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LUDWIG WITTGENSTEIN

CULTURA E VALOR

Lisboa: Edições 70, 1980

PREFÁCIO:

No material manuscrito deixado por Wittgenstein existem muitas


notas que directamente não pertencem às suas obras filosóficas,
embora se encontrem dispersas e misturadas com os textos
filosóficos. Algumas das notas são autobiográficas, outras
referem-se à natureza da actividade filosófica, e outras dizem
respeito a assuntos de caráter geral, tais como questões sobre a
arte ou religião. Nem sempre é possível separá-las nitidamente
do texto filosófico; contudo, em muitos casos, o próprio
Wittgenstein deixou entrever essa separação – utilizando
parênteses, ou de outra maneiras.

Algumas notas são efêmeras; outras, por outro lado – a maioria –


têm um grande interesse. Por vezes, são admiravelmente belas e
profundas. Tornou-se evidente para os executores literários que
uma parte das notas se deveria publicar, e eu próprio fui
encarregue de fazer e organizar uma selecção.

Tratava-se, incontestavelmente, de uma tarefa difícil; em várias


ocasiões, tive diferentes ideias sobre como levá-la a cabo da
melhor maneira possível. Para começar, por exemplo, pensei que
as notas se podiam organizar conforme os assuntos nelas
tratados – como ‘música’, ‘arquitetura’, ‘shakespeare’, ‘aforismos
sobre sabedoria prática’, ‘filosofia’, etc.  Por vezes, as notas
podem assim ordenar-se sem esforço; mas, geralmente, a
separação do material por este processo daria provavelmente
uma impressão de artificialidade. Além disso, eu tinha pensado,
durante um curto período de tempo, em incluir material já
publicado. Muitos dos ‘aforismos’ mais impressionantes de
Wittgenstein encontram-se nas suas obras filosóficas –
nos cadernos de apontamentos da primeira Guerra Mundial,
no Tractatus e também nas investigações. Gostaria de dizer que
é quando se encontram em tais contextos que os aforismos de
Wittgenstein exercem, e facto, o seu mais poderoso efeito. Mas
precisamente por essa razão não me parecia correto arrancá-los
ao seu contexto.

Durante um curto período de tempo, pensei também não fazer


uma seleção muito vasta, mas incluir apenas as ‘melhores’ notas.
A impressão criada pelas boas notas só poderia ser
enfraquecida, segundo pensava, por um grande volume. Isso é,
provavelmente, verdade – mas não permitia confiadamente
escolher entre as formulações repetidas do mesmo, ou
praticamente do mesmo, pensamento. Muitas vezes, as próprias
repetições pareciam-me estar relacionadas com a própria
natureza do assunto.

Por fim, decidi-me pelo único princípio de seleção que me parecia


incondicionalmente correcto. Excluí da compilação as notas de
tipo puramente ‘pessoal’ – isto é, notas em que Wittgenstein faz
observações sobre circusntâncias externas da sua vida, sobre o
seu estado e espírito e as relações com outras pessoas –
algumas das quais ainda vivas. Estas notas foram, de um modo
geral, fáceis de separar do resto e o seu nível de interesse
é diferente do das notas aqui dadas à estampa. Só em alguns
poucos casos em que as duas condições pareciam não estar
reunidas incluí, também, notas de natureza autobiográfica.

As notas publicam-se aqui segundo uma ordem cronológica, com


uma indicação do seu ano de origem. É notável o facto de
praticamente metade as notas provir do período subsequente ao
acabamento (1945) a primeira parte das investigações filosóficas.
Na ausência de explicações adicionais, algumas das notas
revelar-se-ão obscuras ou enigmáticas para um leitor que não se
encontre familiarizado com as circunstâncias a vida de
Wittgenstein ou com aquilo que ele lia. Em muitos casos, teria
sido possível fornecer comentários esclarecedores em notas de
pé de página. Abstive-me, contudo, com muito poucas
excepções, de incluir comentários. Seria conveniente acrescentar
que todas as notas de rodapé são da responsabilidade do editor.

É inevitável que um livro deste tipo venha chegar às mãos de


leitores para os quais a obra filosófica de Wittgenstein é, e
continuará a ser, desconhecida. Isto não é necessariamente
prejudicial ou inútil. Estou, no entanto, convencido de que estas
notas apenas se põem devidamente compreender e apreciar
contra o pano de fundo a filosofia de Wittgenstein e, além disso,
que elas contribuem para a nossa compreensão dessa filosofia.

Comecei a fazer a minha seleção a partir dos manuscritos nos


anos de 1965 – 1966; pus em seguida o trabalho de parte até
1974. O Sr. Heikki Nyman ajudou-me na selecção final e na
ordenação da compilação. Verificou também a concordância
exacta entre o texto e os manuscritos e eliminou muitos erros e
lacunas do meu original dactilografado. Estou-lhe muito grato
pelo seu trabalho, realizado com imenso cuidado e bom gosto.
Sem a sua ajuda, não teria sido provavelmente capaz de
conseguir completar a compilação para ser impressa. Estou
também profundamente grato ao Sr. Rush Rhees pelas
correcções feitas ao texto por mim produzido e pelas opiniões
preciosas que me deu sobre questões de selecção.

Helsínquia, Janeiro de 1977

Georg Henrik Von Wright

1914

Temos tendência para confundir a fala de um chinês com um


gorgolejo inarticulado. Alguém que comprenda o chinês
reconhecerá, no que ouve, a língua. Muitas vezes, não consigo,
analogamente, distinguir num homem a humanidade.

1929
Considero nova a minha própria maneira de filosofar, e continuo
ainda a pensar que assim é; é por isso que tão frequentemente
necessito de me repetir. Para uma nova geração, ela ter-se-á
tornado uma segunda natureza e as repetições parecerão
ameaçadoras. Para mim as repetições são necessárias.

É bom que eu não me permita ser influenciado!

Uma boa parábola refresca o entendimento.

É difícil indicar o caminho a um míope, visto que não se lhe pode


dizer: ‘olhe para aquela torre de igreja a dez milhas e siga nessa
direcção’.

Não há nenhuma confissão religiosa em que o uso incorreto de


expressões metafísicas tenha sido responsável por tantos
pecados quanto na matemática.

O olhar humano tem o poder de conferir valor às coisas; mas


também faz que elas se tornem mais caras.

Deixa falar apenas a natureza e admite como superior à natureza


unicamente uma coisa, mas não aquilo que os outros possam
pensar.

*
Todas as manhãs é preciso atravessar de novo o cascalho inerte,
de modo a atingir a semente viva e quente.

Uma palavra nova é como uma nova semente viçosa lançada à


terra no campo da discussão. (ah, e quando se encontra terra
fértil em algumas cabeças é lindo de se ver o florescer, e é só
numa palavra, imagina uma frase! – nota minha)

Com a minha mochila filosófica cheia, apenas posso escalar


lentamente a montanha da matemática.

Mendelssohn não é um cume, mas um planalto. O inglês que há


nele.

Ninguém pode pensar por mim um pensamento, da mesma


maneira que ninguém pode  por mim pôr o meu chapéu.

Quem ouve uma criança a chorar e compreende o que ouve


saberá que aí dormitam forças anímicas, forças terríveis,
diferentes do que geralmente se supõe. Raiva profunda,
sofrimento e ânsia de destruição.

Mendelsoohn é como um homem que só está bem disposto


quando tudo é prazeiroso, ou como um homem que só é bom
quando se encontra rodeado por homens bons; não tem a
integridade de uma árvore que se ergue firmemente no seu lugar,
seja o que for que se passe à sua volta. Também sou assim e
tenho tendência a sê-lo.
*

O meu ideal é uma certa frieza. Um templo que proporcione um


fundo para as paixões, sem com elas se imiscuir.

Muitas vezes penso que meu ideal cultural será um ideal novo,
isto é, contemporâneo, ou se promanará do templo de
Schumann. Tenho, pelo menos, a impressão de que ele dá
continuidade a esse ideal, embora de um modo diferente de
como na altura ele efectivamente se manteve. Isto é, a segunda
metade do século dezanove foi excluída. Tratou-se, devo dizê-lo,
de um desenvolvimento puramente instintivo e não do resultado
de uma reflexão.

Quando pensamos no futuro do mundo, temos sempre em mente


a situação em que ele virá a alcançar se prosseguir na direcção
em que o vemos agora mover-se; não nos ocorre que a sua
marcha é sinuosa e não em linha recta, e que a sua direcção,
constantemente se altera.

Creio que a obra de qualidade austríaca (Grillparzer, Lenau,


Bruckner, Labor) é particularmente difícil de compreender. É, num
certo sentido, mais subtil do que tudo o mais, e a sua verdade
nunca mostra tendência para a plausibilidade.

O que é bom é também divino. Por mais estranho que tal possa
parecer, essa afirmação resume a minha ética. Só algo de
sobrenatural pode expressar o sobrenatural.

*
Não se pode levar os homens ao bem; apenas se lhes pode
indicar o caminho para qualquer lugar. O bem reside fora do
âmbito dos factos.

1930

Disse recentemente a Arvid[1] depois de com ele ter visto um


filme muito antigo: um filme moderno está para um filme antigo tal
como um automóvel actual está para um construído há 25 anos. 
A impressão que nos causa é igualmente ridícula e tosca, e os
progressos conseguidos na produção de filmes correspondem
aos melhoramentos técnicos que observamos nos carros. Tal
progresso não se equipara a melhoria – se é correto chamá-lo
assim – de um estilo artístico. O mesmo, sensivelmente, deveria
passar-se também com a moderna música de dança. Uma dança
de jazz, tal como um filme, deve ser algo susceptível de
aperfeiçoamento. O que distingue todos estes desenvolvimentos
da formação de um estilo é que o espírito não desempenha neles
qualquer papel.

Disse em tempos, talvez acertadamente: a cultura antiga


fragmentar-se-á e tornar-se-á       finalmente um monte de cinza,
mas sobre as cinzas pairarão espíritos.

Hoje em dia, a diferença entre um bom e um mau arquitecto é


que este sucumbe a todas as tentações, enquanto o bom
arquitecto lhes resiste.

Quer-se tapar com palha a fenda que se mostra na unidade


orgânica da obra de arte, mas para tranquilizar a consciência
usa-se só apenas a melhor palha.

*
Se alguém pensa ter encontrado a solução do problema da vida e
se sente disposto a dizer a si próprio que agora tudo é muito fácil,
basta-lhe, para ver que está enganado, recordar-se de uma
época em que tal ‘solução’ ainda não havia sido descoberta; teria
sido também possível viver nessa altura, e a solução agora
encontrada pareceria fortuita relativamente a esse tempo. O
mesmo se passa com o estudo da lógica. Se existisse uma
‘solução’ para os problemas da lógica (filosófica),
necessitaríamos apenas de ter em conta que houve um tempo
em que eles não estavam resolvidos (e que também então as
pessoas sabiam viver e pensar).

Engelmann disse-me que em casa, ao remexer uma gaveta cheia


de manuscritos seus, estes lhe parecem tão excelentes que
pensa que valeria a pena dá-los a conhecer a outras pessoas.
(Diz que o mesmo se passa ao ler cartas dos seus parentes já
falecidos.) Mas quando pensa em publicar um seleção desses
manuscritos, as coisas perdem o seu encanto e valor, o projeto
torna-se impossível. Eu disse que tal se assemelhava ao caso
seguinte: nada há de mais extraordinário do que ver um homem,
que pensa não estar a ser observado, a levar a cabo uma
actividade vulgar e muito simples. Imaginemos um teatro; o pano
sobe e vemos um homem sozinho num quarto, a andar para
frente e para trás, a acender um cigarro, a sentar-se, etc., de
modo que, subitamente, estamos a observar com os nossos
próprios olhos um capítulo de uma biografia – isto poderia, sem
dúvida, ser ao mesmo tempo inquietante e maravilhoso.
Estaríamos a observar algo mais admirável do que qualquer
coisa que um dramaturgo pudesse arranjar para ser representado
ou dito num palco: a própria vida. – Mas isso é o que vemos
todos os dias, sem que tal nos provoque a mais ligeira impressão!
Sim, mas não o vemos nessa perspectiva.  – Bem, quando
Engelmann olha para o que escreveu e o acha extraordinário
(embora não se preocupe com a publicação de qualquer dos
seus escritos), vê a sua vida como uma obra de arte feita por
Deus e, como tal, merecendo decerto ser contemplada, assim
como qualquer vida e tudo o mais. Mas só o artista é capaz de
apresentar assim uma coisa individual de modo que ela nos
apareça como uma obra de arte; é verdade que esses
manuscritos perderiam seu valor se fossem examinados um a um
e, especialmente, se fossem olhados desinteressadamente, isto
é, por alguém que não sente por eles, à partida, qualquer
entusiasmo. A obra de arte obriga-nos – por assim dizer – a vê-la
da perspectiva correta; mas na ausência da arte, o objeto é
apenas um fragmento da natureza, como outro
qualquer; podemos enaltecê-lo como o nosso entusiasmo, mas
isso não dá a ninguém o direito de com ele nos confrontar.
(continua a pensar num desses insípidos instantâneos
fotográficos de um fragmento de paisagem que tem interesse
para quem os tirou porque ele estava lá e sentiu algo; mas
qualquer pessoa olhará para eles com frieza de um modo
inteiramente justificado, até ao ponto em que é justificável olhar
friamente para uma coisa.)

                Mas parece-me também que há outra maneira de


apreender o mundo sub specie aeterni, para além do trabalho do
artista. É o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa
sobre o mundo e o deixa tal como é  –  observando-o de cima,
em voo.

            Leio no Peuple d’Israel de Renan: “o nascimento, a


doença, a morte, a loucura a catalepsia, o sono, os sonhos, tudo
isso causava uma enorme impressão e, mesmo hoje em dia,
apenas uns quantos têm o dom de ver claramente que estes
fenômenos têm causas na nossa constituição”. [2]

                Não há, pelo contrário, razão alguma para nos


admirarmos com estas coisas, porque elas são acontecimentos
de todos os dias. Se os homens primitivos não podem deixar de
se admirar com elas, muito mais tal acontecerá com os cães e os
macacos. Ou estar-se-á a presumir que os homens acordaram,
por assim dizer, repentinamente, e que, reparando pela primeira
vez nas coisas que sempre tinham estado presentes, ficaram
compreensívelmente espantados?  –  Bem, na realidade,
podíamos presumir algo deste tipo; não que eles tinham tido
consciência destas coisas pela primeira vez, mas que, de
repente, comecem a sentir-se admirado com elas. Mas, mais uma
vez, tal nada tem a ver com o seu primitivismo. A menos que se
considere primitivo não sentir admiração pelas coisas, o que
implicaria que as pessoas de hoje fossem na realidade os
primitivos, assim como o próprio Renan, se ele pensa que a
explicação científica poderia aumentar a admiração. 

                Como se um raio fosse mais trivial ou menos aterrador


hoje em dia do que há 2000 anos.

                O homem  –  e talvez os povos  –  para admirar, tem de


despertar. A ciência é a maneira de o voltar a fazer adormecer.

                Por outras palavras, é completamente falso dizer: os


povos primitivos deveriam espantar-se com todos os fenômenos.
Embora seja talvez verdade que estes povos se admiravam com
tudo o que os rodeava.  –  Presumir que não podiam deixar de se
admirar é uma superstição primitiva. (É supor que tinham de ter
medo de todas as forças da natureza, ao passo que nós não
temos, evidentemente, que ter medo delas. Por outro lado, a
experiência pode ensinar-nos que certas tribos primitivas têm
uma forte tendência para recear os fenômenos naturais.  –  Mas
não podemos excluir a possibilidade de
povos altamente civilizados virem a estar de novo sujeitos a este
mesmo receio; nem a sua civilização nem o conhecimento
científico os podem disso proteger. É, porém, verdade que
o espírito que hoje preside ao trabalho da ciência não é
compatível com semelhante temor.)

                O que Renan chama bons sens précoce  das raças


semíticas (uma ideia que me tinha também ocorrido há muito
tempo) é a sua mentalidade não poética, que se orienta
directamente para o que é concreto. Eis o que caracteriza a
minha filosofia.

                As coisas estão mesmo à frente dos nossos olhos,


nenhum véu as cobre.

                Aqui se separam a religião e a arte.

Esboço de um Prefácio[3]
                Este livro é escrito para os que compartilham do
espírito que preside à sua escrita. Este não é, segundo creio, o
espírito da corrente mais importante da civilização americana e
europeia. O espírito desta civilização se manifesta na indústria, 
na arquitetura e na música do nosso tempo, no seu fascismo e no
seu socialismo, e é estranho e desagradável ao autor. Não se
trata de um juízo de valor. Tal não quer dizer que ele aceite o que
hoje em dia passa por arquitectura cmoo se fosse arquitectura,
ou que não se aproxime do que se chama música moderna com
a maior suspeita (embora sem compreender a sua linguagem),
mas, por outro lado, o desaparecimento das artes não justifica
que se julgue depreciativamente tal tipo de humanidade. Em
épocas como esta, as naturezas genuínas e fortes põem de parte
as artes e viram-se para outras coisas e, de uma maneira ou de
outra, o valor do indivíduo encontra forma de se exprimir. Não
evidentemente da mesma maneira que numa época de elevada
cultura. Uma cultura é como uma grande organização que atribui
a cada  um de seus membros um lugar em que ele pode trabalhar
no espírito do conjunto; e é perfeitamente justo que o seu poder
seja medido pela contribuição que consegue dar ao todo. Numa
época sem cultura, por outro lado, as forças tornam-se
fragmentárias e o poder do indivíduo consome-se na tentativa de
vencer forças opostas e resistências ao atrito; tal poder não é
visível na distância que percorre, mas talvez  unicamente no calor
por ele produzido ao vencer o atrito. Mas a energia continua a ser
a energia, e embora o espetáculo que a nossa época nos
proporciona não seja o da formação de uma  grande obra
cultural, com os melhores homens a contribuir para o mesmo fim
grandioso,  mas o espetáculo mais expressivo de uma multidão
cujos melhores membros trabalham com vista à realização de
objectivos puramente pessoais, mesmo assim não nos devemos
esquecer de que o espetáculo não é o que interessa.

                Compreendo, por isso, que o desaparecimento de uma


cultura não significa o desaparecimento do valor humano, mas
apenas o desaparecimento de certos meios de expressar este
valor. Contudo, mantém-se o facto de eu não ter qualquer
simpatia pela corrente da civilização europeia e não compreender
os seus objectivos, se é que eles existem. Assim, escrevo de
facto para amigos dispersos pelo recanto do mundo.
                É-me indiferente que o cientista ocidental típico
compreenda ou aprecie, ou não, o meu trabalho, visto que de
qualquer modo ele não compreenderá o espírito com que
escrevo. A nossa civilização é caracterizada pela palavra
‘progresso’. Fazer progressos não é uma das suas
características, o progresso é, mais propriamente a sua forma.
Ela é tipicamente constructora. Ocupa-se em construir uma
estructura cada vez mais complicada. E até mesmo a claridade é
desejada apenas como um meio para atingir este fim,  nunca
como um fim em si mesmo. Para mim, pelo contrário, a claridade
e a transparência são em si mesmas valiosas.

                Não estou interessado na construção de um edifício,


mas sim em ter uma visão clara dos alicerces de edifícios
possíveis.

                Assim, não viso o mesmo alvo que os cientistas e a


minha maneira de pensar é diferente da deles.

                Cada uma das frases que escrevo procura exprimir


tudo, isto é, a mesma coisa repetidas vezes; é como se elas
fossem simplesmente visões de um mesmo objeto, obtidas de
ângulos diferentes.

                Poderia dizer: se o lugar a que pretendo chegar só se


pudesse alcançar por meio de uma escada, desistiria de tentar lá
chegar. Pois o lugar a que de facto tenho de chegar é um lugar
em que já me devo encontrar.

                Tudo aquilo que se pode alcançar com uma escada


não me interessa.

                O primeiro movimento liga os pensamentos uns aos


outros numa série, o outro continua a visar o mesmo lugar.
*

                O primeiro movimento é constructivo e apanha uma


pedra a seguir a outra, o outro continua a segurar a mesma coisa.

                O perigo de um prefácio[4] longo é o de que o espírito


de um livro tem de se mostrar no próprio livro e não pode ser
descrito. Se um livro foi escrito apenas para alguns leitores, tal
será claro precisamente pelo facto de apenas um pequeno
número de pessoas o compreender. O livro deve separar
automaticamente aqueles que o compreendem dos que o não
compreendem. Até  mesmo o prefácio é escrito somente para
aqueles que compreendem o livro.

                Dizer a alguém algo que ele não pode compreender


não faz sentido, mesmo que se lhe diga também que não será
capaz de o compreender. (Isso acontece frequentemente com
alguém que se ama).

                Se tiveres um quarto em que não queres que certas


pessoas entrem, põe-lhe uma fechadura para a qual não tenham
a chave. Mas não faz qualquer sentido falar-lhes disso, a não ser,
claro, que pretendas que elas admirem o quarto do lado de fora!

                A única coisa honesta a fazer é pôr na porta uma


fechadura que apenas seja notada por aqueles que a podem abrir
e não pelos outros.

                Mas é correcto dizer que penso que o livro nada tem 
ver com a civilização progressiva a Europa e da América.

                E que, embora seu espírito apenas possa ser possível


no ambiente desta civilização, são diferentes os seus objetivos.

                Tudo o que é ritual (tudo o que cheira, por assim dizer,
a sumo sacerdote) deve ser estritamente evitado, dado que
imediatamente apodrece.
                É evidente que um beijo também é um ritual não é
podre, mas o ritual é aceitável apenas até ao ponto em que seja
tão genuíno como um beijo.

                Tentar tornar explícito o espírito é um grande tentação.

                Quando se choca com os limites da própria


honestidade é como se os pensamentos entrassem em
redemoinho, num retrocesso infinito. Pode dizer-se o que se
quiser, não se vai mais além. 

                Tenho estado a ler Lessing (sobre a Bíblia)[5]: “Junte-


se a isto a roupagem verbal e o estilo… Todo ele cheio de
tautologias, mas de um tipo que permite o exercício das nossas
capacidades pelo facto de parecer por vezes dizer algo de
diferente quando, na realidade, diz o mesmo e noutras alturas
parecer dizer o mesmo quando no fundo quer dizer, ou é capaz
de querer dizer, algo diferente”.

                Se não estou completamente seguro sobre o modo


como começar um livro, tal deve-se ao facto de algo ser ainda
para mim pouco claro. Eu gostaria de começar com os dados
originais da filosofia, com frases escritas e ditas, com livros, por
assim dizer.

                E aqui confrontam-nos com a dificuldade do ‘tudo está


em devir’. Talvez seja esse, precisamente, o ponto onde se deve
começar.

                Se alguém está apenas avançando em relação à sua


época, ela virá um dia a alcançá-lo.
1931

                Há quem considere a música uma arte primitiva porque


ela só tem poucas notas e ritmos. Mas só é simples à superfície;
a sua essência, que torna  possível interpretar o seu conteúdo
manifesto, tem, por outro lado, toda a complexidade infinita que é
sugerida pelas formas externas de outras artes e que a música
oculta. Ela é, num certo sentido, a mais sofisticada de todas as
artes.

                Há problemas dos quais nunca me aproximo, que não


se encontram no meu caminho ou não fazem parte do meu
mundo. Problemas do mundo intelectual do Ocidente com os
quais Beethoven (e talvez, até certo ponto, Goethe) se defrontou,
esforçando-se intensivamente por os resolver, mas que nenhum
filósofo alguma vez enfrentou ( talvez Nietzsche por eles tenha
passado). E talvez estejam perdidos para a filosofia ocidental, isto
é, ninguém será aí capaz de sentir e, portanto, de descrever o
progresso desta cultura como epopeia. Ou, para se mais preciso,
ela já não é uma epopeia, ou então só para quem a observe do
exterior e foi provavelmente o que Bethoven fez com presciência 
(como refere algures Spengler). Poderia dizer-se que a civilização
só antecipadamente pode ter os seus poetas épicos. Tal como
um homem não pode descrever a sua própria morte quando esta
ocorre, mas apenas entrevê-la e descrevê-la como algo de futuro.
Poderia, pois, dizer-se: se pretendes ver uma descrição épica de
uma cultura na sua globalidade, terás de considerar as obras das
suas figuras mais notáveis e, por isso, obras compostas quando o
fim dessa cultura apenas podia ser entrevisto, visto que mais
tarde não haverá ninguém para o descrever. E assim não é de
admirar que ele esteja escrito na linguagem obscura da profecia,
compreensível, de facto, apenas para alguns.

                Mas não abordo estes problemas. Quando ‘desistir do


mundo’ terei criado uma massa amorfa (transparente) e o mundo
na sua enorme variedade será posto de lado como um quarto de
arrumações sem interesse.
                Ou talvez, para ser mais preciso: o resultado global de
todo este trabalho é pôr o mundo de lado (atirar o mundo na sua
totalidade par o quarto de arrumações).

                Neste mundo (no meu) não há tragédia, nem a infinita


variedade de circunstâncias que dá origem à tragédia (como seu
resultado).

                É como se tudo fosse solúvel no éter do mundo; não há


superfícies sólidas.

                O que isso significa é que a solidez e o conflito não se


convertem em algo esplêndido, mas numa deficiência.

                O conflito dissipa-se sensivelmente da mesma maneira


que a tensão de uma mola quando se funde o mecanismo (ou se
dissolve o mecanismo em ácido nítrico). Essa dissolução elimina
as tensões.

                Se afirmo que o meu livro se dirige apenas a um


pequeno círculo de pessoas (se é que se lhe pode chamar um
círculo), não quero com isso dizer que acredite que tal círculo é
uma elite da humanidade: mas inclui aqueles para quem me viro
(não porque sejam melhores ou piores que outros) porque
constituem o meu meio cultural, são, por assim dizer, os meus
concidadãos, em contraste com os outros que para mim
são estrangeiros.

                O limite da linguagem mostra-se na impossibilidade de


descrever o facto que corresponde a uma frase (a sua tradução),
sem repetir simplesmente a frase. (isto tem que ver com a
solução kantiana do problema da filosofia)
*

                Poderei dizer que uma peça de teatro tem um tempo


próprio  que não é um segmento do tempo histórico? Isto é,
posso nela distinguir um antes e um depois, ma não faz qualquer
sentido para o problema se os acontecimentos na peça ocorrem,
por exemplo, antes ou depois da morte de César.

                A propósito, a velha ideia – em termos gerais a os


(grandes) filósofos ocidentais – era a de que existiam, em sentido
científico, dois tipos de problemas universais, grandes,
essenciais, e problemas não essenciais,acidentais, por assim
dizer. Por outro lado, a nossa concepção é que não há, no
sentido da ciência, nenhum problema grande, nenhum problema
essencial.

                A estrutura e o sentimento na música. Os sentimentos


acompanham a nossa apreensão de uma peça musical da
mesma maneira que acompanham os acontecimentos da nossa
vida.

                A seriedade de Labor é uma seriedade muito tardia.

                O talento é uma fonte da qual constantemente brota


água fresca. Mas, esta fonte, se não for usada de uma maneira
correcta,  perde seu valor.

                <<O que o homem inteligente sabe é difícil de


conhece>>.  Terá o  desprezo de Goethe pela experimentação
laboratorial, juntamente com sua exortação para aprendermos
com a natureza livre, algo a ver com a ideia de que a hipótese
incorrectamente interpretada é já uma falsificação da verdade? E
estará ele relacionado com o modo que estou agora a pensar
iniciar o meu livro – com uma descrição da natureza?

                As flores ou os animais que as pessoas consideram


feios surgem-lhes sempre como artefatos. <<Parece-se com
um…>>, dizem elas. Isto esclarece o sentido das palavras ‘feio’ 
e ‘bonito’.

                É  delicioso o modo como as várias partes do corpo


humano diferem na temperatura.

                É humilhante ter de aparecer como uma câmara de ar


vazia, simplesmente cheia pela mente.

Ninguém gosta de ter ofendido outrem; por isso, toda a gente se


sente muito melhor se a outra pessoa não mostrar que foi
ofendida. Ninguém gosta de enfrentar um leão ferido. Lembrem-
se disso. É muito mais fácil evitar com paciência e tolerância a
pessoa ofendida do que aproximar-se dela como amigo. É
preciso coragem para o fazer.

                Para tratar bem alguém que não gosta de nós, é não só
necessário ter bom coração, mas também ter muito tacto.

                Lutamos com a linguagem. Estamos envolvidos numa


luta com a linguagem.
*

                A solução os problemas filosóficos pode comparar-se


com um presente num conto de fadas: o castelo mágico ele
aparece encantado, mas se o vires no exterior, à luz do dia, não é
mais do que um vulgar bocado de ferro (ou algo do gênero).

                O pensador assemelha-se muito ao desenhador cujo


objectivo é representar todas as inter-relações entre coisas.

                As peças musicais compostas ao piano, no teclado, as


que são concebidas com caneta e papel e as que são
unicamente compostas com o ouvido interno, devem ser bastante
diferentes no seu carácter e originar tipos de impressões bastante
diferentes.

                Tenho certeza de que Bruckner compôs imaginando


apenas  o som da orquestra, Brahms com caneta e papel. É
evidente que se trata de uma simplificação exagerada. Mas isto
é uma característica importante.

                Uma tragédia podia de facto começar com as palavras:


<<Nada teria acontecido se não…>>  (se ele não tivesse ficado
preso na máquina pela ponta da sua roupa?)

                Mas é, sem dúvida, uma visão unilateral da tragédia


pensar que ela mostra, unicamente, que um encontro inesperado
pode decidir a totalidade da nossa vida.

*
                Penso que seria possível ter, hoje em dia, uma forma
de teatro representado com máscaras. As personagens seriam
apenas tipos humanos estilizados. Pode ver-se isto distintamente
nos escritos de Kraus. As suas peças poderiam, ou deveriam, ser
representadas com máscaras. Tal associa-se, naturalmente, a
um certo carácter abstracto, típico destas obras. E, tal como o
vejo, o teatro representado com máscaras é, de qualquer
maneira, a expressão de um carácter espitiritual. Talvez pela
mesma razão seja uma forma teatral que apenas atrairá judeus.

                Frida Schanz:

                Dia enevoado. O cinzento outono visita-nos.

                                               O riso parece ensombrado;

                                               O mundo está hoje tão silencioso

                                               Como se tivesse morrido ontem à


noite.

                                               Na sebe vermelho-dourada

                                               Amadurecem os monstros da


névoa;

                                               E o dia jaz adormecido.

                                               O dia não voltará a nascer.

                Extraí este poema de um <<Rösselsprung>> no qual 


evidentemente a pontuação não estava presente. Assim, não si
se as palavras <<dia enevoado>>  são o título, ou se pertencem
ao primeiro verso tal como   o escrevi. E é estranho como nos
parece trivial o poema se não começar com as palavras <<dia
enevoado>>,mas com  <<o cinzento>>. Isto altera o ritmo de todo
o poema. O que alcançasse não pode significar mais para os
outros do que para ti. Seja o que for que te tenha custado, será
isso que eles te pagarão.
*

                O judeu é uma região deserta, mas por baixo da sua


fina camada de rocha está a lava em fusão do espírito e do
intelecto.

                Grillparzer: <<é tão fácil ir à aventura por entre objetos


grandiosos em regiões distantes e tão difícil alcançar a coisa
solidária que se encontra mesmo à nossa frente…>>.

                Que é que sentiríamos se não tivéssemos ouvido falar


de Cristo?  Sentir-nos-íamos abandonados, sozinhos no escuro? 
Fugiremos a tal sensação da mesma maneira, simplesmente, que
uma criança lhe foge quando sabe que está alguém com ela no
quarto?

                A religião como loucura é uma loucura que brota da


irreligiosidade.

                Olho para a fotografia de salteadores Corsos e penso


para comigo: estes rostos são demasiado duros e o meu
demasiado brando para que o cristianismo passa neles pôr a sua
marca. Os rostos os salteadores são medonhos e, no entanto,
eles não estão, por certo, mais afastados de uma boa vida do que
eu: acontece apenas que eles encontram a sua salvação num
lado da vida que é diferente daquele em que eu a encontro.

                Na sua boa música, Labor é completamente não


romântico. Eis uma característica muito digna de nota e
significativa.
*

                Ao ler  os diálogos Socráticos, tem-se a sensação de


uma tremenda perda de tempo! Qual é o sentido destes
argumentos que nada provam e nada clarificam?

                Parece-me que a história de Peter Schlemihl se deveria


interpretar da seguinte forma: ele vende a sua alma ao Diabo a
troco de dinheiro. Em seguida, arrepende-se e o Diabo exige-lhe
a sua sombra como compensação. Mas Peter Schlemihl ainda
pode escolher entre dar ao Diabo a sua alma e renunciar,
juntamente com a sua sombra, à sua via em comunidade com
outros homens.

                No Cristianismo é como se Deus dissesse ao homem:


Não representeis uma tragédia, isto é,  não ponhais em cena, na
terra, o céu e o inferno. O céu e o inferno são um assunto meu.

Spengler poderia ser melhor compreendido se


dissesse: Comparo diferentes épocas culturais à vida das
famílias; numa família há uma semelhança de família, embora um
semelhança se possa também encontrar entre membros de
diferentes famílias; a semelhança de família difere dos outros
tipos de semelhança desta e daquela maneira, etc. o que quero
dizer  é o seguinte: têm de nos dizer qual é o objecto de
comparação, o objecto de que deriva esta maneira de ver as
coisas, caso contrário a discussão será constantemente afectada
por distorções. Pois quer se queira quer não, atribuiremos as
propriedades do modelo original ao objecto que estamos a
examinar à sua luz; e afirmamos com segurança  <<será
sempre…>>

                Isto acontece porque queremos dar às características


do modelo um ponto de apoio na nossa maneira de retratar as
coisas. Mas uma vez que confundimos o modelo e o objecto
verificamos que nós próprios atribuímos de modo dogmático ao
objecto características que só o modelo necessariamente possui.
Por outro lado, pensamos que a nossa maneira de ver não terá a
generalidade que pretendemos que tenha se apenas for
verdadeira para um dos casos. Mas o modelo deveria ser
claramente apresentado enquanto tal, de modo a caracterizar a
discussão na sua globalidade e a determinar a sua forma. Isto faz
dele o ponto focal e, assim a sua validade geral dependerá mais
do facto de determinar a forma da discussão do que da afirmação
de que tudo o que é apenas verdadeiro relativamente a ele será
também atribuído a todas as coisas que estão a ser discutidas.

                De modo análogo, a questão a levantar sempre que se


fazem asserções exageradass e dogmáticas é esta: que é que,
realmente, há nisso de verdadeiro? Ou então: em que caso é que
isso é realmente verdadeiro?

                De Simplicissimus: Enigmas da tecnologia (Cena: dois


professores frente a uma ponte em construção) Voz vinda do alto:
<<deixa, ‘tar, pá, deixa ‘tar, ‘tou-te a dizer – depois damos-lhe um
volta>> – <<é na verdade bastante incompreensível, meu caro
colega, como é possível executar um trabalho tão complicado e
preciso, com uma tal linguagem.

                Diz-se muitas vezes que, em rigor, a filosofia não


progride, que ainda nos ocupamos dos mesmos problemas
filosóficos de que já se ocupavam os Gregos. Mas os que o
dizem não compreendem porque é que isto tem de ser assim. O
motivo reside no facto de a nossa linguagem ser a mesma e de
continuar a conduzir-nos à formulação dos mesmos problemas.
Enquanto continuar a existir um verbo <<ser>> que parece
funcionar como <<comer>> e <<beber>>, enquanto tivermos os
adjetivos <<idêntico>>, <<verdadeiro>>, <<falso>>,
<<possível>>, enquanto continuarmos a falar de um fluir do
tempo, de uma vastidão do espaço, etc., etc., continuaremos a
tropeçar nas mesmas perplexidades e a olhar espantados para
algo que nenhuma explicação parece ser capaz de esclarecer.
                E, além disso, isto satisfaz um desejo de
transcendência, visto que na medida em que as pessoas pensam
que lhes é possível ver os <<limites da compreensão humana>>,
acreditam, evidentemente, que lhes é possível ver para além
desses limites.

                Leio: <<…os filósofos não estão mais perto do sentido


de <<realidade>> do que estava Platão…>>. Que estranha
situação. É extraordinário que Platão tenha chegado até onde
chegou! Ou que não tenha podido ir além! Será que isso se deve
ao facto de ter sido tão inteligente?

                Kleist escreveu algures[1] que aquilo que o poeta mais


gostaria de ser capaz de fazer seria comunicar pensamentos sem
recorrer a palavras. (que estranha confissão)

                Diz-se com frequência que uma nova religião


estigmatiza como diabos os deuses da velha religião. Mas na
realidade eles já então se tinham, provavelmente, tornado diabos.

                As obras dos grandes mestres são sóis que nascem e


se põem à nossa volta. Virá uma altura em que cada  uma das
grandes obras que estão a declinar de novo ser erguerá.

                A música de Mendelssohn consiste, nos seus melhores


momentos, em arabescos musicais. É por isso que ficamos
desconcertados com qualquer falta de rigor na sua obra.

*
                Na civilização ocidental, o Judeu é sempre avaliado por
escalas que não se lhe ajustam. É claro para muitos que os
pensadores Gregos não eram nem filósofos nem cientistas no
sentido ocidental, que os participantes nos jogos Olímpicos não
eram desportistas e não se ajustam a qualquer profissão
ocidental. O mesmo se passa com os Judeus. E ao aceitarmos as
palavras da nossa [língua][2]como os únicos padrões possíveis
somos constantemente incapazes de lhes fazer justiça. Assim
eles são umas vezes sobrestimados, outras subestimados. A este
respeito, Spengler está certo ao não classificar Weininger como
um dos filósofos (pensadores) do Ocidente.

                Nada do que fazemos se pode defender de uma


maneira absoluta e definitiva. Apenas por referência a qualquer
outra coisa que não se ponha em dúvida. Isto é, não se pode
oferecer qualquer razão para que ajam (ou tenham agido) desta
maneira, excepto que, pelo facto de o fazerem, ocasionam esta
ou aquela situação, que tem que ser, de novo, aceite como um
fim.

                O inexprimível (o que considero misterioso e não sou


capaz de exprimir) talvez seja o pano-de-fundo a partir do qual
recebe sentido seja o que for que eu possa exprimir.

                O  trabalho em filosofia – tal como muitas vezes o


trabalho em arquitectura – é, na realidade, mais um trabalho
sobre si próprio. Sobre a nossa própria interpretação. Sobre a
nossa maneira de ver as coisas (e sobre o que delas se espera).

                O filósofo chega facilmente à situação de um gerente


incompetente que, em vez de se dedicar ao seu trabalho e de
vigiar apenas o cuidado dos seus empregados para ter a certeza
de que este é correctamente feito, toma conta do trabalho deles
até que um dia descobre estar sobrecarregado com o trabalho
alheio enquanto os seus empregados olham para ele e o criticam.

                A ideia está gasta e já não é utilizável. (ouvi em tempos


Labor fazer um comentário semelhante acerca de ideias
musicais) Tal como o papel de prata que, depois de amarrotado,
nunca pode ser de novo completamente alisado. Quase todas as
minhas ideias estão um pouco amarrotadas.

                Penso de facto com a minha caneta, pois é frequente


que a minha cabeça nada saiba sobre o que a minha mão está
escrevendo.

                Os filósofos comportam-se muitas vezes como crianças


que fazem garatujas ao acaso num bocado de papel e, depois,
perguntam a um adulto: <<o que é isto?>>. Aconteceu o
seguinte: o adulto tinha desenhado várias vezes imagens para a
criança e dissera-lhe: <<isto é um homem>>, <<isto é uma
casa>>, etc. E, em seguida, a criança faz também alguns traços e
pergunta: que é então isto?

                Ramsey era um pensador burguês. Isto é, pensava


com o objectivo de esclarecer os assuntos de uma comunidade
particular. Não reflectia sobre a essência do estado – ou pelo
menos não gostava de o fazer – ,mas sobre como este Estado
poderia ser sensatamente organizado. A ideia de que este Estado
poderia não ser o único possível, em parte inquietava-o e em
parte aborrecia-o. Ele queria concentrar-se tão rapidamente
quanto possível na reflexão sobre os fundamentos deste Estado.
Aqui residia a sua capacidade e o seu interesse; ao passo que a
verdadeira reflexão filosófica o perturbava a ponto de a ter posto
de lado e declarado trivial o seu resultado (se ela o tivesse).
*

                Uma curiosa analogia poderia basear-se no facto de


até mesmo o mais formidável telescópio ter uma ocular que não é
maior do que o olho humano.

                Tolstoy: o significado (a importância) de uma coisa


reside na sua possibilidade de por todos ser compreendido. – Isto
é verdadeiro e falso. O que torna uma coisa difícil de
compreender – se é algo significativo e importante – não é a
exigência de uma preparação especial qualquer em matérias
abstrusas, mas o contraste entre a compreensão de tal coisas e o
que a maioria das pessoas quer ver. Por isso, as coisas que são
justamente mais óbvias podem tornar-se mais difíceis de
compreender. Há que superar não uma dificuldade do intelecto,
mas da vontade.

                Quem hoje em dia ensina filosofia não seleciona o


alimento para o seu aluno com o objetctivo de lhe adular o gosto,
mas para o modificar.

                Eu não devia ser mais do que um espelho em que o


meu leitor pudesse ver o seu próprio pensamento com todas as
suas disformidades para que, assim auxiliado, o pudesse pôr em
ordem.

                A linguagem arma a todos as mesmas ratoeiras; é a


imensa rede e caminhos transviados facilmente acessíveis. E
assim, vemos os homens, um após outro, a andar pelos mesmos
caminhos e já sabemos onde é que tomarão um desvio, onde
continuarão a andar em frente sem reparar na bifurcação, etc.
etc. O que tenho de fazer é, portanto, erigir postes de sinalização
em todas as bifurcações em que há caminhos errados, de modo
a ajudar as pessoas perto dos locais perigosos.

                O que Eddington diz sobre a ‘direção do tempo’ e a lei


da entropia resume-se ao seguinte: o tempo modificaria a sua
direção se os homens começassem um dia a andar pra trás. É
claro que se pode fazer tal afirmação, se se quiser, mas então
deveria ser claro que nada mais se disse o que isto: as pessoas
mudaram a direção em que andavam.

                Alguém  divide a humanidade em compradores e


vendedores e esquece que os compradores também são
vendedores. Se eu de tal o lembrar, modificar-se-á a sua
gramática?

                O genuíno mérito de Copérnico ou de Darwin não foi a


descoberta de uma teoria verdadeira, mas de um novo e fértil
ponto de vista.

                Uma confissão tem de ser uma parte da nova vida.

                Nunca consegui senão pela metade, exprimir o que


quero exprimir. Na realidade talvez nem tanto, apenas um
décimo. Isso ainda tem um significado. Muitas vezes, a minha
escrita não é mais do q eu uma ‘gaguez’.

                Entre os  Judeus o ‘gênio’ só se encontra no homem


santo. O mais grandioso dos pensadores Judeus não passa de
um talento (Eu, por exemplo).
                Creio que há alguma verdade na minha ideia de que,
de fato, apenas penso reprodutivamente. Não creio  ter alguma
vez inventado uma linha de pensamento, tirei-a sempre de outra
pessoa qualquer. Simplesmente me aproveitei logo dela com
entusiasmo para o meu trabalho de clarificação. Foi assim que
me influenciaram Boltzmann, Hertz, Schopenhauer, Fregue,
Russel, Kraus, Loos, Weininger, Spengler e Sraffa. Poderá
considerar-se o caso de Breuer e de Freud como um exemplo de
reprodutividade judia? – O que invento são novas comparações.

                Na altura em que modelei a cabeça para Drobil o


estímulo era também, essencialmente, um trabalho de Drobil, e a
minha contribuição foi, de novo, a clarificação.  O que julgo ser
essencial é levar a cabo, com CORAGEM, o trabalho de
clarificação: caso contrário, ele transforma-se apenas num jogo
inteligente.

                O Judeu deve cuidar de que, em sentido literal, ‘todas


as coisas sejam para ele como nada’[3]. Mas tal é
particularmente difícil para ele, visto que, num certo sentido, nada
tem de caracteristicamente seu. É muito mais difícil aceitar de
bom grado a pobreza quando se tem de ser pobre do que quando
também se poderia ser rico.

                 Poderia dizer-se (correta ou incorretamente) que o


espírito Judeu não tem sequer a capacidade de produzir a mais
minúscula flor ou folha de relva; a sua maneira de proceder leva-
o antes a fazer um desenho da flor ou da folha de relva que
cresceram no solo do espírito de outrem e a apresentá-lo numa
imagem compreensiva. Não se trata de salientar um defeito
quando tal se afirma, e tudo corre bem desde que o que está a
ser feito seja inteiramente claro. Só quando a natureza de uma
obra judaica se confunde com a de uma obra não judaica é que
há algum perigo, sobretudo se o autor da obra judaica também
cai na confusão, o que muito facilmente lhe pode acontecer. (não
dá a impressão de estar tão orgulhoso como se tivesse sido ele
próprio a produzir o leite?)[4]

                É típico do espírito Judeu compreender a obra de


alguém melhor do que a própria pessoa.
*

                Muitas vezes, quando me emoluraram bem um quadro


ou quando o pendurei no sítio certo, dei comigo a sentir-me tão
orgulhoso como se eu próprio o tivesse pintado. Isso não é
inteiramente verdadeiro: não ‘tão orgulhoso como se o tivesse
pintado’, mas tão orgulhoso como se tivesse ajudado a pintá-lo,
como se tivesse, por assim dizer, pintado uma pequena parte do
quadro. É como se um jardineiro excepcionalmente dotado
chegasse a pensar que ele próprio tinha produzido uma
minúscula folha de relva. Ao passo que deveria ser claro para ele
que o seu trabalho diz respeito a uma área totalmente diferente.
O processo que leva ao nascimento até mesmo a mais pequena
e mais insignificante folha de relva é algo com o qual ele nada
tem a ver e do qual nada sabe.

                Uma imagem de uma macieira, por mais perfeita que


seja, é num certo sentido infinitamente menos semelhante à
própria árvore do que a mais pequena margarida. E,  no mesmo
sentido, uma sinfonia de Bruckner está infinitamente mais
próxima de uma sinfonia do período heroico do que uma sinfonia
de Mahler. Se a última é uma obra de arte, então é uma obra
artística de um tipo totalmente diferente (mas este é, na
realidade, um comentário spengleriano).

                A propósito, quando estive na Noruega durante o ano


de 1913-14, tive alguns pensamentos meus, ou pelo menos
assim me parece agora. Quero dizer que tenho a impressão de
que nessa altura dei vida a novos movimentos do pensamento
(mas talvez esteja enganado). Ao passo  que agora pareço
apenas aplicar velhos movimentos.

                Há algo de Judeu no caráter de Rosseuau.

*
                Diz-se por vezes que a filosofia de um homem é uma
questão de temperamento, e nisso há algo de verdadeiro. A
preferência por certas analogias poderia olhar-se como uma
questão de temperamento e está na base de muito mais
desacordos do que poderia afigurar-se.

                ‘Considerem este tumor como uma parte perfeitamente


normal do vosso corpo!’ Poderá isto fazer-se, segundo uma
ordem? Terei o poder para decidir, à vontade, ter ou não ter uma
concepção ideal do meu corpo?

                Na história dos povos da Europa, a história dos Judeus


não se encara tão circunstancialmente como a sua intervenção
nos assuntos europeus efetivamente mereceria, visto que nesta
história eles são olhados como uma espécie de doença e
anomalia, e ninguém quer pôr uma doença ao mesmo nível da
vida normal [e ninguém quer falar de uma doença como se ela
tivesse os mesmos direitos dos processos corporais saudáveis
(mesmo os dolorosos)].

                Pode dizer-se: só pode encarar-se este tumor como


uma parte natural do corpo se a sensação global do corpo se
modificar (se o sentimento nacional pelo corpo se modificar na
totalidade). De outro modo, o melhor que se pode fazer
é suportá-lo.

                Pode esperar-se que um indivíduo mostre esta espécie


de tolerância, ou então que ignore tais coisas; mas tal não se
pode esperar de uma nação, visto que é precisamente o facto de
não ignorar tais coisas que faz dela uma nação. Ou seja, é uma
contradição esperar que alguém conserve o seu sentimento
estético anterior pelo corpo e, simultaneamente, dê as boas
vindas ao tumor.

                O poder e a posse não são a mesma coisa. Embora as


coisas possuídas nos tragam também poder. Se se diz que os
Judeus não tem qualquer sentido de propriedade, isso pode ser
compatível com sua inclinação para serem ricos, pois o dinheiro é
para eles uma espécie particular de poder, e não de propriedade
(eu não gostaria, por exemplo, que o meu povo se tornasse
pobre, visto que desejo que tenha uma certa quantidade de
poder. Desejo também, naturalmente, que use esse poder de
modo correto).

                Existe decididamente uma certa afinidade entre Brahms


e Mendelssohn; mas não me refiro à que se revela em trechos
individuais das obras de Brahms e que fazem lembrar trechos de
Mendelssohn – a afinidade de que falo poderia expressar-se
melhor dizendo  que Brahms faz de um modo completamente
rigoroso o que Mendelssohn fez apenas com medidas de rigor.
Ou: Brahms é, com muita frequência, Mendelssohn sem as
imperfeições.

                Deve tratar-se do fim de um tema que não consigo


identificar. Veio-me à cabeça, hoje, enquanto estava a pensar na
minha obra filosófica e dizia para mim mesmo: ‘eu destruo,
destruo, destruo’.

                Disse-se por vezes que a natureza reservada e astuta


dos Judeus é resultado da sua longa perseguição. Isto é
certamente falso; por outro lado, é certo que apesar dessa
perseguição eles só continuam a existir porque têm uma
inclinação para uma tal reserva. Tal como se poderia dizer que
este ou aquele animal escapou à extinção devido apenas à sua
capacidade ou habilidade para se ocultar. É claro que não é
intenção minha que tal possa de algum modo servir como razão
para elogiar uma tal capacidade.

                Não há qualquer traço, na música de Bruckner, do rosto


comprido e magro (nórdico?) de Nestroy, de Grillparzer e Haydn,
etc.; pelo contrário, o seu rosto é completamente redono e cheio
(alpino?), mais puro até do que o de Schubert.
*

                O poder que a linguagem tem de fazer que tudo pareça


ser o mesmo, o que é mais notoriamente evidente no dicionário e
torna possível a personificação do tempo: transformar em
divindades as constantes lógicas não teria sido algo menos
extraordinário.

                Uma bela peça de vestuário transforma-se (coagula,


por assim dizer) em vermes e serpentes, se aquele que a veste
olha presunçosamente para si mesmo no espelho.

                O prazer que me dão os meus pensamentos é o prazer


que me dá a minha própria e estranha vida. Será isto a alegria de
viver?

1932

                Os filósofos que dizem:  ‘depois da morte, terá início


um estado intemporal’, ou  ‘no momento da morte inicia-se um
estado eterno’, não se apercebem que utilizaram as palavras
‘depois’, ‘no’ e ‘inicia-se’ num sentido temporal, e que essa
temporalidade está embutida na sua gramática.

Entre 1932-1934

                Lembrem-se da impressão que nos provoca a boa


arquitectura, a impressão de que  expressa um pensamento.
Leva-nos a querer responder com um gesto.

                Não brinques com o que se encontra nas profundezas


de outra pessoa!

*
O rosto é a alma do corpo. 

                É tão impossível ver-se, do exterior, o próprio caráter


como ver-se a própria letra. Tenho, com a minha letra, uma
relação unilateral que me impede de a ver em pé de igualdade
com a letra de outros e de a comparar com as suas letras.

                Em arte é difícil dizer-se algo tão bom como: nada


dizer.

                O meu pensamento, como o de toda a gente, tem a ele


ligados os restos secos das minhas ideias (murchas) anteriores.

                A força dos pensamentos na música de Brahms.

                O caráter humano de várias plantas: roseira, hera,


relva, carvalho, macieira, milho, palmeira. Comparado com as
diferentes características que as palavras têm.

                Se alguém quisesse caracterizar a essência da música


de Mendelssohn, poderia fazê-lo dizendo que, possivelmente,
Mendelssohn não escreveu nenhuma música difícil de
compreender.

                Cada artista foi influenciado por outros e mostra traços


dessa influência nas suas obras; mas para nós o seu significado
não é mais do que a sua personalidade. O que ele herda dos
outros são apenas cascas de ovo. A presença destas deveria
olhar-se com indulgênca, mas elas não nos proporcionarão
alimento espiritual.

                Por vezes, parece-me que já filosofo com gengivas


desdentadas e que olho o falar sem dentes como a maneira
correcta de falar, como a maneira que mais vale a pena. Consigo
detectar algo semelhante em Kraus. Em vez de o reconhecer
como uma deterioração.

1933

                Se alguém diz, suponhamos, que ‘os olhos de A têm


uma expressão mais bonita que os olhos de B’, eu diria, nesse
caso, que essa pessoa não está certamente a usar a palavra
‘bonito’ para se referir ao que é comum a tudo o que chamamos
bonito. Está, pelo contrário, a jogar com a palavra um jogo com
limites bastante estreitos. Mas o que é que isto revela? Teria eu
presente alguma explicação restrita, particular, da palavra
‘bonito’? De modo nenhum.  – Mas talvez não venha sequer a
sentir-me disposto a comparar a beleza da expressão de um par
de olhos com a beleza da forma do nariz.

                Assim, talvez devêssemos dizer: se existisse uma


língua com duas palavras de modo a que na houvesse referência
a algo comum a tais casos, eu não teria dificuldade em  usar uma
destas duas palavras especiais para o meu caso e a minha
intenção não seria empobrecida.

                Se digo que A  tem os olhos bonitos, alguém pode


perguntar-me: que é que há de bonito nos olhos de A?, e eu
talvez responda: a forma amendoada, as pestanas compridas, as
pálpebras delicadas. O que é que estes olhos têm em comum
com uma igreja gótica que também considero bela? Deveria dizer
que me provocam uma impressão semelhante? E se dissesse
que em ambos os casos as minhas mãos são tentadas a
desenhá-los? Isso seria de qualquer maneira uma definição
restrita do belo.

                Será muitas vezes possível dizer: procura motivos para


chamares belo ou bom a algo e a gramática peculiar da palavra
‘bom’ tornar-se-á neste caso evidente.

1933-1934

                Penso ter resumido a minha atitude para com a filosofia


quando disse: a filosofia deveria escrever-se apenas como
uma composição poética. Deve ser possível, segundo me parece,
inferir daqui até que ponto o meu pensamento pertence ao
presente, passado ou ao futuro. Visto que estava por esse meio a
revelar-me como alguém que não consegue fazer totalmente
aquilo que gostaria de ser capaz de fazer.

                Se usares um truque em lógica, a quem poderás estar


a enganar senão a ti próprio?

                Nomes de compositores. Por vezes, tratamos o método


da projeção como dado. Quando perguntamos, por exemplo: qual
o nome que se ajustaria ao caráter deste homem? Mas  por
vezes projetamos o caráter no nome e tratamos este como dado.
Nesse caso, temos a impressão de que os grandes mestres que
conhecemos tão bem têm exatamente os nomes que convêm à
sua obra.

1934

                Quando alguém vaticina que a próxima geração


receberá estes problemas e os resolverá, trata-se geralmente de
um anseio, de uma maneira de se desculpar a si próprio por
aquilo que deveria ter realizado e não realizou. Um pai gostaria
que o seu filho fosse bem sucedido onde ele não foi de modo a
que o problema que ele deixou por resolver encontre, no fim de
contas, a solução. Mas o seu filho enfrentará um novo problema. 
O que quero dizer é: um anseio de que a tarefa não permaneça
incompleta veste o disfarce de uma predição de que a geração
seguinte progredirá em relação à ela.

A irresistível capacidade de Brahms.

                Se alguém está sentado, com pressa, num carro,


empurrará involuntariamente, por mais que diga a si próprio que
não está a empurrar o carro.

Nas minhas atividades artísticas não tenho senão boas maneiras.

1936

                A estranha semelhança entre uma investigação


filosófica (talvez especialmente na matemática) e uma
investigação estética (v. g. o que está mal neste   trajo, como é
que ele deveria ser, etc.).

1934 ou 1937

                Nos dias do cinema mudo todos os tipos de obras


clássicas eram tocadas como acompanhamento, mas Brahms ou
Wagner não.

                Brahms não, porque é muito abstrato. Posso imaginar


uma cena emocionante num filme acompanhada pela música de
Beethoven ou de Schubert e poderia obter algum tipo de
compreensão da música a partir do filme. Mas tal não me ajudaria
a compreender a música de Brahms. Por outro lado, Bruckner
ficaria bom num filme.

1937
                Se ofereceres um sacrifício e com ele te sentires
satisfeito, tanto tu como o teu sacrifício serão amaldiçoados.

                O edifício do teu orgulho tem de ser desmantelado. E


esse é um trabalho terrivelmente difícil.

                Os horrores do inferno podem ser experimentados num


único dia; é tempo de sobra.

                Um manuscrito que se consegue ler fluentemente tem


um efeito muito diferente de um manuscrito que se pode
escrever, mas que não se decifra facilmente. Fecham-se nele os
pensamentos como se de um pequeno cofre se tratasse.

                A maior ‘pureza’ dos objetos que não afetam os


sentidos, os números por exemplo.

                A luz que o trabalho irradia é uma bela luz que,


contudo, só brilha como uma beleza real, se for iluminada por
uma outra luz.

                ‘Sim, é assim’ dizes, ‘porque é assim que deve ser!’


(Schopenhauer: a verdadeira duração da vida é de 100 anos).

                ‘Evidentemente, é assim que deve ser!’ é como se se


tivesse compreendido o desígnio de um criador. Alcançou-se o
significado do sistema.
                Não perguntas: ‘Mas quanto tempo, de fato, vivem os
homens?’, o que te surge agora como um assunto superficial,
atendendo a que compreendeste algo mais profundo. (agora até
a página 46)

A única maneira de defender as nossas asserções contra a


distorção – ou de evitar o vazio das nossas asserções, é ter uma
visão clara nas nossas reflexões do que é o ideal, isto é, um
objeto de comparação – um padrão, por assim dizer – em vez de
o transformarmos num preconceito com o qual tudo tem que se
conformar. Isto é o que produz o dogmatismo em que tão
facilmente degenera a filosofia[1].

                Mas nesse caso como é que um ponto de vista como o


de Spengler se relaciona com o meu? A distorção em Spengler, o
ideal não perde nada da sua dignidade se for apresentado como
o princípio que determina a forma das reflexões de uma pessoa.
Uma medida sólida.

                Os ensaios de Macauley contêm muitas coisas


excelentes; mas os seus juízos de valor  acerca das pessoas são
aborrecidos e supérfluos. Sente-se vontade de lhe dizer: pára de
gesticular! E diz apenas o que tens que dizer.

                Diz-se que os primeiros físicos descobriram


repentinamente que tinham pouca compreensão matemática para
fazer frente à física; e pode dizer-se, quase da mesma maneira,
que os jovem se encontram hoje num situação em que o vulgar
senso comum já não é suficiente para fazer face às estranhas
exigências da vida. Tudo se tornou de tal modo complexo que o
seu domínio exigiria uma inteligência excepcional. Dado que a
habilidade para jogar o jogo já não é suficiente, o problema que
continua a pôr-se é: poderá esse jogo ser agora na realidade
jogado? E qual é o jogo certo?
*

                A maneira de resolver o problema que vês na vida é


viver de  um modo que faça que o que é problemático
desapareça.

                O fato de a vida ser problemática mostra que o


contorno da tua vida não encaixa no molde da vida. Portanto,
deves modificar a tua maneira de viver e, logo que a tua vida se
encaixe no molde, o que é problemático desaparecerá.

                Mas não temos nós a sensação de que alguém que


não vê qualquer problema na vida é cego para algo de
importante, precisamente para a coisa mais importante de todas?
Não pretenderei dizer que um homem assim vive sem destino –
cegamente, como uma toupeira, e que se pudesse ao menos ver,
veria o problema?

                Ou não deveria eu antes dizer: um homem que vive


corretamente não experimentará o problema como tristeza e,
portanto, para ele não será um problema, mas antes uma alegria;
por outras palavras, para ele será um halo resplandecente em
torno da sua vida, não um fundo dúbio.

                As ideias, por vezes, também caem da árvore antes de


estarem maduras.

                É importante para mim ir modificando a minha postura


ao filosofar, não permanecer muito tempo sobre uma perna, para
não ficar perro.

                Como alguém que ao subir uma montanha anda para


trás por um breve espaço de tempo de modo a restabelecer-se e
a esticar músculos diferentes.

*
                O cristianismo não é uma doutrina, quero dizer, não é
uma teoria sobre o que aconteceu e virá a acontecer à alma
humana, mas uma descrição de algo que na realidade ocorre na
vida humana. Pois a ‘consciência do pecado’ é um acontecimento
real, e igualmente o desespero e a salvação pela fé. Os que
falam de tais coisas (Bunyan, por exemplo) estão simplesmente a
descrever o que lhes aconteceu, seja qual for o modo de se
expressar.

                Quando imagino uma peça musical, como muitas vezes


o faço todos os dias, ranjo sempre, assim o creio, ritmicamente
os meus dentes. Já antes o notei, embora o faça, de um modo
geral, quase inconscientemente. Mais ainda, é como se as notas
que imagino fossem produzidas por este movimento. Creio que
este pode ser um modo muito vulgar de ouvir música no íntimo. É
evidente que posso também imaginar música sem mover os
meus dentes, mas nesse caso as notas são muito mais
espectrais, mais enevoadas e menos tímidas.

                No pensamento há também uma época de cultivo e


uma época de colheita.

                O efeito  de levar os homens a pensar em


conformidade com dogmas, talvez sob a forma de certas
proposições gráficas, será muito peculiar: não estou a pensar
nestes dogmas como determinantes da opiniões dos homens,
mas antes como possibilitando o completo controlo
da expressão de todas as opiniões. As pessoas viverão sob uma
tirania absoluta, palpável, embora sem serem capazes de dizer
que não são livres. Penso que a igreja católica faz algo bastante
semelhante a isto. O dogma expressa-se na forma de uma
asserção e é inabalável, mas ao mesmo tempo qualquer opinião
prática pode ser, com ele, conciliável; em certos casos, como é
evidente, mais facilmente do que noutros. Não se trata de
um muro que estabelece limites daquilo em que se pode
acreditar, mas sim algo semelhante a um travão que, contudo,
serve na prática a mesma finalidade; é quase como se alguém
prendesse um peso ao teu pé para restringir a tua liberdade de
movimentos.

                O dogma torna-se assim irrefutável, para lá do alcance


do ataque.

                Se penso num assunto apenas para comigo e sem uma


intenção de escrever um livro, saltito à sua volta; é a única
maneira de pensar que é em mim natural. Forçar os meus
pensamentos a uma sequência ordenada é para mim um
tormento. Valerá sequer a pena tentar, nestas circunstâncias,
fazê-lo?

                Desperdiço uma quantidade indescritível de esforço na


organização dos meus pensamentos, que talvez não tenha
qualquer valor.

                As pessoas dizem, por vezes, que não podem fazer


qualquer juízo sobre isto ou aquilo porque não estudaram
filosofia. Eis um disparate irritante, porque o pretexto é o de que 
filosofia é uma espécie de ciência. As pessoas falam dela quase
como poderiam falar de medicina. Por outro lado, podemos dizer
que quem nunca levou a cabo uma investigação do tipo filosófico,
como, por exemplo, a maior parte dos matemáticos, não se
encontra equipado com os órgãos visuais adequados a este tipo
de investigação ou pesquisa. Quase da mesma maneira que um
homem que não está habituado a procurar flores ou amoras, ou
plantas na floresta, não encontrará nenhuma porque os seus
olhos não estão treinados para as ver e não sabe onde deve
procurar. De modo semelhante, alguém pouco versado em
filosofia passa por todos os lugares em que se encontram
escondidas na relva as dificuldades, ao passo que alguém que
com ela tenha contatado deter-se-á e pressentirá que há uma
dificuldade ali perto, embora ainda a não consiga ver. E não é
motivo de admiração, para quem saiba quão longamente até
mesmo o homem que tem prática da filosofia e que sabe que há
aqui uma dificuldade tem que procurar até encontrar.

                Quando algo está bem escondido é difícil de encontrar.


( por vezes, mesmo praqueles que esconderam)

                Pode dizer-se que as alegorias religiosas se movem à


beira de um abismo. Por exemplo as de B[unyan]. Pois se
acrescentarmos simplesmente: ‘e todas estas armadilhas, areias
movediças, falsos desvios, foram planteados pelo Senhor da
Estrada, e os monstros, os ladrões e os assaltantes foram criados
por Ele’, tal não é, certamente, o sentido da alegoria! Mas uma
continuação deste tipo é demasiadamente óbvia! Para muitas
pessoas, incluindo eu próprio isto rouba o poder à alegoria.

                Mas mais especialmente se esta for – por assim dizer –


suprimida. Seria diferente se em cada momento se dissesse
muito honestamente: ‘Uso isto como uma alegoria mas reparem:
não encaixa aqui’. Nesse caso, não sentirias que estavas a ser
enganado, que alguém te estava a tentar convencer através de
um embuste. Pode dizer-se por exemplo, a alguém: ‘Agradece a
Deus pelos bens que recebes, mas não te queixes do mal: como
o faria, certamente, se um ser humano te fizesse alternadamente
bem e mal’. As regras da vida vestem-se cerimoniosamente de
imagens. E estas imagens apenas podem servir para descrever o
que temos que fazer, não para o justificar. Porque elas só podiam
fornecer uma justificação se fossem também válidas a outros
respeitos. Posso dizer: ‘Agradece a estas abelhas pelo seu mel,
como se elas fossem amáveis que para ti o prepararam’; isso
é inteligível e descreve o modo como gostaria que te
comportasse. Mas não posso dizer: Agradece-lhes, pois repara
como são amáveis!’ – dado que no momento seguinte elas
podem picar-te.

                A religião diz: Faz isto! – Pensa assim! – mas não pode


justificar isto e, se o tentar sequer, torna-se repelente; porque
para cada razão que apresenta há uma contra-razão válida. É
mais convincente dizer: ‘Pensem assim! Por mais estranho que
vos possa parecer’. Ou: ‘Não queres fazer isto? –  Por mais
repugnante que seja’.

                Predestinação: só é permissível escrever assim


debaixo do sofrimento mais terrível – e nesse cão significa algo
de todo diferente. Mas pela mesma razão não é permissível a
alguém afirmá-la como uma verdade, a menos que o diga em
pleno sofrimento – simplesmente, não é uma teoria. Ou noutros
termos: se tal é verdade, não é a verdade que parece ser, à
primeira vista, expressa por estas palavras. É menos uma teoria
do que um suspiro ou um grito.

                No decurso das nossas conversas, Russell exclamava


frequentemente: ‘A lógica é o inferno!’ – E isto
exprime perfeitamente o sentimento que tínhamos quando
pensávamos nos problemas da lógica; quer dizer, a sua imensa
dificuldade, a sua textura áspera e escorregadia.

                Penso que a principal razão para nos sentirmos assim


era o seguinte fato: cada vez que um novo fenômeno linguístico
nos ocorria, podia mostrar, retrospectivamente, que a nossa
explicação anterior era inexequível (sentíamos que a linguagem
podia sempre fazer exigências novas e impossíveis e que isto
tornava qualquer explicação fútil).

                Mas essa é a dificuldade em que Sócrates se enreda


ao tentar dar a definição de um conceito. Muitas vezes, emerge
um uso de uma palavra que parece não ser compatível com o
conceito que outros usos nos levaram a conceber. Dizemos: mas
isto não é assim! – se bem que assim seja! E tudo o que
podemos fazer é continuar a repetir as antíteses.

A nascente que corre suave e límpida nos Evangelhos parece


escumar nas Epístolas de Paulo. Ou, pelo menos, é o que a mim 
me parece. Talvez seja a minha própria impureza que me leva a
vê-la com um aspecto turvo; pois porque não seria esta impureza
capaz de poluir o que é límpido? Mas, para mim, é como se eu
visse aqui a paixão humana, algo como o orgulho ou a cólera,
que destoa da humildade dos Evangelhos. É como se afirmasse
aqui com insistência a sua própria pessoa, fazendo-o, além do
mais, como um gesto religioso, algo que é estranho ao
Evangelho. Gostaria de perguntar – e que isto não se entenda
como uma blasfêmia: “Que poderia ter Cristo dito a Paulo?” Mas
uma réplica razoável seria: Que é que tens a ver com isso?
Procura tornar-te mais honrado! No teu presente estado, és
totalmente incapaz de compreender o que possa ser, neste caso,
a verdade.

                Nos evangelhos – segundo me parece – tudo é menos


religioso, mais humilde, mais simples. Lá encontras cabanas; em
Paulo uma igreja. Lá todos os homens são iguais e o próprio
Deus é um homem; em Paulo já há algo de semelhante a uma
hierarquia, honras e posições sociais. Isso é o que me diz, por
assim dizer, o meu faro.

Sejamos humanos.

                Acabei de tirar algumas maçãs de um saco de papel


onde ficaram muito tempo. Tive de cortar metade de muitas delas
e atirá-las fora. Mais tarde, quando estava a copiar uma frase que
tinha escrito, cuja segunda metade era má, vi-a de repente com
uma metade apodrecida de maçã. E é este o modo como as
coisas se passam sempre comigo. Tudo o que comigo se cruza
torna-se para mim uma imagem de que estou a pensar na altura
(Haverá algo de feminino nesta maneira de pensar?).

                Ao fazer este trabalho dou comigo numa posição


idêntica à de um homem que luta sem sucesso para se lembrar
de um nome; num caso destes dizemos: “Pensa noutra coisa que
logo te lembrarás”- e de modo similar tive de pensar
constantemente noutra coisa de modo a permitir que  aquilo que
eu tinha durante tanto tempo procurado me ocoresse.

                A origem e a forma primitiva do jogo de linguagem é


uma reacção; só a partir daqui se podem desenvolver formas
mais complicadas.

                A linguagem – gostaria de dizer – é  um


aperfeiçoamento,  “no princípio era a ação”[1]

                Kierkegaard escreve: Se o cristianismo fosse tão


confortante e acolhedor, por que motivo teria Deus posto em
movimento, nas suas Escrituras, o Céu e a Terra e proferido
ameaças de castigos eternos? – Pergunta: Mas então porque é
tão  obscura a Escritura? Se queremos avisar alguém de um
perigo terrível, fá-lo-emos propondo-lhe um enigma cuja solução
é o aviso? – Mas quem é que nos diz que a Escritura é, de fato,
obscura? Não será possível que fosse, neste caso, essencial
“propor um enigma”? E que, por outro lado, a apresentação de
um aviso mais direto tivesse, necessariamente, um efeito errado?
Deus permite que quatro pessoas relatem a vida do Deus feito
homem, em cada um dos casos de maneira diferente e com
inconsistências – mas não poderíamos dizer: é importante que tal
narrativa não seja mais do que medianamente plausível de um
ponto de vista histórico, de modo a que este aspecto não se olhe
como o essencial, o decisivo? De modo a que a letra não possa
ser, mais fortemente do que é conveniente, objeto de fé e
o espírito possa receber o que lhe é devido. Isto é, o que deves
ver não pode ser comunicado, nem mesmo pelo melhor e mais
rigoroso historiador; isso também te pode dizer o que te deve ser
dito (Da mesma maneira que, em termos gerais, um cenário
medíocre pode ser melhor do que árvores reais, porque estas
podem distrair a atenção daquilo que é importante).

                O Espírito põe nas palavras o que é essencial,


essencial para a tua vida. Tu deves apenas ver claramente o que
também claramente se mostra  nesta representação (Não tenha a
certeza de até que ponto tudo isto está exatamente presente no
espírito de Kierkegaard).

                Na religião, cada nível de devoção deve ter a sua forma


apropriada de expressão que não tem qualquer sentido num nível
mais baixo. Esta doutrina, que significa algo a um nível mais alto,
é desprovida de toda e qualquer validade para alguém que se
encontra ainda no nível mais baixo; só a pode
compreender erradamente e, por isso, estas palavras não são
válidas para uma tal pessoa.

                A doutrina paulina de predestinação, por exemplo é, ao


meu nível, um disparate repulsivo, irreligiosidade. Por este motivo
não é conveniente para  mim, visto que o único uso que poderia
fazer da imagem que me é oferecida seria um  uso errado. Se é
uma imagem boa e religiosa, então é-o para alguém a um nível
bastante diferente, alguém que a deve usar na sua vida de uma
maneira de todo diversa daquela em que a posso usar.

                O cristianismo não se baseia na verdade histórica;


oferece-nos antes uma narrativa (história) e diz-nos: agora
acredita! Mas não: acredita nesta narrativa com a crença
apropriada à narrativa histórica; mas sim: acredita, correndo
todos os riscos, o que apenas podes fazer como resultado de
uma vida. Tens aqui uma narrativa, não tenhas para com ela a
mesma atitude que tem para com outras narrativas
históricas! Constrói para ela um lugar completamente diferente na
tua vida. – Não há nisso nada de paradoxal!

                Ninguém pode dizer de si próprio com verdade que é


lixo. Porque se o digo, embora possa ser verdade num sentido,
não é uma  verdade pela qual eu próprio possa ser penetrado:
caso contrário, teria ou de enlouquecer ou de me modificar.

*
                Por estranho que pareça, poder-se-ia, historicamente
falando, demonstrar a falsidade dos relatos históricos dos
Evangelhos e, apesar de tudo, a fé nada perderia por este
motivo: não, contudo, porque ela respeite as “verdades universais
da razão”! Mas antes, porque a demonstração histórica (o jogo de
demonstração histórico) é irrelevante  para a fé. Esta mensagem
(Os Evangelhos) é apreendida com fé (isto é, com amor) por
homens. É esta a certeza que caracteriza esta forma particular de
persuasão, e nenhuma outra.

                A relação de um crente com estas narrativas não é nem


relação com a verdade histórica (probabilidade), nem tão-
pouco relação com uma teoria constituída por “verdades de
razão”. Tal gênero de relação existe. – (Temos atitudes
totalmente diferentes mesmo para com diferentes espécies do
que chamamos ficção!)

                Leio: “Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor a não


ser através do Espírito Santo”[2]. – E é verdade: não posso
chamar-lhe Senhor, porque tal não me diz nada. Poderia chamar-
lhe “o modelo ideal”, até mesmo Deus; ou antes, quando ele
assim é chamado, consigo compreendê-lo; mas não consigo
pronunciar a palavra “Senhor” com sentido. Porque não
acredito que ele virá julgar-me; porque isso nada me diz. E só
poderia dizer-me algo, se vivesse de um
modo completamente diferente.

                O que é que me faz até sentir inclinação para acreditar


na Ressureição de Cristo? É como se eu brincasse com o
pensamento.  – Se ele não tivesse ressuscitado, então ter-se-ia
decomposto no túmulo, como qualquer outro homem. Está morto
e decomposto. Nesse caso, é um professor como outro qualquer
e já não pode ajudar; e, de novo, somos órfãos e nos
encontramos sós. Temos assim de nos contentar com a
sabedoria e a especulação. Estamos numa espécie de inferno
onde não podemos fazer mais do que sonhar, cobertos como que
por um telhado e separados do céu. Mas se vou ser
REALMENTE salvo – necessito de uma certeza – não de
sabedoria, de sonhos ou especulação – e esta certeza é a fé. E a
fé é a fé naquilo de que necessita o meu coração, a minha alma,
e não a minha inteligência especulativa. Pois é a minha alma com
as suas paixões, por assim dizer, com a sua carne e sangue, que
tem de ser salva, e não a minha razão abstrata. Talvez possamos
dizer: Só o amor pode acreditar na Ressureição. Ou: é
o amor que acredita na Ressureição. Poderíamos dizer: o amor
redentor acredita até na Ressureição; apoia-se com firmeza até
mesmo na Ressureição. O que combate a dúvida é, por assim
dizer, a redenção. A adesão a ela deve ser a adesão a esta
crença. Assim o que tal significa é: deves, primeiro, ser redimido
e apoiar-te na tua redenção (agarrar a sua redenção) – em
seguida, verás que te estás a agarrar a esta fé: mas tal só pode
acontecer se o teu peso já não assentar na terra, mas se te
suspenderes do céu: Então tudo será diferente e não será de
“espantar” que possas fazer coisas que agora não podes fazer.
(Um homem suspenso assemelha-se a um homem de pé, mas o
efeito recíproco das forças nele presente é, contudo, bastante
diferente, de modo que pode agir de uma maneira inteiramente
diferente da de um homem que está em pé.)

                Nada podes escrever sobre ti que seja mais verdadeiro


do que tu próprio és: eis a diferença entre escrever sobre ti
próprio e escrever sobre objetos externos. Cada um escreve
sobre si próprio de acordo com a altura a que se encontra. Não te
encontras sobre umas andas ou numa escada, mas sobre os teus
pés descalços.

                A ideia de Freud: Na loucura a fechadura não é


destruída, apenas mudada; a velha chave já não a consegue
abrir, mas ela poderia ser aberta por uma chave idealizada de
modo diferente.

                Pode dizer-se que uma sinfonia de Bruckner tem dois


inícios: começa uma vez com a primeira ideia e, em seguida, com
a segunda. Estas duas ideias estão uma para a outra, não numa
relação de parentesco de sangue, mas como homem e mulher.

                A nona sinfonia de Bruckner é uma espécie


de protesto contra a nona sinfonia de Beethoven, e torna-se
assim tolerável, o que não poderia ser se fosse uma espécie de
imitação. Está relacionada com a nona sinfonia de Beethoven
sensivelmente da mesma maneira que o Fausto de Lenau se
encontra relacionado ao Fausto de Goethe, isto é, da mesma
maneira que o Fausto Católico se encontra relacionado ao Fausto
do Iluminismo, etc., etc.

                Nada é mais difícil do que não nos iludirmos a nós


próprios.

                Longfellow:

                               Nos dias primevos da arte

                               Os construtores forjavam com maior cuidado

                               Cada mínima e invisível parte,

                               Porque os deuses estão em todo o lado.

(Isto poderia servir-me de divisa.)

                Fenômenos aparentados à linguagem na música ou na


arquitetura. Irregularidade significativa – por exemplo, no Gótico
(estou a pensar também nas torres da Catedral de São Basílio).

*
                A música de Bach assemelha-se mais à linguagem do
que a de Mozart ou a de Haydn. Os recitativos dos contrabaixos
no quarto movimento da nona sinfonia de Beethoven. (Compara-
se também a observação de Schopenhauer sobre a música
universal composta para um texto particular)[3].

                Na filosofia o vencedor da corrida é aquele que


consegue correr mais lentamente. Ou: o último a atingir a meta.

1939

                Psicanalisar-se é, de certa forma, como comer o fruto


da árvore do conhecimento. O conhecimento adquirido levanta-
nos (novos) problemas éticos; mas não contribui em nada para a
sua solução.

1939-1940

                Que falta à música de Mendelssohm? Uma melodia


“corajosa”?

                O Antigo Testamento visto como o corpo sem cabeça;


o Novo Testamento: a cabeça; a epístolas dos Apóstolos: a coroa
sobre a cabeça.

                Quando penso na Bíblia Judaica, no Antigo Testamento


apenas, sinto vontade de dizer: o corpo (ainda) não tem cabeça.
Estes problemas não foram resolvidos. Estas promessas não
foram cumpridas. Mas não me é necessário pensar uma cabeça
com uma coroa.

                A inveja é algo de superficial – isto é: a cor


característica da inveja não se torna mais intensa – a emoção
mais intensa tem uma cor diferente (Isso, claro, não torna a inveja
menos real).
*

                A medida do gênio é o caráter – embora o caráter, por


si só, não seja equivalente ao gênio. O gênio não é o “talento
mais o caráter”, mas o caráter que se manifesta sob a forma de
um talento especial. Assim como um homem manifestará
coragem ao saltar à água para socorrer alguém, outro manifesta-
la-á escrevendo uma sinfonia (Eis um exemplo fraco.)

                Não há mais luz num gênio do que em qualquer outro


homem honesto – mas ele possui um tipo particular de lentes que
lhe permitem concentrar essa luz num ponto candente.

                Porque é que a alma é agitada por pensamentos


inúteis? – No fim de contas eles são inúteis. Bem, ela é agitada
por eles.

                (Como é que o vento pode agitar a árvore quando não


é mais do que ar? Bem, agita-a, e não o esqueças.)

                Ninguém pode expor a verdade se ainda não a


conhece a fundo. Não a pode expor; mas não porque não seja
ainda suficientemente inteligente.

                A verdade pode apenas ser exposta por alguém que se


sinta relativamente a ela como em sua casa; não por alguém que
ainda vive na falsidade e passa desta à verdade apenas numa
ocasião.

                Contentamo-nos com os louros obtidos é tão perigoso


como descansar quando se caminha na neve. Passamos pelo
sono que morremos.
*

                Um exemplo de quão incrivelmente frívolos são os


desejos é o desejo que tenho de preencher por escrito, tão
rapidamente quanto possível, um belo caderno de
apontamentos. Nada daí obtenho; não o desejo porque, digamos,
seja uma prova da minha produtividade; nada mais é do que
um anseio de me libertar sem demoras de algo familiar; embora,
assim que liberte, tenha de começar um novo e repetir todo o
processo.

                Poderia dizer-se que Schopenhauer é inteiramente um


espírito rude, isto é, embora tenha sutileza de espírito, a um certo
nível esta esgota-se repentinamente e, então, ele é tão rude
como os mais rudes. Onde começa a verdadeira profundidade,
termina a de Schopenhauer.

                De Schopenhauer, poderia dizer-se: ele nunca procura


a sua consciência.

                Sento-me na vida como  um mau cavaleiro num cavalo;


devo o fato de não ser cuspido neste preciso momento à boa
natureza do cavalo.

                Se a arte serva para ‘despertar sentimentos’, será que


a percepção que dela temos por via sensorial se deve incluir
entre esses sentimentos?

                Creio que a minha originalidade (se essa for a palavra


correta) pertence mais ao solo do que à semente. (Talvez eu não
tenha uma semente minha.) Semeiem uma semente no meu solo
e ela desenvolver-se-á de uma maneira diferente da que
apresentaria em qualquer outro solo.
                Penso que a originalidade de Freud também era desse
tipo. Sempre acreditei – sem saber porquê – que o verdadeiro
gérmen da psicanálise proveio de Breuer, e não de Freud. É claro
que a semente de Breuer só pode ter sido muito minúscula.
A coragem é sempre original.

                Hoje me dia as pessoas pensam que os cientistas


existem para as instruir; que os poetas, os músicos, etc., existem
para lhes proporcionar prazer. A ideia de que estes tenham algo
para lhes ensinar não lhes ocorre.       

                A execução de um trecho musical ao piano é uma


dança dos dedos humanos.

                Poderia dizer-se que Shakespeare mostra a dança das


paixões humanas. Por este motivo, tem de ser objetivo; de outro
modo não mostraria a dança das paixões, mas falaria dela. Mas
mostra-no-la numa dança e não de modo naturalista. (Fui buscar
esta ideia a Paul Engelman.)

                Até mesmo uma obra de arte superior tem algo a que
se pode chamar  ‘estilo’, algo também a que se pode mesmo
chamar  ‘maneirismo’. Elas têm menos estilo do que as primeiras
palavras de uma criança.

1940

                O que o ponto de vista causal tem de insidioso é levar-


nos a dizer: ‘É claro que tinha de acontecer assim’. Ao passo que
devíamos pensar: poderia ter acontecido assim e também de
muitas outras maneiras.

*
                Será que se olharmos para as coisas de um ponto de
vista etnológico, isso quer dizer que consideramos que a filosofia
é etnologia? Não, apenas significa que estamos a adoptar uma
posição totalmente exterior, de modo a sermos capazes de ver as
coisas com maior objetividade.

                Aquilo a que me oponho é ao conceito de uma


exatidão ideal que nos seja dada, por assim dizer, a priori. Temos
diferentes ideais de exatidão em diferentes épocas; e nenhum
deles é superior.

                Muitas vezes, dizer a verdade é apenas ligeiramente


mais desagradável do que mentir, é quase tão difícil como beber
café sem açúcar em vez de café com açúcar; e, contudo, eu
ainda sinto uma forte inclinação para mentir.

                Em toda a grande arte há um animal SELVAGEM:


domesticado. Tal não acontece com Mendelssohn, por exemplo.
Toda grande arte tem como pano de fundo os impulsos primitivos
do homem. Eles não constituem a melodia (como acontece,
possivelmente, em Wagner, mas são o que confere à melodia a
sua profundidade e vigor.

                Nesse sentido pode chamar-se a Mendelsshn um


artista ‘reprodutivo’.

                No mesmo sentido: a casa que mandei edificar para


Gretl[1] é o produto de um ouvido incontestavelmente sensível e
de uma boa educação, uma expressão de elevado discernimento
(de uma cultura, etc.) Mas falta a vida primordial, a vida selvagem
que luta por se manifestar. Assim poderiam dizer que não é
saudável (Kierkegaard). (Planta de estufa).

*
                Um professor pode obter bons resultados, até mesmo
resultados surpreendentes, dos seus alunos e, contudo, não ser
um bom professor, pois pode acontecer que, enquanto os alunos
se encontram sob a sua influência direta, eles os faça subir à um
nível que lhes não é natural, sem alimentar as capacidades para
o trabalho apropriadas a este nível, ocorrendo de novo um
declínio imediato destas, logo que abandona a sala de aula.
Talvez seja o que acontece comigo; pensei por vezes que era
assim. (Quando o próprio Mahler regia os seus estudantes nos
ensaios obtinha execuções excelentes; a orquestra parecia
deteriorar-se de imediato quando ele próprio não regia).

                “A finalidade da música: comunicar sentimentos”

                Em ligação  com isto:  podemos dizer corretamente: “a


cara dele tem a mesma expressão que anteriormente tinha”,
embora a medição tenha produzido diferentes resultados nas
duas ocasiões.

                Como é que usamos as palavras “a mesma expressão


facial?” Como é que sabemos que alguém está a usar
corretamente estas palavras? Mas será que eu sei que estou a
usá-las corretamente?

                Poderia dizer: “O gênio é o talento usado com


coragem”. 

                Procura ser amado sem ser admirado.

                O que é merecedor de admiração e faz que valha a


pena viver a vida não é o medo, mas o medo dominado. A
coragem, e não a inteligência ou mesmo a inspiração, é o grão de
mostarda que se converte numa grande árvore. Enquanto houver
coragem há uma relação com a vida e a morte. (Estava a pensar
na música de órgão de Labor e de Mendelssohn) Mas não
ganhas coragem para ti próprio reconhecendo a falta dela em
qualquer outra pessoa.

                Por vezes, uma expressão tem que ser afastada da


linguagem para limpeza, podendo, em seguida, voltar à
circulação.

                Quão difícil, penso, é ver aquilo que está mesmo à


frente dos meus olhos!

                Não podes não querer desistir da tua mentira, não


obstante, dizer a verdade.

                Escrever com o estilo correto é como pôr a carruagem


bem assente nos carris. (e não o carro na frente dos bois)

                Se neste momento esta pedra não se move e está


firme, desloca primeiro algumas das pedras que a rodeiam.

                Tudo o que pretendemos fazer é, se a tua carruagem


está mal assente sobre os carris, voltar a pô-la na via. Conduzi-la,
depois, é algo que deixamos para ti.

                Tirar a argamassa é mais fácil do que remover uma


pedra. Bem, tem de se fazer uma coisa antes de se poder fazer a
outra.
*

                O meu estilo é como uma má composição musical.

                Não peças desculpas de nada, não esqueças nada; vê


e diz como de fato é, mas deves ver algo que lance uma nova luz
sobre os fatos.

                As nossas maiores imbecilidades podem ser muito


sensatas.

                É incrível como pode ser útil uma nova gaveta quando
instalada de modo apropriado no nosso arquivo.

[1]  A irmã de Wittgenstein, para quem ele mandou construer uma


casa na Kundmanngasse, n.º 19, em Viena.

[1]  Goethe, Fausto, parte I.

[2]  I Coríntios, 12.

[3]  Schopenhauer, “A metafísica da música”, em   ‘O Mundo


como Vontade e Representação’, capítulo 39.
[1]  Cf. Investigações Filosóficas, I, § 131.

[1] Heinrich von Kleist, Carta de um Poeta a Outro, 5 de janeiro


de 1811.

[2] Conjectura dos organizadores.

[3]   Há aqui, porventura, uma alusão ou ao poema de Goethe


“Vanitas! Vanitatum vanitas” ou, segundo Rush Rhees, ao
primeiro capítulo da obra Der Einzige und sein Eigentum de Max
Stirmer.

[4]   Esta frase entre parenthesis é do poema em prosa “O sonho


de Eduardo” de Wilhelm Busch.

(até o momento, chegamos à página 52 e seguindo…)

(importante lembrar que estou mantendo a grafia do livro/original,


então podem aparecer palavras enunciadas de uma forma
inusual, grato pela compreensão, e comentem, votem, sigam
mas, sobretudo leiam e divirtam-se

[1] Arvid Sjögren, amigo e parente de L.W.

[2]  RENAN, Ernest. Histoire du Peuple d’Israel, vol. 1, cap. III.

[3]  Um primeiro esboço do prefácio à obra Observações


Filosóficas, publicada por Rush Rhees. Basil Blackwell, Oxford,
1964.

[4]  Ver nota anterior.

[5]  G. E. Lessing, Die Erziehung des Menschengeschlechts.  #


48-49 [ A Educação do Género Humano].
(prefácio do livro CULTURA E VALOR de Ludwig Wittgenstein
(meu livro de cabeceira, minha pequena bíblia de semioses
conceituais, o livro que mais amo dele) assim como vou digitalizar
a obra toda, sinto demasiado importante enunciar os prefácios ou
as introduções aos livros de Wittgenstein, muitas das vezes
foram fundamentais no entendimento da obra como um todo ao
mesmo tempo que é fascinante observar o desenrolar e
desenvolver das tramas sócio-acadêmico-literário-epistêmicas
que surgem a partir das referências contextuais e procedimentos
ordinários para a consecução de uma obra de tal porte, como
sempre lembro, não deixem de comentar, questionar, seguir,
votar mas, sobretudo, ler e se divertir com a arte de ler,
agradecido – ainda esta semana tem mais material)

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