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Como vimos até aqui, a linguagem foi uma constante no trabalho de Foucault

ao longo dos anos 1960. Além de ter sido objeto de reflexão posterior em obras como

Archéologie du savoir (AS, 1969) e em L’ordre du discours (OD, 1971), ela também era o

cerne do método que predominou nos trabalhos de Foucault no período. O método

arqueológico, coincidente com as obras dos anos 1960, consiste em uma investigação acerca

da delimitação de fenômenos a partir da formação de corpos de discurso. No período,

Foucault estava preocupado com a delimitação de problemas científicos e seu enraizamento

no discurso de uma época, produto da influência sofrida por seu contato com a

epistemologia histórica francesa (Cf. GUTTING, 1989; MACHADO, 2006). Mas Foucault

também estava atento aos debates que se desenrolavam nos meios literários franceses. Uma

outra fonte importante de temas e problemas para Foucault foram a crítica literária e a

literatura.

Ao mesmo tempo em que publicava seu estudo sobre a medicina clínica,

Foucault também publicava seu estudo sobre a obra de Raymond Roussel (RR).

Raymond Roussel foi um escritor francês, nascido em Paris em 1877 e morto

em circunstâncias obscuras em 1933 em Palermo, Itália (não se tem certeza se ele cometeu

suicídio, hipótese estabelecida desde sua morte, ou se foi vítima de uma overdose

involuntária). Inicialmente ignorado, Roussel é considerado uma influência importante para

movimentos literários e artísticos europeus de vanguarda, como o dadaísmo e o surrealismo.

Ele também despertou a atenção de escritores importantes anteriores e contemporâneos a

Foucault, como Michel Leiris e Alain Robbe-Grillet, especialmente pelo seu modo de

expressão e utilização da língua para compor sua literatura inovadora1.

1
O Dictionnaire de la littérature Larousse (2001, p.1044) apresenta Roussel da seguinte forma: “Objeto
do desprezo da crítica e do entusiasmo em princípio dos dadaístas, Roussel permanece durante sua vida
incompreendido. Sua esperança de ‘um pouco de reconhecimento póstumo a respeito de seus livros’ é
contudo atendida: redescoberto por Foucault, Leiris e Robbe Grillet, ele é reivindicado como um modelo
Foucault descobriu a obra de Roussel entre 1955 e 1960 por acaso

(MACHEREY, 1999). Na entrevista “Archéologie d’une passion” [“Arqueologia de uma

paixão”], concedida em 1983 a Carlos Ruas para a publicação da edição em língua inglesa

de seu livro sobre Roussel (DE II, 343, p.1418-1427), Foucault precisa o ano de 1957 como

o de sua descoberta em uma livraria de Paris2. Nesta entrevista, após narrar seu encontro

ocasional com a obra de Roussel, Foucault descreve como ao longo dos anos seguintes,

depois de encontrar La vue [A vista], foi lendo todos os livros do autor que o cativara

imediatamente. Até que, por fim, chegou ao seu livro sobre os procedimentos de escrita,

Comment j’ai écrit certains de mes livres [Como eu escrevi alguns de meus livros]3, obra

publicada em 1935, dois anos depois da morte de seu autor:

Em seguida, eu comprei um pouco sistematicamente, mas lentamente, os livros


de Raymond Roussel e isso me interessou prodigiosamente: eu fui cativado
por essa prosa, onde eu encontrei uma beleza intrínseca, antes mesmo de saber
o que estava por trás. E quando eu descobri os procedimentos e técnicas de
escrita de Raymond Roussel, sem dúvida um certo lado obsessivo em mim foi
uma segunda vez seduzido4 (DE II, 343, p.1418).

pelas vanguardas. Sua modernidade ingênua e impregnada de convenções é todavia paradoxal: os


procedimentos, longe de serem unicamente lúdicos, servem para dizer o inconfessável (não sou eu quem o
diz, são as palavras); exercício de funambulismo a todo momento ameaçado de deslizar da literatura para
o discurso da neurose, sua obra permanece pouco lida. A partir de uma imagem ou de um jogo de palavras,
ele constrói, com uma seriedade alucinante e um humor desarmante, fascinantes máquinas celibatárias e
tautológicas, textos profundamente ambíguos sob as aparências da fantasia e da verossimilhança,
profundamente negros e perturbadores sob um estilo branco e quase gelado”.
2
Daniel Défert, em sua detalhada cronologia dos eventos da vida de Foucault precisa o mês de julho de
1957 como o momento da descoberta de Roussel por Foucault (DÉFERT, 2001a, p.26).
3
Para uma apreciação das ideias apresentadas por Roussel no livro onde expõe seu “procedimento”, é
informativa a leitura da versão resumida publicada no número 259 (p.583-595) da Nouvelle Revue
Française de 1º de abril de 1935, pouco antes do lançamento do livro, como informa o site da Bibliothèque
Nationale de France: https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb42752529k. Todos os trechos de Roussel citados
na sequência do nosso trabalho são deste texto em versão disponível na página Wikisource
(https://fr.wikisource.org/wiki/Wikisource:Accueil), biblioteca digital de textos em domínio público ou sob
licença Creative Commons, e estão em tradução nossa (Cf. ROUSSEL, 1935). Há uma tradução brasileira
desta versão abreviada do texto de Roussel (Cf. ROUSSEL, 2015).
4
“Par la suite, j’ai acheté un peu systématiquement, mais lentement, les livres de Raymond Roussel et cela
m’a prodigieusement intéressé: j’ai été envoûté par cette prose, à laquelle j’ai trouvé une beauté intrinsèque,
avant même de savoir ce qu’il y avait derrière. Et quand j’ai découvert les procédés et les techniques
d’écriture de Raymond /roussel, sans doute un certain coté obsessionel en moi a été une seconde fois
séduit”.
O que teria chamado a atenção de Foucault de tal maneira na obra de Roussel?

Além dessa “beleza intrínseca”, o que é essa outra coisa que “estava por trás”, esses

“procedimentos e técnicas de escrita de Raymond Roussel”? E por que razão isso poderia

ter interessado Foucault “prodigiosamente”? Que relação tudo isso entretinha com o

trabalho que Foucault empreendia e com seu pensamento de maneira mais geral naquele

momento e que, acreditamos, mantém-se como parte da visão de Foucault acerca da

linguagem e de sua relação com a realidade?

Roussel descreve seu procedimento (“procédé”) no livro Comment j’ai écrit

certains de mes livres [Como escrevi alguns de meus livros] de maneira pormenorizada.

Essa descrição também aparece compendiada em um artigo de síntese do livro, sobre o

qual nos apoiamos (ROUSSEL, 1935). Este procedimento, que determina a relação

mantida por Roussel com a linguagem nas obras em que foi empregado, embora não tenha

ditado a escrita de todos os seus livros, é uma das principais razões do interesse de

Foucault por sua obra. Para Foucault, a prática literária de Roussel, tal como realizada em

suas obras literárias e revelada em seu texto metodológico, explicita aspectos essenciais

da própria linguagem e suas implicações para o conhecimento e para a liberdade.

Escrevendo sobre seu método, Roussel acha que deve revelar seu

procedimento porque “escritores do futuro poderiam talvez explorá-lo proveitosamente”.

Ele também acredita que se trata “de um procedimento muito especial”, embora seja um

expediente muito trabalhoso: “Não se acreditaria, de fato, que tempo imenso exige a

composição de versos desse gênero”. Como Roussel formula mais para o final de seu

texto, seu procedimento “é parente da rima. Nos dois casos há criação imprevista devido

a combinações fônicas. É essencialmente um procedimento poético”. Mas, Roussel

esclarece, o procedimento apenas não garante o bom resultado, “é preciso saber empregá-

lo”, dado que “da mesma forma que com as rimas pode-se fazer bons ou maus versos,
pode-se, com esse procedimento, fazer boas ou más obras” (ROUSSEL, 1935). Mas que

procedimento é esse? Qual é sua natureza, ou seu funcionamento?

Referindo-se à história narrada em um conto escrito em sua juventude, “Parmi

les noirs” [“Entre os negros”] (ROUSSEL, 2008), que diz estar na gênese de seu livro

Impressions d’Afrique [Impressões da África]5, Roussel descreve inicialmente seu

procedimento da seguinte forma: “Eu escolhia duas palavras quase semelhantes (fazendo

pensar nos metagramas6). Por exemplo, billard [bilhar] e pillard [pilhante; saqueador]7.

Depois eu acrescentava aí palavras semelhantes mas tomadas em dois sentidos diferentes,

e eu obtinha assim duas frases quase idênticas” (ROUSSEL, 1935). Portanto, duas

palavras muito parecidas como ponto de partida mais palavras idênticas adicionais

tomadas em sentidos distintos.

Mas o procedimento não se encerra aí. Roussel prossegue descrevendo seu

procedimento em referência a seu exemplo privilegiado, as palavras billard e pillard. Ele

formou a partir dessas duas palavras, duas frases, utilizando uma frase para abertura e

outra para fechamento de seu conto. A primeira frase, “Les lettres du blanc sur les bandes

du vieux billard”, Roussel a explica assim: “Na primeira, ‘lettres’ era tomado no sentido

de ‘signos tipográficos’, ‘blanc’ no sentido de ‘cubo de giz’ e ‘bandes’ no sentido de

‘bordas’”. A segunda frase, “Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard”, é

5
“Havia nesse conto toda a gênese do meu livro Impressions d’Afrique escrito uma dezena de anos mais
tarde” (ROUSSEL, 1935). Hermes Salceda (2008) informa que o conto “Parmi les noirs” foi escrito
provavelmente em 1899.
6
“Metagrama”, ou “metaplasmo”, serve para designar vários tipos de alterações ocorridos na estrutura de
uma palavra pelo acréscimo, supressão ou troca de fonemas. O Dicionário Houaiss da língua portuguesa
define o metaplasmo como uma alteração da composição fonética correta de uma palavra em função de
finalidades retóricas, para atingir alguma métrica ou efeito estético (HOUAISS, 2001).
7
Nesse exemplo específico, o jogo desejado por Roussel se perde na tradução, ao menos em parte. Como
se tratam de jogos de palavras na língua francesa envolvendo a polissemia, a variedade de sentidos
veiculados pelas palavras, e a homofonia, sonoridade semelhante das palavras, está claro que é muito difícil
traduzir precisamente sem que algo se perca ou não careça de explicação. Nesse caso, as palavras francesas
“billard” e “pillard” possuem pronúncias quase idênticas. Sua escolha de palavras permite que a troca das
consoantes iniciais, b e p, consoantes oclusivas bilabiais (/b/ e /p/ em transcrição fonética) com sonoridade
bastante próxima, conserve a pronúncia das palavras muito parecida, atingindo o efeito pretendido por
Roussel.
explicada da seguinte forma: “‘lettres’ era tomado no sentido de ‘cartas’, ‘blanc’ no

sentido de ‘homem branco’ e ‘bandes’ no sentido de ‘hordas guerreiras’” (ROUSSEL,

1935). Assim, pela interpretação dos diferentes sentidos atribuídos às mesmas palavras

em cada uma das frases construídas de maneira idêntica (ou quase), temos que a primeira

frase poderia ser traduzida por “As letras de giz sobre as bandas do velho bilhar” e a

segunda poderia ser traduzida por “As cartas do branco sobre os bandos do velho

pilhante”. Roussel, dado o sentido das palavras elucidado em conformidade com o

emprego em seu conto, denoda a trama de sua história:

No conto em questão havia um branco [blanc] (um explorador) que, sob o


título ‘Entre os negros’, havia publicado sob a forma de cartas [lettres]
(missivas) um livro onde ele falava dos bandos [bandes] (hordas) de um
pilhante (rei negro).
No início via-se alguém escrever com um giz [blanc] (cubo de giz) letras
[lettres] (signos tipográficos) sobre as bandas [bandes] (bordas) de um bilhar.
Essas letras, sob uma forma criptográfica, compunham a frase final: ‘Les
lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard’ [‘As cartas do branco sobre
os bandos do velho pilhante’], e o conto inteiro repousava sobre uma história
de enigmas baseada sobre as narrativas epistolares do explorador (ROUSSEL,
1935, destaques no original).

Como vimos, Roussel evidencia a antiguidade de seu procedimento, posto em

prática pela primeira vez ainda bem jovem (SALCEDA, 2008). Este procedimento estaria

na origem de várias de suas obras posteriores, embora não de todas. Neste caso em

particular, ele menciona como o conto “Parmi les noirs” (ROUSSEL, 2008) está na

origem de seu livro Impressions d’Afrique. Porém, o procedimento não é apenas repetido,

mas desenvolvido, amplificado, tendo Roussel então, além de definir as palavras de

partida, buscado a seguir palavras relacionadas àquelas primeiras palavras escolhidas:

“busquei novas palavras se relacionando à palavra billard [bilhar], sempre para tomá-las

em um sentido além daquele que se apresentava primeiro, e isso me fornecia a cada vez

mais uma criação” (ROUSSEL, 1935).


Poderíamos prosseguir com esta exposição do procedimento de escrita de

Roussel por longas páginas ainda. Ele multiplica os exemplos ao longo de seu texto,

explicita novos desenvolvimentos do procedimento, discute seu trabalho em relação ao

seu percurso de escritor. Mas isto não é necessário aqui. Pretendemos apenas dirigir o

olhar do leitor para o fato de que Roussel, autor pelo qual Foucault se interessou e para o

qual dedicou um livro inteiro, era um escritor de literatura com uma utilização própria da

linguagem, um procedimento próprio de escrita. E familiarizar o leitor, mesmo que de

maneira incipiente e esquemática, também com o próprio procedimento empregado por

Roussel para escrever alguns de seus livros. Foi justamente este procedimento, o

tratamento dado por ele à linguagem, que atraiu a atenção de Foucault. Foi interessado

pela obra literária de Roussel e pela reflexão de Roussel sobre sua própria escrita, que

Foucault partiu para desenvolver em seu livro suas reflexões acerca da natureza, do

funcionamento e das possibilidades da linguagem.

O texto de Foucault sobre Roussel é um texto difícil. Isto é, não é um texto

de fácil assimilação, leitura e absorção. Como grande parte do que Foucault escreveu ao

longo dos anos 1960, este texto também se desenvolve em uma linguagem exploratória

das possibilidades literárias da escrita pelas quais Foucault estava fortemente atraído.

Foucault se interessava pela literatura, escrevia sobre ela, se expressava, ele mesmo, em

uma escrita com pendores literários, cheia de imagens e figuras de linguagem diversas.

Foucault acreditava em uma liberdade manifesta através da autonomia da própria

linguagem – daí sua crítica às concepções hermenêuticas e à prática do comentário, como

vimos – e isto repercute em seu texto.

Consideramos que no livro de RR o que há de mais importante para Foucault

à época e que o acompanhará é a visão de que a linguagem é um domínio específico

definido, antes de mais, por sua raridade. Foucault caracterizou essa visão como uma
“rica pobreza” (RR. p.23), pois evidencia um aspecto central da linguagem. Segundo

Foucault, Roussel mostra como a linguagem é precariamente constituída. Ela não é capaz

de esgotar, ou não ao menos em uma compreensão puramente referencial e representativa,

a multiplicidade de objetos e de possibilidades postas pela realidade. Se Roussel faz

emergir esta característica fundamental da linguagem é porque “Toda a linguagem de

Roussel [...] procura dizer sub-repticiamente duas coisas com as mesmas palavras”8 (RR,

25). É porque em Roussel “a linguagem fala apenas a partir de uma falta que lhe é

essencial. Dessa falta, experimentamos o ‘jogo’ – nos dois sentidos do termo – no fato

(limite e princípio ao mesmo tempo) que a mesma palavra pode dizer duas coisas

diferentes e que a mesma frase repetida pode ter outro sentido”9 (RR, p.208).

O problema fundamental abordado por Foucault, portanto, diz respeito à

“carência das palavras que são menos numerosas que as coisas que elas designam”10 (RR,

p.207). Porém, na visão do Foucault, a condição paradoxal da linguagem consiste

exatamente no fato de que é esta característica de ser carente em relação à totalidade da

realidade que mina sua possibilidade de ser compreendida em termos exclusivos de

representação. Pelo contrário, as palavras “devem a essa economia querer dizer alguma

coisa”11. Neste ponto vemos claramente a reserva de Foucault à compreensão da

linguagem como fenômeno puramente representacional. O texto de Jorge Luís Borges

“Sobre o rigor na ciência”, é um ótimo exemplo que pode ajudar a elucidar os limites da

representação, linguística ou imagética, tal como assumido por Foucault. Neste

brevíssimo texto, Borges, escrevendo uma espécie de paródia de relato histórico, narra o

8
“Tout le langage de Roussel, style renversé, cherche à dire subrepticement deux choses avec les mêmes
mots”.
9
“le langage ne parle qu’à partir d’un manque qui lui est essentiel. De ce manque, on éprouve le ‘jeu’ – aux
deux sens du terme – dans le fait (limite et principe à la fois) que le même mot peut dire deux choses
différentes et que la même phrase répétée peut avoir un autre sens”.
10
“carence des mots qui sont moins nombreux que les choses qu’ils désignent”.
11
“doivent à cette économie de vouloir dire quelque chose”.
feito de geógrafos de algum império fictício não nomeado. Estes geógrafos, que encarnam

o que Borges ironicamente designa como rigor científico, um rigor absoluto, criaram um

mapa capaz de representar com tal exatidão o território por ele coberto que acabou, por

fim, por se tornar inútil. O mapa apenas redobrou a realidade da qual ele era uma

representação exata e perfeita12. Com isto em mente, podemos agora compreender melhor

a conclusão negativa de Foucault acerca do funcionamento da linguagem: “Se a

linguagem fosse tão rica como ser, ela seria o duplo inútil e mudo das coisas; ela não

existiria”13 (RR, p.208). Por outro lado, o que torna a linguagem significativa é

possibilidade de criação de objetos, de intervir sobre o mundo, de criar realidade: “E

entretanto sem nome para as nomear, as coisas permaneceriam na noite”14 (RR, p.207-

208). Fica evidente, portanto, como é o papel ativo da linguagem o que traz os objetos ao

campo da experiência, é a ferramenta que permite a objetivação.

Em um artigo escrito em 1962, intitulado “Dire et voir chez Raymond

Roussel” [“Dizer e ver em Raymond Roussel”], artigo que se tornou o primeiro capítulo

de seu livro posteriormente, Foucault escreve:

O enigma de Roussel é que cada elemento de sua linguagem seja tomado em


uma série não contável de configurações eventuais. Segredo muito mais
manifesto, mas muito mais difícil do que aquele sugerido por Breton: ele não
reside em uma trapaça do sentido nem no jogo dos desvelamentos, mas em
uma incerteza concertada da morfologia, ou sobretudo na certeza que muitas
construções podem articular o mesmo texto, autorizando sistemas de leitura

12
O texto de Borges (que, por ser curto, reproduzimos aqui integralmente): “... Naquele Império, a Arte da
Cartografia logrou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa
do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de
Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente
com ele. Menos Adictas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado
Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do
Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não
há outra relíquia das Disciplinas Cartográficas.
Suáres Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV, Lérida, 1658”. (BORGES, 2008,
p.155).
13
“Si le langage était aussi riche que l’être, il serait le double inutile et muet des choses ; il n’existerait
pas”.
14
“Et pourtant sans nom pour les nommer, les choses resteraient dans la nuit”.
incompatíveis mas possíveis: uma polivalência rigorosa e incontrolável das
formas15 (DE I, 10, p.239).

Este “enigma de Roussel”, no qual os elementos de sua linguagem são

tomados em “uma série não contável de configurações eventuais” se refere ao fato de que

sua linguagem, como é evidenciado em detalhe no exemplo dado pelo próprio Roussel

acerca de seu procedimento, permite uma variação de sentidos decorrentes da exploração

da multiplicidade de sentidos das palavras em seus diferentes contextos. A linguagem é

utilizada, manipulada, organizada de diferentes maneiras, e as suas limitações são

superadas através da polissemia. As possibilidades de combinações são infinitas,

superando as limitações impostas pela escassez vocabular. Foucault escreve em Raymond

Roussel:

Em sua [de Roussel] leitura, nada nos é prometido. Apenas é prescrita


interiormente a consciência de que ao ler todas essas palavras alinhadas e lisas
somos expostos ao perigo sem referência de ler outras, que são outras e as
mesmas. A obra, em sua totalidade [...] impõe sistematicamente uma
inquietude informe, divergente, centrífuga, orientada não para o mais reticente
dos segredos, mas para o desdobramento e a transmutação das formas mais
visíveis: cada palavra é ao mesmo tempo animada e arruinada, preenchida e
esvaziada pela possibilidade que haja uma segunda – esta ou aquela, ou nem
uma nem outra, mas uma terceira, ou nada16 (RR, p.19-20).

15
“L’énigme de Roussel, c’est que chaque élément de son langage soit pris dans une série non dénombrable
de configurations éventuelles. Secret beaucoup plus manifeste, mais beaucoup plus difficile que celui
suggéré par Breton: il ne réside pas dans une ruse du sens ni dans le jeu des dévoilements, mais dans une
incertitude concertée de la morphologie, ou plutôt dans la certitude que plusieurs constructions peuvent
articuler le même texte, autorisant des systèmes de lecture incompatibles mais tous possibles: une
polyvalence rigoureuse et incontrôlable des formes”.
16
“En sa lecture, rien ne nous est promis. Seule est prescrite intérieurement la conscience qu’en lisant tous
ces mots alignés et lisses nous sommes exposés au danger hors repère d’en lire d’autres, qui sont autres et
les mêmes. L’œuvre, en sa totalité […] impose systématiquement une inquiétude informe, divergente,
centrifuge, orientée non pas vers le plus réticent des secrets, mais vers le [20] dédoublement et la
transmutation des formes les plus visibles : chaque mot est à la fois animé et ruiné, rempli et vidé par la
possibilité qu’il y en ait un second – celui-ci ou celui-là, ou ni l’un ni l’autre, mais un troisième, ou rien”.
A menção a André Breton também é significativa17, considerando que

Roussel é geralmente visto como uma influência para o movimento surrealista

capitaneado por ele. De fato, André Breton, já em seu primeiro manifesto do surrealismo,

em 1924, inclui o nome de Roussel em uma lista de surrealistas “honorários” (Cf.

BRETON, 1985, p.59). O “segredo sugerido por Breton”18 ao qual Foucault se refere diz

respeito a uma interpretação do trabalho de Roussel como um trabalho esotérico, com um

sentido oculto profundo, um trabalho que esconde uma mensagem subjacente ao próprio

texto19, leitura que Foucault rejeita. A isto, Foucault opõe o que ele chama de uma

“incerteza concertada da morfologia”, a ideia de que “muitas construções podem articular

o mesmo texto”, “uma polivalência rigorosa e incontrolável das formas”.

Neste ponto pode ser esclarecedora uma fala de Foucault registrada em um

debate com escritores e publicada sob o título “Débat sur le roman” [“Debate sobre o

romance”] (DE I, 22, p.366-418). Este debate foi conduzido por Foucault em setembro

de 1963, pouco depois da publicação de seu Raymond Roussel, entre autores e críticos

diversos participantes do grupo da revista Tel quel, grupo do qual Foucault era próximo

e para cuja publicação contribuiu em diversas ocasiões. Já no início do debate, Foucault

17
A menção à leitura de Roussel por Breton aparece em outros lugares em RR (Cf. por exemplo, p.18;
p.155-156), todas enfatizando o mesmo aspecto ou em seu artigo de 1964 sobre a reedição das obras de
Roussel que, para Foucault, era assimilada de maneira “bem diferente daquela que era por Breton quando
ele compôs a Anthologie de l’humour noir [Antologia do humor negro]” [“bien différente de ce qu’elle était
pour Breton quand il composait l’Anthologie de l’humour noir”] (DE I, 26, p.449). Macherey (1999,
p.XVII) formula a consideração de Breton por Foucault no âmbito da abordagem à obra de Roussel nos
termos da “pouca estima que Foucault tinha pelas hipóteses de Breton, que, para ele, eram boas apenas para
situar na categoria dos ‘comentários’ e de suas pretensões tagarelas”. Bom salientar que se trata de uma
consideração específica ao âmbito da avaliação da obra de Roussel, posto que, como é evidenciado por uma
entrevista concedida em ocasião da morte de Breton (DE I, 43, p.582-585), Foucault atribui um papel
importante à obra de Breton na “descoberta do domínio da experiência” [découverte du domaine de
l’expérience”] que “lhe permitiu também abrir a linguagens possíveis domínios que, até aí, eram mantidos
mudos, marginais” [“lui permettait aussi d’ouvrir à des langages possibles des domaines qui, jusque-là,
étaient restés muets, marginaux”] (DE I, 43, p.585).
18
Dois textos onde aparecem esta abordagem de Roussel por Breton são BRETON, 1953; BRETON, 1966.
19
Rayner Heppenstall escreve em seu estudo de apresentação de Roussel ao público americano que, depois
de Roussel ter passado por um período de esquecimento, em 1950 um livro de Marcel Jean e Apard Nezei
intitulado Genèse de la Pensée Moderne, dedicou três capítulos a Roussel “apresentando-o como a
culminância de uma tradição profundamente tingida com ocultismo, uma visão subsequentemente adotada
pelo líder surréaliste, André Breton (é uma visão, posso dizer, para a qual não existe qualquer evidência)”
(HEPPENSTALL, 1967, p.16). Para a visão de Breton, Cf. BRETON,1953; 1966.
se refere ao tipo de experiências que ele percebia nos trabalhos do grupo Tel quel e que o

interessavam20. Ele aponta um isomorfismo entre o trabalho de Michel Leiris e André

Breton, se perguntando em seguida pela diferença entre esses modos de conceber e fazer

a literatura. Foucault esboça sua visão da prática surrealista, e este é o ponto que nos

interessa em sua menção a André Breton: este contraste, explorado aqui sucintamente,

poderá nos ajudar a perceber de maneira mais evidente o tipo de perspectiva acerca da

literatura e, por conseguinte, da linguagem avançada por Foucault.

O surrealismo foi um movimento artístico de vanguarda surgido na França na

primeira metade do século XX. O Manifeste du surréalisme [Manifesto do surrealismo]

escrito por André Breton data de 1924 (BRETON, 1985). Este movimento, que advogava

uma prática artística livre, uma libertação através da arte, foi fortemente influenciado pela

psicanálise freudiana. Por isso, subjacentes às suas concepções do indivíduo e sua relação

com a sociedade estavam ideias psicanalíticas concernentes à natureza humana, suas

características, suas pulsões. Como consequência disso, está implicada também uma

concepção particular de liberdade da qual os surrealistas derivaram uma resposta para as

questões artísticas que se colocavam em seu tempo. Em linhas gerais, dessa perspectiva,

o indivíduo possui determinadas tendências e pulsões inatas constitutivas de seu ser: a

sociedade se estabelece através da repressão dessas pulsões e, por isso, essa repressão se

dá através de uma tensão entre a necessidade social e as pulsões individuais e tem como

consequência uma grande variedade de patologias mentais. É o “mal-estar na civilização”

do qual falou Freud mais tarde (1930). Dito de outra forma, nesta visão, a sociedade se

20
Além da própria noção de “experiência”, presente em toda a obra de Foucault, é interessante nesta ocasião
uma primeira menção à noção de “experiência espiritual”, aqui mencionada de maneira hesitante, mas que
será tratada por Foucault mais tarde em outros trabalhos: “eu chamarei isto, com muitas aspas, de
experiências espirituais (mas enfim a palavra espiritual não é boa) – como o sonho, a loucura, como a
desrazão, como a repetição, o duplo, o desvio do tempo, o retorno etc. Essas experiências formam uma
constelação que é provavelmente muito coerente” [“j’appellerai ça, avec beaucoup de guillemets, des
expériences spirituelles (mais enfin le mot spirituel n’est pas bon) – comme le rêve, comme la folie, comme
la déraison, comme la répétition, le double, la déroute du temps, le retour, etc. Ces expériences forment une
constellation qui est probablement très cohérente” (DE I, 22, p.366).]
constitui às custas do indivíduo, através da repressão de aspectos importantes de sua vida

psíquica e, dado que o que define o ser humano é ser dotado de um psiquismo, através da

repressão de seu próprio ser. Uma vida mental saudável, ao fim e ao cabo, uma boa vida,

dependeria da libertação do indivíduo das amarras sociais que o sufocam. Esta é, em

síntese, uma visão que foi assimilada pelo surrealismo, que viram a arte como um meio

privilegiado para esta libertação, mas também pelo freudo-marxismo, visão que Foucault

apreendeu na fórmula da “hipótese repressiva” (HS I) ou da “hipótese Reich” (IFDS) em

sua análise posterior acerca do poder.

Exposta esta concepção da natureza humana e do indivíduo e de sua relação

com a sociedade, se torna mais fácil perceber a compreensão do papel libertador da arte

para o surrealismo. O surrealismo se estabeleceu como um movimento de oposição à

sociedade burguesa através da livre manifestação das pulsões do indivíduo por meio da

arte. Dessa forma, o surrealismo se constituiu, entre outras coisas, em torno do apelo à

livre expressão da imaginação, produzindo assim imagens fantásticas, da valorização da

experiência do sonho, que devem tomar corpo, seja na pintura, no cinema ou na literatura,

através do automatismo: “SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual

se propõe exprimir [...] o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na

ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou

moral” (BRETON, 1985, p.58). Em se tratando da literatura, em particular, a escrita

automática foi um método que ganhou atenção privilegiada. Isto porque ao estabelecerem

uma escrita baseada no automatismo, isto é, num espontaneísmo expressivo, os

surrealistas acreditavam estar libertando a criatividade e a imaginação das amarras de

uma razão repressora, limitadora da expressão das pulsões mais básicas do artista. Há

alguma relação entre este automatismo e a escrita de Roussel, tal como revelado por este

na descrição de seu procedimento? Embora Roussel (1935) afirme o papel da imaginação


em seu trabalho (“Para mim, a imaginação é tudo”)21, sua construção artística não se

enquadra no tipo de concepção psicológica do indivíduo suposta pelo surrealismo.

Se o surrealismo pretende produzir uma literatura através da escrita

automática, sem impor preocupações estéticas ou morais aos seus escritos, a prática de

Roussel, ao contrário, é metodicamente controlada. Em vez de estabelecer a “condição

psicológica da obra (ideia que não tem sentido)”22 (RR, p.207), de fazer falar o indivíduo

cujas pulsões são reprimidas, como é a visão assumida pelo surrealismo, o procedimento

de Roussel, como visto por Foucault, procura apagar o próprio indivíduo em favor da

expressão de uma linguagem autônoma que fala através do trabalho deste indivíduo. Em

resumo,

Os experimentos de Roussel eram processos mecânicos que seguiam


cegamente certas regras e princípios, e ainda assim eles eram capazes de criar
sentidos novos e bonitos. É claro em relação aos interesses do próprio Foucault
que a produção semelhante a máquinas de beleza surreal ilustrava para ele a
ideia de que a linguagem produz sentidos independentemente das iniciativas
do sujeito. Enquanto o interesse dos surrealistas em Roussel estava conectado
a sua ideia de escrita automática e à utilização da mente inconsciente, a
motivação de Foucault era algo diferente: ele estava interessado no
‘inconsciente’ da linguagem, não do sujeito escrevente (OKSALA, 2005,
p.83).

Desta forma, no “Débat sur le roman” [“Debate sobre o romance”], Foucault

distancia a escrita rousseliana da surrealista por considerar que “os surrealistas haviam

colocado essas experiências em um espaço que se poderia chamar psicológico, elas eram

21
Vale a pena mencionar a citação completa, porque ela dá uma impressão bastante vívida da visão de
Roussel sobre seu trabalho: “É preciso ainda que eu fale aqui de um fato bastante curioso. Eu viajei muito.
Notadamente em 1920-21 eu fiz a volta ao mundo pelas Índias, a Austrália, a Nova Zelândia, arquipélagos
do Pacífico, a China, o Japão e a América. (Durante essa viagem eu fiz uma parada bastante longa no Taiti,
onde eu encontrei ainda alguns personagens do admirável livro de Pierre Loti). Eu conhecia já os principais
países da Europa, o Egito e todo o norte da África, e mais tarde eu visitei Constantinopla, a Ásia Menor e
a Pérsia. Ora, de todas essas viagens, eu nunca tirei nada para os meus livros. Me pareceu que a coisa
merecia ser assinalada enquanto ela mostra claramente que em mim a imaginação é tudo” (ROUSSEL,
1935).
22
“condition psychologique de l’oeuvre (idée qui n’a pas de sens)”.
em todo caso domínio da psique”23. E, pior do que isso, “ao fazer essas experiências, eles

descobriram esse trasmundo24, esse além ou aquém do mundo e que era para eles o fundo

de toda razão. Eles reconheceram aí um tipo de inconsciente, coletivo ou não”25 (DE I,

22, p.366). A menção a esse âmbito psicológico como esse “trasmundo” [arrière-monde]

denuncia ainda um maior distanciamento: a busca por um fundamento além ou aquém da

própria realidade efetiva da língua materializada na escrita literária, algo que Foucault

não poderia aceitar, fosse pela sua assunção de premissas nietzschianas26, fosse pela

assunção de premissas próximas a um estruturalismo linguístico.

23
“les surréalistes avaient placé ces expériences dans un espace qu’on pourrait appeler psychologique, elles
étaient en tout cas domaine de la psyché”.
24
“Trasmundo” aqui traduz a expressão “arrière-monde” utilizada por Foucault. Chamamos a atenção do
leitor para o fato de que o uso desta expressão é ainda mais significativo para a demarcação das diferenças
de posição assumidas por Foucault e pelos surrealistas neste contexto por se tratar de uma expressão
nietzschiana presente em livros como Humano, demasiado humano, Vontade de potência e destacadamente
em Assim falou Zaratustra: o terceiro discurso, intitulado no texto original como “Von den Hinterweltlern”
(NIETZSCHE, 1883) é traduzido em francês como “Les hallucinés de l’arrière-monde” [“Os alucinados do
trasmundo”] (NIETZSCHE, 1903). A tradução brasileira de Paulo César de Souza opta por “trasmundanos”
para Hinterweltler (o terceiro discurso da primeira parte se intitula ali “Dos trasmundanos”) e “trasmundo”
para Hinterwelt. Na edição de trechos das obras de Nietzsche publicada na coleção “Os pensadores”, o
tradutor Rubens Rodrigues Torres Filho optou por “ultramundanos” e “ultramundo”, acrescentando em
nota (NIETZSCHE, 1999, p.110; 215) que o termo possui uma “correspondência literal com o termo
‘metafísicos’, de origem grega, esses ‘habitantes do mundo de trás’”. De todo modo, fica patente mesmo
numa leitura rápida que Nietzsche, ao se referir aos “trasmundanos” o faz a partir de sua busca de
valorização das potências da vida e da crítica do que ele compreende como niilismo (Cf. NIETZSCHE,
2011, p.31-34).
25
“en faisant ces expériences, ils découvraient cet arrière-monde, cet au-delà ou en-deçà du monde et qui
était pour eux le fond de toute raison. Ils y reconnaissaient une sorte d’inconscient, collectif ou non”.
26
Nietzsche foi um autor que desempenhou uma influência central sobre a obra de Foucault. Aqui, para os
fins da argumentação que vimos desenvolvendo, gostaríamos apenas de chamar a atenção, seguindo
Roberto Machado (2005, p.24-26) para a influência do Nietzsche de O nascimento da tragédia sobre
Foucault. Machado destaca o paralelismo entre a concepção nietzschiana da tragédia naquela obra e a
experiência da loucura elaborada em HF, o que torna possível, bem entendido o sentido nietzschiano da
experiência trágica, falar em uma “experiência trágica da loucura”. Essa experiência trágica também orienta
sua reflexão sobre a arte e a literatura presente em seu livro: se, para o Nietzsche de O nascimento da
tragédia, a verdadeira arte é uma manifestação das potências da vida, da Vontade (compreendida em forte
consonância com a formulação de Schopenhauer, embora com algumas distinções), a loucura, em HF, na
medida em que é a expressão de uma experiência originária e possibilidade para a manifestação de uma
arte que extrapola os limites da pura expressão de conteúdos racionais, é uma expressão genuína do
“dionisíaco” tal como formulado pelo alemão. Para os fins da argumentação empreendida aqui, gostaríamos
de destacar outro aspecto daquilo que chamamos neste ponto de “premissas nietzschianas” de Foucault. A
própria concepção de escrita literária enaltecida por Foucault na obra de Roussel (o apagamento do autor
em favor da produção, a exaltação de uma linguagem que fala através do indivíduo) transparece em
formulações da relação entre a arte e o artista em O nascimento da tragédia: “só conhecemos o artista
subjetivo como mau artista e exigimos em cada gênero e nível da arte, primeiro e acima de tudo, a submissão
do subjetivo, a libertação das malhas do “eu” e o emudecimento de toda a apetência e vontade individuais,
sim, uma vez que sem objetividade, sem pura contemplação desinteressada, jamais podemos crer na mais
ligeira produção verdadeiramente artística” (NIETZSCHE, 2007, p.40). Nesta linha de raciocínio, é
possível, embora ao risco de uma extrapolação, perceber a reverberação deste eco do Nietzsche precoce
Foucault prossegue com seu raciocínio afastando o modo de fazer literário

dos membros do coletivo Tel quel da compreensão escrita que remete à subjetividade pura

do autor como fonte de sentido. Para Foucault, aqueles escritores não colocam as

experiências no domínio da psique, mas do que ele chama de pensamento. Dessa forma,

ele enfatiza seu próprio interesse por essa visão da literatura e da linguagem na condição

de filósofo. Assim, ele afirma que “para aqueles que fazem filosofia”27, o mais

interessante nesse contraste é que os autores com os quais se identifica tentam “manter

ao nível de uma experiência muito difícil de formular – aquela do pensamento – um certo

número de provas limite como aquelas da razão, do sonho, da vigília etc., de mantê-las a

esse nível do pensamento – nível enigmático que os surrealistas, no fundo, enfiaram em

uma dimensão psicológica”28. Em suma,

Vê-se claramente Foucault falando de temas que lhe são caros e de uma

perspectiva que é também a sua. Especialmente na sequência, quando ele ainda alinha os

autores do grupo Tel quel ao trabalho de Maurice Blanchot e Georges Bataille e também

atribui a este último uma teorização que, ao tematizar questões também postas pelo

surrealismo, foi além da abordagem dos surrealistas. Isto porque, na visão de Foucault,

“Bataille fez emergir das dimensões psicológicas do surrealismo alguma coisa que ele

chamou ‘limite’, ‘transgressão’, ‘riso’, ‘loucura’, para fazer experiências do

pensamento”29. Foucault poderia ter utilizado estas palavras para descrever seu próprio

trabalho, como de fato fez de maneira bastante aproximada no fim de sua carreira (Cf.

ainda na fase final de Foucault quando este formula sua resposta ética aos problemas políticos pelo recurso
a uma estetização da existência, remetendo à formulação nietzschiana de que “só como fenômeno estético
podem a existência e o mundo justificar-se eternamente” (NIETZSCHE, 2007, p.44).
27
“pour ceux qui font de la philosophie”.
28
“ maintenir au niveau d’une expérience très difficile à formuler – celle de la pensée – un certain nombre
d’épreuves limites comme celles de la raison, du rêve, de la veille, etc., de les maintenir à ce niveau de la
pensée – niveau énigmatique que les surréalistes avaient, au fond, enfoncé dans une dimension
psychologique”.
29
“Bataille a fait émerger des dimensions psychologiques du surréalisme quelque chose qu’il a appelé
‘limite’, ‘transgression’, ‘rire’, ‘folie’, pour en faire des expériences de la pensée”.
GSA, p.4). Para ele, está presente aí, em Bataille e no modo de fazer literatura

empreendido por Roussel, a própria questão: “o que é pensar, o que é essa experiência

extraordinária do pensamento? E a literatura, atualmente, redescobre essa questão

próxima mas diferente daquela que foi aberta recentemente pela obra de Roussel e de

Robbe-Grillet: o que é ver e falar?”30 (DE I, 22, p.366-367).

Assim, percebe-se em Roussel, não a expressão de uma subjetividade

autônoma pura, mas uma exploração da linguagem que evidencia seu caráter preexistente

e esta existência como condição de possibilidade para o próprio pensamento. Dito de

outra forma, em vez de uma escrita automática que revelasse os recônditos de um eu

subjetivo puro e mais livre, não subjugado pelas imposições da moralidade social, política

ou o que o valha, há uma sujeição ao próprio mecanismo da linguagem explorado através

de um procedimento rigoroso que pretende explorar essas possibilidades já dadas e que

antecedem e ultrapassam o indivíduo que se serve delas. Foucault evidencia este aspecto

da seguinte forma:

Eu creio ver aí não tanto uma escrita automática, mas a mais desperta de todas:
a que dominou ela própria todos os jogos imperceptíveis e fragmentários do
aleatório; que preencheu todos os interstícios por onde ele teria podido
insidiosamente deslizar; que suprimiu as lacunas, apagou os desvios, exorcizou
o não ser que circula quando se fala; organizou um espaço pleno, solidário,
massivo, onde as palavras não são ameaçadas por nada enquanto elas
permanecem sob a obediência de seu Princípio; erigiu um mundo verbal cujos
elementos de pé e cerrados uns contra os outros conjuram o imprevisto;
estatuificou uma linguagem que recusando o sonho, o sono, a surpresa, o
acontecimento em geral, pode lançar ao tempo um essencial desafio. Mas isso,
repelindo em bloco todo o acaso na origem daquilo que fala, sobre a linha ainda
silenciosa onde se desenha a possibilidade da linguagem. O que é essencial no
aleatório não fala através das palavras e não se deixa entrever a sua
sinuosidade; é a irrupção da linguagem, sua presença repentina: essa reserva
de onde surgem as palavras – esse absoluto recuo da linguagem em relação a
si mesma e que faz com que ela fale. Não é uma noite sulcada de luz, um sono
iluminado, ou uma vigília sonolenta. É a irredutível fronteira do despertar:
indica que no momento de falar as palavras já estão lá, mas que antes de falar,
não há nada. Aquém do despertar, não há vigília. Mas desde que o dia reponte,

30
“qu’est-ce que c’est que penser, qu’est-ce que c’est que cette expérience extraordinaire de la pensée ? Et
la littérature, actuellement, redécouvre cette question proche mais différente de celle qui a été ouverte
récemment par l’œuvre de Roussel et de Robbe-Grillet : qu’est-ce que voir et parler?”.
a noite se encontra diante de nós, explodida já em pedregulhos teimosos, dos
quais será preciso fazer nossa jornada31 (RR, p.53-54).

Percebe-se então que, para Foucault, se há algum mistério, é que haja

linguagem. Porém, a partir do momento em que a linguagem existe, ela se torna uma força

poderosa que permeia a vida humana. E a partir do momento em que ela existe, ela se

impõe como sistema, como um conjunto de símbolos organizados segundo regras

próprias em função desta própria organização.

Na linguagem, o único acaso sério, não é aquele dos encontros internos, é


aquele da origem. Acontecimento puro que está ao mesmo tempo na linguagem
e fora dela porque ele forma o limite inicial. O que o manifesta não é que a
linguagem seja o que ela é, mas que haja linguagem. E o Procedimento consiste
justamente em purificar o discurso de todos esses falsos acasos da ‘inspiração’,
da fantasia, da pena que corre, para colocá-lo diante da evidência insuportável
de que a linguagem nos chega do fundo de uma noite perfeitamente clara e
impossível de dominar. Supressão da sorte literária, de seus vieses e de suas
travessas, para que apareça a linha reta de um mais providencial acaso: aquele
que coincide com a emergência da linguagem. A obra de Roussel – e é uma
das razões pelas quais ela nasce na contracorrente da literatura – é uma
tentativa para organizar, segundo o discurso o menos aleatório, o mais
inevitável dos acasos”32 (RR, p.54-55).

31
“Je crois y voir non pas tellement une écriture automatique, mais la plus éveillée de toutes : celle qui a
maîtrisé elle-même tous les jeux imperceptibles et fragmentaires de l’aléatoire ; qui a comblé tous les
interstices par où il aurait pu insidieusement se glisser ; qui a supprimé les lacunes, effacé les détours,
exorcisé le non-être qui circule quand on parle ; organisé un espace plein, solidaire, massif, où les mots ne
sont menacés par rien tant qu’ils demeurent sous l’obédience de leur Principe ; dressé un monde verbal
dont les éléments debout et serrés les uns contre les autres conjurent l’imprévu; statufié un langage qui
refusant le rêve, le sommeil, la surprise, l’événement en général, peut jeter au temps un essentiel défi. Mais
ceci, en repoussant d’un bloc tout le hasard à l’origine de ce qui parle, sur la ligne encore silencieuse où se
dessine la possibilité du langage. Ce qui est essentiel dans l’aléatoire ne parle pas à travers les mots et ne
se laisse pas entrevoir à leur sinuosité ; il est l’irruption du langage, sa présence soudaine : cette réserve
d’où surgissent les mots – cet absolu recul du langage par rapport à lui-même et qui fait qu’il parle. Il n’est
pas une nuit sillonnée de lumière, un sommeil éclairé, ou une vieille assoupie. Il est l’irréductible frontière
de l’éveil ; il indique qu’au moment de parler les mots sont déjà là, mais qu’avant de parler, il n’y a rien.
En deçà de l’éveil, il n’y a pas de veille. Mais dès que le jour point, la nuit gît devant nous, explosée déjà
en cailloux têtus, dont il nous faudra bien faire notre journée”.
32
“Dans le langage, le seul aléa sérieux, ce n’est pas celui des rencontres internes, c’est celui de l’origine.
Evénement pur qui est à la fois dans le langage et hors de lui puisqu’il en forme la limite initiale. Ce qui le
manifeste ce n’est pas que le langage soit ce qu’il est, mais qu’il y ait du langage. Et le Procédé consiste
justement à purifier le discours de tous ces faux hasards de ‘l’inspiration’, de la fantaisie, de la plume qui
court, pour le placer devant l’évidence insupportable que le langage nous arrive du fond d’une nuit
parfaitement claire et impossible à maîtriser. Suppression de la chance littéraire, de ses biais et de ses
traverses, pour qu’apparaisse la ligne droite d’un plus providentiel hasard : celui qui coïncide avec
l’émergence du langage. L’œuvre de Roussel – et c’est une des raisons pour lesquelles elle naît á contre-
courant de la littérature – est une tentative pour organiser, selon le discours le moins aléatoire, le plus
inévitable des hasards”.
Linguagem, Literatura e liberdade

Um objeto sem sentido e finalidade como qualquer outro, apenas com um

funcionamento próprio. Esse aspecto da linguagem também evidencia outros elementos

do pensamento de Foucault: já que a linguagem é um sistema e que uma vez “dentro”

dela, é impossível não seguir as suas regras, inexoráveis, o modo como esta se organiza

é determinante do próprio pensamento. Ela é, nesse sentido, limitadora mas também

criadora de possibilidades. O fenômeno descrito por Foucault em sua abordagem

arqueológica da história das ideias sob o nome de “epistemes” (MC) diz respeito a esta

característica: são modos de organizar o mundo através de palavras, da inserção em um

modo particular e temporal de organizar as palavra e não em outro. A escrita literária, por

sua vez, no âmbito da linguagem, é uma manifestação da própria possibilidade de

liberdade do pensamento. A literatura de Roussel evidencia isto na medida em que ele

pretende com sua escrita “descobrir um espaço insuspeitado e recobri-lo com coisas

ainda nunca ditas”33 (RR, p.24-25).

Ao estabelecer uma nova perspectiva sobre a questão do sujeito, a arqueologia


também mapeia novas ideias de liberdade que não estão ligadas à ideia de um
sujeito fundador, sua natureza, iniciativas ou capacidades. A intenção é traçar
uma linha marcando os limites discursivos do pensamento e experiência de
uma época, e implicitamente portanto também questionar o que sai desses
limites (OKSALA, 2005, p.81).

Se a linguagem é, ao mesmo tempo em que criadora de possibilidades,

também limitadora, é porque ela mesma é limitada. A linguagem, ao mesmo tempo em

que oferece condições de possibilidades para a emergência de objetos do conhecimento

33
“découvrir un espace insoupçonné et le recouvrir de choses encore jamais dites”.
através da constituição de formações discursivas (AS), também oferece possibilidades

para a superação dessa limitação através de seu uso literário. Foucault identifica no

procedimento de Roussel, ao explorar as possibilidades dadas por esse recurso limitado

que é a linguagem, uma dupla vertente decorrente da identidade das palavras (“o simples

fato, fundamental na linguagem, de que há menos vocábulos que designam do que coisas

a designar”34). Por um lado, “ela revela na palavra o lugar de um encontro imprevisto

entre as figuras do mundo as mais distantes”35 e, por outro, “ela mostra um

desdobramento da linguagem que, a partir de um núcleo simples, se afasta de si mesma e

faz nascer sem cessar outras figuras”36 (RR, p.22-23). Foucault prossegue com este

raciocínio remetendo aos “gramáticos do século XVIII”, que, “em sua concepção

puramente empírica do signo, eles admiravam que uma palavra fosse capaz de se

desprender da figura visível à qual ela era ligada por sua ‘significação’, para ir se colocar

sobre uma outra, designando-a em uma ambiguidade que é ao mesmo tempo limite e

recurso”37.

Assim como com o procedimento descrito por Roussel, Foucault aqui chama

a atenção para o fato de uma mesma palavra poder designar vários objetos, uma palavra

para várias “coisas”. Por isso, a conexão de uma palavra “com o que ela diz pode se

metamorfosear sem que sua forma tenha que mudar [...] traçando ao redor de um ponto

fixo todo um círculo de possíveis (o ‘sentido’ da palavra como se dizia então), e

permitindo acasos, encontros, efeitos, e todos os labores mais ou menos concertados do

34
“le simple fait, fondamental dans le langage, qu’il y a moins de vocables qui désignent que de choses à
désigner”.
35
“elle révèle dans le mot le lieu d’une rencontre imprévue entre les figures du monde les plus éloignées”.
36
“elle montre un dédoublement du langage qui, à partir d’un noyau simple, s’écarte de lui-même et fait
naître sans cesse d’autres figures”.
37
“dans leur conception purement empirique du signe, ils admiraient qu’un mot fût capable de se détacher
de la figure visible à laquelle il était lié par sa ‘signification’, pour aller se poser sur une autre, la désignant
dans une ambiguïté qui est à la fois limite et ressource”.
jogo”38. Por fim, Foucault ainda aponta para o que ele, a partir da menção ao gramático

Dumarsais, denominou de sentido “tropológico”, que definiria aquilo que são os “tropos”

da linguagem. Ora, um “tropo” é apenas a utilização de uma palavra em um sentido

figurado. Mas aqui, a partir da descrição de Dumarsais e da apropriação do texto deste

por Foucault, o “tropo” se torna uma característica essencial, constitutiva da linguagem.

Assim, Foucault chama a atenção para o fato de que é daí, dessa possibilidade do sentido

figurado, do “jogo” entre palavra e significados, “deste espaço de deslocamento que

nascem todas as figuras da retórica[...]: catacrese, metonímia, metalepse, sinédoque,

antonomásia, litotes, metáfora, hipálage39 e muitos outros hieróglifos desenhados pela

rotação das palavras no volume da linguagem”40 (RR, p.23-24).

Todas essas e outras figuras de linguagem evidenciam, portanto, na visão de

Foucault, os aspectos que vimos discutindo. Sua própria existência é reveladora da

38
“son lien à ce qu’il dit peut se métamorphoser sans que sa forme ait à changer […] traçant autour d’un
point fixe tout un cercle de possibles (le ‘sens’ du mot comme on disait alors), et permettant hasards,
rencontres, effets, et tous les labeurs plus ou moins concertés du jeu”.
39
As figuras de linguagem mencionadas por Foucault fornecem exemplos destes aspectos da linguagem
discutidos, elas consistem em inúmeros modos de jogar com a limitação dos símbolos e a pluralidade de
sentidos. A seguir, uma breve descrição de cada uma delas a fim de elucidar as diferentes formas desse
“jogo” intrínseco às possibilidades dadas pela linguagem conforme descrito por Foucault: “Catacrese”:
figura de linguagem na qual uma palavra tem o sentido alterado ampliando seu sentido através de recurso
analógico (por exemplo: pé de mesa, embarcar em um avião, dente de alho); “metonímia”: a partir da
proximidade entre ideias, explora-se esta relação, usando uma palavra em um contexto semântico que não
aquele para o qual ela é comumente empregada, como quando se descreve a causa pelo efeito (acender a
luz, quando o que se faz é apertar um botão), o conteúdo pelo continente ou vice-versa (beber um copo), o
autor pela obra (ler Foucault); “metalepse”: variedade de metonímia na qual se toma a consequência pela
causa ou vice-versa (por exemplo: “suor do rosto” para designar o esforço empreendido em uma tarefa);
“sinédoque”: figura consistente na atribuição de um termo originalmente mais limitado a um fenômeno
mais amplo, como a parte pelo todo (cinco cabeças de gado), o singular pelo plural (compreender o outro),
ou o gênero pela espécie (o homem causa a mudança climática); “antonomásia”: figura de linguagem na
qual se substitui o nome de um objeto ou pessoa por uma palavra constituindo um epíteto ou uma qualidade
do ser nomeado (por exemplo: Aristóteles por “o estagirita”, Cristo por “o redentor”, o jogador Ronaldo
por “o fenômeno”, um homem velho por “Matusalém”); “litotes”: figura de linguagem que consiste em
atenuação, dizendo algo de forma econômica mas visando significar mais (por exemplo, “não foi fácil
chegar”, para dizer que foi muito difícil); “metáfora”: figura de linguagem em que uma palavra é tomada
para designar outra coisa tendo por suposta a sugestão de uma analogia ou semelhança (por exemplo: dormir
como uma pedra, bela como uma rosa, alma de um povo); “hipálage”: transposição de uma qualidade
comumente pertencente a uma palavra a outra criando uma transposição de sentidos (por exemplo, “um
livro sonolento”, “dia preguiçoso”). Para todas as figuras de linguagem descritas, Cf. HOUAISS, 2001.
40
de cet espace de déplacement que naissent toutes les figures de la rhétorique […]: catachrèse, métonymie,
métalepse, synecdoque, antonomase, litote, métaphore, hypallage et bien d’autres hiéroglyphes dessinés
par la rotation des mots dans le volume du langage”.
quantidade limitada de signos que temos para designar todos os objetos da realidade. Isto,

por sua vez, seria revelador do caráter eminentemente linguístico ou discursivo da

constituição dos objetos de saber. Se o ordenamento da realidade no campo do

conhecimento se faz através da linguagem, como vimos na seção anterior, e se a

linguagem é um fenômeno humano ao mesmo tempo constrangente e limitado, é possível

falar em liberdade nesse âmbito? Não seria o caso de se falar apenas em determinações

da linguagem? Ou sobre a forma como a linguagem, com suas regras e limites definidos,

determina o próprio pensamento? Embora possa parecer estranho à primeira vista, o fato

é que a concepção de liberdade avançada por Foucault diz respeito ao jogo com as

condições de possibilidades dadas pela realidade. Se a realidade é constituída de uma

forma determinada, por exemplo, regida por regras restritivas (embora para um dos polos

da discussão filosófica clássica entre liberdade e determinismo o fato de haver leis

científicas, por exemplo, evidenciariam o caráter não livre das ações humanas), o mesmo

se dá no âmbito do discurso e do pensamento. Além disso, a própria ordem discursiva das

coisas não é capaz de abarcar a totalidade da experiência. Como conclui Oksala, “O que

é importante em conexão com um entendimento diferente de liberdade é que Foucault lê

a obra de Roussel como um esforço para capturar o que está fora da ordem discursiva das

coisas por meio da linguagem”. Por isso, se é possível falar em liberdade nesse âmbito,

aparece de forma evidente que “A tarefa da literatura de vanguarda era então nem tanto

criar uma ordem ontológica alternativa – outro mundo – mas mostrar a instabilidade da

ordem das coisas que nós tomamos como certas” (OKSALA, 2005, p.84).

As reflexões de Foucault em RR também mostram aspectos chaves para o

entendimento das concepções mais amplas de Foucault acerca do conhecimento e da

realidade, que estão em profunda relação com as ideias do filósofo acerca da linguagem

e da liberdade. Embora Foucault ressalte em sua entrevista (DE II, 343, p.1426) que o
livro sobre Raymond Roussel tenha sido um livro à parte em sua obra, Macherey (1999,

p.VIII) chama a atenção para o fato de que “seu ‘encontro’ com Roussel representou,

reciprocamente, uma etapa importante no desenvolvimento de sua própria reflexão”.

Como destaca Macherey, o livro de Foucault sobre Roussel se insere no contexto do

“começo do período das grandes querelas que marcam uma completa renovação das

maneiras de pensar e de escrever herdadas do imediato pós-guerra”. Esta publicações

tinham como principal características colocar, simultaneamente, em questão, o “realismo

narrativo”, as “filosofias do sujeito”, as “representações continuístas do progresso

histórico”, a “racionalidade dialética” etc. (MACHEREY, 1999, VIII).

Além disso, Macherey situa a obra de Foucault sobre Roussel em relação com

os demais trabalhos do próprio Foucault, tanto no que diz respeito aos trabalhos situados

no contexto imediato quanto aos trabalhos anteriores e posteriores de sua obra. Macherey

destaca que ao ler a obra de Foucault, é possível situar sua reflexão sobre Roussel “em

algum lugar no interior do percurso que o conduziu de uma interrogação […] sobre as

condições nas quais o saber positivo da medicina elaborou […] uma representação da

‘doença mental’” até “uma interrogação mais geral concernindo às condições de

possibilidade de um conhecimento positivo do homem normal e, para além disso, do saber

como tal, portanto, do exame das condições de produção de uma anormalidade àquele das

condições de produção da normalidade”. Dessa forma, continua Macherey, ao livro Folie

et déraison (HF) “o livro sobre Raymond Roussel liga-se, assim, pela confirmação que

ele traz, ao menos negativamente, ao tema da loucura interpretada como a ausência de

obra, ao mesmo tempo que prepara à sua maneira As palavras e as coisas pela reflexão

que consagra aos problemas da linguagem, e à suspensão fundamental com relação à

realidade ‘objetiva’ que comporta seu uso” (MACHEREY, 1999, IX-X).


Deve-se também chamar a atenção para a publicação simultânea do livro

Naissance de la clinique (NC) e seu prefácio metodológico, considerado anteriormente.

Macherey atenta para o fato de que o livro de Foucault sobre a medicina “chegava a

considerações referentes ao problema da relação entre a linguagem e a morte que

recortavam de maneira manifesta as desenvolvidas na obra sobre Roussel em torno deste

mesmo tema” (MACHEREY, 1999, X). Já em relação ao prefácio de Naissance de la

clinique, Macherey vê um nexo entre as reflexões estabelecidas no livro sobre Raymond

Roussel e a crítica de Foucault ao comentário como modo de abordagem de textos. Mas

Macherey também chama a atenção para possíveis problemas ou ambiguidades sobre essas

reflexões de Foucault: ao mesmo tempo em que Foucault problematiza o uso do comentário,

dada sua pressuposição de um sentido oculto no texto e a possibilidade enunciação de outro

discurso a partir de um primeiro, ele fazia uma espécie de comentário à obra de Roussel.

Assim, pondera Macherey:

Mas não é precisamente o que o próprio Foucault fazia escrevendo um livro


sobre um ‘autor’, Raymond Roussel, remetido ao conjunto supostamente
unificado de sua ‘obra’ e sustentando-a com a força concedida a seu projeto?
Foucault, que só escreveu, aliás, este único livro ordenado em torno do título
a que ele empresta um nome próprio, teria podido cometer este inacreditável
equívoco: produzir um comentário, no momento em que demonstrava o que
existe de profundamente insatisfatório numa tal abordagem? Esta interrogação,
à qual é impossível escapar, pode ao menos sugerir um modo de leitura do
Raymond Roussel que estaria apoiado no princípio seguinte: precisamente, este
livro não propõe um comentário, segundo a forma tradicional das obras de
crítica literária, mas diz respeito a uma abordagem de natureza completamente
diferente (MACHEREY, 1999, X-XI).

Mas que abordagem de natureza diferente poderia ser essa? Diferentes respostas

poderiam ser elencadas. Aqui, oferecemos duas que consideramos principais e que se ligam

intrinsecamente. A primeira é que, em consonância com sua rejeição e crítica à prática do

comentário, Foucault não faz em RR um “comentário” à obra de Roussel. Diferente disso,


ele se apoia na literatura de Roussel para elaborar seu próprio pensamento. A obra de

Roussel, nesse sentido, é a experiência linguística a partir da qual Foucault cria suas

próprias reflexões. Em vez de um trabalho de revelação de um sentido subjacente, o

estabelecimento de uma experiência e a conformação de um pensamento original.

A segunda diz respeito à própria ideia de experiência. Macherey pensa que o

que chama de abordagem diferente daquela do comentário esteja contida na noção

foucaultiana de “experiência”. Para ele, esta noção ajuda a compreender o empreendimento

de Foucault ao escrever seu Raymond Roussel. Ele afirma que a noção de experiência, na

verdade, “poderia esclarecer, através de suas variações, toda a obra de Foucault, que,

partindo em 1961 de um estudo consagrado às ‘experiências’ da loucura, interrompeu-se

em 1984 com uma série de publicações consagradas às ‘experiências’ da sexualidade”

(MACHEREY, 1999, XI). De fato, o próprio Foucault, como já salientamos em outro

trabalho (CANDIDO, 2013, p.14-16), em um de seus últimos cursos no Collège de France

(CV, p.4), descreveu seus esforços, em retrospectiva, como uma “História do pensamento”.

Ele caracterizou esta “História do pensamento” como uma tentativa de articular os “lugares

da experiência”. Ou ainda, na “Introdução” do segundo volume de sua Histoire de la

sexualité [História da sexualidade] (HS II), onde Foucault evidencia seu projeto de “ver

como, nas sociedades ocidentais modernas, uma ‘experiência’ foi constituída, de maneira

que os indivíduos tiveram de se reconhecer como sujeitos de uma sexualidade” 41. Nesta

ocasião, Foucault define sua noção de experiência como “a correlação, em uma cultura,

entre domínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”42 (HS II, p.10).

A ideia de experiência, conforme entendida por Foucault, consiste numa

ficção (CV, p.4). Foucault compreende “ficção” em um sentido amplo: uma ficção é uma

41
“voir comment, dans les sociétés occidentales modernes, une ‘expérience’ s’était constituée, telle que les
individus ont eu à se reconnaître comme sujets d’une ‘sexualité’”.
42
“la corrélation, dans une culture, entre domaines de savoir, types de normativité et formes de
subjectivité”.
fabricação, uma invenção (Cf. O’LEARY, 2012; GUTTING, 2002). É importante chamar

a atenção para este sentido, que se afasta do significado corrente pelo qual a palavra é

tomada, o sentido de fantasia, mentira. Esse sentido corrente também se define pela sua

oposição a algo como “real”, “verídico”. Esta oposição está bastante distante daquilo que

Foucault compreende por ficção. Em especial, porque em Foucault esta distinção não

existe: para ele, tudo o que concerne à experiência humana, possui um aspecto ficcional,

no sentido de que se tratam de invenções, de fabricações históricas contingentes, não

necessárias, produto de circunstâncias diversas cujo nexo com as nossas formulações

existe apenas na condição de uma prática que permite uma relação com estas mesmas

circunstâncias43.

Não por acaso, como chama a atenção Oksala (2005, p.81-89), Foucault viu

na literatura uma possibilidade para a liberdade. A literatura, definida por uma relação

livre com as palavras, isto é, através da composição livre, sem compromissos predefinidos

com nenhum tipo de realismo ou representacionalismo, era compreendida por Foucault

neste momento de sua obra como um meio privilegiado para a liberdade. O que Foucault

enfatiza em Raymond Roussel, é justamente a forma como a linguagem é explorada pelo

autor título do livro, a possibilidade de experimentar, de criar novas experiências através

da linguagem, criando, com isso, novas possibilidades subjetivas, experienciais, diríamos,

ao fim e ao cabo, existenciais. Assim, afirma Foucault que “há uma modificação de seu

modo de ser que é visada através do fato de escrever. É esta modificação de seu modo de

ser que Roussel observou e procurou, ele acreditava nela e ele a sofreu horrivelmente”44

(DE II, 343, p.1424).

43
Para mais sobre a importância da noção de “experiência” na obra de Foucault, Cf. GUTTING, 2002;
LEMKE, 2017, p.82-83; O’LEARY, 2012.
44
“Il y a une modification de son mode d’être qu’on vise à travers le fait d’écrire. C’est cette modification
de son mode d’être que Roussel observait et cherchait, il croyait en elle et il en a horriblement souffert”.

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