século XX para o XXI, o campo do saber
que está no centro é a biologia, particularmente a genética.
ALEXANDER RATHS/SHUTTERSTOCK

Pesquisador
em laboratório
de engenharia
genética.

Vivemos no terreno das tecnociências, das biotecnologias, das ciências aplicadas, em uma cultura na
qual predominam o olhar pragmático e do saber aplicado à produção, à utilidade. A ciência, a tecnologia e
a indústria fundem-se em uma série de produções tecnológicas, em um processo cada vez mais acelerado.
Partilhamos da ideia de que a filosofia não deverá jamais ficar alheia às grandes questões de seu tempo.
Nesse sentido, devemos considerar os resultados alcançados pelas investigações das neurociências, que
atualmente ocupam posição de destaque. Sendo saber reflexivo e crítico, a filosofia deverá ocupa seu lugar
e refletir sobre o pensamento de nossa época, retomando o que afirmava Aristóteles ao reconhecer no es-
panto a origem da filosofia. A filosofia deve manter viva sua capacidade de estranhamento.

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2. SCHOPENHAUER E O PRINCÍPIO DA VONTADE
A obra mais importante do filósofo alemão
UNIVERSIDADE DE FRANKFURT, ALEMANHA

Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi pu-


blicada em 1819: O mundo como vontade e
como representação. O título da obra já tra-
duz bem a intuição ou o pressuposto funda-
mental de sua reflexão.
Schopenhauer parte da experiência concreta
da humanidade para demonstrar a irracionalida-
de do mundo, a falta de sentido, de racionalida-
de ou de espírito que conduza a história. O que
vemos são os horrores das guerras, as cruelda-
des e os males decorrentes do ódio, da vingan-
ça. De onde viriam todas essas misérias? Scho-
penhauer não hesita em responder: a fonte
dessas catástrofes é o domínio da vontade cega,
inflexível e cruel.
Inicie essa reflexão contemporânea com os estudantes, comentando com eles que se trata
de uma reflexão “pós-moderna”, no sentido de ser uma crítica à visão moderna e/ou uma
reflexão que dará ênfase a elementos não explorados pela modernidade. Solicite a eles
que mencionem as principais características da modernidade, especialmente as relacionadas
à racionalidade, à confiança nos poderes da razão, ao projeto iluminista etc. Com base
nesse resgate do espírito moderno, caberia iniciar a reflexão por meio das perguntas: O que
move o ser humano? A razão ou a paixão? O princípio lógico ou a vontade cega, irracional?

Retrato de Arthur Schopenhauer (1818), de Ludwig


Sigismund Ruhl. Óleo sobre tela.

Tal palavra se chama vontade. Esta, e tão-somente esta, fornece-lhe a chave para seu próprio fe-
nômeno, manifesta-lhe a significação, mostra-lhe a engrenagem interior de seu ser, de seu agir, de
seus movimentos.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005. p.156-157.

Acima de tudo estaria a vontade cega. E por que essa vontade seria cega? Ela não teria conexão com o
conhecimento, sendo radicalmente distinta e independente dele. A vontade existe, age e se exprime sem
depender de qualquer tipo de conhecimento. É ela que confere a todas as coisas a força por meio da qual
existem. Se houve pensadores que deram grande valor à vontade, a originalidade de Schopenhauer reside
em caracterizá-la como força cega da qual derivam as outras realidades.

O apego à vida é irracional e cego: só é explicável pelo fato de que todo nosso ser em si mesmo já é
vontade de vida [...] e pelo fato de que a vontade em si é originalmente destituída de conhecimento
e cega. O conhecimento, ao contrário, bem longe de ser a origem do apego à vida, atua contra este,
na medida em que desvela a ausência de valor da mesma e, assim, combate o temor da morte.
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. Trad. Jair Barboza.
São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 64.

A vida é vontade, é desejo, é permanente mudança. No texto a seguir, Schopenhauer reflete sobre aquilo
que lhe parece ser a dinâmica da vida.

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Eterno vir-a-ser, fluxo sem fim, pertence à manifestação da essência da
vontade. O mesmo também se mostra, por fim, nas aspirações e nos dese-
jos humanos, cujo preenchimento sempre nos acena como o fim último
do querer; porém, assim que são alcançados, não mais se parecem com os
mesmos e, portanto, logo são esquecidos, tornam-se caducos e, propria-
mente dizendo, embora não se admita, são sempre postos de lado como
ilusões desfeitas. Suficientemente feliz é quem ainda tem algo a desejar,
pelo qual se empenha, pois assim o jogo da passagem contínua entre o de-
sejo e a satisfação e entre esta e um novo desejo – cujo transcurso, quando
é rápido, se chama felicidade, e quando é lento se chama sofrimento – é
mantido, evitando-se aquela lassidão que se mostra como tédio terrível,
paralisante, apatia cinza sem objeto definido. [...] A vontade sempre sabe
o que quer aqui e agora, mas nunca o que quer em geral. Todo ato isolado
tem um fim. O querer completo não.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005. p. 231.
MUSEU DE ARTE MODERNA, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS

Aniversário (1915), de Marc


Chagall. Óleo sobre cartão,
80,6 cm × 99,7 cm.
Para Schopenhauer, a
felicidade consiste no
jogo rápido e contínuo das
passagens entre desejo,
satisfação e novo desejo.

Pensar que a vida seja guiada por uma racionalidade, afirmar que o real é ra-
cional, que haja uma individualidade, um sujeito que defina o sentido, seria cair
em profunda ilusão, seria engano. E qual seria o resultado da descoberta dessa
ilusão? Seria a angústia. Descobrir que o nosso mundo não é o melhor dos mun-
dos possíveis, mas o pior deles, dá origem à angústia desesperada.

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A negação da vontade: arte, compaixão e ascese
Como escapar dos sofrimentos que vêm dessa vontade cega? O caminho parece consistir na negação da
vontade, na supressão do desejo, na renúncia à individualidade.
A vida moral, a vida em sociedade consistiria nessa libertação da individualidade por meio da compai-
xão, da arte e da ascese. Essas seriam as três vias da negação de si. Inicialmente, a compaixão nasce em
nós quando tomamos consciência de que o outro é igual a nós. Quando o ser humano deixa de seguir a
impulsividade egoística que nasce naturalmente dentro dele e se abre para uma ação na qual pensa no
outro, ele se coloca sob a dinâmica da compaixão.
A negação da vontade pode acontecer também pela mediação da arte, na qual se aprende a contem-
plação desapaixonada ou desinteressada, quando acontece o consolo dos tormentos impostos pela von-
tade. Nessa fusão do indivíduo e do objeto artístico, eles deixariam de existir separados, formando uma
mesma realidade. Seria a contemplação da vontade em si mesma, uma forma de libertação em relação
a todo querer.

[...] a alegria estética no belo consiste em grande parte no fato de que nós, ao entrarmos no esta-
do de pura contemplação, somos por instante libertos de todo querer, isto é, de todos os desejos e
preocupações: por assim dizer, livramo-nos de nós mesmos.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005. p. 494.

Na ascese, na negação dos impulsos do próprio corpo, aconteceria a mais completa superação e renún-
cia a tudo aquilo para o qual a vontade naturalmente orientaria.

Sob o termo [...] ascese, entendo no seu sentido estrito essa quebra proposital da vontade pela
recusa do agradável e a procura do desagradável, mediante o modo de vida penitente voluntaria-
mente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação contínua da vontade.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005. p. 496.

PROBLEMATIZANDO
1. Tendo como referência a reflexão de Schopenhauer, a moral vigente na vida em comunidade ou na
sociedade é uma forma de freio à vontade? Poderia não ser assim?
2. Qual é a concepção de ser humano que Schopenhauer apresenta? E como essa concepção se relacio-
na com a vida moral?
• Discuta esse tema com os colegas e expresse seus argumentos.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Com base nas reflexões e na leitura dos fragmentos de Schopenhauer, qual é a concepção de felici-
dade que ele apresenta e por que ela não pode ser sinônimo de repouso?
• Redija um texto explicitando sua reflexão a esse respeito.

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3. KIERKEGAARD: A EXISTÊNCIA HUMANA
O dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), ao lado de

ALBUM ART/SFGP/LATINSTOCK
Schopenhauer, está entre os maiores críticos do idealismo de
Hegel. Seu pensamento ficou conhecido especialmente depois
da Primeira Guerra Mundial, quando foi traduzido e lido em
todo o mundo.
Sua crítica a Hegel se deve, especialmente, ao fato de o
filósofo alemão pretender formular um sistema completo da
realidade, descrevendo as trajetórias do espírito até chegar ao
absoluto, à síntese final.
Para Kierkegaard, isso seria impossível para um ser humano
cujo modo de ser é a existência, e existir significa projetar-se
de modo imprevisível, estar em permanente devir, ser mutabi-
lidade permanente.
Como poderia um ser contingente, finito, limitado estabe-
lecer uma verdade como identidade do pensamento e do ser?
Isso seria muita abstração de um pensamento lógico.
Considerando a critica de Kierkegaard ao idealismo do sistema hegeliano, seria interessante começar essa reflexão Retrato de Soren Kierkegaard (1840), de
com alguns questionamentos problematizadores: Será que a história tem sentido? Ela segue uma direção, uma
lógica evolutiva? O real é racional? Christian Kierkegaard.

A noção de verdade como identidade do pensamento e do ser é quimera da abstração [...] não
porque de fato não exista essa identidade, mas porque o cognoscente é indivíduo existente, e para
ele a verdade não pode ser identidade deste tipo enquanto ele vive no tempo.
KIERKEGAARD, Soren. Apostila conclusiva não científica, 107. In: MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. v. 3.
Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 2014. p. 80.

Para Kierkegaard, o ser humano em seu percurso passa por diferentes etapas, denominadas estágios, da
infância à vida adulta. O primeiro estágio é o do divertimento, da vida sem preocupações. Nesse período na
vida, que ele denomina estágio estético, o que predomina é a fantasia, no qual o indivíduo sai de si mesmo
e se lança na exterioridade sem compromissos.
O segundo estágio seria o ético, no qual predomina o compromisso e, com ele, a estabilidade de um
indivíduo que segue princípios. A maior expressão desse momento da vida seria o matrimônio (casamento).
O terceiro estágio seria o religioso, no qual o indivíduo transcende as obrigações civis, vai além das exi-
gências da lei, pois a fé lhe solicitaria mais exigências, que poderão inclusive entrar em conflito com a lei da
sociedade. Ele cita a figura bíblica, o patriarca Abraão, como sendo o pai da fé.

Enquanto a existência estética é essencialmente divertimento, a existência ética, luta e vitória, a


existência religiosa é essencialmente sofrimento, e isso não por um momento, mas para sempre.
KIERKEGAARD, Soren. Apostila conclusiva não científica, 256. In: MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. v. 3.
Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 2014. p. 80

O tema da fé é recorrente nas reflexões de Kierkegaard. Contudo, a fé é concebida não como crença
em dogmas, adesão intelectual a elementos da doutrina da religião, mas como interioridade, subjetivida-
de. Por essa razão, Kierkegaard desenvolve reflexões teológicas muito críticas em relação ao formalismo
no qual o cristianismo teria se transformado, especialmente o protestantismo que presenciou em seu
país, a Dinamarca.

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De acordo com Kierkegaard, a vida autêntica passa pela interioridade, pela subjetividade, é o terreno das
apostas, dos saltos da fé e, por isso mesmo, é tempo de angústia, na qual o indivíduo vive a experiência da
culpa e do distanciamento em relação a Deus.
Para Kierkegaard, essa abordagem filosófica e teológica da temática da fé é plenamente legítima, uma
vez que a reflexão filosófica precisa estar enraizada na vida, na existência dos indivíduos, onde se processam
as decisões humanas.

PROBLEMATIZANDO
1. Como você avalia a crítica que Kierkegaard faz da pretensão humana, representada no idealismo de
Hegel, de criar um sistema no qual se apreenda a verdade da realidade?
2. Como você se posiciona diante da teoria dos três estágios do ser humano?

4. NIETZSCHE: SER HUMANO COMO PAIXÃO


Inicie o estudo deste tema perguntando aos estudantes se já ouviram falar em Nietzsche e se
E VONTADE DE POTÊNCIA conhecem alguma ideia que ele tenha defendido. Em seguida, retome com eles a reflexão sobre os
valores da tragédia grega, que realizamos na unidade 2, eixo temático 4.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) nasceu na Alemanha. Em sua juventude leu a obra de Schopenhauer
O mundo como vontade e como representação, obra que orientou seu pensamento. Aos 25 anos já era
professor na universidade. Nesse período de sua vida, co-

GOETHE UND SCHILLERARCHIV


nheceu Richard Wagner, com quem desenvolveu grande
amizade. Contudo, a diferença de mentalidade e de prin-
cípios de vida provocou a ruptura entre os dois.
Aos 34 anos escreveu Humano, demasiado humano.
Devido à saúde frágil, abandonou o trabalho na uni-
versidade. Entregou-se a uma peregrinação pela Suí-
ça e pela Itália, especialmente. Aos 36 anos escreveu
Aurora. No ano seguinte, escreveu A gaia ciência; com
39 anos, escreveu Assim falou Zaratustra; aos 42 anos,
publicou Para além de bem e mal. No ano seguinte,
escreveu Para a genealogia da moral e, a seguir, O cre-
púsculo dos ídolos, O anticristo e Ecce homo. Sua últi-
ma obra, A vontade de poder, começou a escrevê-la em
Turim, na Itália, mas não conseguiu concluí-la, devido a
perturbações mentais.
Com base na leitura da obra de Schopenhauer, O
mundo como vontade e como representação, Nietzsche
desenvolveu uma reflexão antropológica na qual encon-
trou profunda identificação pessoal. Em conformidade
com essa visão, para Nietzsche a vida é impulso passio-
nal. Em decorrência, não é possível pensar em previsibili- Friedrich Nietzsche em 1869.
dade humana, pois a paixão é irracional.

O resgate dos valores da tragédia grega


Com essa tese, na qual definiu o ser humano como paixão, Nietzsche se colocou em posição diametral-
mente oposta ao racionalismo grego, especialmente o pensamento socrático-platônico, que concebe o ser
humano como essencialmente racional. Por isso, o projeto de Nietzsche envolveu o resgate de valores e
ideais de vida anteriores a esse racionalismo.

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Esses valores e ideais ele encontrou na tragédia grega, retrato de um período no qual a excelência hu-
mana estava vinculada à força, à coragem, à honra, à astúcia. Na tragédia, a areté, ou virtude, tinha matriz
aristocrática, na qual se almejava a superação de si e o destacar-se em relação aos comuns.
A tragédia que interessou a Nietzsche é a tragédia ática, a de Ésquilo e de Sófocles, na qual a música
exerceu papel fundamental, sendo expressão da dimensão dionisíaca. Dessa forma, ele não se referia ao
espetáculo trágico de Eurípedes, que excluía a música e privilegiava a dimensão do diálogo racional.
Na tragédia grega, buscava-se a harmonia entre humanidade e natureza. Os símbolos dessa harmonia
são retirados de duas divindades ligadas à arte: a integração das forças de Dioniso e de Apolo, da embria-
guez e da ordem, da paixão e da racionalidade. Nietzsche se concentrou nessa visão dionisíaca de mundo
que ele atribuiu aos gregos do século V a.C. Essa visão está presente em sua obra O nascimento da tragédia,
escrita em Leipzig, em 1872.
Há uma característica que se sobressai na visão de mundo específica da tragédia grega, sob a perspectiva
do dionisíaco, que Nietzsche considera o “pessimismo da força”, entendido não em sentido negativo, mas
como uma tendência em concentrar-se na dimensão problemática da existência, que luta contra o destino
até ser vencida por ele. Solicite aos estudantes que elaborem uma explicação ou uma
justificativa para esse título no qual o ser humano é colocado como
fim. Com isso, pretendemos mergulhar no sentido do que seria
uma existência humana autêntica, na visão de Nietzsche. Verifique
Vida autêntica: o ser humano como fim se eles conseguem, previamente, expressar a ideia relacionada à
importância de o indivíduo buscar expressar sua potencialidade e,
com isso, destacar-se em relação ao senso comum.
No texto Da utilidade e desvantagem da história para a vida, Nietzsche desafia o indivíduo para que acor-
de, deixe de ser massa disforme e assuma sua história e a refaça. Essa luta contra o destino vem expressa na
existência legítima do ser humano que se propõe como fim. Vejamos o fragmento:

Tenta apenas uma vez legitimar o sentido de tua existência como que a posteriori, propondo tu a ti
mesmo um fim, um alvo, um “para quê”, um alto e nobre “para quê”. Morre por ele – não conheço
nenhuma finalidade melhor para a vida do que morrer pelo grandioso e pelo impossível [...].
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações extemporâneas: Da utilidade e desvantagem da história para a vida.In: Obras incompletas.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 286. (Os pensadores).

No texto Schopenhauer como educador, Nietzsche reflete sobre a autenticidade da vida que implica
nadar contra a corrente. Somente assim, indo contra o fluxo da massa, contra o seu tempo, o indivíduo
poderá encontrar-se a si mesmo. Ainda nesse texto, Nietzsche destaca a necessidade de fazer-se crítico dos
valores culturais impostos e assumir o desafio de construir a própria vida com autenticidade. Indo contra o
seu tempo, contra o fluxo da massa, de um “povo sem consciência”, de um “povo rebanho”, o indivíduo
poderá ser livre. Vejamos o fragmento:

Se todo grande homem chega a ser considerado, acima de tudo, precisamente como o filho au-
têntico de seu tempo e, em todo caso, sofre de todas as suas mazelas com mais força e mais sensi-
bilidade do que todos os homens menores, então o combate de um tal grande contra o seu tempo
é, ao que parece, apenas um combate sem sentido e destrutivo contra si mesmo. Mas, justamente,
apenas ao que parece: pois o que ele combate em seu tempo é aquilo que o impede de ser grande, e
isto para ele significa apenas: ser livre e inteiramente ele mesmo. Disso se segue que sua hostilida-
de, no fundo, está dirigida precisamente contra aquilo que, por certo, está nele mesmo, mas não é
propriamente ele mesmo [...].
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações extemporâneas: Schopenhauer como educador. In: Obras incompletas.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 291. (Os pensadores).

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O indivíduo soberano e a crítica à moral tradicional
Tendo como referência as obras Para a genealogia da moral e Para além de bem e mal, podemos identifi-
car o ponto central da crítica nietzschiana à moral tradicional: o estilo racionalista da vida moral foi erguido
com finalidade repressora, e não para garantir o exercício da liberdade, uma vez que impôs, com os nomes
de virtude e dever, tudo o que oprime a natureza humana. Assim, em termos morais, seu objetivo será o
nascimento de um ser humano destacado, elevado em relação ao indivíduo comum.
Com a palavra Übermensch, traduzida do alemão como “super-homem” ou ainda “além-do-homem”,
Nietzsche faz menção a um tipo mais elevado de ser humano. Embora esse termo não expresse uma ideia
única em seu pensamento, a tônica está relacionada ao indivíduo que possui uma alma profunda, capaz de
ser fiel à Terra, que tenha fé em si mesmo, que se saiba destacado, nobre, separado do comum, que não
reproduza a cultura que recebeu, sendo capaz de digerir a experiência do eterno retorno. A esse respeito,
leiamos um fragmento de Assim falou Zaratustra:

Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente
transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser.
Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em
cada instante começa o ser.[...] O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 259-260.

Ao refletir sobre o significado atualizado de ser “destacado”, Nietzs-


che fala em disposição para o conflito, para a vivência de uma tensão,
na qual o indivíduo de grande espírito se contrapõe e se eleva em re-
lação ao último homem, ao homem rebanho (da massa, do povo sem
THEODOROS PELECANOS

consciência). O texto no qual se encontra essa descrição de um tipo


mais elevado de ser humano é o capítulo IX de Para além de bem e mal,
sob o título “O que é nobre?”.
Um elemento que merece ser destacado aqui é o fato de o homem
comum e o homem destacado nascerem do mesmo terreno. Assim, a
velha moral tradicional não necessariamente terá que dar luz ao ho-
mem rebanho. Dela poderá brotar um indivíduo soberano, cuja força
Ouroboros, a serpente que morde a retira da própria moral e dela se afasta.
cauda, é um símbolo do eterno retorno.

PROBLEMATIZANDO
1. Releia as afirmações de Nietzsche extraídas de Assim falou Zaratustra:

[...] eternamente constrói-se a mesma casa do ser. [...] eternamente fiel a si mesmo permanece o
anel do ser. [...] Curvo é o caminho da eternidade.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 259-260.

• Como você interpreta essas afirmações?

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2. No texto a seguir, Nietzsche constrói sua crítica ao ideal ascético. Vamos mergulhar nessa crítica.

Pois uma vida ascética é uma autocontradição; aqui domina um ressentimento raro, o de um insa-
ciado instinto e vontade de potência, que gostaria de se tornar senhor, não sobre algo na vida, mas
sobre a própria vida, sobre suas mais profundas, mas fortes, mais básicas condições; aqui, é feito um
ensaio de usar a força para estancar as fontes da força; aqui se dirige o olhar, verde e maligno, contra
o próprio prosperar fisiológico, em particular contra sua expressão, a beleza, a alegria [...].
Uma autocontradição tal como parece apresentar-se no asceta, “vida contra vida”, é – isto pelo
menos já está claro como a palma da mão –, considerada fisiologicamente, e não mais psicologica-
mente, simplesmente insensatez. [...]
[...] o homem prefere ainda querer o nada, a não querer...
NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral. In: Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 358-370. (Os pensadores).

a. Por que a vida ascética é uma autocontradição? Qual é o pressuposto que move o pensamento
de Nietzsche?
b. Qual é “a força” que a cultura tem usado para “estancar as fontes da força” do sujeito?
c. “[...] o homem prefere ainda querer o nada, a não querer.” Como você interpreta essa afirmativa?
d. Esse texto pode ser interpretado como um convite à vida autêntica?
• Converse com os colegas, apresentando os argumentos que sustentam o seu posicionamento.

As três metamorfoses do espírito


No texto a seguir, Nietzsche apresenta metamorfoses pelas quais o espírito humano deverá passar para
chegar a uma vida autêntica, para assumir-se como ser destacado, indivíduo soberano.

Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se muda em camelo, e o camelo
em leão, e o leão, finalmente, em criança.
Há muitas coisas que parecem pesadas ao espírito, ao espírito robusto e paciente, e todo imbuído
de respeito; a sua força reclama fardos pesados, os mais pesados que existam no mundo. “O que é
que há de mais pesado para transportar?” – pergunta o espírito transformado em besta de carga,
e ajoelha-se como o camelo que pede que o carreguem bem. [...]
Mas o espírito transformado em besta de carga toma sobre si todos estes pesados fardos; semelhan-
te ao camelo carregado que se apressa a ganhar o deserto, assim ele se apressa a ganhar o seu deserto.
E aí, naquela extrema solidão, produz-se a segunda metamorfose; o espírito torna-se leão. Entende
conquistar a sua liberdade e ser o rei do seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor; será
o inimigo deste último senhor e do seu último Deus; quer lutar com o grande dragão, e vencê-lo.
Qual é este grande dragão a que o espírito já não quer chamar nem senhor, nem Deus? O nome
do grande dragão é “Tu deves”. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero.” O “tu deves” impede-lhe
o caminho [...].
Criar valores novos é coisa para que o próprio leão não está apto; mas libertar-se a fim de ficar
apto a criar valores novos, eis o que pode fazer a força do leão. Para conquistar a sua própria liber-
dade e o direito sagrado de dizer não, mesmo ao dever, para isso meus irmãos, é preciso ser leão.
Conquistar o direito a valores novos, é a tarefa mais temível para um espírito paciente e laborioso.
[...] Precisa agora de descobrir a ilusão e o arbitrário mesmo no fundo do que há de mais sagrado

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no mundo, a fim de conquistar depois de um rude combate o direito de se libertar deste laço; para
exercer semelhante violência, é preciso ser leão.
Dizei-me, porém, irmãos, que poderá fazer a criança, de que o próprio leão tenha sido incapaz?
Para que será preciso que o altivo leão tenha de se mudar ainda em criança? É que a criança é ino-
cência e esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, pri-
meiro móbil, afirmação santa. Na verdade, irmãos, para jogar o jogo dos criadores é preciso ser uma
santa afirmação; o espírito quer agora a sua própria vontade; tendo perdido o mundo, conquista o
seu próprio mundo. Disse-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se mudou em ca-
melo, o camelo em leão, e finalmente o leão em criança.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 51-53.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia a afirmação:
A existência autêntica ou legítima defendida por Nietzsche implica o movimento em duas direções
opostas, como expressão de uma mesma convicção: uma direção contra e uma direção a favor.
• Como você explica essa afirmação na constituição do “super-homem”?
Situe os estudantes no contexto da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, no contexto dos campos de concentração, da destruição de Hiroshima e Nagasaki e faça algumas perguntas
problematizadoras: Quem é, afinal, o ser humano? O que é e o que implica a existência humana? Diante de tantas vítimas, onde está Deus? Quem deve ser responsabilizado por essas tragédias?

5. O EXISTENCIALISMO E A AFIRMAÇÃO DA LIBERDADE


O contexto e a realidade das duas grandes guerras mun-

BIBLIOTECA DO CONGRESSO, ESTADOS UNIDOS


diais (1914-1918 e 1939-1945) faz-nos pensar no poder e
na capacidade de devastação das nações imperialistas e in-
dustriais. Diante dessa realidade de tragédias, de quem é a
responsabilidade? É correto definir o ser humano como ser
racional? O que move o ser humano?
Nesse contexto, em meio a profundas crises políticas,
acentua-se uma reflexão sobre a identidade humana, espe-
cialmente com base nos sentimentos de melancolia e de an-
gústia. Surgem pensadores que irão se concentrar no tema
da existência humana. Que valor tem a existência humana?
É possível compreender o mistério da liberdade humana?
O contexto é o de uma Europa marcada pela destrui-
ção física e moral, pela experiência da perda da liberdade e,
fundamentalmente, pela violência dos regimes totalitários.
Esse contexto é, assim, de profunda crise e pessimismo. As
consequências das duas grandes guerras jogaram por terra
os ideais humanitários e a ideia de um progresso linear e
Explosão da bomba atômica lançada pelos Estados
infinito. Os principais representantes dessa filosofia da exis- Unidos sobre a cidade japonesa de Nagasaki, em 9 de
tência serão Heidegger e Jean-Paul Sartre. agosto de 1945.

Heidegger: vida autêntica e vida inautêntica


O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) dedicou-se, prioritariamente, ao problema do sentido
da existência humana. Em 1927, publicou sua obra mais importante: Ser e tempo. Seu objeto de estudo é o
ser. Mas como chegar ao ser? A única maneira é por meio dos entes individuais. Assim, Heidegger suspende

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todas as informações gerais que tenha sobre o ser, para partir do homem concreto, desde o princípio de
sua existência.
Esse procedimento é característico do método fenomenológico: parte do homem concreto, suspende o
juízo em relação a verdades e certezas já afirmadas, deixa que a própria existência do ser fale por ele mesmo
e estuda o ser com base em suas manifestações concretas.
Entre as características do ser humano, Heidegger destaca em

PAUL SWIRIDOFF/WÜRTH GMBH/SWIRIDOFF/ULLSTEIN BILD/GETTY IMAGES


primeiro lugar o ser-no-mundo, a condição situacional. O indivíduo
sempre se encontra inserido em um contexto sociocultural, marca-
do por afetos, sentimentos, conhecimentos prévios. O termo, em
alemão, que Heidegger usa para falar desse aspecto é Dasein, que
significa “existência” e pode ser traduzido por “ser-em-situação”.
Contudo, esse caráter situacional traz uma segunda dimensão
humana, de abertura, de inacabamento, de vir-a-ser, de poder
tornar-se algo novo. Para expressar essa realidade, Heidegger tra-
balha o conceito de projetar-se para fora de si, para frente, para
fazer-se.
Esse fazer-se acontece no tempo. Assim, a temporalidade cons-
titui a terceira característica do ser humano. Com essa noção de
tempo, Heidegger se refere à dinâmica da vida, da permanente
construção, do não repouso. Daí resulta a expressão “o homem é
o futuro do homem”. Na síntese dos três tempos, o indivíduo parte
de uma situação (passado), serve-se da realidade concreta (presen- O filósofo Martin Heidegger em 1960.
te) e se constrói (futuro).
Ficar preso especialmente ao passado ou ao presente implicaria em vida inautêntica, que se traduz nas
expressões: veste-se como a massa se veste, diverte-se como a massa se diverte, comporta-se como a massa
se comporta.
Em contrapartida, a vida autêntica resulta de um olhar para o futuro, para as possibilidades, para o novo
que poderá vir. Na última das possiblidades a considerar está a morte, que pertence à estrutura da vida, com
a qual cessa a existência.
Na conclusão de suas reflexões sobre a verdade ou a essência do ser, Heidegger retoma as críticas já
feitas a Hegel e afirma que é impossível expressar o que seja o absoluto. O máximo que nos seria possível é
buscar conhecer o ente individual por meio de suas manifestações no cotidiano da existência.

PROBLEMATIZANDO
1. De acordo com Heidegger, quais são os principais atributos do ser?
2. Quais são as decorrências desses três atributos para nossas vidas?

OUTROS OLHARES
1. O texto a seguir, de Clarice Lispector, pode ser interpretado como expressão de um pensamento
existencialista.

Água viva
Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar, pois o próximo instante é desconhecido.
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais
porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instan-
te no qual ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro:

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em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo. E quero
capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade
me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amor

DANA.S/SHUTTERSTOCK
– pela límpida abstração de estrela do que se sente – capta-se a in-
cógnita do instante, maior que o acontecimento em si: no amor o
instante de impessoal joia refulge no ar, glória estranha de corpo,
matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes. [...]
E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o meu é. E canto
aleluia para o ar assim como faz o pássaro. E meu canto é de ninguém.
Mas não há paixão sofrida e dor e amor a que não se siga uma aleluia.
Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro estar a par dele,
Fogos de artifício.
divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que
decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com a vida que nasça
com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 9-10.

a. Em que sentido esse texto pode ser classificado como pertencente ao existencialismo? Que ele-
mentos dele remetem aos temas centrais do pensamento existencialista?
b. Em que medida a consciência da finitude é condição prévia necessária para uma vida autêntica?
• Converse com os colegas sobre a dificuldade em viver a autenticidade da vida humana expressa
na angústia.
Como sugestão para iniciar o estudo desse tema, propomos problematizar a escolha do curso
que o estudante fará para ingressar no ensino superior ou mesmo a escolha da profissão.
Converse com eles sobre a necessidade da escolha (pessoal e intransferível), as incertezas
Sartre: a consciência e a náusea envolvidas nela, a angústia presente nessa situação existencial e sobre a responsabilidade de
assumir a própria vida, em que não cabem desculpas, não cabe má-fé.

O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) é


RDA/ARCHIVE FRANCE/GETTY IMAGES

uma das maiores expressões do existencialismo. Seu


principal postulado ou convicção filosófica é a liberda-
de humana, na qual o indivíduo determina a direção de
sua existência.
A sua obra O ser e o nada, de 1943, tornou-se refe-
rência fundamental da teoria existencialista. Porém, Sar-
tre apresentou o seu existencialismo de uma forma muito
mais clara e breve em O existencialismo é um Humanis-
mo, uma conferência ministrada em Paris em 1945.
Outros pensadores muito expressivos do existencialis-
O filósofo Jean-Paul Sartre e a filósofa Simone de mo, além de Heidegger e Sartre, são Gabriel Marcel, Karl
Beauvoir (1908-1986) em 1970. Jaspers, Maurice Merleau-Ponty e Albert Camus.

A consciência, a liberdade e a indeterminação humana


Sartre destaca no ser humano quatro dimensões. Na primeira, ele é um ser-em-si, uma massa inerte,
alguma coisa. Em segundo lugar, ele é contingência, ou seja, algo não necessário, um ser que está aí, mas
poderia não estar. Na terceira dimensão, a existência humana é marcada pelo absurdo, pela ausência de um
sentido, de uma explicação.
Em quarto lugar, a grande diferença do ser humano em relação aos demais seres está na consciência.
Nela, o indivíduo é para-si. E é a partir da consciência que o ser humano se reconhece como ser de possibi-
lidade, como não sendo ainda o que pode vir a ser, como um ser em falta, ou como uma falta de ser. Nesse
sentido, a consciência teria uma função anuladora, pois a própria existência revelaria o vazio ou o nada

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que é a vida. Na consciência, o ser humano perceberia seus desejos. E os desejos
mostrariam o que lhe falta, a sua deficiência.
Dessa consciência da falta, nasceriam a náusea, o tédio, o sentimento de cons-
tante desgosto das coisas que o cercam. Sartre desenvolve a reflexão sobre esse
sentimento na obra A náusea.
Para o existencialismo, o que define inicialmente a existência humana é a sua
indeterminação. Diferentemente dos demais seres, o ser humano encontra-se no
mundo com a responsabilidade de construir sua existência. E onde há liberdade
há imprevisibilidade.
Dessa forma, para o existencialismo de Sartre, a existência humana precede
qualquer noção de finalidade, de essência, de valor, de destinação prévia. Conju-
gando essa falta de sentido da realidade com a essencial liberdade humana, cha-
mada a atribuir sentido ao existir, o ser humano encontraria a angústia. Esse
sentimento é expressão de vida autêntica, de quem assume o seu viver, na incer-
teza implicada em todo projeto e decisão.
GALERIA NACIONAL, OSLO, NORUEGA

O grito (1893), de Edvard


Munch. Óleo, pastel e têmpera
sobre cartão, 91 cm × 73,5 cm.
Essa tela do norueguês
Edvard Munch representa a
angústia do ser humano em
profunda crise existencial,
expressando desespero. A
imagem de fundo nos permite
pensar no pôr do sol, e com
ele a ideia do anoitecer da
vida. As cores quentes do céu
contrastam com as águas
frias. Essa obra está inserida
no movimento expressionista,
focado na expressão dos
sentimentos e das ideias
e não no retrato de uma
realidade exterior. Ao fundo,
à esquerda, dois homens
eretos podem ser vistos
como a ausência de angústia.
Somente eles e a ponte
permanecem retos, todo o
resto encontra-se contorcido.

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Vejamos alguns textos da corrente existencialista que abordam o tema da angústia e da responsabilidade
humana por suas ações e pelas decorrências de suas decisões e escolhas.
O texto a seguir, de Jean-Paul Sartre, traz como reflexão central a ideia de que não há uma essência
humana, o que traria como consequência uma necessidade.

[...] se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser
que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz
Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência?
Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e
só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de
uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo
que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para
concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se
quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência.
O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do
existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade [...]. Porém, nada mais queremos
dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa. Pois queremos dizer
que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se
projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. [...]
Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse
modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é, de subme-
tê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável
por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individuali-
dade, mas que ele é responsável por todos os homens.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um Humanismo. Trad. Rita Correia Guedes.
São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 11-12. (Os pensadores).

PROBLEMATIZANDO
1. Leia a afirmação a seguir: Se Deus não existe, não há natureza humana.
• Nessa afirmação, qual seria um sinônimo para “natureza”?
• Estabeleça a relação entre essa ideia e a expressão: A existência precede a essência.
2. Para que haja natureza humana é preciso que haja um Deus criador? Mas, se houver um Deus cria-
dor de todas as coisas, o homem perde, por isso, a liberdade?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia as afirmações a seguir.
a. O caráter essencial da existência é a subjetividade.
b. A realidade é irracional por ser singular.
c. O homem é um produto de si mesmo.
• Com base nelas, redija um texto destacando três características do existencialismo.

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Situe os estudantes no contexto da neurociência, dos estudos relacionados ao sistema nervoso, uma das mais recentes investigações relacionadas às ciências da vida. Nesse contexto, pergunte: O
que é o indivíduo? Será que a mente humana é somente matéria física ou haverá algo que não se reduz à dimensão fisiológica, à comunicação entre neurônios?

6. O SER HUMANO SOB O OLHAR DA NEUROCIÊNCIA


A sociedade contemporânea está fortemente marcada por uma busca de superação da fragmentação
provocada pela ciência moderna. No ambiente das ciências, busca-se uma visão de mundo que seja um
todo. A cosmologia contemporânea apresenta o universo como uma rede de relações que inclui todos os
seus elementos. Tudo parece ser um fragmento do mundo físico.
Nesse horizonte, no qual as neurociências aparecem como saber central, como o ser humano é visto? Ele
faria parte de um todo físico. E os processos e os estados mentais, o que são? Seriam manifestações físicas
complexas, explicáveis fisicamente. Nesse contexto do pensamento contemporâneo, uma nova área ocupa
espaço na filosofia, a filosofia da mente.

RAWPIXEL/SHUTTERSTOCK
A neurociência envolve os estudos relacionados ao cérebro, ao comportamento, suas funções sensoriais e motoras. Na
foto, estudantes praticam o brainstorming, técnica de discussão em grupo que se vale da contribuição espontânea de
ideias por parte de todos os participantes, com o objetivo de resolver algum problema ou de conceber um trabalho criativo.

Retomando o tema da relação mente e corpo, abordado no primeiro eixo da primeira unidade, conhece-
mos a visão dualista que encontrou em Descartes sua máxima expressão. Em termos essenciais, o argumen-
to com o qual Descartes conclui que a mente é distinta do corpo é o seguinte: “Eu posso duvidar que o meu
corpo existe, mas não posso duvidar que eu existo”. Portanto, para Descartes, o ser é uma coisa distinta de
seu corpo. Com isso, Descartes afirmava a existência de duas substâncias. A mente seria uma substância
que existe independentemente do corpo.
A partir dos anos 30 do século XX, contra a visão dualista, posicionou-se o behaviorismo analítico dos
positivistas vienenses. Desde 1949, Gilbert Ryle tem sido uma das maiores referências contrárias à visão
dualista, no contexto das novas descobertas das ciências contemporâneas, que já não aceitam mais o argu-
mento cartesiano.
Com a publicação do livro O conceito de mente, de Gilbert Ryle, as descobertas e as transformações no
campo da filosofia da mente têm sido cada vez mais rápidas e abrangentes, como reflexos das descobertas

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científicas em neurofisiologia, psicologia cognitiva e inteligência artificial. Falar em mente, a partir de então,
equivale a referir-se a estados mentais.
Em sua obra Filosofia da mente, Claudio Costa apresenta uma classificação das várias espécies de esta-
dos mentais: 1. Sensações (dores, calafrios etc.); 2. Percepções (ver, ouvir, tocar, cheirar etc.); 3. Estados qua-
se-perceptuais (sonhar, imaginar, alucinar etc.); 4. Emoções (amor, ódio, alegria, medo etc.); 5. Cognições
(pensar, raciocinar, crer etc.); 6. Estados conativos (desejar, querer, intencionar etc.).
Na consideração desses estados mentais, a pergunta fundamental foi elaborada nestes termos: De que
natureza são eles? São meramente biológicos? A neurociência, como ciência do cérebro, está apenas come-
çando a dar os primeiros passos, mas não se sustenta mais a ideia de que algo que acontece no corpo não
chegaria a afetar a mente.

O desenvolvimento da ciência biológica pôs termo à necessidade de explicar a vida por meio de
forças não-físicas. A vida é hoje naturalmente entendida como uma realidade puramente física que
emerge da matéria orgânica, envolvendo processos bioquímicos e biofísicos extraordinariamente
complexos e sendo em sua totalidade redutível aos mesmos. Ora, tendo em vista tal história, pode-
mos prever que o mesmo que aconteceu com a vida acontecerá com a consciência, no dia em que
dispusermos de uma neurociência desenvolvida. Quando a neurociência for capaz de explicar como
o cérebro funciona [...], a consciência passará a ser naturalmente entendida como uma propriedade
física emergente da matéria biológica e completamente redutível a ela. Nesse dia, o que hoje se cha-
ma de o mistério da consciência se desvanecerá como a bruma da manhã.
COSTA, Claudio. Filosofia da mente. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 14-15. (Passo-a-passo).

PROBLEMATIZANDO
1. Como você se posiciona diante da concepção contemporânea segundo a qual o ser humano é so-
mente um complexo físico, uma única substância?

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAGEM

SUGESTÃO DE FILMES
Temática: Liberdade, sentido e condição humana Filme: A liberdade é azul (França, 1993). Direção:
Filme: Menina de ouro (Estados Unidos, 2004). Dire- Krzysztof Kieslowski. Após um trágico acidente, em
ção: Clint Eastwood. Um treinador de boxe, após haver que morrem seu marido e sua filha, uma famosa
rompido com sua filha, se isola e não mais se envolve modelo (interpretada por Juliette Binoche) decide
com ninguém. Contudo, certo dia, entra em seu gi- renunciar à vida, lançando-se ao suicídio. Após uma
násio a boxeadora Maggie Fitzgerald. Os dois iniciam tentativa fracassada, ela volta a se interessar pela
uma trágica história de amor, em meio à força e a fra- existência, ao se envolver com a obra musical inaca-
gilidade da vida. bada de seu marido.

SUGESTÃO DE LEITURAS
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um Humanis-
1998. mo. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e
Nova Cultural, 1999. (Os pensadores). como representação. São Paulo: Unesp, 2005.

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2
Eixo Temático

EXPERIÊNCIA E
RACIONALIDADE

bre :
e r so
d
en

pr
• A filosofia como ordenadora e classificadora
ia do saber consolidado na ciência em
va
Augusto Comte.
• Os estágios da humanidade segundo Comte.
Você

• A atitude cientificista.
• O papel da filosofia no positivismo lógico do
Círculo de Viena.
• Os conectivos, a tabela-verdade e as formas
de enunciado na lógica simbólica.
• A distinção entre ciência e outros campos do
conhecimento e a crítica ao procedimento
indutivo em Karl Popper.
• As mudanças no pensamento crítico da Escola
de Frankfurt.
• A crítica à razão iluminista e a interferência
da técnica em diferentes campos do saber
nos pensadores frankfurtianos.
• Os limites éticos para os procedimentos
científicos e tecnológicos.

Temas:
1. O positivismo e o progresso do 3. A lógica simbólica
espírito humano 4. A filosofia da ciência de Karl Popper
2. A filosofia da linguagem e o 5. A crise da razão: a Escola de Frankfurt
positivismo lógico
6. Bioética: princípios e fundamentos

O tema do conhecimento na sociedade contemporânea abre espaço para a construção de um projeto interdisciplinar de reflexão filosófica relacionada ao estudo das implicações éticas dos
procedimentos científicos e tecnológicos. Entre as muitas questões interdisciplinares, propomos: Existe neutralidade nos caminhos da ciência? Deve haver limites nos procedimentos da ciência,
em seus modos de fazer pesquisa? Deve haver limites éticos na aplicação do resultado da pesquisa científica? Quais são as áreas que merecem especial cuidado no que tange à manipulação
técnico-científica?

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Inicie esse eixo temático sondando os estudantes sobre qual ciência ou quais ciências estão atualmente no centro das atenções. Considerando o atual contexto técnico-científico, pergunte a eles:
que papel a filosofia deveria assumir? Estimule-os, inicialmente, a pensarem nessa problematização.
1. O POSITIVISMO E O PROgRESSO DO ESP RITO HUMANO
MUSEU DE BELAS ARTES DA BASILEIA, SUÍÇA

Vista de Paris do bairro de Montmartre (1886), de Vincent Van Gogh. Óleo sobre tela, 39 cm × 62 cm.

A Re l I i le imi m m e
Embora Augusto Comte (1798-1857) tenha sido um pensador moderno, a nossa opção pela aborda-
gem do tema do positivismo dentro da filosofia contemporânea deve-se, especialmente, ao fato de ele ter
representado um novo espírito de época, no qual o conhecimento estava vinculado ao universo técnico e
científico. E, nesse horizonte, a filosofia se deslocou para uma nova função, de classificação e de ordenação
de um saber consolidado na ciência.

Movido pelo otimismo que decorre da crença no progresso tecnológico, o positivismo desenvol-
veu um gigantesco esforço para tornar o homem consciente de seu destino histórico, profundamen-
te comprometido com a vocação tecnocientífica do mundo moderno. Nesse sentido, Comte repre-
senta a sobrevivência e a afirmação do ideal iluminista adaptado à era industrial. [...] Para Comte,
a filosofia não deve ser uma doutrina no sentido tradicional, isto é, não deve apresentar um corpo
próprio de saber. Deve conter muito mais um sentido e uma orientação, e atuar como coordenadora
do sistema geral de conhecimento.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.) História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 397. (Os pensadores).

Na primeira metade do século XIX, a cidade de Paris, local em que Augusto Comte passou grande par-
te da vida, estava inserida em um ambiente de muitos conflitos. Segundo Comte, o contexto da Europa
desde o século XIV pode ser caracterizado como um período de crise, com dois movimentos fundamen-
tais: um de destruição e superação de uma visão de mundo, e outro de construção de um novo horizonte.

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Por um lado, buscava-se a superação da ordem feudal e dos prin-

TONY TOUILLON
cípios do catolicismo que norteavam a vida. Por outro lado, a nova
sociedade solicitava um saber científico, empírico, voltado para a
indústria e para a técnica.
Apesar do contexto de conflitos, um dos elementos centrais do
novo momento histórico foi o desenvolvimento de uma visão oti-
mista, que buscaria uma sociedade pacífica, baseada nos valores da
liberdade e da cooperação, e não da violência entre povos. Por isso,
o conceito de humanidade foi central na visão positivista de Augus-
to Comte, que buscou um projeto de reorganização da sociedade
por meio de uma reforma intelectual. Acompanhe.

Retrato de
Augusto Comte.

O núcleo da filosofia de Comte radica na ideia de que a sociedade só pode ser convenientemente
reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Com isso, distingue-se de
outros filósofos de sua época, como Saint-Simon e Fourier, preocupados também com a reforma das
instituições, mas que prescreviam modos mais diretos para efetivá-la. Enquanto esses pensadores
pregavam a ação prática imediata, Comte achava que antes disso seria necessário fornecer aos ho-
mens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo.
GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos.
São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. IX-X. (Os pensadores).

Em tal contexto de valorização da humanidade que os estudos científicos deveriam ser realizados, bus-
cava-se não o saber pelo saber, mas a aplicabilidade desse saber para o progresso da humanidade. Comte
indica isso ao se referir à dimensão subjetiva da investigação do mundo físico.

O universo deve ser estudado não por si mesmo, mas para o homem, ou melhor, para a humanidade.
Qualquer outro desígnio seria no fundo tão pouco racional quanto moral. Pois é somente como
subjetivas, nunca como puramente objetivas, que nossas especulações reais podem ser verdadeira-
mente satisfatórias, quando se limitam a descobrir na economia natural as leis que, duma maneira
mais ou menos direta, influenciam com efeito nossos destinos.
COMTE, Augusto. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. In: GIANNOTTI, José Arthur (Org.)
Comte. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 113. (Os pensadores).

A ideia de progresso do espírito humano e de estágios evolutivos permite-nos uma


associação à ideia de evolucionismo cultural ou de darwinismo social, que os estudantes
O e e i m estudam em Sociologia. Estimule-os a perceberem esse espírito de época e suas possíveis
decorrências nos diferentes âmbitos da vida.

Para chegar à reorganização da sociedade, mediante uma completa reforma intelectual do ser humano,
Comte partiu de uma filosofia da história na qual mostra a evolução do espírito humano. Encontramos essa
reflexão em sua “lei dos três estados”, que indica o caminho que o espírito humano e as ciências fizeram
para chegar ao estágio positivo.
Nessa perspectiva, o primeiro estado, que corresponderia à infância da humanidade, referia-se ao está-
gio teológico, voltado à busca de soluções absolutas para os problemas humanos a partir da imaginação,
da fé e do dogmatismo.

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A filosofia teológica foi, durante a infância da humanidade, a única adequada para sistematizar a
sociedade, unicamente porque era então a fonte exclusiva duma certa harmonia mental.
COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivo. In: GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte. Trad.
José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 54. (Os pensadores).

O segundo estado da humanidade, que caracterizaria o idealismo juvenil, referia-se ao estágio metafísi-
co, no qual o espírito humano ainda estaria voltado para a busca da natureza íntima das coisas, sua origem
e seu destino, por meio da argumentação abstrata.

A existência humana não podia, pois, sistematizar-se plenamente, enquanto o regime teológico
prevalecesse, porque nossos sentimentos e nossos atos imprimiam então a nossos pensamentos
dois impulsos essencialmente inconciliáveis. Seria ademais supérfluo apreciar aqui a inanidade ne-
cessária da coordenação metafísica que, a despeito de suas pretensões absolutas, nunca pôde retirar
da teologia o domínio afetivo, sendo sempre menos própria a abarcar a vida ativa.
COMTE, Augusto. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. In: GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte.
Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 101. (Os pensadores).

Finalmente, o terceiro e último estado da humanidade constituiria o estágio mais evoluído, do homem
adulto, que superou as crenças e superstições da infância e as idealizações da juventude. Tratava-se do es-
tágio positivo ou físico, no qual a imaginação e a argumentação estariam subordinadas à observação.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções


absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos
fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do racio-
cínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude.
A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação
estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progres-
so da ciência tende cada vez mais a diminuir.
COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. In: GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte.
Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 15-17. (Os pensadores).

A revolução moderna, segundo Comte, consistiria nessa gradual passagem do dogmatismo teológico-
-filosófico para o humanismo e o positivismo da ciência. Ele estava convencido de que a inteligência huma-
na não conseguiria ter acesso às causas essenciais ou primeiras e finais da vida. Seria preciso renunciar a
tal pretensão e concentrar-se na observação e na percepção das relações que existem entre os fenômenos
naturais e sociais.
Dessa forma, o conhecimento seguro viria com o método científico, o único capaz de compreender as
leis da natureza e colaborar para o efetivo progresso da humanidade, não só científico, mas também moral.
Contudo, para que isso acontecesse, o progresso moral precisaria considerar as origens e as motivações
do agir humano. Segundo Comte, as ações humanas brotariam de dez instintos, sendo a maior parte deles
de natureza individualista ou egoísta, e apenas alguns de natureza altruísta, voltados para a dimensão polí-
tica ou coletiva. Considerando que as dimensões mais cultivadas cresceriam e floresceriam, Comte afirmou

300

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que o desenvolvimento moral do ser humano dependeria do cultivo dos poucos
impulsos políticos que o ser humano apresentava, ao mesmo tempo em que a
sociedade deveria agir no sentido da contenção ou compressão dos impulsos
egoístas.

O Oriente e o Ocidente devem, pois, procurar, fora de toda teologia ou


metafísica, as bases sistemáticas de sua comunhão intelectual e moral. Esta
fusão tão esperada, e que deverá estender-se em seguida gradualmente à
totalidade de nossa espécie, não pode evidentemente provir senão do posi-
tivismo, isto é, de uma doutrina caracterizada sempre pela combinação da
realidade com a utilidade.
COMTE, Augusto. Catecismo positivista. In: GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte.
Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 121. (Os pensadores)

No Brasil, o positivismo exerceu profunda influência no pensamento de muitos


intelectuais e no movimento republicano, no final do século XIX. Uma de suas
mais marcantes contribuições aconteceu na atuação de Benjamin Constant, um
dos fundadores da sociedade positivista do Brasil, em 1876.
ESFERA/SHUTTERSTOCK

O lema do positivismo,
que estabelece o amor à
humanidade por princípio,
a ordem por base e o
progresso por fim, está
presente na bandeira do
Brasil na frase “Ordem e
progresso”. Dessa forma, na
base motivacional das ações
humanas estaria o amor.
Com esse amor, se deveria
conservar tudo o que é bom,
belo e positivo, garantindo
e preservando a ordem. Na
preservação da positividade,
a ação individual e coletiva
contribuiria para o progresso
da humanidade.

VOC SABIA
O ie i i m
É a tendência de considerar que as ciências, em particular as ciências exa-
tas e da natureza, são portadoras do único modelo de conhecimento verda-
deiro e seguro. É a atitude de quem atribui excessiva importância à ciência,
em comparação com outras formas de conhecimento e atividades humanas.
Nessa concepção, aqueles campos inatingíveis para a ciência serão consi-
derados fantasiosos e irrelevantes, destituídos de sentido. Entre essas for-
mas, estariam a religião, a arte, e toda forma de metafísica.

301

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PROBLEMATIZANDO
1. O positivismo é a culminância, o ponto de chegada de todo o otimismo moderno. Nele se realiza
uma concepção de ciência voltada para o progresso da humanidade, tanto moralmente quanto
intelectualmente. Quais implicações essa concepção trouxe para a educação? O que seria uma
educação de formatação positivista?
• Converse com os colegas e apresente argumentos que justifiquem a sua percepção.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir.

A ciência é o único conhecimento possível, e o método da ciência é o único válido; portanto, o


recurso a causas ou princípios não acessíveis ao método da ciência não dá origem a conhecimentos;
a metafísica, que recorre a tal método, não tem nenhum valor. O método da ciência é puramente
descritivo, no sentido de descrever os fatos e mostrar as relações constantes entre os fatos expressos
pelas leis, que permitem a previsão dos próprios fatos.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 909.

• Identifique e caracterize a concepção filosófica subjacente a este trecho, explicitando seus pressu-
postos e suas características.
2. De acordo com Augusto Comte, o espírito humano fez uma trajetória que se iniciou nas superstições
e nas crenças, passando por idealismos para finalmente tornar-se espírito positivo. Redija um texto
desenvolvendo essa ideia e caracterizando a teoria do progresso do espírito.
Para introduzir este tema, retome com os estudantes a reflexão sobre o lugar e a identidade da filosofia no universo das ciências contemporâneas. Ela deveria ser basicamente um método lógico
de análise do pensamento? Deveria ficar reduzida a um método de análise do significado das proposições da ciência? Deveria ainda permanecer no âmbito do pragmático, do socialmente útil ou
ainda cabe relacionar a filosofia à metafísica, ao pensamento conceitual, à busca de essências?
2. A FILOSOFIA DA LINgUAgEM E O POSITIVISMO L gICO
Bertrand Russell (1872-1970) foi um dos filósofos mais expressivos da crítica ao idealismo, embora tenha
sido um idealista no começo de sua trajetória filosófica e na crítica dirigida à filosofia da linguagem. Para
ele, uma nova forma de filosofia era necessária. Sua trajetória tradicional pertence ao empirismo inglês e ao
realismo, sendo crítico da metafísica.
Para Russell, a filosofia enquanto metafísica seria estéril, sua fecundidade viria na medida do aprendi-
zado da linguagem das ciências, especialmente da lógica matemática. Sob seu ponto de vista, a lógica e
o empirismo fariam a melhor articulação existente. A lógica ofereceria as formas do raciocínio correto e o
empirismo proporcionaria as premissas, as proposições, que podem ser verdadeiras ou falsas, conforme
veremos no tema sobre lógica.
De acordo com o filósofo, em sintonia com Gottlob Frege (1848-1925), a matemática seria filha da lógi-
ca simbólica. Ela poderia ser reduzida a um ramo da lógica, afirmando que os procedimentos de cálculo e
de derivação da matemática são puramente formais.
A preocupação central de Russell consistia na análise atenta da linguagem. E o crivo ou o funil dessa
linguagem seria a lógica, atento à relação que a linguagem deveria ter com os fatos.
Suas maiores críticas foram dirigidas à filosofia analítica, por descuidar da linguagem técnica e não bus-
car o sentido das coisas e da realidade, mas ficar ocupada com o sentido das próprias palavras. O empirismo
de Russell alimentou sua inquietude, no sentido de buscar a conexão da palavra com a realidade empírica.

302

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O ii i m l i C l e Vie
Após a Primeira Guerra Mundial, de 1922 a 1936, um grupo de filósofos passou a se reunir semanal-
mente na Universidade de Viena. Esses filósofos tinham uma orientação antimetafísica, eram contrários ao
idealismo alemão e tinham em comum uma perspectiva empírica, de orientação lógico-científica. Esse gru-
po ficou conhecido como o Círculo de Viena, e reuniu nomes como Hans Hahn, Philipp Frank, Otto Neurath,
Rudolf Carnap, sob a coordenação de Moritz Schlick. Seu sistema ficou conhecido como positivismo lógico
ou empirismo lógico.
Com a descoberta da teoria da relatividade de Einstein (1879-1955) e os grandes avanços na física, na ló-
gica e na matemática, os filósofos do Círculo de Viena perceberam que a filosofia teria que assumir uma pos-
tura completamente diferente da tradicional. Ela deveria assumir o mesmo critério do rigor e da clareza que
existiriam nas ciências matemáticas e naturais, além de ter que apresentar uma metodologia mais precisa.
A metafísica tradicional, sob a ótica do Círculo de Viena, não resistiria à análise lógica, pois seu conteúdo
estaria distante de uma realidade empírica possível, sobre a qual se poderia aplicar o critério da correção.
Em 1929, o Círculo de Viena lançou um manifesto intitulado A concepção científica do mundo, no qual
expressou as delimitações do trabalho da filosofia.

O grupo negava ao trabalho filosófico o poder de construir teorias que exprimissem um conheci-
mento mais aprofundado ou elevado do que o das ciências particulares. A filosofia devia limitar-se
a esclarecer logicamente problemas e enunciados.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 429. (Os pensadores).

Devido ao assassinato do coordenador do grupo, Moritz Schlick, por um de seus alunos, que era adepto
do movimento nazista, os membros do grupo se dispersaram e o movimento filosófico se desintegrou em
1938, depois que a Alemanha anexou a Áustria.

O estudo da lógica simbólica é uma excelente oportunidade para trabalhar de modo interdisciplinar com
Matemática, em busca de um pensamento mais rigoroso, estruturado logicamente. Para iniciar esse estudo,
3. A L gICA SIMB LICA estimule os estudantes a perceberem, inicialmente, as possibilidades que a lógica simbólica abre nos campos da
comunicação e do conhecimento.
Entre os precursores e fundadores da lógica moderna, também conhecida como lógica simbólica ou lógica
matemática, que nasceu no final do século XIX e início do século XX, merecem destaque George Boole, Au-
gustus De Morgan, Gottlob Frege, Bertrand Russell e Alfred North Whitehead.
BEVAN VON WEICHARDT/SHUTTERSTOCK

UNIVERSITÄTSBIBLIOTHEK, JENA, ALEMANHA

Gottlob Frege.

303

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Contudo, foi com Gottlob Frege que tivemos acesso à criação de um sistema de representação simbólica
da estrutura dos enunciados lógicos e das relações que existem entre eles. E com esse sistema temos maior
precisão nas definições, notações e demonstrações.
Entre as diferentes maneiras com as quais podemos nos referir a essa lógica, diremos que se trata de
conjuntos de regras de cálculo aplicáveis a combinações de símbolos exclusivamente em razão de sua forma
de combinação, pela mediação dos operadores que os conectam, e não em razão de seus significados.

P i
Em conformidade com os princípios fundamentais da lógica aristotélica, para analisar a veracidade de
uma sentença, existe o princípio do terceiro excluído, segundo o qual uma sentença é verdadeira ou falsa,
não podendo haver outra possibilidade. E existe, também, o princípio da não contradição, segundo o qual
uma mesma sentença não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.
Diante desses princípios da lógica clássica, vejamos como ficaria, em termos de verdade ou falsidade,
por exemplo, a afirmativa “eu estou mentindo”. Se a frase for verdadeira, então ela é falsa, pois vai contra
o que está dizendo. Mas, se a frase for falsa, não é verdade o que ela enuncia; e se não for verdade que
“eu estou mentindo”, então isso não é uma mentira, e a frase é verdadeira. Assim, concluindo, se a frase
for verdadeira, ela será falsa; e, se for falsa, será verdadeira. Isso contradiz os princípios da lógica clássica.
Portanto, uma proposição jamais será um paradoxo e um paradoxo jamais será uma proposição.
Vejamos outro exemplo de paradoxo muito clássico, o paradoxo do barbeiro (barbeiro de Sevilha), deri-
vado do paradoxo de Russell: “Havia em Sevilha um barbeiro que só cortava o cabelo de todas as pessoas
que não cortavam o próprio cabelo”. Assim, a clássica pergunta é: “O barbeiro de Sevilha cortava o próprio
cabelo?”. Se a resposta for sim, ele não poderá cortar o próprio cabelo, uma vez que só corta o cabelo de
quem não corta o próprio cabelo. Se a resposta for não, ou seja, ele não corta o próprio cabelo, então ele
deveria cortar, pela mesma razão.
Com isso, fica evidente que em nossa linguagem cotidiana nos deparamos com frases que trazem con-
tradições internas. Certamente você já ouviu mais de uma vez a frase “nunca diga nunca”. A mesma auto-
contradição encontramos na afirmativa “toda regra tem exceção”, ou “não ouça o que os outros dizem”,
ou ainda “esta frase é falsa”.

P i e im le e m
Conforme já estudamos na lógica aristotélica, a proposição é uma sentença declarativa que pode ser
verdadeira ou falsa. Nem toda sentença é uma proposição. Por exemplo, não podemos saber se a sentença
–x + y > 8 é verdadeira ou falsa, pois não sabemos o valor das variáveis. Da mesma forma, a sentença Ela é
elegante não é uma proposição, por causa da indefinição do pronome ela.
As proposições podem ser simples ou compostas. Quando a proposição não vem acompanhada de outra
proposição, ela é classificada como simples. Convencionou-se representá-la por letras minúsculas do alfabe-
to latino, a partir da letra . Assim, por exemplo:

– O Nordeste brasileiro é rico em recursos naturais.


q – A corrupção é um problema do Brasil.

Quando há duas ou mais proposições ligadas entre si por um conectivo lógico (e, ou, se..., então..., se e
somente se), formando uma única sentença, então teremos uma proposição composta. Esta é representada
também por letras do alfabeto latino a partir do , mas em letras maiúsculas. Por exemplo:

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P – No Brasil há uma democracia e na Dinamarca há uma monarquia.
Q – A criança pode ir para a creche ou pode ficar em casa com alguém que tome conta dela.
R – Ou Alberto é mineiro ou é carioca.
S – Se você vier, então não sairei.
T – O Brasil vencerá a corrupção se e somente se combater a impunidade com rigor.

Os conectivos lógicos são representados conforme o quadro a seguir:

CONECTIVO REPRESENTAÇÃO
SIMBÓLICA
NEGAÇÃO “não” “ ” ou “ ”
CONJUNÇÃO “e” “.” ou “∧”
DISJUNÇÃO “ou” “∨” (inclusiva), que admite
duas alternativas.
ou
“∨∨” (exclusiva), aceita apenas
uma ou outra alternativa; uma
exclui a outra.
IMPLICAÇÃO Condicional: “se..., então...” →
EQUIVALÊNCIA Bicondicional, bi-implicação ↔
“...se e somente se”.

Para representar todos os valores lógicos possíveis de uma proposição, podemos usar as tabelas-verdade,
como veremos a seguir.

Ne m l
Desde Aristóteles, a tabela-verdade que representa o valor lógico de uma proposição ( ) e sua negação ( ) é:

V F
F V

Para entender melhor, vamos a um exemplo:

– Todos os gatos são brancos.


– Existe ao menos um gato não branco.

Observe a tabela: Se for verdade (V) que “todos os gatos são brancos” ( ), então é falso (F) que “existe
ao menos um gato não branco” ( ). Contudo, se for falso que “todos os gatos são brancos”, é verdadeiro
que “existe ao menos um gato não branco”.
É importante notar que tanto a negação de “todos” como a de “nenhum” é “ao menos um” ou “al-
gum”. Voltando ao exemplo, para invalidar a proposição de que “todos os gatos são brancos”, basta que
exista “algum” ou “ao menos um” gato não branco. Vejamos mais exemplos:

305

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P i Ne
Todos os seres humanos são vegetarianos. Algum ser humano não é vegetariano.
Nenhum ser humano é vegetariano. Algum ser humano é vegetariano.
Alguns seres humanos são vegetarianos. Nenhum ser humano é vegetariano.
Alguns seres humanos não são vegetarianos. Todos os seres humanos são vegetarianos.

C m l ∧
O conectivo "e" é utilizado para unir duas proposições formando uma terceira, que se tor-
na a proposição composta. O resultado dessa união somente será verdadeiro se as duas pro-
posições ( e q) forem verdadeiras. Se pelo menos uma delas for falsa, o resultado será falso.
∧ q é lido como “ e q” e é chamado de conjunção de p e q.
A tabela-verdade da conjunção ( ∧ q) será da seguinte forma:

q ∧
V V V
V F F
F V F
F F F

Perceba que a única situação em que ∧ q será verdadeira é quando ambas as proposições forem ver-
dadeiras.
Vejamos, por exemplo, o valor lógico (verdadeiro ou falso) da seguinte proposição:

O gelo é quente e o açúcar é doce.

O valor lógico é falso, pois a primeira proposição é falsa e a segunda é verdadeira (3a linha da tabela-
-verdade).

O mercúrio é um líquido e o Brasil é dividido em 27 unidades federativas,


sendo 26 estados e um Distrito Federal.

Tanto a primeira proposição como a segunda são verdadeiras, então o valor lógico dessa proposição é
verdadeiro (1a linha da tabela-verdade).

Di im l ∨
Na língua portuguesa, podemos usar o conectivo “ou” de duas formas, por isso a disjunção pode ser
inclusiva ou exclusiva.
Veja que é possível as duas proposições serem verdadeiras: “Hoje é segunda-feira” e “Hoje é um belo dia”.
Por isso, caso as duas proposições sejam verdadeiras, aceita-se como verdade.
Considerando duas proposições e q, a disjunção dessas proposições será a proposição composta
ou ( ∨ q) e será verdadeira quando pelo menos uma das proposições for verdadeira. Dizendo de outro
modo, a disjunção só será falsa quando ambas as proposições forem falsas.

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Vejamos como fica na tabela-verdade:

q ∨
V V V
V F V
F V V
F F F

• Di i l i : havendo duas proposições, ambas podem ser verdadeiras (símbolo ∨).


Por exemplo:

Hoje é segunda-feira ( ) ou hoje é um belo dia (q).

• Di e l i : havendo duas proposições, somente uma pode ser verdadeira, nunca ambas
(símbolo ∨∨).
Por exemplo:

Ou hoje é segunda-feira ( ) ou hoje é domingo (q).

Aqui, percebe-se que é impossível que ambas sejam verdadeiras ao mesmo tempo.
Vejamos como fica na tabela-verdade:

q ∨∨
V V F
V F V
F V V
F F F

Repare na primeira linha a diferença entre as duas disjunções. Nesse caso, se os dois enunciados forem
verdadeiros, o valor lógico na tabela-verdade será falso.

C i i l
“Se então q” é representado simbolicamente por → q, sendo chamado de hipótese e q de conclusão.
A proposição condicional “se então q” é uma proposição composta que, na maioria das vezes, tem
valor lógico verdadeiro. Na proposição condicional, o é condição suficiente para o q. E o q é condição
necessária para o . Portanto, a proposição só poderá ter valor lógico falso no caso em que a proposição
é verdadeira e a proposição q é falsa; em outras palavras, quando a hipótese é V e a conclusão é F.
Vejamos a tabela-verdade da proposição condicional:

q →
V V V
V F F
F V V
F F V

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Observe as proposições:

– Se Pedro nasceu em Belo Horizonte,


q – então Pedro é mineiro.

Perceba que a verdade de é suficiente para garantir a verdade de q. Igualmente, a condição q é neces-
sária para a condição ser verdadeira.

Se Pedro for brasileiro menor de 18 anos, Pedro não poderá se candidatar ao cargo de deputado.

É considerada logicamente verdadeira (1a linha da tabela-verdade).

Se Pedro for brasileiro maior de 35 anos, então Pedro não poderá ser eleito presidente da República.

É considerada logicamente falsa, pois a primeira proposição é verdadeira e a segunda é falsa. Essa é a
única possibilidade de uma condicional ser falsa (2a linha da tabela-verdade.) Na proposição condicional,
o é condição suficiente para o q. E o q é condição necessária para o . Mas, nesse caso, a condição sufi-
ciente não foi respeitada, ou seja, não existe a condicional.

Se Pedro for brasileiro maior de 29 anos, ele poderá ser candidato a governador do seu Estado.

É considerada logicamente verdadeira (3a linha da tabela-verdade).

Se baleia é peixe, então peixe é mamífero.

É considerada logicamente verdadeira (4a linha da tabela-verdade).

ATIVIDADES
1. A tabela a seguir apresenta uma retomada da disjunção inclusiva combinada com a proposição con-
dicional.
• Resolva:

q q ∨ ∨ →
V V F V F F

V F V V F F

F V F F V V

F F V V V V

• Observe que na quarta coluna foi resolvida a disjunção inclusiva conforme tabela-verdade da
disjunção.
• Observe que na última coluna foi realizada a condicional entre a quarta e a quinta colunas, con-
forme tabela-verdade da proposição condicional.

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2. Resolva:

q ∨ → → ∨ → → ∧ →
V V V V V V V V

V V F V F F F F

V F V V V V V V

V F F V F V F F

F V V V V V V V

F V F V V F F F

F F V F V V V V

F F F F V V V V

• Observe que a quarta coluna realiza a tabela-verdade da inclusão.


• Observe que a quinta e a sexta colunas realizam a tabela-verdade da condicional.
• Observe que a sétima coluna retoma o resultado da quarta coluna e faz a condicional com a ter-
ceira coluna.
• Observe que a última coluna retoma o resultado da condicional da quinta coluna e realiza a con-
junção com o resultado da condicional da sexta coluna. Para essa resolução, veja a tabela-verdade
da conjunção.

E i l i i i i l
Conectivo: “Se e somente se” (símbolo ↔)
Na equivalência, a relação é bicondicional e não mais somente em sentido único, como na sentença
condicional. Ambas as proposições são condições suficientes e necessárias. Assim, se os enunciados forem
ambos verdadeiros ou ambos falsos, eles tornam a sentença bicondicional de valor lógico verdadeiro.
Exemplos:

Nessa via, Pedro iria bater de frente com outro carro se e somente se estivesse na contramão.
A criança seria atropelada se e somente se ficasse na rua.
O político ‘x’ seria cassado se e somente se não renunciasse.

Vejamos a tabela-verdade da proposição bicondicional:

q ↔
V V V
V F F
F V F
F F V

Repare na primeira e na quarta linhas. Na equivalência, a sentença bicondicional terá valor lógico de
verdade somente se ambas forem verdadeiras ou falsas. Por isso, denomina-se equivalência.

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Re i m
Observe os dois quadros a seguir:

– O réu é culpado.
q – O réu é condenado.
– O réu não é culpado.
∨ q – O réu é culpado ou o réu é condenado.
∧ q – O réu é culpado e o réu é condenado.
→ q – Se o réu é culpado, então o réu é condenado.
↔ q – O réu é culpado se e somente se o réu é condenado.

Seja – Virtude é conquista


q – Virtude é equilíbrio.

( ∨ q) – A virtude é uma conquista ou a virtude é equilíbrio.


( ∧ q) – A virtude é conquista e equilíbrio.
( → q) – Se a virtude é conquista, então é equilíbrio.
( ∧ q) – A virtude não é conquista, nem equilíbrio.

Uma proposição, obedecendo ao princípio do terceiro excluído, poderá ser falsa ou verdadeira, não
admitindo outro valor lógico. Igualmente, vimos que uma proposição não pode ser simultaneamente ver-
dadeira e falsa.
Assim, a proposição composta “ ∨ q” será verdadeira ou falsa. Se for verdadeiro e q for verda-
deiro, então o valor lógico será verdadeiro. Agora, considere a proposição “ ∧ q”. Nesse caso, se for
verdadeiro e q for falso, como ficará o valor-verdade? O que resulta da junção “verdade e falso”? O valor
lógico será falso.
Assim, cada conectivo produz uma regra para a proposição composta, que deveremos sempre seguir.
Do que, então, deveremos sempre nos lembrar? Inicialmente, dos princípios do terceiro excluído e da
não contradição e, agora, da regra de cada conectivo, a tabela-verdade.
Para a composição da tabela-verdade, consideram-se as proposições e q. São quatro as possibilidades
de combinação: V e V, V e F, F e V, F e F.
Vejamos:

q ∨ ∧ → ↔
V V F V V V V
V F F V F F F
F V V V F V F
F F V F F V V

Na terceira coluna, temos a regra da negação. Nesse caso, basta fazer a inversão da proposição original.
Se for verdadeira, sua negação implicará na troca do valor, passando a ser falsa, e vice-versa.
Na quarta coluna, temos a regra da disjunção (“ou”), segundo a qual o valor será verdade quando, pelo
menos uma das proposições ou q for verdadeira. Em outros termos, o valor-verdade da proposição será
falso somente se ambas as proposições forem falsas.

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Na quinta coluna, temos a regra da conjunção (“e”), segundo a qual o resultado dessa união somente
será verdadeiro se as duas proposições ( e q) forem verdadeiras. Se pelo menos uma delas for falsa, o re-
sultado do valor lógico será falso.
Na sexta coluna, encontramos a regra da condicional (“se..., então”), segundo a qual o valor lógico
só não será verdadeiro se a proposição for verdadeira e a proposição q for falsa; nos demais casos, será
sempre verdadeiro.
Na sétima coluna, temos a proposição bicondicional (“se e somente se”), segundo a qual se os enunciados
forem ambos verdadeiros ou ambos falsos, eles tornam a sentença bicondicional de valor lógico verdadeiro.

ATIVIDADES
1. Faça a resolução, preenchendo cada coluna da tabela-verdade com o valor lógico.

q q ∨ ∧ ∧ q ∨ q

V V F F V V F F

V F F V V F F V

F V V F V F F V

F F V V F F V V

• Observe a sétima coluna. Nela está sendo solicitada a conjunção (“e”) de e de q, resolvidas na
terceira e quarta colunas. Recordando a regra da conjunção, o valor lógico será verdadeiro somen-
te se ambas as proposições forem verdadeiras.
• Observe a oitava coluna. Nela vem solicitada a disjunção, cuja regra afirma que o valor lógico será
falso somente se ambas as proposições forem falsas.
2. Determine o valor-verdade da sentença [ ∧ (~q → ~ ) ] ↔ [ ~ ∧ (q ∨ ~ ) ], tendo sido estabelecido
que o valor lógico de ( ) = V; o valor (q) = F e o valor ( ) = V.
3. Determine o valor da sentença ( ∨ q) → [ (~ ↔ ) ^ (q ∨ ) ], tendo sido estabelecido que o valor
= V, valor q = F, valor = F.
4. Considere que as letras , q, e representam proposições e que os símbolos ~, ∧, ∨ e → sejam ope-
radores lógicos que constroem novas proposições e significam , e, ee , respectivamente.
Cada proposição assume um único valor (valor-verdade), que pode ser verdadeiro (V) ou falso (F),
mas nunca ambos.
Com base nesse texto, julgue os itens a seguir:
. Se as proposições e q são ambas verdadeiras, então a proposição (~ ) ∨ (~q) também é verda-
deira. Faça a resolução, para confirmar ou negar.
. Se a proposição é verdadeira e a proposição é falsa, então a proposição ~ → (~ ) é falsa.
. A proposição simbólica [( ∧ q) ∨ ], possui, no máximo, quatro avaliações V. Defina se isso está
certo ou errado.
. Se as proposições e q são verdadeiras e a proposição é falsa, então a proposição ( ∧ ) → (~q)
é verdadeira. Defina se isso está correto.
5. Verifique se as seguintes sentenças podem ser definidas como proposição:
3 + 7 > 10
x + 4 y >12
6. Leia a frase a seguir e defina se ela pode ser uma proposição:
“Esta frase é falsa.”

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T l i
Por tautologia entendemos a proposição composta que é sempre verdadeira, independentemente dos
valores lógicos das proposições simples que a compõem.
Por exemplo: “Você vai passar na prova ou não vai passar na prova”. Percebe-se que o resultado será
sempre verdadeiro.
Vejamos o exemplo: ∨ é uma tautologia, pois é sempre verdadeira para qualquer valor lógico da
proposição. Isso pode ser aplicado na expressão: “ser ou não ser”.
Para verificar se uma proposição é uma tautologia, faremos a tabela-verdade de uma proposição composta.

V F V

F V V

Perceba que se é V, então obrigatoriamente será F. Na coluna que verifica a tautologia, teremos
ou , sempre verdadeiro. Em outras palavras:
Verdadeiro ou falso = verdadeiro;
Falso ou verdadeiro = verdadeiro.
Vejamos outro exemplo de tautologia: A proposição ( → ) é uma tautologia, pois será sempre verda-
deira, independentemente do valor lógico da proposição .

V V V

F F V

Repare que na segunda linha temos a falsidade de . Se é falso, então é falso, isso é verdadeiro,
obviamente. Trata-se de uma tautologia, uma redundância.
A proposição ( → q) ↔ ( ∨ q) é outro caso de tautologia. Vamos fazer a verificação na tabela-ver-
dade.

q → ∨ → ↔ ∨

V V V F V V

V F F F F V

F V V V V V

F F V V V V

Lembre-se: a proposição condicional “se então q” é uma proposição composta que, na maioria das
vezes, tem valor lógico verdadeiro. Ela só poderá ter valor lógico falso no caso em que a proposição é
verdadeira e a proposição q é falsa, uma vez que é condição suficiente para o q, ou seja, a hipótese é V
e a conclusão é F.

312

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Atente para a segunda linha: se verdadeiro, então falso; resulta em falso.
Na terceira linha: se falso, então verdadeiro; resulta em verdadeiro.
Na quarta linha: se falso, então falso; resulta em verdadeiro.
Na última coluna, na qual se verifica a tautologia, observe:
Na primeira linha: se verdade (3a coluna) então verdade (5a coluna): resulta verdade.
Na segunda linha: se falso (3a coluna) então falso (5a coluna): resulta verdade.

C i
Uma contradição é uma proposição que é sempre falsa, independentemente dos valores-verdade das
afirmações que compõem a proposição. Trata-se de proposição sempre falsa.
Façamos a verificação com “e”:

V F F

F V F

Se fizermos a verificação com “ou”, teremos uma tautologia sempre verdadeira.

C i i
Por contingência entendemos a proposição composta que poderá ser verdadeira ou falsa, dependendo
das proposições simples que a compõem. Ou seja, não será nem contradição nem tautologia.

q ∨q

V V F V

V F F F

F V V V

F F V V

ATIVIDADES
1. A proposição simbólica ( → ~ ) é uma contradição ou uma contingência? Faça a resolução cons-
truindo a tabela-verdade.
2. A proposição simbólica ( ∧ ~q) é uma contingência ou uma contradição? Faça a resolução cons-
truindo a tabela-verdade.
3. Leia o texto a seguir, que auxiliará na preparação para a reflexão filosófica sobre o tema do conhe-
cimento científico.

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Problematize com os estudantes o critério de cientificidade. Normalmente, poderão se referir ao critério da comprovação, da verificação. Estimule-os a pensar em procedimentos ou em atitudes
de cientistas que estejam focados na busca por avanços no campo da ciência. Conecte essa reflexão com a noção de falseabilidade e retome, da lógica, a ideia de indução como método. Quais são
4. A FILOSOFIA DA CI NCIA DE ARL POPPER as características do procedimento indutivo?

Karl Popper (1902-1994), filósofo austríaco, participou inten-

ARNOŠT PASLER (CC BY-SA 3.0)


samente dos debates do Círculo de Viena. Contudo, sua declara-
da discordância de vários aspectos do pensamento do grupo fez
com que ele fosse visto como opositor oficial, mas sempre muito
admirado e respeitado pelos integrantes do grupo.
A originalidade da posição de Popper esteve no problema da
demarcação do que seria ou não ciência, em distinguir a ciência
empírica de outras formas de conhecimento, como a metafísica.
Seria preciso fazer essa convenção: O que seria ciência? Quem
pode ser considerado cientista?
Segundo Popper, a pesquisa científica seria iniciada pelos pro-
blemas, e não por puras observações. O saber começaria com a
hipótese, que seria sempre arriscada e não passível de se subme-
ter a regras.
Para Popper, a metodologia da ciência deveria buscar a for-
mulação de hipóteses com o maior conteúdo empírico possí-
vel, pois isso as tornaria também mais falseáveis e, portanto,
logicamente, menos prováveis. E quanto maior fosse a resis-
tência da hipótese aos ataques da falseabilidade, mais ela es-
taria fortalecendo a teoria. Karl Popper em cerimônia na Universidade
Carolina de Praga, República Checa, em 1994.

Uma hipótese será científica se excluir algumas possibilidades observáveis. Para testá-la, aplicamos
a lógica dedutiva de modo a derivar dela enunciados de observação, cuja falsidade refutaria a hipó-
tese. Um teste científico consiste, pois, na procura insistente dessas instâncias falseadoras. Algumas
hipóteses são mais falseáveis que outras: elas excluem mais e desse modo têm maior probabilidade
de ser refutadas. [...] Quanto mais falseável for uma hipótese, menos provável ela será, e, ao excluir
mais, ela diz mais acerca do mundo, isto é, tem maior conteúdo empírico.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 431. (Os pensadores).

Essa perspectiva de Popper afastaria a ciência da dimensão dogmática e a aproximaria de um procedi-


mento crítico, sempre aberto a reformulações, sem cair na tentação de ter chegado à verdade final.

O método da ciência reside na procura de fa- assim, que é a possibilidade de derrubá-la, ou sua
tos que possam refutar a teoria. É a isso que cha- falsificabilidade, o que constitui a possibilidade
mamos comprovar uma teoria – ver se podemos de pô-la à prova e, portanto, de comprovar o
ou não encontrar brechas nela. Mas embora os caráter científico de uma teoria; e o fato de que
fatos sejam coligidos com vista à teoria, e a con- todas as provas de uma teoria são tentativas de
firmem enquanto a teoria se mantiver de pé em desmentir as predições que se deduzem com sua
face dessas comprovações, são eles mais do que ajuda fornece a chave do método científico. Essa
simplesmente uma espécie de repetição vazia de concepção do método científico é confirmada
uma teoria preconcebida. Apenas confirmarão a pela história da ciência, que mostra que as teo-
teoria se forem os resultados de tentativas malsu- rias científicas são muitas vezes derrubadas por
cedidas para derrubar suas predições e, portanto, experimentações e que a derrubada da teoria é,
uma testemunha que fale em seu favor. Sustento, na verdade, o veículo do progresso científico.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo II. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 267-268.

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O lem i
Um dos problemas clássicos da filosofia das ciências empíricas é o problema da indução. Já no século
XVIII, o filósofo David Hume criticou a indução como procedimento científico. Essa crítica foi retomada
por Popper.
A indução seria um procedimento generalizante, cuja conclusão seria extraída com base na combinação
de determinado número de fatos particulares relacionados. Com esse procedimento, o conteúdo da con-
clusão excederia em muito o conteúdo das premissas. Por isso, a indução forneceria apenas probabilidades.
Ora, a indução seria o procedimento normal das ciências experimentais. Por isso, Karl Popper, criticou a
pretensão de verdade contida no caminho indutivo das ciências.

É comum dizer-se “indutiva” uma inferência, caso ela conduza de enunciados singulares [...], tais
como descrições dos resultados de observações ou experimentos, para enunciados universais, tais
como hipóteses ou teorias. Ora, está longe de ser óbvio de um ponto de vista lógico, haver justifica-
tiva no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de quão nume-
rosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode revelar-se falsa;
independentemente de quantos cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de
que todos os cisnes são brancos.
POPPER, Karl. Lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Edusp, 1985. p. 27.

Para Popper, de um conjunto de fatos seria sempre possível formar diferentes generalizações. Confor-
me o exemplo citado no texto: a quantas conclusões poderíamos chegar a partir da premissa de que até o
presente todos os cisnes observados são brancos? Assim, continuaria posto o problema da indução para as
ciências empíricas.

PROBLEMATIZANDO
1. Leia os trechos a seguir:
Te 1

Segundo uma concepção amplamente difundida, objetividade e neutralidade são características


centrais do conhecimento científico. Opiniões, referências pessoais e suposições especulativas não
têm lugar na ciência. As teorias científicas são neutras no sentido de não possuírem vínculo com
ideologias, interesses pessoais ou de grupos, fatores políticos ou econômicos. O conhecimento cien-
tífico é conhecimento confiável porque é neutro e provado objetivamente.
WARBURTON, Nigel. O básico da filosofia. Trad. Eduardo F. Alves. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008. p. 167.

Te 2

A ciência nos permitiu mandar homens à Lua, curar a tuberculose, inventar a bomba atômica, o
automóvel, o avião, a televisão e inúmeros outros inventos que mudaram a natureza da nossa vida
cotidiana. O método científico é geralmente reconhecido como o meio mais efetivo para descobrir
e prever o comportamento do mundo natural. Nem todas as invenções científicas foram benéficas
aos seres humanos – há progressos científicos que vieram a ser utilizados tanto para destruir como
para melhorar a vida humana. Entretanto, seria difícil negar o sucesso das manipulações do mundo
natural que a ciência tornou possíveis.
WARBURTON, Nigel. O básico da filosofia. Trad. Eduardo F. Alves. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008. p. 167.

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• Com base na leitura desses trechos converse com os colegas sobre:
. O objeto, a motivação e a finalidade da investigação científica.
. A possibilidade de existir neutralidade na ciência.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir:

O método da ciência reside na procura de fatos que possam refutar a teoria. [...] Sustento, assim,
que é a possibilidade de derrubá-la, ou sua falsificabilidade, o que constitui a possibilidade de pô-la
à prova e, portanto, de comprovar o caráter científico de uma teoria.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo 2. Trad. Milton Amado. São Paulo: Itatiaia, 1998. p. 268.

• Para Popper, o princípio da falseabilidade é um critério científico. Com base nesse texto e em ou-
tras informações sobre o pensamento de Karl Popper, redija um texto sobre o critério científico da
falseabilidade e sua aplicação no cotidiano das ciências experimentais.

SUgESTÃO DE FILMES
Tem i : A interferência dos interesses econômicos veis os interesses econômicos nos quais a ciência está
na racionalidade científica envolta e nos quais tropeça.
Filme: Epidemia (Estados Unidos, 1995). Direção:
Wolfgang Petersen. Este filme aborda uma epide- Tem i : A verdade na ciência
mia causada por um vírus letal e desconhecido que Filme: Frankenstein (Estados Unidos, 1931). Direção:
assola uma região da África. Uma equipe de médi- James Whale. Filme baseado no romance de Mary
cos do exército norte-americano é designada para o Shelley, Frankenstein ou O Prometeu moderno, de
caso. Contudo, além de descobrir o vírus causador da 1818, que realiza uma crítica romântica à pretensão
doença, a equipe precisa desmascarar a trama política de verdade da ciência, que no seu desenvolvimento
que encobre a descoberta da doença. São bem visí- poderá criar monstros.

5. A CRISE DA RAZÃO: A ESCOLA DE FRAN FURT


Retome com os estudantes o projeto
EIGENES WERK (CC BY-SA 3.0)

do Iluminismo, as grandes narrativas


e o espírito do homem moderno.
Em seguida, retome a guinada
do pensamento existencialista no
pós-guerra e das ciências aplicadas à
tecnologia. Nesse contexto, questione
os estudantes: para qual projeto a
razão está trabalhando? Considerando
o capitalismo, como modelo econômico
e social, qual é a preocupação ou
objetivo central dessas buscas? Estimule
os estudantes a perceberem a dimensão
técnica e instrumental da razão
contemporânea e pergunte a eles: qual
deverá ser o papel da filosofia?

Instituto de
pesquisa social
em Frankfurt,
Alemanha,
2007.

316

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Na reflexão sobre o Iluminismo moderno, vimos que o século XVIII foi denominado como o Século das Luzes,
do Esclarecimento, da confiança no potencial da razão, capaz de promover a emancipação do ser humano e o
progresso ilimitado, a partir da ciência e da tecnologia. Acompanhamos, também, que essa visão trazia algo im-
plícito: o período medieval teria sido uma época de trevas. Visão já descontruída por estudiosos contemporâneos.
Reconhecemos, dando continuidade ao otimismo característico do espírito moderno, que o idealismo de
Hegel e o positivismo de Augusto Comte alimentaram a ideia de uma razão soberana, capaz de promover
a harmonia entre os seres humanos, e curar os males da humanidade.
Estudamos também as frustrações das promessas do Iluminismo moderno ao refletirmos sobre o exis-
tencialismo, cuja reflexão se concentrava na existência humana, com base na desolação que se instaurou no
espírito humano a partir dos horrores da Primeira Guerra Mundial.
As tragédias da Primeira Guerra abalaram a tradicional confiança em um tipo de racionalidade. Foi nesse
contexto que se formou o Instituto de Pesquisa Social, em 1923, fundado pelo economista austríaco Carl
Grumbert. O Instituto estava ligado à Universidade de Frankfurt, e seus membros tinham como fundamentação
ideológica o pensamento de Karl Marx, e suas preocupações centrais estavam relacionadas à filosofia social.
Entre os acontecimentos que afetaram as reflexões desse grupo, denominado mais tarde Escola de
Frankfurt, estavam o êxito da revolução bolchevique na Rússia, em 1917; a proclamação da República na
Alemanha, em 1918; e as insurreições operárias alemãs, a primeira de1919 e a segunda de 1923.
Em 1931, Max Horkheimer (1895-1973) assumiu a direção do Instituto, com a colaboração de Theodor
Adorno (1903-1969), Walter Benjamim (1892-1940) e Herbert Marcuse (1898-1979), entre outros.
A partir de 1932, eles passaram a publicar um periódico, a Revista para a Pesquisa Social, cuja temática
girava em torno da exploração econômica e da dominação política. As reflexões eram publicadas normal-
mente em forma de ensaios ou resenhas.

Di e e e m me e me i E l eF
Na década de 1930, os pensadores da Escola de Frankfurt, especialmente Adorno, Horkheimer e Marcu-
se concentraram sua reflexão em torno da economia, da teoria marxista, refletindo sobre a luta de classes.
Seu pensamento era marcadamente materialista.
A partir da década de 1940, sob os fortes impactos do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, a reflexão
realizou uma mudança radical, com o fenômeno do totalitarismo virando objeto central dos estudos e, com
ele, o tipo de racionalidade que governaria a sociedade ocidental.
É desse período a obra Dialética do Esclarecimento ou Dialética do Iluminismo, na qual Adorno e Horkheimer
analisaram a sociedade tecnológica contemporânea. Eles conceberam o Iluminismo não somente como o Século
das Luzes, mas, fundamentalmente, como o próprio caminho que a razão foi traçando na cultura ocidental. Esse
caminho trouxe a marca da exploração, da manipulação, e da técnica que tudo buscou dominar.

[...] o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber
que é poder não conhece barreira alguma, nem na escravização da criatura, nem na complacência
em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que está a serviço de todos os fins da economia
burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim também está à disposição dos empresários, não
importa sua origem. Os reis não controlam a técnica mais diretamente do que os comerciantes: ela é
tão democrática quanto o sistema econômico com o qual se desenvolve. A técnica é a essência desse
saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização
do trabalho de outros, o capital. As múltiplas coisas que [...] ele ainda encerra nada mais são do que
instrumentos: o rádio, que é a imprensa sublimada; o avião de caça, que é uma artilharia mais eficaz;
o controle remoto, que é uma bússola mais confiável. O que os homens querem aprender da natureza
é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa.
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 17-18.

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Se, inicialmente, o Iluminismo queria libertar as pessoas, as transformou em reféns, escravizadas por uma
razão técnica, manipuladora. Assim, a razão que historicamente foi filosófica e crítica teria se transformado
em razão instrumental, na qual o pensamento humano não seria mais conduzido pela razão que fundamen-
ta, propõe e discute a finalidade das ações e a destinação da vida humana, mas pela razão instrumental,
uma razão técnica, fabricadora, que se reduzia à fabricação de instrumentos e meios adequados à realiza-
ção dos fins previamente estabelecidos e controlados pelo sistema. Por meio de uma indústria cultural, tudo
viraria mercadoria, objeto para o mercado consumidor, inclusive todas as formas de arte, música, pintura,
escultura etc.
Outra dimensão da crítica que os filósofos da Escola de Frankfurt desenvolveram foi sobre a sociedade
burguesa, caracterizada como unidimensional e administrada, na qual tudo se reduziria a números e obe-
deceria ao critério da calculabilidade, submetido a uma razão técnica.

[...] A sociedade burguesa é dominada pelo pago por quem fez a troca, foi o de ser obrigado
equivalente. Ela torna comparáveis as coisas que a permitir que as suas possibilidades de nascen-
não têm denominador comum, quando as re- ça fossem modeladas pela produção das merca-
duz a grandezas abstratas. O que não se pode dorias que nele podem ser compradas.
desvanecer em números, e, em última análise, [...] O pensar se coisifica no processo automá-
numa unidade, reduz-se, para o Iluminismo, à tico que transcorre por conta própria, compe-
aparência e é desterrado, pelo positivismo mo- tindo com a máquina que ele próprio produz
derno, para o domínio da poesia. De Parmêni- para que esta possa finalmente substituí-lo. O
des a Russell, a senha é a unidade. Insiste-se na Iluminismo deixou de lado a exigência clássica
destruição dos deuses e das qualidades. de pensar o pensamento. [...] A dominação da
[...] O preço que os homens pagam pela multipli- natureza delineia o círculo para o qual o pensar
cação do seu poder é a sua alienação daquilo sobre foi exilado [...].
o que exercem o poder. O Iluminismo se re-

GALERIA ESCOCESA DE ARTE MODERNA, REINO UNIDO/ADAGP, PARIS, FRANÇA/DACS, LONDRES, REINO UNIDO
laciona com as coisas assim como o ditador
se relaciona com os homens. Ele os conhe-
ce, na medida em que os pode manipular.
O homem de ciência conhece as coisas, na
medida em que as pode produzir.
[...] O que poderia ser outro é feito
igual. Tal é o veredito que estabelece cri-
ticamente os confins da experiência pos-
sível. A identidade de tudo com tudo é
paga com o não haver nada podendo ser
ao mesmo tempo idêntico a si mesmo. O
Iluminismo dissolve a injustiça da anti-
ga desigualdade, a dominação imediata,
porém torna-a, ao mesmo tempo, eterna
mediação universal, na relação de um Garota nascida sem mãe (1916), de Francis Picabia.
ente qualquer a qualquer outro. [...] Não
A Escola de Frankfurt aborda a coisificação do pensamento em
são só as qualidades que se dissolvem no um processo automático que se compara e compete com o
pensamento, também os homens são processo produtivo da máquina. Nesta pintura, Francis Picabia
coagidos à conformidade com o real. O utiliza a imagem da máquina para fazer uma representação
irônica da vida e do pensamento humano no século XX,
mercado não questiona sobre o seu nas- dominado pela impessoalidade dos instrumentos.
cimento, mas o preço dessa vantagem,
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Conceito de Iluminismo. In: ARANTES, Paulo Eduardo (Cons.). Theodor W.
Adorno: textos escolhidos. Trad. Zeljko Loparic. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 22-42. (Os pensadores).

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PROBLEMATIZANDO
1. Para Adorno e Horkheimer, representantes da Escola de Frankfurt, que realizaram forte crítica à
ideologia capitalista, o projeto iluminista transformou, na prática, a razão filosófica em mero instru-
mento auxiliar do aparato econômico, que tudo invade. E por esse caminho, o progresso transfor-
mou-se em regresso.
• Como você compreende esta ideia de uma razão refém e escravizada de um determinado modelo
econômico?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Considerando a leitura dos dois trechos apresentados no tema, redija um texto contendo a crítica da
Escola de Frankfurt ao processo moderno de Esclarecimento.
Recolha o saber prévio dos estudantes no que tange à
bioética, seus objetivos, princípios e fundamentos. Estimule-
-os a falar dos grandes desafios, dos riscos, dos limites e das
. BIO TICA: PRINC PIOS E FUNDAMENTOS possibilidades do atual estágio da manipulação genética,
da experimentação com seres humanos, com animais, com
alimentos transgênicos, para a humanidade.
Entre 1932 e 1972, ocorreram várias experiências científicas realizadas em seres humanos, na Europa e
nos Estados Unidos, que não tiveram a menor preocupação com a dignidade humana, especialmente durante
o período da Segunda Guerra Mundial. Contudo, foi nos Estados Unidos que houve a maior mobilização da
opinião pública, decorrente de três casos gravíssimos: células cancerosas vivas injetadas em idosos doentes;
o vírus da hepatite injetado em crianças com deficiência mental e 400 afro-americanos com sífilis recrutados
para uma pesquisa sobre a evolução da doença, que ficaram sem o tratamento de saúde prometido.
A partir da década de 1960, com os significativos avanços tecnológicos na área da saúde, milhares de indi-
víduos, sem que fossem consultados, foram usados como cobaias para pesquisas científicas. Foi nessa década
que emergiram movimentos sociais, especialmente nos Estados Unidos, que levantaram vozes de protesto,
afirmando que nem tudo devia ser feito: a ciência tinha de se submeter a limites éticos e morais.
O marco inicial da bioética foi a formação da Comissão nacional para proteção de sujeitos humanos
na pesquisa biomédica e comportamental (National commission for the protection of human subjects of
biomedical and behavioral research). Essa comissão foi criada pelo governo e pelo congresso norte-ameri-
canos, em 1974, com o objetivo de definir os princípios éticos fundamentais que deveriam estar na base da
experimentação em seres humanos. O resultado do trabalho dessa comissão ficou conhecido como relatório
Belmont, que fez referência a princípios da bioética, como um novo campo disciplinar.
Na busca por uma definição, sabendo da parcialidade dessa definição, podemos dizer que a bioética
é um estudo interdisciplinar sistemático da conduta humana, voltada para as ciências da vida e da saúde,
avaliada sob a ótica de princípios e valores éticos e morais, cujas questões estão relacionadas à genética,
à reprodução humana, à clonagem, aos transplantes de órgãos, aos órgãos artificiais, às múltiplas formas
de manipulação e de intervenção na vida, à proteção do patrimônio genético, à interrupção de gravidez e
aborto, à qualidade de vida, ao direito à morte digna etc. E nesse campo complexo de temas não há unida-
de ideológica; existem múltiplas e conflitantes perspectivas. Por isso, a bioética é uma reflexão que parte do
reconhecimento da pluralidade moral, de costumes, crenças e convicções da humanidade.

[...] a Bioética representaria um processo (ou um movimento) de preocupação ética voltada aos
fenômenos advindos da “nova Biologia”, procurando-se criar mecanismos para coibir eventual mau
uso e ao mesmo tempo fomentar a avaliação de tais fenômenos e desafios de forma integrada às
demais ciências, sobretudo as ciências humanas [...].
A Bioética, em síntese, buscaria, de um lado, cuidar do bem-estar (no sentido mais amplo da pala-
vra) da humanidade e, de outro, impedir o surgimento de uma “bomba molecular”.
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola, 2007. p. 12.

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DIEGO GIUDICE/CORBIS/LATINSTOCK
Cientista argentina segura
sementes geneticamente
modificadas de soja, em 2015.
O debate sobre o consumo
de alimentos geneticamente
modificados, os transgênicos,
também está no campo da
bioética. Os defensores desse
consumo indicam que os
transgênicos podem ajudar no
combate à fome no mundo,
já os opositores pontuam
os riscos que tais alimentos
podem causar à saúde, além
do embate mercadológico
desigual entre as grandes
empresas de transgênicos e
os pequenos agricultores de
produtos orgânicos.

Pi i i i
Os princípios da bioética são conhecidos como a tríade bioética e referem-se
tanto ao profissional da saúde quanto ao paciente e à sociedade. Esses princípios,
respectivamente, são: beneficência (e seu correlato, o da não maleficência), au-
tonomia e justiça.

O princípio da beneficência e o da não maleficência


O princípio da beneficência visa maximizar os benefícios e minimizar os riscos
potenciais para o paciente. Esse princípio tem relação com a excelência do profis-
sional da saúde. Trata-se de fazer o bem e mais do que isso, fazer o melhor, para
o maior benefício do paciente, não só tecnicamente, mas humana e eticamente.
É preciso buscar o tratamento adequado, dar a assistência que o momento pede.
O princípio de não maleficência, como correlato do princípio da beneficência,
afirma que o profissional de saúde não deve, intencionalmente, causar mal e/ou
danos a um paciente. Expressa um dever moral do profissional: não causar dano.
Contudo, o risco do dano sempre existe. E quanto maior for o risco, mais justifica-
da deve ser a finalidade do procedimento, pois o bem pretendido deve ser muito
superior ao possível dano.

O princípio do respeito à autonomia


O princípio da autonomia é também conhecido como princípio do consen-
timento. O termo de consentimento informado é um documento que tem por
finalidade registrar de modo juridicamente válido o consentimento do paciente.
O princípio da autonomia afirma que o profissional da saúde deve ter consciência
de que o paciente é sujeito portador de direitos, entre os quais: a liberdade de
opinião e de julgamento e o direito à decisão autônoma. Para tanto, o paciente
deverá ter ciência das opções de tratamento para poder se posicionar, com base
em seus valores e convicções.

320

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Filosoficamente, está pressuposto aqui o fundamento da dignidade, na qual
a pessoa tem o direito e o dever de autodeterminação. Vale recordar aqui o im-
perativo categórico de Immanuel Kant: tratar a humanidade e todo ser humano
sempre como fim e nunca como meio.
Assim, o consentimento do paciente para a realização de diagnósticos, pro-
cedimentos e tratamentos é condição fundamental, que deve vir precedida do
acesso a todas as informações necessárias para uma decisão consciente sobre os
benefícios e possíveis riscos ou consequências.
Obviamente, há situações em que o termo de consentimento informado pelo
paciente não é possível, especialmente em situações de urgência que requerem
abordagem imediata, sem tempo hábil para recolher o termo de consentimento.
Quando se trata de crianças ou de pessoas com níveis de consciência muito re-
duzidos, cabe ao responsável legal por essas pessoas tomar a decisão e assumir a
responsabilidade de dar ou não seu consentimento.
No Brasil, esse princípio da autonomia, relacionado à soberania e ao respeito
à dignidade de pessoa vem assim expresso no artigo 1° da Constituição de 1988:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel


dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Demo-
crático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988.

O princípio de justiça

BIBLIOTECA NACIONAL DE MEDICINA, ROCKVILLE, ESTADOS UNIDOS


Esse princípio refere-se ao dever de o Estado zelar por políticas de saúde que
garantam a equidade, a igualdade de acesso aos melhores tratamentos. Aqui,
servimo-nos do conceito de justiça construído por John Rawls, no qual a equidade
recebe toda a atenção. A ética biomédica deve buscar a equidade na distribuição
de bens e recursos, buscando igualar as oportunidades de acesso às tecnologias,
às metodologias e aos cuidados que o tratamento da saúde requer.
Vejamos um trecho do juramento de Hipócrates:

Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por
testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu po- Representação de
Hipócrates, em gravura de
der e minha razão, a promessa que se segue: [...] Aplicarei os regimes para
Peter Paul Rubens.
o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para cau-
Hipócrates é considerado o
sar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio pai da medicina na cultura
mortal nem um conselho que induza a perda. [...] Conservarei imaculada ocidental. Seu juramento,
minha vida e minha arte. escrito no século V a.C., na
Grécia, costuma ser feito
CREMESP. Juramento de Hipócrates. Disponível em: <http://cremesp.org.br/?
pelos médicos na ocasião
siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em: 20 abr. 2016.
de sua formatura.

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PROBLEMATIZANDO
1. Leia o texto a seguir:

Questões biojurídicas: o biodireito como ciência


Quando se faz menção a reprodução artificial, manipulação de genes, transplante de órgãos, clo-
nagem, aborto, eutanásia, esterilização, experimentação em seres humanos, psicocirurgia, órgãos
artificiais, pré-seleção, e tantas outras novidades biotecnológicas, logo vêm à lembrança o valor do
ser humano e o respeito que lhe é devido.
Essa reflexão de consciência, que delineia limites morais às investigações e práticas biocientíficas,
sem dúvida é influente na informação e na formação do Direito. Existem, no entanto, questões essen-
cialmente jurídicas, cuja solução não é possível limitar ao âmbito da consciência moral de cada um.
Tomando-se por base a exemplificação já referida, problemas como determinação da maternidade
e da paternidade ante as técnicas de reprodução humana medicamente assistida, ou sobre a prote-
ção do patrimônio genético, ou a respeito da caracterização (ou não) dos embriões humanos como
sujeitos de direitos, somente encontrarão resposta satisfatória no Direito, eis que ultrapassam a
esfera individual, dizendo respeito a relações intersubjetivas e à coletividade.
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Biodireito e Constituição. Revista do Direito Privado da UEL, Londrina, v. 1, n. 1, 2010. Disponível em:
<www.uel.br/revistas/direitoprivado/artigos/BiodireitoeConstitui%C3%A7%C3%A3oJussaraMeirelles.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2016.

• Considerando a realidade brasileira, quais são, em seu entendimento, os avanços no campo do direi-
to relacionados às questões presentes no texto?

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE LEITURAS
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Escla- MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janei-
recimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ro: Bertrand Brasil, 2002.
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo NEVES, M. do C. P. A fundamentação antropológica da
e suas regras. São Paulo: Loyola, 2011. bioética. Revista de Bioética, Brasília, v. 4, n. 1, 1996.
DINIZ, D.; COSTA, S. Ensaios: bioética. São Paulo: Bra- Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/in-
siliense; Brasília: Letras Livres, 2006. dex.php/revista_bioetica/article/view/392>. Acesso em:
GARRAFA, V. Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Fe- 5 maio 2016.
deral de Medicina, 1998. OLIVA, Alberto. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro:
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Conselho Nacional de Saúde. Zahar, 2004.
Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa en- OMNES, Roland. Filosofia da ciência contemporânea.
volvendo seres humanos. Brasília, 1997. São Paulo: Unesp, 1996.

SUgESTÃO DE FILMES
Tem i : Lógica Tem i : Massificação e perda da individualidade
Filme: Quebrando a banca (Estados Unidos, 2008). Dire- Filme: O doador de memórias (Estados Unidos, 2014).
ção: Robert Luketic. O filme narra a história de seis estu- Direção: Phillip Noyce. A narrativa se desenvolve em
dantes do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), uma sociedade utópica, sem guerras e diferenças, em
nos Estados Unidos, que se especializaram na contagem que um jovem começa a questionar o conformismo e
de cartas em jogos de 21. Dessa forma, conseguiram acu- a falta de liberdade dentro dessa comunidade massifi-
mular milhões de dólares em vitórias pelos cassinos de Las cada, que retira o poder de escolha de seus cidadãos.
Vegas. Os estudantes se utilizam da lógica no método de O controle social ocorre, entre outras “técnicas”, pela
contar cartas e vencer em um jogo chamado de “sorte”. restrição do vocabulário.

322

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3
Eixo Temático

ÉTICA E
POLÍTICA

bre :
e r so
d
en

pr
ia • O materialismo histórico e dialético de
va
Karl Marx e Friedrich Engels.
Você

• O trabalho e a alienação no modo


capitalista de produção.
• A crítica da ideologia.
• As características de um sistema
totalitário.
• A banalidade do mal.
• A política como espaço da liberdade e da
revolução em Hannah Arendt.
• O papel do Estado na vida em sociedade.
• A ética da racionalidade e do consenso na
política.
• Princípios defendidos pelo liberalismo.
• Princípios defendidos pelo comunitarismo.
• A ação política.

Temas:
1. O materialismo histórico e dialético de 3. Ética do discurso: da ação estratégica à
Karl Marx e Friedrich Engels ação comunicativa
2. O sentido da política em Hannah Arendt 4. Liberalismo e comunitarismo

O tema da ética e da política na sociedade contemporânea é um convite à construção de um projeto interdisciplinar de reflexão filosófica que contemple os históricos desvios do poder. Trata-se de
uma reflexão de natureza interdisciplinar, que dialoga especialmente com História, Geografia e Sociologia e aborda a natureza política do poder. Entre as muitas perspectivas que aqui se abrem,
destacamos os temas do totalitarismo, da ditadura e do terrorismo contemporâneo.

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1. O MATERIALISMO HIST RICO E DIAL TICO DE
ARL MARX E FRIEDRICH ENgELS
Embora Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) possam ser lidos e interpretados como
pensadores modernos, optamos por considerar o pensamento desses filósofos a partir da perspectiva de
uma crítica ao idealismo moderno, especialmente o de Hegel. O próprio Marx afirmava que seu projeto era
inverter a visão hegeliana de ser humano e a concepção que esse filósofo tinha da história e do espírito.
Optamos por ler e interpretar o pensamento de Marx e Engels no campo da política e da economia,
considerando as riquíssimas e centrais reflexões desses filósofos sobre a formação da consciência. Entre as
principais razões para realizar essa leitura na esfera da política referimo-nos a Marx e Engels, ao falarem
da necessidade de uma prática revolucionária que transformasse o mundo, não com base no idealismo
tradicional, mas por meio de uma análise histórica, política, econômica e também sociológica.
A filosofia de Marx exerceu enorme influência e seu pensamento

JOHN MAYALL/IAN DAGNALL COMPUTING/ALAMY/LATINSTOCK


continua vivo nos dias atuais, não apenas na teoria, mas em desdo-
bramentos políticos, especialmente em virtude das ideias defendi-
das pelo Partido Comunista russo, que durante o governo da União
Soviética, de 1917 a 1990, se consolidou como fonte de inspiração
e motivação para muitos movimentos políticos e sociais, no Brasil e
no mundo.
Karl Marx nasceu em 1818, na Alemanha. Seus estudos concen-
traram-se em direito e filosofia. Sua mais importante atuação política
foi como jornalista e redator-chefe. Em 1842, assumiu a chefia da
redação do Gazeta Renana, um jornal da província de Colônia, na
Alemanha. Contudo, no ano seguinte ele foi proibido de circular.
Seu pensamento sofreu grande influência de Hegel, por meio de
seus discípulos, conhecidos como “jovens hegelianos”. Ele também
foi influenciado pelo socialismo utópico de Pierre Joseph Proudhon Karl Marx por volta de 1870.
(1809-1865), que mais tarde também seria duramente criticado. Seu
pensamento ainda se desenvolveu sob a influência de Ludwig Feuerbach (1804-1872). Em 1844, foi para
Paris, onde conheceu Friedrich Engels, que se tornou grande amigo,
colaborador e interlocutor em todos os seus textos. Suas principais
THE PRINT COLLECTOR/CORBIS/LATINSTOCK

pesquisas concentraram-se em filosofia e em economia política.


Em 1848, Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Co-
munista. Em 1849, mudaram-se para a Inglaterra e estabeleceram-se
em Londres. Lá, seguiram suas pesquisas nas áreas da economia, da
política, da história e da sociologia. Desses estudos nasceu a obra O
capital. O primeiro dos três volumes foi publicado em 1867. Marx
faleceu em 1883. Após sua morte, Engels publicou os outros dois
volumes de O capital, em 1885 e 1894, respectivamente.
Uma das realizações mais significativas de sua vivência política
foi a organização do movimento operário. Dessa mobilização nas-
ceu a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada por ele
em 1864, em Londres.
No campo da economia, os textos de Marx que exerceram mais
Friedrich Engels por volta de 1880. influência foram Manuscritos econômico-filosóficos (1844), Crítica
da economia política (1859) e O capital (1867).
Seus principais escritos especificamente filosóficos foram A sagrada família (1845), na qual critica a fi-
losofia especulativa do idealismo alemão; A ideologia alemã (1845-1846); e A miséria da filosofia (1847),
obra em que critica fortemente o socialismo utópico de Proudhon.

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A i i e l i Inicie essa reflexão recolhendo as concepções de ideologia que existem na turma, retomando com eles a abordagem que o
tema, sob a perspectiva da Marx, Gramsci e Mannheim, recebeu na unidade 1, eixo temático 2.

Na obra A ideologia alemã, Marx e Engels fazem uma análise crítica da tradição filosófica racionalista,
tendo como referência especialmente o pensamento de Hegel e de Feuerbach. Em A essência do cristianis-
mo (1842), Feuerbach critica a religião e a considera fonte de superstições, que impede a emancipação do
ser humano. Marx critica essa visão afirmando que a religião é utilizada como um instrumento das classes
dominantes para manter sua situação de dominação e seu poder político e econômico. Com isso, Marx
apresentará uma nova concepção de ideologia. Ele afirma que a posição de Feuerbach acaba sendo ideoló-
gica à medida que não toca na raiz da questão e gera uma visão distorcida.
O conceito de ideologia, contudo, é anterior a Marx. Especialistas consideram que ele tenha surgido na
obra de Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), que fazia parte de um grupo de pensadores conhecidos
como ideólogos, preocupados em formular uma ciência das ideias e em examinar a origem e a história de-
las. Em Marx e Engels, a ideologia adquire um sentido negativo, relacionado à falsa consciência, conforme
estudamos na unidade 1.
Vejamos um fragmento no qual Marx e Engels refletem sobre a formação das ideias que vêm das relações
sociais e estão na base da produção da existência e como criticam a ideologia por realizar uma inversão.

A produção das ideias, das representações e da consciência está primeiro, direta e intimamente
misturada à atividade material e ao comércio natural dos homens; ela é linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aí ainda como a ema-
nação direta de seu comportamento material. Dá-se o mesmo quanto à produção intelectual tal qual
se apresenta na língua da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo.
São os homens que são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais,
atuantes, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças positivas
e das relações que lhes correspondem, inclusive as formas mais amplas que estes podem assumir. A
consciência não pode nunca ser outra coisa senão o ser consciente e o ser dos homens é seu processo
de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações nos parecem postos de cabeça para
baixo como numa câmera escura, este fenômeno decorre de seu processo de vida histórica, absoluta-
mente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente física.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. In: Os filósofos através dos textos:
de Platão a Sartre. Trad. Constança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. p. 253-254.

Na sequência do mesmo texto, Marx e Engels afirmarão que a classe dominante tem à sua disposição
os meios de produção material e espiritual. Com isso, a ideologia torna-se um instrumento dessas classes
para criar uma aparência que não é a realidade, mas passa a ser vista assim. No capitalismo, o motor seria
o interesse privado, e não o coletivo. Por isso, uma das funções da ideologia será fazer parecer como se os
proprietários, em suas estratégias cotidianas, estivessem pensando no bem coletivo.
Ao estudarmos o contratualismo moderno, acompanhamos o pensamento de John Locke, segundo o qual
os seres humanos têm direito natural à propriedade privada, a ser adquirida por meio do trabalho. Com o
pensamento de Marx e de Engels, estamos diante de um processo de crítica da política liberal. O liberalismo
acentuava uma concepção individualista da humanidade. Nessa visão, o ser humano era um indivíduo por-
tador de direitos naturais, entre os quais à propriedade privada. Nessa concepção, o pressuposto subjacente
é o de que a propriedade privada é um direito natural, socialmente útil e moralmente legítimo, uma vez que
estimula o trabalho concorrencial e competitivo, combate o vício da preguiça e estimula o crescimento social.
Contudo, Marx parte de outro pressuposto. O ser humano é essencialmente histórico e social, marcado
pela produção de sua existência em sociedade. Por isso, não pode ser entendido de forma abstrata e isola-
da. Marx e Engels escrevem em A ideologia alemã: “Nós conhecemos somente uma única ciência: a ciência
da história”. Para Marx e Engels, as relações históricas que se dão entre as pessoas determinam a forma de
pensamento e as instituições políticas e sociais de um povo. Leia o fragmento a seguir.

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Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que de-
termina a sua consciência.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. In: Os filósofos através dos textos:
de Platão a Sartre. Trad. Constança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. p. 254.

O m e i li m i i e i l i
Considerando o percurso que os Nosso modo de ser e de pensar é determinado pelas relações sociais de pro-
estudantes trilharam em outras disciplinas
da área de Ciências Humanas (História, dução. Ou seja, a consciência humana é levada a pensar as ideias que brotam do
Geografia e Sociologia), eles devem ter meio social e das condições nas quais a existência se faz. Por isso, o materialismo
noções do que seja materialismo histórico
e dialético. Inicie essa reflexão, partindo se opõe ao idealismo, que se concentra nas ideias gerais e universais, capazes de
desse saber prévio. Em seguida, proponha
uma questão problematizadora que
moverem as ações humanas. Essa visão é ideológica, pois interpreta o mundo de
permita um aprofundamento no tema: cabeça para baixo.
Por que existem formas tão distintas
de pensar e de perceber o mundo entre De acordo com Marx e Engels, o que distingue os seres humanos dos animais
pessoas de diferentes regiões do mundo? é a capacidade de produzir a própria existência a partir de determinada situa-
ção. Os seres humanos serão resultado do modo como ocorrem as relações de
produção de sua existência material e espiritual. Pelo fato de os seres humanos
nascerem em determinada realidade ou situação, eles não a escolhem livremente.
Sobre isso, Marx e Engels escrevem:

Eis, pois, os fatos: indivíduos determinados que têm uma atividade produtiva segundo um modo
determinado entram nas relações sociais e políticas determinadas. É preciso que em cada caso isolado
a observação empírica mostre nos fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, o laço entre a
estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o estado resultam constantemente do pro-
cesso vital de indivíduos determinados; mas desses indivíduos, não tais como podem aparecer na sua
própria representação ou na de outro, mas tais como são na realidade, isto é, tais como operam e produ-
zem materialmente; logo, tais como agem nas bases e nas condições e limites materiais determinados e
independentes de sua vontade.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. In: Os filósofos através dos textos:
de Platão a Sartre. Trad. Constança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. p. 253.

VERNON NAWAK/FREEIMAGES

Para Marx e Engels, nossa


consciência é determinada
pelas condições históricas
em que vivemos.

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No pensamento de Marx e Engels, o trabalho é a mediação por excelência da produção e da reprodu-
ção das condições da existência. Conforme vimos na unidade 1 deste livro, o trabalho é uma das principais
pontes da natureza para a cultura. Esse será um elemento central das reflexões de Marx e Engels, que reco-
nhecem a existência de maior divisão social do trabalho nas sociedades mais complexas. Nessa concepção,
o tipo de sociedade que se formará tem profunda relação com as formas de propriedade, com as formas de
relação entre os meios de produção e as forças produtivas, bem como com as diferentes divisões sociais do
trabalho. Assim, as formas produtivas e a própria sociedade são constituídas por esse conjunto de condições.
Para Marx e Engels, esse materialismo apresenta uma dimensão histórica, pois analisando os vários
modos de produção, desde a tribal e escravista (na Antiguidade), passando pela feudal e, agora, capitalis-
ta, percebe-se que a consciência dos seres humanos foi mudando. Em cada época haveria uma forma de
pensar e interpretar o mundo em que vivemos, que seria resultante dos modos de produção da época e
da divisão social do trabalho. Dessa percepção, eles concluem que o que determina a consciência humana,
molda a forma de pensar e, com isso, move a história são as relações e os modos de produção.
Dessa forma, ao mudar as condições materiais de produção e a divisão social do trabalho, mudaria tam-
bém a história. Assim, denomina-se o materialismo de Marx de histórico, pois a consciência humana apre-
senta ideias cujas bases são as condições materiais e a divisão social de trabalho. O materialismo é histórico
também pelo fato de a sociedade e a política não serem de instituição divina nem naturalmente dadas. Ao
contrário, nascem e dependem da ação concreta dos seres humanos, que estão situados no tempo e fazem
história. O materialismo histórico pretende explicar a história das sociedades humanas em todas as épocas
por meio dos fatos materiais, essencialmente econômicos.
Para Marx e Engels, considerando os modos de produção no capitalismo industrial, a sociedade está
marcada por contradições que podem ser percebidas nas classes sociais, as quais têm interesses contrários.
É a luta dos contrários que move a história, como deixa bem claro a frase inicial do primeiro capítulo do
Manifesto Comunista, “A história de toda sociedade passada é a história da luta de classes”.
Apesar da dimensão conflitiva, os diversos modos históricos de produção, como escravidão, servidão e
capitalismo seriam, essencialmente, etapas sucessivas de um processo único que caminharia para a etapa
final: o comunismo.
Inicie essa abordagem solicitando aos estudantes que estabeleçam uma conexão entre
esses termos, justificando o título. Com base nessa articulação, a partir de exemplos
C i li m : l e lie de alienação no mundo do trabalho, verifique a possibilidade de os estudantes
apresentarem, previamente, uma definição do conceito de alienação na perspectiva de
Marx, como produto e processo.
Marx tentou demonstrar que no capitalismo sempre haveria injustiça social e a riqueza é resultante de
um processo de exploração sobre o trabalhador. O capitalismo, de acordo com Marx e Engels, seria um
modelo econômico fundamentado na mais-valia, que se relaciona à possibilidade de acúmulo de capital.
Para esse acúmulo, os industriais e empresá-

BIBLIOTECA DO CONGRESSO, ESTADOS UNIDOS


rios construiriam as estratégias, nas quais se
inclui como objetivo aumentar a margem de
lucro. Uma estratégia para isso seria pagar
um salário que representa uma ínfima par-
te da riqueza que o operário produz. Essa
diferença entre o que o trabalhador custa e
o que ele produz e rende ao patrão está im-
plicada na noção de mais-valia.
Considerando esse modo de produzir ri-
queza, Marx associa o trabalho na economia
capitalista à alienação sob dois aspectos:
como produto do trabalho, que não perma-
nece com o trabalhador; e como processo,
no qual o próprio trabalho aparece como es- Repressão policial à manifestação de trabalhadores em
Haymarket, Chicago, em 1o de maio de 1886. A ilustração foi
tranho ao trabalhador. Vejamos o fragmento
publicada na revista Harper’s Weekly em 1886.
a seguir.

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O trabalho alienado
Ora, em que consiste a espoliação do trabalho? Primeiro, no fato de que o trabalho é exterior ao
operário, isto é, que não pertence ao seu ser; que, no seu trabalho, o operário não se afirma, mas se
nega; que ele não se sente satisfeito aí, mas infeliz; que ele não desdobra aí uma livre energia física
e intelectual, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito. É por isso que o operário não tem o
sentimento de estar em si senão fora do trabalho; no trabalho, sente-se exterior a si mesmo. É ele
quando não trabalha e, quando trabalha, não é ele. Seu trabalho não é voluntário, mas imposto.
Trabalho forçado não é a satisfação de uma necessidade, mas somente um meio de satisfazer neces-
sidades fora do trabalho.
A natureza alienada do trabalho aparece nitidamente no fato de que, desde que não exista impo-
sição física ou outra, foge-se do trabalho como da peste. O trabalho alienado, o trabalho no qual
o homem se espolia, é sacrifício de si, mortificação. Enfim, o operário ressente a natureza exterior
do trabalho pelo fato de que não é seu bem próprio, mas o de outro, que não lhe pertence; que no
trabalho o operário não pertence a si mesmo, mas a outro. [...]
Chega-se então a esse resultado, que o homem (o operário) só tem espontaneidade nas suas fun-
ções animais: o comer, o beber e a procriação, talvez ainda na habitação, o adorno etc.; e que nas
suas funções humanas só sente a animalidade: o que é animal torna-se humano e o que é humano
torna-se animal. Sem dúvida, comer, beber, procriar etc. são também funções autenticamente hu-
manas. Contudo, separadas do conjunto das atividades humanas, erigidas em fins últimos e exclu-
sivos, não são mais que funções animais.
MARX, Karl. O trabalho alienado. In: Os filósofos através dos textos: de Platão a
Sartre. Trad. Constança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. p. 250-251.

Para Marx, no modo de produção capitalista o operário percebe que o trabalho é algo exterior e estra-
nho, que ele não procura espontaneamente, pois não lhe proporciona satisfação. É o processo de objetifi-
cação, coisificação ou reificação. Trata-se, em um processo de alienação, da produção de mercadorias, por
meio de um trabalhador que vende sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção.
Em virtude dessa alienação que
MUSEU MUNCH, OSLO, NORUEGA

está no modo capitalista de organi-


zar o trabalho, Marx e Engels afir-
mam que não há outra saída senão
uma práxis política revolucionária,
criadora de algo novo e diferente,
por meio da qual os trabalhadores
conquistariam sua emancipação.
Contudo, essa práxis pressupõe a
consciência e a organização dos
trabalhadores. A desalienação daí
resultante deverá ser uma obra his-
tórica dos próprios trabalhadores.

Trabalhadores de volta para casa


(1913-1915), de Edvard Munch. Óleo
sobre tela, 201 cm × 227 cm.
A crítica de Marx à exploração capitalista
do trabalho reside na alienação e na
coisificação do trabalhador.

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PROBLEMATIZANDO
1. Há uma expressão muito utilizada em certos ambientes de trabalho: happy hour. Você já ouviu essa
expressão? Ela costuma ser associada ao término do expediente de trabalho.
• É possível estabelecer uma relação entre essa expressão e o texto de Marx sobre o trabalho alie-
nado?
2. O tema e a realidade da alienação se fazem presentes não apenas no trabalho, mas em muitos ou-
tros âmbitos da vida, como no consumo e na religião.
• Como você reconhece esse fenômeno nesses setores da vida?
3. Sabemos que o capitalismo está estruturado com base na mais-valia, na exploração dos recursos
naturais e humanos. Você percebe alguma transformação na organização do capitalismo contempo-
râneo? É possível ser capitalista e zelar pela sustentabilidade?
• Converse com os colegas sobre esses temas e apresente uma argumentação que sustente seu po-
sicionamento.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. O pensamento marxista é caracterizado por três categorias filosóficas articuladas: ele é materialista,
dialético e histórico. Redija um texto justificando essa afirmação.
2. Com base nos estudos realizados sobre o pensamento de Marx e Engels, identifique e justifique a
função da ideologia na formação da consciência e do agir social.

PENSANDO CONCEITUALMENTE A IDEOLOGIA E A ALIENAÇÃO

O conceito de ideologia surgiu em 1801, no Sob outro ponto de vista, é possível compreen-
livro Elementos de ideologia, do filósofo francês der o conceito de ideologia considerando a força
Antoine Destutt de Tracy, designando o estudo mobilizadora que ela traz em si. Nessa perspectiva,
científico das ideias, sua origem e seus desenvol- é decisiva a contribuição do filósofo e cientista po-
vimentos. Contudo, em A ideologia alemã (1846), lítico italiano Antonio Gramsci (1891-1937), para
Marx e Engels trazem uma nova visão para esse quem a ideologia refere-se aos valores, princípios
termo. Surge o sentido negativo de ideologia, e ideais que identificam o grupo social. Nessa di-
como ilusão e deformação de consciência. mensão coletiva, muitas ideologias são necessárias
Nessa visão, a ideologia é um instrumento da por mobilizar a ação humana na construção e re-
classe hegemônica para fazer uma inversão ou dis- construção da história.
torção da realidade e impedir que os dominados Considerando a forma como as ideologias se
tenham consciência da dominação e da opressão. relacionam com a dinâmica social, Karl Mannheim
Essa consciência invertida da realidade compro- (1893-1947) distingue ideologia de utopia. Sob o
mete a leitura consciente dela, porque vê o que ponto de vista ideológico, encontramos a óptica
a ideologia quer que veja. Com isso, a ideologia, da situação, da permanência, da manutenção do
camuflando a divisão existente no interior da so- status quo. Nesse sentido, aproxima-se da visão
ciedade, “naturaliza” o real, fazendo com que de Marx. Sob a perspectiva da utopia, encontra-
os problemas sociais apareçam como dimensões mos a dimensão revolucionária que constitui o
naturais da vida. Dessa forma, a ideologia gera a espírito dos grupos oprimidos, que se mobilizam
alienação, tornando as pessoas estranhas a si mes- para revolucionar a ordem dada.
mas e reféns de um pensar alheio.

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2. O SENTIDO DA POL TICA EM
HANNAH ARENDT
Cientista política e filósofa, Hannah Arendt nasceu em Hannover, na Alema-
FRED STEIN ARCHIVE/GETTY IMAGES

nha, em 14 de outubro de 1906. Aos 7 anos, ela perdeu o pai. De sua mãe ela
recebeu uma educação liberal, fundamentada em valores democráticos.
Na adolescência, mergulhou nos estudos filosóficos e teológicos. No começo da
juventude, mudou-se para Berlim, onde estudou a filosofia e a teologia de Sören
Kierkegaard, um dos fundadores do existencialismo. Em 1924, aos 22 anos, ingres-
sou na universidade, onde teve aulas com o existencialista Martin Heidegger, entre
outros filósofos e teólogos.
Em 1933, por ocasião da ascensão do nazismo ao poder, Hannah Arendt foi
para Paris, onde conheceu muitos intelectuais, especialmente Walter Benjamin
(1892-1940), da Escola de Frankfurt. Quando começou a Segunda Guerra Mun-
dial (1939-1945), a França esteve sob ocupação alemã.
Nessa ocasião, Hannah Arendt, de origem judaica, foi enviada a um campo de
Hannah Arendt.
concentração como estrangeira suspeita. Tendo conseguido fugir, chegou a Nova
York em 1941. Ela perdeu a nacionalidade alemã. Na condição de apátrida e de
Retome com os estudantes a temática das
duas grandes guerras mundiais e os horrores exilada, ficou sem direitos políticos por dez anos. Em 1951, obteve a cidadania
praticados. Nesse contexto, situe a vida e o americana. Nos Estados Unidos, ela passou a escrever para revistas e desenvolveu
pensamento de Hannah Arendt. Diante da
realidade dos campos de concentração e de carreira acadêmica. Faleceu em dezembro de 1975.
extermínio, frente ao tema e à realidade
histórica do holocausto, elabore algumas
questões problematizadoras. Por exemplo: O
que pode levar alguém a abrir um canal ou um A li e m l
registro de gás letal? Qual é a origem do mal?
É possível cortar o mal pela raiz? Ou o mal não
tem raízes? Entre suas obras, merece destaque Origens do totalitarismo, de 1951. Nesse
escrito, ela evidencia que nazismo e stalinismo são ideologias totalitárias que se
firmaram mediante a manipulação das massas e pela banalização do terror.
Em 1963, lança o livro Eichmann em Jerusalém. Essa obra é uma coletânea
de artigos que ela escreveu sobre o julgamento de Adolf Eichmann, ocorrido em
Israel, em 1961. Ela foi enviada a Jerusalém como representante da revista The
New Yorker para cobrir o julgamento. Eichmann foi acusado de crimes contra a
humanidade, crimes contra o povo judeu e crimes de guerra durante a Segunda
Guerra Mundial. Ele participou ativamente do Holocausto, que exterminou mi-
lhões de judeus.
Esse julgamento foi transmitido ao vivo em cadeia radiofônica para todo o
mundo. Sobreviventes do Holocausto testemunharam contra ele. Julgado cul-
pado, foi condenado à morte por enforcamento. Tendo acompanhado o julga-
mento, Hannah Arendt escreveu cinco artigos para a revista The New Yorker, que
resultaram no livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.
Um dos aspectos que chamou especial atenção de Hannah Arendt foram as
palavras do acusado e sua declaração de inocência. Eichmann sentia-se culpado
perante Deus, mas não em relação à lei humana, pois teria cumprido atos de
Estado. Ele não deveria, por isso, ser condenado como um criminoso, pois teria
cumprido ordens. De acordo com esse raciocínio, se entre os condenados estives-
se o próprio pai, ele também teria cometido esses crimes, pois acreditaria estar
agindo sob a força e o comando da lei.
Nessa apresentação dos argumentos de Eichmann, Hannah Arendt destaca
a banalidade do mal. Eichmann seria, assim, um homem normal no interior do
regime nazista.

330

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Eu quero dizer que o mal não é radical, indo até as raízes (radix), que não tem profundidade, e que
por esta mesma razão é tão terrivelmente difícil pensarmos sobre ele, visto que a razão, por definição,
quer alcançar as raízes. O mal é um fenômeno superficial, e em vez de radical é meramente extremo.
Nós resistimos ao mal em não nos deixando ser levados pela superfície das coisas, em parando e
começando a pensar, ou seja, em alcançando uma outra dimensão que não o horizonte de cada dia.
Em outras palavras, quanto mais superficial alguém for, mais provável será que ele ceda ao mal. Uma
indicação de tal superficialidade é o uso de clichês, e Eichmann, [...] era um exemplo perfeito.
ARENDT, Hannah. Carta a Grafton, apud ASSY, Bethânia. Eichmann, banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt. In: MORAES,
Eduardo Jardim; BIGNOTTO, Newton (Org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 145.

Nessa reflexão, Hannah Arendt associa a banalidade do mal à ausência de raízes e à superficialidade.
Nesse sentido, essa banalidade não procede de algum mal profundo, não tem raízes e, por isso, espalha-se
de modo rápido na superficialidade. A banalidade do mal seria

MUSEU DO PRADO, MADRI, ESPANHA


uma espécie de mal que nasce da ausência de pensamento. E,
por isso mesmo, não tendo a instância crítica, seria capaz de
chegar a praticar horrores extremos jamais pensados. Tratar-se-
-ia não de um mal radical, pois não tem raízes, mas de um mal
sem limites, por conta da ausência do pensamento crítico.
Em contrapartida, a filósofa afirma que o mal, que não tem
raízes, será superado por uma atitude reflexiva e pela faculdade
de pensar, as quais vão até as raízes e provocam perplexida-
de, percebendo contradições. Essa faculdade de pensar, para
Hannah Arendt, coloca o indivíduo em diálogo consigo mesmo,
explicita seus conflitos e poderia gerar obstáculos aos seus atos.

O sonho da razão produz monstros (1797-1799), de Francisco de Goya y


Lucientes. Água-forte e água-tinta sobre papel, 30,6 cm × 20,1 cm.
O pintor espanhol Francisco de Goya representou nessa tela as
decorrências possíveis do momento em que o ser humano tem
anestesiada sua faculdade de juízo racional. O sono da razão é o despertar
da irracionalidade, em suas múltiplas formas.

Em um de seus mais consagrados escritos, Origens do totalitarismo, Hannah Arendt reflete sobre o to-
talitarismo enquanto movimento que implica fanatismo e conformismo e que teria uma ideologia oficial no
comando de tudo. Leia o fragmento a seguir:

Dentro da estrutura organizacional do movimento [totalitário], enquanto ele permanece inteiro,


os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com
o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo
que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte. [...]
O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autô-
noma de qualquer atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. [...]
O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através do Estado e de
uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de
coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 436-455.

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Para Hannah Arendt, o regime totalitário desmantela tanto os espaços públicos (de manifestação po-
lítica) como os espaços da vida privada (nos quais há o mínimo de relações solidárias). No totalitarismo, o
indivíduo se vê confrontado com a experiência mais devastadora que existe, que a filósofa denomina de
desolação, pois nela o indivíduo tem a experiência do não pertencimento a qualquer coisa.
Por isso, o totalitarismo afasta o indivíduo da política, cujo horizonte é a liberdade. A impossibilidade de
ação que existe no regime totalitário torna os indivíduos não livres.

PROBLEMATIZANDO
1. Leia o fragmento a seguir, de Hannah Arendt:

Em contraposição tanto aos regimes tirânicos como aos autoritários, a imagem mais adequada
de governo e organização totalitários parece-me ser a estrutura da cebola, em cujo centro, em uma
espécie de espaço vazio, localiza-se o líder; o que quer que ele faça – integre ele o organismo político
como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano –, ele o faz de dentro,
e não de fora ou de cima.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 3. ed. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 136.

• Hannah Arendt usa a metáfora da estrutura da cebola. Cebola tem núcleo? Como é o cerne de
uma cebola?
• Como essa imagem ajuda a entender a presença do líder e do poder no totalitarismo?
• Converse com os colegas sobre esse tema e apresente os argumentos que sustentem sua posição.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. No fragmento a seguir, Hannah Arendt faz uma reflexão sobre as bases dos movimentos totalitários.
Para a filósofa, manter os indivíduos atomizados e isolados é uma estratégia necessária para a per-
petuação do totalitarismo:

Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distin-


guem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional
e inalterável de cada membro individual.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 446-453.
THE STEDELIJK MUSEUM, AMSTERDÃ, HOLANDA

• Com base nessa afirmação e em outras informações, explique


o fenômeno do totalitarismo, explicitando suas características
fundamentais.

O agitador (1928), de George Grosz. Óleo sobre tela, 109 cm × 81 cm.


George Grosz (1893-1959) foi um dos principais representantes do dadaísmo na
Alemanha, movimento artístico focado no tema da irracionalidade. Ele fez fortes
críticas, por meio da arte, à Primeira Guerra Mundial. Grosz era pintor e desenhista
caricaturista, focado na crítica e na condenação das muitas formas de corrupção e
violência social e urbana presentes na sociedade alemã.

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Para dar continuidade a essas reflexões sobre a política, proponha inicialmente aos estudantes as perguntas: O que é, afinal, a política e o poder
A l i político? O que caracteriza a política? A previsibilidade? A liberdade? A revolução? Para ajudar na preparação deles para esse estudo, retome a
noção de pólis (abordada no eixo temático dedicado à ética e à política da unidade 2) e, com ela, a atuação politica dos cidadãos de Atenas.

Como pensar a política depois dos fenômenos totalitários? O que significa “política” após a experiência
dos campos de concentração nazistas de Dachau e Auschwitz?
O campo de concentração de Dachau foi construído pelos nazistas em 1933, próximo à cidade alemã de
Dachau, em uma antiga fábrica de pólvora. Estudos indicam que Dachau chegou a abrigar mais de 200 mil
prisioneiros. Nele, foram exterminadas dezenas de milhares de pessoas.
CAMINOEL/SHUTTERSTOCK

Auschwitz II-Birkenau, o campo de


extermínio do complexo de Auschwitz.
Auschwitz é o nome dado a um
conjunto de campos de concentração
e centros de confinamento militar
localizados no sul da Polônia, em
uma área anexada pela Alemanha
nazista. Nessa área, havia um campo
de extermínio. É o maior símbolo do
nazismo e da Alemanha governada por
Hitler a partir de 1940.

Em A condição humana (1958), Hannah Arendt define a política como ação e processo marcados pela
conquista da liberdade. No primeiro capítulo, ela expressa essa ideia, fundamentada em uma visão grega da
Antiguidade segundo a qual a vida aparece em três dimensões.
Nessa visão grega, a ética e a política estão na dimensão do agir, enquanto a arte se encontra na dimen-
são do fazer e do produzir, e a ciência, no âmbito do saber.
Para Hannah Arendt, a política nasceu como espaço da liberdade, dos livres acordos entre pessoas liber-
tas da necessidade de lutar pela subsistência material e em condições de participar de discussões abertas e
compartilhadas. Então, rigorosamente, o Holocausto não é política, é violência. Não há política totalitária,
pois a política é o espaço da liberdade.
Na Grécia Clássica, o espaço doméstico era marcado pela hierarquia e, portanto, pela desigualdade,
pela superioridade de uns sobre outros, pelo domínio do pai sobre a esposa e dos filhos sobre os escravi-
zados. Em contrapartida, a pólis era o espaço da liberdade, do poder comum, da busca de consensos livres
que construirão o destino da cidade. Assim, política significa ação conjunta. Nesse pensamento, o poder
é concebido como relação. Ninguém possui o poder individualmente. Ele acontece na relação. E ninguém
governa sem ter uma base de apoio, uma sustentação.

Da revolução
Em 1963, Hannah Arendt publica a obra Da revolução. Nela, a filósofa faz uma análise da Revolução
Francesa e da Revolução Americana. Essa obra, em sua radicalidade, aborda a fundação da era moderna
como resultado de um ato de liberdade. As revoluções que inauguram a era moderna foram motivadas pela
liberdade. As instituições criadas após essas revoluções deverão garantir esse ideal.
Nos textos Da revolução, Desobediência civil e Da violência, Arendt faz um diagnóstico da crise da de-
mocracia representativa. Em sua percepção, isso se deve à excessiva burocratização, bem como à perda
de poder das instituições, o que gerou a diminuição dos espaços de livre participação dos cidadãos. Para
Arendt, a política se faz com debate e associação e por meio da participação ativa. Assim, a política é ne-
cessariamente o espaço da pluralidade.

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Sendo o espaço da liberdade, a política é também o lugar do imprevisível e da criação do novo. Portanto,
a política abre a perspectiva da esperança, uma vez que a história não tem um sentido previamente traçado,
sendo fruto das livres interações humanas. Dessa forma, a política é o tempo e o espaço de revolução.
Diferentemente da educação, que precisa zelar pelos fundamentos que garantem a civilidade ao longo
dos tempos, a política é o lugar da revolução. Para Hannah Arendt, revolução não é o mesmo que rebelião.
Enquanto as rebeliões buscam remover certas peças do jogo, a revolução busca uma nova ordem, procura
interromper um curso histórico e inaugurar um novo começo. Essa novidade é filha da liberdade, que, por
sua vez, não é natural, mas política e, especificamente, republicana.
Não se deve confundir o reino da política com o da economia ou da administração, entendidas como a
garantia do acesso à subsistência. A revolução política está assentada na garantia da liberdade, do convívio
fundamentado na alteridade, na diferença e na pluralidade.
Hannah Arendt faz também a distinção entre liberdade e libertação. A libertação de um povo requer a
conquista de direitos que promovam a eliminação da repressão e da arbitrariedade de governos. Mas essa
libertação ainda não é a liberdade propriamente dita, que é de natureza política, pois implica a participação
na coisa pública.
Por isso, para Hannah Arendt, a Revolução Americana (1776) teve mais êxito que a Revolução Francesa
(1789), pois seu foco estava em criar instituições políticas capazes de garantir o espaço para que a liberdade
se realizasse. De acordo com a filósofa, o sucesso da Revolução Americana foi a redação de uma Consti-
tuição, a qual possibilitou o começo de um regime republicano. Com isso, Arendt traz um elemento novo
para se pensar a ideia e a realidade da soberania popular, vinculada à Carta Magna ou Constituição. Leia o
fragmento a seguir:

Nesse aspecto, o curso da Revolução Americana nos mostra um exemplo inesquecível e nos ensina
uma lição sem precedentes, pois essa revolução não eclodiu simplesmente, mas foi antes conduzida
por homens que tomaram juntos uma resolução, unidos pela força de compromissos mútuos. O
princípio veio à luz durante os conturbados anos em que foram lançadas as fundações – não por
determinação de um arquiteto, mas pelo poder combinado de muitos – foi o princípio interconexo
da promessa mútua e da deliberação comum [...].
ARENDT, Hannah. Da revolução. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Ática, 1988. p. 171.

CAPITÓLIO DOS ESTADOS UNIDOS, WASHINGTON D. C., ESTADOS UNIDOS

Declaração de
Independência (1819), de
John Trumbull. Óleo sobre
tela, 3,7 m × 5,5 m.
A obra representa a entrega
da primeira versão da
Declaração de Indepência
dos Estados Unidos ao
Congresso, em 28 de junho
de 1776. A independência
dos Estados Unidos em
relação ao Reino Unido
ficou conhecida como
Revolução Americana.

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A concepção antropológica, ética e política de Hannah Arendt fica bem expressa na forma como ela
conclui seu texto mais célebre sobre o fenômeno do totalitarismo:

Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um
novo começo; esse começo é a promessa, a única mensagem que o fim pode produzir. Começo,
antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à
liberdade do homem.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 639.

Sugerimos a leitura e a análise do texto, promovendo com os estudantes uma reflexão que aborde a contraposição da
democracia aos fenômenos políticos marcados pela violência. Uma das estratégias é dividir os estudantes em pequenos grupos
para que, com base na leitura, estabeleçam os princípios da democracia que se opõem ao totalitarismo: soberania popular, lugar
"vazio" do poder, representatividade e participação, abertura e rotatividade, divisão dos poderes, pluralidade ideológica, principio
OUTROS OLHARES da publicidade ou da visibilidade, legitimidade da oposição, liberdade de informação e de imprensa, estado de direito, direito de
greve, forças armadas a serviço da democracia, entre outros.
1. Leia o texto a seguir, escrito por Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo político e historiador do pen-
samento político. Procure identificar, nesse fragmento, elementos comuns à reflexão que Hannah
Arendt desenvolveu.

O futuro da democracia
Em primeiro lugar, se hoje existe uma ameaça à paz mundial, esta vem ainda uma vez do fanatis-
mo, ou seja, da crença cega na própria verdade e na força capaz de impô-la. [...]
Em segundo lugar, temos o ideal da não violência: jamais me esqueci do ensinamento de Karl
Popper segundo o qual o que distingue essencialmente um governo democrático de um não
democrático é que apenas no primeiro os cidadãos podem livrar-se dos seus governantes sem
derramamento de sangue.
As tão frequentemente ridicularizadas regras formais da democracia introduziram pela primeira
vez na história as técnicas de convivência, destinadas a resolver conflitos sociais sem o recurso à
violência. Apenas onde essas regras são respeitadas o adversário não é mais um inimigo (que deve
ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar.
Em terceiro lugar: o ideal da renovação gradual da sociedade através do livre debate das ideias e
da mudança das mentalidades e do modo de viver: apenas a democracia permite a formação e a
expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nestas últimas décadas a transformação
das relações entre os sexos (que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos).
Por fim, o ideal da irmandade (a fraternité da Revolução Francesa). Grande parte da história hu-
mana é uma história de lutas fratricidas (frater = irmão). O método democrático não pode perdurar
sem se tornar um costume. Mas pode tornar-se um costume sem o reconhecimento da irmandade
que une todos os homens num destino comum? Um reconhecimento ainda mais necessário hoje,
quando nos tornamos a cada dia mais conscientes deste destino comum e devemos procurar agir
com coerência, através do pequeno lume de razão que ilumina nosso caminho.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 38-40.

PROBLEMATIZANDO
1. Qual é a ideia de república presente nas reflexões de Hannah Arendt?
2. Como Hannah Arendt diferencia “libertação” de “liberdade”?
3. Norberto Bobbio diz que ainda hoje existe uma ameaça à paz mundial que vem do fanatismo, da
crença cega na própria verdade e na força capaz de impô-la. Disso, parece que os fanatismos e os

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preconceitos são de ordem afetiva e emocional e não racional. Parece não ser uma questão de inte-
ligência, mas de predisposição afetiva.
• Como você se posiciona em relação a essas afirmativas? Como surge o preconceito? Do que ele se
alimenta? O que ele produz? Quais caminhos você sugere para minimizá-lo ou superá-lo?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Com base no pensamento político de Hannah Arendt, justifique a afirmação a seguir:
A revolução não é de natureza social, mas política.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE LEITURAS
ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática, 1988. ________. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a ba-
________. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: nalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Forense Universitária, 2005. ________. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo:
________. A dignidade da política: ensaios e conferên- Perspectiva, 2001.
cias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. ________. Origens do totalitarismo: antissemitismo, im-
________. A vida do espírito: querer. v. 2. Lisboa: Institu- perialismo e totalitarismo. São Paulo: Companhia das
to Piaget, 1999. Letras, 2012.
________. Crises da república. 2. ed. São Paulo: Perspec- ________. Responsabilidade e julgamento. São Paulo:
tiva, 2004. Companhia das Letras, 2004.
Dando continuidade à reflexão, problematize com os estudantes algumas experiências históricas de democracia. A democracia é o lugar do entendimento mútuo, dos consensos, das discussões
racionais voltadas para o bem comum? As experiências politicas mais recentes no Brasil permitem-nos pensar em democracia amadurecida, com deliberações voltadas aos interesses de nação?
Ou estaríamos vivendo uma crise na consciência e na vontade políticas? A atual democracia representativa estaria em crise? Quais são as perspectivas e os caminhos que teríamos de trilhar?

3. TICA DO DISCURSO: DA AÇÃO ESTRAT gICA


AÇÃO COMUNICATIVA
Jürgen Habermas é um filósofo e sociólogo alemão nascido em Düsseldorf, em 18 de junho de 1929.
Seu pensamento integra a tradição da teoria crítica, ligada à Escola de Frankfurt, especialmente em sintonia
com Theodor Adorno e Herbert Marcuse. Da sociologia, herdou de Max Weber, especialmente, a influência
de sua reflexão sobre racionalização da sociedade moderna.
Na dinâmica da reflexão da Escola de Frankfurt, seu pensamento situa-se no tema das relações huma-
nas, da ética e da política em sociedades afetadas pelo capitalismo avançado, com sensibilidade especial
para o tema da democracia, do qual provém sua
WOLFRAM HUKE (CC-BY-SA-3.0)

reflexão sobre a ação humana orientada para o


entendimento mútuo e a construção de consen-
sos universais.
Recordando a crítica da Escola de Frankfurt, so-
bre a qual refletimos na unidade anterior, a razão
filosófica, originalmente crítica, foi transformada,
por meio do Iluminismo moderno, em razão ins-
trumental, técnica e manipulatória. Colocada a
serviço dos interesses do capital, tornou-se refém
de um modelo econômico capitalista.
Nesse âmbito imperam a razão técnica e a
ação estratégica, em uma sociedade profunda-
Jürgen Habermas. mente individualista, na qual cada indivíduo é

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estimulado a realizar seus projetos individuais por meio de estratégias que influenciem ou manipulem
outros indivíduos. Nesse espírito de época, vivemos o desmoronamento das grandes narrativas, de cos-
movisões metafísicas e religiosas. Uma das maiores decorrências disso, para Habermas, verifica-se no
horizonte das motivações pessoais.
Embora o ser humano, em sua racionalidade, seja capaz de deliberar e agir em função de interesses ra-
cionais e coletivos, para Habermas, estaríamos vivendo uma profunda crise na formação da vontade política
e na motivação racional dos indivíduos para a construção de saídas políticas para a humanidade.

Se H em , m i e ee m ie e em e em
e i m i i .E m i i l e e e e ie
e e ime m , e ei i i li m e .O ,i e e e i-
em e m ili e, i l , i , e e li e i i em
e e .

Quando Habermas fala em ética do discurso, faz referência a uma forma de comunicação caracterizada
pela argumentação, na qual se considera a validade das pretensões de cada membro participante da discus-
são. Por isso, os discursos conduzem ao entendimento, uma vez que são marcados pela reflexividade. Dessa
forma, na ação comunicativa o foco está nos melhores objetivos a serem buscados coletivamente. As ações
passarão a ser coordenadas em uma democracia deliberativa, na qual os cidadãos participam de forma
crítica e argumentativa. Com o diálogo, acontecerá a construção dos consensos, não havendo necessidade
de estratégias de repressão e censura, pois o entendimento mútuo, com base em uma razão livre e crítica,
será suficiente para estabelecer os contornos da vida social.
Habermas é sensível ao pluralismo do mundo contemporâneo, que apresenta vários estilos de vida, to-
dos igualmente legítimos e que deverão ter o espaço aberto à participação na construção dos consensos, os
quais fortalecerão as identidades pessoais por meio do reconhecimento. Nesse encontro plural, a questão
motivadora do diálogo será: “O que é bom para todos por igual?”.
O filósofo concentra-se na dimensão da construção de consensos. Com isso, reconhecemos que seu
pensamento está sendo guiado por uma preocupação política, que solicita dos indivíduos a participação pú-
blica nas discussões em busca das melhores decisões, e não somente de soluções simplistas e imediatistas.
Por isso, sua reflexão ética, muito mais do que pensar em um objeto ou conteúdo específico, está voltada
para a formação de um jeito de ser e de viver no qual as soluções são buscadas de forma colegiada e racional.
MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Marcha pela vida e liberdade


religiosa no Dia Nacional
de Combate à Intolerância
Religiosa em Porto Alegre
(RS), 2016.
O que é bom para todos por
igual? A ação comunicativa
proposta por Habermas,
orientada para o entendimento
mútuo e a construção de
consensos, pressupõe o
desenvolvimento da habilidade
do diálogo, da discussão,
do debate público e da ética
do discurso. Em defesa do
pluralismo, toda forma de
intolerância deve ser combatida
por meio da argumentação e da
reflexividade.

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PROBLEMATIZANDO
1. Se considerarmos os programas televisivos e os conteúdos na internet que as pessoas mais buscam,
de que natureza eles são? Talvez esse olhar nos ajude a captar o espírito da época. Que diagnóstico
você faz dessa realidade?

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE LEITURAS
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de ______. O discurso filosófico da modernidade: doze li-
teoria política. Trad. George Sperber et al. São Paulo: ções. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Loyola, 2002. ______. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro:
______. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Tempo Brasileiro, 2002.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ______. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São
______. Direito e democracia: entre facticidade e va- Paulo: Loyola, 2004.
lidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
As reflexões precedentes nos encaminharam a esse ponto crucial, entre
o liberalismo e o comunitarismo. Inicie essa reflexão final solicitando aos
estudantes um posicionamento relacionado aos rótulos de "direita" e de
4. LIBERALISMO E COMUNITARISMO "esquerda". Eles ainda fazem sentido? É possível conjugar as duas ênfases?
Por um lado, liberdade e direitos individuais e, por outro, bem comum e
justiça social?
No terreno da filosofia política contemporânea, existe uma ampla discussão entre liberalismo e comu-
nitarismo. Por um lado, os liberais consideram-se herdeiros de John Locke, Thomas Hobbes, Stuart Mill e
Immanuel Kant. Por outro lado, os comunitaristas lançam suas raízes em Aristóteles e consideram-se funda-
dos na tradição republicana inaugurada na Renascença por Maquiavel, em cujo pensamento o governante
ou “o príncipe” deve subordinar sua conduta ao êxito político e à ordem social.
Os liberais defendem, acima de tudo, a liberdade individual, o respeito aos direitos individuais e a liber-
dade de consciência e alimentam uma profunda desconfiança em relação à interferência do Estado na vida
social, econômica e política, pois isso limitaria as liberdades individuais. Podemos incluir entre os liberais
John Rawls (1921-2002), Ronald Dworkin (1931-2013), Thomas Nagel (1937), Bruce Ackerman (1943) e
Charles Larmone (1950).
Em sua crítica antiliberal, os comunitaristas denunciam a dimensão abstrata da moral liberal, por não
contemplar a história das tradições culturais. Os comunitaristas defendem a ética das virtudes com base na
perspectiva aristotélica. Recordando o conceito de virtude aristotélica, que estudamos na unidade 2, a vir-
tude está ao alcance de cada um de nós por meio do desenvolvimento de habilidades relacionadas ao bem
pensar, ao deliberar e ao escolher bem, visando sempre ao bem mais elevado, que é a justiça. Embora haja
potencialidade natural para a virtude, ela resulta da educação, do conhecimento, do hábito de cultivar as
potencialidades e da capacidade de lutar racionalmente contra as paixões e controlar as emoções. Assim, a
vida virtuosa implica autodomínio para a vida em sociedade. Entre os comunitaristas, incluímos Alasdair
MacIntyre (1929), Charles Taylor (1931), Michael Sandel (1953), Will Kymlicka (1962) e Michael Walzer (1935).
Os liberais argumentam que o Estado é um instrumento para assegurar a coexistência pacífica dos in-
divíduos em uma sociedade formada pelo contrato. De forma radical, a política deve assegurar e garantir
a cada indivíduo, de maneira igualitária, a liberdade de escolher a melhor vida para si, sem ferir os direitos
dos outros.
Em contrapartida, os comunitaristas concebem o ser humano como um animal político, afirmando que
o indivíduo/cidadão deve empenhar-se e engajar-se social e politicamente na esfera pública, participando
ativamente das questões que dizem respeito à vida em comunidade. Portanto, sobre o indivíduo pesam
obrigações éticas e sociais para o aprimoramento do bem comum, que será também seu bem.

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No fragmento a seguir, Hannah Arendt faz uma reflexão sobre a relação entre a sociedade competitiva
de consumo, o individualismo e a apatia política:

A sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia gerou apatia, e até mesmo hostilidade,
em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participa-
ção ativa no governo do país, mas acima de tudo entre a sua própria classe [...]. O sucesso ou o fra-
casso do indivíduo em acirrada competição era o supremo objetivo, de tal modo que o exercício dos
deveres e responsabilidades do cidadão era tido como perda desnecessária do seu tempo e energia.
Essas atitudes burguesas são muito úteis àquelas formas da ditadura nas quais um “homem forte”
assume a incômoda responsabilidade de conduzir os negócios públicos [...].
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 441.

Em suma, o liberalismo e o comunitarismo pensam em uma sociedade regida por leis que garantam os
direitos e promovam a justiça, embora tenham perspectivas distintas. Essas disputas são muito saudáveis
para a vida democrática. Seguramente, o desafio consiste em buscar a construção de uma qualidade de vida
social, na qual se realize a vida dos indivíduos em suas relações.

PROBLEMATIZANDO
1. Considerando essa reflexão de Hannah Arendt, você diria que há uma incompatibilidade natural
entre os interesses particulares e o bem comum? Ou a apatia política e desinteresse pela coisa pública
são dimensões construídas culturalmente?
• Converse com os colegas e apresente sua argumentação para sustentar seu posicionamento em
relação à questão proposta.
2. Na filosofia moderna, no eixo da ética e da política, estudamos a visão dos filósofos contratualis-
tas. Agora, vimos alguns elementos da visão comunitarista. Vamos ler dois fragmentos de Alasdair
MacIntyre, que resgata a visão aristotélica de ser humano e a confronta com a concepção antro-
pológica e moral dos séculos XVII e XVIII. É muito importante considerarmos essa distinção fun-
damental, pois esses pressupostos nos levam a diferentes direções em nossas reflexões e atitudes.

Foi nos séculos XVII e XVIII que a moralidade passou a ser entendida em geral como oferecendo
uma solução para os problemas gerados pelo egoísmo e que o conteúdo da moralidade passou a ser
igualado ao do altruísmo, pois foi nesse mesmo período que os homens passaram a ser vistos como
se fossem, num grau perigoso, egoístas por natureza; e é só quando consideramos a humanidade
perigosamente egoísta por natureza que o altruísmo se torna, de imediato, socialmente necessário,
porém obviamente impossível e, se e quando ocorre, inexplicável. Na tese aristotélica tradicional,
tais problemas não surgem, pois o que a educação em virtudes me ensina é que o meu bem como
homem é o mesmo que o bem dos outros, a quem estou unido na comunidade humana. A minha
busca do meu bem como um homem não é necessariamente antagônica à sua procura do seu, pois
o bem não é meu bem nem seu – os bens não são propriedade privada. Consequentemente, a de-
finição aristotélica de amizade, a forma fundamental de relacionamento humano, tem como fun-
damento os bens compartilhados. O egoísmo é, então, para os mundos antigo e medieval, sempre
alguém que cometeu um erro fundamental com relação ao lugar do seu próprio bem, e alguém que,
assim, excluiu a si mesmo dos relacionamentos humanos.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001. p. 383-384.

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• Nesse fragmento, qual é a tese do autor sobre a dimensão constitutiva do ser humano? Aproxima-se
da dimensão política ou, ao contrário, do individualismo?
• Como você se posiciona em relação a esse tema? Concorda com o autor? Tem algum exemplo para
ilustrar seu posicionamento?

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia os trechos a seguir:
Trecho 1

A natureza compele todos os homens a se associarem [...]. Se o homem, tendo atingido a sua perfei-
ção, é o mais excelente entre os animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e preceitos
[...]. A justiça é a virtude das virtudes. Na justiça estão compreendidas todas as virtudes, é a virtude
completa. É completa porque aquele que a possui pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo,
mas também sobre seu próximo, já que muitos homens são capazes de exercer virtude em seus as-
suntos privados, mas não em suas relações com os outros [...]. Portanto, a justiça não é uma parte da
virtude, mas a virtude inteira; nem seu contrário, a injustiça, uma parte do vício, mas o vício inteiro.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 81-83. (Os pensadores).

Trecho 2

A unidade da vida humana se torna invisível para nós quando uma separação nítida é feita entre
o indivíduo e os papéis sociais que ele ou ela desempenha [...] ou entre as realizações de diferentes
papéis [no interior] da vida de um indivíduo, de modo que a vida aparece como nada mais do que
uma série de episódios desconexos.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001. p. 344.

• Com base nesses trechos, redija um texto caracterizando a posição defendida pelos autores no que
se refere à temática da relação indivíduo-comunidade.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE FILMES
Tem i : A alienação no trabalho justamente aquilo que a produção capitalista "reti-
Filme: Notícias da antiguidade ideológica: Marx, ra" do trabalhador: a identificação com o seu pró-
Eisenstein, O capital (Alemanha, 2008). Direção: prio trabalho.
Alexander Kluge. Nesta obra, Kluge se utiliza de Tem i : Autoritarismo e totalitarismo
diversas linguagens (entrevistas, cartazes, dramati- Filme: A onda (Alemanha, 2008). Direção: Dennis
zações, poesia, músicas, reportagens, curta-metra- Gansel. O filme narra a história de um professor de
gens) para articular algumas das principais ideias do uma escola que conduz um experimento com seus
pensamento marxista. O homem na coisa, um dos estudantes para demonstrar as formas de implanta-
curtas apresentados na película, apresenta, a partir ção de um governo autoritário e totalitário. A pelí-
de um momento cotidiano (uma mulher correndo cula aborda o fanatismo, o conformismo e a perda
em uma calçada), o processo de produção de cada de identidade dentro da massa (demonstrada pela
objeto exibido na cena. Dessa forma, introduzindo uniformidade das roupas, dos códigos de conduta,
a dimensão humana da mercadoria, o curta indica no ritual dos gestos) governada pelo totalitarismo.

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4
Eixo Temático

ARTE E
ESTÉTICA

bre :
e r so
d
en

pr
ia
va
Você

• Arte como expressão da subjetividade e


criação do sujeito.
• Diferença entre arte e cultura.
• A existência estética e a arte de bem
viver em Nietzsche.
• Arte como retorno do reprimido e
manifestação das fantasias em Freud.
• Arte como espaço da liberdade.
• Indústria cultural e manipulação da arte.
• Massificação e padronização da arte.

Temas:
1. Arte como intuição e criação subjetiva
2. Arte e cultura
3. A arte de viver em Nietzsche
4. Arte, fantasia e sublimação em Freud
5. Indústria cultural e cultura de massa

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1. ARTE COMO INTUIÇÃO E CRIAÇÃO SUBJETIVA
Retome com os estudantes a noção de pós-
MUSEU SALVADOR DALI, SÃO PETESBURGO, ESTADOS UNIDOS

-moderno, um espírito de época marcado tanto


pela oposição ao espírito moderno como por
uma busca de novos objetivos, apresentando
novas sensibilidades: ambientais, sociais, de
consumo, de justiça, de direito dos animais etc.

Crianças geopolíticas assistindo


ao nascimento do novo homem
(1943), de Salvador Dalí. Óleo
sobre tela, 45,72 cm × 52,7 cm.
Nesta obra, Salvador Dalí
representa a esperança que
havia no nascimento de um
novo indivíduo após o período
traumático das guerras. Contudo,
o clima é mais de ameaça do que
de otimismo. Percebe-se que
no mundo, em forma de ovo, os
continentes não estão sólidos.
Uma gota de sangue escorre da
abertura pela qual nasce o “novo
homem”.

Nas primeiras décadas do século XX, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, são feitas fortes
críticas à cultura tecnológica, capitalista e destrutiva que se encontrava fora do controle da razão crítica.
Na arte, o surrealismo surge como um movimento que dá ênfase à dimensão irracional do ser humano.
Nessa época, Sigmund Freud (1856-1939) já havia construído sua teoria do subconsciente e do inconsciente
na mente humana. Esse foi um tema muito explorado pelo surrealismo, que procurou expressar, na arte, a
influência exercida pelas forças psíquicas quando não se encontram bloqueadas pela razão. Assim, sem os
freios da razão crítica, estamos diante de criações que resultam da emoção e da espontaneidade humana.
Iniciaremos nossa reflexão sobre a arte com uma abordagem mais genérica, considerando-a como uma
forma de conhecimento vinculada essencialmente à intuição, e não ao pensamento discursivo. Embora essa
concepção possa ser aplicada a praticamente todos os períodos da história do pensamento, a partir da moder-
nidade isso fica mais forte, uma vez que a subjetividade e a liberdade passam a estar no centro das reflexões
filosóficas. No universo da arte, não tem sido diferente. Vejamos o fragmento a seguir, que expressa essa ideia:

Pensar na arte como uma forma de conhecimento é retomarmos os caminhos do sentimento e da


intuição que transcendem a lógica da argumentação racional e discursiva. Para além do que pode
ser nomeado, o artista sente e intui o que não aparece e imagina e constrói símbolos que nos reme-
tem à transcendência do real. A sensibilidade e a intuição do artista tornam-se mediações para um
tratamento ou abordagem sempre novos e diferenciados do real. Essa nova forma de abordagem
do real promove, em quem nela mergulha, um processo de desinstalação, inquietude e busca por
um novo olhar, que faça sentido, que integre o atualmente presente com o potencialmente ainda
ausente. Essa é a dimensão criativa que perpassa a obra de arte, através da qual instaura-se a possi-
bilidade de ver o mundo com nova sensibilidade e com olhar mais complexo. [...]
ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 9.

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Na sociedade contemporânea, também chamada de “pós-moderna” por muitos pesquisadores (a ex-
pressão indicaria o que é “pós” ou “novo” em relação ao espírito moderno), uma das características mais
marcantes é o abandono das grandes utopias que marcaram a modernidade e originaram revoluções em
vários âmbitos da vida, como no conhecimento, na política, na economia e na sociedade. Com essa liberta-
ção em relação às grandes narrativas, uma das questões sobre as quais a arte contemporânea se dedicará é
o próprio conceito de arte. O que faz algo ser arte?
FABIENNE FAUR/AFP/MUSEU AMERICANO DE ARTE SMITHSONIAN,
WASHINGTON, ESTADOS UNIDOS

TV Jardim (1974), instalação de Nam June Paik.


Nesta obra, o artista sul-coreano Nam June Paik (1932-2006) aborda o distanciamento dos
ambientes naturais imposto às pessoas pela tecnologia no mundo urbano contemporâneo.
Paik também exerce uma crítica, por meio da exibição da mesma programação em todos
os aparelhos de TV, à forte presença da tecnologia em nosso cotidiano e à maneira como as
pessoas assimilam informações de forma acrítica, por meio da televisão e de outras mídias.

[...] A pós-modernidade traz a marca da libertação em relação às instituições e às grandes narrativas


ou utopias. Esse espírito também se manifesta no campo da arte, onde predomina a liberdade da cria-
ção do sujeito, sem vínculos. Por isso, as criações artísticas contemporâneas não trazem uma legenda
ideológica específica, seja religiosa ou política. Uma das marcas da pós-modernidade é a metalingua-
gem, a reflexão que se volta sobre o próprio objeto ou sujeito de aprendizagem. Assim, pergunta-se
sobre o que seja a arte, se tudo pode ser arte, o que faz a arte ser arte. Assim, a arte contemporânea
não se encontra inscrita em limites muito precisos. O campo de atuação ultrapassa a dimensão ma-
terial, da concretude dos objetos. Conceitos e atitudes também são objeto de criação artística. Assim,
a arte chamada contemporânea provoca em nós a dúvida sobre o que seja ou deva ser arte. [...]
De início, parece que, quanto mais olhamos, menos certeza podemos ter quanto àquilo que, afi-
nal, permite que as obras sejam qualificadas como “arte”, pelo menos de um ponto de vista tradi-
cional. Por um lado, não parece haver mais nenhum material particular que desfrute do privilégio
de ser imediatamente reconhecível como material de arte: a arte recente tem utilizado não apenas
tinta, metal e pedra, mas também ar, luz, som, palavras, pessoas, comida e muitas outras coisas.
Hoje existem poucas técnicas e métodos de trabalho, se é que existem, que podem garantir ao ob-
jeto acabado a sua aceitação como arte.
ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 9.

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PROBLEMATIZANDO
1. A intuição e a imaginação estão na raiz do conhecimento e da transfor-
mação de uma realidade. Com base nessa afirmação e nas reflexões que
você fez no início deste tema, qual é a importância da arte no processo de
educação do espírito humano?
2. Se você fosse convidado a falar sobre as características da arte contempo-
rânea, quais aspectos destacaria?
3. Converse com os colegas sobre a necessidade da educação do espírito hu-
mano por meio da arte.

Retome com os estudantes a noção de cultura, que trabalhamos no eixo 1 da unidade 1.


2. ARTE E CULTURA Problematize aqui a relação entre individuo e sociedade, entre arte e cultura. Sendo
criação subjetiva, que relações a arte pode estabelecer com a cultura? Quais são as
possibilidades de expressão cultural por meio da arte?

MARCO ANTONIO SÁ/PULSAR IMAGENS


Apresentação do grupo Samba
de Roda do Quilombo no
Encontro Cultural de Laranjeiras
(SE), em 2013.
A manifestação artístico-
-cultural faz parte da
construção da identidade e
dos símbolos coletivos. Pode
também ser um espaço de
rememoração e de renovação
de laços comunitários.

Vimos que a arte é expressão da intuição e da imaginação do sujeito. Toda


obra de arte, embora seja subjetiva, surge no interior de uma cultura, que é
sempre uma criação coletiva. Na cultura (espaço da comunidade), forma-se a
identidade do grupo, no qual cada indivíduo encontra seu lugar. Falar em cultura
é referir-se a símbolos coletivos, a um idioma, a valores, crenças, mitos e ritos.
Igualmente, fazemos referência a uma série de proibições.
Esse complexo, que forma a tradição cultural, condiciona o comportamento
dos indivíduos. Em contrapartida, sendo criação do sujeito, a arte traz uma di-
mensão subversiva, de protesto, de negação ou de crítica da cultura, de desejo de
transformação. Com base em uma interpretação do mundo, o artista expressa-se
produzindo, por exemplo, pinturas, canções, peças teatrais e obras carregadas
de sentimentos e emoções. Por isso, é próprio da arte ser fonte de incômodo,
inquietude e indignação, tanto no artista como na obra e no espectador. Assim,
a arte tem uma dimensão problematizadora e transformadora. Sendo criação de
um sujeito historicamente situado, a obra de arte é produzida no interior de uma
dada cultura e lança luzes, críticas e protestos sobre ela.
No fragmento a seguir, encontramos elementos para continuar a reflexão so-
bre essas duas maneiras de conceber a arte e a cultura.

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Para Proudhon, a arte alcança o seu grau de perfeição quando o artista se apaga, quando a obra dei-
xa de levar o nome dele, quando é o produto de toda uma época, de uma nação, como a estatuária
egípcia e a das nossas catedrais góticas. Quanto a mim, tenho por princípio que a obra de arte só vive
pela originalidade. Uma obra de arte é um recanto da criação visto através de um temperamento. [...]
Não compreendestes que a arte é a livre expressão de um coração e de uma inteligência, e que ela
é tanto maior quanto mais pessoal for. [...]
Se me perguntardes o que vim fazer neste mundo, eu, artista, vos responderei: “vim viver nas altu-
ras” [....] Numa palavra, sou diametralmente oposto a Proudhon: ele quer que a arte seja o produto
da nação, eu exijo que ela seja o produto do indivíduo. [...] Minha arte é uma negação da sociedade,
uma afirmação do indivíduo, fora de todas as regras e de todas as necessidades sociais.
ZOLA, Émile. Proudhon e Courbet. In: PROUDHON, Pierre-Joseph. Do princípio da arte e de sua destinação social.
Trad. Antônio de Pádua Danesi. Campinas: Armazém do Ipê, 2009.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. No trecho anterior, Émile Zola afirma: “Minha arte é uma negação da sociedade, uma afirmação do
indivíduo, fora de todas as regras e de todas as necessidades sociais.”
• Com base nessa afirmação, redija um parágrafo sobre a relação entre arte e cultura.
DAVID SILVERMAN/GETTY IMAGES

Pomba à prova de balas (2007), de Banksy. Grafite em Belém, Palestina.


A manifestação artística é também um espaço de resistência que expressa crítica cultural e social que pode ajudar na
transformação da sociedade. Nesta obra do artista de rua Banksy (1974), observe como a pomba branca está utilizando
um colete à prova de balas enquanto um alvo vermelho se posiciona sobre seu peito. O grafite foi realizado em um muro da
cidade de Belém, na Palestina, uma região de conturbadas relações políticas e religiosas entre israelenses e palestinos. A
justaposição entre o conceito de paz, representado pela pomba branca, e o de violência, representado pelo colete e alvo,
introduz uma contradição que manifesta uma crítica aos conflitos geopolíticos na região.

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Inicie a abordagem com questões
problematizadoras, para que os estudantes 3. A ARTE DE VIVER EM NIETZSCHE
percebam essa singular perspectiva de Nietzsche:
O que significa assumir-se como artista da
própria existência? Somos nós os responsáveis
Do ponto de vista histórico, Friedrich Nietzsche (que estudamos no eixo te-
pela lapidação de nosso próprio ser? É possível mático dedicado à condição humana desta unidade) pode ser considerado um
construirmos uma existência destacada,
diferenciada? Como? pensador moderno, como Hegel e Schiller (que abordamos no eixo temático
dedicado à arte e à estética da unidade 4). No entanto, em Nietzsche encon-
tramos um pensamento inovador para a época. Ele tece profundas críticas à
modernidade. Por isso, optamos por trazer a reflexão para este momento, em
razão da atualidade e da relevância que possui. Considerando a relação entre
indivíduo e sociedade e entre arte e cultura, o pensamento de Nietzsche traz
uma contribuição significativa.
No senso comum, costuma-se associar a palavra “arte” a uma obra de arte de
algum artista específico. Para Nietzsche, a vida requer que todos sejamos artistas de
nossa existência. Assim, cada um deve embelezar sua vida e dar-lhe sentido. Com
isso, ele pede que deixemos a dimensão passiva e meramente contemplativa da vida
e passemos a nos assumir como artistas e criadores de nós mesmos e de nossa vida.
Enquanto o conhecimento científico preocupa-se em organizar, calcular e nor-
matizar por meio de regras, em uma busca pela verdade, a arte não tem essa pre-
ocupação. De acordo com Nietzsche, a estética mostra-se mais capaz de captar e
compreender melhor toda a fluidez e complexidade da vida humana, algo que a
perspectiva metafísica e racionalista mostrou ser incapaz de conseguir.
Nessa reflexão, Nietzsche critica o ser humano moderno, que necessita da arte
para aliviar sua insatisfação com a vida e suportar o tédio de uma existência desprovi-
da da dimensão estética. No fragmento a seguir, Nietzsche estabelece uma distinção
entre a “arte” (a arte propriamente dita, considerada em sua essência ou dimensão
fundamental) e as “obras de arte” (que ele considera um “apêndice” ou “anexo”):

A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portan-


to, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível,
agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos
refreia, cria formas de trato, [...] leis de conveniência, de limpeza, de corte-
sia, de falar e calar a tempo certo. Em seguida a arte deve esconder ou rein-
terpretar tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante
que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com a
condição da natureza humana: deve proceder desse modo especialmente
em vista das paixões e das dores e angústias da alma e, no inevitável ou
insuperavelmente feio, fazer transparecer o significativo.
Depois dessa grande, e mesmo gigantesca tarefa da arte, a assim chamada
arte propriamente dita, a das obras de arte, é somente um apêndice. Um ho-
mem que sente em si um excedente de tais forças para embelezar, esconder
e reinterpretar procurará, por último, descarregar-se desse excedente tam-
bém em obras de arte [...] – Mas, de hábito, agora começam a arte pelo fim,
penduram-se à sua cauda e pensam que a arte das obras de arte é a arte pro-
priamente dita, que a partir dela a vida deve ser melhorada e transformada
– tolos de nós! Se começamos a refeição pela sobremesa e degustamos doces
e mais doces, o que há de admirar, corrompemos o estômago e mesmo o
apetite para a boa, forte, nutritiva refeição a que nos convida a arte!
NIETZSCHE, Friedrich. Miscelânea de opiniões e sentenças. In: Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 115. (Os pensadores).

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Nietzsche afirma, nesse trecho, que considerar a arte das obras como arte pro-
priamente dita é antecipar a sobremesa e desperdiçar a refeição. O alimento que
será responsável pela emancipação do ser humano, para que o indivíduo torne-se
soberano e destacado, será a atitude com a qual ele assume a vida.
JIANG XINTONG/XINHUA PRESS/CORBIS/LATINSTOCK

As aventuras de Marco
Em A gaia ciência, Nietzsche afirma que o ser humano pode aprender algo muito Polo, espetáculo teatral
importante com os artistas do teatro: estimar e libertar o herói oculto, que se encon- chinês em apresentação
nos Estados Unidos, 2013.
tra escondido dentro de si mesmo e, com isso, “pôr-se em cena” para si mesmo.
Precisamos aprender a conquistar e vencer nossos temores, como um herói. O espetáculo conta as
histórias de amor e de
Para Nietzsche, é fundamental que cada indivíduo se coloque em cena, isto é, aventura vividas por Marco
assuma sua vida e sua potência e aprenda a tomar um distanciamento crítico e Polo em suas viagens à
criativo em relação à cultura na qual vive. Assim, cada um pode tornar-se aquilo China durante a dinastia
que é, ou seja, transformar-se naquilo que é capaz de ser, um “super-homem”, Yuan (1271-1368). Segundo
Nietzsche, o teatro pode
um indivíduo único e destacado em relação ao ser humano comum. estimular o indivíduo a se
Após empregarmos todos os nossos esforços na arte de construir nossa exis- colocar em cena, e dessa
tência, caso sobre tempo e ainda tenhamos forças, então poderíamos nos ocupar forma se transformar em
seu potencial, naquilo que
com a arte das obras de arte. Mas essa arte específica é um anexo, um apêndice
pode ser.
da arte de viver. Em primeiro lugar, é necessário e preferível não ter necessidade
dessa ou daquela arte específica, mas focar no próprio e permanente aperfeiçoa-
mento. Esse é o prato principal, a outra arte é a sobremesa.

PROBLEMATIZANDO
1. Nietzsche afirma que o ser humano pode aprender algo muito importante
com os artistas do teatro: estimar e libertar o herói oculto que encontra-se
escondido dentro de si mesmo e, com isso, “pôr-se em cena” para si mes-
mo. Como você interpreta essa reflexão de Nietzsche?

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Estimule o pensamento dos estudantes para
que percebam as relações entre a existência 4. ARTE, FANTASIA E SUBLIMAÇÃO
do inconsciente e a vida cultural do indivíduo.
A arte pode ser a expressão de conteúdos
reprimidos, ou ainda, a expressão de satisfações
EM FREUD
substitutivas, servindo como processo
terapêutico? Por quê? O médico neurologista e criador da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939)
nasceu em uma família judaica na cidade de Pribor, na época pertencente ao
Império Austríaco, atualmente na República Checa.
Para Freud, a mente humana pode ser interpretada como um iceberg. Ela é
constituída por uma dimensão consciente, que é a parte menor. Contudo, a rea-
lidade mais significativa e forte encontra-se no subconsciente e no mais profundo
do inconsciente.

SERGEY NIVENS/SHUTTERSTOCK
MAX HALBERSTADT

Sigmund Freud.

O iceberg possui a maior parte


de sua constituição submersa.
Segundo Freud, o inconsciente
seria a realidade submersa da
mente humana.

De acordo com Freud, o ser humano é movido pelo princípio do prazer e por
uma energia vital. Nesse sentido, ele recorda o que outros filósofos já haviam
pensado, ou seja, que os seres humanos buscam naturalmente o prazer e fogem
da dor.
Freud pressupõe, no ser humano, a existência de forças psíquicas em confli-
to – as pulsões –, que seriam a causa psíquica originária, a energia que impul-
siona o indivíduo em determinada direção. Trata-se de uma ideia ou conceito
que distingue a psicanálise das outras psicologias justamente por propor, em
vez de descrever, uma explicação sobre a dinâmica que aconteceria no interior
do ser humano.

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Contudo, o ser humano não é apenas um ser natural, ele também é um ser cultural. E, de acordo com
Freud, o indivíduo tem experiências frequentes de sofrimento, cuja origem encontra-se tanto na natureza
como na cultura. Dessa forma, a felicidade seria sempre muito limitada para o ser humano e a infelicidade
seria a experiência mais frequente.
O que o ser humano mais experimenta seria o sofrimento, que teria três fontes fundamentais: ini-
cialmente, o sofrimento viria de nossa constituição física, de nosso corpo finito e frágil, condenado à
decadência e à morte. Essa finitude que implica a morte traria ansiedades e sofrimentos. Em segundo
lugar, relacionado à nossa finitude, a fonte de nosso sofrimento provém da percepção da superioridade
da natureza que pode voltar-se contra nós de forma impiedosa. E, em terceiro lugar, a fonte de nossos
permanentes sofrimentos viria da inadequação das regras culturais. A vida em sociedade implica restri-
ções à impulsividade natural. E essas limitações impostas pela civilização produzem no ser humano um
profundo sentimento de mal-estar.
Diante de tantas fontes de sofrimento, os seres humanos, em sua vida em sociedade, teriam criado me-
didas paliativas. Entre elas, Freud menciona as satisfações substitutivas, que diminuem os sofrimentos da
realidade. Ao se referir às formas pelas quais os seres humanos buscam contornar os sofrimentos que a vida
em sociedade lhes impõe, Freud fala da sublimação.
Nesse conceito de sublimação, Freud refere-se à satisfação de uma pulsão sexual em um objeto que não
é de natureza sexual. A satisfação se realizaria em um objeto socialmente valorizado e estimado, de natu-
reza não sexual. Assim, a pulsão sexual realiza-se na mudança de alvo, no desvio relacionado ao objeto de
satisfação, no alvo diferente do original.
No texto a seguir, Freud fala dessas satisfações substitutivas que a arte proporciona:

Como já descobrimos há muito tempo, a arte ofe-

GALERIA NAZIONALE D'ARTE ANTIGA, ROMA


rece satisfações substitutivas para as mais antigas e
mais profundamente sentidas renúncias culturais,
e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra
coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios
que tem de fazer em benefício da civilização. Por ou-
tro lado, as criações da arte elevam seus sentimentos
de identificação, de que toda unidade cultural carece
tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha
de experiências emocionais altamente valorizadas. E
quando essas criações retratam as realizações de sua
cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela
de maneira impressiva, contribuem também para sua
satisfação narcísica.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Trad. José
Octávio de Aguiar Abreu.
Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 25.

Narciso (1596), de Caravaggio. Óleo sobre tela,


110 cm × 92 cm.

A arte poderá ser lida e interpretada, nesse contexto, como a expressão das fantasias do artista, um meio
de sublimação e canalização de suas energias, de orientação de sua agressividade para algo que a cultura
não reprima. Desse modo, na arte encontramos a materialidade da agressividade, das forças psíquicas e dos
desejos reprimidos.

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Nessa dinâmica, a arte poderia ser instrumento de catarse ou um processo
terapêutico. Na psicologia, a catarse envolveria a liberação de sentimentos, a
descarga emocional, a liberação de tensões reprimidas e de afetos ligados à lem-
brança de algum trauma etc. Na psicanálise, a catarse seria uma operação capaz
de trazer à consciência do indivíduo memórias que estariam reprimidas no incons-
ciente. Na arte, poderia acontecer esse processo de descarga emocional.
As obras de arte, nessa perspectiva, tornam-se uma expressão material e cul-
tural na qual estariam presentes desejos e pulsões da vida psíquica do ser humano
como indivíduo e como coletividade. Leia o fragmento a seguir:

[...] Freud destaca a fantasia como uma atividade mental que retém um
elevado grau de liberdade, em relação ao princípio de realidade, mesmo
na esfera da consciência desenvolvida. [...] A fantasia desempenha uma
função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profun-
das camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência
(arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero, as
perpétuas, mas reprimidas ideias da memória coletiva e individual, as
imagens tabus da liberdade.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.
Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 131-132.

Para Freud, a arte surge da fantasia e seria uma forma de trazer à tona um
conteúdo reprimido. Sendo a cultura um espaço de repressão e de falta de liber-
dade, a arte seria a negação dessa ausência de liberdade, o grito de protesto
contra a repressão. Assim, a fantasia estaria na raiz de uma expressão artística,
que busca uma vida sem o mal-estar que a vida em sociedade implica:
MUSEU BOIJMANS VAN BEUNUNGEN, ROTERDÃ, HOLANDA

A arte é, talvez, o mais visível “retorno do reprimido”, não só no indiví-


duo, mas também no nível histórico-genérico. A imaginação artística mo-
dela a “memória inconsciente” da libertação que fracassou, da promessa
que foi traída. Sob o domínio do princípio de desempenho, a arte opõe à
repressão institucionalizada a “imagem do homem como um sujeito livre;
mas num estado de não-liberdade, a arte só pode sustentar a imagem da
liberdade na negação da não-liberdade”. [...]
Na sua recusa em aceitar como finais as limitações impostas à liberdade
e à felicidade pelo princípio de realidade, na sua recusa em esquecer o que
pode ser, reside a função crítica da fantasia:
“Reduzir a imaginação à escravidão, mesmo que estivesse em jogo aquilo
Reprodução proibida (1937), a que grosseiramente se chama felicidade, é privarmo-nos de tudo o que
de René Magritte. Óleo encontramos, no nosso íntimo mais profundo, de justiça suprema. So-
sobre tela, 81,3 cm × 65 cm. mente a imaginação me diz o que pode ser.” André Breton [Os manifestos
Para o surrealismo, do surrealismo, 1924]. [...]
movimento artístico e Essa “grande recusa” é o protesto contra a repressão desnecessária, a luta
literário influenciado pelas pela forma suprema de liberdade – “viver sem angústia”. Mas essa ideia só
teorias psicanalíticas
de Freud, a arte deveria podia ser formulada sem punição na linguagem da arte. No contexto mais
expressar o inconsciente e realista da teoria política ou mesmo da filosofia, foi quase universalmente
os sonhos, livre do controle difamada como utopia.
da razão e de preocupações MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud.
estéticas ou morais. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 134-138.

350

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WALTER BECHTLER COLLECTION, SUÍÇA

Preto e violeta (1923), de Wassily


Kandinsky. Óleo sobre tela, 77,8 cm
× 100,4 cm.
A arte abstrata começou a ser
realizada no início do século XX,
rompendo com a tradição europeia
de imitação da realidade. A
psicanálise de Freud influenciou os
artistas modernos, entre eles o pintor
russo Wassily Kandinsky (1866-
-1944), para quem a arte pertencia ao
inconsciente.

OUTROS OLHARES
1. Leia um trecho de uma carta de Kandinsky ao compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951),
em que ele destaca a importância do inconsciente em sua expressão artística.

É preciso expressar a si mesmo! Expressar a si mesmo diretamente! Não o seu gosto, ou a sua
formação, ou a sua inteligência, conhecimento ou habilidade. Nem todas essas características ad-
quiridas, mas aquelas que são inatas, instintivas. E toda a fabricação-da-forma, toda aquela forma-
ção-forma consciente, está conectada com algum tipo de matemática ou geometria. Mas, apenas a
fabricação-da-forma inconsciente, que estabelece a equação “forma = configuração externa visível”
realmente cria formas.
KANDINSKY. Carta a Arnold Schoenberg. In: BOLLAS, Christopher. Criatividade e psicanálise.
Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 43, n. 78, 2010, p. 193-209.

2. Observe novamente a obra Preto e violeta de Wassily Kandinsky e responda.


• Quais são as impressões que essa obra desperta em você? Em que ela te faz pensar, sentir ou lembrar?
3. Escreva um texto para estabelecer relações entre a arte abstrata e o inconsciente. Considere:
• a obra Preto e violeta, de Wassily Kandinsky;
• o trecho da carta de Kandinsky a Schoenberg;
• o papel da arte na teoria psicanalítica de Freud.

PROBLEMATIZANDO
1. Segundo Freud, há uma dimensão crítica na fantasia que se manifesta na recusa em permanecer es-
tagnado e aceitar a repressão desnecessária. No prazer estético, realizam-se as fantasias reprimidas.
Por isso, a obra de arte fala alto, diz muito sobre a cultura e sobre o artista, revela e representa a
luta entre elementos opostos que atuam no interior do ser humano.
• Você concorda com essa visão? Teria algum exemplo para ilustrar seu posicionamento?
2. O incentivo à arte seria um excelente caminho para a diminuição das manifestações de violência.
• Você concorda com essa afirmação? Quais argumentos você usaria para defender seu ponto de vista?

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Retome com os estudantes as principais ideias veiculadas pelos pensadores da Escola de Frankfurt, conforme vimos no segundo eixo temático dessa unidade. Cultive a sensibilidade dos alunos no
sentido de perceberem a mudança que acontece na arte quando ela deixa de ser o lugar da criação subjetiva, livre e espontânea e passa a ser integrada a uma indústria cultural que produz para
um mercado de consumidores.

5. INDÚSTRIA CULTURAL E CULTURA DE MASSA


Com o desenvolvimento da sociedade industrial, a migração e a constituição das metrópoles surgiram,
no mundo urbano, dois fenômenos muito distintos e ao mesmo tempo relacionados: nos bairros operários,
por um lado, a constituição de uma nova cultura popular, motivada pelo abandono da cultura popular de
origem. Por outro lado, cresceu o consumo dos produtos industrializados, nos quais está inserida a reprodu-
ção maciça e simplificada de obras de arte, dos produtos e das criações da cultura de elite.
No eixo temático 2 desta unidade, estudamos algumas reflexões feitas pela Escola de Frankfurt. Em
Dialética do Esclarecimento, obra conjunta de Adorno e Horkheimer, abordamos a expressão “indústria
cultural”, que é essencialmente crítica. Em conformidade com a crítica desenvolvida pelos pensadores dessa
escola, a indústria cultural é cúmplice da ideologia capitalista e está a serviço dela. Em nome do progresso
tecnológico, ela cria um processo de mecanização da vida, no qual se verifica a alienação e a despersona-
lização do ser humano, transformado em mero consumidor de objetos, entre os quais os objetos da arte,
reduzidos a mercadorias.
Para os pensadores da Escola de Frankfurt, o que caracterizaria a cultura de massa ou a massificação é o
fato de consumir produtos ou bens culturais industrializados, diferentemente da cultura popular. Para Adorno
e Horkheimer, a expressão “cultura de massa” é um engano, uma ilusão, pois o que existe de fato seria uma
indústria cultural que cria massificação, pois uniformiza, reduz todos a consumidores destinados a consumir
produtos criados e difundidos como se fossem necessários.
FORRAY DIDIER/SAGAPHOTO/ALAMY/LATINSTOCK/
MUSEU DE ARTE MODERNA, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS

Latas de sopa Campbell (1962),


de Andy Warhol. Tinta de polímero
sintético sobre 32 telas. Cada tela:
50,8 cm × 40,6 cm.
Andy Warhol (1928- 1987) fez parte
de um movimento artístico conhecido
como arte pop, em que recursos
da publicidade eram levados para o
universo da arte. Nesta obra, ele se
apropriou da imagem de uma lata de
sopa comum nos Estados Unidos,
conectando a produção da indústria
capitalista à arte, e fazendo uma crítica
à arte massificada, da indústria cultural.
A repetição exaustiva da mesma
lata na obra representa justamente
a produção de algo que deve ser
consumido à exaustão, como ocorreria
na cultura de massa.

Com a indústria cultural, a arte corre sério risco de perder sua força crítica, criativa, simbólica e transfor-
madora do real, uma vez que passa a ser reprodutiva e repetitiva, voltada para o consumo, atendendo ao
propósito da perpetuação do que é difundido e consagrado pelos meios de comunicação de massa. Dessa
forma, a formação e divulgação cultural passam por um processo de vulgarização e banalização das obras
de arte e do próprio pensamento. Quando o que chamamos de arte adquire essas características, deixa de
ser, em sentido próprio, arte.
É preciso diferenciar a democratização da cultura e da arte do fenômeno da massificação e da indiferen-
ciação, no qual a indústria cultural produz entretenimento, diversão e distração para o mercado de consu-
midores, vendendo “cultura” e agradando o espectador.

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Em Dialética do Esclarecimento, ao falar da massificação da arte, Adorno e Horkheimer fazem uso de
certas expressões bem significativas. Eles falam em “arte sem sonho” e em “atrofia da imaginação e da
espontaneidade”, fazendo referência à ausência da imaginação e da força criativa que estariam na raiz da
verdadeira arte. São empregadas expressões como “arte para as massas”, “conteúdo do espetáculo” e
“produtos da indústria cultural alegremente consumidos em estado de distração”, em uma alusão à mas-
sificação e à alienação, na qual há uma receptividade mecânica, passiva e irrefletida dos produtos culturais.

PROBLEMATIZANDO
1. Considerando as reflexões realizadas pela Escola de Frankfurt, como você percebe a manifestação da
indústria cultural em nossa sociedade?
2. De que modo a indústria cultural “atrofiaria” a imaginação?
• Apresente exemplos que justifiquem sua resposta.

PRODUÇÃO DE TEXTO
1. Leia o trecho a seguir:

A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos
da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alerta-
damente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não
dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o Esclarecimento como mistificação das massas.
In: Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 105.

• Com base nesse fragmento e considerando as reflexões realizadas, conceitue “indústria cultural” e
explique seu processo de funcionamento.

PARA CONTINUAR O ESTUDO E A APRENDIZAgEM

SUgESTÃO DE FILMES
Temática: Surrealismo e inconsciente Temática: Indústria cultural
Filme: Tramas do entardecer (Estados Unidos, 1943). Di- Filme: O desprezo (França, 1963). Direção: Jean-Luc Go-
reção: Maya Deren e Alexander Hammid. O curta-metra- dard. O filme aborda a trajetória de Paul Javalli (Michel
gem aborda uma tarde na vida de uma mulher que cai no Piccoli), um roteirista que está trabalhando em uma adap-
sono embaixo de uma janela. A película experimental do tação para o cinema da Odisseia de Homero. Godard fazia
parte de um movimento artístico conhecido como Nouvel-
começo da década de 1940 possui uma estética surrealis-
le vague (Nova onda) que pretendia realizar arte sem su-
ta que distorce as fronteiras entre realidade e sonho, entre
cumbir aos “clichês” estabelecidos pela indústria cultural.
consciente e inconsciente.

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PARA NÃO
CONCLUIR

Para não concluir, escolhemos a reflexão de Gilles Deleuze, que representa o pensamento
filosófico da diversidade, no qual a filosofia vem expressa como atitude e saber que integra
diferentes tempos: inicialmente, a busca, no percurso da história, dos fundamentos do
pensamento; a seguir, o tempo da solidão, do mergulho na interioridade, de onde nascerá o
tempo da expressão de uma nova apropriação, de um novo conceito. Assim, a filosofia caminha
como continuidade e descontinuidade. Nesse percurso, realiza-se o conhecimento.

O sobrevoo do pensamento criando conceitos


A filosofia é um saber e, também, uma atitude que busca criar conceitos. Nessa aventura do pensa-
mento, a jornada não se encerra. Recolhendo os conceitos construídos, as criações da arte e os conheci-
mentos produzidos pelas ciências, o pensamento continua seus voos.
Para não concluir, escolhemos o pensamento de Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês con-
temporâneo e historiador da filosofia. Filósofo da multiplicidade, Deleuze concentrou-se inicialmente no
estudo dos filósofos que julgou mais significativos na história do pensamento, entre os quais Spinoza
(1632-1677), Leibniz (1646-1716), David Hume (1711-1776), Kant (1724-1804), Nietzsche (1844-1900)
e Henri Bergson (1859-1941).
Mas seu pensamento também conviveu
PVDE/RUE DES ARCHIVES/LATINSTOCK

de maneira muito forte com o cinema e a


literatura, com destaque para os diálogos
com Alfred Jarry (1873-1907), Franz Kafka
(1883-1924), Samuel Beckett (1906-1989)
e D. H. Lawrence (1885-1930). A vida e
o pensamento de Deleuze se constroem
nesses encontros múltiplos, interdiscipli-
nares e transversais.
Com Deleuze, aprendemos um novo
modo de fazer filosofia. A filosofia deve
articular dois tempos integrados: primeiro,
buscar no passado os fundamentos e as
reflexões que estão na base da história do
pensamento da cultura ocidental. Com esse
retorno, o filósofo contemporâneo terá con-
Gilles Deleuze por volta de 1965. dições de realizar o diálogo entre tendências
e escolas e o encontro de ideias. A partir dis-
so, na solidão da interioridade, poderá criar um novo conceito, fruto de “roubos” criativos. Assim, a filosofia de
Deleuze pode ser vista como um desvio ou uma descontinuidade, mas profundamente mergulhada na tradição.
Desta maneira, Deleuze mostra-nos uma forma de fazer filosofia que atende às necessidades dos novos tempos.

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Em sua profunda crítica ao platonismo, Deleuze concentra-se nos detalhes
e na multiplicidade que caracterizam a vida. Sua filosofia é, assim, uma aten-
ção ao mundo no tempo presente. Mas como fazer uma filosofia do múltiplo
e diverso e não do universal e abstrato? Por coerência, seu procedimento será
contrário ao método dialético de Platão e às dicotomias, separações e divisões
em categorias, aos dualismos racionalistas.
O método de Deleuze é construído com base na concepção de que o ser se
manifesta de modo plural e de múltiplas formas. Seu pensamento está em fun-
ção da busca da multiplicidade e das variações que expressam o ser. Contudo,
não se trata de reduzir ou de unificar a multiplicidade de manifestações em uma
espécie de filosofia do uno.
Por isso, Deleuze se afasta da dialética platônica, busca articular diversos
conceitos aos quais teve acesso e, por meio dessa articulação, intuir um novo
conceito. Essa construção será permanente e

FRANÇOIS LOCHON/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES


em complexidade crescente. Essa forma de
pensar é expressa na obra O que é a filoso-
fia?, que Deleuze escreveu em parceria com
Félix Guattari (1930-1992), filósofo e militan-
te político francês.
Nessa obra, um ensaio em torno da defi-
nição da própria filosofia, eles recorrem ini-
cialmente à etimologia grega presente na pa-
lavra “filosofia”. Eles reconhecem em philia
o termo “amizade” e, em sophia, a palavra
“conceito”. Definem, dessa forma, o filósofo
como o “amigo do conceito” e afirmam que
“a filosofia é a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos”. Leia o fragmento a seguir: Félix Guattari. França, 1987.

O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer


que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar
conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou
produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em
criar conceitos [...]. Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É
porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele
que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência [...].
Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um concei-
to, ele não criou seus conceitos?
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Júnior e
Alberto Alonso Munhoz. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 13-14.

Nessa reflexão de Deleuze e Guattari, percebe-se que a forma como a filosofia


pode e deve intervir no mundo está relacionada com a criação dos conceitos, o
que será fundamental para a permanente recriação do mundo. O conceito tor-
na-se, assim, um instrumento de crítica, transformação e instauração de novos
mundos, uma vez que surge da realidade e a torna compreensível. A filosofia não
pode abrir mão dessa identidade e singularidade.

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Considerando a dimensão crítica e essencialmente criativa da filosofia, Deleu-
ze lança um novo olhar sobre ela, bem distinto da perspectiva platônica, voltada
para a contemplação. Sendo criadora de conceitos, a singularidade da filosofia
não reside no fato de ser reflexiva, pois a reflexão é possível em qualquer ativida-
de. De acordo com Deleuze e Guattari:

Ela não é reflexão, porque ninguém precisa de filosofia para refletir so-
bre o que quer que seja: acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela a
arte da reflexão, mas retira-se tudo dela, pois os matemáticos como tais
não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática, nem
os artistas sobre a pintura ou a música; dizer que eles se tornam então
filósofos é uma brincadeira de mau gosto, já que sua reflexão pertence à
sua criação respectiva.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Júnior
e Alberto Alonso Munhoz. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 14.

Embora a essência da filosofia não deva ser identificada com a simples re-
flexão, os conceitos que a filosofia cria possibilitam reflexões e comunicações
entre os seres humanos na busca por consensos. Para Deleuze, a filosofia tam-
pouco tem como característica fundamental a construção de consensos, con-
forme vimos em Habermas, com sua proposta de uma “razão comunicativa”.
Esses consensos poderão ser construídos em outra esfera com os conceitos que
a filosofia criou.
Com essa reflexão, Deleuze volta-se novamente contra os universais e as
unificações. A filosofia está vinculada ao dissenso, ao múltiplo e ao multiforme.
Sendo construtora de conceitos, a filosofia implica a desconstrução de noções
estabelecidas ou instituídas.
Mas o conceito que a filosofia tanto busca construir não é universal? É isso
o que aprendemos com o pensamento de Platão, na filosofia clássica grega, ou
de Kant, na filosofia moderna. Para Kant:

Todos os conhecimentos, isto é, todas as representações conscientemen-


te referidas a um objeto, são ou intuições ou conceitos. A intuição é uma
representação singular; o conceito, uma representação universal ou repre-
sentação refletida. [...] O conhecimento por conceitos chama-se pensar.
KANT, Immanuel. Manual dos cursos de lógica geral. Trad. Fausto Castilho.
2. ed. Campinas: Unicamp; Uberlândia: UFU, 2003. p. 181.

Para Deleuze e Guattari, o conceito é resultado de uma aventura do pensa-


mento, como se fosse o sobrevoo de um pássaro sobre algo vivido. E, por isso
mesmo, o conceito não pode ser uma representação universal. Ele não é a coisa,
nem diz o que ela é. Isso torna o conceito um acontecimento, um evento novo.
O conceito institui alguma coisa, fruto de um pensar diferente. Por isso, ele
indica a presença de uma atitude e de um saber filosófico. Disso resulta que o
conceito é a marca que o pensamento coloca. Por isso, existem muitas marcas,
fruto de várias vivências.

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Portanto, o conceito não é inato, não surge “do

MARIA GAELLMAN/SHUTTERSTOCK
nada”. Ao contrário, resulta de um sobrevoo e tem
uma história. E, nessa história, é construído do en-
contro com outros conceitos. Assim, o conceito é
uma recriação.
Ao explicitar as multiplicidades, Deleuze atualiza
a concepção de Nietzsche segundo a qual a filosofia
não trabalha com verdades, mas com múltiplas e va-
riadas formas de olhar, das quais poderá resultar um
conhecimento mais complexo. Um conceito, sendo
criado por meio de sobrevoos, tem a função de fazer
pensar e de mobilizar o pensamento.
Após um percurso realizado, tendo feito mui-
tos sobrevoos e criado um número significativo de
obras, o artista define seu estilo. De modo similar,
o filósofo cria seu estilo e aprende a viver no pensa-
mento diverso.
Bem contrário a isso, muitas vezes, um pensa-
mento único tenta se impor e lutar contra o caos,
A ave-símbolo da filosofia é a coruja.
no qual existe a multiplicidade de possibilidades. O
que a filosofia nos ensina é a conviver com o caos,
mergulhar nele e criar o novo. A opinião quer vencer o caos, acredita ser possí-
vel um mundo de certezas inabaláveis e procura a ordem. Mas a vida se revela
como caos. A arte, a ciência e a filosofia sabem disso e vivem da criação de sen-
sações, conhecimentos e conceitos, respectivamente. Esses três saberes, cada
um a seu modo, contribuem para a afirmação da multiplicidade.

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada


é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa
a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já
corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também
não dominamos. [...] Perdemos sem cessar nossas ideias. É por isso que
queremos agarrar-nos a opiniões prontas como um “guarda-sol” que nos
protege do caos. [...]
Mas a arte, a ciência e a filosofia exigem mais: traçam planos sobre o
caos. Essas três disciplinas não são como as religiões, que invocam di-
nastias de deuses, ou a epifania [manifestação] de um Deus único, para
pintar sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma urdo-
xa [crença originária, certeza da crença] de onde derivariam nossas opi-
niões. A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento
e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Júnior e
Alberto Alonso Munhoz. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 259-261.

Que essas reflexões possam lhe ajudar a encontrar pensamentos diversos e a


alçar sobrevoos, a partir dos quais você poderá criar seu estilo.
Até um novo encontro!

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Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. 1987. (Os pensadores).
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Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. São Paulo: Odysseus, 2005.

360

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FILOSOFIA Volume único

MANUAL DO
PROFESSOR

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APRESENTAÇÃO

A história erudita do passado nunca foi a ocupação de um filósofo verdadeiro, nem na Índia nem na Grécia;
e um professor de filosofia, se se ocupa com trabalho dessa espécie, tem de aceitar que se diga dele, no melhor
dos casos: é um competente filólogo, antiquário, conhecedor de línguas, historiador – mas nunca: é um filósofo.
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações extemporâneas. Trad. Rubens Rodrigues T. Filho.
São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 299-300. (Os pensadores).

Caro(a) professor(a),

Este Manual pretende auxiliar na ressignificação e na reorganização de sua prática pedagógica, forne-
cendo princípios educativos e propostas metodológicas para o ensino e a aprendizagem da filosofia, conce-
bida como saber e atitude. O presente trabalho está estruturado em duas grandes partes. A Parte 1 aborda
os princípios educativos e metodológicos com base nos quais organizaremos nosso fazer pedagógico e
aborda a concepção de filosofia com a qual trabalharemos, suas ramificações essenciais e seus conceitos
estruturantes, além de acompanhar o trabalho docente em sala de aula, sinalizar para as possibilidades,
alertar para os perigos e comentar as possibilidades de interpretação, análise e intervenção nas produções
cotidianas dos estudantes. A Parte 2 concentra-se nas intervenções cotidianas e nas correções de percurso,
acompanhando cada uma das cinco unidades da obra.
Na Parte 1, inicialmente refletiremos sobre a identidade e o papel do educador no processo educativo
dos adolescentes, atuando na formação de competências e habilidades. Em seguida, responderemos à
histórica e inevitável pergunta sobre a necessidade ou a utilidade da filosofia. Na resposta a essa pergunta,
mergulharemos na natureza do saber filosófico, em sua identidade e em sua singularidade. Falaremos sobre
o que a filosofia não é e naquilo em que não deveria ser transformada.
Compreendida a natureza do filosofar, abordaremos as unidades e eixos temáticos, que julgamos ser as
referências fundamentais para direcionar o olhar problematizador da filosofia. Esse olhar tem por objetivo
contribuir para a permanente formação docente, servindo como subsídio para a organização dos conteúdos
e dos materiais disponíveis para o ensino e a aprendizagem da disciplina de Filosofia no Ensino Médio.
Abordamos a filosofia como saber e atitude especialmente voltados para a construção conceitual. Apre-
sentaremos alguns conceitos estruturantes da filosofia, sobre os quais e a partir dos quais o curso poderá se
estruturar, para contribuir na formação da autonomia intelectual e ética do estudante crítico, com habilida-
des e competências que o preparam para participar ativamente do exercício da cidadania.
Estabelecidos os fundamentos filosóficos, aprofundaremos as orientações metodológicas, buscando
sempre manter a conexão da metodologia com os fundamentos psicopedagógicos que buscaremos expli-
citar. Nessas considerações, abordaremos as etapas do nosso fazer pedagógico, antes mesmo de entrar em
sala de aula, uma vez que o sucesso do processo de ensino e aprendizagem depende, em grande medida,
dessa etapa prévia.
Em decorrência dessas reflexões e sugestões, chegaremos ao momento de abordar a natureza da ava-
liação. Será muito importante entender a dimensão processual e formativa, para perceber as implicações
metodológicas do processo avaliativo.
Com esses passos, nos concentraremos na presença da filosofia no Enem, abordando os princípios e as
estratégias metodológicas mais indicadas para vincular a filosofia à matriz do Enem, no intuito de formar
estudantes com as habilidades e competências requeridas nesse exame.

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Considerando a natureza interdisciplinar e transdisciplinar do Enem, é fundamental refletirmos sobre as
possibilidades de trabalho integrado com outras áreas do saber, especialmente a Sociologia, a História, a
Geografia, a Literatura e a Arte.
Nesta parte, também abordaremos o fazer pedagógico em sala de aula: nosso olhar se concentrará nas
metodologias mais indicadas e nos processos avaliativos recomendados para a aprendizagem da atitude e
do saber filosóficos. Nesse sentido, será fundamental a reflexão sobre os significados do “erro” no processo
de aprendizagem.
Na Parte 2, focada nas intervenções cotidianas do fazer pedagógico e nas possíveis mudanças de dire-
ção, nosso olhar considerará o desenvolvimento de cada objeto de conhecimento. No interior de cada uni-
dade, no início de cada eixo temático, haverá orientações gerais e específicas que atenderão aos seguintes
aspectos: objetivos e descritores da etapa, recursos a explorar, conceitos estruturantes a construir, atividades
e projetos a desenvolver, discussão das atividades propostas e, finalmente, indicação de caminhos alternati-
vos e abordagens complementares.
Ao final do presente trabalho, indicaremos obras de referência para o trabalho docente, tendo em vista
a formação continuada e o aprimoramento do processo de ensino e aprendizagem.

O autor

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SUMÁRIO

PARTE 1: PRINCÍPIOS EDUCATIVOS E Aprendendo com antilogias ................................389


ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS ...................... 368
Aprendendo a construir textos e conceitos ..........390
Da função docente ...............................................368 Trabalhando com pesquisa e seminário ...............391
Os conceitos de competências e habilidades .........372 Trabalhando com projetos interdisciplinares ........392
Como trabalhar o “erro” em filosofia?................393
Educando os estudantes na matriz do Enem .........374
Como avaliar e o que avaliar em filosofia? ..........394
Conceitos filosóficos, competências e habilidades
a construir ..........................................................374 Como usar este livro? ...........................................397
A identidade da filosofia .......................................376 Referências bibliográficas ......................................397
História da filosofia ou temas de filosofia?
Ou o que a filosofia não é ...................................377
PARTE 2: INTERVENÇÕES COTIDIANAS E
O lapidar da mente .............................................377 ORIENTAÇÕES DE PERCURSO ............................ 401
Admiração, inquietude e dúvida..........................378
Objetivos e descritores gerais ..............................401
Atitude de busca radical, reflexiva, argumentativa
e criativa .............................................................379
Pensamento conceitual .......................................379 UNIDADE 1 – A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
A filosofia e a educação para a cidadania ............380 FILOSÓFICA: DA INQUIETUDE .................................... 401

Matriz de Referência para a Filosofia no Ensino EIXO TEMÁTICO 1 – CONDIÇÃO HUMANA...........401


Médio ...................................................................380 Objetivos, descritores específicos e conceitos do
Conceitos estruturantes integrando os eixos eixo temático ......................................................401
Histórico e Temático ............................................380 Recursos a explorar neste
Eixo Antropológico-existencial: Condição humana....382 eixo temático ......................................................401
Eixo Epistemológico: Experiência e racionalidade .382 Desenvolvendo os objetos de estudo...................402
Eixo Ético-político: Ética e política........................383 Caminhos alternativos e
Eixo Estético: Arte e estética................................384 abordagens complementares ..............................407

Descritores temático-históricos para a Filosofia ......384 EIXO TEMÁTICO 2 – EXPERIÊNCIA E


RACIONALIDADE ..................................................408
Quadro de descritores .........................................384
Objetivos, descritores específicos e conceitos do
Do fazer pedagógico em sala de aula ....................386 eixo temático ......................................................408
Sala de aula: oficina de construção do saber .......386 Recursos a explorar neste
Planejamento da etapa: unidade de estudo .........386 eixo temático ......................................................408
Trabalhando com o saber prévio..........................388 Desenvolvendo os objetos de estudo...................409
Iniciando a leitura de fragmentos filosóficos ........388 Caminhos alternativos e
Trabalhando com as linguagens da arte ..............389 abordagens complementares ..............................415

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UNIDADE 2 – FILOSOFIA GREGA: ORIGEM, UNIDADE 3 – HELENISMO E FILOSOFIA MEDIEVAL:
FUNDAMENTOS E SISTEMATIZAÇÃO ......................... 416 DA RAZÃO E DA FÉ ................................................... 431

EIXO TEMÁTICO 1 – EXPERIÊNCIA E EIXO TEMÁTICO 1 – AS ESCOLAS


RACIONALIDADE ..................................................416 HELENÍSTICAS .......................................................431
Objetivos, descritores específicos e conceitos Objetivos, descritores específicos e conceitos
do eixo temático .................................................416 do eixo temático .................................................431
Recursos a explorar neste Recursos a explorar neste
eixo temático ......................................................416 eixo temático ......................................................431
Desenvolvendo os objetos de estudo...................416 Desenvolvendo os objetos de estudo...................431
Caminhos alternativos e Caminhos alternativos e
abordagens complementares ..............................422 abordagens complementares ..............................433
EIXO TEMÁTICO 2 – CONDIÇÃO HUMANA...........423 EIXO TEMÁTICO 2 – CONDIÇÃO HUMANA...........434
Objetivos, descritores específicos e conceitos Objetivos, descritores específicos e conceitos
do eixo temático .................................................423 do eixo temático .................................................434
Recursos a explorar neste eixo temático ..............423 Recursos a explorar neste
Desenvolvendo os objetos de estudo...................424 eixo temático ......................................................434
Caminhos alternativos e Desenvolvendo os objetos de estudo...................435
abordagens complementares ..............................425 Caminhos alternativos e
abordagens complementares ..............................436
EIXO TEMÁTICO 3 – ÉTICA
E POLÍTICA ...........................................................425 EIXO TEMÁTICO 3 – EXPERIÊNCIA E
Objetivos, descritores específicos e conceitos RACIONALIDADE ..................................................436
do eixo temático .................................................425 Objetivos, descritores específicos e conceitos
Recursos a explorar neste eixo temático ..............425 do eixo temático .................................................436
Desenvolvendo os objetos de estudo...................426 Recursos a explorar neste
eixo temático ......................................................436
Caminhos alternativos e
abordagens complementares ..............................427 Desenvolvendo os objetos de estudo...................437
Caminhos alternativos e
EIXO TEMÁTICO 4 – ARTE
abordagens complementares ..............................438
E ESTÉTICA ...........................................................428
Objetivos, descritores específicos e conceitos EIXO TEMÁTICO 4 – ÉTICA
do eixo temático .................................................428 E POLÍTICA............................................................439
Recursos a explorar neste Objetivos, descritores específicos e conceitos
eixo temático ......................................................428 do eixo temático .................................................439
Desenvolvendo os objetos de estudo...................428 Recursos a explorar neste
Caminhos alternativos e eixo temático ......................................................439
abordagens complementares ..............................430 Desenvolvendo os objetos de estudo...................439

p18_col_integ_filo_unico_manual.indb 366 06/09/17 12:18


Caminhos alternativos e Desenvolvendo os objetos de estudo...................456
abordagens complementares ..............................440 Caminhos alternativos e
EIXO TEMÁTICO 5 – ARTE abordagens complementares ..............................457
E ESTÉTICA ...........................................................441
Objetivos, descritores específicos e conceitos UNIDADE 5 – FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA:
do eixo temático .................................................441 DA CRISE E DA POSSIBILIDADE ................................. 459
Recursos a explorar neste
eixo temático ......................................................441 EIXO TEMÁTICO 1 – CONDIÇÃO HUMANA ..........459
Desenvolvendo os objetos de estudo...................441 Objetivos, descritores específicos e conceitos
Caminhos alternativos e do eixo temático .................................................459
abordagens complementares ..............................441 Recursos a explorar neste
eixo temático ......................................................459
Desenvolvendo os objetos de estudo...................459
UNIDADE 4 – A FILOSOFIA E O ESPÍRITO MODERNO . 443
Caminhos alternativos e
EIXO TEMÁTICO 1 – CONDIÇÃO HUMANA ..........443 abordagens complementares ..............................461
Objetivos, descritores específicos e conceitos EIXO TEMÁTICO 2 – EXPERIÊNCIA
do eixo temático .................................................443 E RACIONALIDADE ...............................................462
Recursos a explorar neste Objetivos, descritores específicos e conceitos
eixo temático ......................................................443 do eixo temático .................................................462
Desenvolvendo os objetos de estudo...................443 Recursos a explorar neste
Caminhos alternativos e eixo temático ......................................................462
abordagens complementares ..............................445 Desenvolvendo os objetos de estudo...................462
EIXO TEMÁTICO 2 – EXPERIÊNCIA E Caminhos alternativos e
RACIONALIDADE ..................................................446 abordagens complementares ..............................465
Objetivos, descritores específicos e conceitos EIXO TEMÁTICO 3 – ÉTICA
do eixo temático .................................................446 E POLÍTICA ...........................................................465
Recursos a explorar neste Objetivos, descritores específicos e conceitos
eixo temático ......................................................446 do eixo temático .................................................465
Desenvolvendo os objetos de estudo...................446 Recursos a explorar neste
Caminhos alternativos e eixo temático ......................................................465
abordagens complementares ..............................448 Desenvolvendo os objetos de estudo...................466
EIXO TEMÁTICO 3 – ÉTICA Caminhos alternativos e
E POLÍTICA ...........................................................450 abordagens complementares ..............................469
Objetivos, descritores específicos e conceitos EIXO TEMÁTICO 4 – ARTE
do eixo temático .................................................450 E ESTÉTICA ...........................................................469
Recursos a explorar neste Objetivos, descritores específicos e conceitos
eixo temático ......................................................450 do eixo temático .................................................469
Desenvolvendo os objetos de estudo...................450 Recursos a explorar neste
Caminhos alternativos e abordagens eixo temático ......................................................469
complementares .................................................454 Desenvolvendo os objetos de estudo...................470
EIXO TEMÁTICO 4 – ARTE Caminhos alternativos e
E ESTÉTICA ..........................................................455 abordagens complementares ..............................471
Objetivos, descritores específicos e conceitos Palavras finais .......................................................473
do eixo temático .................................................455
Recursos a explorar neste eixo temático ..............455 LEITURAS COMPLEMENTARES .................................. 474

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PARTE 1: PRINCÍPIOS EDUCATIVOS E
ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS

DA FUNÇÃO DOCENTE

O educador é mestre na lapidação da alma humana, desentranhando as potencialidades inerentes ao ser, caminhando no
ritmo e no tempo do educando e desafiando-o para a constante superação de si, em busca de progressiva autonomia intelectual
e ética, participando da construção de uma sociedade democrática.

Partindo do pressuposto da abertura radical que constitui a alma humana como potencialidade, inde-
terminação, múltiplas possibilidades, o educador, que é muito mais do que um professor instrutor, concebe
o ser humano como potencialidade que merece toda atenção, cuidado e cultivo. Nessa dinâmica, um dos
maiores cuidados do educador é com o planejamento das estratégias metodológicas, pois, muitas delas
acabam se tornando obstáculos à construção de conhecimentos significativos.
Aqui, consideramos o pressuposto da psicogenética de Jean Piaget de que o conhecimento, diferente-
mente da informação, resulta de um processo de construção intersubjetiva, mediante constantes apropria-
ções e reapropriações, passando por estágios de desequilibração e reequilibração, nos quais o docente as-
sume decisivo papel como mediador do processo de maturação do estudante, atento às estruturas mentais,
aos processos de adaptação, assimilação e acomodação.
Inicialmente, o desafio que se apresenta ao professor é tornar-se educador, atento às singularidades e
sensibilidades dos educandos diante de si, que não aprendem da mesma forma nem de forma única. Nessa
dinâmica, uma das maiores competências e habilidades que o professor deve desenvolver e manifestar é
a de aplicar e rever as metodologias e reconhecer os ritmos nos quais a aprendizagem acontece de modo
mais significativo.
Na obra Dez competências para ensinar, Philippe Perrenoud refere-se à competência “Organizar e dirigir
situações de aprendizagem”, na qual destaca o trabalho docente com base nas representações dos estu-
dantes, construindo e planejando dispositivos e sequências didáticas. Nessa dinâmica, educador e estudante
constituem uma verdadeira comunidade de investigação.
Em decorrência disso, o currículo passa a ser um instrumento capaz de mobilizar diferentes recursos
disponíveis para a aplicação do conhecimento, tendo em vista a formação das habilidades e competências
dos estudantes. Por isso, o saber construído passa a ser saber prévio, que será sempre problematizado no-
vamente para a construção de saberes mais complexos.
Nesse percurso em direção à autonomia do estudante, que deve ser constantemente desafiado a assu-
mir-se como sujeito do seu processo de ensino e aprendizagem, o docente transforma o erro no maior alia-
do da aprendizagem. Graças ao erro, torna-se possível pensar nas intervenções necessárias para um salto
de qualidade. Essa visão pressupõe uma concepção de avaliação essencialmente diagnóstica, processual,
cumulativa e formativa.
Com efeito, à medida que a metodologia está centrada no laborar dos estudantes, o educador logo
reconhece que sua função não é “dar aulas”, o que alimentaria a passiva receptividade dos “estudantes

368

p18_col_integ_filo_unico_manual.indb 368 06/09/17 12:18


esponja”. Contrariamente, os maiores esforços concentram-se em envolver os estudantes no processo e
desafiá-los para o engajamento, uma vez que são eles próprios os sujeitos do processo. Sem esse engaja-
mento, não haverá a construção das competências e habilidades que buscamos.
Em 2000, quando o Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação Média e Tecno-
lógica, organizou a reformulação do Ensino Médio, ele propunha e expressava:

Partindo de princípios definidos na LDB, o Ministério da Educação, num trabalho conjunto com educado-
res de todo o país, chegou a um novo perfil para o currículo, apoiado em competências básicas para a inserção
de nossos jovens na vida adulta. Tínhamos um ensino descontextualizado, compartimentalizado e baseado no
acúmulo de informações. Ao contrário disso, buscamos dar significado ao conhecimento escolar, mediante a
contextualização; evitar a compartimentalização, mediante a interdisciplinaridade; e incentivar o raciocínio e
a capacidade de aprender.
Estes parâmetros cumprem o duplo papel de difundir os princípios da reforma curricular e orientar o pro-
fessor, na busca de novas abordagens e metodologias. Ao distribuí-los, temos a certeza de contar com a capaci-
dade de nossos mestres e com o seu empenho no aperfeiçoamento da prática educativa. Por isso, entendemos
sua construção como um processo contínuo: não só desejamos que influenciem positivamente a prática do
professor, como esperamos poder, com base nessa prática e no processo de aprendizagem dos alunos, revê-los
e aperfeiçoá-los. [...]
O Ensino Médio [...] é a etapa final de uma educação de caráter geral, afinada com a contemporaneidade,
com a construção de competências básicas, que situem o educando como sujeito produtor de conhecimento e
participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa, como “sujeito em situação” – cidadão.
[O Ministério da Educação propõe] a formação geral, em oposição à formação específica; o desenvolvimen-
to de capacidades de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las; a capacidade de aprender, criar,
formular, ao invés do simples exercício de memorização. [...]
Um outro dado a considerar diz respeito à necessidade do desenvolvimento das competências básicas tanto
para o exercício da cidadania quanto para o desempenho de atividades profissionais. [...]
De que competências se está falando? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sis-
têmico, ao contrário da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos, da criatividade, da curiosidade, da
capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do
pensamento divergente, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da
disposição para o risco, do desenvolvimento do pensamento crítico, do saber comunicar-se, da capacidade de
buscar conhecimento. Estas são competências que devem estar presentes na esfera social, cultural, nas atividades
políticas e sociais como um todo, e que são condições para o exercício da cidadania num contexto democrático.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEM,
2000. Disponível em: <portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2016.

Contudo, no caminhar histórico da educação no Brasil, novos desafios se fizeram presentes com os
novos quadros sociais. Fazia-se necessária a atualização das Diretrizes curriculares nacionais, em busca de
uma educação com maior e melhor qualidade social. Com esse objetivo, a Câmara da Educação Básica do
Conselho Nacional de Educação promoveu uma série de estudos, debates e audiências públicas. Desse pro-
cesso resultou, em 2013, a publicação do documento Diretrizes curriculares nacionais gerais da educação
básica. Essas diretrizes estabeleceram a base nacional comum, na qual se encontram as orientações para a
“organização, articulação, o desenvolvimento e a avaliação das propostas pedagógicas de todas as redes
de ensino brasileiras”.
Um dos maiores desafios que se colocava nesse momento para a educação brasileira era o de investir na
qualidade social da educação, promovendo a inclusão social. Essa escola de qualidade social deverá estar
construída sobre os pilares do diálogo, da colaboração, dos sujeitos e das aprendizagens.

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A qualidade social da educação brasileira é uma conquista a ser construída coletivamente de forma nego-
ciada, pois significa algo que se concretiza a partir da qualidade da relação entre todos os sujeitos que nela
atuam direta e indiretamente. Significa compreender que a educação é um processo de produção e socialização
da cultura da vida, no qual se constroem, se mantêm e se transformam conhecimentos e valores. Socializar a
cultura inclui garantir a presença dos sujeitos das aprendizagens na escola.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral.
Diretrizes curriculares nacionais gerais da educação básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. p. 20-21.

Torna-se imperativo para o fazer pedagógico fomentar a construção das competências que preparam
para a vivência da cidadania, da mesma forma que é fundamental nos concentrarmos na produção e na
socialização da cultura da vida, com o envolvimento dos sujeitos das aprendizagens na escola, oferecendo
a eles condições para que alcancem sucesso no aprendizado efetivo.
Assim, as metodologias a serem construídas em sala de aula, no atendimento aos diversos ritmos
e tempos de aprendizagem, deverão estar a serviço da aprendizagem das competências e habilidades
específicas mencionadas nos Parâmetros curriculares nacionais: desenvolver o pensamento crítico, saber
conviver com o pensamento divergente, pensar sistemicamente e pensar em alternativas para a resolução
de situações-problema.
Assim, nossa função consiste em administrar a progressão da aprendizagem dos estudantes, que se tor-
nam pesquisadores. Essa demanda é verdadeiramente desafiadora para nós, uma vez que, historicamente,
as aulas normalmente são pensadas em função da inteligência e da sensibilidade do professor e não dos
seus parceiros, os estudantes.
Essa maneira de educar para a responsabilidade e para a autonomia do estudante implica um projeto
pedagógico da comunidade educativa, envolvendo todos os parceiros, da família à escola. Contudo, consi-
derando que as grandes transformações vêm da base, é preciso que iniciativas aconteçam em sala de aula
e que sejam progressivamente socializadas, acolhidas e incentivadas.
Portanto, para falarmos da função docente é imprescindível considerarmos a finalidade da educação.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, na seção IV, art. 35, assim estabelece as finalidades do
Ensino Médio:

I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibili-


tando o prosseguimento de estudos;
II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo
a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamentos posteriores;
III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento
da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a
teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
[No art. 36, ao abordar o currículo do Ensino Médio, apresenta as seguintes diretrizes:]
IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do Ensino Médio.
§ 1o – os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do
Ensino Médio o educando demonstre:
I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;
II – conhecimento das formas contemporâneas de linguagem.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB: lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional. 6. ed. Brasília: Edições Câmara, 2011. (Série Legislação, n. 64).

Em 2016, o Ministério da Educação, após longo trabalho realizado pelas equipes formadas pela Secreta-
ria de Educação Básica, apresentou à sociedade uma versão preliminar que, após consulta e debate público,
comporá a Base Nacional Comum Curricular. Nela, em relação ao ensino de Filosofia, afirma-se:

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O resgate dessa presença favorece que a Filosofia cumpra, no Ensino Médio, seu melhor papel, mobilizando
procedimentos metodológicos e críticos próprios. O/a estudante fará, então, a experiência de questionamentos
explicitamente filosóficos, ora a partir da discussão filosófica de assuntos de interesse, ora por meio do contato
direto com textos filosóficos, seja ainda no enfrentamento de temáticas mais usualmente chamadas de filosófi-
cas, como aquelas da ontologia, da lógica, da retórica, da epistemologia, da ética e da estética.
[...] Na medida em que deve contribuir para a formação do/a estudante como agente articulador e transfor-
mador de saberes, capaz de questioná-los, corroborá-los ou melhorá-los, é de fundamental importância que a
Filosofia lhe seja apresentada em cada um dos três anos do nível médio como experiência conectada com sua
vida e problemas, escolares, políticos e existenciais. Os processos de mediação docente podem variar desde que
não se perca o protagonismo do/a estudante na oportunidade de filosofar.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (texto provisório), p. 294-295. Disponível em: <basenacionalcomum.mec.
gov.br/#/site/conhecaDisciplina?disciplina=AC_CIH&tipoEnsino=TE_EM>. Acesso em: 28 abr. 2016.

A Base Nacional Comum Curricular foi pensada para atender à realização de três dimensões fundamen-
tais da vida humana:
1. A vida em sociedade, as relações sociais e políticas.
2. A atividade produtiva, da construção da dignidade por meio da dimensão do trabalho.
3. A experiência subjetiva, na qual deve haver ênfase na educação para a autonomia, para o pensamento
crítico e criativo.
Essas três dimensões integram-se à proposta curricular da Unesco, que apresenta quatro eixos estrutu-
rantes da educação na sociedade contemporânea: o aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a
conviver e o aprender a ser.
Com o objetivo de oferecer condições à realização dessas dimensões, apresenta-se uma questão funda-
mental: Em Filosofia, como ser mediador e aquele que estimula no processo de construção do conhecimen-
to por parte dos estudantes? Resumida e esquematicamente, podemos afirmar:
a. Partir do saber prévio dos estudantes, acolhendo-os e estimulando sua problematização ou desnaturalização;
b. Fomentar o diálogo investigativo acerca do tema em análise, evitando reducionismos e dogmatismos;
c. Considerar as aquisições das teorias psicopedagógicas sobre o processo de ensino e aprendizagem;
d. Trabalhar o erro como especial aliado da aprendizagem, uma vez que sinaliza para o estágio no qual o
estudante se encontra;
e. Possibilitar ao estudante o reconhecimento das razões do seu olhar e dos pressupostos do olhar do outro,
em diálogo investigativo;
f. Educar para a formação em níveis crescentes de complexidade, estabelecendo relações entre os diversos
saberes, superando a fragmentação e criando laços transdisciplinares;
g. Educar o olhar, a atitude e o direcionamento da razão para os princípios estéticos da sensibilidade, da
criatividade e da diversidade de manifestações artísticas e culturais (conforme a resolução CEB no 2
de 1998);
h. Possibilitar ao adolescente e ao jovem a formação dos princípios éticos da autonomia, da responsabilidade,
da solidariedade e do respeito ao bem comum (conforme a resolução CEB no 2 de 1998);
i. Oportunizar a formação dos princípios dos direitos e deveres da cidadania, do exercício da criticidade e do
respeito à ordem democrática (conforme a resolução CEB no 2 de 1998);
j. Fomentar a dimensão política do ser humano, na qual acontece a realização da vida humana;
k. Organizar e dinamizar situações e vivências de aprendizagem significativa, envolvendo os estudantes nas
etapas do processo de ensino/aprendizagem;
l. Administrar a progressão da aprendizagem dos estudantes, favorecendo o encontro dos saberes já exis-
tentes e construídos por eles, possibilitando que um estudante possa ser mediador no processo de apren-
dizagem de outro, em um ambiente de diálogo investigativo.
Na condução do processo de formação integral de nossos estudantes, devem ser tomados alguns cui-
dados. Destacamos:

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a. Evitar posturas prescritivas. Ou seja, evitar prescrever, antecipadamente, o certo e o errado, pois a natureza
do pensamento filosófico não aceita ser imitativa nem permanecer informativa. Contrariamente, é função
do educador ser mediador no processo de construção dos valores, em diálogo com a cultura e a tradição;
b. Evitar, inicialmente, apresentar os conceitos. De outra maneira, devemos possibilitar, ao longo do processo,
o surgimento dos elementos e termos necessários para a construção conceitual;
c. Combater a circulação de posturas reducionistas, dogmáticas, preconceituosas e discriminatórias, educan-
do para o respeito e para a promoção da diversidade, em suas diferentes e constitutivas dimensões.

OS CONCEITOS DE COMPETÊNCIAS E HABILIDADES


O termo “competência” pode receber muitas significações. Por isso, é preciso uma delimitação que
possibilite o sucesso de nosso objetivo. O que caracteriza, basicamente, uma competência é sua dimen-
são mental, constituindo uma modalidade estrutural da inteligência, por meio da qual se desenvolvem as
habilidades. Por isso, se quisermos pensar em habilidades, em saber fazer, em saber resolver conflitos ou
problemas, é preciso primeiro, construir competências.
Entre as referências teóricas para trabalhar as noções de competência e de habilidade, sugerimos P.
Perrenoud. Entre suas obras, destacamos: Dez novas competências para ensinar e Pedagogia diferenciada.
Em seu pensamento, a competência é concebida como a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos
cognitivos para solucionar situações-problema.
Dessa maneira, a competência pode ser verificada na habilidade. Inversamente, dada uma situação que
necessita de resolução, pode-se inferir uma competência construída, verificando as habilidades que o estu-
dante demonstrou na sua resolução. Essa noção de competência vem muito bem expressa nos documentos
oficiais brasileiros. Vejamos:

Competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos
para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habili-
dades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Por meio das ações
e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências.
BRASIL. Enem: documento básico. Brasília: Imprensa Oficial, 2000. p. 7.

Assim, a competência se realiza na ação ou na operação. Por isso, ao pensarmos a Filosofia no Ensino
Médio a serviço da construção de competências e habilidades, é preciso que seja oferecido ao estudante
um ambiente no qual ele se depare com situações complexas que exijam, o tempo todo, a articulação e a
aplicação dos conteúdos conceituais. Aqui se verifica a importância e o papel do educador como agente
construtor e gerenciador de situações de aprendizagem. Nessas situações, os estudantes serão estimulados
a rever os conceitos em atividades que integrem a teoria e a prática. Dessa maneira, acontecerá a aprendiza-
gem significativa, superando o modelo da fragmentação dos saberes, de um ensino focado na transmissão
de conhecimentos.
Contudo, na formação de estudantes competentes, é preciso reconhecer que há, naturalmente, hierar-
quias de excelência, nas quais as pessoas mostram competências diferentes no domínio de certas dimensões
do real. Entretanto, quando o assunto é o fracasso escolar, esse não pode ser visto como uma expressão ou
tradução dessas desigualdades, uma vez que os domínios de saberes que a escola avaliará deverão, antes,
ser ensinados.

Presentes em todas as sociedades, as desigualdades de capital cultural apresentam-se, primeiramente, como


capacidades desiguais de compreensão e de ação, revelando um poder desigual sobre as coisas, os seres e as
ideias. Nem todos os indivíduos que coexistem em uma sociedade, tanto crianças quanto adultos, enfrentam
as situações da vida, sejam elas banais ou extraordinárias, com os mesmos meios intelectuais e culturais. Essa
desigualdade existe tanto nas sociedades sem escola com nas sociedades altamente escolarizadas. Mas a emer-
gência da forma escolar modifica o estatuto, a natureza e a visibilidade das diferenças culturais.
PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. p.18.

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Pressupondo ritmos e sensibilidades diversos em grupos necessariamente heterogêneos, torna-se fun-
damental que nossa abordagem em sala de aula coloque o aprendiz no centro da atividade. Assim, nosso
modo de estar em sala de aula, na condição de educadores e formadores, deve permitir e proporcionar a
cada estudante aprendiz a construção pessoal do próprio percurso na relação com os pares e no diálogo
investigativo.
Quando dizemos “diálogo investigativo”, pressupomos uma comunidade de aprendizes, estudantes e
professores que têm em mente a realização de um projeto, para o qual todos os seus saberes já construídos
estão voltados. Dessa forma, realiza-se o sentido da vida escolar, uma vez que o que nela se aprende pode
ser investido fora dela, no presente e no futuro. A esse reinvestimento transcendente ou transformador, os
especialistas denominam “transferência”.
Essa capacidade de transferência deve ser perseguida por todos os membros da comunidade educativa.
Ora, se a transferência é essa capacidade do sujeito de reinvestir suas aquisições cognitivas e seus conheci-
mentos prévios em situações novas, é imprescindível que ele, com seus pares, depare-se com essas situações
novas. Assim, essa transferência não é um processo espontâneo, natural e prévio, não é uma transposição
automática. Requer disciplinado trabalho mental, de um sujeito, sempre aprendiz, em uma nova e desafia-
dora situação, que lhe é apresentada e proposta, na qual deverá intervir.
Cada estudante aprendiz é portador de um saber prévio. A competência, agora, receberá um nome:
saber mobilizar, com base na junção e integração dos recursos disponíveis. A transferência, dessa forma, é
uma atualização do saber prévio, que significa nova aprendizagem em situação inédita. Assim, essa postura
implica atitude reflexiva na ação. Aqui, a metacognição recebe todo o seu sentido, uma vez que implica o
retorno do aprendiz sobre o próprio processo de aprendizagem. Em decorrência disso, todo o aprendizado
vira uma caixa de ferramentas, no interior da qual se retira o que a nova situação pede para sua resolução.
Preparar os estudantes para essa capacidade de transferência requer uma metodologia de trabalho
que negue tanto a tradicional passividade do estudante (que espera que o educador mostre como fazer,
para que ele reproduza) como a postura docente centralizadora. É preciso negociar com os estudantes um
compromisso efetivo com as atividades diárias, nas quais serão desafiados a buscar na caixa de ferramentas
dos saberes construídos os recursos para resolver novas e progressivas situações problemáticas da vida real.
Nessa dinâmica, na qual o estudante torna-se aprendiz pesquisador, a incerteza caminha com a confiança.
O êxito em uma situação desconhecida revela a aprendizagem bem-sucedida da transferência. E quando
o êxito esperado depende de uma aprendizagem a ser conquistada, o engajamento para a transferência
será maior. Nessa comunidade investigativa, ninguém domina tudo o que será necessário para a realização
do projeto; por isso, as múltiplas inteligências, sensibilidades e saberes aprendem a se relacionar e reconhe-
cem a mútua dependência.
Assim, no horizonte da educação que se volta para a formação de estudantes competentes, está a capa-
cidade de produzir hipóteses e mobilizar saberes. Esse saber mobilizar recursos constitui a essência de toda
competência.
Se o estudante competente é aquele capaz de mobilizar tudo o que aprendeu para resolver situações
desafiadoras em um novo ambiente, então, se temos compromisso com a competência, devemos associar
saber e experiência, transformando a sala de aula em uma oficina de construção continuada em complexi-
dade crescente.
Dessa maneira, colocamo-nos na dinâmica de uma educação emancipadora, na qual o aprendiz é reco-
nhecido como sujeito e, por isso, deve ter acesso às condições que o responsabilizarão pela construção do
seu percurso, com progressiva autonomia intelectual e ética.
Sugerimos algumas fontes de consulta para seu aprofundamento em questões pedagógicas, didáticas e
metodológicas:
• BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB: lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. 6. ed. Brasília: Edições Câmara,
2011. (Série Legislação, n. 64).
• _____. Enem: documento básico. Brasília: Imprensa Oficial, 2000.
• _____. Secretaria de Educação Média e Tecnologia. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio. Brasília:
MEC, 1999.

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• CHAKUR, Cilene Ribeiro de Sá Leite. Contribuições da Pesquisa Psicogenética para a Educação Escolar. In:
Psicologia: teoria e pesquisa, v. 21, n. 3, set-out. 2005. p. 289-296. Disponível em <www.scielo.br/pdf/%0D/
ptp/v21n3/a05v21n3.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2016.
• HERNANDEZ, Fernando. A organização do currículo por projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998.
• _____. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
• PAQUAY, Léopold; PERRENOUD, Philippe; ALTET, Marguerite; CHARLIER, Évelyne (Org.). Formando professo-
res profissionais: Quais estratégias? Quais competências? Trad. Fátima Murad e Eunice Gruman. Porto Alegre:
Artmed, 2001.
• PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed, 1999.
• _____. Dez novas competências para ensinar. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
• PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (Org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um con-
ceito. São Paulo: Cortez, 2002.
• POZO, Juan Ignácio. A aprendizagem e o ensino de fatos e conceitos. In: COLL, César. Os conteúdos na re-
forma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
• _____. A solução de problemas. Porto Alegre: Artmed, 1998.
• SACRISTÁN, J. Gimeno. Currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 1998.
• ZABALA, Antoni (Org.). Como trabalhar os conteúdos procedimentais em aula. Porto Alegre: Artes Médicas,
1999.
• _____. Enfoque globalizador e pensamento complexo. Porto Alegre: Artmed, 2002.
• _____. A prática educativa: como ensinar. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 1998.

Sites
• Matriz de Referência de Ciências Humanas e suas Tecnologias. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/
educacao_basica/enem/downloads/2012/matriz_referencia_enem.pdf>.
• Resolução CEB nº 3, de 26 de junho de 1998, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio. Disponível em: <portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/res0398.pdf>.
• Centro de Referência Virtual do Professor. Disponível em: <crv.educacao.mg.gov.br> (para alimentar a forma-
ção continuada).
• Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio. Disponível em: <pactoensinomedio.mec.gov.br> (para
conhecer as ações e estratégias para incentivar a elevação do padrão de qualidade do Ensino Médio).
(Acessos em: maio 2016.)

EDUCANDO OS ESTUDANTES NA MATRIZ DO ENEM

Na condição de mediadores e representantes culturais junto aos estudantes, nossa identidade se realiza na formação de
estudantes competentes. Nossa identidade maior está no compromisso em torná-los competentes no domínio das múltiplas
linguagens e conceitos e em sua correta aplicação na leitura compreensiva do mundo. Dessa competência nascerá a habilidade
de intervir na realidade e de propor alternativas para situações sociais, exercendo a cidadania na democracia participativa.

Conceitos filosóficos, competências e habilidades a construir


Considerando a presença da Filosofia no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), se faz necessário
abordar a Matriz de Referência de Ciências Humanas e suas Tecnologias, no interior da qual se encontra a
Filosofia, como disciplina, ao lado da Sociologia, da História e da Geografia. Nesse contexto, há conceitos
e temas da Filosofia que precisam ser destacados. Esses temas e conceitos não se encontram somente na
Matriz de Referência de Ciências Humanas e suas Tecnologias, mas também na Matriz de Referência de
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Por isso, é fundamental desenvolver o olhar interdisciplinar às ha-
bilidades no interior das competências. Para todas as matrizes, há cinco competências solicitadas, chamadas
de eixos cognitivos, comuns às quatro áreas:

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I. Dominar linguagens: dominar a norma culta da língua portuguesa e fazer uso das lingua-
gens matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa.
II. Compreender fenômenos: construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento
para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produ-
ção tecnológica e das manifestações artísticas.
III. Enfrentar situações-problema: selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e in-
formações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações
problema.
IV. Construir argumentação: relacionar informações, representadas em diferentes formas, e
conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente.
V. Elaborar propostas: recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para a elabora-
ção de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e
considerando a diversidade sociocultural.

Considerando a singularidade de cada área do conhecimento, o Enem elaborou competências especí-


ficas para cada uma delas. Essas competências se desdobram em trinta habilidades. Assim, com base no
Enem, escolhemos algumas competências e habilidades que poderão ser construídas interdisciplinarmente.

Competência de área 1 – Compreender os elementos culturais que constituem as identidades.


Habilidade 1 – Interpretar historicamente e/ou geograficamente fontes documentais acerca
de aspectos da cultura.
Habilidade 2 – Analisar a produção da memória pelas sociedades humanas.
Habilidade 3 – Associar as manifestações culturais do presente aos seus processos históricos.
Habilidade 4 – Comparar pontos de vista expressos em diferentes fontes sobre determinado
aspecto da cultura.
Habilidade 5 – Identificar as manifestações ou representações da diversidade do patrimônio
cultural e artístico em diferentes sociedades.

As habilidades da competência de área 1 estão profundamente relacionadas ao primeiro eixo temático


da obra, que propomos na matriz de referência para a Filosofia no Ensino Médio. Dois pares conceituais
do Eixo Antropológico-existencial são “Natureza e cultura” e “Determinismo e liberdade”. É fundamental
construir com os estudantes uma sólida reflexão sobre esses conceitos estruturantes da filosofia. Em relação
às múltiplas possibilidades de abordar essa temática, sugerimos sempre estimular nos estudantes o olhar
interdisciplinar.
Vejamos mais alguns exemplos de competências e habilidades, previstas na Matriz de Referência de
Ciências Humanas e suas Tecnologias.

Competência de área 5 – Utilizar os conhecimentos históricos para compreender e valorizar


os fundamentos da cidadania e da democracia, favorecendo uma atuação consciente do indi-
víduo na sociedade.
Habilidade 21 – Identificar o papel dos meios de comunicação na construção da vida social.
Habilidade 22 – Analisar as lutas sociais e conquistas obtidas no que se refere às mudanças
nas legislações ou nas políticas públicas.
Habilidade 23 – Analisar a importância dos valores éticos na estruturação política das sociedades.
Habilidade 24 – Relacionar cidadania e democracia na organização das sociedades.
Habilidade 25 – Identificar estratégias que promovam formas de inclusão social.

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As habilidades da competência de área 5 vinculam-se às temáticas filosóficas situadas no Eixo Ético-polí-
tico, na matriz de referência que propomos para a Filosofia no Ensino Médio. Alguns conceitos estruturantes
que propomos nesse eixo: Ética do cuidado,Tolerância e respeito, Certo e errado, Bem e mal, Juízo de fato
e juízo de valor, Universalismo e relativismo, Dever e obrigação, Dignidade e alteridade, Conflitos éticos,
Liberdade e autonomia, Poder e força, Igualdade e diferença, Direito e justiça, Conflito: individual e coleti-
vo, Tradição e diversidade cultural, Cidadania e participação, Formas de governo, Democracia e soberania,
Virtudes e vícios da vida política.
A abordagem de temas éticos e políticos é da essência do pensamento filosófico. Seguramente, o pro-
fessor deve nesse instante se recordar que a filosofia nasce na pólis, da pólis e para a vida da pólis. O Eixo
Ético-político tem relação com a esfera dos juízos valorativos e com a reflexão crítica sobre o agir moral.
Consideremos, ainda, outra competência de área e habilidades relacionadas, estabelecidas na Matriz de
Referência de Ciências Humanas e suas Tecnologias do Enem:

Competência de área 6 – Compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo suas intera-


ções no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos.
Habilidade 27 – Analisar de maneira crítica as interações da sociedade com o meio físico,
levando em consideração aspectos históricos e (ou) geográficos.
Habilidade 28 – Relacionar o uso das tecnologias com os impactos socioambientais em dife-
rentes contextos histórico-geográficos.
Habilidade 29 – Reconhecer a função dos recursos naturais na produção do espaço geográfi-
co, relacionando-os com as mudanças provocadas pelas ações humanas.
Habilidade 30 – Avaliar as relações entre preservação e degradação da vida no planeta nas
diferentes escalas.

Na competência de área 6, o Eixo Ético-político é retomado sob os conceitos estruturantes de Ética do


cuidado, Antropocentrismo e biocentrismo, Cidadania planetária e Sustentabilidade.
Nesse sentido, a filosofia, que é a busca pelo bem viver em sociedade, implica pensarmos seriamente
no destino das gerações futuras. Assim, a filosofia aparece em toda a sua essência como o saber crítico da
cultura e, também, como o saber interdisciplinar que busca ampliar o conhecimento das questões vitais.
Na Matriz de Referência de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (competência de área 4), afirma-se:
“Compreender a arte como saber cultural e estético gerador de significação e integrador da organização
do mundo e da própria identidade”. O tema da estética ou da filosofia da arte pertence ao Eixo Estético da
filosofia e deve, portanto, ser considerado. Consideremos a Matriz de Referência de Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias do Enem:

Competência de área 4 – Compreender a arte como saber cultural e estético gerador de sig-
nificação e integrador da organização do mundo e da própria identidade.
Habilidade 12 – Reconhecer diferentes funções da arte, do trabalho da produção dos artistas
em seus meios culturais.
Habilidade 13 – Analisar as diversas produções artísticas como meio de explicar diferentes
culturas, padrões de beleza e preconceitos.
Habilidade 14 – Reconhecer o valor da diversidade artística e das inter-relações de elementos
que se apresentam nas manifestações de vários grupos sociais e étnicos.

A IDENTIDADE DA FILOSOFIA
A metodologia se insere no quadro da natureza da filosofia. Assim, é preciso pensar no caminho que nos
conduzirá nesse processo de construção da atitude filosófica.
Pensamos na filosofia como saber e atitude que traz em si especificidades que necessitam ser explicita-
das e cultivadas. Vejamos alguns desses aspectos que julgamos essenciais.

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História da filosofia ou temas de filosofia? Ou o que a filosofia não é

A filosofia é impensável sem sentido de problematização, de espírito crítico, daí que outros caminhos, que
não a admiração ingênua, deverão ser percorridos, para que se atinja o problema filosófico [...]. Referimo-nos a
caminhos pré-filosóficos, existenciais, que transformem em um problema, não apenas a filosofia, mas a minha
própria existência e o mundo que me cerca, no qual vivo, que me obriguem a adotar uma atitude interrogativa,
a viver o problema do real como meu problema. Ora, a grande barreira que impede o sentido da problematiza-
ção é o dogmatismo da ingenuidade.
BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. São Paulo: Globo, 1998. p. 52-53.

A experiência docente reconhece a existência de várias formas de abordar a filosofia. Entre elas, mencio-
naremos duas que queremos evitar: a primeira, transformar a aula em história da filosofia. Nessa aborda-
gem metodológica, o olhar volta-se para o passado e ali permanece. Embora seja um olhar válido e legítimo,
ao assim procedermos, distanciamo-nos da atitude problematizadora e singularmente filosófica, que é es-
sencialmente crítica do instituído, marcada pela experiência da negatividade e pelo pensamento divergente,
que solicita a autenticidade e originalidade da reflexão pessoal face ao estabelecido pela tradição.
Não aconselhamos a abordagem meramente histórica como caminho para os estudantes do Ensino Médio,
pois os adolescentes devem ser instigados a pensar nas grandes questões da vida e a problematizar o senso
comum para que vivam a experiência filosófica, assumindo-se como cidadãos em uma sociedade democrática.
Contudo, a atitude filosófica não é espontânea nem imediata. Assim, é imprescindível visitarmos o passado e
conhecer as muitas construções teóricas já realizadas na história da filosofia sobre as grandes questões humanas.
Para isso, o olhar histórico torna-se um recurso legítimo e obrigatório, condição prévia para construir, com
fundamentos rigorosos, o saber filosófico comprometido com a problematização da vida social no caminho
da preparação do jovem para a vida adulta, para o mundo do trabalho e para as relações sociais mais amplas.
Nesse sentido, concordamos com Immanuel Kant (1724-1804) quando afirma:

Não é possível aprender qualquer filosofia; [...] só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento
da razão, fazendo-a seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sem-
pre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os
ou rejeitando-os.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 407.

Entre as referências teóricas contemporâneas que refletem sobre a identidade da filosofia, sugerimos o estu-
do do pensamento de Gilles Deleuze. Indicamos a obra O que é filosofia? escrita em parceria com Félix Guattari.
A segunda abordagem muito comum, que também devemos evitar, é a atitude que consiste em transfor-
mar a aula de Filosofia em debates, em livres discussões de temas atuais, de interesse dos estudantes. Essa
postura é uma ótima metodologia inicial para trabalhar com o saber prévio deles e com as noções do senso
comum. Contudo, para usarmos a imagem da alegoria da caverna, que Platão desenvolve no Livro VII de A
República, lá permanecer é perpetuar a doxa, isto é, a opinião comum dos que vivem no interior da caverna.

O lapidar da mente
Entre os objetivos da educação para o pensar filosófico, destaca-se o compromisso com a arte de lapida-
ção da mente, dada a natureza autoimplicativa da filosofia. Dessa forma, podemos afirmar que a prática da
filosofia transforma quem a pratica naquilo que pratica, ou seja, é no mergulho que se aprende a mergulhar.
E a filosofia tem o poder de transformar o sujeito ao lapidar sua alma racional. Nesse processo de forma-
ção da identidade de cada sujeito, em interação com os outros, torna-se fundamental a formação para
a autonomia, tanto intelectual como moral e ética, mediante uma consciência em formação crítica, com
competências e habilidades de juízos sensatos e em progressivo esclarecimento, auxiliando na educação de
adolescentes e jovens capazes de dar as razões de sua fala e de sua postura.

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Partimos do princípio de que a reflexão filosófica é sempre uma reflexão de seu tempo, crítica e instituin-
te de um novo viver, na busca de uma sabedoria prática, iluminada pelo saber teórico. Para a construção
dessa atitude filosófica, potencialmente presente em todos, a metodologia deve estar centrada no estudan-
te como sujeito do processo da aprendizagem.
Por isso, desde o primeiro contato com ela, os estudantes devem ser seduzidos para o processo de filoso-
far, em um ambiente que realiza o que a filosofia significa. Quais experiências existenciais estão na origem
da atitude filosófica? O estudante deverá perceber o quanto já é filósofo em seu dia a dia, à medida que
olha para o mundo com um olhar crítico, buscando fundamentos e estabelecendo relações. Dessa forma,
a atitude de filosofar promoverá a formação de competências e habilidades cognitivas, reflexivas e críticas,
em cada parceiro do diálogo investigativo.

Admiração, inquietude e dúvida


É fundamental começarmos bem a atividade de filosofar com os estudantes. E a melhor maneira, segu-
ramente, consistirá em iniciar trabalhando a dimensão autoimplicativa da filosofia. Partindo da concepção
socrática e de sua metodologia correspondente, é importante proporcionar ao estudante o reconhecimento
de que o ser humano amadurece progressivamente para a filosofia à medida que aprende a fundamentar
seus posicionamentos com consciência e profundidade na releitura do mundo, conferindo sentido à exis-
tência. Dessa forma, em sua aprendizagem inicial de filosofar, o estudante poderá antever o caráter último
de sua filosofia, ou seja, o filosofar em função de um melhor viver em sociedade.
Assim, nosso projeto tem uma destacada preocupação inicial e um objetivo primeiro: favorecer ao es-
tudante a percepção de que a filosofia não deve ser vista, em primeiro lugar, como um saber acumulado a
que teremos acesso, mas como uma atitude que construiremos, uma postura diferenciada diante da vida.
Seguimos, aqui, a reflexão desenvolvida por Karl Jaspers, em sua obra Introdução ao pensamento filosófico.
Sendo atitude de busca, a filosofia não pode consistir em apresentar verdades e elaborações definitivas, nem
ser imitativa e tampouco permanecer informativa, uma vez que alimentaria a passividade e não educaria para
a necessária autonomia intelectual e ética. Inicialmente, recordando a reflexão de Gerd Bornheim, extraída de
Introdução ao filosofar, o ato de filosofar parte da experiência da negatividade como valor metodológico, ou
seja, é preciso parar, estabelecer juízos críticos e não aceitar permanecer no senso comum. Por isso, pretende-
mos despertar e educar a consciência para um olhar filosófico, compromissado com a ressignificação da própria
existência, capaz de construir sentido na interação com os outros em uma atitude de diálogo investigativo.
Conforme reflexão clássica, presente tanto no pensamento socrático-platônico como também no aristo-
télico, essa possibilidade do filosofar, presente em todos, começa a se tornar realidade baseada na admira-
ção, na abertura existencial da qual nasce a consciência da própria ignorância que impulsiona o ser humano
ao saber por meio de uma atitude investigativa. Em sua primeira afirmação, na obra Metafísica, Aristóteles
declara que “todos os homens desejam naturalmente saber”. E um pouco adiante, na mesma obra, assim
se expressa: “É, com efeito, a admiração que leva e levou os primeiros homens à especulação filosófica”.
Graças à admiração, que significa mirar de perto, querer ver a realidade, a filosofia poderá acontecer na
existência do indivíduo. Por isso, a filosofia é uma volta para a realidade, reaprendendo a ver.
Em segundo lugar, o filosofar nasce da dúvida e da capacidade problematizadora diante da realidade.
Dessa forma, o combate ao sentimento e à atitude de normalidade, que legitima injustiças em suas mais va-
riadas formas, torna-se expressão da filosofia em ação. Essa atitude aprimora o espírito crítico, força motriz
da filosofia, que busca estabelecer juízos fundamentados em critérios racionais. Assim, o desejo inicial de
ver a realidade, expresso na admiração e/ou na indignação, converte-se na busca por fundamentos.
Considerando que a natureza da filosofia é ser amante da sabedoria por meio de uma busca continuada
por novas e aprofundadas leituras do mundo, a atitude filosófica que pretendemos formar traz a marca da
criticidade e da radicalidade, ou seja, a percepção e a crítica dos pressupostos que subjazem nossas afirma-
ções cotidianas, muitas vezes carregadas de crenças e dogmatismos.
Com efeito, a busca pela origem, pelos princípios primeiros, é sempre uma motivação inquietante que
nos anima e desinstala, sendo fonte da atitude problematizadora. Dessa forma, nosso propósito é alimentar

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o olhar diferenciado, que capta articulações e constrói uma nova identidade pessoal em diversas esferas da
vida, especialmente nos âmbitos da condição humana, do estético, do conhecimento, da ética e da política.
É a busca pelo sentido que conduz o ser humano a questionar. Nossa condição é a de seres inquietos,
garimpeiros incansáveis. Por isso, aprofundar a consciência é, assim, mergulhar em nossa identidade radical,
uma vez que em nossa raiz está a vocação para a vida refletida ou reflexiva. Consequentemente, filosofar é
um processo de desocultar, desmascarar e desmitificar ideologias que nos impedem de buscar uma leitura
mais profunda e articulada da realidade.
Dessa forma, a reflexão sobre a natureza da filosofia nos remete à necessidade de a educação ser voltada
para a formação de uma atitude metacognitiva, ou seja, capaz de refletir sobre o próprio processo de aprendi-
zagem, aprendendo a aprender, buscando construir relações e articulações, fazendo do erro um grande aliado
da aprendizagem, uma vez que o saber guarda uma relação com a totalidade da pessoa, sempre em constru-
ção. Assim, o saber, ao se fazer autoimplicativo, possibilita o novo, fomenta o fazer diferente e, fundamen-
talmente, possibilita ser e relacionar-se com qualidade diferenciada. Assim, a filosofia coloca-se na dinâmica
da formação de uma nova postura ética e política, consciente e coerente, amadurecida pela reflexão crítica.
Portanto, as primeiras experiências existenciais necessárias para o despertar da atitude filosófica que
deveremos suscitar nos estudantes podem ser assim resumidas: ver a realidade; espantar-se, admirar-se ou
indignar-se diante do percebido; problematizar e duvidar; desejar conhecer essencialmente.

Atitude de busca radical, reflexiva, argumentativa e criativa


Nosso esforço inicial será favorecer ao estudante o reconhecimento de sua situação diante do senso
comum, no qual está inserido. Isso se deve ao fato de que a natureza reflexiva da filosofia problematiza-o,
decifrando tanto sua dimensão alienante como a de um possível bom senso nele presente, dependendo de
como acontece a postura de cada um de nós diante do saber que herdamos da cultura.
Assim, o filosofar consiste na atitude de mergulhar, buscar as raízes, compreender essencialmente fenô-
menos e realidades, as razões de ser, os fundamentos de cada olhar, postura ou realidade. E, em decorrência
desse mergulhar, a atitude filosófica estará em melhores condições de compreender a complexidade, pensar
conceitualmente e em formas criativas de intervenção e participação na vida política da comunidade.
Considerando a natureza interdisciplinar da filosofia, a educação para o pensar filosófico deverá ter
como um de seus objetivos básicos educar o pensar em direção a uma progressiva complexidade, buscando
sempre articular os vários saberes, com o intuito de formar uma nova inteligência.
Infelizmente, ainda hoje, diante de problemas cada vez mais globais, planetários, multidimensionais e
transdisciplinares, encontramos a educação marcada por saberes separados, fragmentados e compartimen-
tados entre disciplinas. Com efeito, a educação que não favorece a percepção global conduz ao enfraque-
cimento do senso de responsabilidade e de solidariedade, uma vez que a fixação no saber fragmentado
elimina a relação e, consequentemente, a visão de conjunto.
Ora, há uma complexidade no todo que não se reduz nem é captável na junção das partes. Por isso, a
educação não pode estar focada em ensinar a decompor, mas a recompor. Daí ser fundamental a educação
colocar-se a serviço da mudança de paradigma, capaz de ressituar, reorientar e ressignificar as ações hu-
manas no planeta. Dessa forma, na construção de uma inteligência da articulação dos saberes, a educação
para o pensar filosófico assume o compromisso de redirecionar o conhecimento, construindo relações que
promovam a vida em escala planetária.
Já antecipando o que deverá ser uma orientação metodológica, faz-se imperativo o trabalho inter e trans-
disciplinar da filosofia com as demais áreas, especialmente literatura, sociologia, história, geografia e arte.

Pensamento conceitual
Entre as dimensões verdadeiramente singulares do saber filosófico se encontra o pensamento conceitual,
o pensar o próprio pensamento. Assim, nosso projeto filosófico com os estudantes jamais deverá consistir
e se reduzir a uma exposição unilateral de um conteúdo construído pela tradição do pensamento. Poderá,
sim, haver momentos pontuais de exposição, pensados como auxílio para momento seguinte, no qual acon-

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tecerá a construção subjetiva e intersubjetiva do pensamento conceitual. Referimo-nos, aqui, mais uma vez,
ao pensamento de Deleuze.
O momento do conceito é momento de síntese, sempre provisório, após o necessário contato com diferen-
tes formas de abordagem do objeto de estudo em questão. Assim, o aprender a filosofar implica aprender a
construir e a reconstruir conceitos. Insistimos nesse aspecto, pois ele interpela o sujeito, provoca o abandono
da zona de conforto de quem somente reproduz ou traz mera evocação de um saber já construído.

A filosofia e a educação para a cidadania


A filosofia é filha da pólis (cidade). Foi o ambiente democrático de Atenas, entre os séculos VII-V a.C.,
que gerou historicamente a inicial atitude filosófica. Em virtude da necessidade de buscar consensos e
construir leis para a administração da coisa pública, os homens começaram a se reunir na praça pública, na
ágora, discutindo e construindo os destinos da cidade. Dessa forma, nasce a filosofia como atitude reflexiva
e crítica preocupada com o bem comum e com a justiça na cidade.
Essa natureza política da filosofia deve sempre ser rememorada por nós e, em todas as nossas práticas,
atualizada. Por isso, a experiência filosófica está profundamente encarnada na construção do cotidiano, é
um voltar-se sobre a vida, refletindo o viver em busca do bem viver.
Conforme já mencionamos, ao falar da identidade e da função do educador, essa dimensão política da
educação está visivelmente expressa na LDB, em seu art. 36, quando destaca, entre as finalidades para a
educação básica, no Ensino Médio, a preparação para o trabalho e a cidadania do educando. Além disso,
destaca a necessidade de compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos,
de forma a manter a profunda correção entre teoria e prática.
Assim, traremos a vida urbana, com todos os seus desafios, para o espaço escolar, derrubando os muros
que nos cercam da realidade e fazendo de nossa escola uma ágora, a assembleia dos novos homens livres,
dedicados ao filosofar, ou seja, a pensar no melhor destino para a cidade. Estaremos, dessa forma, nos
preparando para assumir nosso papel de cidadãos nessa cidade, que traz ainda tanta marca de exclusão.
Portanto, educar para a cidadania é educar para a construção de competências que se verificarão nas
habilidades práticas, como saber conviver com o pensamento divergente, aprender a dialogar, saber traba-
lhar em equipe e construir consensos e soluções para conflitos e impasses. Por isso, o método de trabalho
já antecipa e realiza a vida democrática. Ou seja, a forma como a aula acontece, sua estrutura e dinâmica,
deve sinalizar, por si mesma, para o espaço democrático do direito, da ativa e decisiva participação de
todos. É preciso, portanto, que a sala de aula seja espaço da reflexão e uma antecipação da cidade ideal,
sem exclusões e preconceitos discriminatórios de qualquer natureza: étnica, de cor, de orientação sexual,
ideológica, religiosa etc.
Essa pluralidade que caracteriza a cidade é condição básica para o verdadeiro filosofar, uma vez que
demanda diálogo, o caminho dialético e conflitivo dos múltiplos e diversos olhares que se encontram. Nesse
contexto, a lucidez racional supera algumas indisposições afetivas ou impulsivas e se torna guia na busca
dos consensos.

MATRIZ DE REFERÊNCIA PARA A FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

Conceitos estruturantes integrando os eixos Histórico e Temático


Nossa proposta de trabalho é unirmos os eixos histórico e temático, mediados pela atitude problemati-
zadora e pelo pensamento conceitual que nos faz partir da vida, do mundo real, do cotidiano e da realidade
na qual estamos inseridos. Em seguida, mergulhamos na história da filosofia, na qual temos o acesso ao
saber sistematizado pela tradição filosófica. Nesse mergulho, encontraremos luz, inspiração e conhecimento
construído. O terceiro passo metodológico é imprescindível, se quisermos construir uma atitude filosófica.
Trata-se de, à luz das reflexões filosóficas realizadas no passado, fomentar a autonomia intelectual do estu-
dante, construindo um pensamento autêntico, crítico e criativo.

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Gerd Bornheim, em Introdução ao filosofar, expressa nossa opção metodológica:

Devemos submeter a experiência negativa a uma análise, com a finalidade de apurar o seu significado para
o comportamento filosófico. Através de sua caracterização chegaremos a compreender que, através dela, e só
através dela, pode o homem abandonar a postura dogmática, e aceder, consequentemente, à filosofia. Vale di-
zer que a experiência da negatividade é um momento do processo dialético que leva o homem a filosofar. Dessa
dialética, o primeiro momento é constituído pela afirmação dogmática do mundo; o segundo é a experiência
da negatividade. E o terceiro é o ato de assumir a filosofia como tarefa.
BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 9. ed. São Paulo: Globo, 1998. p. 73-74.

Em suma, por um lado, queremos evitar a mera evocação e memorização de informações, que não gera,
por si só, conhecimento. Por outro lado, desejamos evitar a perpetuação do senso comum expresso no des-
vinculado e descompromissado debate de opiniões.
A esse respeito, Montaigne diz:

Saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à memória para guardar. Do que sabemos efetiva-
mente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Triste ciência a ciência puramente
livresca. Que sirva de ornamento, mas não de fundamento, como pensa Platão, o qual afirma que a firmeza, a
boa-fé, a sinceridade, são a verdadeira filosofia.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Livro I. Cap. XXVI. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 75-83. (Os pensadores).

Dessa forma, o eixo Histórico deverá ser contemplado, tanto quanto o eixo Temático. E esses eixos deve-
rão se entrelaçar. Cabe ao professor, conhecendo bem o livro didático, servir-se dele da melhor forma possí-
vel, relacionando temas, conceitos ou autores. É fundamental perceber que o livro não precisa nem deveria
ser um manual que aprisiona e impede a criatividade de nosso trabalho. O livro didático é um recurso, no
interior do qual encontramos pistas, fontes e estratégias para fomentar o pensamento filosófico de forma
gradativa e sistemática.
Como sugestão de organização, propomos uma Matriz de Referência para a Filosofia no Ensino Médio
com os descritores que julgamos serem essenciais no caminhar da filosofia durante os três anos do Ensino
Médio. Nesses descritores, consideramos os conceitos estruturantes da filosofia nas áreas antropológica,
epistemológica, ética, política e estética, aplicados historicamente.
Considerando a presença da filosofia nos três anos do Ensino Médio, o eixo Histórico pode servir como
referência inicial por ser um bom critério para estabelecer a linha de continuidade e descontinuidade na pro-
gressão da reflexão dos estudantes. E, nessa abordagem, nossa proposta de trabalho sugere a reflexão sobre a
presença e a forma de presença dos conceitos estruturantes da filosofia ao longo de seu caminhar na história.
Nossa proposta consiste em integrar os olhares histórico e temático. Dessa forma, propomos que a ca-
minhada da filosofia no Ensino Médio trabalhe com os conceitos estruturantes buscando acompanhar sua
evolução histórica. Por exemplo, ao estudar os conceitos epistemológicos de verdade, de essência, de per-
cepção, de dialética, será necessário que os estudantes tenham acesso aos textos mais significativos sobre o
tema, desde a Grécia Antiga passando pela patrística, Idade Média, Renascença, modernidade e contempo-
raneidade. Dessa forma, tendo acesso aos diversos olhares já construídos sobre a mesma temática, o estu-
dante terá mais elementos para construir o próprio olhar, mediante o cultivo da habilidade argumentativa e
com respeito aos outros olhares, sempre possíveis e necessários. Assim, ele caminhará para a tão necessária
e pretendida autonomia de pensamento e juízo ético.
Em nossa apreciação, é fundamental que o professor, com base no conhecimento da realidade dos estu-
dantes e do contexto circundante, tenha autonomia para construir o melhor percurso, seja seguindo o eixo
Histórico e nele dar especial atenção ao pensamento conceitual, seja focando no eixo Temático e dirigindo-se
para a história da filosofia para buscar os fundamentos, as luzes e o processo reflexivo realizado.

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Para a organização da progressividade de nossa abordagem no Ensino Médio, propomos agrupar os
conceitos estruturantes da área da filosofia em quatro eixos temáticos.
1. Eixo Antropológico-existencial.
2. Eixo Epistemológico.
3. Eixo Ético-político.
4. Eixo Estético.

Eixo Antropológico-existencial: Condição humana


Nesse eixo, considera-se a identidade humana fundamental. Trata-se de uma reflexão antropológica que
busca compreender a complexidade do ser humano. Progressivamente, o estudante será conduzido a uma
reflexão sobre as múltiplas dimensões do ser humano, especialmente a consciência de si e a liberdade, que
são condições fundamentais para a construção autônoma e responsável de sua identidade, chegando à sua
natureza política, sua inserção cidadã na comunidade política.
Fizemos uma seleção de alguns conceitos ou pares conceituais fundantes, que podem ajudar na or-
ganização do conteúdo programático e na seleção de fontes primárias. Com base nesses conceitos, e em
outros acrescidos pelo professor, os estudantes poderão ser convidados a dialogar, buscar fundamentos
teóricos, produzir textos e socializar a produção. Uma forma de esses conceitos serem abordados pode ser o
seminário de estudo. A distribuição desses conceitos para estudo dependerá da carga horária das aulas, do
planejamento que o professor fará com sua autonomia e competência. Assim, uma das opções é trabalhar
com conceitos e temas geradores de discussão, situados historicamente. O planejamento anual e por etapas
selecionará os temas mais relevantes para a realidade dos estudantes.
Se o professor quiser pensar em conceitos estruturantes desse eixo, sugerimos alguns: Desejo e felicidade;
Aptidão natural e virtude; Natureza e cultura; Necessidade e liberdade; Corpo e mente; Amor e paixão etc.
Podemos começar pelo conceito de felicidade. Esse conceito poderá ser estudado em cada período his-
tórico. Por exemplo, na hipótese de um primeiro ano de Filosofia, centrado no eixo histórico Filosofia antiga
e medieval, o conceito estruturante Felicidade organizaria nossa pesquisa. Uma forma de desenvolver esse
estudo seria analisarmos o conceito de felicidade na Ética a Nicômaco, de Aristóteles; ao contemplarmos as
escolas helenísticas, estudar a felicidade em Epicuro e em Sêneca; na era patrística, seria possível estudar a
concepção Agostiniana de felicidade; na Idade Média, pode-se considerar a reflexão de Tomás de Aquino.
E assim com todos os conceitos, vistos diacronicamente. A sugestão, nesse caso, seria recolher as fontes
mais significativas de vários períodos históricos para perceber a evolução ou a recorrência de visões sobre o
mesmo tema. Ainda no caso do conceito de felicidade, uma mostra das tematizações e problematizações
que poderão motivar a construção dos diálogos investigativos pode ser a seguinte: Felicidade é o mesmo
que prazer? A felicidade necessita do prazer dos sentidos? A felicidade é fugaz? Ou ela pode ser duradoura?
A felicidade depende de algo? Há relação entre felicidade e virtude? A realização é sinônimo de felicidade?
Contudo, professor, o mais importante é que este livro não engesse seu trabalho de educador. Ele pre-
tende ser sua referência fundamental, seu guia, que sinaliza para possibilidades e traz reflexões e estratégias
no sentido de efetivar algumas dessas possibilidades.

Eixo Epistemológico: Experiência e racionalidade


Nesse eixo, o enfoque concentra-se no processo de conhecer, nas formas de conhecimento, em como
acontece o aprender. Trata-se de um eixo cuja preocupação é ensinar a pensar logicamente, com base em
um pressuposto fundamental. Por exemplo, se partirmos do pressuposto de que conhecer é interpretar,
coloca-se a questão fundamental da verdade, da possibilidade de uma verdade universal ou, ao contrário,
da necessária particularidade de toda verdade. Se partirmos do pressuposto da existência de uma verdade
no objeto, conhecer será captar a verdade desse objeto e descrevê-la. Trata-se de buscar os múltiplos cami-
nhos para a verdade: intuição, experiência, razão; suas diferentes expressões: mito, senso comum, filosofia,
ciência, arte. Sugerimos o trabalho com os seguintes conceitos estruturantes: Sensações e percepções, Mito
e imaginação, Filosofia e dúvida, Verdade e interpretação, Verdade e validade, Consciência e intencionalida-
de, Objetividade e subjetividade, Dialética dos contrários, Ideologia e alienação, Ciência e método.

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Para citar um exemplo, tomemos “verdade” com um conceito estruturante. Historicamente, esse concei-
to recebeu diversas abordagens. Assim, seria preciso situá-las historicamente. Nessa consideração, ela seria
vista como adequação da mente à realidade, como correspondência, coerência, interpretação de um sujeito
situado historicamente, portanto relativa etc.
As tematizações e problematizações que poderão motivar a construção dos diálogos investigativos em torno
da verdade podem ser, por exemplo: Será que a verdade é uma perfeita adequação e correspondência com a
realidade? Será que a verdade é uma revelação dos deuses? Será que a verdade tem relação com a necessidade e
a utilidade? Será que a verdade significa coerência? Pode haver uma verdade que não seja racional? Há verdades
universais? A verdade muda com a história? As diferentes leituras da realidade são aproximações da verdade?
Lembramos que trabalhamos aqui com a filosofia vista como saber e como atitude, que traz as marcas da
busca conceitual, da reflexão crítica em busca da autonomia ética e intelectual do sujeito envolvido na comuni-
dade de investigação. E, para chegarmos a esse patamar, é fundamental mergulhar na história do pensamento e
conhecer as diferentes leituras que já foram feitas na história. Afinal, a construção conceitual não parte do nada.
A síntese que o estudante fará, que será sempre provisória, pressupõe o confronto de conceitos já construídos.

Eixo Ético-político: Ética e política


A educação é, seguramente, um processo que deve se voltar para a construção de identidades, que
acontece no diálogo com outras identidades em construção. Por isso, o eixo da Ética, junto ao eixo da
Estética e da Política, constitui a trilogia que fundamenta as Diretrizes Curriculares do Conselho Nacional
de Educação. Quanto à dimensão ética, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação
estabelece, na resolução CEB no 2, de 1998, como diretrizes curriculares para o Ensino Fundamental, os
princípios da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum. Eles também
deverão ser cultivados no Ensino Médio, como nível de aprendizagem que conclui a educação básica.
No que tange aos conceitos estruturantes desse eixo, podem-se construir reflexões filosóficas sobre
temas como Certo e errado, Bem e mal, Juízo de fato e juízo de valor, Universalismo e relativismo, Dever e
obrigação, Dignidade e alteridade, Conflitos éticos, Liberdade e autonomia.
Tomemos, como exemplo, o conceito de liberdade. Nesse eixo, a liberdade aparecerá necessariamente
vinculada a limites. Eles tanto aparecerão em sua dimensão externa, impostos pela natureza e pela cultura,
como começarão a ser colocados internamente pelo próprio estudante-sujeito, frutos de escolhas conscientes.
Trata-se de compreender os limites também em sua dimensão positiva, que possibilitam a realização da própria
liberdade. Entre as problematizações que motivarão os diálogos investigativos, destacamos: É possível pensar
em liberdade sem limites? O limite é negativo ou torna-se também possibilidade de algo maior? Quem esta-
belece os limites? Em que sentido os limites podem ser superados? Existe liberdade à margem da lei?
No eixo Político, articulado ao eixo Ético, a ênfase está na relação entre indivíduo e sociedade, buscando
conjugar a identidade da igualdade e da diferença. Quanto à dimensão política, a Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação estabelece, na resolução CEB no 2, de 1998, como diretrizes cur-
riculares para o Ensino Fundamental os princípios políticos dos direitos e deveres de cidadania, do exercício
da criticidade e do respeito à ordem democrática.
Em relação aos conceitos estruturantes do eixo Político, sugerimos: Poder e força, Igualdade e diferença, Di-
reito e justiça, Conflito: individual e coletivo, Tradição e diversidade cultural, Cidadania e participação, Formas
de governo, Democracia e soberania, Virtudes e vícios da vida política, Cidadania planetária e sustentabilidade.
Vamos antecipar uma rápida palavra. Tomemos como exemplo, para ilustrar uma possível dinâmica de traba-
lho, o conceito de “justiça”, que pode receber diversas interpretações e formas. Qual será a concepção platônica
de justiça? Como Aristóteles entende a justiça? Durante a Idade Média, como a ideia de justiça será concebida?
Nas teorias contratualistas modernas, como se relacionam justiça e direito? Com o advento do liberalismo eco-
nômico moderno, a justiça terá relação com a noção de propriedade? E nas sociedades contemporâneas, como
a justiça será concebida? Como mérito? Como o maior bem ao maior número de pessoas? Como equidade?
Lembramos, mais uma vez, que essa é uma possibilidade de construir a reflexão filosófica. O fundamento
será sempre tornar o estudante protagonista, sujeito da construção de sua aprendizagem, sempre situada
e em interação com os demais.

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Eixo Estético: Arte e estética
Etimológica e semanticamente, a palavra “estética” está associada à sensibilidade. Toda estética é es-
tética da sensibilidade. Trata-se de educar a sensibilidade para a percepção da diversidade e para a criativa
expressão de si na construção de sua identidade.
Considerando a experiência do professor, existem muitas possibilidades de trabalho com esse tema. Suge-
rimos, inicialmente, uma abordagem histórica para perceber o caminho percorrido pela arte e pela estética.
Outra forma de abordar a arte é confrontá-la com a cultura, como se contrapõem criação individual e
construção coletiva. Assim, a cultura é sempre uma criação do grupo, da comunidade. Portanto, a cultura
tem uma dimensão essencialmente coletiva, sendo necessária e útil tanto à sobrevivência humana como à
evolução da espécie. Por isso, ela é responsável pela formação da identidade do grupo. Em contrapartida,
a arte será concebida como uma criação individual e pessoal, produção de um indivíduo que entra em
comunhão com o outro por meio de sua criação. Assim, a arte é uma forma de linguagem interpretativa
do mundo natural ou do universo humano, é uma forma de ler a realidade. A arte pode ser expressão da
cultura de uma época? A arte retrata uma civilização? A arte é o que a imaginação usa para criticar a cultura
e construir novos mundos?
Nesse eixo, entre os conceitos estruturantes e temáticas em torno dos quais os diálogos filosóficos po-
derão ser construídos, destacamos: Arte e técnica, Arte e imitação, Belo, Harmonia, Contemplação estética,
Padrão de gosto, Educação estética, Indústria cultural etc.

DESCRITORES TEMÁTICO-HISTÓRICOS PARA A FILOSOFIA


Propomos um quadro com alguns descritores, integrando os eixos Histórico e Temático, para auxiliar na
elaboração das unidades de ensino e aprendizagem e na construção do foco para as avaliações.

Quadro de descritores
Descritores gerais
• Perceber a estrutura argumentativa de um texto filosófico.
• Analisar o eixo conceitual de um texto filosófico.
• Argumentar e se posicionar com clareza com relação às questões filosóficas.
• Problematizar argumentos, conceitos e valores presentes em um discurso filosófico.
• Desenvolver pesquisas de caráter filosófico em diversos meios (media).
• Sintetizar conceitos, ideias e temas com base em um texto filosófico.

Filosofia grega clássica (eixo histórico e temático)


• Identificar as características gerais do pensamento antigo.
• Reconhecer a especificidade do pensamento de alguns filósofos antigos.
• Reconhecer as características do pensamento pré-socrático.
• Distinguir o pensamento sofístico da filosofia socrática.
• Analisar as questões centrais do pensamento platônico.
• Analisar as questões centrais do pensamento aristotélico.
• Caracterizar as diversas correntes da filosofia helenística.
• Identificar as várias formas de conhecimento.
• Reconhecer a especificidade do conhecimento filosófico.
• Conceituar “mito”.
• Compreender a relação entre “mito” e logos.
• Diferenciar a consciência mítica da consciência racional.
• Contextualizar historicamente as diferentes correntes filosóficas.
• Confrontar os tipos de argumento.
• Distinguir verdade de validade.
• Distinguir arte de ciência.

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• Caracterizar o naturalismo grego.
• Relacionar arte e técnica.
• Confrontar poesia e filosofia
• Conceituar virtude.
• Relacionar liberdade e lei.
• Relacionar virtude e felicidade.
• Reconhecer as dimensões da existência humana.
• Compreender a dimensão existencial da experiência do filosofar.
• Explicitar os elementos da vida psíquica.
• Distinguir os domínios da natureza e da cultura.
• Especificar os constituintes do campo ético.
• Reconhecer a dimensão ética da existência humana.
• Analisar as relações entre ética e política.
• Caracterizar as diversas formas de governo.

Filosofia medieval (eixo histórico e temático)


• Identificar as características gerais do pensamento medieval.
• Reconhecer a especificidade do pensamento de alguns filósofos medievais.
• Analisar as questões centrais do pensamento de Santo Agostinho.
• Analisar as questões centrais do pensamento de São Tomás de Aquino.
• Reconhecer as características da ciência medieval.
• Relacionar fé e razão.
• Apresentar a questão dos universais.
• Analisar o tema do livre-arbítrio.
• Relacionar os temas do bem e do mal.
• Confrontar a cosmologia antiga e medieval.
• Analisar a teoria do belo em Santo Agostinho.
• Identificar as condições para a beleza em São Tomás de Aquino.

Filosofia renascentista e moderna (eixo histórico e temático)


• Identificar as características gerais do pensamento renascentista e moderno.
• Reconhecer a especificidade do pensamento de alguns filósofos modernos.
• Discutir as relações entre poder e política em Maquiavel.
• Compreender o tema da dignidade humana em Picco della Mirandola.
• Reconhecer o ceticismo renascentista.
• Analisar o tema da experiência em Leonardo da Vinci.
• Analisar o tema da cultura em Montaigne.
• Conceituar humanismo.
• Caracterizar jusnaturalismo.
• Caracterizar a arte renascentista.
• Confrontar humanismo e antropocentrismo.
• Analisar as questões centrais do pensamento cartesiano.
• Analisar as questões centrais do pensamento de David Hume.
• Analisar as questões centrais do pensamento de Francis Bacon.
• Comparar o ceticismo moderno com o ceticismo antigo.
• Confrontar as concepções antiga e moderna de ciência.
• Distinguir racionalismo de empirismo.
• Caracterizar a revolução científica do século XVII.
• Diferenciar as teorias contratualistas modernas.
• Confrontar concepções de soberania.
• Distinguir formas de governo.
• Analisar as questões centrais do pensamento de Kant.

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• Analisar as questões centrais do pensamento de Hegel.
• Compreender os termos da estética kantiana.
• Analisar a crise da arte na era moderna.
• Relacionar educação estética e moralidade.

Filosofia contemporânea (eixo histórico e temático)


• Identificar as características gerais do pensamento contemporâneo.
• Reconhecer a especificidade do pensamento de alguns filósofos contemporâneos.
• Analisar as questões centrais do pensamento epistemológico contemporâneo.
• Analisar as questões centrais do positivismo.
• Reconhecer as críticas ao positivismo.
• Analisar as questões centrais do pensamento de Karl Popper.
• Analisar as questões centrais do pensamento marxista.
• Analisar as questões centrais da fenomenologia.
• Analisar as questões centrais da hermenêutica.
• Analisar as questões centrais do estruturalismo.
• Analisar as questões centrais do pensamento de Nietzsche.
• Analisar as questões centrais da Escola de Frankfurt.
• Apresentar as questões centrais da filosofia analítica.
• Analisar as questões centrais do pragmatismo.
• Analisar as questões centrais da filosofia da mente.
• Relacionar tecnologia e ciência.
• Compreender os princípios da bioética.
• Confrontar o sistema capitalista com as questões ambientais.
• Relacionar arte e cultura.

DO FAZER PEDAGÓGICO EM SALA DE AULA


Sala de aula: oficina de construção do saber
Considerando o estudante como sujeito do processo de ensino e aprendizagem e o conhecimento como
construção intersubjetiva, é preciso superar uma visão de educação reduzida à aula expositiva do professor,
na qual o centro ativo é o professor e o estudante encarna a periferia receptiva, permanecendo na passiva.
Dessa forma, o estudante nada poderá construir de significativo. Em uma educação para a autonomia de
pensamento, é preciso que o tempo e o espaço da sala de aula recebam uma dinâmica muito singular, pois
há uma especificidade no saber e na atitude filosófica. Mas, ao mesmo tempo, essa dinâmica terá de ser
plural, dada a diversidade dos agentes do saber que compõem nossa comunidade de diálogo investigativo.
Um grande cuidado que sempre devemos tomar é com a natureza filosófica dos diálogos e debates que
serão construídos em sala de aula, nos quais os pressupostos deverão ser explicitados e o senso comum
ter seus preconceitos superados, construindo um verdadeiro diálogo investigativo, em um ambiente que se
transforma em oficina do saber, na qual o aprender a fazer é a força motriz.

Planejamento da etapa: unidade de estudo


O professor sabe, pela experiência, que é fundamental um bom planejamento para o sucesso de qual-
quer empreendimento, com a especificação dos objetivos, descritores, conteúdos, procedimentos, recursos
e detalhamento do processo avaliativo da caminhada. Ao contrário do que alguém possa pensar, isso não
é uma camisa de força. Trata-se de um necessário e excelente instrumento que orienta a prática educativa.
Com ele, inclusive, aumenta a liberdade, uma vez que, estando o horizonte para o qual se caminha mais
claro, percebe-se diferentes possibilidades de construção de caminhos até então não pensados.
No cotidiano da sala de aula, as situações e vivências são tão diversas que solicitam sempre novas inter-
venções. O planejamento prévio da etapa auxilia na escolha da estratégia de intervenção e impede que a

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prática educativa se reduza ao improviso e caminhe sem rumo. Com isso, seremos e construiremos instru-
mentos para desenvolver habilidades e competências relacionadas à progressiva autonomia intelectual e
ética do estudante.
Dessa forma, o primeiro foco sobre o qual nos concentraremos nessa reflexão é a avaliação do plane-
jamento da aula. Deve ficar muito claro, de início, que não estamos falando em resultado imediatamente
mensurável, mas em processo de múltiplos e articulados momentos e dimensões. Antes de entrar em sala
de aula, muito investimento deve ser feito no planejamento de todo o processo educativo, que será perma-
nentemente avaliado, à luz do horizonte que estabelecemos como direção.
A complexidade estruturadora do real solicita a sensibilidade do olhar do educador. Torna-se insuficien-
te o olhar do especialista de cada área ou disciplina. Infelizmente, nossas práticas pedagógicas cotidianas
continuam sendo alimentadas, predominantemente, pelo olhar do especialista isolado. É preciso fomentar
o encontro dos vários olhares possíveis sobre o mesmo tema. Trata-se do reconhecimento da inter-relação
existente entre as diferentes áreas do conhecimento, que hoje se encontram artificial e metodologicamente
separadas pela cultura escolar. Assim, torna-se fundamental, no processo de planejamento das aulas, que as
unidades de ensino e aprendizagem sejam construídas por educadores de diversas áreas de conhecimento,
das diferentes disciplinas, por exemplo, Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Arte, Literatura e Produ-
ção de Texto. Lutar contra a fragmentação dos saberes em disciplinas desconexas é um dos maiores e mais
urgentes desafios para o fazer pedagógico de sala de aula. Experiências realizadas nessa nova formatação
do planejamento das aulas em rede, compostas por áreas afins, sinalizam para conquistas que a abordagem
tradicional não permite.
Cotidianamente, queixamo-nos e ouvimos desabafos de colegas professores referindo-se à falta de habi-
lidade dos estudantes em estabelecer relações. Lamentamos a consciência do imediatismo e a falta da visão
processual e prospectiva dos estudantes. E não raro, no cotidiano, ouvimos a expressão: “Ele [o estudante]
não pensa, parece que pensar dói”. E, contudo, são “nossos” estudantes. Será que não estamos cobrando
deles algo que nossas aulas não proporcionam? Será que nosso fazer, em sala de aula, fomenta a dimensão
reflexiva? Provavelmente, o estudante está reproduzindo e devolvendo justamente o que lhe passamos, da
forma como passamos e do modo como talvez, também, estejamos solicitando, ou seja, fragmentadamen-
te, em forma de evocações ou interpretações meramente lineares.
Infelizmente, muitas práticas escolares petrificadas pelo tempo e pela falta de sensibilidade aos novos
tempos caminham na contramão de um processo de ensino e aprendizagem de qualidade. Por exemplo,
nossas costumeiras reuniões de professores trazem quais preocupações? Discorrem sobre quais conteúdos?
As preocupações permanentes revelam quais focos? Na maioria das vezes, somos “bombeiros” ou “discipli-
nadores”, distantes de nossa missão maior, separados ou divorciados de um verdadeiro projeto educativo.
Essa demanda por trabalho em equipe de professores que, antes de entrarem em sala de aula, estudam
juntos o mesmo tema, reconhecendo e estabelecendo as relações que compõem o todo, torna-se imprescin-
dível em qualquer projeto político e pedagógico escolar que esteja voltado para o ensino e a aprendizagem
de qualidade, não centrado no professor, mas na construção intersubjetiva, entre professores e estudantes,
parceiros nesse processo investigativo. Pois, imperceptivelmente, cada um de nós costuma trabalhar e fazer
trabalhar da forma como aprendeu. E nós, educadores, precisamos aprender a refletir juntos, a pensar a
complexidade do nosso tema de estudo em questão e reaprender o ofício de educador no intercâmbio com
outros educadores, partilhando as experiências de sala de aula.
Dessa forma, antes de entrar em sala de aula, na condição de professores, precisamos ter uma visão do
processo a ser percorrido e, especificamente, daquela etapa de estudo, ensino e aprendizagem. Assim, por
exemplo, se a temática da política moderna estiver prevista para ser abordada, em Filosofia, na segunda
etapa letiva do segundo ano do Ensino Médio e estiver programada para ser abordada, na disciplina de His-
tória, na primeira etapa, não seria melhor que ela fosse estudada de modo interdisciplinar na mesma etapa
letiva, para que os estudantes possam construir uma visão de maior complexidade? O mesmo vale para os
demais objetos de estudo. Por isso insistimos na necessidade de um planejamento interdisciplinar no fim do
ano ou no princípio de cada ano letivo para construir as unidades de estudo de cada etapa letiva.

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Trabalhando com o saber prévio

A grande lição que o estudo da gênese ou gêneses comporta está em mostrar que jamais existem começos
absolutos.
PIAGET, Jean. Epistemologia genética. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 3.

Como já comentamos, é decisivo começar a reflexão cotidiana desafiando e estimulando todos os es-
tudantes a participar do processo. Uma boa maneira de começar é lançar uma pergunta ou questão inicial
diagnóstica, objetivando colher o saber que já existe a respeito da temática. Com base nesse saber, que
deverá ser problematizado, é preciso estimular e alimentar nos estudantes a dúvida e o desejo de conhecer
mais profundamente.
Nesse princípio de aula, deve-se evitar trazer um assunto de forma desconexa, desvinculada do coti-
diano. É preciso, mais uma vez, lembrar que o espaço da educação para o pensar filosófico deve ser logo
reconhecido pelos estudantes como o espaço do pensamento, da reflexão crítica, da aprendizagem da
argumentação e do cultivo do respeito às razões do pensar diverso.
A motivação para a problematização, que suscita o desejo de conhecer radicalmente, alimenta o estí-
mulo à pesquisa e mais provavelmente fará com que os estudantes permaneçam motivados no caminho
da construção conceitual. Toda nova conquista desse espírito investigativo deve ser problematizada pelo
professor, com o intuito de garantir novas e progressivas apropriações por parte de todos os sujeitos e de
todos os estudantes da sala de aula. Esse crescimento na reflexão temática em forma de espiral, no qual
cada novo saber é resultado e ponto de partida, torna os estudantes cada vez mais competentes e hábeis
para intervir em situações problemáticas da vida, tanto na esfera pessoal como social.

Iniciando a leitura de fragmentos filosóficos


O aprender a ler, no Ensino Médio, traduz-se pela educação do olhar para a percepção do que se encon-
tra pressuposto no dito e para as possíveis decorrências e implicações não ditas.
Uma vez iniciado o processo, com o diagnóstico do saber prévio, é preciso superar essa primeira forma de
ver e caminhar para um nível mais aprofundando de abordagem. Por isso, em segundo lugar, propomos que
o tema gerador ou o conceito estruturador da filosofia receba as luzes da história do pensamento filosófico.
Aqui, a história da filosofia recebe toda a sua significação. Iremos ao passado, à nossa memória e à nossa
herança cultural para buscar as luzes que nos possibilitarão uma melhor abordagem da temática.
Nesse segundo momento, os estudantes deverão ler alguns textos previamente selecionados. Um dos
elementos centrais de nossa opção de trabalho consiste em possibilitar ao estudante o acesso a fontes pri-
márias, aos escritos dos próprios filósofos e comentadores, para que ele não somente ouça falar do pensa-
mento de determinados filósofos, mas que ele tenha efetivamente a possibilidade de mergulhar em textos
dos pensadores e comentadores, com crescente complexidade. A experiência de mais de vinte anos em sala
de aula nos ensina que os textos, fontes primárias (escritos dos próprios filósofos em estudo), devem ser
editados. Ou seja, nosso objetivo, no Ensino Médio, não é levar o estudante a ler uma obra do começo ao
fim nem é aconselhável que assim se proceda, por enquanto. Para o nosso propósito, é mais aconselhável a
leitura de fragmentos variados ou de textos sobre a temática. Dessa forma, contribuiremos para a formação
da inteligência da complexidade.
O mais importante aqui, junto à seleção do texto relevante, é a forma, o método que tornará significati-
va, para o estudante, essa experiência de acesso às fontes primárias. Esse fragmento deverá ser lido, assimi-
lado, discutido e reapropriado pelos parceiros do diálogo investigativo. Sugerimos que essa leitura aconteça
com sua participação ativa, auxiliando na progressiva compreensão dos estudantes e lançando desafios para
o aprofundamento do olhar de cada um deles.
Esses textos, em princípio, não devem ser muito longos e não deveriam passar de uma página, em torno
de quatro parágrafos, o que é possível de ser trabalhado em uma aula. Para iniciar a leitura, selecione um

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estudante ou solicite espontaneamente que um deles inicie a leitura em voz alta do primeiro parágrafo.
Após essa leitura, solicite a outro estudante que interprete o texto lido. Um terceiro estudante poderá ser
convidado a explicitar pressupostos ou argumentos presentes no texto lido.
Aqui, cabem muitas estratégias para tornar a leitura verdadeiramente filosófica. Um primeiro ponto que
inicia o mergulho no texto normalmente consiste em situar o autor do texto em seu contexto, em identificar
a pergunta ou a temática à qual o autor se refere. Um segundo passo, já aprofundando a reflexão, deverá
solicitar dos estudantes a identificação do pressuposto do autor, sua ideia central e as ideias decorrentes da
tese. Até aqui, os estudantes ouviram o autor do texto, tentaram captar sua ideia. Cabe, agora, um terceiro
passo, ainda mais propriamente filosófico, em que ele aprenda a dialogar com o autor do fragmento, tecer
sua apreciação crítica. Uma ótima estratégia de problematização neste momento é solicitar que os estu-
dantes se posicionem a favor ou contra certas afirmações do autor, sempre atentos à coerência e à lógica
argumentativa. Dessa forma, estamos colaborando com a construção de uma comunidade investigativa.
Sugestão de livros que trazem seleção de textos:
• MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
• _____. Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
• NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à Idade Moderna. São Paulo: Globo, 2005.
• Os filósofos através dos textos: de Platão a Sartre. Trad. Constança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997.

Trabalhando com as linguagens da arte


Em suas muitas linguagens, por meio da imaginação e da sensibilidade, a arte possibilita a percepção
singular do real, a desconstrução cultural e a fundação de novos mundos. Aprender as linguagens da arte
é uma das competências com as quais devemos ter compromisso.
O olhar filosófico pode e deve ser lançado sobre diferentes tipos de fontes que circulam e alimentam
nosso cotidiano.
O recurso às linguagens da arte é uma estratégia especialmente significativa, pois ela nos mostrará com-
petências construídas, capacidade de aplicação conceitual e de problematização. Nessa diversificação de
fontes sobre a mesma temática, o estudante desenvolverá a sensibilidade e competências mais complexas,
relacionando os múltiplos âmbitos da vida humana. Com esse olhar, pretendemos despertar a dinâmica de
aprender a ver de forma mais complexa, perceber que a atitude de filosofar acontece no cotidiano da vida,
sobre as questões mais óbvias e, por isso mesmo, muitas vezes, menos problematizadas.
Oportunize aos estudantes tempo e espaço para que dialoguem sobre conceitos fundantes da filosofia
utilizando fontes não consideradas explicitamente filosóficas. Afinal, o grande objetivo dessa iniciação ao
pensamento filosófico consiste na formação para a autonomia intelectual e ética, que inicia com a capacidade
de ver de modo diferente, com o distanciamento crítico, capaz de dar as razões do seu pensar e do seu agir.

Aprendendo com antilogias


A consciência filosófica revela uma estrutura mental ímpar. À medida que ama e busca a percepção da
complexidade do real, concentra-se em cada singularidade e caminha dialeticamente no conflito de inter-
pretações, libertando a inteligência para uma visão mais abrangente.
Considerando que nosso propósito tem, em sua base, a construção de diálogos investigativos e argu-
mentativos, o trabalho com antilogias é um excelente e indispensável recurso no cotidiano da sala de aula
e no processo avaliativo formal.
Em que consiste essa dinâmica? Considerando o objeto de estudo, trata-se de lançar uma afirmação
ou interrogação que permita o posicionamento a favor ou contra. É preciso que o estudante aprenda, com
rigor, coerência e progressividade, a explicitar as razões de seu olhar e de seu posicionamento, ao mesmo
tempo em que ouvirá as razões do olhar do outro. Aqui está em jogo o argumento, o processo de persuasão
e a percepção da complexidade de elementos que compõem qualquer dimensão da realidade. Por exemplo:
Leia a afirmação a seguir. “Ao tratar os desiguais de forma igual, a democracia transforma-se na pior forma
de governo”. Posicione-se a favor ou contra essa afirmação.

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• O estudante poderá posicionar-se a favor dessa afirmação. Nessa perspectiva, ele poderá recordar a crítica de
Platão à democracia, que consiste justamente nesse aspecto: Considerando que as pessoas são diferentes,
com habilidades específicas, elas devem exercer funções distintas. Na democracia ateniense, qualquer cidadão
poderia assumir uma função pública, não importando sua preparação ou qualificação. Ao tratar desiguais de
forma igual, comete-se grande injustiça em função do risco de comprometer a qualidade da gestão pública.
Nessa dinâmica, segundo Platão, a democracia caminha na direção da tirania do mais esperto ou na direção
da oligarquia, de pequenos grupos que trabalham para a defesa de seus interesses.
• O estudante poderá posicionar-se contra essa afirmação, reconhecendo a todos os mesmos direitos. Nessa
perspectiva, a democracia é a única forma de governo que verdadeiramente faz justiça às diferenças, contra-
riando a perspectiva aristocrática ou elitista da posição contrária. Aqui, a ênfase está em não aceitar trata-
mentos especiais ou diferentes às pessoas. Ao tratar os desiguais ou diferentes de forma igual, a democracia
verdadeiramente se torna democrática, aberta à pluralidade que constitui o corpo político.
Diante de teses divergentes, após o estudante perceber as diferentes possibilidades de posicionamento,
caberá ao professor efetivar o que chamamos de problematização: Essas posições divergentes são antagô-
nicas? Elas podem se combinar? É preciso ficar com um dos pontos de vista ou poderíamos caminhar para
um momento de síntese?
Com esse procedimento, estaremos na dinâmica da construção do pensamento conceitual, uma vez que
possibilitamos ao estudante o acesso a diferentes abordagens e o estimulamos para o momento de síntese,
que é sempre provisório.

Aprendendo a construir textos e conceitos

As competências que se traduzem nas habilidades de redigir textos filosóficos, estruturados com rigor e coerência, articu-
lação e progressividade, realizam um dos principais objetivos da educação para o pensar filosófico no Ensino Médio. A filosofia
não se entende sem referência à aprendizagem do procedimento dissertativo-argumentativo.

Considerando os objetivos básicos da disciplina de Filosofia no Ensino Médio, vinculados à necessária


construção da autonomia reflexiva do estudante, o momento da produção de texto adquire muita impor-
tância. Será neste momento que ele poderá recolher a reflexão realizada, os textos lidos, problematizados e
apropriados. É preciso aprender a produzir um bom texto filosófico, a fazer uma dissertação com princípio,
meio e fim. Vale a pena, aqui, trabalhar a produção de texto de modo integrado com as disciplinas de Lite-
ratura e Língua Portuguesa.
Para tanto, sugerimos que os textos sejam produzidos, preferencialmente, em duplas, uma vez que,
dessa forma, acontece a interação, a crítica, a sugestão e a contribuição do outro olhar. Assim, os textos
ganham na articulação e na complexidade.
Inicialmente, é preciso aprender a fazer o esquema do texto. Sugerimos:
• antes de começar a redação, solicite aos estudantes que explicitem o pressuposto com o qual trabalharão. Insista
nisso, solicite sempre o pressuposto (“considerando que”, “partindo do pressuposto de que”, “uma vez que” etc.);
• em seguida, peça aos estudantes que identifiquem duas ou três decorrências desse pressuposto;
• solicite, ainda, que escolham os conectivos que serão usados para articular as orações (“porque”, “pois”,
“dessa forma”, “mas”, “entretanto”, “porém”, “em contrapartida”, “por isso”, “logo”, “portanto”).
Mobilizar e articular bem esses recursos é uma competência que se verifica na habilidade de escrever
bem. Assim, vamos à produção de texto. Seguramente, a primeira versão ficará ainda muito aquém das
possibilidades dos estudantes. Por isso, uma vez corrigido, o texto deverá ser devolvido a eles para que,
preferencialmente em dupla, refaçam o texto que, corrigido, poderá merecer uma terceira versão, podendo
ser, dessa vez, pessoal, respeitando os diferentes ritmos individuais e coletivos. Não devemos ter pressa.
Será esse processo de ir e vir, de aprender com os erros, que construirá habilidades e novas competências.
A reflexão filosófica é, essencialmente, conceitual. Por isso, nosso fazer pedagógico deverá estar centra-
do na construção dessa habilidade. Metodologicamente, sugerimos que essa construção conceitual aconte-
ça antecedida de abundante leitura de fragmentos que abordem a temática em questão.

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Trabalhando com pesquisa e seminário
O incentivo à pesquisa filosófica e sua efetiva realização é uma estratégia fundamental para promover a
construção da autonomia intelectual, mediante confronto com as construções teóricas realizadas na história
do pensamento da cultura.
Considerando que a presença da disciplina de Filosofia no Ensino Médio é uma iniciação ao pensamento
conceitual, mediante problematizações e desnaturalizações do senso comum, conduzindo o estudante à
progressiva autonomia de pensamento, a pesquisa e o seminário são estratégias imprescindíveis.
Em relação à pesquisa, pensando no posterior seminário de socialização das construções realizadas, su-
gerimos alguns passos para a otimização dessas estratégias. Inicialmente, o professor deve ter bem claro em
sua mente o projeto filosófico, os conceitos a construir, as competências e habilidades a formar e a verificar.
Por isso, é importante fornecer os temas, podendo solicitar dos estudantes sugestões de temas correlacio-
nados para aplicações e inter-relações.
O passo seguinte é solicitar que os estudantes façam um levantamento bibliográfico do tema ou concei-
to em questão. Aqui, o professor deverá ter muita atenção ao explicitar certas orientações sobre a natureza
das fontes de pesquisa, sobre sites seguros e sobre artigos científicos. Deve-se estabelecer um prazo para
isso e ser rigoroso no cumprimento dele.
O passo seguinte consistirá na leitura e no fichamento dessas fontes e na primeira socialização desses
fichamentos entre os membros do grupo. Dessa socialização nascerão novos desafios, como a reorganiza-
ção do processo de pesquisa e das melhores estratégias metodológicas para o seminário com toda a turma.
Pensando na qualidade do seminário, é fundamental que a turma receba na semana anterior ao seminário
um roteiro com questões problematizadoras para melhor participar do debate.
Conforme já sinalizamos, essa metodologia dos seminários de estudo é uma das melhores estratégias
para formar estudantes competentes, uma vez que envolve pesquisa, leitura, interpretação, análise, síntese,
expressão oral etc. Mas, para tanto, é preciso evitar certas práticas e fomentar novas posturas na direção do
resgate da singularidade que essa estratégia de trabalho tem a oferecer.
Um primeiro elemento dificultador está no preconceito que existe, uma espécie de senso comum, tanto
no grupo de estudantes como no corpo docente. E esse senso comum não é gratuito, espontâneo ou natu-
ral. Ele tem uma história, é resultante de posturas historicamente alimentadas.
Entre os estudantes, a opção por seminários comumente é vista como “matação de aula” do professor
que não quer dar aula ou como dádiva generosa de pontos. Esses preconceitos alimentam uma predispo-
sição atitudinal manifesta no não envolvimento de um número expressivo de estudantes. E o pior de tudo
é a percepção, para os estudantes que se envolveram e fizeram a atividade, da inconsequência em termos
avaliativos para os colegas que não se envolveram. A consciência da impunidade, que caminha com a cor-
rupção, costuma afetar o ânimo dos engajados.
Como dizíamos, essa visão não é natural, é decorrência de posturas cultivadas por professores em sala
de aula. De quais posturas estamos falando? Referimo-nos aos professores que encaminham a atividade e,
em seguida, se ocupam com outras tarefas, esquecendo os estudantes e deixando-os entregues a si. Com
essa postura, o professor expressa um pressuposto que não se verifica na prática, a saber: que os estudantes
saibam fazer, que já sejam competentes e hábeis nesse saber.
Ora, o que caracteriza o tempo e o espaço da educação é justamente a aprendizagem, o aprender a fa-
zer, a conhecer, a ser e a conviver. Para realizar essas aprendizagens, que caracterizam a natureza e os pilares
da educação, é preciso fomentar novas posturas, a começar entre nós, educadores.
Inicialmente, convencidos de que o foco está no engajamento social, para o qual queremos educar cida-
dãos conscientes, autônomos, críticos e participativos, a metodologia deve estar centrada no estudante, em
seu aprender a fazer e a construir relações, conceitos e atitudes. Isso não diminui a exigência da presença
do educador. Muda a natureza da presença. E a nova presença que se faz necessária é muito mais desafia-
dora, mas também muito mais prazerosa, pois a percepção da efetiva construção do conhecimento é nítida.
E, junto às demandas que começam a surgir, vem a verificação de competências ou incompetências, que
solicitam novas intervenções.

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Outra postura muito comum entre os professores é julgar que os estudantes não sabem fazer seminários
e, por isso, não incentivam essa prática. Embora esse juízo tenha fundamentos, a renúncia à aprendizagem
contradiz nosso papel de educadores.
Quando nos referimos aos seminários, estamos falando de uma estrutura e de uma dinâmica de trabalho
que envolve, pelo menos, três grandes etapas. Em primeiro lugar, a pesquisa de um tema, que pode estar
em um livro, no trecho de um livro ou em uma reunião de artigos científicos. Isso implicará, em segundo
lugar, o saber ler, pesquisar, localizar informações, perceber pressupostos, inferir decorrências, analisar, fazer
sínteses, aplicar conceitos e mobilizar recursos. E, em terceiro lugar, a socialização de toda essa produção.
A presença afetiva e efetiva do professor educador é muito importante em todo esse processo. E, agora,
nesse momento da socialização, seu papel deve ser o de estimular a construção da síntese por meio de um
processo dialético, de confronto de posturas divergentes. É responsabilidade do educador envolver toda
a turma nas apropriações e reapropriações do saber, sendo motivo de equilibração e desequilibração em
nome de um ser, saber e fazer mais complexos.
Possibilitar o ensino e a aprendizagem por meio da realização de seminários é uma das muitas estratégias
recomendáveis, pois prepara o estudante para o mundo adulto, da comunidade política, científica e cultural, no
qual a maturidade se expressará no compromisso cidadão, consciente, autônomo, crítico e criativo na construção
de uma sociedade verdadeiramente inclusiva, na qual as diferenças sejam respeitadas, defendidas e promovidas.
Por isso, cabe a nós assumirmos o fazer pedagógico com a consciência de que nosso compromisso é criar
situações de aprendizagens significativas e sermos suporte para a construção de estudantes competentes e
cidadãos engajados.

Trabalhando com projetos interdisciplinares

Na perspectiva escolar, a interdisciplinaridade não tem a pretensão de criar novas disciplinas ou saberes,
mas de utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender
um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma função
instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para responder às questões e aos
problemas sociais contemporâneos.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio.
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Estamos cientes de que nosso fazer pedagógico deve estar orientado para a formação de estudantes
competentes. E essa competência verifica-se na capacidade de transferência, aplicação e intervenção em
novas realidades, que é justamente o terreno dos projetos que transcendem a disciplina e se encaminham
para a complexidade da vida cotidiana.
Ao longo do nosso estudo, no Livro do Estudante, no princípio de alguns eixos, o docente encontrará
uma sugestão para desenvolver um projeto de estudo interdisciplinar.
Nos projetos, os estudantes são desafiados a servir-se de todo o saber prévio construído como “caixa
de ferramentas” para desenvolver um projeto cujo desfecho não é previamente previsível em função das
múltiplas naturezas possíveis. Assim, estudantes competentes saberão levantar hipóteses, resolver uma si-
tuação-problema e intervir da melhor forma na realização do projeto de trabalho.

É importante considerar os saberes acumulados como elementos da “caixa de ferramentas” ou da reserva de


materiais nas quais o artesão busca livremente, sem hesitar em desviar, ajustar, completar essa “herança” para
chegar a seus fins. [...]. Para transferir, é necessário unir saber e experiência.
PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 65.

Convém recordar que a natureza interdisciplinar dos projetos e sua complexidade poderá requerer a
presença de algum profissional especialista para uma conferência ou esclarecimento e encaminhamento
das dúvidas que surgirem.

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Finalmente, deve-se pensar nas melhores estratégias de avaliação e socialização do processo e do produ-
to do projeto, em conformidade com a natureza do projeto e as condições materiais da escola e da comu-
nidade na qual a instituição está inserida.
E a experiência nos ensina que a maior dificuldade para a realização dos projetos interdisciplinares não
está, em si, no corpo docente, mas na estrutura e na dinâmica da escola, que muitas vezes não fomenta o
encontro dos professores para que pensem suas aulas coletiva e interdisciplinarmente. Havendo o espaço
dedicado para a construção de planejamentos coletivos dos conteúdos comuns e próximos a áreas afins, a
interdisciplinaridade surge quase naturalmente.

Como trabalhar o “erro” em filosofia?


O que significa falar em erro, quando o que se pretende é a autonomia intelectual e ética? Onde está o
erro, quando o que se busca é um pensamento crítico e criativo?
Essas questões nos remetem à natureza do erro em filosofia. Inicialmente, o maior erro, que implica
contradição interna com a filosofia, consiste na renúncia ao pensar. Considerando a racionalidade como
potencialidade humana, a função do professor, que assume sua identidade de educador, é despertar a
sensibilidade e o querer para a formação das estruturas mentais, das competências, que se expressarão nas
múltiplas habilidades correlacionadas.
Em segundo lugar, o erro possível e muito presente nos estudantes do Ensino Médio é a falta de rigor e
a incoerência argumentativa. Você, seguramente, deve se deparar constantemente com isso. Nossos estu-
dantes, quando desafiados a defender um ponto de vista, muitas vezes fazem uso de orações fragmentadas
e desconexas; outras vezes, incorrem em pensamentos falaciosos dos mais diversos tipos.
Em outras situações, quando o erro não consiste na falta de coerência, pode estar na contradição que
apresenta. Muitas vezes, encontramos contradições na argumentação oral ou escrita. Esse é um erro que
deve ser rigorosamente sinalizado e superado. Não se trata de o estudante ser a favor de uma ideia ou re-
produzi-la, a não ser que essa seja a solicitação de um comando; trata-se de ele mostrar a cara, expor seu
ponto de vista de forma coerente. Aqui, um grande recurso é o trabalho bem articulado com a disciplina de
Língua Portuguesa e a produção de texto, no uso constante e correto dos termos coesivos e dos conectivos.
Outro erro muito comum, que pode ser verificado na interpretação de texto, é atribuir-lhe informações,
dados ou conclusões que ele não permite. Ora, diante de um texto, existe relativa objetividade possível, que
o estudante deve ser capaz de perceber. É preciso educar a sensibilidade do olhar do estudante para a ha-
bilidade de perceber a tese, o pressuposto ou as decorrências explícitas no texto e torná-lo apto a perceber,
a partir do dado, o que está implícito ou ser competente para inferir possibilidades. Diante desses “erros”
ou inabilidades diagnosticados, nossa função está em intervir com as melhores estratégias. E as melhores
estratégias são necessariamente plurais, considerada a heterogeneidade de todo o grupo e de suas formas
de perceber, apreender e construir sentido. Nessa lógica e nessa dinâmica, há um erro inaceitável: o erro do
professor que não considera, em sua prática, a dimensão diagnóstica, processual e formativa da avaliação
ou que faz do erro do um instrumento de manipulação e punição vingativa.
Para o estudante, a percepção do erro deve estar vinculada à noção de processo maturativo, de apren-
dizagem. A associação do erro à perda de pontuação em avaliação formal pode ser, para alguns, motivador
de mais atenção, uma vez que os erros, na maioria das vezes, acontecem não por incompetência, mas por
distrações, divagações e falta de concentração.
Dessa forma, quem se entrega ao ato de educar e cultiva a potencialidade do estudante considera o
erro um grande aliado da aprendizagem, não só sob o aspecto cognitivo, mas também moral e afetivo. O
que o docente não deve esquecer jamais é que os estudantes se encontram em formação no ensino básico.
Eles estão justamente na fase do “erro”, ou seja, da aprendizagem. E nossa função é trabalhar esse erro.
Nosso equívoco é julgar que os estudantes estejam prontos. Aqui se coloca um dos sinais da autenticidade
de nossa vocação educativa: a sensibilidade e o amor à arte de lapidar a alma humana.
Nosso compromisso é com o processo de formação da alma humana, olhando para o erro e nele encon-
trando o tempo oportuno de intervir para a aprendizagem significativa.

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Como avaliar e o que avaliar em filosofia?

Por que avaliar? O aperfeiçoamento da prática educativa é o objetivo básico de todo educador. E se entende
este aperfeiçoamento como meio para que todos os alunos consigam o maior grau de competências, confor-
me suas possibilidades reais. O alcance dos objetivos por parte de cada aluno é um alvo que exige conhecer
os resultados e os processos de aprendizagem que os alunos seguem. E para melhorar a qualidade do ensino
é preciso conhecer e poder avaliar a intervenção pedagógica dos professores, de forma que a ação avaliadora
observe simultaneamente os processos individuais e os grupais. Referimo-nos tanto aos processos de aprendi-
zagem como aos de ensino, já que, desde uma perspectiva profissional, o conhecimento de como os meninos e
as meninas aprendem é, em primeiro lugar, um meio para ajudá-los em seu crescimento e, em segundo lugar,
é o instrumento que tem que nos permitir melhorar nossa atuação na aula.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Trad. Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 201.

Avaliar o quê? Para quê? De que forma? Com que frequência? Quem avalia quem? Considerando a
complexidade do ato de avaliar, destacamos cinco dimensões que constituem e integram sua singularidade:
as dimensões processual, diagnóstica, participativa, formativa e cumulativa ou integral.

Avaliação processual
Considerando a iniciação filosófica, não há como não considerar a avaliação como o elemento perma-
nente que integra a dimensão do ensino com a da aprendizagem. A atitude de avaliação perpassa todo o
processo, pois se trata de uma dinâmica de acompanhamento da aprendizagem, da construção de habili-
dades e competências.
O processo de diagnóstico, verificação e intervenção acontece continuamente, pois novas competências
serão adquiridas por meio de competências já adquiridas ao longo do processo. Dessa forma, é todo o
processo que importa e não somente um produto. Aliás, nenhum produto de qualidade poderá ser obtido
se não houver um processo muito significativo. E os maiores equívocos, falhas e erros acontecem sempre
durante o processo. Por isso, a percepção e o trabalho sobre essas lacunas tornam-se fonte da verdadeira
aprendizagem. Nesse sentido, interessa-nos muito mais a atenção avaliativa do processo do que a excessiva
importância ao produto pontual.

Avaliação diagnóstica

Há uma obstinação em padronizar as avaliações formativas sobre o modelo da equidade formal, que só
convém aos exames e aos procedimentos de certificação; sobrecarregam-se os alunos com testes padronizados,
por meio dos quais se vê, a olho nu, que progridem normalmente, ao passo que não se encontra tempo para
estabelecer os diagnósticos precisos e individualizados que seriam indispensáveis para intervir judiciosamente
junto aos alunos em grandes dificuldades.
PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 47.

A dimensão diagnóstica está na essência de uma avaliação que se concebe como processual. Se o que
nos interessa em primeiro lugar é o processo de construção do conhecimento e do saber, é preciso que a ava-
liação, sempre presente, busque diagnosticar o nível, o estágio ou a etapa na qual o estudante encontra-se
em termos de habilidades, competências, informações e conceitos. Assim, a avaliação é uma sondagem, da
qual nascerão as intervenções para o redirecionamento do processo.
Dessa forma, a avaliação deve ser concebida sempre como um meio a serviço da aprendizagem significativa
e jamais ser transformada em ponto de chegada ou fim do processo. Sugerimos, então, que as avaliações con-
siderem as conquistas que os estudantes estão fazendo na leitura e compreensão dos fragmentos filosóficos,
na exposição de seu parecer, na capacidade reflexiva e argumentativa e, especialmente, na produção escrita,
atendendo progressivamente aos critérios de coesão, coerência, progressividade e abrangência.

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E o fator que julgamos mais importante na avaliação é a competência docente em saber trabalhar com
o erro do estudante, transformando esse erro no maior aliado da aprendizagem. Por isso, o estudante deve
ser desafiado a fazer a segunda versão de seu texto e, se necessário, a terceira. Não há razão que justifique
por que uma nota ou um trabalho, no processo de caminhada de um ano, não deva sofrer alterações em
decorrência de novas aprendizagens. É preciso quebrar ainda alguns paradigmas que perduram na educação.
E o maior desafio certamente é proporcionar ao estudante o acesso à sua avaliação e refazê-la como parte
integrante do ensino e da aprendizagem, com decorrências para a dimensão da mensuração ou quantificação.

Avaliação participativa
Aliada às dimensões processual e diagnóstica está a dimensão participativa, na qual o próprio estudante
torna-se consciente de suas conquistas e de seus limites. É preciso criar uma nova cultura em sala de aula,
na qual o estudante apresente suas dificuldades, para que o educador possa encaminhá-lo e redirecioná-lo
no caminho da aprendizagem.
Cabe a nós, professores, acolher essa representação e buscar, na medida do possível, diversificar meto-
dologias e recursos para melhor desenvolver as múltiplas inteligências em interação no espaço acadêmico.
Dessa forma, aumenta inclusive o nível de exigência que deveremos ter com o estudante e este consigo
mesmo e conosco, em função do pacto firmado e do compromisso assumido.
Ao nos referirmos ao processo de ensino e aprendizagem, que deve ter seu foco no estudante, devemos
ser consequentes. Tradicionalmente, nossas aulas expositivas alimentam a dependência e a passividade dos
estudantes. É necessário envolvê-los em todo o processo e na forma da avaliação, para que ela seja a mais
fecunda, não a mais fácil nem a menos desafiadora.

Avaliação formativa
Na dimensão formativa acontece o cerne do processo avaliativo, uma vez que nos deparamos com habilida-
des, competências, atitudes e valores construídos no tempo e no espaço escolares, com vistas à vivência cidadã.
Considerando o espaço democrático da sala de aula e de todo o fazer pedagógico, muitas são as
aprendizagens que se fazem necessárias, especialmente as que contemplam o horizonte da cidadania e do
mundo do trabalho.
A dinâmica para a sala de aula é pensada à luz da formação integral do estudante, como um todo cons-
tituído de muitas dimensões igualmente importantes. Por isso, não deve ser nossa preocupação encher a
cabeça dos estudantes de informações, o que poderá ser, inclusive, um desserviço, um obstáculo ao que é
verdadeiramente nossa missão de educadores. Por exemplo, no cotidiano de nossas aulas, há significativo
espaço e tempo para aprender a ouvir o outro e seus argumentos, para aprender a representar o próprio
parecer, explicitando seus argumentos, e haverá tempo para aprender a construir consensos, seja no diálogo
verbal, seja na produção escrita.
Dessa forma, a própria estrutura e dinâmica da aula já se inserem no interior da dimensão formativa de
todo o processo avaliativo. Ao pensarmos a filosofia como diálogo investigativo buscando construir concei-
tos, também estamos construindo atitudes. Entre essas atitudes, as mais destacadas são:

A tolerância
Entendemos a tolerância como uma pequena virtude necessária, como ponto de partida para qualquer
empreendimento democrático tornar-se possível. Na condição de virtude, a tolerância situa-se entre o ex-
cesso e a falta. Assim, tolerar é evitar o extremo excessivo da tolerância, que consiste na passividade, na
conivência. Esse excesso é o fim da tolerância. Por outro lado, a tolerância evita o outro extremo, a falta, a
intolerância e o dogmatismo. Dessa forma, a tolerância é limite. Contudo, a palavra “tolerância” ainda vem
carregada de dimensões negativas, como “suportar” ou “aguentar” o outro, que seria um mal necessário.
Por isso, é preciso caminhar para um nível superior de valor que se constrói na relação com os outros.

O respeito à diversidade
O respeito está um nível acima da tolerância, à medida que reconhece dignidade e direitos inalienáveis no
outro, parceiro de convívio e de investigação filosófica. Em nível superior, muito mais que tolerância e respei-

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to, está a atitude que busca a diferença, pois nela reconhece a possibilidade da harmonia e da comunhão,
condições para uma verdadeira vida democrática e para o aprimoramento das potencialidades que carrega-
mos em nós. No olhar do outro está a dimensão que falta para dar a coesão ao nosso olhar. Nessa atitude de
defesa e promoção da diversidade, realiza-se o amor à alteridade, à abertura à complementaridade essencial.

A construção de consensos
Na condição de seres sociais, embora carregando forte dose de individualismo, reforçado pela cultura
e pelo modelo econômico, a prática educativa deve se voltar para a formação da sociabilidade. Por isso, a
abertura e a conversão do olhar ao olhar do outro, acolhendo seus argumentos e seu ponto de vista, tor-
nam-se pré-condições para a construção de um Estado democrático de direito, que traz a marca da inclusão
e das políticas afirmativas, a começar pela comunidade educativa. A partir dessa atitude inicial, torna-se
possível a necessária construção de consensos, que sempre continua a admitir e a querer, inclusive, o dis-
senso, a discordância, força motriz da história.

Resolução de problemas aplicando os conceitos estruturantes


Aqui estamos diante de um aspecto essencial da avaliação formativa, isto é, a verificação da competência
que o estudante construiu de saber fazer, de saber transferir e aplicar o conteúdo na prática. São conteúdos
procedimentais, por exemplo, saber dialogar e trabalhar em equipe. Educar a inteligência para a resolução
de conflitos e de problemas – eis o papel primordial da educação filosófica. Se o estudante conseguiu
construir o conceito estruturante, agora é a hora em que ele se servirá desse conceito para a resolução de
situações do cotidiano, situações intrínsecas à cidadania em um Estado democrático de direito.

Avaliação cumulativa ou integradora


Considerando o planejamento das aulas, no interior de um processo de crescente complexidade, cada
saber construído, teórico e prático, torna-se raiz e tronco de novas ramificações. Por isso, todos os passos e
saberes construídos deverão sempre ser revisitados na avaliação. E a excelência de uma avaliação está tam-
bém na crescente complexificação, na qual as etapas anteriores tornam-se pré-requisitos. Se um estudante
pudesse saber, no primeiro mês de aula, o que ele aprendeu no último mês do ano, então diríamos que
estamos diante de uma avaliação que considera somente um produto, uma informação, muito pontual, não
expressando a excelência de uma avaliação cumulativa ou integradora. Por isso, o processo é um aprender
a fazer a partir de um aprender a aprender, com progressiva complexidade.
Dessa forma, a dimensão integradora da avaliação considera todos os processos, resultados, habilidades
e competências construídos ao longo do percurso. Com isso, o próprio estudante toma consciência da tra-
jetória que construiu, dos alcances e dos limites que ainda perduram e dos desafios que estão diante de si,
para sua formação continuada e progressiva maturação.
A complexidade do fenômeno da avaliação escolar deve incluir, portanto, além dos conteúdos e concei-
tos cognitivos, os procedimentais e atitudinais, bem como as estratégias pedagógicas e as competências a
serem desenvolvidas, uma vez que o objetivo é a educação da pessoa como um todo.
Para responder à pergunta, “Quem avalia quem?”, devemos considerar todos os parceiros do processo.
Contudo, há certos vícios históricos que devemos evitar. Acompanhe a reflexão de Perrenoud:

Desenvolvem-se práticas de autoavaliação que levam, frequentemente, a internalizar o julgamento do pro-


fessor mais do que desenvolver no aluno capacidades de metacognição e de regulação de seus processos de
aprendizagem e de produção, no sentido de uma avaliação formadora. [...]. Quanto mais se destaca a observa-
ção formativa de uma avaliação formal e sincrônica, mais ela se integra à totalidade da ação pedagógica e do
sistema didático, mais difícil é executá-la sem transformar o conjunto da prática.
PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada: das intenções à ação. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 48.

Por isso, toda a nossa atenção deve estar voltada para construirmos com o estudante e toda a comunida-
de educativa uma educação emancipadora que considere o aprendiz sujeito e lhe possibilite o crescimento
com progressiva autonomia intelectual e ética.

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COMO USAR ESTE LIVRO?
Este livro deve ser um instrumento a serviço da construção de competências e habilidades dos estudan-
tes. Portanto, é um meio que está em suas mãos e, como tal, deve ser usado. São muitas as possibilidades
de utilizar este livro, dependendo do projeto pedagógico. Vamos nos referir a algumas delas.
Uma primeira forma é seguir o livro conforme está estruturado, construindo uma programação que in-
tegre os eixos Histórico e Temático, mediados pela atitude problematizadora e pelo pensamento conceitual.
Nesse sentido, o professor definiria quais unidades e eixos temáticos ficariam destinados de modo prioritário
para cada série do Ensino Médio.
Uma segunda forma seria selecionar um eixo temático e fazer uma leitura diacrônica, isto é, ao longo da
História. Por exemplo, caso o colega professor julgue oportuno e condizente com seu projeto pedagógico,
poderá concentrar-se no eixo antropológico, da condição humana, e abordar esse eixo na sequência das
cinco unidades. Em outro momento, iria se concentrar no eixo epistemológico, nos modos como foi abor-
dada a relação entre sujeito e objeto ao longo da história do pensamento.
Outra possibilidade seria, por exemplo, privilegiar os conceitos estruturantes. Nesse caso, no planeja-
mento prévio, o professor teria de definir quais seriam os conceitos a serem construídos, de quais eixos
temáticos, em qual período histórico ou de modo diacrônico.
O fundamental, contudo, é buscar integrar o eixo Temático com o eixo Histórico por meio da atitude
problematizadora, em busca de uma autêntica experiência filosófica.

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PARTE 2: INTERVENÇÕES COTIDIANAS E ORIENTAÇÕES
DE PERCURSO
Iniciaremos, agora, a assistência ao seu trabalho • Conceituar cultura.
em sala de aula, com orientações para a construção de • Confrontar os conceitos de natureza e cultura.
uma atitude filosófica, na formação de um saber e de • Conceituar determinismo.
uma consciência também filosóficos. Recordamos ao • Confrontar os conceitos de determinismo e liberdade.
professor que todas as estratégias foram pensadas no • Relacionar valores e normas.
intuito de oferecer ao estudante condições para que • Analisar o fenômeno do trabalho humano.
se torne protagonista da construção do próprio saber, • Compreender o trabalho como fonte e produto cul-
em interação com os colegas, que, juntos, constituem tural.
a comunidade de investigação. Vamos, então, abordar • Distinguir o trabalho humano das ações animais.
• Analisar diferentes concepções históricas de trabalho.
as cinco unidades de nosso curso, buscando lançar al-
• Diferenciar trabalho e emprego.
gumas luzes, no intuito de auxiliá-lo na organização e
• Redigir o conceito de trabalho.
no fazer pedagógicos. Para começar, apresentaremos
• Apresentar as questões centrais da filosofia da mente.
os objetivos e os descritores gerais, que julgamos se-
• Problematizar a relação corpo e mente.
rem fundamentais e deverão estar presentes em todas
• Confrontar diferentes concepções filosóficas.
as unidades e em todos os eixos temáticos.
• Caracterizar o dualismo.
• Analisar o monismo fisicalista.
Objetivos e
descritores gerais Recursos a explorar neste
• Interpretar fragmentos filosóficos. eixo temático
• Ler filosoficamente textos provenientes de outras
áreas do saber. Fontes para leitura e compreensão de
• Problematizar argumentos, conceitos e valores pre-
fragmentos filosóficos
sentes em um discurso.
• Desenvolver habilidade argumentativa. DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e
• Sintetizar ideias e temas a partir de um texto. Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
• Redigir textos filosóficos. (Os pensadores).
• Construir conceitos. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percep-
ção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PLATÃO. Fédon. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
UNIDADE 1 – A FORMAÇÃO São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Os pensadores).
DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens.
DA INQUIETUDE Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cul-
tural, 1991.
EIXO TEMÁTICO 1 – CONDIÇÃO Outras visões
HUMANA (p. 14-31)
Filmes
Objetivos, descritores específicos e Amistad. Direção: Steven Spielberg. Estados Unidos,
conceitos do eixo temático 1997.

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Duelo de Titãs. Direção: Boaz Yakin. Estados Unidos, 2000. zar e preparar o espírito para as reflexões que obje-
O enigma de Kaspar Hauser. Direção: Werner Herzog. tivamos desenvolver nesse eixo temático.
Alemanha, 1975. Destacamos a importância de sua presença re-
Tempos modernos. Direção: Charles Chaplin. Estados flexiva com os estudantes para problematizar a
Unidos, 1936. visão que trazem de natureza e de cultura, tra-
zida do senso comum. Nosso enfoque recairá na
Canção
indeterminação humana, ou seja, na abertura e a
Metade, de Oswaldo Montenegro. 25 anos ao vivo.
incompletude do ser humano, que se realiza na
WM Brazil, São Paulo, 2005. CD.
cultura partindo de sua consciência e de sua liber-
Poemas dade situada.
Operário em construção, de Vinicius de Moraes. In: É fundamental construir uma reflexão na qual
Antologia poética. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olym- apareça a dimensão essencialmente humana da
pio, 1982. liberdade e da consciência como distintivos em
As contradições do corpo, de Carlos Drummond de relação aos demais seres. Por isso, os primeiros
Andrade. In: Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984. conceitos filosóficos estruturantes desse eixo são
Obras de arte natureza e cultura, determinismo e liberdade.
A abordagem sobre determinismo e liberdade
Nostalgia (1928), de René Magritte. Óleo sobre tela,
deve ser trabalhada pausadamente, pois os estu-
102 cm × 81 cm.
dantes costumam ignorar a grande diferença exis-
O dia seguinte (1894), de Edvard Munch. Óleo sobre
tente nas concepções herdadas do senso comum,
tela, 115 cm × 152 cm.
que ainda os movem em significativa parcela. O
Livros determinismo, quando aplicado ao mundo natu-
WHITE, Leslie. The symbol: the origin and basis of hu- ral, costuma ser facilmente assimilado. Contudo,
mans behavior. In: CARDOSO, Fernando Henrique; quando aplicado às ações humanas, esse tema
IANNI, Otávio. Homem e sociedade. São Paulo: Com- gera profunda discussão, propícia para desenvol-
panhia Editora Nacional, 1970. ver a argumentação, o diálogo filosófico e a con-
Artigo científico solidação de percepções e ideias.
O conceito de cultura a ser construído deve
RAPCHAN, Eliane Sebeika. Sobre o comportamento contemplar dialeticamente as dimensões de pro-
de chimpanzés: o que antropólogos e primatólogos cesso e produto. Ou seja, a cultura é tanto o re-
podem ensinar sobre o assunto? Horizontes antropo- sultado da transformação da natureza, por meio
lógicos, Porto Alegre, v. 16, n. 33, 2010. das linguagens humanas, bem como a forma e
a dinâmica dessa transformação. A cultura ainda
Desenvolvendo os objetos de estudo deve ser vista tanto em relação aos aspectos mate-
Na primeira unidade iremos nos concentrar na riais tangíveis de uma comunidade (objetos, arte-
formação da consciência filosófica. Para tanto, abor- fatos) como aos aspectos espirituais, não tangíveis
daremos neste primeiro eixo temático a condição (valores, crenças, ideias etc.). Por isso, o tema da
humana. Inicialmente, deveremos confrontar a con- educação, como meio privilegiado de desnaturali-
dição humana com o mundo animal. Abordaremos, zação e construção da cultura humana, deve ser
assim, os temas da natureza e da cultura, nos quais bem cultivado.
se integrarão os temas do trabalho e da relação en- O tema da liberdade, inserido ou inscrito no
tre mente e corpo. universo da cultura, deve ser muito bem desen-
A primeira página do tema “Natureza e cultura” volvido, pois os estudantes costumam vir com a
traz uma das reflexões mais importantes tanto para noção (conceito prévio) de que a liberdade existe
a Filosofia como para as Ciências Sociais, especial- na natureza e que a cultura é o lugar de repressão,
mente para a Sociologia e a Antropologia. Por essa da não liberdade. É preciso dedicar significativo
razão, sugerimos que a abordagem seja feita de for- tempo a essa abordagem para que seja possível
ma interdisciplinar com a área de Ciências Sociais. problematizar, descontruir e construir uma nova
Com as perguntas que se encontram no primeiro concepção.
parágrafo dessa página, pretendemos tanto apreen- A reflexão sobre a cultura provavelmente pro-
der o saber prévio dos estudantes como problemati- porcionará uma reflexão sobre diversidade cultural.

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Nesse momento, você poderá desenvolver com os presença de um psicólogo ou de um representante da
estudantes uma reflexão a respeito do tema va- neurociência para discutir o assunto. Contar com a co-
lores culturais e normas que existem em diferen- laboração do professor de Biologia, buscando leituras
tes culturas, bem como sobre a relação que essas integradas, também é uma possibilidade interessante.
culturas têm com os valores. Nessa abordagem, é Com a área de Linguagens, Códigos e suas Tec-
importante direcionar a reflexão para que se per- nologias, podemos desenvolver a análise do poema
ceba os valores como construções subjetivas e ob- “As contradições do corpo”, de Carlos Drummond
jetivas, pessoais e culturais; elementos motivado- de Andrade, presente na seção Outros olhares
res da construção de normas. É preciso também desse tema, buscando explicitar as tensões entre
compreender as normas como criação humana corpo e mente.
que objetiva a proteção e a criação de valores que
possibilitem a vida em sociedade. Discussão das atividades propostas
No segundo tema “O trabalho humano: fonte de
cultura”, vamos analisar o conceito, a realidade e o Outros olhares (p. 18)
significado de trabalho no universo humano, além de Solicita-se do estudante a identificação dos ele-
confrontá-lo com a ação instintiva do mundo animal. mentos que permitiriam pensar na formulação do
Nesta abordagem, convém ressaltar a diferença conceito “culturas de chimpanzés”. Espera-se a
de comportamento entre as ações ou operações presença das seguintes ideias em sua resposta: Os
mecânicas, instintivas e irrefletidas dos animais, chimpanzés passaram a ser identificados como gru-
exemplificadas nas abelhas e nas formigas, e o tra- pos sociais, nos quais é possível perceber transmis-
balho humano, vinculado a projetos, a antecipa- são de conhecimentos adquiridos aos mais jovens,
ções mentais. É importante contemplar o trabalho estabelecendo-se assim diferentes tradições e crian-
humano tanto em sua dimensão de realização da do distinções entre os grupos.
potencialidade humana, de emancipação e de hu-
manização quanto no que se refere às suas históri- Problematizando (p. 19-20)
cas formas de alienação e desumanização. Lembramos que em nosso projeto de ensino e
O universo do trabalho humano deverá ser de aprendizagem da filosofia, como atitude e como
abordado não só na perspectiva filosófica e con- saber, haverá muito mais seções de problematiza-
ceitual, mas também em sua realidade histórica de ção do que de atividades formalmente destinadas à
dominação e de luta por libertação. Nessa aborda- resolução de questões e de produção de texto. Isso
gem, o trabalho aparecerá como o meio primor- se deve, especialmente, à convicção, da qual parti-
dial de construção da cultura. Ao mesmo tempo, lhamos, segundo a qual a sala de aula de Filosofia
a forma de trabalhar já será, por sua vez, uma ex- deverá ser espaço privilegiado de desconstrução e
pressão cultural. de reconstrução de um saber herdado, em atitude
Uma das perspectivas de abordagem é a rea- de diálogo crítico com os parceiros da comunidade
lização de um trabalho interdisciplinar com So- de investigação.
ciologia, abordando a diferença entre trabalho e A forma de encaminhar a resolução da seção
emprego, as formas de emprego mais comuns na Problematizando vai depender das habilidades e
cidade e região onde os estudantes residem. Pode- das competências que se pretende estimular nos
-se fazer um estudo dos maiores problemas antro- estudantes. Essa resolução poderá ser em dupla ou
pológicos e sociológicos relacionados ao mundo em trio, poderá envolver o grupo ou a turma, pode-
do trabalho. rá ainda ser atividade junto aos familiares. Embora,
O tema da relação corpo e mente recebeu dife- formalmente, essa seção se diferencie da seção Pro-
rentes enfoques ao longo da história do pensamento: dução de texto, poderá ser solicitada ao estudante
o dualista, o monista (fisicalista) e a teoria do aspecto a produção de um texto após o debate da atividade
dual (dualidade). Esse tema é uma excelente oportu- proposta nessa seção.
nidade para desenvolver o poder de argumentação Questão 1: O estudante depara-se com a no-
por meio de exercícios de antilogias: posicionar-se a ção de liberdade no senso comum, que deverá ser
favor ou contra certos posicionamentos. problematizada. Diante das diferentes visões, o es-
Considerando que se trata de um tema interdis- tudante poderá e deverá posicionar-se, assumindo
ciplinar e transversal, seria muito bom contar com a algum pressuposto específico.

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Se ele considerar que o ser humano é acima de que podem ser construídos em parceria com a equi-
tudo um ser racional, no qual a razão deverá gover- pe de produção de texto, das disciplinas de Língua
nar as vontades e os impulsos, ele poderá dizer que Portuguesa e Literatura.
uma vida desregrada não é liberdade, mas escravidão Sobre a questão construída com base no frag-
da paixão. Se, ao contrário, ele julgar que o ser hu- mento de Merleau-Ponty, que solicita a explicitação
mano é essencialmente paixão, ou liberdade natural, do caráter situacional (relativo, encarnado, contex-
toda escolha será expressão de liberdade, pois pode- tualizado) de toda liberdade, seguem, esquematica-
ria não ter sido feita essa escolha, mas alguma outra. mente, os elementos que devem constar na produ-
Nessa abordagem, sugerimos integrar as no- ção de texto do estudante:
ções de liberdade e limite, a partir da metáfora • Não há liberdade absoluta. Toda liberdade traz em
apresentada (do rio), tanto sob o aspecto de acei- si os determinismos naturais e os condicionamen-
tar os limites externos, quanto estabelecer limites tos culturais.
de dentro para fora. O tema da responsabilidade, • A liberdade é atributo humano e inexistente nos
no qual estão presentes a liberdade e a consciên- demais seres, que são guiados pelo instinto.
cia, poderá também ser abordado. • Por um lado, nunca somos somente coisa, o que
seria ausência de liberdade. Por outro, nunca so-
Questão 2: Solicita ao estudante a explicação
mos absolutamente livres, pois somos sempre seres
de algumas afirmações retiradas do texto de Jean
situados culturalmente. Por isso, a liberdade tam-
Jacques Rousseau:
bém jamais é absoluta e jamais está desvinculada
• Afirmação a: A mente humana poderá cami- das orientações culturais que a condicionam.
nhar na contramão da natureza do ser huma- • Enquanto os animais são guiados pelo determinis-
no, na contramão de suas necessidades naturais, mo, os homens têm a consciência do determinis-
criando desejos que constroem atitudes destru- mo, o que lhes possibilita relativa transcendência
tivas da vida. em relação aos determinantes da vida.
• Afirmação b: O que distingue a natureza dos • A liberdade não consiste somente em poder esco-
animais da cultura humana, na concepção de lher (livre-arbítrio), mas em poder conscientemente
Rousseau, está no fato de o determinismo reger determinar a própria vida.
a vida animal, sem espaço para a liberdade. Em
contrapartida, o ser humano, também marcado Sugestão de filme (p. 20)
pela influência dos determinismos naturais, tem Temática: Natureza e cultura
consciência desses determinismos e poderá viver Filme: O enigma de Kaspar Hauser (Alemanha, 1974).
em conformidade ou não com as orientações na- Gênero: Drama.
turais, devido à liberdade que lhe é inerente. Diretor: Werner Herzog.
• Afirmação c: Respondendo à pergunta de Rous-
Duração: 110 minutos.
seau, se o animal é uma besta, somente o homem
poderá tornar-se um imbecil, pois sendo perfectí- Sinopse: O título original do filme, “Cada um por
vel, podendo ser mais, torna-se menos. si e Deus contra todos”, foi retirado do livro Macu-
naíma, de Mario de Andrade. O filme tem início em
Produção de texto (p. 20) 1828, narrando a história de uma criança abandonada
A produção de texto do estudante é etapa funda- e encontrada na Alemanha Ocidental do século XIX.
mental e imprescindível no processo de apropriação e Essa criança, que cresce em cativeiro, é um retrato de
reapropriação do saber em construção. Nesse estágio, um ser humano natural, do bom selvagem, antes de
o estudante revisitará as etapas percorridas: a proble- ser cultural. Quando essa criança entra na fase da ju-
matização do saber prévio, a leitura dos fragmentos, ventude, é libertada da prisão. Nesse instante, o fil-
as socializações e as intervenções do professor. me revela a perplexidade do olhar do rapaz diante
Não devemos pressupor que o estudante saiba fa- das convenções sociais, com seus dogmas religiosos e
zer um bom texto. Ele precisa tornar-se competente e ideologias políticas que não conseguem lidar com a
hábil na escrita. Para tanto, é nossa função explicitar diferença. Essa “pureza” do olhar de Kaspar Hauser,
os elementos textuais indispensáveis: coesão e articu- que não se reconhece nesse mundo e sente profundo
lação, rigor e não contradição, progressividade etc. mal-estar diante da cultura assim construída, possibi-
Sugerimos que o professor explicite aos estudan- lita excelente reflexão e distinção entre as dimensões
tes os encaminhamentos dos textos dissertativos, naturais e normais, entre natureza e cultura. O tema

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do estranhamento diante do mundo pode ser muito os elementos que devem constar na produção de
bem explorado. Por essa razão, o filme transforma-se texto do estudante:
em ótima oportunidade para problematizar o tema da O trabalho humano traz dupla significação: uma
linguagem, seu sentido e sua origem vinculada às rela- está voltada para a exterioridade e outra para a in-
ções intersubjetivas, ausentes na infância desse rapaz. terioridade. Considerando a abertura radical que
constitui o ser humano, potencialidade aberta à
Problematizando (p. 25)
construção, o trabalho é o medium, por excelência,
No poema “Operário em construção”, de Vinicius pelo qual o ser humano dá forma às suas possibi-
de Moraes, você poderá desenvolver com a área de lidades. Assim, por meio do trabalho, ele constrói
Literatura uma atividade de análise e de aplicação à a si mesmo. Por outro lado, o trabalho transforma
realidade do conteúdo desse poema, no qual se per- a natureza exterior em cultura, artefatos, objetos,
cebe o movimento de alienação e de desalienação símbolos.
do operário, que se encontra em construção. Pode-se Basicamente, o que distingue a ação humana é
fazer interface com as cenas do filme de Tempos mo- a consciência com a qual o trabalho é feito. Essa
dernos, especialmente no que tange à ideia de que o consciência manifesta-se antes mesmo de o traba-
operário “tudo desconhecia de sua grande missão”. lho exteriorizar-se na prática. Antes de o trabalho
Com base na leitura do poema, solicita-se do estu- acontecer, a mente humana o projeta. Diferente-
dante a descrição do processo de desalienação percep- mente, a ação dos animais segue uma programação
tível no poema. Espera-se a percepção e a descrição genética, impulsiva, incapaz de construir cultura por
do movimento de consciência que passa a acontecer não haver processo de acumulação e transmissão.
no operário e sua consequente mudança de postura.
Questão 2: Você poderá desenvolver com os
Inicialmente, encontramos as expressões relacionadas
estudantes uma reflexão sobre o trabalho como es-
à ignorância ou ao desconhecimento, como “Mas ele
sencial à condição humana ou como uma imposição
desconhecia”. Em momento ulterior, percebe-se que
cultural. Nesse caso, poderá solicitar dos estudantes
ele fez uma experiência de reconhecimento, a partir
que se posicionem a favor ou contra a seguinte afir-
de uma “súbita emoção” e com ela inicia-se um novo
mação apresentada na questão:
processo em sua vida, “um mundo novo nascia“.
“O trabalho não pertence à natureza humana, é
E “Foi dentro da compreensão desse instante solitá-
uma imposição cultural.”
rio” que o operário adquiriu a consciência de todo o
O estudante poderá posicionar-se a favor da
processo no qual estava envolvido. Em decorrência,
afirmação, partindo do pressuposto de que o que
um operário passa a ouvir outro operário e eles pas-
constitui o ser humano é o ócio, a gratuidade. Nes-
sam a dizer não. No despertar da consciência e do en-
sa lógica, a espontaneidade natural do ser humano
contro “agigantou-se a razão” e, com isso, o operário
caminha em direção contrária à disciplina e ao es-
se assumiu como sujeito em construção.
forço que o trabalho requer. Assim, o trabalho seria
Questão 2: Solicita-se do estudante uma percepção uma exigência da sociedade; uma forma de frear os
das possíveis formas de trabalho forçado que existem nossos impulsos e canalizar as nossas paixões para
em sua cidade ou região, que vão na contramão de o convívio social.
um sentido positivo do trabalho. Na diferenciação em O estudante poderá posicionar-se contra a afir-
relação ao emprego, o trabalho poderá ser visto como mação, argumentando que a condição humana é
fonte de expressão do sujeito, de sua criatividade, de constituída por potencialidades que, naturalmente,
sua realização pessoal, de sua humanização, de sua solicitam sua realização. Essa realização se daria por
dignidade. E o emprego poderá ser visto tanto como ex- meio de atividades pelas quais o ser se exterioriza,
pressão de trabalho ou somente como uma ocupação realizando sua interioridade. O estudante poderá
ou emprego de forças físicas e mentais voltadas para argumentar com base no conceito de homo faber,
a subsistência. sobre o ser ativo como sendo constitutivo, elemento
Produção de texto (p. 26) essencial do ser humano. É possível, ainda, que o
estudante diferencie emprego de trabalho e, nes-
Questão 1: Solicita-se a explicação da afirmação: sa distinção, afirme que o emprego, muitas vezes,
“Ao transformar o objeto e o mundo, por meio do caminha na contramão da humanidade, mas o tra-
trabalho, o homem transforma também a si mesmo; balho é uma necessidade natural do ser humano,
ao configurar o mundo, configura-se a si”. Seguem condição de humanidade.

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Sugestão de filme (p. 26) usado pela postura da solução dual. Por um lado, o es-
Temática: O trabalho humano: alienação ou libertação? tudante que partir do pressuposto da existência de
Filme: Tempos modernos (Estados Unidos, 1936). duas substâncias distintas: corpo e mente, poderá
argumentar favoravelmente. Por outro lado, partindo
Gênero: Comédia; drama.
do pressuposto de uma unidade substancial, afirman-
Diretor: Charles Chaplin.
do que existe somente a matéria física, os recursos às
Duração: 87 minutos. doenças psicossomáticas apenas fortalecem a própria
Sinopse: A vida urbana nos Estados Unidos, na dé- visão fisicalista, de um todo unitário, integrado em
cada de 1930, imediatamente após a crise de 1929, conexões físicas. Nessa visão, o psíquico não deixa de
é retratada nesse filme mudo por Charles Chaplin. ser uma dimensão física mais complexa.
O contexto de depressão econômica levou grande
Questão 2: O texto de Descartes é um exemplo
parte da população à fome e à miséria. O persona-
de dualismo. Você deverá estimular os estudantes a
gem clássico de Chaplin, Carlitos, é a figura central
se posicionarem diante das questões apresentadas
do filme, que é uma profunda crítica à era industrial
nessa seção.
e às suas decorrências, degeneradoras da vida urba-
na. Mercadorias sem compradores eram destruídas Produção de texto (p. 30)
devido aos milhões de pessoas desempregadas e fa- Questão 1: Na atividade proposta, o estudante
mintas. O filme chegou a ser proibido na Alemanha deverá escolher uma das concepções que abordam a
e na Itália por ser considerado socialista. A crítica relação corpo e mente e apresentar sua compreensão.
se dirige ao modelo econômico liberal e ao capita- Nesse contexto, espera-se uma reflexão na qual
lismo, representado pelo modo de industrialização, constem as seguintes ideias:
de produção em série, no qual a pessoa do operário Para o dualismo, corpo e mente são duas substân-
é anulada e coisificada. Nessa exploração do tra- cias distintas, que não se reduzem uma à outra. O cor-
balho e do trabalhador, nasce a mais-valia e a vida po é a dimensão física, palpável, acessível a terceiros
confortável da burguesia. Com base nesse filme, e que não apresenta dimensões espirituais. Em con-
pode-se abordar o materialismo histórico e dialéti- trapartida, a mente é espiritual, inacessível a terceiros.
co e sua oposição ao idealismo. Sugere-se que essa Para o monismo ou fisicalismo, o ser humano é
abordagem seja realizada de forma interdisciplinar, constituído por uma única substância: sua natureza
especialmente com as áreas de História, Geografia física. Somos somente matéria. Pensar em mente é
e Sociologia. Também é uma ótima oportunidade pensar em cérebro composto de células nervosas co-
para trabalhar o tema da alienação do trabalhador municantes. Tudo o que acontece na mente (com-
e do fruto do trabalho. plexo físico) é reflexo do que acontece no corpo.
Problematizando (p. 28) Há uma terceira perspectiva que busca integrar es-
sas dimensões, denominada dualidade corpo e men-
Questão 1: Solicita-se a problematização do te ou “solução dual”, na qual se reafirma a presença
dualismo socrático-platônico. Será que o corpo é de suas substâncias, porém se explicita sua interde-
um obstáculo na busca pelo conhecimento das es- pendência e retroalimentação. Fala-se em doenças
sências? Será que os sentidos atrapalham a mente psicossomáticas, considerando a presença de aspec-
em sua busca por conhecimento? Trata-se de um tos mentais que não se reduzem à dimensão física.
posicionamento pessoal do estudante. O que se Assim, a mente apresentaria uma dimensão espiritual
espera é que o estudante, tendo compreendido a inacessível a terceiros. Contudo, o que afeta o físico
posição racionalista e dualista, consiga argumen- ou material poderia também atingir o espiritual.
tar a favor ou contra essa concepção. Lembramos
ao professor que essas seções de problematização Outros olhares (p. 30-31)
são fundamentais para despertar nos estudantes a Nesta seção, construída sobre o poema “As contra-
atitude, os saberes filosóficos e a construção da au- dições do corpo” de Carlos Drummond e sobre a can-
tonomia intelectual. ção “Metade” de Oswaldo Montenegro, solicita-se
o posicionamento pessoal do estudante, no sentido
Problematizando (p. 30)
de perceber se na afirmação é possível reconhecer o
Questão 1: Solicita-se o posicionamento do estudan- monismo, o dualismo ou uma perspectiva da dualida-
te quanto ao argumento das doenças psicossomáticas de, no sentido de haver duas dimensões igualmente

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importantes, valorizadas e integradas, formando uma do bairro ou da cidade em que os estudantes vivem.
espécie de unidade plural no ser humano. Com uma série de entrevistas e de observações, eles
poderão verificar e aplicar a reflexão realizada em
Sugestão de atividade complementar sala, bem como trazer elementos para construir tal
Para alguma atividade que você queira fazer so- reflexão. Nessa pesquisa, podem ser verificadas as
bre a distinção entre determinismo e liberdade, soli- temáticas da tradição, dos conflitos de valores e de
citando aos estudantes um posicionamento sobre a gerações, das novas tecnologias de informação, de
questão se existe liberdade ou o determinismo nas novos hábitos etc. Sugerimos pensar nas melhores
ações humanas, seguem, esquematicamente, os formas de socialização e publicação dos resultados
elementos que podem constar nas respostas: da pesquisa.
O estudante poderá argumentar a favor do de- Desenvolver uma pesquisa interdisciplinar, espe-
terminismo, afirmando a ausência de liberdade, cialmente com História, Geografia e Sociologia, so-
uma vez que nossa ação é sempre situada em um bre: o mundo do trabalho e do emprego; as profis-
contexto, que nos solicita a agir daquela forma. sões de ontem, de hoje e as perspectivas de trabalho
A argumentação poderá ir na direção do reconheci- futuro; velhas e novas profissões; o trabalho na era
mento de que a circunstância na qual nos encontra- virtual e digital; a mulher e o mundo do trabalho.
mos não nos possibilita outra ação. Assim, as ações Outra possibilidade de trabalho interdisciplinar é
humanas não seriam livres. considerar o tema da cultura ou culturas diante do
O estudante poderá argumentar a favor da li- processo de globalização. Existe uma globalização
berdade, afirmando que as circunstâncias nas quais cultural? Quais são seus impactos, ganhos e riscos,
a liberdade se realiza não nos determinam, apenas alcances e limites? Para uma fundamentação teórica,
são a história prévia; são condicionantes, mas não sugerimos realizar, de forma interdisciplinar com as
determinantes. Ou seja, embora toda liberdade se matérias de Geografia, História e Sociologia, um es-
encontre situada e não exista de modo absoluto ou tudo dos últimos Fóruns Econômicos Mundiais para
incondicionado, a singularidade humana se revela buscar tendências, mapear os desafios e registrar os
como capacidade de transcendência. A consciência avanços ou recuos na economia, política e cultura.
dos condicionantes culturais e dos determinismos
naturais possibilita ao ser humano tomar decisões Projetos interdisciplinares de reflexão
com base em projetos e perspectivas que consciente filosófica
e livremente estabelece para sua vida.
É isto um homem?
Caminhos alternativos e Com o objetivo de compreender o processo de hu-
abordagens complementares manização, sugerimos um estudo filosófico interdisci-
O tema da natureza e da cultura poderá ser de- plinar que se volte para a identidade do ser humano.
senvolvido fazendo uso de outros recursos e enca- Por isso, essa reflexão deverá ser realizada com a ativa
minhando outras atividades. Sugerimos: participação de outros saberes que também têm no ser
Uma atividade/pesquisa interdisciplinar, especial- humano seu objeto de estudo, especialmente Lingua-
mente com a Biologia, para analisar as inteligências gens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências Humanas
dos animais e dos humanos. Trata-se de um estudo e Sociais e suas Tecnologias: Antropologia, Sociologia,
comparado entre a inteligência “concreta” em cer- Psicologia, Literatura, Arte etc.
tos animais previamente definidos e a inteligência Entre as questões norteadoras da reflexão filosó-
“abstrata” dos humanos. fica, sugerimos inicialmente:
Estudar o caso de Amala e Kamala, as “meninas • As pessoas nascem humanas ou sua humanização
lobo” e o da norte-americana Helen Keller – nascida é uma possibilidade?
cega e surda, mas que se torna uma expressiva au- • Nas diferentes culturas, em termos de dignidade e
de humanização, encontram-se contrastes gritan-
tora e conferencista após receber educação especial
tes. Quais elementos antropológicos e sociológicos
a partir da primeira infância.
ajudam a explicar esse fato?
Fazer uma pesquisa interdisciplinar, especialmen-
• Quais são as mediações de humanização?
te com Literatura, História, Geografia e Arte, sobre
• Qual é o poder da educação nos caminhos da hu-
o tema “a cultura em movimento”. O objeto da
manidade?
pesquisa pode ser a vida da própria comunidade,

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Sugestão de fontes e bibliografia inicial para • A Declaração Universal dos Direitos Humanos é
o desenvolvimento desse projeto universalizável?
• Considerando a teoria e a prática de Relações Inter-
Filme nacionais, Direito Internacional e Comércio Exterior,
O enigma de Kaspar Hauser. Direção: Werner Herzog. o que podemos afirmar sobre a diversidade cultural?
Alemanha, 1974. • Quais têm sido os maiores desafios para um diálo-
Canção go internacional?
• O processo de globalização econômica e cultural
Bicho homem, de Milton Nascimento. Sentinela. Island
tem conseguido aproximar diferentes sociedades,
Def Jam Music Group, Estados Unidos, 1980. CD.
respeitando as diferenças e contribuindo, assim,
Site para a riqueza da diversidade?
A história de Amala e Kamala que foram criadas por
Sugestão de bibliografia inicial para o
lobos na Índia. Veja mais detalhes sobre essa história
desenvolvimento desse projeto
no link: <www.guiadoestudante.abril.com.br/aventu-
ras-historia/humanos-criados-como-animais-coracao- IANNI, Octávio. A era do globalismo. Rio de Janeiro:
selvagem-434572.shtml>. Acesso em: 17 abr. 2016. Civilização Brasileira, 2010.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antro-
Poema pológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
O bicho, de Manuel Bandeira. In: Estrela da vida intei- SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção
ra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. multicultural de direitos humanos. In: FELDMAN-BIAN-
Livro CO, Bela; CAPINHA, Graça (Org.). Identidades: estudos
de cultura e poder. São Paulo: Hucitec, 2000.
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco,
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pen-
2001.
samento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
A obra aborda as experiências do autor no campo de
Record, 2000.
concentração de Auschwitz, onde ele perde tudo, in-
clusive seu nome.
Realizando pesquisa e seminário sobre EIXO TEMÁTICO 2 – EXPERIÊNCIA
diversidade cultural E RACIONALIDADE (p. 32-57)
As reflexões sobre natureza e cultura, normas e
valores nos remetem à diversidade cultural. As formas Objetivos, descritores específicos e
como o ser humano transforma e adapta a natureza conceitos do eixo temático
a seus projetos varia muito de cultura para cultura:
• Conceituar mito.
mitos, ritos, cosmovisões, vestimentas, hábitos ali-
• Relacionar mito e rito.
mentares, constituições, valores, educação dos filhos,
• Confrontar mitos primordiais e mitos modernos.
relação com a natureza, visão de trabalho etc. • Analisar a passagem do mythos ao logos.
Esse universo formado pela diversidade cultural é • Compreender a dimensão existencial da experiên-
excelente objeto tanto de análise sociológica e antro- cia do filosofar.
pológica quanto de reflexão filosófica. Por essa razão, • Compreender a filosofia como pensamento e ativi-
sugerimos a elaboração de um projeto de trabalho in- dade conceitual.
terdisciplinar integrando as áreas de Literatura, Arte, • Caracterizar a experiência filosófica.
História, Geografia, Sociologia e Filosofia. Cada uma • Distinguir os conceitos de mistério e problema.
delas, com a singularidade de seu olhar, contribuirá • Compreender o conceito de consciência.
para a elaboração de questões que, uma vez contem-
pladas, proporcionarão a visão da complexidade que Recursos a explorar neste
constitui a formação de uma cultura. Por exemplo: eixo temático
• A ideia de evolucionismo cultural ou de superiori-
dade de uma cultura sobre outra continua atual- Fontes para leitura e compreensão de
mente presente em alguns setores ou regiões? fragmentos filosóficos
• Deve-se julgar uma cultura com os olhares de outra
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad.
cultura? Devem existir critérios para avaliar as for-
de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
mas como cada cultura vive e se organiza?
Martins Fontes, 2007.

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ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. Cupido e Psiquê (1798), de François Gérard. Óleo so-
São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores). bre tela, 186 cm × 132 cm.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pe- O pensador (1904), de Auguste Rodin. Escultura.
dro de Souza. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. São João Evangelista e a visão de Jerusalém (1635), de
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 4. ed. Trad. Pola Ci- Alonso Cano. Óleo sobre tela, 83 cm × 44 cm.
velli. São Paulo: Perspectiva, 1994. Deméter e Metanira (c. 340 a.C.), do pintor Varrese.
GRIMAL, Pierre. A mitologia grega. 3. ed. Trad. Carlos Cerâmica de figuras vermelhas.
Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982. Fotografias
GUSDORF, George. Mito e metafísica. Trad. Hugo di
Indígena Yawalapiti se pinta para ritual do Quarup.
Prímio Paz. São Paulo: Convívio, 1979.
Mato Grosso, 2012.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e
Manifestação de profissionais da saúde, Rio de Janeiro,
tradução de José Antônio Alves Torrano. 3. ed. São
2013.
Paulo: Iluminuras, 1995.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico.
São Paulo: Cultrix, 1993. Desenvolvendo os objetos de estudo
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Trad. Sergio Ma- Iniciamos, aqui, o eixo temático de experiência
galhães Santeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. e da racionalidade como elemento distintivo da hu-
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. manidade. Analisaremos duas diferentes formas de
São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores). pensamento e de consciência: a mítica e a filosófica.
PLATÃO. O banquete. Trad. José Cavalcante de Souza. No primeiro tema, a sua presença de professor(a)
5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores). e educador(a) deve ficar atenta à necessidade de
SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Trad. Môni- construir uma reflexão na qual a forma mítica de
ca Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pensar apareça como a primeira forma humana de
VILAS BOAS, Newton. Tópicos de Física. v. 2. 19. ed. pensamento, que acompanhará o ser humano ao
São Paulo: Saraiva, 2012. longo da vida, sendo sua manifestação mais forte
Outras visões em alguns momentos específicos da existência. Por
isso, a consciência filosófica, que nascerá da com-
Filmes plexificação do pensamento, não será uma ruptura
O quarto poder. Direção: Costa-Gravas. Estados Uni- em relação ao pensamento mítico, mas uma nova
dos, 1997. forma humana de pensar, mais sistemática, discursi-
Show de Truman. Direção: Peter Weir. Estados Uni- va, argumentativa.
dos, 1998. Sugerimos, inicialmente, que a caracterização
Sociedade dos poetas mortos. Direção: Peter Weir. Es- da primeira forma humana de conhecimento, rela-
tados Unidos, 1990. cionada à consciência mítica, seja feita a partir do
Canções saber prévio dos estudantes. O diagnóstico des-
Admirável gado novo, de Zé Ramalho. Zé ramalho em se saber poderá ser conseguido com uma simples
foco. Som livre, Rio de Janeiro, 2006. CD conversa sobre relatos míticos que eles conhecem.
Ideologia, de Cazuza e Frejat. Para sempre Cazuza. Após esse primeiro relato, os estudantes poderão
Universal Music, São Paulo, 2008. DVD. ser desafiados a buscar pontos em comum entre as
narrativas, com o objetivo de iniciar uma caracteri-
Poema
zação do mito. A problematização poderá continuar
Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade. In: com a busca da percepção da existência de mitos
Corpo: novos poemas. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, contemporâneos nos âmbitos da estética, da moda,
1984. do esporte, da canção etc.
Obras de arte No tema 2, “O nascimento da consciência filosó-
A criação de Adão (1512), de Michelangelo. Afresco, fica”, encontra-se a imagem de uma teia de aranha.
480,1 cm × 230,1 cm. Explore a legenda da imagem e, com ela, a singu-
A dança II (1910), de Henri Matisse. Óleo sobre tela, laridade da filosofia, em seu olhar plural. O impor-
260 cm × 391 cm. tante, nesse momento, é que a dinâmica da aula
Côncavo e convexo (1955), de M. C. Escher. Litogravu- seja uma confirmação destas características da filo-
ra, 33,5 cm × 27,5 cm. sofia: problematizadora, crítica, radical, complexa.

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Em outros termos, a nossa presença educativa em um aprenda a dar as razões de seus posicionamen-
sala de aula deve fomentar o pensamento reflexivo, tos, explicitando seus pressupostos e buscando in-
crítico e argumentativo. Negativamente, não deve- ferir possíveis decorrências. Com efeito, uma das
mos apresentar respostas prontas, nem imediatas. nossas primeiras e permanentes tarefas será cul-
É preciso encarnar a metodologia indutiva e dialéti- tivar a habilidade argumentativa dos estudantes,
ca para que os estudantes possam, progressivamen- chamando-os para a autonomia intelectual e ética.
te, caminhar na direção da construção do conceito. Uma de nossas primeiras tarefas é desconstruir
Ao abordar a identidade, a necessidade e a (in) um preconceito de que a filosofia é um saber abs-
utilidade da filosofia, iniciamos com algumas ques- trato, desvinculado do cotidiano, que fala sobre
tões instigadoras com o objetivo de alimentar a ati- realidades distantes da nossa vida. Uma das me-
tude filosófica em nossos estudantes. É fundamen- lhores formas para isso é fazer com que os estu-
tal que eles compreendam a filosofia como forma dantes percebam que os grandes questionamentos
diferenciada de ver o mundo. Talvez seja significati- que eles fazem sobre a vida e o futuro, bem como
vo reapresentar à turma a ideia da ave de Minerva, a melhor forma de agir em determinadas situações
a coruja, como símbolo da filosofia. Explique que o são reflexões profundamente filosóficas, uma vez
motivo se dá pela sua capacidade ampliada de visão, que estão na busca do sentido, na busca da felici-
contrapondo-se ao senso comum dos mortais, que dade, que é o fim último da vida humana.
se encontra no sono da razão. Igualmente, a ima- É preciso despertar o estudante para o fato de
gem O sono da razão produz monstros, de Goya, é que em filosofia a autoridade está no argumento,
excelente estratégia para suscitar a reflexão sobre a na persuasão, no diálogo e na investigação inter-
necessidade dessa inteligência de articulação, que subjetiva, não havendo espaço para dogmatismos e
caracteriza o saber filosófico, que é um saber intolerâncias. Ao contrário, o conflito de interpreta-
conceitual e busca construir conceitos a partir do ções será uma constante e requer atitude de busca
confronto de diferentes visões em relação a um por consensos possíveis, cultivando sempre o espíri-
mesmo objeto de estudo. A respeito desse tema, to democrático.
sugerimos ler a parte final do Livro do Estudante Por isso, é importante evitar sermos o centro das
Para não concluir, na qual apresentamos o pensa- atenções. O foco deve estar no estudante, no seu
mento de Deleuze, que implicitamente está sendo argumento, na coerência interna de seu discurso,
abordado aqui. na progressividade e articulação de suas ideias. Em
É fundamental que, nesse início de trabalho, o decorrência, não devemos apresentar os conceitos,
estudante consiga articular a ideia de que a filo- nem permanecermos exclusivamente ou priorita-
sofia é uma construção conceitual, ou seja, uma riamente em aulas expositivas, pois isso alimenta a
forma de saber e atitude que busca conceituar fe- passividade em vez da atitude filosófica. Devemos,
nômenos e realidades. Para tanto, é essencial que assim, cultivar a habilidade de problematizar e des-
os estudantes assimilem quatro características bá- naturalizar o senso comum, construindo um distan-
sicas da atitude filosófica: criticidade, radicalidade, ciamento crítico em relação à visão comum.
complexidade e dinamicidade, uma vez que a bus-
ca por fundamentos e essências precisa ser crítica Discussão das atividades propostas
– jamais ingênua ou alienada; deve ser radical ou
profunda,– jamais superficial; necessita ser com-
Problematizando (p. 37)
plexa ou articulada,– nunca simplista ou simplifi- Questão 1: A seção foi construída a partir do
cadora; tem de ser dinâmica – jamais estática, pois mito de Prometeu. Nela, os estudantes deverão
é da natureza da verdade, objeto de investigação conversar sobre duas dimensões importantes: a
filosófica, ser histórica e temporal. técnica do fogo e a técnica da política, como dois
Um fator decisivo para que o processo de ensino elementos centrais no processo de humaniza-
e a aprendizagem da filosofia se realizem adequa- ção do ser humano e de sua construção cultural.
damente consiste na convicção de que a filosofia Aborde com os estudantes as conquistas e os de-
deve, inicialmente, ser compreendida como atitu- safios relacionados à técnica do fogo e as necessá-
de pessoal. Por isso, é preciso investir significativo rias dimensões do respeito e da justiça apresenta-
tempo e buscar estratégias para despertar nos es- das como valores políticos que mantêm a vida da
tudantes essa atitude de filosofar, com a qual cada humanidade.

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Problematizando (p. 38) • A busca pela origem se desloca das divindades
Questão 1: A seção aborda a relação entre mito, para algum elemento natural, e a preocupação
rito e memória. Solicita-se, então, a problematiza- está na percepção da relação entre efeito e causa.
ção de ritos de acolhida ou de iniciação: batismo, Questão 2: A partir do fragmento de Pierre Gri-
cortar cabelo por ter passado em algum concurso mal, que solicita a identificação e a explicitação da
público, trotes universitários, às vezes marcados por tese defendida pelo autor, espera-se os seguintes
violência, necessidade de marcar o corpo com al- elementos na produção textual dos estudantes:
gum símbolo etc. Estimule os estudantes a se posi- Mito e logos, fantasia e razão, narrativa e demons-
cionarem a respeito desses ritos. Será que essa di- tração são dimensões opostas e complementares,
mensão cultural teria relação com alguma dimensão pois o ser humano não é somente racionalidade,
mítica do ser humano? O que isso revela do próprio ele é também emoção e afeto, dimensões vincula-
ser humano? Pode-se explorar bem a ideia de per- das ao simbólico, terreno do mito e da arte.
tencimento a uma comunidade, onde acontece um Questão 3: Considerando o confronto entre
novo nascimento. mito primitivo e mito contemporâneo, espera-se
Problematizando (p. 40) uma reflexão na qual constem as seguintes ideias:
• O ser humano apresenta uma estrutura mítica,
Questão 1: A problematização acontecerá em
marcada pela intuição compreensiva, pelos impul-
torno da ideia contemporânea de mito. Sugerimos sos afetivos e emocionais, pela necessidade de se-
explorar as características presentes em algum per- gurança e sentido totalizante, razões pelas quais o
sonagem ligado ao mundo do esporte, da arte e mito é presença perene no ser humano.
da cultura que possa ser qualificado como “mito”. • Na mitologia primitiva, as narrativas tinham em
Existe a ideia de algo sagrado, inatingível, intocável? sua origem os traços da comunidade, sendo sua
Existe a presença de uma totalidade, ou de repre- adesão coletiva.
sentação de expressão máxima? Está envolvido o • No mito contemporâneo, encontramos uma ade-
elemento da fé, da confiança, da emoção, da ade- são individual a personagens particulares, de se-
são passional? tores fragmentados e especializados, considerados
Produção de texto (p. 41-42) como expressão máxima e idealizada do herói.
• Tanto no mito primitivo como no contemporâneo, as
Questão 1: Considerando a questão de produ- marcas fundamentais são a adesão afetiva e a crença
ção de texto que solicita a identificação e a caracte- em uma totalidade, mesmo que em terreno particular,
rização das duas formas de conhecimento presentes como parece ser o caso da cultura contemporânea.
respectivamente em um trecho de Hesíodo e em Questão 4: Motive os estudantes a fazerem um
um trecho de um físico contemporâneo, espera-se a mergulho nas histórias em quadrinhos, para encon-
presença dos seguintes elementos na produção tex- trar os heróis que seriam as melhores expressões de
tual dos estudantes: nossas idealizações. Após as escolhas, oriente os
No trecho 1, encontramos o mito como forma de estudantes a perceberem a mensagem central que
conhecimento (mítico-poético). está sendo veiculada na história, ou o ideal que o
• Trata-se de uma narrativa sobre as origens, que se herói está representando. Tendo feito isso, cabe a
encontram em alguma forma de divindade. problematização: O que isso tudo revela ou expres-
• Existe a presença da personificação. Terra é uma di- sa do ser humano? Quais as mensagens antropoló-
vindade que gera Céu e Altas Montanhas. gicas, epistemológicas, éticas, políticas e estéticas
• A narrativa mítica traz uma consciência coletiva,
que podemos extrair dessas narrativas míticas?
que colabora para a coesão social e para a paz
de espírito. Problematizando (p. 47)
• Essa é a primeira forma de conhecimento, uma intui- Questões 1 e 2: Atividades significativas sobre
ção compreensiva da realidade, vinculada ao mundo a identidade, funções e “utilidades” da filosofia
da imaginação, do afeto, da fé e da emoção. para as pessoas.
No trecho 2, encontramos o conhecimento filo-
Produção de texto (p. 47-48)
sófico-científico.
• Trata-se de um conhecimento racional, argumen- Questão 1: Espera-se uma reflexão textual na
tativo, que não admite contradições internas. qual constem as seguintes ideias:

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• A filosofia é amante da dúvida e motivada pela bus- vida é breve, fugaz e deve ser muito bem vivida em
ca dialética (“Só os loucos têm certeza absoluta de cada instante.
sua opinião”). O encanto pelo professor e o desejo de se torna-
• A filosofia não se baseia no princípio da autoridade, rem livres pensadores e viverem seus grandes ideais
mas no argumento racional (“A verdade e a razão motivam o grupo de estudantes a fundarem a Nova
são comuns a todos”). Sociedade dos Poetas Mortos. Outros jovens, dese-
• A dimensão autoimplicativa da filosofia nos torna josos de viver seus sonhos, juntam-se ao grupo. Em
melhores (“O proveito de nosso estudo está em nos meio a alguns equívocos, o professor lembra aos es-
tornarmos melhores e mais avisados”; “Que nin- tudantes que viver ou sugar a essência da vida não
guém se recuse a praticar a filosofia”). implica afogar-se nela. A sabedoria que buscamos
Sugestão de filme (p. 48) consiste em saber viver a plenitude, o equilíbrio.
Para aprofundar a reflexão sobre as caracterís- Várias tensões ocorrem ao longo do filme, que
ticas básicas da atitude filosófica (criticidade, radi- acaba com a demissão do professor, mas não com a
calidade, complexidade e dinamicidade), com base nova postura de vida que provocou nos estudantes.
no olhar da arte, sugerimos o filme Sociedade dos O filme merece ser explorado, especialmente no
poetas mortos, do diretor Peter Weir. que toca à busca pela felicidade como bem maior,
Temática: O lugar da filosofia, da poesia, do inútil conquistada por meio da filosofia, da poesia e da
Filme: Sociedade dos poetas mortos (1989). arte, meios por excelência que proporcionam a li-
bertação da mediocridade humana. Essa libertação
Gênero: Drama.
do senso comum, momento da negatividade, é tan-
Diretor: Peter Weir.
to condição quanto expressão de vida consciente e
Duração: 129 minutos. autônoma, ou seja, feliz.
Sinopse: O drama se desenvolve em 1959, na Wel-
ton Academy, uma tradicional escola preparatória Problematizando (p. 54)
de jovens. Nessa instituição, predominavam os va- Questão 1: Motivado pelo poema “Eu Etique-
lores tradicionais, sustentados por quatro pilares: a ta”, de Carlos Drummond de Andrade, em con-
tradição, a honra, a disciplina e a excelência. Tudo texto de estudo no qual a filosofia aparece como
começa quando um ex-estudante, chamado John crítica das ideologias, o estudante deve ser esti-
Keating (Robin Williams), torna-se o novo professor mulado a refletir sobre o processo de coisificação
de literatura. Seus métodos nada tradicionais ou do ser humano ou de humanização da coisa. Você
ortodoxos exigem dos estudantes posturas abso- poderá explorar a ideia de fetiche da mercadoria.
lutamente revolucionárias no contexto de forma- Estimule os estudantes ao reconhecimento dos
ção, o que provoca fortes tensões com a direção modos de presença que a filosofia poderá assumir
da escola. diante da ideologia do consumismo.
Em sua metodologia, Keating está focado em Outros olhares (p. 55-56)
proporcionar à turma a autonomia de pensamen-
Questão 1: A seção solicita a associação da
to. O seu jeito de educar consiste em estimular os
imagem de catadores que trabalham no lixão da
estudantes a tornarem suas vidas verdadeiramen-
Estrutural, de Brasília, com a cultura do consumo.
te extraordinárias, fazendo deles livres pensado-
Estimule os estudantes a perceberem as decorrên-
res, nos quais a alma e a paixão são libertadas.
cias de uma cultura do consumo construída a par-
A genialidade da sua metodologia transforma o
tir de uma ideologia que associa qualidade de vida
novo professor em mestre (“capitão”) do grupo
e reconhecimento individual ao nível de consumo,
de estudantes.
especialmente as relacionadas à dignidade de hu-
Movido pela curiosidade em melhor conhecer
mana e à cidadania, abordando as realidades da
o professor, o estudante Neil Perry, lembrando que
alienação e da exclusão social.
John Keating é um ex-estudante da escola, vai à bi-
blioteca buscar o seu anuário. Descobre então que Questão 2: A partir da letra de música “Ideolo-
o professor era membro da “Sociedade dos Poetas gia”, de Cazuza e Frejat, o estudante deverá buscar
Mortos”. Solicitado pelos estudantes, o novo pro- a concepção de ideologia presente na letra. Ele po-
fessor lhes narra como era a vida desses poetas e derá afirmar que existe uma ideia positiva de ideolo-
qual era o seu lema: Carpe Diem, uma vez que a gia como necessária a todo ser humano, quando os

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compositores afirmam: “Ideologia! Eu quero uma • A natureza da filosofia, que é experiência, atitude
para viver”. Contudo, poderão também refletir so- e saber acessível a todos, realiza-se naqueles que
bre a dimensão negativa ou alienante da ideologia, se colocam na dinâmica de um pensamento refle-
ao mencionarem, entre outras passagens: “Eu vou xivo, crítico, profundo e articulado.
pagar a conta do analista para nunca mais ter de • A filosofia é atitude reflexiva e crítica da cultura, e
saber quem eu sou”. Com essa seção, os estudantes não memorização de informações.
poderão perceber que um mesmo objeto de estudo Questão 3: Considerando fragmentos de
poderá receber diferentes interpretações, alimen- Mearleau-Ponty e Fernando Savater, solicita-se a
tando assim a perspectiva dialética. produção de texto justificando a natureza dialética
Questão 3: Na análise da letra da música “Ad- da filosofia. Nesse contexto, espera-se uma refle-
mirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, estimule os xão na qual constem as seguintes ideias:
estudantes a perceberem os elementos que indi- Considerando a razão como elemento que dis-
cam alienação decorrente de ação de uma ideo- tingue e iguala os humanos, todo indivíduo tem
logia. Sugerimos pensar na homogeneidade e na o poder de filosofar e buscar a verdade, sociali-
manipulação presentes na ideia de “massa”. Po- zando a sua percepção. Por isso, a filosofia não é
de-se associar a ideia de alienação e ideologia ao revelação, atributo divino, nem imposição de um
conceito marxista de mais-valia, a partir da afir- olhar particular. Ao contrário, no diálogo é que se
mação: “É duro tanto ter de caminhar e dar mui- realiza a busca humana e filosófica pela verdade e
to mais do que receber!”. Com a expressão “vida pela sabedoria.
de gado”, pode-se refletir sobre o pertencimento A pretensão de verdade absoluta paralisa o ser
ou ser propriedade de alguém, ter um dono, ser humano. Por isso, a filosofia só se realiza renun-
manipulado. Com a expressão: “[...] a vigilância ciando a coincidir com aquilo que exprime, ou
cuida do normal”, pode-se refletir sobre a ação da seja, negando permanecer aonde chegou. Assim,
ideologia que instaura um reino de normalidade, o movimento dialético é a forma filosófica de ca-
que faz as coisas parecerem normais ou, de modo minhar na busca pela verdade.
mais radical, como naturais. Existem muitas outras
expressões como “à margem”, “nesta cela”, que
Sugestão de atividades
podem ser referências de exclusão e de alienação. complementares
Produção de texto (p. 56-57) Seminário de estudo sobre
a mitologia antiga
Questão 1: Considerando a questão construí-
Uma forma de aproximação ao universo mítico
da a partir da leitura do texto “A filosofia no mun-
é fazer uma classificação dos mitos mais signifi-
do”, de Karl Jaspers, espera-se uma reflexão que
cativos e recorrentes na história da humanidade.
justifique a afirmação: “A filosofia é perturbadora
Os estudantes poderão se inscrever na narrativa
da paz”. Entre os elementos que deverão constar
mítica que gostariam de apresentar e interpretar.
nessa produção de texto, destacamos:
São muitos os temas possíveis: sabedoria, justiça,
Partindo do princípio de que a atitude filosófica
amor, coragem etc. Trata-se de perceber como a
é marcada pela busca (da sabedoria e da verdade)
narrativa mítica apresenta o nascimento e as ca-
e considerando que a verdade é histórica, e que as
racterísticas singulares de cada uma dessas dimen-
interpretações mudam ao longo da vida, a atitude
sões do ser humano.
filosófica não aceita o dogmatismo, nem o confor-
mismo. A filosofia é problematizadora, perturba- Análise da imagem de Atena
dora da passividade. Uma possibilidade de complementação poderia
Questão 2: A questão solicita uma reflexão so- ser a projeção da imagem de Atena, deusa grega
bre a identidade do pensamento filosófico. Entre da sabedoria e da justiça. Sugerimos explorar as
os elementos que deverão constar nessa produção possibilidades que o relato mítico sugere:
de texto, destacamos: • As dores de cabeça de Zeus, enquanto Atena não
• A atitude filosófica, por ser amante da sabedoria, nascia.
é marcada pela constante busca, combatendo ati- • Atena nasce da cabeça, simbolizando a dimen-
tudes dogmáticas. são reflexiva, do conhecimento racional. Palas

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significa donzela, virgem. O simbolismo da deu- liga!”, “até quando!”, “muda!”, “não vê!”, “você
sa sempre virgem, da sabedoria que não se deixa se faz de surdo”, “não vê que é um absurdo!”, “a
corromper. gente muda o mundo na mudança da mente”, “na
• A espada em punho, representando a justiça esta- mudança do presente a gente molda o futuro” etc.
belecida não com base nas emoções ou paixões, Destacamos aqui o convite que os autores fazem
vaidades ou vinganças, mas com a lucidez da razão. com a letra à tomada de consciência, da qual nasce-
• A cabeça de Medusa, rainha das Górgonas, car- rá o sentimento de indignação, que se manifestará
regada no reluzente peitoral de Atena. Essa ima- no compromisso de lutar por um mundo melhor.
gem é muito rica e merece significativa reflexão
sobre a importância da experiência filosófica em Consciência filosófica
nossas vidas, capaz de nos colocar no domínio Formalmente, sobre a construção da consciência
dos nossos monstros interiores, especialmente a filosófica e sua reflexão sobre a multiplicidade de
vaidade, representada pelas serpentes na cabeça temas possíveis, sugerimos dividir a turma em pe-
de Medusa e sob os pés de Atena. Com Atena, o quenos grupos, de três ou quatro estudantes. Cada
risco da perversão espiritual, social e sexual, re- estudante recebe um título ou capítulo de uma obra
presentada pelas Górgonas, está sob domínio. para fazer leitura, análise e apresentação aos cole-
Você poderá desenvolver uma reflexão ou en- gas, em sala.
caminhar uma atividade com os estudantes sobre Sugerimos as obras de André Comte-Sponville
o tema da justiça, o papel do Poder Judiciário e por estarem construídas de forma bastante favorá-
os riscos inerentes ao caminhar da justiça. Des- vel a essa iniciação filosófica:
sa forma, logo no início das aulas de filosofia, os COMTE-SPONVILLE, André. Uma educação filosófica.
estudantes compreenderão a dimensão autoimpli- São Paulo: Martins Fontes, 2001.
cativa da filosofia, sua manifestação encarnada na _____. A filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
vida da pólis. _____. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
Interpretando o simbolismo
da ave de Minerva Outros títulos que podem auxiliar na forma-
Solicite dos estudantes a associação entre a co- ção da consciência filosófica
ruja e a atitude filosófica. Nessa atividade, pode-se BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: o pensa-
destacar, entre outros aspectos: mento filosófico em bases existenciais. 9. ed. São Pau-
• Alçar voo no início do crepúsculo: a filosofia como lo: Globo, 1998.
atitude de recolher o vivido e tentar compreendê- GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da
-lo sistematicamente. história da filosofia. Trad. João Azenha Jr. São Paulo:
• O giro de 180º da cabeça da coruja: a Filosofia e Companhia das Letras, 1995.
a abrangência de olhar. Tudo é objeto de reflexão PERINE, Marcelo. Ensaio de iniciação ao filosofar. São
filosófica. Toda experiência humana merece ser Paulo: Loyola, 2007.
submetida à luz da razão. PRADO JR., Bento. A filosofia e a visão comum do
• A atenção do olhar reluzente da coruja: o olhar e mundo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
o espírito filosófico trazem a marca da vigilância, SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Trad. Mônica
do discernimento, da habilidade crítica, capaz de Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
tecer juízos racionalmente fundados. VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento
grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
Interpretando letra de canção
Sugerimos que os estudantes ouçam a canção Professor(a), embora já deva ter feito avaliações
“Até quando?”, de Gabriel, o Pensador, Tiago Mo- formais ao longo do percurso, agora, no final dessa
cotó e Itaal Shur e comecem a socializar as suas unidade, volte aos descritores previstos no planeja-
percepções. Dessa forma, alimentaremos o nasci- mento inicial de cada eixo. Faça um diagnóstico da
mento do espírito filosófico. Uma das estratégias é aprendizagem construída, especialmente daquela
chamar a atenção para os verbos, tempos verbais e relacionada ao pensamento conceitual, aos concei-
as expressões usadas, por exemplo: “levanta!”, “se tos estruturantes da filosofia previstos.

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Caminhos alternativos e especialmente no sentido de criar novos mitos, ex-
abordagens complementares plorando forças, desejos e medos do nosso incons-
ciente. Nesse processo de criação, aparece uma
Existem muitos outros caminhos por meio dos figura idealizada e exemplar, desencarnada dos pro-
quais se pode construir uma belíssima reflexão sobre blemas comuns à humanidade.
a formação da consciência filosófica. Além das indi- Sugestão de bibliografia para aprofundamento
cações já feitas, sugerimos outras abordagens que teórico sobre a consciência mítica e a cultura
talvez possam ser até mais significativas, conside- das imagens
rando o contexto de sua escola, a realidade de seus
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 2000.
estudantes e sua própria sensibilidade e afinidades. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa:
Conhecimento mítico Relógio d’Água, 1991.
Quanto ao conhecimento mítico, à passagem do BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade.
mythos ao logos e à especificidade da consciência filo- Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
COELHO NETTO, José Teixeira. Moderno pós-moder-
sófica, existem outras estratégias que podem ser exce-
no: modos & versões. São Paulo: Iluminuras, 1995.
lentes meios para cultivar nos estudantes os descritores
DORFLES, Gillo. O devir das artes. São Paulo: Martins
relacionados à experiência e à racionalidade, espera-se
Fontes, 1992.
uma reflexão na qual constem as seguintes ideias:
_____. Novos mitos, novos ritos. Lisboa: Edições
Estudar determinados rituais presentes no ima-
70,1965.
ginário popular, especialmente na região em que os
DUARTE JR. João Francisco. Fundamentos estéticos da
estudantes estudam ou moram. Com essa análise, é educação. Campinas: Papirus, 2002.
possível colaborar com o autoconhecimento da pró- KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc,
pria tradição da comunidade, bem como compreen- 2001.
der a natureza da consciência mítica. MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto
No que se refere aos mitos contemporâneos, Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
bastante diferentes dos mitos primitivos, sugeri- SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. São Paulo:
mos estudar a força dos meios de comunicação, Martins Fontes, 2001.

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UNIDADE 2 – FILOSOFIA GREGA: _____. Apologia de Sócrates. Trad. Jaime Bruna. São
Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores).
ORIGEM, FUNDAMENTOS _____. Diálogos. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
E SISTEMATIZAÇÃO 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores).
_____. Górgias. Trad. Danilo Marcondes. In: Textos bá-
EIXO TEMÁTICO 1 – EXPERIÊNCIA sicos de linguagem. de Platão a Foucault. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar. 2009.
E RACIONALIDADE (p. 60-103) _____. Mênon. Trad. Maura Iglesias. Rio de Janeiro:
Objetivos, descritores específicos e Editora PUC‑Rio; São Paulo: Edições Loyola, 2001.
_____. Protágoras. Adaptado por Olga Pombo. Disponível
conceitos do eixo temático em: <www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protago-
• Conceituar: cosmo, logos, doxa, epistême, dialéti- ras/texto/index.htm>. Acesso em: 19 abr. 2016.
ca, essência, virtude, liberdade, ato e potência, in- _____. Teeteto, 152a. In: Platão. Diálogos: Teeteto.
dução, dedução e falácia. Sofista. Protágoras. v. 1. Trad. Edson Bini. São Paulo:
• Diferenciar o pensamento naturalista do pensa- Edipro. (Clássicos Edipro).
mento mítico. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: filosofia
• Reconhecer as características gerais do pensamen- pagã antiga. v. 1. Trad. Ivo Storniolo. 2. ed. São Paulo:
to pré‑socrático. Paulus, 2004.
• Analisar as diferentes escolas pré‑socráticas. XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates.
• Analisar os temas centrais do pensamento sofístico. Livro II. Trad. Líbero Rangel de Andrade. São Paulo:
• Compreender o humanismo dos sofistas. Nova Cultural, 1987. (Os pensadores).
• Compreender a concepção sofística de virtude.
• Compreender a crítica socrático‑platônica aos sofistas. Outras visões
• Diferenciar o conhecimento em suas dimensões
Filmes
sensível e inteligível.
• Relacionar conhecimento e ética. Matrix. Direção: Lana Wachowski e Andy Wachowski.
• Identificar os campos do saber, em Aristóteles. Estados Unidos, 1999.
• Distinguir validade, verdade e correção. Sócrates. Direção: Roberto Rosselini. Espanha/Itália/
• Compreender argumentos indutivos e dedutivos. França, 1971.
• Compreender valor de verdade.
Canção
• Reconhecer falácias.
• Compreender o quadrado de oposições. Como uma onda, de Lulu Santos e Nelson Motta. O
ritmo do momento. WEA, Rio de Janeiro, 1983. CD.
Recursos a explorar neste Obras de arte
eixo temático Cabeça rafaelesca arrebentada (1951), de Salvador
Fontes para leitura e compreensão de Dalí. Óleo sobre tela, 43 cm × 33 cm.
Demócrito e Protágoras (1664), de Salvatore Rosa.
fragmentos filosóficos
Óleo sobre tela, 185 cm × 128 cm.
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filoso- A morte de Sócrates (1787), de Jacques‑Louis David.
fia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores). Óleo sobre tela, 129,5 cm × 196,2 cm.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro VI. Trad. Leonel A arlesiana: senhora Joseph‑Michel Ginoux (1889), de
Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, Vincent van Gogh. Óleo sobre tela, 91,4 cm × 73,7 cm.
1991. Academia de Platão (séc. I), mosaico de autoria desco-
_____. Metafísica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, nhecida.
2012.
HERÁCLITO. In: Os pré-socráticos: vida e obra. Trad. Desenvolvendo os objetos de estudo
José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, Nesta segunda unidade abordaremos a filosofia
1996. (Os pensadores).
grega, sua origem histórica, seus fundamentos e
JAEGER, W. Paideia. Trad. Artur Parreira. São Paulo:
suas sistematizações, em Platão e Aristóteles.
Martins Fontes, 2001.
Optamos por começar pelo eixo epistemológico
PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Pau-
em vez do eixo antropológico‑existencial. Há duas
lo: Nova Cultural, 2000.
importantes razões para essa escolha. Primeiro, por-

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que estamos no terreno da racionalidade, uma vez para a virtude, retirando os excessos, preenchen-
que estamos na passagem do conhecimento mítico do vazios, em busca do equilíbrio e da harmonia,
para o filosófico. Segundo, porque no pensamento que a tornam bela. Com essa imagem do escultor,
filosófico grego o conhecimento implica uma mu- pode‑se também compreender a teoria das quatro
dança no ser. Saber tem a ver com “ser” e “fazer”. causas em Aristóteles.
Vamos tratar aqui de um eixo bem denso e extenso, Nesta obra, a dialética é apresentada como mé-
que deverá ser trilhado e assimilado sem pressa. todo socrático‑platônico que caminha na direção
Inicialmente, deveremos considerar o contexto de das ideias, em busca das essências, por meio do
emergência do pensamento filosófico na Grécia. Su- conflito de diferentes pontos de vista. Nesse ca-
gerimos concentrar‑se na estrutura e na dinâmica da minhar, o momento da ironia é ressaltado como
pólis grega, especialmente a consideração da ágora ponto de partida, como estratégia de negação dos
(a praça central) e a acrópole (a cidade alta). Nesse preconceitos, das certezas dogmáticas que ainda
contexto, deve‑se abordar a passagem da aristocra- não foram submetidas ao crivo da razão. Dessa for-
cia para a democracia. Sugerimos realizar uma abor- ma, “a razão negativa” pode ser percebida tanto
dagem sobre os primeiros códigos legais e os primei- no procedimento dialético, quanto na consciência
ros legisladores da pólis grega: Drácon e Sólon. da ignorância como ponto de partida que alimenta
No segundo tema “Os primeiros filósofos: na- a busca pelo saber das essências.
turalismo pré‑socrático”, abordaremos propria- No estudo do sétimo tema, explore a imagem
mente o início histórico do pensamento filosófico da página 82 com os estudantes: em que sentido
na cultura ocidental: o nascimento da primeira for- essa criança está diante da possibilidade do espan-
ma de filosofia, a passagem da visão mítica para a to? Ao colocar ou bater com as mãos na água, o
filosófico‑científica. Sugerimos que proponha aos que acontecerá na água? E na mente do garoto, o
estudantes dispor essas duas formas de pensamen- que poderá despertar?
to paralelamente. Também seria interessante que
a abordagem do pensamento pré‑socrático ou na- Discussão das atividades propostas
turalista, que marca os princípios da ciência entre Problematizando (p. 65)
nós, seja feita em diálogo interdisciplinar com a Fí- Questão 1: Solicita‑se dos estudantes a re-
sica, a Matemática, e a Química. flexão sobre os primórdios da ciência no mundo
Embora haja muitas escolas e pensadores na- ocidental, buscando nos pré‑socráticos essa fun-
turalistas, consideramos que a ênfase desse estu- dação. Espera‑se uma reflexão que aborde a mu-
do deva concentrar‑se na dialética, no conflito dos dança de perspectiva e de referência na explica-
contrários. A maior tensão deve acontecer entre o ção da origem do mundo, bem como da atitude
pensamento representado por Parmênides e por investigativa, que vai se afastando da perspectiva
Heráclito. Contudo, é possível solicitar aos estu- mítico‑religiosa e assumindo uma perspectiva dis-
dantes uma pesquisa mais aprofundada de cada cursiva, argumentativa, lógico‑racional, em busca
escola de pensamento. Afinal, estamos diante do das causas naturais.
começo da ciência.
É importante salientar que os temas cinco e seis Problematizando (p. 69)
apresentam‑se como centrais neste eixo temático. Solicita‑se a problematização do posicionamento
Você deverá pensar na melhor forma de os estu- de Parmênides, da imutabilidade do ser. Sugerimos
dantes assimilarem bem todo o conteúdo envol- ao professor relacionar essa problematização com a
vido na alegoria da caverna, que será interpreta- seção Outros olhares da mesma página, que traz a
da epistemológica e politicamente, em momentos letra de música “Como uma onda”, de Lulu Santos
didaticamente separados. Verifique a possibilidade e Nelson Motta. Espera‑se do estudante uma habi-
de a sala de aula poder ser escurecida, deixando lidade argumentativa. Ele poderá referir‑se à ideia
somente uma pequena entrada de luz. Com essa de essência como algo imutável e que constitui a
ambientação, possibilite aos estudantes o conheci- identidade do ser. Nesse sentido, os acidentes ou
mento dessa alegoria. as aparências que mudam não alteram essa identi-
Servir‑se também da imagem de um escultor dade. O estudante, contudo, poderá contrapor‑se,
para construir a compreensão do processo de edu- argumentando a favor da impossibilidade da per-
cação da alma humana, que vai sendo lapidada manência de algo, posto que tudo é mudança.

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Produção de texto (p. 70) verão posicionar‑se quanto ao valor pedagógico e
Questão 1: Sugerimos solicitar aos estudantes a educativo desse procedimento. Como estratégia
produção de um texto sobre as características gerais argumentativa, o estudante poderá posicionar‑se
da primeira forma de filosofia. Nesse tipo de ques- favoravelmente ao procedimento, prescindindo do
tão, espera‑se a presença dos seguintes elementos objetivo que esse procedimento tinha na ação dos
no texto produzido pelo estudante: sofistas. Considerando somente sob a perspectiva
de derrubar argumentos, esse procedimento pode-
• As dimensões que marcam o pensamento mítico
rá ser avaliado positivamente, uma vez que servirá
são a intuição, a narrativa, a crença, o princípio da
de auxílio para o fortalecimento de argumentos.
autoridade, a acolhida passiva e acrítica.
Contudo, considerando o objetivo voltado exclu-
• Em contrapartida, a primeira forma de filosofia
caminha na direção de um pensamento científico, sivamente para desacreditar o oponente, o proce-
argumentativo, demonstrativo da busca por rigor dimento poderá ser falacioso e ter o seu aspecto
racional, que não admite contradições presentes na pedagógico questionado.
narrativa mítica. Problematizando (p. 74)
• É característica do pensamento mítico buscar a ori-
gem dos fenômenos e das realidades nas alianças Questão 1: Na problematização encontramos
ou rivalidades entre os deuses. Em contrapartida, a duas demandas. Inicialmente, a partir de um frag-
filosofia pré‑socrática (naturalista) busca a origem mento do pensamento socrático‑platônico, os estu-
de tudo em algum elemento da natureza, superan- dantes terão que identificar as críticas e a distinção
do a característica mítica da personificação e do entre filosofia e sofística. Merecem destaque aqui
antropomorfismo. a distinção entre essência e mutabilidade, gratuida-
• A filosofia naturalista tem como objetivo encontrar de e interesse, verdade e opinião, respectivamente.
o princípio racional explicativo (arché e logos) da A segunda demanda refere‑se a uma avaliação da
origem e do movimento dos corpos, não aceitando postura relativista. Se ela poderia ser interpreta-
permanecer no recurso a forças divinas. da com sabedoria ou como individualismo e indi-
Questão 2: Solicita‑se a justificativa da afirma- ferença. Essa problematização estaria relacionada
ção: “O conflito é o pai de todas as coisas”. Su- aos pressupostos envolvidos. Sob uma perspectiva
gerimos abordar o tema da ordem e da desordem racionalista, de uma verdade universal, esse proce-
no movimento que propicia a constituição das dimento será muito criticado. Sob a perspectiva da
realidades, segundo os pré‑socráticos. Nesse tipo interpretação subjetiva, esse procedimento poderá,
de reflexão, espera‑se a presença dos seguintes inclusive, favorecer o diálogo e combater posturas
elementos: dogmáticas. Estimule o poder ou a força argumen-
• Para os filósofos da natureza, era muito viva a cons- tativa dos estudantes.
ciência de que a vida é movimento. Por isso, o cons-
Produção de texto (p. 74)
tante juntar‑se e separar‑se que origina o novo.
• Assim, a desordem é movimento que gera nova Questão 1: Considerando a questão construída
forma de vida. a partir do lema de Protágoras, solicita‑se explicação
• A ideia de harmonia expressa a dinâmica união dos desse princípio, relacionando‑o com a concepção
contrários. sofística de “virtude”. Espera‑se uma reflexão na
• A noção de crise ou desordem como oportunidade qual constem as seguintes ideias:
que a vida oferece. • Cada pessoa estabelece a medida de cada coisa, e
• A necessidade da desordem como força motriz não mais os deuses ou a natureza.
para nova ordem. • Virtude é a arte e a habilidade, adquiridas por meio
• A desordem traz em si uma potencialidade de cres- do ensino, de persuadir pela oratória e retórica.
cimento e amadurecimento. • O virtuoso é aquele que consegue persuadir o inter-
Problematizando (p. 73) locutor e fazer valer a sua medida, impor o seu olhar.

Questão 1: Na problematização, o objeto de Problematizando (p. 77-78)


estudo está na erística dos sofistas, procedimen- Questão 1: Na problematização está em foco o
to vinculado a oratória, com o simples objetivo processo de condenação de Sócrates, fazendo refe-
de desacreditar os oponentes. Os estudantes de- rência a algumas acusações. Estimule os estudantes à

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reflexão sobre os reais motivos, na visão de Sócrates e Problematizando (p. 81)
de Platão, que estariam subjacentes a essa acusação:
Questão 1: Na problematização há dois aspectos
o não reconhecimento da própria ignorância, a vergo-
sendo solicitados. Inicialmente, os sentidos nos enga-
nha de ver sua pretensa sabedoria ser desmascarada
nam ou a mente se engana ao considerar os sentidos
em público etc. Sócrates foi acusado de corromper a
como a fonte de conhecimento verdadeiro? Nessa re-
juventude. Como o texto de Xenofonte problemati-
flexão, estimule os estudantes a perceberem a forma de
za essa crítica? Sócrates estimulava a vida reflexiva e
raciocinar do racionalismo platônico. Nessa concepção,
a formação de pessoas virtuosas. Se achar adequa-
na busca pela verdade, deve‑se prescindir dos sentidos.
da, relacione a tela A morte de Sócrates (1787),
de Jacques‑Louis David aos estudos dos motivos ale- Questão 2: No segundo aspecto dessa proble-
gados para a condenação de Sócrates. matização o estudante deverá justificar a afirmação
de que o procedimento dialético é possível para
Produção de texto (p. 78) quem está acima do nível do senso comum. Entre
Questão 1: Considerando a questão que solicita os argumentos possíveis, espera‑se a presença da
um estudo comparativo da filosofia e do método reflexão ao fato de o senso comum ser marcado
socrático‑platônico em relação à concepção e ao pela multiplicidade, pelas aparências, pelo ir e vir
método dos sofistas, espera‑se a presença das se- sem consistência. Em contrapartida, o procedimen-
guintes ideias no texto produzido pelos estudantes: to dialético pressupõe postura filosófica, capaz de
captar o que permanece, a essência das coisas.
• A primeira grande crítica dos filósofos gregos clássi-
cos se refere ao fato de os sofistas não terem com- Produção de texto (p. 82)
promisso com a verdade, mas apenas com o que é
Questão 1: Considerando a questão que solicita
mais conveniente, útil e pragmático.
• Oposição ao relativismo sofístico. a identificação do objetivo e descrição do caminho
• A virtude não é algo prático, que possa ser ensinado da educação, segundo Platão, espera‑se uma refle-
da exterioridade, mas uma atitude resultante de um xão na qual constem as seguintes ideias:
esforço pessoal de autodomínio e controle das pai- • O caminho da educação consiste na condução (ele-
xões, a partir do conhecimento da essência das coisas. vação) das pessoas ao conhecimento da verdade,
• O método do diálogo e da dialética não deve ter do bem, do belo, do justo. Para tanto, o método
por objetivo convencer o outro ou fazer valer o seu será a dialética. Inicialmente, é preciso abandonar
olhar sobre o olhar do outro, mas levar o outro a as ilusões dos sentidos, as crenças e as opiniões e
alcançar a verdade por méritos próprios. ascender. Processo que ocorre progressivamente
• Na busca pela verdade, o conhecimento é comunhão por meio do raciocínio que as ciências nos propor-
com a divindade, por isso essa busca deve ser gratuita cionam. Dessa forma, chegaremos à intuição inte-
(combatendo a atitude mercenária dos sofistas). lectiva da verdade, possibilitada pela dialética, que
• Entre os objetivos da filosofia socrática deve cons- busca a essência de algo.
tar a busca pelo logos, pela razão de ser, pela es- • A alegoria da caverna é uma ilustração desse pro-
sência da coisa buscada, seu conceito. cesso de reviravolta do olhar, de sair das sombras e
• Entre os pressupostos socráticos, destacam‑se a virar‑se em busca do sol.
crença na racionalidade humana e na racionalidade • Essa reviravolta em busca do sol, do conhecimento
inerente à coisa, que pode ser percebida pela razão da verdade, implicará também a grande reviravolta
humana. Assim, o real é racional, e o homem é es- na vida da pessoa, deixando a vida viciada e assu-
sencialmente um ser capaz de conhecimento. mindo a vida da virtude.
• Considerando que o objetivo a ser buscado é o con- • Em todo ser humano existe a possibilidade do co-
ceito, o caminho seguramente deverá ser indutivo e nhecimento, essa possibilidade não é jamais intro-
dialético, uma vez que são formas construtivas de duzida por alguém. O conhecimento é resultado do
novo saber, por meio da superação de opiniões que esforço pessoal de buscar a luz, que existe em si.
não se sustentam racionalmente.
• O caminho do diálogo é o meio filosófico por ex-
Problematizando (p. 83)
celência, uma vez que os pressupostos básicos afir- Questão 1: O espanto como experiência exis-
mam que a filosofia não é uma revelação, que “não tencial é fundamental para que a atitude e o saber
é dogmática nem impositiva”, mas permanente filosófico possam acontecer, uma vez que ela repre-
busca intersubjetiva. senta o estranhamento, a atitude de distanciamento

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crítico, a capacidade e a habilidade de ver o mundo a mente humana pode saber o que o certo, mas,
com novos olhos. mesmo assim, concordar com uma decisão que vai
Questão 2: O que diferencia um filósofo de um na direção contrária. Estimule os estudantes a se
ignorante é a consciência da própria ignorância. A posicionarem argumentativamente.
consciência de uma falta é condição prévia necessá-
ria para existir a atitude da busca.
Problematizando (p. 88)
Questão 3: Sobre a possibilidade de haver pes- Questão 1: Estimule o estudante a perceber a
soas que não manifestam a capacidade de estra- relação que pode existir entre a ideia de motor imó-
nhamento, de distanciamento crítico, de espanto, vel e a visão cristã de Deus. Um dos aspectos da vi-
de maravilhamento etc., estimule os estudantes são cristã de Deus é a perfeição, que implica a ideia
a perceberem que a capacidade é inerente ao ser de imutabilidade, de não mudança, de ser supremo,
humano, mas que ela poderá estar anestesiada inteligência suprema que tudo governa.
por várias razões: ações de ideologias alienantes,
falta de oportunidade de acesso a uma reflexão Produção de texto (p. 88)
crítica etc. Questão 1: Considerando a questão que soli-
Questão 4: Para ajudar a entender o que seria a cita a explicação do sentido em que é aceitável a
intuição intelectiva em Platão, pode‑se estabelecer um afirmativa da inutilidade da filosofia, espera‑se que
paralelo com o estudo de física, por exemplo. Após as seguintes ideias sejam desenvolvidas na produ-
um longo processo de raciocínio muito estudado, em ção textual:
um momento específico, acontece uma “luz”, uma • Sendo todos os homens naturalmente propensos
iluminação interior, na qual o intelecto parece captar a ao saber, a busca pelo conhecimento é algo que
essência do que estava sendo perseguido. brota espontaneamente do ser humano.
• Sendo a filosofia a busca pelo conhecimento, ela
Produção de texto (p. 83) realiza a razão de existir do ser racional.
• Assim, existe uma gratuidade, uma espontaneida-
Questão 1: Considerando a questão que solicita
de e uma inutilidade do saber filosófico, por ser
uma justificativa para o fato de a busca filosófica ser
teorético, por buscar essências, razões de ser. Nisso
inconclusiva, a partir da consciência da ignorância,
a filosofia se diferencia de outros saberes práticos,
os seguintes elementos devem aparecer na produ-
como a engenharia e a medicina, por exemplo.
ção textual dos estudantes:
• Considerando que o ser humano apresenta como
• O despertar da atitude filosófica é marcado pelo elemento específico sua natureza racional, desen-
espanto admirativo que permite pensar na ideia So- volver essa racionalidade deve ser o objetivo da
crática de consciência da ignorância. vida. Por isso, a filosofia, saber por excelência dedi-
• Os seres humanos desejam naturalmente conhecer. cado a essa tarefa, não terá outra finalidade práti-
E, com isso, busca‑se superar a ignorância e cami- ca. Nesse sentido, pode‑se afirmar que ela é inútil,
nhar para o conhecimento. pois traz em si mesma sua finalidade. Desenvolver
• A consciência do não saber é condição prévia para a mente deve ser o fim primeiro do ser humano.
a busca. Assim, explicam‑se os termos que com-
põem a palavra filosofia: amigo do conhecimento, Atividades (p. 101-102)
amigo da sabedoria, amigo do conceito; aquele
Questão 1: O elemento consequente está sub-
que ama buscar o objeto de seu desejo.
linhado.
Problematizando (p. 85) a. Considerando que ninguém nasce criminoso e
ninguém tem o direito de tirar a vida de alguém,
Questão 1: As afirmações referem‑se ao finalis- a pena de morte deve sempre ser condenada.
mo moral em Sócrates, no sentido de que o saber b. Uma vez que toda pena tem por objetivo a cura
implica em ser e em fazer. Saber o que é a justi- e a ressocialização do indivíduo, a pena de mor-
ça é condição necessária e suficiente para fazer a te traz uma contradição em si mesma.
justiça e tornar‑se um homem justo. Nessa proble- c. O racionalista é quem defende a existência de
matização, será preciso distinguir explicitamente a verdades universais. Considerando que o pro-
concepção socrática, que difere radicalmente de fessor defende a existência de verdades univer-
visões posteriores, que passaram a perceber que sais, ele é um racionalista.

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d. Pedro, porque foi pego dirigindo alcoolizado e • Todo vertebrado é um mamífero. Gato é mamífero.
teve a carteira de motorista apreendida. Logo, gato é vertebrado.
e. Débora brinca com as palavras. Considerando • Todo baiano é brasileiro. Luciana é brasileira. Logo,
que todo filósofo brinca com as palavras, Débo- Luciana é baiana.
ra pode ser uma excelente filósofa. • Impossível.
f. Por terem sido, historicamente, excluídos do Questão 4
ensino superior, o sistema de cotas para estu- a. Nenhum vereador atua junto à comunidade.
dantes de escolas públicas é uma questão de b. Algum banqueiro é honesto.
justiça social. c. Alguma lei não é justa.
g. Grande parte dos estudantes brasileiros frequen- d. Alguma forma de preconceito é não discrimina-
ta faculdades particulares, pois não há vagas para tória.
todos os estudantes em universidades públicas.
Questão 5
h. Considerando que aquele que espera nada faz,
a. Algum estudante não vai entrar na universidade.
e considerando que a felicidade é a ativa atitude
b. Algum belo‑horizontino é não atleticano.
de busca, a felicidade só existe no desespero.
c. Todo brasileiro é fanático por futebol.
i. Quem espera nada alcança, porque a conquista
d. Não existe bicicleta de três rodas.
é resultado da busca.
e. Algum carioca é não brasileiro.
Questão 2 Questão 6
a. Todo assassinato é crime. E todo crime deve ser (V) Nenhum mamífero é invertebrado. Gatos são
condenado. Por isso, todo assassinato deve ser mamíferos. Logo, gatos são vertebrados.
condenado. (dedutivo)
(V) Alguns políticos são honestos. Logo, nem todos
b. Maria foi curada da labirintite tomando o re-
os políticos são desonestos.
médio “Ouvir”. Pedro foi curado da labirintite
(V) Todas as verdades são relativas. Logo, não há
tomando “Ouvir”, portanto Priscila deverá ficar
verdades absolutas.
curada com o remédio “Ouvir”. (indutivo)
c. A maioria dos estudantes declarou que votará a (V) Todos os paulistas são palmeirenses. Telê era
favor da chapa Revolução. Logo, a chapa Revo- paulista. Logo, Telê era palmeirense.
lução vai vencer a eleição. (indutivo) (I) Todo brasileiro adora Carnaval. Obama não é
d. Países pouco desenvolvidos apresentam princi- brasileiro, portanto, não adora Carnaval.
palmente altas taxas de insuficiência alimentar e (I) Alguns estudantes passaram na prova do Enem.
analfabetismo. O Haiti apresenta altas taxas de Logo, alguns estudantes não passaram na prova
insuficiência alimentar e analfabetismo. Logo, é do Enem.
um país pouco desenvolvido. (indutivo)
e. Lojas Fiori tem direito a decretar falência porque Sugestão de atividades complementares
constitui uma grande rede de lojas, e toda gran- Sugerimos ao colega professor concentrar algu-
de rede de lojas tem direito a decretar falência. mas estratégias de trabalho na tensão entre Herácli-
(dedutivo) to e Parmênides, pensadores que serão retomados
Questão 3 nas reflexões de Platão. Em torno desses dois pen-
a. É aquele argumento no qual é impossível as samentos, concentra‑se a maior tradição das escolas
premissas serem verdadeiras e a conclusão ser pré‑socráticas. A tensão aqui representada acompa-
falsa. Dito de outra maneira, a mesma circuns- nhará toda a história da filosofia e toda a trajetória
tância que torna a premissa verdadeira torna do pensamento, nos âmbitos antropológico, episte-
também a conclusão verdadeira. mológico, ético e político.
b. Denominamos argumento correto o argumento Os conceitos de essência e aparência, de dialética
válido, com premissas verdadeiras e conclusão e de crise merecem especial atenção. Uma profunda
verdadeira. análise sobre eles será decisiva para a construção da
c. Não. Argumentos não são verdadeiros nem fal- inteligência que buscamos, ou seja, do pensamento
sos, mas válidos ou inválidos. complexo.
• Todo catarinense é brasileiro. Beto é catarinense. Ao propor uma questão sobre Heráclito, espera‑se
Logo, Beto é brasileiro. a presença das seguintes ideias:
• Todo paulista é latino. Nina é paulista. Logo, Nina • A verdade se encontra no devir, pois tudo é mo-
é latina. vimento incessante. Nada permanece o mesmo. A

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vida é o movimento dos contrários. Contudo, há um formas possíveis de abordagem é a divisão da turma
logos, uma lógica que governa o mundo. Essa lógi- em pequenos grupos a fim de que cada grupo es-
ca, porém, não é captável pela inteligência humana. tude e apresente uma das diversas escolas naturalis-
Somente Deus tem ciência da essência do mundo. tas. Trata‑se de um estudo histórico, com o objetivo
• Heráclito defendia o permanente movimento e afir- de cultivar a consciência sobre a origem das ciências
mava que o conflito dos contrários é a força motriz e a diferenciação da forma filosófica e científica de
de toda a realidade. Para Heráclito, a natureza é a pensar em relação ao pensamento mítico.
vida dos contrários. Nela, as diferenças se harmoni- Caso deseje promover uma ampla visão históri-
zam. Contudo, essa harmonia é mantida sob ten- ca dos caminhos da ciência, é possível, nessa abor-
são, pois os contrários tendem a se separar, geran- dagem histórica, incumbir um dos grupos de de-
do movimento de superação. Tudo nasce da luta.
senvolver o tema “Cosmologia antiga e medieval”.
Considerando uma questão que solicite a iden- Outro grupo poderá abordar o tema “A ciência na
tificação dos objetivos da filosofia socrática, com a Renascença e a revolução científica moderna”. Um
explicitação de seus pressupostos, e a relação com terceiro grupo ficará encarregado de pesquisar so-
o método escolhido, espera‑se uma reflexão na qual bre o contemporâneo princípio da falseabilidade,
constem as seguintes ideias: em Karl Popper.
• Entre os objetivos da filosofia socrática deve cons-
Caminhos da lógica
tar a busca pelo logos, pela razão de ser, pela es-
sência da coisa buscada, seu conceito. Nos caminhos da lógica, propomos algumas ou-
• Entre os pressupostos, destacam‑se a crença na ra- tras estratégias que serão muito úteis para a forma-
cionalidade humana e na racionalidade inerente à ção do pensamento lógico:
coisa, que pode ser percebida pela razão humana. • Organizar os estudantes em duplas ou trios. Cada
Assim, o real é racional, e o homem é essencial- grupo deverá estudar, exemplificar e apresentar
mente um ser capaz de conhecimento. uma falácia ou grupo de falácias muito comuns na
• Considerando que o objetivo a ser buscado é o con- atualidade. As falácias são raciocínios incorretos,
ceito, o caminho seguramente deverá ser indutivo e mas com aparência de correção. As falácias podem
dialético, uma vez que são formas construtivas de ser classificadas como formais e não formais.
novo saber, por meio da superação de opiniões que • Insistimos na necessidade de que sejam realizados
não se sustentam racionalmente. muitos exercícios sobre argumentos válidos e invá-
• O caminho do diálogo é o meio filosófico por ex- lidos, dedutivos e indutivos.
celência, uma vez que os pressupostos básicos afir- • Sugerimos uma ampla e profunda atividade integra-
mam que a filosofia não é uma revelação, que “não da com Matemática no estudo da lógica moderna,
é dogmática nem impositiva”, mas uma permanen- lógica simbólica, lógica proposicional. Essa parte da
te busca intersubjetiva. lógica encontra‑se na unidade dedicada à filosofia
moderna, no eixo Experiência e racionalidade.
Professor(a), embora você já deva ter feito ava-
liações formais ao longo do percurso, agora, no Sugestão de leitura para
final desse eixo temático, retome os descritores aprofundamento teórico
previstos no planejamento inicial. Faça um diag- BENOIT, Hector. Sócrates: o nascimento da razão nega-
nóstico da aprendizagem construída, especialmen- tiva. São Paulo: Moderna, 2006.
te daquela relacionada ao pensamento conceitual,
aos conceitos estruturantes da filosofia previstos Projetos interdisciplinares de
para esse eixo. reflexão filosófica
A formação do pensamento científico
Caminhos alternativos e
Considerando a temática das escolas pré‑socráti-
abordagens complementares
cas, podemos construir a reflexão em torno do início
Os pré-socráticos da ciência na cultura ocidental. Por isso, é possível
O estudo dos pré‑socráticos ou primeiros filóso- desenvolver um projeto integrado com as Ciências
fos da natureza pode ser feito de forma interdisci- da Natureza com o objetivo de compreender o pro-
plinar com as Ciências da Natureza para buscar os cesso de formação da metodologia e do pensamen-
princípios da nossa área de conhecimento. Uma das to científicos.

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Sugestão de leitura inicial para o Análise de filme
desenvolvimento desse projeto Temática: Alegoria da caverna
KNELLER, George F. A ciência como atividade humana. Filme: Matrix (Estados Unidos, 1999).
São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Zahar, 1980. Gênero: Ficção científica.
O poder da palavra Diretor: Lana Wachowski e Andy Wachowski.
Os sofistas eram especialistas na arte do uso da Duração: 136 minutos.
palavra. Sugerimos a realização de um projeto in- Análise: Este filme é um excelente recurso para
terdisciplinar sobre o poder e as funções da palavra. explorar a intuição platônica da visão de mundo,
Seguem abaixo algumas questões iniciais para nor- na qual encontramos a caverna dos adormecidos e
tear a pesquisa: a luz do sol dos que acordaram para a verdadeira
• Que relação pode haver entre palavra e realidade? realidade. A partir desse filme, pode‑se desenvolver
• A palavra expressa alguma verdade? uma profunda reflexão sobre a nossa visão de mun-
• Que funções a palavra pode desempenhar? do, sobre o que há de errado em nossa realidade,
• Nos discursos políticos, qual é o uso predominante suas ilusões, sensações de realidade etc.
da palavra?
• Quais são as principais figuras de linguagem usadas
em discursos políticos?
EIXO TEMÁTICO 2 – CONDIÇÃO
• Persuadir consiste tanto em agradar como em con- HUMANA (p. 104-115)
vencer?
• A palavra deve necessariamente vir acompanhada Objetivos, descritores específicos e
pela atitude exemplar? conceitos do eixo temático
• Analisar a antropologia platônica.
O real e o virtual
• Analisar a antropologia aristotélica.
Com base no pensamento platônico, pode‑se • Compreender a tripartição da alma.
desenvolver um projeto com o objetivo de com- • Compreender a relação entre virtude e felicidade.
preender as modalidades reais e virtuais do mundo. • Compreender a felicidade como eudaimonia em
Entre as questões norteadoras da reflexão filosófica, Aristóteles.
sugerimos inicialmente:
• O real e o virtual podem ser modalidades de uma Recursos a explorar neste eixo
mesma realidade? temático
• Considerando que o termo virtual é um termo po-
lissêmico, quais são suas possíveis abrangências?
Fontes para leitura e compreensão de
• De que modo o “mundo virtual” interfere nas rela- fragmentos filosóficos
ções humanas? ARISTÓTELES. A política. Livro II. Trad. Roberto Leal
• As novas tecnologias da informação e da comuni- Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
cação são instrumentos neutros ou sua presença já _____. Ética a Nicômaco. Livro I. Trad. Leonel Vallandro
é um indicativo de alguma realidade ou interesse e Gerd A. Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
específicos? (Os pensadores).
PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo:
Entre as fontes iniciais de pesquisa, indicamos o
Nova Cultural, 2000. (Os pensadores).
filme Matrix, de Lana Wachowski e Andy Wachowsky
_____. O banquete. Trad. Danilo Marcondes. In: Textos
e as seguintes referências bibliográficas:
básicos de filosofia: dos pré‑socráticos a Wittgenstein.
DAVIDOW, W.; MALONE, M. A corporação virtual. São 3. ed. Zahar: Rio de Janeiro, 2000.
Paulo: Pioneira, 1993.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Outras visões
Paulo: Unesp, 1991.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. Obras de arte
_____. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1996. Eros e Psiquê (1794), de Antonio Canova. Escultura em
SOUZA, Renato Rocha. O que é, realmente, o virtual? gesso, 134,6 cm × 81,3 cm.
Disponível em: <www.ccuec.unicamp.br/revista/info- Ilustração representativa da alegoria do cocheiro, de
tec/artigos/renato.html>. Acesso em: 14 maio 2016. Platão.

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Fotografia Questão 2: A segunda demanda dessa proble-
Grupo se apresenta em festa do Maracatu rural em matização refere‑se ao ideal da vida contemplativa,
Nazaré da Mata (PE), 2014. teorética. Nessa concepção, a filosofia é o saber
das essências, que realiza a natureza racional do
Artigo científico
ser humano.
PRADO, R. M.; FLEITH, D. S.; GON ALVEZ, F. C. O
desenvolvimento do talento em uma perspectiva fe- Problematizando (p. 112)
minina. In: Psicologia: Ciência e Profissão. v. 31, n. 1, Questão 1: No tema da felicidade como fim últi-
2011. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?pi- mo, a problematização considera a ideia aristotélica
d=S1414‑98932011000100012 script=sci_arttext>. de que todas as ações humanas visam a um bem.
Acesso em: 19 abr. 2016.
Todo fim pretendido é um bem? Aqui cabe uma
atenção especial, para evitar anacronismo, para ler
Desenvolvendo os objetos de estudo
o texto em seu contexto. Será que alguém é capaz
Nossa reflexão sobre a antropologia grega clássi- de fazer intencionalmente algo mau? Ou o que ele
ca considerará a tripartição da alma no pensamento faz é feito porque julga ser um bem? Nesse caso,
socrático‑platônico. Essa reflexão antropológica po- ele estaria na ignorância? Caberia então a educação
derá ser relacionada à concepção política, das castas entrar em cena?
ou grupos sociais, cada uma delas com a sua virtu-
de e a sua função social. Outro elemento essencial Outros olhares (p. 112)
da antropologia grega consiste na inquietude da Questão 1: Nesta seção, a concepção aristotéli-
alma humana, que busca o conhecimento, o bem ca de virtude poderá ser lida à luz da psicologia. Es-
e o belo. Nessas buscas, Aristóteles estabelece a fe- timule o pensamento dos estudantes sobre a ideia
licidade, eudaimonia, como fim último, ao qual os de potencialidade, da abertura humana para múl-
demais fins estarão subordinados. tiplos dons, necessitados do cultivo, para virarem
virtude, para tornarem‑se talentos ou habilidades
Discussão das atividades propostas adquiridas.
Problematizando (p. 108) Produção de texto (p. 113)
Questão 1: Nesta problematização fundamenta-
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
da na teoria das três almas presente no pensamen-
constem as seguintes ideias na produção textual do
to platônico, ao se deparar com a expressão “Esse
estudante:
cara não gosta de estudar”, solicita‑se do estudante
• Para bem agir, o ser humano deve conhecer a es-
uma reflexão sobre a natureza humana e seus con-
sência das coisas.
dicionamentos. Será que essa expressão se refere de
• Toda ação humana tende a um fim, a um objetivo.
fato a uma dimensão da natureza daquele indivíduo
Por isso, há muitos bens, muitos fins, muitas finali-
ou será que isso é somente um juízo particular? Ou
dades a que as ações humanas se direcionam.
isso ainda é parcialmente verdadeiro, consideran- • No caminhar, o que pode ter sido um fim (ganhar
do o histórico daquele indivíduo, de seus possíveis dinheiro) torna‑se um meio para outro fim maior
traumas relacionados ao ensino e à aprendizagem. (por exemplo, viajar), que passa a estar subordina-
Pode‑se argumentar com a afirmação de Aristóteles, do a outro fim maior ainda. Contudo, essa sequên-
vista no eixo anterior, quando reflete, na abertura cia não vai ao infinito. Há um fim ou bem supre-
da obra Metafísica, que todos os indivíduos desejam mo para o qual todos os bens tendem: a felicidade
naturalmente o saber. (eudaimonia = boa consciência, vida racionalmente
conduzida). Dessa forma, ninguém pergunta “você
Problematizando (p. 109)
deseja ser feliz para quê”?
Questão 1: Na problematização encontram‑se • Embora haja condições prévias necessárias para a
duas demandas. Inicialmente, sobre o movimento do vida feliz, a felicidade é autossuficiente.
amor, do amante, em sua busca pelo amado. Belo
Problematizando (p. 114-115)
não é o amor ou o amante, mas o amável, que é
buscado. Nesse pensamento platônico, cada objeto Questão 1: Solicita‑se, em primeiro lugar, um
belo é belo porque participa da beleza, faz referência olhar sobre a presença de escravos na sociedade
à beleza essencial. grega. É importante recordar com os estudantes o

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saber prévio sobre os cidadãos e os excluídos da ci- • Qual é a diferença entre necessidade e desejo?
dadania na Grécia Antiga; entre os últimos encon- • Quais são as motivações do agir humano?
tram‑se os escravos, que muitas vezes eram estran- • O que move o ser humano? É seu afeto? Seu afeto
geiros que foram feitos prisioneiros em tempos de é o seu interesse?
guerra. Naquela sociedade, eles eram muito impor-
Sugestão de fontes e bibliografia inicial para
tantes para realizar os trabalhos braçais, a serviço de
o desenvolvimento desse projeto
seus senhores.
Questão 2: No segundo bloco de problemati- Livros
zações aborda‑se o tema da sociabilidade humana. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro
Inicialmente, o poder ou o papel da educação, res- e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os
ponsável por proporcionar ciência ou conhecimen- pensadores).
to. Com o conhecimento, o ser humano conseguiria EPICURO. Carta sobre a Felicidade (a Meneceu). Trad. Álva-
tornar‑se um cidadão melhor para a pólis, discernin- ro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Unesp, 2002.
do a justiça da injustiça, aprendendo a lutar contra a Poema
impulsividade passional. ANDRADE, Carlos Drummond de. Amor e seu tempo.
Aristóteles serve‑se da metáfora do corpo e dos In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1988.
membros para mostrar a relação entre ética e polí-
Vídeo
tica, entre indivíduo e cidade. Quanto melhor for o
TIBURI, Márcia. Felicidade? Disponível em: <www.youtube.
caráter do indivíduo melhor será a cidade.
com/watch?v=jjAkH0yxPcE>. Acesso em: 15 maio 2016.
Sobre a política grega, Hannah Arendt afirma ser
o espaço da liberdade, da não necessidade e da não Professor(a), ao final desse eixo temático, volte
violência. Essa concepção permanece atual? A polí- aos descritores previstos no planejamento inicial.
tica é o lugar da realização do cidadão? Estimule a Faça um diagnóstico da aprendizagem construída,
reflexão dos estudantes sobre o sentido etimológico especialmente daquela relacionada ao pensamento
de política, a natureza social ou política do ser hu- conceitual, aos conceitos estruturantes da filosofia
mano, o individualismo moderno e contemporâneo, previstos para esse eixo.
a paixão ou a apatia política presentes na sociedade
contemporânea etc. EIXO TEMÁTICO 3 – ÉTICA
E POLÍTICA (p. 116-125)
Caminhos alternativos e
abordagens complementares Objetivos, descritores específicos e
conceitos do eixo temático
Projeto interdisciplinar de reflexão
• Analisar a emergência da democracia na Grécia
filosófica • Analisar a concepção platônica de justiça.
A virtude ética da felicidade • Compreender a ética e a política aristotélica.
• Caracterizar diferentes formas de governo.
Considerando a antropologia grega e helenísti-
• Confrontar sophocracia e democracia.
ca, especialmente a aristotélica, pode ser bastante • Relacionar as classes sociais à tripartição da alma.
oportuno desenvolver um projeto filosófico volta- • Compreender o conceito de virtude.
do para o tema da felicidade, tendo como objetivo
compreender as motivações do agir humano. Nesse Recursos a explorar neste eixo
contexto, espera‑se uma reflexão na qual constem temático
as seguintes ideias:
• A felicidade é algo natural ou é uma conquista? Fontes para leitura e compreensão de
• Sendo conquista, o que a felicidade pressupõe? fragmentos filosóficos
• Felicidade é a mesma coisa que realização? ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro II. Trad. Leonel
• Pode haver felicidade sem a satisfação das necessi- Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural.
dades básicas da vida? 1991. (Os pensadores).
• A felicidade como bem‑estar físico e mental é a PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo:
mesma coisa que a felicidade publicitária? Nova Cultural, 2000.

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Outras visões com a das formigas e das abelhas, no reino ani-
mal. Também é possível confrontá‑la com a ideia
Obras de arte do contratualismo moderno, especialmente em
Alegoria do tempo governado pela prudência (1565), Hobbes, no qual o homem é concebido como lobo
de Tiziano Vecelli. Óleo sobre tela, 76 cm × 69 cm. do próprio homem, individualista, antissocial. Com
A Escola de Atenas (1509), de Rafael Sanzio. Afresco, base nessa confrontação, solicite ao estudante um
5 m × 7,70 m. posicionamento crítico.
O discurso fúnebre de Péricles (1852), gravura de No que tange às formas de governo, Aristóteles
Phillip Foltz. cria uma terminologia que continua vigente entre
nós: aristocracia, oligarquia etc. Convém solicitar
Artigo científico
um esquema comparativo entre essas formas de
NOGUEIRA, Marco Aurélio. A reforma política, entre governo e suas características dominantes.
a expectativa e o silêncio. In: Governo do Estado de
São Paulo. Fundação do Desenvolvimento Adminis- Discussão das atividades propostas
trativo. Políticas públicas em debate. Ciclo de Semi-
nários. Seminário Reforma Política. São Paulo, 10 Problematizando (p. 119)
ago. 2010. Questão 1: Nessa problematização, o objeto
de estudo será a relação entre lei e liberdade. Ha-
Desenvolvendo os objetos de estudo veria liberdade política se não houvesse a lei que a
Neste eixo temático, recomendamos começar protegesse? Estimule o pensamento dos estudantes
pelo estudo do movimento de reformas iniciado sobre essa temática que será vivamente retomada
na Grécia Antiga por Sólon, Clístenes e Péricles. A no contratualismo moderno e no pensamento de
abordagem de termos como isonomia, ostracismo, Kant. Explore bastante essa ideia, ficando atento
boulé e ekklesía será fundamental para uma boa a uma noção prévia muito comum segundo a qual
compreensão da democracia ateniense. a presença da lei seria inibidora da liberdade. Essa
Igualmente, será muito importante uma abor- reflexão pode ser vinculada à reflexão realizada no
dagem, ainda que rápida, sobre as virtudes funda- primeiro eixo da primeira unidade, onde abordamos
mentais que fizeram de Péricles um dos políticos a relação entre natureza e cultura.
mais honrados. Com essa análise, mergulhamos no
contexto da política grega, espaço da livre discus- Problematizando (p. 122)
são dos homens livres. Questão 1: Encontramos aqui uma proble-
No pensamento político de Platão, a reflexão se matização referente à ideia de justiça presente
concentrará sobre o governante filósofo e a cidade no mito do anel de Giges, de Glauco. Será que
justa, abordando os três grupos sociais com suas os seres humanos praticam a justiça somente por
respectivas virtudes. O que aconteceria com a cida- medo da punição, no caso de praticarem uma
de se os comerciantes ou os militares fossem os go- ação injusta? Será que a educação humana e o
vernantes? Veremos como Platão responde a isso, conhecimento não conseguiriam lapidar a mente
propondo a sophocracia, uma espécie de aristocra- humana e o afeto para a busca da justiça por con-
cia intelectiva, como melhor forma de governo. vicção pessoal? Estimule os estudantes ao pensa-
Nesse terreno da ética e da política, um dos mi- mento argumentativo.
tos mais indicados a ser trabalhado é o do anel
de Giges, de Glauco, apresentado na página 121 Problematizando (p. 123)
do Livro do Estudante. Nessa abordagem, veremos Questão 1: Nesta problematização, o foco é a
uma concepção de justiça e como Platão critica concepção platônica de democracia. Devido à au-
essa concepção. sência de ciência política e devido às paixões huma-
Com a metáfora do corpo e dos membros, Aris- nas, essa é uma forma corrompida de governar, a
tóteles aborda a natureza política do homem. Nes- pior de todas. Será que essa crítica mantém a atua-
sa imagem, deve‑se explorar a primazia do corpo e lidade? Solicite dos estudantes a indicação de algu-
as diferentes funções dos membros para o bem‑es- mas passagens do texto que ainda seriam atuais.
tar do corpo. Você poderá relacionar essa imagem Estimule o pensamento dos estudantes para uma

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apreciação da democracia que vivemos no Brasil sistematicamente, cria um novo estilo de vida, não
e para a diferenciação entre as democracias grega conseguindo se ver longe delas.
clássica e as contemporâneas.
Sugestão de atividades complementares
Questão 2: Solicite aos estudantes que reflitam
sobre estratégias para melhorar a educação políti- Caso queira fazer uma reflexão com os estudan-
ca nas escolas. Essa abordagem poderá ser feita de tes sobre a inseparabilidade entre ética e política,
modo interdisciplinar, especialmente com a Socio- proponha uma atividade na qual estejam presentes
logia e a História. Sugerimos integrar essa proble- as ideias a seguir:
matização com a seção Outros olhares da página • A ética: ciência que tem a conduta do indivíduo
124, onde se retoma a ideia da educação política como seu objeto de estudo; a política: ciência que
dos cidadãos. tem no cidadão seu objeto de estudo.
• Sendo o ser humano animal essencialmente político,
Produção de texto (p. 124-125) é impossível desvincular o indivíduo (membro) da pólis
Questão 1: Espera‑se uma reflexão sobre a crí- (cidade), pois fora do corpo o membro não existe.
tica platônica à democracia na qual constem as se- • A dimensão ética alimenta a dimensão política, que
guintes ideias na produção textual do estudante: realiza a dimensão ética. Quanto melhor for o indi-
víduo melhor será a cidade.
• A democracia é o governo do povo, que não apre-
senta ciência política; ela se torna a pior forma de Caso queira solicitar uma reflexão aos estudantes
governo, pois a ignorância no poder conduz a toda que explique por que a justiça é a maior das virtu-
forma de tirania, abusos e violência. des, proponha, como base, as seguintes ideias:
• Da mesma forma, quando guiado pela paixão em • Virtude como meio‑termo.
vez da razão, o ser humano submete‑se aos des- • Justiça como o justo meio‑termo entre o excesso e
mandos dos impulsos. a falta.
• Sendo o ser humano um ser racional, é preciso • Justiça como a virtude social.
que a razão comande a sua vida. Nesse sentido, • O ser humano como ser social e político por natureza.
a melhor forma de governo será a sophocracia, a • A maior virtude será o equilíbrio na vida social, na
aristocracia intelectiva, o governo no qual os filó- qual todas as virtudes se realizam.
sofos governam. A cidade deverá ser governada • Estando a vida social acima da vida individual, a jus-
por quem tem ciência política, por quem sabe o tiça é expressão máxima de virtude.
que seja a verdade, a justiça, o bem. Somente à luz
desse conhecimento, é possível conduzir a cidade. Caminhos alternativos e
Questão 2: Espera‑se uma justificativa para a abordagens complementares
ideia da virtude como uma disposição do caráter Muito diversas são as possibilidades de aborda-
consistente na mediania na qual constem as seguin- gem à filosofia grega clássica, considerando o pen-
tes ideias na produção textual do estudante: samento socrático‑platônico e o aristotélico. Além
• Nascemos com aptidões naturais (dons como falar da forma como estruturamos o nosso eixo temático,
idiomas, dançar, tocar instrumento, cantar), mas o (a) professor(a) poderá fazer outros percursos. Se-
essas aptidões não são virtudes, são potencialida- guem algumas indicações:
des que carregamos em nós. Promover o confronto entre a visão grega e a vi-
• Para que haja virtude, é preciso que haja hábito e são moderna e contemporânea nos âmbitos antro-
esforço no cultivo dessas aptidões naturais. pológicos, epistemológicos, políticos e estéticos. Por
• Virtude vem definida como mediania, equilíbrio en- exemplo, confrontar:
tre excesso e falta, que constituem dois vícios. • a visão que os gregos tinham de ciência com a visão
• Quanto mais se cultivar a aptidão natural, vivendo moderna de ciência;
a virtude, mais haverá uma disposição. Uma pro- • a visão platônica de democracia com a visão mo-
pensão em nosso caráter para aquela dimensão derna e contemporânea de democracia;
de nossa vida que vem recebendo maior cultivo; é • a visão grega de arte com a estética contemporânea;
como se a virtude criasse em nós uma segunda na- • a concepção antropológica platônica da alma tri-
tureza, por exemplo: uma pessoa sedentária, quan- partida com a estrutura da personalidade, de acor-
do começa a praticar atividades físicas, cotidiana e do com a visão da psicanálise de Freud.

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Projeto interdisciplinar de reflexão Recursos a explorar neste
filosófica eixo temático
O Brasil é uma democracia de fato? Fontes para leitura e compreensão de
Neste eixo, que integra as perspectivas da éti-
fragmentos filosóficos
ca e da política nos começos da filosofia grega, ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro VI. Trad. Leonel
é momento propício para construir uma reflexão Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural,
filosófica problematizando a democracia brasilei- 1991.
ra com o objetivo de compreender o exercício da _____. Metafísica. Livro I. Trad. Edson Bini. São Paulo:
Edipro, 2012.
cidadania como uma exigência democrática. Entre
_____. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo:
as questões norteadoras para essa reflexão, suge-
Nova Cultural, 1991.
rimos inicialmente:
PLATÃO. A República. Livro X. Trad. Enrico Corvisieri.
• O que é poder político? São Paulo: Nova Cultural, 2000.
• O Brasil é uma democracia ou uma oligarquia?
• Democracia e miséria são compatíveis? Outras visões
• Na democracia, quem é o soberano?
• Como se relacionam governo e soberania? Obras de arte
• Qual é a diferença entre democracia formal e subs- Cena de banquete ao som de música de aulos
tancial? (c. 450 a.C.), de Euaion. Figuras vermelhas.
• A atual crise política no Brasil tem relação com o Discóbolo de Lancellotti (séc. II), cópia romana da obra
nível de democracia existente? de Míron. Escultura em mármore.
Natureza‑morta em afresco (c. 63‑79 d.C.), de autor
Sugestão de fontes e bibliografia inicial para desconhecido, retirado das ruínas de Pompeia, na Itália.
o desenvolvimento desse projeto Fonte de Pallas Athena, Áustria, 2014.
Canção Monumento do sapateiro, localizado na Praça 25 de
Justiça cega, de Zé Ramalho. Sinais do tempo. Avôhai Abril, em São João da Madeira, Portugal.
Music, Rio de Janeiro, 2012. CD. Fotografias
Site Antigo teatro em Atenas, parcialmente restaurado,
O que é política. Disponível em: <www.significados. Grécia, 2015.
com.br/politica/>. Acesso em: 15 maio 2016. Atrizes da companhia Teatro Tribueñe durante ence-
Livro nação em um festival de teatro, Ilhas Canárias, 2011.
DE SOUZA, Herbert. Ética e cidadania. São Paulo: Mo- Partenon, em Atenas, 2015.
derna, 1994. Livros
Poema MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica: de Homero a Ésquilo.
O analfabeto político, de Bertolt Brecht. Lisboa: Edições 70, 2008.
VERNANT, Jean‑Pierre; VIDAL‑NAQUET, Pierre. Mito
e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Brasiliense,
EIXO TEMÁTICO 4 – ARTE 1988.
E ESTÉTICA (p. 126-135)
Desenvolvendo os objetos de estudo
Objetivos, descritores específicos e
Neste eixo temático, nosso foco está na concep-
conceitos do eixo temático ção de arte na Grécia Clássica.
• Compreender a tragédia grega. No primeiro tema, “A tragédia grega”, é muito im-
• Analisar as questões centrais do pensamento grego portante que toda a reflexão seja inserida no contexto
sobre a arte. da tragédia grega e na transição da aristocracia para a
• Compreender a arte em sua função naturalista. democracia emergente na pólis grega. Nesse contexto,
• Analisar a crítica platônica à poesia. insere‑se o pensamento racionalista socrático‑platônico.
• Diferenciar arte, experiência e ciência no pensa- O segundo tema, “A filosofia grega e a poesia”,
mento Aristotélico. consiste na crítica platônica à poesia, que tinha

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presença significativa na cultura grega. Nessa crítica, o saber prévio dos estudantes sobre esse tópico.
Platão chama a atenção para o aspecto irracional e Caso queira antecipar aqui as reflexões de Freud
imitativo presente na poesia. e dos pensadores da Escola de Frankfurt, que se
No terceiro tema, “O belo”, vamos explorar o encontram no último eixo da última unidade, isso
conceito de “belo” para Platão. Nesse contexto, a poderá ser feito e os ajudará na melhor compreen-
arte pertence ao campo da imitação, do movimen- são do assunto.
to, das aparências.
Produção de texto (p. 135)
No quarto tema, consideraremos a ideia grega
de arte como techne, âmbito da fabricação, que se Questão 1: Solicita‑se relacionar o naturalismo
diferencia tanto da experiência quanto da ciência. da arte grega com o racionalismo. Espera‑se a pre-
sença das ideias a seguir na produção textual dos
Discussão das atividades propostas estudantes:
Problematizando (p. 130) • A arte, em geral, como um conjunto de conheci-
mentos voltado para a produção de algo.
Questão 1: Na problematização, o foco está na
• O artista apresenta uma habilidade prática no terre-
crítica platônica à poesia. Por qual razão a poesia
no da cópia, da reprodução.
estaria na contramão da filosofia? Estimule o pensa-
• O artista imita, pois lhe falta a ciência, o conheci-
mento dos estudantes para a percepção dos argu-
mento das essências.
mentos de Platão, relacionados ao encantamento, à • Seu fazer produtivo está voltado à manipulação de
ilusão, à aparência e aos sentimentos cultivados pela objetos, de sentimentos e de afetos.
poesia, na contramão do logos, do discurso argu- • A diferença fundamental entre arte e ciência está
mentativo necessário para a vida da cidade. no fato de a arte referir‑se à utilidade e à dimensão
não necessária, não essencial.
Produção de texto (p. 131)
• A arte está no domínio do possível, da produção.
Questão 1: Considerando o tema da beleza Em contrapartida, no terreno das ciências, realiza‑se
contemplada na atividade teorética, espera‑se a pre- a vocação humana, enquanto sujeito racional, ético
sença das seguintes ideias na produção textual dos e político.
estudantes:
• A singularidade humana está na dimensão racional Sugestão de atividade complementar
de sua alma.
• Os sentidos induzem a mente a erros e a ilusões. Análise de filmes
• A verdadeira beleza não é a dos corpos particulares. Você pode explorar os dois filmes a seguir em
Esta somente participa da beleza essencial, intuída sala de aula para aprofundar e articular os conheci-
por uma atividade intramental, teorética. mentos do eixo.
Problematizando (p. 132) Temática: A linguagem do teatro trágico grego
Questão 1: Considerando a concepção grega de Filme: Poderosa Afrodite (Estados Unidos, 1995).
arte, no interior de uma visão naturalista, estimule o Gênero: Comédia.
pensamento dos estudantes a relacionarem a beleza Diretor: Woody Allen.
de uma obra à imitação mais perfeita possível da vida Duração: 95 minutos.
real, atendendo aos critérios de simetria e harmonia. Sinopse: Em Nova York, o cronista esportivo Lenny
Weinrib procura a mãe biológica de sua filha adotiva.
Problematizando (p. 135) Durante o filme, Lenny é acompanhado por um coro,
Nestas problematizações, encontram‑se os se- elemento do teatro grego, que critica as decisões do
guintes tópicos: personagem na narrativa. A narrativa também intro-
• O aparecimento da fotografia substituiu a arte em duz personagens famosos de tragédias gregas, como
sua função naturalista? Estimule a participação Édipo e Jocasta da obra Édipo rei, de Sófocles.
dos estudantes para uma apreciação crítica da arte Temática: O destino infeliz do herói trágico grego
como imitação e cópia da realidade, resgatando ou Filme: Édipo rei (Itália, 1967).
enfatizando seu valor. Gênero: Drama.
• A catarse como instrumento de cura, de saúde Diretor: Pier Paolo Pasolini.
psíquica ou de alienação e massificação. Verifique Duração: 104 minutos.

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Sinopse: O filme adapta alguns momentos da tragé- • A arte nos afasta da filosofia ou pode ser caminho
dia grega de Sófocles para a Itália do começo do sé- filosófico?
culo XX. Depois que um oráculo prevê que Édipo será • Existe uma contradição ou incompatibilidade entre
responsável pela morte de seu pai, ele é abandonado sentir e pensar?
quando criança em um deserto. A obra de Sófocles e • Qual é a relação entre a imagem e o conhecimento?
a película abordam como o herói não pode escapar • A arte se restringe à imitação da realidade?
de seu destino trágico.
Sugestão de bibliografia inicial para o
desenvolvimento desse projeto
Caminhos alternativos e
COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.
abordagens complementares JIMENEZ, Marc. O que é estética? Trad. Fulvia Moretto.
São Leopoldo: Unisinos, 1999.
Projeto interdisciplinar de
NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia. Belo Hori-
reflexão filosófica zonte: UFMG, 1999.
O que pode uma imagem? _____. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Ática,
1989.
O objeto de estudo desse eixo torna‑se circunstância
favorável para pensarmos em oferecer aos estudantes Professor(a), embora você já deva ter feito ao
um projeto interdisciplinar de reflexão filosófica sobre o longo do percurso avaliações formais, agora, no fi-
poder da imagem, motivados pela visão da filosofia gre- nal desse eixo, volte aos objetivos e aos descritores
ga clássica de arte, em seus alcances e limites. previstos no planejamento inicial. Faça um diag-
Entre as questões norteadoras da reflexão, suge- nóstico da aprendizagem construída, especialmen-
rimos inicialmente: te daquela relacionada ao pensamento conceitual,
• O que é o platonismo? aos conceitos estruturantes da filosofia previstos
• O êxtase provocado pela arte, pela poesia nos afas- para o eixo.
ta do conhecimento da verdade?

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UNIDADE 3 – HELENISMO E O estudo das escolas helenísticas costuma ser
muito proveitoso e bem acolhido pelos estudantes,
FILOSOFIA MEDIEVAL: DA devido à dimensão existencial presente nessas refle-
RAZÃO E DA FÉ xões. Entre as escolas, destacamos o epicurismo, o
estoicismo e o ceticismo. Merece especial atenção a
carta de Epicuro a Meneceu, que trata sobre a feli-
EIXO TEMÁTICO 1 – AS ESCOLAS cidade e é uma obra clássica. Esse texto merece ser
HELENÍSTICAS (p. 138-148) vivamente recomendado aos estudantes. Sugerimos
a leitura e a análise dessa obra ou de alguns frag-
Objetivos, descritores específicos e mentos em sala de aula.
conceitos do eixo temático No que tange ao ceticismo, destacamos espe-
cialmente tanto o pressuposto epistemológico que
• Analisar as questões centrais do pensamento he-
relaciona o processo de conhecer com a percepção
lenístico.
e a interpretação subjetivas como o método da sus-
• Compreender a filosofia como sabedoria de vida.
pensão de juízo. Sugerimos salientar a contribuição
• Analisar as questões centrais do epicurismo.
• Analisar as questões centrais do estoicismo. do espírito e do método do ceticismo para a vivência
• Analisar as questões centrais do ceticismo. da democracia e do diálogo, uma vez que comba-
• Conceituar felicidade. te qualquer forma de dogmatismo. A presença do
• Conceituar ataraxia. ceticismo na obra de Machado de Assis possibilita
• Compreender os conceitos de indiferença e apatia. uma rica abordagem interdisciplinar com a área de
literatura e produção de texto.
Recursos a explorar neste O conceito de felicidade e de cultivo da vida inte-
rior perpassa a reflexão das escolas helenísticas. Suge-
eixo temático
rimos explorar a filosofia, nesse contexto, como a arte
do bem viver, pois é vida reflexiva, problematizadora
Fontes para leitura e compreensão de
do senso comum. Nesse sentido, as escolas helenísti-
fragmentos filosóficos cas nos ensinam que filosofia é uma maneira de viver
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). Trad. e de relacionar‑se consigo mesmo, com o tempo, com
Álvaro Lorencini e Enzo del Carratore. São Paulo: os outros, com o mundo universal (cosmopolita). É
Unesp, 2002. possível proporcionar aos estudantes a vivência comu-
SÊNECA, Lúcio Aneu. Da brevidade da vida. Trad. nitária de discussões filosóficas que se aproximam das
William Li. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
comunidades que constituíam as escolas helenísticas.
SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas. Livro I. Trad.
Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar. Cader- Discussão das atividades propostas
nos do Departamento de Filosofia da PUC‑Rio, Rio de
Janeiro, n. 12, set. 1997. Problematizando (p. 142-143)
Questão 1: Nesta questão problematiza‑se a re-
Outras visões lação entre virtude e felicidade, sob a perspectiva do
epicurismo. Dessa forma, seguem os elementos que
Obra de arte deverão constar na resposta:
Mosaico de Alexandre Magno (c. 150 a.C.), de autoria • Em conformidade com a obra de Epicuro, a felici-
desconhecida. Mosaico de seixos, 272 cm × 513 cm. dade é o bem supremo da vida, por todos desejado
como fim último, a nada subordinado, da mesma
Ilustração
forma como a vida virtuosa, especialmente a vida
Representação de ilusão de óptica (cálice e rostos prudente, da qual todas as virtudes decorrem.
humanos).
• Essa conaturalidade da felicidade com a vida virtuo-
Fotografia sa se manifesta tanto na inutilidade como na árdua
Imagem de suco de laranja no contexto da suspensão conquista dessas dimensões não naturais, uma vez
do juízo. que são resultantes da meditação filosófica que,
no exercício da racionalidade, nos habilita para a
Desenvolvendo os objetos de estudo vida da boa consciência que aprendeu a discernir as

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escolhas e as recusas, sob a visão do bem‑estar corporal meio dele, busca libertar as pessoas dos grandes te-
e da serenidade da alma. mores que têm a respeito da própria vida, da morte e
Questão 2: O sábio é apresentado como o homem do além‑túmulo.
mais feliz. Estimule os estudantes à interpretação do
Problematizando (p. 145)
texto, onde se encontram os argumentos de Epicuro,
especialmente os relacionados ao juízo prudente, à não Em cada uma das problematizações solicitadas
atribuição aos deuses das responsabilidades daquilo que com base na leitura de fragmentos da obra Da bre-
nos ocorre, ao amor às coisas simples. vidade da vida, a resposta é pessoal e depende mui-
to da sensibilidade e das competências e habilidades
Produção de texto (p. 143) já construídas em relação à interpretação de texto.
Questão 1: Considerando a questão construída Cabe ao professor dedicar tempo, sem pressa, para
com base em fragmentos da carta de Epicuro, solici- a leitura pausada a fim de que os estudantes reali-
ta‑se explicar a natureza dos prazeres e a função da zem uma apropriação pessoal e possam socializar
filosofia para a vida feliz, espera‑se uma reflexão na suas percepções.
qual constem as seguintes ideias na produção textual Na problematização com base no fragmento da pá-
dos estudantes: gina 144 (questão 1), o foco está na brevidade da vida
das pessoas muito ocupadas e da profundidade de
• O prazer é princípio e fim de uma vida feliz.
vida de quem medita no que lhe acontece diariamen-
• O prazer é conatural a nós: buscamos o que nos dá
te. Estimule os estudantes à percepção de que a felici-
prazer. Mas nem todo prazer deve ser aceito, pois há
dade, na visão das escolas helenísticas, segue a ideia
prazeres que nos fazem sofrer. E o objetivo é alcançar
a paz, a imperturbabilidade da alma. Dessa forma, é
da eudaimonia, da vida reflexiva, dos juízos sensatos.
preciso ter uma consciência esclarecida (límpida capa- Na questão 1 com base no fragmento da pági-
cidade de raciocínio) e agir com a virtude da prudência. na 145, questione os estudantes: Será que a falta de
• Da prudência originam‑se todas as outras virtudes, e ela meditação ou de vida reflexiva está relacionada à in-
nos ensina como não é possível uma vida feliz que não felicidade, também nos tempos atuais? Estimule o po-
seja também sábia, bela e justa. der argumentativo dos estudantes sobre esse aspecto,
• Não há felicidade possível fora das virtudes, pois ambas que pode ser relacionado à ideia contemporânea de
são resultantes de esforço e têm o governo da mente felicidade associada a níveis de consumo ou à infelici-
sobre as paixões como elemento comum. dade de uma cultura do estresse.
Quanto à natureza, os nossos prazeres podem ser Questão 2: Estimule a reflexão dos estudantes so-
classificados em três categorias: bre a percepção da brevidade da vida, relacionada a
• prazeres naturais e necessários: comer, beber e dormir determinado estilo de vida. Pode‑se fazer referência à
quando se tem necessidade; letra da canção “Epitáfio”, do grupo Titãs.
• prazeres igualmente naturais, porém, não necessários: Questão 3: Estimule a reflexão dos estudantes
beber vinhos, comer em pratos sofisticados, dormir em no sentido de perceberem que nesse pensamento há
lençóis de seda (seguir essa dinâmica do desejo é não uma razão universal (Deus) que governa o mundo,
ter fim e ocasiona o fim da paz interior); que transcende nossa vontade e nossos esforços. Não
• prazeres que não são nem naturais, nem necessários. se trata de um destino cego. Devemos fazer tudo o
Referem‑se às necessidades artificiais que criamos para que está ao nosso alcance; contudo, sem voluntaris-
nós mesmos e das quais nos tornamos escravos: o luxo mo, pois há uma racionalidade inerente ao mundo,
e a riqueza. que o conduz. A busca pela indiferença aos aconte-
Dessa forma, Epicuro combate a vida devassa e tem cimentos do mundo que nos escapam se torna ex-
plena consciência do preço que se paga ao se pretender pressão da paz interior. O fatalismo e o determinismo
seguir as orientações do desejo: alienação da liberdade. existem, contudo não dispensam a ação humana nem
A função da filosofia é colocar a pessoa na dinâmi- são imposições mecânicas.
ca da felicidade, por meio da meditação, da volta sobre
si mesmo. Basicamente, para ser feliz, o ser humano Problematizando (p. 147)
necessitava de três coisas: liberdade, amizade e tempo Questão 1: Solicite o posicionamento dos estu-
para meditar. Dessa forma, a filosofia é a arte da vida dantes. Lembre‑os de que uma das posturas dos céti-
boa, pois possibilita conhecimento do mundo e, por cos é o combate ao dogmatismo.

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Questão 2: Os céticos costumam ser denomina- rentes escolas helenísticas (epicurismo, estoicismo e
dos relativistas, de modo similar aos sofistas. Recor- ceticismo).
de com os estudantes a postura e a estratégia dos Sugerimos também propor aos estudantes um
sofistas de derrubar ou desacreditar a argumenta- comparativo entre os dois períodos da história do
ção do oponente. Essa postura parece ser bem dife- pensamento filosófico abordados neste eixo temáti-
rente da suspensão de juízo dos céticos. Solicite dos co. Considerando uma atividade com essa proposta,
estudantes o posicionamento quanto a isso. espera‑se uma reflexão na qual constem as seguin-
tes ideias:
Produção de texto (p. 147)
• O período helenístico normalmente é entendido
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual como um momento de transição entre o esplen-
constem os elementos a seguir na produção textual dor da cultura grega e o desenvolvimento da cul-
do estudante: tura romana.
• O objetivo dos céticos é alcançar a serenidade, a • Esse período refere‑se à expansão da cultura grega,
imperturbabilidade de alma. helênica, no mundo civilizado. Na história da filoso-
• Sendo o real inapreensível e partindo do pressupos- fia, denomina‑se período ético, porquanto o inte-
to de que conhecer é interpretar, múltiplas serão as resse filosófico é voltado para os problemas morais.
leituras e as interpretações do real, havendo para • Contrariamente ao contexto da Grécia Antiga (era
cada razão a possibilidade de outra razão contrária clássica), no qual “homem” significava fundamen-
e equivalente. talmente o homem livre, o cidadão da pólis, o novo
• Reconhecendo a multiplicidade de olhares para a contexto apresenta características de universalida-
mesma realidade, o silêncio prudente torna‑se ex- de, sem distinção entre gregos e bárbaros.
celente caminho para essa busca da paz interior. • O pensamento filosófico apresenta nova perspecti-
Dessa forma, a suspensão do juízo a respeito de va, não mais a visão acadêmica, da vida teorética,
qual seria o olhar verdadeiro se torna o melhor ca- mas, especialmente, como modo de vida partilhado
minho para alcançar o objetivo da vida: a ataraxia, por comunidades que se unem em um modo de
a imperturbabilidade. pensar, de se relacionar consigo, com o tempo e
• Se guiado pela paixão, o ser humano tenderá a ser com o mundo.
impulsivo e a se localizar nos extremos do excesso
ou da falta. É preciso que a mente busque o equilí- Caminhos alternativos e
brio, a moderação. abordagens complementares
• Na moderação, a alma mantém a lucidez e a paz.
A abordagem das escolas helenísticas deve sempre
ser feita em meio ao seu contexto de destruição da no-
Sugestão de atividades complementares
ção de pólis e a emergência da cosmópolis, pois essa
A obra Da brevidade da vida, de Sêneca, merece
radical mudança está na origem do foco dessas esco-
profunda análise pela atualidade da reflexão. Uma
las. Contudo, a atualidade das reflexões dessas escolas
maneira de ler o texto de Sêneca é deixar‑se guiar
nos faz pensar na possível comparação de contextos.
pela questão da utilidade e do objetivo da filosofia.
Será que o contexto contemporâneo e pós‑moderno,
Considerando a formulação de uma questão que
no qual predominam o espírito individualista e a liber-
proponha uma reflexão sobre esse tema, espera‑se
dade diante das tradições, é a chave para entender o
uma reflexão na qual constem as seguintes ideias:
sucesso das reflexões das escolas helenísticas na ado-
• A filosofia não deve consistir em especulações teó- lescência e na juventude? Durante essa abordagem,
ricas, desvinculadas da vida e de sua orientação seria interessante desenvolver algumas propostas.
prática.
• Fazer a leitura integral da carta sobre a felicidade,
• A filosofia deve estar a serviço da purificação da
de Epicuro (a Meneceu).
alma, da formação do caráter e da integridade do ser.
• Analisar com os estudantes alguma das obras de
• A filosofia deve ser instrumento para auxiliar a con-
Sêneca: A tranquilidade de alma, A vida retirada, A
quista da ataraxia, da imperturbabilidade, median-
vida feliz, traduzidas por Luiz Feracine.
te o controle das paixões e da correta canalização
• Dividir a turma em grupos para que o pensamento
dos desejos.
de cada escola seja estudado e socializado.
Como atividade complementar, sugerimos ainda • Solicitar uma profunda reflexão e produção de tex-
a elaboração de um estudo comparado das dife- to sobre a relação indivíduo‑comunidade.

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Projeto interdisciplinar de EIXO TEMÁTICO 2 – CONDIÇÃO
reflexão filosófica HUMANA (p. 149-162)
A filosofia e a meditação
O contexto de destruição da pólis e o consequente
Objetivos, descritores específicos e
mergulho na interioridade, transformando a filosofia conceitos do eixo temático
em poderoso auxílio para a meditação, são uma boa • Analisar as questões centrais no pensamento
oportunidade para proporcionar aos estudantes um medieval.
projeto interdisciplinar de reflexão filosófica voltado • Analisar a cosmologia antiga e medieval.
à compreensão dos poderes da meditação. • Compreender a concepção medieval de liberdade.
Entre as questões norteadoras da reflexão, suge- • Compreender a concepção cristã de pecado.
rimos inicialmente: • Analisar a questão do mal, em Agostinho.
• Que semelhanças podemos encontrar entre o espí- • Estabelecer relações entre os conceitos de razão,
rito que marcava a era helenística e o espírito que livre‑arbítrio, vontade e graça divina.
marca a nossa era contemporânea?
• A meditação pode ser uma preparação para a parti- Recursos a explorar neste
cipação política ou necessariamente ela é um afas- eixo temático
tamento do engajamento político?
• Em que sentido a meditação é auxílio para a felicidade? Fontes para leitura e compreensão de
• Por quais razões a meditação não é um valor muito fragmentos filosóficos
cultivado ou difundido na cultura ocidental?
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filoso-
• A meditação pode auxiliar o enfrentamento de ma-
fia. São Paulo: Nova Cultural. 1999. (Os pensadores).
les físicos?
AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira e Ambrósio
Sugestão de fontes e bibliografia inicial para Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os pensadores).
o desenvolvimento desse projeto AQUINO, Tomás de. Suma teológica. In: Textos básicos
de ética. Trad. Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge
Livros Zahar, 2007.
DUVERNOY, Jean‑François. O epicurismo. Rio de Janei- GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Trad.
ro: Jorge Zahar, 1993. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
INWOOD, Brad (Org.). Os estoicos. São Paulo: Odys- STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. São Paulo: Zahar,
seus, 2006. 2003.
PORCHAT, Oswaldo. Rumo ao ceticismo. São Paulo:
Unesp, 2007. Outras visões
Sites Obras de arte
STARLING, Emilce Shrividya. Conheça os principais ti- A missa de fundação da Ordem da Santíssima Trindade
pos de meditação e veja qual mais se adapta a você. (1666), de Juan Carreño de Miranda. Óleo sobre tela,
Disponível em: <www2.uol.com.br/vyaestelar/tipos_ 500 cm × 315 cm.
de_meditacao.htm>. Acesso em: 15 maio 2016. A queda e expulsão do paraíso (1510), de Michelange-
Entenda o que a meditação significa para a filosofia lo. Afresco, 280 cm × 570 cm.
budista. Portal Gshow. Disponível em: <http://gshow. A visão de Santo Agostinho (1502), de Vittore Carpac-
globo.com/novelas/joia‑rara/extras/noticia/2013/11/ cio. Têmpera sobre tela, 141 cm × 210 cm.
entenda‑o‑que‑a‑meditacao‑significa‑para‑a‑filosofia Cristo pantocrator, mosaico no interior da Catedral de
‑budista.html>. Acesso em: 15 maio 2016. Cefal . Sicília, Itália, 2012.
Professor(a), retome os objetivos e os descritores pre- São Justino (séc. XX), de autoria desconhecida. Têmpe-
vistos no planejamento inicial. Faça um diagnóstico da ra sobre parede.
aprendizagem construída, especialmente daquela rela- São Pedro e São Paulo (c. 1600), de El Greco. Óleo
cionada ao pensamento conceitual, aos conceitos estru- sobre tela, 116 cm × 91,8 cm.
turantes da filosofia previstos para esse eixo temático.

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Desenvolvendo os objetos de estudo Problematizando (p. 160)
Questão 1: Nesta questão, o foco está na distin-
Discussão das atividades propostas ção agostiniana entre o uti e o frui, referindo‑se à
inversão: amar as coisas e usar as pessoas. É possível
Problematizando (p. 154)
perceber a atualidade dessa reflexão e os sofrimen-
Questão 1: Nesta problematização o foco está tos que dela decorrem para o ser humano? Estimule
no dualismo maniqueísta, no qual se encontra a a atualização desse pensamento para a sociedade
afirmativa de um princípio bom e um princípio mau. contemporânea.
Envolva os estudantes nessa problematização, per- Questão 2: Nesta questão, problematiza‑se a gra-
guntando inicialmente sobre as decorrências no tuidade ou a desmedida do amor. Será que o amor é
campo da ética e da moral dessa postura, no que desmedido? Será que não tem exigências? Se o amor é
isso implicara de abnegação, jejum, mortificação virtude e a virtude é equilíbrio entre o excesso e a falta,
e flagelo do próprio corpo. Em seguida, instigue o não seria o amor, reconhecido como a maior das virtu-
pensamento dos estudantes sobre a possibilidade des, também marcado por limites? Solicite a participação
de essa concepção ainda ter lugar em uma socie- argumentativa dos estudantes.
dade pós‑moderna, na qual tem lugar a renúncia às
grandes narrativas. Problematizando (p. 161)

Problematizando (p. 157) Questão 1: O primeiro problema concentra‑se


na unidade do ser humano, no interior do qual há
Questão 1: A primeira questão refere‑se às te- uma luta entre duas vontades: a carnal e a espiritual.
ses agostinianas da inexistência do mal objetivo e Essa luta pode ser mais intensa em determinados
do mal como privação do bem. Inicialmente, situe o momentos da vida e pode variar de indivíduo para
pensamento de Agostinho no horizonte da fé cristã, indivíduo? Peça aos estudantes que se manifestem
que pressupõe a existência de Deus criador da maté- sobre as formas de se perceber essa luta em nossa
ria. Solicite o posicionamento dos estudantes sobre vida cotidiana.
essas teses. Após haver compreendido o pensamen- O segundo problematiza a relação entre liberda-
to cristão de Agostinho, eles poderão concordar ou de e destino. Integrando as perspectivas helenísticas
discordar dessa visão, afirmando, por exemplo, que com a medieval cristã, o que é possível afirmar? Se
a matéria não é nem boa nem má. Que bem e mal afirmarmos a liberdade, filosoficamente deveremos
não existem objetivamente etc. negar o destino? Peça aos estudantes que se reúnam
Questões 2 e 3: Nestas questões, recorre‑se a em pequenos grupos e construam sua tese sobre
Confissões, obra na qual Agostinho nega a inocên- esse assunto, a ser compartilhada com os demais.
cia das crianças ou a atribui somente à fragilidade
de seus membros. Será que o ser humano apresenta Produção de texto (p. 162)
uma condição natural de agressividade ou de im- Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
pulsividade que não nos autoriza a falar em natural constem as seguintes ideias:
bondade ou inocência? E o que dizer do prazer exis- • Em sua natureza animal, o ser humano tem uma
tente no ato de roubar? Estimule o posicionamento primeira vontade relacionada aos impulsos carnais.
pessoal argumentativo dos estudantes. • Na condição de ser espiritual, o ser humano tem
Problematizando (p. 159) uma vontade espiritual que se volta para as realida-
des superiores.
Questão 1: Nesta problematização, o foco está • Entre essas duas dimensões, há um permanente
na argumentação de Tomás de Aquino em favor da conflito, pois são forças antagônicas: uma tende
liberdade. Se não houvesse liberdade, faria sentido para as realidades mundanas e a outra, para a di-
proibir, censurar ou aconselhar alguém a alguma mensão sagrada.
coisa? Solicite a argumentação dos estudantes a • Para buscar a dimensão divina e sagrada, a vontade
respeito desse posicionamento de Tomás. humana precisa ter o auxílio da graça divina.

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Sugestão de atividades complementares • É possível ao ser humano controlar os impulsos de
sua paixão?
Análise de filme • Se o homem foi criado por Deus, é possível pensar
Temática: Debate sobre a atualidade da teoria do em liberdade?
direito de Tomás de Aquino e sobre as “provas” da • Se Deus criou o homem livre, qual é o poder de
Deus sobre a vida do homem?
existência de Deus (Teoria das cinco vias)
Filme: O nome da Rosa (Alemanha/França/Itália, Sugestão de fontes e bibliografia inicial
1986). para o desenvolvimento desse projeto
Gênero: Ficção histórica.
Artigo científico
Diretor: Jean‑Jacques Annaud.
MATOS, Andityas S. M. C. Destino e liberdade no
Duração: 130 minutos. pensamento estoico greco‑romano. Revista Filosófica
Sinopse: A narrativa desenvolve‑se em 1327, em de Coimbra, Portugal, n. 43, p. 7‑42, 2013. Disponível
um mosteiro da Itália, em meio a uma semana de em: <www.uc.pt/fluc/dfci/public_/publicacoes/
mortes diárias de monges. A chegada de um mon- destino_e_liberdade>. Acesso em: 15 maio 2016.
ge franciscano, que veio para solucionar o enigma,
Livro
descortina a trama que envolve a fabricação de li-
GALLO, Sílvio (Coord.). Ética e cidadania: caminhos da
vros, a produção cultural medieval, a restrição do
filosofia. Campinas: Papirus, 1997. p. 75‑80.
conhecimento a grupos específicos. A obra possibi-
lita problematizar as relações de poder no contexto Site
medieval. SOBER, Elliot. Liberdade, determinismo e causalidade.
Após a exibição do filme, sugerimos encaminhar Trad. Paulo Ruas. Disponível em: <http://criticanarede.
uma pesquisa aos estudantes sobre as primeiras com/eti_livrearbitrio.html>. Acesso em: 15 maio 2016.
universidades, especialmente Bolonha (Itália, 1150) Volte aos descritores previstos no planejamento
e Sorbonne (França, 1214). inicial. Faça um diagnóstico da aprendizagem cons-
truída, especialmente daquela relacionada ao pen-
Caminhos alternativos e samento conceitual, aos conceitos estruturantes da
abordagens complementares filosofia previstos para esse eixo temático.

Projeto interdisciplinar de
reflexão filosófica EIXO TEMÁTICO 3 –
EXPERIÊNCIA E RACIONALIDADE
É possível conjugar liberdade e destino?
(p. 163-175)
O contexto subjacente às nossas reflexões, nes-
te momento, é um convite à reflexão filosófica com Objetivos, descritores específicos e
o intuito de problematizar as noções de liberdade e conceitos do eixo temático
destino. Recomendamos desenvolver o projeto de
• Caracterizar a escolástica.
modo interdisciplinar, buscando confrontar as oções • Relacionar razão e fé.
de determinismo, fatalismo e liberdade, além de pro- • Compreender a questão dos universais.
curar compreender os condicionantes biológicos e
culturais da liberdade. Entre as questões norteadoras Recursos a explorar neste
da reflexão filosófica, sugerimos inicialmente:
O determinismo difere do fatalismo?
eixo temático
• O presente determina o futuro?
Fontes para leitura e compreensão de
• Se há liberdade, é possível falar em destino?
• A liberdade é uma ilusão? Existem limites para a fragmentos filosóficos
liberdade? AGOSTINHO. A verdadeira religião. Trad. Nair de Assis
• Pode o homem renunciar à liberdade sem cair em Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1987.
contradição?

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_____. A trindade. Trad. Agustino Belmonte. São Pau- • A quinta via é derivada do governo das coisas. Ve-
lo: Paulus, 2008. mos que as coisas que não têm inteligência, como,
_____. De magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973. por exemplo, os corpos naturais, agem para uma
SANTO ANSELMO. Proslógio. Trad. Angelo Ricci. São finalidade, o que se mostra pelo fato de sempre
Paulo: Abril Cultural, 1973. ou frequentemente agirem da mesma forma, para
AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. Trad. Luiz conseguirem o máximo, de onde se segue que não
João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2000. é por acaso, mas intencionalmente, que atingem o
seu objetivo. Existe um ser inteligente que ordena
Desenvolvendo os objetos de estudo todas as coisas da natureza para seu corresponden-
te objetivo: a este ser chamamos Deus.
Em relação ao tema 3, “Fé e razão”, explore as
vias que levam a razão humana a Deus, de acordo Discussão das atividades propostas
com Tomás de Aquino:
• A primeira e mais evidente é a que toma por base o Problematizando (p. 166)
movimento. É certo, e está de acordo com a nossa Questão 1: Nessa problematização, o foco está
experiência, que algo se move no mundo. Tudo o na concepção agostiniana e cristã de verdade. Pos-
que se move é movido por outra coisa, pois nada se sibilite aos estudantes a interpretação desse texto,
move se não estiver em potência para aquilo para no intuito de perceberem a especificidade dessa
o que se move; porém, o que se move deve estar concepção. A verdade não será uma construção do
em ato para aquilo que move, já que mover não é raciocínio, mas o horizonte mais íntimo para onde
senão fazer algo passar de potência para ato; ora, o raciocínio tende. Deus, nesse pensamento, seria a
mas nada pode passar de potência para ato senão
fonte de toda verdade.
por meio de um ser que já está em ato (que tudo
move e por nada é movido). Problematizando (p. 171)
• A segunda via baseia‑se na causa eficiente. Encon-
Questões 1 e 2: As problematizações dessa pá-
tramos nas coisas sensíveis uma ordem de causas
gina têm como foco a tentativa de demonstração
eficientes, já que nada pode ser causa eficiente de
si mesmo, pois se assim o fosse existiria antes de si racional da existência do ser denominado Deus, por
mesmo, o que é impossível. Também não é possí- parte de Tomás de Aquino. Organize os estudantes
vel proceder indefinidamente nas causas eficientes. em pequenos grupos para que estudem e se apro-
Logo, é necessário admitir alguma causa eficiente priem da argumentação de Tomás de Aquino acer-
primeira, à qual todos chamam de Deus. ca das cinco vias da demonstração da existência de
• A terceira via é baseada no possível e no necessário. Deus. Na sequência, elabore com eles a discussão, a
Encontramos entre as coisas algumas que podem explicitação e a crítica dessa argumentação racional,
ser ou não ser, já que encontramos algumas que seus limites e suas possibilidades.
são geradas e se corrompem, e por isso mesmo po-
Problematizando (p. 173)
dem ou não ser. É necessário admitir algo que seja
necessário por si, não tendo fora dele a causa de Questão 1: Nesta problematização, o foco está
sua necessidade, antes pelo contrário, que seja ele na questão dos universais. Sugerimos que os estu-
mesmo a causa de necessidade dos outros: a este dantes se reúnam em duplas para o estudo e a reso-
ser todos chamam de Deus. lução dessa questão com base no encaminhamento
• A quarta via tem por base os graus que se encon- a seguir:
tram nas coisas. Encontramos, com efeito, nas coi-
• Estudar a linguagem é estudar a realidade?
sas, algo mais ou menos bem, verdadeiro, nobre,
• Ou as palavras são emissões de sons sem referência
e assim por diante. O “mais” ou “menos” é dito
a algo objetivo?
acerca dos diversos seres conforme se aproximam
• Existe na mente um conceito correlato à palavra
de forma diferente daquilo que é o máximo, como
proferida?
o mais quente é aquilo que se aproxima do que é
• A distinção entre matéria e forma existe na nature-
quentíssimo. Existe algo que é a causa da existência
za ou é feita pelo intelecto?
de todos os seres, da bondade e de qualquer per-
feição, e a este chamamos Deus.

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Problematizando (p. 175) Contudo, nossa mente consegue captar elementos
que são comuns às partes.
Questão 1: Aqui, o tema é a relação entre fé e
razão, objeto central do eixo temático. Inicialmen- Questão 2: Considerando a questão que solicita
te, recolha o saber prévio dos estudantes e verifique a explicitação da relação entre fé e razão, espera‑se
a aprendizagem construída, fundamentada na argu- a presença das seguintes ideias na produção textual
mentação de Agostinho e Tomás de Aquino. Verifique dos estudantes:
se os estudantes conseguem perceber a necessidade • Deus é a fonte da verdade e a verdade, então, é
de uma inteligibilidade na fé, uma vez que Deus seria revelação e emanação de Deus.
o logos do qual os filósofos gregos falavam. Na visão • O nosso acesso à verdade vem pela fé, que é dom
cristã medieval latina, seria a inteligência suprema, de Deus.
criadora da matéria. • A razão, dom de Deus, encontra‑se decaída devido
ao pecado original.
Questão 2: Entre fé e razão é possível haver
• A superioridade da fé à razão, uma vez que a fé
diálogo? Para que haja esse diálogo, quais são os
acolhe a verdade que vem de Deus.
pressupostos que devemos assumir? Nesse diálo- • A subordinação da razão à fé, uma vez que a sua
go, deve‑se reconhecer também os limites da razão função será explicar, justificar e comunicar a verda-
e da fé? de previamente acolhida na fé.
Questão 3: Historicamente, houve atitudes reali- • A relação de harmonia entre fé e razão, bem como
zadas em nome da fé que tornaram a razão cega? É a impossibilidade de contradição entre fé e razão,
possível haver atitudes motivadas pela fé que incen- desde que a razão opere retamente, isto é, em co-
tivem a pesquisa racional? munhão com as luzes da revelação.
Questão 4: Considerando a reflexão de Al- • A fé capacita e potencializa a razão.
berto Magno, a teologia parte da fé, a filosofia • A razão joga luzes sobre o mistério, buscando apro-
ximar‑se na compreensão do mistério.
parte da razão. O ponto de partida é comple-
tamente diferente. Mesmo assim, pode haver
Sugestão de atividade complementar
diálogo, ou será necessariamente uma oposição
sem complementaridade? Análise de filme
Produção de texto (p.175) Temática: O pensamento de Abelardo
Filme: Em nome de Deus (Inglaterra, 1988).
Questão 1: Considerando a questão que con-
templa a solução de Abelardo ao problema dos uni- Gênero: Drama.
versais e solicita a relação entre fé e razão, espera‑se Diretor: Clive Donner.
a presença das seguintes ideias na produção textual Duração: 115 minutos.
do estudante:
Sinopse: A película aborda a vivência de Abelardo e
• A questão dos universais refere‑se à possibilidade seu envolvimento amoroso com Heloísa, em Paris, no
de conhecer o ser da coisa. Busca‑se compreender século XII. As posições de Abelardo constituem uma ex-
a relação que há entre a palavra e a coisa sobre a celente oportunidade para refletir sobre o movimento
qual ou para a qual a palavra é dirigida.
cultural que começa a crescer no final da Idade Média.
• Muitas controvérsias surgiram, especialmente as
travadas entre o realismo e o nominalismo.
• Para o realismo, há perfeita correspondência ou ade-
Caminhos alternativos e
quação entre os conceitos universais e a realidade. A abordagens complementares
essência se manifesta em todas as particularidades.
• Para os nominalistas, os universais nada mais são Projeto interdisciplinar de
do que meros nomes, simples emissões de palavras, reflexão filosófica
sem nenhuma referência a algo objetivo. Os univer-
sais são abstrações da nossa inteligência, conceitos A fé começa e reina na ausência da razão?
universais criados pela nossa mente, sem referência O contexto das reflexões sobre experiência e ra-
a uma realidade objetiva. cionalidade abre‑nos a perspectiva de uma reflexão
• Para Abelardo, “não existe uma universalidade interdisciplinar de natureza filosófica que proble-
nem na coisa nem na palavra”. Tudo é individual. matize a relação entre fé e razão, religião e ciência.

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Entre as questões norteadoras da reflexão filosófica, KENNY, Anthony. Filosofia medieval. Trad. Edson Bini.
sugerimos inicialmente: São Paulo: Loyola, 2008.
• Existe uma racionalidade na fé? SELLA, Adriano. Ética da justiça. São Paulo: Paulus, 2003.
• A filosofia e a teologia podem se encontrar ou ca-
minham sempre paralelamente?
Outras visões
• A fé torna a razão cega ou lança luzes sobre a razão?
Obra de arte
• A razão pode ajudar na compreensão dos mistérios
da fé? Joana d’Arc na Catedral de Reims durante a coroação
• É possível afirmar que existem verdades que ultra- do rei Carlos VII (1890), de Jules Eugène Lenepveu.
passam as capacidades da razão? Afresco.
• Ciência e religião são saberes incompatíveis?
• O cientista pode ser um homem de fé? Desenvolvendo os objetos de estudo
• O homem de fé pode fazer ciência ignorando ou No estudo da teoria do direito em Tomás de
suspendendo a fé religiosa? Aquino, explore, com os estudantes, uma síntese
• Quais são os objetos de estudo da “ciência da religião”? das ideias do filósofo:
Sugestão de site para o desenvolvimento • Lei divina eterna: É o plano eterno racional, exis-
inicial desse projeto tente na mente de Deus, com o qual criou toda
criatura para uma finalidade. É a lei eterna fonte de
Crítica na rede: filosofia da religião. Disponível em: todas as demais leis.
<http://criticanarede.com/religiao.html>. Acesso em: • Lei divina natural: Lei inscrita no coração huma-
10 abr. 2016. no, por Deus, no ato da criação. É a parte da lei
Professor(a), retorne aos objetivos e aos descrito- eterna por nós conhecida. Consiste em fazer o bem
res previstos no planejamento inicial. Faça um diag- e evitar o mal. É a fonte da lei humana.
nóstico das aprendizagens construídas, especial- • Lei humana: Lei originada da lei natural. É o direito
mente as relacionadas ao pensamento conceitual, positivo (lei escrita), direito jurídico. Portanto, não
aos conceitos estruturantes de filosofia previstos pode contradizer a lei natural. Em caso de contra-
para esse eixo temático. dição, não deve ser seguida, pois representa não a
lei, mas a corrupção da lei de Deus.
• Lei divina positiva: Lei escrita pelo próprio Deus
EIXO TEMÁTICO 4 – ÉTICA (Torá judaica com Moisés e o Evangelho de Jesus
E POLÍTICA (p. 176-183) Cristo), cujos objetivos são: corrigir as imperfeições
da lei humana; corrigir as distorções na interpreta-
Objetivos, descritores específicos e ção da lei natural; reconduzir as pessoas na direção
conceitos do eixo temático da bem‑aventurança, da salvação final, em confor-
midade com as orientações da Lei divina eterna.
• Confrontar os poderes da Igreja e do Estado.
• Compreender a teoria da intencionalidade. Discussão das atividades propostas
• Compreender a teoria do direito de Tomás de Aquino.
• Compreender o dever de justiça segundo Tomás Problematizando (p. 179)
de Aquino. Questão 1: A problematização considera a funda-
• Relacionar os conceitos de bem e mal. mentação do princípio da autoridade. De onde vem
todo poder e a que se destina? Os estudantes poderão
Recursos a explorar neste se reunir em pequenos grupos para estudar e apresen-
eixo temático tar os modelos ascendente e descendente de legitima-
ção do poder. Verifique se ficou bem assimilado que o
Fontes para leitura e compreensão de governante não é o soberano. Assim, a autoridade do
fragmentos filosóficos papa não é a autoridade de uma pessoa física. Aqui
AGOSTINHO. A cidade de Deus. In: KENNY, Anthony. Filo- se encontra uma das maiores convicções da época,
sofia medieval. Trad. Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2008. da sociedade teocêntrica. Proponha um trabalho in-
_____. Confissões. Livro VIII. Trad. J. Oliveira Santos e terdisciplinar com História e verifique se os estudantes
A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. conseguem estabelecer a relação entre o Absolutismo
(Os pensadores). e esses modelos de legitimação do poder.

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Problematizando (p. 181) Sugestão de atividade complementar
Questão 1: A problematização considera a teo-
Análise de filmes
ria do direito de Tomás de Aquino e a questão de
uma possível lei natural. Acrescente alguns elemen- Temática: Poderes espirituais e temporais
tos a essa reflexão: O direito contemporâneo con- Filme: Irmão Sol, irmã Lua (Itália, 1972).
tinua admitindo uma lei natural sobre a qual este- Gênero: Drama.
ja construído o direito positivo? É possível alguém Diretor: Franco Zeffirelli.
afirmar que a lei dos homens (direito positivo) vai Duração: 135 minutos.
contra o direito natural (criado por Deus)? Sinopse: Esse filme apresenta a história de Francisco
de Assis (1182‑1226) e pode ser excelente instrumento
Aprofunde esse estudo. Reúna os estudantes em
para analisar as relações existentes entre os poderes es-
grupos. Essa atividade poderá também ser realizada
pirituais e temporais, entre Igreja e Estado.
mediante entrevistas e pesquisas.
Temática: Corrupção religiosa
Problematizando (p. 182) Filme: O sétimo selo (Suécia, 1956).
Questão 1: Nesta questão problematiza‑se a Gênero: Drama.
propriedade privada e sua função social. Reúna os Diretor: Ingmar Bergman.
estudantes em pequenos grupos ou em júri simu- Duração: 96 minutos.
lado no qual apresentem argumentos sobre a pro- Sinopse: A metáfora do jogo de xadrez que o cava-
priedade privada como direito absoluto ou direito leiro trava contra a morte, que o visita, representa a
busca pelo sentido da vida, o desejo de decifração dos
relativo, sobre a função social ou não da proprieda-
segredos da vida e da morte. O filme é um excelente
de privada.
recurso para explorar a decadência da Igreja medieval,
Ao final da discussão, retome a questão central: a corrupção religiosa, o silêncio de Deus diante dos so-
Considerando a argumentação de Tomás de Aqui- frimentos, as justificativas e as manipulações oficiais.
no, por que a propriedade privada seria um direito
relativo? Caminhos alternativos e
Produção de texto (p. 182) abordagens complementares
Questão 1: Considerando a questão que solicita Projeto interdisciplinar de
a integração da bondade da criação, da liberdade reflexão filosófica
humana, da desmedida e dos desvios do afeto hu-
Propriedade privada: direito natural e bem
mano, espera‑se a presença das seguintes ideais na
comum?
produção textual:
O contexto das reflexões sobre ética e política, com
• Tudo o que existe, toda matéria é criação divina.
a motivação decorrente dos estudos sobre a concep-
Portanto a matéria é um bem.
• Sob o ponto de vista metafísico, não existe o mal ção de justiça em Tomás de Aquino, torna‑se ambiente
no Cosmo. Não existe uma entidade má no mun- propício para possibilitarmos aos estudantes a reflexão
do. Portanto, não há mal objetivo. Não existe o mal filosófica problematizando a noção de propriedade
como uma coisa ou um ser objetivo. privada e de sua função social. Entre as questões nor-
• Sob o ponto de vista moral, o mal é o pecado, o teadoras da reflexão filosófica, sugerimos:
afastamento em relação a Deus, uma conversão • A avareza e a ambição são os grandes vícios da
às coisas criadas. Por isso, o pecado tem relação alma humana?
direta com a vontade corrompida, a má vontade. • Como se justifica o direito e o uso da propriedade?
Assim, o mal é a ausência, a falta, a privação de • O direito à propriedade é um direito absoluto ou
Deus, que é o bem. um direito subordinado?
• Sob o ponto de vista físico, a maioria dos nossos • A quem pertence a terra?
males, como as doenças, sofrimentos e tormentos • O que muda no direito à propriedade com a chega-
físicos e espirituais, é consequência do mal moral, da da Revolução Francesa e do liberalismo econô-
decorrência do pecado. Assim, o pecado é uma mico moderno?
ruptura que criamos como o nosso livre‑arbítrio. • A propriedade privada deve ter uma função social?

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Sugestão de bibliografia inicial para o Desenvolvendo os objetos de estudo
desenvolvimento desse projeto O tema da arte na Idade Média deve vir inseri-
Artigo científico do no contexto teocêntrico, no qual a reflexão ou
ALMEIDA, Andréia Alves de. Função social da proprieda- expressão artística estava a serviço da fé, do cultivo
de: pensamento filosófico dos pensadores da doutrina dos princípios da filosofia cristã, lembrando que a
da igreja católica e seu contexto jurídico. Disponível em: ciência que predominava era a teologia. Nesse con-
<http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/ texto, a arte era utilizada como instrumento para
article/viewFile/933/904>. Acesso em: 15 maio 2016. a instrução, catequese e contemplação da história
da salvação.
Legislação
Lei n. 4.504/1964, que dispõe sobre o Estatuto da
Discussão das atividades propostas
Terra. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L4504.htm>. Acesso em: 15 maio 2016. Problematizando (p. 189)
SELLA, Adriano. Ética da justiça. São Paulo: Paulus, Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
2003. p. 177‑183. constem as seguintes ideias:
Livro • Para Tomás de Aquino, as condições ou os critérios
VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à refor- que identificam a beleza implicam três elementos
ma agrária. Leme: Editora de Direito, 1998. fundamentais: integridade, proporção e claridade.
• A unidade como integridade, a bondade como pro-
EIXO TEMÁTICO 5 – ARTE porção e a verdade como clareza são as expressões
do que é verdadeiramente belo.
E ESTÉTICA (p. 184-189)
Sugestão de atividade complementar
Objetivos, descritores específicos e Caso queira trabalhar com o conceito agostinia-
conceitos do eixo temático no de beleza, realize uma reflexão que aborde as
seguintes ideias:
• Compreender a teoria do belo em Agostinho.
• Tudo o que existe vem do livre ato criador de Deus.
• Analisar as condições para a beleza em Tomás de
• Toda matéria criada traz as marcas da beleza do
Aquino.
Criador. Por isso, tudo o que existe é intrinseca-
• Reconhecer em obras de arte elementos da fé cristã.
mente belo e bom.
• Relacionar obras de arte com a cosmovisão medieval. • Bondade, beleza e verdade se correspondem e en-
contram‑se no Criador de toda forma de vida.
Recursos a explorar neste • A fealdade surge do desvio, do afastamento em re-
eixo temático lação a Deus. Quanto mais próximo a Deus, mais
brilho; quanto mais distante, mais palidez.
Fonte para leitura e compreensão de • O deleite estético não se encontra nos sentidos,
fragmentos filosóficos mas na mente que reconhece no âmbito do sensí-
AGOSTINHO. Confissões. Livro III. Trad. J. Oliveira e A. vel a presença da beleza eterna.
Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os
pensadores). Caminhos alternativos e
abordagens complementares
Outras visões Sugerimos que a abordagem da filosofia medie-
val seja feita de forma interdisciplinar com História,
Obras de arte
para que as informações recebam uma abordagem
Vitrais no interior da Catedral de Chartres, França.
conceitual e para que a reflexão filosófica seja bem
Noite santa (1530), de Antonio Allegri da Correggio.
contextualizada. Entre os caminhos alternativos e as
Óleo sobre tela, 256,5 cm × 188 cm.
abordagens complementares, sugerimos:
A adoração dos anjos (1460), de Benozzo Gozzoli (de-
talhe). Afresco. • Debate sobre as possibilidades de integração das
ideias de destino e liberdade. A ideia de que a vida
humana é guiada por deuses ou forças divinas ou

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entes sobrenaturais acompanha a humanidade • Como a dimensão teocêntrica, estamental e hierár-
desde os primórdios. São exemplos disso os estu- quica está presente nos retratos artísticos?
dos astrológicos, os mapas astrais etc. • Como se relaciona o simbolismo da luz e das som-
• Comparar os conflitos entre fé e razão, ontem e bras com a teologia cristã?
hoje; o ideal da vida ascética, desenvolvido na Ida- • Quais são as condições ou os critérios que identifi-
de Média, e a moderna moral laica. cam a beleza?
• Analisar de forma interdisciplinar, especialmente • Como se relacionam a arte com a evangelização,
com a Sociologia, o fenômeno religioso sob diver- ensino ou catequese?
sas visões: objetos simbólicos; ritos de passagem; • O que diferencia o estilo gótico do estilo românico?
crenças e mitos; realização humana; alienação; mo- • Por que a maior parte das obras de arte da Idade
ral sexual etc. Média não tem autoria definida?
• Estudo e debate sobre a histórica separação entre
os poderes da Igreja e do Estado. Sugestão de bibliografia inicial para o
• Realizar um estudo do pensamento de Dante Alighieri desenvolvimento desse projeto
(1265‑1321) para que se possa entender o momento ANSON, H. W. História da arte. Lisboa: Fundação Ca-
de progressiva separação entre Igreja e Estado. louste Gulbenkian, 1992.
HINDLEY, Geoffrey. O grande livro da arte: tesouros
Projeto interdisciplinar de artísticos do mundo. Lisboa/São Paulo: Verbo, 1982.
reflexão filosófica INÁCIO, Inês C.; LUCA, Tânia Regina de. O pensamen-
to medieval. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991.
A filosofia cristã nos estilos românico LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Mé-
e gótico dia. Lisboa: Editorial Estampa, 1979.
A reflexão sobre a arte na Idade Média é um
Professor(a), volte aos objetivos e aos descritores
convite à realização de um projeto interdisciplinar,
previstos no planejamento inicial. Faça um diagnóstico
especialmente com Arte, Sociologia e História, cujo
da aprendizagem construída, especialmente daquela
objetivo é compreender as expressões artísticas da
relacionada ao pensamento conceitual, aos conceitos
filosofia e da teologia cristãs, bem como os traços
estruturantes da filosofia previstos para esse eixo te-
da visão de mundo reinante. Sugerimos as proble-
mático e para a unidade que aqui se encerra.
matizações iniciais:

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UNIDADE 4 – A FILOSOFIA E Desenvolvendo os objetos de estudo
O ESPÍRITO MODERNO Na transição do período medieval para o mo-
derno, aconteceram profundas mudanças no pen-
samento político, religioso, cultural, econômico e
EIXO TEMÁTICO 1 – CONDIÇÃO científico. Contudo, embora tenham acontecido
HUMANA (p. 192-201) grandes mudanças, não falaremos em ruptura,
tampouco em “renascimento”, como se o momen-
Objetivos, descritores específicos e to histórico precedente tivesse sido um período de
conceitos do eixo temático “trevas”. Solicitamos nesse momento especial cui-
dado para evitar uma leitura ultrapassada, ainda
• Analisar as questões centrais da antropologia re- muito comum, embora já bastante combatida pelos
nascentista e moderna. estudiosos e especialistas da área.
• Analisar as questões centrais do pensamento de Nesse contexto, a economia mundial encon-
Montaigne. tra‑se em profundas transformações e caminha para
• Compreender o fenômeno da secularização. sua autonomia em relação à esfera religiosa. Nas
• Compreender o humanismo e o antropocentrismo ciências, inicia‑se aquilo que se chama de revolução
moderno. científica. Na consciência que está em formação, as
• Relacionar a dignidade à liberdade. forças persuasivas não mais se encontram na autori-
• Compreender o ideal da vida ativa.
dade, mas na experiência e no argumento.
• Analisar o conceito renascentista e moderno de
Inicia‑se um processo de secularização da cons-
virtude.
ciência, que se aplica a todos os âmbitos da vida.
• Compreender o fenômeno do Iluminismo.
Um exemplo dessa mudança é a nova concepção
Recursos a explorar neste de virtude, não mais vinculada à dimensão religio-
sa. Lembramos a importância da reflexão sobre o
eixo temático contexto das navegações que marca a Europa re-
Fontes para leitura e compreensão de nascentista e moderna e com ele o intercâmbio
cultural. Nesse sentido, você poderá desenvolver
fragmentos filosóficos
uma reflexão interdisciplinar com as Ciências Sociais
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o Es- sobre temas como etnocentrismo ou eurocentris-
clarecimento? Trad. Danilo Marcondes. In: MARCON- mo, evolucionismo cultural e culturalismo, atitudes
DES, Danilo. Textos básicos de ética. Rio de Janeiro: presentes nos processos modernos de colonização.
Jorge Zahar, 2006. Nesse contexto, insere‑se a reflexão de Montaigne,
MIRANDOLA, Pico della. A dignidade humana. Trad. na qual critica a ação dos colonizadores.
Luis Feracine. São Paulo: Escala Educacional, 2006. Recomendamos, igualmente, realizar uma proble-
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet.
matização em torno da palavra “Iluminismo” adapta-
São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores).
da da palavra alemã aufklärung, que significa “escla-
Outras visões recimento”, uma vez que ela também traz uma visão
já desconstruída pelos estudos históricos contempo-
Obras de arte râneos, segundo a qual a Idade Média teria sido um
A sibila Eritreia (1509), de Michelangelo. Afresco, longo período de obscuridade cultural. Nessa visão, a
360 cm × 380 cm. modernidade seria o período histórico que traria as lu-
Canibalismo no Brasil em 1557 como descrito por Hans zes para a humanidade. Contudo, deve‑se, sim, desta-
Staden (1562), de Theodore de Bry. Gravura. car os aspectos da liberdade e da autonomia humana
Davi (1504), de Michelangelo. Mármore, 410 cm × diante das imposições de uma mentalidade religiosa.
133 cm.
Lisboa (1598), de Georg Bauer e Hogenberg. Gravura. Discussão das atividades propostas
Poema Problematizando (p. 194)
Navegar é preciso, de Fernando Pessoa. In: Obra poéti-
Questão 1: Nessa questão, o foco está na noção
ca. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
de virtude de Montaigne e sua possível relação com

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a noção de virtude da tradição grega. Inicialmente, Outros olhares (p. 201)
estimule os estudantes a retomar a noção grega.
Questão 1: Trabalha o conceito de espírito mo-
Nesse caso, pode‑se trabalhar a ideia de areté, a vir-
derno com base no poema “Navegar é preciso”,
tude dos homens que se destacam e se diferenciam,
de Fernando Pessoa, o qual sugerimos analisar de
desde a tragédia grega. É possível e até mesmo pre-
modo interdisciplinar. Procure levar os estudantes
ferível concentrar‑se na visão aristotélica de virtude:
a identificar características do espírito moderno,
a conquista da mediania, que implica esforço, supe-
como liberdade, imprecisão, desejo de invenção e
ração, luta, conquista.
criação, desejo de controlar o destino etc. Estimu-
Questão 2: Incentive os estudantes a refletir le‑os a problematizar o antropocentrismo moder-
sobre as potencialidades humanas, ou seja, as ap- no, relacionando‑o à exploração do humano e da
tidões naturais que podem se tornar virtude caso natureza. Questione: O antropocentrismo pode ser
sejam cultivadas. conjugado com o princípio da sustentabilidade am-
Problematizando (p. 195) biental, humana e social?

Questão 1: Nessa questão, problematiza‑se o Produção de texto (p. 201)


conceito de dignidade humana, com base na obra
Questão 1: Quanto à questão que solicita a
de Pico della Mirandola. Essa problematização pode
redação de um texto relacionando a modernidade
ser integrada à produção de texto da página 199.
com o projeto do Iluminismo, espera‑se que os estu-
Produção de texto (p. 199) dantes expressem as seguintes ideias:
• Esse projeto tem como objetivo colocar o ser huma-
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
no no centro das atenções e fazer com que ele se
constem as seguintes ideias na produção textual dos
assuma como sujeito da própria história.
estudantes:
• Esse projeto pretende libertar o ser humano do
• O poder da liberdade humana como atributo que princípio da autoridade como critério de verdade.
confere toda a dignidade ao ser humano, como se- • Libertar o ser humano com que finalidade?
nhor do próprio destino, construtor da própria sorte.
• O poder da liberdade humana resgata a dimensão O projeto de libertar o ser humano de qualquer
política a vida humana. forma de alienação acabou deixando‑o escravizado
• O poder da liberdade humana afirma a primazia de de uma nova forma de razão – técnica e instrumen-
vida ativa sobre a contemplativa. tal (conforme a crítica da Escola de Frankfurt, que
• Esse poder é caracterizado pela secularização da pode ser antecipada, pelo professor, nesse momen-
consciência, que começa a se separar dos prin- to). O império da razão técnica parece ter aneste-
cípios da autoridade e das orientações oriundas siado a razão filosófica, crítica, de acordo com Hor-
da religião. kheimer, ao referir‑se ao eclipse da razão.
• A nova autoridade é a experiência, aliada à razão.
Sugestão de atividade complementar
Problematizando (p. 200)
Questão 1: Nessa questão, problematiza‑se o Análise de filme
Iluminismo a partir das noções kantianas de meno- Temática: Ideias renascentistas de liberdade
ridade e maioridade. Inicialmente, verifique se os Filme: Lutero (Alemanha, 2003)
estudantes compreenderam o preconceito implícito Gênero: Drama
na ideia de Iluminismo – a era das luzes, em con- Direção: Eric Thill
traposição a um período que teria sido de trevas. Duração: 123 minutos
Reflita com a turma sobre a importância da Idade Sinopse: A história se passa na Europa do século
Média para a tradição do conhecimento. Em segui- XVI e retrata as revoltas econômicas, políticas e
da, nesse contexto, explore a ideia de menoridade religiosas que estavam em andamento. A profun-
e maioridade. Estimule o pensamento crítico e argu- da crítica de Lutero contra muitas práticas religio-
mentativo dos estudantes em relação ao alcance – e sas abusivas conduzidas pela Igreja Católica chega
ao limite – dessas noções. ao ápice com a publicação do manifesto das 95

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teses de Lutero, que foram afixadas na Catedral Antropocentrismo e ecologia
de Wittemberg. Este filme é uma boa oportuni- Com a reflexão antropológica do período moder-
dade para visualizar e refletir sobre o movimento no, que considera a ideia do homem como senhor
da Reforma e as críticas à corrupção religiosa, aos do Universo, abre‑se espaço para propor aos estu-
abusos do poder hierárquico e eclesiástico. Igual- dantes a realização de um projeto interdisciplinar de
mente importantes são os ideais renascentistas de reflexão filosófica que busque compreender o espí-
liberdade presentes na luta contra o dogmatismo, rito do antropocentrismo moderno e suas decorrên-
a interpretação unilateral da Bíblia, a castidade e a cias socioambientais. Entre as questões norteadoras
manipulação ideológica. da reflexão filosófica, sugerimos inicialmente:
• A sustentabilidade socioambiental é compatível
Caminhos alternativos e com “espírito” do capitalismo?
abordagens complementares • O princípio bíblico “crescei, multiplicai‑vos e domi-
nai toda criatura” pode estar na raiz do antropo-
Projeto interdisciplinar de centrismo?
reflexão filosófica • As ideias de responsabilidade social e ambiental,
vindas do mundo corporativo, são um indicativo de
A dignidade humana
que estamos vivendo uma mudança de paradigma
O humanismo e o antropocentrismo trazem uma em relação ao capitalismo clássico?
noção de dignidade humana associada à ideia de li- • O que é passivo ambiental?
berdade que revolucionará o mundo moderno. Esse • O que é ecologia humana, social, ambiental e
contexto é um momento privilegiado para cons- mental?
truirmos com os estudantes uma reflexão filosófica
sobre o tema, tendo como objetivo compreender a Sugestão de fontes e bibliografia inicial para
dignidade humana como princípio absoluto. Entre o desenvolvimento desse projeto
as questões norteadoras da reflexão filosófica, su- Livros
gerimos inicialmente: BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa:
• O princípio da dignidade humana é um valor moral Edições 70, 1991.
e espiritual inerente à pessoa? BAUMAN, Zygmunt. A vida para o consumo. A trans-
• O conceito de dignidade é uma concepção cultural? formação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos
• Como se concebia a dignidade na Antiguidade gre- Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
ga e romana, no período medieval, na modernida- BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é, o que não
de e, atualmente, na contemporaneidade? é. Petrópolis: Vozes, 2012.
• Existem pessoas que têm mais dignidade do que GUATTARI, F. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F.
outras? Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.
WEBER, Max. Ética protestante e “espírito” do capita-
Sugestão de bibliografia inicial para o lismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
desenvolvimento desse projeto
Vídeos
SANTANA, Raquel Santos. A dignidade da pessoa huma-
na como princípio absoluto. Disponível em: <www.direi Capitalismo × sustentabilidade (7 min.). Disponível em:
tonet.com.br/artigos/exibir/5787/A‑dignidade‑da‑pes <www.youtube.com/watch?v=LKwkuXjC‑4E>. Acesso
soa‑humana‑como‑principio‑absoluto>. Acesso em: em: 15 maio 2016.
15 maio. 2016. O homem capitalista (animação, 3 min). Disponível
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucio- em: <www.youtube.com/watch?v=5XqfNmML_V4>.
nal da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Sarai- Acesso em: 15 maio 2016.
va, 2002. Professor(a), volte aos objetivos e aos descrito-
SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa huma- res previstos no planejamento inicial. Faça um diag-
na e direitos fundamentais na Constituição da Repú- nóstico da aprendizagem construída, especialmente
blica de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, aquela relacionada ao pensamento conceitual, aos
2002. conceitos estruturantes da filosofia previstos para
esse eixo temático.

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EIXO TEMÁTICO 2 – EXPERIÊNCIA KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Prefácio à 2a
edição. São Paulo: Abril Cultural, 1991. (Os pensadores).
E RACIONALIDADE (p. 202-225) KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo in-
finito. Trad. Donaldson M. Garschagen. 4. ed. Rio de
Objetivos, descritores específicos e Janeiro: Forense universitária, 2006.
conceitos do eixo temático
Outras visões
• Compreender a noção moderna de experiência.
Obras de arte
• Caracterizar o ceticismo renascentista.
Galileu demonstra a lei da gravidade para Dom
• Confrontar o modelo aristotélico‑ptolomaico com
Giovanni de Médici (1839), de Giuseppe Bezzuoli.
o copernicano.
Afresco.
• Caracterizar a revolução científica do século XVII.
Galileu Galilei perante os membros do Santo Ofício
• Analisar o método científico e a nova ciência em
(1847), de Joseph‑Nicolas Robert‑Fleury. Óleo sobre
Francis Bacon.
tela, 196,5 cm × 308 cm.
• Caracterizar o racionalismo moderno.
Lição de anatomia do Dr. Willem Van der Meer
• Caracterizar o empirismo moderno.
(1617), de Michel Jansz Mierevelt. Óleo sobre tela,
• Analisar o racionalismo crítico de Kant.
146,5 cm × 202 cm.
Recursos a explorar neste Mapa celeste (1660) de Andreas Cellarius, publicado
no Atlas celestial.
eixo temático O espelho falso (1928), de René Magritte. Óleo sobre
Fontes para leitura e compreensão de tela, 54 cm × 80,9 cm.

fragmentos filosóficos Desenvolvendo os objetos de estudo


BACON, Francis. Novum organum. Trad. José Aluysio No que tange ao eixo temático da experiência e
Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os da racionalidade, a centralidade será ocupada pela
pensadores). revolução científica do século XVII, que inaugurou
COPÉRNICO, Nicolau. Das revoluções dos orbes celes- uma nova visão de mundo, de Universo infinito,
tes. Livro I. In: KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado escrito em linguagem matemática, decifrável por
ao Universo infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. meio da experiência e da razão humana. Nesse âm-
4. ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006. bito, abordaremos as duas concepções epistemoló-
DA VINCI, Leonardo. Tratado da pintura. In: REALE,
gicas do empirismo e o racionalismo, bem como a
G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do humanismo a
tentativa de superação da dicotomia que se estabe-
Descartes. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.
leceu entre as duas correntes, com a nova ciência, a
DE CUSA, Nicolau. A douta ignorância. Livro II. In:
partir de Francis Bacon e Immanuel Kant.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo
Sugerimos começar os estudos com a pintura
infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense universitária, 2006.
Lição de anatomia do Dr. Willem Van der Meer,
DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Jacob presente na página 203 do Livro do Estudante,
Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cul- de Michel Jansz Mierevelt. Esse quadro retrata
tural, 1991. (Os pensadores). muito bem o novo espírito da época, de caráter
_____. Meditações. Trad. Jacob Guinsburg e Bento investigativo, invasivo, fundamentado na experi-
Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os mentação. Esse novo saber e atitude transformam
pensadores). em problema o que até então era concebido como
GALILEI, G. O ensaísta. In: REALE, G.; ANTISERI, D. His- mistério.
tória da filosofia: do humanismo a Descartes. Trad. Ivo A tela Galileu demonstra a lei da gravidade para
Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. Dom Giovanni de Médici, de Giuseppe Bezzuoli,
_____. Carta a Dom Benedetto Castelli. In: REALE, G.; reproduzida na página 207 do Livro do Estudante,
ANTISERI, D. História da filosofia: do humanismo a Des- é também muito significativa, pois sinaliza para a
cartes. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. moderna revolução científica, na qual existe um
HUME, David. Investigação acerca do entendimento hu- enorme esforço em buscar conhecer as leis que
mano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1992. regem o movimento dos corpos.

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Discussão das atividades propostas Produção de texto (p. 209)
Questão 1: Os elementos a seguir devem se fa-
Problematizando (p. 204)
zer presentes para responder às questões relaciona-
Questões 1 e 2: Nessas problematizações abor- das à revolução científica do século XVII:
da‑se a noção de experiência, que difere da simples • A passagem da explicação religiosa para a explica-
observação, e explicita‑se a crítica renascentista e ção científica.
moderna à metafísica. Proporcione aos estudantes o • A passagem do mundo fechado, estruturado hie-
tempo necessário para a leitura – ou a releitura – do rarquicamente, para o Universo infinito.
texto de Leonardo da Vinci. Incentive‑os a perceber, • O Universo está escrito em linguagem matemática,
no texto, a crítica e os novos procedimentos para se progressivamente decifrável pela experiência e pela
chegar ao conhecimento. A reflexão pode conter as razão.
seguintes ideias: • A metodologia da dúvida, que põe fim às certezas
• Posicionamento contrário ao racionalismo cristão, medievais.
que, com base no princípio da autoridade, afirmava • Instaura‑se o princípio da incerteza.
verdades eternas. • Fim do recurso à autoridade
• Todo acontecimento tem uma razão de ser, cap- • As novas referências explicativas são a experiência
tável pela pesquisa, pela experiência e pela razão e o argumento.
científica. • A experiência realiza novas descobertas constante-
• O Universo foi escrito em linguagem matemática mente.
e a verdade do Universo deverá ser buscada e de-
monstrada pela ciência. Problematizando (p. 213)
• Não mais se aceita uma visão de ciência (teológica) Questão 1: Nessa seção, o foco está na teoria
sem vínculo com a prática e sem sentido para o dos ídolos, de Francis Bacon. Solicite aos estudantes
cotidiano da humanidade. que, em pequenos grupos, retomem essa reflexão
• A consciência opera um processo de secularização, e/ou considerem a síntese que está na tabela da
de transição da esfera religiosa e sagrada para a página 213. Se possível, peça aos estudantes que
esfera secular, histórica e temporal. tragam exemplos de cada ídolo ou falsa noção apre-
• O ideal de vida se desloca do eixo contemplativo sentado por Bacon.
para o da vida ativa, na qual o homem se torna o
sujeito, agente de seu destino, de sua história. Produção de texto (p. 213)
Problematizando (p. 206) Questão 1: Os estudantes devem desenvol-
ver uma reflexão na qual constem as seguintes
Questão 1: Nessa questão, problematiza‑se o
ideias na produção textual sobre os empíricos e
motivo da condenação de Giordano Bruno, relacio-
os dogmáticos:
nado à concepção de Universo infinito. Como su-
• Os empíricos são como formigas: fundamentados
gestão, reúna os estudantes em duplas ou trios e
na experiência, necessitam sempre de novo come-
peça a eles que façam um paralelo entre as diferen-
çar; somente a experiência não possibilita ciência.
tes visões de ciência e de Universo que vigoravam Para o empirismo, fora da experiência não há co-
na passagem da Idade Média para a modernidade. nhecimento possível.
Quanto ao motivo da condenação de Giordano Bru- • De acordo com o empirismo de David Hume, a
no, verifique se os estudantes conseguem associá‑ experiência é sempre particular, uma vez que as
‑lo ao conceito de infinitude como característica do sensações são sempre particulares, assim como as
criador do Universo, e não do Universo em si. percepções delas decorrentes. Partindo do princí-
pio de que as ideias nascem das sensações e das
Problematizando (p. 209)
percepções, não há ideia universal, apenas ideias
Questões 1 e 2: Nesta seção, trabalha‑se o prin- particulares conjugadas. Assim, não existe a rela-
cípio de autoridade e o recurso a ele como critério ção causal; não existe o nexo causa‑efeito. Dessa
de verdade. Peça aos estudantes que explicitem os forma, o hábito de ver algo acontecer torna‑se o
novos critérios de verdade científica, que passam nosso guia e alimenta a nossa esperança.
pela experiência e pela razão.

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• Os racionalistas são como aranhas: na Crítica ao • As impressões são a causa das ideias. Considerando
racionalismo, Bacon os compara a aranhas, pois te- que cada ideia é a cópia de uma impressão, e uma
cem a verdade de dentro de suas mentes, de modo impressão é necessariamente particular, as ideias
abstrato. É uma crítica às ideias inatas, ao conheci- devem ser também particulares.
mento sem referência ao mundo empírico. • Crítica das ideias de universalidade e de necessida-
• Para o racionalismo, existem verdades universais, de. Essa crítica leva à problematização da noção de
necessárias e eternas, captáveis por uma intuição. relação necessária entre causa e efeito.

Problematizando (p. 217) Problematizando (p. 224)


Questão 1: Nessa problematização, o foco é o Questão 1: Nessa seção, trabalha‑se a relação
papel da dúvida no racionalismo de Descartes. Ini- entre sujeito e objeto, na perspectiva de Kant. Su-
cialmente, recorde com os estudantes o lugar e a gerimos que essa problematização constitua uma
centralidade da dúvida no ceticismo e sua relação preparação para a produção de texto sobre a “revo-
com a suspensão do juízo. A seguir, verifique o co- lução copernicana” inaugurada por Kant.
nhecimento da turma no que se refere à dúvida me- Nesse sentido, estimule a criticidade nos estu-
tódica, ou dúvida hiperbólica, subordinada à busca dantes quanto à concepção do ato mesmo de co-
da evidência, da clareza e da distinção. nhecer: Seria uma adequação da mente à coisa?
Seria uma imposição do sujeito ao objeto? Que tipo
Produção de texto (p. 218) de relação existiria entre sujeito e objeto? É possível
Questão 1: Considerando a questão sobre o conhecer a essência de algo, ou somente nos é pos-
racionalismo de René Descartes, espera‑se que os sível conhecer a forma que nos aparece?
estudantes expressem as seguintes ideias:
Produção de texto (p. 225)
• O racionalismo cartesiano preza pela conquista de
ideias claras e distintas, busca o rigor no pensa- Questão 1: Em relação à questão sobre a “revo-
mento, a investigação acerca das regras que deve- lução copernicana” de Kant, espera‑se que os estu-
ríamos seguir para chegar à clareza e à distinção, dantes expressem os seguintes conceitos:
ao conhecimento seguro, evitando as generaliza- • Não é o indivíduo que deve se adaptar ao objeto a
ções apressadas, as precipitações e as prevenções. ser conhecido, mas é o objeto que deve se adaptar
• A dúvida, em Descartes, cumpre a função de méto- às condições de possibilidade de conhecimento que
do, de caminho, a serviço da busca da verdade, das existem no sujeito.
ideias claras e distintas. • O sujeito possui as condições de possibilidade de
conhecer os fenômenos; ele possui as regras pelas
Problematizando (p. 221) quais os objetos podem ser reconhecidos.
Questão 1: Na página 221, aborda‑se o empi- • O que conhecemos é marcado pela maneira como
rismo e o racionalismo, a fonte do conhecimento conhecemos.
seguro e verdadeiro. Peça aos estudantes que se po- • Não nos é possível conhecer o noumenon, a essên-
sicionem crítica e argumentativamente, buscando cia, a verdade em si.
expressar os limites e as possibilidades do empirismo • O pensamento de Kant afasta‑se tanto do empiris-
mo como da metafísica racionalista clássica.
e do racionalismo, separadamente. O objetivo dessa
abordagem é preparar os estudantes para a síntese
que será proposta por Kant.
Caminhos alternativos e
abordagens complementares
Produção de texto (p. 221) A modernidade inaugura um momento muito
Questão 1: No que se refere à questão sobre o especial e rico na história do pensamento ociden-
empirismo de David Hume, espera‑se a presença das tal. Muitas são as abordagens complementares
seguintes ideias: existentes, pois diversas são as ênfases possíveis
• Todo conhecimento verdadeiro está vinculado à para perceber as marcas de uma nova visão de ser
experiência. humano, de conhecimento, de política, de arte e es-
• Inicialmente, a partir de nossos sentidos, formam‑se tética etc. Sugerimos alguns caminhos alternativos:
em nossa mente as percepções, que são as impres-
sões e as ideias.

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• Seminário de estudo da obra A dignidade humana, • Sugerimos construir, de forma interdisciplinar
de Pico Della Mirandola (1463‑1494). Em termos com a área de Ciências Exatas e da Natureza
antropológicos, esse livro é referência fundamental (Biologia, Química e Física), uma experiência
para compreender os novos rumos da reflexão so- científica duradoura, que trabalhe os passos
bre a condição humana. Essa obra merece ser lida e do método científico: observação e problema-
estudada na íntegra. tização; hipótese; confirmação da hipótese; ge-
• Atualização ou aplicação do conceito de bárbaro. neralização; e conclusão em forma de teoria.
Na reflexão sobre “Os canibais”, em sua obra En- Torna‑se fundamental que o estudante vivencie
saios, Montaigne desenvolve a ideia de bárbaros. os passos da nova metodologia das ciências e
Chega a afirmar que, embora possamos chamar participe do novo espírito da época que marca
os costumes de outros povos de bárbaros, não a modernidade.
devemos cegar nossos olhos para o que há de
bárbaro em nossos costumes. Nesse sentido, con- Projeto interdisciplinar de
siderando diferentes situações mundiais, globais reflexão filosófica
e regionais, seria interessante pensarmos sobre
O relativismo: limites e possibilidades
quais aplicações poderíamos fazer dessa reflexão
de Montaigne, levando em conta o tema da di- O tema do conhecimento, no contexto do ceti-
versidade cultural. Para o aprofundamento teóri- cismo renascentista, é uma oportunidade para pro-
co, sugerimos uma obra de grande alcance para mover entre os estudantes uma reflexão filosófica
a formação continuada do colega professor: NO- com o objetivo de compreender os alcances e limites
VAES, Adauto (Org.). Civilização e barbárie. São do relativismo nas áreas do conhecimento, da moral
Paulo: Companhia das Letras, 2004. e da política. Entre as questões norteadoras da refle-
• Em termos de ciência, a maior referência para o xão filosófica, sugerimos inicialmente:
nosso estudo certamente são as produções de Gali- • O relativismo pode ser interpretado como sinal de
leu Galilei (1564‑1642). Sugerimos desenvolver, em inteligência e de sabedoria?
diálogo interdisciplinar com a Física, uma atividade • Na abordagem intercultural, existem dimensões do
que consista em fazer uma analogia entre a visão relativismo que devem ser problematizadas?
aristotélica de ciência e a nova ciência que se inicia • No campo do conhecimento, quais são os aspectos
com Galileu. positivos e negativos do relativismo?
• Em termos antropológicos e de ciência, sugeri- • Sabendo que o ceticismo é uma forma de relativis-
mos mergulhar nos pensamentos de Blaise Pascal mo, a postura cética na vida política teria aspectos
(1623‑1662), físico, filósofo, matemático e teólo- positivos e negativos? Quais?
go que influenciou profundamente o pensamento
de sua época. Sugerimos escolher alguns frag- Sugestão de fontes e bibliografia inicial para
mentos da obra Os pensamentos para fomentar o desenvolvimento desse projeto
nos estudantes o pensamento metafísico, de na- Livros
tureza mais complexa.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janei-
• Em termos de conhecimento, a modernidade é
ro: Zahar, 1978.
marcada pela revolução científica do século XVII.
PEIRANO, M. G. S. Uma antropologia no plural. Brasí-
Sugerimos a confecção de um painel que ficará ex-
lia: UnB, 1992.
posto na sala mostrando os princípios dessa revo-
lução, sua nova visão de Universo infinito confron- Artigo científico
tada com a visão medieval de mundo fechado e RAPCHAN, Eliane Sebeika. Relativismo epistêmico, re-
ordenado hierarquicamente. A visualização desses lativismo antropológico: reflexões sobre a produção do
elementos revolucionários, que caminham da fé e pensamento no âmbito das contribuições da Antro-
dos dogmas para a dúvida metódica, para as in- pologia. In: Acta Scientiarum. Maringá, v. 24, n. 1, p.
certezas e para a autoridade da experiência e do 261‑270, 2002.
argumento, poderá ser uma excelente estratégia de
fixação e apropriação crítica.

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EIXO TEMÁTICO 3 – ÉTICA E MORUS, Thomas. Utopia. Trad. Luís de Andrade.
São Paulo: Nova Cultural, 1972. (Os pensadores).
POLÍTICA (p. 226-256) ROUSSEAU, Jean‑Jacques. Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Objetivos, descritores específicos e Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cul-
conceitos do eixo temático tural, 1991.
• Analisar as questões centrais do pensamento políti- _____. O contrato social. Trad. Lourdes S. Machado.
co de Maquiavel. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores).
• Caracterizar a concepção maquiaveliana de poder.
• Relacionar os conceitos laicidade e secularização. Outras visões
• Compreender o conceito de virtude política em Livro
Maquiavel. WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direi-
• Compreender a utopia política em Thomas Morus. to. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
• Compreender o conceito de soberania em Jean
Bodin. Obras de arte
• Analisar os postulados do jusnaturalismo. Derrota da Armada Espanhola (1796), de Philip James de
• Analisar as questões centrais do contratualismo Loutherbourg. Óleo sobre tela, 214,6 cm × 278,1 cm.
moderno. Escultura da Deusa Themis.
• Analisar as hipóteses do “estado natural” na visão Página de rosto da primeira edição da obra Leviatã
dos filósofos contratualistas. (1651), de Thomas Hobbes.
• Analisar as concepções de “pacto social” na visão
dos filósofos contratualistas. Desenvolvendo os objetos de estudo
• Compreender a relação entre lei e liberdade.
• Analisar as funções dos três poderes. No eixo temático dedicado à ética e à política
• Compreender o conceito de justiça. modernas, mergulhamos em um contexto muito
• Compreender o conceito de soberania. rico e denso de possibilidades a serem exploradas.
• Analisar a relação entre lei, liberdade e dever em Kant. Optamos por começar com a concepção política
• Confrontar as noções de dever e obrigação. em Maquiavel por ser o marco fundamental que
inaugura a política moderna, em seu realismo, em
Recursos a explorar neste sua busca pela verdade efetiva, em sua nova con-
eixo temático cepção de virtude política, em sua defesa da liber-
dade republicana.
Fontes para leitura e compreensão de No tema 5 abordaremos a hipótese do estado
fragmentos filosóficos natural nos filósofos contratualistas. Inicialmente,
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filoso- estimule os estudantes a formular hipóteses: Existi-
fia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores). ria um estado natural, pré‑civil? Como e por que te-
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Trad. João Paulo Mon- ria ocorrido a passagem para a vida em sociedade?
teiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. (Os pensadores). Discussão das atividades propostas
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Problematizando (p. 231)
Barcarolla, 2009. Questão 1: Nessa problematização, o foco está
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. na separação da política moderna em relação à es-
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vo- fera religiosa, no pensamento de Maquiavel. Dian-
zes, 2006. te da afirmação da necessidade da separação entre
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira déca- política e religião para uma administração efetiva da
da de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007. cidade, solicita‑se ao estudante que explicite seu po-
_____. O príncipe: com comentários de Napoleão Bo-
sicionamento de modo argumentativo. Verifique o
naparte. Trad. Mônica Baña Álvares. Rio de Janeiro:
conhecimento dos estudantes quanto à crítica ma-
Elsevier, 2003.
quiaveliana ao idealismo da fé cristã, em defesa do
MONTESQUIEU, Charles. O espírito das leis. Trad. Ga-
realismo político.
briela Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

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Produção de texto (p. 231) Produção de texto (p. 233)
Questão 1: A produção dos estudantes deve Questão 1: A respeito da conceituação de sobe-
conter as seguintes ideias sobre a novidade política rania em Jean Bodin, explicitando seu caráter abso-
inaugurada por Maquiavel: luto, indivisível e perpétuo, a produção dos estudan-
• A novidade política consiste na autonomia da polí- tes deve conter as ideias a seguir:
tica em relação à religião e à ética cristã. • O adjetivo “absoluto” refere‑se a algo incondicio-
• Trata‑se da política pela política, não havendo ne- nado, que não tem outros limites senão os da lei
nhuma instância anterior à política. divina e da lei natural. As únicas limitações de um
• Trata‑se do realismo político, no qual o critério da poder absoluto são a lei divina e a lei natural.
ação é a verdade efetiva, seu êxito. • O adjetivo “indivisível” sinaliza para a soberania
• A concepção de virtude política como a habilidade concentrada no Estado, não havendo possibilidade
de adaptar‑se às circunstâncias e agir em conformi- de ela se diluir, fragmentar‑se, alienar‑se.
dade com as demandas do momento, sem ater‑se • O adjetivo “perpétuo” refere‑se ao fato de que a
ao idealismo da ética cristã. soberania não se identifica com a figura histórica
Questão 2: A produção dos estudantes deve do príncipe, que é governo que passa. A sobe-
conter as seguintes ideias sobre a conceituação de rania não é transitória, não se transmite (é indi-
virtude política para Maquiavel: visível). Ela pertence ao Estado, que permanece.
Com isso, afirma‑se a permanência ou a continui-
• A circunstância está aí para todos e ela não é nem
dade da república.
boa nem ruim.
• Virtude consiste na capacidade de adaptação às
Produção de texto (p. 234)
circunstâncias, fazendo delas uma oportunidade
para atingir o objetivo previamente estabelecido. Questão 1: A produção dos estudantes deve
• Virtude é, então, o senhor da própria sorte. conter as seguintes ideias:
• Virtude é a capacidade de planejar, prever e traçar • No estado natural, há direitos. Contudo, esses di-
as estratégias que melhor se adaptam à circunstân- reitos naturais não estão garantidos, uma vez que
cia, em vista do êxito almejado, sem que se fique qualquer pessoa poderá tomar qualquer atitude
preso às orientações da moral cristã ou de sua ética para garantir sua sobrevivência.
prescritiva. • No estado natural, não há lei nem poder comum
Questão 3: A produção dos estudantes deve nem juiz universal. Portanto, também não há nem
conter as seguintes ideias sobre a concepção ma- justiça nem injustiça naturais.
quiaveliana de poder. • Para que haja vida social, é preciso que exista um
• O contexto do livro O príncipe, cujo objetivo é poder comum, uma lei, uma convenção.
fornecer orientações para o êxito na política, es- • O direito positivo é justamente a lei escrita, o
pecificamente para a conquista da unificação da direito jurídico, originário da lei natural, neces-
Itália. sário para garantir a efetivação dos direitos de
• O poder é a capacidade de mando e de obediência. cada indivíduo.
• O poder é a capacidade de produzir o efeito esperado. • O jusnaturalismo, como teoria ou corrente de pen-
• O poder é a habilidade de garantir a estabilidade e samento, afirma a existência de direitos naturais
durabilidade do governo, assim como do exercício individuais.
de ações políticas que promovam o bem comum. • A afirmação dos direitos naturais individuais
traz a noção de liberdade e de igualdade entre
Problematizando (p. 233) os homens.
• A afirmação da igualdade é condição para que se
Questão 1: Nesse momento, cabe uma refle-
possa efetivar um contrato.
xão e uma problematização com os estudantes
sobre o papel das utopias na história da huma- Problematizando (p. 237)
nidade, especialmente no eixo da ética e da polí-
tica. Estimule a reflexão dos estudantes sobre as Questão 1: Nessa problematização, o foco é a
grandes utopias modernas, que alimentaram as concepção de Hobbes, segundo a qual existe uma
maiores revoluções e estão na raiz de muitas con- natural igualdade entre os seres humanos. Faça uma
quistas sociais atuais. sondagem com os estudantes quanto à caracteri-

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zação dessa igualdade por Hobbes: agressividade, do de guerra). Sugerimos reunir os estudantes em
individualismo etc. Por que será que os indivíduos pequenos grupos para desenvolver uma atividade
chegam à conclusão da necessidade de fazer um em sala de aula. Peça à turma que explicite clara-
pacto? Verifique junto aos estudantes essa aprendi- mente as diferenças entre esses dois posicionamen-
zagem: necessidade de segurança, de longevidade, tos, o que implicará, posteriormente, a percepção
medo da morte violenta etc. Quais são os argumen- da grande diferença no que tange também à forma
tos de Hobbes para afirmar que não existe justiça e de governo.
injustiça naturais? Questão 2: Nessa comparação entre as concep-
ções de Hobbes e de Locke, avalie a percepção dos
Produção de texto (p. 238) estudantes em relação ao que falta no estado de
Questão 1: A produção dos estudantes deve natureza para assegurar a propriedade.
conter as seguintes ideias sobre a necessidade pacto
Problematizando (p. 241)
social, com base na concepção de estado natural
em Hobbes: Questão 1: Nessa questão, considera‑se a posi-
• No estado natural, não existe uma lei que governe ção de Rousseau e sua problematização da origem
os homens, apenas impulsos e interesses particu- da desigualdade entre os homens. Verifique o co-
lares. nhecimento dos estudantes referente à singularida-
• No estado natural, para Hobbes, a vida é uma guer- de do posicionamento de Rousseau e de sua crítica
ra de todos contra todos. à propriedade privada.
• No estado natural, não há um juiz comum.
Problematizando (p. 244)
Dessa forma, para que haja sociedade, é preci-
so que os homens façam um contrato, mediante o Questão 1: Nessa questão, apresenta‑se a ideia
qual aceitem abrir mão de direitos naturais em fun- de pacto social em Hobbes e a problematização de
ção da segurança de uma vida social. A partir do sua concepção de soberania. Verifique a aprendi-
pacto, nascerão diferentes formas de governo, de zagem dos estudantes quanto à afirmação de Hob-
acordo com a concepção de soberania envolvida. bes, no texto Dos direitos dos soberanos por
instituição (fragmento reproduzido na p. 244),
Problematizando (p. 239) segundo a qual constitui uma injustiça romper o
pacto de transferência de direito, ou a destituição
Questão 1: Na problematização referente à dis-
do soberano. Além disso, qual será o alcance dessa
tinção entre direito de natureza e lei de natureza,
soberania? Ela será ilimitada e incondicional? Ou
peça aos estudantes que estabeleçam um paralelo,
deverá atender a um objetivo específico (a paz e a
elaborando uma tabela com duas colunas e caracte-
defesa de todos)?
rizando uma e outra. Exemplo:
Problematizando (p. 246)
DIREITO DE Questões 1 e 2: Nessa página, as problematiza-
LEI DE NATUREZA
NATUREZA ções exploram a separação e a divisão dos poderes
em Locke e sua potencialidade para enfrentar os
Preceito/regra da razão que proíbe desvios do poder, entre eles a corrupção. Verifique
Liberdade.
destruir a própria vida. a aprendizagem dos estudantes relacionada à ne-
cessidade apresentada por Locke para a separação
Ausência de impedi- Preceito racional que proíbe omitir o dos poderes.
mento externo. que ajudaria a proteger a vida.
Problematizando (p. 249)
Questão 1: A primeira problematização refe-
Problematizando (p. 240)
re‑se ao conceito de soberania em Rousseau, à von-
Questão 1: Espera‑se que os estudantes, nessa tade geral e sua distinção em relação à vontade da
problematização, explorem os conceitos: sociabili- maioria. Reflita com os estudantes sobre o critério
dade natural; igualdade e liberdade naturais; direito democrático da maioria: Por que ele não seria ne-
à propriedade (condição para o surgimento do esta- cessariamente o critério do bem comum? Devería-

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mos então seguir outro critério? Qual ou quais? Essa Problematizando (p. 256)
problematização pode se transformar em uma ativi-
Questão 1: Nessa problematização, abordamos
dade de debate ou de júri simulado a favor e contra
as condições da maturidade moral no pensamento
o critério da maioria.
de Kant. Solicite aos estudantes que expliquem a
Questão 2: A segunda problematização concen- relação entre dever e liberdade no pensamento de
tra‑se na hipótese do natural individualismo e/ou da Kant, a partir da afirmação: “O dever de realizar a
agressividade do ser humano, que necessitaria da liberdade não é estranho ao ser humano. O impe-
educação para estar apto a conviver. Estimule a par- rativo se impõe como dever, mas a exigência não é
ticipação do maior número possível de estudantes heterônoma”. Nessa abordagem, espera‑se a pre-
na exposição de argumentações, a favor ou contra sença das ideias:
essa tese.
• O homem é razão e liberdade.
• A liberdade não está naturalmente garantida.
Produção de texto (p. 249)
• O homem cria, com sua razão e sua liberdade, leis
Questão 1: No contexto da diferenciação entre que garantam sua liberdade.
liberdade natural e liberdade civil, a reflexão dos • Dessa forma, o homem tem o dever de obedecer a
estudantes deverá contemplar a transformação na si mesmo, o que significa obedecer às leis que ele
vida em sociedade realizada pela passagem do es- mesmo criou, livre e racionalmente.
tado natural para o estado civil, contendo os signi- • Assim, a exigência de obediência não é heterô-
ficados a seguir: noma, ou seja, não vem de fora, mas provém da
• Passagem do individualismo para a busca da vonta- própria consciência. É uma questão de verdadeira
de coletiva, para o bem comum. autonomia.
• Passagem do instinto para justiça, do apetite para Produção de texto (p. 256)
o direito.
• Passagem do impulso para o dever e a moralidade. Questão 1: A produção dos estudantes deve
• Passagem da liberdade individual não garantida conter os elementos a seguir:
para a liberdade civil, garantida pela lei. • Sendo a razão e a liberdade atributos universais do
homem, devemos buscar realizar esse universal.
Problematizando (p. 250) • A ética kantiana não estabelece os conteúdos con-
Questões 1 e 2: Nessa questão, problema- cretos do que seja o universal, mesmo porque isso é
tizam‑se as três espécies de governo no pensa- impossível, uma vez que cada ser humano buscará
individualmente, nas circunstâncias concretas e par-
mento de Montesquieu. Sugerimos que essa
ticulares, atualizar ou aplicar o imperativo categóri-
abordagem e a resolução das questões ocorram
co. Exemplificando: todos desejam, universalmente,
em pequenos grupos, que inicialmente fariam a
a felicidade. Mas, concretamente, o significado do
leitura do fragmento da obra O espírito das leis,
que seja ser feliz depende de cada indivíduo.
na página 250, procurando assimilar a reflexão
• Com base nessa concepção, a ética não é conteu-
proposta por Montesquieu.
dista, mas formalista, ou seja, ela fornece a maneira
de caminhar na busca do universal no concreto e
Produção de texto (p. 251)
no cotidiano de cada dia; ela fornece a fórmula, o
Questão 1: A produção de texto dos estudantes imperativo que permitirá a realização desse univer-
deverá conter os elementos a seguir: sal no particular da existência.
• No estado natural, cada indivíduo é o próprio juiz. • Levando em conta a existência e o conhecimento
• No estado natural, cada um fará o que julgar neces- da lei moral em nosso interior (fazer o bem e evitar
sário para a defesa dos seus direitos fundamentais: o mal), basta seguir as orientações do imperativo
vida, liberdade, propriedade, segurança. Por isso, categórico.
ninguém tem assegurados seus direitos naturais.
• Nesse contexto, se não houver uma lei que garanta Sugestão de atividades complementares
os direitos das pessoas, esses direitos não existirão • Sugerimos fomentar um contato dos estudantes
efetivamente. Por isso, sem lei, não há liberdade. com Constituição. Fazer uma leitura da Constituição
• A lei, sendo criada pela liberdade, é a garantia da da República Federativa do Brasil poderá ser uma
própria liberdade. das experiências mais significativas do Ensino Médio

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no que se refere a cultivar a consciência política e a • Como considerar a realidade do uso de símbolos
educação para a cidadania participativa. Como su- religiosos em repartições públicas?
gestão, seria interessante conseguir o maior número • Como analisar a expressão “sob a proteção de
possível de exemplares da Constituição. Caso não Deus”, que aparece no final do Preâmbulo da
seja possível, pode‑se projetar ou compartilhar com Constituição da República Federativa do Brasil?
os estudantes o sumário. Nessa proposta, pode‑se • Como considerar a expressão “Deus seja louvado”,
dividir a turma em grupos e, em conjunto com os gravada em moedas e impressa em notas correntes
estudantes, escolher dez temas considerados mais no país?
relevantes para o estudo. Cada grupo estudará um • Liberdade de crença implica necessariamente ter
tema e o apresentará para a turma. uma crença?
• Realizar um estudo da obra O príncipe. Em termos • Estado laico é a mesma coisa que Estado ateu?
políticos, convém enfatizar a autonomia da polí- • O ensino religioso nas escolas públicas deve ser de
tica que se inaugura com Maquiavel. Sugerimos matrícula facultativa?
que o livro seja lido na íntegra ou então somente
fragmentos, de acordo com a sua realidade local e Sugestão de bibliografia inicial para o
seu projeto de ensino e aprendizagem. Uma pro- desenvolvimento desse projeto
posta de reflexão, com base nas contribuições de BRASIL. Ministério Público em defesa do Estado lai-
Maquiavel, pode ser: o lugar da força na política. co. Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília:
• Outra proposta de atividade consiste na leitura da CNMP, 2014. 288 p. vol. 2. Disponível em: <www.
obra de Thomas Morus, A utopia. Esse livro coloca cnmp.gov.br/portal/images/stories/Destaques/Publica
os estudantes no espírito da renascença, que so- coes/ESTADO_LAICO_Volume_2__web.PDF>. Acesso
licita uma nova sociedade, sem os vícios da Ingla- em: 15 maio 2016.
terra do século XVI: desigualdades sociais, miséria, PEREIRA, Victor Mauricio Fiorito. O Estado laico e a
fome etc. democracia. Disponível em: <www.conamp.org.br/
• Abordar de forma interdisciplinar, com a área de pt/biblioteca/artigos/item/524‑o‑estado‑laico‑e‑a‑
Ciências Humanas (História, Geografia e Sociolo- democracia.html>. Acesso em: 15 maio 2016.
gia), a Declaração dos Direitos do Homem e do RUSSAR, Andrea. Estado laico brasileiro foi criado em
Cidadão (Revolução Francesa, 1789), bem como 1890, mas ele ainda é frágil. Disponível em: <www.
a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Or- paulopes.com.br/2015/06/estado‑laico‑brasileiro‑foi‑
ganização das Nações Unidas, 1948). Nessa abor- criado‑em.html#ixzz3r8RdzRg5>. Acesso em: 15 maio
dagem, os estudantes terão acesso aos princípios 2016.
democráticos que estão na raiz do moderno Esta-
Por um novo pacto federativo brasileiro
do de Direito.
O estudo do pensamento contratualista moder-
no representa uma oportunidade para a construção
Caminhos alternativos e
de um projeto interdisciplinar com o objetivo de
abordagens complementares compreender as crises política e econômica brasi-
leiras e a identidade de um novo pacto federativo.
Projeto interdisciplinar de
Entre as questões norteadoras da reflexão filosófica,
reflexão filosófica sugerimos inicialmente:
O Estado laico e a democracia • O que é o pacto federativo?
A reflexão em torno desse eixo temático favore- • Quais são as diferenças entre presidencialismo, se-
mipresidencialismo e parlamentarismo?
ce a construção, com os estudantes, de um projeto
• Como é a divisão dos países no mundo em relação
interdisciplinar de reflexão filosófica com o objetivo
ao sistema de governo?
de analisar as implicações do Estado laico no regime
• Quais países adotam o presidencialismo, semipresi-
democrático. Entre as questões iniciais que podem
dencialismo ou parlamentarismo?
orientar essa reflexão filosófica, sugerimos:
• O que é o voto distrital?
• O Estado democrático brasileiro é um Estado laico? • Quais são as políticas públicas mais urgentes para
• Como devemos pensar na instituição de feriados nosso país?
nacionais para comemorações de datas religiosas • Pensar em pacto político implica pensar em um
sendo o Estado laico? pacto pela educação?

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Sugestão de bibliografia inicial para o • Compreender a estética kantiana.
desenvolvimento desse projeto • Analisar o fim da arte em Hegel.
AGÊNCIA BRASIL. Semipresidencialismo seria solução • Relacionar arte e educação moral em Schiller.
para instabilidade política na América Latina, diz especia-
lista (entrevista do cientista político Octavio Amorim Neto).
Recursos a explorar neste
Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agencia eixo temático
brasil/noticia/2005‑08‑11/semi‑presidencialismo‑seria‑
solucao‑para‑instabilidade‑politica‑na‑america‑latina‑ Fontes para leitura e compreensão de
diz‑especialista>. Acesso em: 15 maio 2016. fragmentos filosóficos
DE LUCENA, Manuel. Semipresidencialismo: teoria ge- DUARTE, Rodrigo. A desartificação da arte segundo
ral e práticas portuguesas (I). Disponível em: <http:// adorno:antecedenteseressonâncias.Artefilosofia,Ouro
analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223395988T5cQ Preto, n. 2, p. 19‑34, jan. 2007. Disponível em: <www.
Z6tf3Uu36ZX3.pdf>. Acesso em: 15 maio 2016. raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_02/artefilosofia
INSTITUTO IDEIAS. Sistema de governo: Semipresiden- _02_02_filosofia_01_rodrigo_duarte.pdf>. Acesso em:
cialismo, presidencialismo e parlamentarismo. Disponí- 4 maio 2015.
vel em: <www.luisrobertobarroso.com.br/wp‑content/ HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética. v.
themes/LRB/pdf/instituto_proposta_parte_i_sistema_ 1. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001.
de_governo.pdf>. Acesso em: 15 maio 2016. (Clássicos).
MARRAFON, Marco Aurélio. Novo pacto federativo para _____. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Íco-
aprimorarademocraciabrasileira.Disponívelem:<www. ne, 1997.
conjur.com.br/2014‑abr‑21/constituicao‑poder‑ HUME, David. Do padrão do gosto. In: Ensaios morais,
pacto‑federativo‑aprimorar‑democracia‑brasileira>. políticos e literários. Trad. João Paulo Gomes Monteiro
Acesso em: 15 maio 2016. e Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: Abril Cultural,
SILVA, Lilia Penha Viana. Pacto federativo e políticas 1992. (Os pensadores).
públicas: o predomínio das relações predatórias entre KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de
as esferas de governo. Disponível em: <www.joinpp. Janeiro: Forense Universitária, 1993.
ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/1_Mundializacao/ _____. Primeira introdução à crítica do juízo. São Pau-
pacto‑federativo‑e‑politicas‑publicas‑o‑predominio‑ lo: Abril, 1980.
das‑relacoes‑predatorias‑entre‑as‑esferas‑de‑.pdf>. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem.
Acesso em: 15 maio 2016. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Ilu-
Professor(a), retome os objetivos e descritores minuras, 1990.
previstos no planejamento inicial. Faça um diagnós-
tico da aprendizagem construída pelos estudantes, Outras visões
especialmente aquela relacionada ao pensamento Obras de arte
conceitual, aos conceitos estruturantes da filosofia
Monalisa (1505), de Leonardo da Vinci. Óleo sobre pai-
previstos para esse eixo temático. nel, 76,8 cm × 53 cm.
O casal Arnolfini (1434), de Jan van Eyck. Óleo sobre
EIXO TEMÁTICO 4 – ARTE painel, 57 cm × 83,7 cm.
E ESTÉTICA (p. 257-277) O nascimento de Vênus (1485), de Sandro Botticelli.
Têmpera sobre tela, 172,5 cm × 278,5 cm.
Homem vitruviano (1492), de Leonardo da Vinci. Lápis,
Objetivos, descritores específicos e tinta e aquarela sobre papel, 24,5 cm × 34,3 cm.
conceitos do eixo temático A sagrada família Canigiani (1507), de Rafael Sanzio.
• Caracterizar a arte gótica. Óleo sobre madeira, 131 cm × 107 cm.
• Compreender o realismo artístico. A Liberdade guiando o povo (1830), de Eugène Dela-
• Analisar os princípios da estética renascentista. croix. Óleo sobre tela, 260 cm × 325 cm.
• Relacionar arte moderna e secularização da cons- Os quebradores de pedra (1849), de Gustave Coubert.
ciência. Óleo sobre tela, 165 cm x 257 cm.
• Caracterizar o romantismo e o realismo. O suicídio (1881), de Édouard Manet. Óleo sobre tela,
• Analisar a possibilidade do padrão de gosto em Da- 38 cm × 46 cm.
vid Hume. A morte no quarto da doente (1893), de Edvard Munch.
Óleo sobre tela, 160 cm × 134,5 cm.

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A promessa (1950), de René Magritte. Óleo sobre tela, de historicidade, de subjetividade. Com isso, nasce
24 cm × 33 cm. a ideia de perspectiva, que pode ser relacionada
La Pietà (1499), de Michelangelo. Escultura em már- à ideia do homem como sujeito de sua história.
more, 174 cm × 195 cm. E essa nova realidade marca também as obras de
arte dessa época, que passam a ser assinadas por
Desenvolvendo os objetos de estudo seus autores.
Sugerimos que a riqueza da arte do Renascimen-
to e da Idade Moderna seja abordada de modo in- Problematizando (p. 265)
terdisciplinar com um especialista na área para que Questões 1 e 2: Espera‑se uma reflexão na qual
a aprendizagem seja mais significativa e complexa, constem as seguintes ideias:
tecendo olhares sobre o espírito de época, sobre as • A arte do período moderno é esvaziada de seu
escolas, os estilos e as tendências mais significativos. tradicional conteúdo religioso. As expressões ar-
Nesse momento, os estudantes já têm condições de tísticas acontecem em um mundo fragmentado,
perceber o movimento da consciência no final da sem as ilusões das grandes narrativas unificadoras
Idade Média, fazendo a transição para novas pers- de sentido.
pectivas. Com essa ideia de transição, surge a no- • O pensamento empirista de David Hume tem
ção de crise, que, nesse contexto, se refere ao fim como guia o sentimento, a experiência e o hábi-
de um estilo, de uma época; uma oportunidade de to. Nessa visão, “a beleza não é uma qualidade
emergência de uma multiplicidade de novos estilos, das próprias coisas, existe apenas no espírito que
escolas e técnicas. a contempla e cada espírito percebe uma beleza
Com a Renascença, cresce a racionalização do diferente”.
mundo e a secularização da consciência. A passagem • Nas palavras de Hume, “embora alguns objetos
do teocentrismo para o humanismo trouxe também estejam naturalmente destinados a provocar pra-
a mudança de cosmologia, de visão de mundo. Essa zer, devido à estrutura do espírito, não é de espe-
mudança estará visível na arte e na estética. rar que em todos os indivíduos o prazer seja igual-
Entre os muitos estilos de arte moderna, sugeri- mente sentido”.
mos abordar de modo interdisciplinar, especialmen- • Contudo, se não houvesse as imperfeições huma-
te, os estilos romântico e realista, pois eles permitem nas, se os homens tivessem maior delicadeza de
uma significativa articulação com o pensamento fi- espírito e ausência de preconceitos, era de se es-
perar um padrão de gosto.
losófico da época.
• A educação exerce um grande papel no refina-
Entre as diversas possibilidades de reflexão filo-
mento espiritual.
sófica, sugerimos: o estudo da obra de David Hume
sobre o padrão do gosto; a estética kantiana; o fim Problematizando (p. 269)
da arte em Hegel; a arte como educadora do espíri-
Questão 1: Nessa seção, que pode ser explorada
to e da moralidade do ser humano no pensamento
como produção de texto, espera‑se uma reflexão na
de Schiller.
qual constem as seguintes ideias:
Discussão das atividades propostas • O sentimento estético é despertado pelo contato
com o objeto. Mas o objeto não é a causa do
Problematizando (p. 261) sentimento.
• O sujeito olha para o objeto e sobre ele lança seu
Questão 1: Considerando a seção Problemati- olhar. Assim, a experiência estética depende da
zando, que pode ser transformada em produção de maneira como o sujeito se dirige para o objeto, ou
texto, espera‑se uma reflexão na qual constem as seja, depende da atitude estética.
seguintes ideias: • Essa experiência estética não se vincula ao tema do
Na Idade Média predominava o teocentrismo e, conhecimento ou da orientação prática em nossas
com ele, a sociedade estamental. Isso aparece na vidas, mas à gratuidade da contemplação.
arte em seus traços marcados pela rigidez. Em con- • Se houver gratuidade e desinteresse, bem como
trapartida, a sociedade renascentista, no contexto abertura de espírito para deixar‑se afetar, existe a
de navegações e de intercâmbio entre povos, passa possibilidade dessa universalidade. Mas, na prática,
a conviver com a ideia de movimento, de mudança, esse sujeito existe?

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Produção de texto (p. 271) Caminhos alternativos e
Questão 1: A produção de texto dos estudantes abordagens complementares
deverá conter os elementos a seguir:
• A cultura moderna é fragmentada, destruiu a har- Projetos interdisciplinares de
monia. A vida humana, na modernidade industria- reflexão filosófica
lizada, vem marcada pela mecanização, pela pro-
dução e reprodução em série. Nesse processo, a As escolas, técnicas e estilos
singularidade humana se perde. artísticos modernos
• O caminho para a reunificação do ser humano, Considerando a riqueza das reflexões produzidas
para sua harmonia, passa pela arte. na modernidade, sugerimos fazer um trabalho inter-
• A arte é a grande educadora para a liberdade, disciplinar com a área de Linguagens (componente
pois nela os homens a vivenciam e são prepara- curricular Arte) sobre as escolas, técnicas e estilos
dos para lutar por ela nos domínios da moral e artísticos modernos. Filosoficamente, buscaremos
da política. nesse projeto captar o espírito moderno que subjaz
• A criação artística presente no impulso lúdico dá a todas essas expressões.
vida à forma e dá forma à vida, libertando o ser
humano tanto da coerção física (natural) como da A educação do ser humano
coerção moral. Assim, a arte torna‑se a grande O contexto da Renascença é contexto da reno-
educadora da autêntica moralidade. vação, de nascimento de universidades, de renas-
Problematizando (p. 276-277) cimento artístico, de investimento na educação, no
ser humano. Esse contexto é situação favorável para
Questão 1: Nessa seção, que pode ser explorada pensarmos com os estudantes a construção de uma
como produção de texto, espera‑se uma reflexão na reflexão filosófica que busque compreender a edu-
qual constem as seguintes ideias: cação como fundamento de uma revolução socio-
• A arte faz parte das representações sensíveis, cultural. Esse é um tema essencialmente interdisci-
nas quais o espírito se reconhece e das quais o plinar e, por isso, é indicado que seja desenvolvido
espírito tem necessidade enquanto não estiver de modo a integrar os olhares de outras áreas do
evoluído. saber. Entre as questões norteadoras da reflexão fi-
• O espírito evolui passando pela arte, pela religião losófica, sugerimos inicialmente:
e se realiza na filosofia, no conceito, que é ativi-
• O Brasil não tem em sua história uma trajetória
dade propriamente espiritual (da mente, da ra-
de significativo investimento em educação. Para
zão), que é o pensamento puro.
que haja um renascimento ou uma verdadeira re-
• Dessa maneira, o fim da arte é sua superação por
volução na educação em nosso país, quais são os
um estágio mais evoluído do espírito.
maiores desafios?
Sugestão de atividade complementar • A qualidade e a quantidade do investimento em
educação no Brasil têm relação com o IDH do
Análise de filme país?
Temática: A espiritualidade dos artistas • Uma revolução na educação é algo sistêmico,
estrutural. Quais aspectos devem ser integrados
Filme: Agonia e êxtase (Estados Unidos, 1965). para que ela efetivamente aconteça?
Gênero: Drama. • A educação tem o poder de lapidar a mente hu-
Direção: Carol Reed. mana para o convívio respeitoso em sociedade?
Duração: 138 minutos. • O foco do processo educativo deve estar no con-
teúdo? No estudante como sujeito? Na realidade
Sinopse: Neste filme, o papa Júlio II (Rex Harrison) concreta? Em uma idealização?
contrata Michelangelo (Charlton Heston) para pin-
tar o teto da Capela Sistina. O filme possibilita mui- Sugestão de bibliografia inicial para o
tas reflexões sobre os dramas físicos e espirituais desenvolvimento desse projeto
dos artistas. KALENA, F. Educação é promover o crescimento hu-
mano. Disponível em: <http://porvir.org/educacao‑e

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‑promover‑crescimento‑humano/>. Acesso em: 14 • Existe a genialidade do artista?
maio 2016. • Qual é o papel da arte na educação do ser humano?
SILVA, Marilda Coelho da. Importância da educação • Em que sentido a arte vai na contramão da frag-
para a humanidade. Disponível em: <mgculturalpb. mentação?
blogspot.com.br/2012/01/importancia‑da‑educacao • Em que sentido o espírito artístico harmoniza‑se
‑para‑humanidade.html>. Acesso em: 14 maio 2016. com o romantismo?
WANDSCHEER, Marli Ferreira. A educação para a • Qual é a importância de desenvolver no ser hu-
vida humana. Disponível em: <http://editora.unoesc. mano competências e habilidades relacionadas à
edu.br/index.php/coloquiointernacional/article/ imaginação?
view/1257/620>. Acesso em: 14 maio 2016. • Quais funções a arte pode desempenhar na vida
DELLORS, Jacques (Org.). Educação, um tesouro a des- pessoal e social?
cobrir: relatório para a Unesco da Comissão Internacio-
nal sobre Educação para o Século XXI. Trad. José Carlos Sugestão de bibliografia inicial para o
Eufrásio. São Paulo/Brasília: Cortez/Unesco/MEC, 1998. desenvolvimento desse projeto
Disponível em: <http://dhnet.org.br/dados/relatorios/ Filme
a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_descobrir.pdf>. Acesso
Agonia e êxtase. Direção: Carol Reed. Estados Unidos,
em: 14 maio 2016.
1965.
A educação do ser humano Livros
Considerando as reflexões realizadas no eixo te- GOMBRICH, E. H. A história da arte. 15. ed. Trad. Ál-
mático Arte e Estética, especialmente as de Schiller, varo Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993.
abre‑se a perspectiva de uma reflexão filosófica que GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos.
busque compreender a arte em seu poder educati- Trad. Otacílio Nunes. Introdução Rodrigo Naves. São
vo do espírito humano. Entre as questões nortea- Paulo: Ática, 1996.
doras da reflexão filosófica, sugerimos inicialmente: SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem.
• Os órgãos formadores de opinião, na sociedade Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Ilu-
contemporânea, insistem na formação de um pa- minuras, 1990.
drão de gosto?

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UNIDADE 5 – FILOSOFIA SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafí-
sica da morte. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins
CONTEMPORÂNEA: DA CRISE Fontes, 2004.
E DA POSSIBILIDADE _____. O mundo como vontade e como representa-
ção. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

EIXO TEMÁTICO 1 – CONDIÇÃO Outras visões


HUMANA (p. 280-296) Obras de arte
Aniversário (1915), de Marc Chagall. Óleo sobre car‑
Objetivos, descritores específicos e tão, 80,6 cm × 99,7 cm.
conceitos do eixo temático O grito (1893), de Edvard Munch. Óleo, pastel e têm‑
• Analisar o princípio da vontade, em Schopenhauer. pera sobre cartão, 91 cm × 73,5 cm.
• Compreender a existência humana e seus estágios Livro
em Kierkegaard.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco,
• Compreender a concepção antropológica de
1998.
Nietzsche.
Artigo científico
• Analisar a crítica de Nietzsche à moralidade ocidental.
• Caracterizar o existencialismo. VENTURA, Dora Fix. Um retrato da área de neuroci‑
• Compreender a vida autêntica e inautêntica em ência e comportamento no Brasil. Psicologia: teoria e
Heidegger. pesquisa, Brasília, v. 26,n. especial, 2010, p. 123‑129.
• Relacionar angústia e liberdade. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/ptp/v26nspe/a11
• Compreender a noção existencialista de má‑fé em v26ns.pdf>. Acesso em: 5 maio 2016.
Sartre.
• Compreender os condicionantes sociais da liberdade. Desenvolvendo os objetos de estudo
Com a filosofia contemporânea, inaugura‑se
Recursos a explorar neste uma reflexão sobre a consciência da finitude hu‑
eixo temático mana e da crise de referenciais éticos e políticos. É
dessa consideração da crise que nasce também a
Fontes para leitura e compreensão de consciência das possibilidades que a crise traz, em
fragmentos filosóficos todos os âmbitos: antropológicos, epistemológicos,
COSTA, Claudio. Filosofia da mente. Rio de Janeiro: éticos, políticos, estéticos etc.
Zahar, 2005. No eixo temático da condição humana, iniciare‑
KIERKEGAARD, Soren. Apostila conclusiva não científi‑ mos nossa abordagem com o estudo sobre o princí‑
ca. In: MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. v. 3. Trad. pio da vontade em Schopenhauer, passando pelos es‑
Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 2014. tágios da existência em Kierkegaard e, na sequência,
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro analisaremos a concepção antropológica presente em
para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio Nietzsche. Nosso olhar focará bastante a emergência
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. do existencialismo, corrente filosófica que nasce no
_____. Considerações extemporâneas: Da utilidade e período entre guerras. Veremos como os horrores do
desvantagem da história para a vida. In: Obras incom- holocausto suscitaram profundas reflexões sobre o
pletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
mistério da liberdade humana e a responsabilidade
Nova Cultural, 1999. (Os pensadores).
dos seres humanos pelo destino pessoal e social. A
_____. Considerações extemporâneas: Schopenhauer
consciência dessa absoluta responsabilidade conjuga‑
como educador. In: Obras incompletas. Trad. Rubens
da com a absoluta liberdade dará origem a um con‑
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ceito filosófico e psicológico fundamental: a angústia.
(Os pensadores).
_____. Para a genealogia da moral. In: Obras incom-
pletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Discussão das atividades propostas
Nova Cultural, 1999. (Os pensadores). Problematizando (p. 284)
SARTRE, Jean‑Paul. O existencialismo é um Humanis-
mo. Trad. Rita Correia Guedes. São Paulo: Abril Cultu‑ Questões 1 e 2: Nessas problematizações, o foco
ral, 1984. (Os pensadores). está na concepção antropológica de Schopenhauer e

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na moral enquanto freio da vontade. Sugerimos que a sensibilidade e a argumentação dos estudantes
essa problematização desenvolva‑se em pequenos quanto à possibilidade de o indivíduo assumir‑se
grupos, para que cada estudante possa ter seu po‑ como sujeito de autodestinação no interior de uma
sicionamento questionado ou reforçado, e para que moral estabelecida.
ele possa problematizar o posicionamento do colega. A seguir apresenta‑se a denúncia de Nietzsche
Quanto ao objeto de estudo, estimule os estudantes em relação à vida ascética, à vida como autoconde‑
a refletir sobre a necessária dimensão repressora da nação, motivada por sua concepção de ser huma‑
moral conjugada com o ser humano como vontade no como vontade de potência, como uma grande
e paixão. paixão que ama a vida. Relacione essa abordagem
com o conceito de vida autêntica, objeto de estu‑
Produção de texto (p. 284)
do e reflexão da produção de texto proposta na
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual página 290.
constem as seguintes ideias na produção textual
dos estudantes sobre o conceito de felicidade em Produção de texto (p. 290)
Schopenhauer: Questão 1: Considerando as reflexões antro‑
• O princípio que tudo move é a vontade cega, irra‑ pológicas de Nietzsche, solicita‑se uma questão
cional, sem conexão com o conhecimento. na qual a autenticidade aparece como uma exis‑
• A essência da vontade consiste no eterno vir‑a‑ser, tência em movimento em duas direções opostas,
fluxo sem fim. Isso se verifica nos desejos huma‑ como expressão de uma mesma convicção: uma
nos, que, uma vez alcançados, logo são substituí‑ direção contra e uma direção a favor, constituin‑
dos por outros. do o “super‑homem”. Espera‑se uma reflexão na
• Nesse sentido, feliz é aquele que está sempre dese‑ qual constem as seguintes ideias na produção tex‑
jando e se encontra empenhado em realizar ativa‑ tual dos estudantes.
mente o objeto de seu desejo, sem fim. Considerando a natureza repressora do racio‑
Problematizando (p. 286) nalismo cristão e ocidental que domesticou o ser
humano e o transformou em ser fraco, individual
Questão 1: Nessa questão, encontram‑se e coletivamente; e que a espontaneidade e a ener‑
problematizações referentes ao pensamento de gia vital do ser humano foram transformadas pelo
Kierkegaard. Inicialmente, em sua crítica a Hegel, racionalismo, em pecado e em negatividade; o es‑
Kierkegaard argumenta, com base na existência tudante deve apontar que a vida autêntica implica
finita do ser humano, contra a pretensão hegelia‑ romper com esse racionalismo e dizer sim à vida, as‑
na de formular um sistema completo da realidade, sumindo‑a como um ser destacado em relação aos
no qual se estabeleça a verdade como identidade comuns, um super‑homem, ser que ama a vida e a
entre o pensamento e o ser. Alerte os estudantes potencialidade que ela traz.
para a singularidade dos contextos e para os espí‑
ritos de época – que caracterizavam a modernida‑ Produção de texto (p. 291)
de e caracterizam a contemporaneidade. Questões 1 e 2: Nessa página, encontram‑se as
Questão 2: Solicite aos estudantes que se posi‑ problematizações construídas com base no pensa‑
cionem quanto a essa concepção dinâmica e evolu‑ mento de Heidegger. Inicialmente, trata dos princi‑
tiva do ser humano. pais atributos do ser, captados a partir do método
fenomenológico: ser‑no‑mundo (dasein), vir‑a‑ser,
Problematizando (p. 288-289)
projetar‑se no tempo. Nesse diálogo entre os três
Questões 1 e 2: As problematizações são cons‑ tempos, constrói a vida autêntica de um indivíduo
truídas com base na concepção antropológica de que não se aliena ou se despersonaliza, mas se as‑
Nietzsche. Inicialmente, a partir da ideia de eter‑ sume em construção, sempre situado histórica e
no retorno, Nietzsche fala da não linearidade da culturalmente, mas também sempre aberto e nunca
vida, da necessidade de o ser humano permanen‑ concluído em sua caminhada no tempo, em direção
temente voltar‑se sobre si mesmo em atitude de à morte. Verifique o conhecimento dos estudantes e
superação de si e dos padrões culturais. Estimule estimule‑os à exteriorização dessas reflexões.

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Outros olhares (p. 291-292) a possibilidade de uma reflexão interdisciplinar
para além do conteúdo trabalhado, conside‑
Questão 1: Nessa seção, aborda‑se a temática
rando os condicionantes sociais das ações indi‑
existencialista, a partir de um texto de Clarice Lis‑
viduais. Essa temática, rigorosamente, pertence
pector. Como sugestão para essa questão, peça aos
ao âmbito das Ciências Sociais, especialmente da
estudantes que se reúnam em duplas ou trios para
Sociologia. Portanto, seria uma abordagem inter‑
a leitura do texto e para a identificação das carac‑
disciplinar. Caberia um olhar sobre as análises do
terísticas do existencialismo nele presentes: viver a
estruturalismo e de sua crítica à ideia de liber‑
existência no instante que passa, a angústia de uma
dade absoluta, compreendendo e explicitando as
vida autêntica, a unicidade e a necessária solidão, o
influências dos mecanismos sociais de controle
amor, a paixão e a vontade de potência e superação,
sobre a ação dos indivíduos.
o amor à vida, a existência temporal etc.
Entre as questões norteadoras da reflexão filosó‑
A consciência da finitude e da temporalidade
fica, sugerimos inicialmente:
impede que o indivíduo se perca em idealizações
ou abstrações vazias, fazendo com que queira viver • Você consegue perceber que sua vida individual
cada instante fugidio onde verdadeiramente se en‑ está sendo vigiada por muitos meios?
contra em cada momento. • De que forma a religião se torna um poderoso me‑
canismo de controle social?
Problematizando e produção de texto (p. 294) • De que forma os meios de comunicação de massa
Nas problematizações e na produção de texto produzem um controle social?
dessa página, aborda‑se o existencialismo de Jean‑ • Como o Estado produz o controle social?
‑Paul Sartre. Verifique a aprendizagem dos estudan‑ • Como o conceito sociológico “fato social” tem re‑
lação com o fenômeno do controle social?
tes em relação aos elementos centrais dessa refle‑
• O controle social é necessário?
xão. Espera‑se a presença das seguintes ideias:
• Quais são os condicionantes da liberdade humana?
• Partindo do princípio de que o homem é essencial‑ • Se existe a liberdade, como devemos, então, defini‑la?
mente liberdade, não programado por alguém para
algo, ele se torna o único responsável pelo próprio Sugestão de fontes e bibliografia inicial para
destino (subjetividade). Isso explica a imprevisibili‑ o desenvolvimento desse projeto
dade humana.
• Dessa forma, não há espaço para a má‑fé, para a Livros
desculpa. Por isso, o homem torna‑se o futuro do ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das
próprio homem, fruto das próprias escolhas. Letras, 2009.
• A afirmação da não existência de Deus implica a SKINNER, B. Frederic. Walden II. Uma sociedade do fu‑
liberdade humana e negação de uma essência, de turo. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
uma natureza. Filmes
• Dessa forma, a existência precede a essência, ou
Show de Truman. Direção: Peter Weir. Estados Unidos,
seja, o homem primeiro existe e se projeta, e ao
1998.
se projetar constrói sua essência, seu caráter, sua
A liberdade é azul. Direção: Krzysztof Kieslowski.
personalidade.
França, 1993.
• Assim, não cabem desculpas para a ação humana.
O quarto poder. Direção: Costa‑Gavras.
A liberdade implica a responsabilidade.
Estados Unidos, 1997.

Caminhos alternativos e Vídeo


abordagens complementares Direito e Literatura: controle social. O programa Direito
e Literatura, da Unisinos, discute o tema do controle
Projeto interdisciplinar de social. Participam do debate Francisco Marshall, pro‑
reflexão filosófica fessor de História da UFRGS, Mário Fleig, filósofo e psi‑
canalista, Leonel Severo Rocha, professor da Unisinos.
O controle social Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=8pvLLC
O debate sobre a antropologia contemporâ‑ jkWzI>. Acesso em: 15 maio 2016.
nea, abarcando as ideias existencialistas, abre‑nos

461

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EIXO TEMÁTICO 2 – EXPERIÊNCIA GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte. Trad. José Ar‑
thur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cul‑
E RACIONALIDADE (p. 297-322) tural, 1991. (Os pensadores).
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos.
Objetivos, descritores específicos e Tomo 2. Trad. Milton Amado. São Paulo: Itatiaia, 1998.
conceitos do eixo temático _____. Lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas
• Analisar as questões centrais do positivismo. Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo:
Edusp, 1985.
• Relacionar positivismo e cientificismo.
WARBURTON, Nigel. O básico da filosofia. Trad. Eduar‑
• A filosofia da linguagem e o positivismo lógico.
do F. Alves. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.
• O positivismo lógico do Círculo de Viena.
• A lógica simbólica. Outras visões
• Analisar as principais críticas ao positivismo. Filmes
• Compreender o princípio da falseabilidade de Karl
Epidemia. Direção: Wolfgang Petersen. Estados Uni‑
Popper.
dos, 1995.
• Caracterizar o método científico. Frankenstein. Direção: James Whale. Estados Unidos,
• Problematizar a neutralidade científica. 1931.
• Analisar a crise da razão, segundo a Escola de O doador de memórias. Direção: Phillip Noyce. Estados
Frankfurt. Unidos, 2014.
• Analisar os princípios da bioética. Quebrando a banca. Direção: Robert Luketic. Estados
Unidos, 2008.
Recursos a explorar neste Fotografia
eixo temático Cientista argentina segura sementes geneticamente
modificadas da soja, em 2015.
Fontes para leitura e compreensão de
fragmentos filosóficos Legislação

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Al‑ BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil:
fredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007. promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.) História da filoso- <www. planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Consti‑
fia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores). tuicaoCompilado.htm>. Acesso em: 5 abr. 2016.
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Conceito de Ilumi‑ Site
nismo. In: ARANTES, Paulo Eduardo (Cons.). Theodor CREMESP. Juramento de Hipócrates. Disponível em:
W. Adorno: textos escolhidos. Trad. Zeljko Loparic. São <http://cremesp.org.br/?siteAcao=Historia esc=3>.
Paulo: Nova Cultural, 1996. Acesso em: 20 abr. 2016.
_____. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antô‑
nio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Artigo científico
COMTE, Augusto. Catecismo positivista. In: GIANNOT‑ MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Biodireito e Consti‑
TI, José Arthur (Org.) Comte. Trad. José Arthur Gian‑ tuição. Revista do Direito Privado da UEL, 2016. Lon‑
notti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. drina, v. 1, n. 1, 2010. Disponível em: <www.uel.br/
(Os pensadores). revistas/direitoprivado/artigos/BiodireitoeConstitui
_____. Curso de filosofia positiva. In: GIANNOTTI, José C3 A7 C3 A3oJussaraMeirelles.pdf>. Acesso em:
Arthur (Org.) Comte. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel 3 mar. 2016.
Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores).
Livro
_____. Discurso preliminar sobre o conjunto do positi‑
Pessini, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas atuais de
vismo. In: GIANNOTTI, José Arthur (Org.) Comte. Trad.
bioética. São Paulo: Loyola, 2007.
José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril
Cultural, 1978. (Os pensadores).
_____. Discurso sobre o espírito positivo. In: GIANNOT‑
Desenvolvendo os objetos de estudo
TI, José Arthur (Org.) Comte. Trad. José Arthur Gian‑ Neste eixo temático abordaremos a concepção
notti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. positivista de Augusto Comte, na qual a filosofia
(Os pensadores). aparece como ordenadora e classificadora do saber

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consolidado na ciência. Vamos considerar também Produção de texto (p. 302)
o papel da filosofia no positivismo lógico do Círculo
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
de Viena. Veremos os conectivos, a tabela‑verdade
constem as seguintes ideias na produção textual dos
e as formas de enunciado na lógica simbólica. Em
estudantes:
seguida, apresentaremos a distinção entre ciência e
• Concepção filosófica: positivismo.
outros campos do conhecimento e a crítica ao pro‑
• Pressuposto de que existe uma verdade no objeto.
cedimento indutivo em Karl Popper. Depois, vere‑
• Somente a ciência tem o método capaz de captar
mos as mudanças no pensamento crítico propostas
essa verdade.
pela Escola de Frankfurt: sua crítica à razão iluminis‑
• A ciência como única forma de conhecimento.
ta e à interferência da técnica em diferentes campos
• Outras formas de saber não fornecem conhecimen‑
do saber. Finalmente, vamos considerar o horizon‑
to seguro.
te da bioética, refletindo sobre os limites éticos dos • A subjetividade do pesquisador não interfere no re‑
procedimentos científicos e tecnológicos. sultado da pesquisa científica.
Essa abordagem costuma ser muito significati‑ • Em decorrência, poderia se afirmar a neutralidade
va para os estudantes, uma vez que eles se depa‑ da ciência.
ram com dois pressupostos epistemológicos bem
Questão 2: Espera‑se uma reflexão na qual
diversos e que trarão consequências igualmente
constem as seguintes ideias na produção textual
múltiplas. Partir do pressuposto positivista de que
dos estudantes:
conhecer é captar a verdade do objeto ou partir do
• Para o positivismo, a humanidade caminha da in‑
pressuposto da crítica que afirma que conhecer é
fância, passando pela juventude, à maturidade.
interpretar ou atribuir sentido conduzirá a reflexão
• O primeiro estágio (infância) corresponde ao está‑
para a afirmação de uma verdade única e universal
gio teológico, no qual predomina a crença, a fé e o
ou para o reconhecimento da multiplicidade de le‑
princípio da autoridade. Historicamente represen‑
gítimas leituras do real.
tado pelo Feudalismo.
Na abordagem sobre os limites e as possibilida‑
• O segundo estágio (juventude) é a fase do idea‑
des do mundo técnico‑científico, desenvolveremos lismo juvenil e corresponde às especulações me‑
uma reflexão sobre os princípios da bioética, bus‑ tafísicas. Historicamente corresponde à Revolução
cando problematizar as questões mais relevantes na Francesa.
sociedade contemporânea, como o princípio da vida • O terceiro estágio (maturidade) é a fase do homem
e o direito dos animais. adulto, homem positivo, que superou as crenças
e as superstições, que confia somente na ciência.
Discussão das atividades propostas Historicamente corresponde à evolução industrial.

Problematizando (p. 302) Atividades (p. 311)


Questão 1: Nessa problematização, considera‑ Questão 2:
‑se o positivismo a culminância de um espírito de p ∧ ( q → r) ↔ p ∧ (q ∨ r)
época, do otimismo moderno, da ideia de progresso V ∧ (V → F) ↔ F ∧ (F ∨ F)
científico e moral da humanidade. Verifique entre os V∧F ↔ F∧F
estudantes a aprendizagem construída. Estimule o F↔F
pensamento crítico na avaliação da concepção posi‑ Valor lógico: Verdade
tivista em diferentes áreas da vida humana: ciência, Questão 3:
educação, moral, religião, entre outras. Questione: (p ∨ q) → ( p ↔ r) ∧ (q ∨ r) ,
É possível argumentar a favor da neutralidade das (V ∨ F) → (F ↔ F) ∧ (F ∨ F)
ciências? As ciências têm compromisso com a defe‑ V→V V∧F
sa e a preservação da vida? Elas contribuem para a V→F
evolução da vida humana? De que maneira? Procu‑ Valor lógico: Falso
re incentivar a reflexão entre os alunos, contribuin‑ Questão 4-a:
do para a formação de um pensamento cada vez ( p) ∨ ( q)
mais complexo. F∨F=F

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Questão 4-b: Atividades (p. 313)
r → ( t)
Questão 1:
V→F
Se Verdade, então Falso. É, então, uma proposi‑
ção falsa, conforme a segunda linha da tabela‑ver‑ p ~p p → ~p
dade da condicional. V F F
Questão 4-c: F V V
Quando são duas proposições simples, teremos
4 linhas na tabela‑verdade, pois, se n’ é 2, teremos
Percebe‑se, portanto, que é uma contingência,
2n, onde n’ é o número de proposições simples, que
pois a proposição pode ser verdadeira ou falsa.
seria o mesmo que 22 = 4. No caso apresentado,
temos 3 proposições simples, então teremos uma Questão 2:
tabela‑verdade com 8 linhas.
p q ~q p∨~q
p q r (p ∧ q) (p ∨ q) ∨ r
V V F F
V V V V V
V F V V
V V F V V
F V F F
V F V F V
F V V F V F F V F

V F F F V
Portanto, trata‑se de uma contingência, pois a
F V F F F
proposição pode ser verdadeira ou falsa. Para ser
F F V F F contradição, a proposição teria que sempre ser falsa.
F F F F F
Problematizando (p. 315-316)
Portanto, as avaliações‑verdade chegam a cinco, Questão 1: Nessas problematizações, o foco
superando o número quatro como limite apesenta‑ está no critério de cientificidade de Karl Popper e
do na formulação da questão. em sua crítica à indução e à pretensão de neutra‑
Questão 4-d: lidade nas ciências. Faça dessa problematização
(V ∧ F) → F uma preparação para a resolução das questões de
F→F produção de texto. Reúna os estudantes em duplas
Se Falso, então Falso. Isso é verdadeiro, confor‑ ou trios para que realizem a leitura atenta dos frag‑
me a quarta linha da tabela‑verdade da condicional. mentos que embasam as problematizações. Perceba
que aqui ocorre o raciocínio por antilogias. Verifique
Questão 5:
com os estudantes a possibilidade de se construir
3 7 > 10. Sim, é uma proposição.
uma argumentação capaz de conciliar essas duas
X 4 y > 12. Sem conhecer as variáveis, não se
visões divergentes.
pode atribuir o valor‑verdade. Portanto, essa senten‑
ça não é uma proposição e permanece aberta. Para Produção de texto (p. 316)
caracterizar a sentença como uma proposição, seria
Questão 1: Considerando a produção de texto
preciso saber o valor de x e de y.
dessa página, solicitando a explicação do critério
Questão 6: científico da falseabilidade, esperam‑se uma refle‑
Vimos que uma sentença para ser proposição xão na qual constem as seguintes ideias:
não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
• Algo é científico se puder ser falseado, por exem‑
Trata‑se de um paradoxo. Portanto, não é uma pro‑ plo: o sexo dos anjos não é uma teoria científica,
posição lógica. pois não pode ser falseada nem superada.
• Historicamente, como resultado das tentativas
de falseações, constataram‑se os erros na leitura

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científica sobre o mundo. Isso possibilitou avanços • Deve haver limites nos procedimentos da ciência,
nas ciências. em seus modos de fazer a pesquisa?
• Não se pode confiar na indução como caminho • Deve haver limites éticos na aplicação do resultado
para certezas, uma vez que procede a generaliza‑ da pesquisa científica?
ções e nos fornece apenas probabilidade. • Quais são os princípios fundamentais da bioética?
• Quais são as áreas que merecem especial cuidado
Produção de texto (p. 319) no que tange à manipulação técnico‑científica?
Questão 1: Considerando as reflexões de Ador‑ • Quais são as grandes questões ainda não respondi‑
no e Horkheimer, solicita‑se a produção de um texto das no âmbito da bioética?
explicitando a crítica ao Iluminismo racionalista mo‑
derno. Espera‑se a presença das seguintes ideias na
Sugestão de bibliografia inicial para
reflexão: o desenvolvimento desse projeto
• Crítica a toda pretensão de uma razão que se jul‑ ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclareci-
gue conhecedora de tudo. mento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
• A impossibilidade de captar o sentido oculto e pro‑ JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica.
fundo da realidade, que sempre nos transcende. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
• Ao usar a razão para legitimar o progresso linear infini‑ KNELLER, George. F. A ciência como atividade huma-
to e a exploração sobre as coisas, o Iluminismo se con‑ na. São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
tradiz ao destruir a função crítica do saber, transfor‑ MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janei‑
mando‑o em uma mera técnica de manipulação. Em ro: Bertrand Brasil, 2002.
decorrência, não há mais confiança na razão enquan‑ OLIVA, Alberto. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: Jor‑
to luz, ou seja, enquanto guia das ações humanas. ge Zahar, 2004.
• No Iluminismo, a serviço da pretensão capitalista, OMNES, Roland. Filosofia da ciência contemporânea.
importa saber se algo é útil, tendo em vista fins São Paulo: Unesp, 1996.
econômicos e manipulatórios. PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas atuais
• A razão filosófica transforma‑se em razão instru‑ de bioética. São Paulo: Loyola, 2007.
mental, uma vez que se reduz à fabricação de ins‑
trumentos e meios adequados a fins previamente EIXO TEMÁTICO 3 – ÉTICA
estabelecidos e controlados pela indústria cultural.
Assim, já não é mais uma razão que fundamenta, E POLÍTICA (p. 323-340)
propõe, critica e discute a finalidade das ações hu‑
manas e a própria destinação do ser humano. Objetivos, descritores específicos e
conceitos do eixo temático
Caminhos alternativos e
• Analisar o materialismo histórico e dialético de Karl
abordagens complementares Marx e Friedrich Engels.
• Compreender as noções de infraestrutura e supe‑
Projeto interdisciplinar de restrutura.
reflexão filosófica • Compreender a natureza ideológica do Estado na
visão de Marx.
Ética, ciência e tecnologia: limites • Relacionar ideologia e alienação.
e possibilidades • Compreender o sentido da política em Hannah Arendt.
Considerando as problematizações em torno • Compreender a banalidade do mal no pensamento
da aplicação dos princípios da bioética, sugerimos de Hannah Arendt.
o desenvolvimento de uma reflexão filosófica vol‑ • Caracterizar o totalitarismo.
tada para a compreensão das implicações éticas • Analisar a ética do discurso e a ação comunicativa
nos procedimentos científicos e tecnológicos. En‑ em Habermas.
tre as questões norteadoras da reflexão, sugeri‑ • Analisar os postulados do liberalismo.
mos inicialmente: • Compreender os postulados do comunitarismo.
• Confrontar os princípios liberais e comunitaristas.
• O que é o cientificismo e quais são seus limites?
• Existe neutralidade nos caminhos da ciência?

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Recursos a explorar neste O agitador (1928), de George Grosz. Óleo sobre tela,
109 cm × 81 cm.
eixo temático O sonho da razão produz monstros (1797‑1799), de
Fontes para leitura e compreensão de Francisco de Goya y Lucientes. Água‑forte e água‑tinta
sobre papel, 30,6 cm × 20,1 cm.
fragmentos filosóficos Trabalhadores de volta para casa (1913‑1915), de
ARENDT, Hannah. Carta a Grafton. Apud ASSY, Edvard Munch. Óleo sobre tela, 201 cm × 227 cm.
Bethânia. Eichmann, banalidade do mal e pensamen‑
to em Hannah Arendt. In: MORAES, Eduardo Jardim; Desenvolvendo os objetos de estudo
BIGNOTTO, Newton (Org.). Hannah Arendt: diálogos,
No que se refere ao eixo ética e política, abor‑
reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
daremos os conflitos da vida social partindo do
_____. Da revolução. Trad. Leonel Vallandro e Gerd A.
materialismo histórico e dialético de Karl Marx. Na
Bornheim. São Paulo: Ática, 1988.
_____. Entre o passado e o futuro. 3. ed. Trad. Mauro sequência, analisaremos a política sob a ótica de
W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1992. Hannah Arendt, cuja reflexão nos levará ao fenôme‑
_____. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. no do totalitarismo, da banalidade do mal e da re‑
São Paulo: Companhia das Letras, 2012. volução. Assim, referir‑se à política contemporânea
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V. Trad. Leonel significa assumir o binômio totalitarismo e democra‑
Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, cia como as forças antagônicas mais presentes na
1991. (Os pensadores). história recente da humanidade.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 4. ed. Rio Nessa abordagem contrastante, aparecem as
de Janeiro: Paz e Terra, 1986. maiores possibilidades de a vida política enca‑
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em minhar‑se, seja na direção da violência, seja na
teoria moral. Trad. Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001. direção da promoção da diversidade. A caracte‑
MARX, Karl. O trabalho alienado. In: Os filósofos atra- rização dessas formas políticas será fundamen‑
vés dos textos: de Platão a Sartre. Trad. Constança Te‑ tal para educar os estudantes para os valores da
rezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. vida em sociedade e para a ética da racionalida‑
_____; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. In: Os filó- de e do consenso na política, conforme proposto
sofos através dos textos: de Platão a Sartre. Trad. Cons‑ por Habermas.
tança Terezinha M. César. São Paulo: Paulus, 1997. As reflexões sobre a democracia serão retoma‑
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTTO, Newton (Org.). das no tema da ética do discurso de Habermas e
Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo em sua preocupação com a busca racional por con‑
Horizonte: UFMG, 2001. sensos, por uma comunicação caracterizada pela
argumentação, na qual se considera a validade das
Outras visões
pretensões de cada membro participante da discus‑
Filmes
são. Contra o fanatismo e a irracionalidade dos pre‑
Amistad. Direção: Steven Spielberg. Estados Unidos, conceitos, de natureza afetiva emocional, os discur‑
1997. sos, para Habermas, conduziriam ao entendimento,
A onda. Direção: Dennis Gansel. Alemanha, 2008. uma vez que seriam marcados pela reflexividade, e
Notícias da antiguidade ideológica: Marx, Eisenstein, nela a ação comunicativa coletiva buscaria o melhor
O Capital. Direção: Alexander Kluge. Alemanha, 2008.
para a comunidade.
Fotografias A centralidade da nossa reflexão abordará o
Auschwitz II‑Birkenau, o campo de extermínio do com‑ tema da relação do indivíduo com a comunidade.
plexo de Auschwitz. Nessa abordagem, existe a possibilidade de a ênfa‑
Marcha pela vida e liberdade religiosa no Dia Nacional se ser colocada na supremacia do indivíduo ou da
de Combate à Intolerância Religiosa em Porto Alegre comunidade. As decorrências dessas ênfases darão
(RS), 2016. origem a reflexões políticas que caminharão em di‑
reções diferentes: liberal, democrática, comunitaris‑
Obras de arte
ta, republicana.
Declaração de Independência (1817), de John Trum‑
bull. Óleo sobre tela, 3,7 m × 5,5 m.

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Discussão das atividades propostas seu ser social é que, inversamente, determina sua
consciência”.
Problematizando (p. 329) • Há um relativo determinismo social: o ser humano
Questão 1: Nessa página, problematiza‑se a ex‑ é fruto do meio, apesar de o meio ser construído
pressão happy hour. Discuta com os estudantes: É pelas relações sempre dinâmicas que as pessoas es‑
possível associar essa expressão à ideia de trabalho tabelecem entre si.
alienado? Estimule‑os à reflexão sobre essa possibilida‑ Problematizando (p. 332)
de, e sobre os diferentes campos nos quais a alienação
se faz presente: política, consumo, lazer, religião etc. Questão 1: Aborda‑se o tema da liderança e do
poder totalitário, a partir da metáfora da estrutura
Questão 2: Nessa segunda problematização, su‑
de uma cebola. Para Hannah Arendt, o poder surge
gerimos formar pequenos grupos com os estudan‑
de dentro, jamais de fora.
tes, solicitando que construam um conceito de alie‑
nação com base nas características comuns a todos Produção de texto (p. 332)
os casos analisados. Considerando as reflexões de Arendt sobre o
Questão 3: Na terceira problematização, o foco totalitarismo, solicita‑se a explicação do fenômeno
está na própria natureza do capitalismo, em sua es‑ totalitário. Nesse sentido, destaque a afirmação:
trutura relacionada à mais‑valia e à acumulação de “Os movimentos totalitários são organizações maci‑
capital. Questione: Essa lógica é compatível com o ças de indivíduos atomizados e isolados”. Espera‑se
princípio da sustentabilidade? Esse princípio é ca‑ uma reflexão na qual constem as seguintes ideias na
paz de introduzir alterações no capitalismo? Solicite produção textual dos estudantes:
aos alunos que, em suas argumentações, ofereçam • O uso da palavra “maciça” pode referir‑se a algo rí‑
exemplos para comprová‑las. gido, sólido, impenetrável, inflexível. Pode sinalizar
Produção de texto (p. 329) ainda para a palavra massa, que significa algo sem
forma, maleável, manipulável, homogêneo, sem di‑
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual ferença, sem identidade.
constem as seguintes ideias na produção textual dos • A expressão “indivíduo atomizado e isolado” sina‑
estudantes: liza para a insignificância do indivíduo, reduzido a
• Contra o idealismo, que afirma serem as ideias o um número dentro da massa. Ao isolar os indiví‑
motor das ações humanas, o materialismo afirma duos, eles perdem o poder de mobilização. Com
que são os modos de produção e a divisão social do isso, o totalitarismo se perpetua.
trabalho que movem a história. • Estamos diante de uma ideologia dominante que
• Pressuposto: o ser humano como um ser social e não aceita a pluralidade nem os conflitos de uma
político, afetado pelas relações sociais. sociedade democrática.
• A vida social é essencialmente conflitiva, marcada • Trata‑se de um sistema fechado, que resiste a toda
pela luta de classes. forma de mudança.
Questão 2: Espera‑se uma reflexão na qual
Outros olhares (p. 335)
constem as seguintes ideias na produção textual dos
estudantes: Questão 1: Na concepção de democracia esta‑
• A função da ideologia, na concepção de Marx, consis‑ belecida por Norberto Bobbio, em oposição a totali‑
te em impedir a formação de uma consciência crítica. tarismo, sugerimos que o texto “O futuro da demo‑
• A ideologia busca formatar a mente para acolher cracia” seja analisado com os estudantes, afirmação
uma visão específica (da classe burguesa, hegemô‑ por afirmação, atentando‑se especialmente às ideias
nica) que se pretende universal. a seguir:
• A ideologia, ao manipular a mente, aliena os indiví‑ • Risco do fanatismo, da “crença cega”, como maior
duos em um senso comum acrítico. ameaça à paz mundial. Nesse momento, peça aos
• A consciência nasce das relações sociais, no interior alunos que deem exemplos de fanatismo, em di‑
do meio cultural. ferentes campos, especialmente no político e no
• Não são as ideias que movem o mundo (como de‑ religioso.
fendia o idealismo) ou, em outros termos, “não é • O ideal da não violência como um distintivo da de‑
a consciência dos homens que determina seu ser; mocracia.

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• A natureza da oposição no regime democrático. Problematizando (p. 339-340)
• As revoluções silenciosas na democracia.
Questões 1 e 2: As problematizações desta pá‑
• A utopia da fraternidade ou o ideal da igualdade
gina referem‑se ao confronto entre liberalismo e co‑
jurídica.
munitarismo, que, com perspectivas distintas, pro‑
Problematizando (p. 335) põem uma sociedade regida por leis que garantam
os direitos e promovam a justiça.
Questões 1 e 2: Nessas problematizações so‑ Na abordagem da perspectiva liberal, solicite aos
bre a república e a liberdade no pensamento de estudantes que argumentem sobre a possibilidade
Hannah Arendt, verifique entre os estudantes a apren‑ de conjugar a liberdade individual, o respeito aos
dizagem construída. Considere as ideias centrais de direitos individuais e a pouca interferência do Estado
Hannah Arendt: em questões de economia, por exemplo, garantindo
• A necessidade de haver instituições políticas capazes a justiça social e o bem comum.
de garantir o espaço para que a liberdade se realize. Quanto ao comunitarismo, discuta com os es‑
• As pessoas devem se reunir no espaço público e tudantes sobre a possibilidade de uma ética das
juntas tomar resoluções, pautadas por compromis‑ virtudes, de um espírito humano voltado para as
sos mútuos. questões republicanas, comprometido com o bem
• A revolução, diferentemente da rebelião, busca comum, e sobre as possibilidades da educação
uma nova ordem, procura interromper um curso
política.
histórico e estabelecer um novo começo, assentado
na garantia da liberdade, do convívio fundamenta‑ Produção de texto (p. 340)
do na alteridade, na diferença e na pluralidade.
Questão 1: Em relação à temática indivíduo‑co‑
Produção de texto (p. 336) munidade, com base nos textos de Aristóteles e de
Macintyre, espera‑se que a produção textual do es‑
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
tudante contemple os elementos a seguir:
constem as seguintes ideias na produção textual dos
estudantes: • Natural associação entre os seres humanos.
• Necessidade do ser humano de viver em sociedade,
• A política é feita com debate e associação, por
regido por leis e preceitos.
meio da participação ativa: é o tempo e o espaço
de revolução. • A natureza virtuosa da justiça e o caráter vicioso da
injustiça.
• A revolução procura interromper um curso histórico
e inaugurar um novo começo, uma nova ordem, • Separação entre o indivíduo e os papéis sociais que
filha da liberdade, que, por sua vez, não é natural, ele desempenha, tornando a vida desconexa.
mas política.
• A revolução política está assentada na garantia da
Sugestão de atividades
liberdade, do convívio fundamentado na alterida‑ complementares
de, na diferença e na pluralidade. 1. Considerando a citação David Rousset: “Os ho‑
mens normais não sabem que tudo é possível”,
Problematizando (p. 338)
Hannah Arendt faz uma reflexão sobre o totali‑
Questão 1: Essa problematização sugere que o tarismo. É possível solicitar aos estudantes uma
momento atual não é marcado pela ética do discur‑ reflexão sobre o tema do totalitarismo. Nesse
so ou da argumentação racional, que busca o con‑ contexto, espera‑se uma reflexão na qual cons‑
senso tendo em vista o melhor para todos. Propo‑ tem as seguintes ideias:
nha uma reflexão nesse sentido: Qual é a natureza • Interpretando “homens normais” como o sen‑
dos programas televisivos mais vistos e dos conteú‑ so comum, referimo‑nos àqueles que não refle‑
dos mais acessados na internet? tem, que são acríticos, que acolhem as coisas de
Professor(a), nesse sentido, fomente a argumen‑ forma mecânica.
tação dos estudantes sobre o nível de consciência • Homens normais não sabem que é possível der‑
política e de interesse democrático e republicano rubar um sistema.
presente na sociedade brasileira. Peça a eles que • Homens normais não têm consciência da pró‑
ilustrem suas falam com exemplos do cotidiano. pria manipulação.

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• Pode‑se também interpretar “normais” como BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco
os “seguidores da norma”; portanto, ficam Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra. 2011.
restritos à legalidade. E dentro da normalidade MONTESQUIEU, Barão de. O espírito das leis. 3. ed.
nem tudo é possível. Trad. de Pedro Vieira Mota. São Paulo: Saraiva, 2000.
• Essa frase pode também ser relacionada à crí‑ WEFORT, Francisco Carlos. Por que democracia? São
tica feita por Hannah Arendt à “banalidade do Paulo: Brasiliense, 1984.
mal”: homens “normais”, “seguindo as nor‑ Professor(a), volte aos objetivos e aos descrito‑
mas”, promoveram o holocausto, sem conside‑
res previstos no planejamento inicial. Faça um diag‑
rar que era possível não fazê‑lo.
nóstico da aprendizagem construída, especialmente
aquela relacionada ao pensamento conceitual, aos
Caminhos alternativos e conceitos estruturantes da filosofia previstos para
abordagens complementares esse eixo temático.

Projeto interdisciplinar de EIXO TEMÁTICO 4 – ARTE


reflexão filosófica
E ESTÉTICA (p. 341-353)
Os desvios do poder
As reflexões sobre ética e política contempo‑ Objetivos, descritores específicos e
râneas abrem‑nos a possibilidade de proporcio‑ conceitos do eixo temático
narmos uma reflexão filosófica com o objetivo de • Compreender a arte como intuição e criação sub‑
compreender a natureza política do poder e seus jetiva.
desvios nas sociedades contemporâneas. Entre as • Relacionar arte e cultura.
questões norteadoras da reflexão filosófica, sugeri‑ • Compreender a arte de viver em Nietzsche.
mos inicialmente: • Compreender a arte como sublimação em Freud.
• O que é o poder? Como se manifesta? Pertence a • Analisar a crítica da Escola de Frankfurt à indústria
um indivíduo ou a um grupo? cultural.
• Pode‑se renunciar ou transferir poder a alguém?
• A quem pertence a soberania em um Estado de‑ Recursos a explorar neste
mocrático? eixo temático
• A democracia é uma forma de governo mais frágil
e suscetível aos desvios do poder? Fontes para leitura e compreensão de
• O Brasil, na prática, é mais democrático ou oligárquico? fragmentos filosóficos
• É possível conciliar liberalismo com comunitarismo? ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria
• O que significa espírito republicano? cultural: o Esclarecimento como mistificação das mas‑
• Toda democracia é republicana? sas. In: Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antô‑
• Quais são as principais características de um siste‑ nio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ma totalitário? ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história
• O que distingue o totalitarismo do autoritarismo e concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
da ditadura? FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Trad. José
• Quais são os principais vícios da política brasileira? Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
KANDINSKY. Carta a Arnold Schoenberg. In: BOLLAS,
Sugestão de bibliografia inicial para Christopher. Criatividade e psicanálise. Jornal de Psica-
o desenvolvimento desse projeto nálise, São Paulo, v. 43, n. 78, 2010.
ARENDT, Hannah. Da revolução. Trad. de Fernando Dí‑ MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpre‑
dimo Vieira. São Paulo: Ática, 1988. tação filosófica do pensamento de Freud. Trad. Álvaro
_____. Origens do totalitarismo: antissemitismo, im‑ Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
perialismo e totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São NIETZSCHE, Friedrich. Miscelânea de opiniões e sen‑
Paulo: Companhia das Letras, 2012. tenças. In: Obras incompletas. Trad. Rubens Rodri‑
_____. A dignidade da política: ensaios e conferências. gues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
Trad. Helena Martins e outros. Rio de Janeiro: Relume‑ (Os pensadores).
Dumará, 1993.

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ZOLA, Émile. Proudhon e Courbet. In: PROUDHON, • Arte como produto da cultura. Olhando para a arte
Pierre‑Joseph. Do princípio da arte e de sua destinação e através da arte, é possível descrever uma cultura.
social. Trad. Antônio de Pádua Danesi. Campinas: Ar‑ Na arte, temos acesso às diversas civilizações da hu‑
mazém do Ipê, 2009. manidade. Assim, a arte é produto de uma época,
retrato de uma comunidade humana.
Outras visões • Arte como criação individual e negação da cul‑
Fotografias tura. Sendo criação individual, a arte é expressão
da originalidade do artista, é visão interpretativa
Apresentação do grupo Samba de Roda do Quilombo
de mundo, é construção de uma nova realidade,
no Encontro Cultural de Laranjeiras (SE), em 2013.
é crítica social. Por meio da arte, o artista trans‑
Iceberg.
cende a cultura e possibilita novos horizontes ao
As aventuras de Marco Polo, espetáculo teatral chinês
ser humano.
em apresentação nos Estados Unidos, 2013.
Obras de arte Problematizando (p. 347)
Crianças geopolíticas assistindo ao nascimento do Questão 1: Nesta problematização, o foco não
novo homem (1943), de Salvador Dalí. Óleo sobre tela, está nas obras de arte, que é algo exterior, mas na
45,72 cm × 52,7 cm. arte de bem viver, segundo Nietzsche. Peça aos
Latas de sopa Campbell (1962), de Andy Warhol. Tinta alunos que interpretem e indiquem decorrências
de polímero sintético sobre 32 telas. Cada tela: 50,8 existenciais resultantes da atitude que Nietzsche re‑
cm × 40,6 cm. comenda: estimar e libertar o herói oculto que se
Pomba à prova de balas (2007), de Banksy. Grafite em encontra escondido dentro de si mesmo e, com isso,
Belém, Palestina. pôr‑se em cena para si mesmo.
Preto e violeta (1923), de Wassily Kandinsky. Óleo so‑
bre tela, 77,8 cm × 100,4 cm. Outros olhares (p. 351)
Reprodução proibida (1937), de René Magritte. Óleo
Questão 3: Nessa seção, o foco são as relações
sobre tela, 81,3 cm × 65 cm.
entre a arte abstrata e o inconsciente, com base na
TV Jardim (1974), instalação de Nam June Paik.
obra Preto e violeta, de Wassily Kandinsky. Nessa
abordagem, retome os elementos principais de re‑
Desenvolvendo os objetos de estudo
flexão sobre a arte pelo viés da psicanálise. Sugeri‑
mos alguns pontos a serem tematizados e proble‑
Discussão das atividades propostas
matizados com os alunos:
Problematizando (p. 344) • A arte tem suas raízes no inconsciente: a ele per‑
Nessas problematizações, solicita‑se o posicio‑ tence e a ele comunica.
• Na livre manifestação da arte, originam‑se novas
namento do estudante acerca da importância da
formas expressivas.
arte no processo de educação do espírito humano
• As novas formas expressivas não usuais são uma
e da transformação social. Estimule a reflexão dos
resposta à repressão do racionalismo da cultura oci‑
estudantes no que tange à importância de culti‑
dental e refletem a densidade da vida psíquica.
var a intuição e a imaginação para a construção de
• Na fantasia e na imaginação encontra‑se o alicerce
algo novo. Peça a eles que argumentem em torno da criatividade, por meio da qual ocorre um movi‑
da ideia da arte como instrumento de superação mento que realiza a sublimação de desejos.
da fragmentação, a favor da educação, da sensi‑ • Na contemplação da obra abstrata, cuja represen‑
bilidade estética e da inteligência afetiva. Solicite tação foge do usual, há algo desconcertante, que
ainda uma análise das principais características da nos toca – não como racionalidade, mas como
arte contemporânea. emoção, energia vital, inteligência afetiva.
• A arte é um espelho que desperta nossa sensibili‑
Produção de texto (p. 345)
dade, fazendo‑nos ver em nós mesmos algo que
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual desconhecíamos.
constem as seguintes ideias na produção textual dos • Na imagem representada está materializada a vida
estudantes: psíquica.

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• Sendo expressão da criatividade, a obra abstrata mento pessoal a favor ou contra a seguinte afir‑
brinca com as formas, destrói a convenção, des‑ mação: “Onde há arte, há liberdade”. Nesse con‑
cortina um vir‑a‑ser , projeta nossa identidade de texto, espera‑se uma reflexão na qual constem as
forma não usual e convoca‑nos a articular as múlti‑ seguintes ideias:
plas dimensões de nosso ser. • Contra: Onde há arte, não há liberdade, pois, de
Problematizando (p. 351) acordo com Marcuse, “a autonomia da arte reflete
a ausência de liberdade dos indivíduos na socieda‑
Nestas problematizações, o foco está na refle‑
de sem liberdade”. Ou seja, a arte é o grito, a voz
xão freudiana e psicanalítica sobre o papel da arte de protesto daqueles que têm sua liberdade e dig‑
na vida do ser humano. Retome a aprendizagem nidade negadas no cotidiano da existência. A arte é
construída, especialmente as ideias relacionadas à a válvula de escape, a linguagem distanciadora do
arte como sublimação, como realização de fanta‑ real de opressão.
sias, como instrumento de purificação das emoções, • A favor: A arte é justamente o espaço da liber‑
como cura interior, arte como luta contra as repres‑ dade, nela realiza‑se a autêntica humanidade. Fora
sões e enfrentamento da violência, com base no re‑ da arte é que não há liberdade; fora da arte reina
conhecimento e no estímulo à cultura de paz. a mecanização. A arte é tempo e espaço de livre
criação, linguagem distanciadora do mundo real. A
Problematizando (p. 353)
arte torna‑se meio de livre projeção e criação de um
Questão 2: Consideram‑se as reflexões da Esco‑ novo mundo.
la de Frankfurt sobre a indústria cultural em nossa
sociedade. Fomente o debate com os estudantes Caminhos alternativos e
sobre o processo de massificação e de atrofia da abordagens complementares
imaginação provocado por uma indústria que trans‑
Estamos mergulhados na filosofia contemporâ‑
formou a arte em mercadoria e os indivíduos em
nea. São muitas as ópticas possíveis. Quais são as
meros consumidores.
mais indicadas? Sua sensibilidade de educador(a) e
Produção de texto (p. 353) sua coerência com o projeto assumido para a escola,
em sua região, serão fundamentais para esse dire‑
Questão 1: Espera‑se uma reflexão na qual
cionamento. Com o objetivo de auxliá‑lo(a), sugeri‑
constem as seguintes ideias na produção textual dos
mos algumas abordagens complementares.
estudantes:
Em termos antropológicos, desde o período das
• A indústria cultural é a rede de instituições e de mí‑ duas Grandes Guerras Mundiais, há temas recor‑
dias do mundo capitalista dedicada à venda de pro‑ rentes nas reflexões existenciais contemporâneas:
dutos culturais, com a finalidade de obter lucros e
angústia, crise, falta de sentido etc. Esses temas
vantagens. Os interesses econômicos se aproximam
poderão ser objeto de um profundo estudo inter‑
do universo das artes e o canalizam para o mercado
disciplinar com as colaborações da psicologia e da
de consumidores.
psicanálise. Diferentes profissionais podem ser con‑
• Assim, a indústria cultural, denunciada pela Escola
vidados para auxiliar em uma espécie de fórum ou
de Frankfurt, está a serviço dos interesses do capital.
seminário de temáticas existenciais.
• Direcionando os produtos artísticos para o mercado
consumidor, a indústria cultural entorpece os indi‑ Em termos políticos, sugerimos uma pesquisa
víduos com a oferta constante de produtos, trans‑ nos últimos dados do IBGE sobre a realidade social,
formando desejos em necessidades e anestesiando econômica e cultural do povo brasileiro. A partir
sua faculdade crítica. desse diagnóstico, pode‑se construir uma reflexão
• Por isso, a indústria cultural é processo de massi‑ sobre a democracia brasileira, abordando os aspec‑
ficação, pois elimina diferentes formas de percep‑ tos da democracia formal e substancial.
ção. Torna‑se expressão da “cultura da varredura”, Sugerimos uma produção textual (em dupla ou
da padronização. trio) com base em uma problematização: “A demo‑
cracia no Brasil é republicana?”. Nessa reflexão, o
Sugestão de atividade complementar objetivo é proporcionar uma reflexão sobre os prin‑
Considerando as reflexões de Herbert Marcuse, cípios democráticos de igualdade jurídica, de sepa‑
é possível solicitar aos estudantes um posiciona‑ ração dos poderes, do acesso universal aos bens e

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serviços fundamentais e, em seguida, fazer o con‑ contemplativa. Outra forma de abordar a temática
fronto com a realidade efetiva, na qual a coisa públi‑ é sincrônica, fixada no momento histórico em que
ca (res publica) serve aos interesses privados. nos encontramos e nele perceber a realização das
Uma das marcas da democracia é a pluralidade funções da arte.
ou o pluralismo partidário. Em 2016, 35 partidos • Realizar um trabalho interdisciplinar, especialmente
políticos estavam registrados no Tribunal Superior com História, Literatura e Sociologia, relacionando
Eleitoral (TSE). Pensando nisso, sugerimos uma pes‑ o período histórico da ditadura no Brasil com as ex‑
quisa cuja finalidade é conhecer a pluralidade ideo‑ pressões de arte da época, especialmente as letras
lógica da política brasileira, sua (in)consistência, suas de canções. Nesse trabalho, a relação entre arte e
migrações. Nesse âmbito, também se pode verificar cultura e as funções da arte poderão ser verificadas
de maneira bem expressiva.
na população a consciência dos princípios progra‑
• Fazer uma escolha de temas filosóficos que en‑
máticos de cada partido. O primeiro passo será a
volvem problemas sociológicos, cujas fontes per‑
formação do grupo de pesquisa, que, inicialmente,
tencem às linguagens da arte. Convidar os es‑
vai elaborar o instrumento da pesquisa (questioná‑
tudantes a buscar nas múltiplas expressões das
rio) e pensar nos destinatários aos quais será aplica‑
artes algumas manifestações que tematizam essas
do. Posteriormente, terá que se pensar nas formas questões. Algumas possibilidades: a canção “Ad‑
de socialização e de intervenção social, com base mirável gado novo”, de Zé Ramalho, para refe‑
nos resultados da pesquisa. rir‑se ao tema da alienação ou da exploração do
O tema da bioética poderá ser bastante trabalha‑ trabalho; a tela O grito, de Edvard Munch, para
do com atividade de pesquisa, entrevista ou seminá‑ analisar a angústia humana, entre outras apresen‑
rios de leitura. Tratando‑se de um saber multidisci‑ tadas ao longo do livro.
plinar ou interdisciplinar, ou, ainda, transdisciplinar,
são muitos os temas atuais e formas de abordagem Sugestão de bibliografia inicial para o
do tema, propícios à formação de uma consciência desenvolvimento dessas abordagens
da complexidade. É desejável que essa aproximação ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular?
seja feita em diálogo com Biologia e Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1982.
O universo das artes, da reflexão estética e da BERNARDET, Jean‑Claude. O que é cinema? São Paulo:
experiência estética merece um olhar profunda‑ Brasiliense, 1981.
mente integrado com outros saberes, pois a arte BOSI, Alfredo. Cultura brasileira: temas e situações.
é linguagem humana universal que desempenha São Paulo: Ática, 1992.
diferentes funções e adquire múltiplas expressões. DORFLES, Gillo. O devir das artes. São Paulo: Martins
A arte solicita o alternativo, o diferente, o diver‑ Fontes, 1992.
gente. Ela cria o novo. Entre as muitas possibilida‑ DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da
des, sugerimos: educação. Campinas: Papirus, 2002.
• Realizar uma atividade interdisciplinar com o com‑ DUARTE, Rodrigo (Org.). O belo autônomo. Belo Hori‑
ponente curricular Arte, abordando a arte erudita, zonte: UFMG, 1997.
a arte popular e o fenômeno da indústria cultural KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc,
e da massificação. Nessas abordagens, deve‑se fo‑ 2001.
mentar o olhar para a realidade local e perceber se NOVAES, Adauto (Org.) Rede imaginária: televisão e
essa diferenciação teórica é efetiva em sua cidade democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
ou bairro. Podem‑se analisar programas e propa‑
gandas na televisão ou, na internet, em sites de
Projeto interdisciplinar de
grande alcance e repercussão, para diagnosticar a reflexão filosófica
veiculação de ideologias, interesses e valores.
• Desenvolver um estudo aprofundado sobre as Estética da existência
possíveis funções da arte. Um caminho possível é As reflexões sobre algumas concepções de arte
fazer o percurso histórico, desde a função natura‑ na sociedade contemporânea abrem‑nos caminhos
lista da arte, no período anterior à existência da para o desenvolvimento de uma reflexão filosófica
fotografia, passando pela função pedagógica na que busque compreender a dimensão estética da
Idade Média, e chegando à função formalista ou existência humana. Entre as questões iniciais que

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podem nortear essa reflexão, sugerimos: VENTURA, Rodrigo Cardoso. A estética da existência:
• O que é uma existência bela? Foucault e a psicanálise. Cogito, v. 9, n. 9. Salvador, 2008.
• Os padrões culturais de beleza exercem pressão so‑ Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?
bre as buscas individuais? script=sci_arttext pid=S1519‑94792008000100014>.
• Pode haver felicidade para além dos padrões e das Acesso em: 14 maio 2016.
pressões socioculturais? Livro
• Quais são os critérios que uma existência estética
CASSIRER, Ernst. Estética e filosofia. São Paulo: Pers‑
precisa atender?
pectiva, 1972.
• É desejável e possível criar um estilo próprio de exis‑
tência, sendo portador de valores estéticos? Vídeo
• As regras de conduta podem ser construídas pelo Cláudio Ulpiano: sobre a estética da existência. Dis‑
próprio sujeito? ponível em: <www.youtube.com/watch?v=5AcXIOU
• É possível o sujeito assumir‑se como artesão da be‑ bsd8>. Acesso em: 14 maio 2016.
leza da própria existência? Professor(a), volte aos objetivos e aos descritores
• O que significa uma existência autêntica e autônoma? previstos no planejamento inicial. Faça um diagnósti‑
• Qual é a diferença entre autonomia e independência?
co da aprendizagem construída, especialmente aque‑
• O cuidado de si e a busca de harmonia pessoal im‑
la relacionada ao pensamento conceitual, aos concei‑
plica descuido ou indiferença social?
tos estruturantes da filosofia previstos para esse eixo
• A estética da existência afasta‑se de uma existência
temático e para a unidade que aqui se encerra.
ética?
• A estética da existência como ética do cuidado de si
implica narcisismo? PALAVRAS FINAIS
• Há diferença entre buscar “bem viver” e buscar “vi‑ Estimado(a) professor(a),
ver bem”?
Parabéns pela caminhada até hoje realizada na
• Como se pode ou se deve praticar a liberdade?
formação de uma nova consciência, de uma inteli‑
• Quais são as implicações da ética do cuidado?
gência que articula saberes diversos. Essa atitude filo‑
• A estética da existência, como ética de produção
sófica será a responsável pela ressignificação da vida,
do sentido da existência do indivíduo, pode estar
em termos pessoais e coletivos, locais e globais.
separada da política?
Que sua prática continue a ser educadora de
Sugestão de bibliografia inicial para uma nova sensibilidade, de um novo olhar e de
o desenvolvimento desse projeto uma atitude diferenciada, que caminham para a
progressiva autonomia intelectual e ética, na cor‑
Artigos científicos responsável postura de defesa e promoção da vida,
COSTA, Jurandir Freire. O sujeito em Foucault: estéti‑ em sua diversidade essencial.
ca da existência ou experimento moral? Tempo social.
USP, São Paulo, 7(1‑2): 121‑138, outubro de 1995.

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LEITURAS COMPLEMENTARES

UNIDADE 1 – A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA: DA


INQUIETUDE
BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. São Paulo:
Globo, 1998. p. 131-135.

Afirmamos que a redução do problema a qualquer tipo de análise histórica leva à sua falsificação. Com
isto, porém, não afirmamos a inutilidade da pesquisa histórica. Mas a gênese histórica do pensamento filo-
sófico constitui um problema de história da filosofia, que, se pode trazer preciosos subsídios para o nosso
tema, deixa, contudo, o problema da gênese do filosofar, enquanto atitude existencial concreta do homem,
intacto. E mais: a consideração do problema dentro do âmbito da história do pensamento leva a uma aliena-
ção no sentido de uma transferência do mesmo ao passado e a consequente irresponsabilização do homem;
não se filosofa simplesmente porque se está situado dentro de uma cultura à qual pertence a filosofia. O
despertar da consciência filosófica, por outro lado, deve ser firmado como sendo profundamente histórico,
no sentido de que mergulha em uma situação concreto-existencial do homem, de um homem inserido em
sua historicidade.
Analisamos [...] em três momentos, a admiração ingênua. Concluímos afirmando que o sentido de
abertura e disponibilidade que a caracteriza permite ver na admiração o primeiro surto do espírito hu-
mano, em sua manifestação primeira e ainda incontaminada. As análises da experiência negativa [...]
permitem compreender que o espírito só encontra a sua dimensão própria e autêntica em uma dimensão
afirmativa. Por esta razão, o surto do espírito não pode ser buscado, de uma maneira radical, na nega-
tividade. A despeito da importância da admiração ingênua, ela entretanto não responde, de maneira
satisfatória, às exigências do impulso inicial que leva o homem a fazer filosofia. [...] O seu caráter de
ingenuidade impede à admiração o acesso ao sentido crítico de problematização próprio da atividade
filosófica. Daí termos desdobrado a nossa análise em outras direções, que permitissem uma justificação
da gênese do filosofar. [...]
A partir da superação do negativo pode o ato inicial do filosofar ser entendido em toda a sua densi-
dade e dimensão, no sentido de que estamos diante de uma conversão espiritual, de um ato livre, que
assume com responsabilidade o real, decidindo, em última análise, do próprio sentido e validez da filo-
sofia. [...] uma filosofia de recusa ao ser se falsifica como filosofia, por implicar uma postura destruidora,
que atinge em sua própria raiz a vocação da inteligência humana. Pode-se assim compreender o sentido
de responsabilidade e de necessidade próprio a toda atividade filosófica. A filosofia é uma ocupação do
homem, que encontra nele o seu ponto de chegada. Contudo, o homem não pode ser compreendido
como uma realidade reduzida ou fechada sobre os seus próprios limites. Nesse sentido, podemos dizer
que o homem não é a medida do homem, pois a fidelidade à sua própria essência só é compatível com
um comportamento cujas raízes se encontram no sentido de abertura, de disponibilidade, de consenti-
mento admirativo ao ser. Consentindo ao ser, realiza-se o homem como liberdade e como inteligência. O
ser é, pois, a medida do homem e do filosofar.

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UNIDADE 2 – FILOSOFIA GREGA: ORIGEM, FUNDAMENTOS E
SISTEMATIZAÇÃO
COMTE-SPONVILLE. A filosofia da Antiguidade. In: COMTE-SPONVILLE. A filosofia. Trad. Joana Angélica
D’Ávila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 32-39.

“De sempre” é um modo de falar, pois a filosofia, ao que me parece, não tem três mil anos. Consi-
dera-se comumente que ela nasceu na Grécia, durante os séculos VI e V a.C. Os mais antigos filósofos
conhecidos, pelo menos no Ocidente, são os chamados pré-socráticos. Isso não exclui que tenha havido
outros, antes e alhures, especialmente nas imemoriais civilizações egípcias, indianas ou chinesas. Que
a filosofia seja exclusivamente ocidental, como pretendem alguns, é sem dúvida uma tolice. A razão, a
experiência e a liberdade de espírito não constituem um bem exclusivo de nenhum povo, não mais que
o gosto pela verdade ou pela felicidade. Por que a filosofia o seria? Em que Lao-Tse é menos filósofo do
que Heráclito? Nagarjuna ou Sankara, menos filósofos do que Plotino ou Scotus Erigena? Se neste livro,
eu só falo de autores ocidentais, é para não ir além daquilo que conheço de primeira mão – portanto
não por desprezo mas por humildade. A mesma razão me proíbe de falar das grandes filosofias persas
(al-Farabi, Avicena, Sohrawardi...), árabes (Averróes, Ibn Arabi, Ibn Khaldun...) ou judaica (Judah Halevi,
Maimônides, Gersônides...), ainda que elas sejam frequentemente indissociáveis, por suas fontes e seu
conteúdo, das filosofias gregas e mais tarde europeias. [...]
Inegavelmente, contudo, não é impossível que os gregos – especialmente os dos confins: primeiro na
Jônia, na costa oeste da Ásia Menor, e mais tarde no sul da Itália – tenham de fato gozado, em filosofia, de
uma espécie de anterioridade. Por qual razão? Talvez por causa de sua situação geográfica, no coração do
Mediterrâneo mais urbano, mais comerciante (Mileto, de onde são originários Tales e Anaximandro, é então
uma das cidades mais povoadas e mais prósperas do mundo grego), mais viajante (Tales teria ido ao Egito,
Demócrito até as Índias), em contato imediato com os lídios e depois com os persas, a igual distância, ou
quase, do Egito, da Judeia e da Mesopotâmia ... Talvez também em virtude de sua situação histórica, e es-
pecialmente da descoberta quase simultânea, na Grécia, da matemática, da cidadania e da democracia (que
talvez tenha sido inventada em Quio, ou seja, na Jônia, não longe de Mileto). Isso constitui um encontro
singularmente libertador. Um raciocínio matemático ou uma votação não obedecem a ninguém – nem aos
deuses nem aos reis. É nisso que eles são livres. [...] A filosofia para nascer, não pede muito mais. Tales, que
foi também matemático, era contemporâneo de Sólon; Pitágoras, outro filósofo matemático, de Clístenes;
Sócrates, de Péricles. É difícil (embora os dois primeiros não sejam atenienses) só ver nisso três coincidências.
Os pré-socráticos, portanto, abrem o caminho. Contra o mito, contra a superstição, eles serão como
que os arautos –e mesmo os heróis – da liberdade de espírito. [...] As filosofias pré-socráticas voltam-se
para o conjunto do real, do qual buscam o princípio primeiro ou derradeiro [...]. Aristóteles os denomina
frequentemente físicos, porque o conjunto do real, para a maioria deles, não é outra coisa senão a natu-
reza (phýsis) [...].
Tudo muda com Sócrates (470-399 a.C.), que se ocupa menos da natureza ou do Todo que do ho-
mem. É o que podemos chamar de revolução socrática. Sua máxima? “Conhece-te a ti mesmo”. [...] Mas
ninguém, pensa ele, pode extrair a verdade senão de si mesmo, ainda que para isso necessite do encon-
tro do outro (é o princípio da “maiêutica” socrática, que quer parir os espíritos). Ora, o que a pessoa

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descobre em si é uma verdade universal (uma verdade que não fosse verdadeira para todos, de direito,
não seria verdadeira, de fato, para ninguém), inclusive em matéria de moral. É o que se chama intelec-
tualismo socrático: o verdadeiro e o bem andam juntos (a verdade é boa, o bem é verdadeiro), o mal não
passa de um erro [...].
[...] Mas todo pensamento grego ulterior traz sua marca. Seus discípulos diretos originaram as principais
correntes da filosofia da Antiguidade, desde o caminho régio (Platão, Aristóteles, Plotino) até os “pequenos
socráticos” [...].
O primeiro, e talvez o mais espetacular é Platão (427-348 a.C.). Seus livros são diálogos, nos quais, mais
frequentemente, quem ocupa o principal papel é Sócrates. Mas Platão não se contenta em dar a palavra ao
mestre. Ele extrai as consequências tanto da morte deste (o Bem não reina aqui embaixo) e de seu pensa-
mento quanto de sua vida (o que é verdadeiro e que convém seguir é o Bem). [...]
[....] Dualismo da alma e do corpo (só a alma é imortal), dualidade dos dois mundos [...]. É o que os su-
cessores de Platão tentarão superar [...]. Aristóteles (384-322 a.C.), pois se trata dele, é claro, não crê nas
ideias separadas. Não existem dois mundos, mas um só. [...] Assim encontram-se em Aristóteles uma lógica,
uma física, uma biologia, uma psicologia, uma política, uma retórica, uma poética, todas de uma riqueza e
de uma inteligência desconcertantes [...]. O estagirita [...] procede por distinções conceituais: a essência e
o acidente, o ato e a potência, a forma e a matéria [...]. Ele tende a reunificar aquilo que Platão separava.

UNIDADE 3 – HELENISMO E FILOSOFIA MEDIEVAL: DA RAZÃO E


DA FÉ

STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. (Passo-a-passo).

Boécio não foi o único romano a marcar profundamente o mundo latino medieval. Agostinho de Hipona
(354-430), venerado pelos católicos como santo Agostinho, é considerado por grande parte dos especia-
listas ainda um pensador da Antiguidade romana. Sua conversão ao cristianismo é narrada nas Confissões,
livro autobiográfico que descreve as fraquezas do homem Agostinho e seu percurso em direção à fé cristã
em meio a discussões de temas centrais da filosofia antiga.
A fé de Agostinho não é uma fé dogmática, inalcançável à razão humana. Mas não é também algo
puramente racional. Fé e razão andam de mãos dadas em uma obra que tornou célebre a máxima “Com-
preendas para crer, creias para compreender.” Segundo Agostinho, o racionalismo das ciências gregas
não traz obstáculos para a fé. Ao contrário, elas estão a serviço tanto da investigação racional da natu-
reza quanto das verdades bíblicas. Antigo professor de retórica, Agostinho procura preservar o essencial
da cultura clássica ao atribuir-lhe uma finalidade que os antigos jamais conceberam: a interpretação das
Sagradas Escrituras. [...]
A força da teoria de Agostinho está em seu caráter linguístico. Não se trata de investigar um ser cuja
existência não é acessível ao homem. Trata-se antes de estudar a letra de um texto. Mas não é a verdade da
letra escrita que está em jogo. O texto possui um valor de autoridade que escapa a esse tipo de questiona-
mento. A tarefa é fundamentalmente a de extrair o seu significado seguindo regras específicas e precisas.
Ao formular essas regras, Agostinho acaba transmitindo, da mesma forma que o fez Boécio, não apenas
certas teses da filosofia grega, mas também um dos principais métodos de análise empregados pelos gre-
gos, a dialética. Do ponto de vista de suas fontes, Agostinho segue basicamente Cícero, cujo De oratore,
por sua vez, retoma de Aristóteles os preceitos a serem respeitados em toda discussão. [...]
O sucesso da dialética durante a Idade Média foi considerável. Por um lado, foi a base de vários desen-
volvimentos lógicos, como a teoria dos silogismos hipotéticos ou a teoria da inferência. Por outro lado,
propiciou o aparecimento de algumas das técnicas de argumentação mais características do mundo lati-
no medieval. Seria, no entanto, um exagero afirmar que a dialética deve o seu sucesso exclusivamente a
Agostinho. Também Boécio contribuiu em muito para a sua difusão, pois traduziu os Tópicos de Aristóteles

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(ainda que esta tradução tenha permanecido esquecida até o século XII), comentou os Tópicos de Cícero
e escreveu um tratado intitulado De diferentiis topici. Foi Boécio quem estabeleceu também a divisão das
artes que constituem o fundamento da cultura latina medieval: o quadrivium, composto pelas ciências que
seguem o modelo matemático – aritmética, geometria, astronomia e música –, e o trivium, formado pelas
disciplinas que buscam menos a aquisição de seu conhecimento que o seu modo de expressão – a gramáti-
ca, a retórica e a dialética. Ainda que esse modelo tenha permanecido um ideal nem sempre observado, ele
contribuiu fortemente para a difusão da dialética.
[...] Um dos principais modos de expressão do período medieval latino é a questão quaestio. A práti-
ca desse método parece ter começado com os juristas no século XII, mas os especialistas divergem sobre
esse ponto. Seja como for, a quaestio aparece como uma espécie de desenvolvimento da dialética. Pedro
Abelardo, famoso por seus escritos de lógica e por seu envolvimento com Heloísa, o qual conhecemos gra-
ças à sua correspondência, foi um dos principais teóricos desse estilo. Segundo Abelardo, uma questão é
uma maneira de obter uma solução, segundo certas regras, de um problema cuja origem é a constatação
de uma contradição, mesmo que aparente, entre as opiniões de duas ou mais autoridades. Uma questão
medieval não é, portanto, apenas uma simples pergunta para a qual não se tem resposta. Inspirado por
Boécio, Abelardo explica que a dúvida acerca de uma tese pode provir da existência de uma opinião oposta
que nos faz interrogar ambas as partes para saber qual a verdadeira. [...]
[...] O autor privilegiado por Abelardo foi novamente Aristóteles, quando este apresenta proposições
contrárias como ponto de partida para a discussão dialética. O que torna, contudo, o desenvolvimento de
Abelardo original é o fato de que as opiniões contrárias são tiradas de autoridades ou de textos consagrados
pela tradição teológica. Sendo assim, Abelardo pôde concluir que, em muitos casos, a autoridade e a tradi-
ção não têm valor absoluto, tendo inclusive menor valor do que o de uma demonstração racional.

UNIDADE 4 – A FILOSOFIA E O ESPÍRITO MODERNO

SAVATER, Fernando. A aventura do pensamento: um passeio pela história da filosofia e pelos grandes nomes
do pensamento ocidental. Trad. Célia Regina Rodrigues de Lima. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 73-116.

A chave é o método
A filosofia moderna, por meio de Descartes, aparece com um propósito aparentemente modesto: conhe-
cer o caminho que se pode seguir para chegar ao conhecimento e à verdade. Ele não começa [...] preesta-
belecendo verdades, nem definindo o que é o mundo, o que é o ser humano, o que é uma alma, mas sim
tentando buscar um caminho para chegar a conclusões confiáveis. A chave de sua busca é o método, que
vem da palavra grega methodos, que quer dizer “caminho”, a primeira coisa que Descartes procura. Um
caminho que nos leve a ideias claras e distintas. Não as que estão confusas, que aceitamos de qualquer jeito,
sem enxergá-las com precisão. Descartes, que estava debruçado sobre muitos temas – físicos, astronômicos,
fisiológicos e matemáticos, é claro –, organiza um discurso do método. [...]
O discurso do método é formado por seis partes. [...] Na terceira parte o autor propõe uma espécie de
moral provisória, que consiste em obedecer às leis e aos costumes do lugar em que se encontrar, ser firme
e constante em suas ações ao adotar uma decisão, seguir resolutamente as ideias que sua mente decidir
até que seu método às ponha à prova, modificar seus próprios desejos em vez de tentar adaptar a ordem
do mundo a eles, e dedicar sua vida ao desenvolvimento da razão e ao progresso em busca da verdade.
Em seguida, na quarta parte, busca um ponto inicial absolutamente inquestionável para a sua filosofia, e o
encontra no “penso logo existo”.

Não se vem com nada, tudo vem depois


Falando em termos bem gerais, no século XVII a polêmica filosófica passava por posições diferentes
diante do conhecimento. De um lado, a racionalista, representada por Descartes, que considera que há

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ideias inatas nos seres humanos. De fato, ele em sua dúvida abandona tudo o que os sentidos propor-
cionaram e se concentra na própria existência de um Eu, de um cogito, de um pensar que reconhece a
si mesmo como tal e que tem uma série de ideias inatas, claras e distintas a respeito da divindade e do
conhecimento da verdade. Tudo isso é deixado de lado por Locke. Para ele não existe outra fonte de
conhecimento além daquela que se origina dos sentidos e da experiência. Aí, nas questões das fontes
do conhecimento, abrem-se dois grandes caminhos: por um lado, o racionalismo continental, que vai ter
seu desenvolvimento com Descartes, Spinoza e Leibniz, e por outro lado o empirismo inglês, de estirpe
francamente contrária a toda postulação das ideias inatas. Locke parte do princípio de que tudo o que
sabemos vem dos sentidos. [...]
O propósito de Locke no Ensaio do entendimento humano é provar, pura e simplesmente, que todas
as ideias, simples e compostas, provêm da experiência. [...]. É evidente que essa crítica ao inatismo estava
profundamente ligada à eliminação de elementos políticos autoritários, escondidos sob as teses inatistas.
Para alguns teóricos, o inatismo estava relacionado com a existência de uma ordem natural do mundo, que
se estendia aos âmbitos social e político. Em compensação, os que negavam o inatismo não buscavam uma
ordem fixa e imutável, mas tendiam a pensar que toda a ordem era construída e consensual. Para eles, a
pretensão de uma ordem legítima em si era questionável.
Na análise de Locke, toda ordem se revela convencional, histórica e, definitivamente, fruto de uma cons-
trução. E a ideia surge a partir da experiência. [...]
Locke foi o precursor de um estilo filosófico seguido depois, por exemplo, por David Hume e Bertrand
Russell. [...] Aí está a base dos temas que hoje tanto nos interessam: direitos humanos e tolerância. Locke
escreveu uma carta sobre essa questão fundamental, que teve grande influência de Voltaire, e por meio dele
influenciou praticamente toda a Europa. A tolerância promove a ideia de que ideologias diferentes devem
conviver em um mesmo país. [...]
As ideias são, portanto, [para David Hume] representações mentais, de modo que a partir das impressões
constituem-se as ideias simples, e depois, associando-as, temos as ideias compostas ou complexas. Todas as
sensações ou impressões e ideias geram em nós a crença de que existe realmente o objeto exterior que as
provoca, mas, na realidade, a única coisa de que posso ter certeza é que tenho uma sensação e uma impres-
são e que isso gera uma crença de que existe realmente uma realidade exterior a mim, a qual me provoca
essa sensação. Contudo, o objeto que conheço não é exterior, mas está na minha consciência, pois consiste
apenas em uma rede de impressões e ideias. Se eu afirmo que as minhas impressões e ideias correspondem
a um objeto real, é só por um ato de crença.
Hume diz que nos iludimos e criamos certas ideias para as quais não há impressões, como por exemplo,
a ideia de causa e efeito, ou a de espaço e de tempo, ou a de substância. Todas essas ideias são fundamen-
tais para a ciência, ainda que sejam ilusórias. Os cientistas apoiam-se nessas ideias básicas, sobre as quais
construímos o mundo do conhecimento, mesmo que não haja impressões ou sensações que lhes deem a
validade objetiva que parecem ter.

UNIDADE 5 – FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA: DA CRISE E DA


POSSIBILIDADE
HORKHEIMER, Max. Sobre o conceito de filosofia. In: Eclipse da razão. Trad. Carlos Henrique Pissardo. 1ª ed.
São Paulo: Unesp, 2015. p. 179-204.

A fé na filosofia significa a recusa em permitir que o medo impeça, de algum modo, a capacidade de
alguém pensar. Até recentemente na história ocidental, a sociedade careceu de recursos culturais e tecno-
lógicos suficientes para forjar um entendimento entre os indivíduos, grupos e nações. Hoje, as condições
materiais existem. O que faltam são homens que entendam que eles próprios são os sujeitos ou os funcio-
nários de sua própria opressão. Pelo fato de existirem as condições materiais para o desenvolvimento de tal
entendimento, é um absurdo esperar que a noção de “imaturidade das massas” seja sustentável. [...]

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Se quisermos falar de uma doença afetando a razão, essa doença deveria ser entendida não como algo
que assolou a razão em algum momento histórico específico, mas como inseparável da natureza da razão
na civilização como até agora a conhecemos. A doença da razão é que a razão nasceu da ânsia do homem
para dominar a natureza. E sua “recuperação” depende da compreensão da natureza da doença original,
não de uma cura dos seus sintomas tardios. A verdadeira crítica da razão irá necessariamente desvelar as
camadas mais profundas da civilização e explorará sua história mais remota. Desde o tempo em que a ra-
zão se tornou instrumento para a dominação da natureza humana e extra-humana pelo homem – ou seja,
desde os primórdios –, ela tem-se frustrado em sua própria intenção de descobrir a verdade. Isso se deve
ao próprio fato de que ela fez da natureza um mero objeto e de que fracassou em descobrir o traço de si
mesma em tal objetificação, nos conceitos de matéria e de coisas tanto quanto nos conceitos de deuses e
de espírito. [...]
O transtorno da razão vai muito além das óbvias deformações que a caracterizam no presente. A razão
só pode tomar consciência de sua razoabilidade refletindo sobre a doença do mundo enquanto produzida
e reproduzida pelo homem; nessa autocrítica, a razão permanecerá, ao mesmo tempo, fiel a si mesma, pre-
servando e aplicando, sem motivo ulterior, o princípio da verdade que devemos somente à razão. A sujeição
da natureza reverter-se-á em sujeição do homem e vice-versa, enquanto este não entender sua própria ra-
zão e o processo básico pelo qual ele criou e está mantendo o antagonismo que está a ponto de destruí-lo.
A razão só pode ser mais que natureza percebendo corretamente sua “naturalidade”, que consiste em sua
tendência à dominação – a mesma tendência que, paradoxalmente, a aliena da natureza. Assim, sendo o
instrumento da reconciliação, ela será também mais do que um instrumento. As mudanças de direção, os
avanços e os retrocessos desse esforço refletem o desenvolvimento da definição de filosofia.
A possibilidade de uma autocrítica da razão pressupõe, primeiro, que o antagonismo entre razão e na-
tureza está em uma fase aguda e catastrófica e, segundo, que neste estágio de completa alienação a ideia
de verdade é ainda acessível. [...]
A negação desempenha um papel crucial na filosofia. A negação é dupla – negação das pretensões ab-
solutas da ideologia dominante e a negação das pretensões impetuosas da realidade. [...]
Nessa função, a filosofia seria a memória e a consciência do gênero humano e, assim, ajudaria a evitar
que o curso da humanidade assemelhe-se ao andar em círculo sem sentido dos internos de um asilo na
hora do recreio.
Hoje, o progresso em direção à utopia está bloqueado, em primeiro lugar, pela completa desproporção
entre o peso da esmagadora maquinaria do poder social e aquele das massas atomizadas. Todo o resto – a
hipocrisia disseminada, a crença em falsas teorias, o desencorajamento do pensamento especulativo, a de-
bilitação da vontade ou o seu desvio prematuro para atividades sem qualquer fim sob a pressão do medo
– é um sintoma dessa desproporção. Se a filosofia tiver sucesso em ajudar as pessoas a reconhecer esses
fatores, ela terá prestado um grande serviço à humanidade. O método da negação, a denúncia de tudo
aquilo que mutila o gênero humano e impede o seu livre desenvolvimento, repousa na confiança no ho-
mem. Às assim chamadas filosofias construtivas falta essa convicção e, portanto, são incapazes de enfrentar
a decadência cultural. Na visão delas, a ação parece representar a realização do nosso destino eterno. Agora
que a ciência nos ajudou a superar o temor do desconhecido na natureza, somos escravos das pressões
sociais que nós mesmos criamos. Quando somos chamados a agir de modo independente, imploramos por
padrões, sistemas e autoridades. Se por esclarecimento e progresso intelectual entendemos a libertação do
homem da crença supersticiosa em forças malévolas, em demônios e fadas, no destino cego – em suma, a
emancipação do medo –, então a denúncia daquilo que hoje se chama razão é o maior serviço que a razão
pode prestar.

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PARA NÃO CONCLUIR
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é um conceito? In: O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 23-43.

O que é um conceito?
Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem portanto uma cifra.
É uma multiplicidade, embora nem toda multiplicidade seja conceitual. [...] Todo conceito é ao menos du-
plo, ou triplo etc. Também não há conceito que tenha todos os componentes, já que seria um puro e simples
caos [...]. Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes.
[...] Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem
ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução [...]. Numa palavra, dizemos de qualquer conceito
que ele sempre tem uma história, embora a história se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez outros
problemas ou outros planos diferentes. Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vin-
dos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser dife-
rente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.
[...] Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos [...]. Os con-
ceitos vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada. Em segundo lugar, é próprio
do conceito tornar os componentes inseparáveis nele: distintos, heterogêneos e todavia não separáveis, tal
é o estatuto dos componentes, ou o que define a consistência do conceito, sua endo-consistência. É que
cada componente distinto apresenta um recobrimento parcial, uma zona de vizinhança ou um limite de
indiscernibilidade com um outro [...].
Em terceiro lugar, cada conceito será pois considerado como o ponto de coincidência, de condensação
ou de acumulação de seus próprios componentes. O ponto conceituai não deixa de percorrer seus compo-
nentes, de subir e de descer neles. Cada componente, neste sentido, é um traço intensivo, uma ordenada
intensiva que não deve ser apreendida nem como geral nem como particular, mas como uma pura e simples
singularidade [...] que se particulariza ou se generaliza, segundo se lhe atribui valores variáveis ou se lhe
designa uma função constante. [...] Um conceito é uma heterogênese, isto é, uma ordenação de seus com-
ponentes por zonas de vizinhança. É ordinal, é uma intensão presente em todos os traços que o compõem.
Não cessando de percorrê-los segundo uma ordem sem distância, o conceito está em estado de sobrevoo
com relação a seus componentes. Ele é imediatamente co-presente sem nenhuma distância de todos os
seus componentes ou variações, passa e repassa por eles: é um ritornelo, um opus com sua cifra.
[...] O conceito diz o acontecimento, não a essência ou a coisa. [...] O conceito define-se pela inseparabi-
lidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevoo absolu-
to, à velocidade infinita. [...] O “sobrevoo” é o estado do conceito ou sua infinitude própria, embora sejam
os infinitos maiores ou menores segundo a cifra dos componentes, dos limites e das pontes. [...]
O conceito é, portanto, ao mesmo tempo absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes,
aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas
absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas condições que impõe ao
problema. É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário. É infinito por seu sobrevoo ou sua
velocidade, mas finito por seu movimento que traça o contorno dos componentes. Um filósofo não para
de remanejar seus conceitos, e mesmo de mudá-los; basta às vezes um ponto de detalhe que se avoluma,
e produz uma nova condensação, acrescenta ou retira componentes.
[...] O conceito filosófico não se refere ao vivido, por compensação, mas consiste, por sua própria cria-
ção, em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como qualquer estado de coisas. Cada
conceito corta o acontecimento, o recorta a sua maneira. A grandeza de uma filosofia avalia-se pela natu-
reza dos acontecimentos aos quais seus conceitos nos convocam, ou que ela nos torna capazes de depurar
em conceitos. Portanto, é necessário experimentar em seus mínimos detalhes o vínculo único, exclusivo,
dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora. O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence.

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