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DELEUZ
"automovimentos" envolvendo a identidade contemporânea
de uma certa idéia da filosofia.
UMA VIDA
FILOSOFICA
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Éric A!!iez

Coordenação da tradução dé
Ana Lúcia de Oliveira

coleção TRANS

ag 192523

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88573"26 1660'
editoral 134 editoral 134
Evitar a dupla ignomínia do erudito e do coleção TRANS
familiar. Conferir a um autor um pouco des-
sa alegria, dessa força, dessa vida amorosa e
política, que elesoube dedicar, inventar...
A célebre frase de .Deleuze definindo o
duplo requisito exigido para se escreverso-
bre um autor pode servir de epígrafe a este
livro coletivo, publicadona França em 1998,
fruto do Colóquio Gilles Deleuze, que acon-
teceu no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo,
10 a 14 de junho de 1996) com o apoio do
Colégio Internacional de Estudos Filosóficos
Transdisciplinares.
Que esteColóquio tenha ocorrido no Bra-
Eric Alliez (org.)
b
sil não é mero acaso. Porque a seu tempo ma
nifesrou-se a extraordinária vitalidade do pen-
samento deleuzeanonestepaís; mas também,
e sobretudo, nas intervenções e nas discussões GILLES DELEUZE:
UMA VIDA FILOSÓFICA
que se seguiram, este Colóquio testemunhou
uma compreensão bastantesingular das in-
serções rezzls da filosofia contemporânea na-
quilo que constitui sua única tarefa: pensar
o presente.
É neste espírito que os 34 colaboradores
Coordenação da tradução
nos fazem partilhar da profunda simpatia in- Ana Lúcia de Oliveira
telectual que os liga à z/ida#/osóPca de Gilles
Deleuze. Suas intervenções estão agrupadas
em quatro seções: "Variações filosóficas",
História e devir da filosofia ", "Política e clí-
nica", "Variedades estéticas" . Todos os gran-
des temas do pensamento deleuzeano serão
retomados em ação: da filosofia como cr/a-
não de conceffos, introduzindo uma aborda-
gem inédita na história da filosofia, à noção
de uma /manência aliso/afa como "vertigem
filosófica", que equivale à mobilização de
uma nova inteligência política; das condições
c algas e c/!'Migas
de uma filosofia do aconte-
cimento ("dizer o acontecimentoe não a es-
sência") à necessáriaaproximação da filoso-
fia com relação às ciências e às artes..

editoraH34
Pois, com Deleuze, trata-se sempre de ex-
perimentar as potênciasde uma nova política
EDITORA 34 GILLES DELEUZE:
Editora 34 Ltda.
UMA VIDA FILOSÓFICA
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 816-6777 editora34@uol.com.br
Apresentação 11

Copyright © Editora 34 Ltda. (edição brasileira), 2000


Gf//es De/euze. Une z/iep#i/osopblqwe © Institut Synthélabo -- pour le progrês
de la connaissance, Le Plessis-Robinson, 1998 Primeira Parte
\r A D TA r-I3FÇ FTT Í)ÇÍ$FIÍ' AÇ
V Z LX\ZAL\5J\-/DU X XUVUVX XVX XU
Cet ouuTage, public dons te cante du pTogtamme de participation à ta
publicatton, bénéficie da soutien du Ministàre ffançais des Affaires F{OÀ40 TANTUM. O IMPESSOAL: UMA POLÍTICA
Etrangêres, de I'Ambassade de France a% Brési! et de ta Maison fvançaise de René Schérer 21
Rio de lareira.
Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação, DELEUZE E A ANOMALIA METAFÍSICA
contou com o apoio do Ministério francês das RelaçõesExteriores, da Arnaud Villani .......................................... 39
Embaixada da França no Brasil e da Maison française do Rio de Janeiro. LINHAS OE AÇÃO DA OIFERENÇA
Luiz B. L. Orlandi 49
A FOTOCÓPIADE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL) E CONFIGURA UMA
APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS IN'lELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. UMA REVIRAVOLTA NO PENSAMENTODE DELEUZE
José Gil ............. 65
Capa, prometográfico e editoração eletrânica:
. «\:: ''\ 0 TEMPO NÃ0-RECONCILIADO
Bracbev ó' Malta P adução Gráfica Peter Pál Pelbart 85
\.
Revisão: 0 OLHO DO FORA
Cartas Incida
Jean-Clet Martin ...................... 99
mean-aves Penicaut
DOBRA DELEUZEANADO PENSAMENTO
À4zzgn(j/laCosia
Jean-Luc Nancy 111
9
I' Edição - 2000 0 COPO DE DADOS DO SENTIDO
119
©

G François Wahl
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Liv DA VIDA COMO NOME DO SER
IFundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Alain Badiou 159
q
Alliez, Éric '=
A IMANÊNCIA ABSOLUTA
A41g Gilles Deleuze: uma vida filosófica/ Éric
>
Giorgio Agamben 169
Alliez(org.); coordenação da tradução de Ana
Lúcia de OliveÍ?a. -- São Pauta: Ed. 34, 2000 a
g
560 p. (Colação TRANSE
3
ISBN 85-7326-166-8

Tradução de: Gilles Deleuze. Une vie philosophique


Ü g Segunda Parte
HISTÓRIA E DEVIR DA FILOSOFIA
3
1. Filosofia. 1. Deleuze, Gilles. 11.Título. Ü

111. Série. DELEUZE SOBRE HUME


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CDD - 1(44) Déborah Danowski 195


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0 TRANSCENDENTALE SUA IMAGEM ESQUIZOANÁLISEE AI nROPOFAGIA
Gérard Lebrun ......-.-''''''''''''''''''. 209 Suely Rolnik 451
DELEUZE E SUA SOMBRA 0 OS SIGNOS E SEUS EXCESSOS. A CLÍNICA EM DELEUZE
Scarlett Marton 235 Joel Birman ........ 463
SOBRE O BERGSONISMO DE DELEUZE HETEROGENEIDADE DELEUZE-LACAN
Éric Alliez .................................................. 245 Eduardo A. Vidal .............. 479
DO CAMPO TRANSCENDENTAL AO NOMADISMO
OPERÁRIO WILLIAM JAMES
David Lapoujade 267 Quarta Parte
A PERCEPÇÃO EM SARTRE E Dn.EUZE
VARIEDADES ESTÉTICAS
Véronique Bergen 279
A IDÉIA DE "PLANO DE IMANÊNCIA" A PROPÓSrro OE UM CURSO OO DIA 20 0E MARÇO OE 1984
307 0 RiTORNELO E O GALOPE
Bento Prado Jr. 495
Pascale Criton ..........
ENTRE DELEUZE E WHITEHEAD
323 EXISTE UMA ESTÉ'nCA OEI.EUZEANA?
lsabelle Stengers
Jacques Ranciêre 505
MICHAUX, DELEUZE
Terceira Parte Raymond Bellour .......... 517
POLÍTICA E CLÍNICA BARROCOLÚDIO DELEUZEANO
Haroldo de Campos 525
DELEUZE E O POSSÍVEL (SOBRE O INVOLUNTARISMO O CINEMA DO PENSAMENTO. PAISAGEM, CIDADE E
NA P01.ÍTICAI CYBERCIDADE
François Zourabichvili .... 333 André Parente .. 535
A SOCIEDADE MUNDIAL DE CONTRAI,E
CINEMA DELEUZE
Michael Hardt 357 545
Julgo Bressane
OS DUALISMOSHOJE EM DIA
Fredric Jameson ...............-......-...................... 373
REVISITANDO "OS INTELECTUAIS E O PODER" Sobre os autores 549
Renato Jahine Ribeiro 385
EXISTE UMA INTELIGÊNCIA DO VIRTUAL?
John Rajchqan 397
CÓDIGO PRIMITIVO -- CÓDIGO GENÉTICO:
A CONSISTÊNCIA DE UMA VIZINHANÇA
Laymert Garcia dos Santos......-. 415
OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E O
PERSPECTIVISMO AMERÍNDIA
Eduardo Viveiros de Castão .... 421
A maior parte das contribuições que compõem esta obra coleti-
va foram apresentadas durante o Colóquio Gilles Deleuze, organiza-
do no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em junho de 1996,
pelo Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares.
Este Colóquio teve o apoio do Ministério de Assuntos Estrangei-
ros, da Embaixada da França em Brasília, do Consulado Geral da
França no Rio de Janeiro, da DelegaçãoGeral da Aliança Francesa no
Brasil, do Colégio Internacional de Filosofia, da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, da Fo/ba de S. Pau/o e da Editora 34.
À primeira coletânea de textos, acrescentamos as intervenções dos
autores que não puderam se deslocar ao Brasil, assim como alguns ar-
tigos redigidos tendo em vista esta publicação.*

* Trata-se das intervenções de Pascale Criton, Rena Schérer, Arnaud Villani,


Alain Badiou e François Wahl. Agradecemos a Jean-Clet Martin e François Proust
a oportunidade de publicar o texto de François Wahl.
O texto enviado por Raymond Bellour foi extraído de sua Introdução às
Obr.zs como/elas de Henri Michaux, da coleção Pléiade, das Edições Gallimard.
APRESENTAÇÃO
Éric Alliez

Meu ideal, quando escrevo sobre um autor, seria


nada escrever que Ihe pudesse causar tristeza ou, caso es-
teja morto, que o fizessechorar emsua tumba: pensar no
autor sobre o qual se escreve. Nele pensar tão intensamen-
te que ele não possa mais ser um objeto, que tampouco
seja possível identificar-se com ele. Evitar a dupla igno-
mínia do erudito e do familiar. Reconduzir a um autor
um pouco dessaalegria, dessa força, dessa vida amorosa
e política que ele soube dar, inventar [...]
IGilles Deleuze)

No prolongamento dos Encontros Internacionais Gilles Deleuze


organizados no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em junho
de 1996, a publicação desta obra apresenta-secomo uma primeira
homenagem coletiva prestada a um pensamento que não cessou de
recolocar em jogo sua própria atualidade a partir da necessidadede
pensar de outro modo". Ora, essa alteridade é antes de tudo a de um
movimento de pensamento que, se não basta dizê-lo para (re)fazê-lo
jde outro modo...), por isso mesmo impedia de antemão qualquer
veleidadecomemorativa que a pretexto do desaparecimentodo filó-
sofo pudesse definir, em uma cerimónia ou reunião, as condições psi-
cológicas de uma nova ortodoxia segundo o critério da proximidade
imediata, da afinidade seletiva. .. Exilar a dup/a fgnomi'nia do er dffo
e do Áami/laf', escreve Deleuze.
Pode-sedizer, então, que este livro não é um trabalho de luto,
que se sabe que "o não-luto requer ainda mais trabalho. .." e que aqui
não se encontrarão coligidas as aras de um colóquio reunindo o cír-
culo dos intérpretesautorizados (ou supostamenteautorizados), mas
um conjunto de contribuições emanando de campos disciplinares di-
versos, de contextos culturais e filosóficos contrastantes, de línguas
diferentes, que talvez só tenham em comum -- afora, o que não é pou-
co, nesse"período muito fraco [...] de reação", uma profunda sim-

Gilles Deleuze:Uma Vida Filosófica 11


paria intelectual de seus autores pela ufda »/osó/zca de Gilles Deleuze e que impõem um novo recorte às coisas e às ações". Ela se opõe em
haverem sido marcadas pelo sentimento de viva urgência desse pen- todos os pontos ao prometode uma filosofia da história, por haver des-
samento dissidente. coberto no devir a condição mesma da filosofia, que não conhece outro
Apesar da extraordinária diversidade dos itinerários de aborda- princípio além daquele de uma razão contingente, e no virtual, distin-
gem e dos meios de investigação aqui propostos, eu me arriicaria a guido de suas formas de atualização, uma maneira de problematização
declinar sua atualidade, a mínima, em três pontos -- como "cristali- do movimento infinito do Entre-Pensamento-- no "ponto singular em
zações" ou "automovimentos" envolvendo a identidade contemporâ- que o conceito e a criação se reportam um ao outro" para contra-efe-
nea de uma certa ideia da filosofia. tuar o acontecimento (em que casos, onde e quando, como etc.).

Primeiro pomo, de implicação da imagem deleuzeana do pen- Seguzzdoponto, ou segundaentrada: a questão da imanência
samento: como "vertigem filosófica" e como aquilo que está em jogo no traba-
Se o pensamento não é nada sem as forças efetivas que agem so- lho filosófico enquanto tal.
bre ele e as in-determinações afetivas que nos forçam a pensar, e nes- Será preciso lembrar o título do último texto publicado em vida
se sentido o pensar se dá no infinitivo (e não na primeira pessoado por Deleuze, "A imanência: uma vida. .."? Ele constitui uma espéciede
indicativos, esse infinitivo é do presente. No campo da filosofia, pen- testamentofilosófico, como que um diagrama que concentra o primeiro
sar é, no mesmo movimento, afirmar a identidade constituinte da fi- e o último pensamentosde Deleuze sobre uma imanência que convoca
losofia e da ontologia, e pâr essa ontologia como oncologia experimen- o transcendental para opâ-lo ao transcendente e a toda forma dada no
tal do presente. Produzindo efetivamente esse movimento, revestimo- campo da consciência, à transcendência do sujeito, assim como à do
nos do poder de pensar "de outro modo", sem fazer uso do conceito objeto. Uma imanência absoluta, ontológica, e não fenomenológica ou
como heterogênesedo ser no "automovimento do pensamento". Pois crítica, que impede de conceber o campo transcendental à imagem e se-
o que pode significar pensar, para um filósofo, senão criar os novos melhança do que se supõe que ele funda, e que, exprimindo sua de-
conceitos requeridos pela eicpe7'fê?zela
rea/, e não apenas possível (isto terminabilidade como uma vida singular em que a indeterminação da
é, abstrata), para dar lugar a novas experimentações da vida? Que se pessoa supõe a determinação pré-individual do singular, exclui também
possa, que se deva aqui evocar a idéia de um "Pensamento 68" e as- toda transcendência do ser ainda que imanente a uma subjetividade
sociar ao nome de Deleuze o de Foucault só desagradará àqueles que transcendental. . . Eu não poderia garantir que essa tese, em sua exigente
querem crer que os Acontecimentos se passam antes na cabeça dos radicalidade, seja compartilhada pelo conjunto dos participantes; mas
intelectuais... Daí, também, o tema do "fim da filosofia" ter sempre creio poder afirmar que todos reconheceriam que a questão da existência
provocado em Deleuze um risinho sarcástico, e sua alegada "ingenui- mesma de uma filosofia contemporânea é (re)colocada em jogo por esse
dade" metafísica ser a de um materialismo superior (ou materialismo salto em relação a todo cartesianismo epistemológico ou existencial.
especulativo)l cuja modernidade repousa -- de maneira muito clássi- Tampouco é indiferente ao nosso propósito que essa afirmação de uma
ca -- sobre a questão da produção do novo. Em suma, nada menos imanência absoluta envolva uma nova inteligência do político, ou do
pós-moderno do que a definição deleuzeana da filosofia como criação biopolítico, irredutível à noção tradicional de filosofia política.
de conceitos. .. Segue-seuma concepção da história da filosofia como
Te coiro e ú/limo ponto: a filosofia deleuzeanafunciona como um
"reprodução da própria filosofia", concepção na qual "a força de uma
operador de desencraz/ózmenfoda filosofia contemporânea diante de um
filosofia é medida pelos conceitos que ela cria, ou cujo sentido renova, mundo filosófico que, decerto, por muito tempo se acomodou à sua
divisão geo-histórica em dois blocos(fenomenológico e analítico), mas
1 0 Departamento de Filosofia da Universidade de Warwick acaba de orga- diz respeito igualmente às ciências e às artes, que recuperam sua plena
nizar um simpósio em torno dessa temática "materialista": DELEUZEGUATTARI autonomia de pensamento desde o momento em que a filosofia não é
& MIATTER j18-19 de outubro de 1997)- mais concebida a partir dos efeitos do domínio de uma re/loção sobre.

12 Éric Alliez jorg.) Gilles Deleuze;Uma Vida Filosófica 13


Não sendo mais reflexivo, mas criador de verdades, dominando as po- novação da questão da filosofia, na relação inédita que ela se ponha a
tências do "fora" que ele se empenha em captar e em individuar na forma estabelecer de modo constlfutlz/o com seus "outros" para formar "blo-
de "idéias vitais" e de conceitos cuja função é a de "dizer o aconteci- cos de devir" que deslocam suas territorialidades de origem, e para
mento (e não mais a essência)", o filósofo passa por toda uma série de experimentar as potências de uma nova política do saber que poderia
operações, de processos e de variações que o levam a travar novas alian- inverter a imagem dogmática do pensamento que toma as coisas pelo
ças e a "fabricar seus intercessores" nos pontos de interferência ou de "meio". Com uma política do ser, mais do que uma metafísica, uma
ressonância com certas linhagens científicas ou artísticas. Fazendo des- política das ciências, mais do que uma epistemologia, uma política da
filar o conjunto da história do cinema na tela escura de Malérla e me- sensação,mais do que uma estética, uma política do inconsciente, mais
mória, os dois livros sobre a Imagem-movimento e a Imagem-tempo são do que uma psicologia, uma micropolítica do desejo, em vez de uma
exemplares a esse respeito, tanto para a história da filosofia como para psicanálise, uma política da língua e uma pragmática, mais do que uma
a do cinema -- como uma prática filosófica transdisciplinarque não linguística dos signos, uma ética dos devires, mais do que uma filoso-
sepoderá aproximar de novos objetos, como o pensamento-cinema,se- fia política... e, portanto, associada a uma ecologia espec /afina das
não impedindo-se de a eles aplicar de fora, por analogia ou metáfora, práflms3, toda uma política da filosofia, para "resistir ao presente" e
conceitos vindos de outro lugar. . . ( "Conceitos próprios ao cinema, mas "inventar novas possibilidades de vida
que não podem ser formados senão filosoficamente." ) Mas é por certo Prova da capacidade de intervenção desse construtivismo siste-
com À4i/P/dós, escreve Félix Guattari(que é igualmente, esquece-se com mático, assistimos em seus domínios "tropicais" à multiplicação de
demasiada frequência, co-autor de O qne é a Piloso/ia?), que Deleuze grupos de estudo e de cursos informais reunindo um público hetero-
se coloca no ponto de encontro de todas as multiplicidades, de todas gêneo cuja formação filosófica não era necessariamentea caracterís-
as formas concretas e de todos os modos de expressão possíveis para tica principal. E o mais surpreendente,nessecontexto, é que a maior
que a filosofia red#zlda [dé-ma/flp/íée] percorra uma "linha de fuga' parte dessesgrupos tenha com mais frequência se afastado de toda
que determine num mesmo movimento um novo P/ano de composição facilidade "pop-filosófica" para se empenhar no estudo dos textos mais
para o pensamento ("Faça rizoma. . . ") e uma feorla dos age/zclamenlos "especulativos"(Dláe7'onçae repetição-- Ldglca do senfldo) e dos mais
para um mundo dramatizado, a partir de nossos devires mais atuais, "históricos" (SPlnom, Nlelzscbe, Lefb?zlz...) da obra de Deleuze. Não
pela "desterritorialização do homem". que se trate de propor um estudo desses textos que reproduza de um
Que seja o mapa de um novo mundo que possa fazer rimar pen- modo derivado (e inevitavelmentecego) as regras mais acadêmicas da
samento da univocidade e teoria das multiplicidades, filosofia da vida história "departamental" da filosofia, mas de fazê-los funcionar segun-
e filosofia do conceito. Uma rima que eu diria onfoefo/(igica.
Foucault e de Félix Guattari, muito presentenestepaís até seu desaparecimento
Por diversas razões excepcionais, a recepção de Deleuze no Bra: em 1992. Sua prática teórica do inconscientefundada numa ecologia social mar-
sil, ultrapassando os muros da Universidade desde o início dos anos cou profundamente os meios "psi" em ruptura com o lacanismo. Disso se poderá
80, deve muito a esse efeito de diagnóstico multipolar cuja potência encontrar mais de um eco na presente publicação.
performativa situa o autor decididamente fora dos campos de referência 3 Segundo a expressão de lsabelle Stengers, em uma série de obras inteira-
tradicionais da história da filosofia e de sua prática do comentário. mente tramada a partir de uma "perplicação" muito acertada de determinadas
Ora, sua ação, a meu ver, apesar da onda de choque provocada idéias-forças de Qn'esl-ce q e /a pbí/osopbie?: CosmopolífiqKes, Paria e Le Plessis-
pelo Anil-Édfpo, traduzido em 1976, se dá menos por meio de uma Robinson, La Découverte/Les Empêcheurs de pender en rond, 1996-1997; sobre a
ecologiaenquanto "ciência das multiplicidades", ver em particular l,a guerra des
reapropriação "libertária" do político s[7fcfose/zszz2 do que pela re- scfelzces.CosmoPo/fflqzíes1. Essa temática ecológica havia sido trabalhada no sen-
tido de uma problematização processual de seus componentes por Félix Guattari
2 Associando microfísica do poder e revolução molecular, a reflexão políti- cm Les frols éco/ogies,Paria, Galilée, 1989, e sobretudo Cbaosmose, Paras, Galilée,
ca dos movimentos contestadores era, com efeito, "marcada" pelos nomes de Michel 1992, onde aparece a noção de "ecologia do virtual"

14 Éric Alliez (org.) Gilles Deleuze:Uma Vida Filosófica 15


do o regime-plural de suas intensidades, munindo-se, através de leitu- (O qualificativo pode ser meu, mas sabe-secomo a Antropofagia --
ras conexas, e segundo um processo mais em espiral do que linear, das que "capta, adapta e rapta" -- foi investida pelo modernista Oswald
ferramentas conceituais indispensáveis à travessia. de Andrade como diferença criadora de uma certa identidade brasi-
É nos anos 80 que a situação começa a mudar num grande nú- \eira: em luta se]etit/a, antropofágica... ).
mero de departamentos de filosofia que haviam até então ignorado O segundo, editado em 1989, reproduz uma tese defendida na
solenemente a inventividade dos conceitos deleuzeanos. em razão de }'

Universidade de São Paulo cerca de 25 anos antes pelo futuro tradu-


sua irredutibilidade à história disciplinar da filosofia. Iniciada por al- tor de Qu'esf-ce q e /a pbf/osopbie?, Bento Prado Jr., sob o título "Pre-
guns professores mais velhos, a irrupção de uma nova geração vai sença e campo transcendental. Consciência e negatividade na filoso-
precipitar a transformação. Para alguns desses jovens, que romperam fia de Bergson". Documento inevitavelmente "datado", como nos ad-
com os mais "estabelecidos", em quem será denunciada -- nem sem- verteo autor (a Presença"é piedosa demais", dirá Deleuze), mas que
pre sem razão -- a formação dogmática e/ou provinciana, a imagem teve o inestimável mérito de apresentar a passagem vitalista da feno-
do "pensamento 68 " (isto é, Deleuze-Guattari mais Foucault -- cujo menologia à ontologia sob o signo de um "campo transcendental sem
seminário sobre "A verdade e as formas jurídicas", proferido em 1973
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e logo publica- 1. sujeito".5 Esse campo transcendental sobre o qual se abrirá "A ima-
nência: uma vida...", para exprimir pela última vez o que há de "sel-
do, havia marcado os espíritos de maneira definitivas representaráalgo vagem e de potente" numa tal corrente de consciência que não reme-
da ordem de uma a/fera.zl/z,ac /faraó que impõe uma prática decidi- te a um objeto nem pertence a um sujeito, imanência absoluta de UMA
damente pós-nietzscheana e transdisciplinar à filosofia contemporâ- VIDA: "Ela é potência, beatitude completas [...] feita de virtualidades,
nea. Para outros, com uma formação mais clássica, a abertura da ques- acontecimentos, singularidades..."
tão pós-heideggeriana de uma #lsfórla /í/osó/íca da P/osoPa, não po-
dendo mais se satisfazer com uma identificação destinal com os temas Virtualidades, acontecimentos, singularidades são assim mobi-
obrigatórios do fim da filosofia e do esquecimentodo ser, era cada vez lizados por todo novo pensamento, que "traça no cérebro sulcos des-
menos separável de uma interrogação sobre as condições de esgota- conhecidos"
mento aporético da fenomenologia e da filosofia analítica. Merleau- Vale dizer que não se trata de restaurar o Crystal Palace de algum
Ponty e Wittgenstein, portanto, que contam no Brasil com notáveis in-
térpretes; mas também o Foucault de As Pa/az/rase as coisas e de Ar-
qaeo/og/a do saber -- e certamente Deleuze, na medida em que soube
inventar um novo tom, uma nova prática nczhistória da filosofia: quan- valiada" a partir da análise(críticasdo Foz/caule em razão da excessivadife-
rença da repetição deleuzeana em relação ao modelo foucaultiano. Mas talvez o
do um trabalho sobre um "autor" apenas tem valor enquanto torna autor tenha privilegiado em demasia essa imagem da colagem (que Deleuze opõe
possíveluma nova produção de experiência. à prática dos "trechos selecionados" numa conversa com J.-N. Vuarnet, publica
Na origem desse movimento, preparando-o e anunciando-o em da em Les /effres Érançaises, 5 de março de 1968), para coloca-la a serviço do que
níveisdiversos, dois livros que nada predispunham a qualquer apro- é de todo modo o sentido de sua demonstração: a saber, que a filosofia de Deveu
ximação. ze, "Mais do que anunciar um novo pensamento,1...) é uma suma de pensamen
tos que relaciona por expressarem, em maior ou menor grau, a diferença" (p. 225).
O primeiro, publicado em 1990 por Roberto Machado, sob o
título De/auge e a /i/oso/ia, propõe-se a produzir a gênese da filosofia S B. Prado ]t., Presença e campo transcendente!. Consciência e negatiuidade
deleuzeana enquanto pensamento da repetição das diferenças que se lzcz
#/oso/ia de Bergson, Prefácio de M. Chauí, São Paulo, EDUSP, 1989; ver em par-
ticular o capítulo IV para a referência ao artigo de Deleuzeintitulado "La conception
desenvolve a partir de uma leitura quase-a/zfropoÁãgica dos filósofos.4
dela différence chez Bergson" [1956] -- já que O bergso/zfsmonão será publicado
senãodez anos mais tarde, ou seja, em data largamenteposterior à conclusãodo
4 Cf R. Machado, De/augee a /i/oso/ia, Rio de Janeiro, Graal, 1990; ver trabalho (19ó41. Em compensação, será observada em mais de um lugar a impor-
em particular o último capítulo, onde a técnica deleuzeanada co/agem é "rea tância da referência, ainda que não desenvolvida, a Empa leme et s b/ecfft/ifé.

16 Éric Alliez jorg.) Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica 17


tipo de espiritualismo,6 e que o vitalismo transcendente de que essa nova
imagem materia]-materia]ista]ma]ér]e/le-matéria/fsfe]do pensamento
(eu arriscada dizer "maférla/e") é portadora "implica relações de for-
ça extremamente complexas", dependendo "de certas coordenadas"
Cabe-nos também "ir aos lugares extremos, às horas extremas,
onde vivem e se erguem as verdades mais altas, mais profundas"
E Deleuze conclui com a evocação de uma nova paidéla em que
"os lugares do pensamento são as zonas tropicais, povoadas pelo ho- Primeira Parte
mem tropical. Não as zonas temperadas, nem o homem moral, metó-
dico ou moderado" /.
Não se deve acreditar, contudo, que basta superpor a topologia
VARIAÇÕES FILOSÓFICAS
das forças "que fazem do pensamento algo de ativo e de afirmativo
a uma geografia ainda humana, demasiado humana (ainda que a par-
tir de um lugar tão supostamente "exótico" quanto o Brasil)... Pois é
ao leitor que cabe projetar seus eixos Norte-Sul, assim como ele foi
levado a concebê-los na infinitude dos regimes possíveis8, traçando suas
próprias /ínbas froPícúis a partir das entradas múltiplas de um Cole-
tivo aberto.

Em sua realidade essencialmenteheterogênea, este livro propõe


um certo número de protocolos de experiência a pa#fr do agefzciamelz-
fo, do e6eifo-DeleKze (e Guatlarf). Que alguns sejam portadores de
mutaçõesque inspirem novos usos (crüicos e c/z'nacos),que nenhum
faça chorar em sua tumba "o mais filósofo dos filósofos" . . .: então este
volume não será indigno da atualidade de um pensamento que não
parou de nos "atingir pelas costas", como "uma série de rajadas e de
sacudidas

Tradução de Heloisa B. S. Rocha

6 Como o faz Philip Goodchild numa obra recenteque se propõe a restau-


rar à exaustão a Transcendência avivada Vida enquanto "auto-consciência"(sel/-
awarelzessl:cr Ph. Goodchild, De/euzeand f#e quesfÍono/'pbf/osopby,Londres,
Associated University Press, 1996; com meu estudo crítico, "Deleuze, vitalisme
pratique", Les Éludes pbl/osopblques,n' 2, 1998.
7 G. Deleuze, Níerzsc&e el Za pbi/osop#le, Paras, PUF, 1962, pp. 125-6.

8 Deleuze ensinou-nos que é preciso conceber os dualismos como "o móvel


que não cessamos de deslocar:

18 Éric Alliez (org.l


HOMO 7HNTUM
O IMPESSOAL:UMA POLÍTICA
René Schérer

E eleé o olho louco da quarta pessoado singular


da qual ninguém fala
e ele é a voz da quarta pessoa do singular
pela qual ninguém fala
e que todavia existe.

ILawrence Ferlinghettit)

O ARTIGO DA MORTE
É preciso sempre retornar a estemaravilhoso texto em que tudo
é dito, o último publicado por Gilles Deleuze, sob o título "A imanên-
cia: uma vida...". Voltar a estas linhas inspiradas, quase místicas, mas
de um misticismo ateu, nas quais, a propósito de Oar mz/f a/ Érfend
INosso amigo comum], de Dickens, da solicitude e do amor que cer-
cam um moribundo em si mesmo pouco estimável, escreve-se: "Há um
momento no qual o que se tem é apenas uma vida jogando com a morte.
A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoale no entanto sin-
gular, que produz um puro acontecimento liberado dos acidentes da
vida interior e exterior, isto é, da subjetividadee da objetividade do
que acontece. 'lÍomo /anf m', do qual todos se compadecem e que
atinge uma espéciede beatitude"z.
Tudo é dito aí, já que os temas principais do pensamento de De-
leuze nele estão condensados e, de certo modo, nesse resumo expres-
sivo, nessa contração última, levados à suprema potência. Esses temas,
nós os conhecemos: a dispersão ou a elusão do sujeito, o "ego dissol-
vido" e o "eu rachado"; uma substituição, dessesujeito e mesmo de
uma individualidade ainda por demais maciça, por demais "molar",
de uma pessoa artificial, ou mesmo puramente alegórica, por "singu-
laridades" moleculares, moventes ou "nâmades", que se destacam de

l L. Ferlinghetti, Un fegard szzr/emonde, trad. francesa M. Beach e C. Pélieu


Paras, Bourgeois, 1970, "11 llÍe)", p. lll.
2 G. Deleuze, "L'immanence: une vie.-", Pbflosopbfe n' 47, 199{, p. 5.

Homo fa7zfum.O impessoal: uma política 21


um "campo transcendental" cuja descoberta e construção são o pri- fixamente. E essa exterioridade a toda experiência possível, essenada,
meiro ato do filósofo; o encontro de um "empirismo transcendental" faz-se também fonte de quietude na filosofia epicurista, em Lucrécio:
que dispensa o "Eu penso" da tradição cartesiana, e mesmo toda cons- NI/ zglfKrmora está. Essas máximas, no entanto, conjuração dos ter-
ciência; "um campo transcendental impessoal", também chamado rores e consolação, destinam-se ao sujeito individual, a um ego, a uma
plano de imanência", ao qual esse último texto dá acesso de manei- pessoa.
ra ao mesmo tempo existencial e teórica, fazendo tocar com o dedo, A morte deleuziana -- se tal expressão é adequada -- desvia-se
de algum modo, a junção do mais impessoale do mais singular; ani- do impensável e do insustentável, bem como de todo pafbos trágico,
mando, enfim, outras formulações: graças ao paradoxo do acontecimentoe do impessoal;ela escapa à
"As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcen- apreensãointerna do indivíduo, sem corresponder tampouco a uma
dentais: o que Ferlinghetti chama a 'quarta pessoa do singular'. Lon- deploração intersubjetiva. É enquanto impessoal que a morte aconte-
ge de serem individuais ou pessoais, essas singularidades presidem à ce, que ela se desliga do sujeito que ela afeta, embora sendo indu-
gênesedos indivíduos e das pessoas."3 bitavelmente e unicamente "sua". É enquanto impessoal que ela ex-
Sobre essa linha fronteiriça, sobre essa crista ou essa extremida- prime, qualifica, exemplifica todo acontecimento do qual se torna como
de em que "uma vida" é disputada à morte, aparecem, talvez melhor que o paradigma, por conta, justamente, desse desligamento impes-
que em qualquer outra parte, os traços originais do pensamento deleu- soal, do sentido expresso. O impossível "eu morro" desloca-separa
ziano e seus desafios. É uma culminação que se verá com prazer estar um "ele" e nele se metamorfoseia. É nesse "ele", nesse "morre-se" da
muito próxima da intuição bergsoniana, ou do conhecimento que Es- morte que o moribundo entra.
pinosa nomeia "do terceiro gênero", aquele que corresponde ao co- O momento, passagem ou transe da morte -- que se diz muito
nhecimento adequado da essênciadas coisas: "A vida de tal individua- precisamente seu "artigo" * -- é sempre, relativamente ao ego que aí
lidade se apaga em proveito da vida singular imanente a um homem desmorona, um impessoal, infinitivo, ou artigo ou pronome que de-
que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhumou- signa o acontecimento em sua independência e pureza. O "um", o
tro, Essência singular, uma vida"4. "ele", e o Olz' * são as denotações de uma singularidade que valoriza
Por certo, essa revelação intuitiva bruscamente introduzida pela toda a vida -- uma vida --, pré-individual, pré-subjetiva. "Nela, não
proximidade da morte não deve levar a supor que a filosofia deveria morro, sou despossuído do poder de morrer, nela se morre, não se cessa
se converter numa meditação sobre a morte, uma vez que, ao contrário, e não se acaba de morrer", escreve Maurice Blanchot, que Deleuze cita
a morte só obtém seu sentido por revelar a vida. A morte não é nem e retoma por sua conta'
um destino nem um fim, nem o motivo incessante da deploração de C) Olz, desacreditado, sujeito indefinido do anónimo, do banal,
nossa finitude. Ela não é, porém, uma simples "facticidade" -- lingua- da famosa "banalidade cotidiana" oposta por Heidegger à autentici-
gem de Sartre -- que nos seria totalmente exterior, alheia. Ela é um dade da existência, esse "ozz" que aparentemente não deveria ser se-
ponto limite, um daqueles pontos singulares que Deleuze gosta de opor não o signo da opinião, do lugar-comum, é convertido, em razão de
aos "ordinários", inflexões do movimento, detonadores de "devires' sua própria impessoalidade, em índice da mais alta potência de vida.
É claro que a morte é, em certo sentido, o limite absoluto de toda
experiência e de todo pensamento. Ela é mesmo o impensável, o inex- s Lucrécio, Da lzalurem, 111,v. 842.
perimentável, o inominável. Assim como ao sol -- conforme sabemos
pela célebre máxima de La Rochefoucauld --, não podemos olha-la * Jogo de palavras com a expressão francesa à /'arrfc/e de b mora, que sig
nifica "na hora da morte". (N. do T.)

' ' Pronome de indeterminação do sujeito, em francês, equivalente a "se'


3 G. Deleuze, l.ogiqzie d sons, Paras, Minuit, 1969, p. 124. ou "a gente" em português. (N. do T.)
4 Idem, fbfd. Cf. B. Espinosa, Elica, 11,tese40, escólio2. 6 G. Deleuze, Logiq ed seis, /oc. cit.

22 Rene Schérer Flama la/zfwm. O impessoal: uma política 23


Ele ocorre nà extremidade em que o acontecimento eclode, abre a re- LINHAS DA VIDA
gião do sentido. Na iminência da morte, em sua hora, ele nos desvia Incessante refrão: os impessoais da língua constituem e fazem
da angústia, cuja carga -- o potencial de forças que ela representa subsistir por si mesmo o sentido do acontecimento, o "simples acon-
se transforma inteiramente em evidência da singularidade insubstituível tecimento", ez/efzfnmlanfz/m. Uma expressãoda mesma ordem que
e não perecível de wma vida. A imanência absoluta de uma vida. pomo fanfam, própria para evidenciarsua íntima afinidade. As duas
Essas expressões impessoais, o "ofz", o "ele", o "um", têm, em têm a mesma natureza, a mesma essência, o mesmo sentido.
sentido forte, nietzschiano, um valor que se opõe à incerteza das deter- O ez/efzfm Za [um é o acontecimento propriamente dito, aqui-
minações do verdadeiro e do falso, do bem e do mal. Valem por se' lo que não é nada mais que acontecimento,cujo "sujeito" -- sujeito
rem os veículos do acontecimento em si mesmo, esse incorporal distinto gramatical, entenda-se-- é sempre um impessoal, e do qual a morte é
das coisas corporais e de suas conexões causais, embora indissociável paradigma. Pois é preciso abolir a parte demasiado subjetiva, dema-
delas, e que permite ao mesmo tempo nomeá-las e orienta-las: "Mor- siado vivida do que chamamos correntemente acontecimento, assim
re-se [O# meart]. O quanto esse o/z", escreve Deleuze, "difere da ba- como sua parte demasiado objetiva, de encadeamento material de cau-
nalidade cotidiana. É o ozzdas singularidades impessoais e pré-indivi- sas e efeitos nos quais se dissolve, para simplesmente nomeá-lo, ex-
duais, o o/z do acontecimentopuro em que morre é como cboue. O primi-lo e fazê-lo viver, para atingir o acontecimentopuro. Abolir o
esplendor do ozzé o do acontecimento mesmo ou o da quarta pessoa" ' demasiado humano, que não suporta senão o impessoal.
O "on" é o operador de acontecimento, o revelador, ao mesmo Espinosa costuma utilizar a palavra latina q afe/zuspara a ex-
tempo que o criador de seu sentido, o ponto em que se juntam, sem se pressão da substância lou Natureza) por seus modos. Estes são a subs-
confundirem, seu aspecto privado e seu aspecto coletivo, sua face ideal tância mesma enquanto expressa. O Ser enquanto acontecimento, en-
e sua face encarnada. O que não implica a fusão do individual na ge- quanto modo ou singularidade.
neralidade vaga que, fazendo-o entrar no conjunto estatístico, o edul- O fanfzlm, o "simplesmente" do ez/mfwm, do "simples aconteci-
cora. É somente pelo acontecimento, tendo acesso a ele -- "como a mento", é esse quase/z s e, do mesmo modo, o lanf m do pomo: expres-
morte, dupla, e impessoal em seu duplo"8 --, que as singularidades são própria do acontecimento, da Natureza enquanto homem. Ou ain-
se liberam dos limites em que a pessoa individual as mantinha. da: o pomo [anfam é "uma Vida" enquanto expressa. Essa expressão
A liberação que o acontecimento opera é da mesma ordem que requer a abolição da pessoa, o impessoal, ou, como escreveu poeticamente
a do fantasma que a Lóglcíz do sentido situa além do passivo e do ati- Lawrence Ferlinghetti, uma "quarta pessoa [.-] pe]a qua] ninguém fa]a,
vo, enquanto efeito de superfície ou acontecimento, como "o movi- da qual ninguém fala, e que todavia existe". Ou melhor, em linguagem
mento pelo qual o eu se abre à superfície e libera as singularidades própria a Deleuze, insiste ou consiste, mais e diferentemente do que o ser
acósmicas, impessoais e pré-individuais que ele aprisionava. Literal- -- um "extra-ser", como o acontecimento do qual ela se faz o sujeito.lO
mente, ele os solta como esporos e explode nessa descarga"P. Acósmico Percebe-seclaramente qual proximidade se estabeleceentre De-
designa aqui o que, não estando submetido às regras de organização leuzee Blanchot, citado por seu "morre-se", e que poderia também
do cosmos, do mundo e do eu, pertenceainda ao caos. O impessoal ser lembrado por sua teoria da escrita, que deve abolir as coisas antes
mergulha nessecaos, nesse abismo; é a partir das forças que daí retira de -- para -- nomeá-las, pois ela as nomeia a partir de sua "retirada
que ele traça, na superfície, linhas disseminadas de pontos singulares. de cena", de sua ausência, "da ausência de tudo, isto é, de nada", se-
gundo as fórmulas clássicas em A parte do /ogol l

io Quanto à relação dessela/zl#mcom o a/zíma/fa/zf m de Avicena e o esse


7 Identz, ibid.
fanf m de Duns Suor,cf. Ahmed Alami, "DeleuzeetAvicenne", Cbímêresn' 31,
8 Idem, ibid. 1997,PP. 73-87.
9 Idem, p. 249. ii M. Blanchot, La pa7'td# Áe#,Paras,Gallimard, 1949, pp. 320-1.

24 Rene Schérer llomo Zcznlum. O impessoal: uma política 25


Mas é preciso talvez dizer mais. A quarta pessoa, ou o uso que IMPESSOAL NÂO UNIPESSOAL
dela faz Deleuze para se encarregar de todo o plano de desdobramen- Deleuze não dissimula -- referindo-se explicitamente a isto --
to do impessoal, vem preenchero vazio, a ausência, o aspecto pura- que, em sua concepção do acontecimento puro incorporal, análogo da
mente negativo da análise de Blanchot, as ressonâncias da força do produção material ou encarnação, eledesigna o que numa outra lin-
negativo hegeliano ou heideggeriano. O impessoal escapa à dialética guagem, fenomenológica, Husserl chamou o "noema", ou o "sentido
da negatividade. Ele elude a lógica do contraditório, bem como a ló- noemático": aquele forro, ou camada de sentido ou de significação
gica da união dos contrários, para adotar a do paradoxo, ou da ad- IHusserl emprega indistintamente um ou outro) que se intercala entre
missão desse "impossível", motor do sentido, que é a quarta pessoa. a palavra e a coisa, camada tão impalpável quanto o incorporam,que
Salto de uma partícula fora de sua órbita, que desencadeia o mecanis- forma a designaçãoda coisa "como tal", sem a qual o signo verbal
mo da criação. seria simples sinal ou parte da coisa. A palavra nomeia o objeto por
Reconhecemosno escritor", dizia Blanchot, "esse movimento intermédio de sua significação, ou, para voltar à linguagem estóico-
que vai continuamente, e quase sem intermediário, do nada ao tudo. deleuziana, de seu sentido de acontecimento; ela Ihe confere sentido
Vemos nele essa negação que não se satisfaz com a irrealidade na qual enquanto acontecimento.
se move, pois ela quer se realizar e só o consegue negando algo de real, As proposições husserlianas das /fzz/esflgações/ógicas não valem
de mais real que as palavras, de mais verdadeiro que o indivíduo iso- apenas para as significações fixas, ditas objetivas, mas também para
lado do qual ela dispõe; assim ela não cessade lança-lo à vida do mundo as significações fluentes, ditas "ocasionais", as que estão ligadas par-
e à existência pública, para leva-loa concebercomo, escrevendo,ele ticularmente aos pronomes pessoais, assim como aos advérbios de
pode se tornar essa existência mesma"12. E Deleuze, fazendo eco a tempo e de lugar e às locuções verbais que deles dependem, como
Blanchot, vem completa-lo, citando-o e nele se inspirando em suas 'chove" [i/ P/ewf]. Ou, mais exatamente, o sentido ou significação
observações sobre o "ele" na escrita de Kafka: "A literatura só se afirma dessas locuções e expressões é distinto da.circunstância. É ele que será
descobrindo sob as pessoas aparentes a força de um impessoal que não chamado "noemático" nas .fdéfaspara ma Óe/romeno/ogia,posteriores
é de modo algum uma generalidade,mas uma singularidadeno mais às /nuesflgações, onde o vocabulário próprio à fenomenologia contem-
alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma crian- porânea é definitivamente fixado.i4
ça. Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição à enun- Essa camada do meio, esse "entre", entre as palavras e as coi-
ciação literária, a literatura só começa quando nasce em nós uma ter- sas, esse "neutro", sentido expresso ou noemático, é o lugar do im-
ceira pessoa que nos despoja do poder de dizer 'eu'""'. pessoalou o plano que o impessoal desdobra. Lugar, tópico do que
No mesmo texto de Cr#lca e c/z'Mica,uma observação preciosa absolutamente não é nem exterior nem interior, nem subjetivo nem
ja nota número 6) indica que a literatura desmenteaqui a lingüística objetivo, onde coisas e palavras se trocam.
quando esta faz das duas primeiras pessoas, qualificadas de embreantes, Lugar de criação, do universoda linguagemem todas as suas
as condições da enunciação, ou seja, da determinação do sentido. potências, liberado de sua dependência em relação ao sujeito pessoal
Sobre esse ponto ainda, o acontecimento puro -- o "simplesmen- que é enunciado com ele e, mais do que isso, por ele é penetrado, atra-
te" ou o "enquanto" do acontecimento e do pomo la/zfum -- é o cri- vessado. Do eu ocasional, imobilizado em seusvividos psíquicos, ele
tério; é ele que marca o desvio com relação à linguística, à qual não se salta, graças ao operador e/e, para o plano dos enunciados que dizem
deixa subjugar, dando ao mesmo tempo às palavras da língua, a suas
diferençasmais finas, o mais alto valor.

i4 E. Husserl, Rec#ercbes /ogfqnes2, primeira parte, PUF, 1 991 Ireedição)


lz Idem, ibid. Investigação 1, S 26: "As flutuações do significar"; e Idées dfrecfrlces tour u/zepbé
i3 G. Deleuze, Criffqne ef clínfq e, Paria, Minuit, 1993, p. 13. noméno/ogle, Paria, Gallimard, 1950, em especial S 90: "0 sentido noemático"

26 Rede Schérer Homo f.znfunz. O impessoal: uma política 27


o acontecimento puro. O que "nem permanece nem desaparece, e dura substituição que o torna não um "unipessoal", mas uma "quarta pes-
sem possibilidade de durar", segundo as belas fórmulas de Blanchot15 soa". Ao evitar-se a pessoa nem por isso se entra no domínio das sig-
Os enunciados correndo sobre suas pegadas independentemente nificações fixas da objetividade.
do sujeito da enunciação, eis a herança herética de uma análise noe- Não, a escolha não é lingüística; ele pratica um desvio, uma dis-
mática da linguagem que Michel Foucault ao mesmo tempo radicaliza tância. Entre as tesespropostas, segueexatamente uma "linha de fuga"
e desvia. Deleuze expõe limpidamentea lição no livro que dedicou a em que vida e escrita, por intermédio do impessoal, se fazem indis-
seu amigo: "De modo que em primeiro lugar tem-seum Fala-se [On cerníveis uma da outra.
pízrle], murmúrio anónimo no qual são dispostos locais para sujeitos
ESPLENDOR DO ON
possíveis: 'um grande burburinho incessante e desordenado do discur-
so'. Em vários momentos, Foucault invoca essegrande murmúrio no Resumamos:
qual ele próprio desejase colocar"16. "Tornar-se imperceptível", es- e O primeiro ato, a primeira face apresentada pelo impessoal era
creverá Deleuze: primeiro gesto do escritor, primeiro passo em dire- seu aparecimento no artigo (ou pronome) da morte. O impessoal en-
ção ao Ofz, em direção ao pomo. quanto absoluto revelador do acontecimento, da acontecimentalidade
É preciso saber ler na fenomenologia, mas sem restringe-la abu- do homem, pomo, on, no plano de imanência de uma vida, enquanto
sivamente a uma egologia, o prólogo desse procedimento que confere sua expressão. Nafwra síz/et'ila q ale/zz/spomo Zanf m. A primeira
toda a sua força ao impessoal deleuziano. Que sobretudo assegura sua potência.
independência em relação às teses linguísticas e seu horizonte limita- e A segunda potência (potência que é, ao mesmo tempo, virtua-
do: que Ihe permite alçar vâo ou seu sobrevoo. lidade e poder, aquela Pofenz que Hegel menciona com frequência em
Com efeito, como escapar, senão pelo recurso ao sentido noe- seus primeiros escritos) é o fluxo das palavras criadoras de universos
mático, aos "embreantes" de sentido que a linguística coloca nos pro- inexistentes, mas insistentes, fatores integrantes da realidade humana.
nomes pessoais? A escolha não é lingüística, seguramente. Do ponto E essasduas potênciasimplicam uma lógica paradoxal:
de vista lingiiístico, duas teses, como sabemos, se confrontam: e a primeira é a revelaçãode "uma vida" pela morte;
e A primeira é a que compreende numa mesma e única classe o ' a segunda é que a mais original e autêntica expressão de "si",
eu, o fu e o e/e, e propõe para esse último a denominação de /zlPessoal, a mais singular, só se conquista pelo impessoal.
estendida ao on, levando em conta suas possibilidades de substituição A primeira potência conduz a um plano de imanência, a segunda
por todas as outras pessoas (on/se). constrói e desenvolve um plano de consistência que o povoa de per-
+ A segunda, mais antiga e clássica, a de Émile Benveniste, basea- sonagens e de figuras. Que, precisamente, suscita "um povo" e se di-
da numa distinção radical entre as duas únicas pessoas subjetivas, pre- rige a eleiõ
sentesna interlocução, o eu e o fzí, e a "não-pessoa" do e/ee do o/z, Fora do registro dos exemplos fornecidos pelo próprio Deleuze e
de significação objetiva.: ' que formam seu c07Pus, encontraremos uma justificação muito ilustra-
Se é verdade que, aparentemente, Deleuze adora a tese da não- tiva das propriedades da supressão do sujeito da enunciação no poeta
pessoa, também não se pode recusar a seu ele aquela capacidade de alemão Georg Trakl, que pertence àquele expressionismo contemporâ-
neo que Deleuze adotou como traço marcante de sua estética. Pois, assim
15M. Blanchot, La pari du /ê#, p. 30. como não há duas estéticas, a da sensação no conhecimento e a da sensi-
ló G. Deleuze, Foacízall, Paris, Minuit, 1986, p. 62. bilidade na arte, tampouco há dois expressionismos, e a expressão que
é imanente à vida é aquela que dá à arte seu valor e seu estilo. Assim,
17É. Benveniste, Proa/àmes de /ingalsffque généra/e, Paras, Gallimard, 1 966:
Structure des relations de personnes dons les verbes" IEstrutura das relações de pes-
o artista não se propõe outro objetivo, além de conquistar a expressão.
soas nos verbos] [1946], p. 230; G. Moinet, Le pro/zom penso/zne/#.zrzçais -- Essas
depsycbo-sysléniatlq e blsforfque, Paras,Klincksieck, 1965, em especialpp. ll 0-58. i8 G. Deleuze, Crffiq e ef c/ilzlqzíe,p. 15

28 Rene Schéi.er Homo f.znf#m.O impessoal:uma política 29


Tal é oassunto de uma carta de 191 1 em que Trakl, evocando as Notação evidentementefurtiva, simples esboço que não interes-
etapas do trabalho de um de seus poemas, "0 Crepúsculo de Tempes- sa, para o presente propósito, levar adiante, como também não seria
tade", escreve: "Eis aqui o poema modificado. Ele é bem melhor do que apropriado rejeitar, em nome do expressionismoimpessoalde Mal-
a primeira versão, na medida em que doravante é impessoal [u/ZPer- larmé, o igualmente admirável "Cisne" de Baudelaire; é suficiente in-
sónnlfcb] e completo a ponto de explodir de movimentos e de visões". dicar de que maneira o impessoal desdobra, em suas linhas, o que
Em sua introdução a esse texto, Georges Bloess, que chamou minha permanecia encoberto nas dobras secretas de uma experiência interior.
atenção para ele, encontra esta fórmula lapidar: "Eu suprimi o eu"19 ;Parascba/zge/
maisrfendonsma mé/anca/fe/
n'a bougé[...]" [Paris
Ela também poderia servir para resumir Deleuze, assim como ele muda! mas nada em minha melancolia/mudou], oposto a "l;anfõme
próprio soube encontrar as fórmulas poéticasque resumem a filoso- q#'à ce /íeu son p 7 éc/af assigne" [Fantasma que nesse ]ugar seu puro
fia de Kant. Basta aproximar das "visões" de Trakl, obtidas com a brilho designa].
ajuda do impessoal, estas proposições deleuzianas: "A fabulação não O expressionismo estende a linha abstrata do acontecimento puro.
consiste em imaginar nem em proletar um eu. Ela antes atinge essas É ela que transmuta a lembrança em visão. Essa transmutação orien-
visões. ela se eleva até esses devires nascentes"zu. ta toda escrita que não se contenta em comunicar uma experiência
O impessoal faz passar do relato subjetivo, da anedota, da lem- pessoal-- ou melhor, em informar sobre ela -- mas quer ser recebi-
brança, do "muito próximo", ao acontecimentosegundoseu sentido da, despertar emoções e imagens em outrem, dirigir-se àquela parte
e seu brilho próprios: esplendor do ozz,do e/e. O poema de Trakl é de outrem que repercute. Esplendor do on, já que a forma pessoal é
consagrado ao acontecimentoatmosférico em seu esplendorcristali- incapaz de atingir por si mesma a singular experiência que ela busca e
no, no qual ele se separa das circunstâncias e atinge o imperecível. "Ó de comunica-la a outrem. Somenteo impessoal do on ou do e/e faz
horas rubras do crepúsculo... O espelhodo lago se rompe", inicia o cair o muro das inferioridades, abre o repisar indefinido e monótono
"Crepúsculo de Tempestade' do "eu penso, eu sou" a outras formas de experiências que não são
Esse espelho que se rompe é também a fenda do "/ac dwr oaó/ié nem do sujeito solitário, nem de uma intersubjetividade da mesma
que ba/zfe sois /e g]z/re [...]" [lago duro esquecido que assombra sob ordem, já que dele procede.
o gelo] de Mallarmé; e esse crepúsculo, "/e ulerge, /e z/íuace ef le be/ au- O on é a marca da passagem, da entrada no movimento, o índi-
jourd'bzzí" [o virgem, o vivaz e o belohoje] levado à eternidadedo acon- ce do agendamento coletivo; ele dá consistência ao que se passa entre
tecimentopuro, euent m fanfam. Essa transformação alquímica ope- dois (ou vários) e, contra o "eu penso", dá consistência a "um pas-
rada pelo impessoal ou pelo abandono da subjetividade será ainda seio" como o de Mrs. Dalloway em Bond Street,descritopor Virginia
confirmada pela aproximação que se impõe entre o soneto de Mallarmé Woolf em termos que denotam, justamente, o impessoal e a imper-
e "0 Cisne" [],e Cygzze], de Baudelaire, do qual ele é a réplica: passa- ceptibilidade: "Tinha o sentimento muito bizarro de ser invisível: não
gem da lembrança repleta de subjetividade romântica à expressão da vista, não conhecida; o problema agora não era mais se casar, ter fi-
visão em sua pureza, em sua consistência quase mineral. Devir-mine- lhos, estava-se lá, andando pela Bond Street, em meio aos transeun-
ral do Cisne, metamorfosedo "Sur /ese/ rabo e x fraífzait son bZanc tes, numa espantosa procissão bastante solene, e era-se Mrs. Dalloway;
p/umage" [No chão irregu]ar arrastava sua branca p]umagem] em "Les não mais Clarissa, nem isso, era-se Mrs. Richard Dalloway"21
fransPcz7efzls
g/aclers des z/oZsqui n 'onf pas Óai" [As transparentes ge- Que o "on" da tradução francesa transponha tbls being, isso não
[eiras dos vôos que não fugiram]. altera em nada, pois esse último é igualmenteimpessoal em sua ex-
pressão e suprime o sujeito substituindo-o pela procissão dos transeun-
19G. Trakl, Poàmes ma/ears, trad. francesa J. Legrand, apresentado por A. tes, essa entrada no "sujeito" moderno, o homem das multidões.
Finck, Paris, Aubier, 1993, p. ] 9. Cf. G. Bloess, "Voix et regard intérieurs", mémoire
d'habilitation, Universidade de Paria Vlll, inédito.
2i V. Woolf, Mrs. Da/loü,a)r, trad. francesa e notas de M .C. Pasquier, Pa
zo G. Deleuze, Crfffqzfe ef cllfzique, p. 13. ris, Folio Gallimard, 1994, p. 71.

30 Rene Schérer Homo fanfum. O impessoal: uma política 31


Mas, ie buscarmos o orz em todo o esplendor de sua sonoridade siva da interpretação psicanalítica a uma "personologia" parental, ele
própria, em francês, eis então o de Rimbaud: "0/z n'est pas série x retoma o solitário de Monoblet e a idéia de uma cartografia em que
quand on a dix-set)t ansIEt qu' an a des tilleuls ueTts sur ta pTomenade" , setraça com o próprio "meio"23 o processo de subjetivação do autista.
que é evidentemente insubstituível pelo unipessoal. Não se trata nem A rejeição do On, tal como aparece em O crer e o temer, deve, por-
de um eu nem de um nós, mas sim do impessoal do "qualquer", do tanto, ser tomada não como uma crítica negativa, mas antes como uma
simplesmente-- fafztum-- que faz erguer-se, triunfante, dirigindo-se radicalização da tese deleuzianae guattariana. O autista -- que ele
a ele, o povo jovem, amoroso, na quarta pessoa, "da qual ninguém inclusive prefere não chamar de "criança" --, "o indivíduo Janmari,
fala/ pela qual ninguém fala/ e que todavia existe". designado por esse simples vocábulo, sendo estranho a si, o é também
ao on. Ele suporta no entanto as designaçõesdo "ele" e do "comum",
DO ON AO HUMANO ou mesmo do "nós", quando se trata da relação que mantémcom o
Não é fácil, porém,desembaraçar-se
do Ofz/se
ou do ozz/ezz,
em meio das coisas ou das pessoas entre as quais vive. Se seu plano de con-
outros termos, da generalização pronominal. Esta renasce a todo ins- sistênciaelimina o o/z/se,ele gravita em torno do e/e e do comum. A
tante como uma objeção prévia ao emprego estritamente impessoal do expressão que melhor Ihe convém é: esse garoto afZ4
on, ao qual se prende toda a teoria deleuziana. O que é que permite Pontos de encontro, pontos de divergência, quando o on é recha-
estendero on para o lado do impessoal? A questão não é puramente çado e o aítoma seu lugar. Não se poderá evitar evocar, mas sem razão,
linguística, ou linguística em sentido estrito. Ela ultrapassa a catego- a oposição heideggeriana entre o ardo "ser-aí" e o on da banalidade.
ria do pronome para dizer respeitoao homem. Homo, om, on; ou O arde Deligny não diz respeito a uma "diferença ontológica",
À4anne man. Não setrata, no entanto, de etimologia, mas de sentido é o aí das coisas, do meio das coisas. Se ele implica um "ser-com", não
implicado. A que concerne ou a quem concerne o impessoal do on, a é à maneira do À4if-sem heideggeriano, seria antes como alusão àque-
que homem, a que relações, a que sociedadehumana? le plano de fundo de um "nós" primordial, uma Wfrbeíl que Bins-
E, nessedomínio, a objeção pronominal pode servir de critério, wanger introduziu em sua análise existencial.
fazer de certo modo sobressaira confraria a originalidade de Deleu- Não, não se deve compreender Deligny de maneira heideggeriana.
ze, permitir precisar e orientar as implicações, à primeira vista desper- Seuaíé, deleuzianamente, de superfície. Ele participa da crítica à psi-
cebidas, do impessoal. canálise edipianizante que por toda parte aloja pessoas no coração da
Encontraremos a mais clara, a mais pertinente formulação da criança, mesmo daquela que é desprovida de sujeito e de pessoa: "Nin-
objeção em Fernand Deligny. Objeção tanto mais interessante na me- guém está aí quando essegaroto do Serret brinca com a louça: nem
dida em que, em O crer e o temer [Le croire et le c7aí/zdre],ao fazer Édipo, nem Narciso; 'ecceidades', diria Deleuze, que apenas manifes-
do On -- classificado na categoria da "ideologia" -- o veículo da ilu- tam sua presença, e cuja presença é sempre manifesta. Sem segredo,
são subjetiva, ele o faz a partir de posições comuns a Deleuze e Guat- ou, como se diz, a descoberto"u
tari: crítica do sujeito, adoção do plano de consistência, liberação das E eis por que o /zós, "do ponto de ver" dessa criança, passa tam-
singularidades próprias dos autistas com os quais ele vive, privados bém "aí", na superfície, substituindo a aliança remota e abstrata dos
de Si, sem serem, no entanto, menos individuadoszz. sujeitos unidos, no mundo, pelo o/z: "Resta um nós determinado do
A importância da prática e da teorização próprias de Deligny é, ponto de ver de indivíduos para os quais o Ozz não existe"26
aliás, reconhecidapor Deleuze, que leva em consideração quando, a
propósito de "0 que as crianças dizem" e para criticar a redução abu-
23G. Deleuze, Criffqzíe ef c/i iqae, p. 81.
24F. Deligny, l,e chofreel /ecraf odre,pp. 118, 206.
22F. Deligny, Le chofreef /ecrallzdre,com a colaboração de lsaac Joseph,
Paria, Stock, 1978, em especial pp. 120 ss., e o texto de lsaac Joseph sobre Deligny, 25F. Deligny, l.e croíre el /eoral odreItexto de lsaac Joseph), p. 259
p. 235 até o final. zó Idem, p. 122.

32 Rene Schérer /como l.znfzzm.O impessoal: uma política 33


O paradoxo de Deligny: a personalização do on, a impersona- devir e vida dos quais o homem é a expressão imanente. Nesse senti-
lização do /zós. Esse paradoxo que parece contradizer literalmente o do, há de fato uma natureza humana, um pomo natural, lcznfum, quan-
uso deleuziano do "on" permite também precisar seu sentido e levá- do a linguagem falta ou quando um vazio se abre nele e a gente -- O/z
lo mais longe do que se percebe. Pois o impessoal do on é justamente -- se mantém no limite, à beira da fenda, do abismo.
o que o /zósde Deligny quer dizer, em sua impessoal aliança com o aí O que se recusa a falar, o que em sua ausência de fala revela a si
do garoto de puras ecceidades: o simplesmentehumano segundo uma mesmo o simplesmente humano, cumpre então exatamente a função
natureza que se pode qualificar de primordial ou primeira; assim como que Deleuze reserva às variações extremas na língua e às experiências
um "Nós" dito "primordial para distingui-lo das pessoas conjugadas limites. Ê o que se pode ler no posfácio ao Ba fleby de Melville, esse
ou da consciência coletiva"Z/ escriturário ou "escritor" cuja fórmula espantosadeixa atordoado todo
Deligny se engana quando crê que o o/zé a pessoa (ou as pes- interlocutor, corta toda ligação humana: "Eu prefiro não"31
soas) da ideologia e da opinião, mas tem razão quando vincula o im- / prever nof fo suprime, em sentido próprio, aquele que a profe-
pessoal à singularidade puramente humana de uma "natureza" da re. Ela "devasta", escreveDeleuze, "a linguagem", ela "desatavaos aros
qual se afastam as filosofias da consciência e da linguagem: "Tudo é de fala" e, assim, produz na linguagem "um vazio" que "arruína to-
feito para ridicularizar esse termo /zafureza que se associa com os dos os seus pressupostos". Isto é, a comunicação a outrem.
passarinhos. Tal é a crença reinante. Ora, vocês sabem que, descren- Bartleby, por certo, não é alguém que se recusa a falar. Ele se acha
te, procuro sê-lo [...] Ê quase uma posição política alinhar-se com as no limite do autismo, mais além de sua borda, perto apenas o suficiente
palavras denegridas"zB. para situar o ponto em que se encontra. Suficientementena superfície
Aquém da palavra, o autista, o que se recusa a falar, é -- rapte- para que seja mantida a passagem entre o mundo da comunicação hu-
mos uma expressãode O qzleé a P/osoP.z? -- "o caos que suscita a mana normal, feito de boas intençõese de regras de conduta, e a es-
visão"29 do homem, do homem simplesmente.Não que ele mesmo seja candalosa, humana, singularidade. Por qm lado, o homem do "de-
um caos. Ele só o é relativamenteà ordem da linguagem,mas, diz masiado humano", por outro, o singular, o original, com quem é im-
Deligny, ele tem seus "referenciais", seu "ponto de ver" singular, es- possívelconviver ou viver.
tranhos aos pontos tanto do sujeito como do intersubjetivo e que per- E ele, porém, o pomo fanfum que torna visível o homem livre do
mitem (reencontramos aqui Deleuzel descobrir nele "o indivíduo pri- peso das normas e das obrigações do comportamento social, bem como
mordial" segundo a Natureza30. de tudo o que o "estrutura" enquanto pessoa -- a começar pela es-
E difícil, é verdade, manejar a palavra, por implicar uma certa magadora paternidade (pérémêre [paiemãe], como escreve De]igny).
ordem preestabelecida segundo leis imutáveis e como que um capital Ponto de encontro cntre o homem da linguagem (Deleuze) e o
substancialque seria "o homem", o homem por natureza, pomo na/ura. do mutismo (Deligny-Janmari), entre o homem das velocidades e o da
"Natureza humana" pode ser também a legitimaçãode todos os lentidão l"o imutável" de Delignyl, entre o do acontecimento leve/zfzím
conservantismos morais e sociais. Mas é preciso pensar a natureza [anfum) e o da natureza. Encontro em torno do homem desprovido
como dinamismo, potência, /zafzlranse não simplesmente/zafzzafa; de sujeito, "primordial" em razão da ausência nele de "propriedades",
de "qualidades". Convergência em torno daqueles "originais" que
Deleuze chegará a qualificar de "seres da Natureza primeira", numa
alusão muito espinosana3z
27Idem Itexto de lsaac Josephl, p. 260.
28 idem, p. 164.
29 G. Deleuze e F. Guattari, Qa'esf-ce qHe /a pbí/osopbfe?, Pauis Minuit
1991,P. 192. 3i Idem, p. 95.

30 G. Deleuze, Criffq e et c//lzíqzfe, p. 95. 32IdeKr, p. 106

34 iene Schérer Homo fczfzlwm.O impessoal: uma política 35


POLhiCA DA NÃ0-PESSOA Com efeito -- e é esse, certamente, o segredo "a descoberto" do
Deleuze, com base na descoberta do homem fora das qualidades impessoal --, de um lado está a alma, a vida, enquanto a morte está
e fora da pessoa, não propõe, porém, um "retorno à natureza". O guia, do lado do eu: "Parar de se pensar como um eu para se viver como
a bússola orientadora, é aqui o que ele escreveu a propósito de D. H. um fluxo, um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos, fora
Lawrence, que, como se sabe, é para ele um dos grandes pensadores de si e em si"3/
filosóficos de nosso tempo. "Não há retorno à natureza, há apenas um último paradoxo, enfim: se o pomo fanfz/m diz o homem, diz
problema político da alma coletiva, as conexões de que uma socieda- também, nesseacesso aberto aos fluxos da vida, quando não o hu-
de é capaz, os fluxos que ela suporta, inventa, deixa ou faz passar."33 mano, seguramenteo sobre-bumzzno.Não é ilícito encontrar a expres-
Assim a "natureza primeira" ou "o homem primordial" adqui- são disso, mesmo ao preço de uma contradição i/z ad7ecfo, no sobre-
re sentido e valor por ser sobre sua base que se inventam as formas de humano de Nietzsche, exaltação do que o homem contém de potências.
uma sociedadenova. Virtude do impessoalquc engendraa vida e a Georges-Arthur Goldschmidt assim pensou, em seu belo prefá-
faz se mexer, precisamenteporque a vida, como é dito em Diá/egos, cio a Assim Áalaz,aZarafusfrzz: "Reencontrar, ou melhor, constituir esse
não é algo de pessoal"i4. estado ao mesmo tempo original e posterior (a natureza é o que nós
O leitor familiarizado com Charles Fourier compreenderáfacil- fomos, é o que queremos voltar a ser), é isso que Nietzsche quis dizer
mente essas passagens paradoxais do mais singular ao coletivo, ou por meio das idéias de sobre-humano e de eterno retorno". Ou, cer-
melhor, ao societário. Com efeito, é a partir da singularidade nos infini- tamente mais de acordo com o que Deleuze expõe a propósito de Mel-
tesimais, uma vez disperso o sujeito, que o "uniteísmo" pode efetuar ville e de Lawrence: "0 sobre-humano é mais uma alegoria que um
suas concordâncias. tipo: ele não é ninguém e ninguém jamais será ele. Ele representaa
Reunidos em Crüíc.z e c/Mica, formando o cerne e dando o tom libertação de todas as coerções: eu sou por ser nada"38
a essa obra, os artigos consagradosa Melville, a Walt Whitman, as- Não é mais o "demasiado humano".que acumula em si e sobre
sim como aos dois Lawrence, precisam a função altamente"harmo- si todas as estratificações alienantes, mas o ser aberto a todos os devires=
nizante" (em linguagem fourierianal do impessoal. Ela consiste, ao criança, mulher, animal, vegetal, mineral e assim, finalmente,Natu-
livrar-nos da sujeição paterna, em abrir o caminho a uma sociedade reza, como se vê com Whitman.
de irmãos, ou em favorecer no "aqui e agora" uma "camaradagem", Uma "política do impessoal" é a que dá consistênciae impulso
ambas diferentes da caridade cristã e da filantropia humanista.35 a essesdevircs. Para além, também do quadro personalista ou perso-
Entre o homem comum, que parece reduzido a uma originalida- nalizante da PÓ/is, ela se dirige às "etnias" e, mais ainda, àquele "quinto
de singular que poderia ser tomada como uma dobra na solidão, e a mundo nacionalitário" de que falava Félix Guattari, o dos sem-pátria,
abertura, pelos laços fraternos, à alma coletiva, há uma corrente con- dos sem-moradia, dos sem existência cidadã39. Uma política que vem
tínua. São dois pólos indispensáveisà criação e à circulação dos flu- reforçar -- ou que vem animar -- o "sonho revolucionário" de fra-
xos intensos. "Em um mesmo mundo", escreve Deleuze a propósito ternidade e camaradagem à Whitman, "essa camaradagem que implica
de Kleist ou de Melville, "alternam-se os processos estacionários e con- um encontrocom o Fora, um caminhar das almas ao ar livre, pela
gelados e os procedimentos de louca velocidade"36. estrada aberta"qu

33 Idem, p. 70. 37Idem, p. 68.


34G. Deleuzee C. Parnet, Dia/aguas, Paris, Flammarion, 1977 (nova edi 38F. Nietzsche,Ainsi par/affZaralbouslra, trad., apres e com. por G. A
ção aumentada 199ól, p. 12. Goldschmidt,Paras,Livre de Poche,1983,p. XI.
3s G. Deleuze, Críflque ef c/iníqua, caps. VI, Vlll, XI, XIIV. 39C. Auzias, "Ethnie vs Polis", Cblmêres, n' 25, primavera de 1995, p. 75
3óIdem, p. 103. 40 G. Deleuze, Crlfiq e ef cl/zzlqne, p. 80.

36 iene Schérer }lomo lanlum. O impessoal: uma política 37


Uma política que não hesitaríamos em qualificar -- se a palavra DELEUZE E A ANOMALIA METAFÍSICA
não repugnasse a Deleuze -- de utópica, não para diminuir sua eficá- Arnaud Villani
cia, mas, ao contrário, para aumentar seu valor. Pois ela designa exa-
tamente esse lugar ainda não atualizado, o "aqui e agora" de um Ere-
mbo/z l/zom-berel4i do qual a escrita traça sempre um mapa e atra-
vessa com suas linhas. Linhas de fuga pelas quais se escapa da "ver-
gonha de ser um homem" para exprimir o homem simplesmente,pomo
fanf z: Ecce bon7zo. Procuramos determinar um campo transcendental
impessoal e pré-individual que não se assemelha aos cam-
pos empíricos correspondentes, nem se confunde com uma
profundidade indiferenciada.
Tradução de Paulo Nunes
IGilles Deleuze, Lógica do semfido)

Pode-se dizer, em princípio, que a filosofia de Deleuze é uma


metafísica cujos traços fundamentais, extraídos ao fim de uma leitura
completa, necessariamentepaciente, e que se proíbe qualquer anexa-
ção prematura, não têm, de fato, ambiguidade alguma: é uma "meta-
física das multiplicidades e das singularidades", que permite a emer-
gência do novo e requer, entre outras coisas, uma univocidade do ser
cujo sentido será necessárioprecisar; é uma "filosofia concreta", que
não receia nada tanto quanto o conceito no sentido clássico do ter-
mo; é uma "filosofia da vida", que não receianada tanto quantoos
ressentimentos e os hinos à morte. Para prevenir contra-sensos a res-
peito dessas leituras, é necessárioentrar nos detalhes íntimos, ir até
uma visão micrológica deleuzianaem que, através do delicado filete
diáfano de uma empreitadatanto para acompanhar como para com-
preender, e à margem de qualquer ressurgimento da tradicional "ima-
gem do pensamento", vem se assentar todo o real em seu pulular.
Deleuze confessava: "Sinto-me puro metafísico". Difere/zça e re-
peflção, Á doba'a:Leibnfz e o Barroco, duas obras que enquadram, por
assim dizer, a obra, o provam a todo momento. Mas essa metafísica é
enigmática: ela evoca a univocidade do ser, o transcendente e o trans-
cendental, porém, não pára de se reccntrar sobre uma imanência que
permanece firme em seu princípio. Para o leitor, seja a leitura bem re-
cente ou muito antiga, Deleuze é sempre um labirinto. A leitura muito
recente o toma por uma "máquina de desnortear", em seguida é antes
concebido como "máquina de orientar". Ê com a condição de dispor
segmentosnecessários para reconstruir por si mesmo o princípio desse
41 G. Deleuze e F. Guattari, Qu'est-ce qz/e /czpbí/osopbiei, p. 96. labirinto, a fim de nele se orientar e orientar o leitor. Dois exemplos

38 iene Schérer Deleuze e a anomalia metafísica 39


}

simples: acreditar que a univocidade do ser excluiria a teoria das mul- se poderia, em um primeiro momento, dissociar realmente superfície
tiplicidades e das singularidades (bem mais central, de fato, na obra) é e simulacro. Mas no fim, e sobretudo na 34' série, as coisas parecem
construir seu próprio circuito, o que é perfeitamente legítimo, mas não mudar. O simulacro torna-se o objeto profundo, o abismo corporal,
coincide, de modo algum, com o labirinto deleuziano. Este, na verda- a organização primária, totalmente distinta da superfície metafísica,
de, não apenas sabe manter juntas essas duas teses,como também não dos acontecimentose do infinitivo incorporal li,S, 257)* . Nesse sentido,
suporta que sejam dissociadas sem perder todo sentido, demonstran- o simulacro não faz mais que imitar a fantasia, o primeiro representan-
do assim na própria obra a potênciada segundasíntesedisjuntiva. O do o risco de uma queda descstruturante no corpo, o segundo, a chance
segundo exemplo concerne o jogo da profundidade e da superfície. Acre- de uma construção da superfície metafísica. Entre essesdois extremos
ditar que a superfície é apenas superficial, ou confundir as Idéias com se sobrepõema altura lo ídolos e a superfícieparcial (a imagem) jtS,
a profundidade é, de imediato, ter perdido toda chance de encontrar 2S21.Daí resulta que, no .4nf/-Édlpo, simulacro vai se tornar um termo
em algum lugar um filósofo chamado Deleuze. Bem se vê, o maior ris- raro, evanescente,sempre aproximado de seu sentido de simulação: si-
co que Deleuze faz correr cm sua própria interpretação (além das ingenui- mulacrosdas pessoasprivadas (AE, 3 15)* *, simulacro de Êdipo, no qual
dades anarco-desejantes) diz respeito ao estatuto do liminar: estatuto se vê que simulacro perdeu toda chance de figurar o essencial(AE, 319).
do conceito, da univocidade, da superfície, dos simulacros, das sínteses. Antes de tentar compreender o que se passou, evoquemos rapé'
Uma dificuldade suplementarvem da própria evolução do pen- damente um segundo deslocamento sintomático. Ele diz respeito à impor-
samento nessa obra. É verdade dizer, em certo sentido, que todo De- tância e ao lugar de Lewis Carroll. Fundamental no início de Lógica
leuze já está em Difere zça e aferição, mas à maneira de um germe, do senado, eleperde subitamente importância desde seu primeiro con-
de um ovo intenso. Aqui realizam-se dobras inconcebíveis, apropria- fronto com Artaud (l,S, 102-3). "Jabberwocky é obra de um aproveitador
das para romper qualquer outra filosofia que não seja larvar, rever- que quis saciar-se intelectualmente, ele, farto de uma refeição bem ser
sões de 180 graus que dão a essestextos uma feição típica, um pouco vida, saciar-se com a dor de outrem... É a obra de um homem que co-
monstruosa lo monstro é o que vai além de suas determinações, move- mia bem, e isso se sente em sua escritura." Deleuze comenta: Carroll é
se em si incessantemente) "fresquinha", saída do ovo, como um em- o pequeno perverso da literatura. A reversão de situação será tal que
brião de tartaruga que acaba de conseguir a dobra em ângulo reto de no fim da 13' série, Deleuze poderá dizer: "para todo Carroll, não da-
suas vértebras cervicais. Mas é também verdadeiro dizer que, apesar ríamos uma página de Antonin Artaud" . Mestre das superfícies e agri-
dessa evolução interna, da qual salientaremos dois aspectos, toda a mensor da lógica do sentido, Carroll cederá terreno para a profundi-
teoria já está inteiramentedesenvolvida em Difere?zçae rePeffção. Isso dade do corpo vital e enfermo e para a aventura nâmade de Artaud, de
significaria que viragem do pensamento, progresso e aprofundamento modo que o Alzfi-Édito poderá notar: "Carroll ou o covarde das Belas
são apenas aparentes? Letras!". Inversamente, Artaud ganha uma figura gloriosa e durável de
Considere-se a viragem efetuada sobre a idéia do simulacro. Di- personagem conceitual, incontornável, bastião de uma indissociabilidade
ferença e repef/çãofaz do simulacro um sistema no qual o diferente entre o real mais encarnado, e a aventura mais ideal, a que experimen-
se relaciona com o diferente pela própria diferença IOR, 335) '. Tal siste- ta a virgindade de um deserto. Novamente, o que aconteceu?
ma junta o SPaflzzm,as séries disparatadas, o precursor sombrio, as Acreditamos que não se trata nem de recuos, nem de renegações,
ressonâncias e movimentos forçados, os sujeitos larvares: como dizer tampouco de hesitação sobre o plano de conjunto. Se o simulacro ou
melhor seu lugar decisivo na obra? Continua-se a encontrar essa valo- Lewis Carroll, ligados evidentemente pela necessária emergência da su-
rização do simulacro nos apêndicesda l.ógica do sezzfido.Todavia, o perfície, estão a princípio tão em vista, e terminam apagados, evanes-
colorido é aqui nietzschiano, polêmico, voltado para a reversão do centes, é porque a própria idéia de superfície, por demais ambígua,
platonismo. O próprio texto de Lóg/cózdo sezzffdoé mais amt)íguo. Não
* Logíqz/ed sons, Paras,Minuit, 1969, p. 257 (doravante i.SI. (N. do E.l
* Di/7ére zce ef rí$éffríon, Paria, PUF, 1 968, p. 335 (doravante DR). (N. do E.) * * L'afzff-(Edlpe, Pauis, Minuit, 1973, p. 315 (doravante .4E). (N. do E.)

40 Arnaud Villani Deleuze e a anomalia metafísica 41


sobredeterminada pela exigência de uma reversão do platonismo e pela 379; LS, 62, 262, AE, 79, 106; sobre a ressonância e movimento for-
armadilha de uma concepção por demais estruturalista das séries,cede çado, DR, 155, 374; LS, 279 e 280).
lugar, progressivamente, à idéia de plano de imanência ou de consistên- O Anfí-Édlpo é a consideração, até as últimas consequências, da
cia. Carroll ou o simulacrosão a superfície,mas não lastreadacom potência de deslocamento do esquizofrênico. Esta obra é a um só tempo
aquilo que preserva essa superfície transcendental ou metafísica de fugir a explicação da corporalização progressiva da Lógica do sefzfido e da
para "Coucouville-les nuées": o lastro de seu fundo temeroso, as má- inversão da relação entre Carroll e Artaud, e o verdadeiro nascimen-
quinas do desejo e seu reboliço, o passeio esquizofrênico em que se mo- to das síntesestais como elas se manterão até o fim da obra. Com efeito,
vem o enfermo e o maravilhoso do homem. Artaud faz a superfícievirar se certo estudo recente (A. Badiou, Deleuze, Paris, Hachette, 1997) dá
para o que ela realmente é: plano de imanência, pela intercessão do o papel principal nas síntesesà segunda, como se as outras não exis-
corPO sem órgãos. tissem. e como se cada uma não se desdobrasse,de modo que, sendo
Poderíamos, portanto, reconstituir uma gêneseideal do deleu- essa síntese a do tempo puro (aionl e portanto da indiferença unívo-
zianismo em seus três primeiros momentos. DIÁe7ençae repetição cor- ca, a passagem inimaginável da filosofia deleuziana para uma ontolo-
responde a uma etapa filosófica no sentido mais clássico, de uma den- gia do Um-Todo (que permite relegar multiplicidade,virtualidade e sin-
sidade quase insustentável, considerada no momento em que a teoria, gularidadepara o mal-entendido,a ignorância ou, pior ainda, para o
orgulhosa de suas idéias novas, "solta seus esporos". O momento gracejo do mestre diante dc seus discípulos), torna-se passível de con-
determinante passa a ser aquele em que Deleuze descobre uma segun- sideração -- uma leitura rápida demais proibiu de levar em conta a
da síntese na qual, saltando o instante presente, o futuro c o passado evolução tão significativa da classificação das sínteses. Em Diferença
se distendemindefinidamente,criando a "forma pura do tempo", chave e repetição, as duas primeiras têm uma identidade, mas porque a ter-
da univocidade do ser, de seu "sobrevoo absoluto" indiferente, de sua ceira ainda é procurada, conclui-se o bloco das sínteses sobre a segunda,
diferencialidade.No segundomomento, l,ógica do se/zf/do(obra so- com a seqüência:conectiva, conjuntiva, disjuntiva. Desde Lógica do
bre a qual Deleuze mais tarde manifestou reticências, achando, nota- senado, a ordem se modifica e torna-se definitiva: conectiva, disjuntiva,
damente, tal tentativa dependente demais do estruturalismo) consagra, conjuntiva. Em quê tal modificação da sequência tem sentido?
a um só tempo, o compartimento vazio e já desloca seu sentido para Concluir com a conjuntiva é entrar nas próprias coisas. Badiou
a "instância paradoxal" ou disparate. Comer-falar é ainda Carroll, mas fica no meio do caminho, suspenso. Depois do plano ideal de montagem
vai conduzir rapidamente a Artaud. O compartimento vazio está prestes das máquinas é preciso ir à Áãbp'icada teoria do desejo,para a relação
a migrar do vazio ao pleno, a superfície não se determina mais contra comer-falar, para os acontecimentos que concernem os corpos vivos e
a altura e a profundidade, mas leva consigo uma parte do profundo e do qual Artaud é a infalível testemunha. Daí a escolha necessária, e que
introduz a anomalia metafísica de um incorporal que não fala a não a filosofia deleuzianaassina: Carroll é covarde porque a verdadeira
ser dos corpos, simplesmenteporque, Idéia ou transcendental,ele o metafísica entra nos corpos e sofre com eles. "A aventura das Idéias
constitui. Em l,ógíczzdo selzlfdo,a teoria gíz?z#acorPO. Ela faz mudar jconforme o título de Whitehead) se inscreve nos ossos, na carne e no
a superfície e seu vicariante, o simulacro, para c07POsem órgãos e seus sangue, mas não se abole na armadilha de Tânatos: precisa, desde então,
gradientes, o que será mais tarde e logicamente planâmena ou platâ. traçar a fulguraçãode virtual a virtual, pois o jogo do corpo repousa
No mesmo lance, a característica da segunda síntese transborda: inteiramente sobre o virtual, com a condição de Ihe deixar a latitude de
ela vem explicar sobre o quê se faz a "contração" típica da primeira ir até o fim do que elepode. O conjuntivo é o momento, maravilhoso ou
sínteseconectiva, que lança toda a máquina do desejo; ela dá igual- aterrorizante, do "retomo" da operação: "é, portanto, é então" . Fui então
mente conta do efeito dc retorno da terceira síntese,que permitirá a eu, Edipo, o responsável por todo o estrago, foram então vocês, papai-
um só tempo assinalar um ponto de encontro e desloca-lo incessante- mamãe, que estavam no fundo de minha história; era então isso, o amor...
mente'sob o efeito do mouime/zfoforçado que segue a resso#ánczcz a O transcendental acaba de encontrar seu lugar exato, indicando,
partir desse ponto lsobre a evolução das sínteses,ver DR, 125, 271, ao mesmo tempo, o do transcendente.Embora DIÁerençcze repetição

42 Arnaud Villani Deleuze e a anomalia metafísica 43


tenha dado a entender que toda "imagem do pensamento", a coxa pró- Tal elevação da sensibilidade, da imaginação e do pensamento à
pria a toda filosofia continua, apesar de notáveis exceções, obcecada enésima potência, a esse /fmife onde o mais sensível e o que só pode
pela transcendência, é a terceira síntese, que aparece claramente em ser sentido torna-se também o insensível, Deleuze a chama, conforme
Lóg/ca do sentido, que, duplicando-se, duplica, por sua vez, cada sín- uma tradição kantiana, " uso transcendente das faculdades". O termo
tese precedente e põe em evidência dois usos, imanente e transcenden- 'transcendente" significa, então, essa passagemao limite que revela
te. O "e... e" de conexão imanente torna-se um "e isso... e mais aqui- todo o poder de uma faculdade, descobrindo uma idealidade. Tal uso
lo" de cômputo transcendente, em vista de uma estocagem. O percur- é, portanto, congruentecom a pretensão metafísica da teoria deleu-
so dos fluxos livres sobre o corpo liso, a conexão das séries ou das li- zeana. Mas ele não deve ocultar a liberação essencial de um uso trans-
nhas tornam-se inscrição sobre o corpo da terra, do déspota, do capi- cendente das sínteses, em que, muito pelo contrário, o que pode é se-
tal, a fim dc que nenhum fluxo corra que não seja "codificado". O "seja... parado daquilo que pode jportanto, de seuspróprios encontros). E por
seja" de disfunção inclusiva imanente como circulação sobre cada li- isso que a metafísica será caracterizada em Deleuze pelo transcendental,
nha nos dois sentidos, ou salto de uma linha a outra(com o sentido real um transcendental, todavia, que não é condição de possibilidade dos
da univocidade do ser como manutenção, pelo benefício do aios, de cada conhecimentosou da experiência,e sim dos nascimentos. O empirismo
série em qualquer outra, em que uma "volta" à outras, torna-se um "ou... transcendental é, pois, o que pode pregar uma peça no transcendente.
ou" de disjunção exclusiva transcendente, em que fazer isso é privar-se A potência do transcendentepede ao transcendental uma potência
daquilo, ser isso é renunciar àquilo... A síntese conjuntiva é, assim, triunfo segunda, própria a bloquear aquilo cuja potência é bloquear. Em si
da iminência (então era esse o segredo, em Cézanne, da mão de Ambroise mesmo, com efeito, o transcendente barra qualquer novidade, produz
Vollard, a cor mal-acabada do calçamento sujo em Véronêse, que per- a infinita repetição do mesmo, debita as pobrezas do Um-Todo ("0
mite, no entanto, tornar esplendorosa, como só elesabe fazer, uma carne ser, o Um e o Todo são o mito de uma falsa filosofia impregnada de
de mulherl, ou triunfo da transcendência, reino da culpa, do ressenti- teologia", insiste Deleuze, LS, 323). Bloqueando o efeito inclusivo do
mento, da neurose, dos cânticos à morte, em um "então é isso" já po- disjuntivo jreceando o deserto), o transcendentereduz as linhas infi-
licial. O desejo recai sobre a falta, o nomadismo sobre uma triangulação nitas a pontos centrados, o diferente, cuja qualidade é de "voltar" a
edipiana, as produções maquínicas sobre um teatro da representação, reproduções -- o idêntico, o imprevisível --, a monofo/lias.
a riqueza do delírio schreberiano sobre uma pobre história freudiana, Há o melhor Kant em Deleuze, o que descobre a ilusão necessá-
que não sabe sequer localizar o verdadeiro papel do pai do presidente, ria em que cai o espírito quando ele transforma a unidade distributiva
com sua ideologia ético-ginástica Inundada sobre a retidão e a interrupção em unidade coletiva, e quer chegar a qualquer preço a um objeto trans-
no desejo) à qual milhares de alemães aderiram sem esforço. cendente, assinalado e fixo, ao invés de desenvolver a dinâmica das
O papel da transcendência no A/zli-Édlpo torna-se claríssimo. Ela regressõesindefinidas nas causas, com o único fim de unificar o es-
distribui as síntesesem dois usos, faz aparecer o uso imanente no mo- forço do entendimento.O transcendentalnunca é objeto fixo, e sim
mento em que o conjura c o prende, constitui os aparelhos de captura virtualidade, em todos os níveis. Sua exigência de uma volta diferen-
do Estado, as máquinas de guerra do déspota, as territorializações ine cial transforma a lógica das substânciase dos atributos em lógica do
rentes à desterritorialização calculada do capitalismo. A transcendên- acontecimento, o próprio acontecimento é inassinalável, o ponto de
cia se faz concreta, pode ser tocada com o dedo em todos os domínios encontro das linhas, localizáveis, com certeza, na origem (tal ponto do
do cotidiano, mas ao mesmo tempo compreende-seque ela é o poder corpo do nadador e tais pontos da onda, tais elementosdo cavaleiro
do abstrato e da morte quando priva as singularidades e as intensida- e tais de sua sela, prontos para agenciamenfos), em fluxo de pontos
des de produzir esse selztiendam, esse Imaginandum, esse cogffandzím fractais dispersos em velocidade infinita pelos retornos do movimen-
que são o que há para sentir e o que é limite insensível, o que há para to forçado. Assim, nada existe senão objécteis, surperjatos lo sz/per7ecf,
imaginar e permanece o inimaginável, o que há para pensar e persiste de Whitehead), neblina ou enxame. Ser sujeito larvar significa apenas
como impensável (consultar as páginas essenciaisdeDR, 182 e seguintes). poder tomar, enquanto neblina, com outra neblina, por uma espécie

44 Arnaud Villani Deleuze e a anomalia metafísica 45


de tece-sexualidadeque lembra a relação da vespa e da orquídea. Não fulgurar em todos sentidoscores, formas, olho, luz, imaginação, ger-
é a pré-individualidadeque é a morte, mas seu receio, que nos fixa e minação da montanha e das maçãs, janelas violetas, desejos, em um nó
prende. E de todo modo, quem poderia se vangloriar de ser tão firme flamejante que, em uma única vez, re-determina uma infinidade de li-
em si mesmo que nenhum Rosebud secreto, nenhuma noite de sonho, nhas -- linhas de pintores e de poetas em nós, linhas de vida, para novas
nenhum momento de ausência poderia ainda fazê-lo partir para o de- linhas de fulgurações de palavras, de sons, de construções... Esse intocável
serto e voltar inteiramente diferente, aparecendo, através da velha insensíveldescoberto então, a nudez incorporal, o ser-nu, o "se des/zu-
bruma que se levanta, como o sempre "recém-nascido" cür", são, compreendidos a fundo, o mais metafísico (nem conceptual,
O que é então a anomalia metafísica da filosofia deleuziana? É, nem abstrato) e o mais concreto, o mais vivo. Anomalia metafísica.
antes de tudo, essa estranha persistência em criar uma metafísica quando Em um terceiro sentido ainda, pode-se ver uma anomalia meta-
o interesse vai objetivamente para as multiplicidades virtuais e intensas, física em Deleuze. Se há o risco de compreendê-lo como um filósofo
para as singularidades, e nunca para as conceitualidades, nem para as do Um-Todo, da abstração ascética e da morte, é que essa metafísica
individualidades. Mas essa metafísica é necessária, em primeiro lugar, deve ser apreendfdíz. Seu mundo, vibrante a cada linha, e que já cau-
como teoria das idealidades como limite das faculdades, em seguida como sava nosso maravilhamento em Thoreau, Hopkins, Melville, Stifter,
caso de solução (nunca há caso de conceito em Deleuze, só casos de Friedrich, Lawrence, Powys, em todos aquelespara os quais a vida é
soluçãol do problema de uma metafísica inteiramente imanente je so- grama /czrgee gra/zd /argwe, esse mundo deleuziano cintilante como uma
bre esseponto Deleuze vai mais longe que seusguias: Bergson e White- poesia filosófica enfim realizada, marmóreo singular de intensidades,
head, depois Espinosa), enfim, como elaboração terminada do trans- mundo do movimento por excelência, deve ser, ao mesmo tempo, li-
cendente, em seus dois sentidos: o positivo afirmativo, o negativo ilusó- vre e apreendido. Não apreende-to significa que se tem medo, tattpez,
rio, que ele mesmo opera duas vezes: bloqueando as síntesessobre um do que ete traz consigo de " besteira", de fundo saio, de " lama, poT-
único uso, operando a separação da razão dos fenómenose dos pró- carfa, pê/o ", de i/comi/z(íue/,expondo-se assim à insuportável abstra-
prios fenómenos.Separada do transcendente,a Idéia, outro nome do ção de uma filosofia dos "grandes significantes". O único problema
afon, não é nem inteligência nem inteligível, mas P/a?zode co/zcrescência. da apreensão é o seguinte: não apreender o que já está em seu lugar,
O segundo título ao qual se pode falar de anomalia metafísica em sob a jurisdição do Um e do Mesmo, mas apreender justamente o que
Deleuze é sua total insensibilidade para o tema lancinante do século XX: não está no lugar, sem impedi-lo, no entanto, de continuar a criar
o fim da metafísica, a superação da metafísica. Ela não deve ser aqui saltando por cima de si mesmo, e mais longe.
ultrapassada "como se ultrapassam suas lágrimas". Ela é o único ins- Tal apreensão é auto-apreensão. Ela admite, ao que parece, três
trumento para compreender o que há de real no real, sua dobradura tempos:
sempre plena de novo. A dobra deleuziana é o infinito "ao alcance da 1) As próprias coisas sc tecem e entretecem e, por acontecimen-
mão", uma espécie de projeção à Desargues. E não porque um princí- to repentino,por captação mais do que por captura, "prendem-se
pio transcendenteexplica esse infinito e se confunde com ele. O infini- 2) Esse encontro encontra no fractal de um e no fractal do outro
to é o apela'0sde um retorno dentro-fora, sobre o limite. Por que retor- jsua dobra), a indefinida repetição das indefinidas angularidades que
no, e do quê? Retorno do ponto limite onde o insensível torna-se sen- mudam, incessantemente, a direção geral (princípio de heterogeneidade
sívele inversamenteItudo secomunica, então, com tudo, atravésde uma e de indivisibilidade-sem-mudar-de-natureza, que define o virtual como
contração de feição neoplatânica e romântica: nós nos enchemos de luz, bloco de multiplicidade), mas, ao mesmo tempo, a tomada metamorfo-
de árvores, de animais; primeiro esboço das sínteses, DR, 99). Que se seanteque, substituindo o compartimento vazio, recapitula com veloci-
pense nos nus da poesia, da pintura. Eles diferem, em primeiro lugar, dade infinita dobras e redobram,e por toda parte onde uma singularidade
das longas teorias de homens e mulheres nus, definitivamente separa- como ponto notável brilha na vizinhança de seus pontos regulares, faz
dos daquilo que podem: miséria da Folgade morre ICelan). O nu poé- surgir a luz de uma elevação na mais alta potência, ou seja, a potencia-
tico e pictórico é o se/zliend m (o a-sentir insensível, ideal), que faz lização pela passagemde todas as linhas em cada ponto. A preensão

46 Arnaud Villani Deleuze e a anomalia metafísica 47


metamorfoseante faz tomar em um ponto das linhas que não cessam T TNriJAÇ T)n Ar-Ãíl T\A r\TFFDENTT'A
XZ U UX J \S/ \J X/ZL J./llX=lLL'Xl\3JZL
em seguida de tornar-se uma a outra sem jamais tornar-se idênticas Luiz B. L. Orlandi
IDáfnis e Cloé). Uma linha apreende a outra e se deixa apreender por
ela. Dupla apreensão, nos dois sentidos, sobre a univocidade sem limite
do aios indiferente.
31 Produz-se, portanto, no ponto de apreensão, que, ponto singu-
lar entre todos, atrai o "raio", uma anomalia. O ponto de preensão,
como mostra perfeitamente Mi/ p/ízfõs("Devir animal..."), é o óz/zóma- Pode-se dizer que Gilles Deleuze elaborou uma filosofia da dife-
ro, a/z-boina/os,o desigual em si e para si mesmo, sempre deslocado, rença oposta à primazia do idêntico. Os estudiosos ligam hoje seu nome
que DfÁere/zçzze repetição já procurava. O anómalo é berero-Éafb 'óe- à idéia de uma filosofia da imanência oposta ao privilégio deste ou
fero no ponto em que a Idéia platónica era [zufo Êzzlb'bazífo.E, por daqueletranscendente.Pode-sepensar tambémsua obra a partir dos
uma singular epidemia, toda a linha dos pontos singulares da neblina termos que ele emprega em um dos seus últimos escritos para definir
que somos em nossa realidade íntima ganha a cor da anomalia, tor- a própria filosofia como "teoria das multiplicidades"l
na-seapTeensíuel,não por uma inteligência,mas por uma sensibilida- Não se trata, obviamente, de contrariar essas fórmulas. Mas é
de, uma imaginação, um pensamento prontos para a apreensão, o que preciso dizer o que elas, por força de sua própria concisão, deixam de
quer dizer metafísicas. O anómalo é o fundo da metafísica deleuziana, certo modo em silêncio. Quando se procura algo mais através delas,
é o ponto de sobre-apreensão em que as linhas se apreendem uma a vê-se que as obras de Deleuze implicam linhas de ação da diferença,
outra, e se apreendem a si mesmas como tinhas, desiguais para sem- que são não apenas praticadas como também tematizadas. Vê-se que
pre nelas mesmas, nessa simples borda que faz seu ser (extra-sev). essas linhas, enquanto fluxos intensivos e enquanto portadoras de
Movimento indefinido contra a morte. Não há cântico à morte potências expressivas e interrogativas, vivem num constante estado de
em Deleuze, antes o contrário: "não há nenhum de nós", declara ele experimentação: vê-seque elas experimentam a si mesmas nos encon-
retomando Miller, "que não seja culpado de um crime: aquele, enor- tros por elas provocados ou nos encontros que lhes são impostos por
me, de não viver plenamente a vida" (ÁE, 400). E se se objetasse o outras linhas da diferença em ação, linhas constitutivas disto ou da-
suicídio final, textos claros sobre Bousquet já o anunciam como co/z- quilo, constitutivas deste ou daquele signo, deste ou daquele aconte-
[ra-eÁefuação,último amor da vida pela vida, naquilo que ela pode cimento, ou até de um novo tipo de relação esportiva com as águas,
ainda testemunharde vida. Mas, graças à metafísica, tal vitalidade é com o ar etc.
tangível, apreensível. E justamente inapreensível, insensível, de modo Os escritos que contaram com a participação de Deleuzepodem
que se pode ainda nomeá-la metafísica. A univocidade já não é tanto ser resumidamente pensados como variado lugar de encontros, como
a do ser como de todos seus equivalentes, mais claramente: corPO sem movediço lugar de articulações dessa dupla vertente de linhas. Nesse
órgãos, espaço liso, deserto. Mas, como sabem os hebreus ou Hólderlin, lugar, conceitos aí mesmo elaborados ou vindos de outras filosofias,
o desertoé momento da mais alta consciência. Traduzimos: o momen- de outros planâmenos, portanto, sofrem variações em função do me-
to em que os falsos-problemas, os falsos-movimentos, as falsas-parti- lhor encontro, da melhor conexão possível com aquilo que se trata de
das, as falsas-leituras,os artifícios do conceito e da coxa, tão ocupa- dizer ou redizer segundo um modo filosófico de pensar. E aquilo que
dos em mascarar o trabalho de assentamentodos fluxos pelo trans- se impõe ao encontro, ainda que se apresente com seu aspecto de uni-
cendente. se levantam como uma bruma ruim. E em um céu-inocên- versal abstrato, com seu ar de dura generalidade, é, nesse lugar, ime-
cia que Achab sempre encontra Moby Deck, que uma mão encontra
um quadro, que um homem encontra uma mulher. E tudo recomeça.
l G. Deleuze e C. Parnet, "L'actuei et le virtuel Dialogwes, Paras, Fiam
Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro marion, nova ed., 1996, anexo, cap. V, pp. 179-81.

48 Arnaud Villani Linhas de ação da diferença 49


diatamente capturado como signo a ser decifrado, isto é, como coá- que consiste em valorizar os "erros" de leitura e interpretação que De-
gulo provisório de linhas de ação da diferença, linhas a serem seleti- leuze estaria cometendo ao escrever livros propícios aos seus filóso-
vamenteditas. Em outras palavras, a pressuposiçãoontológica desse fos-aliados e observações contrárias aos seus filósofos-adversários.
lugar de encontros, o ser como imanente diferenciação, aplica-se aos Os escritos de Deleuze, ou aqueles que contaram com sua parti-
dois lados que nele se encontram: aplica-se à própria coisa que se im- cipação, esse complexo dispositivo de escrita, em suma, não se reduz
põe ao lugar e às multiplicidades conceituais aí disponíveis, uma dis- a um lugar sedentário em que certas filosofias são postas a atacar outras
ponibilidade, aliás, pulsante, pois esse lugar de encontros não pára de ou a se defender contra as demais. Definindo-se esse lugar como o de
circular por essa imensa tabela de múltiplas entradas que é, para De- afirmação positiva, como o da produtividade das linhas de ação da
leuze, a história. diferença, o destaque de aliados e adversários passa a ser insuficiente.
AÍ está uma das razões pelas quais é insuficiente circunscrever o O que importa, isto sim, é a captura de alianças e mesmo de desacor-
pensamento de Deleuze como cruzada contrária ou favorável a esta dos pontuais que se fazem e se desfazem em função ou a propósito de
ou àquela filosofia. Conforme aquilo que está em pauta nos encon- algo vindo à tona ou posto em pauta. Em outras palavras, esselugar
tros das linhas, armam-se alianças, algumas delas mais duradouras que circula como que à procura dos encontros que sejam mais produtivos,
outras, mas aparecendo todas elas como que em fragmentos, confor- mas essa produtividade não se define do ponto de vista desta ou da-
me a oportunidade do momento. Sem dúvida, os comentadores fazem quela macroaliança e nem do estrito ponto de vista de um sujeito-
uma leitura correra ao observarem o quanto o pensamento de Deleu- Deleuze entregue a fazer decalques do seu próprio estado de coisas;
ze se sente bem consigo mesmo em companhia de Espinosa, Hume, essa produtividade se define, isto sim, do ponto de vista da momentânea
Nietzsche, Bergson,Whitehead, Foucault etc., mas tambémdo méto- modalidade de encontro das linhas pelas quais a diferença escorre suas
do platónico da divisão, de certa tese estóica sobre os incorporais, da potências.
univocidade do ser em Duns Scot, da terceira crítica kantiana, da do-
bra leibniziana, de certo aspecto da tese de Simondon sobre a indivi- Mas também não basta dizer essas coisas. Além de tentar enten-
duação etc., etc. Eles têm ainda razão quando gritam a incidência da der como Deleuze conceitua essaslinhas, é preciso perguntar pela com-
crítica deleuziana ao tratamento que Hegel, segundo ele, dispensa à posição elementardos próprios encontros dessas linhas, isto é, pelos
diferença, quando assinalam sua crítica ao trajeto curto do arco in- elementosque nelasatuam. Gostaria, aqui, de destacar algunsdesses
tencional fenomenológico ou quando destacam a defesa que Deleuze elementos: a instância problemática que propicia esses encontros, certa
e Guattari fazem da filosofia como "disciplina criadora" de concei- motivação liberadora que elescomportam, assim como algumas for-
tos, em oposição, portanto, à definição do conceitocomo proposição ças que, presentes no homem, estão implicadas na processualidade
ou função científica, confusão praticada, segundo eles, por Gilles- criativa dessas linhas.
Gaston Granger, por exemplos. Primeiramente, como caracterização mais geral, pode-se dizer que
Embora essescomentários sejam formalmente correios, é preci- esse lugar de encontros -- lugar anualmente perceptível como conjunto
so evitar, contudo, que eles se reduzam a uma de suas superficiais de escritos que tiveram a participação de Deleuze -- propaga-se, de
conseqijências,qual seja, a que consiste em se tentar ordenar a obra certo modo, enquanto vibração de um paradoxo. Esse paradoxo tal-
de Deleuze como um campo no qual filósofos propícios a uma filoso- vez seja o mesmo que ele enuncia ao compreender, à sua maneira, a
fia da diferença são postos a combater filósofos da representação. Essa ligação entre vários princípios espinosanos, por exemplo, o princípio
conseqüência acaba autorizando uma outra, igualmente superficial: a que afirma uma só substância para uma infinidade de atributos, Deus
sine Nafnra, e os princípios que afirmam uma só Natureza, sejapara
todos os corpos, seja para todos os indivíduos etc. Deleuze compre-
2 G. Deleuze e F. Guattari, Qu'esr-ce qzlela p#í/osop#ie?, Pauis, Minuit, 1 991 ende a ligação entre esses princípios como sendo o espraiar, o desen-
PP. 36-7. rolar, a exposição de um "plano comum de imanência", um plano, diz

50 Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 51


ele nestecaso, "onde estão todos os corpos, todas as almas, todos os diata". Essa "vida de pura imanência" é pensadacomo "puro acon-
indivíduos" tecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior"5
Pois bem, esse plano é irredutível a um "desígnio no espírito", a Pois bem, os encontros que intensificamos escritos de Deleuze
um "prometo" ou a um "programa". Ordenações desse tipo, supondo marcam sua obra como lugar de rastrosde entre-tempos,de trans-
a transcendência do sujeito e do objeto e ganhando as mais variadas passagens em que tantos conceitos acontecem. Se isso pode ocorrer,
tonalidades, desde as acadêmicas e professorais até as burocrático- então, um plano de imanência em que acontecem conceitos, amzzvida
presidenciais, são uma redução que já se efetua nas escadarias de um filosófica, portanto, não é apenas um conjunto de entre-momentosnos
plano de "transcendência" jseja teológico, evolucionista ou de poder quais seentra de quando em quando como quem entra numa atmos-
político) ou num plano dc "organização" estrutural ou genética. fera de consumo daquilo que faltaria à satisfação de um prazer. Em
Um plano de iminência espalha-se,erige-sede outro modo. Pode outras palavras, as fulgurações de ama vida implicam fiapos de cen-
receber também o nome de plano de "consistência" por ser pensável, telhas que saltam de um lance de produtividade a outro. Ora, é im-
em "sentido geométrico", como "seção, interseção,diagrama". Para possível não ver justamente aí o paradoxo que perpassa esse lugar de
Deleuze, "instalar-se" nesseplano de iminência, erigir um lugar "no encontros: esse lugar move-se num plano que é, diz Deleuze, "plena-
meio de Espinosa" (como ele diz a propósito de um dos seusmais belos mente plano de iminência", mas que, "todavia, deve ser construído"Ó
encontros), manter com esse filósofo maior um "encontro e um amor", Que fazer para que a atividade construtivista imersa nesse plano não
compor com eleesse lugar permeávelao "encontro do conceito e do acabe, diretamente ou por ricochete, sedimentando uma instância trans-
abeto"3,tudo isso pressupõeum difícil agendamento, exige uma ra- cendental? Atravessa a obra de Deleuze esse cuidado para não resol-
dicalidade notável, pois tudo isso "implica um modo de vida, uma ver a favor de transcendentes ou de instâncias transcendentais o pa-
maneira de viver"4. radoxo que consiste em deixar-se nomadizar construtivamentenum
Que há de radicalidade nisso? É que a vida, apesar dos transcen- plano de imanência.
dentes que a ocupam e apesar do seu suceder-se em meio a referenciais Esse cuidado é extremamente agudo e dramático, justamente
empíricos, é também ela uma potência capaz de imanência. Com efeito, porque a motivação ontológica e ética (não moral), que parece tam-
para que um "campo transcendental", não um plano, possa tornar-se bém atravessar todos essesencontros e que vai ritmando a pergunta
um "verdadeiro plano de imanência", é preciso que ele preencha as pelo surgimento do novo no m undo, é a da constante liberação de algo,
condições que levam Deleuze a definir o próprio plano de imanência seja lá o que for, de tudo aquilo que esteja supostamente separando
por "amíz vida". Uma vida, gritando-se o artigo indefinido como "ín- essealgo das linhas que fluem como sendo sua "diferença interna",
dice" da imanência-transcendental, "é a imanência da iminência", diz essacomplexa "unidade da coisa e do conceito"7
Deleuze, a "imanência absoluta". É concebida como uma "singula- Assim, por exemplo, libera-se pensar no pensamento, libera-se
rização" que, para além da "individuação", para além ou aquém da o pensamento dos pressupostos de sua imagem representativa. Dife-
inserção do indivíduo no conjunto de suas "determinações empíricas", rença e questão são liberadas do ser e do ser do negativo. Libera-se a
instala de tempos em tempos uma "vida impessoal", mas "singular", diferença de sua subordinação à "identidade do conceito", à "analo-
vida plena de "entre-tempos" e "entre-momentos", plena de trajetos gia do juízo", à "oposição dos predicados" e à "semelhançado per-
transtópicos que se transpõem "no absoluto de uma consciência ime-

5G. Deleuze,"L'immanence: une vie-.", Pbl/osopbíe,n' 47, 1/9/95,pp. 3-7.


3 G. Deleuze, SPílzoza. Pbf/osopbfe p7czfíqz/e,
Paras, Minuif, 1981 , pp. 1 64 e 6 G. De\euze, Spitioza. Pbilosopbie pratique, p. 16S
174.
7 G. Deleuze, "La conception de la différencechez Bergson", l,es Éfudes
4 idem, p. 165. bergsoPzíen?zes,
vol. IV, Paris, Albin Michel, 1956, p. 81.

52 Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 53


bebido", quatro "aspectos" ou "quádrupla raiz"8 de uma robusta po fora dos gonzos, leva essa expressividadepoética ao encontro da
arborificação metafísica. Do bom senso comum libera-se um para'sen- noção kantiana que pensa o tempo como "forma autónoma", como
so. Libera-se, como substantiva, uma multiplicidade não mais circuns- forma "imutável da mudança e do movimento"13. E assim por dian-
crita aos jogos do Uno e do Múltiplo. É liberado o tempo de suas te. Iríamos muito longe se tivéssemos a pretensão de levantar a enor-
amarras cronológicas. Liberam-se relações dos termos anuais relacio- me série de liberações presentes nos escritos deleuzianos, série que por
nados. Libera-se o desejo de sua determinação pela falta. Libera-se uma si só mereceria cuidadosas pesquisas.
pura consciência imediata sem objeto e sem eu"9. Nos encontros com O que vimos até agora basta para nos levar a constatar que há
o cinema, libera-se a imagem-tempo dos parâmetros da imagem-mo- uma tensão entre um paradoxo, aquele que consiste em instalar-se
vimento. Em muitos platâs, o c07POsem órgãos é liberado da orga- construtivamente num plano de imanência, e uma motivação, aquela
nicidade do corpo biológico ou da intencionalidade do corpo próprio. que consiste na tendência de liberar o próprio pensamento no sentido
Libera-se o inconsciente de sua reterritorialização familiar. Como o da liberação das diferenças internas daquilo que dá o que pensar. Como
sorriso que se libera do gato de Lewis Carroll, o "sentido", como as operações de liberação levam os liberados a certo reencontro de suas
"acontecimento", libera-se, por inspiração ancorada nos estóicos, de virtualidades, e como o plano de imanência é essencialmentevirtual,
suas reduções à "proposição" ou aos "termos da proposição", libe- então, liberar conceitualmente algo vem a ser, portanto, um modo fi-
ra-se do "objeto" ou do "estado de coisas que ela designa", do "vivi- losófico-deleuziano de vida, uma maneira de se instalar ou de surfar
do", da "representação ou atividade mental daquele que se exprime num devir de Idéias, uma maneira de viver entre-temposabertos no
na proposição" e até dos "conceitos ou mesmodas essênciassigni- decurso de uma existência empírica, uma maneira de freqüentar cons-
ficados" 10. 0 acontecimento, ele próprio, é liberado do estado de coisas trutivamente um plano que, apesar de imanente, deve ser construído.
em que se efetua. Libera-se o problemático das determinações que o
circunscrevem às limitações do sujeito de conhecimento ou à sua es- Pois bem, essa tensão é que pareceanimar a explícita lematiza-
gotabilidade nas respostas e soluções. Com Le/bnlz e o Barroco a dobra ção das linhas de ação da diferença. Os conceitos que aí se elaboram
libera-se e "vai ao infinito"l i. Línguas menores, como em Kafka, são dizem respeitoa uma "noção complexa", à noção de uma dupla arti-
vistas liberando-se da gramaticalidade de uma língua maior etc, etc. culação de operações que constituem por exemplo o "sistema" da
Com as operações de liberação, os liberados são como que levados a "ldéia", entendida esta como "multiplicidade substantiva" comportan-
variados reencontros de suas virtualidades. E o que acontece, por exem- do "# dimensões", comportando, pois, o conjunto de "variáveis ou
plo, quando Deleuze, lendo a fórmula shakespeariana "the time is out coordenadas das quais", diz Deleuze, "um fenómeno depende"14. Em
of joint"i2 como reconhecimentoda insubordinação do tempo e ex' sua inteireza, a Idéia é um sistema de diferenças determinado por uma
plicitação da extrema dependência de Hamlet em relação a esse tem- complexa articulação de "diferençações" (dz/@renf/adio/zsl e "diferen-
ciações" (dl/#re/zcfaf/onsl.Toda e qualquercoisa, sejanatural ou ar-
tificial, seja física ou social, seja uma cor ou um poema, até mesmo
8G. Deleuze, Df/Xérenceef réPéfff/on,Paras,PUF, 1968, pp. 45 e 49. um conceito, comporta, no mínimo, essa dupla articulação própria da
9 G. Deleuze, "L'immanence: une vie-.", oP. cif., p. 3. Idéia dita "inteira" i)
io G. Deleuze, Logiqz/e du sons, Paras, Minuit, 1969, pp. 45 e 31.
n G. Deleuze, Le Pli: l,eibniz ef /e Baroqzle, Paras,Minuit, 1988, p. 5.
i3 G. Deleuze, "Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la phi
iz Shakespeare, Ham/e1, 1, 5. Aliás, Philippe Sollers expande essa fórmula, losophie kantienne" it 986), retomado em Críflq e ef cl/níque, Paria, Minuit, 1993
quando, assinalando a necessidadede liberar a obra de Shakespeare de certas tra- PP. 40-2.
duções francesas, faz referência a "urna força que é a do mundo quando este sai
i4 G. Deleuze, D1/7érepzce
el répéfíflon, pp 236-7.
dos seus gonzos, quando se dfs/ lzfa". ("Shakespeare en direct", Le molzde des /i-
pres, lO/1 1/95). ]5 /dem, p. 285.

54 Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 55


As dlÁere/zçaçõesacontecem numa das metades da Idéia, no seu "essencialmentepré-individuais, não-pessoaise a-conceituais", pon-
lado "distinto-obscuro", diz Deleuze, subvertendo,com Leibniz, o tos que "exprimem as condições" de um problema, determinando-o
legado cartesiano: distinto por causa de suas relações diferenciais e suas como tal, pontos que formam um "acontecimento ideal", sendo que
singularidades e obscuro porque esseselementosnão estão ainda atua- o "modo do acontecimento" é justamente o "problemático". Mais
lizados. Essa é a metade na qual a Idéia está "completa", mas não precisamente, "o p7'0b/emaé determinado pelospontos singra/aresque
inteira16, a metade em que ela é considerada em seu estado puro, a correspondem às séries", ao passo que a "questão" é determinada "por
"metade dialética" 17.Essa face da Idéia é também caracterizada como um ponto a/eafórfo", ponto ou "elemento paradoxal" que, como "casa
instância problemática", isto é, para além do que ainda resta de "em- vazia" ou "elementomóvel", é justamenteaquilo que se agita na vir-
pirismo" na Crítica kantiana, a instância pela qual a Idéia, sem qual- tualidade, de modo que ele "percorre as séries, as faz ressoar, comu-
quer "identificação ou confusão", é tida como "unidade objetiva pro nicar e ramificar", redistribuindo singularidadese, assim, forçando
blemática interna do indeterminado, do determinável e da determina :metamorfoses"z:s
ção"18. Além de dialética e problemática, essa metade, em que ope- No anexo do seu livro dedicado a Michel Foucault, Deleuze es-
ram diÁerençações,é também chamada "virtual", uma virtualidade que, tabelece, como "princípio geral" do pensamento filosófico de seu ami-
enquanto tal, "possui plena realidade", podendo ser "definida como go, a idéia segundo a qual "toda forma é um composto de relações de
estrita parte do objeto real". Como os proustianos "estados de resso- forças", de modo que a pergunta pela forma implica a pergunta pelas
nância", essa metade virtual pode ser dita real sem ser anual e ideal forças relacionadas, que se distribuem em dois grandes grupos O pri-
sem ser abstratal 9. É importante e deve ser sempre lembrado que, para meiro comporta as "forças no homem", como as de "imaginar, lem-
Deleuze. a "realidade" do virtual é como a de uma "tarefa a ser cum- brar-se, conceber, querer" etc. O segundo comporta as "forças do
prida", é como a de um "problema a ser resolvido"20. fora", reagrupadas estas em três grandes configurações: as de "elevação
Seja qual for o nome escolhido para salientar a dialeticidade, a ao infinito", donde a "forma-Deus", característica da "formação his-
objetividade problemática ou a realidade virtual da Idéia, o que ago- tórica" dita "'clássica'"; as "forças de finitude" enraizadas na "vida",
ra importa notar é o seguinte: as difere/zçózções
implicam a mobilida- no "trabalho" e na "linguagem", de onde a "forma-Homem" domi-
de de "relações diferenciais", independentemente de termos relacio- nante no nascimento da "biologia, da economia política e da lingüís-
nados, independência ou exterioridade que já levara o empirismo de tica", disciplinas que marcam a formação histórica do "século XIX";
Hume a uma "potência superior", como diz e rediz Deleuze21.As as forças de "um finito-ilimitado", isto é, aquelas em que "um núme-
álacre/zçações implicam também uma "distribuição de singularida- ro finito de componentes dá uma diversidade praticamente ilimitada
des"22, singularidadesque são como que "neutras" punctualidades de combinações", situação que caracterizaria nossa contemporanei-
dade em sua tensão de futuro, de onde a dificuldade de se dizer a "nova
forma" que estaríamos em vias de erigir.24
íó Idem, p. 276. Pois bem, no presentecaso, trata-se de perguntar, portanto, pela
i7 Idem, p. 285. força que, no homem, está mais diretamente implicada no dinamis-
mo das relações diferenciais e das singularidades que caracterizam as
18Idem, pp. 218 e 220.
diferençações. Essas relações e singularidades, diz Deleuze, são sub-
i9 Idem, p. 269. metidas a uma "exploração", da qual deve resultar uma "exposição
20Idem, p. 274.
zi G. Deleuze, EmPirfsme ef s b/ecfíuité, Paras, PUF, 1953, p. 113. Cf., De-
leuze, "Hume", François Châtelet jorg.), Hístofre de /a pbf/osopbie,vo1. 4, Les
r míêres (le XVlll' siêcle), Paria, Hachette, 1972, p. 67. ZSG. Deleuze, Logíg e dz se/zs,pp. 68-9 e 72. (Grifos meus).
2z G. Deleuze, Df/7érenceef fépéfiliolz, p. 285. 24 G. De]euze, Foucau/], Paria, Minuit, 1986, pp. ]31-2, 134 e ]40-1

Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 57


do virtual". Pensar é justamentea força que, no homem, explora e gessosde atualização do ponto de vista de suas retomadas ou dos seus
expõe o virtual "até o fundo de suas repetições"25. ecos" é o imaginar. Não é precisamente o pensamento, mas "é a ima-
As dl/erenciações,por sua vez, acontecemcomo linhas de um ginação", diz Deleuze, "que atravessa os domínios, as ordens e os ní-
processo de atualização". É essa a dinâmica pela qual a Idéia mos- veis, abatendo as divisórias, co-extensivaao mundo, guiando nosso
tra sua metade chamada "estética", pela qual ela aparece como "atua- corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e
lização estética". Também ela, como a metade ideal, é "duplamente do espírito, consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e
determinada", mas em outros termos: nela, as diferenciaçõesvêm a inversamente"28. Lembranças de Hume!
ser "especificações" e "composições". As especificações processam a
atualização das relações diferenciais que podem ser exploradas no cam- Foi dito que diferença e repetição fundam o processo de atuali-
po virtual, enquanto as composições fazem isso com as singularida- zaçãocomo linhasde "diferenciaçãocriadora"29. Então, não temos
des. Em outras palavras, as especificaçõessão diferenciações atua- apenas diferençações no virtual e diferenciações do atual. Deleuze
lizantes de relações diferenciais e as composições são diferenciações procura um "terceiro aspecto", que corresponde ao "elemento de po-
atualizantes que "encarnam" os pontos singulareszó. tencialidade da Idéia", uma "dramatização", diz ele, "pré-quantitati-
Mas não se pode estabelecer mera semelhança entre os termos va" e "pré-qualitativa", a qual tem o poder de "determinar ou desen-
de uma face e os termos da outra. Com efeito, fazendo-se por "dife- cadear, de diferenciar a diferenciação do atual em sua correspondên-
rença, divergência ou diferenciação", a atualização, diz Deleuze, "rom- cia com a diferençação da Idéia". Eis sua pergunta: "de onde vem esse
pe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade poder da dramatização?"30.
como princípio". Não há semelhança,portanto, entre qualidadese A resposta, desenvolvida como "síntese assimétrica do sensível",
espéciesatuais e os componentes do virtual que elas encarnam, as re- não mais como "síntese recíproca da Idéia"31, determinaa "diferen-
lações diferenciais; também as partes não se assemelham às singulari- ça de intensidade" como "razão do sensível", intensidade entendida
dades. Se o virtual se confundisse com o possível, se ele fosse mero como acoplamentos parciais em que cada elemento presente num aco-
conjunto de possibilidades, então as linhas de diferenciação seriam plamento remete a acoplamentos de ordem distinta. Trata-se de uma
linhas de realização de certas possibilidades e se resumiriam a meras 'disparidade", de uma "diferença infinitamente desdobrada, ressoando
limitações. Porém, entendido o virtual como real "potencial", a dife- ao infinito". É essa, para Deleuze, a razão do sensível, a "razão sufi-
rença e a repetição é que "fundam" as diferenciações como verdadei- ciente do fenómeno, a condição do que aparece", o "desigual em si",
ros movimentosde "criação", ao contrário da "limitação abstrata: irredutível ao espaço e tempo kantiano32.Trata-se de uma "profun-
resultante do "pseudomovimento" inspirado pela "identidade e a se- didade original" entendida como "disparação" jtermo de Simondon)33
melhança do possível". As diferenciações, desse modo -- e aqui De- A face de atualização da Idéia é chamada estética, justamente porque,
leuze, mais uma vez, explicita seu encontro com Bergson -- são uma como razão do sensível, a diferença de intensidade, "determinante nos
processualidadeem que se "criam linhas divergentes" que estão em processos de atualização", espalha-se como "estética das intensidades",
correspondência, "sem semelhança" com o que acontece na multipli- efetuandotrocas com a "dialética das idéias". Enquanto as idéias, em
cidade virtual, assim como as "soluções" não se assemelham ao "pro-
28Idenr, p. 284
blema" que as "orienta, condiciona e engendra"27.
A força que, no homem, está ocupada na apreensão dos "pro' 29 idem, p. 274

30/dem, p. 285

25 G. Deleuze, Di/Hérelzce ef éPéfíffo/z, p. 284. 31/denz, p. 315

zóIdem, p. 285. s2 Idem, p. 287

27 Idem, pp. 273-4. 33idem, p. 72.

58 Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 59


sua metade dialética, são "multiplicidades virtuais, problemáticas", provisório de processos dc individuação investidos por diferenças de
comportando "relações entre elementos diferenciais", as intensidades intensidadepré-individuais. Enquanto a Idéia, em sua virtualidade,
são ditas "multiplicidades implicadas" constituídas de "relações en- deixava-se dizer como distinta-obscura, não é sem razão que o pensa-
tre elementos assimétricos" . As diferenças intensivas implicadas entram dor, como "unidade intensivaindividuante", é qualificávelcomo "cla-
em processos de "explicação" ao mesmo tempo em que, com sua "po- ro-confuso", pois, exprimindo claramente apenas algumas "relações
tência", dirigem as diferenciações, isto é, o "curso de atualização das e certos pontos" em função de um "limiar de consciência determina-
Idéias e determinam os casos de solução para os problemas". O pro- do" pelo seu "corpo", ele só "confusamente compreende o todo" de
cesso pelo qual as intensidadesdeterminam diferenciações e, assim, se uma situação"
explicam, sem, contudo, perderem sua própria "independência", re- Pois bem, entre o pensar, que se desloca nas dlÁere/zçações,e o
cebe o nome de "individuação". Assim, diz-se que "toda individuali- intensivo indivíduo pensador reposto pela individuação, há o campo
dade é intensiva" justamente porque "a intensidade é individuante", das diferenciaçõesque a imaginação, como foi dito, pode apreender
isto é, as "quantidades intensivas são fatores individuantes". Em ou- ou insuflar, vagando ou vagabundeando como consciência em estado
tras palavras, a individualidade "afirma em si a diferença nas intensi- de larva, oscilando entre ciência e delírio. Apesar de oscilatória, a ima-
dades que a constituem"34. Se continuamos a perguntar pelas forças ginação tem aí reconhecido seu papel nas linhas de diferenciação que
que, no homem, estão imediatamente implicadas nesse processo, che- ligam virtual e anual, papel que o estruturalismo minimizava ao erigir,
gamos a uma espéciede extremo rebelde e fugidio, pois encontramos dizia Deleuze, o reino do "simbólico" entre o "real e o imaginário"37
as variações intensivas que constituem o próprio sensível. Em um dos estudos deleuzianosdedicados a Espinosa, é reconhe-
Conviria lembrar ainda que Deleuze procurou conccituar mais cido o apoio da imaginação às "noções comuns". Esse apoio pode
uma linha de trocas entre "imagem virtual" e "objeto atual": quando acontecer de duas maneiras: quando a imaginação "exprime o efeito
estesdois termos se "intercambiam" num curto circuito, quando se sobre nós de um corpo que convém com f) nosso", conveniênciaque
estabeleceuma "troca perpétua" entre eles, essa troca "define um cris- as noções comuns "compreendem de dentro e adequadamente" ou
tal" . Trata-se, então, não mais de uma atualização, mas de uma "cris- quando a própria imaginação "apreende como efeitos exterioresdos
talização". Ê quando a "pura virtualidade" vem a ser "estritamente corpos uns sobre os outros aquilo que a noção comum explica por
correlativa do anual". Entre esse anual e a pura virtualidade forma-se, relações internas constitutivas"38. Um dos estudos deleuzianos dedi-
diz Deleuze, "o menor circuito"35. Na cristalização, somos levados de cados a cume, por sua vez, salienta, primeiramente, o quanto a ima-
um ao outro termo como que pela inconsciente e instantânea oscilação ginação (essepoder de relacionar uma dada impressão ou uma dada
de um corpo sem órgãos, este outro campo de fluência das variações idéia "à idéia de qualquer coisa não atualmentedada", poder que é
intensivas. também aquele de um dos princípios de associação que constituem a
natureza do espírito humano, o da causalidade) pode servir-se desses
Como conclusão provisória deste percurso, gostaria de relembrar mesmos princípios disciplinadores "para fazer passar suas ficções, suas
o papel reservado à imaginação nesseconjunto de linhas. Enquanto o fantasias". Mas o mesmo estudo também salienta o quanto a imagi-
pensamento, como foi dito, pode praticar exposições do virtual ao nação, por força do seu próprio poder relacional, é capaz de "liberar"
explorar relações e elementos diferenciais que estão em dláe7'e/zçação ou "refletir a paixão", de fazer com que a paixão entre em ressonân-
na virtualidade das Idéias, o "pensador", ele mesmo, "é o próprio
indivíduo", isto é, aquilo que é reposto como resultado precário e
3óG. Deleuze, Df/7érelzceef répéfífíon, p. 327.
37G. Deleuze, "A quoi reconnaít-on le structuralisme?", ípzFrançois Châtelet
34 /dem, pp. 315-7. jorg.), oP. cif., vo1. 8, pp. 272-4.
35G. Deleuze, "L'actuei et le virtuel-.", oP. cit., p. 184. s8 G. Deleuze, Spfnoza. Pbf/osopble praflque, p. 132.

60 Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 61


cia e venha, assim, a "ultrapassar os limites de sua parcialidadee de co/zulus, potência que é a de um Álo de metamorfose, um fio que é um
sua atualidadenaturais", ultrapassagemque, para Hume, é impres- vinco, um operador, um fervilhamento,uma linha de fuga da dobra,
cindível ao adequado convívio humano". essa ambígua variabilidade que liga e desliga dentro e fora e que leva
Constituindo-se no exercício de relações associativas, a mente, uma pergunta a reiterar-se em momentos privilegiados da filosofia: "em
segundo Hume, está sempre tendendo naturalmente a atribuir uma que condições o mundo objetivo permite uma produção subjetiva de
"relação adicional" (addifíoncz/ re/aflo/zl a dois objetos, mesmo quando novidade, isto é, uma criação?"42. Pensar, imaginar e sentir são for-
estes já se apresentam a ela numa estreita relação, como a de con- ças que, questionando-se, experimentando seus próprios limites e li-
tingüidade ou a de semelhança. Com que objetivo deixa-se a mente derando-sede clausuras prévias, são variadamente acionadas nesse
tomar por um movimento desses? Ele diz que ela visa "completar" a triângulo, predominando ora uma ora outra segundoas pulsaçõesdo
re[ação, mas, como não ]he é fáci] saber se o conjunto re]aciona] está problemático, segundo o lampejo do fio de metamorfose a ser perse-
completo, como não é fácil "fixar.nossa escolha" (lo Px our cboícel, guido, segundo a intempestividade de linhas de fuga num campo esti-
acaba sendo esse, diz ele, "um dos mais difíceis problemas em filoso- rado entre um vasto inconsciente desejante-questionante e um problema
fia": o de determinar a relação principal e determinante entre várias cuja punctualidade pode realinhar o exercício (delirante?) da imagi-
que se apresentam a um mesmo fenómeno. A cada instante, reabre-se nação filosófica.
um campo fértil para seremimaginadas novas relações.Segundo Hume,
o esforço para disciplinar essa inevitável e imprescindível abertura
implica, por necessidadeou por amor à ordem e à uniformidade, or-
denar a tendência de se relacionar indefinidamente dois objetos, apro-
ximando relações cujo elo satisfaça a mente ou que estejam em afini-
dade com "pontos de vista correspondentes"40.
Liberada da referência subjetiva, essa "casuística das relações",
como diz Deleuze41, não deve ser estranha ao lugar deleuziano de
encontro das linhas de diferenciação. Porém, perguntamos, o que é que,
permanecendo equidistante de um racionalismo (que tudo liga a qual-
quer custo), mas também de um empirismo (que deixa tudo por de-
mais separado), eqüidistância praticada por Difere/zça e repetição,
aproxima ou distancia relações]á disponíveis ou criadas nesse lugar
de encontros? O que procuramos mostrar nestetrabalho é que a res-
posta deve ser primeiramente procurada, parece-nos, no triângulo
formado pelo paradoxo da ocupação construtiva do plano de imanên
cia, pela motivação ontológica e ética de liberação e pelo campo pro'
blemático que se impõe ao encontro. Uma potência de inflexão agita-
se nos pontos desse triângulo, potência que é a do c//namenou do

s9 G. Deleuze, "Hlume", oP. cff., pp. 67, 69, 74.


40David Hume, Á fre zflseo/'bz/manfzafwre,ed. Selby-Bigge,Oxford, Cla
rendon Press, 1955, 111,11,111,p. 504; 1, IV, V, p. 237.
4i G. Deleuze, "Hume", OP. cif., p. 76. 4zG. Deleuze, Le P/l: Lefbnlz ef /eBaroque, p. 107

62 Luiz B. L. Orlandi Linhas de ação da diferença 63


UMA REVIRAVOLTA NO PENSAMENTO DE DELEUZE
José Gil

l
A obra de Deleuze não se constitui como um bloco único desde
o seu começo Em particular, se é verdade que Diferença e repetição e
l,ógfca do se/zffdorepresentam momentos maiores no conjunto do seu
pensamento, nem por isso estedeixou de mudar "radicalmente" (num
sentido que se deve precisar) a partir do Anil-Éd/po. Segundo o pró-
prio Deleuze há um período antes e um período depois do Anil-Édl-
po: por maiores que sejam as remodelações conceituais das obras pos-
teriores, inaugurou-se aí um certo regime de pensamento que caracte-
rizará definitivamente "a filosofia de Deleuze-Guattari"
Procuraremos aqui definir esse regime num ponto particular: a
noção de corPO sem órfãos, que surge na Lógica do sentido com um
estatuto ainda ambíguo, oscilante, quase apagado, tomará a impor-
tância que se sabe no Ánfi-Édlpo e em M// P/afãs. E seu abandono final
por Deleuze em O que é a /i/osoÁiai não é certamente tão decisivo
quanto foi seu desenvolvimento naquelas duas obras: o que a noção
tinha instaurado e permitido -- nomeadamente o pensamento da ima-
nência -- estava adquirido. Outros conceitos se encarregariam em
seguida de a substituir.
Levantaremos pois a questão: o que é que na L(igica do sezzfldo
permanece problemático e por resolver a tal ponto que Deleuze evoca
no fim do livro um certo insucesso de sua (e talvez de toda a) empresa
filosófica? E de que o .Anlí-Édfpo e as obras seguintes representam pre-
cisamente a solução -- mas uma solução que desloca e transforma os
dados do problema jem particular, a atitude para com a psicanálise)?

11

Nesse aspecto, a l,ógíca do self/do é uma obra-charneira. O autor


leva ao extremo limite a dificuldade que a teoria das séries se propu-
nha ultrapassar: a oposição entre o fundo e a superfície, entre o senti-
do (profundo das "misturas corporais") e a linguagem, entre o que
produz o sentido (a causalidadedos corpos) e o discurso do filósofo.

Uma reviravolta no pensamento de Deleuze 65


111
Deleuze sonda longamente a "profundidade" , interrogando de forma
minuciosa a psicanálise, comparando os seus resultados com a expe- A l,ógíca do senfldo desenvolve-secomo uma verdadeira máquina
riência de Artaud; por outro lado ele testa constantemente a eficácia de produzir séries e multiplicidades. O comentário da obra de Lewis
da sua teoria das multiplicidades em face da experiência do psicótico. Carroll e da teoria estéticados incorporais conduz rapidamente De-
Nos dois casos, tanto a psicanálise como o pensamento do sentido mos- leuze à definição do sentido como acontecimento. Este é um efeito
tram-se incapazes de dar conta da psicose. Ê que esta exige mais do incorporal de superfície, que advém num tempo ilimitado, num devir
que uma "explicação entre o passado e o futuro infinitamente divisíveis, esquivando sem-
pre o presente, o aios como devir ilimitado. A árvore não é verde, ver-
Que procura Deleuze na l,ógfca do se/zlido?Responder à questão:
como pensar com a teoria do acontecimentoe das sériesa produção deja; e o verdejar, que é o acontecimento que dá o sentido, é o resul-
do sentido mais profundo, como o que irrompe na obra de Artaud e, tado das ações e paixões dos corpos. O sentido não está no atributo,
em geral, na experiênciada loucura? Interrogaçãoque toma outra mas no verbo, não está na profundidade dos corpos como causas, mas
forma: como trazer o Unfersinzz,o infra-sentido que nasce no fundo na superfície do acontecimento, como quase-causa. O sentido como
do corpo psicótico, à superfície, em que o acontecimento faz sentido? acontecimento difere radicalmente do estado de coisas em que se efe-
Trazer à superfície" é um problema central da Z,ógica do se/zfido.Por- tua: como incorporal, não é um ser, mas um "extra-ser", qualquer coisa
que, já que "a pele é o que há de mais profundo", toda a questão se que ocorre para além dos movimentos dos corpos, na sua fronteira,
resume à construção de uma superfície que abra passagem e acolha o como também num tempo-fronteiraque reúne o futuro e o passado,
sem-fundo incompreensível dos corpos. SÓ assim o pensamento atingirá nunca no presente do estado de coisas. O acontecimento é definido
o infra-sentido, fazendo-o circular jquer dizer, aconteceráà superfície. como o devir-ilimitado "do futuro e do passado, do ativo e do passi-
Numa palavra, trata-se de trabalhar o problema em dois planos: vo, da causa e do efeito. O futuro e o passado, o mais e o menos, o
no de uma prática (clínica) e no do discurso (críticas. Enfim, a solução muito e o pouco, o demasiado e o insuficiente, o já e o ainda não:
virá de um terceiro plano, resultadodo entrelaçamentodos dois primei- porque o acontecimento, infinitamente divisível, é sempre os dois ao
ros: a elaboração concreta dessa superfície de acolhimento permitirá mesmo tempo, eternamenteo que acaba de se passar e o que vai se
passar, mas nunca o que se passa" '
"captar" o sentido (mas de maneira diferente, não ao modo puramente
teórico ou "conceptual" que é ainda o de Deleuze na época da l.ógica Deleuze considera o surgimento da teoria estóica dos incorporais
do se/zfídol.Ora, o fracasso da psicanálise acompanha o insucesso da uma espéciede "regresso do recalcado" platónico, daquilo que não
filosofia que não consegue, apenas com a teoria das séries, pensar o chegou a ser ou não foi completamente recalcado pela ação das Idéias
Unfersfnm como acontecimento. e que se escondeno fundo dos corpos, talvez do "pêlo, da imundície,
É que Deleuze adota ao longo da Lógica do sentido uma atitude da lama". O que escapouao recalcamentoda Idéia volta agora nos
ambígua para com a psicanálise: só Ihe é fiel quando consegue integrá- incorporais dos estóicos. "SÓ que em Platão esta 'alguma coisa' não
la no seu próprio pensamento. Nos pontos em que a psicanálise falha fora nunca suficientemente enterrada, recalcada, empurrada para a pro-
curar e pensar a psicose--, Deleuze encontra uma linha de resis- fundidade dos corpos, afogada no oceano. [...] É o resultado da ope-
tência à sua apropriação. Assim, a psicose je a arte de Artaud) torna- ração estóica: o ilimitado volta a subir. O devir-louco, o devir-ilimi-
se uma fronteira última que põe fim à conivência entre a psicanálise e tado não é mais um fundo que brame, ele sobe à superfície das coisas,
a teoria do acontecimento: Deleuze faz sua essa resistência, pondo-se e torna-se impassível."z
por assim dizer do lado da psicose contra a psicanálise e, num certo Toda a Lógica do se/zfidonão será mais do que uma longa ex-
sentido, contra seu próprio regime de pensamento.
Resulta disso que a crítica à psicanálise que se esboça na Lógica
1 Logiq e d se/zs, Paria, Minuit, 1969, p. 17 Idoravante i.SI
do sentido, preparando-se para se radicalizar no Ázzrí-Edfpo, anuncia
já a mutação do pensamento de Deleuze. 2 l,S, P. 17.

José Gil Uma reviravolta no pensamento de Deleuze 67


plicitação e complexificação dessas teses sobre o acontecimento. Em tro, o "espelho" ou o non-se/zs,articula, distribuindo o sentido pelas
particular, é sempre como luta entre a profundidade e a superfície, duas séries que se refletemuma na outra. E até o fim do livro é um
como destituição da primeira e como "exposição dos acontecimentos dispositivo conceptualcompleto que Deleuze monta progressivamen-
à superfície"3 que serão analisados os múltiplos aspectos da teoria do te, com o fim de dar conta dum movimento geral do sentido ou do acon-
sentido: a proposição e a linguagem, os paradoxos do sentido e o non- tecimento -- e cujos traços essenciais servirão de base a outras cons-
selzs,a estrutura e o problema, a síntese do heterogêneo na formação truções futuras (como a do plano de imanência e dos conceitos em O
das séries eEc-E sempre, em regimes diversos, a diferença se dá entre que é a filosofia!\.
o interior profundo dos corpos e a superfície do acontecimento-senti-
do. A questão essencial, a que Deleuze dá uma primeira resposta logo lv
no início, segundo e seguindo os estóicos e Lewis Carroll, e que se Há um momento, no entanto, em que essa maravilhosa constru-
manterá sempreno horizonte, ao longo do livro, é a seguinte:como ção das séries de multiplicidades encontra um obstáculo aparentemente
fazer subir o fundo dos corpos até a tona, como passar da profundi- intransponível. AÍ vacila, oscila; retoma, bifurcando-o, o movimento
dade à superfície, como transforma r a dimensão vertical em movimento anterior.
horizontal ? " Profundo deixou de ser um cumprimento. SÓ os animais Esse instante é o do encontro entre Carroll e Artaud, entre Alice
são profundos ]...]. Os acontecimentossão como cristais, não devêm e o esquizofrénico. Seria necessáriocitar todo o início da ] 3' série, "do
nem crescem senão pelas beiras, nas beiras. Ê esse o primeiro segredo esquizofrênicoe da menina": o tom da escritamuda, trata-seagora
do gago ou do canhoto: não se enterrar, mas deslizar, de tal maneira de uma potência maior que ameaça a superfície, uma potência de vida
que a antiga profundidade desapareça, reduzida ao sentido inverso da (ou da sua negação) -- a do caos da loucura. Contra ela, os jogos da
superfície. É por força de deslizar que se passará para o outro lado, já superfície, do non-sons e das palavras-malas nada podem: "Percebe-
que o outro lado é apenas o sentido inverso."4 Ou ainda: "É seguin- mos agora que mudamos de elemento, que entramos numa tempesta-
do a fronteira, ladeando a superfície, que se passa dos corpos ao in- de. Julgávamos estar entre as meninas e as crianças, e estávamos já
corporal"5 e isso "pela virtude de um anel" como o de Moebius. "A numa loucura irreversível. Julgávamos estar na vanguarda das pesqui-
continuidade do direito e do avesso substitui todos os patamares de sas literárias, na mais alta invenção das linguagens e das palavras; e
profundidade"6: o sentido é apenas "o duplo sentido da superfície"7. já estávamos nos debates de uma vida convulsiva, na noite de uma
Tudo isso implica um programa: Deleuze será levado a elaborar criação patológicaque diz respeitoaos corpos"8
uma extraordinária teoria das sériescujo movimento será esse "deslizar Há que separar os diferentes "abismos do non-sons", não con-
na fronteira" entre as duas facespara trazer o fundo ou o interior dos fundir o problema que envolve a criação de uma palavra-mala por uma
corpos à superfície ou ao exterior: séries duplas, sempre defasadas uma menina e a de uma outra por um esquizofrênico. São problemas dife-
em relação à outra -- de designação e de expressão na linguagem, de rentes, de clínica e de crítica, e de suas fronteiras -- em que limite da
significados e significantes na estrutura, da profundidade do corpo e desorganização (dos corpos e do desejo) (clínica) pode haver criação,
dos jogos de linguagem em A/ice de Carroll --, que um elemento neu- quer dizer, mudança de níveis em que a linguagem e o non-sons ad-
quirem uma outra dimensão jcriativa) (crítica).
Os jogos de palavras de Alice eram por assim dizer sem conse-
3 LS, P. 18. quência, enquanto os de Artaud são "talhados na profundidade dos
4 l,S, P. 19. corpos"9. As séries de Carroll funcionam perfeitamente: "as duas sé-
5 l.S, P. 20
6LS, P. 21. B LS, p. IOI
7LS, p. 20. 9 LS, p. 103

68 José Gil Uma reviravolta no pensamentode Deleuze 69


nes articu]am-se em superfície [série 'comer' e série 'falar']. Sobre essa pressão. Desapareceram as séries, levadas pela força de atração dos
superfície, uma linha é como a fronteira das duas séries, proposições corpos fragmentados, dissociados, esburacados.
e coisas [-.]. Ao ]ongo dessa ]inha se elabora o sentido [...]. As duas Como descrever esse corpo intenso que desfaz toda e qualquer
séries encontram-se articuladas por sua diferença, e o sentido percor- organização do sentido e da linguagem? Deleuze vai buscar o termo
re toda a superfície, se bem que permaneça sobre sua própria linha. no /ugeme zf de DICA, de Artaud: c07POsem órgãos. Mas não cita ainda
Não há dúvida de que esse sentido imaterial é o resultado das coisas na Lógica do senado os versos que repetirá em tantas obras ulterio-
corporais, de suas misturas, de suas ações e paixões. Mas o resultado res: "0 corpo é o corpo/ Está só/ E não tem necessidade de órgãos/ O
é de uma natureza totalmente diferente da causa corporal. Por isso, corpo não é nunca um organismo/ Os organismos são os inimigos do
sempre à superfície, o sentido como efeito remetea uma quase-causa, corpo" E: "Nem boca. Nem língua. Nem dentes. Nem laringe. Nem
ela própria incorporam:o mo/z-sonssempre móvel, expresso nas pala- esófago. Nem estomago. Nem ventre. Nem ânus
vras esotéricas [por exemplo, Snark ou Jabberwocky] e nas palavras- Aqui, o corPO sem órgãos ainda aparece ligado unicamente à
malas, e que distribui o sentido dos dois lados simultaneamente. E essa profundidade, uma "profundidade universal" de certo modo mais
a organização de superfície em que opera a obra de Carroll como efeito profunda que a dos corpos dos estóicos e das séries de Carroll, pois
de espelho"'u. nela se precipitam o interior e o exterior, esses mesmos corpos e a
Toda essa organização vai ser destruída pelos jogos de palavras superfície. No entanto, Deleuze concebe o corPO sem órgãos como uma
de Artaud. Deleuze confronta Carroll com Artaud, depois de este já potência ambígua, por um lado improdutiva, destruidora, "represen-
se ter oposto àquele, manifestando todo um desprezo pelos "jogos de tando uma involução fundamental"13; e, por outro, desenvolvendo
superfície" uma energiaextraordinária que vai percorrer e emanar do "corpo glo-
O que faz desabar a construção carroliana e, de certa maneira, rioso como nova dimensão do corpo esquizofrênico, um organismo
tremer a do próprio Deleuze?A extraordinária potência esquizofrê- sem partes"14. O que é esse corpo glorioso? Resulta da transforma-
nica rebenta a fronteira entre as sériese faz das palavras corpos, e de ção dos órgãos num só órgão (a pele, por exemplo), e das palavras e
seus movimentos de sentido, ações e paixões. Para o esquizofrênico, da linguagem em ações de palavras-sopro, palavras-grito "em que todos
"toda palavra é física, afeta imediatamente os corpos". A palavra é os valores literais, silábicos e fonéticos são substituídos por valores
ação: "A palavra deixou de exprimir um atributo de estado de coisas, exclusivamente tónicos e não escritos". Esse corpo glorioso "faz tudo
seus pedaços [sílabas, letras] confundem-se com qualidades sonoras por insuflação, inspiração, evaporação, transmissão fluídica"15
insuportáveis, irrompem violentamente no corpo onde formam uma Há portanto uma ambigilidade no corpo sem órgãos, uma ne-
mistura, um novo estado de coisas, como se eles próprios fossem ali- gatividade e uma positividade. Por exemplo, os fluidos que o percor-
mentos venenosos, ruidosos, e excrementos encaixados" ii; " [...] o cor- rem são maléficos, corrompidos, levando consigo "parasitas, fragmen-
po inteiro não é mais que profundidade e arrasta consigo, absorve todas tos de órgãos e de alimentos sólidos, restos de excrementos"; mas, por
as coisas nesta profundidade hiante [...]. Tudo é corpo e corporal. Tudo outro lado, é um elementopor si ativo, representandoum "estado de
é mistura de corpos e, no corpo, encaixamento, penetração" iz. Nes- mistura perfeita": "Há, na esquizofrenia, uma maneira de viver a dis-
sas condições, não há mais séries separadas da profundidade e da su- tinção estóica entre duas misturas corporais, a mistura parcial e que
perfície, da linguagem e de estados de coisas, de designação e de ex- altera, a mistura total e líquida que deixa o corpo intato. Há, no ele-

vo l,S, PP. 105-6. i3 LS, p. 106


ii l,S, P. 107. i4LS, p. 108
i2Z,S, P. 106. i5 LS, p. 108

70 José Gil 71
Uma reviravolta no pensamento de l)eleuze
mento fluido ou líquido insuflado, o segredo não escrito de tema mis- Assim vê Deleuze o corPO sem órgãos, na Lógica do sentido: ainda
tura aviva que é como 'princípio do Mar', por oposição às misturas como um corpo vivido, sem superfície, com órgãos disjuntos ou sem
passivas das partes encaixadas"iÓ. órgãos, mas sempre no informe da profundidade do corpo E, se o
Assiste-se aqui ao despontar do que vai ser, noutros livros, o corPO corpo glorioso, com dimensão positiva e ativa do c07POsem órgãos,
sem órgãos como p]ano de consistência. luas, por enquanto, [)e]euze como corpo tónico de forças vitais, esboça já o que será o conceito de
não destaca nem define claramente o conceito de c07POsem órgãos. corpo sem órgãos no Anui-Édlpo, é ainda como pólo de uma dualida-
Pelo contrário, este parece definitivamente compatível com a teoria das de cujo oposto complementar é o corpo fragmentado e vazio, passi-
series. vo. dos valores fonéticos. Deleuze tenta ainda criar duas séries: um
O problema é múltiplo, e desenvolve se em vários níveis: 1) Como infra-sentido, um Unferslzzn, distinto, mas complementar do /zon-sezzs
restaurar a grande maquinaria de produção de sentido à superfície, da superfície.
quando esta foi engolida pela profundidade última do co/PO sem ór- Mas esta não passa do esboço de uma tentativa, logo malogra-
gãos esquizofrênico?Como é que o esquizofrênicoproduz sentido? da: o fim do capítulo(13' série)afirma a diferençairredutívelentre
Como nelecompreendera "subida à superfície", se toda superfíciefoi Lewis Carroll e Antonin Artaud, entre as "séries de superfície" (co-
destruída? Como conceber, pois, uma outra superfície, corno série mer-falar) do primeiro e os "pólos de profundidade" do segundo; entre
complementar da profundidade esquizofrênica? E o que representa,re- as "figuras do no/z-sons"à superfície,que dão sentido, e os "mergu-
lativamente à superfície e ao sentido, a linguagem-ação, não articula- lhos de nofz-sefzs"que arrastam e engolem o sentido num infra-senti-
da, das palavras-sopro, das palavras-ações dos blocos fonéticos que o do ( Unfersi#zn);nem o tempo do acontecimento, o aios ilimitado, tem
esquizofrênico constrói? 2) Tratar-se-á ainda de séries de acontecimen- . alguma coisa a ver com "o presente físico dos corpos" em que os pó-
tos de sentido que, no fundo, se oferecem apenas à decifração (ou à los se opõem.
interpretação"), ou de qualquer coisa mais, que ultrapassa o sentido Nessa irredutibilidade,Deleuzetoma partido: "Por todo Carroll,
e que diz respeito ao agir, ao produzir? Quer dizer: não já uma her- não daríamos uma página de Antonin Artaud; Artaud é o único a ter
menêutica ou mesmo uma lógica do sentido, que despreza afinal as sido [sic] profundidade absoluta na literatura, e a ter descoberto um
ações e paixões dos corpos" em benefício da quase-causa do efeito corpo vital e a linguagem prodigiosa dessecorpo, à custa de sofrimento,
incorporal do acontecimento,mas uma física ou uma antologia que como ele diz. Ele explorava o infra-sentido, hoje ainda desconhecido" i7
dê conta da emergênciado sentido a partir das forças violentas, ex- Como dar conta do infra-sentido, numa teoria do sentido como
tremamentepoderosas, que percorrem a profundidade do corpo es- acontecimento de superfície? O seguimento da l,ógica do sezzffdoten-
quizofrénico? 3) Num plano mais geral, é o problema da clínica/críti- tará resolver esse problema. Mas, por ora, desenha-sejá uma crítica à
ca que se levanta, com uma agudeza derradeira: como fazer crítica sem psicanálise, incapaz de entender os jogos de corpo e de forças do es-
encontrar necessariamente a clínica -- e esta encontra necessariamente quizofrênico, sempre pronta a reduzi-los a significantesconhecidos da
a vida (que Deleuze exprime ainda, às vezes, em termos fenomeno- teoria, eu, fantasma, pulsão narcísica etc.: "Uma má psicanálise tem
lógicos, o "vivido", a "experiência vivida" de um indivíduos --, sem duas maneiras de se enganar, ao julgar descobrir matérias idênticas que
esbarrar com aquilo mesmo com que esbarra o esquizofrênico quan- se encontram necessariamenteem toda parte, ou formas análogas que
do joga com as palavras e a língua, terror, dor de órgãos para além constituem falsas diferenças. Assim, ao mesmo tempo deixa-se esca-
do imaginável IDeleuze cita Artaud: "0 ânus é sempre terror, e não par o aspecto clínico psiquiátrico e o aspecto crítico-literário" iõ
admito que se perca um excremento sem o dilaceramento de aí se perder Falha-se duplamente: rebate-se a clínica sobre a literatura, e re-
também a alma"; ou: "Temos no dorso as vértebrascheias, trespas-
sadas pelo prego da dor" etc.)?
is l,S, P. 1 14
ió l,S, P. 109. 18LS, p. 113

72 José Gil Uma reviravolta no pensamento de Deleuze 73


duz-se um poema de Artaud a um caso patológico; rebate-se a litera- Tal seria o pensamento filosófico na superfície metafísica; mas, ao
tura sobre o material clínico, e faz-seda história de Alice um "conto contrário do esquizo, qualquer coisa como o corpo ou a ação jogan-
esquizofrênico". O que se deixa escapar, afinal, é o próprio sentido do-se no pensamento.
como camada independente-- mas imanente -- aos dois planos. É É certo que esse modelo foi determinante na viragem da l,ógica
também o que falta ao comentador-filósofo -- pelo menos até este do sefzffdoàs obras seguintes; ele é também um objetivo pelo qual se
ponto de seu percurso na teoria do acontecimento-sentido:os dois medem o fracasso da empresa psicanalítica e as dificuldades, talvez
mundos, o dos terrores da profundidade de Artaud e os dos jogos de inultrapassáveis, que encontra o pro)eto ontológico da univocidade do
superfícieda menina dc Lewis Carroll, não se encontram nunca, "só sentido ou "univocidade especulativa do ser e da linguagem"21
o comentador pode mudar de dimensão, e esta é a sua fraqueza, o si- Já dissemos: no que respeita à psicanálise, ela não resolve de
nal de que não habita nenhuma"lP. maneira nenhuma o problema da crítica/clínica. Da sublimação, como
dessexualização,que forma a obra de arte, nada ou quase nada se sabe.
V E há que afirmar a autonomia da superfície metafísica, em face das
Habitar uma outra dimensão significa aqui habitar aquela fron- reduções psicanalíticas.
teira que faz passar (e não rebater) a crítica para a clínica e reciproca- Mas nem por isso Deleuze consegue, com seu prometoontológico,
mente: quer dizer, habitar um plano imanente aos corpos, à vida, e à uma solução satisfatória ao problema da passagem do infra-sentido
linguagem, à superfície, ao sentido. E esse plano é o do pensar. De- da profundidade dos corpos je do desejo) ao sentido da superfície.
leuze o chamará, na Lógica do sepzfido,"superfície metafísica" ou Citemos as últimas linhas do livro; nelas Deleuze evoca a "Univocidade
"campo transcendental"20. do sentido" e uma "poesia sem figuras", como imanência que resol-
Todo seu esforço será o de responder àquela série de problemas veria, à maneira esquizo, mas positivamente, sem os mergulhos no sem-
que evocamos acima; em particular, compreender na elaboração das fundo destrutivo dos corpos, a questão da passagem da profundidade
séries o seu entrelaçamento (os capítulos "Da gênese estática lógica: dos órgãos ao sentido-açãodas palavras "físicas". Trata-se de fazer
e "Das singularidades", em particular, testemunham esse esforço). passar "a energia sexual ao assexual puro", "problema a que só uma
Toda uma teoria da superfície metafísica e da univocidade do sentido obra de arte por fazer responderá". E responderá como? Construin-
é elaborada -- e vai na direção do pensamento da imanência. do uma ordem, ou melhor, um ordenamentoterciário, que envolve-
Porque uma superfície metafísica ou a univocidade do sentido ria e "fecharia" a equivocidade das séries (primária, do desejo, e se-
supõe a supressão da dualidade das séries: o fosso que as separa se- cundária, da linguagem) num "Unívoco desscxualizado" -- tal como
ria preenchido por um sentido único que atravessaria as duas séries. o faz o humor. E Deleuze termina assim: "Considerando então o per-
Como conceber um tal sentido, qual seria o seu suporte? No fundo pétuo entrelaçamento que constitui a lógica do sentido, constata-se que
Deleuze concebe a "superfície metafísica" do pensamento segundo o esseordenamentofinal retoma a voz do alto do processo primário [a
modelo da linguagem esquizo, que só comporta um nível, o dos abe- voz como expressão já do desejos, mas que a organização secundária
tos-açõesou das palavras-ações que se jogam no corpo. Linguagem em superfície retoma alguma coisa dos ruídos mais profundos, blocos
que integraas palavras na vida dos corpos, que não admite idéias e elementospara a Univocidade do sentido, breve instante para uma
acima da experiência vivida, nem tampouco corpos por baixo do sen- poesia sem figuras. E que pode a obra de arte, senão retomar sempre
tido -- não há transcendência, tudo é imanente na linguagem esquizo. o caminho que vai dos ruídos à voz, da voz à fala, da fala ao verbo,
construir essaÀÍ siê /ãr ein Naus, para aí reencontrarsemprea inde-
pendênciados sons e aí fixar essa fulguração do unívoco, acontecimen-

i9 LS, P. 114.
20Cf. l.S, p. 150, p. ex. zi l,S, P. 289

74 José Gil Uma reviravolta no pensamento de Deleuze 75


to recoberto demasiado depressa pela banalidade cotidiana ou, pelo às síntesesdo desejo -- síntese conectiva, síntese disjuntiva, síntese
contrário, pelos sofrimentos da loucura"22. conjuntiva. Em todos os casos é como superfície que o cor7losem ór-
gãos é descrito. 2) Estabelecer um "paralelismo" entre a produção de
VI desejo, sua inscrição e captação, e a produção capitalista, seu registro
No Anff-Édípo a noção de corpo sem órgãos transforma-se e e seu consumo. O capital aparece primeiro como um c07Posem ór-
adquire uma precisão e uma consistência que não possuía na l,(igica gãos. Mas, num dado momento, ao analisar a extraordinária potên-
do semfido.Digamos, para resumir uma passagem complexa, que a cia das intensidades desencadeadas pelo corPO sem órgãos na produ-
vertente do corPO sem órgãos intensivo, glorioso, vai sobrepor-se ao ção de desejo, Deleuze e Guattari perguntam: como foi possível dar
corpo psicótico fragmentado ou vazio: o "novo" corpo sem órgãos é do esquizofrênico esta imagem de um "farrapo autista, separado do
pleno, cheio, intensivo. Mais: deixa de se situar na profundidade ino- real e cortado da vida?"24. E a resposta à questão inflecte o paralelis-
minável do corpo para ocupar primordialmente um plano de superfí- mo para uma convergência (das duas novas séries, da produção do de-
cie. Ele é superfície, essa superfície que a Z,óglcczdo sentido concebia sejo e da produção capitalista): o farrapo autista seria um produto da
como fronteira e entrelaçamentodas duas séries. psiquiatria, e da produção social. Mais: não será pelo mesmo proces-
E o desejo inteiro que nele se joga: sobretudo a tensão entre cor- so que a psicanálise reduz o neurótico a "uma pobre criatura que con-
po improdutivo, estéril, que avaria e faz parar as máquinas desejan- some eternamente um 'papai-mamãe' e mais nada"z5
tes, e um corpo abençoado ou milagroso, que atrai as máquinas do Essa inflexão do paralelismo para a convergência ou mesmo para
desejoe as faz de novo funcionar. O primeiro corpo é repulsivo, o se- a coincidência tem efeitos decisivos: não se trata de fazer do c07POsem
gundo produz uma atração; Deleuze chama o primeiro paranóico, o órgãos uma metáfora do campo social (Deleuze tem horror das metá-
segundo, esquizofrênico. Entre os dois, a "máquina celibatária" que foras) mas, primeiro, criar um plano único de realidade, de modo que
faz funcionar diferentemente a máquina paranóica, produz um novo o desejo implique o soclzís, como este contém aquele. Não é por aca-
regime do corPO sem órgãos, o regime miraculante das quantidades so que a psicanálise faz a mesma coisa que o capitalismo e a psiquia-
intensivas.
tria, é porque o capitalismo é também um produto do desejopsicótico.
A passagemdo improdutivo ao produtivo, do corpo paranóico Esse plano único é um plano de imanência, imanência da produção
ao corpo esquizofrênico, como produção de quantidades intensivas ou do desejo, da produção capitalista e da produção das formações de
intensidades, vem preencher o lugar deixado vazio, na l,ógica do sen- poder nos "Selvagens", nos "Bárbarosre nos "Civilizados". A extraor-
tido, pela articulação das duas séries, a da profundidade dos corpos e dinária imbricação de todos essesníveis num só plano testemunhao
do desejo e a superfície de expressão, entre o U/zte sízzne o sentido. novo regime ao qual Deleuze-Guattari submetemos seusconceitos.
O c07Po sem órgãos é um ovo, atravessado por gradientes, lati- O plano de imanência (ou c07POsem órgãos), não designa uma
tudes, longitudes, eixos que marcam e situam os percursos das inten- realidade fora dele: não é nem da ordem do simbólico, ncm do imagi-
sidades e dos devires23. Surge um conjunto de conceitos novos que nário, mas só ele é real. E é o real (porque os novos conceitos partici-
descreve o funcionamento do corPO sem órgãos e que se desenvolverá pam, quer dizer agemsobre o real). Não há, pois, que perguntar se o
plenamente em M// P/afãs. corPO sem órgãos, como o "corpo da Terra" das sociedades primiti-
Mas o corpo sem órgãos não vai ficar somente no centro de uma vas, ou como "superfície de inscrição" do capital na sociedadecapi-
nova teoria do desejo. Deleuze irá transferi-la para o campo social e talista, é uma metáfora, ou se existem aplicações metafóricas da no-
para a história. Atribui-lhe duas funçõesmaiores: 1) servir de suporte ção de corPO sem órgãos: pelo contrário, como este, na sua produção

zz LS, P. 290. 24.4E, p. 26.


23L'a/zlf-(Edfpe, Paras,Minuit, 1973, p. 26 (doravante .4E). 25AE, pp. 26-7

76 José Gil 77
Uma reviravolta no pensamento de Deleuze
de intensidades, é o único real, aquelas são os seus modos, como pla- autista" instaura ao mesmo tempo o plano de imanência, é porque o
nos dentro de um só plano, ou como acontecimentos de um só Acon- sujeitocrítico (autor do A?zli-Édito) se implica elemesmo na imanência:
tecimento, por onde se comunicam todos os acontecimentos, como o pertence ao plano e nele se produz. O que significa: 1) que o movi-
concebia a Lógica do se?zlfdo.O "Êdipo" circula através de todos os mento da crítica será doravante um movimento de criação de concei-
planos (de desejo, de trabalho, de produção, de poder) desse único tos. Com efeito, o movimento que traça o plano não segue uma lógi-
plano. O paralelismo entre a produção dose)antee a produção capi- ca discursiva (de conceito a conceito, formalmente), mas uma lógica
talista (e as respectivas formas de repressão) tornou-se inerência, l-er- das potências. A imanência tFaz necessariamentea criação de concei-
so e reverso de um mesmo plano. tos, porque a crítica já não possui referentestranscendentes(essências,
Um segundo efeito nasce da própria operação que faz surgir a valores), não avaliando senão pelas intensidades que a levam e que ela
coincidência: ao fazer convergir os conceitos críticos que trabalham cria. Está pois condenada à criação de conceitos, segundo uma lógica
nos dois planos Ido desejo e do campo social), Deleuze é levado a das intensidades. Disso Á/zfi-Édlpo, À4i/P/afãs e O que é a P/osoPa?
implica-los e a implicar-se ele mesmo num mesmo movimento de pen- constituem exemplos maiores. 2) Que a própria noção mesmo de con-
samento (da imanência). Primeiro, a coincidência dos planos ocorre ceito muda, assim como a imagemdo pensamento.Doravante o con-
ao mesmo tempo que a passagemdo corpo vazio ao corpo glorioso ceito não se definirá pelo seu regime discursivo, mas por seu poder de
ou pleno: ao recusar ver no esquizo um farrapo autista, Deleuze e Guat- criação-ação. A propósito de sua obra e nomeadamente de sua crítica
tari encaram-no como uma espéciede falsa realidade criada pelas ins- à psicanálise antes do ÁnfJ-Édlpo, Deleuze diz: "Eu trabalhava uni-
tituições psiquiátricas, as quais por sua vez resultam de um poder so- camente com conceitos, e de maneira ainda tímida"27. E Guattari, na
cial e económico; mas que, por seu turno, resultam de um certo regi- mesma entrevista, falando do A/zfl-Édlpo: "Em nosso livro as opera-
me de desejo. A crítica da idéia de "farrapo autista" implica portanto ções lógicas são também operações físicas"28: tal como as palavras do
a crítica de todo o sistema de poder sobre o social; não somente da esquizofrênico.
ideologia psicanalítica mas de sua prática e de sua teoria. Crítica que Vai-se buscar o modelo de trabalho do conceito na idéia esquizo
não se poderia exercer sem adotar o único ponto de vista oposto ao da ação das palavras; e a imanência, tal como é pensada no Golfo sem
regimedo desejo reprimido (o do corpo esquizo vazio): tomar-se-á par- órgãos, dela deriva naturalmente.
tido pelo regime pleno do c07Po sem órgãos. Isso equivale a quebrar Claro que Deleuze-Guattari não pensam a ação do conceito à
com todas essasformações do desejo e do poder repressivo e entrar maneira dos esquizofrênicos (a enunciação como uma ação material
por si mesmo num devir-doido, num devir-esquizoglorioso -- e deli- e corporal do sentido: como uma ação mágica). Que significa então o
rar a história inteira. Num certo sentido, é o que fazem Deleuze e pensamento como "operação física" ?
Guattari no Anil-Edlpo: produzem-se a si mesmos enquanto sujeitos O pensamento deixa de evoluir em sua esfera própria, isolada,
intensivos sobre um corpo sem órgãos de intensidade = 0, segundo a afastada de vida, e torna-se um fluxo no corpo sem órgãos (plano de
descrição de certas páginas admiráveiszÓ. consistência); desposa agora o movimento das intensidades que nele
Ao transformar o corpo vazio em corpo pleno, Deleuze e Guat- circulam: movimento, que ele descreve, do desejo ou do capital.
tari obtêm a convergência dos planos (em que se desenvolve a crítica Desposar o movimento, prolonga-lo ao extremo, descrever sua
da repressão) num só plano, que os contém todos. Assim eles criam o trajetória, adivinhar o que supõe, experimentar devires(-- mulher, --
plano de imanência do co/PO sem órgãos em que eles próprios se en- animal, -- mineral) sempre na superfície do corPO sem órgãos: eis
contram incluídos. o novo movimento de pensamento no .Anil-Edlpo e nas obras seguin-
Se a operaçãocrítica da concepçãodo esquizocomo "farrapo
27Pozflpar/ers,Paris, Minuit, 1990, p. 24 IdoravantePI
zó Cf. AE, pp. 25-9. 28P, P. 26.

78 Uma reviravolta no pensamento de Deleuze 79


José Gil
tes. Deleuze encontra, no plano da escrita, o plano de iminência: ao ao pensamento30. Completamente diferente é um pensamento que
mesmo tempo que descreve o funcionamento do corPO sem (irg'2os, faz mergulha na vida, e se deixa por ela irrigar e animar.
participar esta descrição nessefuncionamento (tal como em O que é Tudo muda quando o pensamento, deixando de ser pensamen-
a /;/osoÕa?, ele traça o plano de imanência enquanto o definem. to da vida, torna-se ele próprio vida, quando a imanência, deixando
Eis como seu pensamentose torna ação: não porque apelaria à de ser o conceito de uma relação j"imanente 'a'") passa a ser ação do
ação que viria em seguidacomo seu prolongamentodireto, mas por- próprio pensamento, enquanto vida do e no pensamento.
que convoca uma lógica das potências. Pensar é uma potência: pen- É dessa maneira que todo o dispositivo elaborado na Lógicczdo
sar-se-á pois no movimento e ao engendrar esse mesmo movimento se/zf/dopara captar o nascimentodo sentido será retomado no Á/zfi-
que leva o pensamento -- sempre na imanência. De tal maneira que Édlpo, mas com uma modificação essencial: o movimento que anima
pensar se torna um movimento de vida. O pensamento da intensida- os conceitos e as coisas que designam é o mesmo movimento de vida
de torna-se potência e intensidade do pensamento. no c07POsem órgãos. As relações "lógicas" dos conceitos da l,ógica
do sentidoencarnam-seagora nos movimentosreais do desejo:e isso
Vll muda tudo.
Tudo parecia pronto, na Lógica do senado, para que surgisse esse Por exemplo, quando Deleuze se refere ao campo transcenden-
novo regime de pensamento. tal que quer constituir na Lógicczdo se zffdo ("impessoal e pré-indivi-
De fato, tratava-sede traçar o plano de imanência. Na Lógica dual, que não se assemelha aos campos empíricos correspondentes e
do se/zfído.Deleuze tinha tentado uma vez. sem sucesso. com a "su- que não se confunde com uma profundidade indiferenciada"3i), evo-
perfície metafísica" e "a Univocidade do ser e do sentido"; consegue- ca as "emissões de singularidades, enquanto se produzem numa su-
o na segunda vez com o coco sem órgãos, no Ánfi-Edipo Iremodela- perfície inconsciente e enquanto gozam de um princípio móvel ima-
rá o traçado uma última vez em O que é a /i/oso/;cz?:na verdade foi- nente de auto-unificação por distribuição nõmade, que se distingue ra-
Ihe sempre introduzindo modificaçõesl. dicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das
Tudo estava preparado. los dispositivos, a maior parte dos concei- sínteses da consciência. As singularidades são os verdadeiros aconte-
tos: multiplicidades, diferença, singularidades nõmades, zonas de vizi- cimentos transcendentais"32. No Ánfi-Édfpo esse "princípio móvel de
nhança e de indiscernibilidade, heterogênese), e no entanto a l,ógica do auto-unificação" terá sua sede no corPO sem órgãos; e a "energia pç)-
sefzffdonão traça o plano de imanência. Como diz Deleuze da instaura- tencial", como "energia do acontecimentopuro"33 que distribui as
ção do Cogflo cartesiano: "Tudo parecia pronto e, no entanto, algo faltava. singularidades nâmades torna-se, no Anil-Édlpo, a energia das quan-
O conceito anterior remetia talvez a um outro problema, diferente da- tidades intensivas que percorrem o corPO sem órgãos e se distribuem
quele do Copito (é preciso uma mutação de problema para que o Co-
pito cartesiano apareça), ou mesmo se desenrolava num outro plano"z'
Do mesmo modo, poder-se-ia dizer: o conceito de Univocidade 30Ver a respeito as belas páginas de "Porcelana e vulcão", sobre Fitzgerald
do ser e do sentido remetia ainda a um outro problema e a um outro e Lowry: trata-se aí do "ridículo do pensador" que "brinca" e "fica à beira" da
plano o de tornar o sentido imanente ao ser, num plano em que o vida. "Em verdade, como ficar na superfície sem permanecer à margem? Como
salvar-se, salvando a superfície e toda a organização de superfície, inclusive a lin-
pensamento seria imanente à vida; mas não se tratava ainda senão de guagem e a vida? Como atingir essa po/bica, essa gwerri/ba completa? IQuantas
um problemade pensamento,em que a vida era pensadaje não o liçõesa receber ainda do estoicismo.-l " Questões que encontrarão resposta quando
pensamentovivido como vida): a l,ógicczdo sezzffdoapelava pata um Deleuze cruzar com Marx, Maio de 68 e Fénix Guattari.
pensamento imanente à vida num plano em que a vida seria imanente
3i LS, P. 124.
3z LS, PP. 124-5.

29Qu'esf-ce que /a pbí/osopble?,Paria, Minuit, 1991, p. 3 1 Idoravante epal. LS, P. 125.

80 81
José Gil Uma reviravolta no pensamento de Deleuze
à volta de órgãos segundo limiares de intensidade. Toda a descrição corPOsem órgãos. [...] Nada aqui é representativo,mas tudo é vida e
do campo transcendental34é retomada no Abri-Édlpo, mas com o vivido: a emoçãovivida dos seiosnão se assemelhaa seios, não os
co/PO sem órgãos como "superfície", o desejo como princípio de uni- representa [...]. Nada senão bandas de intensidade, potenciais, limia-
ficação e de distribuição das singularidades, e os devires como princí- res e gradientes. Experiência dilacerante, demasiado emocionante, pela
pio de sua diferenciação e movimento. Eis o que significa a expressão qual o esquizo é aquele que mais se aproxima da matéria, de um cen-
de Guattari, tratar as "operações lógicas como operações físicas' tro intenso e vivo da matéria"37. Nesse "movimento vital", "o esta-
O que é que precipita essa mudança na filosofia de Deleuze? Se do vivido é primeiro relativamenteao sujeito que o vive"j6
é verdade que o plano "implica uma espécie de experimentação ta- Não se trata, portanto, nem de "experiência vivida" psicológi-
teante, e [que] seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco ca ou estética, nem de "experiência" do pensamento, mas do que, ul-
racionais e sensatos"35, seria vão procurar articulações lógicas que ex- trapassando-as a todas (em intensidade e em "extensão": mergulhan-
plicassem a passagem do regime de pensamento da l,ógíca do senado do no inconsciente), permite pensa-las como um campo transcenden-
ao do .A/zfl-Édlpo (seria necessário evocar Maio de 68 e o encontro tal39. Desmedida, ela dá, no entanto, a medida da avaliação crítica: é
com Guattari, no registro do que desencadeou sem dúvida o salto que em seu nome que Deleuze recusa a fenomenologia da arte cuja Urdoxa
constitui o plano de iminência). só seria capaz de fundar as opiniões e as emoções do senso comum,
Mas é possível detectar um elemento determinante na transfor- enquanto sua estética das sensações supõe "uma Potência mais pro-
mação do pensamentoda l,óglca do se/zlido: a nova idéia do c07PO funda e quase invivível"40. É ela que permite a Deleuze pensar a arti-
sem órgãos como superfície de intensidades. Ela forneceu a Deleuze a culação crítica/clínica, "a especificidade do artista, ao mesmo tempo
noção, essencial para sua filosofia, de uma "experiência" (termo que como doente e médicoda civilização"4i, a "literatura como saúde",
Deleuze não aprecia muito, por causa do seu uso fenomenológico) o delírio como "criação de saúde"42. Enfim, é ela que permite ao con-
particular, sem medida, que ultrapassa todo sujeito e toda consciên- ceito de vida atravessar todo o campo transcendental do pensamento.
cia, e que constituirá o solo e o alimento de seu pensamento (estético,
filosófico, ético, políticos. Husserl dizia que o tipo de experiênciade
cada filósofo definia sua filosofia. Deleuze construiu seu campo de
experimentação" transcendental com os conceitos de devires inten-
sos e intensidades que percorrem o corpo sem (órgãos (plano de con-
sistência, plano de imanêncial.
"Há uma experiência esquizofrênica das quantidades intensivas
em estado puro, a um ponto quase insuportável [...]. O dado a]uci-
natório (eu vejo, eu ouçol e o dado delirante(eu penso. .) pressupõem
um 'eu sinto' mais profundo, que dá às alucinações e ao delírio do
pensamentoseu conteúdo. Um 'eu sinto que me torno mulher', 'que
me torno deus' etc."36. Ou ainda: "Os seios no torso nu do presiden- 37AE, P, 26.
te [Schreberl não são nem de]irantes nem a]ucinatórios, eles designam s8AE, p. 27.
primeiro uma faixa de intensidade, uma zona de intensidade em seu
s9 Cf. "L'immanence: une vie.-", in Pbf/osopbie, n' 47.

40Francês Bacon. l,ogiqHe de /a se/zsafio/z,11,Paris, La Différence, 1981


34LS, PP. 125-6. P. 33.
35QPb, p. 44. 4í l,S, P. 227.
3ó.4E, p. 25. 42Crifiqz/eet c/i/ligue,Paris, Minuit, 1993, pp. 14-5

82 José Gil 83
Uma reviravolta no pensamento de Deleuze
O TEMPO NÃO-RECONCILIADO
Peter Pál Pelbart

Ts'ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em


astronomia, astrologia, livros canónicos, além de enxadrista, poeta e
calígrafo. Borges conta que ele renunciou aos prazeres "da opressão,
da justiça, do numeroso leito, dos banquetese ainda da erudição" a
fim de compor um livro e um labirinto. Com tal propósito enclausurou-
se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte,
no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e ne-
nhum labirinto. O sinólogo Stephen Albert assim resume sua hipóte-
se a respeito: "Ts'ui Pen teria dito uma vez: 'Retiro-me para escrever
um livro'. E outra: 'Retiro-me para construir um labirinto'. Todos
imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram
um só objeto"l. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta,
em que Ts'ui Pen escrevia: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu
jardim de caminhosque se bifurcam". "Quase de imediato", refere
Albert, "compreendi;o jardim dos caminhosque se bifurcam era o
romance caótico; a frase 'vários futuros (não a todos)' sugeriu-mea
imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções,
cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta
por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts'ui Pen, opta
-- simultaneamente -- por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos
tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do
romance" . As variações a que eram submetidos os relatos de Ts'ui Pen
não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um
experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação
metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de
toda sua vida: o abismal problema do tempo.
Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente
de Ts'ui Pen: "0 jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem
incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts'ui Pen.

l J. L. Borges, "0 jardim dos caminhos que se bifurcam", Ficções, trad. Carlos
Negar, Porto Alegre, Globo, 1970, p. 78.

O tempo não-reconciliado 85
Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que
acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas espéciede mundo aberrante os terá acolhido a todos?
séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos diver-
gentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproxi-
DELEUZE TS'UI PEN
mam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abran- DeleuzeTs'ui Pen trancafiou-se por anos no Pavilhão da Mul-
ge todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; titudinária Mestiçagem. Teria dito uma vez: "Retiro-me para escre-
em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; nou- ver um livro". E outra: "Retiro-me para construir um labirinto". O
tros, os dois. [...] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis pouco recuo de que dispomos ainda hoje nos leva a suspeitar, inspi-
futuros. Num delessou seu inimigo: rados na perspicácia do sinólogo Albert, que o que o vulgo imagina
Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apre- seremduas obras diferentesconstitui, de fato, uma só. E, tal como no
sentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts'ui Pen é um pre- caso de Ts'ui Pen, a arquitetura labiríntica de alguns dos textos do
cursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nossotempo. Num outro filósofo pareceresponder não a um capricho de literato, ou a um ex-
tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts'ui Pena. Peço perimento mundano, porém, a uma inquietação constante raramente
indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a explicitada, como se fosse por demais abismal para poder ser exposta
comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas numa forma outra que não a da charada, da alusão ou do anúncio.
provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos Um pouco como Zaratustra, ao anunciarde forma tão alusivae en-
fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e viesadasua idéia do eterno retorno, que o próprio Deleuze pretende
que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação ter explicitado.
sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas pági- DeleuzeTs'ui Pen, diferentementede Newton e Schopenhauer,
nas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze3. Nelas consta não acreditava num tempo uniforme, absoluto, porém, em infinitas
que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médi- séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos diver-
co, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especia- gentes,convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproxi-
lista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem mam, se bifurcam, se cortam ou que secularmentese ignoram abran-
de Ateneu: a voz de Deleuzeera comparável a um ralador, ou a uma ge todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com
enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras,
biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: "Houve uma opta por todas -- isto é, cria múltiplos futuros, diversos tempos que
multidão de outros Deleuzes". É grande a tentação de pedir ao do- também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas
xógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimen- disparatadas. O filósofo Deleuze Ts'ui Pen fez ressoarem e igualmen-
to: terá havido uma multidão de outros Deleuzesao mesmo tempo, te destoarem a multidão dos outros Deleuzescuja existência o lexicó-
ou em tempos diferentese sucessivos?Foram eles contraditórios en- grafo Suidas reporta. É preciso, dizia Deleuze,recusar a regra de Leibniz
tre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos segundoa qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à exis-
tência caso sejam incompossíveis com aquele que Deus escolhe. Cabe
afirmar os incompossíveis num mesmo mundo estilhaçados
Não podemos deixar de ver aí, pressuposta e entrelaçada, uma
2 Paráfrase de nota de rodapé de José Gil, em seu Perna zdo Pessoa ou La curiosa tesesobre a multiplicidade temporal. Seu indício primeiro, em
méfapbysíqzle des sensafio?zs:"Tendo a leitura de Pessoa feito surgir, uns depois
dos outros, os temas de]euzeanos [.-] uma convicção inabalável se formou: Fer
Deleuze, são os inúmeros tempos que operam em sua obra, nem sem-
nando Pessoa [eu De[euze! O inverso não se verificou [-.]". Paras, La Différence,
1988, P. 73. 4 G. Deleuze,A Dobra, trad. Luiz B. L. Orlandi, Campinas, Papirus, 1991
p. 105 [no original, p. P01.
3 Pbf/osopbie, n' 47, 1995, pp. 8-9.

86 Peter Pál Pelbart O tempo não-reconciliado 87


pre compatíveis entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse tes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania
não só esse obscuro objeto filosófico, mas também e sobretudo sua do presenteque antes o envergava, e disponível, doravante, às mais
própria elaboração e feitura. excêntricas aventuras. Como diz Bruno Schulz em outro contexto, o
Eis alguns dos fragmentos que compõem o bizarro mosaico deleu- tempo é um elemento desordenado que só se mantém em disciplina
zeano do tempo, com suas respectivas colorações: o presente como graças a um incessantecultivo, a um cuidado, a um controle, a uma
síntese passiva sub-representativa, ou contemplação contraente (Plo- correção dos seus excessos. "Privado dessaassistência, ele fica imedia-
tino, Humej; o passado como Memória ontológica,Memória-mundo, tamente propenso a transgressões, a uma aberração selvagem, a tra-
Cone Virtual IBergson); o futuro como retorno seletivoque rejeita vessuras irresponsáveis, a uma palhaçada amorfa."S Schulz lembra que
Sujeito,Memória, Hábito (Nietzsche); a oposiçãoAion/Cronos (estói- carregamos uma carga extranumerária que não cabe no trem dos even-
cosl; o tempo do Acontecimento IPéguy, Blanchotl; o Intempestivo tos e no tempo de dois trilhos que o suporta. Para essecontrabando
INietzschej; o tempo como "defasagem" (Simondonj; a Cesura e urn precioso, chamado por ele de Acontecimento, existem as tais faixas
tempo que já não "rima" IHõlderlinj; o tempo perplicado, o tempo laterais do tempo, desvios cegos, onde ficam "suspensos no ar, erran-
puro ou reencontradoda arte (Plotino, Proustj; o tempo liberado de tes, sem lar", num entremeado multilinear, sem "antes" nem "depois",
sua subordinação ao movimento IKant versus Aristóteles); o tempo nem "simultaneamente", nem "por conseguinte", o mais remoto mur-
como Diferença, ou como Outro (Platão contra Platão); o tempo como múrio e o mais longínquo futuro comunicando-se num início virginal.
Potência, não como Finitude IBergson versus Heidegger); o tempo como Assim, no seio do tempo contínuo dos presentes encadeados jcronosl
Fora (Blanchot, Foucaultl. insinua-seconstantemente o tempo amorfo do Acontecimento jaion),
Desses poucos tempos ou conceitos de tempo que se desdobram na sua lógica não dialética, impessoal, impassível, incorpórea: "a pura
em cascata vertiginosa ao longo dos livros de Deleuze, irrigando-os de reserva", virtualidade pura que não pára de sobrevir.
ponta a ponta, algumas incoerências saltam à vista e parecem estilha- A esse propósito Deleuze salienta um procedimento cinematográ-
çar a obra, que no entanto simultaneamente os afirma. As bifurcações fico que consiste em desvincular as pontas de presente de sua própria
maiores suscitam no leitor a pergunta: mas, afinal, Deléuze concebe o atualidade, subordinando esse presente a um acontecimento que o
tempo como contração ou como cisão? como dobra ou desdobra? atravessa e o transborda, no qual justamente não há mais passado, pre-
como um transcendental ou como o virtual? Trata-se de um tempo puro sente, futuro, enrolados que estão no acontecimento "simultâneo, inex-
e vazio, ou de um tempo ontológico, pleno de pontos singulares?Tem- plicável". No Acontecimento coexistemas pontas de presentedesa-
po reto ou rizomático? Tempo como interioridade ou como exterio- tualizadas. ou ainda um mesmo acontecimentose distribui em mun-
ridade? Tempo como Todo ou como Fora? Tempo como Forma ou dos distintos segundo tempos diferentes, de modo que, o que para um
como Potência? é passado, para outro é presente, para um terceiro é futuro -- mas é o
mesmo acontecimento (O ano passado em À4arle/zbadl.Tempo side-
A DRAMATIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA ral ou sistema da relatividade, diz Deleuze, porque inclui uma cosmo-
As teses maiores de Deleuze sobre o tempo reaparecem de ma- logia pluralista, no qual um mesmo acontecimento se distribui, em
neira dramatizada em seus livros de cinema, onde conquistaram uma versões incompatíveis, em uma pluralidade de mundos. Eis não um deus
operacionalidadeestéticaque as ilumina em seu conjunto "encadea- que escolhe o melhor dos mundos possíveis, mas um Processo que passa
do". Tomemos a idéia mais enigmática que organiza esses livros, o terna por todos eles,afirmando-os "simultaneamente". Ê um sistema de va
da emancipação do tempo. "The time is out of joint", exclama Hamlet. nação: dado um acontecimento, não rebatê-lo sobre um presente que
O tempo está fora dos gonzos! O que significa o tempo saído dos ei- o atualiza, mas fazê-lo variar em diversos presentes pertencentesa
xos, devolvido a si mesmo, o tempo puro e liberada? Ê um tempo li-
derado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno de seu 5B. Schulz,O Sanézfórfo,
trad. H. Siewierski,Rio deJaneiro, Imago, 1994
eixo e encadeadoe direcionado conforme a sucessãode seuspresen- P 172

88 Peter Pál Pelbart O tempo não-reconciliado 89


mundos distintos, embora num certo sentido, mais genérico, eles per- lhão, não ordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais
tençam a um mesmo mundo estilhaçado. Ou, dado um presente, não de remetê-lo a uma consciência -- a consciência do tempo --, mas à
esgota-lo nele mesmo, encontrar nele o acontecimento pelo qual ele alucinação. Enlouquecimento dessetempo fora dos eixos, não sem re-
se comunica com outros presentesem outros mundos, mergulhar a lação com o tempo daquelesque, fora dos eixos, são ditos loucos.
montante no acontecimentocomum em que estão implicados todos:
o Emaranhado Virtual. TEMPO E LOUCURA
Supõe-seaí uma gigantescaMemória ontológica, constituída por Sempre que fala do tempo, Deleuze evoca um desregramento:
lençóis ou jazidas de passado, espéciesde estratos, que se comunicam tempo descentrado, aberrante, selvagem, paradoxal, flutuante, ou mes-
entre si para afunilar-se, exercendo pressão sobre uma ponta de pre- mo afundado. Não parece abusivo considerar que o enlouquecimento
sente. Alguns personagens de Resnais, por exemplo, passando de um do tempo tal como Deleuze o trabalha comunica-se diretamente com
estrato a outro, passeando entre os níveis, atravessando idades do a temporalidade da loucura dita "clínica". Enquanto isso, em contra-
mundo, transversalizando o Tempo ou recriando a cada vez as distân- partida, boa parte da literatura sobre as psicosesse vê inteiramente
cias e proximidades entre os diversos pontos singulares de suas vidas. desarmada diante das múltiplas figuras temporais que proliferam a
Para ficar numa imagem cómoda, o tempo como um lenço: a cada vez olhos vistos na clínica, e quc as teorias "psi" têm dificuldade em abar-
que assoamos o nariz, nós o enfiamos no bolso, amarrotando-o de car, tendo em vista uma normatividadetemporal da qual são neces-
maneira distinta, de forma que dois pontos do lenço que antes esta- sariamente prisioneiras. É muito raro que se pensea temporalidade da
vam distantese não se tocavam (como dois momentos da vida, lon- psicose por um viés outro, não sob o modo privativo. Mesmo na abor-
gínquos segundo uma linha do tempo) agora tornam-se contíguos, ou dagem fenomenológica ou existencial das psicoses, desde Minkowski
mesmo coincidem, ou, ao contrário, dois pontos em princípio vizinhos até Maldiney, passando por Binswanger ou Jaspers, apesar do inegá-
agora se afastam irremediavelmente. Como se o tempo fosse uma gran- vel interesse descritivo que ela apresenta, nela a multiplicidade cons-
de massa de argila, que a cada modelagem rearranja as distâncias en- tatada acaba sendo referida a uma modalidade pressuposta como ideal,
tre os pontos nela assinalados. Curiosa tipologia em quee assistimos priorizando-se, por exemplo, certas estruturas de estar-no-mundo, a
a uma transformação incessante, modulação, que reinventa e faz va- transcendência, a antecipação, o prometo,a partir de um presente ori-
riar as relações entre os vários lençóis e seus pontos cintilantes, cada ginário etc. Mas também no interior da literatura estritamente psica-
rearranjo criando algo novo, memória plástica, sempre refeita, sem- nalítica, com raras exceções, a não-unicidade da experiência tempo-
pre por vir. Massa do tempo modelável,ou melhor, modulável, e so- ral psicótica é subsumida à sua futuração malograda, na forma das
bre a qual Deleuze chega até a exclamar, como um Cristóvão Colombo: representações atemporaisÕ. De modo que há uma iminência caótica
é a Terra, meio vital lamacento! Quando o cinema se embrenha nessa que é recusada em nome de um alhures significante precisamente não
ordem de coexistência virtual eleinventa seus lençóis paradoxais, hip- assumível pelo psicótico. Enfim, toda uma apologia da historicização,
nóticos, alucinatórios, indecidíveis.Nesse filão bergsoniano, a memória cujo ponto de apoio é o eu historiador, como diria Piera Aulagnier.
deixa dc ser uma faculdade interior ao homem, é o homem que habi- Assim, de algum modo a temporalidade acaba sendo identificada à
ta o interior de uma vasta Memória, Memória-Mundo, gigantesco cone historicização. Com tudo o que essa perspectiva possa apresentar de
invertido, multiplicidade virtual da qual somos um grau determinado interessante, ou útil, e até de necessária na clínica, ela tem o inconve-
de distensãoou contração. O filósofo e o porco, como numa metem- niente de dificultar o acolhimento dos devires na psicose. A reflexão
psicose, retomam o mesmo cone, a mesma vida em níveis distintos, de Deleuze e Guattari, ao contrapor os deveresà história, poderia ajudar
graceja Deleuze.
O tempo passa então a ser concebido não mais como linha, mas
como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e sim 6 Seria preciso citar uma exceção recente e notável, de Sylvie Le Poulichet
massa, não sucessão, porém coexistência, não um círculo, mas turbi- L'oez/z/re d femPs e z psycbana/yse, Paris, Payot &: Rivages, 1994.

90 Peter Pál Pelbart O tempo não-reconciliado 91


a repensar essa heterogeneidade temporal da psicose que tanto desa- pensamento fora dos eixos, isto é, de um pensamento que deixasse de
fia o tempo da razão, mesmo psicanalítica. girar em torno do Mesmo.
Deleuze o diz claramente: a História é um marcador temporal do Assim, como critica uma imagemdo pensamentodita dogmáti-
Poder/. As pessoas sonham em começar ou recomeçar do zero, e tam- ca, Deleuze fustiga uma imagem de tempo hegemónica. Ao reivindi-
bém temem aonde vão chegar, ou cair. Sempre buscamos a origem ou car um pensamento sem imagem, para que possam advir outras ima-
o desfecho de uma vida, num vício cartográfico, mas desdenhamos o gens ao pensamento, Deleuze também reclama um tempo sem ima-
meio, que é uma antimemória, que é onde se atinge a maior velocida- gem, para que se liberemoutras imagensde tempo. A imagemdo
de. Esse meio é justamente onde os mais diferentes tempos se comu- pensamento dita dogmática é bem conhecida: ela é explorada desde
nicam e se cruzam, onde está o movimento, a velocidade,o devir, o Níefzscbe e a P/osoPa até O que é a P/oso8a?. Mas qual seria a ima-
turbilhão, diz Deleuze literalmente8.E a pergunta que se impõe é sim- gem de tempo hegemónica recusada por Deleuze? Para irmos rápido,
ples: de que figura temporal dispomos para pensar esse meio turbi- diremos: é a do tempo como círculo. Não se trata propriamente de
Ihonar, ou a desterritorializaçãocomo primeira, ou a multiplicidade um tempo circular, mas do círculo como uma estrutura profunda, em
virtual? De qualquer modo, não deveria deixar de intrigar-nos o fato que o tempo se reconcilia consigo mesmo, em que começo e fim ri-
de que certos fenómenos de perturbação psíquica expõem, mais do que mam, como diz Hõlderlin. O que caracteriza o círculo é sua mo-
quaisquer outros, a virtualidade pura enquanto virtualidade, descolada nocentragem em torno do Presente, de seu Movimento encadeado e
precisamente de qualquer atualização centrada ou orientada, abrin- orientado, bem como sua totalização subjacente. O círculo, com seu
do-se para incongruências temporais diversas, que também o cinema, centro, metáfora do Mesmo. E, ainda que o Presente se situe num
a seu modo, não cansou de explorar desde o seu início. passado remoto e nostálgico, ou num futuro escatológico, nem por
isso deixa de continuar funcionando como eixo que encurva o tem-
IMAGENS DE TEMPO po, em torno do qual elegira, redesenhandoo círculo do qual pensá-
O cinema teria servido a Deleuze, como sugerimosacima, para vamos ter escapado. Trata-se aí, em última instância, ainda e sempre,
revelar determinadas condutas do tempo, dando delas imagens diver- do tempo da Re-presentação.
sas, evolutivas, circulares, espiraladas, declinantes, quebradas, sal- Ao tempo como Círculo, Deleuze contrapõe o tempo como Ri-
vadoras, desembestadas,ilocalizadas,multivetoriais.Tempo como zoma. Não mais Identidade reencontrada, mas Multiplicidade aber-
bifurcação, defasagem,jorramento, oscilação, cisão, modulação etc. ta. A lógica da multiplicidade foi exposta e trabalhada, entre outros
E plausível presumir que o interesse que Deleuze Ihe dedicou venha textos, na descrição do rizoma em Mfl P/afãs. Num rizoma entra-se
de uma determinação mais radical que ele mesmo deixou entrever, ao por qualquer lado, cada ponto se conectacom qualqueroutro, eleé
salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o feito de direções móveis, sem início ou fim, tendo apenas um meio, por
próprio pensamento. O pensamento e o tempo estariam assim, desde onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela de-
logo, numa relação de co-pertinência indissolúvel. Com efeito, o quc rivar, sem sujeito nem objeto. O que vem a ser o tempo, quando ele
se depreende dos textos de Deleuze a respeito do tempo é que o pró- passa a ser pensado enquanto multiplicidade pura ou operando numa
prio pensamento não poderia permanecer alheio ao projeto de libe- multiplicidade pura? O rizoma temporal não tcm um sentido (o sen-
rar-se de uma certa idéia de tempo que o formatou, bem como do eixo tido da flecha do tempo, o bom sentido, o sentidodo bom senso,que
que o encurva. Nesse sentido, a exclamação enigmática de Hamlet vai do mais diferenciado ao menos diferenciado), nem reencontra uma
sobre o tempo que sai dos eixos vai de par com a exigência de um totalidade prévia que, abolindo-se, ele se encarregaria de explicitar no
Conceito. Ele não possui um sentido e é alheio a qualquer teleologia.
Mas será esta a última palavra de Deleuze a respeito do tempo?
7 G. Deleuze e C. Bene, Superposífions, Paras, Minuit, 1980, p. 103. Pois essa multiplicidade virtual é como que arada e remexidaem to-
8 Idem, pp. 95-6. dos os seus pontos, em toda sua extensão, não mais por um Círculo,

92 O tempo não-reconciliado 93
Peter Pál Pelbart
que o autor recusa, mas pelo que se poderia chamar -- e a expressão desfaz-se a intriga, a história, a ação. Já fica mais difícil dar uma ima-
já está no Tlmewde Platão-- de um Círculo do Outro. Um círculo gem do Todo do tempo, orgânica, dialética, espiralada, porque o que
cujo centro é o Outro, este outro que jamais pode ser centro precisa- se esboroou foi a representação indireta do tempo que a imagem-mo-
mente porque é sempre outro: círculo descentrado. É a figura que vimento fornecia.
melhor convém à leitura original que Deleuze faz de Nietzsche: na O movimento aberrante, em contrapartida, vai apresentar o tem-
repetição retorna apenas o não-Mesmo, o Desigual, o Outro -- Ser po diretamente, diz Deleuze, do fundo da desproporção das escalas,
do Devir, Eterno Retorno da Diferença. como em Orson Welles, da dissipação dos centros, dos falsos raccords.
Pode-se chamar esse Outro de Futuro ja repetição régia é a do O próprio interstício entre as imagens se libera, de modo que o cine-
futuro, diz Diferença e repetição). Mas, se há em Deleuze, como em ma deixará de ser o cinema do Uno, que por associação de imagens
Heidegger, um privilégio do futuro, ele não é deduzível de uma pro- jmontageml visa o Todo do Tempo, para instalar-se no interstício, entre
blemática da Finitude, e sim da Obra, que rejeita seus andaimes, Há- as imagens. O Tempo não mais como Ser, mas como Entre, não mais
bito, Memória, Agente. O futuro não é, para o homem, uma anteci- regido pela forma verbal É, mas pela conjunção E, escavação do Fora.
pação de seu próprio fim, de sua própria morte, a possibilidade ex- O cinema moderno coloca em xeque constantemente, através de
trema de seu ser, nada que se aparente a um ser-para-a-morte, já que seu regime, o curso empírico do tempo. Na sua busca do transcenden-
não é a partir da ipseidade que ele pode ser pensado, mas de um fluxo tal, isto é, da forma do tempo, acaba sendo aspirado pela idéia de um
proto-ântico. Se na elaboração desse futuro por Deleuze o Aberto é Fora mais exterior que qualquer exterior, mais interior que qualquer
uma referência importante, ela aí remete ao Fora, mais do que ao Ser. interior, matéria-prima do tempo. A chave desse desenlacepode ser
Digamos que o Aberto de Deleuze está mais para Blanchot do que para resumida pela frase que caracteriza a filosofia de Deleuze como um
Heidegger. É sob o signo da Exterioridade, portanto, que o pensamento todo: "0 específico de uma pesquisa transcendental consiste em não
pode ganhar uma determinação de futuro. podermos detê-laquando queremos. Como é que poderíamos deter-
minar um fundamento, sem sermos precipitados para além, no sem-
Mas seria preciso acolher todas as implicações de uma tal idéia. fundo de que ele emerge?"V
Poderíamos começar por onde elas aparecem do modo mais palpável,
mais imagético, isto é, pelo cinema. Se desde a origem ele promove IMAGEM DO TEMPO, IMAGEM DO PENSAMENTO
movimentos aberrantes que descentram a percepção, mudando a es- Como já se disse, a crítica de Deleuze a uma imagem do pensa-
cala, a proporção, a aceleração, a direção, tirando o próprio movimento mento dita dogmática é feita em nome de um pensamento sem ima-
de seu eixo, o cinema também compensa essas aberrações através da gem. Ora, isso significa que o pensamento, sem um Modelo prévio do
montagem, conjurando-as, reabsorvendo-as, amortecendo-as. Mas che- que seja pensar (por exemplo: pensar é buscar a verdade), abre-se a
ga um momento em que essa ordenação e essa normalidade do movi- outras aventuras(por exemplo:pensaré criar). Tudo muda de um para
mento entram em crise, de modo que o movimento perde seu eixo, seu outro. Deleuze diz que são dois planos de imanência diferentes, o clás-
ponto de gravidade, sua motricidade, e a relação orgânica entre os sico e o moderno, o da vontade de verdade, por um lado, e o da cria-
movimentos se desmancha, o encadeamentosensório-motor se desfaz. ção, por outro.lO E cada um deles é inseparável de um certo conceito
a crença na continuidade do mundo se perde, porque um certo mun- de tempo que o preenche. Por exemplo, no plano de imanência clássi-
do também desmoronou. O que significa essa crise, mais radicalmen- co, do pensamento como busca da verdade, Deleuze assinala três mo-
te? Não só que a organicidade da ação no mundo desfez-se, mas que
o mundo como organicidade e totalidade foram abalados. Na esteira
9 G. Deleuze, Apresentação de Sacber-À4asocb, trad. José Martins Garcia,
de um tal terremoto, surgem encadeamentos fracos entre as situações, como SzzcberM[asocb,Lisboa, Assírio & A]vim, 1973, p. 124 [p. 98].
elos frouxos entre os espaços, aumenta a função do acaso, emerge uma 10G. Deleuzee F. Guattari, O qne é a /i/osoÕa?,trad. BentoPrado Jr. e
realidade dispersiva, os personagensflutuam em meio às situações, A[berto A[onso Muõoz, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 55 [p. 73].

94 Peter Pál Pelbart 95


O tempo não-reconciliado
mentor distintos: tempo como interioridade (na reminiscência plató- força do novo. Se há aí uma fidelidadeprofunda ao prometobergso-
nica, a verdade pressuposta corno imagem virtual de um já pensado niano, ela só pode ser levada a bom termo quando, com Nietzsche, o
que redobra todo conceito), tempo como instantaneidade (no inatismo tempo for alçado à sua potência última, ao fazer retornar... a diferen-
cartesiano, o tempo é expulso do conceito: entre a ideia e a alma que ça. SÓ o eterno retorno seletivo, afetando o novo, igualando-se ao
a forma enquanto sujeito, toda distância temporal é anulada), tempo Desigual em si, só o Tempo como Diferença pode inaugurar com o
como forma da interioridade lo tempo reintroduzido por Kant no Futuro, descontínuo e disruptivo, uma relação de excesso, a exemplo
sujeito, e cindindo-o). Temos assim, em poucas linhas de O qz/eé a da Obra ou do Além-do-homem,para o qual nemZaratustra está
/ileso/}a?, uma nova história do tempo -- anterioridade, instanta- maduro e que no entanto ele anuncia. O futuro como o incondiciona-
neidade, interioridade, ou melhor, reminiscência,inatismo, a priori, do que o instante afirma -- é o que Nietzsche teria chamado de In-
três conceitos de tempo. O tempo posto no conceito, o tempo expul- tempestivo e cuja importância Deleuze não cessa de ressaltar.
so do Cogifo, o tempo reintroduzido no sujeito, mas como fissura ou Se Michel Serres tem razão em atribuir à filosofia a função de
variação. No contexto em que são retomados, parecem indicar que a "inventar as condições da invenção", é preciso acrescentar que, no
idéia de tempo de cada filósofo é índice do plano de imanência que contexto que nos ocupa, isso significaria também e sobretudo rein-
eleerigiu, ou sobre o qual se instalou. Assim, se essestrês momentos ventar as condições da invenção de outros tempos que não os já con-
correspondem ao plano de imanência clássico lo pensamento como sagrados pela história. Trata-se, no limite, de desfazer a solidarieda-
busca da verdade), o plano de imanência moderno (o pensamento como de entre Tempo e História, com todas as implicações éticas, políticas
criação) pede um outro conceito de tempo, a determinar. Não seria o e estratégicas de uma tal ambição. Ao pensar as multiplicidades subs-
caso de supor que uma filosofia da diferença, tal como a de Deleuze, tantivas e os processos que nela operam, aí desentocando tempora'
deu-sepor tarefa preencher esse plano de imanência moderno com um lidadades as mais inusitadas, no arco que vai do Intempestivoaté o
conceito de tempo próprio a um pensamento definido como criação, Acontecimento, não terá Deleuze dado voz àqueles que, como diz ele
e não mais como vontade de verdade? num eco benjaminiano, "a História não leva em conta"]2? Não se trata,
O tempo, então -- não mais como anterioridade, instantaneidade, evidentemente,só dos oprimidos ou das minorias, embora semprese
interioridade, mas como exterioridadepura --, é a reversão inaudita trate delestambém, mas dos devires-minoritáriosde todos e de cada
a que nos convida Deleuze. O tempo como Fora sob a condição da um: não exatamente o povo, mas "o povo que falta", o povo por vir.
dobra. E o gesto que Deleuze atribuiu com amizade a Foucault, mui-
to embora deva ser considerado a aposta extrema de seu próprio pen-
samento: "Durante muito tempo, Foucault pensou o fora como uma
última espacialidade mais profunda que o tempo; foram suas últimas
obras que Ihe permitiram uma possibilidade de colocar o tempo no fora
e de pensar o fora como tempo, sob a condição da dobra"ll. É ape-
nas num tempo saído dos gonzos e assim devolvido ao Fora que as
tantas imagens de tempo inassimiláveis, recorrentes ao longo da obra
de Deleuze, podem ganhar seu verdadeiro alcance: elas correspondem
a outras tantas dobras, Acontecimentos novos e Subjetivações por vir.
A teorização deleuzeanado tempo, apesar de suas inúmeras obs-
curidades, teria por função, então, pensar um tempo consentâneoà

11G. Deleuze,Foucízu/f,trad. Cláudia Sant'Anna Martins, São Pauta, Bra-


siliense,1988, p. 115 [p. 115]. iz Deleuze, SaPerPosifíons, p. 127

96 Peter Pál Pelbart O tempo não-reconciliado 97


O OLHO DO FORA
Jean-Clet Martin

Cinemcz1: A Imagem-moplmenfo, um livro em que se é obriga-


do a saltar a fenda que descolao pensamento,a reencadearfragmen-
tos de discurso, restos de imagens, pedaços de sentido e de não-senti-
do! E como uma szlper#cie,um plano em que, de folha em folha, er-
guem-se imagens do pensamento, um cartoon filosófico. O conceito
de superfície não tem, filosoficamente, uma história muito carregada,
ainda que freqüentementeo confundamos com determinaçõesque não
Ihe convêm de forma alguma. Definiu-se, desse modo por demais in-
sistente,a superfíciepor simplesoposição à profundidade. A superfí-
cie é então aparência que deve ser superada em direção a sua essên-
cia. Assim entendida, a superfícieinscreve-sena estrutura do desve-
lamento e prolonga-se nos pleitos, hermenêuticosou fenomenológicos,
da própria coisa.
Uma outra confusão, que correspondetalvez ao inverso da pre-
cedente, consiste, em vez de opâ-la à profundidade, em considerar a
superfície à maneira de um fundo sobre o qual tudo se dispõe. Trata-
se da idéia de suporte, mesa ou quadro, condição de possibilidade de
certas associações. Nessa perspectiva, a idéia de superfície funda uma
epistemologia que procede por horizonte ou, como diz Heidegger, de
uma razão suficiente ( Gra/zd).
Mas uma superfícienão é nada disso. É o que vemos em Lewis
Carroll, em que nada fica no lugar, em que tanto as coisas como as
palavras se dispersam em todos os sentidos. O problema de Alice é o
de produzir um ritmo, um gesfz/scapaz de se ajustar a essa linha em
espelho habitada por cartas sem espessura. Como saltar de uma carta
para outra sem perder o confl?zz/z/m, criando, a cada vez, uma conti-
nuidade de variação? É como para o viajante que segue os fragmen-
tos de uma paisagem através das diferentes janelas do trem que o trans-
porta, em uma velocidadelouca, em direção a superfíciesnão-comu-
nicantes.Todas as janelasdo trem são comparáveis a uma sucessão
de clichês, a uma película cinematográfica para a qual se deve desco-
brir a velocidade de projeção. Então, todas as imagens se sucedem sobre

O olho do fora 99
uma superfície contínua e as figuras desencadeadas se superpõem sem te nos conduz e que, no entanto, o plano de uma imagem-movimento
muito choque, constituindo uma entidade muito especial, um evento deve afrontar, se ela quiser recolher sua luz. Como indica Melville, em
que Deleuze chama de imagem-movimento... um texto impressionante:
Uma superfície é portanto um plano extremamente povoado, um
plano de buracos e de luz que se consolidam de maneira anónima. E, "A espuma que ela levantava por enquanto cintilava
sob certos aspectos -- é preciso reconhecer --, um plano como esse e queimava os olhos de uma maneira intolerável como uma
nada dá a ver. Mas nada dar a ver não deve ser confundido com o nada geleira... tirar as escamas de seus olhos para vê-la; homens,
ou, pior ainda, com a dissimulação. É como um campo de batalha: a olho vivo, procuram a água branca; se virem ao menos uma
batalha realiza um estado de agitação no qual não se discerne nenhu só bolha, gritem!"
ma forma. Como indica Stendhal,em seu diário de Bautzen, "vemos
muito bem, do meio-dia às três horas, tudo o que se pode ver de uma Esse olho de que se retiram as escamas, esse olho que ronda na
batalha, ou seja, nada". Nela discernir o que quer que seja é tão difí- proximidade de uma morte cuja pátina incorporamcada bolha branca
cil quanto procurar uma agulha em um palheiro. Eis uma das mais consegue exprimir, esse olho sem véu não tem portanto nenhuma pos-
importantes exigências da filosofia de Deleuze; com efeito, em uma sibilidade de se fechar em um ponto de vista. Faltam-lhe escamas, as
superfície nada está escondido, mas nem tudo é visível. É por isso que pálpebras, o ângulo de rebatimento que polarize a visão em uma visa-
a filosofia não deve interpretar em direção a uma essência escondida; da: sensível ao todo, cada olho de que se arrancam as escamas cai nas
ela não é desvelamento, mas construção de uma imagem movimenta- fendas, nos limites que dilaceram as imagens. Falta-lhe a venda, o cadinho
da. Ela é construtivismo. ocular. Sobre seu globo, nada se vela nem se desvela; tudo está presente
Uma imagem-movimentodeve se consolidar além do corte do sem que nada se retire para o ocultamento ocular. Tudo em sua superfície
clichê, da descontinuidadedos quadros que compõem uma película, escancarada reage a tudo, com um brilho anónimo que arrasta as pers-
em que a projeção da fita cinematográfica deixa tudo confuso. A cada pectivas e as abre, além do limite que as separa umas das outras. Mas
imagem-movimento cabe uma dificuldade de ver, de discernir, de en nessa passagem ao limite, esse olho, ao mesmo tempo, não pára de saltar,
contrar a velocidadecerta para os clichês, de construir a superfíciede de tropeçar sobre a fenda, sobre os interstício e os compartimentos que
sua superposição. Isso se assemelhamuito ao olho que Foucault ar- deslocam todas as imagens segundo uma distância irrespirável.
ranca dos textos de Bataille, em seu PreÁãcío à frczrzsgressão: Saltando por sobre a brancura vazia que fragmenta o pensamento
e o discurso, a percepção e as imagens, o olho consolida seu plano entre
"0 que vale a pena ser olhado", diz ele, "não é mais perspectivas divergentes, heterogêneas, sem margem comum. O olho
nenhum segredo interior, nenhum outro mundo mais no- que recorta as imagens e os movimentos incomensuráveis, o olho que
turno. Virado em direção a sua órbita, o olho só irradia atravessa os z/gaios,os intermundos, envesgando entre todas as pers-
agora sua luz em direção à caverna do osso: pectivas, é, de algum modo, o olho louco do capitão Achab que Moby
Dick faz passar em sua própria brancura:
O olho revirado se detém na fronteira do osso, na brancura va-
zia, na intermitência mortal da visibilidade que ele não cessa de trans- "Onde está Moby Dick?", pergunta Achab. "Nesse
gredir, um pouco como se encontrasseem todo lugar uma borda in- mesmo instante ela deve estar diante de teus olhos. Meus
transponível que passa entre todas as imagens. Há uma interrupção olhos olham esse olho que, nessemesmo momento, vê igual-
da continuidade que é como seu fora. Essa brancura do fora de que menteos objetos do outro lado desconhecido de teu globo."
fala Foucault corresponde muito bem ao rastro da baleia branca quc
o capitão Achab persegue com seu olho arregalado. Ver a baleia branca Esse olho passou, portanto, para o outro lado, bifurca no exer-
não é mais fácil do que ver o osso embranquecido para o qual a mor- cício de sua própria divergência sem poder se isolar na generosidade

100 Jean-Clet Martin O olho do fora 101


de um fundo cego. Ele é tomado ao todo do mar que o arrasta, de um Para compreendê-los, basta tomar um torniquete sobre o qual se
oceano a outro, seguindo uma imbricação alucinante de perspectivas, vão dispor, em fitas inclinadas, todas as cores. Basta girar rapidamente
uma imbricação que abre cada coisa a sua própria brancura, a seu essa pequena máquina sobre seu eixo para que, no corte que separa
próprio limite. Mas tal brancura que detrata o olho não é, por isso, a as cores, o olho passe de um interstício a outro. É o fio da brancura
unidade de todas as perspectivas cuja futura comum, cujo intervalo que se torna, desse modo, palpável, o olho que cai nas fendas, de uma
vazio ela marca. O branco não é uma unidade orgânica ou lógica, mas a outra, na dobra unânime que entrecorta as cores.
um efeito de proximidade entre todas as perspectivas possíveis. É uma Esse devir branco da cor é, para o olho, uma maneira de desli-
linha de fragmentaçãoque arrasta a cor para seu fora, uma linha de zar sobre o limite que as separa, sobre interstícios que acedem, assim,
desaparecimento que se deve atravessar em um revirar do olho -- revirar a sua independência. É um devir que nos faz atravessar um muro, que
sincopado sincopante, como ao longo de uma película cinematográfica! nos faz cair no meio, no corte que divide as imagens com a rapidez de
O branco começa somente onde se afirmam dois lados disse- um arpão. O que o olho louco de Acham experimenta, na perseguição
melhantes e distantes, como se o olho, por sobre o vazio, devesse se de Moby Dick -- o deusdo mar--, é o meio,a distância,o branco
dividir em pontos de vista divergentes, incomunicáveis, para passar para rastro nas bordas do qual as cores se põem em deriva. Cores manti-
o outro lado desconhecido de seu globo. O branco de que falamos é o das abertas; cores abertas umas às outras, remetidas ao limite que elas
grande todo que Deleuze inscreve na dimensão do aberto, é o todo que não cessam dc transgredir girando sobre si mesmas. E é tal transgres-
não é um conjunto fechado, mas a passagemintersticial de um con- são, tal transversal capaz de cavalgar o limite das imagens, de se ins-
junto a outro conjunto, de uma margem a outra, seguindo um salto talar no intervalo em que a imagem-tempose esquiva, uma tal trans-
que pode durar minutos e eternidades, no ponto em que a imagem- gressão suspensa no limiar do vazio que iremos encontrar em Michel
movimento se torna imagem-tempo, permanência no limite, passagem Foucault, em um texto sobre Batailleque marca a experiência da morte
interminável de um conjunto a outro, experiência da suspensão. a morte de Deus -- em relação ao revirar do olho: o abalo!
E essa passagem suspensa que Deleuze chama de transversalidade. Sabe-se que, por sua vez, a narrativa de Melville, seu tema cen-
Uma espéciede declinação infinita que, de um lado a outro da fenda, tral, gravita em torno da morte de Deus. É uma versão singular da
reencadeiatodas as imagens,todas as cores, abrindo-as umas às ou- morte de Deus. Permito-me simplesmente, para lembra-lo, citar uma
tras, segundo uma conexão transversal que afirma seus cortes e dis- conversa entre Melville e Hawthorne, datada aproximadamente de
tâncias, uma conexão que vai romper os tons segundo o que Deleuze 1850
chama dc uma "fragmentação reencadeada:
O branco é uma totalidade fragmentária. Não é uma totalidade -- Imagina -- diz Melville -- alguém que finalmente
capaz de restaurara unidadedos fragmentosà maneirade um que- tomaria a espadaou o arpão para começar um combate con
bra-cabeças.E, ao contrário, o princípio que vem romper a unidade tra o próprio Deus.
de cada tom, uma ruptura, um corte irracional que é abertura de cada Seria preciso não crer -- responde Hawthorne.
conjunto, nesse limite que o separa dos outros conjuntos. -- Ao contrário, -- replica Melville -- pois, assim,
Na brancura, há portanto sempre algo de aberto que convida o onde estaria o mérito? Não, penso, ao contrário, em alguém
olho a atravessar o abismo, arrastando as cores em uma proximidade que veria Deus tão diretamente como o nariz no meio da
comum. E o olho de Achab que envesga entre todos os pontos de vis- cara, tão claramente como a baleia branca sobre as águas e
ta possíveis. Esse estrabismotambém é a fórmula do perspectivismo que, justamente, vendo-o em toda a sua glória, sabendo até
neo-barroco de Deleuze, um olho transversal capaz de cavalgar, no onde podem ir os delírios de sua força, se precipitada mes-
mesmo instante, perspectivas bifurcadas, conjuntos fechados que ele mo assim sobre ele e lançaria o arpão.
pode romper em direção a uma brancura universal, para dela extrair -- Creio que estásescrevendoum belo livro -- diz
novas superfíciese novas visões. Hawthorne, após um momento de silêncio [...].

102 O olho do fora 103


Jean Clet Maltin
Lendo Melville, Deus funciona como o nariz no meio do rosto
passagem divina, a via de Deus capaz de transpor a distância inadmis-
que não cessade preenchero vazio que esperam, um do outro, os olhos sívelque separa a ratio cog/zoscendf.
plantados na órbita. O ponto em que Deus joga sua escama sobre a
A morte de Deus talvez anuncie a dramatização dessa praia de
branca luz, em que ele interpõe seu crivo capaz de recobrir a fenda silêncio, vazia, que interrompe a comunicação da coisa com sua re-
branca que fragmenta as imagens, dever-se-iapoder remontar em di- presentação. Mas, para além de uma tal ruptura, ela se aloja no olho
reção ao todo, reencontrar o limite que o nariz faz em um rosto, ou enlouquecido, no ponto em que Kart agravara a relação frágil e in-
seja, como um estrabismo suscetívelde passar de um a outro lado desse certa, a relação irracional que pesa sobre a ordem de nossas represen-
cabo, dessa península-- mais ou menos como Proust fará com que a tações -- refiro-me à hipótese do pesado cinábrio que introduz a de-
lado de Méseglise se comunique com o lado de Guermantes. sordem no cerne do próprio pensamento. E é de fato em uma tal fissura
O nariz no meio da cara é a escamaque torna impossívela hete- que Deleuze vem alojar a morte de Deus, pelo menos a partir de D//c-
rogeneidadedas perspectivas. Ele é um fundo orgânico que homo- rença e repetição.
geneiza o recobrimento dos campos perceptivos, uma ponta que dá a Se a idéia de Deus deve ser compreendida como um antídoto
orientação, a direção da visão, um vedor quc desenha a escavação dos contra o caos que ameaça por toda parte a unidade de nossasfacul-
olhos no rosto: uma retração do abalos dades, se essa idéia, enfim, na qualidade de princípio regulador, assu-
Se ele torna racional o recobrimento das regiões binoculares, a
me a passagem de nossas representações no âmago da unidade origi-
passagem de um a outro lado do cabo, nem por isso ele é visível. Ele é nária, o que a morte de Deus deve então levar a seu ápice é a descon-
a ponta retirada do rosto, o fundo cego da visibilidade que, em sua tinuidade abalada de nossas representações,a fenda intransponível que
retração essencial, pode dispensar a harmonia do campo binocular, a
as entrelaça definitivamente no vazio de uma distância ilimitada, coi-
unidade, a identidade dos focos tornados comensuráveis. O nariz no
sa que Nietzsche qualifica pela alegria, o riso e o espirro -- soluços
meio da cara é o princípio da rostidade, princípio de uma harmonia de silêncio em uma vida aos trancos.
preestabelecida entre dois setorestornados indiscerníveis. Ele é o fun-
Que Deus esteja morto, isso deixa o olho diante de um Saara,
do sem fundo onde a semiótica divina se interpõe. diante de um deserto que cresce pelo meio. O movimento do olho, que
O que a morte de Deus desaloja de sua escavação é a grande fenda,
procura atravessa-lo, choca-se então com o tempo-morte, com uma
deixada livre, que vem rachar e abalar o campo perceptivo para no- imagem-tempo capaz de liberar os intervalos por eles mesmos, como
vas visões. Creio que essa fenda atravessa toda a história da filosofia
verdadeiros cortes irracionais. Com a morte de Deus, são os interstí-
sob a forma de uma contestação -- acredita ela, dos universais -- ou,
cios que acendem a uma certa independência, abrindo um espaço in-
ainda mais perto de nós, a fenda que, em Descartes,tinha separadoa dependentedas margens que eles separam, uma multiplicidade de di-
ordem do rafzo estendida ordem da raffo cogfzoscendlaté torna-las mensoes sem margem comum.
incomunicáveis. Desde que o mundo deixa de ser lido como um livro Que Deus esteja morto, isso deixa o olho diante de um vazio cin-
aberto na proximidade das palavras e das coisas, a dúvida cartesiana,
tilanteque força a saltar o limite, a transpor o cabo, de um lado a outro,
agravando a crise da razão teológica que começa com o nominalismo,
em um perspectivismo estranho, um perspectivismo selvagem cujo
essa dúvida, com Descartes, mergulha no limite que separa a ordem brilho foi descoberto por Nietzsche ao mesmo tempo que pela pintu-
das representações da ordem das coisas, levando essa diferença a seu
ra moderna e pelo cinema.
ápice. SÓ Deus poderá colocar de novo ordem nesse ápice. Somente a
Em todo caso, é essa transgressão de um olho transversal que
terceira meditação, dando a nossas representações seu valor objetivo,
Foucault e Deleuze conseguemarticular na experiênciada morte. A
pode lançar uma ponte racional entre o pensamento e o ser.
morte de um Deus é o ligar de uma esquiva do limite que aparece sob
Nesse sentido, a descobertado infinito no pensamento nada mais
a forma de uma ruptura, de um duplo desvio das margens cuja dis-
é do que colocar em evidência uma harmonia, ou, antes, uma estreita
tância se agrava incessantemente. A morte de Deus consiste portanto
passagem que leva a representação a seu objeto exterior. AÍ está a
em experimentaro lugar que ele ocupava como um vazio. Ela desig-

1o4 Jean-Clet Martin O olho do fora 105


na este local morto no lugar do qual a metafísica instalara a via de Deus linha sulcada pelo rastro da baleia branca e que o arpão entrecruza,
como suporte, origem e razão. de uma extremidade a outra, até a morte final, até o horizonte intrans-
Na proximidade de Deleuze e Foucault, a morte de Deus arrasta ponível, deixando despontar, por detrás do delírio das palavras, a
o pensamentoe a linguagem em uma linha mortal, em uma linha de imagem de um pensamento e de uma literatura cinemascópica.
desaparecimento que convoca a filosofia a criar alegremente novos O rastro da baleia branca, em que se indica a morte próxima de
conceitos. Esse riso do pensamento sacode, em todas as suas partes, toda a tripulação, e em que ressoamo riso de Achab e o canto dos
um texto de Foucault que parece, nesse sentido, essencial: marinheiros, essa fenda que entrecorta seu pensamento e o força a
claudicar sobre uma noite de intermitências, esse rastro prateado que
"A morte de Deus", escreve Foucault em seu Pre/vício torna irregular o passo saltitante de Achab, esse limite no qual ele já
à fra/zsgressão, "retirando de nossa existência o limite do deixou sua perna e que o torna gago de pensamento, é preciso de fato
ilimitado, a reconduz a uma experiênciaem que se desco- recosturá-los, reencadeá-los sob a conquista de novas superfícies
animadas.
bre como que seu segredo e sua luz, sua própria finitude, o
reino ilimitado do limite, o vazio dessa travessia em que ela E esse cartoon filosófico, essa fragmentação reencadeada(delí-
falha e falta[...]. De fato, o que quer dizer a morte de Deus, rio) nada mais é do que o conceito tal como definido por Deleuze e
senão uma estranha solidariedade entre sua inexistência que Guattari em seu livro sobre a filosofia, O que é a /;/oso/ia?. Não há
explode e o gesto que o mata? Mas o que quer dizer matar conceito no lugar em que essa linha não cessa de fustigar o pensamento,
Deus se ele não existe, matar o Deus que não existe? Tal- em que o pensamentose recusa a saltar em plena tormenta, no con-
vez as duas coisas: matar Deus porque ele não existe e para forto com o vazio que desloca. É por isso que Deleuze pode dizer que
que ele não exista: e eis o riso" os conceitos são conjuntos fragmentários que não se ajustam uns aos
outros, na medida em que suas bordas não coincidem. É como no caso
Reencontramos nessetexto a mesma preocupação que a de Mel- do muro romano: não há argamassapara colmatar os vazios, para
ville, uma preocupaçãoque impediráDeleuzeem direção a uma nova preencher os interstícios. Os conceitos de Deleuze não coincidem, e a
compreensãodo cérebro. Entre o riso de que fala Foucault e a bran- argamassa divina, o Deus que preenchia os buracos do pensamento e
cura que o olho de Achab persegue abre-se a mesma intermitência, assumia a passagem de uma representação a outra, tal Deus está morto.
ruptura, o hiato que o Deus morto faz com que ressaltecomo um ar- O conceito, como todo fragmentário, como consolidação seca, venti-
pão no pensamento, um pensamentoque tropeça, gagueja, rachado lada pela dobra intercalar, é a única maneira de sair do caos mental
por todos os lados pelo silêncio das fendas sinápticas, como dirá De- em que nos lançou a morte de Deus, mesmo se ele se recusa a ocupar
leuze em Cinema 2: Á imagem-temPO. Rir e envesgar compõem, de o seu lugar. Assim, a filosofia é afetada por esse vazio, pelo rastro
algum modo, o mesmo ritornelo, o mesmo salto, a necessidadede intermediário que Melville compara ao encantamento das sereias:
passar por cima desse limite de intermitência que Deleuze encontra,
em Foucault, sob a forma do afrontamento. De fato, -- diz Melville -- em harmonia com a onda
dividida a cada um de seus lados, a baleia branca era toda
charme e sedução. Não surpreende o fato de que certos pes-
"A transgressão é um gesto que concerne o limite. A
transgressão transpõe e não pára de recomeçar a transpor cadores inegavelmente encantados e atraídos por toda essa
uma linha que, por detrás dela, imediatamentetorna a se serenidade, tenham se arriscado ao ataque, para descobrir,
fechar em uma onda de pouca memória, recuando assim de rápida e fatalmente, que essa paz não era senão o invólu-
cro de um furacão...
novo até o horizonte intransponível.'
Calma, entretanto, com uma calma atraente, ó ba-
É exatamente essa linha que Achab não cessa de transgredir, essa
leia, surges diante dos olhos daqueles que te vêem pela pri-

106 O olho do fora 107


Jean-Clet Martin
meira vez sobre as ondas, qualquer que seja o número de 'Quando se diz 'o todo e o fora', a questão não é mais
homens que já tenhas enganado e matado. a da associação ou da atração das imagens. O que conta é,
ao contrário, o interstício entre duas imagens:um espa-
Essa calma morta/ que seduz o olho de filósofo nâmade é a cin- çamentoque faz com que cada imagemseja arrancada ao
tilação de um sudário branco do qual se extraem tanto abetoscomo vazio e nele recaia [...].
perceptos e conceitos, segundo um todo antes diagramático do que Dada uma imagem,trata-se de escolheruma outra
diabético. imagem que induzirá a um interstício entre as duas. Não se
O que nos atrai para o passo não-invisível desse tecido, para o oco trata de uma operação de associação, mas de diferenciação,
desserastro que entrecorta cada clichê, é a força da dispersão do fora, como dizem os matemáticos, ou de desaparecimento, como
a linha mediana sobre a qual todas as formas são estilhaçadas, não sem dizemos físicos r...].
convocar um lance de dados que as reencadeia parcialmente, um lan- Em outras palavras, é o interstício que é primeiro em
ce de dados em um mundo semDeus, lance de dados para um olho relação à associação, ou é a diferença irredutível que per-
vesgo, bêbado, que vê necessariamenteduplo e que, no entanto, não mite escalonar as semelhanças. A fissura tornou-se primei-
nos impede de caminhar Grelos, de permanecer de pé em plena tormen- ra, e com isso se alegra. Não se trata mais de seguir uma
ta. Essa linha branca que passa entre cada pensamento e sobre a qual cadeia de imagens, mesmo por sobre os vazios, mas de sair
Achab começa a claudicar, essa linha que abala sua fala, é a linha de da cadeia ou da associação [...].
desaparecimento,o espaço que abre os conjuntos fechados e os faz Ê o método do e?zt7e,'entre duas imagens', que con-
passar em sua própria mu/fíp/lcfdade, segundo um cinema de vanguar- jura todo cinema do Uno. É o método do e, 'isto e em se-
da ou uma ópera animada cuja velocidade por vezes se perde onde tudo guida aquilo', que conjura todo cinema do Ser. Entre duas
se abala, se desacelera, cai no delírio da calo/ogia fragmentada. ações, entre duas afecções, entre duas percepções, entre duas
E essasmultiplicidadesàs quais reconduztal orla dilacerante imagens visuais, entre duas imagens sonoras, entre o sono
designam, exatamente, o centro fragmentado da filosofia deleuzeana ro e o visual: dar a ver o indiscernível,ou seja, a fronteira.
uma filosofia das multiplicidadesque, afrontando a brancura do O Todo sofre uma mutação porque ele deixou de ser o Uno,
fora, tropeçando no barranco que a morte de Deus libera e torna irres- para se tornar o 'e' constitutivo das coisas, o entre-doiscons
pirável, afrontando a linha de dispersão, torna o pensamentonova- titutivo das imagens.
mente possível, libera agenciamentos, dispositivos, regimes de signo O todo se confunde então com aquilo que Blanchot
segundo uma ventilação e uma colagem inéditas. chama de a força de 'dispersão do fora' ou a 'vertigem do
E por isso que, quando Foucault declara "que uma fulguração se espaçamento' l-.J.
produziu, que levará o nome de Deleuze, e que um novo pensamento
é possível", não se trata de uma simples frase de efeito. A obra de Deleuze,
em todos os lugares, marca essa dificuldade de pensar que reconduz a P.S.: Este texto não traz nenhuma referênciabibliográfica, ten
seu impensado; a sua impossível possibilidade, em direção à abertura do a bibliografia dado lugar aos silênciose buracos de memória.
de suas fibras fragmentadas e de seus neurónios agitados, no ponto em
que a brancura explode com o apelo de um signo, de um evento dila-
cerando todas as coisas debaixo da correia de um chicote enfurecido. Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz
Que nos seja permitido, para concluir, deixar com que estale essa
língua abalada em que nosso trabalho encalhoue que, no sopro das
fórmulas que ela lança ao caos, nos força a pensar, com o risco de nos
relançar em pleno mar:

108 Jean-Clet Martin O olho do fora 109


DOBRA DELEUZEANA DO PENSAMENTO
Jean-Luc Nancy

Mais do que uma filosofia de Deleuze, situada em algum lugar


no panorama ou na epistemeda época, haveria uma dobra deleuzeana
do pensamento:uma marca, um exercício,um bab f s (certamentenão
um hábito) que não se evitaria de partilhar mais ou menos com esse
pensamento, pelo menos desde que se pensa no presente (e não à ma-
neira daqueles que ainda acreditam estar no Iluminismo, senão na
Academia). Não se pensaria, hoje, sem se tomar algo dessadobra, o
que não quer dizer que deveríamos nos dobrar a ela, o que tampouco
significa que não haja diversas maneiras de tomar essa dobra, dobrá-
la, desdobra-la ou redobra-la, por sua vez.

O pensamento de Gilles Deleuze é de tal maneira afastado das


proveniências, dos esquemas c das condutas que, a meu ver, caracte-
rizam o trabalho filosófico, que eu gostaria de poder esboçar, ao me-
nos, a estranha proximidade que me obriga, apesar de tudo, a tomar
uma dobra de seu pensamento.Trata-se de uma proximidade que é
da ordem da dobra, em primeiro lugar no sentido de uma inclinação,
de uma simples tendência, mas também no sentido da dobradura, da
marca de uma articulação leve, de um plissado, se preferirmos, de um
amassado ou de um movimento do pensamento. Limito-me, aqui, a
algumas notas, alguns toques descontínuos, seguindo essa estranha
proximidade.
Trata-se, em todo caso, de uma dessas proximidades necessárias
pelas quais se marca um traço da época, ou se reconhece a contem-
poraneidade. Um contemporâneo nem sempre é alguém que vive ao
mesmo tempo, tampouco alguém que fala de questões abertamente
atuais". Mas é alguém cuja voz, ou o gesto, reconhecemos vir de um
lugar até então desconhecido e imediatamente familiar, que descobri-
mos que esperávamos, ou que ele nos esperava, que estava ali, iminente.
Sabemos imediatamenteque é uma possibilidadeque faz a presença
do presente e que deve fazê-la. Eu poderia estabelecer um paralelo com
o que representou para mim, antigamente, a descoberta do free jazz:

Dobra deleuzeana do pensamento 111


o jazz já fazia parte da história quando, de repente, em alguns com- que não significa desentendimento. Esse mal-entendido vai fazer com
passos de Albert Ayler, reconheci que era necessário aquela voz, aquele que eu inevitavelmente cometa contra-sensos. Mas é a esse preço que
tom ou aquele gesto. Eles eram necessários, não por necessidade de há sentido em se confrontar, em afrontar uma discordância íntima, no
destino ou de sentido da história, nem como um resultado, ou um pro- ponto em que somos dobrados um contra o outro, uns contra os outros.)
grama, mas como a evidênciade um presente:esse momento, esse
presente tinha aquele som e aquela voz, e devia tê-los. Jamais entendereicomo sc pode saltar para fora da gênese, quais-
Assim, ao término de meusestudos, quando ainda filosofava quer que sejam seus abismos ou impasses (ou precisamente devido a
como um contemporâneo de Sartre ou de Bergson, ou mesmo de He- eles). Mas entendo que a disposição é uma dobra contemporânea da
gel ou de Kant, reconheci vozes, traços, dobras contemporâneas: Der- própria gênese,que esta, por sua vez, deve desdobrar. Entendo por-
rida, Deleuze,Lacan, Blanchot.Havia, diversamentemodulado, um tanto que, com a dobra, trata-se também de um salto.
tom do presentefilosófico. Essetom não é acrescentadoao presente, Essa maneira muito geral e, conseqiientemente, muito vaga de se
como um ornamento supérfluo, mas é o próprio presente, a apresen- falar recobre,de fato, para mim algo de muito precisoe até mesmo
tação dessepresentecomo tal. Não é moda, é a modernidade-- no de muito agudo: a indicação de uma necessidadecontemporânea, de
sentidoem que o moderno é a absolutidadeirreversívele irrecusável nossa necessidade de pensamento, que remeteria à própria dobra ou
do presente. salto. A filosofia dobrada em duas, formando um ângulo recoconsi-
go mesma: de alguma forma, portanto, descontínua ou distendida nela
Portanto, uma dobra deleuzeana. Para mim, os outros teciam, mesma, em debate com seu próprio processo, com seu próprio tema.
antes, a tela de fundo: eles se inseriam na proveniência germânica e Na minha tradição, Heidegger chama isso de "fim da filosofia". Esse
metafísica de meu presente de pensamento. Mas Deleuze fazia com que "fim" é a dobra de uma gêneseque atinge seu próprio fechamento
uma dobra singular, menos familiar, atravessasseessa tela. Ele não que portanto deixa de gerar ou de se regenerar em um certo sentido,
engatava em Hegel, não articulava a continuidade dialética cuja tra- mas que também libera, no oco da dobra, possibilidadestotalmente
ma comportava, necessariamente,ao mesmo tempo a lógica de um inéditas, possibilidades de salto que entretanto não equivalem a lan-
processo -- de uma origem a um fim -- e a estrutura de um sujeito -- çar-sea outro lugar. Dobrar, saltar no mesmo lugar, e, assim, defor-
de uma apropriação, uma intenção, um ser-a-siou falta-de-ser-a-si.Eu mar, deslocar o solo (o fundamento, ou seu infundado).
deveria descobrir, pouco a pouco, que era exatamente o longo desses Há aí giro e quebra, mudança de época: não é à toa que saltamos
grandes traços que ele fazia uma dobra, como se ele erguesse ou abai- no fim de um milênio, no início de outro, na borda'de Ocidente, em
xasse à unhada jas unhas de Deleuze...l uma outra dimensão, hetero- rransbordamento de mundo. Tal é a dobra contemporânea. Trata-se
gênea, a de um plano ou de uma rede, sem ser nem processo, com de um caso considerável. Não há demasiadas várias dobras nem vários
pontos, distribuições, remissões, distâncias. A um pensamento que saltos do pensamentopara Ihe dar a medida. No mais, é uma medida
poderíamos chamar, também em sua maior generalidade, pensamen- necessariamentedolorosa, no mínimo dura e difícil: o pensamentosó
to de gênese, ele opunha um pensamento que poderíamos chamar, pode se chocar com ela. Não se trata de conciliar os lados da dobra. É
também em sua maior generalidade, pensamento de disposição: mas preciso lidar com a dobra e lidar com o que, na dobra, forma uma sim-
ele não o opunha -- isso teria sido por demais dialético. ples, mas irrecusável incompatibilidade. A configuração contemporâ-
(Aqui, objeção de Francois Zourabichvili, que conhece bem De- nea dá a medida, ou a desmedida, de uma incompatibilidade aberta do
leuze: a gênese é, para ele, uma preocupação. Concordo. Mas a "gêne- pensamento consigo mesmo (à diferença de outros momentos em que
se" deleuzeaname parece ser, antes, um devir, que se move no meio a atualidade estava na resolução, na síntese, na organicidade). Parece-
das coisas, não em sua origem nem em seu fim, o que me parece mais me que a estranheza por meio da dobra (não por negatividade, hosti-
propriamente implicar o conceito de gênese. Digamos, então, que não lidade, conflito) de pelo menos dois grandes veios do pensamento con-
entendo a gêneseno uso deleuzeano da gênese. Há mal-entendido, o temporâneo é uma marca estrutural absoluta das mais radicais, das mais

112 Jean-Luc Nancy Dobra deleuzeanado pensamento 113


exigentes necessidades desse pensamento. Pensamento dobrado: pen- O universo virtual possui uma geometria variável, durações com-
samento que não mais está no desenrolar, no encadear, na subsunção plexas, estratificações e folheados, aparições e desaparecimentos. Não
representativa, na determinação ou na convocação dos fins. se trata de um mundo de percepção nem de significação. Trata-se de
um mundo sem história, com seqüências; sem gênese, com forças. Eis
A filosofia de Gilles Deleuze é uma filosofia virtual, no sentido em também porque Deleuze não se opera no ser-no-mundo, mas na efe-
que hoje se emprega esse termo, quando se fala, de uma maneira estra- tuação de um universo, ou de vários. No entanto, "efetuação" aqui
nhamente indiferente, de imagem ou realidade virtual -- designando, não significa de maneira alguma demiurgia ou poiesls. Não se trata
com isso, um universo inteiramenteformado por imagens,e não ape- do grande debate íntimo da filosofia com a poesia, que ocupa tanto
nas por imagens com alto teor de real, mas, antes, não deixando mais espaçoem minha tradição. Mas não é porque a filosofia se quereria
lugar para a oposição entre o real e a imagem. O mundo "virtual" (con- estritamente "científica" ou "lógica": é, antes, porque ela se compor-
forme ao uso inglêsdessetermo) é um universo da efetividade-imagem. ta naturalmente como uma outra poesia, que não se preocupa em ri-
Assim, Deleuze não propõe falar do real como de um referente valizar com a outra, nem em meditar sobre sua proximidade.
exterior (a coisa, o homem, a história, o que existe). Ele efetua um real
filosófico. A atividade filosófica é essa efetuação. Fazer um conceito, É uma filosofia da nomeação, não do discurso. Trata-se de nomear
para ele, não é aspirar a empina sob uma categoria: é construir um as forças, os momentos, as configurações, não de desenrolar ou de enrolar
universopróprio, autónomo, um ordo et conPzexioque não imita o sentido. A própria nomeação não é uma operação semântica:não se
outro, que não o representa,que não o significa, mas que efetua em trata de significar as coisas; trata-se, antes, de indexar com nomes pró-
seu modo próprio. Seu interesse pelo cinema não é um apêndice a sua prios os elementosdo universovirtual. Talvez nenhuma filosofia faça
obra: está no foco, no princípio da projeção dessepensamento. Tra- tal uso dos nomes próprios: por um lado, ela imprime um "devir-con-
ta-se de um pensamento-cinema, no sentido de uma ordem e de uma ceito" a nomes próprios INietzsche, Leibniz, Bergson, Ai:iadne etc.); por
tela próprios, de um plano singular de apresentação, de construção, outro, elaimprime um "devir-nome-próprio" a conceitos (platâ ou rizo-
de deslocamentos e de dramatização dos conceitos (o próprio termo ma, ritornelo ou dobra). O nome próprio é o limite assemântico do gesto
"conceito" quer dizer isso, para Deleuze, mlse-en-cf/zéma).Se quiser- semântico. A nomeação é, portanto, antes um gesto material: o movi-
mos prolongar aqui, e buscar a dobra, seria preciso nos perguntarmos mento para deslocar uma massa, uma carga, um traçado, para indexar
como a outra veia do pensamentomostra-seteatral. de outra maneira. "Levar à linguagem" não significa, aqui, traduzir a
O mundo assim efetuado é ao mesmo tempo totalmente seme- linguagem (pois se trataria de tradução, a própria coisa a ser traduzida
lhante ao nosso jcomo Descarnesdizia acerca de seu mundos e comple- já seria linguagem, pertenceria a uma outra língua, à de uma natureza,
tamente diferente. Poder-se-ia dizer que as outras filosofias tratassem por exemplo), mas significa fazer com que a linguagemcarregue o peso
dos assuntos do mundo, de todo tipo de coisa, enquanto essa não trata, do que não é ela. O incorporal carregado de corporal: não para Ihe dar
propriamente, de nada: ela não julga nem transforma o mundo, ela o ou manifestarum sentido, mas para efetuá-lode outra maneira.
efetua de outra maneira, como universo "virtual" dos conceitos. Tal
pensamento não tem por "objeto" o "real", ele não tem "objeto": é Filosofia da velocidade, oposta à lentidão inerente ao discurso.
uma outra efetuaçãodo "real", admitindo-seque o real "em si" é o Não o aparelho inquietoda prova, mas a flechado juízo (refiro-me
caos, uma espécie de efetividade sem efetuação. O pensamento consiste
ao juízo de existência, não ao juízo de valor, com o qual ele quer "aca-
em combinar e em variar efetuações "virtuais". Em certo sentido, tal bar"). Daí também que qualquer escrita se concentre nos nomes, e não
pensamento não tem relação com o "real" . Inversamente, para a outra nos movimentos de frase. Ela não é uma questão de estilo (no sentido
de uma volta sobre si da línguas, ela é uma questão de nomeação e de
veia filosófica, o pensamento lida com o real, nele mergulha, poden-
do se perder nele. E por isso que a primeira se coloca sob o signo do descrição: uma espéciede grande eépbrasis (era, para os gregos, o gê-
jogo e da afirmação, e a segunda, sob o signo do cuidado e da espera. nero específico da descrição de quadros).

Dobra deleuzeanado pensamento 115


114 mean-LucNancy
Façamos um quadro e mostremo-lo: tal seria, aqui, o imperati- to, de dialetizá-lo e de supera-lo. Mas isso significa que, por trás do
vo filosófico jem outro lugar, ao contrário: o que há para se ver? o próprio caos, ou antes no oco do caos, e portanto igualmenteno oco
que é ver? etc.). do percurso, existe o ser: não uma substância, mas a transitividade que
Filosofia do percurso, e não do solo, nem do território. O per- me transpassa.
curso: um deslocamento e um agrupamento, fugidio ou prolongado,
mas sempre perfeito, concluído, o que não quer dizer preenchido. Sem Não posso ultrapassar nem descartar essa incompreensão. Isso
programa, sem intenção, sem preenchimento -- sem interioridade, sem constitui, irresistivelmente, como que dois maciços, dois continentes,
segredo. Nem paisagem, nem rosto, ou é rosto desdobrado, ou ainda duas placas tectónicas de filosofia. O ser ou o caos, a gênese ou a dis-
um rosto segundo suas dobras, não o espelho de uma alma, mas o lugar posição, a morte ou a travessia. Uma deslizando sobre a outra ou contra
de uma verdade presente. a outra, uma dobrada sobre a outra -- sem passagem de uma a outra,
sem síntese de ambas.
Filosofia que não é do ser. Que não conhece o ser e que nada quer De uma certa forma, o que nos é comum é precisamente aquilo
com ele. que não é da ordem da síntese:é um motivo de distância, ou de es-
Dir-se-ia que ele quer pegar as coisas após a dobra do ser. Ele paçamento. Mas esse próprio motivo está subentendido em funções
não quer nada anterior a essa dobra. De fato, não há nada antes. Em diferentes da relatividade. Para ele, o espaçamento é, antes de mais
um certo sentido, a dobra é o próprio ser. Ele sabe muito bem que esse nada, uma distribuição; para mim, é sem dúvida indissociávelde um
após" é apenas uma referência ou uma deferência distraída, e talvez estilhaçamento, mesmo não havendo unidade primordial a que se su-
irónica, à ordem metafísica das prioridades e dos princípios. Mais uma cede tal estilhaçamento.O que para eleé disposição, para mim é des-
vez, ele afasta a gênese, a origem e o fim. Sua filosofia concerne à cria- locamento: é a mesma coisa, não o mesmo negativo, mesmo se não
ção continuada (sempre Descartes...). A cada instante, singularmen- entendo aí a negatividade-sujeito de uma dialética (eu diria, antes, que
te, compor ou recompor um universo, configurar e descrever configu- tudo remete a Hegel: ou começamosdistantesdele, ou dele nos afas-
rações. Assim, atravessar o caos: não explica-lo ou interpreta-lo, mas tamos nele mesmo, o arrombamos).
atravessa-lo, por todos os lados, em uma travessia que ordena planos, Mas quanto à disposição, só podemos, sem dúvida, ser diversa-
paisagens, marcas, mas que deixa atrás de si o caos se fechar como o mente dispostos em relação a ela, nela ou sobre ela. Haveria filosofia
mar sobre o sulco. se não houvessedissensão filosófica? (Eis por que uma filosofia que
A outra veia, ao contrário, atesta o ser do caos -- o ser, quer dizer, pretenda põr fim às dissensões, quer sob um modo dogmático ou sob
a origem e o fim, mesmo que sem fundo ou forma, a vinda, o adven- um modo formalista, que pretenda propor regras gerais de validação
to, uma destinação, mesmo que a nada mais que ao próprio ser puro dos enunciados e dos conceitos, se desqualifica, a si mesma, como fi-
e simples, o sentido, enfim, mesmo que a verdade do sentido devesse losofia.) Não existe a filosofia; existem filosofias -- o fato de haver
se resumir à tautologia do ser. filosofias, dessemelhantes e irredutíveis: é isso mesmo, a filosofia.
A dobra talvez passe por aí: entre o sentido como composição Essa diferença irredutível determina também, se sua dobra, uma
de percurso sob o fundo de caos e o sentido como tautologia tendencial comum oposição a todo o resto: crença, religião, ideologia, solução,
do ser que há. Muito certamente,a incisão da dobra, a própria do- formalismo, tudo o que dissolve a liberdade. A liberdade se partilha,
bradura, na medida em que separa as duas veias filosóficas, relacio- mas não se divide. Indivisa, ela se partilha segundoa dobra e a estra-
na-se à negatividade: ou o negativo tem a plenitude simples do caos, nha proximidade das posturas filosóficas.
ou eleescava a falta-a-si do ser. Quanto a mim, não compreendo como
se pode evitar tal escavação ja morte, o tempo, a gênese, o fiml. Isso
não implica necessariamente a angústia e o trágico, com sua surda ten- Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz
tação de chegar a se apropriar do negativo enquanto tal -- e, portan-

116 Jean Luc Nancy Dobra deleuzeanado pensamento 117


O COPO DE DADOS DO SENTIDO
François Wahl

Produzir uma teoria do sentido é manter-se ao mesmo tempo na


evidência e no opaco: na evidência porque é sabido que, não importa
o que pensamos, tão logo pensamos, "estamos em casa"; no opaco
porque, jamais estando "alhures", não dispomos de nenhuma distân-
cia -- ou, como se diz, nenhum observatório para examinar o sentido
do que está fora. Esse obstáculo, l,ógica do se/zffdoo transpõe de um
salto, sem buscar definição, armando-se de uma oposição. Por esseviés,
mas somentepor esse viés, a chave do livro é o parágrafo jubiloso (89)Í
que se abre em "Quando a noção de sentido tomou o lugar das Es-
sências desfalecentes..." para se encerrar em "É, pois, agradável que
ressoehoje a boa nova: o sentido nunca é princípio ou origem, eleé
produzido". Tudo o que Deleuze pretende construir é dito aí de uma
assentada, para além da dispensa dada às essências:não mais a eter-
nidade das idéias, a transcedência numenal do sentido, ou seu en-
raizamento nas profundezas: nem Platão, nem o humanismo kantia-
no, nem a autoctonia nietzschiana. O sentido "não está por ser des-
coberto, restaurado ou reempregado,está por ser produzido por no-
vas mczquinarlas"z. Digamos que o sentido é ele próprio a maquina-
ria que Deleuze emprega para fundar como produção contínua, jamais
preposta e jamais imobilizada, tudo o que se dá como pensamento.S
Maquinaria singular, que deve ser elaborada com novos esfor-
ços, ser descrita como adóxica, construída como serial com pelo me-
nos três termos, sendo um deles paradoxal, produtora às voltas com
o aleatório. Maquinaria que, do mesmo modo, é a aplicação prática
de uma metafísica, de uma ponta à outra.

l Dou as chamadas de páginas(da edição francesa, Minuit) no texto para evitar


o excesso de notas, salvaguardando ao mesmo tempo a precisão das referências.
2 Grifos meus.

3 Ou, para dar a definição de Deleuze, que não a enuncia: o sentido é eqüi-
potente ao originário do pensamento para aquém de sua articulação em conceitos.

O copo de dados do sentido 119


O que será tentado a seguir, para entendê-la,é uma leitura de e fixa. O conceito do tempo a uma só vez conservado em sua linea-
Lógica do se/zfldocomo corpus independente, evitando projetar o quc ridade e desconstruído para ser ilimitação bi-orientada.S
a precedeu ou seguiu, e atendo-se estritamente ao que nessa obra é Não duvidaremos que essa subversão na forma do dez,frseja por
elaboração de uma teoria completa do sentido. Para, posteriormente, excelência, para Deleuze -- bergsoniano que vai além de Bergson --,
reencontrar, a cada momento, intacto o espanto.4 o dispositivo genérico do sentido. Desde então constantemente móvel.
mas de uma mobilidade particular, constantementepuxada pelas duas
1.FENOMENOLOGIA pontas, elaspróprias não determinadas.Tal é a primeira "redução
No começo era o sair: extrair-se, pelo sentido, daquilo que fixa Que é também a da uni-determinação, da qual a orientação irreversível
as idéias e associa os efeitos às causas. Ultrapassar as duas más figu do tempo constituía, na experiênciacomum, a marca distintiva últi-
ras dóxicas -- elas vão atravessar o livro todo -- do "bom senso" ma. A matriz do sentido será que ele opera "nos dois sentidos" do
jcomo diriam: bom sentido ou boa direção) que classifica à maneira tempo e assim se extrai do presente, a todo instante "duas vezes pro
lógicatudo, do mais ao menosdiferenciado, em suma: que distribui c vetado, uma vez no futuro, uma vez no passado, [...] à maneira de um
encadeia, e do "senso comum" jcomo diriam: o sentido ou faculda- folículo que solta seus esporos" j195). O sentido será portanto esse
de) que identifica cada coisa relacionando o diverso dela a uma for plano anterior em que o pensamento é capaz de ter acesso ao dup/o
orÍenfe: de nele se mover.
ma individualizada subsistente (93). Ê por ordenar que sejam solapa-
dos bom senso e senso comum, que uma teoria do sentido-- do sen- Essa "região que precede" l97) é aquela, também, em que toda
tido em sua forma orfgfncírla-- se argumenta com o que eles conside- identificação -- isto é, a faculdade do Mesmo -- se vê subvertida. O
ram paradoxos. Vale dizer que os paradoxos têm mais a fazer do que senso comum subsume um diverso de qualidades sob o que será a forma
inquietar a distribuição previsível e a identificação reconhecível: são particular de um objeto; o paradoxo atesta, por sua vez, que um mes-
os instrumentos de um novo método franscendenfíz/.Que fará o pen- mo sentido (a oralidade) pode fazer-um do mesmo e do outro (a pala
samento começar de outro modo. vra e a carnes: ou seja, para o sensocomum, o "não-senso da identi-
Passar "às costas" (98) da "distribuição sedentária" (94) signi- dade perdida" (96), mas, na autenticidade do sentido, o índice de sua
fica para Deleuze: não ir mais num sentido (direção) que no outro; a dup/lcidade; não cabe a seu (não-)ser ser somente isso ou somente
autêntica dimensão do sentido seria: "sempre as duas [direções] ao aquilo. Pluralidade do sentido sob sua face "objetiva". Mas a subver-
mesmotempo". E remontaro curso da doira implicaconservarao são do "senso comum" é também a do sentido sob sua face "subjeti-
menos uma imagem que a rege, a da linha e de suas extremidades. va": o Um do Ego que subsume um diverso de órgãos, de atos e dc
Sendo que o próprio do sentido seria não privilegiar nenhuma e con- faculdades, não pode ser eximido da -- digamos -- disseminação da
vocar constantemente a ambas. Daí que os (raros) exemplos de senti- individualidade. Todavia, o Ego não era apenas um dos objetos iden-
do dados sejam todos formados para flutuar entre contrários: mais ou tificados: ele era o agente a "faculdade" IPÓ) de identificação.
menos (grande), simbólico ou carnal (a oralidade), causa e efeito, mas De modo que é preciso tratar simultaneamentea condição e os efei-
sobretudo antes ou depois: "os dois ao mesmo tempo num passado- tos. No domínio dual do sentido, o Ego só pode se abrir a um campo
futuro infinitamente subdividido e alongado" l95). Paradoxo entre indefinido de determinações dispersas Vale dizer que, responsável pela
todos os paradoxos, um "devir-louco" que circula simultaneamente forma do Mesmo, o Ego só pode pensar o movimento do sentido en
em direção ao passado e ao futuro, esquivando o presente que decide tre o Mesmo e o Outro ao preço de pensar aquém de si mesmo; e a
redução que produz o sentido não pode produzi-lo senão como "pré-
individual". Que estejaaí o mais difícil de circunscrever,o prefixo
4 Questão de método. Ao partirmos armados dos conceitos maiores de
leuzeanos, vemo-los naturalmente reaparecer, sem nos espantarmos de como eles
surgem no sentido e pelo sentido. O método alternativo teria sido seguir o fio que 5 Estabelece-seassim uma síntese entre a í/zfenlfodfsfenslo fenomenológica
conduz diretamente de Nlefzscbe e a/i/oso#a a Lógica do se/zffdo. de Agostinho e a linearidade cronológica de Aristóteles.

120 François Wahl O copo de dados do sentido 121


referencial o atesta. Sentido de pessoa, em-si do sentido, que circula tese: se só temos acesso ao campo de imanência remontando em con-
em seu campo de imanência. Reavê-lo implica uma ética do pensamento tracorrente a coxa do discursivo, temos acesso nessemesmo movimento
no abandono do Ego, ética que comanda, nunca é demais repetir, todo ao que precede, isto é, preexiste; e, se o sentido não é nem verdadeiro
o procedimento de Deleuze. nem falso, a dupla orientação, a dupla negação das determinações, o
O essencial não está dito ainda, pois bom senso e senso comum impessoal são, no entanto, a verdade quanto ao sentido. De modo que
constroem juntos um aparelho -- o que se diz racional -- do qual só o movimento crítico se transforma em posição afirmativa, sobre o que
podemos nos livrar solapando-os. A mobilidade e a duplicidade do é, pelo menos, parte do sentido. Vale dizer que esse primeiro momen-
sentido só podem ser entendidas como excetuando-se todos os pares to, muito fenomenológico,da análisese apóia numa cona/ersãoradi-
de determinaçõescategoriais, o Mesmo e o Aqui ultrapassados, arras- cal -- uma "contra-efetuação" 12091-- que supõe um origf za/.
tando consigo o conjunto das articulações da razão: o sentido não será
mais singular que plural, não mais afirmativo que negativo, não mais Há uma segunda via pela qual é preciso liberar o sentido do que
assertórico que hipotético; ou melhor, ele não será nem uma coisa /zem elenão é, uma via que requer um novo ponto de partida. A coxa te-
outra, apenas "impassível" e singularmente nem verdadeiro nem fal- matiza uma proáundfdade do sentido, cujo valor estaria no fato de ele
so l44-7, 123). O sentido, que há pouco juntava os extremos, se exce- ser penetração na substância das coisas, e se transportar ao cerne da
tua agora dos contrários. De onde uma nova figura, para um novo realidade. Mas como sucederia assim, quando o sentido é uma "enti-
traço: gradualmente suspenso o terceiro excluído, um estatuto próprio dade não existente"(7), exatamente aquilo que escapa ao domínio dos
do sentido deve ser pensado, o do neutro. Estatuto do anterior assim corpos e dos fatos? O sentido é os estóicos tinham razão em afirmá-
como estatuto de exceção. Não, e é o ponto em que a redução se de- lo -- um Indo/porízJ. Constatação que irá se efetuar, desta vez, pela
tém, inorganizável desordem -- a indeterminação do sentido não chega autoridade de um texto histórico que evita (XVlll) tanto os prestígios
ao absurdo que o suprimida --; mas captura do sentido num registro da altura como as vertigens da profundidade, para.se consagrar à men-
originário em que sua singularidade se pretende redução feita de to- suração das superfícies/
das as categorias lógicas do singular. A superfície, portanto, e não mais a linha: o sentido se desdobra
Dois é assim duas vezes o número do sentido: em sua circulação sobre o plano de iminência que ele percorre. Nova imagem que se
entre termos que o Um do senso comum e do bom senso separa, e na afirma sobretudo no que ela nega: não há espessura. Mas as imagens
suspensão dos pares categoriais, que ele ignora. O bá do sentido é o têm em Deleuze uma função semanalmuito particular, elas não deixam
torvelinho de uma duplicidade sem outros limites que o percurso, ba- escapar o conceito que enquadram; e esta irá se revelar ambivalente:
lizado pelos paradoxos, entre todas as extremidades, no aquém de pode-semedir a superfíciecomo se ela não tivesseparte de baixo? O
todos os contrários. E o Um de cada sentido-- pois, afinal, cada sen- fato de Deleuze não argumentar aqui em primeira pessoa e se ater à
tido é, em sua mobilidade e sua dualidade, o que ele é, e não um ou- leitura que faz do estoicismo vai ocasionar um deslocamento suple-
tro -- deve ser pensado como um (quase) Um neutro, no exílio pro- mentar, em direção ao que se passa entre os incorporais e os corpos.
nunciado dos impassesdo Dois.'
Ao mesmotempo, alguma coisa é dita, no método, que vale como

7 Seria um erro censurar l,óglca do sentido por fazer do estoicismo um cor-


6 Há a tentação constante de ler Lógica do senado como conduzida por uma re sob medida, transformando em teoria do impredicávelo que, no essencial,era
metafísica do in/znífo e do z/írf a/. É preciso resistir a isso, não por ser finalmente uma teoria do atributo, e explorando a análise formal do tempo às avessas do que
falso, mas porque aqui Deleuze se ocupa com o simples emprego de todos os pa era o conceito estóico cardeal, o do presente do ato: nada menos pertinente a pe-
radoxos do Dois, hipótesefeita não da disjunção dos contrários, ou de sua con- dir a Deleuze que o estoicismo de Deleuze. Muito pelo contrário, seríamos leva-
junção, mas da circulação entre eles. dos a admirar o virtuosismo com que a transferência se efetua.

122 François Wahl C) copo de dados do sentido 123


Pois o que vem à superfície é sempre -- novo conceitos -- um presentedeterminável" j193), já que essa determinação seria do cor-
aconfecimenloque se articula entre o incorporal e o corpo. De um lado, po; afon é a dupla divisão sem mais divisível a esquivar; vale dizer que
os corpos que se misturam, agentes e pacientes de um determinismo o acontecimentoseproduz na e produz a -- "pura forma vazia do
disperso em estados de coisas e suscetível de se reunir num único pre- tempo", linha que percorre uma incessanteproJeção dupla e móvel no
sente cósmico; de outro, as "maneiras de ser" que são os efeitos deles :sempre já passado e eternamente ainda por vir" (194).
-- no duplo sentido da palavra: o efeito sempre de um estado de coi- tJltima etapa da redução que provoca uma importante correção:
sas, mas efeitos que não têm outra realidade senão "extra-ser"; im- o momento fenomenológico parecia ter concluído sobre o nem finito
passíveis que insistem sem subsistir, entre os quais só existem relações nem infinito do sentido; eis que, com a instantaneidade do aconteci-
de sentido -- razão pela qual se dirá que uns são para os outros "quase- mento, a #nlfude se liga ao sentido, e a f/Iml anão -- do passado, do
causas" (151 -- e que se traduzem em /ehfa no discurso. Vários fins se futuro é a qualificação que nela requer o tempo. Ê lícito pensar que
vêem assegurados aí num mesmo movimento. esse último termo é o mais afim a Deleuze, a um pensamento do neu-
De um lado, acha-se especificada o que poderíamos chamar a tro que dispensaa prioridade assertiva do infinito sobre o finito.
leveza do sentido -- "um vapor" (37) -- que escapa ao que é o núcleo
de toda espessura: o determinismo; e garantida a especificidade tanto Resta -- terceiro ângulo de abordagem, terceiro desprendimen-
dos termos que circulam na superfície como de suas relações: de sentido to a operar -- que o sentido não poderia insistir fora da linguageme
a sentido. Ao preço, é verdade, de um dwa/esmo-- ordem dos corpos/ da forma da proposição. "Cabe aos acontecimentos ser expressos ou
ordem do sentido -- que é tão constrangedor quanto liberador: pois, exprimíveis [...] por proposições ao menos possíveis" (22). Mais: "o
se o acontecimento é algo muito diferente do estado de coisas, o segun- sentido é a mesma coisa que o acontecimento, mas [...] relacionado
do não deixa de ser "causa" j13) do primeiro, e jamais será resolvida às proposições" (195). Ora, a proposição é por excelência a forma
a questão do modo pelo qual um encadeamento de estados de fatos e que bom sensoe sensocomum ordenam.O último erro da coxa se-
um encadeamento de sentidos se correspondem, operando por vias que ria precipitar-se em dizer que o sentido e sua expressão se recobrem:
diferem completamente: é no que já havia esbarrado a lógica estóica. seria anular tudo o que foi produzido de irredutibilidade do sentido
até então.
De outro lado, o sentido é, por causa desse estatuto, ao mesmo
tempo alheio e ligado ao presa/zredo fato: acontecimento, ele junta- Os ruídos do corpo não teriam se tornado os sons da língua se
se de outro modo, mas junta-se ao que advém. E, no mesmo movimen a linha do sentido já não passasse entre uns e outros, para "fundar a
to, o dualismo completa o que havia iniciado a ruptura da unidire- propriedade metafísica adquirida pelos sons de terem um sentido"
cionalidade quanto ao sentido, até provocar um desdobramento de j194). Assim também, do que faz a proposição uma referência ou re-
estatutodo próprio tempo. Há, de um lado, cromos,o tempo do mundo, lação-a -- que se articula em: "designação" do objeto, "manifesta-
que é iterativamente o do presente limitado do estado de coisas, ao qual ção" do sujeito e "significação" conceptual --, nenhum dos termos é
passado e futuro são relativos;e há, de outro lado, czion,que jamais por si só fundamento suficiente, e tampouco o conjunto deles que faz,
está contido no fechamento do presente, mas que não é tampouco um círculo: é precisoum s plemenfo,uma "quarta dimensão" (27): que
retorno qualquer da eternidade das essências, e para o qual não basta não pode ser senão o próprio sentido. Sentido que convém desde logo
mais sequer a definição pela divisão ao infinito do presente em passa' distinguir da proposição, da qual ele é somente o expresso: irredutível
do-futuro. Áíon, como reinado do acontecimento, só pode ser o rei- a cada um dos termos precedentes-- por menos que se confunda o
nado do i/zsfazzfesem espessura e "que distingue seu momento de todo sentidoque se atribui ao estadode coisas com o predicadoque, na
proposição, se relaciona ao sujeito --; indiferenteà posição do ver-
dadeiro ou do falso pela proposição -- há sentido tanto num como
8 A palavra pode surpreender. Mas reconhecer-se á ao longo de todo o li-
noutro --; e suscetível, por sua própria neutralidade estéril, de distri-
vro uma elaboração racional do que transcende a racionalidade, na qual seu títu-
lo encontra a legitimidade. buir a cada uma das dimensões da proposição -- mas também à pro-

124 François Wahl O copo de dados do sentido 125


posição inteira -- o que as qualifica para significar. Essa possibilida- neiras, e ainda constrói uma maquinaria de percursos e ultrapassagens
de se traduz numa nova imagem: o sentido é como uma aresta, uma -- teve por suporte a reelaboração de três terrenos: fenomenológico,
dupla borda, a Éronfeira j3S) entre as proposiçõese as coisas. O sen- metafísico, analítico do discurso. Reelaborações que devem ser in-
tido "volta uma face para as coisas, uma face para as proposições' terrogadas por elas mesmas.
1341;ele é ao mesmo tempo o expresso das segundas e o que por es- Ê surpreendente que, querendo despertar o que o sentido requer
tas se atribui às primeiras. Ou seja, "a coexistência de duas faces sem dc "produção", Deleuze invoque de bom grado (por exemplo, 97) a
espessura,tal como se passade uma para a outra seguindoo compri- 'doação" de sentido. Isso se esclarece na discussão que ele conduz
meRto" (33). É por não ser nem uma coisa nem outra, mas aresta de com Husserl. Ele aceita identificar o sentido ao noema como expres-
um biface, que o sentido torna possível a constituição da proposição so da proposição, núcleo independente, separado -- neutralizado --
tornando possível sua relação com o mundo -- ou o inverso. "Tal é pela redução: na "cor noemática [...] não intervêm nem a realidade
a operação mais geral do sentido: é o sentido que faz existir aquilo do objeto nem a maneira pela qual se tem consciência dele" (1171.
que o exprime e, pura insistência,se faz desde então existir naquilo Mas ele censura a Husserl um "passe de prestidigitação" (118) pelo
que o exprime" (194). fato de, nele, o desenvolvimento último da estrutura do sentido visa-
Há pouco tínhamos um dualismo dos corpos e do incorporal; do implicar -- recuperar -- tanto a relação a um objeto qualquer
desta vez temos três ordens: a linguagem, as coisas e, na articulação como a intuição de um sujeito: em suma, o retorno do senso comum
das duas, o sentido. Mas, em verdade, o sentido não é aqui senão o c do bom senso. "E assim, [...] se dá na noção de sentido tudo o que
que assegura o funcionamento da dualidade, que se reduplica, ela pró- era preciso engendrarpor ela", quando "o fundamento jamais pode
pria, por sua projeção recorrente de cada lado do dupla-face:duali- se assemelhar ao que ele funda" (120). Busca de uma Áenomeno/agia
dade, na coisa, das qualidades físicas (estado de coisas) e dos atribu- radica/, de um transcendental que "rompa" (119) com o aparelho
tos lógicos ideais (acontecimento); dualidade, na proposição, da de- formal da coxa. É isso precisamente que faz Deleuze se voltar para o
signação do estado de coisas (nomes, adjetivosl e da expressão do sentido: que ele não envolveria originariamente nem forma de desig-
acontecimento (verbos) (37): a mobilidade essencial do mundo do nação, nem forma de significação-- no sentidoem que a proposição
sentido é garantida por um jogo de espelhos que repete no interior de faz dele predicado --, nem forma de manifestação de um sujeito. Uma
cada instância, indefinidamente, sua diferença em relação à instância gênese verdadeira seria aquela que constituísse tanto a forma objeto
simétrica. e o terceiro sentido não faz senão articular a não menos como a forma sujeito a partir destas simples doações desprovidas de
essencial dualidade que atravessa todo o sistema desde aquela -- ger- qualquer outra especificação: as quase-causas imanentes (120). Em
minal -- do passado-futuro. vez de examinar se tal gênese é possível, é preciso agora perguntar se
Assim, a manipulação do Dois terá sido de ponta a ponta a ma- a fenomenologia do sentido se ajusta à análise feita por Deleuze, e se
triz da exploração do sentido: transgressãodo Um pelo Dois, trans- também garante essa dedução radical que dela se espera.
gressãodo Dois pelo Neutro, conjunção do Dois por essastransgres- Nunca seria demais fazer justiça a Deleuze por seu esforço em
separar o sentido do conceito; o sentido não é em absoluto o concei-
sões.9 Matriz que não cessará de investir o jogo ideal do sentido.
Essa montagemem três seqüências-- de um montador exímio to, e sua mobilidade nos extremos, sua duplicidade (pelo menos), sua
que faz deslizar as linhas, multiplica os planos e lhes aparafusa char- indiferença ao aparelho categorias são realmente traços daquilo que
o torna irredutível. Mas há no enunciado de Deleuze um pressuposto
que jamais é exposto: tudo nele implica que a apreensão do sentido é
9Por esseviés, o movimento de Lógica do se/zfido-- e primeiramentedos fmediafzz.Ora, a objeção fenomenológica é patente: existe um senti-
paradoxos nos quais se apóia é o da segunda hipótese do Parmê/lides, com eco do que não seja sentido de e sentido que ewapreendo? Ou, melhor
da terceira hipótese para a definição do instante. Que a referência a isso não seja dizendo: sentido que eu apreendo sobre? O plano de imanência não
feita senão nesse último lugar, só se pode explicar pelo desafio antiplatõnico da
teoria do sentido. poderia ser um céu -- mesmo movente e neutro -- dos sentidos. Muito

O copo de dados do sentido 127


126 François Wahl
simplesmenteporque o sentido se /ê; porque ele não tem pertinência nada acrescentando a ela; submetido à quase-causalidadedos comple-
fora do fexfo de qualquer natureza que ele seja -- que o suporta, e xos de sentidos do qual deriva e que o distribuem na superfície reme-
só vale na medida do rigor com que inspeciono o escrito. Esse concei- tendo uns aos outros, ele tem uma relação de imanência, que o faz tanto
to essencial da leitura do sentido está, estranhamente, ausente da análise ;produtor" como produzido j]S, ] ] 61.
de Deleuze. Ora, ele é constitutivo. O grande-e-pequeno só é compro- Ora, é aindao pressupostode imediatidadequecria o proble-
vado na medida em que Alise crescee diminui de tamanho, e na me- ma. Se o sentido não é das coisas mas daquilo que elas se dão como
dida em que me empenho em decifrar o que sucede a Alice; o próprio fexfo, é este último -- mesmo perceptivo que comanda o sentido,
do sentido é que ele se afirma na -- junto à -- experiência, só insiste visto que ele o suporta. Deleuze gosta de tomar como exemplo o "ver-
nas condições em que nela se inscreve, e só é apreendido por mim na dejar" da árvore; dizendo assim, eleenuncia de fato, além da pregnân-
medida em que, decifrando-a, eu o construo. Tal é a mediação que cia, no contexto, da cor sobre a forma, a dessa forma colorida sobre
obriga a pensar o sentido ao mesmo temPO no registro do Neutro, no as outras, e o jogo de determinações próprio dessa cor em relação com
que se refere a si, e, no que se refere à sua apreensão, num registro de as outras cores, a luz, o volume, e também tudo o que constitui uma
experiência que não tolera redução nem do objeto -- como objeto lido vista em paisagem, não se excetuandosua constituição como olhar.
-- nem do sujeito -- como sujeito leitor. Por causa de sua constitui- Nada aí que não estejainscr/fo nas "coisas": a primeira dualidade é,
ção, ele se afirma -- retenhamos a fórmula -- em excesso, em relação não a das coisas e do sentido -- posterior e que se deduz --, mas aquela
a todas as pautas do Dois; mas, por causa do terreno sobre o qual se da qual o escrito e sua decifração constituem paradigma. Disso tam-
eleva, ele não pode fazer exceção às pautas da decifração: tal é o pri- bém resulta o que regula a produção "lógica" do sentido pelo senti-
meiro de seus paradoxos. O que devia ser o transcendental radical se do: ela é, pelo menos a princípio, a exploração do que se encadeiade
vê estritamente pinçado num exercício que faz funcionar uma prática sentidono nível do dado fexfaa/ que faz sentido. E que encontra seu
que ele supostamente fundaria. valor no rigor desseencadeamento.De modo que seríamos tentados
Já observei, por outro lado, que a mefóz/Ricad a/iscaem que o a objetar à apreensão do sentido em si e para si, que é implicitamente
acontecimento faz charneira entre o mundo determinado dos corpos aqui a de Deleuze, o requisito do ade7'ff'ao fexfo que livra o sentido
e a superfície sobre a qual o sentido evolui em virtude de uma "qua- de toda descontinuidade em relação ao que ele faz significar: faríamos
se-causalidade" incorporal, "lógica e dialética", colocava a questão do essa objeção se o próprio Deleuze não tivesse mostrado alhures -- que
desenrolar paralelo dessa "dupla causalidade": embaixo, "ligação das se pense, por exemplo, em Prousf e os signos -- que sabia melhor do
causas entre si", em cima, "ligação dos efeitos entre si" l 115). O esco- que ninguém o que faz parte da prática de leitor. Demonstrando pelo
ramento de Lógica do senffdo no estoicismo tem um curioso efeito: que escreveuque o sentido e as seqüênciasdo sentido se apóiam na-
percebe-seo que Deleuze retém dele, não se sabe -- ele não diz -- o quilo do qua/ eles são o sentido.
que ele considera obsoleto, de modo que a questão do dualismo hoje Com isso também se esclarece e se precisa a pertença do sentido
não é realmente elaborada. Deleuze restringe o problemai0 à duali- ao discurso, que é algo bem diferente que o modo de sua reintegração
dade que ele ocasiona no efeito mesmo, o sentido: em relação à cau- ao bom senso comum. Do fato de o sentido se ler resulta que, tomado
salidade dos corpos que o produz, o sentido é perfeitamente "estéril", no universo do discurso, elese dfz: não é senão dito. Ler não é, não é
em parte alguma, uma metáfora, mas uma estrutura, que mantemos
io Ele o evoca uma única vez, com a maior prudência: os incorporais são, com nosso ser na língua. Que a frase, portanto a forma sintática, seja
em relação uns aos outros, quase-causas "segundo leis que exprimem t.alvez em consf/[afnfe para a leitura, é uma decorrência. Assim, se buscaria em
cada caso a unidade relativa ou a mistura dos corpos de que eles dependem como
vão uma leitura pré-frásicado sentido, que a proposição viria "expri-
de suas causas reais" (15). A alusão que segue, à relação destino-necessidade nos
estóicos, não é promessa de uma solução. Deleuze parece (1 16 ss.l por outro lado
mir" (111).É preciso afirmar ao mesmo tempo que o sentido não é um
esperar, da "génese /ógiccz" da proposição pelo sentido, ao menos uma dedução conceito e que sua posição não foge à regra comum da organização
da lógica formal pela lógica transcendenta!. sintática. Distinguindo entre o sentidoe o predicado que elese torna

128 François Wahl O copo de dados do sentido 129


na proposição, Deleuze escreve: "0 sentido (verdejar) se atribui, mas aluiu seu ofício, não tendo ainda argumentadoa "boa nova" de que
não é de modo algum atributo da proposição, ele é atributo da coisa o sentido não está por descobrir, mas por produzir. Para o que -- para
[...]. O atributo da proposição é [...] um predicado qua]itativo como avaliar o efeito disso -- é preciso passar da descrição do sentido à sua
verde" (33). Ê lícito objetar que, se a proposição é "expressão" logo constituição .
em seguida, é antes por ter "transformado" em "a árvore é verde" a
frase autêntica, da qual "verdejar" era o sujeito ao qual a árvore esta- II. METAFÍSICA
va relacionada. Que o sentido estrutura sua frase -- distribui os ter- 1) 0 sentido foi considerado até aqui por Deleuze em sua rela-
mos de sua frase nas posições sintáticas -- numa ordem que não é a ção com aquilo sem o qual ele não é (a separação dos extremos e a
do discurso por conceitos, eis o que atesta a irredutibilidade de seu oposição dos contrários, os estados de coisas, a língua), mas aquém
registro; que ele possa se afirmar sem se impor numa frase, a do dado do qual -- um aquém transcendental -- seu ser, ou "extra-ser" -- se
textual do qual se extrai, é o que jamais acontecerá. Ou: o que "atri- afirma. É preciso chegar às relações i/éterzas ao sentido. E, dessas re-
bui" o sentido à coisa é a frase na qual o estado de coisas se lê como lações, a mais simples, aquela que também jamais vem a faltar, é a
enunciado de sentido. "regressão indefinida": ao dizer o sentidode algumacoisa, "não digo
jamais o sentido do que digo, mas em troca posso sempre tomar o
É uma estranha entidade ideal o sentido. Deleuze foi quem sou- sentido do que digo como o objeto de uma outra proposição da qual,
be se espantar com isso e indica-lo como ninguém o fizera antes. É por sua vez, não digo o sentido" j41 ). O sentido se constitui assim em
realmente verdade que o sentido não tem os contornos fixos e orde- série, onde cada ocorrência é designação da qual a precedente é o de-
nados do conceito -- como ele é classicamente definidoll --, que signado: o que implica de imediato a constituição de duas séries das
apreender o sentido se produz apenas na imanência da experiência designações, dos designados que uma "diferença de natureza" (50)
concreta, e que interpretar a experiência não é de modo algum fundá- distingue: o essencial não é mais então a dualidade, mas a bere70ge-
la no sentido de uma eplsteme. Mas as condições nas quais o sentido pzeidadea ela ligada. Com isso, o esquema da co/oração em séries pode
se lê, se encadeia e se enuncia, proíbem que se faça dele essa idealida- ser proposto por Deleuze como o modelo para toda constituição do
de livre, nâmade em toda a superfície, que Deleuze busca com uma sentido pelo sentido.
animação e uma inventividade jubilatórias. E que ele só encontra ao Desdobremos. A) A colocação em séries institui por ela mesma
preço de uma desterritorialização contraditória com as condições de as séries como heterogêneas,e essa heterogeneidadepode se preen-
produção do sentido. cher de todas as dualidades subsumidas pelo ou no sentido -- de es-
Certamente ele teria respondido que, se o sentido não fosse o que tado de coisas/acontecimentoa significação/expresso--, mas sempre
abre o pensamento a si mesmo no originário, o que Ihe confere a leve- uma "apresenta em si mesmo" o sentido, enquanto a outra se define
za de uma circulação no ilimitado, e o que gera o discurso a partir do como sendo seu correlaffo (51)t2. Não é a natureza das séries hete-
que para ele não é senão paradoxo, o sentido não Ihe interessava. Não rogêneas, mas a natureza da heterogeneidade delas, que funda o sen-
é outra coisa que ele visava desdea extraordinária elaboração do Dois tido como tal. B) Dizer essa heterogeneidadeé dizer que a primeira
sobre a qual sua investigação se iniciava. Ora, essa máquina não co- série está em excesso em relação à segunda, a segunda em áa/ra em
relaçãoà primeira. Existeaí um "desequilíbrioorientado" (54): dese-
quilíbrio porque as sériesnão estão fixas, mas em variação perpétua
miComo se sabe, Deleuze não definirá finalmente o conceito (cf. O qz/eé a uma em relação à outra; orientado porque a todo momento uma de-
#/oso/ia?, cap. 1) de modo diferente do sentido. Não se afirma que a definição do
conceito a "velocidade infinita", antes de sua "redução de marcha" pela colocação
em coordenadas, seja substancialmente diferente da bidirecionalidade-inindivi- ]2 Teria sido melhor evitar a designaçãodo primeiro como "significante" e
duação do sentido. E, por esse viés, a qualificação do conceito como "em sobre do segundo como "significado", designação que Deleuze admite poder ocasionar
vâo" torna a encontrar o ser em superfície do sentido. mal-entendidos.

130 François Wahl O copo de dados do sentido 131


las desliza "sobre" a outra, porque excede. "Há sempre um excesso ficante-significado é impróprio, como Deleuze admite, mas sem sc deter
de significanteque se embaralha" (54)i3. C) Mas convém acrescen- no porquê, eles são referência incongruente ao sistema semiótico que
tar -- e é "o ponto mais importante" -- que essa distribuição das sé- comandaria com sua articulação a distribuição do fazer-signo em suas
ries, que ao mesmo tempo se comunicam e são deslocadas uma em duas faces. Nada disso ocorre aqui, em que é a instância paradoxal
relação à outra, requer um terceiro termo que assegura entre elas tanto que assume, na imanência do aparelho local, a função de mediação e
a convergência como a divergência: ou seja, uma í/zsfáfzc/a /7ízrzzdo- de repartição. Todas as produções de sentido esposam o mesmo es-
xaJ (54), "de dupla face", portanto presente nas duas séries ao mes- quema, mas nenhuma produção de sentido tem sistema antecedente.
mo tempo, e circulando nelas simultaneamente, portanto sempre de-
sequilibrada em relação a ela mesma. "Em excesso numa série [...], ;Produzir um fantasma no limite de uma experiência alongada,
em falta na outra [...]: desemparelhada", "e]a nunca está onde a bus- desdobrada" (32), e buscar construí-lo com o rigor de uma mafbesis,
camos, e[...] não a encontramosonde ela está"(55). é um gesto tipicamente deleuzeano. Série e instância paradoxal, os
Paradoxal, a instância o é striclo senso, por ser sempre "os dois instrumentos da construção do sentido se querem fiadores, ao menos
ao mesmo tempo" -- a palavra e a coisa etc. --, subvertendoo bom paradigmaticamente, de tal rigor. Tanto mais necessário, no caso,
senso por ser conjuntivamente o dito e o sentido desse dito, subver- quanto toda determinação própria à estrutura semiótica foi evacua-
tendo o senso comum por ser disjuntivamente o dito de uma alterna- da: é preciso de fato supri-la.
tiva na qual ela própria entra (84). Por esseviés, pode-sedizer que o O conceito de série não deixa, em verdade, de ser evolutivo. For-
elemento paradoxal, que é condição do sentido, é ele próprio /zão-se/zso, mado sobre a teoria dos tipos (50) -- como chave do que é, em suma,
mas um não-sensomuito particular que "se opõe à ausência de senti- uma ocorrência do ato reflexivo --, ele subsume a seguir a equivalên-
do operando a doação do sentido" (89). cia estrutural de duas distribuições de posições-- ou seja, em A carta
A constituição do sentido abre, assim, o que sua descrição obti- roubada (S21, os dois trinâmios rei-rainha-ministro e polícia-ministro-
vera a uma sistemática do como/exo, pelo menos dupla -- não há sen- Dupin --, e encontra finalmenteseu poder operatório como simples
tido de elemento simples --, do complexo em deseqni/z'brio não há sucessãolinear de pontos virtuais, não muito qualificados, que a mo-
dois sem que um esteja em excessoem relação ao outro --, da áa/ra bilidade da instância paradoxal põe sucessivamente em relação com
do áundamenlo não há sentido que não se apóie no não-senso. Cons- outros pontos de uma série dua]: "uma estrutura comporta [-.] duas
trução de uma consistência impressionante -- que difere das preceden- distribuições de pontos singulares que correspondem a séries de base...
tes na medidaem que ao "os dois ao mesmotempo" e ao "nem.um Cada uma [...] é constituída de termos que só existem pelas relações
nem outro" se substitui um par que oscila, equipando o sentido de um que mantêm uns com os outros.. As singularidades junto a uma série
sfgni/;cante cm excesso em relação a um sfgniÁzcado(51 ), e lançando determinam de uma maneira complexa os termos da outra série" j6S-
uma instância torta para fazê-losse comunicar: essa é a condição para 6). Ou seja, um duplo jogo de relaçõesdiferenciaispara explicartal
montar o aparelho produtivo do sentido. Mas também construção em valor pontual do verde, quando o verde muda de nuance associado a
que a produção do sentido reconhece,no jogo de seu aparelho, a au- diferentes amarelos.
sência de qualquer slsfema envolvente que o constrangeria. Nenhum Disso seconcluirá, primeiro, que a sérieé uma #gura, ainda que
encontro das séries está pré-ordenado -- é a "distância" delas que dúctili4. de autoridade matemática15,chamada a transcrever num mo-
relaciona os acontecimentos uns aos outros "enquanto diferentes" delo de inteligibilidade pura o que permanece uma não menos pura
(202) --, nenhuma série está programada para ocupar o lugar do sig-
nificante, nem para conserva-lo. E, se o emprego dos termos signi-
i4 A ponto de substituir a palavra "capítulo", certamente para marcar que
aquilo do qual estes elaboram a exposição requer o mesmo modelo de constituição.
i3 A exposição de Deleuze sobre esse ponto é inteiramente elíptica. i5 Cf. as referências -- com reserva -- ao cálculo diferencial(por exemplo, 65).

132 François Wahl O copo de dados do sentido 133


mudança qualitativa. Mas uma figura autoritária a ponto de se trans- a coxa, não escapa à estrutura, a não ser no regime de sua maior pro-
formar em entidade conceílua/, suscetível de fornecer à sequência do dutividade, e o que garante isso é a mobilidade perpétua de um termo
argumento um personagem racional: de investir o discurso filosófico que a estrutura não sabe situar, que está na ausê/zelada estrutura. O
pelo rigor paradigmático de seu aparelho referencial. E nada menos estruturalismo de que se vale aqui Deleuze é despojado de todo meca-
era preciso, certamente, visto que a instituição do sentido devia ser nismo e de todo modelismo: seu princípio motor é "a circulação da
alheia a todo sistema, para fornecer o suporte de uma zfnidade ar- casa vazia nas séries da estrutura" l88), seu recurso é a colocação em
ficw/áue/à transformação contínua da qual a colocação em séries consti- séries de elementos, sempre virtualmente possível mas jamais pré-or-
tui o único momento substancial. Daí as propriedades da série. De um denada, pelo perpétuo deslocamento de um termo que se excetua na
lado, ela existe, ao menos potencialmente, por si mesma, há o Um da estrutura.
série, é o verde, o riso, a grandeza...; de outro, ela é um Múltiplo -- Resta que, por sua vez, o modelo estrutural fornece ao aparelho
de pontos, de graus -- cujo esquema dinâmico no qual ela é tomada o que ele necessita de racionalidade e articula o que ele parece impe-
atualiza os momentos que vão constituir -- por sua diferença com dir de articular. Sua operatividade está, devido à indeterminação da
aqueles da série dual -- o sentido: será, por exemplo, segundo a ocor- instância, suspensa ao que exclui qualquer cálculo antecipando a pro-
rência e o excesso de uma ou outra série, a ironia (cínica) de quem opõe, dução; mas a instância revela-seo / gar mesmo do ccí/cw/ono instan-
à idealidade das significações, a materialidade das designações, ou te de sua atualização: é ela quc induz o múltiplo despertado pela co-
aquela jsocrática) de quem, ao absurdo material do designado, opõe locação em séries, que organiza o duplo heterogêneo para fazer dele
a instância da significação (XIX). De modo que, finalmente, a uma- uma estrutura nova, ela é o verdadeiro agente da produção do senti-
série não é nada, não "produz" nada -- sentido nenhum -- senão por do, aquilo sobre cuja configuração tudo repousa e que tudo determi-
aquilo que, da série dual, anima nela o múltiplo; mesmo assim ela é na. Por natureza, ela falta à estrutura, faz exceção, mas essa falta "emi-
suficiente, como uma, para co-determinar de sua multiplicidade o senti- te" tudo o que o sentido irá comportar de organização. Ela não tem
do que se produz. A condição da série é não ter definição fora de uma definição própria, ela foi inventada -- invenção genial -- para cum-
produtividade que atualiza seu próprio aparelho, e cuja definição no prir o papel do fercelro que falta à constituição do sentido na ausên-
entanto a requer. cia de uma instância do fazer-sentido, mas essa mesma necessidade
A introdução da instância paradoxal na constituição do sentido, acaba por identifica-la com o sentido, do qual configura o núcleo.
introdução perfeitamente consequente, mas que até então nada anun- Assim, a "maquinaria" que o amador de sentido reclamava no
ciava, assinala, quanto a ela, uma espécie de lance teatral na estrutu- início está de fato inteiramente voltada para a ilustração de que o sen-
ra de l,ógfca do self/do, que não mais cessará de explorar suas conse- tido não "é" mas é produzido, não é senão mobilidade que o produz;
qiiências. Mas esse momento também é, na doutrina deleuzeana, o da de que sua produção se entende por subtração tanto de uma atualida-
esfra/z/I'a: estando entendido que, desta, o termo que garante todo o de prévia dos termos que ela liga como de uma possível exaustão das
jogo é aquele que "nunca está onde [o] buscamos" e, inversamente, posições que ela prescreve. E ela está, pelo mesmo traço, destinada a
não encontramos onde [ele] está" (55), aque]e que se traduz numa produzir senfldo soba'eo sentido, diretamente sobre o sentido, exclu-
série pelo excesso de um "significante flutuante" e na outra pela falta são feita de todo sistema ou pauta predeterminante. O que se poderia
de um "significado flutuado" (64), aqui "casa vazia" e lá "ocupante chamar a aura da malbesfstem precisamentepor fim a elaboraçãode
sem casa" (66). Outras tantas referências explícitas16: o sentido, como uma série de substitutos tomados do cálculo que asseguram, de uma
figura racional, a articulação do sentido sobre o sentido, ao princípio
do sentido.
ló Onde convergememprogressão:como dados, o "fonema zero" de Jakob-
son e "o valor simbólico zero" de Lévi-Strauss; como jogo alternativo, o lugar sem
ocupante e o ocupante sem lugar de Carroll; como agente, o "significante ausente 2) Da construção do sentido, isso não é senão o intervalo. O
de seu lugar" de Lacan. /ehfo/z,enquanto sentido de um acontecimento, é, como ele, s/ngular.

134 François Wahl O copo de dados do sentido 135


Da singularidade do sentido, o modelo inteligível deve prestar conta. 'críticos", se estabeleceuma configuração que vai insistir, elevar-se
E, de repente, o problema se volta: o que é que, na circulação inces- no estatuto de uma Singularidade ana em sua idealidade. E essa promo-
sante entre as séries, antecipa a singularidade de "um" sentido?
ção não mais tolera o vaivém entre as séries e sua transcrição na ma-
E mais uma vez da estrutura que devemos partir, pois a estrutura fóesls, mas só se faz sob condição -- desta vez manifesta -- de uma
que comporta a cada "instante" "duas distribuições de pontos singulares leitura da operação de dupla entrada. "Os dois momentos do sentido,
correspondendo a séries de base" e que "convergem para um elemento impassibilidade e gênese, neutralidade e produtividade, não são tais
paradoxal, que é como o seu 'diferenciante'" (66). Na mobilidade de
cineum possa ser tomado pela aparência do outro" (122). Aqui, a sin-
ma mesma esfr lura -- digamos: as posições sucessivas dos personagens Htilaridade de uma curva matemática, de um estado das relações de
de uma mesma história --, as repartições quc se sucedemdelineiam certas coisas, de uma organização "dos pontos de choro e de alegria" (67),
distribuições que fazem /zó, em torno e em função das quais as t,ariáz/els singularidade que, devido a sua construção estrutural -- nela incluído
que a estrutura autoriza se desdobram: dir-se-á que elas mesmas são o nomadismo da instância paradoxal --, é articulação co ce/tzfa/de
acontecimentos muito particulares" -- ideais -- que constituem "si/zgu- um múltiplo. Ali, a uma-singularidade, essencialmenteaconceflua/, do
Za Idades designáveisna estrutura" (65). Em outros termos, a singulari-
expresso que conhecemos: nem afirmativo nem negativo, nem plural
dade de sentido tem por condição um encontro da estrutura no devir nem particular, impassível, não subsistindo, mas insistindo eternamen-
de suas distribuições; mas ela não é menos, com isso, o desdobramento te, sob qualquer categoriaque se queira observa-lo, "neutro". O dualis-
de implicações triz/i/egfadas inscritas na estrutura. Modelo que, em todo mo ordem do fato/acontecimento se deslocou no acontecimento, que
caso, torna inteligível a subsunção dos encadeamentos de sentido sob se diz duas vezes. A partir do modelo que poderíamos chamar: de
o conceito de singularidade: "cada singularidade é fonte de uma série produção de singularidades estáveis, sobre a base de multiplicidades em
que se estende [.-] até a vizinhança de uma outra singu]aridade" (87); evolução, a singularidade do sentido não é mais que um clarão: o "es-
as repartições, ecoando, se redistribuem, há uma passagem que é transfe- plendor do acontecimento" (175). A partir da neutralidade do sentido
rência da singularidade; "se as singularidades são verdadeiros aconte-
-- "sem a qual o acontecimento não teria verdade eterna" (122) --,
cimentos, elas se comunicam num único e mesmo Acontecimento"(68). todo retorno à maquinaria de acontecimentosseria retorno àquelas ca-
Um primeiro ponto, homogêneoao que precede,é que a singu- tegorias das quais é por estar livre que ele encontra sua (quase) defini-
laridade do sentido, a encontrar sua inteligibilidade no registro das ção. É portanto em sua pura idealidade que sua singularidade deve se
séries, se transcreve nelas em repartição, conjunto de pontos que for- manter para ser entendida. Mais: é enquanto singular que o sentido
mam nós, arrepiamentos e condensações 167): tudo o que se inscreve
só pode ser entendido como ideal. Esse ponto é aquele em que os re-
sobre a instância. Há uma ex-plicação do próprio singular -- trata-se cursos construtivos da mafbesis estão esgotados. É também o ponto
de um mzí/flP/o--, e por esse viés a singularidade de Deleuze não é a decisivo. Pois a existência de slngula7'ldczdesideais é exatamente o que
do nominalismo, que resistia a toda abertura, inexcedívelíndice de uni- se precisava entender como a anunciada reversão do platonismo.
dade do ente bruto. Para o nominalismo, a multiplicidade é que era o
problema -- como dizer: há vários singulares que são "homem"? --, Seguindo-sea construção, podemos ser levados a supor que ela
e sua teoria do signo era a decorrência disso; para Deleuze, a multi- ree[abora O pensamento e o moz/ente[de Bergson] e propõe uma mon-
plicidade é dada com as séries, e é a singularidadeque resta/Za,que é tagem do espírito no trabalho, na espontaneidade subterrânea desse
produzida, inscrita que ela é nas características de uma repartição. Ela trabalho. Mas não. A extrema originalidade do procedimento de De-
cessa com isso de resistir ao pensamento. E o esquema torna inteligível leuzeé passar por essa elaboração para produzir novas e zldades, for-
a dzzcff/idadedo singular, que se prolonga e se recupera em outras singu-
mas que circulam num campo pré-empírico-- o aios -- sem serem
laridades, formando eventualmente com elas a Uma-Singularidade que universais, e que são originárias sem estarem "aprisionadas" (129) na
nessa cadeia esboça o "ponto crítico" 1681de uma virada do sentido.
atividadefundadorade um Eu constituinte.Não é precisoforçar as
Resta que nessesinstantesque não são quaisquer, nessesinstantes palavras para escrever: zzm Idecz/limo meia/bico do Si/zgzí/ar.

136
François Wahl C) copo de dados do sentido 137
Entidades de substituição às Idéias platónicas: é o que podemos do originário o Ego transcendental, ou sela, a forma-tipo contempo-
dizer com razão, a princípio. "Anónimas, nâmades" (125) e só anun- rânea de um certo platonismo. Mas promove sua própria originaridade
ciando seusvalores num descampado de terra; entidades,porém, in- como constituindo "o campo transcendentalreal" (133).
diferentes às determinações de suas efetuações dispersas (da batalha. É a partir dessaoriginaridade absoluta do sentido que se escla-
por exemplo, 122), e "eternas" na medida em que sua "verdade" é a rece o que havia surpreendido em sua descrição -- o desprendimen-
de uma "energia potencial" que as efetuações atualizam (125). Insti- to em relação ao texto e ao leitor -- assim como nas aporias eviden-
tui-seum sistema "meta-estável" em que "acontecimentostopológicos" tes de sua constituição -- dupla causalidade e dupla definição do sin-
sem direção "sobrevoam" as condições de sua atualização; são todos gular --: o sentido é, certamente, efeito tanto em seu exterior como
o efeito de um processo de "auto-unificação" movente como a instância em seu interior -- dos estados de coisas, da estrutura serial e de sua
paradoxal que o percorre, e entram em ressonânciauns com os ou- instância -- mas sem nada mais dever a ninguém no expresso de sua
tros Estranhas idealidades, certamente, ao mesmo tempo sílzgu/ares, idealidade. E é aqui que se compreende por que as singularidades, se
pofefzclalse em deulr; mas a ambição delas é recon/zgurarcompleta- são idealidades de um novo tipo, são também o quase-objeto de uma
mente aquilo mesmo que foi o céu das Idéias, do qual elas ocupam o apreensãopura: pelo menos não se percebe como elas poderiam ser
lugar inteiro -- o todo da idealidade (69) -- e que se torna o do sen- apreendidasde outro modo senão em si e por si, lá que nada do que
tido. A lógica dos paradoxos e a montagem da maquinaria eram ape- precede essa apreensão, nada do que a segue, e nem mesmo nós que
nas preliminares de uma revolução metafísica. De uma refutação do as apreendemos,é adequado ao que elas (não) são.
platonismo em seu próprio terreno. Por todos os seus traços Outro da
Idéia, e substituindo-a, o senfldo "não é", mas "não é" por ?zafzff'ez.z 3) O gestopróprio de Deleuzeé isto: uma travessiada cenogra-
e por st. fia da argumentação -- identificações e classificações -- para encon-
Sem que haja aí contradição, é antes como o cumprimento que trar, mais além, um reinado de formas e forças fluidas, de entidades
historicamente faltava à fenomenologia, que as idealidades singulares potenciaisem devir ilimitado; atribuir essa passagema um novo em-
são metodicamente induzidas. E a irredutibilidade delas é exposta como pirismo e simultaneamentepropor, das entidadesvirtuais que inces-
a da redução reconduzida ao mesmo campo em que a fenomenologia santemente se atualizam, uma construção moldada sobre o que abre
clássica encontrava sua fundação: o do Ego. "Buscamos determinar a malbesls a seu movimento auto-produtivo; voltar ao proscênio con-
um campo framscendenfa/ ImPessoa/ e pré-i/zdíz/fd a/" i7 ( 124): impes- fiante no argumento de que o originário foi assim não só descoberto,
soal e pré-individual porque a distribuição constitutiva das singulari- mas articulado, e que uma figura nova de um em-si ideal é afirmada
dades não se deixa absolutamenteclassificar sob as formas sedentá- com ele.
rias e determinantes -- agora precisados: unidade analítica para o Ego, A sutileza com que é conduzido esse processo faz com que ele
sintéticapara o Eu -- da subjetividade.Originário, o sentido o é a ponto retome sempre, deslocando, o que ele nega, e que nele se reconheçam,
de expulsar, como "derivados", aquilo sobre o qual se construíram mas transpostos, os requisitos da experiência que ele parece ter ultra-
tanto o Indivíduo teológico como o Eu transcendental( 129). Não abor- passado. Já observei que a articulação do sentido é assumida pela ins-
darei aqui essa derivação ou "gênese" do indivíduo pela convergên- tância -- mas só o é a título de acontecimento, não de estrutura re-
cia das séries, do sujeito por sua divergência: análises notáveis -- com gente. O mesmo sucede com o que fixa o recorte de uma singularida-
seu plano de fundo leibniziano -- dos conceitos de indivíduo e de su- de, inscrita na estrutura de uma colocação em séries, sobrevoando suas
jeito, mas empreendimento um tanto artificial no que se refere a gerá- efetuações-- mas não sem uma cisão na definição do sentido. São essas
los a partir da singularidade -- como o são todos os empreendimentos duas reservas que decidem sobre o que implica de problemático -- ou
desse gênero. O argumento crucial é que a singularidade ideal exclui de refutável -- o esquema proposto por Deleuze para a constituição
do sentido.
n Grifos meus

138 O copo de dados do sentido 139


François Wahl
E, em primeiro lugar: o sentido não é.pontual, ele é sempre des- fineza: "Ter uma cor não é mais geral que ser verde, pois somente essa
de o início in/eira/ -- esse é exatamente o ponto essencial do texto de cor que é o verde, e esse verde que é esse matiz, é que se relacionam
Lévi-Strauss que Deleuze citaiS -- e a história do sentido é a de seu ao sujeito individual" (136); o que ele não escreve, e que não é menos
recorte incessantementerepetido, a produção do sentido é a de novas verdadeiro, é que esse matiz me toca pelo fato de fazer variar o verde
integrações. O esquema da colocação em séries e dos quase-efeitos que ocupa, ele próprio, um campo na paleta das cores, e que nesse
implica um percurso ilimitado de relações possíveis, mas não leva em campo giram em volta o amarelo esverdeado, o azul esverdeado, e o
conta o primado constante do todo sobre as partes, como se o sentido vermelhocomplementar, e que todas essascores juntas não existem
pudessese abrir noutra parte que não em seu interior. Não se consi- sem a luz... O sentido é relativo ao sentido, Deleuze não diz outra coisa,
dera aí que o sentido só se institui no interior de um todo organizado, mas no quadro de um recorte regrado do sentido, e de condições que
ou melhor, constantemente em via de reorganização, cuja articulação governam cada sentido, próprias ao sentido, que Deleuze não se dá
-- o neutro é zízmbémo campo privilegiado da taxonomia -- precede os meios de explorar: que seu tratamento do sentido procura evacuar.
toda produção. Ora, o que se produz no encontro de duas sériesnão Mais uma vez, não é possível que a colocação em séries produza
se pode compreender fora da composição regrada do sentido em seu "emita" -- a singularidadecomo uma forma que Iransce/zdea di-
conjunto, que o atravessa, composição que cada série traz secretamente versidade das distribuições jquis-se dizer que ela a "sobrevoa") (127),
inscrita na singularidade de seus "pontos". Deleuze não nega isso e, sem que essa produção implique a distinção e a articulação desse sen-
pensando bem, ele o implica; mas não o diz, e é o que Ihe permite tido ao sistemados sentidos de onde elese extrai e assegura,por essa
manter-se no acontecimento /oca/ da colocação em séries. Em outras mesma articulação, sua insistênciano retorno de suas ocorrências. Não
palavras, servir-se do Dois heterogêneopara constituir o sentido como é sequer possível que um sentido se imponha sem ter encontrado na
multiplicidade, evitando aquilo que, por qualifica-la, a inscreve numa articulação da língua o significante ao qual se fixar,20 que Pe/a ordem
ordem que a ultrapassa. Tanto mais facilmente quanto se interpõe p7'óp7'í(z
da /água não cessará de defini-lo. Em suma, a produção ja-
astúcia da ma besls -- a função reservada aos "pontos" que a instância mais é /oca/. Mas mesmo colocando-nos na construção local de De-
paradoxal acaba de despertar na série: como pontos, elessão fnqz/a- leuze, surge uma outra dificuldade: uma singularidade não pode re-
/iÁzcados,ou melhor, só o são por seu lugar na série; mas elesnada são, sultar, e o "ponto crítico" é introduzido por um ato de violência. O
no que se refere a fazer sentido, se não forem o índice de uma diferen- que diz, de fato, Deleuze?Que tal "distribuição nâmade" das séries
ça qaa/l/içada: entram numa combinação de traços qualitativos que "se organiza" num sistema "meta-estável", "provido de uma energia
enforma o sentido -- não é outra casa que se diz sem se dizer quan- potencial", dotado de um processo de czufo-unl#cação ao qual a sin-
do eles são intitulados "pontos de silágularidade". Do fato de o senti- gularidade "corresponde" (1251. Mas isso é dizer muito em muito
do não ser nem universal nem particular deve-seinduzir, contra a evi- poucas palavras: onde situar esse processo? Dir-se-ia -- e Deleuze o
dência, que não Ihe convém possuir seus termos, sua "gramática" e diz -- que a instância é justamenteo lugar onde se indica a unidade
mesmo seus universais19? Deleuze escreve, e o faz com maravilhosa sintética de uma colocação em séries; seria preciso responder que, cir-
culando de e/emenfo em e/emenlo, agindo pontualmente, ela produz
uma distribuição sem recorrer a nenhuma figura que nela se busque e
]8 "No momento em que o universo inteiro se tornou signf#caflz/o... uma que a dirá/a.Todo o aparelho de Deleuze é construído para evitar a
passagem se efetuou, de um estágio em que nada tinha um sentido, a um outro em
que tudo o possuía" (XLVll).
direção, contornar a "boa forma", impedir que o sentido faça outra

]9 A cor é um conceito, certamente; mas ela é também, e em primeiro lugar,


um domüfo de sentido em que todo um reglstro de sentido se desdobra diferenciando- zoAssim, em Commenf /e me sais dispKlé-., de Despléchin, é preciso que
se. Na imanência do sentido, nomear a cor é permanecer no jogo concreto dessas tenham sido encontrados a palavra "medo" e o sintagma "medo de não ser o mais
diferenças, mas também explorar as condições -- superfície, luz, matiz.- -- que o forte", para que os protagonistas fixem o que é para eles o sentido da relação en-
fazer-sentido implica enquanto-cor, e os problemas que delas resultam para o senfzdo. tre os sexos.

140 O copo de dados do sentido 141


François Wahl
coisa além de acontecer21. Dir-se-ia -- e Deleuze o diz -- que é a pró- processo de auto-unificação, e confundindo-se enfim com a singulari-
pria estrutura que está em processode auto-unificação(124); seria dade mesma, "ou melhor [.-] um conjunto de singularidades, de pon-
preciso responder que esse processo não é da estrutura do encontro tos singulares que caracterizam uma curva matemática, um estado de
em constante evolução, mas supõe que a suplemente um prl/zcz'Pfode coisas físico, uma pessoapsicológica e moral" (67), ou seja, "o ver-
raso/anão: para dizê-lo cruamente, que ela esteja em busca de seu ponto dadeiro acontecimento transcendental"( 125). Dir-se-á que a cada vez
de equilíbrio num equilíbrio que a excede. A solução, escreve Deleu- algo acontece, e algo que é ele próprio tecido de devir. Mas às vezes
ze, não é qualquer uma: simplesmente,ela resulta "inteiramente como se trata de um Adro, outras vezes de um processo, outras ainda do tra-
no campo diferencial, onde repartições de pontos singulares correspon- l)alhode organizaçãointerior de uma forma. Ora, certamentenão
dem aos valores das relações diferenciais" ( 65122;mas isso é justamente haverá nenhuma dificuldade em convir que a constituição de uma
implicar que a estrutura se apresenta com a exigência de resolução de forma é um acontecimento: mas é um acontecimento muito particular,
um sistema de equações. Em suma, a singularidade, no ponto crítico, jamais pontual, que excede a maquinaria. É inclusive o acontecimen-
no ponto de equilíbrio, requer um mecanismo de auto-regulação da to puro, em seu paradoxo: obrigada pela exigência do sistema do sen-
colocação em séries, e que não poderia ser o de um par de séries isola- tido a se efetuar de um modo consistente, a construção do sentido não
do: um princípio que equivale a szlplemenfo, cuja chave é precisamente pode aí senão fazer cácwlo com o material (os "pontos") que ela reú-
a articulação desse sentido aos sentidos, ou seja, o requisito de um ne e organiza, material com que ela se define ao junta-lo. No momen-
ponto de equilíbrio de cada sentido numa organização equilibrada do to em que é tomada a decisão, no campo da mundanidade, de que o
sistema do sentido. esnobismo de Charlus não é o de madame Verdurin, esboça-se a par-
Esse ponto, não cego mas cegado, no processo de constituição tir de certos signos um esquema ainda vago que será preenchido e or-
das singularidades, se acha recoberto por uma das figuras do aco/zfe- denado com tudo o que ele puder recolher sob "seu" signo, mas esse
cimenlo. Esse termo é um dos pivâs do livro, mas é um pivõ trans- tudo só produz signo para ele a partir dele, que o determina. A nuança,
formista, e o leitor não pode deixar de procurar o lugar em que Deleuze forma que atravessa todos os tipos de sentidos, se diz toda vez que se
situa o ponto de convergência de acepções tão diversas: pontual como efetua, mas ela só se efetua ao instituir no sentido os fazer-excesso do
efeito do estado de coisas na superfície (13), estendido na exposição nuançar. O acontecimento, então, não mais resulta, nem mesmo "qua-
do "devir-ilimitado [...] com todas as reversões que ]he são próprias se"-resulta: ele é processo de auto-co/zsfifalção -- ele só pode se veri-
j17), ele mesmo "quase-causa" (1 171que se comunica potencialmen- ficar sob condição de si mesmo23--, como o emprego de um requisi-
te com qualquer outra acontecimento(Vll, XXIV), mas tornando a to que atravessa a ordem inteira do sentido. E certamente aí está o acon-
se fechar para qualificar -:tõmç outros tantos "acontecimentos ideais" tecimento verdadeiro; mas esse é também o que se excetua ao "resul-
dotados de uma história (66) -- as distribuições de uma estrutura em tar" que o uso deleuzeano do termo fazia deslocar-segradativamente.
Reservas que, obviamente, apenas prolongam a objeção feita a
Deleuze de que o sentido é leitura, portanto mediato e propriamente
21Isso continuará sendo verdadeiro após o que teremos a dizer da inscrição discursivo. Reservas -- objeções -- que equivalem a precisar tanto o
do sentido no problema, porque o próprio problema não faz senão acontecer. que é o sentido como texto desde o início total -- não há léxico a não
2zA mesma idéia é desenvolvida, a propósito do problemático, e através de ser global, nem sintaxe a não ser única -- quanto o que o especifica
uma referência a Lautman (127), como a relação entre curvas integrais e pontos como texto cuja articulação não é pré-constituída mas deve se cona
singulares, a forma das primeiras sendo relativa às soluções da equação diferen-
fruir por causa do simples requisito de uma discursividadea fazer advir.
cial, a distribuição dos segundos relativa ao campo de vetores definido por essa
mesma equação, campo em que eles acontecemcomo acidentes aos quais não é
associada nenhuma direção. Vale dizer que: 1 ) a equação diferencial daqui, a es-
trutura) opera por si mesma todo o processo; 2) mesmo assim as singularidades 23Retomo aqui, em seu esquema, a definição de Alain Badiou (L'érre et
são tanto aleatórias em sua existência quanto distintas em suas propriedades. /'éz/énemenf,
IV-V, Paris, Seuil, 1988).

142
François Wahl C) copo de dados do sentido 143
Parece impossível não apontar no sentido uma organização totalizante na verdade, não tem outro abonador de legitimidade senão a coerên-
se há um campo que não pode fazer exceção da idéia de totalida- cia e a economia de sua armação -- só tenha sido uma reconstituição
de, é esse e um processo de posição por uma intervençãocircular analítica, que ignora a singularidade que circula no céu do aio/z? E como
que suplemente a organização. evitar que as singularidades não constituam, para terminar, o ouranos
das idealidadespuras que não remetema outra coisa senão à inces-
Por um movimento inverso, a irredutibilidade do sentido se tor- sante comunicação que o atravessa, e da qual a experiência cotidiana
na em Deleuze absoluta quando, ultrapassada toda construção, L(5gi- oferece apenas uma imagem desfigurada?
czzdo se/zffdoaborda o ser em si, puramente ideal, das singularidades. Lógica do serzfidoé atravessadapor um dualismo preocupado,
Ê verdade que, se o campo transcendental "sobrevoa" todas as de um lado, em articular o sentido, primeiro às coisas e à linguagem,
suas atualizações, Deleuze não o deixa levantar vâo: não enunciou ele para depois construí-lo numa mafbesis, e, de outro, em afirmar a irre-
a evanescência do sentido fora das duas faces de que este é a charneira, dutibilidade, primeiro do registro do sentido e depois da singularida-
e sua função própria não é relacionar a linguagemàs coisas? Os in- de na qual elese dá. E também um dualismo que oscila a todo mo-
corporais "só têm existência pura, singular, impessoal e pré-individual mento para o lado do segundo registro -- o da "superfície metafísi-
na linguagem que os exprime" e as próprias proposições "não seriam ca" j2S7) --, em que se estendecomo originária uma idealidadeque
'possíveis'" se o aio/z não traçasse "uma fronteira entre as coisas e as só pode responder por si, contradita que ela é por toda a dota, mes-
proposições" que e]e "articu]a" umas às outras 1] 941. Essa é a vanta- mo que somente ela possa explicar a coxa. Eis por que se trata, final-
gem da abordagem fenomenológica, remontar por "contra-efetuação" mente, de um idealismo, se entendermos com isso que a forma mais
à idealidade originária sem subtrair sua existência às condições nas pura do pensamento atinge uma ordem como/CiumentaOlllra, da qual
quais ela se efetua. a experiência comum não é senão a atualização dispersa pelo próprio
Resta que "o acontecimento se relaciona aos estados de coisas, fato de ser articulada. Ordem outra que apenas toca o real.
mas como o atributo lógico desses estados, inteiramente diferente de A questão não pode ser contornada: não é por ter concebido a
suas qualidades físicas, embora se acrescente a eles. Resta que "o sen- constituição do sentido apenas sob a figura do resultar que Deleuze deve
tido se re]aciona às proposições como seu [.-] expresso, inteiramente extrair dela a consistência do sentido e transporta-lo ao céu das idea-
distinto do que elas signifiêàm::J195). Resta que o sentido, aqui e ali, lidades? Por uma espéciede síncope, também ela característica de De-
implica algo de excessivo" j19ó). E que, ao mundo, o campo trans- leuze, a construção do sentido evacua o momento sistemático da for-
cendentalopõe seu "caosmos" l20ó) como o que excedetoda coxa. ma e a constituição do sentido faz dele, metafisicamente, uma Forma.
A diferença, claro está, é de /zafureza.
Esse desvio não é outra coisa senão o do acontecimento ao sen- 111.0NTOLOGiA
ado. Deleuze cinde a operação em que o sentido se institui: a dualida- Há, em Deleuze, um outro modo de ler a produção do sentido
de que justapunha determinação das relações de fatos e quase-relações que, embora se apresentando como a mesma, adquire um tom filosó-
de sentido, se reproduz entre a redistribuição pela instância dos pon- fico diferente.
tos sobre as séries e os "acontecimentos transcendentais" que são as Se "as singularidades sofrem um processo de auto-unificação"
singularidades: "meta-estáveis", certamente, e em ressonância contí- que permanece inexplicado, é por ele envolver "os pontos singulares
nua entre elas, mas mesmo assim constituindo entidades ideais, impes- correspondentesnum mesmoponto aleatório, e todas as emissões,
soais, eternas: convém pronunciar bem a palavra -- que Deleuze evi- todos os lances, num mesmo /andar"24 (125). Ou seja, no reverso da
ta: ele prefere dizer "personagens" -- anídades, ainda que anónimas teoria do sentido, na face em que ele se diz ainda aconfecfmenlo, e
e nâmades, do sentido. No mais, o que designa "singularidade", se-
não esse Um que, na superfície, se distingue de qualquer outro Um?
Como evitar, com isso, que a dinâmica do processo construtivo -- que, 24 Grifos meus

144 François Wahl O copo de dados do sentido 145


requerendo do termo uma nova análise25, uma doutrina do a/ealófio Recomposição que irá induzir, por sua vez, o transbordamento
como modo -- aberto -- de defermilzação. do que tem de singular cada intervenção do termo aleatório, ausente
O modo do acontecimento é o problemático" e "um problema a si, tomado num movimento perpétuo sem oriente. De um lado, os
tem sempre as soluções que ele merecesegundo as condições que o pontos sucessivos das séries que determinam o problema, de outro, o
determinam enquanto problema" l69). Rearticulada nesses termos, a ponto a/eafório 172, 1 161que determina a questão. Uma questão que,
constituição nelesse reinterpreta. A repartição dos pontos que corres- devido a sua própria definição, as soluções que ela recebe não podem
pondem às séries determina um proa/emcz, fixa suas cozzdições; as sin- nem satisfazer nem suprimir, uma questão que pode, sob esse aspec-
gularidades geram a/gum.zsde suas se/rações.Elas recobrem o proble- to, ficar finalmentesem resposta-- uma não-respostaem que reen-
ma mas ele subsistenelas, que "o relacionam às suas condições": o contramos o não-senso que suporta toda doação de sentido. Mas ama
sentido não é portanto outra coisa senão o expresso dessa relação. Resta questão que permanece sempre a mesma: "cada repartição é um acon-
que uma solução está suspensa a uma questão: seu "lugar" é aqui a tecimento; mas a instância paradoxal é o Acontecimento no qual todos
instância paradoxal, redistribuindo em seu percurso as condições do os acontecimentosse comunicam e se distribuem, o único aconteci-
problema como pontos sobre as séries. mento do qual todos os outros são os fragmentos e os retalhos" (72).
Cumpre observar que, nesse ponto da exposição, a instância se O único Acontecimento, agora, é o acaso.
torna claramentezÓ o agente -- o quase-agente -- do acontecimento: Não é outra coisa que o insólito capítulo IX) "do jogo ideal",
o sentido deve ser relacionado à fnferz/unçãodo elemento paradoxal jogo sem regras preexistentes, desenvolve, jogo no qual "o conjunto
qae Opera como quase-ca sa imanente (1 16). Reencontramos aí o tipo dos lancesafirma todo o acaso" ao mesmo tempo que o ramifica, no
de deslocamento que conhecemos. Mas com um novo alcance. Com qual os lances são "as formas qualitativas" distintas "de um mesmo e
efeito, poderíamos assinalar que, tudo considerado, o aleatório está único lançar, o?zfo/ogicamenfeuno" (75) que se desloca através de
em toda parte na produção do sentido, e em primeiro lugar no encon- todos eles, "insuflando" por toda a extensão o acaso. Sob a e na
tro das séries; que, se a instância é designadaagora como seu agente -- distribuição nâmade das soluções, a única e mesma questão. "0
específico, isso tem uma razão; parece ser preciso entender, então, que único /a/zoaré m caos, do qual cada lance é um fragmento"27. Pare-
a colocação em séries pertence a uma figura de algum modo passiva ce, de fato, que o caos não é mais o efeito da circulação do ponto alea-
do aleatório, enquanto a instância seria o a/eafório-agente, agente do tório, mas que o Lance é o princípio -- no sentido pré-socrático --
do caos.
qual o processo de auto-unificação seria apenas o efeito. Recomposi-
ção necessária para fazer aparecer a figura agente do Lançar. É claro que o tom mudou.
De um !ado, esse jogo, se pode ser apenas pensado, "é a realida-
de do próprio pensamento" em que todos os pensamentosnâmades

25Notemos que, se acontecimento e sentido designam da mesma maneira a


idealidade, e são com frequência tratados como sinónimos, mesmo assim eles de- 27Grifos meus, nas duascitações.A referênciaa Mallarmé nesseponto {81l,
signam -- como vimos aspectos diferentes; doravante eles irão adquirir, cada se esperada, não se desenvolve no plano em que tenderíamos a espera-la. Nenhu
um, suaautonomia. ma referência ao Z,a/zcede dados: convém lembrar que, em Niefzscbe e czP/oso#a
zó Deslizamento já entrevisto e paralelo ao do acontecimento: no início (55), 138),Deleuzecensurou a Mallarmé tomar como o êxito ainda que impossível
a instância"asseguravaa comunicação"entre as séries,era "espelho" e nada a do acaso sua abolição na necessidade,portanto perder a pura a/írmczçãodo acaso.
caracterizava melhor do que "faltar" a ela mesma;na estrutura, ela era a "casa Em contrapartida, visto que o acaso "se joga sobre dias mesas" (grifos meus), se
vazia" e o "ausente a seu lugar" cuja simples in-sistência lou como dizer?) é sufi- ramifica em estados de coisas e proposições para mencionar apenas essa duali-
cientepara provocar o reequilíbrio das séries-- mas entãoela já era dita "princí- dade , Deleuze lê o paradigma em todos os Dois de Mallarmé, e especialmente
pio de emissão" das singularidades lóól --; agora, é ela que "faz" ressoar as séries na composição do Liz/ro. Onde se vê que o único acaso que percorre o ízlonnão
e "comanda" as redistribuições, ela que "produz" o sentido l88). deve ser pensado fora das dualidades de que o czloHé a charneira.

146 François Wahl O copo de dados do sentido 147


se comunicam num "longo pensamento" que "afirma todo o acaso: tino28. Mas, ao menos do ponto de vista do pensamento, já que para
l7ó). Ao mesmo tempo, é o único pensamento que vale: "onde não há ele a linha em que circula o sentido faz charneira entre as coisas e sua
mais que vitórias para aqueles que souberam jogar, isto é, afirmar e expressão, e já que dessas duas uma não existe sem a outra (81), am-
ramificar o acaso", e não buscar controla-lo. Sabe-seque o pensamento bas dizendo o ser segundo a necessidade, parece possível afirmar que
de Deleuze é afirmativo; ele o resume aqui: a#rmação do acaso. E isso a figura originária e a verdade eterna do ser é aquela pela qual ele va-
é afirmar, ao mesmo tempo, a única coisa capaz de perturbar a dolo: gueia sob o sentido, e que é o /andar.
pensamento sobre ou na História. Da investigação fenomenológica, remontando até o sentido como
De um outro lado, metafísico, o jogo ideal é o próprio ízíon j81 l, idealidade originária, resultava tanto que ele difere completamenteda
sobre cuja linha ilimitada cada acontecimento instantâneo -- sempre essência, como que ele é o lugar de uma produção sem fim. Da inves-
redividido em passado-futuro -- é um tempo menor que o mínimo tigação metafísica que retomava o sentido em sua autoconstituição,
de tempo contínuo pensável, e -- sempre estendido aos ilimites da li- concluía-se que, encontro de um múltiplo que resulta, ele tem no en-
nha inteira, neles se comunicando com todos os outros -- um tempo tanto a insistência eterna de uma Forma. Da passagem da produção
mais longo que o máximo de tempo pensável. E é o ponto aleatório do sentido ao aleatório do acontecimento, duplicando a constituição
que jogador ideal -- traça com sua ocorrência obstinada a linha do sentido pela circulação do não-senso, resulta um retrato do funda-
rega.Tudo o que foi dito do alon culminaria então no seguinte: "Acon- mento: o universo do sentido está suspenso de toda segurança, exceto
tecimento para todos os acontecimentos", verdadeiro eternamente,ele a do Acaso do qual eledeclina o jogo.
desenha uma nova figura, linear, do eterno retorno -- retorno do
único acontecimento. Última -- e admirável análisedo sem-fundo sobre o qual o
Mas o passo mais decisivoé, terceiro lado, o movimento pelo qual sentido não se produz sem fundamento, e daquilo que, do real, se in-
Deleuze remonta de um conceito objetivo do problemático l70) ao ser- duz daí. Mas que, por causar o sentido pelo simplesjogo de um agen-
zzmdo lançar que nele constitui a questão. Até aqui, a investigação do te sem causas, carece daquilo a que não cessamos de fazer objeção: a
sentido havia se mantido na oposição entre o ser dos estados de coi- leitura organizada do sentido -- a menos que seja dado, através do
sas a que a proposição se refere, e o estatuto inteiramente à parte problema posto pela colocação em séries, um sentido /á organizado.
de "não-entes" -- dos exprimíveis, ou entre o processo complexo da Ora, no fim de contas, a contrapartida de tal análise é deixar-nos de-
colocação em séries e a entidade-singularidade: oposições tais que foi sarmados diante do sentido, quando sabemos bem que ele nos requer
preciso falar, a propósito delas, de idealismo fenomenológico e depois a ponto de não cessarmos de percorrê-lo, de nomeá-lo, e de recons-
metafísico. Eis que agora, ao desdobrar a produção das idealidades, a truí-lo, para nos reorientarmosnele. Ora, no fim de contas, não é so-
instância paradoxal, tendo passado progressivamente do papel de in- bre a singularidade de um lançar que nos cabe tomar a boa nova que
termediário necessário entre as séries ao de verdadeiro agente de sua Deleuze se alegrava de trazer: e que sempre implica inler-z/Irno dado
redistribuição, adquire uma dimensão propriamente ontológica: ela é do sentido para desdobra-lo, lê-lo e exigir que ele se organize. O úni-
instância, em última análise, do acaso, que leva consigo o caos. E en- co acaso é uma chave muito pouco qualificada para abrir tantas por-
tão não se deve mais dizer que o aios é a realidade do pensamento, tas, e cada uma tão complexa. E a contingênciado mundo não é em
mas que o acaso é o real dessa realidade (76). Então, é na superfície parte alguma obstáculo a que se reconheça nela, não as resultantes de
sem espessura, onde há somente "efeitos", "quase-causas", existen aleatórios locais dispersos, mas uma necessidade global, de concate-
tes "apenas", que o ser, como o aleatório, retorna.
Isso, evidentemente, só pode ser entendidose o próprio ser for
28É ela que, evidentemente, governa o belíssimo desenvolvimento ético de
tomado em dois sentidos, ou melhor, sob dois modos, segundo se tra-
XX e XXl: "tornar-se a quase-causa do que se produz em nós", "não ser indig-
te das coisas ou das idealidades, de crorzos ou do afon: lá -- e reapa- no do que nos acontece" j174), "o esplendor do o/z [a gente] é o do aconteci-
rece a dicotomia estóica -- o reinado da necessidade, aqui, o do des- mento" 1178).

148 François Wahl O copo de dados do sentido 149


nação. Toda produção ou acontecimento de sentido, em sua prática rência mais notória, no ponto em que Deleuze encontra uma prática
concreta, só pode ser descoberta do que era o sentido no sentido: tra- do sentido articulada sobre as wcswczs recusas que ele invoca -- nem
balho metódicodo que estavaenvolvido num estadoou numa figura essências, nem tradução hermenêutica, nem bramido das profundezas
dados do sentido, mesmo quando ela os excede. Uma intervenção que mas operando no dísc rso, ou seja, ao comparar o que é o corte, e
se apodera do encadeamento do sentido -- série de séries -- para fazê- seu lugar, e seu alcance, respectivamente em Deleuze, onde ele o no-
lo trabalhar com o duplo gesto ao qual ele se presta: cortar e /fiar. meia, e em Lacan. E, para tanto, ao confrontar o uso que faz Deleuze
Recortar e reatar sem trair: velhos gestos e, cumpre admitir, gestos do anelde Moebiuscom o que faz Lacar.29Moebius comparecea
platónicos. Lógica do senado toda vez que está em questão a aresta do sentido
que faz, das duas faces sem espessura que são o expresso da proposi-
Cortar, mas no sentido de des/luar, é afinal de contas o que fa- ção e o atributo do estado de coisas, uma só; explicitamente,a única
zem os paradoxos, dos quais Deleuze espera que libertem o sentido figura evocada é a da fronteira; mas que outra coisa entender a não
do bom senso. Porque "insistem na linguagem", eles forçam a suspen' ser Moebius quando se lê: "Mas será que devemos dizer duas z/fazes,
der a coxa e a interrogar "o inconscientedo pensamento" (92). Não já que é sempreao mesmo temPO, já que são as duas faces simultâ-
um desligamento qualquer, mas regulado por aquilo que os parado- neas de uma mesma superfície cujo interior c o exterior [...] estão em
xos dizem sobre o sentido argüindo como ele se diz. Eles iluminam a continuidade sempre reversível?". Se, em duas oportunidades, é feita
problemática do sentido ao remeterem o pensamento ao não-senso que referência ao "anel de Moebius" (31, 149), é precisamente para no-
é sua "paixão"; mas justamente: esse remeter nasce do encontro do mear seu corte que, "rompendo" a tira proposições-coisaspezpendl-
que é a princípio um acidente significativo da linguagem. É porque "ali c /armenfe, "destorcendo" sua bilateralidade, faz aparecer -- por
a linguagematinge sua mais alta potência" que ali se pode captar "a coloca-la à parte como o que foi o bordo único -- "a dimensão do
potência do inconsciente" (97-8). Deleuze não confia ao aleatório a sentido por ela mesma": o corte então desdobra, isola, mas não pro-
produção do paradoxo como chave da teoria do sentido. duz sentido. Lacan corta a tira do discurso não perpendicularmente,
Resta que desligar, se libera o sentido e dá acesso a um estado mas em lodo o seu comPffmenfo, e não para o retorno do anel de duas
neutro do sentido, não é cortar no sentido para produzir, segundoa faces que esse corte faz reaparecer, mas para ver aparecer, em nome
ordem de necessidade própria do sentido, um outro sentido: aquele que das propriedades topológicas dessecorte, a tira de Moebius como seu
a estrutura do sentido dado comanda; e só há estrutura se inscrita na resto: de modo que ele poderá escrever que é o próPrIo corte que atesta
articulação do enn/zcladodo sentido. Daquilo que gera o corte na es- o real de Moebius30.A razão disso é que se trata, para ele, não de
trutura significante, Deleuze não tirou partido, não Ihe abriu seu lu- "inferir" a existência,o lugar e a dimensão do sentido, mas dc infer-
gar: não respondem por isso nem a redução transcendental que exce- P alar o discurso, produzindo nele um sentido outro, inconsciente, a
tua o sentido, em sua esplêndida neutralidade, de toda determinação, bem dizer, produzir o sentido em seu real, como inconsciente. E que a
as da própria racionalidade (31 ), nem -- ao contrário -- a impossibi- interpretação, recusada toda hermenêutica, não pode ser outra coisa
lidade de estruturar o sentido fora das determinações da língua -- fora
do discurso que o sustenta. Lógica do se/zfidoganhou assim aquela
euforia do "tudo é possível,cabe a nós jogar", que a atravessa. Mas 29Que a referência seja tomada de empréstimo à &ol/zelacaniana, é pouco
assim perdeu o único tratamento fecundo, porque o único regrado da duvidoso. Aliás, Lógica do sentido situa certamenteo momento em que Deleuze
se julgou o menos afastado de Lacan. Mas deixaremos isso à história das idéias. É
produção de sentido: o corte no enunciado, que nele retém nãó mais
a constituição de uma metafísica que nos interessa, o que sua construção retém e
a insistência mas a ex-sisrência de um sentido outro, mesmo se esse o que ela deixa de fora.
devesse ser, em última instância, reconhecer que um desdobramento
30Tal é o sentido das operações topológicas desenvolvidas em "L'étourdit
ulterior do sentido sempre está por descobrir. Scf/lce14, pp. 26 ss. A continuação, com seu tratamentoda "asfera", diz respeito
O mecanpHO desse déficit se esclarece ao toma-lo em sua ocor- a uma outra questão, a do objeto.

150 François Wahl O copo de dados do sentido 151


senão o próprio corte que, ao mesmo tempo que separa do discurso em sua neutralidade; essemomento é o do desdobramento delas-- que
as duas faces, se encarrega -- de quê? -- justamente da tira de uma só é também sua queda dóxica -- na proposição. Ali, "os indivíduos são
face: de modo que o sentido não é nem o rosto nem o verso, mas a proposições analíticas infinitas: infinitas no que elas exprimem, mas
fira de À4oebíusprecisamente31:onde o não-sensoem última instân- finitas em sua expressãoclara, em sua zona de expressão corporal"
cia retorna, mas não mais o da singularidade, o que subjaz à articula- j143): em se tratando dos "pontos de choro e de alegria, de doença e
ção da enunciaçãosob o enunciado. Seria preciso ainda acrescentar de saúde, de esperança e de angústia; pontos ditos sensíveis" (67), em
que, na enunciação, é o lugar do su/elmo(e, portanto, do objeto) que suma, da experiência individual ou da existencial, dir-se-á que são
pela interpretação é designado no sentido, quando o próprio termo outros tantos condicionados cuja condição -- de convergência -- é o
sujeito estava excluído para Deleuze, em nome da impessoalidade de indivíduo no que ele tem de mais concreto. Quanto ao que faz senti-
singularidades tomadas aquém do discurso. Poderíamos retraduzir, o do de um sujeito, Deleuze tem um enunciado simétrico: "As pessoas
mais próximo de Deleuze:cortando de um só golpe em todo o seu são proposições sintéticas finitas: finitas em sua definição, mas inde-
comprimento o enunciado do sentido, fazer aparecer numa outra fi- finidas em sua aplicação"; por onde se deve entender que o sujeito,
gura -- numa outra organização -- de discurso aqz/eleúnico lançar como poder de identificar o divergente, condiciona todo enunciado da
que o suporta; ou melhor: por aquilo que, ao longo dela, "insiste na multiplicidade dos possíveis.Enunciado no qual as classes e as pro-
linguagem", evidenciar o lato aleatório mas não mais qualquer um priedades definem, por sua vez, "a condição de possibilidade da pro-
que equivale à marca do sujeito, com seu reverso de não-senso. posição lógica em geral" j143). Se acrescentarmos que cada manada
Encontro de duas figuras e duas combinatórias de termos finalmente individual "exprime o mundo" como compóssibilidade (134), com-
semelhantes, cujo tratamento em registros diferentes -- lá, as singu- possibilidade que o sujeito "transcende" para pensar o que liga, como
laridades, aqui, o discurso -- permite à segunda fundar uma práffcíz variantes, os incompossíveis, enfim, que as categorias são os predicados
do sentido, quando a primeira pretende apenas fornecer sua teoria. do "objeto qualquer [...] do qua] todos os mundos são as variáveis"
Resta que, ao proibir-se toda determinação da produção de sentido, j140), tem-se a cadeia completa pela qual o sentido comanda o senti-
a teoria confessa uma impotência onde o "tudo é possível", se trans- do. Se acrescentarmosque a individuação funda a designação, o ser
forma em "nada", do sentido, produz nele técnicado argumento. sujeito a manifestação,e a forma lógica a significação, compreende-
se em seguida que os níveis de implicação, fazendo círculo, implicam-
Ligar. O que é que faz a relação de um sentido a outro, e mesmo se por sua vez uns aos outros.
a comanda como necessária? Esse problema é o da z,'erdadequanto ao E preciso, todavia, insistir que essesdesdobramentos do sentido
sentido. Deleuze ora escreve que a singularidade neutra não é verda- não são gerados e só se oferecem/orczdo campo fra/zscenden/a/:no
deira ou falsa nem tampouco geral ou particular, ora que a idealida- campo das efetuações."Nenhuma dessas características pertenceàs
de é sempre verdade eterna -- o que não é contraditório, os pontos singularidades como tais" (134). A manada individual "deriva fora do
de vista sentido versus conceito e sentido em si sendo diferentes. O que campo" das singularidades pré-individuais, de que ela exprime apenas
é talvez contraditório é que uma singularidade seja verdadeira -- enun- aquelas na vizinhança das quais se constitui" (135); uizinba/zça de-
ciado para onde retorna o idealismo metafísico da teoria deleuzeana signando no campo das singularidades o que se transpõe -- impropria-
do sentido. Da verdade, só há relação. E ela só pode pertencer aos mente -- como predicados analíticos no registro da proposição. E os
sentidos se eles se ligam. É o que se caberia chamar Lógica dos sefzfidos. mundos incompossíveis são somente a expressão sintética, e tornada
Seria inexato escrever que Deleuze não leva em consideração as contraditória, dessa zo#czde índefermi/cação (138) que toda singulari-
implicações de sentido. Ele trata disso a título "da gênese estática ló- dade comporta enquanto relacionada a um problema do qual ela cons-
gica" (XVll). Mas então não são mais as singularidades consideradas titui uma das soluções, governada pelo aleatório de sua distribuição.
Segue-sedaí uma tomada de posição fundamental: a proposição
3i Cf. ;Radiophonie", Sci/lce 2/3, p. 70. não é o lugar autêntico da verdade. As noções de verdadeiro e de fal-

152 François Wahl O copo de dados do sentido 153


se devemser "transferidas das proposições ao proa/ema32que essas que deles resulta com necessidade? Em suma: o que faz de uma multi-
proposições supostamente resolveriam, e mudam inteiramente de sen- plicidade de sentidos zlm sentido, que se induz ou se deduz do enca-
tido nessa transferência" (145). Falso é um problema cujas condições deamento dos primeiros e que é a verdade do conjunto? Verdade: pro-
são indeterminadas ou sobredeterminadas. E a todo problema é pró- duzida quando, e somente quando, uma doação de sentidos (no plu-
prio autodeterminar-se -- preencher a falta e evitar o excesso de suas ral) produz sistema, de modo que elesse comandem mutuamente. Que
condições-- determinando com isso suas soluções. "E aí que o ver- de tal ordem de verdade -- mantida na iminência do sentido -- a
dadeiro se torna sentido" (14ól. De modo que todo o aparelho que experiência seja essencial ao sentido, e que uma teoria do sentido es-
seguimos em detalhe culmina nestes dois enunciadosequivalentes: "o tabeleça aí seu campo cardeal, deveria ser evidente.
verdadeiro e o fa]so qua]ificam [...] o problema" e "é a categoria do Ê tornar a dizer que não há verdade do sentido que não seja
sentido qae substitui a de verdade" tt4S}. dfsc; rsfua. Será isso, no entanto, perder a neutralidade do sentido,
Enunciado característico do método deleuzeano: a verdade não projetado no espaço da proposição? Certamente não. Deleuze escreve:
é qualquer, ela está relacionada às condições do problema e à ques- " Verde/ar indica uma singularidade-acontecimento na vizinhança da
tão colocada pela instância, da qual é uma solução. Mas o surgimen- qual a árvore se constitui" mas "ser z/ardeé o predicado analítico do
to do problema -- isto é, o encontro das séries--, este sim é aleató- sujeito constituído, a árvore". Ora, o que buscamos é algo muito di-
rio, e a instância representa o "ponto aleatório" que comanda a solu- ferente: a relação entre z,arde/ar e arbori/;car. Que eles façam sentido
ção. De modo que uma forma de racionalidade interna e o acaso últi- um pelo -- ou para o -- outro, define um modo de implicação interior
mo, global, são conciliados. ao plano de imanência. Que essa relação possa se ordenar num con-
Se apesar disso esse encadeamento de proposições genéticas não junto de outras que constituem uma "paisagem" e que essa paisagem
pode, como tampouco sua consequência, satisfazer, é, primeiro, por' -- será a prova de que é z/e7'dadelamenfe assim -- produza um sentido,
que a "gênese lógica" -- gênesedo lógico -- faz apenas recuar o pro' dedutível de todos os seus componentes, e ultrapassando-os, define o
blema: em virtude de qual /ógíca, a ela subjacente,a circulação alea- tipo de necessidade que pode reger uma cadeia de sentido33. "Maqui-
tória das séries se polariza sobre o indivíduo e seu mundo, o sujeito e
seus mundos, e o objeto qualquer? O sentido não poderia ser aleató-
rio e depois necessário; ele só é pensável contingente em sua necessi- 33Que a construção da dedução requer a articulação da Érczse,não é de modo
algum objeção; não é verdade que a frase só convenha à implicação de conceitos
dade. A seguir, é porque da vizinhança ou da zona de indeterminação
1241;o recurso -- e, se quiserem, o paradoxo fundador da língua está precisa-
à analítica não há, de maneira óbvia, transição possível, salvo se re- mente em que, se sua articulação categorial governa seu Áafzclo/zízmenfo,
disso não
cairmos nos mais ruinosos artifícios de uma dedução cujos resultados se segue de maneira alguma que ela seja incapaz de se modelar segundo o oó/efo
são pré-concebidos. Enfim, é porque o tratamento da verdade perma' especificadode seu tratamento. O que pode ser a frase do sentido é algo que se
nece -- mantido nos limites do problema -- local. Ora, não há muita entente melhor se a sintaxe se deixa descrever como o propõe J. C. Milner em
sua /nfrodwcfíon .à ne science da /a/zgage -- como um sistema de "posições" no
pertinência -- exceto no quadro de um intuicionismo perfeitamente
interior de "domínios" ligados por uma relação: uma vez que sua armação é geo-
infecundo -- em dizer que zzm sentido é "verdadeiro": "verdejar" ou
métrica e se basta com o sítio que os termos vêm ocupar. Nada implica que um
"sofrer" significam, isso é tudo, e basta. SÓ há verdade de um con/un- único tipo de termos possa ocupar essasposições e que só exista entre elas uma
to suficientementeconsistentepara que a dedução seja, em seu espa' única semântica da relação. A relação de posição dominial, do sujeito com o ver
ço, possível. A questão é, ou: como a decisão de sentido reúne os ele- bo e os predicados, será sempre a mesma; mas não o que a relação contém em
mentosque ela suscita para que ela própria se demonstreo elemento substância, e não, do mesmo modo, a semântica das posições. Seja como for, a frase
do sentido tem suas leis próprias, nós vimos por que, e Benveniste já havia assina
da necessidade recíproca deles? Ou: como este sentido e aquele senti-
lado IProb/êles de/ingwzsfzqwe
généra/e,11,p. 58), sobre o exemplodo pictórico,
do, igualmentedados, se encadeiampara produzir um novo sentido,
que seus termos são comandados -- não existem a não ser -- pelo sintagma, de
modo que ela faz círculo. Elaborar a teoria da dedução do sentido e a da forma-
s2 Grifos meus ção de sua frase são um mesmo e único requisito.

154 François Wahl O copo de dados do sentido 155


nar" o sentido muda aí de nível e se torna co?z#ecimepzzo
quando é Designação de real -- esta entre muitas outras -- que bem poderia
levado a se produzir e a se dizer argumentando-se desde o e no sentido. atravessar todo o discurso do sentidocomo verdade, pelo que envol-
Pode-se ainda precisar. Num primeiro nível, a verdade do discurso ve de impossível em deduzir o sentido em seus próprios constituintes.
é a de sua consistência... Quando Deleuze assinala no pintor Francis Mas aqui a impotênciado discurso não remetea um outro estadodo
Bacon o isolamento da figura sobre a pista, quando escreve que o uso sentido que, precedendo-o, o refuta; do discurso e do argumento, ela
dos tons bruscamente alterados sobre o mesmo corpo redobra o des- se revela como a última etapa na qual, longe de se negar, ele se cumpre.
membramento das formas para deixar a carne à mostra, quando tam-
bém lê em tais tracejadasa intervençãodo acaso que "extrai a figura Se Deleuze trata o sentido por um outro viés, excluindo que a
improvável do conjunto das possibilidades figurativas"34, ele home- verdade do sentido se arg mente, seria em favor do recurso e da li
nageia a obra de Bacon por dispor o enunciado consistente de um sen- berdade que um poder de combinação infinito sem requisitos últimos
tido da figura, no qual todos essestraços convergem e do qual se pode oferece?Para privilegiar, e fazer critério do verdadeiro, a intuição à
dizer que eleé induzido necessariamentedeles;Deleuze faz isso -- como custa do encadeamento? Para manter o aleatório como última condi-
nenhum outro comentador contemporâneo soube fazê-lo -- manten- ção e recurso ontológico do sentido? Tudo isso ao mesmo tempo, cer-
do-se no plano de iminência, ou seja, aqui, na materialidade da pin- tamente, mas o último argumento é, metafisicamente, determinante.
tura, tal como por si mesma, como ma fer o/Áacf, ela contém sentido; E ele que arruína propriamente o platonismo: o sentido não é a essên
e é preciso dizer ainda que é pela justeza com que ele soube cortar e cia se não há ordem do sentido. E Lógica do sezzfidoé, em última ins-
ligar que o sentido finalmente é, como irrefutável, pronunciado. Sua tância, a elaboração de uma filosofia do acaso.
leitura, aderindo ao texto, reconheceu que ele produz em verdade. Pensável porque existe também uma racionalidade das condições
Num segundo nível, mais fundador, a verdade que cabe ao dis- nas quais ele se atualiza: a singularidade é uma solução calculável --
curso produzir é a manifestação das aPorIas próprias ao sentido, desde ao menos teoricamente -- do problema ao qual ela responde, o pro-
que mantidas em sua constituição. Deleuze aponta em Bacon o encon- blema está inscrito na colocação em séries, e as séries são -- como uma
tro de uma "profundidade magra" (háptica), de uma claridade pura- página (150) brevemente o indica -- uma primeira organização "em
mente óptica, de uma interferência manual de sinais ("diagrama "I, de superfícies" do que não é senão "pulsação sem medida" dos corpos
uma espacialização pelas relações de tonalidade (colorismo)35; é por "tomados em sua profundeza indiferenciada". De modo que -- por
todas essas vias, simultaneamente, que é dado a ver o sentido Bacon; uma inversão -- é desde o campo transcendental, na neutralidade do
mas,'de uma dessas vias a outra, que a rigor se excluem, como foi que sentido, que a articulação se verifica, que ela desce e se distribui nas
uma unidade discursiva se instituiu? O material do sentido não cessa proposições e nos corpos.37 "0 senfjdo é um /oiro" (151), ou seja,
de ser aporético, o espaço-quadro, tal como é dado a perceber, conjuga aquilo cuja produção se junta de ponta a ponta com o Dois que ela
várias línguas, e o fato de consegui-lo não permite, ao fazê-lo, que ele subsume -- mas sempre se desembaraçando dele.
transponho uma série de esboços nos quais se apóia: onde, no material Resta que há somente uma única causa eficiente do sentido --
dü sentido -- na armação do sentido --, se revela a resistência do rea/.36 um único agente de subversão --, que é o acaso: o lançar dos dados.
Ou seja, um Um ele próprio subvertido, por ser substancialmentesem-
s4 Logig e de /a sensalíon, ParisS La Différence, 1981, p. 61. um. Por isso, Deleuze conjuga a asserção da cona/fz idade sem limite
dos sentidos no aío/z-- o conjunto dos lances afirma através de cada
3s Op. cif., cap XV.
um o acaso inteiro -- e a produção de sina /arfdades-- cada lance
3óO que vale para o quadro vale, obviamente,para a percepção "natural" ramifica o acaso --, sem que essa conjugação ofereça à investigação
e devolve à sua cegueira a análise psicológica das "associações": por um lado, nada
passa a fazer sentido daqui, do mundos senão por um texto; por outro, cada texto
só significa por seu cruzamento com outro texto: sem que o intertexto seja, de al- 37Inversão que é também aquela pela qual a quase-causa torna-se prtmetra
gum modo, resolução. da qual a "causa" material recebe a informação.

156 François 'Wahl O copo de dados do sentido 157


sobre o sentido qualquer procedimento de argumentação.38 Pode-se
DA VIDA COMO NOME DO SER
deve-se-- preferir reconhecer uma confí/zgêmclaglobal do sentido, Alain Badiou
que é a mesma da experiência que faz sentido -- na qual se lê o senti-
do --. e a busca de uma necessidade dos encadeamentos de sentido
tais que, do bojo dessa globalidade, eles se deixem apreender, produ-
zindo nela o sentido do movimentoem que elese constrói. O reverso
de uma ontologia do acaso é que ela não pode, apesar dos esforços
que fizer -- e sabe lá se Deleuze os fez --, senão ver-se bloqueada, Afirmamos que Deleuze está sempre em diagonal de suas próprias
passada a altura de sua afirmação, por ter-se proibido deixar-se guiar distinções. Como todo grande filósofo, ele só monta a maquinaria das
por aquilo que a ordem constituinte de seus objetos comporta como oposições categoriais para determinar o ponto que se subtrai a ela, a
processo produtivo da verdade. linha de fuga que absorve suas extremidades aparentes. Esse é o sentido
profundo de uma máxima metódica sobre a qual elenão deixa de insis-
tir: tomar as coisas Pe/o meio; não tentar achar primeiro uma das
Tradução de Paulo Nunes pontas, para depois ir até a outra. Não. Agarrar o meio, porque o
sentido do percurso não é fixado segundo um princípio de ordem, ou
de sucessão; ele é fixado pela metamorfose movente que atualiza uma
das extremidades na que é aparentemente a mais disjunta. É o que se
poderia chamar o método anticartesiano. Há uma filosofia não carte-
siana de Deleuze, assim como há um teatro não aristotélico de Brecht.
No ponto em que Descarnes fixa negativa e reflexivamente a pri-
meira certeza de uma cadeia de razões, Deleuze agarra afirmativa e
impessoalmente o meio de uma linha de fuga.
No ponto em que Descarnes salta à garantia exterior de suas re-
ferências pela descontinuidade do grande Outro, Deleuze intui em
velocidade infinita a continuidade das metamorfoses, a troca microe-
conómica do pequeno mesmo e de seu outro, ou a troca macroeconó-
mica do pequeno outro e do grande Mesmo.
Ê, em realidade, a diferencial contra a álgebra.
Mas essa oposição metódica é uma oposição ontológica. Trata-
se de substituir à ordem categorial e reflexiva das certezas a topologia
fina das inversões, das reversões e das comutações. É preciso que em
cada ponto o ser distribua aos entes o mesmo sentido.
Tal é a injunção da ontologia deleuziana: que o Ser não seja sub-
metido a nenhuma categoria, a nenhuma disposição fixa de sua parti-
lha imanente. O ser é unívoco na medida em que os entes jamais são
repartidos e classificados por analogias equívocas.
380 impasse surgido da dupla afirmação do contínuo e do singular é o
mesmo, aliás, com que Leibniz havia se deparado. Mas é a remissão de ambos ao
Perguntemos, por exemplo, o que é o ser sexuado, ou sexual.
aleatório que torna, por acréscimo, a argumentação impossível, argumentação que Impossível construir essa intuição se partimos da identificação do ho-
a "razão suficiente", em Leibniz, salvava. mem, ou do masculino; tampouco se partimos, mesmo como exceção

158 François Wahl Da vida como nome do ser 159


ou desfalque, do ser feminino, da suposta interioridade de uma fe- priedade, mas também apropriação de sua própria impropriedade. Isso
minilidade. O que é preciso é chegar ao ponto de inflexão onde se so- quer dizer que ele é o movimento de dois movimentos, ou melhor: o
brepõem, numa topologia bifurcante, o devir-mulher do homem e a movimento neutro do Todo tal como nele mesmo advém a partilha
territorialidade masculina da mulher. O homem não é pensável senão dos entes segundo o impartilhável, ou o indiscernível, do movimento
como atualização de sua virtualidadefeminina. Mais ainda: não é que os separa.
pensável senão no ponto em que ele é indesignável à masculinidade; Essa é a razão fundamental pela qual o ser merece o nome de z/Ida.
porque sua virtualidade feminina é, ela própria, linha de fuga de uma Colocamos aí uma verdadeira questão. Por que o ser, como univocidade
territorialidade masculina. De modo que pensamos o ser sexual quan- ou iminência, deve chamar-se "vida"? Por que o ser como potência é
do estamos na indiscernibilidadeentre um movimento de feminiza- 'poderosa z/idainorgânica que encerra o mundo"? O nome do ser é,
ção e uma suspensão de masculinização, que trocam suas energias no em filosofia, uma decisão crucial. Ele recapitula o pensamento. Mes-
indiscernível.
mo o nome "ser", se for escolhido como nome do ser, envolve uma
Dir-se-á também: o ser sexual, pensado segundo seu ser, segun- decisãoque não é de modo algum tautológica,como vemos em Hei-
do a ativação modal de seu ser, não é sexuada, não é sequer sexual, degger. E, evidentemente,todo nome do ser declina em seguida as
se entendermos por "sexual" um repertório de prioridades. Qualquer nomeações que ele induz. Assim, para Heidegger, com o movimento
que seja esse repertório, e mesmo se o complicarmos ao infinito, o ser giratório que envolve e desloca Sei/z, Da-seizz e, em última etapa, Erelg-
sexual não é intuível senão nesse meio indesignável e indiscernível de lzls[acontecimento].Ou, por minha própria conta, a série disjuntiva
todas as propriedades que as metamorfoseia umas nas outras. que passa do múltiplo ao vazio, do vazio ao infinito e, numa última
Que o ser não tenha nenhuma propriedade, é uma velha tese. Mas etapa, do infinito ao acontecimento.
a renovação dessa tese por Deleuze é que o ser é a neutralização aviva O que liga, em Deleuze, o pensamento do ser a seu nome nietz-
das propriedades pela virtualização inseparada de sua separação anual. scheano, a vida? Isto: que o ser deve se avaliar como potência, mas
Quc o ser seja a im-propriedade é também uma velha tese; é exa- como potência impessoal, ou neutra.
tamente o que Platão quer dizer quando afirma que o Bem, que é o Ele é potência, já que é rigorosamente coextensivo à atualização
nome do ser, não é uma idéia. Pois toda idéia é o ser-atual de uma do virtual e à virtualização do anual; ou, também, à impropriação do
propriedade, e o Bem não indica isso, sendo aquilo a partir do qual próprio e à propriação do impróprio. Ou ainda à disjunção separadora
toda propriedade, toda idéia, atinge a potência da partilha que ela dos entes múltiplos e à relação, que define o Todo. E nesse "e", nessa
mstitui.
conjunção, cumpre pensar o desvio movente como movimento do pró-
Mas Deleuze transforma o tema da impropriedade do ser. Pois prio ser, o qual não é nem virtualização, nem atualização, mas, repe-
Deleuze pensa que, em Platão, a impropriedade trans-ideal do Bem timos, o meio indiscernível dos dois, o movimento dos dois movimen-
permaneceainda uma propriedade, a qual é transcendentedo impró- tos, a eternidade móvel na qual se enlaçam dois tempos que divergem.
prio por excelência. Como pensar que o ser é impropriedade sem Ihe E essa é também a razão pela qual o ser é neutro. Pois sua po-
atribuir, com isso, uma espécie de sobre-propriedade transcendente?
tência é metamorfosear em eterno retorno do mesmo o que se apre-
Como evitar que o impróprio seja, no final, apenas o próprio do ser? senta como partilha categorial, é subtrair-se afirmativamente às dis-
O caminho que eletoma é o que elechama a univocidade, ou a ima- funções que ele efetua sem descanso. O ser é modalização por meio
nência. Trata-se da mesma coisa. Deleuze escreveu-me um dia, em letras
daquilo que parece estar distribuído. Assim, ele não se deixa pensar
maiúsculas: "imanência = univocidade". Mas o que isso significa? Sig- em nenhuma distribuição.
nifica que a impropriedade do ser não é outra coisa senão a detecção Esse é o sentido deleuziano profundo do enunciado de Nietzsche:
das propriedades por sua virtualização; e, inversamente, que as pro- para além do Bem e do Mal. O Bem e o Mal são aqui a projeção moral,
priedades do entenão são outra coisa a não ser o simulacro terminal ou genealógica,de qualquer partilha categorial. Poderia ser dito, e
de sua atualização. Assim, o ser é des-apropriação do próprio da pro- Deleuze diz: para além do Uno e do Múltiplo, para além da identida-

160 Alain Badiou Da vida como nome do ser 161


de e da diferença, para além do tempo e da eternidade. E, sobretudo: tlc uma idéia fundamental de Nietzsche. Nietzsche sublinha que a vida
para alémdo verdadeiroe do falso. Mas "para além" não significa, é produtora dos desvios de valor, ela é potência avaliadora e divergência
evidentemente. nem uma síntese, nem um terceiro termo transcendente. aviva. Mas, em si mesma, ela é inavaliável e neutra. O valor da vida,
"Para além" quer dizer: no meio; o ponto em que, no permutador em triz Nietzsche, não pode ser avaliado. O que significa igualmente: não
rede rizomática da virtualização e da atualização, é o ser que atava a h;í vida da vida; pois não é senão do ponto de uma vida que algum
essencial falsidade do verdadeiro e virtualiza a verdade do falso; o ser cure é avaliável. A univocidade é isto: não há ser do ser. E, se a pala-
é o que faz vir a secreta bondade, a infernal bondade do Mal, e o que vra "vida" convémcomo nome dessaunivocidade,é a partir da evi-
desdobra o malefício terrível do Bem. tlência de que não poderia haver vida da vida. Há somente o movi-
E será ainda pobre e inexato dizer que a neutralidade do Ser é mento dela, ele próprio pensável como intervalo dos movimentos da
não se identificar nem ao mal nem ao bem: nem ao falso nem ao ver- atualização e da virtualização. Por isso a potência do ser, que é o ser
dadeiro. Esse "nem... nem" não exprime o "e" da metamorfose.Pois mesmo, é neutra, impessoal, indesignável, indiscernível. E é a essas im-
o ser é o devir falso do verdadeiro, o devir verdadeiro do falso, e as- })ropriedades reunidas que convém a palavra "vida
sim ele é neutro por ser verdadeiro e falso. Faz pouco tempo que foi publicado meu pequenoensaio sobre
Mas o próprio "e" ainda é muito pobre, ainda é excessivamente l)eleuze, mas já começam a me censurar, como um paradoxo insus-
categorial. tentável e leviano, por ter dito que a filosofia de Deleuze implicava uma
Deleuze, como sabemos, odiava a lógica; a virada da filosofia para concepção ascética do pensamento; que ela sc opunha à espontanei-
a linguagem e a lógica, no início deste século, era para ele uma gran- dade; que ela exigia uma firme ruptura com as injunções do Eu.
de infelicidade. O poderoso mundo anglo-saxão de Melville e de White- Perguntemos então: que pensamento pode, na construção de suas
head, mortificado pela ruminação analítica, era para Deleuze um es- intuições, estar realmente à altura da neutralidade do ser? Como che-
petáculo consternador. gar ao ponto de troca e de desvio dos movimentos, ao ponto impes-
Desde Aristóteles, a lógica não tem sido senão a cifragem das soal, indesignável, indiscernível? Como dissolver as pretensões fecha-
categorias, o triunfo da propriedade contra a impropriedade. Seria das de nosso ser-anualno grande circuito integral do virtual?
preciso obter da univocidade deleuziana uma outra lógica; uma lógi- Deleuze é pelo menos tão consequentequanto Nietzsche. Ora,
ca na qual, em relação às distribuições categoriais, não podemos nos Nietzsche sabe que é preciso afirmar tudo, que o meio-dia dionisíaco
contentar com as conexões usuais. O "e", o "ou... ou", o "nem.- nem": não deixa nenhuma parcela da Terra fora de sua ativação pensante.
tudo isso extenua, dilapida a poderosa neutralidadedo ser. Seria pre- Para Nietzsche, todas as figuras da força, tão logo captadas no núcleo
ciso pensar uma sobreposição móvel do e, do ou e do nem, para que de potência que re-afirma sua vinda, são integráveis a Dionísio, que
se pudesse dizer: o ser é neutro, porque toda conjunção é uma dis- nelas se desmembra e nelas se recompõe naquele riso com que os deu-
função, porque toda negação é uma afirmação. ses morreram. Nietzsche sabe que a palavra "vida" nomeia a igual-
Esse conector de neutralidade, esse "e-ou-nem", Deleuze o no- dade integral do ser. E Deleuze afirma com ele que o ser é a igualdade
meou sí'nfesedlsjf /zfiz/a.E é preciso dizer: o ser, como potência neu- mesma. Como poderia a neutralidade não-categorial ser desigual?
tra, merece o nome de vida porque ele é, enquanto relação, o "e-ou- Nietzsche conclui no entanto pelo aristocratismo no pensamento, pela
nem", a síntese disjuntiva. Ou ainda, igualmente, a análise conjuntiva, sobreeminência dos fortes, o que pode parecer paradoxal. Contudo,
o "ou-e-nem". A vida, com efeito, é especificante e individuante, ela quem ou o que é forte? Ê forte aquele que afirma integralmente a igual-
separa e desliga; mas ela também incorpora, virtualiza e junta. A vida dade do ser, fraco aqueleque se mantém desigualmentenessa igual-
é o nome do ser-neutro segundo sua lógica divergente, segundo o "e- dade, aquele que mutila e abstrai a alegre neutralidade da vida. Mas,
ou-nem". Ela é a neutralidade criadora que se mantém no meio da assim concebida, a força dc modo nenhum é espontânea, a força é
síntese disjuntiva e da análise conjuntiva. concentração e esforço, despojamentode todas as categorias sob as
Eis por que é Deleuze quem efetua o mais profundo pensamento quais construímos o abrigo opaco de nossa atualidade, de nossa indi-

162 Alain Badiou Da vida como nome do ser 163


vidualidade, de nosso eu. "Sobriedade, sobriedade!", é dito em À4i/ no para o impessoal no pessoal, para o virtual no anual, para o nâma-
PI(zfõs. Sobriedade, porque a opulência espontânea, a derrisória con de no sedentário, para o eterno retorno no acaso, para a memória na
fiança naquilo que se é, nos categoriza numa região pobre e designada matéria; sinteticamente: o que faz signo para o aberto no fechado.
do ser. Sim, ascese, estoicismo, pois para pensar é preciso obter os meios Seria eu fiel a Deleuze se não manifestasse aqui minha reticên-
de ultrapassar nossos limites, de ir até o fim daquilo que podemos. cia, minha resistência? É que estou convencido de que nada faz signo,
Ascese, porque a vida nos constitui e nos julga "segundo uma hierar- c de que, ao manter o estigma, mesmo no máximo de sua diminuição,
quia que considera as coisas e os seres do ponto de vista da potência' de sua diferencial ínfima, Deleuze ainda concede demais a uma her-
Ser digno da vida inorgânica é também não se deter demais na satis- menêutica do visível.
fação dos órgãos. O nâmade é aquele que sabe não beber quando tem Em Nietzsche, é notório que a teoria do signo é circular. Assim
sede, continuar sob o sol quando desejaria dormir, deitar solitário no Zaratustra deve se identificar como seu próprio precursor, aquele que
chão desértico quando sonha com abraços e tapetes. O pensamento é, nas ruas, o galo cujo canto anuncia sua própria vinda. O que faz
nâmade se põe de acordo com a neutralidade da vida e com a metamor- signo para o super-homem é o próprio super-homem, ou o super-ho-
fose através do exercício resistente em que se abandona o que se é. [nem não é senão o signo no homem da vinda do super-homem; entre
O "torna-te quem és" de Nietzsche deve ser entendido: não és o acontecimento e seu anúncio, não se pode distinguir. Zaratustra é o
senão o que te tornas. Mas para chegar aí, onde a força impessoal do signo de Zaratustra. A loucura de Nietzsche é chegar nesse ponto de
Fora atava esse devir, cumpre tratar-se a si mesmo como síntese dis- indiscernibilidadeno qual, para partir em dois a história do mundo,
juntiva, como análise conjuntiva, separar-se e dissolver-se. Os que o segundo seu anúncio, é preciso romper-se a si mesmo, já que o único
fazem são os fortes. Assim se esclarece que a grande saúde se conquiste signo da "grande política", na qual o mundo se rompe, é essa pobre
na doença, que faz da saúde uma afirmação e uma metamorfose, não singularidade que, sob o nome de Nietzsche, vagando solitário e des-
um estado e uma satisfação; ou que o herói da fala flexível, aquele por conhecido pelas ruas de Turim, declara a iminência dela.
quem fala a vida indiscernível, seja o herói de Beckett, esgotado, cor- Mas Deleuze, como Nietzsche, deve simultaneamente marcar
tado em pedaços, cabeça a jorrar lágrimas plantada na serragem de nos entes atuais, fechados e disjuntos, sua co-pertença à grande tota-
um jarro. E recusariam dizer que o pensamento, o pensamento-vida, lidade virtual; e também anular essa marcação, dc tal modo que a neu-
é uma ascese?
tralidade do ser não se veja distribuída em categorias. E preciso que
Há no pensamento de Deleuze, em verdade, uma terrível dor, que o fechado contenha o signo para o aberto, produza nele mesmo sig-
é a condição antidialética da alegria, a diminuição de si para que o ser no para o aberto. Caso contrário, como explicar que pensamos?Co-
decline por nossa boca e nossas mãos seu único clamor. mo compreender que sejamos às vezes forçados a abrir nossa atuali-
O nome do ser é a vida somente para aqueleque não toma a vida dade? O signo do aberto, ou da totalidade, é que nenhum fechamen-
como um dom ou um tesouro. ou como uma sobrevivência. mas como
to é completo.Como o diz Deleuze, "o conjunto é sempremantido
um pensamento que retorna ao ponto em que toda categoria entra em aberto em alguma parte, como por um tênue fio que o liga ao resto
pane. Toda vida é nua. Toda vida é desnudamento, abandono das do universo". Esse fio, por mais tênue que seja, é um fio de Ariadne.
vestes, dos códigos e dos órgãos; não que nos dirijamos ao buraco negro Ele concentra o otimismo ontológico de Deleuze. Por mais disjuntos
niilista. Mas, ao contrário, para estarmos no ponto em que se trocam e fechados que possam ser os entes atuais, um pequeno estigma, ne-
atualização e virtualização; para sermos um criador, isto é, o que De- les, guia o pensamento para a vida total que os dispõe. Sem o que não
leuzechama um "autómato purificado", uma superfície cada vez mais teríamos, já que nada jamais pode absolutamente começar, nenhuma
porosa à modalização impessoaldo ser. chance de pensar o fechado segundo o aberto, ou a partir de sua
virtualidade.
Onde, então, está a dificuldade? Direi que ela está, como em re- Mas é preciso também que não haja signo, que nada por si mes-
lação a Nietzsche, na teoria do signo, do que-faz-signo. O que faz sig- mo faça signo. Pois, caso contrário, o ser não seria mais unívoco. Ha-

164 Alain Badiou Da vida como nome do ser 165


veria o sentidodo ser segundo o ser, ou enquanto ser, e o sentido do Por isso, instruindo-me junto a esse gênio, penseidever dizer que
ser segundo o signo do ser. É por isso que Deleuze, quando fala dos o múltiplo puro, forma genérica do ser, não acolhe jamais nele mes-
objetos, deve simultaneamente afirmar que eles têm uma parte real e mo o acontecimentocomo seu componentevirtual; mas que, ao con-
uma parte virtual; mas que essasduas partes são indiscerníveis. De trário, o acontecimento Ihe advém por uma suplementação rara e in-
modo que a parte virtual do objeto, que é precisamente sua abertura, calculável.
o que nele faz signo para a totalidade, não é verdadeiramente um sig- Foi preciso para isso sacrificar o Todo, sacrificar a vida, sacrifi-
no, porque não se pode discernir sua função de signo daquilo a pro- car o grande animal cósmico do qual Deleuze encanta a superfície. A
pósito do que ela faz signo. Em realidade, o ponto de abertura dos topologia geral do pensamento não é mais então, como ele declarava,
conjuntos fechados é menos ainda que um tênue fio. É um componente 'carnal ou vital". Ela é pega nas redescruzadas da matemática severa,
ao mesmo tempo preso por inteiro no fechamento, e no entanto intei- como dizia Lautréamont, e do poema estelar,como teria dito Mallarmé.
ramente aberto, sem que o pensamento possa separar esses dois fato- No fundo, dos dois grandes lançadores de dados do fim do sé-
res, e portanto sem que jamais possa isolar o signo. culo XIX, Nietzsche e Mallarmé, cada um escolheuo seu. Resta que
Assim como Nietzsche, Deleuze, para manter o postulado de nos é universalmente comum a grande paixão filosófica do jogo. Sim,
univocidade, que condiciona que o ser tenha por nome a vida, deve é exatamente isso, ele o disse de uma vez por todas: pensar é lançar os
afirmar que toda coisa é, num sentido obscuro, como que um signo dados.
dela mesma; não dela mesma enquanto ela mesma, mas dela mesma
enquanto simulacro provisório, ou modalidade precária, da potência
do Todo.
Tradução de Paulo Nunes
Mas se uma coisa é signo dela mesma, e sua dimlensão de signo é
indiscernível de seu ser, é indiferente dizer: tudo é vida, e dizer: tudo é
signo
O nome do ser será a Vida, se o pensarmos do lado da unívoca
potência do sentido. O nome do ser será Relação, se o pensarmos do
lado da equívoca distribuição universal dos signos.
Os próprios entes serão inteiramente disjuntos e sem relação, se
forem relacionados ao ser como vida inorgânica. Eles serão inteiramen-
te unidos e consonantes, se os relacionarmos ao ser como relação.
Creio que assim o equívoco é reinstalado no núcleo mesmo do
ser. Talvez a distribuição categorial, expulsa das grandes classificações
macroscópicas, como o sensíve] e o inte]igíve], retorne no microscó-
pico, quando a indiscernibilidade dos componentes do ente o orienta
equivocamente, seja para a síntesedisjuntiva da vida, seja para a aná-
lise conjuntiva da relação.
Pode-se dizer também: Deleuze monta uma aparelhagem feno-
menológica imensa, brilhante, ramificada, para poder escrever a equa-
ção ontológica: ser = acontecimento.Mas, no ponto mais ínfimo do
que esse aparelho captura, descobre-se, precisamente, que aquilo que
do ser é seu ser não é jamais acontecimento, de modo que o ser per-
manece equívoco.

166 Alain Badiou Da vida como nome do ser 167


A IMANÊNCIA ABSOLUTA
( ;iorgio Agamben

1. A WDA
Por uma coincidência singular, o último texto que Michel Fou-
cault e Gilles Deleuze publicaram antes de morrer tem como ponto
central, em ambos os casos, o conceito de vida. O significado desta
coincidênciatestamentáriaItanto num caso como no outro, trata-se,
com efeito, de algo da ordem de um testamentos vai além da solida-
riedade secreta entre dois amigos. Ele implica a enunciação de um le-
gado que concerne inequivocamente à filosofia que vem" *. Esta, se o
quiser acolher, deverá partir daquele conceito de vida em direção ao
qual o gesto extremo dos dois filósofos Indicava. ITal é, pelo menos,
n hipótese da qual parte a nossa investigação.)
O texto de Foucault, publicado na Rez/aede À4éfapbys/q e ef de
Mora/e de janeiro-março de 1985 Imãs entregue à revista no mês de
abri[ de ] 984, o ú]timo texto a que o autor pede dar o /mPrimafur,
mesmo retomando e modificando um escrito de 1978), traz o título
La vie: I'expérience et la science" i. Aquilo que caracteriza essas pá-
ginas, concebidas por Foucault como uma homenagem derradeira ao
seu mestre Canguilhem, é uma curiosa reviravolta de perspectiva jus-
tamenteem relação à ideia de vida. Ê como seFoucault, que em Nas-
cimento da c/z'Mica
começara inspirando-se no novo vitalismo de Bichas

* As obras de Deleuze encontram-se citadas com as seguintes siglas: D (G.


Deleuze e Clair Parnet, Dfa/ogues, Paras, Flammarion, 1977); CC (Criliq e ef c/f-
nique, Paras, Minuit, 1993); 1V ("L'immanence: une vie-.", Pbí/osopbie, 47, 199Sj;
LS ILogique da selas, Paria, 1973 1; S {Spi/zona ef /e proa/ême de /'expression, Pa-
uis,Minuit, 1968); Qpb IQz/'esf-cegzíe/a pbí/osopbíeP,Paria,M.inuit, 1991); F (Foa
caz//f,Paris, Minuit, 1986); DP ( "Desiderio e piacere", Fufaro anferíore, 1, 1995).
* * Aqui traduzo literalmentea expressão "che viene", que reaparecerá no pre-
sente texto, por ela ser característica do pensamento de Agamben, autor inclusive de
um livro intitulado Lzzcom nífà cbe z/íe/ze
IEinaudi, Turim 1990), cujo incipif reza:
L'espere che viene ê ]'essere qua]unque"]O ser que vem é o ser qua]quer](N. do T.).

l Agora está disponível em Michel Foucault, Dias ef écrits, editado por Fran-
çois Ewald e Daniel Denfert, Gallimard, Paria, 1994, pp. 763-77.

A imanência absoluta 169


e na sua definição de vida como "o conjunto das funções que resis- mesesantes da morte do filósofo. Diferentementedo ensaio de Fou-
tem à morte", terminasse agora vendo nela, antes, o âmbito próprio cault, é um texto breve, que tem o dKclus corrente de um apontamento
ao erro. "À la limite", ele escreve,"la vie... c'est ce qui est capable sumário. Já o título, apesar da aparência distraída e quase suspensa,
d'erreur... La vie aboutit aves I'homme à un vivant qui ne se trouve [em uma estrutura insólita, que certamente foi meditada com atenção.
jamais tour-à-faia à sa plane, à un vivant qui est voué à 'errer' et à 'se Os dois conceitos-chavenão estão unidos, com efeito, num sintagma
tromper'"2. Pode-se ver, nestedeslocamento, um testemunho ulterior nem ligados pela partícula e Itão característica dos títulos deleuzianosl,
daquela crise que, segundo Deleuze, Foucault atravessa depois de Vofz- mas cada um deles está seguido por um sinal de pontuação (antes os
fade de saber. Mas o que aqui está em jogo é certamente algo mais do dois pontos e depois as reticências). A escolha desta articulação abso-
que decepção e pessimismo, algo como uma nova experiência que lutamentenão sintática unemhipotática nem paratática, mas, por as-
obriga a reformular as relações entre verdade e sujeito e que, portan- sim dizer, atátical dos dois termos certamente não é casual.
to, diz respeito ao âmbito específico da busca de Foucault. Arrancan- Os elementosde uma filosofia da pontuação, além das breves
do o sujeito do terreno do Cogllo e da consciência, ela o arraiga no referências no ensaio de Adornos, inexistem quase completamente. Que
da vida, mas de uma vida que, enquanto essencialmenteerrar, vai além num texto filosófico não só os substantivos possam adquirir dignida-
das vivências e da intencionalidade da fenomenologia: "Est-ce que toute de terminológica, mas também os advérbios, já foi observado -- Pu-
la théorie du sujemne doit pas être reformulée, dês lors que la con- der e Lówith notaram a função particular dos advérbios g/efcbmob/ e
naissance, plutõt de s'ouvrir à la vérité du monde, s'enracine dans les scbozzrespectivamenteem Kant e em Heidegger. Menos conhecido é
:erreurs' de la vie?"3. O que pode ser um conhecimento que não tem o fato de os sinais de pontuação também (por exemplo, o hímenem ex-
mais como correlato a abertura ao mundo e à verdade. mas só a vida pressõescomo l?z-der-We/f-Selfz)poderem assumir uma função técni-
e o seu errar? E como pensar um sujeito só a partir do erro? Badiou ca -- o hímené, aliás, neste sentido, o mais dialético dos sinais de pon-
-- certamente um dos filósofos mais interessantes da geração que se- tuação, porque une só na medida em que distingue e vice-versa. O fato
gue imediatamente a de Foucault e Deleuze -- também pensa o sujei- de que também em Deleuze a pontuação tenha uma importância es-
to a partir do encontro contingente com uma verdade e deixa de lado tratégica foi sugerido por ele mesmo. Em Dlá/ocos, após ter desenvol-
o vivente como anima/ (&zespécie b mzznachamado a servir de suporte vido a sua teoria do significado particular da conjunção e, ele acres-
a esteencontro. Ê evidenteque não se trata, em Foucault, de uma sim- centa: "Dommage à cet égard que beaucoup d'écrivains suppriment
ples correção epistemológica, mas de um outro deslocamento da teo- la ponctuation, qui vaut en français pour autant de ef"). Se nos lem-
ria do conhecimento, desta vez para um terreno absolutamente inex- brarmos do caráter destrutivo (o e substitui o é e desarticula a onto-
plorado. E é justamenteesteterreno, que coincidecom a aberturados logia) e, juntamente, criador lo e "põe a língua nos eixos", introduz
trabalhos acerca da biopolítica, que poderia ter fornecido a Foucault nela agenclamenfo e balbucio) que aquela teoria atribui à partícula em
aquele "terceiro eixo, distinto tanto do saber como do poder", de que questão,isto implica que, no título, tanto a introdução dos dois pon-
ele, segundo Deleuze, tinha necessidade naquele momento, e que o texto tos entre "a imanência" e "uma vida" como as reticências servem uma
sobre Canguilhem define í/z /imunecomo uma outra maneira de abor- intenção precisa.
dar a noção de vida.
3. DOIS PONTOS:IMANAÇÃO
2. FILOSOFIA OA PON'rUAÇÃO Nos tratados sobre a pontuação, a função dos dois pontos é, em
O texto de Deleuze do qual doravante nos ocuparemos traz o geral, definida pela interseção de dois parâmetros: um valor de pausa
título: "L'immanence: une vie..." e apareceu na revista Pbi/osopbie dois amaisforte que o ponto e vírgula e menor que o ponto) e um valor

2 Jdenz, p. 774. 4T. W. Adorno, "lnterpunktion",A&zenfe,6, 1956


3 /dela, p. 776. 5D, p. 73.

170 Giorgio Agamben A imanência absoluta 171


semântico, que marca a relação indissolúvel entre dois sentidos, cada tios mots"7. Que na pontuação esteja presente um elemento a-sintéti-
um dos quais é em si mesmo parcialmente completo. Na série que vai co e, mais em geral, a-semântico, está implícito na conexão constante
do sinal = (identidade de sentido) ao hímen(a dialética da unidade e com o respiro que aparece desde os primeiros tratados e que age ne-
da separação), aos dois pontos cabe, assim, uma função intermediá- cessariamente como uma interrupção do sentido ("o ponto médio",
ria. Deleuze poderia ter escrito: "A iminência é uma vida", ou então, lê-sena Gramática de Dionísio Trácio, "indica onde se deve respirar").
A imanência e uma vida" Ino sentido em que o e substitui o é para Mas aqui as reticênciasnão servem tanto para suspendero sentido e
criar um agenciamentoj; ou ainda (segundo o princípio, realçado por fazer as palavras dançarem fora de toda hierarquia sintática quanto
Masmejan6, segundo o qual a vírgula pode utilmente substituir os dois l)ara transformar o próprio estatuto da palavra, do qual se tornam
pontos): "A imanência, uma vida". Se, em vez disso, usou os dois pon- inseparáveis. Se, como disse uma vez Deleuze, a terminologia é a poe-
tos, é porque evidentemente não mirava nem a uma simples identida- sia da filosofia, aqui o título de fermlnz/s[ecbnicus não cabe ao con-
de nem somente a uma conexão lógica. (Quando, no texto, Deleuze ceito "vida", nem ao sintagma "uma vida", mas unicamente ao não-
escreve"dir-se-á da pura imanênciaque ela é ama vida, e nada mais", sintagma "uma vida...". A incompletude -- que, segundo a tradição,
basta lembrar dos dois pontos do título para excluir que ele entenda caracteriza as reticências -- não remete aqui a um sentido ulterior omi-
aqui uma identidade.) Entre a imanência e uma vida, os dois pontos tido ou que falta (Claudel: "um ponto é tudo; três pontos não são
introduzem algo menos que uma identidade e algo mais que um age/z- judo"l, mas a uma indefinição de espécie particular, que leva até o
cíamenfo, ou melhor, um age/zciczme/zfo de espécie particular, algo extremo o significado infinitivo do artigo n/ze. "L'indéfini comme tel",
como um agendamento absoluto, que inclui também a "não-relação", escreveDeleuze "ne marque pas une indétermination empirique, mais
ou a relação que deriva da não-relação, de que ele fala no ensaio so- umedétermination d'immanence ou une détermination transcendentale.
bre Foucault, a propósito da relação com o Fora. Se se retomar a me- L'article indéfini n'est pas I'indétermination de la personne sans être
táfora de Adorno -- os dois pontos como o sinal verde no trânsito da la détermination du singulier"8
linguagem que se reencontra,nos tratados sobre a pontuação, na O termo técnico zunez/ie... exprime essa determinabilidade trans-
classificação dos dois pontos entre os sinais "que abrem", entre a ima- cendental da imanência como vida singular, sua natureza absolutamente
nência e uma vida há então uma espécie de passagem sem distância virtual e o seu definir-se somente através desta virtualidade ("Une vie
nem identificação, algo como uma passagem sem mudança espacial. ne contient que des virtuels. Elle estfaite de virtualités, événements, singu-
Neste sentido, os dois pontos representam o deslocamentoda ima- larités. Ce qu'on appellevirtuel n'est pas quelque chore qui manque de
nência em si mesma, a abertura a um outro que, porém, permanece réalité..."l9. Os pontos, suspendendo todo nexo sintático, mantêm, to-
absolutamente imanente. Isto é, aquele movimento que Deleuze, jo- davia, o termo em relação com a sua pura determinabilidade e, ao mesmo
gando com a emanação neoplatânica, chama de emanação. tempo, arrastando-o para estecampo virtual, excluem que o artigo " um
possa transcender jcomo no neoplatonismo) o ser que o segue.
4. TRÊS PONTOS: VIRTUALIDADE
Considerações análogas podem-se fazer para as reticências que 5. PARA ALÉM DO COGITO
fecham (e, juntamente, deixam aberto) o título; em nenhum outro como O título L'immazzence: une z,ie..., considerado como um bloco a-
neste caso, aliás, o valor do termo técnico atribuído a um sinal de sintagmático e, no entanto, indivisível, é algo como um diagrama que
pontuação é tão evidente. Deleuze já notara, a propósito de Céline, o condensa em si o pensamento derradeiro de Deleuze. Já a um simples
poder de deposição de toda ligação sintática que cabe às reticências: olhar, ele propõe o caráter fundamental da imanência deleuziana, isto
" Gufgno/'s Band trouve le but ultime, phrases exclamatives et mises
en suspension qui déposent toute syntaxe au profit d'une Fure dance 7 CC, P. 141

8 .IV, P. 6.
6 J. H. Masmejan, Traffé de /a poncrKalíon, Paria, J.-F. Bastien, 1781 ' Idem, ibid.

172 Giorgio Agamben A imanênciaabsoluta 173


é, o seu "não remeter a um objeto" e o seu "não pertencer a um sujei- te dele mais próximo do que qualquer outro representante da fenome-
to", em outras palavras, o seu ser imanente só a si mesmo e, todavia, nologiadeste século: Heidegger, o Heidegger patafísico do genial arti-
em movimento. E neste sentido que a imanência é evocada, no início go sobre Jarry, com o qual, através desta incomparável caricatura u-
do texto, com o nome de "campo transcendental" . Transcendental opõe- l)ucsca, ele pode, enfim, reconciliar-se13.Visto que o nasci/z, com seu
se aqui a transcendente, porque não implica uma consciência, mas se 1//-der-We/f-sem,não é decerto para ser entendido como a relação in-
define como aquilo que "escapa a qualquer transcendênciatanto do tlissolúvel entre um sujeito -- uma consciência -- e seu mundo, assim
sujeito quanto do objeto" 10. A gêneseda noção de campo transcendental co=o sua a/etbela, em cujo coração reinam obscuridade e /efbe,é o
está em LS, em referência ao ensaio de Sartre de 1 937 Á franscemdê/z- contrário de um objeto intencional ou de um mundo de idéias puras,
ela do Ego. Neste texto (que Deleuze julga "decisivo") Sartre fala de um abismo separa tais conceitos da intencionalidade husserliana de onde
"um campo transcendental impessoal, não tendo a forma de uma cons- l)rovêm e, deportando-os ao longo da linha que vai de Nietzsche a De-
ciência sintética ou de uma identidade subjetiva"]]. Forçando este con- lcuze, faz dele as primeiras figu ras do novo campo transcendental pós-
ceito, que Sartre não consegue liberar de todo do plano da consciên- consciencial e pós-subletivo, impessoal e não-individual, que o pensa-
cia, trata-se, para Deleuze, de alcançar uma zona pré-individual e ab- Enentode Deleuze deixa de herança ao "seu" século.
solutamente impessoal, além lou aquéml de toda idéia de consciência.
Não se entende o conceito deleuziano de campo transcendental, nem o 6. 0 PRINCÍPIO
DE iMANÊNCiA
-- a ele estreitamente relacionado -- de singularidade, se não se medir Uma genealogia da idéia de imanência em Deleuze deve partir dos
o passo sem retorno que eles dão para além da tradição sineidética ou capítulos 111e XI da grande monografia sobre Espinosa. Aqui, a ideia
consciencial da filosofia moderna. Não só é impossível, segundo De- de imanência deriva da afirmação espinosana da univocidade do ser
leuze, entender o transcendental como faz Kant, "na forma pessoal de contra a teseescolástica da a/za/agiae/zffs,segundo a qual o ser não se
um Eu", mas tampouco é possível daqui o alvo polêmico é a fenome- diz do mesmo modo de Deus e das criaturas finitas. "Chez Spinoza, au
nologia husserliana) "lui conserver la forme d'une consciente. même contraire", escreve Deleuze, "l'Être univoque est parfaitement déterminé
si I'on déficit cette consciente impersonnellc par des intentionnalités et dans son concept comme ce qui se dit en un seul et même sons de la
rétentions pures qui supposent encore des centres d'individuation. Le substance qui est en soi, et des modes qui sont en autre chose... C'est
tort de toutes les déterminations du transcendental comme conscience. donc I'idée de cause immanente qui, chez Spinoza, prend le relais de
c'est de concevoir le transcendental à I'image et à la ressemblance de ce I'univocité, libérant celle-ci de I'indifférence et de la neutralité oü la
qu'il est censéfonder" 12.O Cogifo, de Descartes a Husserl, tornara pos- maintenait la théorie d'une création divine. Et c'est dans í'immanence
sível tratar o transcendental como um campo de consciência. Mas, se, que I'univocité trouvera sa formule proprement spinoziste: Dieu est dit
em Kant, ele se apresenta como que uma consciência pura sem expe- ca use de toute chose az{ se/zs mime (eo senso) oü il est dit cause de soi" i4.
riência alguma, com Deleuze, ao contrário, o transcendental separa-se
nitidamente de toda idéia de consciência para se apresentar como uma i3 A história das relações entre Heidegger e Deleuze -- inclusive via Blanchot,
experiência sem consciência nem sujeito: um empirismo transcendental, intermediário de muito heideggerismo inconsciente na filosofia francesa contem-
como ele diz com uma fórmula propositalmente paradoxal. Liquidan- porânea -- está por fazer. É certo, entretanto, que o Heidegger de Deleuze é outra
do deste modo os valores da consciência, Deleuze prossegue o gesto de coisa em relação ao de Lévinas e Derrida.
um filósofo por elepouco amado, mas -- ao menos nisto -- certamen- i4S, p. 58. [Em Espinosa, ao contrário, o Ser unívoco é perfeitamentedeter
minado em seu conceito como o que se diz em um único e mesmo sentido da subs-
tância em-sie dos modos, que são outra coisa... É portanto a ideia decausa imanente
io idem, p. 4. que, em Espinosa, torna-se o relê da univocidade, liderando-a da indiferença e da
ii l,S, P. 132. neutralidade em que a teoria da criação divina a mantinha. E na imanência que a
univocidade encontrará sua fórmula plenamente espinosana: Deus é a causa de todas
i2 l,S, P. 143. as coisas, e 2 se sentido (eo sensz{),no qua] é dito ser causa de si.] (N. do E.)

174 Giorgio Agamben A imanência absoluta 175


O princípio de imanência aqui não é, assim, outra coisa senão para recortar no interior da história da filosofia a linha da imanência
uma generalização da antologia da univocidade, que exclui toda trans- jque culmina em Espinosa, definido, por isso, o príncipe dos filóso-
cendência do ser. Mas, através da idéia espinosana de uma causa ima- fosl e, em particular, para precisar a própria situação em relação à tra-
nente, em que o agente é para si mesmo o seu próprio paciente, o ser dição da fenomenologia do século XX. A partir de Husserl, com efei-
liberta-se do risco de inércia e de imobilidade que a absolutização da to, a imanência, tornada imanentea uma subjetividadetranscenden-
univocidade, tornando-o em todo ponto igual a si mesmo, deixava tal, faz surgir no seu próprio interior o sinal da transcendência: "C'est
pesar sobre ele. A causa imanente produz permanecendo em si mes- ce qui se passe avec Husserl et avec beaucoup de ses successeurs, qui
ma, exatamente como a causa emanativa dos neoplatânicos: todavia, découvrent dans I'Autre, ou dans la Chair, le travail de taupe du trans-
diferentementedesta, os efeitos que produz não saem dela. Com uma cendant dans í'immanence elle-même... Dans ce moment moderne, on
aguda figura etimológica, que desloca a origem do termo imanência ne se contente plus de penderI'immanence à un transcendant, on z/eut
de manere a manare (escorrer, jorrar, derivará, Deleuze devolveu à ima- pensei la transcendance à I'intérieur de I'immanent, et c'est de I'im-
nência mobilidade e vida: "Uma causa é imanente... quando o próprio manence q 'on affend ne rzíPfare... La parole judéo-chrétienne rem-
efeito é 'imanado' na causa em.vez de emanar dela"15. place le logos grec: on ne se contente plus d'attribuer I'immanence, on
A imanência flui, traz, por assim dizer, já sempre consigo os dois lui fait partout dégorger letranscendant" 19. (A alusão a Merleau-Ponty
pontos; mas este jorrar não sai de si, e sim desagua incessante e verti- e a Lévinas -- dois filósofos que Deleuze considera inclusive com ex-
ginosamente em si mesmo. Por isso Deleuze pode escrever aqui -- com tremo interesse -- é evidente.)
uma expressão que mostra já uma plena consciência da importância Mas a imanência não está ameaçada somente por essa ilusão da
que o conceito de imanência terá no seu pensamento: "a imanência é transcendência, que gostaria de obriga-la a sair de si e a vomitar o trans-
precisamente a vertigem filosófica"iÓ. cendente;ou, antes, essa ilusão é algo como uma ilusão necessária no
QPó dá, por assim dizer, a teoria dessavertigem. O conceito de sentido de Kant, que a própria imanência gera do seu interior e na qual
"imanação" foi levado às últimas consequências na idéia de que o plano todo filósofo cai quanto mais procura aderir intimamente ao plano de
da imanência -- assim como o campo transcendental, de que a figura imanência. A exigência irrenunciável do pensamento é também a ta-
completa não tem sujeito -- não é imanente a algo, mas somente a si refa mais difícil, em que o filósofo a cada instante corre o risco de per-
mesmo: "L'immanence ne I'est qu'à soi même, et dês lors prend tout, der-se. Sendo o "movimento do infinito"20, para além do qual não há
absorbe Tour-Un, et ne laisse rien subsister à quoi elle pourrait être nada, a imanência é desprovida de qualquer ponto fixo e de todo ho
immanente. En tout cas, chaque bois qu'on interprete I'immanence rizonte que poderiam permitir a orientação: "o movimento capturou
comme immanence à Quelque chose, on peut être sür que ce Quelque tudo" e o único oriente possível é a vertigemem que dentro e fora,
chore réintroduit le transcendant"17. O risco aqui é que o plano de imanência e transcendência incessantementese confundem. Que De-
imanência, que esgotaem si o ser e o pensamento,seja, ao invés dis- leuze se choque aqui contra algo como um ponto-limite está testemu-
so, referido a "algo que seria como um dativo"18. O exemplo 111do nhado pela passagem em que o plano de imanência se apresenta jun-
capítulo 2 apresenta toda a história da filosofia, de Platão a Husserl,
como a história desserisco. A absolutizaçãodo princípio de imanên-
cia ("a imanência só é a si mesma") serve estrategicamente a Deleuze i9 Idem, pp. 48-9. [É o que ocorre em Husserl e em muitos de seus sucessores,
que descobremno Outro, ou na Carne, o trabalho de toupeira do transcendente
na própria imanência-. Nesse momento moderno, não há mais contentamento em
i5 rdenz, p. 156. pensar a imanência em relação a um transcendente, deseja-se pensar a transcen-
i6 Idenz, p. 164. dência no interior do imanente e é da imanência que se espera uma ruptura... A
palavra judaico-cristã substitui o logos grego: não há contentamentoem Ihe atribuir
i7 Qpb, p. 47. iminência; faz-se com que ela vomite o transcendente por toda parte.] {N. do E.)
18 Idem. ibid.
ZOIdenr, p. 40.

176 Giorgio Agamben A imanência absoluta 177


temente com aquilo que deve ser pensado e com aquilo que não pode l)ond. Tout le monde s'affaire à le sauver, au point qu'au pausprofond
ser pensado: "Peut-être est-ce le geste suprême de la philosophie: non tlc son coma le vilain homme sent lui-même quelque chose de doux le
pas tant penser /e plan d'immanence, mais montrer qu'il est là, non l)énétrer. Mais à mesure qu'il revient à la vie, ses sauvers se font plus
pensé dans chaque plan. Le penser de cette maniêre-là, comme le dehors froids, et il retrouvetoute sa grossiêreté,sa méchanceté.Entre sa vie
et le dedans de la pensée, le dehors non extérieur ou le dedans non Lt sa more, il y a un moment qui n'est plus que celui d'une z/lejouant
intérieur '' ' '
llvcc sa mort. La vie de I'individu a fait place à une vie impersonelle,
ct pourtant singuliêre, qui dégage un pur événement libéré des accidents
7. UMA VIDA
tlc la vie intérieure et extérieure, c'est-à-dirá de la subjectivité et de
A indicação contida no "testamento" de Deleuze adquire, nesta I'objectivité de ce qui arrive. Homo fa?zfumauquel tour le monde com-
perspectiva, uma urgência particular. O gesto supremo do filósofo é l)atit et qui atteint à une sorte de béatitude"23
entregar a iminência ao diagrama "L'immancnce: une vie...", isto é, A referência é aqui ao episódio do quase afogamento de Rider-
pensar a imanência como "uma vida...". Mas o que significa que a hood em Our m f a/Ériend. Basta folhear essas páginas dickensianas
imanência absoluta agora se apresenta como vida? E em que sentido para se aperceberdo que pode ter atraído com tanta força a atenção
o diagrama exprime o pensamento extremo de Deleuze? clcDeleuze. Antes de tudo, Dickens distingue o indivíduo Riderhood
Ele começa precisando o que podíamos já esperar, isto é, que dizer c a "centelha de vida dentro dele", que parece curiosamente separá-
que a iminência é "uma vida..." não significa de modo algum atribuir vel do canalha em que mora: "No one has the least regard for the man:
a iminênciaà vida comoa um sujeito.Ao contrário,"uma vida...: with them all, he has been an object of avoidance, suspicion and aver-
designa precisamente o ser imanente a si mesmo da imanência, a ver- sion; but the spark of lidewithin him is curiously separable from himself
tigem filosófica que já nos é familiar: "On dirá de la pure immanence now, and they have a deep interest in it, probably because it is /láe, and
qu'elle est l//zeu/e, et rien d'autre. Elle n'est pas immanence à la vie, they are living and must die"24. O lugar dessavida separávelnão está
mais I'immanence qui n'est en rien est elle-mêmeune vie. Une vie est nem neste mundo nem no outro, mas entre os dois, numa espécie de
I'immanence de I'immanence, I'immanence absolue"22. Neste ponto, feliz intermundo que ela parece abandonar só a contragosto. "See! A
Deleuze esboça um escorço genealógico sucinto através de uma remis- roken of lide!An indubitable token of lide! The spark may smoulder
são a uma passagem de Fichte e a Maine de Biran. Logo em seguida, and go out, or it may glow and expand, but see!The tour rough fellows
como se se apercebesseda insuficiência das indicações fornecidas e seeing,shed tears. Neither Riderhood in this world, nor Riderhood in
temesseque o seu último conceito ficasse obscuro, ele recorre a um rhe other, could draw tears from them; but a striving human soul bet-
exemplo literário: "Nul mieux que Dickens n'a raconté ce qu'est u/ze
vie, en tenant compte de I'article indéfini comme índice du transcen-
23Idem, p. 5. INinguém melhor do que Dickens falou o que é umczvida,
dental. Une canaille, un mauvais sujemmépriséde tons est ramené mou-
assinalando o artigo indefinido como indício do transcendental. Um canalha, um
rant, et voilà que ceux qui le soignent manifestent une sorte d'em- sujeito ruim, desprezado por todos, é levado moribundo, e de repente aqueles que
pressement, de respect, d'amour pour le moindre signe de vie du mori- cuidam dele manifestam uma espécie de zelo, de respeito, de amor pelo menor si
nal de vida do moribundo. Todos se empenham em salva-lo; no coma mais pro
fundo, o malvado sente algo terno invadindo-o. Mas à medida que ele volta à vida
zi Idem, p. 59. [Talvez este seja o gesto supremo da filosofia: não tanto pensar seus salvadores setornam frios, e ele recupera toda sua grosseria e maldade. Entre
o plano de imanência, mas mostrar que ele está lá, não pensado, em cada plano. a vida e a morte há um momento em que não é mais o de zínzavida que brinca
Pensa-lodessamaneira, como o fora e o dentro do pensamento,o fora não exte- com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, portanto sin
rior ou o dentro não interior.] {N. do E.l guiar, que resgata um acontecimento puro, liberto dos acidentes da vida interior e
2z IV, p. 4.[Dir-se-á que a pura imanência é uma vida, e nada mais. Ela não exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. Homo f.znfz/m,
é imanência à vida, mas imanência que em nada é uma vida. Uma vida é a ima- do qual todos se compadecem, que atinge uma espécie de beatitude.] IN. do E.l
nência da imanência, a imanência absoluta.] (N. do E.) 24Charles Dickens, Ozlr m f a/ Arie/zd,Oxford, 1989, p. 443.

178 Giorgio Agamben A imanência absoluta 179


u,eenthe two can do it easily. He is strugglingto come back. Now he individual confronta a universal morte"30). Mas o exemplo sucessivo
is almost here, now he is far away again. Now he is struggling harder cinedeveria exibir a vida impessoal enquanto co-existe com a do indi-
to get back. And yet -- like us all, when we swoon -- like us all, every víduo, sem se confundir com ela, também se refere a um caso espe-
day of our life when we wake -- he is instinctively unwilling to be cial, situado, desta vez, em proximidade não da morte, mas do nasci-
restored to the consciousness of the existence, and would be left dor- tnento: " [...] ]es tour-petits enfants se ressemb]ent tous et n'ont guêre
mant, if he could"ZS. tl'individualité; mais ils ont des singularités, un sourire, un geste, une
Aquilo que torna tão interessante a "centelha de vida" é justa- Hrimace, événements qui ne sont pas des caracteres subjectifs. Les tout-
mente esse estado de suspensão inatribuível para o qual Dickens sc serve })ctits enfants sont traversés d'une vie immanente qui est pure puissance,
de maneira significativa do termo zzbeycznce, que provém do léxico ct même béatitude à travers les souffrances et les faiblesses"31
jurídico e que indica o estar em suspenso de normas ou direitos entre Dir-se-ia que a difícil tentativa de esclarecer através de " uma vida"
a vigência e a abrogação ("the spark it got life was deeply interesting a vertigemda iminência nos conduza, ao Invés disso, a uma zona ainda
while it was in abeyance, but now that it got establishcd in Mr. Rider- mais incerta, em que o recém-nascido e o moribundo nos apresentam
hood, there appears to be a general desire that circumstances had ad- o sinal enigmático da vida biológica nua e crua como tal.
mitted of its beeingdeveloped in anybody else, rather than the gentle-
man"26). Por isso Deleuze pode falar em uma "vida impessoal", si- 8. 0 ANIMAL DE DENTRO
tuada num limiar para além do bem e do mal, "porque apenas o su- Na história da filosofia ocidental, a identificação da vida nua e
jeito que a encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má"z/. E é crua tem uma hora tópica. Ê o momento em que, no De anima, Aris-
sob o signo desta vida impessoalque a referênciafugaz a Maine de tótelesisola, dentreos vários modos em que o termo "viver" se diz, o
Biran setorna plenamenteinteligível.Toda a obra de Maine de Biran, mais geral e separável. "É através do viver que o animal se distingue
pelo menos a partir de À4emóriczsobre a decomposição do pezzsamenfo, do inanimado. Viver diz-se, porém, em vários modos e, mesmo que
é percorrida pela tentativa infatigável de alcançar, aquém do eu e da subsista um só destes, diremos que algo vive: o pensamento, a sensa-
vontade e em estreito diálogo com as pesquisas da fisiologia do seu ção, o movimento e o repouso segundo o lugar, o movimento segun-
tempo, um "modo de existência, por assim dizer, impessoal"28, que do a nutrição, a destruição e o crescimento. Por isso todas as formas
ele chama de afectibilidade e define como uma simples capacidade de vegetais também parecem viver. É evidente, com efeito, que eles têm
orgânica de afecção sem personalidade que, como a estátua de Con- cm si um princípio e uma potênciatais que, através destes,crescem e
dillac, se torna todas as modificaçõese que constitui, todavia, "uma se destroem em direções opostas [...]. Este princípio pode ser separa-
maneira de existir positiva e completa em seu gênero"zv. do dos outros, mas os outros não podemsê-lo nos mortais. Isto é evi-
Nem mesmo a exemplificação de Dickens parece, no entanto, dente nas plantas: nelas não há outra potência da alma. É então atra-
satisfazer Deleuze. O fato é que a vida nua e crua que ela nos apre- vés deste princípio que o viver pertence aos viventes [..:]. Chamamos
senta parece emergir à luz só no momento de sua luta com a morte de potência nutritiva ([brepfféon) esta parte da alma de que os vege-
j"não se deveria conter uma vida no simples momento em que a vida tais participam" j413a, 20 ss.).
É importante observar que Aristóteles não define de modo algum
25Idem, pp. 444-5.
30 rl/ . (
zó Idem, pp. 446-7.

27IV, P. 5. si Idem, p. 6. [...todas as criancinhas pequenas se parecem, pois quase não


têm individualidade; entretanto elas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma
zs Maine de Biran, Àfémofre sar /a décomposifionde /a pefzsée,in(Ewz/res,
careta, acontecimentos que não são caracteres subjetivos. As criancinhas são per-
tomo 111,Paria,J. Vrin, 1988,p. 389. passadas por uma vida imanente que é pura potência, e até beatitude, nas dores e
zp idem, p. 370. fraquezas.] (N. do E.)

180 Giorgio Agamben A imanênciaabsoluta 18]


9. A VIDA INATRIBUÍVEI
o que é a vida: ele limita-se a decompâ-la graças ao isolamento da
função nutritiva, para, em seguida, rearticulá-la numa série de faculda- L)eslocando a imanência para a esfera da vida, Deleuze está ciente
des distintas e correlatas (nutrição, sensação, pensamentos. Vemos aqui tlc'estar penetrando num terreno perigoso. A vida de Riderhood mo-
operando aquele princípio do fundamento que constitui o dispositivo lil)findo ou a do recém-nascido parecem, de fato, confinar com a
por excelênciado pensamentode Aristóteles. Ele consisteem reformular /.ona obscura em que moram a vida nutritiva de Aristóteles e o "animal
toda pergunta sobre o "o que é?" como uma pergunta sobre "através tlc dcntro" de Bichat. Como Foucault, Deleuze apercebe-se perfeita-
do que (dlà [z0 algo pertence a algo?". O dlà fí, o "por quê?", lê-se em iilcnte de que o pensamento que toma como objeto a vida comparti-
Metafísica 1041a, l l, "deve-seprocurar deste modo: através do que lha desteobjeto com o poder e deve confrontar-se com suas estratégias.
algo pertencea algo?". Perguntar "por quê" um certo ser é dito vi- A cliagnosefoucaultiana sobre a transformação do poder em biopoder
vente significa procurar o fundamento através do qual o viver perten- hão deixa dúvidas a propósito: "Centre ce pouvoir encore nouveau
ce a este ser. É preciso, em outros termos, que entre os vários modos il u XIXe siêcle", conclui em Vonfczdede saber, "les forces qui résistent
em que se diz viver um se separe dos outros e vá a fundo, para tornar- t)nt prós appui sur cela même qu'il investit -- c'est-à-dure sur la vie et
se o princípio através do qual a vida pode ser atribuída a um certo ser. sur I'homme en tant qu'il est vivant ]...] la vie comme objet politique
Este fundo indiferenciado, cuja pressuposição permite dizer dos viventes n été en quelque sorte prise au mot et retournée contre le systême qui
particulares que eles vivem, é a vida nutritiva lou vegetativa, como será cntreprenait de la contrâler"32. E Deleuze: "A vida torna-se resistên-
chamada já a partir dos comentadores antigos, com base no estatuto cia ao poder quando o poder assume como objeto a vida. Neste caso
particular, obscuro e absolutamenteseparado do /aros, que as plan- rnmbém as duas operações pertencem a um mesmo horizonte"33. No
tas têm constantemente no pensamento de Aristóteles). conceito de resistência será preciso entender aqui, mais do que uma me
Na história da ciência ocidental, o isolamento desta vida nua e ráfora política, algo como um eco da definição de Bichat, segundo o qual
crua constitui um evento fundamental em todos os sentidos. Quando ;l vida é "o conjunto das funções que resistemà morte". É lícito, toda-
Bichat, nas suas célebres Imz/esfigações /!s/o/ógfcassobre a z/idae a via, perguntar-se se este conceito é realmente suficiente para vir a cabo
morte, distingue da "vida animal", definida pela relação com um mun- tla ambivalência do conflito biopolítico em curso, no qual a liberdade e
do exterior, uma "vida orgânica", que não é outra coisa senão uma a felicidade dos homens se jogam no mesmo terreno -- a vida nua e crua
"sucessão habitual de assimilação e excreção", é ainda a vida nutriti- que marca a submissão dos mesmos ao poder.
va de Aristótelesque traça o fundo obscuro sobre o qual se separa a Se uma clara definição do conceito de "vida" parece faltar tanto
vida dos animais superiores e o "animal vivente do lado de fora" pode cm Foucault como em Deleuze, muito mais urgente será então captar
opor-se ao "animal existente do lado de dentro". E quando, como a articulação que dele dá o "testamento". É decisivo aqui o fato de
mostrou Foucault, o Estado, a partir do século XVlll, começa a incluir sua função se revelar exatamente contrária à que a vida nutritiva de-
entre suas tarefas essenciais o cuidado da vida da população, e a polí- sempenhava no dispositivo aristotélico. Ao passo que esteagia como
tica se transforma, assim, em biopolítica, é antes de tudo através da o princípio que permitia atribuir a vida a um sujeito ("é através deste
progressiva generalização e redefinição do conceito de vida vegetativa princípio que o viver pertence aos viventes"l, "uma vida...", enquan-
ou orgânica (que coincide agora com o património biológico da nação) to figura da imanênciaabsoluta,é aquilo que não pode em caso al-
que ele realizará a sua nova vocação. E ainda hoje, nas discussões sobre
a definição ex /ege dos novos critérios de morte, é uma identificação
32M. Foucault,La z/o/onfé
desaz/olr,Paria,Gallimard,1976,pp. 190-1.
ulterior desta vida nua e crua -- desligada de toda atividade Cerebral IContra essepoder ainda novo no séculoXIX, as forças que resistemapoiaram-se
e de todo sujeito -- a decidir se um certo corpo pode ser considerado exatamente naquilo que o investiu isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo
vivo ou se deve ser abandonado à extrema peripécia do transplante. 1...1a vida como objeto político fera de alguma maneira tomada ao pé da letra e
voltada contra o sistemaque pretendiacontro]á-]a.] IN. do E.l
Mas o que separa então essa pura vida vegetativa da "centelha
de vida" em Riderhood e da "vida impessoal" de que fala Deleuze? 33 F, p. 98

182 Giorgio Agamben A imanência absoluta 183


gum ser atribuído a um sujeito, matriz de de-subjetivação infinita. Em
s'impuser, c'est parce que la contraction qui conserve est toujours en
outras palavras, o princípio de imanência funciona em Deleuze como décroché par rapport à I'action ou même au mouvement, et se présente
um princípio antitético à tesearistotélica sobre o fundamento. E mais:
comme une pure contemplation sans connaissance"35. Os dois exem-
enquanto a prestação específica do isolamento da vida nua e crua era plos que Deleuze dá dessa "contemplação sem conhecimento", força
operar uma divisão do vivente, que permitia distinguir nele uma plu-
que conserva, mas não age, são a sensação ("a sensação é contempla-
ralidade de funções e articular uma série de oposições (vida vegetati-
ção pura") e o hábito ("mesmo quando se é um rato, é por contem-
va/vida de relação; animal exterior/animal interior; planta/homem e, plação que se 'contrai' um hábito"3Ó). O importante é que esta con-
eventualmente, zoe/pios, vida nua e crua e vida politicamente qualifi-
templação sem conhecimento, que lembra, por um lado, a concepção
cada), "uma vida..." marca a impossibilidade radical de traçar hierar grega da teoria como não conhecer, mas tocar (fbijggei/z),serveaqui,
quias e separações. O plano de imanência funciona, em outros termos,
ao contrário, a definir a vida. Como imanênciaabsoluta, zunez/ie...é
como um princípio de indeterminaçãovirtual, em que o vegetale o pura contemplação aquém de todo sujeito e de todo objeto do conhe-
animal, o dentro e o fora e, até mesmo, o orgânico e o inorgânico se
cimento, pura potência que conserva sem agir. Tendo chegado ao li-
neutralizam e transitam de um para o outro: " U/zevie est partout, dana
mite deste novo conceito de vida contemplativa -- ou, antes, de con-
touts les momento que traverse tel ou tel sujet vivant et que mesurent
templação vivente -- não podemos então deixar sem indagação o outro
reis objets vécus: vie immanente emporrant les événementsou les sin-
caráter que, no último texto, define a vida. Em que sentido Deleuze
gularités qui ne font que s'actualiser dans les sujets et les objets. Cette pode afirmar que "uma vida..." é "potência, beatitude completas"37?
vie indéfinie n'a pas elle-même de moments, si proches soient-ils les
Para responder a esta pergunta antes deveremos, todavia, aprofundar
uns des autres, mais seulementdes entre-temps,des entre-momento.
ulteriormente a "vertigem" da imanência.
Elle ne survient ni ne succêde, mais présente I'immensité du temps vede
oü I'on voit I'événementencore à venir et déjà arrivé, dans I'absolu 10. PASEARSE
d'une conscience immédiate"34.
Nas obras de Espinosa que foram conservadas,há uma única
No final de QPb, numa passagem que é um dos vértices da últi- passagem em que ele se serve da língua materna dos judeus sefarditas,
ma filosofia de Deleuze, a vida como imediateza absoluta era defini-
o ladino. É uma passagem do Compend/z/m grammafíces /fnguae be-
da como "pura contemplação sem conhecimento". Deleuze distinguia braeae38,em que o filósofo está explicando o significado do verbo re-
então dois modos possíveis de entender o vitalismo, o primeiro como
flexivo ativo como expressão de uma causa imanente, isto é, de uma
ato sem essência e o segundo como potência sem ação: "Le vitalisme ação em que agentee paciente são uma única e mesma pessoa. Para
a toujours eu deux interprétations possibles: celle d'une Idée qui agit, esclarecer o significado desta forma verbal (que em hebraico se forma
mais qui n'est pas, qui agit donc uniquementdu point de vue d'une acrescentandoum prefixo não à forma normal, mas à intensiva,que
connaissance cérébrale extérieure (de Kant à Claude Bernard); ou celle
d'une force qui est, mais qui n'ágil pas, donc qui est un pur Sentir in-
35QPb, p. 201. [0 vita]ismo sempreteve duas interpretaçõespossíveis: a
terne lde Leibniz à Ruyer). Si la secondeinterprétation nous semble
de uma Idéia que age, mas que não é, que age, portanto, somente do ponto de vis-
ta de um conhecimento cerebral exterior Ide Kant a Claude Bernarda; ou de uma
34IV, p. 5. [Uma vida está em todos os lugares, em todos os momentos que força que é, mas não age, que é portanto um puro Sentir interno (de Leibniz a
passam por esse ou aquele sujeito vivo, e que medem tais objetos vividos: vida Ruyer). Se a segundainterpretaçãoparecese impor é porque a conotação que
imanente que traz os acontecimentos ou as singularidades que tão-somente se atua- conserva sempre é desligadaem relação à ação ou ao próprio movimento, e se
lizam nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem propriamente mo- apresentacomo pura contemplação,sem conhecimento.](N. do E.)
mentos, por mais próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, 3' Idem, ibid.
entre-movimentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do
tempo vazio em que se vê o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absolu 37IV, P. 4
to de uma consciênciaimediata.] (N. do E.) 38Espinosa, Opera, Heidelberg, Gebhardt, 1925, vol. 111,p. 361

184 Giorgio Agamben A imanência absoluta 185


\õc's"constituir a si visitante", "mostrar a si visitante", nas quais a
já tem de per sí um significado transitivo), o primeiro equivalente la- l)otência coincide com o ato e a inoperosidade com a obra: a vertigem
tino que Espinosa dá, se z/lsifaf-e,
é manifestamenteinsuficiente;mas tla iminência é que ela descreve o movimento infinito da autocons-
ele logo o especifica, assim, com a singular expressão se ufslfanfem tirliição e auto-apresentação do ser: o ser como pasearse.
coasüfuere, "constituir a si visitante". Seguemoutros dois exemplos, Não é um acaso que os estóicos se sirvam justamente da imagem
cujos equivalentes latinos (se síslere, se zmb Jarioni darei pare(lem a tlo passeio para mostrar que os modos e os eventos são imanentes à
Espinosa tão insatisfatórios que ele é obrigado a recorrer à língua slll)stância(Cleante e Crisipo se perguntam: quem passeia, o corpo
materna de sua gente. "Passear" diz-se em ladino listo é, no espanhol litovido pela parte hegemónica da alma ou a própria parte hegemâni-
arcaico que os sefarditas falavam no momento de sua expulsão da t;i?)40. Como Epíteto dirá mais tarde com uma invenção extraordi-
dir-se-ia,
Espanha) pascal'se ("passear a si"; no esp'nhol moderno ltiiria: os modos de ser "fazem ginástica" (gymnasai, em que também
antes, paseczrou dczrl ?zpasmo).Como equivalente de uma causa ima- ú })reciso ouvir etimologicamente o adjetivo gym/zos, "nu") do ser.
nente, isto é, de uma ação referida ao mesmo agente, o termo ladino é
rticularmentefeliz. Ele apresenta,com.efeito, uma ação em que 11. BEAUTUDK
agente e paciente entraram num limiar de absoluta indistinção: o pas' As anotações sobre Foucault publicadas por F. Ewald com o tí-
seio como "passear a si ru[o Desiderio e piacere [])esejo e prazer] contêm, nessa perspectiva,
No capítulo Xll, Espinosa expõe o mesmo problema a propósi- lllna definição importante. A vida, diz Deleuze, não é de modo algum
to do significado da forma correspondente do nome infinitivo (o infi- Etatureza:ela é, antes, "o campo de imanência variável do desejo"4i
nitivo em hebraico declina-se como um nome): "Porque frequentemente
I'clo que sabemos da imanência deleuziana, isto significa que o termo
acontece", escreve ele, "que o agente e o paciente sejam uma mesma 'vida" designa aqui nada mais nada menos do que a imanência do
e idêntica pessoa, foi necessário para os judeus formar uma nova e Llcsejoa si mesmo. Que o desejo não implica, para Deleuze, nem falta
sétima especie de infinitivo, com a qual eles exprimissem a ação referida liam alteridade, nem é preciso dizer: mas como pensar um desejo que,
juntamente ao agente e ao paciente, isto é, que tivesse Juntamente a como tal, permaneça imanente a si mesmo (ou -- o que dá na mesma
forma do ativo e do passivo [...]. Foi necessário então Inventar uma -- como pensar a imanência absoluta na forma do desejo)? Nos ter-
outra espéciede infinitvio, que exprimisse a ação referida ao agenteco- mos do Compend/ m espinosano:como pensarum movimentodo de-
mo causa imanente [...], a qual, como dissemos, significa 'visitar a si sclo que não saia de si -- isto é, somentecomo causa imanente, como
mesmo', ou seja, 'constituir a si visitante' e, enfim, 'mostmr a si -lisi- /;'zsearse--, como constituir a si desejante do desejo?
[antc' (constitaere se t.'isitantem, ueldebique praebere se uisitantem\" " A teoria espinosana do co/zafuscomo desejo de perseverar no
A causa imanente, em outros termos, chama em questão uma
l)róprio ser, sobre cuja importância Deleuze insiste várias vezes, con-
constelação semântica que o filósofo-gramático procura alcançar,.não tém uma possível resposta a tais perguntas. Sejam quais forem as fon-
sem dificuldade, através de uma pluralidade de exemplos ("constituir rcs antigas e menos antigas da fórmula espinosana (Wolfson enumera
a si visitante", "mostrar a si visitante", pasearse) e cuja.importância dez, dos estóicosa Dante), de qualquer forma, é certo que, em sua
para a compreensãodo problema da imanência não é de se subesti- cntmciação paradoxal, ela exprime perfeitamente a idéia de um mo-
mar. O pasearse é uma ação em que não somente é impossível distin- vimento imanente, de um esforço que permanece obstinadamente em
guir o agente do paciente (quem passeia o quê?) -- e na qual, portan' si mesmo. Todo ser não só persevera no próprio ser (z,is fnerf/ae), mas
to, as categorias gramaticais de ativo e passivo, sujeito e objeto, tran- dose/aperseverar nele (z,is immanenflae). Isto é, o movimento do con.z-
sitivo e intransitivo perdem seu significado --, mas uma ação em que
também meio e fim, potência e ato, faculdade e exercício entram numa 40Cf. Vector Goldschmidt, Le syslême sfoit;ien el /'idée de Temos, Paris, J
zona de absoluta indeterminação. Por isso Espinosa utiliza as expres' Vrin, 1969, pp. 22-3. Deleuze cita esta passagem em l.S, p. 198.
4i DP, p. 7.
39Idem, p. 342.

A imanênciaabsoluta 187
186 Giorgio Agamben
[us coincide com o da causa imanente, em que agente e paciente se lc })lus usuel, ne convient pas à tour les exemples et n'est elle-même
indeterminam. E como o cozzafus se identifica com a essência da coi- tltl'une acception d'un bensplus large et plus précis à la bois.Pour rendre
sa, desejar perseverar no próprio ser significa desejar o próprio dese- compte de I'ensemble des liaisons sémantiques de [repbo, on dois le
jo, constituir a si desejante.Ou seja: no con.zfws,dose/oe ser coinci- tléfinir: 'favoriser jpar des soins appropriés) le développementde ce
dem, sem resíduos. flui est soumis à la croissance'. C'est ici que s'insere un développement
Nos Coglfafózmefízp&ysica,Espinosa define o co#czfHScomo vida pnrticulier et 'technique', qui est justement le sens de 'cailler'. L'ex-
l"a vida é a força pela qual uma coisa persevera no próprio ser" ) . Quando prcssion grecque est frepbein ga/a loa., xl11, 410), qui doit maintenant
Deleuze escreve que a vida é o campo de imanência variável do desejo, s'interpréter à la lettre comme 'favoriser la croissance naturelle du lait.
ele dá, portanto, uma definição rigorosamenteespinosana. Mas em que lc laisser atteindre I'état auquel il tend'"43. Deixar que um ser alcance
medida a vida, definida assim em termos de conafus e desejo, se distin- o estado a que tende, deixar-se ser: se é este o significado original de
gue da potência nutritiva de que fala Aristóteles e, em geral, da vida frepbo, então a potência que constitui a vida em sentido primordial
vegetativa da tradição médica? Ê singular que já Aristóteles, no De lo nutrir a si) coincide com o desejo de conservar o próprio ser que
anima, no momento de definir as funçõespróprias da alma nutritiva tlcfine a potência da vida como imanência absoluta em Espinosa e em
l)eleuze.
(fbrepll&epsyÊbe), se sirva justamentede uma expressãoque lembra
muito a determinação espinosana do conafus segacanse t,amai. "Ela (a Entende-se, assim, como Deleuze possa escrever de uma vida que
fropbe)", escreve Aristóte]es, "conserva a essência ]sozei fefz ous]czm) [...],
cla é "potência, beatitude completas". A vida é "feita de virtualida-
esteprincípio da alma é uma potência capaz de conservar tal qual é aquele des"44, é pura potência que coincide espinosanamente com o ser, e a
que a possui(dynam]s esf]/zbola sozeifz to deÊbomemon safe/z be]i] potência, enquanto "não carece de nada"45, enquanto é o constituir
foio&ffozz)" (416b, 1 2). O caráter mais íntimo da vida nutritiva não é ;l si desejante do desejo, é imediatamente beata. Todo nutrir-se, todo
então simplesmente o crescimento, mas, antes de tudo, a autoconser- deixar ser é beato, goza de si.
vação. Isto significa que, enquanto a tradição médico-filosófica procu- Em Espinosa, a idéia de beatitude coincide com a experiência de
ra distinguir com cuidado as várias potências da alma e regula a vida si como causa imanente, que ele chama de zcqz/descefza in se Ipso e
humana baseada no cânone alto da vida dianoética, Deleuze(como seu clcfinejustamente como laefifia, concomllanfe faca s i f'zmquam caw-
modelo espinosano) recua o seu paradigma para o esquema mais bai- síz46.Wolfson observou que em Espinosa o uso do termo .zcqulescenfia
xo da vida nutritiva. Mesmo recusando nitidamente a função que a vida referido a menuou a a/zlm s pode refletir o uso, em Uriel da Costa,
nutritiva tem em Aristóteles como fundamento de uma atribuição de
subjetividade, Deleuze não quer, contudo, abandonar o terreno da vida
43E. Benveniste,ProbZà zesde/]nglf]s]]q e généríz]e,vo1.] 3, Paria, Gallimard,
e o identifica com o plano de imanência4z. 1966, pp. 292-3.[Na verdade a tradução de frepbo por "nutrir", no uso, com efeito,
Mas o que significa então, neste sentido, "nutrir-se"? Num en- maiscomum, não convém a todos os exemplose é em si apenasuma acepçãode
saio importante, Benvenisteprocurou reconduzir a uma unidade os urn sentido ao mesmo tempo mais amplo e preciso. Para dar conta do conjunto de
vários significados, não sempre facilmente conciliáveis entre si, do verbo EclaÇÕessemânticas de Irepbo, devemos defini-lo: "favorecer apor meio de cuida
grego frepbeiz (nutrir, fazer crescer, coagular). " En réalité", escreve tios apropriados) o desenvolvimento daquilo que está submetido ao crescimento
Aqui se insere um desenvolvimento particular e "técnico", que é justamente o sen
ele, "la traduction de Irepbo par 'nourrir', dais I'emploi qui est en effet rido de "coagular". A expressão grega é frepbeflzga/a (Od., Xl11,410), que agora
neve ser interpretada, literalmente, como "favorecer o crescimento natural do lei-
te, deixa-loatingir o estado natural para o qual tende".] {N. do E.)
42Quando Aristóteles define o boas através de sua capacidade de pensar a
si mesmo, é importante lembrar que um paradigma auto-referencial já aparecera, 44IV, P. 6
como vimos, a propósito da vida nutritiva e do seu poder de autoconservação:o 45Idem, p. 7
pensar a si do pensamento tem, num certo sentido, o seu arquétipo no conservar a
si mesma da vida nutritiva. 4óEfbjca, 111,LI, ss.

A imanência absoluta 189


188 Giorgio Agamben
de ã/mcze espáifo com desccznsadalem português no textol47. Mas bem \i ) ;\travésdesta complicação ulterior eles poderão alcançar aquilo que
mais decisivo é o fato de a expressão acq lescenfza/n se ipso ser uma l)tl\cavam: o primeiro, uma outra maneira de abordar a noção de vida;
invenção espinosana, que não está registrada em léxico latino nenhum. 1) sc'fundo, uma vida que não consista somente no seu confronto com
Espinosa devia ter em mente um conceito correspondente ao do ver- .i morte e uma imanência que não volte a produzir transcendência. Será
bo reflexivo hebraico como expressão da causa imanente, mas se cho- lltt'liso conseguir ver no princípio que permite a atribuição de uma sub-
cava contra a dificuldade de, em latim, tanto o verbo qufescocomo irtividade a própria matriz da de-subjetivação, e no próprio paradig-
seu composto acqufesco serem intransitivos e não admitirem, portan- rili\de uma possível beatitude o elemento que marca a submissão ao
to, uma forma do tipo qzzíescere(ou acq iescerel se, como o ladino lho})oder .
Ihe sugerira, ao contrário, a forma pasearse, em que agente e paciente Seé tal a riqueza e, ao mesmotempo, a ambigüidadecontida no
se identificam, e Ihe oferecia agora o reflexivo descansarse. Por isso tlingrama testamentário "L'immanence: une vie...", a assunção como
ele forma o deverbal acqwíescenfiae o constrói com o pronome refle- lilf fa filosófica implicará retrospectivamentea reconstrução de um
xivo se precedido pela preposição l/z. O sintagma acquiescenfza fn se t'\cinemagenealógico que distinga claramente na filosofia moderna
ipso, que denomina a beatitudemais alta que o homem pode alcan- Llucé, num sentido novo, em grande parte uma filosofia da vida --
çar, é um hebraísmo lou um ladinismol, formado para exprimir o ápice llíila linha da imanência daquela da transcendência, segundo uma ár-
do movimento da causa imanente4õ. vore aproximadamente do seguinte tipo:
É exatamente nestesentido que Deleuze usa o termo "beatitude'
como caráter essencialde "uma vida...": beózfífdo é o movimento da TRANSCENDÊNCIA IMANÊNCIA
imanência absoluta.
Kant Espinosa
12
Fica esclarecido agora em que sentido pudemos afirmar, no iní- Husserl Nietzsche
cio, que o conceito "vida", como derradeiro legado testamentáriodo
pensamento tanto de Foucault como de Deleuze, deva constituir o tema Heidegger
da filosofia que vem. Tratar-se-á, antes de tudo, de tentar ler junta-
mente as últimas reflexões -- aparentemente tão sombrias -- de Fou- Lévinas, Derrida Foucault, Deleuze
cault sobre o biopoder e sobre os processosde subjetivação e as de
Deleuze -- aparentemente tão serenas -- sobre "uma vida..." como Será preciso, ademais, empenhar-se numa busca genealógicaso-
imanência absoluta e beatitude. Ler juntamente não significa simpli- l)re o termo vida, em relação à qual podemosjá anteciparque ela
ficar ou achatar; ao contrário, tal conjugação implicará que cada tex- mostrará que não se trata de uma noção médico-científica, mas de um
to constitua para o outro um corretivo e uma pedra de tropeço, e que conceito filosófico-político-teológico e que, portanto, muitas catego-
rias de nossa tradição filosófica deverão ser repensadas por conse-
tlüência. Nesta nova dimensão, não terá mais muito sentido distinguir
47H. A. Wolfson, Tbe pbi/osopbyo/' Spf/zona,Harvard UniversityPress,
1958, P. 325.
leão só entre vida orgânica e vida animal, mas até mesmo entre vida
l)iológica e vida contemplativa, entre vida nua e crua e vida da mente.
480 termo acqaiescenfiíz não se encontra registrado nem no TBesaurzzsde
Estienne nem no Tbesauras teubneriano. Quanto à construção de acqafescere com
À vida como contemplação sem conhecimento corresponderá pon-
i# e ablativo {no sentido, precisa Estienne, de czcq íescerei/zI'e a/íqzza,azzfl zz/fqwo tualmente um pensamento que se soltou de toda cognitividade e de toda
domine, cam qaadam animauotaptate, quietequeconsistereet oblectari in re aliqaa, intencionalidade. A fbeorfa e a vida contemplativa, nas quais a tradi-
in q a prius i# dubfo ízuf se/ícif di e anima Áaissefl,ela é comum, mas nunca é ção filosófica identificou por séculos seu fim supremo, deverão ser
usada com o pronome reflexivo. tleslocadaspara um novo plano de imanência, no qual não está escri-

190 Giorgio Agamben A imanênciaabsoluta 191


to que a filosofia política e a epistemologia poderão manter sua fisio-
nomia atual e sua diferença em relação à oncologia. A vida beata jaz
agora sobre o mesmo terreno em que se move o corpo biopolítico do
Ocidente.

Tradução do italiano de Cláudio William Veloso


Segunda Parte
HISTÓRIA E DEVIR DA FILOSOFIA

192 Giorgio Agamben


DELEUZE SOBRE HUME
Déborah Danowski

Em um pequeno artigo publicado em 1972 na coletânea de Fran-


çois Châtelet (História da FÍ/oso#a), Deleuze afirma que o empirismo
de David Hume "é uma espécie de universo de ficção científica. Como
na ficção científica, tem-se a impressão de um mundo fictício, estra-
nho, estrangeiro, visto por outras criaturas; mas também o pressenti-
mento de que esse mundo já é o nosso e essasoutras criaturas, nós
propnos
Acredito que podemos dizer a mesma coisa do modo como De-
leuze fazia história da filosofia, e particularmente de seu livro sobre
cume (Empirismo e subjetiuidade: ensaio sobre a natureza humana
sega/zdoHzzme). Se o texto de Hume é o "nosso mundo", o texto de
Deleuze é a ficção científica dessemundo, sua leitura a partir de um
ponto de vista estranho, o ponto de vista de Deleuze ou, se quisermos,
o ponto de vista do filósofo; mas, ao mesmo tempo, percebemos que
é ali que está Hume (ou o nosso Humej; e, conforme vamos nos fami-
liarizando com o texto deleuziano, sua leitura se mostra altamente
precisa, perspicaz e esclarecedora do sentido dessa filosofia.

Deleuze apresentou uma interpretação singular e inovadora em


relação à tradição da literatura sobre Hume; essa novidade foi até certo
ponto absorvida, sobretudo por autores de língua ou tradição france-
sa; e, no entanto, nem sempre foi devidamente reconhecida. Em pou-
cas palavras, Deleuzereconstruiu toda a filosofia de Hume em torno
da questão da constituição do sujeito a partir do dado da experiên-
cia, e salientou a importância da ação de princípios da natureza hu-
mana nesseprocesso.
Deleuze estabeleceinicialmente uma distinção entre o espírito e
a naturezahumana. O espíritoé a origem, o dado, a mera coleção de
idéias distintas; e, sob o efeito de princípios que o afetam jprincípios
que são basicamente de duas ordens: de associação e da paixão, sen-
do que os de associação estão submetidos aos da paixão), esse espíri-
to se torna um sistema, uma natureza, enfim, um sujeito. Partindo dessa

Deleuze sobre Hume 195


primeira distinção, Deleuze defende cume da crítica de que pretenderia l)ortanto, uma dualidade básica no empirismo de Hume: dualidade
fazer uma falsa psicologia, isto é, uma psicologia do espírito. Ou, antes, ciitre a mera coleção das idéias e a associação das idéias, entre a regra
poderíamos encontrar em Hume duas inspirações distintas: o atomismo tla Natureza e a regra das representações, ou, em suma, entre os prin-
e o associacionismo. O atomismo subsiste como uma psicologia do cípios da Natureza, os poderes ocultos da Natureza e os princípios da
espírito apenas enquanto as idéias, elementos simples e indivisíveis que ttaturezahumana4. Ora, ocorre que essa dualidade não impede que
o compõem, são o termo último a que se referem as afecções ou qualifi- llaja de fato um acordo entre os termos, acordo que tem no princípio
cações da natureza. Mas o espírito é ao mesmo tempo o objeto de uma tlo hábito seu instrumento de efetivação. E, como Hume menciona esse
crítica. A verdadeira psicologia é a do associacionismo, a ciência de uma acordo como "uma espécie de harmonia preestabelecida entre o cur-
natureza humana objetiva, ciência prática das tendênciase afecçõesi. so da natureza e a sucessão de nossas idéias" (Á/l enqufry concerning
O associacionismo, portanto, e não o atomismo, seria, na visão /?//ma/za/zdersrandifzg,vo1. 2, pp. S4-51, Deleuze crê poder encontrar
de Deleuze, a verdadeira inspiração da filosofia humeana. Isso supõe aqui uma "verdadeira metafísica" do empirismo, a idéia (que pode ser
ao mesmo tempo a atribuição de um papel fundamental aos princí- pensada, mas não conhecida) de uma finalidade que impede que o acor-
pios da natureza humana. Pois o espírito, sendo passivo, só pode se do da natureza humana com a Natureza seja meramente acidental, in-
tornar um sujeito ao sofrer a ação de princípios transcendentes, prin- determinado e contingente IDeleuze, idem, p. 126).
cípios que ultrapassam e estendem o dado original. Ou melhor, o es- Essa leitura de Deleuze foi criticada por Michel Malherbe, que
pírito é avivado, torna-se cada vez mais ativo, pela ação dos princípios. cm seu excelentelivro l,íz pbf/osopbie emP rfsfe de Dauid J me ten-
Nesse sentido, quando Deleuze fala em princípios da natureza huma- tou mostrar que não existe esse dualismo na base da concepção em-
na, devemos entender não tanto princípios da natureza humana, mas pirista de Hume e que, ao contrário, a constituição do sujeito deve ali
princípios que constituem essa natureza. A natureza humana em si ser entendida como produto de uma gêneseinexplicável e contingen-
mesma nao é constituinte'. te dos próprios princípios a partir de uma realidade original única
A essência e o destino do empirismo", dirá Deleuze, "não estão IMa[herbe, ] 984, p. 140, nota 93), a experiênciaradica]. Sem trans-
ligados ao átomo, mas à associação. O empirismo [e devemos enten- cendência e sem esse dualismo, não haveria mais a necessidadede um
der aqui o empirismo humeano] essencialmentenão coloca o proble- acordo, e muito menos do recurso a um finalismo.
ma de uma origem do espírito, mas de uma constituição do sujeito. Não me estenderei, aqui, nem sobre a interpretação de Deleuze,
Além disso, ele vê essa constituição como o efeito de princípios trans- nem sobre a crítica ou a interpretação de Malherbe. Apenas observa-
cendentes, não como o produto de uma gênese" IDeleuze, 1980, p. 15). rei que concordo inteiramente quando este último rejeita a idéia de que
Este ponto é fundamental. Esses princípios são transcendentes mas haveria um lugar, no sistema humeano, para uma finalidade -- a crí-
não transcendentais, isto é, são somente princípios de nossa nature- tica ao finalismo, explícita sobretudo nos DlííZogossobre a re/zgfão
za, e "tornam possível uma experiência sem tornar ao mesmo tempo rzafur.z/,é tão aguda e completa em Hume que me parece um contra-
necessários objetos para essa experiência" (ou, dito de outro modo, scnso não entender como irónica sua expressão "uma espécie de har-
não garantem a reprodução dos objetos na experiência)3. Deleuze vê, monia preestabelecida".Mas isso não nos impedede, como quer De-
leuze, procurar o sentido por trás da ironia. Ou, antes, diremos que a
l Dito de outra forma: "0 atomismo é a teoria das idéias enquanto as rela
ções lhes são exteriores;o associacionismo, a teoria das relaçõesenquanto são
exterioresàs idéias, quer dizer, enquanto dependemde outras causas" (Deleuze, 4 Ou ainda, como uma outra forma de definir o empirismo é a teoria se-
1980,P. 118). gundo a qual as relações são exteriores aos termos (enquanto não-empirista se-
2Cf. M. Malherbe, 1984, p. 286, nota 3. ria "toda teoria segundo a qual, de um modo ou de outro, as relações decorrem
da natureza das coisas"l, essa mesma dualidade se expressada como uma dua-
3Idem, pp. 126 e 136. "A transcendênciaera o fato empírico; o transcen- lidade entre termos e relações, ou entre as causas das percepções e as çausas das
dental é o que torna a transcendência imanente a alguma coisa = x" (idem, p. 125). relações (falem,pp. 122-3).

196 Déborah Danowski Deleuze sobre Hume 197


recusa de uma finalidade não exige necessariamenteo fim da duali- t ) caminho para nosso pensamento, e de algum modo nos força a con-
dade e do acordo vistos por Deleuze, contacto que nos contentemos \iclcrar certos objetos, em certas relações. O acaso só pode destruir essa
com um acordo também acidental, contingente e não inteligível, tal- tlc-terminaçãodo pensamento, e deixar o espírito em sua situação ori-
vez uma espécie de harmonia pós-estabelecida, idéia que não está in- ginal de indiferença; aquela em que, na ausência de uma causa, cle é
teiramente ausente dos mesmos Diálogos soó e a re/fgião naf ra/. instantaneamente restabelecido" (A freaffse o/bamczn nafure, p. 125).
Isso nos deixa com um outro problema: a dualidade encontrada A indiferençaé, digamos assim, a situação não-marcada do es-
por Deleuze no pensamento humeano decorre diretamente, como já l)írito, sua situação de origem (fzafiz,esif afíon), na qual "ainda" não
vimos, de sua ênfase no associacionismo em detrimento do atomismo, sc estabeleceram relações de causação. Na ausência de experiência,
e de sua tesede que, para Hume, os princípiosda naturezahumana diante do sentido de uma conjunção constante, no passado, de obje-
vêm agir sobre o dado do espírito para transforma-lo num sujeito. A [os ou ações semelhantese contíguos, a impressão presente não trans-
leitura contrária de Malherbe, que privilegia o movimento em senti- mite sua força a idéias relacionadas, pois não há hábito, e não se for-
do oposto, de gênesedas idéias e dos princípios a partir das impres- mauma relação natural. Não são criadas facilitações, e a força e a vi-
sões, devo dizer, parece-me bastanteatraente, por nos apresentar a vacidade da impressão pode passar a qualquer idéia da imaginação.
filosofia de Hume como um empirismo verdadeiramente radical (para Por isso, a imaginação fica indiferente -- literalmente, sem diferenças,
usar uma expressãodo próprio Malherbel. No entanto, devo confes- isto é, sem facilitações e tendências-- e pode considerar esta ou aquela
sar também que a leitura de Deleuze me parece mais afinada com o idéia. e crer nela.
sentido global que podemos efetivamente depreender do texto hu- Mas, quando diz que o acaso desfaz ou destrói a determinação
meano. O que irei fazer aqui, em lugar de tentar provar essa minha do pensamento,Hume está, evidentemente,partindo de uma nature-
afirmação (tarefa que seria longa em demasia), é ilustra-la através de za humana já constituída, de tendências e caminhos já traçados. O que
um exemplo extraído das análises de Hume sobre a probabilidade e o acaso destrói é a inclinação, a tendência da natureza humana como
sobre a história: o exemplo de um lance de dadosS um todo a crer num fato qualquer. A "ausência de causalidade" pa-
Sabemos que para Hume a idéia de causa e efeito não é senão receser, assim, ao mesmo tempo, um fenómenolocalizado, uma ex-
uma maior facilidadeda imaginaçãoem passar de uma impressão ceção que ocorre no interior da experiência e um estado inicial da ima-
presenteà idéia daquele objeto ou acontecimento que o hábito de uma ginação, estado real ou fictício, no qual o acaso (neste sentido negati-
conjunção constante na experiência passada nos faz esperar também vo) ê a regra.
no futuro. Essa facilidade da imaginação corresponde a uma dificul- O exemplo de Hume é um lance de dados, cujo resultado depende
dade de percorrer um caminho diferente, isto é, de se associarem as exclusivamente do acaso, ou seja, é indeterminado e aleatório. Em um
idéias de outra maneira e, mais ainda, de se depositar uma crença em dado perfeitamente equilibrado, diz ele, todos os seis lados têm a mesma
outro lugar. Por outro lado, a ausência de uma relação de causação chance; são, portanto, equivalentes, não-diferentes, e entre eles a ima-
constitui o que Hume, no Trai.zdo da #íz reza b mana, chama de ginação permanece indiferente. Entretanto, aqui o acaso não é tudo;
acaso. O acaso não é em si mesmo uma coisa real, mas apenas a ne- ele se encontra misturado a uma série de causas, como, por exemplo,
gação de uma causa. Ou seja, ele desfaz o que havia sido feito pela a lei da gravidade, que nos asseguraque, ao soltarmos o dado, elecairá;
causa, ou melhor, pelo hábito e pela conjunção constante. O acaso sua solidez, e a certeza de que ele preservará sua forma cúbica ao cair
deixa a imaginação "indiferente para considerar a existência ou a ine- etc. Sendo assim, ao ver um dado sendo lançado, o espírito não pode
xistência daquele objeto que é visto como contingente. Uma causa traça se impedir de formar na imaginação a imagem desse mesmo dado, com
a mesma forma e características, apresentando uma e apenas uma de
5 0 que se segue é, em grande parte, extraído dos capítulos 111,VI e Vll de suas faces voltada para cima ao cair. Mas, visto que as chances dos
minha tese de doutoramento, "Natureza acaso: a contingência na filosofia de David seislados são iguais, o pensamento "considera cada um deles, um após
cume: o outro, como igualmente provável e possível" (idem, p. 129); e, sen-

198 Déborah Danowski Deleuze sobre Hume 199


do incapaz de se fixar em apenas um dos lados, divide o impulso e a que se possa extrair um raciocínio de probabilidades das chances an-
vivacidade originais das causas pelas seis partes iguais de chances ou õesiguais. Até aqui Hume se referira ao "acaso" como um termo me-
acasos misturadas a essas causas. ramente negativo, expressão da ausência de causas -- e, portanto, como
Notemos que se as causas não limitassemo acaso, nem sequer só podendo gerar uma probabilidade de chances. Agora, entretanto,
pensaríamos na possibilidade igual de se obter qualquer um dos seis ele especificará que "os filósofos normalmente aceitam que aquilo que
lados -- pois não haveria uma relação privilegiada entre a impressão o vulgo chama de acaso não é senão uma causa secreta e escondida
presentedo lançamento do dado e as idéias desses lados. As causas lidem, p. 130). O próprio termo chance ou acaso esconde, segundo
são necessárias até para que haja algo como um fenómeno aleatório. Hume, uma referência à causa; e, por isso, sua análise da probabilidade
Ou melhor: se não houvesse nenhuma causa, evidentemente só have- de chances só teria significado por servir como uma espécie de intro-
ria o acaso, mas este estaria espalhado indistintamente por toda a ex- dução à análise da probabilidade de causas (probab///fy o/causas).
periência. Ao vermos um dado, poderíamos, por exemplo, formar a Um primeiro tipo de probabilidade de causas ocorre quando a
idéia de seu estilhaçamento, ou uma outra idéia completamente dife- experiência da conjunção constante e o hábito daí resultante, que são
rente. A força e a vivacidade da impressão presente se dividiriam não consolidados gradativa e insensivelmente com o tempo, ainda não estão
em seis, mas em infinitas partes iguais, ou então nem sequer se divi- suficientemente fortes. Mas esse tipo de probabilidade não importa
diriam. Ê isso o que ocorre no estado original de indiferença do espí- muito a Hume. Ele apenas acompanha a uniformidade da experiência,
rito: "Quando nada limita os acasos, todas as noções que a fantasia tal como ela é apreendida gradativamente pelo espírito. E essa mesma
mais extravaganteé capaz de formar estão em pé de igualdade [.-]" uniformidade permite que saltemos o estágio intermediário do hábi-
(Idem, p. 126). to, através de regras gerais, estendendo ou corrigindo o número de casos
Em suma, a composição de causa e acaso permite, em primeiro observados. Entretanto, é inegável que há uma incerteza na natureza,
lugar, que consideremos indeterminado um certo fenómeno que ocorre c que, embora esperemos sempre que o futuro repita o passado, so-
dentro de nossa experiência. O espírito cai numa situação de indife- mos muitas vezes decepcionados em nossa expectativa. Causas antes
rença (limitada), sendo incapaz de esperar alguma coisa ou de prever Lmidas a determinados efeitos subitamente parecem produzir efeitos
o que irã acontecer. diferentes e até contrários. E, "devido a essa incerteza, somos obriga-
Mas suponhamos agora um dado no qual quatro faces apresen- dos a variar nosso raciocínio e a levar em consideração a contrarieda-
tem um mesmonúmeroinscrito, e as outras duas, um númerodife- de de eventos" lidem, ibid.). Teremos aqui o segundotipo de proba-
rente. Nesse caso, os impulsos das quatro imagens semelhantes das faces bilidade de causas, que Hume considera sua forma mais importante.
que têm o mesmo número inscrito se reunirão em uma só imagem, se- Não se trata mais da ausência de causas mencionada a propósi-
melhantea cada uma delas, porém mais forte. Essa idéia terá sobre o to da probabilidade de chances, mas de uma incerteza nas próprias
espírito uma influência superior à da idéia formada pela reunião das causas, ou seja, aquilo que os homens de senso comum costumam
imagens dos dois outros lados; e, já que os eventos em questão são con- atribuir a uma suposta falha nas causas conhecidas, as quais, sem que
trários e incompatíveis, e como os contrários se destroem mutuamen- houvesse obstáculo algum, deixariam de produzir seu efeito habitual,
te na medida de suas forças, a imagem do primeiro irá se impor sobre provocando uma "contrariedade de eventos". Pela experiência, porém,
a imaginação, com uma força apenas diminuída da força do impulso os filósofos acabam formando a máxima de que "a conexão entre todas
contrário. Ê dessa forma que uma composição de chances iguais e as causas e efeitos é igualmente necessária, e [...] sua aparente incerte-
indiferentes é capaz de produzir uma diferença e conseqiientemente za em alguns casos procede da oposição secreta de causas contrárias"
uma probabilidade de chances (probabl/ífy o/ cóíznces): pois dessa lidem , ibid. ).
diferença resultará uma crença, proporcional ao número de chances De qualquer forma, mesmo que discordem em sua explicação
iguais, e decrescida do número de chances opostas. sobre a contrariedade de acontecimentos, o que importa é que há in-
Mas a mistura de causas às chances não é necessária apenas para certeza, e as inferências que os filósofos e o vulgo estabelecema par-

200 Déborah Danowski Deleuzesobre Hume 201


tir dela são semelhantes.Quer sejacausada por uma "contingência: situação que interessa a Hume é aquela que prepara uma aposta: que
das próprias causas, quer seja resultado da ação necessária de causas rcmultadodevemos esperar em um lance futuro? Em que número apos-
secretas, a contrariedade tem como efeito "uma crença hesitante no tar? Já na segunda variante do exemplo, quatro faces apresentam o
futuro" (idem, p. 132), o que pode se dar de dois modos distintos: di- lllcsmo número inscrito, e as duas outras, um número diferente. As
retamente e sem qualquer reflexão, através de um hábito e de uma imagens que o espírito forma se repetem nessa proporção. As chances
transição imperfeitas da impressão à idéia relacionada; ou, o que é mais sc somam, os atou do espírito se fundem, e a indiferença é abolida.
comum, de maneira indireta ou oblíqua, por meio de uma reflexão E esse segundocaso do lance de dados, portanto, que constitui
consciente sobre a contrariedade na experiência passada. l)ropriamentea "probabilidade de chances". E é ele que tem como
Este último mecanismo da probabilidade de causas é semelhan- função explicar a probabilidade de causas. No entanto, permanece,
te ao da probabilidade de chances. Hume diz que "cada experiência como com o primeiro caso, a especificidadede um fenómeno aleatório
passada jque compõe a contrariedades pode ser considerada uma es- lc não apenas contingente). Ê por ter concebido a probabilidade de
pécie de chance" (falem, p. 135). Todos os casos de causa e efeito chances a partir da primeira forma do lance de dados que Hume
considerados no passado são da mesma natureza e têm, portanto, de exclui dela a dimensão do passado, isto é, da experiência. As diferen-
início, a mesma influência sobre o espírito: cada um representa uma [cs chances não são ali tratadas como casos passados que definiriam
possibilidade (e apenas isso) no que diz respeito ao futuro. A diferen- uma contrariedade na experiência; elas são definidas inteiramente no
ça surge quando a causa se apresentou mais vezes acompanhada de presente. A variante aleatória -- chamemos assim -- do lance de da-
um efeito que de outro, produzindo mais imagens de um tipo. A soma dos produz uma diminuta amostra daquilo que seria a situação de
dessas imagens (possibilidades) será maior que a das imagens contrá- bossa imaginação sem a orientação dos princípios de associação, si-
rias. Nossa imaginaçãoserá levadacom uma determinaçãomaior à tuação em que a indiferença estaria espalhada por toda a experiên-
idéia desseefeito, que consideraremos não apenas possível, mas prová- cia, mas em que, ao mesmo tempo, ao invés de não haver nenhuma
vel. "Cada nova experiência é como uma nova pincelada, que dá uma associação, haveria qualquer associação. Este é, propriamente falan-
vivacidade adicional às cores, sem multiplicar ou aumentar a figura' do, o princípio da imaginação.
lidem, p. 135). O mesmo vale para as chances na probabilidade de Mas o exemplo do lance de dados reaparece em Hume, modifi-
chances. cado, para ilustrar uma dimensão bem diferente:a história.
A maior parte dos autores que tratam desseproblema em Hume Na lfzuesfigaçãosobre os princz'Piosda mora/, Hume afirma que,
diferencia rapidamente os dois tipos de probabilidade, de chances e embora inúmeras "circunstâncias" e "acidentes" tornem singulares os
de causas, mas acaba por iguala-los. Essa atitude é compreensível, visto costumes de cada cultura, estes não são senão diferentes respostas da
que o próprio texto pareceseguir nessa direção. Mas não se deve es- imaginação aos mesmos princípios gerais de aprovação e de condena-
quecer que o exemplo do lance de dados tem, nesse momento, duas ção, que permanecem sempre constantes e uniformes. A mesma natu-
variantes. Na primeira, cada face apresenta um número diferente, e reza humana transparece sob as mais diversas transformações da his-
corresponde a uma chance, igual às outras cinco em sua "possibilida- tória, e em todos os cantos do mundo.
de" de ocorrer. Somos determinados a conceber a imagem de cada face Entretanto, o que dizer das diferenças que constituem a própria
como voltada para cima, mas essasdiversasimagensnão se unem, história como tal? Podemos distribuir essesfavores em dois níveis dis-
porque os númerosrepresentadosem cada face são singularese as tintos. O primeiro nível é o da cultura propriamente dita: o que Hume
chances são incompatíveis entre si. É isso que caracteriza a indiferen- chama de visões, costumes e circunstâncias. Se a sociedade e a noção
ça da imaginação: a falta de relações e de tendências (resultante da falta de justiça são invenções inevitáveis da natureza humana desde que haja
de repetição,ou melhor, de alternativassemelhantes).É certo que, homens vivendo em conjunto, o modo como essa sociedade se orga-
mesmo quando os seislados são diferentes, podemos formar um racio- niza, sua forma de governo, as leis civis, a linguagem, os costumes e
cínio do tipo: o número "4" tem uma chance em seis de sair. Mas a tudo o mais que caracteriza cada cultura assumeformas diferentes.Isso

202 Déborah Danowski Deleuzesobre Hume 203


é o que distingue o instinto da instituição, ou a natureza pura e sim- à qual apenas o historiador tem acesso. Isso comprovamos pela "regra
ples do artifício (A/z enqzliry conter i/zg fbe prznclp/es o/' moróz/s,p. geral" que Hume propõe para ajudar a sutil distinção entre os dois ti-
2021. Nas palavras de Deleuze, "o fato de o homem ser uma espécie pos de acontecimentos: "Aquilo que dependede um pequeno número
inventiva não impede que as invenções sejam invenções" (Deleuze, de pessoas deve ser, em grande medida, atribuído ao acaso, ou a cau-
idem, p. 36, grifo meus. sas secretase desconhecidas: o que surge de um grande número pode
Mesmo essas peculiaridades, entretanto, que se devem sobretu- frequentementeser explicado por causas determinadas e conhecidas
do aos princípios da imaginação, ainda são passíveis de serem ex- lidem, p. 112).
plicadaspor regras gerais. Mas o historiador tem ainda que lidar com Essa regra inspira-seprovavelmenteno Teorema do Limite de
um outro nível de diferença, a saber, aquela decorrente dos acidentes .jacquesBernoulli, a famosa lei dos grandes números6:supondo que
e do acaso propriamente dito. possamos dizer a pri07'i as chances de um determinado resultado em
um sistema aleatório, a probabilidade de essa previsão se confirmar
[...] deve-se admitir que o acaso tem uma grande in- na experiência aumenta juntamente com o número de tentativas, apro-
fluência sobre as maneiras de cada nação; e muitos dos acon- ximando-secada vez mais de ] (ou seja, probabilidadede 100%).
tecimentos que se passam na sociedade não podem ser expli- Assim, diante de uma urna contendo nove bolas pretas e três brancas,
cados por regras gerais. Quem iria imaginar, por exemplo, sabemos que a probabilidade de tirarmos uma bola preta é de 3/4 jnove
que os romanos, que viviam livremente com suas mulheres, chances em doze). Os primeiros resultados apor exemplo, as doze pri-
seriam indiferentes à música e considerariam infame dançar: meiras tentativasl dificilmente confirmarão tal probabilidade -- po-
enquanto os gregos, que quase nunca viam uma mulher fora demos retirar, digamos, sete ou onze bolas pretas, em vez de nove. Mas,
de suas próprias casas, estariam continuamente tocando quanto mais tentarmos, mais a frequência de bolas pretas se aproxi-
flauta, cantando e dançando?" [Hume, idem, p. 340]. mará de 3/4 do total de resultados.
Hume supõe um dado com uma inclinação (pias) qualquer, pe-
Aqui não se pode mais reconheceruma "natureza humana". E, quena ou grande, para um dos lados; e diz que, embora essa tendên-
como o historiador para Hume é sempre também um filósofo, o limi- cia talvez não apareça em alguns poucos lances, ela certamentepre-
te da natureza humana é igualmente o limite de sua tarefa de investi- valeceráem um grande número deles.O resultado que se confirma cada
gação. Em um pequenoensaio intitulado "Do surgimentoe do pro- vez mais, quanto maior for o número de tentativas, é o que exprime a
gresso das artes e ciências", cume afirma que quando um autor diz inclinação do dado e, consequentemente,o que é determinado por uma
que um acontecimento histórico deriva do acaso, ele está admitindo causa. Os outros resultados possíveis, ao contrário, que aparecem já
que não tem como explica-lo; ao contrário, quando supõe que o acon- nas pequenas amostragens, serão cada vez menos predominantes em
tecimento procede de causas certas e estáveis, "então pode mostrar toda amostragens maiores. São, portanto, apenas casuais. A aplicação à
sua engenhosidade, apontando essas causas" e observando aquilo que dimensão histórica é imediata: "De maneira semelhante, quando, numa
escapa aos homens comuns e ignorantes ("Of the rise and progress of certa época, e num certo povo, determinadascausas provocam uma
the ans and sciences", p l l l). inclinação ou paixão particular, embora muitos indivíduos possam
E certo que Hume não menciona nada parecido com isso em seus escapar ao contágio e ser regidos por paixões peculiares a eles próprios,
textos sobre a probabilidade, no Tratado ou na Inuesfzgação. Atribuir a multidão certamenteserá tomada pela afecção comum, e será go-
um acontecimento ao acaso caracterizava o comportamento do senso vernada por ela em todas as suas ações" lidem, ibid.).
comum, ao passo que o filósofo devia sempre buscar as causas ou, em
último caso, reconhecer que estas eram por demais complexas para sua
capacidade cognitiva. Mas agora estamos falando de história, não de 6 Ou melhor, segundo1.Hacking (1987, pp. 154-5), o que hoje se conhece
experiência comum. E a história é uma espécie de experiência ampliada, como "a lei fraca dos grandes números" Ver também J. Cohen, 1989, p. 22.

204 Déborah Danowski Deleuze sobre Hume 205


Embora Hume tenha trocado, nesseensaio, o dado perfeitamen- Por outro lado, a filosofia de Hume tampouco pode ser entendi-
te equilibrado de sua análise sobre a probabilidade de chances por um tl.t se dela excluirmos a suposição de uma contingência irredutível. O
dado tendencioso("viciado", diríamos), e tenha introduzido uma causa 1;1toé que a contingência da ordem não implica uma negação das cau-
no interior do acaso, o caráter aleatório não foi eliminado. Pois, assim sas. Podemos perfeitamente deixar de lado essa dicotomia. Como di-
como cada lance, sendo independente dos outros, pode apresentar qual- ria o paleontólogo StephenJay Gould acerca da história da vida: "Em-
quer resultado, assim também os acontecimentos não se diferenciam, l)ora possamos compreender que o velho determinismo do progresso
quanto a sua necessidade ou casualidade, à medida que vão se sucedendo l)rcvisível não pode mais ser aceito, achamos que nossa única alterna-
e para aqueles que deles participam diretamente. A causa a que Hume tiva está no desespero da pura casualidade". Mas existe uma terceira
se refere aqui -- esta espécie de clinâmen -- jamais aparece senão a alternativa, fora dessa dicotomia. A contingência pode significar que
distância, retrospectivamente /. Causas diversas podem ser e sâo conhe- 'cl\daetapa tem sua razão de ser mas nenhum resultado final pode
cidas de todos os homens. Mas como diferenciar aquelas que são "mais scr precisadono momento da largada [...]" j1990, p. 52).
sólidas e obstinadas, menos sujeitas a acidentes e menos influenciadas Vimos isso a propósito da história. Se Hume toma como exem-
pelo capricho e pela fantasia particular" daquelas que são "tão delica- plo de sua lei dos grandes números um dado tendencioso,é porque
das e sutis que o menor incidente na saúde, educação ou fortuna [...] hão quer optar nem pelo determinismo nem pelo puro acaso ou au-
basta para desviar seu curso e retardar sua operação" (idem, ibid.)? sência de causas. A inclinação do dado fará com que o "resultado"
Como saber qual o curso original e qual o desvio? Em outras palavras, final (ou seja, a soma dos resultados de cada lance) apresente um pre-
como saber o que se deve à "natureza" e o que se deve ao "acaso"? domínio de um dos lados sobre os outros. Isso é conseqüência da exis-
A natureza humana não é aquilo que determina previamenteo tência de uma "causa". Ao contrário do que pode parecer à primeira
que é casual ou o que é necessário. Ela é apenas uma tendência, e como vista, o puro acaso, em um número infinito de lances, não seria reve-
tal não pode ser conhecida a Pr/orf, ou mesmo a cada momento (em- lado por uma grande disparidade de resultados, mas por sua equa-
bora todo acontecimento, após a experiência, seja explicável). O filó- lização. Um "bom dado", um dado não viciado, é aquele em que cada
sofo-historiador observará que alguns fatos vêm influenciar umas pou- lado tende a compor exatamente 1/6 do total de resultados num grande
cas pessoas, e depois desaparecem, ao passo que outros contagiam um número de lances. Um bom dado é o que gera uma indiferença no
grande número delas, deixando uma marca indelével. E é somente espírito. Mas a indiferença por si só não compõe uma natureza, as-
assim, mediante essa visão ampliada e a distância, que se conhece a sim como sem causas a matéria não compõe um mundo.
natureza humana. Voltando a Deleuze, o que esses exemplos queriam ilustrar é que,
Em toda sua filosofia, Hume procura se manter afastado da idéia em Hume, para haver natureza humana, é preciso haver princípios,
de um acaso absoluto (entendido como pura ausência de causas). Nos causas que imprimam uma tendência ao espírito. Deixado a si próprio,
Diá/egos sobre a re/lglã0 7zafura/fica claro que o puro acaso signifi- o espírito não seria capaz de se afastar da indiferença de associações
caria não somenteque no universo qualquer ordem poderia ter se for- feitasao acaso. "Se o sujeito é o que ultrapassao dado, não empres-
mado no lugar da ordem real, mas também que qualquer uma delas temos antes ao dado a faculdade de se ultrapassar a si mesmo" IDe-
poderia se sustentare permanecer.Do ponto de vista cético;-ou mes- leuze, 1980, p. 94). Por isso os princípios não podem ser produtos de
mo da ciência empírica, haveria aqui quase um retorno à arbitrarie- uma gênese, resultados da mera repetição de lances indiferentes. A re-
dade da teoria do desígnio divino, que Hume quer afastar. petição dos lances de um dado carreto continua gerando apenas mais
indiferença. Em uma palavra (para terminar com um trocadilho): se
o espírito é o que é dado, os princípios da natureza humana são, en-
7 Bento Prado Jr. (1985, p. 421, ao fazer uma comparação entre Hume, Freud tão, não a virtude (no sentido de força ou poder intrínsecos), mas o
e Skinner (inspirado na leitura deleuziana da psicanálise e do empirismo), utiliza vício do dado.
a expressão "fixação retrospectiva do acaso", que emprego aqui de modo um tanto
livre

206 Déborah Danowski Deleuze sobre Hume 207


BIBLIOGRAFIA O TRANSCENDENTAL E SUA IMAGEM
Gérard Lebrun

Cones, L. ]onathan. An introdaction to tbe philosopby ofitldwctionand probabiliQ.


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DAwowsK[, Déborah. "Natureza acaso: a contingência na filosofia de ])avid Hlume
Tese de doutorado, PUC/Rio.
DEI.EuzE,Gilles. "H.ume", in F. Châtelet {org.l, /{/sfórfa da/i/oso#zz: idéias, dozf-
rinas, vo1.4. Rio de Janeiro, Zahar, 1974 [1972], pp. 59-70. Se a filosofia segundo Deleuze é criação de conceitos, ela o é na
Empirismo et sabjectivité: assaisuT !a natura bumaine selou }iume. medida em que faz refluir "a imagem do pensamento": tanto em Deleu-
Paria, PI.JF, 1980 [1953]. ze como em Bergson, a construção de conceitos se dá paralelamente
GouLO, StephenJay. Vida maraz/i/boga:o acaso lzaez/o/anãoe a nafarezczda bfsfó- com a desmontagem das ilusões que a tradição respaldava -- e ela
rla. São Paulo, Companhia das Letras, 1990 [1989]. merece ser examinada sob esse ângulo. E uma investigação dessetipo
HACKiNG,lan. Tbe emergelzceo/'probczóf/ify.Cambridge, Cambridge University que gostaríamos de esboçar a propósito do reemprego da palavra "trans-
Press,1987 [1975].
cendental", reemprego que uma alergia não disfarçada a Kant pode-
HuwK, David. A fre zfise o/'bzzma/z zafare. Oxford, Clarendon Press, 1981 [1739-
40] ria, à primeira vista, tornar estranho... Todavia, Deleuze diz da histó-
Of the rise and progress of the ans and sciences", in Ess.zys: mora/, ria da filosofia que ela é "totalmente desinteressantese não se propõe
Po//fica/a/zd/fferczry.Indianapolis,Liberty Fund., 1985 [1742], pp. 111-37. a despertar um conceito adormecido, relança-lo numa nova cena, ainda
'4n enqaíW conter/zi?zg b ma fzdersfandfng. Oxford, Clarendon blueao preço de fazê-lo jogar contra ele mesmo"i. Não é esseo caso
Press, 1986 [1748, 1777]. do "transcendental": em vez de destrua-lo, não será o caso de denun-
A e/zq fry concerníPzglbe princlP/es o/mor.z/s. Oxford, Clarendon ciar o encolhimentoque a Cr#fca Ihe havia imposto?
Press, 1986 [1751, 1777]. De fato, os elogios que Deleuze concede a Kant são com freqüên-
Dla/ogues concernfng nzzfara/ re/igiolz. Nova York, Macmillan, 1989
[17791. cia acompanhados da mesma reserva: Kant não foi fiel ao que prometia.
MALHERBE,Michel. l,czpbi/osopble emp/rfsfede Daz/íd lizzme. Paras, J. Vrin, 1984.
Quando ele renuncia ao Eu substancial ou quando se dedica a anali-
"Introdução", in D. cume, Dica/aguas sar/a re/igio/z /zzzfzzre//e.Paria, sar a ilusão em vez do "erro", ele parece "armado para reverter a
J. Vrin, 1987,pp. 7-51. imagem do pensamento". No entanto, ele "não queria renunciar aos
PRAOO JK., Bento. A/gins efzsafos: #/osoPa, /íferafa7'a, ps/cana/ise. São Paulo, Max pressupostos implícitos da representação". Ele descobre "o prodigio-
Limonad. 1985. so domínio do transcendental;eleé o equivalentede um grandeex-
plorador [...]". No entanto, e]e se apressaem "deca]car" as estrutu-
ras ditas transcendentais sobre os aros empíricos de uma consciência
psicológicas. Poder-se-ia alongar a lista desses enganos: o inventor da
Cr#fca "traía-a no momento mesmo em que a concebia."3

l G. Deleuzee F. Guattari, Qzl'esr-ceq e /a pbí/osopbfe?,Paras,Minuit, 1991,


P. 81
2 G. De]euze, Di/7érenceef répéfffiolz, Paras, PUF, ] 968, pp. 178 e 176.
3 G. Deleuze, Nfefzscbe el /a pbl/osopóle, Paras, PUF, 1962, p. 59. Aristóteles
ofereceoutro exemplo de um desvio preliminar devido à força da ilusão representa-
tiva. Embora designando à dialética sua tarefa efetiva, "a arte dos problemas e das
questões", eleconcebe mal "a realização dessa tarefa", aceitando o balizamento dos

208 Déborah Danowski O transcendental e sua imagem 209


Essa fórmula nos dá uma primeira vista de olhos do que está em caso, são estipuladas por essas regras da síntese que são as categorias.
jogo no debate. Se o conceito de "transcendental" permanece vacan- l)or esse motivo, estamos certos de ser detentores, num campo bem de-
te depois de Kant, é porque a Cr#ica não conseguiu cumprir sua tare- rcrminado, de conceitos, zzpriori, ÁnPzcfonafs:nossa pretensão é assim
fa de legitimação, como prova a fragilidade da "fundação" que ela justificada, e Kant não exige mais do que isso. Mas Deleuze, por sua
propõe. Fundar o conhecimento a priori, segundo ela, é administrar a vcz, recusa-se a reconhecer nessa prática de tabelião a dignidade de
prova de que o emprego das categorias -- e somente ele -- justifica a uma fundação filosófica. Fundar, nesse espírito, equivaleriasimples-
pretensão à "objetividade" inclusa em nossos "juízos de experiência: mentea certificar em boa e devida forma que a pretensão de univer-
Ora, como essa prova é operada? salidade inscrita em minha proposição se mostra irrecusável, pelo fato
tlc responder precisamente à condição que é a única apta a torna-la
"A prova não mostra que o conceito dado (aquele, por válida... Ora, qual é o teor dessas "condições" que surgemtão opor-
exemplo, do que aco/zfecelconduz diretamente a um outro ttmamente?Não foram elas forjadas ad boc, em vista dessa autenti-
conceito (o de uma causal, pois tal passagem seria um sal- cação? Um dos textos mais esclarecedores sobre essa questão é a ter-
to que não se poderia de maneira nenhuma justificar; mas ceira série da Lógica do se/zffdo, quando Deleuze afirma a impossibi-
ela mostra que a própria experiência, por conseguinte o lidade, a menos que se caia no sofisma, de assimilar o self/do lou "o
objeto da experiência, seria impossível sem tal ligação."4 expresso") de uma proposição em sua signo/;cação,e observa nessa
ocasião que a fundação "condicional" é um procedimento que nos
Tudo o que acontece fem uma czzwsa:não é a necessidadeintrín- envolve num círculo estéril, numa oscilação entre condição e condicio-
seca dessa proposição que será provada; é provado apenas que não nado. A "condição" a que se recorre, não sendo mais que a forma de
haveria razão de falar de "conhecimento empírico" se essa comdíção /)ossfbl/idadedo condicionado, é incapaz de engendraro que ela de-
já não estivesseaí. A dedução, "no sentido dos jurisconsultos", que veria supostamente "fundar". Em contrapartida, o condicionado não
Kant emprega, é um bom exemplo desse desvio. Deduzir é justificar a é de maneira alguma "afetado" pela condição, esse duplo abstrato dele
pretensão a uma posse, que formulo, mostrando que as circunstâncias mesmo ao qual é indiferente.
da aquisição satisfazem as condições requeridas para que uma posse
seja dita lega/. Isto é, um caso de contestação que me obriga a provar "Seja como for que se defina a forma, trata-sede um
a legitimidade de minha posse: devo remontar até as condições que as estranho procedimento que consiste em elevarmo-nos do con-
partes em litígio reconhecem como sendo as de uma posse legítima em dicionado à condição para conceber a condição como simples
geral, e mostrar que as Circunstânciasda aquisição se encaixam exa- possibilidade do condicionado. Eis que nos elevámos a um
tamente nelas. A dedução provará que todas as percepções possíveis fundamento; mas o fundado continua sendo o que era, inde-
são estruturadas de tal modo que nossos juízos empíricos que preten- pendente da operação que o funda, não afetado por ela [...]."5
dem a objetividade preenchem exatamente as condições, as quais, no
Que a "condição de possibilidade" seja um fundamento de em-
predicáveis e dos "lugares" {G. Deleuze, Df/Hérenceef réPéfifio/z, pp 207-81. Como préstimo, há disso um sinal, sobre o qual Deleuze insiste com freqüên-
não considera os problemas senão em função de sua possibilidade de solução, ele cia: ela é "demasiado ampla" para o real -- como é o caso para todos
faz a dialética Inatimortal confundir-se com "um jogo de proposições opostas". Do
mesmo modo, a idéia fecunda de uma crítica imanente da razão permanece inex- os conceitos represenlaflz/oso.Em troca, o primeiro traço que caracteriza
plorada, porque "faltava a Kart um método que permitissejulgar a razão por dentro, os conceitos sub-representativos construídos pelo genealogista é que as
sem no entanto confiar-lhe o encargo de ser juiz dela mesma" IG. Deleuze, Nfelz-
scbe et !a pbilosopbie, p. 1,04\. s G. Deleuze, l.ogfque da se/zs,Paras, Minuit, 1969, p. 30.
4 E. Kant, Cr riq e de /a rafson p re, trad. francesa Delamarre-Marty, Pa- 6 Cf. G. Deleuze, Niefzscbe ef /a pbí/osopbfe, pp. 4, 97, 104, 107; DÍ/Hérence
ria, Pléiade1, p. 1349/AkademieAusgabe111,p. 510. ef répéffffo/z,pp 236-9, 364-5.

210 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem 211


condições que eles formulam "não são mais amplas que o condiciona- tência é dita, além disso, p/ásfica, é porque ela está infeframenfe con-
do", e são capazes de "aderir" à experiência real ao invés de normalizar centrada em cada configuração na qual opera. Ela não é como um
a pretensa "experiência possível". Devem essesconceitos ser chama- determinávelque permaneceria retirado, como à espera da determi-
dos "transcendentais"? A diferençaé tão profunda com os Grz{/zdbegri#e nação que o afetará. "0 elemento plástico se determina ao mesmo
kantianos que sucede a Deleuze renunciar à palavra "transcendental": tempo que determina, e se qualifica ao mesmo tempo que qualifica."
é o que ele faz quando opõe, no Nfefzscbe, aos princípios kantianos, Todavia, convém mesmo recusar a designação de "transcenden-
demasiado frouxos [...], simples condições para pretensos fatos", a tal" ao prf/zc@ioentendido nessenovo sentido? É certamenteo que
Vontade de Potência, por eleapresentadacomo exemplode um pri#- faz Deleuze nessa página do Nfefzscbe. Mas, como ele próprio assi-
cáoíodigno desse nome, já que é alheia ao balizamento representativo nala em seguida, Nietzsche parece ter cumprido assim uma tarefa que
anão é nem "una" nem "múltipla") e "inseparável" de cada caso no qual já estava indicada pelos pós-kantianos -- por exemplo, num autor
se determina"7. Que os princípios kantianos não respondam a esses como Malmon, que era sensívelà incapacidade na qual se achava o
sinais, Kant o diz expressamente, quando confessa a discordância en- "princípio transcendental" kantiano de fundar plenamenteas sínte-
tre o P7i/zzipno sentido estrito (conhecimento sintético por conceitos, ses da experiência, ou ainda de superar o caráter irremediavelmente
de que nosso entendimento é incapaz) e o Grzzndsafz, que certamente contingente da "experiência possível"tl. Ora, por que se deveria re-
é "princípio", na medida em que não depende de conhecimentos mais servar apenas a Kant o monopólio do "transcendental", se é verdade
elevados, mas que todavia tem necessidade de uma prova, isto é, de um que o pensamento de Nietzsche pode assim ser re-situado em relação
controle de sua validade " principial" pela apresentação do papel indi!- ao kantismo? Tudo se passa como se Nietzsche, em vez de se conten-
pensávelque ele desempenha na constituição da experiência possívelõ tar, como Schopenhauer,em podar a Cr#ica, tivessede fato retoma-
Ora, não é esse estatutoalheio a enunciadosaos quais se dá, mesmo do o prometocrítico "sobre novas bases e com novos conceitos". Co-
!afo sefzsn,a dignidade de princípios? Em vista disso, Deleuze, nesse nivência ainda sutil, mas que deixa pressentir que a investigação frans-
momento, julga dever renunciar ao caráter "transcendental" que inicial- cendenla/ é talvez mais do que uma estratégia "representativa". Por
mente havia concedido à vontade de potência com a simples finalidade que não reutilizar o conceito, ainda que ao preço de uma metamorfo-
de distingui-]a de uma instância psico]ógica: "[...] a verd?de é que os se que o tornasse irreconhecível a muitos leitores da Cr#lca?
princípios em Nietzsche não são jamais transcendentais"' E assim menos estranho que ele não pudesse parecer compreen-
Em que, exatamente, a Vontade de Potência não pode ser dita der a Vontade de Potência como se esta respondesse a uma exigência
;transcendental"no se/zfídoaceno? É que ela se investe de uma de- que fora formuladaenquantoKant ainda vivia, em reação à "insufi-
terminada figura de forças, "variável em cada caso". Ela não será con- ciência" da filosofia transcendental. "Insuficiente" é exatamente a pa-
cebida portanto como uma c07zdiçãodo exercício das forças, mas como lavra que MaTmon emprega para caracterizar um sistema que ele, não
um elemento interno à força, e que está no princípio da diferença de
quantidade das forças que se acham em relação, assim como da qua- il É ao longo de toda a primeira Cr#íca que Kant insistesobreo alcance
lidade que cabe a cada uma delas. Nada a ver, portanto, com uma ins- reduzido da fundação transcendental, esboçando assim, mesmo antes do Apêndi-
tância abstratamente "condicionante": "0 que a potência quer é la/
ce, o tema cuja elaboraçãoconduzirá à Crítica da caca/dadade /a/gar. Cf., entre
relação de forças, fa/ qualidade de forças"10. E se a Vontade de Po- outros textos, o 26 da dedução transcendental (2' ed.), que sublinha que o entendi-
mento puro não poderia fornecer leis senão à natureza enzgaa/ (áo?ma/fferspeclara),
e não aos fenómenosenquanto são "empiricamentedeterminados". As leis relati
7 G. Deleuze, Nietzscbe ef /a pbi/osopbíe, pp. 93-4. vas aos objetos particulares "não podem ser completamente derivadas das cate-
8E. Kant, Crlllqz/ede /a rczfsonFure, pp. 1018/892. gorias, embora todas em seu conjunto estejam a elas submetidas" (E. Kant, Crilf-
qae de la falso/z piore, trad. Pléiade 1,p. 87PI. É no mesmo movimento que se mostra
9 G. Deleuze, Nfefzscbe ef /czpbi/osopbfe, pp. 56-8. que possuímos de fato um conhecimento a priori performativo e o quão exíguo é
10G. Deleuze, Niefzscbe ef /a pbílosopbíe, p. 97. o campo operatório deste.

212 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem 213


obstante, julga tão irrefutável quanto os E/enzenfosde Euclides. E vale A representação, tributária da relação sujeito/objeto e assimila-
a pena voltar a esse autor, classificado entre os minores pela universi- tla à "consciência em geral", poderia de fato revelar um importante
dade, mas não por Deleuze, que saúda seu "gênio filosófico" e Ihe de- pressuposto do kantismo. Um pressuposto que, segundo Malmon,
dica páginas particularmente esclarecedoras quanto à sua própria atitu- conduz diretamente a dificuldades insuperáveis, simplesmenteporque
de emrelaçãoa Kant. "Sou kantiano? Souantikantiano?", escreveMal- nos faz admitir um dado irredutível, uma coisa em si que, para Rein-
mon ao final de seu ensaiode 1790, "isso cabe ao leitor decidir". De- l)old, designaria o que o objeto possui de irrepresentável. Mas o re-
leuze teria desaprovado essas linhas? Também ele não nutria hostilida- tiianejamento operado por Reinhold não leva longe. A exemplo de Kant
de em relação a Kant; também ele sentia admiração pelo "envasamen- c ainda mais manifestamente que ele, Reinhold eleva ao absoluto tra-
to", mesclada a uma imensa perplexidade diante do que "é construído ços que são característicos apenas de uma faculdade de conhecer Ézmfla,
em cima"12. Mas há mais do que uma similitude de reação. Lendo i\ começar Justamente pela clivagem sensibilidade/intelecto15.Em troca,
Malmon com Deleuze, percebemos que a vontade de dissipar as penum- se recusarmos centrar sobre nossa representação a análise do conhe-
bras da Cr#ica conduz a questionar de novo a noção de representação. cer, e se concebermos a matéria do "dado" representadocomo uma
"0 que conta na representação", indica Deleuze ao comentar soma -- imaginativa e inconsciente -- de elementos infinitesimais es-
Kant, "é o prefixo: p'e-presentação implica uma retomada aviva do que tabelecidospelo entendimento,não mais afirmaremos a presençade
se apresenta, portanto uma atividade e uma unidade que se distinguem um "dado" praeler nos para um Faêr m irrecusável, como o faz no-
da passividade e da diversidade próprias à sensibilidade como tal [...]. tadamente Kant quando deve se defender de ser um idealista no senti-
É a própria re-presentação que se define como conhecimento, isto é, do trivial. Longe de aceitar esse pretenso "fato", MaTmon vê nele o
como a síntese do que se apresenta"iJ. Aqui tem origem a divisão efeito de um eqwi'Foco,exatamente o mesmo do qual o «princípio de
kantiana: receptividade/espontaneidade. Ora, é ao valor dessadivisão consciência" obtém seu crédito.
que Marmon pretende voltar, e é nesse espírito que ele examina os pres- Se tomarmos este por incontestável, é que nossa imaginação co-
supostos da Crítica. meteuuma dupla sub-repção16.De um /ado, como ela não sintetiza
Kant admitia a representação como um gênero supremo cujo senão grosso modo e incompletamente, ela converte a soma das dife-
conteúdo devia permanecer indeterminado. E é precisamente isso que renciaisem um a/go cora de nós. l)e outro lado, arrastada por seu
Reinhold queria retificar ao fazer do "princípio de representação" ou impulso, ela metamorfoseia essa "síntese completa", assim transpor-
de consciência" o princfPiwm do sistema (no sentido forte de propo- tada para cora de /zós,em um objeto que declaramos irrepresentável.
sição originária, indedutível)i4. Desse modo é forjada sub-repticiamente a "coisa em si", fornecedor
inteiramente inventado da "matéria" da intuição sensível: o sistema
A consciência é a verdadeira razão última, o funda-
da represa/z/anãoestá bloqueado. Resulta dessa análise que Kant sim-
mento sobre o qual é construída a teoria da representação: plesmentedeixou-secair na armadilha. É a ignorância (na qual esta-
a distinção e a relação da representação ao objeto e ao su- mos naturalmente) da atividade imperfeita 4e nosso entendimento
jeito considerados como um fato que julgo universalmente comparada à do entendimento infinito -- que o leva a descrever dessa
válido, tal é a base de meu sistema." maneira a finitude de nossa faculdadede conhecer. O índice da finitude
verdadeira não é de maneira alguma o Gegen -- do Gegensfand --,
i2 Cf. G. Deleuze, in Abécédízlre, "Arte" jsobre Kant): "Há um envasamento
nele que me entusiasma;e o que é construído em cima não me diz nada
is G. Deleuze, La pbf/osopbfe c7'íffqiíede Ka?zf, Paris, PUF, 1963, p. 15. ]5S. MaTmon, Estai swr /a pbf/osop#fefrazzscemdenfíz/e,
trad. J.-B. Scherer
Paras,Vrin, 1989,p. 128.
\4 Re\íüioXd, Rapport de !a facalté de représentation à la Critique de !a raison
Fure, trad. F.-X. Chenet,Paria, Vrin, 1989, p. 147. Citado e comentadopor C. 16 M. Gueroult, l,a pbf/osopbfe fra/zscelzdenta/e de Sa/omo/z À4ailnon. Pa
Piché (C. Piché, Kazzf ef ses l$1gones, Paria, Vrin, 1995, pp. 81 ss.). ris, Alcan, 1929, pp. 66 ss.

214 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem 215


mas antes o fato de que nossa imaginação forja um Gegensfand, e este conceber a fluência dessas formações, pois ele é incapaz de proceder
nos apareceentão como um dado incontornável. segundo uma regra (mesmo se pode ser s bmefido a uma regra), mas
E essa revolução maímoniana que faz Deleuze surpreender-se que t) mesmo não se dá com o entendimentopuro, que, ao contrário, só
Kant tenha se julgado capaz de determinar o transcendental com tan- constitui os objetos particulares fazendo efetuar-se uma regra genéti-
ta segurança. O que vale essa determinação se forem dissolvidos, como ca. Lidamos portanto aqui com um princípio no sentido estrito, em
fez Maímon, os pressupostos do "dado" e da "doação"? t)utras palavras, com um princípio genético. E compreendemos tam-
l)ém por que e de que maneira a operação efetuada por esse princípio
'0 objeto físico e o espaço matemático remetem am- escapa inevitavelmente a uma abordagem represeníafiz/a.
bos a uma psicologia transcendental Idiferencial e genéti- Com efeito, os dois estratos que Malmon dissocia são igualmente
ca) da percepção.O espaço-tempodeixa de ser um dado tlttasafíf des, muito diferentes, do pensamento. Enquanto a consciência
puro para tornar-se o conjunto ou o negus das relações di- comum pensa obletos/á formados na intuição e, por exemplo, se re-
ferenciais no sujeito, e o próprio objeto deixa de ser um dado presenta a linha como /á esfícada, extensivamentetraçada pézrfesex-
empírico para tornar-seo produto dessas relaçõesna per- tra parras, o pensamentopropriamente dito retraça a gênesedessas
cepção consciente." "' produções a partir de suas diferenciais. Ele remonta aquém da intuir
ção já formada e dos fenómenos já conectados pelas categorias; e, fa-
A Cr#fcíz assegurava que nossa faculdade de pensar só produz zendo isso, re-compreende estas como "a expressão das relações pos-
conbecfmenfo com a condição de encontrar um dado. Ora, basta que síveis entre as idéias"20. Deleuze segue portanto Maímon quando de-
a representação deixe de ser considerada como uma pedra angular para clara que os conceitos sub-representativos que forma nada mais têm
que essa postulação suscite a desconfiança. Não nos figuramos mais a ver com as categorias: estas não eram senão indicações sumárias,
"a consciência" como uma instância encarregada de comparar repre- forjadas pela e para a representação, a qual usurpa o nome de pena.z-
sentações que Ihe pertenceriam, todas, de pleno direito. A consciên- lnefzfo. E verdade que a possibilidade mesma de tal atitude escapa
cia, na verdade, só emerge depois que a imaginação reuniu e/emenfos totalmente aos "representativos", já que a "representação" é precisa-
representativos homogêneos numa intuição. Ao fazer atuar a lei leib- mente destinada a reslsf/r ao pensamento. Quer-se um exemplo da
niziana de continuidade, MaTmon julgava perfeitamente concebível que obstinação dessa resistência? Que se pense no juízo formulado por Kant
d entendimento produzisse elementosgenéticos que se fundem um no em 1790, quando está lendo o Essa/o de MaTmon. "No fundo", diz
outro. "absolutamentecomo. num movimentoacelerado.a velocida- cle, "Malmon encarrega nosso entendimento 'de levar a uma consciên-
de precedente não desaparece mas se junta sempre à seguinte", e isso cia clara o diverso da intuição', que é obscurecido em razão dos 'limi-
até se atingir aquele limiar que chamamos "a consciência"18. Os ob- tes de nossa natureza'". Ora, essaé uma tarefa inútil, pois uma análi-
)etos sensíveissão os produtos dessa soma das diferenciais (ou nú- se da intuição jamais permitirá reencontrar "o conceito de um objeto
menos). Estas são certamente como 0 relativamenteà intuição uma vez em geral". Não há nenhum interesse em remontar, ou pretender re-
constituída Idy = 0, dz = Oj; mas suas relações, estas, não são como 0; montar, mais acima dos objetos oferecidos na intuição, sem contar que
"elas podem ser indicadas de maneira determinada nas intuições que tal demonstração genética ultrapassa de todo modo a capacidade de
delas provêm"19. Certamente, "o poder das intuições" não consegue nossa faculdade de conhecer. O empreendimento de Malmon é guia-
do por uma vã curiosidade... Vale a pena citar estaslinhas.

i7 G. Deleuze, l,e Pli: Leíbniz ef le bczroqae, Paras, Minuit, 1988, p. 118. Cf. ;Quanto a saber de que maneira tal intuição sensível
S. MaTmon, Estai sur /a pbl/osopüfefransce/zdezfa/e,pp. 49-50.
lo espaço c o tempos é a forma de nossa sensibilidade, ou
i8 G. Deleuze, Le P/ : l,eibfzlz ef /e baroque, p 1 17.
19S. Maimon, Essas sur /a pbflosopbie[ra/zscepzdepzra/e,
cap. 1,pp. 50-1. 20M. Gueroult, l,a pbl/osopble transcendezzla/ede Sa/omon À4ailnon, p. 60

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de que maneira funções do entendimento tais como as que ( ) que permite, em suma, opor a MaTmon o inadmissível de sua exigência
a lógica desenvolve a partir dele são possíveis nelas mesmas, são as condiçõesàs quais deve seconformar o "campo transcenden-
é o que nos é absolutamente impossível de explicar então, tal" para ser simplesmenteconcebível. Mas concebível pof' quem?,
porque, caso contrário, deveríamos ter ainda um outro tipo llcrgunta Marmon. Pelo "sujeito finito", ao qual se atribui assim o
de intuição que a que nos é própria, e um outro entendi- tlireito de julgar em última instância sobre a economia do conhecer.
mento ao qual poder comparar o nosso, um e outro apresen- ora, por que haveríamos de tomar como infalível esse sujeito "repres-
tando. cada um e de forma determinada. as coisas em si: ora. a'ntativo" finito? Por que o filósofo seria obrigado a assumir os dog-
não podemos julgar qualquer entendimento a não ser pelo illas da "finitude positiva", a inclinar-se diante dos "fatos" pretensa-
nosso entendimento, e também, por conseguinte, qualquer menteintransgressíveisque Ihe são assim designados? É por tomar esse
intuição a não ser pela nossa. Mas, afinal, não é em absoluto partido que Kant se contenta com muito pouco, afinal, para afirmar
necessário responder a essa questão. Pois, se podemos pro- cineestabeleceu a objetividade das sínteses. Assim, quando o matemá-
var que nosso conhecimento das coisas, que o conhecimento tico (kantiano) mostra por consf7'liçãodo conceito que é impossível
mesmo da experiência só são possíveis sob essas condições, pensar esse ser sem essíz propriedade, ele se satisfaz, pensando bem,
então não apenas todos os outros conceitos de coisas anão com uma co/zsfafczçãoe deixa escapar a necessidadeintrínseca da re-
condicionadas dessa maneira) são vazios para nós e não lação. Não é que Maímon queira voltar ao "dogmatismo", como afir-
podem servir ao menor conhecimento, mas também todos mam os kantianos, para passar mais facilmente por cima de suas ob-
os dafczdos sentidospara uma experiênciapossível, sem jeçõesz's.Ele pensa apenas que a racionalidade própria ao sintéticoa
essas condições, não representariam jamais objetos [...]."2i /)riori está longe de ter sido determinada com suficiente cuidado na
(:r#fca, e que sua validade objetiva não foi verdadeiramente legitima-
É uma decisão de princípio que Kant exprime aqui: está entendido tla. Em suma, Hume não foi ainda reduzido ao silêncio.
que, sendo nossa faculdade de conhecer o que é, a análise transcen- Não é a nostalgia do "dogmatismo" pré-kantiano que anima
dental que somos capazes de efetuar só pode concernir à objetividade Malmon, mas a preocupação de estar rigorosamentede acordo com
constituída; portanto, jamais teremos de lidar senão com um diz/ergo n exigência de legitimação. Rigorosamente, isto é, de modo que o princí-
tal que a unidade sintéticase aproprie dele integralmente.Com essa pio esteja "situado exatamente no nível" do que deve ser fundado, e
garantia, não se pode senão recusar o pro)eto de Malmon. Não há que se proíba, por conseguinte, o recurso a critérios exZrz'nsecos-- como
jliteralmente) lagar onde buscar uma resposta às questões que ele coloca: n construção em matemática, ou ainda a referência a este elemento
isso seria, absurdamente, sair do único terreno de investigação de que contingente que é a exPeriê zcia posshe/. É o que sublinha Gueroult
dispomos. Como se poderia mostrar, por exemplo, que a coisa em si re- ao comentar um dos exemplos favoritos de Malmon -- que Deleuze,
sulta de uma ilusão? Para tanto seria preciso adotar, em relação à natu- por sua vez, analisará24: "A linha reta é o caminho mais curto de um
reza de nosso conhecimento, um distanciamento que nada autorizazZ. ponto a outro"

zi E. Kant, "Carta a Marcus Herz", 18/05/1789,trad. francesaJ. Rivelaygue, "A construção nos mostra que a linha reta é o cami-
Pléiade11,pp. 840-1. nho mais curto entre dois pontos, não o que faz que ela seja
22Um distanciamentono qual o próprio Kant acabarápor se aventurar nos
extraordinários 76 e 77 da Crãica da ánc /dadode / /gar. Ver sobre esseponto a mediação do universal e do particular" (S. Maímon, Essa/ s r /zpbf/osopbfe fralzs-
Apresentação do assai por J.-B. Scherer: "A AKseln.zndersefzang[discussão] de ce/zdenrcz/e, Apresentação, p. 20).
MaTmon com a Cr íca da razão pz/ra não pode realmente se formular senão nos 2aDeleuze se insurge contra essa acusação feita a MaTmon: Le p/i. Lefbniz
termos da meditação que Kant inicia na Crft/ca da Áacu/dczdede /u/gar. MaTmon ef /e baroqwe, p. 118; Di/fé7'ente ef 7'épéfifion,p. 249.
se antecipa, por assim dizer, ao pensamento de Kant, percebendo de saída e com
uma segurança admirável o próprio nó da filosofia crítica [-.] o prob]ema da 24G. Deleuze, Df/7ére/zceef réPéffffolz,p. 226.

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o caminho mais curto. É preciso perguntar-se o que é isso te, por certo, para tornar irreconhecível o espírito de uma obra acima
que faz dela o caminho mais curto, como se chega a essa de tudo preocupada em identificar clivagens e traçar fronteiras. Entre
proposição, e de onde ela tira sua necessidadeintrínseca".25 a paixão kantiana da separação e a ambição genética, a divergência é
manifesta. É tão manifesta que Malmon nos obriga a abordar de frente
No que concerne às proposições matemáticas, o fundamento a a questão seguinte,que a Cr#lca mais eludedo que resolve:
priori da síntese será o princípio de determinabilidade: "não há determi-
nação sem determinável, e não reciprocamente". Princípio verdadei- "Com efeito, como pode o entendimento submeter a
ramente genético, acrescenta Gueroult, "já que ele nos permite apreen- seu poder (a suas regras) o que não está em seu poder (os
der a condição, e mesmo a razão da construção"z6. objetos dados)? Se seguimos o sistema de Kant, segundo o
Se Deleuze julga adequado, finalmente, reempregar o conceito de qual sensibilidade e entendimento são duas fontes inteira-
f a zsce/zde?zfa/,
o impulso maTmonianotem, por certo, muito a ver com mente distintas de nosso conhecimento, a questão, como já
isso. Eis aí uma investigação, de marca kantiana, que pretende menos mostrei, é insolúvel".30
como/alar a Cr#iccz (o que poderia em parte explicar o tom muito cortês
da "resposta" de Kant) do que se mostrar, simplesmente, mais exigente E MaTmon consegue põr os kantianos em dificuldade, toda vez
quanto aos operadores utilizados jas "condições de possibilidade"l e que os intima a encontrar uma harmonia que não seja "exterior" entre
quanto às interdições "finitistas" com as quais o mestre se contenta- termos afirmados como heterogêneos: é como se o "Deus ex machina
va sujeito a todos os riscos. MaTmon, do mesmo modo, também não se vingasse de um sistema que não cessa de descobri-lo nos outros,
se vangloriava de "subverter": ele começava, talvez, a "perverter' quando teria necessidade dele antes de todos... O quanto Deleuze é
Quando Deleuze atribui à "filosofia transcendental" ter descoberto "a sensível a esse questionamento da [(épica kantiana percebe-se, para dar
produção genéticado sentido"27, é o kantismo remodelado nessees- apenas um exemplo, na crítica a que ele submete o esquematismo das
pírito que ele tem em vista -- ou remanejado, se quiserem. Mas se trata categorias. Ele concorda que um conceito em geral só pode ser espe-
de um "remajenamento fundamental"28, nem que seja porque nos li- cificado e dividido por "agentes de determinação" que exercen] aquela
vra das idéias antropológicas preconcebidas que parasitavam a Cr#l- "arte escondida nas profundezas da alma". "Sem eles, nos deveríamos
ca e, em particular, da dualidade, inaugural, do conceito e da intuição. sempre na questão que Aristóteles levantava contra a divisão platóni-
De fato, o que resta do "kantismo" que nos é familiar, uma vez que ca: e de onde vêm as metades[...]?"31 Mas e]eacrescenta: "SÓ que o
essa grande divisão é reduzida a uma aparência, que seria devida ao esquema lkantiano) não justifica essa potência com a qma/ele age". É
estilo próprio de nossa "finitude"29? Esse "remanejamento" é suficien- que o dispositivo do condicionamento Ihe proíbe desempenhar um
papel atuante de prl/zcz@io."Exterior ao conceito, no entanto, não se
percebe como ele pode garantir a harmonia do entendimento e da sen-
25M. Gueroult, l.a pbí/osop#le franscendefzfa/ede Sa/Of7zonMailnon, p 39; sibilidade, pois não tem ele mesmo um meio de garantir sua própria
S. Maimon, Estai éter!a pbilosopbietranscendentale,pp. 67 e 69. harmonia com o conceito do entendimento,sem apelo a um milagre."JZ
zóM. Gueroult, La pbi/osop#letrapzsce?rde/zfa/e
de Sa/o»zonÀfa2}no?z,p. 44. Essa leitura é exemplar de um comentário, como sempre, tão
27G. Deleuze, Logfque du sons, p- 128.
28G. Deleuze, Di/7érence ef réPéffflolz, p. 224.
29 "Kant afirma que a sensibilidade e o entendimento são dois poderes total-
mente distintos. Sustento, ao contrário, que, embora nos seja preciso concebê-los como 3QS. M.âimon, Essas sur !a pbiEosopbietranscendetitale,pp. 6S-6
dois poderes distintos, um ser pensante infinito deve pensa-los como uma mesma e
si G. Deleuze, DI/7érenceef réPélitfofz, p. 281.
única faculdadelKra#l , e que a sensibilidade é em nós um entendimento incompleto
[-.]"(S. MaTmon, Essczisar la pbí/osopbie transcende/zfa/e,trad. J.-B. Scherer, p. 128). 3z Idem, ibid.

220 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem 221


rigoroso quanto desconcertante33.Eis que esteprecursor dos sistemas nos é dada uma garantia contra toda falha nesse encadeamento siste-
pós-kantianos, Salomon MaTmon, o primeiro a questionar a duvido- mático das percepções segundo regras, que constitui a experiê/zela
sa humildade da "finitude" kantiana, é agora requisitado para uma possüe/. Nos é dada a certezade que o diversocom que lidamossó
tarefa bastante inesperada: abrir os arcanos do "sub-representativo" pode depender da unidade da apercepção, de que a "objetividade" é
introduzindo "o inconscientediferencial", e mostrar, ao mesmo tem talhada à medida de nosso saber. Não fosse assim, de que modo a
po, que "a instânciatranscendental" não devia fatalmenteser "redu- palavra mesma co becfme/zfo conservaria um sentido37?
zida a um simples condicionamento". Aprendamos a dissociar a in- Vale dizer que seria inútil pretender legitimar o conhecimento a
vestigação transcendental dos preconceitos que, mesmo em Kant lso prforf se não supuséssemos uma serre/bzzzzçamz'Mimaentre a natureza
bretudo em Kant), bloqueavam seu curso e a impediam de ser uma do objeto e a disposição do conhecer. Eis por que Kant observa, na
gênese. Leiamos Malmon. "0 gênio de Malmon é mostrar o quanto analogia copernicana do segundo Prefácio, que o novo ajuste propos-
o ponto de vista do condicionamentoé insuficientepara uma filoso to (e imitado de Copérnico) tem já a vantagem, desde o início, de tor-
fia transcendental [...]."34 nar pelo menos concebível o conhecimento a Pr/07'í: "[...] se, ao con-
trário, o objeto (como objeto dos sentidos) se regula pela natureza de
Perguntemo-nos agora, sempre guiados pela investigação de De- nossa faculdade de intuição, então posso muito bem me representar a
leuze, por que Kant confiava desse modo na figura do condfcionamen- possibilidade (de um conhecimento a priori) [...]"38. Que se conceda
fo, e voltemos às acusações que os kantianos dirigem ao "neodog- uma concordância de funcionamento entre objeto e conhecer, condi-
mático" Malmon. Ele restaurou,dizem eles,a dualidadedas condi- cionado e condição, e se compreenderá pelo menos que não há nada
ções de conhecimento e das condições de existência. E é verdade que de arbitrário em interrogar-se sobre o mecanismo do conhecimento .z
o inconsciente maTmonianoarruína a assimilação -- solenementepro- prforí. Em troca, o inconscientediferencialde MaTmon, justamente
clamada na Crüíca -- das condições da experfêncfa possível e das con porque afasta essa cláusula de serre/bcz/zça,parece de fato nos deixar
dições dos oblíefosda experiência. Mas o que há de tão repreensível sem recursos para efetuar uma fundação transcendental.
nisso, pergunta Deleuze35?Que o "objeto" não sela mais algo intei- Todavia, tenhamoscuidado, aqui, com a palavra "semelhança
ramente reconhecível e identificável pelo entendimento, eis aí, muito O "ajuste" (ricófe sicb) de que fala Kant não evoca certamente uma
pelo contrário, uma conquista da gênesediferencial. O empreendimento semelhança como a da cópia ao modelo, mas uma afinidade de funci-
de Malmon deve portanto nos incitar a reexaminar essa pedra angu- onamento dos dois lados, de modo que a representação se achará sem-
lar do kantismo que é a assimilação das condições das duas séries, isto pre com certeza... "entre amigos". Deleuzechama a atençãovárias
é, o princípio supremo dos juízos sintéticos: "Todo objeto é submeti- vezespara essasignificação mais ampla da "semelhança"39 especial-
do às condições necessárias da experiência possível"36. Tese segura- mente quando sublinha a originalidade da gênesedo percebido segundo
mente central da primeira C7'#íca: graças a ela é legitimado o "fato"
jcontestado enquanto tal por MaTmon) do "juízo de experiência", e
37Se a unidade da síntese com base em conceitos empíricos não se fundasse
sobre um princípio transcendental da unidade, "seria possível que uma quantida-
33Percebe-se ainda melhor ao mesmo tempo a audácia e o extremo rigor dessa de de fenómenos enchesse nossa alma sem que disso jamais pudesse resultar alga
leitura de MaTmon por Deleuze quando se lê con)untamente o belo estudo de Manual ma experiência. Mas então desapareceria também qualquer relação do conheci-
Gueroult ILz pbf/osopbie fríz/zscendenfaZe
de Sa/omon M.zíhonl, ao qual Deleuze se mento a objetos, já que a ligação com base em leis universais e necessárias Ihe fa-
refere com frequência, e que é conduzido, não é preciso dizer, dentro de outro espírito. ria falta [-.]" IE. Kant, Cr]ffque de /a raisonFure, P]éiade], p. 1414).
34G. Deleuze, Di/7érenceef réPéfifion, p. 224. 38E. Kant, Críffq e de la ralson pzrre, segundo Prefácio, p. 470.

35 Idem, p. 229. s9 Reportar-se à análise da ilusão que provém da subordinação da diferen-


ça à semelhança,e que não caracteriza mais o "senso comum", mas o "bom sen-
3ó E. Kant, Crfrlgzíe de la rafsolz Fure, Pléiade 1, p. 898. so" (G. Deleuze, Df/Hyrenceef répéfifion, p. 342).

222 Gérard Lebrun 223


O transcendental e sua imagem
Leibniz. Mesmo se as qualidades sensíveisnão são mais para Leibniz, colocar-se na posição de contes/apor da argumentação ou da tesekantia-
como para Descartes, simples signos arbitrários, não se deve tampou- na, pois se trata apenas de mostrar o anca/bíme/zfoa que Kant submeteu
co pensar que haveria nelas como que um núcleo de semelhança com alguns conceitos-chavecujo sentido ele ia impor por muito tempo. E,
o ob/efo extenso. É a outra coisa que se assemelham uma cor ou uma para essefim, mais vale chamar a atenção para os microprocedimentos
dor: à matéria na extensão, a vibrações no movimento. Mas verifica- que Ihe serviram para fazer da transcrição representativa do transcen-
se sobretudo que o sentido da serre/banca, nesse lugar, dá um giro. dental a forma canónica deste42."Re-compreender" Kant, sob esse
ângulo, consistirá primeiro em auscultar seu texto de modo a não deixar
"É sobretudo o sentido da semelhança que muda: a se- passar nenhuma das "evidências" que consagram a prioridade dada per-
melhança se julga pelo semelhante, não pelo semelhado. O manentemente, e sub-repticiamente, à exigência de semelhança.
fatode o percebido se assemelhar a uma matéria faz que a Ora, é extremamente difícil tirar do esconderijo todas as formas
matéria seja necessariamente produzida conforme essa re- que esse primado sorrateiro da semelhançapode assumir. Pode-se ter
lação, e não que essa relação seja conforme um modelo pree- uma idéia dessa dificuldade seguindo Deleuze nos verdadeiros "exer-
xistente. Ou melhor, é a relação de semelhança, é o seme- cícios práticos" que Diferença e repetiçãopropõe, retraçando o declínio
lhante que é, ele mesmo, modelo, e que impõe à maneira de muito lento do modelo da semelhança em morfogênese e os golpes des-
ser aquilo a que ele se assemelha."40 feridos contra este pela leitura diferencial, em termos de intensidade43

É exatamente aqui, graças a essa mutação de sentido da "seme- 'A espécie não se assume/bczàs relações diferenciais que
lhança", que tem início a idéia de condiclozzame/zfo ransce zde zza/que nela se atualizam; as partes orgânicas zzãose assume/bam
a Cr#ica levará a seu pleno desdobramento. E essa conivência entre a aos pontos notáveis que correspondem a essas relações. A
fundação segundo o modo do condicionamento e a prioridade dada à espécie e as partes não se assume/óam às intensidades que
exigência de "semelhança" é, segundo Deleuze, um traço decisivo para as determinam."++
a marcaçãodo "transcendental",do qual Kant adquiriu os direitos
autorais. O privilégio dado à fundação-condicionamento vem do fato Em vez de seguir a diferenciação especz'Xlca
e a diferenciação em
de que esta preserva infalivelmente a homogeneidade mínima do fun- partes orgá/zlcas,opera-se agora num campo intensivo no qual é a
damento e do fundado. Ao contrário, MaTmon, pelo fato de abando- induz,idwação que comanda o dinamismo organizador. Mas com isso
nar o princípio supremo dos juízos sintéticos, abre o caminho a um a partida está ganha? Estaremos doravante ao abrigo do sortilégio da
empreendimento como/efamenfe dfÁe7'entede fundação, tal que as sín- semelhança? Ainda não.
teses transcendentais não serão mais decíz/Gajas sobre as sínteses psi-
cológicas, não havendo mais, portanto, o risco de fazer passar por
Óa/zdamenfo um híbrido de empírico e de transcendental41. 42Michel Foucault, em seu artigo "Theatrum Philosophicum", sublinha o
Notemos que não é absolutamentemais o caso, em tal aborda- caráter literalmente não sabe/ersit/oda leitura dos autores que é característica de
gem, de censurar o "idealismo" ou o "intelectualismo" de Kart, mas Deleuze: "Subverter o platonismo é toma-lo do alto (distânciavertical da ironias
e recupera-lo em sua origem. Perverter o platonismo é segui-lo até em seu extre-
apenas de determinar o mais exaustivamente possível a opção que ele mo detalhe, [-.] é descobrir [-.] o descentramentoque ele operou para tornar a
/cíbízula captado sobre a operação de fundação. Assim, de nada serviria centrar-se em torno do Modelo, da Idéia e do Mesmo; é descentrar-se em relação
a ele para jogar (como em toda perversão) com as superfícies ao lado. A ironia se
40G. Deleuze, l,e p/l. Leibnlz el /e baroqife, p. 128. e[eva e subverte; o humor se deixa cair e perverte [-.]" IM. Foucau]t, Dias ef écrifs,
Paris, Gallimard, 1994, t. 11,p. 781.
41Em seu De/faze. Ulzé'pbí/osopb/ede /'éz/éneme7zf,
F. Zoura bichvili mos-
tra a importância do doca/qae, como conceito deleuziano que será tematizado em 43G. Deleuze,Di/7ére/zce
ef réPéfifiozz,
p. 319 ss.
Mi! platâs. 44Idem, p. 323. Grifo nosso.

224 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem 225


"[O campo de individuação assim compreendidos pa- valor designáveldos termos de uma relação, em proveito de sua ra-
rece ser o mesmo para uma espécie dada, e variar em inten- zão interna que constitui precisamente a diferença [...] a diferença não
sidade de uma espécie a outra. Ele parece depender, portan- está mais entre o movimentoe o repouso, mas na pura variabilidade
to, da espécie e da especificação, e nos remeter também a da velocidade"46. Em suma, o que a continuidade faz desaparecer é a
diferenças prodz/zldas pe/o indiuz'duo, não a diferenças fn- diferença tal como é normatizada pelos amigos da semelhança je não
diuidaais. "4s tal como a concebe Leibniz, no presentecaso): "extrínseca e sensível"47
O que ela deixa subsistir, em troca, é a "diferença intrínseca, inteligí-
Um passo a mais é necessário para romper a grade que assegura vel", aquela que não é necessariamentesinalizada por uma demarca-
sempre a preeminência da semelhança: pensar o campo de individuação ção intuitiva -- aquela, precisamente, que está em jogo no princípio
de tal modo que nada mais suscite, nele, a formação das idéias jespé- dos indiscerníveis. Mas o "representativo" não pensa em dissociar esses
cies, gêneros, qualidades, extensões) ou repartições que salvaguarda- planos: em regime de representação, está entendido que não poderia
riam a prioridade da semelhança.A palavra "diferenciação" [no sen- haver "diferença" senão articulável à semelhançae, por conseguinte,
tido de cálculo da diferencial de uma função] designa precisamente uma sempre figurável na intuição. E dentro desse espírito que Kant censu-
operação criadora de diferençastais que não são mais transcritíveis nas ra a Leibniz ter estendido ao sensível a jurisdição do princípio dos
imagens da representação. A presença de dfÁere/zcfaçõesé perfeitamente indiscerníveis, quando este só é (só seria) válido para as coisas em si.
conciliável com um estado que, representativamente falando, é de in- Ao que um leibniziano poderia responder que é precisamente a clíz/a-
diferenciação. É que então se conseguiu achar um ponto de vista com- gem instaurada entre sensível e inteligível que engendra essa "contra-
pleramenfe dfáerenredaquele no qual a representação nos confinava. dição" entre continuidade e indiscerníveis. Desta vez é Leibniz que nos
Mas como ter acesso a esse ponto de vista? Ou ainda, que espécie de inclina a sacudir o jugo da representaçãoe a nos evadir do "pensa-
radioscopia nos permitirá dissociar um conceito de suas aderências re- mento único" a que ela nos obriga. Suprimamos o corte kantiano entre
presentativas? "os dois mundos": é ele que dava plena soberania ao pensamento
Na falta, aqui, de um tratado do método, só podemos dar uma orientado pela exigência de semelhança, como o mostra, )ustamente,
outra amostra desse procedimento deleuzeano: ele terá a vantagem de a questão do estatuto dos indiscerníveis. Cessemos de "imaginar" uma
nos reconduzir diretamenteao "transcendental" kantiano. No cam- diferença que só tem sentido em relação a um diverso composto de
po de individuação assim modificado, não há mais senão diferenças elementosseparados. Teremos começado, então, a fazer a distinção
individuais Inele, o princípio dos indiscerníveis é soberanos ou, ain-
da, "relações diferenciais" expostas por intensidades. Como conceber
essas "relações diferenciais"? Uma página -- inteiramente notável -- 4óG. Deleuze, l,e pli. Leibnfz el /e baroqzíe, p. 88.

da Dobra nos parece bastanteesclarecedora a esse respeito: aquela em 47Essa opção é manifestaem Kant -- e é ela, em particular, que comanda
que Deleuze se arrisca a tomar o sentido diametralmente oposto aos sua interpretação do "paradoxo dos objetos simétricos" e o impede de reconhe-
cer sua origem intensiva. "Nos corpos enantiomorfos, Kant reconhecia exatamente
comentadores que assinalaram uma incompatibilidade profunda en- uma álacre zça fn er a; mas, não sendo conceptual, ela só podia, segundo ele, se
tre o prlfzc@iodos indfscer/züefsja diferençaentre dois indivíduos deve referir a uma re/anão exterior com a extensão inteira enquanto grandeza extensi-
ser interna e irredutível) e a /el de comi//z Idade (essa diferença deve va." Mas o espaço, como intuição pura, será realmente uma grandeza extensiva?
desaparecere tender a 0). Essa pseudocontradição, responde Deveu ;Kart define todas as intuições como quantidades extensivas, isto é, de modo que
ze, dwe-se apenas ao uso representativo que se faz dos conceitos. Em a representação das partes torne possível e preceda necessariamentea representa-
realidade, a continuidade leibniziana não faz desaparecer a diferença, ção do todo. Mas o espaço e o tempo não se apresentam como eles são represen'
fados. Ao contrário, é a apresentação do todo que funda a possibilidade das par-
pelo menos qualquer "diferença"; "[...] o que desaparece é apenas todo tes, estas não sendo senão virtuais e se atualizando apenas nos valores determina-
dos da intuição empírica. O que é extensivoé a intuição empírica" (G. Deleuze,
4sIde/n, p. 324. Grifo nosso. Différenceet répétitton,p. 298\.

226 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem 227


entre a investigação transcendental e a "imagem" com a qual a Cr#i- lhança que deverá explicar o amálgama entre investigação transcen
ccza confundia -- e suspeitaremos que a "revolução copernicana" não dental e filosofia da consciência.
tinha nada de um sismo, já que ela consolidava como nunca a priori-
dade dada à exigência de semelhança, a ponto de tornar inconcebível "Não se pode conceber a condição à imagem do con-
um pensamento que recusasse essa obediência. dicionado; purgar o campo transcendentalde foda seme-
Sz/bz/ersãoda Cr/fica, então? O julgamento seria sumário, pois, rbzz/zçapermanece a tarefa de uma filosofia que não quer cair
se a abordagem deleuzeana é iconoclasta, é antes de tudo em relação nas armadilhas da consciência ou do cogito."50
a uma vulgata "kantiana" que assimila muito naturalmente o trans-
cendental a um sistema de aferrolhamento, como se a vocação inques- Contudo, deve-se realmente falar de preconceito ? A palavra pode
tionável do que deveria ser uma livre investigação sobre a formação sugerir que o autor simplesmentecareceu de vigilância crítica sobre
do sentido fossegarantir a infalibilidade das regras a que estão sub- esse ou aquele ponto, e tomar assim como um "erro" pontual o que é
metidas nossas sínteses empíricas (já que são essas regras mesmas que o efeitoda pertença à representação, a qual é compreendida por Deleu-
são constitutivas do "fenómeno"). Com a "imagem do transcendental", ze, quando descrevesua formação, como um sistemacuja própria
de fato, não há mais perigo de que sejam postas em xeque as constân- coerência destina ao fracasso qualquer programa de fundação. Para
cias com as quais se habituou nossa imaginaçãoempírica: como a le- nos convencermos disso, basta tomar, no labirinto da Representação,
gislação do fenómeno é feita para responder a essa demanda securitária, um dos caminhos que conduzem a essa contratação de "fundação" quc
somos convencidos de que "o cinábrio ora vermelho, ora escuro, ora é o "transcendental" kantiano.
pesado" é uma suPPosillo abs/ rdcz48.Lineu não precisava mais temer Um dos traços dominantes da representação,como se sabe, é o
que vegetais e minerais pudessem em algum ponto se furtar à classifi- total desconhecimentodo que seja o problemático: cego à diferença
cação: o princípio transcendental da faculdade de julgar garante que de natureza entre o problemático e o proposicional, o "representati-
a natureza, de cima a baixo, está votada "à constituição de um siste- vo" só pode conceber o que ele chama "problema" a partir de sua
ma lógico de sua diversidade", e que nenhumgênio malignofrustrará resolubilidade, como se o rema problemático não fosse mais que a
essa siitemática49. Diante dessa tranquila certeza, vale a pena levan- sombra que a fase (proposicionall já projeta, teseque em breve Ihe dará
tar a questão: não nos teriam enganado?Não terá havido substitui- " resposta"51 . Na crítica deleuzeana, essa Êaff/fiação do proa/emóffco
ção de conceitos? Trata-se do transcendental ou de sua imagem? operada pela representação é uma importante encruzilhada onde têm
Se houve "desnaturação", possuímos agora dois pontos de refe- origem três temas, que se acham assim em ressonância:
rência para julga-lo: ll o axioma sub-reptício da semelhança da con- 1) A heterogeneidade,repetimos, do problemático e do propo-
dição ao condicionado; 2) a aceitação, que é uma seqüela disso, da sicional: "0 problema jamais se assemelhaàs proposições que ele sub-
figura do condicionamento (com seu corolário: a recusa da gênese). É
a essesdois momentosque devemos nos apegar -- não à "finitude
ou ao "sujeito" ou a qualquer outro dos macroconceitos sobre os quais 50G. Deleuze,Logíque du sons, p. 149. Grifos nossos.
o comentário é tentado a operar em primeiro lugar. Deleuze prefere
51Sobre o papel central dessa futilização do problemático na crítica de-
remontar às "escolhas" que impuseram ao autor marcar originalmente leuzeana da filosofia, cf. G. Deleuze, DI/Hérelzceef réPéfifion, pp. 254-5. "Não é
essa espécie de conceitos: assim, é a análise do preconceito da seme- ilegítimo resumir o movimento da filosofia... de Platão a Fichte ou a Hegel pas-
sando por Descarnes" como uma passagem do hipotético ao apodítico. "Se disser-
mos: o movimento não vai do hipotético ao apodítico, mas do problemático à
questão, a diferença parece a princípio ser muito pequena [-.] No entanto, há um
48Cf. G. Deleuze e F. Guattari, Qzí'esl-ce q e /a pbi/osopbie?, p. 189.
abismo entre essas fórmulas." Cf. as páginas de F. Zourabichvili sobre o proa/e-
49E. Kant, Critique de /a Áac /té c/e/wger, primeira Introdução, 5, trad. máfico em Deleuze (F. Zourabichvili, De/faze. Urze pb{/osopbfe de J'ét/élzemenf,
Delamarre,Pléiade11,pp. 863-70. Paria, PUF, 1994, pp. 25-33, 48-60).

228 Gérard Lebrun O transcendental


e sua imagem 229
fume, nem às relações que engendra na proposição: ele /zãoé pro- donar "a forma de uma consciência"55. Ora, enquanto não tivermos
posicional, embora não exista fora das proposições que o exprimem"52 dado esse passo, permanecemos necessariamentepresos na armadilha
2) A rejeição de um método genético: se, desde o início, desnatura- da semelhançaentre o fundamento e o fundado. E essa armadilha está
se o problema pensando-o à imagem das proposições que ele subsume, montada de duas formas -- segundo se admira uma génese, da qual a
essa decisão, obviamente, torna inútil toda curiosidade relativa à ma- representação dá um jeito de conservar o controle (Husserl), ou segun-
neira como ele engendrada essas proposições por um trabalho sobre do se recuse a génese para pâr no lugar o sistema do condicionamen-
si mesmo. A dedução kantiana não é de modo algum uma derivação. to (Kant contra MaTmon). Detenhamo-nos neste segundo caso c no
3) A validade de princípio de uma semelhança entre o condicio- fracasso que Ihe parece pesar sob a forma de um cácu/o onde cai a
nado e a condição -- que está implicada na expressão mesma "condi- argumentação. Por um lado, as categorias só são reconhecíveis como
ção de possibilidade". Pensa-seo problema como "a forma de possibi- corcel\os a priori se a e)cperiê*'cia possível (em sua contingência) é pres-
lidade das proposições correspondentes". Ora, "enquanto se define o snPosfcz-- e, nessa medida, elas só têm necessidadehipotética. Por
problema por sua teso/ubf/idade, confunde-se o sentido e a significa- outro lado, os princípios do entendimento, ainda que devam ser pro-
ção, e não se concebe a condição senão à imagem do condicionado"53 vados, não merecem menos o nome de "princípios", já que e/es lor-
Haveria, contudo, razão em falar de um "fracasso" da fundação /zampossüel essa /arma da eicperfêncza(sem a presençada qual não
em regime representativo? Nada parece nos dar ainda esse direito: poderiam ser autenticados)56. Nessa pressuposição recíproca do fun-
apenas confrontamos até aqui os pressupostos de Kant aos problemas damento e do fundado remetidos sem fim um ao outro, não está ma-
e aos conceitos que Deleuzeconstrói, deixando um e outro no isola- nifesto o bloqueio ao transcendental que a representação implica?
mento que convém aos pensadores.
'Não é esse o caráter mais geral do fundamento, que
"Quando um filósofocritica um outro, é a partir de esse círculo que ele organiza seja também o círculo vicioso
problemas e num plano que não eram os do outro, e que da prol/a, em que a representação deve provar aquilo que a
fazem fundir os antigos conceitos como se pode fundir um prova, assim como ainda em Kant a possibilidadeda expe-
canhão para dele obter novas armas. Não se está jamais no riência serve de prova à sua própria prova?")'
mesmo plano."54
Não é o lugar de entrarmos na análise que Deleuze faz da noção
Todavia, a refutação "diabética" permanecepossível entre esses de "fundação" e na crítica que ele propõe da figura bypof#esís/ afzu-
não-beligerantes de princípio. E, nesse momento, a l,óglca do senado potbefon. Esse tema, aqui, só nos interessa enquanto refutativo, e por-
fornece uma amostra que nos contentaremos, na falta de tempo, em que permite evocar a última linha possível de resistência que pode ainda
sobrevoar. A metodologia de Deleuze Ihe proíbe tomar uma posição oferecer o pensamento representativo, mesmo depois que esse argu-
de contestador ou de cba//enter em relação à Cr#ica, mas não apon- mento o tenha perturbado. Suponhamos que haja -- excepcionalmente !
tar os sinais de que houve de fato "traição" do transcendental.Dar situação de "diálogo". Mesmo que o "representativo" tivesse sido
"a forma pessoal de um Eu, de uma unidade sintética de apercepção" abalado pelas análises sucessivas que evocamos e que submetem a uma
no campo transcendentalé restringir arbitrariamenteeste, como ha- nova luz SHa concepção do "transcendental", ele ainda seria capaz de
via entrevisto Sartre na Transcendência do ego, mas sem chegar a aban-

55G. Deleuze, l,ogiqzfe d seus, p. 128.


52G. Deleuze, l.oglque d# sons, p. 147.
5óCf. E. Kant, Cririq e de /arafsonFure, "Teoria transcendentaldo Méto
ss Idem, ibid. do Pléiade 1, pp. 1315-6.
54G. Deleuze e F. Guattari, Qu'esf-ce qKe /a p#f/osopbfe?, p. 32-3. 57G. Deleuze, Di/7érence ef répéfffíom,p. 351.

230 Gérard Lebrun 231


O transcendental e sua imagem
recusar entregar as armas. A exemplo de Kant em face de Maímon, ;Procuramos determinar um campo transcendental
ele tem ainda uma instância em reserva: a que consiste em empurrar impessoal e pré-individual, que não se assemelha aos cam-
seu adversário a uma posição "dogmática" ou, mais exatamente,em pos empíricos correspondentes e que não se confunde, po-
coloca-lo diante de uma alternativa que será, ele imagina, ruinosa para rém, com uma profundidade indiferenciada."ÓO
ele. Entre o discurso das condições de possibilidade e o retorno às es-
sências e aos decretos de Deus, em suma, entre o "transcendental" e a Agarrar-se a um "campo transcendental" individual ou pessoal
metafísica da escola, não é preciso escolher? É um oz{ é outro... é a/erro//?czrarbitrariamente sob pretexto de /egillmar. E só se adere a
Mas essa escolha é realmente inelutável? Deleuze pensa que não. esse partido porque se respondeu sub-repticiamente pela afirmativa à
Ou melhor, pensa que ela só parece inelutável aos olhos dos que con- questãocolocada por Deleuze Imãs retoricamente): " [um campo trans-
fiam numa alternativa da qual tanto a "filosofia transcendental" como cendental] nem individual nem pessoal... Isso significa que ele é um
a metafísica garantem que não há meio de escapar. Qual é, portanto, sem-fundo sem figura nem diferença, abismo esquizofrênico?". Nos-
essa escolha "decisiva"? sos hábitos representativosnos levam a responder que sim. E desses
hábitos foram ainda vítimas aqueles mesmos que fizeram ouvir "o
"[...] ou um fundo indiferenciado, sem-fundo, não-ser bramido do sem-fundo", que remontaram até "o abismo indiferen-
informe -- ou um Ser soberanamente individuado, uma For- ciado", mas apresentando-o como impessoal e alheio à individuação,
ma fortemente personalizada. Fora desse Ser ou dessa For- e tornando-se assim "cúmplices objetivos" dos que estigmatizavam seu
ma, não tereis senão o caos [...]"58
"irracionalismo" Italvez com a secreta satisfação de reencontrar nele
o perfeito negativo de seu "racionalismo")ÓI. Se nos refugiámos no
A advertência de Deleuze é aqui particularmente insistente:quem transcendentalde tipo kantiano ou se não conseguimosnos evadir dele,
não contestar os termos dessa intimação terá seu destino inteiramen- é porque "não saímos da alternativa imposta tanto pela filosofia trans-
te traçado. Uma vez que a aceitou, é pelo segundo termo que deverá cendental como pela metafísica: fora da pessoa ou do indivíduo, não
optar (a menos que queira se entregar a uma provocação niilista), e d[sfingwirefs nada [...]"'z
assim não Ihe restará senão a escolha entre o indivíduo supremo com- Eis aí, portanto, um bom testepara medir a obediênciaà repre-
pletamentedeterminado (o Deus da metafísica tal como o representa, sentação: ser capaz de pensar a sl/zgularida e fora dos modelos do Ego
com razão, o Ideal transcendentall e a instância "transcendental" cons- ou do Eu e, consequentemente,ser convencido de que para além do
titutiva da possibilidade da experiência, que terá sempre definitivamen- Ego ou do Eu começa o caos, a desordem absoluta. Muitos se satis-
te, quaisquer que sejam as precauçõestomadas, a forma de um Ego. fazem com essa posição. E, para esses, é um pouco como sc Bergson
Ou um indivíduo"coextensivoao ser", ou um Eu "coexrensivoà jamais tivesse feito se dissolver "a idéia de desordem", ou ainda como
representação"''. se Nietzsche não tivesse acabado por exigir, contra Schopenhauer,
Sendo o desafio desseporte, vale a pena examinar cuidadosamente pensar a individuação separando-a do princípio apolíneo que havia
a pertinênciadessa alternativa. Corramos o risco da ênfasepara ser- confiscado abusivamente seu sentido. -- O quê? Bergson e Nietzsche
mos breves: seria tão exagerado dizer que a obra de Deleuze é desti- transformados em intercessores do transcendental autêntico? -- Sim,
nada a tornar essa alternativa inaceitável? Não é esse precisamente o pelo menos na medida em que eles nos fazem suspeitar que o Ego e o
objeto de sua investigação? Eu não são de modo algum as figuras insuperáveis da indiufdaação.

úoIdem, p. 124.
58G. Deleuze, Log/qz/ed# sefzs,p. 129. Sobre as formas diversas de "luta contra
o caos", cf. G. Deleuzee F. Guattari, Qa'esf-ce qiíe /a pb//osopb]e?,pp. ] 89 96. ói /dem, p. 130. Cf. DI/Xérenceel réPéfffiofz, pp. 332 e 340

59G. Deleuze,Logiqz/ed seis, p. 129. 62 G. Deleuze, Loglqae d# sons, /oc. czf.

233
232 Gérard Lebrun O transcendental e sua imagem
"0 insuperável é a individuação mesma. Para além do ego e do eu, DELEUZE E SUA SOMBRA
existe não o impessoal, mas o indivíduo e seus fatores, a individuação Scarlett Marton
e seus campos, a individualidade e suas singularidades pré-indivi-
duais."63 Se não tomarmos esse caminho, continuaremos a fazer uma
idéia apressada do que é a "desordem", e o transcendentallou me-
lhor, sua "imagem"l terá, inevitavelmente, por função primeira reme-
diar a ameaça fantasmática que assim deixamos se forjar. Inversamen-
te, para Deleuze é a mesmacoisa romper com esse "transcendental" "Em relação a um filósofo cujo empreendimento provocou tan-
securitário e pensar o campo Iranscendenla/ no sítio mesmo dessa "de- tos ecos e aparentementetão longe do ponto em que ele mesmo se
sordem" (de primeira aproximação)contra a qual a Crítica julgava colocava", escreveMerleau-Ponty a propósito de Husserl, "toda come-
dever se precaver, porque não estava armada para concebo-la. moração é também traição, seja porque Ihe prestamos a homenagem
bem supérflua de nossos pensamentos, como para provê-los de uma
"Quando se abre o mundo pululante das singularida- garantia a que não têm direito, seja porque, ao contrário, com um
des anónimas e nâmades, impessoais, pré-individuais, plscz respeito que não se faz sem distância, o reduzimos por demais estrita-
mos enfim o solo do t«-scendentat."64 mente ao que e]e mesmo quis e disse [...]".l Essas palavras de "0 filó-
sofo e sua sombra" poderiam muito bem aplicar-se à nossa tarefa.
A reação a essa frase é, ela também, um teste. Enquanto vocês Homenagear Deleuze com nossos pensamentos ou reduzi-lo aos seus
restringirem o qz/echamam "o singular" a "piedosas" singularidades, próprios, essas seriam talvez duas formas de festeja-lo. Apoiar-se em
domesticadas, "aprisionadas", nada de surpreendente que o "trans- Deleuze para defenderas próprias idéias ou procurar fazer a exegese
cendental" della, para vocês, tomar a forma de uma instância encar- das suas, essas seriam talvez duas formas de traí-lo. Mas, no limite,
regada de conjurar o caos, de frustrar a todo instante os maus aspec- essas questões pressupõem outra, anterior e mais abrangente: no que
tos que o malicioso cinábrio poderia nos apresentar. Nada de surpre- consiste fazer história da filosofia? E, por conseguinte, como lidar com
endente,portanto, que a frase de Deleuze soe para vocês como uma Deleuze enquanto parte da história da filosofia, ainda que seu pensa-
simples provocação... mento constitua uma parte bem à parte?
Restaria examinar como funciona o transcendental após esse Uma pista para perseguir tal questão talvez se encontre no pró-
des/ocízmenfo. Mas isso dependeria de um estudo da oncologia de De- prio trabalho de Deleuze. Em textos sobre Hume, Kant, Bergson, Espi-
leuze. O objeto desta exposição era simplesmente mostrar, sobre o nosa2, é também enquanto historiador da filosofia que ele se coloca.
exemplo do fransce/zde/zfa/,o que Deleuze ganhava ao "fazer jogar um E, se transforma profundamente os clássicos, não se exime de deixar-
conceito contra ele mesmo" -- e isso dialeticamente, tão ludicamente, se transformar por eles. Tanto é que na filosofia da afirmação plena,
portanto, quanto no Parmênidesou no So/isca. na filosofia da diferença, na filosofia da imanência, numa palavra, na
filosofia deleuzeana,são profundas e múltiplas as marcas deixadas por
Nietzsche. Não se trata aqui, porém, de analisar de que maneira a
Tradução de Paulo Nunes reflexão de Deleuze se inspirou nas idéias do autor de Za afzzsfra nem
de indagar em que medida seu prometofoi por elas influenciado. Bem

1Merleau-Ponty, Sig/zes,Paria, Gallimard, 1960, p. 201.


2 Ct. Empirismo et sabjectiuité,Paus, PUF, 1953; La pbilosopbie critique
ó3G. Deleuze, D//7érenceef rílPéfifion, p 332. de Kanl, Paria,PUF, 1962;Le bergsonisme,Paris,PUF, 1966;Spinom ef /eproa/ême
ú4G. Deleuze, Loglqae du sons, p. 125. Grifos nossos. de /'expression, Pauis, Minuit, 1968.

234 Gérard Lebrun Deleuze e sua sombra 235


mais instigante é investigar a leitura que ele propõe em Nlefzscbe e a Esse elemento,diferencial e genético, Deleuze acredita encontra
P/osoÁza,é vê-lo à obra, debruçado sobre o pensamento nietzscheano, lo na vontadede potência. Ela "é o elementode que decorrem ao
que -- como o seu próprio -- hoje também faz parte da história da mesmo tempo a diferença de quantidade das forças postas em relação
filosofia. e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força"5. A partir da di-
Em 1962, é de modo original que Deleuze tenta reconstruir a fi- ferença de quantidade, as forças seriam ditas dominantes ou domina-
losofia de Nietzsche. E, ao fazê-lo, procura ressaltar o seu caráter "re- das; a partir da qualidade, ativas ou reativas. Fonte da qualidade das
solutamente antidialético". Sustentando ser Hegel o alvo principal de forças, a vontade de potência precisaria ter, ela mesma, elementosqua-
seus ataques, afirma que "o anta-hegelianismo atravessa a obra do fi- litativos primordiais, que seriam justamente o afirmativo e o negati-
lósofo, como o fio da agressividade"3. O cerne da argumentação de vo. "Não se podem julgar forças", declara Deleuze, "se não se levar
Deleuze reside em mostrar que, se Hegel trabalha com o "não dialético", em conta, em primeiro lugar, sua qualidade, ativa ou reativa; em se-
Nietzsche suprime o poder independente da negação e abre espaço para gundo lugar, a afinidade dessa qualidade com o pólo correspondente
o "sim dionisíaco"4. O abismo que separa a negação dialética e a afir- da vontade de potência, afirmativo ou negativo; em terceiro lugar, a
mação dionisíaca esconderia um outro: o que se instaura entre o mo- nuance de qualidade que a força apresenta, num tal ou qual momen-
nismo metafísico e o pluralismo radical. Em Hegel, a reconciliação das to de seu desenvolvimento, relacionada com sua afinidade"Ó
oposições implicaria a supressão da diferença; em Nietzsche, a filoso-
fia pluralista exigiria justamente a afirmação dela e, por isso, teria na Em Assim Áa/az/aZarafustra, Nietzsche apresenta, por vez pri-
dialética o seu "mais feroz", o seu "único inimigo profundo' meira, sua concepção de vontade de potência. Identificando-a com a
No entender de Deleuze, é pela diferença que Nietzsche substitui vida, concebe-acomo vontade orgânica; ela é própria não unicamen-
a negação, a oposição, a contradição. O conceito de força, central em te do homem, mas de todo ser vivo; mais ainda: exerce-senos órgãos,
sua obra, tem caráter relacional: toda força se acha numa relação es- tecidos e células, nos numerosos seres vivos microscópicos que cons-
sencialcom outra; relação que não abriga elementonegativo algum, tituem o organismo. Aquando em cada elemento, encontra empecilhos
mesmo porque uma força não nega a outra -- apenas afirma a sua di- nos que o rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se opõem e colocá-
ferença. Com isso, as noções de luta, guerra, rivalidade e mesmo com- los a seu serviço. Manifestando-se ao deparar resistências, desencadeia
paração tornam-se secundárias. As forças definem-se quantitativamente; uma luta que não tem pausa ou fim possíveis e permite que se estabe-
a determinação puramente quantitativa permanece, porém, abstrata, leçam hierarquias jamais definitivas.
quando a ela não se juntam uma interpretaçãoe uma avaliação das Na tentativa de resolver como se dá a passagem da matéria iner-
qualidades. Ora, a essência da força reside na diferença de quantidade te à vida -- um dos problemas candentes da ciência da época --, Nietz-
que ela apresenta ao relacionar-se com outra, de sorte que não se pode sche elabora então sua teoria das forças. A força só existe no plural;
separar a própria quantidade e a diferença de quantidade. Assim, a não é em si, mas em relação a; não é algo, mas um agir sobre. Não se
diferença de quantidade passa a constituir a qualidade da força; mais pode dizer, pois, que ela produz efeitos nem que se desencadeia a par-
ainda, ela acaba por remeter a um elemento diferencial das forças em tir de algo que a impulsiona; isso implicaria distingui-la de suas ma-
relação, que é também o elemento genético de suas qualidades. nifestações e enquadra-la nos parâmetros da causalidade. Tampouco
se pode dizer que a ela seria facultado não se exercer; isso importaria
atribuir-lhe intencionalidade e enreda-la nas malhas do antropomor-
3 G. Deleuze, Nlefzscbe ef /a pbí/osopbie, Paria, PUF, 4' ed., 1973, p. 9.
fismo. A força simplesmentese efetiva, melhor ainda, é um efetivar-
4 Essa mesma idéia também é defendida por Murray Greene ("Hegel's se (mir&e?z).Agindo sobre outras e resistindo a outras mais, a força
Unhappy Consciousness' and Nietzsche's 'Slave Morality'", in Nega/ and tbe
pbi/osopby o/' fbe re/íglon, ed. Darrel E. Christensen, Haia, Martinus Nijhoff,
s G. l)e\euze, Nietzscbe et !a pbilosopbie, oP. çit., p. S6
1970, pp. 125-41) e por Michel Haar ("Nietzsche and the metaphysical language'
in Mcz/zand Wor/d,IV, 4 [1971],pp. 392-3). 6 /dem, p. 69.

236 Scarlett Marton Deleuze e sua sombra 237


tende a exercer-se o quanto pode, quer estender-se até o limite, mani- constitui um estímulo. Inevitável, trava-se a luta -- por mais potência.
festando um querer-vir-a-ser-mais-forte, irradiando uma vontade de Não há objetivos a atingir; por isso ela não admite trégua nem prevê
potência. "Toda força motora", assegura Nietzsche, "é vontade de termo. Insaciável, continua a exercer-sea vontade de potência. Não
potência, não existefora dela nenhumaforça física, dinâmica ou psí- há finalidades a realizar; por isso ela é desprovida de qualquer teleolo-
quica"7. Com a teoria das forças, eleé levado a ampliar o âmbito de gia. O caráter essencialmentedinâmico da força impede que ela não
atuação do conceito de vontade de potência; se, ao ser introduzido, se exerça; seu querer-vir-a-ser-mais-forte impede que cesse o comba-
este operava apenas no domínio orgânico, agora passa a atear em te. A vontade de potência, impulso de apropriar e dominar, leva a força
relação a tudo o que existe. A vontade de potência aparece assim como a querer prevalecer na relação com as demais; aquando em todas elas,
explicitação do caráter intrínseco da força. desencadeia uma luta geral e permanente. O combate todavia não se
Tributária da ciência da época, a noção de força permite a Nietz- confunde com extermínio nem a precedência com hegemonia. Para que
sche postular a homogeneidade de todos os acontecimentos; entre or- ocorra a luta, é preciso que existam antagonistas; como ela é scm tré-
gânico e inorgânico, não existe traço distintivo fundamental -- e tam- gua ou termo, não pode implicar a destruição dos beligerantes12.
pouco entre físico e psíquico ou, se se quiser, "material" e "espiritual". Não é por acaso que Nietzsche confessa sentir na proximidade
De posse dessa noção, ele poderia muito bem abrir mão do conceito de Heráclito "mais bem-estar do que em qualquer outra parte"13. Num
de vontade de potência. Se o mantém, é porque acredita que o mecani- de seus primeiros textos, Á /i/osoPa na época f7'ágicados gregos, já
cismo não dá conta do que existem;quer, então, juntar aos quanta dinâ- manifesta admiração por esse pensador "orgulhoso e solitário". De
micos uma qualidade9. Isso não quer dizer que a vontade de potência fato, como não respeitar nele o descaso pelos homens, que se aproxi-
seja uma substância ou uma espéciede sujeito; não significa que cons- maria de sua crítica ao "espírito de rebanho", o desdém pela política
titua um ente metafísico ou um princípio transcendente. Qualidade de dos efésios, que precederia seus ataques ao falatório democrático, o
todo acontecer, ela, que diz respeitoao efetivar-seda força, é fenómeno desprezo pela polimatia, que antecipada seu combate à erudição? Co-
universal e absoluto10;em outras palavras, "esse mundo é a vontade mo não reconhecer a proximidade entre a ideia de que um mesmo
de potência -- e nada além disso! "li. Querendo-vir-a-ser-mais-forte, objeto se presta a avaliações opostas, se feitas de pontos de vista dis-
a força esbarra em outras, que Ihe opõem resistência, mas o obstáculo tintosi4, e o próprio perspectivismo?Como não apreciar até mesmo
a linguagem oracular, que prenunciaria o estilo aforismático? Mas
talvez estejamem outra parte as afinidades mais profundas entre os
7 IV, 14 (121), primavera de 1888. Utilizamos a edição das obras de Nietz- dois pensadores.
sche l WerÊe, Kritische Studienausgabe) organizada por Colli e Montinari e publi-
No entender de Nietzsche, Heráclito recusa a dualidade de mun-
cada na Trança com o título Friedricb Nietzscbe. (Lutes pbilosipbiques complêtes,
Gallimard. dos, que Anaximandro foi levado a admitir; rejeita a separação entre
8 É dessa maneira que lemoso fragmentopóstumo com que Deleuze abre
seu capítulo acerca da vontade de potência (p. 56): "Esse conceito vitorioso de força, 12A partir da análisede um dos primeirosescritosde Nietzsche,Gérard
graças ao qual os nossos físicos criaram Deus e o mundo, tem necessidade de um Lebrun mostra que o agózzhomérico reaparece na vontade de potência. Referin-
complemento; é preciso atribuir-lhe um querer interno que denominarei vontade do-se à /wsla de }iomero, escreve: "Esse texto deixa transparecer um traço carac-
de potência" ]X], 36 [31] de junho/julho de 18851. terístico da 'vontade de potência': mais próxima de um jogo que da guerra total, a
9A esse propósito, cf. Müller Lauter, "NietzschesLehre vom Willen zur luta é sempre pela dominação, nunca pelo aniquilamento do adversário" ("A Dia-
Macha", in Niefzscbe Sf die/z, 1974 (3), pp. 19-28, e Nlefzscbe, seilzePbí/osopbie lética Pacificadora", in A/mcznaque,n' 3, São Pauta, Brasiliense, 1977, p. 33).
der Gegensãfze and díe Gere?zsãfzeseiner Pbf/osopóie, Berlim, Walter de Gruyter, i3 Cf. Ecce pomo, "0 nascimentoda tragédia", S 3.
1971, em especialo capítulo l.
i4 Os fragmentos de Heráclito DK 9, DK 13 e DK 58 convergiriam nesse
10C{. Para além de bem e mal, S 22. sentido, e ainda o DK 61, em que se lê: "Mar, água mais pura e mais impura, para
ii XI, 38 (12), junho/julho de 1885. os peixes potável e saudável, para os homens impotável e mortal"

238 Scarlett Marton Deleuze e sua sombra 239


um reino das qualidades determinadas" e outro da "indeterminação Ao contrapor o pluralismo radical de Nietzsche ao monismo me-
indefinível". Mais ainda: nega, em geral, o ser, julgando-o uma ficção tafísico de Hegel, Deleuze aponta de maneira decisiva a relevância da
vazia, e questiona o testemunho dos sentidos15, não por revelarem a teoria nietzscheana das forças e nisso reside um dos inúmeros mé-
diversidade e a mudança, como quis Parmênides,mas por não as re- ritos de seu livro. É por ignorar a noção de força que estudiosos fo-
velarem o bastante -- e apresentarem os objetos como se fossem do- ram levados, por vias diversas, a fazer da vontade de potência um prin-
tados de unidade e duração. Entendendo que este mundo, aqui e ago- cípio metafísico ou ontológico, ou até mesmo a humanizá-la19.Por
ra, não mostra, em parte alguma, permanência, dele retira a estabili- despreza-la, viram-se obrigados a desconsiderar o prometonietzscheano
dade e também a tranqüilidade. Conclui, então, segundo as palavras de ultrapassar a metafísica e construir uma nova concepção de mundo.
de Nietzsche, que "toda a essência da efetividade é, justamente, ape- Mas a leitura de Deleuze talvez comporte alguns excessos. Um
nas efetuação e que, para ela, não há nenhum outro modo de ser"16. deles consiste em recorrer à noção de força para refletir sobre o con-
A recusa da dualidade de mundos, a negação do ser e a afirmação do junto dos escritos do filósofo. Sem preocupar-se em refazer seu itine-
vir-a-ser, essesseriam os pontos fundamentais que o filósofo alemão rário intelectualou lançar mão da periodização de seustextos, Deleuze
considera comuns ao seu pensamentoe ao de Heráclito. Não é por acaba por operar com a noção de força como se ela já se achasse pre-
acaso que eledeclara: "A afirmação do pcrccimento e do aniquilamen- sente desde O nasc/me/zfo da fragédlíz. Ora, é apenas em 1 882, quan-
to, o que é decisivo em uma filosofia dionisíaca, o dizer-sim à contra- do da rcdação da GczldcIêncIa, que Nietzsche se volta para essa no-
dição e à guerra, o vir-a-ser, com radical recusa até mesmo do concei- ção, e é somente em 1885 que elabora a teoria das forças.
to de 'ser' nisso tenho de reconhecer, sob todas as circunstâncias, Por centrar-se no exame das questões relativas aos valores, De-
o mais aparentado a mim que até agora foi pensado"i/. leuze atribui peso desmedido às idéias de força aviva e reativa. Ora, é
Em Heráclito, o construir e destruir, essemovimento cósmico que apenas muito raramente que Nietzsche utiliza os termos ízfiz/oe real/z/o.
se repete com periodicidade, surge da guerra dos opostos, pois é dela Emprega-os,por certo, na Genes/orla da mora/, quando, ao examinar
que nasce todo vir-a-ser. Universal, a guerra está em toda parte; sem a origem da justiça, considera ativas a avidez e a sede de dominação e
pausa ou fim, ela é permanente. Como dois contendores, os opostos reativa a vingança20. E à idéia de reafiz,o recorre ainda uma vez num
combatem, de sorte que a tensão, que se instala entre eles, faz com que fragmento póstumo: "0 que é 'passivo'? Resistir e reagir; estar blo-
ora um ora o outro tenha precedência. Como os atletas nas palestras, queado no movimento para diante, portanto, um ato de resistênciae
os artistas nos anfiteatros, os partidos políticos na agora e as cidades- de reação. O que é 'ativo'? Tender para a potência"21. Mas aqui dei-
estado na Hélade, os inúmeros pares de opostos lutam "em alegretor- xa claro que os termos afaz/oe reaflz/o,ou passfz/o,evocam simples-
neio". Aqui, a noção de competição, em que se baseia toda a vida po- mente o fato de que as forças se exercem. Tanto é que entende que da
lítica e social dos gregos, atinge a "máxima universalidade" . Com He- luta que se trava entre elas se estabelecem hierarquias -- sempre tem-
ráclito, a idéia de luta, entendida agora como o que gera o vir-a-ser, porárias. E, com estas, surgem as forças que mandam e as que obede-
revestecaráter agonístico. E com Nietzsche também. Tanto é que ele
encara "tudo o que ocorre, todo movimento, todo vir-a-ser como um
constatar de re]ações de graus e de forças, como um combate [...]"18 i9 No primeiro caso, podem-secontar Heidegger,Jaspers e Granier; e, no
segundo, Kaufmann.
15Nessa direção, seria possível ler o fragmento DK 107: "Más testemunhas zoCf. A gePzea/agia
da moral, "Segunda Dissertação", S ll
para os homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras eles têm'
zi Xl1, 5(64), verão de 1886/ outono de 1887, que prossegue: "A 'nutrição
lõ A Filosofia na época trágica dos gregos, $ S. é apenas derivada: a origem é tudo querer encerrar em si; a 'geração' é apenas
derivada: originalmente, onde uma vontade não basta para organizar tudo de que
i7 Ecce pomo, "0 nascimentoda tragédia".
se apropriou, uma contravontade entra em ação, assumindo a separação, um novo
18Xl11,(65) 9(91), outono de 1887. centro de organização, depois de um combate com a vontade original"

240 Scarlett Marton Deleuze e sua sombra 241


cem, as que atuam e as que reagem, as que são "ativas" e as que são Partindo da distinção entre forças ativas e reativas, Deleuze pro-
;'reativas" num determinado momento. cura entender a crítica de Nietzsche ao positivismo, ao humanismo, à
De acordo com Deleuze, o pensamento nietzscheano apresenta- dialética. Ignorando as qualidades das forças, essas maneiras de pen-
se como " resolutamente antidialético", porque a filosofia pluralista exige sar se revelariam impotentes para interpretar e incapazes de avaliar.
a afirmação da diferença. Entendendo o movimento dialético enquan- A diabética,em específico, seria uma força que, impossibilitada de afir-
to negação da negação, julga imprescindível banir do pensamento a con- mar a sua diferença, não mais agiria; ela se limitaria a reagir às forças
tradição, a negação, a oposição. Ao afirmar a diferença, o pluralismo que a dominam. Negando tudo o que não é, ela poria o elemento ne-
radical exclui a guerra, a rivalidade e mesmo a comparação. "Jamais gativo em primeiro plano e dele faria a própria essênciae o princípio
seria demasiado insistir em relação a este ponto", escreve Deleuze, "o mesmo de sua existência. Pensamento fundamentalmente cristão, ela
quanto as noçõesde luta, guerra, rivalidade ou mesmo comparação são apareceria como "a ideologia natural do ressentimento, da má cons-
estranhas a Nietzsche e à sua concepção de vontade de potência"22. Ora, ciência". E Deleuze conclui: "Não existecompromisso possível entre
da perspectiva de Nietzsche, o mundo é contínua criação e destruição. Hegel e Nietzsche. A filosofia de Nietzsche tem grande alcance polê-
Pluralidade de forças, ele não constitui um sistema nem se apresenta mico; ela forma uma antidialética absoluta, propõe-se denunciar to-
como mera multiplicidade. O mundo é antes um processo -- e não uma das as mistificações que encontram na dialética um último refúgio"2S
estrutura estável; os elementosem causa, enter-relações-- e não subs- Para dissipar a sombra do hegelianismo,Dcleuze lança mão da
tâncias, átomos, manadas. Totalidade interconectada de quanta dinâ- filosofia do meio-dia. Na guerra contra as formas contemporâneas do
micos ou, se se quiser, de campos de força em constante tensão, o mundo pensamento da identidade e da repetição, no embate contra os princí-
não é governado por leis, não cumpre finalidades, não se acha subme- pios transcendentes e as categorias clássicas da representação, na crí-
tido a um poder transcendente-- e mais: sua coesão não é garantida tica ao monismo metafísico de Hegel, é o autor de Zarafusf7'a que
por substância alguma. Se permanece uno, é porque as forças, múlti- Deleuze mobiliza. Pois, como ele mesmo afirma: "Compreende-se mal
plas, estão todas inter-relacionadas; elas se acham em combate perma' o conjunto da obra de Nietzsche, se não se vê 'contra quem' seus prin-
nente, agindo e reagindo umas em relação às outras. cipais conceitos são dirigidos. Os temas hegelianos estão presentes nessa
Ao conceber as forças como dotadas de qualidade e ao distingui- obra como o inimigo que ela combate"ZÓ
las em ativas e reativas, Deleuze tem de fazer da vontade de potência E, no afã de fazer de Nietzsche seu principal aliado, Deleuze acaba
o elemento diferencial das forças em relação e o elemento genético de por desprezar elementos centrais do pensamento nietzscheano. Isso não
suas qualidades. Para dar conta da distinção que estabeleceentre for- invalida, porém, a legitimidadede sua leitura; ao contrário, revela que,
ças ativas e reativas, tem de diferenciar força e vontade de potência e em sua reflexão, história da filosofia e filosofia se entrecruzam, a ponto
distinguir, na vontade de potência, dois elementosqualitativos primor- de tornarem-se indiscerníveis. Afinal, o próprio Deleuze conclui a esse
diais: o afirmativo e o negativo. Com isso, ele diferencia e distingue propósito: "Parece-nos que a história da filosofia deve desempenhar
onde Nietzsche não o faz, não pode fazê-lo sem renunciar à coesão um papel bem análogo ao de uma co//agenuma pintura. A história
interna de seu pensamentozJ. Pois, como se lê na conhecida passagem da filosofia é a reprodução da filosofia mesma. Seria preciso que a ex-
de Para a/ém de bem e ma/, trata-se de "determinar toda força eficiente plicação em história da filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e
univocamente como: vontade de potência"z4. comportasse a modificação máxima própria ao duplo"27

22G. Deleuze, Niefzscbe ef /a pbflosopófe, p. 93.


23Cf. Müller-Lauter, "Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht", in Nielzs- 25G. De\tule, Nietzscbe et [a Philosophie, p. 223.
cbe Sf diefz,1974 (3), p. 23. zó Idem, p. 187.

24Para além de bemtt


e ma!, S 36. 27G. Deleuze, Dz//érefzceef répéfiffon, Paris, PUF, 1968, p. 4

242 Scarlett Marton Deleuze e sua sombra 243


SOBRE O BERGSONISMO DE DELEUZE
Êric Alliez

Creio que é bem abstrato dar conta de um pensa


mento pelo que ele encontra em outros autores, pois ele
só encontra aquilo que coloca neles, e neles coloca por
razões inteiramente diferentes...

IGilles Deleuze, Correspondêlzcla prit/anal

Creio que corremos riscos muito grandes ao que-


rermos reconstituir, baseando nos nas semelhanças exte-
riores de uma doutrina com outras. as influências sofri-
das por um autor. Quando indicações precisas, emanan
do do próprio autor, nos permitem encontrar o que ocor
reu efetivamente em sua mente, apercebemo-nos frequen-
temente de que o caminho que ele seguiu é muito diferente
daqueleque nos teria parecido natural supor.
IHenri Bergson, 12 de junho de 1928)

Em suma: é preciso reconhecerque não se poderia projetar um


título de pesquisa a priori menos deleuzeano e menos bergsoniano do
que o seguinte: "Sobre o bergsonismo de Deleuze". Além da descon-
fiança dos dois filósofos em relação às palavras em "-ismo", sabe-se
muito bem que "nunca há estrelas duplas no céu da filosofia": na or-
dem do "evento", quando algo acontece, "é de uma vez por todas",
dizia ainda um bergsoniano frequentementecitado, com ou sem as-
pas, por Deleuze: Charles Péguyl
Mas Deleuze é o autor de um livro intitulado O bergso/cismo,e a
ele acedemos por meio de dois estudos de dez anos antes, publicados
em 1956. O primeiro é sobriamente intitulado "Bergson"; o segundo,
"A concepçãoda diferençaem Bergson". Que nos permitamformular

] Ch. Péguy, Cabíers de /a Qufnzzzízze,3 de fevereiro de 1907. E Péguy con-


clui: "As poucas superposiçõesque sepoderia assinalar ou são apenas superposições
aparentes, ou não interessam à metafísica e à filosofia"

Sobre o bergsonismo de Deleuze 245


logo nossa hipótese de trabalho permanecendo o mais próximo possí- Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero.
vel desses títulos. Á mifzfma: passa-se de Bergson ao bergsonismo de E há pessoas que hoje se divertem acusando-me por ter es
Deleuze investindo-se a questão da diferença como /né'io de desfz'acção grito até sobre Bergson. Ê que elas não conhecem suficien-
do bergsonismo estabelecido jque Merleau-Ponty qualificava de "berg- temente história. Não sabem o quanto de ódio Bergson, no
sonismo retrospectivo") -- em sua versão mais sóbria, à qual o velho início, concentrou na Universidade francesa [...] Foi Nietz-
Bergson pede dar a]gum crédito: "[...] arrancando o pensamentodo sche, que li tarde, quem me tirou disso tudo. Pois é impos-
determinismo científico, [o bergsonismo, esse bergsonismo enquadra- sível submetê-lo ao mesmo tratamento. Ê ele quem nos faz
do no conjunto tomista ou derivado do Abso]uto tei]hardiano] orien- filhos pelas costas [...]".3
tou-o /zoz,amenfepara uma metafísica espiritualista, e finalmente para
um novo acesso à verdade cristã" Igrifo meuj2. A max/ma: tratar-se-á Dessa longa citação, evidencia-se bastante que nossa hipótese só
de apreender, no bergsonismo de Deleuze, a heterogêneseem ato do poderá, ao final, se sustentar em relação ao alcance do descentramen-
pensamento deleuzeanotanto no nível do sistema como no do método. [o operado por Deleuze sobre a obra bergsoniana, e considerando-se
É preciso aqui citar Deleuze: sua função constituinte para o próprio pensamentodeleuzeano.Fo-
calizando-se essa gênese "bergsoniana" do "deleuzismo", compreen-
[...] Durante muito tempo 'fiz' história da fi]osofia[...] der-se-ia em que condições a descoberta "tardia" de Nietzsche, que
Minha maneira de me safar disso na época foi, creio, con- alimentaria a publicação de Nlefzscóe e a /7/oso#al 19621, fora como
ceber a história da filosofia como uma espécie de enraba- que suscitada pelos primeiros estudos bergsonianos, antes de fecun-
mento ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu dar, por sua vez, O bergso/zlsmo
(1966). Tudo ocorreu, então,como
me imaginava chegando pelas costas de um autor e Ihe fa- se a "grande identidade Espinosa-Nietzsche", em direção à qual "tudo
zendo um filho monstruoso. Que o filho fosse seu era mui- tendia"4, tivesse sido alimentada por uma emissão mais secreta, com-
to importante, porque era preciso que o autor dissesseefe- posta pela "pequena" identidade Bergson-Nietzsche que forma a base
tivamente tudo aquilo que eu o fazia dizer. Mas também era do triângulo vitalista constituído da seguinte maneira:
necessário que o filho fosse monstruoso, porque era preci-
so passar por toda espécie de descentramentos, deslizamen- Espinosa
tos, quebras, emissõessecretas que causaram muito prazer.
Bergson Nietzsche
2 De modo mais sintético, ver o prólogo de l e zri Bergsofz. Estais et fémoig-
fzages fnédlfs recml//is pízrA. Begwin et P. Tbéz/maz, Neuchatel, La Baconniêre, 1941, Isso logo nos leva a ressaltar que o pertencimento geológico do
p. 8. E, segundo uma prosa mais desenvolvida, a de Maurice Blondel: "A própria pensamentodeleuzeano a uma certa filosofia francesa, que tem seu
idéia de movimento e de abertura não implica uma referência antecedente a uma início entre a última filosofia de Maine de Biran e o À4émoirede Ra-
certeza prévia, a uma perspectiva enquadrada e posterior, mas que não atinge ab- vaisson, dará matéria a essa identidade "menor", de origem bergso-
solutamenteo vazio e a noite? O velho adágio: om/zfsmofas áandafz r i?zímmoóí/f
efaliso/ufo não tem a significação submetidaà imaginação que Ihe atribuem indevi- niana, em que se deu a grande ruptura com a filosofia do Estado --
damente-." ("La philosophieouverte", oP. cil., pp. 88-9). -- Manteremos a demons em prol de uma filosofia da Vida e do Devir, em que, para evocar um
oração de Henri Gouthier, ressaltando que a cristologia de D as Óonfes "elimina a
teologia " ao se pretender "estritamente filosófica", cf. Bergson dons /'bisrofre de la
3 G. Deleuze, "Lettre à un critique sévêre", PourPar/ers, Paras, Minuit, 1990,
pe/zséeoccfdenfa/e,Paria, Vrin, 1989, p. 119. Merleau-Ponty, por sua vez, soube
pp. 14-5; essetexto tinha sido publicado em 1973 -- dez anos, portanto, antes dos
focalizar o elemento "pré-cristão" dessa mística, cf. "Bergson se faisant" (Szgmes,
trabalhos sobre o cinema, em que Deleuze iria compor um bergsonismo cinema
Paria, Gallimard, 1960, pp. 238-9). Em que o "partido" jcom e sem maiúscula) que
tográfico bem estranho...
batalhara com sucesso, às vésperas da Grande Guerra, para obter o banimento de
Bergson da Igreja, se encontra como que retrospectivamente fundado em sua petição. 4OP. clf., P 185.

246 Éric Alliez Sobre o bergsonismo de Deleuze 247


Bergson em ressonância com Nietzsche e Espinosa, "não há coisas, só uma filosofia "pegue", no ponto de identidade do expressionismo do
há ações"5 (quer dizer, impulsões e construções). O que poderia ser percePto (a percepção não é uma impressão, a percepção é alucina-
traduzido da seguinte maneira: não há impressões, só há expressões. ção) e do construtivismo do conceito (o conceito é criação).
Mas escutemos Deleuze: Novamente Péguy, em sua Note sul' M. Bergson ef /a p&//osopbfe
bergsonfen/ze: "Uma grande filosofia não é aquela em que não há nada
"A re]ação da fi]osofia com o Estado [...] vem de ]...] a retomar. É aquela que pegou algo"
longe. É que o pensamentotoma do Estado sua imagem
propriamente filosófica como bela interioridade substancial O fato de que esse algo tenha sido pego a partir de uma imagem
ou subjetiva. Ele inventa um Estado propriamente espiritual, bergsoniana do pensamento deveria ser uma evidência para qualquer
como um Estado abso]uto [...] Certamente, também Bergson
leitor de Dfáerença e repeffção atento ao recentramento que condiciona
foi absorvido pela história da filosofia à francesa; e, entre- a dimensão crítica da obra, com essa "potência intuitiva de negação"
tanto, há nele algo de inassimilável, aquilo por meio do qual
que forma a primeira expressão de um pensamento8 e que parece aqui
elefoi um abalo violento, um ponto de confluência para identificar-seem todos os pontos com a intuição negadora do senso
todos os oponentes, o objeto de tantos ódios, e é menos o comum instaurada por Bergson. Recentramentodo pensamentoem
tema da duração do que a teoria e a prática dos devires de uma diferença não-pensável na identidade abstrata do conceito, que
todo tipo e das multiplicidades coexistentes"6. libera a filosofia do primado da identidadeno ser e na representação,
"à custa de uma reversão categórica mais geral, segundo a qual o ser
Nas observações que se seguem, tentar-se-á circunscrever esse se diz do devir; a identidade, do diferente; o uno, do múltiplo etc."9
inassimilável" que atwa/izzzrfa,de algum modo, o tema da duração e -- é essa revolução copernicana que provoca o retorno dos grandes
que constituiria a pree/zsãopropriamente deleuzeana a partir da qual temas bergsonianos,a partir de uma série de dualidades em que um
se tornaria possíve] "dizer a]go em seu próprio nome [...] abrindo-se pólo é sempre dinâmico e intensivo, ao passo que o outro é inevita-
para as multiplicidades"7 para se arriscar a produzir, a fazer com que velmente estático, pelo fato de ser apenas, antes de mais nada, o invó-
lucro exterior e o efeito abstrato da representação do primeiro.
s H. Bergson, "L'intuition philosophique", L'ét/o/uffo z créafrfce, p. 249 / Oeií-
Posto que a diferença está por trás de qualquer coisa, desde que
z/res,Édition du Centenaire, Paria, PUF, 1959, p. 705. Segundo o uso corrente, daremos
sempre essasduas referências, sendo a primeira a da última edição do livro por Bergson. apreendida em sua heterogeneidadee seu devir, Deleuze partilhara com
Bergson a idéia de que a filosofia é questão de precisão, na medida em
6 G. Deleuze, C. Parnet, Dia/ogaes, nova edição, Paris, Flammarion, 1966
l 1977), pp. 20-2. Talvez Deleuze pensassenas seguinteslinhas de Bergson, em uma
que ela se propõe a determinar as condiçõesefetivas da experiência
carta a H. M. Ka]]en, autor de Wf//iam /amas and He/zri Bergson: "]-.] unidade e real -- e não as condições genéricas de uma experiência simplesmen-
multiplicidade distintas são, para mim, apenas visões sobre algo que participa das te possível para a representação que profeta algo (de semelhante) por
duas sém ser nem uma nem a outra, e que denomino "multiplicidade qualitativa' detrás da diferença10... Isso equivale a dizer que, de Platão a H.egel,
ou "multiplicidade de penetraçãorecíproca") ou "duração". Todo meu esforço passandopor Kant, e sobretudopor Kant, "o que mais faltouà filo-
desde o dia em que comecei a filosofar se concentrou nessa consideração de uma sofia foi a precisão. Os sistemas filosóficos não são talhados à medi-
m /flp/lcidade sui generis, que os filósofos sempre deixaram de lado porque da
duração só percebiam seu símbo]o espacia], e qiíe é .z própr;a rea]ídade [-.]". A
carta termina com a evocação de uma "harmonia preestabelecida" entre o tema 8 H. Bergson, :L'intuition philosophique: La pensée et !e moteuant, pp
120-1/ 1348.
da duração e o "stream of consciousness" jamesiano (28 de outubro de 1915;
repub[icada em H. Bergson, Mé/finges, Paras, PUF, 1972, pp. 1 ] 91-4). 9 G. Deleuze, Dr/Xérenceef réPéfifío/z, Paris, PUF, 1968, p. 59.
7G. Deleuze, PoKTParlers, OP. clf., pp. 15-6. É bem sintomático que essedesen- io Cf. G. Deleuze, op. cíf., p. 80: "São sempre as diferenças que se asseme-
volvimento sobre o "gosto perverso", dado por Nietzsche, de "dizer coisas simples lham, que são análogas, opostas ou idênticas: a diferença está por detrás de todas
em seu próprio nome" se organize em torno da noção bergsoniana de multiplicidade-. as coisas, mas por detrás da diferença não há nada

248 Éric Alliez


Sobre o bergsonismo de Deleuze 249
da da realidadeem que vivemos. Eles são", conclui Bergson, "gran- 21 É realmente preciso investir na "fórmula mágica" PLURALIS-
des demais para ela"t i. E como não, se, como explica Deleuze, mar- MO = MONISMO, passando por todos os dualismos, que são o ini-
cando a oposição da representaçãoa uma formação de natureza to- migo, mas o inimigo totalmente necessário, o móvel que não cessamos
talmente diferente, "os conceitos elementaresda representação são as de deslocar. Será necessário lembrar que ninguém mostrou melhor do
categorias definidas como condições da experiência possível. Mas es- que Deleuze, em O bergsonismo, que esse quadro era, por excelência,
tas são demasiadamente gerais, grandes demais para o real. A rede é o de Bergson, ultrapassando a contradição aparente entre o dualismo
tão carga que os maiores peixes passam através de]a [...]"i2. Que a das diferenças de natureza e o monismo da contrição-distensão no plu-
metafísica se torne a própria experiência em uma filosofia da experiên- ralismo das durações, tal como ele compõe o monismo do Tempo em
cia pura -- esse programa de ajuste da imanência do pensamento à função da teoria das multiplicidadesvirtuais e do princípio diferen-
univocidade do devir é o de um "empirismo superior" IDeleuzel cuja cial dc sua atualização14...?
"superioridade" não excederia os limites de um "empirismo verdadei-
ro", que só trabalharia "sob medida", definindo assim um "empirismo Em síntese, se é preciso um método que "faça efetivamente" o
radical" IBergson marcando sua afinidade com o pragmatismo de Wil- múltiplo, tudo indica que, para Deleuze, esse método será, antes de
liam James, ao preconizar a "experiência integral"). Um empirismo tudo, de inspiração bergsoniana.
comum a Deleuze e a Bergson, que impõe um novo estilo de enunciação Retomando o texto bergsoniano, esse método será essencialmente
filosóficapara explorar, na imanênciae na univocidadedo Ser, os problemático, na medida em que eleengajará a realidade de sua ex-
requisitos de um pensamento da realidade da diferença: um estilo em periência, manifestando a má vontade necessáriapara "expulsar os
que intuição rima com narração, problematização e descrição dos pro- conceitos já dados" -- os conceitos da representação -- para colocar
cessos de individuação, fora da argumentação. Não tememos multi- de forma nova os problemas, esposar as articulaçõesdo real e seguir
plicar as citações para manifestar essa comunidade de estilo e de escrita. as tendências destas ao invés de se deixar guiar pela lógica conserva-
Esta frequentemente não possibilita perceber a frase deleuzeanacomo dora que rege o senso comum quando ele "experimenta o problema
uma certa linha flexuosa" cuja variação depende de uma potência de tal como é colocado pela linguagem". Disso se segueque "conversa-
integração que é a de uma totalidade viva, sob a espécie de uma con- ção assemelha-semuito a conservação", e que se terá em baixa esti-
tinuidade heterogêneade interpretação recíproca, remetendo ao berg- ma o Homo /ogaax, "cujo pensamento, quando ele pensa, não passa
sonismo como a seu centro virtual de expressão? E pensa-se aqui menos de uma reflexão sobre sua fala", apoiando sua comunicação em um
no "rizoma" do que no problema geral da escrita deleuzeana je deleuzo- conhecimento que seus interlocutores já possuem; e que, de modo
guattarianal tal como se expõe em um duplo nível em Mi/ P/afõs13: oposto, para a filosofia que se liberou da dialética natural às palavras
e às coisas recortadas pelo entendimento na continuidade da vida.
11São realmente necessáriasexpressões anexatas para descrever formular o problema é inventar e não apenas descobrir, é criar, em um
algo exatamente, considerando-se que a anexatidão não é de modo mesmo movimento, a formulação do problema e sua soluçãoiS. "E
algum uma aproximação -- é, ao contrário, escrevem Deleuze e Guat- chamo filósofo todo aquele que cria a solução, então necessariamen-
tari, reencontrando a fórmula do bergsonismo, a passagem exala do
que se faz;
]4 G. Deleuze, Le bergsonisme, Paras, PUF, 1966, capa. IV e V.
15H. Bergson, oP. cff., Introdução (Segundapartem:"Da formulação dos pro-
il H. Bergson,La pe?zsée
ef /emowuamf.
IntroduçãoIPrimeiraparte),pp. l blemas". Pensar-se-á certamente na crítica da "metafísica da linguagem" desenvolvida
/ 1253. por Nietzsche; ver especialmente O crepúscu/o dos !'ao/os, S 5: A linguagem, por
sua origem, remonta aos tempos da forma mais rudimentar de psicologia; tomar
i2 G. Deleuze, oP. cif., pp. 93-4.
consciência das condições primeiras de uma metafísica da linguagem, ou, mais cla-
i3 G. Deleuze &: F. Guattari, Mli//ep/afeaax, Paria, Minuit, 1980, p. 31. ramente, da razão, é penetrar em uma mentalidade grosseiramente fetichista

250 Éric Alliez Sobre o bergsonismo de Deleuze 251


te singular, do problema que ele formulou de novo", com "o sentido ção do tempo em um problema"20 -- e forçando o outro filósofo a
novo que tomam as palavras na nova concepção do problema"16 e a reencontrar a idéia geradora do bergsonismo sob a forma de uma onto-
criação de novos conceitos que disso pode derivará /. Sem essa subver- logia do devir. Deixar-se-á de lado, aqui, a questão de saber se o pró-
são do senso comum e essa ruptura com a doJccz,os quais alimentam prio Bergson pressentiu algo dessa experiência no contado com Gal)riel
o ideal lógico do reconhecimento; sem uma teoria geral do problema Tarde, para marcar a ressonância dessa observação na tese da trans-
que não mais configure o pensamento sobre proposições "sólidas" cendência de toda filosofia em relação ao tempo histórico em que ela
supostamente preexistentes,colocando o problema como o elemento se inscreve. Nisso, Bergson retoma uma idéia profundamente nietz-
genético extraproposicional de produção do verdadeiro; sem essa afir- scheana, da qual se sabe tudo o que Deleuze poderá extrair (o devir
mação do problemático como intensidade diferencial das próprias não é história).
Idéias em seu movimento de iminência irredutível tanto à Analítica Em todo caso, é de um ponto de vista bem bergsoniano que De-
como à Dialética, porque introduz a duração no pensamento, reconci- leuze faz com que "A imagem do pensamento" seja seguido por um
liando verdade e criação no nível dos problemas e dos conceitos... capítulo intitulado "Síntese ideal da diferença", depois por outro, o
bem, na falta desse empirismo especulativo que é assim levado a investir último de DIÓerelzça e repetição, tendo por título "Síntese assimétrica
na oposição da intuição "diferencial" bergsoniana à análise do "previa- do sensível", capítulos em que se elabora o princípio problemático de
mente dado", e sem a subversão geral que atinge a natureza, a essência uma filosofia diferencial segundo a idéia de uma multiplicidade inse-
problemática do próprio ser, "a famosa revolução copernicana não é parável de uma virtualidade que não suporta "nenhuma dependência
nada"18
a do idêntico no sujeito ou no objeto". Pois, em Deleuze, como para
Ora, se é verdade que essa fórmula de Deleuze, em capítulo que Bergson(e Tarde), é o investimento metafísico do cálculo infinitesimal
constitui uma espécie de órgão vital de Difere/zça e repetição, "A ima- que comanda a ontologia, dando-lhe a feição característica de uma
gem do pensamento", não se refere explicitamente à revolução berg- heterogênese, introduzindo o tempo, em um mesmo movimento cons-
soniana, é ainda em Bergson que se poderá encontrar afirmada, de tituinte e diferenciante, no ser e no pensamento o tempo como vi-
algum modo, a necessidadedo bergsonismode Deleuze. De fato, per- talidade do ser e genitalidade do pensar. Crise da noção de verdade
gunta este, "sendo a filosofia compreendida desse modo, há chances no âmbito de uma oncologia do virtual.
para que um filósofo encontre antecipadamenteou pressintao que um Sabe-se que o tema da subversão do ser "previamente dado" em
outro filósofo encontrará? Isso não é de modo algum impossível,se prol de um devir "fazendo-se" e de um movente "mais interior a mim
esse filósofo compreende do mesmo modo o método fi]osófico [...]"1 9 mesmo que eu mesmo", que determina a fluidez dos conceitos desse
No caso, o método não poderá mais reencontrar o tempo como um pensamentoem duração cujo filosofar consisteem inverter a direção
objeto possível de pensamento, mas como o modo objetivo do Ser- habitual do trabalho do pensamento, é explicitamenterelacionado por
Pensamento, forçando o filósofo a "medir as incidências da introdu- Bergson, em um texto célebre reproduzido em O pensame/ztoe o mo-
uenfe, com a inversão na maneira de pensar operada pela primeira vez
pela análise infinitesimal. Ela será designada como "o mais potente
método de investigação de que dispõe o espírito humano", por aqui-
is H. Bergson, "Lettre à FI. Delattre", dezembro de 1935, in Mé/íz/ages,Pa- lo que toma de empréstimo da realidade concreta do movimento e do
ras,PUF, 1972,p. 1528. tempo. Ora, se "a quantidade é sempre qualidade em estadonascen-
i7 Ora, sabe-se se "a idéia que poderíamos tet para criar integralmente, para te", é "natural que a metafísica adote, para estendê-la a todas as qua-
um objeto novo, um novo conceito, talvez um novo método de pensar, nos repug-
na profundamente", cf. L'éz/o/wfiomcréafrice, pp. 48 / 535.
i8 G. Deleuze, Di/7Zrence ef répéfitio?z,p. 210. 20B. Paradis, "lndétermination et mouvement de bifurcation chez Bergson
i9 HI. Bergson, "Lettre à FI. Delattre, ibidem. Pbflosopble,n' 32, 1991,p. 12.

252 Éric Alliez Sobre o bergsonismo de Deleuze 253


lidades, isto é, à realidade em geral, a idéia geradora de nossa mate- Ora, nessescapítulos de DfÁerença e rePeffção, que se iniciam com
mática [...] Digamos, portanto, [...] que um dos objetos da metafísica um longo desenvolvimento dedicado à história "esotérica" da filoso-
é operar diferenciaçõese integraçõesqualitativas"2i. Sendo dito que fia do cálculo diferencial (Maimon, Wronski, Bordas-Demoulinl, De-
essa idéia geradora é ela mesma de origem metafísica e que ela parti- leuzevai de algum modo duplicar a processualidade bergsoniana, in-
cipa de uma inteligência da vida que é suficiente para afirmar a supe' rcgrando seu vitalismo diferencialista à definição objetiva do proble-
rioridade da biologia sobre as outras ciências... Disso deriva que, se macomo Idéia23. Idéia cuja gênesediferencial consiste no deslocamento
as grandes descobertas científicas foram "como que inserções de son- tla dualidade do conceito e da intuição, na medida em que ela vai do
da na duração pura", "quanto mais viva tiver sido a realidade toca- virtual à sua atualização, das condições de determinabilidade do pro-
da, mais profunda terá sido a inserção da sonda"22. Isso também sig- 1)lemaaos casos de solução determinados, como fonte da produção
nifica que a vida é o campo de afirmação da plena realidade do virtual, dos objetos reais na sínteserecíproca das relações diferenciais -- "essa
na medida em que não é atual. O tema diferencial explicita, assim, a é", explica Deleuze, "a matéria da Idéia no elemento pensado da qua-
natureza ontogenética da identidade postulada por Bergson entre onto- litatibilidade em que esta está imersa"24. Extraindo-se, assim, Bergson
logia do devir e ontologia do virtual. de sua última vinculação com o kantismo, investindo na crítica de
Malmon para estilhaçar na Idéia o extrinsequismodo conceito e da
intuição, o que equivale a colocar uma diferença de grau entre o sen-
zi H. Bergson, OP. clf., pp 214-5 / 1422-3. J. Millet reuniu e comentou o
sívele o inteligível, Deleuze elabora um bergsonismo ideal de inspira-
conjunto dos textos de Bergson sobre o tema "infinitesimal" em Bergson et /e ca/cu/
ção pós-kantiana25. Inscrevendo na base da ontologia o ser do pro-
In/InlfésimczZ,
ou /a raison ef /e femPS,Paria, PUF, 1974. Bergson se refere explici-
tamenteao método newtoniano das "fluxões" pensando, sem dúvida, na passa' 1)1emáticocomo multiplicidade interna que concerne ao evento e
gem famosa do Trajado da q adraf ra das cwrz/asque introduz a noção: "Não à produção do novo por geração ideal de descontinuidades, ele pode-
considero as grandezas matemáticas como formadas de partes, por menores que rá desenvolver uma oncologia diferencial que saiba afirmar a realida-
sejam, mas como descritas por um movimento contínuo [-.] ". É a partir dessa noção de do virtual como característica da Idéia e razão do Sensível no siste-
de fluxão que o próprio Bergson "chegará assim a conceitos fluidos, capazes de
ma matemático-biológico da diferençação/diferenciação" [dl/7ére/zffa-
seguir a realidade em todas as suas sinuosidades e de adotar o movimento mesma
da vida interior das coisas" {ibld.). Para os desdobramentosdessa leitura berg- f/on/df/Hérenciaffo/zJ:em que a diferençação [dl/7éren /afío/z] remete à
soniana do Cálculo, ver Le Bergsonfsme de J. Benda, Paria, 1912, nota E, Le Roy, determinação por relações diferenciais do conteúdo virtual da Idéia,
e l,a penséema bémallq e Fure, PUF, 1960,cap. XVIII.
Gabriel Tarde é o grande predecessorde Bergson por seu investimentometafí-
sico da revolução epistemológica "diferencial" que o conduz igualmentea uma doutrina 23Enquanto a Idéia participa em Bergson, com toda a filosofia grega, da
do Elã vital e da Evolução criadora. Diversas fórmulas de Bergson sobre o pensamento ilusão cinematográfica: "Eixos é a visão estável tomada sobre a instabilidade das
como "integração-diferenciação", assim como "a grande distinção do estático e do coisas", cf. l,'éz/o/K/io/z créarríce, p. 3 13-7 / 760-3
dinâmico, em q e efz ra também a do Espaço e do Tempo,[que] divide em dois o
24 G. Deleuze, op. cff., p. 225.
universo inteiro" Iões loasde /'lmilaffon, Paria, 1890, p. IS91, provêm diretamente
do corpus tardeano aparaa influência de Tarde sobre Bergson, cf. J. Millet, Gabriel 25Ver a homenagemprestadaa HermannCohen lop. clf., p. 298). Em um
Tarde et la pbi/osopbie de /'bisloíre, Paria, Vrin, 1970, p. 386-8). Deleuze consagrou artigo recente, Arnaud Villani soube mostrar que o efeito de convergência entre
numerosas passagens a Tarde(especialmente em DiÓermça e repetição e À4íJ PZatós)- is filosofias de Deleuze e de Whirehead se dava a partir de uma base filosófico-
Gilbert Simondon desenvolveua noção de transdução a partir do esquema matemáticacomum, passando por Maimon e seu uso do princípio infinitesimal.
integração-diferenciação" . Cf. L'índia/idn el sa gefzêsepbysfco-bio/oglque ( 1 964), Sem analisa-la, ele evoca, no início de seu artigo, uma triangulação Deleuze-White-
Ed. J. Millon, 1995: "0 tipo fundamental de transdução vital é a série temporal, ao head Bergson, cf. A. Villani, "Deleuze et Whitehead", Rez/z/ede À élapbysfqwe ef
mesmo tempo integradora e diferenciadora; a identidade do ser vivo é feita de sua tem- de Mora/e, n' 2, 1966, especialmente pp. 249-51.
poralidade" (pp. 161-2). O que significa dizer que "em toda operação vital completa
se encontram reunidos os dois aspectosde integração e de diferenciação" (p. 207). * Sigo aqui a tradução de df/Hêre7zffafionproposta por Luiz Orlandi e Roberto
Machado no glossário da tradução de Difere/zçae repezíção, Rio deJaneiro, Graal,
zz H. Bergson, La pe/zséeef /e mouz/afzf,pp. 217-8 / 1425. 1988. [N. da T.]

254 Éric Alliez


Sobre o bergsonismo de Deleuze 25.5
diferencial a suas formas de atualização. É, portanto, pela distinção
e a diferenciação [d]/Hêrencfaf]on]remete à atualização dessa virtua-
lidade em espécies e partes distintas correspondendo aos casos de so-
entre os dois tipos de multiplicidade -- as multiplicidades qualitati-
lução do problema. Ora, é a intensidade, por meio do processo essen-
vas internas e as multiplicidades quantitativas de exterioridade, as
multiplicidades contínuas referidas à ordem do virtual enquanto per-
cial das quantidades intensivas, que determina as relações diferenciais
tencentes essencialmente à duração, mudando de natureza ao se divi-
a serem atualizadas nas qualidades e nos extensos que ela cria por
dir para não ser constituída por um conjunto de termos distintos, aco-
individuação... Deleuze realiza, assim, uma operação à Bergson para
além de Bergson, remetendo a crítica bergsoniana da intensidade -- lhendo o novo em seu devir na medida em que ele é necessariamente
no Ensaio sobre os dados /medfatosda conscfê/zela-- a essa "ilusão. heterogêneo àquilo que o precede..., e as multiplicidades discontínuas
física transcendental" que faz com que só conheçamos uma intensi- atuais representadas pelo espaço homogêneo segundo o regime do
partes exf7'apartes -- que o bergsonismo se apresenta para Deleuze
dade já atualizada em um extenso, e recoberta por qualidades que
como a fonte intensiva da oncologia moderna como filosofia da dife-
tendem a anular a diferença de intensidade, que se encontra colocada
fora de si em sua "explicação". Afirmar-se-á, no entanto, que ocorre rença "essa filosofia da Diferença que o conjunto do bergsonismo
representa", escreve eleZV.Se é verdade que a diferença entre o espa-
aí, pelo menos à primeira vista, "deslizamento" ao invés de "quebra".
ço e a duração, entre o atual e o virtual, torna possível a própria dife-
Como qualificar, de fato, esse movimento que consiste em destacar o
princípio ontológico da Diferença do princípio empírico da Identida- rença, é todo o bergsonismode Deleuzeque está mobilizado na afir-
mação de umczfilosofia da diferença, na medida em que "a filosofia é
de [evando em conta: ]) que "a extensão [é] precisamente o processo
a teoria das multiplicidades", segundo a fórmula que assume a fun-
por meio do qual a diferença intensiva é posta fora de si, repartida de
modo a ser conjurada, compensada, igualizada, suprimida, no exten- ção de abertura em seu último texto, publicado postumamente. Essas
so que ela cria"26; 2) que, em oposição ao falso movimento da reali-
poucas páginas, tão densas em seu título e seu conteúdo o mais
bergsoniano possível -- "0 atual e o virtual" --, em que é reformulado
zação que privilegia a semelhança do real com o possível, em que esse
último foi ele mesmo retroativamente concebido à imagem do real, a mais uma vez o essenciallou o "inassimilável"l, a saber, que só se atin-
girá o plano de imanência se for conferida ao virtual uma plena reali-
atualização é diferenciação produtora de uma verdadeira criação, que
não se assemelhaàs virtualidades constituídas de relações diferenciais dade, da qual depende sua atualização como diferenciação integrada
em uma atualidade determinada. De tal forma que "o atual é o com-
que ela incorpora? Portanto, como qualificar esse movimento, a não
plementoou o produto, o objeto da atualização, mas esta só tem como
ser, ainda uma vez, de bergsoniano? Aliás, Deleuze é o primeiro a lem-
sujeito o virtual"30. E como "sujeito de direito, na medida em que ele
brar que, ao interrogar a dupla gênese da qualidade e do extenso jem
Mlózférfa e memória), Bergson "redescobre no interior da duração a sefaz, [...] a vida, como portadora de singularidades". O fato de que
essa última frase, extraída do livro Foucawlf, designe para Deleuze o
ordem implicada por essa intensidade que só havia sido denunciada
de fora e provisoriamente"27.Redescobertaque dará lugar à Euo/u- verdadeiro horizonte da obra foucaultiana não surpreenderá o leitor
capaz de detectar o movimento geral bergsoniano de sua leitura3]
ç.ão criadora e à aproximação da biologia às matemáticas do infi-
nitesimal. Cito a passagem sobre a função "englobante" da biologia:
Assim fundada,essa filosofiada diferençasó poderia reencon-
Na medida em que podemos pressenti-lo, o procedimento pelo qual
29 G. Deleuze, ibid.
se passaria da definição de uma certa ação vital ao sistema de fatos
físico-químicos que ela implica teria uma analogia com a operação por se G. Deleuze, "L'actuei et le virtuel", publicado em anexo à nova edição
meio da qual se vai da função à derivada [...]"28, isto é, da virtua]idade dos D/cz/ogaes com C. Parnet, oP. cif., pp. 180-1.

31Tal como Frédéric Gros, em seu belo artigo sobre "0 Foucault de Deleu-
2ó Idemz, p. 300.
ze; uma ficção metafísica", Pbf/osopbie, n' 47, 1995, pp. 53-63, que conclui: "So
27 /denz, p. 308. Cf. Le bergsonlsme, oP. cif., pp. 92-5. nhar Foucault encontrando emBergson um duplo fraternal". Cf. Foucczn/f,Paris,
Minuit, 1986, p. 97, para a citação de Deleuze.
28H. Bergson, l,'éz/o/afia/zcréafríce, op. cif., p. 32-3 / 521-2.

Éric Alliez Sobre o bergsonismo de Deleuze 257


256
trar e desenvolverpor si mesma a grande intuição vitalistaque havia :afirmar que toda confusão entre individuação e especificação, bem
feito com que Bergson descobrisse a possibilidade de um novo mo- como entre individualidade e forma do Eu, "compromete a totalida-
nismo: o monismo do e/ã Fila/ como proa/emafização e dez/irde fn- deda filosofia da diferença"37. Isso seria renunciar à gênese e à cons-
d/z/id zção do seP2. Uma filosofia da di/ere zça z/ifa/que apresenta o tituição para se ater, à maneirade Kant e mesmode Husserl, a nm
vivo múltiplo como ser problemático por excelência, considerando o simples condicionamento transcendente! segundo o qual a condição
devir como a dimensão do vivo através da individuação, teatro de indi- remete ao condicionado c'tja imagem eta decalca conforme o modelo
viduação do ser e do pensamentono devir vital. Pois a individuação do possível mantido pelas filosofias da representação-\sso seria, pot-
não suporá qualquer diferenciação ou especificação prévias, que rela- ranto, renunciar a apreender cada existente em sua novidade c con-
cionariam e reduziriam por abstração a diferençaa identidadese se- fundir o virtual com o possível, uma vez estabelecidoque "o que se
melhanças entre estados como condições jsegundo "o artifício comum diferencia é antes de tudo o que difere de si mesmo, isto é, o virtual"38
do método de Spencer", que consiste em reco/zsfif ir a ez/o/#çãoízpartir Será necessário, então, apreender, por um processo circular, a teoria
de /ragmenfos do ez/o/uíao)33;ela as provocará, engendrará, criará, do conbecimenfo e a feorla da z/idacomo inseparáveis uma da outra.
ao contrário, a partir de um campo pré-individual intenso, singulariza- I'ois, se "uma teoria da vida que não é acompanhada de uma crítica
do somente pelas diferenças de intensidade (ou diferenças individuantes, tlo conhecimento é obrigada a aceitar, tais como são, os conceitos que
isto é, diferenças vitais), que fazem da vida uma "imensidade de vir- o entendimentopõe à sua disposição"iP, inversamente, na medida em
tualidade" com tantas "zonas de indeterminação" quantos forem os que o vivo é considerado em suas fendênclaspróprias e quando é re-
seresvivos34... Como diz Raymond Ruyer, aqui mais bergsonianodo conhecido o caráter empa'ico do elã vital, há -- segundo a formula-
que ele o pensa, o x da individualidade está aquém da existência atual ção de Canguilhem -- "resistência da coisa, não ao conhecimento, mas
dc tal forma que ela é a fonte da diferenciação unitária35, que apa- a uma teoria do conhecimento que procede do conhecimento à coi-
recerá "como constituída por diferenças múltiplas, complementares sa"4u. Ê, portanto, o vivo que marca, assim, a necessidade de um em-
umas às outras [...] "36. Compreende-se,portanto, que Deleuzepossa pirismo superior que substitua as condições de qualquer experiência
possível pelas condições da experiência real. E "se essas condições
podem e devem ser apreendidas em uma intuição", enfatiza Deleuze,
32Seguindo aqui a leitura deleuzeana, tomo essa expressão de G. Simondon, 'é precisamente [.-] porque elas não devem ser maiores do que o con-
onipresente nesses capítulos de Df/lêre ce ef répélífíofz: "0 devir não é devir do
ser individuado, mas devir de individuaçãodo ser" (OP. cif., p. 234). dicionado, porque o conceito que elas formam é idêntico a seu obje-
[o"41. Apreende-se aqui o que une Deleuze tão intimamente, tão ex-
33Cf. HI. Bergson, L'éz/o/KtioKcréafríce, pp. 363 / 802. Ver igualmentea
"Introdução", pp. X / 493. Mecanismo e finalismo serão, portanto, descartados,
na medidaem que as "criaçõesda vida" são aí igualmentepredeterminadase o
tempo é concebido sem eficácia real. Sobre o papel fundador dessa crítica de Spencer 37G. Deleuze, op. cit., p. 318.
para o pensamentobergsoniano,cf. Líz pe/zséeef /emoz/z/íznt,
pp. 2-5 / 1254-6. 38G. Deleuze, "La conception de la différence chez Bergson", Les Éf des
34Cf. H. Bergson, "Lettre à L. Brunschvicg", Paras, 26 de fevereiro de ] 903, bergsomie#z/zes,
vol. IV, Paria, PUF, 1956, p. 97.
]Wé/czges, P. 585. 39H.. Bergson, L'éuolutio/zcria/ríce, Introduction, pp. IX / 492.
35R. Ruyer, E/éme?zfsde psyc#o-bio/agia, PUF, 1948, pp. 133, 141. Mas 40G. Canguilhem, "Le concept et la vie", Frades d'bfsfoire ef de pbi/oso-
Ruyer toma o partido de ignorar a dimensãovirtual-intensivado elã vital como pbfe des sciences, Paria, Vrin, 1968, p. 351. Conhece-se, na introdução a l,a com-
fonte da diferenciação independente do anual", para recriminar Bergsoá por seu Piafsscznce
de /a ple, essa fórmula marcada com o selodo bergsonismo:"0 pensa-
irracionalismo (pp. 242-3). Deleuzeenfatizaacerca desseponto o profundo berg- mentodo vivo deve manter do vivo a idéia do vivo" IParis, Vrin, 1989, p. 13).
sonismo de Ruyer, cf. l,e bergsomisme,p. 103, n' l.
4i G. Deleuze, "La conception de la différence chez Bergson", loc. cif., pp
3óHI. Bergson, Les denx sources de la morde ef de /a re/igiofz," Signification 85-6. É nessecontexto que aparece, em Deleuze, a primeira ocorrência da idéia de
de I'élan vital", pp. 120 / 1073. um "empirismo superior

258 Éric Alliez 259


Sobre o bergsonismo de Deleuze
clusivamente, à perspectiva bergsoniana e a seus prolongamentos em samenfo em dlreção à z/Ida44.E, de fato: se "a filosofia só pode ser um
Ruyer e Simondon, uma vez que só há um vitalismo integral para afir- esforço para se fundir novamente no todo"4Õ, "para ultrapassar a
mar o ponto de vista da ontogênese na identidade constituinte da fi- condição humana"46 e "criar criadores"47, a experiência de pensamen-
losofia e da ontologia. É por isso que Deleuze retoma tão frequente- to devetâ set de ultrapassagem do uiuido pela vida através do ser uivo.
mente o primeiro capítulo de À4aréría e memória, esse livro libertado Uma filosofia da vida para a qual -- segundoo autor de Duas Áonfes
da psicologia pelo tema da afe/zçãoà z/fda(Prólogo da sétima edição): da mo al e da re/lglão-- a própria moral é "de essênciabiológica",
bombardeando a distinção entre sujeito e objeto com sua teoria das sc aceitamos conferir "à palavra blo/orla o sentido muito abrangente
imagens", Bergson atinge o plano da imanência como experiência blueela deveria ter, que talvez algum dia ela tenha"48; uma ontologia
pura, pura imanência da vida a si mesma, deslocando a oposição en- do vivo e não uma fenomenologia do vivido. Segundo o regime da
tre a vida e a matéria em direção a "toda uma continuidade de dura- idealidade deleuzeana, a objetividade da Idéia junta-se aqui à subjeti-
ções", com, entre a matéria e o espírito, todas as intensidadespossí- vação do pensador: "Todo corpo, toda coisa pensa e é um pensamento,
veis de uma memória pura, idêntica à totalidade do passado, "passa' na medida em que, reduzida às suas razões intensivas, ela exprime uma
do em geral" que existe em si sob o modo de uma coexlstê/zela z,Irfucz/ Idéia cuja atualização ela determina. Mas o próprio pensador faz de todas
l"o passado é a ontologia pura"42): igualdade plena do ser e da vida as coisas suas diferenças individuais; e é nessesentido que ele é cober-
implicandoa coextensividadede direito da consciênciaà vida, que to de pedras e de diamantes, de plantas 'e dos próprios animais'"49.
verifica, assim, sua independência em relação ao Eu na identidade da
Ligando e entrecruzando, como acabamos de fazer, as concep-
memória com a própria duração43. Essa idéia de que tudo não é dado
ções de Deleuze e de Bergson, tomando como linha diretriz "a obra-
jem uma forma que remete necessariamenteà questão do sujeito),
tronco de onde toda obra provém"SO -- Diferença e repeflção --, tudo
porque o virtual é o todo vivo, remete ao cerne de A ez/o/liçãocriadora
o tema nietzscheano da n/Irapass.agem do comem por seu próprio pefz-
M Ce. P. Trotlgnan, L'idée de uie chez Bergson et [a critique de ]a méta-
/9óysígae,Paris, PUF, 1968, p. 279: "A ultrapassagemdo homem é uma disfi/zção
42G. Deleuze, Le bergsonlsme, oP. cff., p. 51. Em um artigo citado por epzfre.z z/idae z co/zsciê7zcfa
/zo comem no próprio instante em que compreendo a
Deleuze ("Aspects divers de la mémoire chez Bergson"), Jean Hyppolite passa pela
Idefzlldadedíz vida e da cofzsciê cfa /zczco/zsclêncla". Remetendo às precauções de
língua alemã para aproximar o passado da essência: gemese?ze Weselz. "É preciso
[$ergsonna uti]ização deste último termo ("Por fa]ta de uma pa]avra melhor [.-]
que a ontologia seja possível" (p. 44) essa afirmação, esse grito deleuzeano,
Mas não se trata dessa consciência diminuída que funciona em cada um de nós
inspira toda a obra sobre Bergson. [...]"), o autor enfatiza muito acertadamente que a z/idaé mais prímordiaZmenfe
43Em seu curso de 1947-1948, Merleau-Ponty denunciava a "cegueira de consclê/leia do gire mlnóa consclê/zela (p. S091. É só por conceber a ontologia como
Bergson ao ser próprio da consciência, a sua estrutura intencional" na medida em 'estática" que P. Trotignon pode concluir que a filosofia bergsoniana é "uma fe
que "é impossível, em sua perspectiva, nos situarmos no dinamismo de um sujeito nomenologia absoluta, que não remete ízqua/quer onfo/ogia, porque e/a s p ime
constituinte" (M. Merleau-Ponty, L'K/zion de I'onze ef d# coros cbez Malebrapzcbe, a disfunção entre o em-sà o para-si e o em-si-P.zrcz-si". Como ele mesmo escreve:
Bírafz ef Bergson, Paras, Vrin, 1978, pp. 81-2). rls três são nm só e mesmomouime?zto:a d ração do ser... (p. 592).
Raymond Ruyer explicitará a crítica da intencionalidade fenomenológica do
45H. Bergson, L'éz/o/#fío/zcréalrice, pp. 193 / 658.
ponto de vista de uma filosofia da gênese: "A consciência primária não é nem
consciênciade um Espírito-sujeito que percebe,nem consciênciade um Objeto, real 4óH. Bergson, l,a pelzséeef /e mozzz/anf,pp. 218 / 1425
ou ideal. A consciência é toda formação aviva, em sua atividade absoluta, e toda
47 H. Bergson, Les dezlx sources de /a mora/e ef de Za re/zgion, pp. 270 / 1 192.
formação é consciência". A título de uma psicobiologia, eledesenvolverásua filoso-
fia da morfogênesea partir de uma identidade forma-potencial-subjelividade(situa- 48 Idem, pp. 1 03 / 1061.
da "fora" do espaço-tempo do físico), ou consciência-morfogênese compreendida 49 G. Deleuze, op. cít., p. 327.
como "inteligênciainventiva". Assim "o homem só é consciente,inteligentee in
ventivo porque toda individualidade viva é consciente, inteligente e inventiva" -- 50A. Villani, "Méthode et théoriedana I'oeuvrede Gilles Deleuze", Les
cf. R. Ruyer, l,.z ge/zêsedes dormes z/iz/antes,Paras, Flammarion, 1958, cap. Xll: Temos modernas,n' 586, 1996, p. 142: "Cada livro sendo então como uma ex-
Philosophie de la morphogenêse' ploração fina em uma das direções abertas por esselivro-evento"

260 Éric Alliez Sobre o bergsonismo de Deleuze 261


indica que o sucesso relativo da proposta que tende a definir o berg- mas"52, Bergson, acerca de quem Deleuze não ignorava tudo o que
sonismo de Deleuze na perspectiva da gênesede seu pensamento marca sua ruptura com as filosofias críticas devia ao empirismo inglês53.
também o fracasso real do projeto de caracterização da novidade de- Se privilegiamos o artigo sobre a diferença em detrimento de seu
leuzeanaa respeito de Bergson. De forma que, uma vez verificado o duplo genérico,preso na determinaçãodos Pbl/osopbescé/êb7'es, e
centramento bergsoniano dessepensamento, tudo se passa como se o então intitulado simplesmente "Bergson" -- um Bergson estudado na
filho monstruoso, feito pelas costas de Bergson, só pudesse ser o efei- perspectiva do progresso de sua filosofia, bastante próximo do esquema
to da filosofia deleuzeanaem seus desenvolvimentos posteriores (para do Bergsonlsmo, mas reinscrito, no final, na história da filosofia: o que
ser breve: da concepção maquínica do desejo e do pensamento à teo- levava Deleuze a separar o método, "profundamente novo", do projeto,
ria do conceito que a acompanha, passando pelo investimento na com- 'não absolutamente novo, mesmo na França"54... --, é também em
plexidade labiríntica da dobra barroca em Leibniz, entre monadologia função da própria insistência extrema na qzzeslãodo conceífo. Pois o
e nomadologia)... Como se o #/bo monstruoso nascido da proa/ema- que se esboça nessetexto é a passagem do concelhopuro da dlÁerezzça,
tologia bevgsoniana não fosse diferente do próprio Deteuze em sua identificado com o virtual, à nafwrezado puro conceito de que a du-
conceptalogia metamorfoseante.. . ração ("diferença em relação a si", princípio de determinabilidade), .z
A hipótese se sustenta pelo fato de que, tanto no nível do método memória ( "coexistência dos graus da diferença", princípio de determi-
que determina a coerência da obra deleuzeanacomo em seu ponto de nação recíproca) e o e/ã z/ifa/("diferenciação da diferença", princípio
partida e seu lugar teóricos, dados pela questão do estatuto da diferen- de determinação completa cujos produtos são "objetos absolutamente
ça, é Bergson que encontramos -- na identidade do método e da teoria, conformes ao conceito [...] porque na verdade não são diferentes da
e na passagem da metodologia à oncologia, tais como eles se propõem posição complementar dos diferentes graus do próprio conceito") for-
imediatamente, óergso?zlanczmenfe, desde que se conceba um múltiplo mam três aspectos-- os três níveis beTgsonianosdo esquematismo do
diferencial como diferença interna. Isso é sabido, e admiravelmente co/zce/foem se ser co/zcrefo55.De forma que a leitura deleuzeana
abordado nos dois artigos de 1 956, e especialmenteem "A concepção consiste em identificar o "tamanho" de um conceito apropriado a um
da diferença em Bergson": o método da diferença só é elemento cons- objeto determinado segundoo movimento do "empirismo verdadeiro",
tituinte de uma ontologia da duração na medida em que "a duração, que vai das coisas aos conceitos "sob medida", moldados sobre as
a tendênciaé a diferença de si em relação a si mesmo; e o que difere formas maleáveis da intuição -- "conceito do qual dificilmente se pode
de si é fmedia amenfe a unidade da substância e do sujeito", "unida- dizer que seja um conceito", enfatiza Bergson56 --, ao movimento
de da coisa e do conceito", encontrando seu princípio na própria vida inverso, que não é mais o do "trabalho habitual da inteligência", dos
j"A vida é o processoda diferença") graças à noção de virtual ("A conceitos "previamente dados" às coisas, mas da gênese das coisas a
duração é o virtual"), que não contém negaçãoe descarta todo método partir da diferenciação do conceito. Na maneira como Bergson podia
dialético (porque dlÁerençaain(ü ex erma:Platão; ou diferença aPe as definir a noção de cor, "fazendo atravessar uma lenteconvergente"
absfrafa, tributária de conceitos demasiadamente gerais: Hegel)51, mas
afasta também, no fundo pelas mesmasrazões, uma abordagem de tipo
5z G. Deleuze, Empirismo et slfb/ecfiz/Ifé,Paras, PUF, 1953, p. 1 18-20.
fenomenológico. Bergson, portanto, para sair de Hegel e de Husserl;
Bergson presente no primeiro livro sobre Hume no nível de uma con- 53Cf. G. Deleuze, "Bergson", l,es pbí/osopbes cé/abres, sob a direção de M
cepção geral da filosofia que afasta o princípio das "objeções" funda- Mer[eau-Ponty, Éd. Lucien Mazenod, ] 956, p. 299, f/z/;pze.
das em uma crítica das soluções em nome de uma "crítica dos proble- s4 Idem, ibid.
55G. Deleuze, "La conception de la différence chez Bergson", /oc. cir., pp
99-100.
51G. Deleuze, "La conception de la difíérence chez Bergson", /oc. clf , pp sóHI. Bergson, La penséeet /e mono/cznf,pp. 197 / 1408; citado por Deleuze,
81, 89, 92, 96-7, 100. oP. cÍt., PP. 80-1.

262 Éric Alliez Sobre o bergsonismo de Deleuze 263


seus mil matizes, para leva-los a um mesmo ponto: então apareceria Somos, assim, confrontados a uma estrutura em quiasmo em que
"em sua unidadeindivisa" "a pura luz branca" de que cada matiztira, n não-conceitualização pelo próprio Bergson de sua prática do conceito
aqui embaixo, sua coloração própria. Então, conclui Deleuze, as df- cm um conceito do conceito que não seja mais o de sua identidade com
feventescores não são mais objetos sob um conceito, mas os graus ou ns idéias gerais, abstratas etc... encontra-se diferenciada e contra-efetua-
os matizes do próprio co/zceifo: "como as coisas tornaram-se os ma- tla por Deleuze em uma conceptologia que só existe e só funciona ao
tizesou os graus do conceito, o próprio conceito tornou-se a coisa"S z. integrar no nível do método e no conceito a totalidade das tesesde
Ora, esse desenvolvimento, que tendia a extrair uma verdadeira l\crgson. Daí uma leitura em sega/zdograz{ que slsfemalfzar(í esseste-
conceptologia da problematologia bergsoniana e permitiria circunscre- mas a partir de um conceito do conceito que figura para Deleuze esse
ver no ponto mais esperado a natureza do bergsonismo de Deleuze (de centro virtual, esse "ponto único" evocado por Bergson, tão extraor-
uma filosofia da diferença a uma ontologia do virtual enquíz/zfoteoria tlinariamente simples em sua intuição original, tão complexo nas abs-
do conceito), não é mais retomado na obra sobre O bergsonismo do rrações que o traduzem, que "o filósofo jamais conseguiu dizê-lo"60.
que nas publicações posteriores. A começar por DfÓerezça e repetição, S(} que Deleuze não desconhece que para Bergson essa impossível ex-
em que, como vimos, uma Idéia de inspiração pós-kantiana estranha- pressão é determinada pela í/zcomensarózbl/Idade da f feição ao con-
mente tomou o lugar daquilo que se anunciava de uma concepção celho e czoslsfema61... Ora, O bergsonismo está aí para mostrar que
heterogenética do conceito, relacionada durante um breve momento os deslizamentos, as futuras, e todas essas emissões secretas com as
a Bergson. Uma Idéia que marca certamente, z/faMalmon je a leitura tluais Deleuze nos entretinha em conversações consigo mesmo, parti-
feita por Guéroult58), uma etapa essencial entre os trabalhos sobre Kant cipam dessedescentramentoprincipal que, em minha opinião, não será
e sobre Espinosa e uma pedra de toque para um possível -- e que logo mais exposto enquanto tal porque ele enganao sentido da obra bergso-
se tornaria necessário -- retorno a Leibniz. Mas sobretudo uma Idéia niana lza produção e na gênese da filosofia deleuzeana em seu mo-
que vem ocupar o lugar deixado vazio por Bergsone sua crítica da iden- vimento mais próprio de afirmação do vitalismo do conceito. Por meio
tidade "estática", "sólida", "geométrica" ou "utensiliar" do concei- disso, TUDO o que Deleuze escreveu é vitalista -- assim como ele
to na representação; considerando que Bergson não desenvolverá, por mesmo o reivindicaóz
si mesma, a conceitualidadedo conceito como "ser fluido", isto é, a
concepção blo/(igicado conceito que ele, entretanto, põe em funcio- Considere-se a experiência integral do conceito em seu automo-
namento, e que, por isso, é ainda prisioneira da realidade dos concei- vimento. E o bergsonismo de Deleuze, que celebrará em Bergson "um
tos em biologia, em sua atualidade fundada na semelhançaespecífi- tios primeiros casos de automovimento do pensamento". Mas então
ca. E esse movimento que Canguilhem resume, ressaltandoque, em quais são os outros, se "a introdução do movimento no conceito se
Bergson, "a semelhança por especificaçãose prolonga na invenção faz exafame/zfena mesma época que a da introdução do movimento
humana do conceito, que equivaleà invenção humana da ferramen- [ia imagem"t'J?
ta: tanto o conceito como a ferramenta são mediações"59.
óoCf. H. Bergson, l.a penséeef /e moat/anf, pp. 119-20 / 1346-7.
57Ide#z, pp. 279-80/ 1455-6: extraído da nota sobre "A vida e a obra de ói Em seu comentário, A. de Lattre resume perfeitamente a dificuldade e o
Ravaisson", que o próprio Bergson admite ter bergsonificado. Citado e comentado 'desconforto" da situação bergsoniana: "'ultrapassar', dizem-nos, conceitos sem
por Deleuze, op. cif., p. 98. os quais -- como, aliás, nos declaram -- não podemos ficar; deles nos 'liberar:
s8 Ce. M.. Guéíou\t, La pbilosopbie transcendantale de Salomon Maimon, quando não podemos dispensa-los[...]" in Bergsolz. Une onfo]ogie de /a como/exffé,
Alcan, 1929, especialmente "Remarque n' 2", pp. 161-71, sobre a Idéia como I'ans, PUF, 1990, p. 284.
condição a priori da experiência, uma vez denunciado o valor unicamente formal 62Cf. Po rPar/ers, oP. clt., p. 196: "Tudo o que eu escrevi era vitalista, pelo
do princípio de identidade. xnenosespero [-.]"
59G. Canguilhem, /oc. clt., p. 353. ú3 idem, pp. 166-7.

264 Éric Alliez


Sobre o bergsonismo de Deleuze 265
Querendo afirmar com isso o caso único de Bergson na obra de 1 )0 CAMPO TRANSCENDENTAL
Deleuze a saber, para falar como Badiou, mas dele me diferencian- Ao NOMADISMO OPERÁRIO WILLIAM JAMES
do (como não?), não há um caso Bergson, porque o bergsonismo não l )nvid Lapoujade
ê um caso do conceito, mas a causa paradoxo! do conceito deleuzeano,
e de seu conceito do conceito, nesseenunciado indireto [iure que in-
vestirá todas as outras filosofias (incluindo a de Nietzsche...) como
"casos do conceito"64 absolutamente unívoco do Ser e do Pensar.
Entre Imanência e Vida, a filosofia, para ser e alcançar a gênese William James reivindica para si o empirismo radical. Sua filo-
do ato de pensar no próprio pensamento, deve desenvolveruma ver- \afia não é o pragmatismo, como se pensa habitualmente, mas o em-
dadeira criação: por oposição a tudo o que faz o mundo da reflexão llirismo. O que significa ser empirista radical? Deleuze e Guattari dão
do sujeito e do objeto. Bergson, portanto, quer dizer, também, Espinosa [i[n.] definição disso em O qae é a #/oso/7ai: "É quando a imanência
contra Hegel -- e "o que há", para um bergsoniano, "no espinosismo, ii;io é mais imanente a algo diferente de si mesma que se pode falar de
de irredutível a qualquer outra doutrina"65. E o que há, para Deleu- liln plano de imanência. Tal plano talvez seja um empirismo radical"i
ze, em Espinosa de irredutível, ou de "inassimilável", à cesura entre ( ) cmpirismo radical seria, consequentemente,essa operação que con-
metafísica da vida e filosofia do conceito. Espinosa, ou o problema da siste em liberar a imanência, em entrega-la a seu próprio movimento.
expressão de uma metafísica da vida como filosofia do conceito. Daí l .m outro texto, Deleuze denomina essa operação empirismo transcen-
que Bergson perceba muito precisamente em Espinosa "o mais difícil tlcntal, precisamente aquilo por meio do que se estabeleceum plano
dos filósofos"ÓÓ. E que a história da filosofia deleuzeana só se conce- tlc imanência, quando o plano de imanência é determinado como cam-
ba a partir de um bergsonismo espinosista que coloca a necessidade l)o transcendental.
do sistema (do conceito) como heterogênese(da vida). O que, dirá Se, em um primeiro momento, James se diz não empirista, mas
Deleuze, nunca fora tentadoÓ7.O que, no que me concerne, propus c'mpirista radical, é porque ele se relaciona não à experiência, mas à
chamar de uma onto-etologiaÓ8. cxPer/ê zelaparca.É o nome que o plano de imanência recebe em Wil-
liam James. Seu empirismo é radical por não reconhecer o dado tal
como o concebem os empiristas clássicos, que partem de uma distri-
Tradução de Ana Lúcia Oliveira l)uição anárquica de mifzima sensíveis -- de átomos psíquicos. Além
disso, nos empiristas o plano de experiência pura se confunde ainda
com o momento teórico, rapidamente ultrapassado, da tábula rasa; a
64A. Badiou, Deleuze. La c/ame r de /'érre, Paria, Hachette, 1996, p. 25. experiência é pura na medida em que aquele que a faz é em si mesmo
Badiou viu acertadamente que Bergson é o "verdadeiro mestre" de Deleuze, mas ainda puro de qualquer experiência: Adão, o recém-nascido. Há um
ele ainda menciona um "caso Bergson" (p. 62). outro modo de destacar um plano de experiência pura, que consiste
ó5Segundo o relatório do curso realizado no Collêge de France, 1910-1911 cm repetir a operação cartesiana da dúvida e suspender todas as posi-
lcf. Àfé/alzges,p 846). A idéia de um cartesianismo de Espinosa é, portanto, "in- ções existenciais que são objeto de crença ingênua -- todas as trans-
teiramente superficial". cendências. Reencontra-se, então, a célebre fórmula de Husserl, nas
óõEncontra-se essa consideraçãoem uma carta a F. Vanderem, datada de Meditações caffesfcznas:"0 início é a experiência pura e, por assim
27 de fevereiro de 1914 (À4é/.zlzges,p. 1040). dizer, ainda muda, que consiste em levar à expressão pura de seu pró-
õ7Na carta-prefácio a J.-Clet Martin, Vbrfafíons. La pbf/osopbíe de Gi//es prio sentido. Ora, a expressão realmente primeira é a do 'eu sou' car-
De/ezlze, Paria, Payot, 1993, p. 7.
SBCÍ. La signature du monde, ou qu'est-ce que la pbilosopbie de Delmze et
Guanari?, Pauis, Éd. du Cera, 1993, p. 36 (e cap. lll: Onto-éthologiques). l Qz/'esí-ceq e /a pbl/osopble?,Paris, Minuit, p. 48

266 Éric Alliez Do campo transcendentalao nomadismo operário -- William James 267
tesiano [...]"2. SÓ que a dúvida sempre é conduzida a partir de uma c'ram puras? É possível implanta-las no campo transcendental sem
certeza essencial da qual ela é o reverso negativo. Chega inevitavelmente t'xaminar melhor suas implicações? A questão parece tanto mais lus-
o momento em que ela volta para trás para instituir como primeiro rificada na medida em que essas formas, embora reorganizadas, am-
princípio algo cuja potência de constituição ela já manifestava atra- pliadasou reduzidas, são sempreduplicadas por uma psicologia em-
vés de seu poder de suspensão: um "Eu penso" l)írica da qual, além disso, pretendemosnos desfazer.4 Censura-se a
Então, "puro" adquire outro sentido. Não é mais atribuído a per- psicologia por seu empirismo e naturalismo, quando teria sido neces-
sonagens sem experiência -- tal como Adão ou o recém-nascido --, \ária critica-la por deles extrair formas ruins, distinções falseadas. É
como no tempo do empirismo clássico, mas doravante é atribuído a como se o transcendental fosse uma psicologia depurada. De certo
um campo purificado, pela dúvida, de todas as matérias da psicolo- modo, tanto para Kant como para Hlusserl,as formas são puras na
gia empírica. Puro designa, com efeito, aquilo que subsiste à redução iltedidaem que são formas -- há aí um pressuposto aristotélico ou
ou "colocação entre parênteses". Puro se diz de todos os vividos con- íomista profundo.
siderados de um ponto de vista imanente. Assim, há uma experiência Nessas condições, como pode James promover uma experiência
pura, mas também uma expressão pura ou uma consciência pura. Tra- pura ao mesmo tempo que reivindica um empirismo radical? A expe-
ta-sejá da mesma operação encontrada em Kant, embora ela seja con- riência pura não encontra sua expressão no ego da consciência pura.
duzida sob outros princípios e produza outros resultados: puro desig- Ao contrário, segundo o que diz Deleuze, em "A imanência: uma vida",
na a determinação das formas independentementede sua matéria em- um de seus textos mais densos, é preciso partir de um mundo em que
pírica. Identifica-seo puro com as formas a priori para fazer da maté- n consciência ainda não esteja revelada, embora seja coextensiva a todo
ria parte da empina, do condicionado,da experiência.3Começa-se o campo transcendental.SAinda não se pode praticar aí nenhuma dis-
pelas formas puras que, em seguida, são necessariamentepreenchidas tinção: nem sujeito, nem objeto. Do mesmo modo, em James, é preci-
por matérias ou por essências, diversificadas por meio de exemplos. so partir de um campo ilimitado em que as distinçõesdualistas
Se a fenomenologia pode se considerar, com razão, transcendental, é mundo físico e mundo psíquico, mundo do pensamentoe mundo da
na medida em que repete o procedimento kantiano, mas sob uma for- matéria, sujeito e objeto -- ainda não estão feitas ou não podem ser
ma mais complexa, menos visível, já que Husserl deixa menos evidente
o fato de que o par empírico/transcendentalrecobre inteiramenteo par
matéria/forma. De um modo geral, puro quer então dizer que as for- 4 Esse aspectofoi amplamente comentado. É, em primeiro lugar, a observação
mas são implantadas no campo transcendental, constituindo-se ora de Sartre, que critica Husserl por ter duplicado o eu psíquico com um eu trans-
como a priori, ora como vividos imanentes. cendental.Cf. l,a Iralzscedentede /'ego,Paris,Vrin, 1, A, pp. 19-20;em seguida,
esseé o sentido das páginas de M. Dufrenne sobre a retomada kantiana das facul-
Já as descrições da experiência pura dadas por James levam a dades da psicologia empírica de Hume e do formalismo de Husserl. Cf. La /zoffom
formular a seguinte questão: por que Kant e Husserl não examinaram d'a prior, Paria, PUF: sobre a retomada kantiana, p. 20-1; sobre o primado da forma
a pureza das próprias formas? Por que não examinaram se as formas em Husserl, pp. 90-1 e 94. E, finalmente, os textos de Deleuze em que se propõe a
do ego, do sujeito, do objeto, da imaginação, e da intencionalidade instauração de um empirismo transcendental que não seja decalcado das formas
empíricas, o que é uma outra maneira de dizer que não se deve relacionar o plano
de imanência a algo diferente dele mesmo. Cf. DI/Hérenceef réPéfflio#, PUF, lll,
PP. 186-7.
2 À4édffalfo?zs
carfésíen?zes,Vrin, S 16, p. 33. 5 Pbf/osopbfe,n' 47, Paris, Minuit, p. 3: "Enquanto a consciênciaatraves-
3 "Se a matéria de rodo fenómeno nos é dada, é verdade, somente a posteriori, sa o campo transcendental a uma velocidade infinita e difusa, não há nada que
é preciso que sua forma se encontrea priori no espírito, pronta para se aplicar a possa revela-la. Ela só se exprime, de fato, ao se refletir sobre um sujeito que a
todos, conseqiientemente,é preciso que ela possaser considerada independente- remexaa objetos. É por isso que o campo transcendental não pode ser definido
mente de qualquer sensação." Crfffque de /a rafson Fure, Paris, PUF, "Esthétique por sua consciência, que, embora Ihe seja coextensiva, é desprovida de qualquer
transcendantale", S 1, p. 54. Oeaures pbl/osopbiqKes,Paria, Gallimard, 1,p. 782. revelação

268 David Lapoujade Do campo transcendental ao nomadismo operário -- William James 269
feitas sem que a experiência deixe de ser pura, sem que a imanência apenas um algo primordial ou um material no mundo, um algo de que
seja perdida. É o campo da experiência no estado puro. Não é o cam- tudo é composto, e [...] denominamos esse algo 'experiência pura'".7
po de ninguém; ou, antes, ele não é dado a ninguém. Mas seria possí- C) plano de imanência não é uma matéria, mas um maferla/. Ora, o ma-
vel objetar: como pode haver experiência sem uma consciência ou um rcrial não se deixa pensar em uma relação matéria/forma, do mesmo
sujeito a quem ela se faz? Não se devem supor, ao menos, formas larvais iitodo como também não entra nas categorias sujeito/objeto, matéria/
de sujeito e de objeto? Aliás, James não diz que a experiência pura "é llcnsamentoetc. Ele é diretamente físico-mental. O material não é nem
consciente e é aquilo de que temos consciência"Ó? A experiência deve Matéria, nem Pensamento, embora seja o "estofo" dos dois.
então ser entendida em um sentido muito geral: a experiência pura é Com efeito, o materialnão é a matériaou o informe. Ele já é
o conjunto de tudo o que está em relação com outra coisa, sem que l)c'rcorridopor relações,como um tecidoé percorrido por fibras,por
necessariamente exista uma consciência dessa relação. Encontra-se algo linhas. A imagem do tecido retorna constantemente em James. Há um
desse uso da palavra expe7'fê/zela
na expressão comum "fazer uma ex- tecido da experiência pura -- Deleuze e Guattari, por sua vez, dizem
periência", por exemplo, a experiência da cristalização entre o cloro Lllle"o plano de imanência não pára de se tecer, gigantesco tear"8. E
e o sódio. Somos nós mesmos que fazemos a experiência; mas a expe- tln mesma maneira como, para eles, o plano de imanência se define
riência não se dfz de nós, ela se diz das coisas em relação: são o cloro como o "Uno-Todo ilimitado"9, assim também a experiência pura, em
e o sódio que se cristalizam; assim, são eles que efetivamente fazem a .Inmes, se apresenta como um "monismo vago"10. O termo monlsmo
experiência da cristalização. Na medida em que é pura, a experiência não deve, entretanto, nos enganar; na realidade, trata-se de um plu-
pode ser dita tanto dos "sujeitos" como dos "objetos" (o que conti- ralismo, mas ainda virtual. O mundo da experiência pura apresenta-
nua a ser uma maneira de falar, pois nessenível nenhum dos dois exis- sc como um tecido de relações entrecruzadas, superpostas, de aconte-
te). Em termos mais precisos, deve-separtir de um campo em que a cimentos que se imbricam. É também o caos propriamente empirista,
experiência seja virtualmente subjetiva ou objetiva, indiferentemente tias relações possíveis e virtuais em número ilimitado (um pouco como
mental ou física, mas, também, primitivamente nem outra. Isso signi- c'm Hume, que abriga o caos na imaginação e formula seu princípio
fica que é preciso liberar o fluxo da experiência das categorias nas quais geral: qualquer coisa pode produzir qualquer coisa).
se quer tradicionalmente reparei-lo. Nesse sentido, trata-se de fato de
uma experiência pura. Puro não quer mais dizer puro de toda maté- Mas, precisamente, essas relações e esses acontecimentos são
ria, mas puro de toda forma -- ou, antes, designa uma realidade in- virtuais; ainda devem se fazer em uma experiência. O que distingue a
termediária exterior a qualquer relação matéria/forma. experiência da experiência pura é exatamente a atualização dessas
Com efeito, o que o empirismo radical recusa -- e que constitui relações no interior do material. A experiência é um percurso ou uma
o fundo das filosofias transcendentais de Kant e Husserl -- é o esque- série de percursos que seguem um número relativo de relações. Se a
ma hilemórfico. Era um objetivo semelhanteque James fixava para si
com a psicologia: liberar o fluxo de consciência, o famoso sfream o/'
conscious/zess,das formas da psicologia tradicional. Contudo, não se 7 Essays ifzradica/ emPlriclsm, Harvard University Press, p 4. Em seu estudo
trata, para James, de derrubar o primado da forma sobre a matéria para sobre Leibniz e o barroco, Deleuze mostra, através da obra de Dubuffet, que Leibniz
deixar fluir uma matéria sensitiva, livre, à maneira dos empiristas. In- substitui a relação matéria-forma por uma relação material-força: "A matéria que revela
dependentementedessa relação, existe uma realidade intermediária, nem sua textura se torna material, assim como a forma que revela suas dobras se torna
matéria nem forma, que se desdobra por si mesma e da qual são feitas força. E o par material/força que, no barroco, substitui a matéria e a forma(as forças
primitivassendoas da alma)". Le P/í, Paria, Minuit, cap. 3, p. 50.
tanto as realidades psíquicas como as físicas. E o que é ela? É, diz James,
8 Qu'est-ce que !a pbilosopbie?, p. 41.
9 Idem, p. 38.
6 Essays, man scriPrsaria Mores,Harvard University Press, p. 18, 4 (4459). 10 Essays flz radica/ emPirfclsm, p. 113.

270 David Lapoujade Do campo transcendentalao nomadismo operário William James 271
consciência se revela como fluxo, é porque ela sempre está seguindo /..iclorcs. Deambular não significa que o conhecimento esteja necessa-
linhas, criando seus percursos. ri;trilcnte submetido à errância, significa que ele se faz pouco a pou-
Assim, em uma primeira dimensão, o processo do conhecimen- Lt), por meio de junções sucessivas, segundo expressões recorrentes em
to consisteem seguir as linhas, as relaçõesvirtuais inscritas no mate- Inlncs. Conhecer é percorrer relações, as relações que atravessam a ex-
rial, isto é, consiste em criar um percurso e as dimensõesdesse per- llc'ciênciapura, é seguir relações e coloca-las em série. Conhecer é pros-
curso. O primeiro elementoé a linha ou a série que o conhecimento l)t'tr:\r -- como no texto de MiJ PZafõssobre as máquinas de guerra,
constitui, de um primeiro termo relativo a uma finalização provisó- i'ili blueDcleuze e Guattari, inspirando-se em Simondon, mostram que
ria. O conhecimento é deambulatório. E precisamenteJames opõe dois iio artesão a relação matéria/forma não é a de modelagem,mas que
tipos de conhecimento: saltatório e ambulatório. Em um caso, parte- t'lt-segue uma materialidade que ele modula14. A primeira imagem é
se da imanência de um sujeito que deve saltar por cima dele mesmo, i) artesão prospector, que só deixa de ser artesão para se tornar tra-
em um Absoluto ou sobre um campo transcendental, para relacionar 1).tlhadorquando se interrompe uma deambulação que segueo movi-
o objeto a um sujeito. O conhecimento saltatório procede dessemodo itlcntoe as variações do material, aquilo que Deleuze e Guattari de-
porque ele esvazia as séries de seus termos intermediáriosi l. llominam o "pby/am maquínico". Nesse sentido, seguir as linhas "ma-
James substitui essetipo de conhecimento por um outro, que, pre- teriais" é detectar nelas funções, fazer funcionar o material. /amos subs-
cisamente,percorre a cada vez toda a série dos intermediários ou a titui um esquema matéria/forma por um esquema material/função.
contrai em um hábito: trata-se dessa vez do conhecimento dito ambu- É quando se pergunta como são feitas as linhas que z/masegun-
latório. Como diz James, "minha tese é a de que o conhecimento em í/a dimensão aparece. Pois essas linhas são pontos que é preciso cons-
questão é co sfíf ído pela deambulação através das experiências inter- truir de um termo a outro. Como diz James, "a idéia não dá um salto
mediárias [-.] Para uma relação concreta de conhecimento, as experiên- tónicopor sobre o abismo, ela opera aos poucos, de modo a lançar uma
cias intermediárias são, portanto, fundamentos tão indispensáveisquanto ponte que o atravesse, completa ou aproximativamente"15. A deam-
o espaço intermediário o é para uma relação de distância. O conheci- l)ulação se faz gradativamente, por junções sucessivas. O conhecimento
mento, todas as vezes que o enfocamos concretamente, significa 'deam- cresce por meio de pedaços que se agrupam. O segundo elemento, após
bulação' [...] "12. Assim, por convenção, denominar-se-ásujeitoo ponto a linha, é então o pedaço. De modo mais preciso, a consciência se re-
de partida de uma série, e objeto, o ponto de chegada, mas apenas por vela e se faz seguindo linhas, mas também apreendendo pedaços, que
convenção, e sem negligenciar os intermediários, que adquirem uma cla relaciona entre si. A consciência é um fluxo, mas o fluxo não ces-
consistência própria.13 Dir-se-iam igualmente mantenedores e finali- sa de se contrair em campos ou "pulsações" que mantêm juntos os
elementos da percepção, da volição, da emoção, do pensamento. Um
ii "Pois esvaziamos primeiro a idéia, o objeto e seus intermediários de to- pedaço é um tal campo, consistente por si mesmo, autocoalescente. As
das as suas particularidades, com a finalidade de reter apenas um esquema geral; percepções, os pensamentos e as emoções são tratados como pedaços.
e assim só consideramos este último na função que consiste em dar um resultado, O fluxo de consciência é um desfilar de pedaços heterogêneospor seus
e não em seu caráter de processo [-.] Em outros termos, os intermediários que, motivos, homogêneos por seu estofo. A matéria têxtil da experiência
em sua particularidade concreta, formam uma ponte, evaporam-se idealmente,de
modo a não ser mais do que um intervalo vazio a ultrapassar." Tbe meafzilzgo/
frHfb, Harvard University Press, VI, p. 247.
14Ml{/leP/afeaax, pp. 509-10. Note-se que essa materialidade é definida em
iz Idem, pp. 246-7. termos muito semelhantesàqueles com os quais James descreve o material: "Mas
elesó é, portanto, 'intermediário' na medida em que o intermediário é autónomo,
i3 Para Deleuze e Guattari, a independência relativa dos termos intermediá- quando ele mesmo se estende em primeiro lugar entre as coisas e entre os pensa-
rios é um dos traços essenciaisdo nomadismo. Mi/le plafeanx, Paris, Minuit, p.
mentos, para instaurar uma relação inteiramente nova entre os pensamentos e as
471: "Um trajeto é sempre entre dois pontos, mas o entre-lugaradquiriu toda a coisas, uma vaga identidade dos dois
consistência, e goza de autonomia, assim como de direção própria. A vida do nõ-
made é intermezzo: í5 Tbe mea?zfpzgo/' frufó, Vll, p. 264.

272 David Lapoujade Do campo transcendentalao nomadismo operário William James 273
pura é compósita. Mesmo sendo contínua e homogênea, não deixa de sas por meio de uma rede cuja amplitude se estende à medida que se
ser feita de pedaços ligados entre si de diversas maneiras. estreitam as malhas [.-] Do ponto de vista desses sistemas parciais, o
É evidenteque encontramos aí a definição do pragmatismo ame- mundo inteiro se sustenta gradativamente, dc diferentes maneiras" 18
ricano como pafcbmorA dada por Deleuze. Pode-se ler, assim, em Crí- James substitui a idéia de um Todo concêntrico que fusiona suas par-
tica e c/híca, no estudo sobre Melville: tespor um mundo abertocompostopor pedaçosou por sistemas--
diversos "pequenos mundos"19 de ligações múltiplas, e que se man-
Nem sequer um quebra-cabeça, cujas peças, ao se têm por sl mesmos.
adaptarem, reconstituiriam um todo, mas antes como um O tema do pafcbmor& ou da filosofia em mosaico terá seu pro-
muro de pedras livres, não cimentadas, em que cada elemen- longamento na Escola de Sociologia de Chicago, por volta dos anos
to vale por si mesmo e no entanto tem relação com os de- 20. A cidade é descrita por tal escola como uma realidadeem peda-
mais [...]; não uma vestimentauniforme, mas uma capa de ços, através da diversidade dos bairros urbanos -- pequenos mundos
Arlequim, mesmo branco sobre branco, uma colcha de re- isolados que abrigam populações imigrantes, junções anónimas de
talhos de continuação infinita, de juntura mú]tip]a [...] a indivíduos em deslocamento. Como diz Park, "os processos de segre-
invenção americana por excelência, pois os americanos in- gação instauram distâncias morais que fazem da cidade um mosaico
ventaram a colcha de retalhos, no mesmo sentido em que de pequenos mundos, que se tocam sem se interpenetrar. Isso dá aos
se diz que os suíços inventaram o cuco"ió. indivíduos a possibilidade de passar fácil e rapidamente de um meio
ambiente moral a outro e encoraja esta experiência fascinante, mas
Há um "estofo" da experiência. Literalmente, o conhecimento perigosa, de viver em vários mundos diferentes, contíguos certamen-
consiste em construir um palcbwor&; é um trabalho por pedaços. E por te, mas, apesar de tudo, distintos"ZU.
isso que com frequência James invoca um tecido da experiência, como No entanto, seguindo a outra dimensão, seguindo o emaranha-
material têxtil. Costuramos ou remendamos nossos pedaços de expe- do das linhas, o mundo forma menos um pafcbwor& do que um gi-
riências uns aos outros, pouco a pouco, por intermédio de séries. Como gantesco nefmor&. Linha e pedaço, /zefmor&e parcbmorh são os dois
diz James: "A própria experiência, tomada no sentido amplo, pode grandes eixos de construção da experiência e de crescimento do mun-
crescer por suas bordas. Não se pode contestar que um de seus momentos do. Segundo um exemplo de James, a natureza funciona exatamente
se desenvolvano momento seguinte por meio de transições, conjuntivas como uma rede postal à qual se superpõe uma rede telefónicaque a
ou disjuntivas, que prolongam o tecido da experiência [...]"i'. recobre em parte, estabelecendo,entretanto, conexões específicas que
Mas não é apenas o conhecimento ou a consciência que se cons- incluem novas unidades. O mundo apresenta-secomo um emaranha-
trói como um pafcbmor&, é o próprio mundo que aos poucos tece um do de relações: por exemplo, a luz como linha de influência, o espaço
gigantesco pafcbmor&. Nesse sentido, James fala de uma filosofia em como relação de junção, o tempo como relação contínua de envolvi-
mosaico. Existe um número incalculávelde redes que se superpõem mento, a linha de consciênciacujo percurso progride através dessas
umas às outras e formam um tecido compósito. Como diz James: "Nós
mesmos criamos constantemente conexões novas entre as coisas, or-
ganizando grupos de trabalhadores, estabelecendo sistemas postais, i8 Some proa/ems o/'pbf/osopby, Harvard University Press, V, p. 69.
consulares, comerciais, redes de vias férreas, de telégrafos, uniões co- i9 Pragmczffsm,Harvard University Press, p. 67: "Disso resultam, para as
loniais e outras organizações que nos relacioname nos unem às coi- diversas partes do universo, inumeráveis pequenos agrupamentos no interior de
agrupamentosmais vastos; pequenos mundos [-.] no interior do universo mais
vasto
iÓ Crílíq e et c/ilzlque, Paras, Minuit, pp. 1 10-1.
zoCitado em Hannerz, Exp/orar /a z/f//e,Paria, Minuit, trad. 1. Joseph, pp
i7 Essays in radica! empiticism, p. 42. 43-5

274 David Lapoujade Do campo transcendental ao nomadismo operário -- William James 275
outras linhas. Eis do que se deve sempre partir: uma multiplicidade de (ou ao artesão prospector de À4flPlafós) do que a um homem de ne-
relações que se entrecruzam, se superpõem em todos os sentidos e se H(Seios.A filosofia de James parece, de fato, mais próxima de uma or-
revelam tão logo as seguimos. Ê preciso citar James novamente: dem social menos triunfante: a de Hobos (cujos modos de vida a Es-
cola de Sociologia de Chicago descrevera). Eles formam o imenso flu-
"Existem inumeráveis relações de diferentes espécies xo disperso dos trabalhadores migrantes que atravessaram os Estados
que coisas especiais podem ter com outras coisas especiais; Unidos, de Chicago até a Costa Oeste, em função dos canteiros de obras
e, em seu conjunto, qualquer uma dessas ligações forma uma c dos empregos sazonais, organizando-se em sociedades provisórias e
espécie de sistema por meio do qual as coisas são ligadas. locais, a "Hoboêmia". "0 veterano da estrada sempre encontra nela
Assim, os homens são ligados no interior de uma vasta rede outros veteranos; o birrento incurável, seu a/fer ego; o radical, o oti-
de conhecimento. Brown conhece Jones, Jones conhece Ro- mista; o trapaceiro, o alcoólatra, todos aí encontram alguémcom quem
binson etc.; escolhendo apropriadamente suas séries de in- se entender [...]. Eles se encontram e seguem seu caminho"22. E]es se
termediários, você poderá fazer com que uma mensagemde distinguemradicalmente dos pioneiros na medida em que são inse-
Jones chegue até a imperatriz da China, até o chefe dos pig- paráveis dos movimentos da economia capitalista americana, em que
meus da África, até qualquer habitante deste mundo. Mas se alternam expansões e crises agudas, em que o uso maciço da demis-
você é logo interrompido, como por um elemento não-con- são se combina com a alta rotatividade da mão-de-obra. Esses ritmos
dutor, quando escolhemal um de seus intermediáriosno rápidos contribuem para a instabilidade dos empregos e para a mobi-
curso dessaexperimentação"z'. lidadeforçada, para o "nomadismo operário". Trata-se de uma ver-
dadeira "dromomania", segundo a bela expressão de Nels Anderson.
O pensamento de James é como um romance de Dos Passos, que ;Essa necessidadese apodera de nós sem avisar [.-] Temos o automó-
descreve a superposição dessas conexões, as redes ferroviárias, marí- vel, o vagão de estrada de ferro, o barco a vapor, o avião -- cuja fun-
timas, aéreas, e as mistura com as biografias humanas e com os peda- ção essencial é, de fato, a de gratificar nossas tendências vagabun-
ços de notícias, o grande romance sincrânico dos itinerários simultâ- das."23 Portanto, eles tampouco são operários sedentários; além dis-
neos que se superpõem. Decerto trata-se de considerar o mundo simul- so, mal conseguemsuportar o controle a distância do sindicato. Es-
taneamentecomo um vasto tecido composto pouco a pouco e como tão, por assim dizer, no entre-lugar, entre as duas Fronteiras, entre a
um sistema de redes: patcbmorh e nefzaori. fronteira das primeiras comunidades de pioneiros (que chegaram ao
Pacífico por volta de 1850) e a fronteira da industrialização (que con-
Se a filosofia oriunda do pragmatismo é talvez a filosofia ameri- cluiu sua expansão por volta de 1920). São eles que percorrem o país
cana por excelência,julgar-se-á sem dúvida que isso se deve ao fato de maneira ambulatória e brilham a rede das conexões. Eles fazem um
de ela pensar as relações como grandes sistemasde netmor&sque po- pedaço de estrada e passam de transições a paradas provisórias, à
dem ser indefinidamente construídos e que se superpõem em todos os maneira dos personagens de London. É, então, de um modo bastante
sentidos, ao fato de antecipar os grandes desenvolvimentos das redes curioso que a filosofia de James é a filosofia do capitalismo americano.
de comunicação do século XX, que vão de cidades-mosaicos a cida-
des-mosaicos. Não estamos, então, longe de retomar a definição tra-
dicional do pragmatismo como promoção do capitalismo americano Tradução de Ana Lúcia Oliveira
e de seus valores comerciais. Entretanto, segundo James, o filósofo é
aquele que, por sua vez, não cessa de deambular por entre essas vas-
tas redes; ele nos parece assemelhar-se mais a um trabalhador itinerante 22Cf. o belo livro de Nels Anderson, Le FÍobo: socio/ogled sa/zs-abri
Nathan, 1993, e o prefácio de O. Schwartz.
zi Pragmallsm, Harvard University Press, IV, p. 67. 23/dem, p. 106.

276 David Lapoujade Do campo transcendental ao nomadismo operário -- William James 277
A PERCEPÇÃO EM SARTRE E DELEUZE
Véronique Bergen

DUPLA ACEPÇÃO DE ESSE EST PERCIPJ


A escuta de uma percepção liberada do primado do conhecimento
e das predeterminações ligadas às metafísicas da presença é capaz de
oferecer uma abertura, uma relação inédita com o ser no movimento
em que a base ontológica adorada orienta a tomada da percepção. Em
Sartre, desdobra-se um dualismo ontológico obtido no absoluto da
consciência e na massividade intemporal de um em-si totalizado, re-
velado pelo para-si. Em Deleuze, afirma-se um monismo vitalista ob-
tido na univocidade do ser, no ser do devir e na ontogênesecomum
do ser e do pensamento a partir de uma matéria intensa não formada.
Sob o horizonte dessas duas ontologias, o estudo das modulações es-
pecíficas que o estatuto da percepção conhece nos levará a expor em
que sentido esse duplo posicionamento acerca do esse esf percipl bi-
furcará na composição de planos de imanência divergentes. Especifi-
caremos essa divergência sobre três linhas.de futura, a saber: primei-
ro, no nível das relaçõesestabelecidasentre "sujeito" e "objeto"; se-
gundo, na oposição entre fundo/forma, todo/coleção e regular/singu-
lar, inconsciente/consciente;e, terceiro, relativamente às qualificações
contrárias ligadas ao ser. Para além da assunção comum de uma cons-
trução imanente do percebido, fora de todo modelo, veremoscomo
se articulam, por diferenciação, um lance de dados reunido pela in-
tencionalidade, de um lado, e um lance de dados obtido das singula-
ridades intensivas, de outro; em suma, como se configuram, a partir
da problemática da percepção, duas imagens singulares do que signi-
fica pensar.
Assentada sobre a transfenomenalidade objetiva do ser e do nada,
a percepção será associada, por Sartre, a um ser transcendente cuja ob-
jetividade se revela irredutível a toda síntese subjetiva, a todo pe7clpie/zs.
Quanto a Deleuze, ele declinara no infinito de um campo imanente a
emergênciade uma percepção alucinatória despida de objeto exterior
estável,cesurada de todo modelo real ou molde a priori: construindo
o ser como perclPi, gerando-secomo mecanismo psíquico inconsciente

A percepção em Sartre e Deleuze 279


ltnivés da circularidade de causalidades projetivas ideais, a percepção uma opção metafísica, em exterioridade, relacionada a toda questão
.assemelha-seàs dobras da matéria que ela refuta conceitualmente no de direito -- o mesmo que Gilles Deleuze desenvolverá em seu questio-
movimento mesmo em que o objeto, do qual a percepção extrai a tra- namento da gênese e do transcendental. Se o conhecimento intuitivo
dução em pensamentodo que a (auto-jafeta, é instituído como o se- do em-sinada acrescentaa este último, se, por suas síntesesativas, o
melhado em conformidade ao modelo do percebido extraído daquilo para'si recorta a opacidade do ser em determinações significantes fini-
sobre o qual ele se projeta. tas, arrancando do escuro fundo indiferenciado as formas dos múlti-
Ê para a elucidação das respectivas compreensões da fórmula plos "isso", o todo do ser jamais apropriado, que intima o para-si a
berkeleyana esseesl perclpí de teor negativo, depreciativoem Sartre, responder ao desafio que ele compõe, moldado através de suas fe-
afirmativo em Deleuze -- que nos encaminharemos, destacando com nomenalizações, exibe um ser em-si objetivo que o para-si deve não
isso o estudo da circularidade deleuzeana(movimento em torção, fuga ser. Mas seu ser qualitativo só terá sentido através da atividade sinté-
em espiral que deporta o semelhado para o modelo do percebidos por tica da consciência: incapaz de se unificar do interior de suas mani-
seu confronto com a circularidade fenomenológica. festaçõesfenomênicas diferenciantes (monadologia de Leibniz), estra-
nho a toda natureza intensivaque se distribui positivamenteem afir-
mações de si, em expressões do todo substancial (univocidade do ser
TRANSFENOMENALIDADE DO SER de Espinosa a Deleuze), o em-si como totalização perpetuamente des-
Em Sartre, a anterioridade do ser sobre a consciência que se faz totalizada depende das negações ativas do para-si, cuja dupla nadi-
não ser o em-si, a dependência do em-si maciço, opaco, incriado, para ficação -- interna, radical, do todo do ser, e externa, disso ou daqui-
com a atividade nadificante de um para-si que revela o ser por e no lo -- reúne a dispersão sempre ameaçada de explosão que se estende
acesso a seu "há", a seu sentido, o argumento ontológico que autori- entre os complexos de coisas mundanas. Modulando o todo do ser por
za, ou melhor, que prescreve o surgimento do desvelado a partir do um jogo de ações recíprocas entre forma e fundo, o para-si recorta o
desvelamento, se apoiam, todos os três, na aquisição de base da feno- mundo ativamente, segundo uma seleção finalizada pelo objetivo, se-
menologia: a absolutidade prévia de uma consciênciada qual nada gundo uma determinação orientada pela espera no cerne de um siste-
constitui a causa, que "se extrai" do ser e se afirma como o absoluto ma perceptivo estabelecidopela função unitária e sintéticado para-
irrecusável sempre em ato, agindo incessantementeno todo de sua si. A percepção de um ser transfenomenal ou de um nada objetivo que
operatividade, grandeza intensiva sempre Já desdobrada, real, plena- frequenta a superfície do ser, subtendendo a atividade judicativa (res-
mente anual, presente a si como ser do possível, ainda que sob a for- posta ao problema bergsoniano do juízo de negaçãol, responde à cir-
ma de sua auto-alienação, de uma opacificação concertada em seu seio, cularidade -- não viciosa -- da auto-afecção kantiana, reativada por
por sua própria vontade. Partindo da relação sintética sempre já esta- Heidegger: o para-si, a quem ser e nada advêm, faz que haja ser e nada
belecida entre o para-si e o em-si, Sartre interrogara suas ligações dia- segundo o esquema de uma espontaneidade passiva que se dá aquilo
léticas no nível do fatos, e não as condições de possibilidade que com- que recebe, na distância inabordável de uma relação intencional com
põem um campo transcendental, na medida em que estas requerem a a transfenomenalidade de um ser dos fenómenos, irredutível ao espí-
instalação de um ponto de vista de sobrevoo indevido, a adição de rito humano. A manutenção de uma disfunção entre um dentro e um
fora -- cruzada de efeitos de quiasma, de invasão, de contaminação
no mestre de híbridos "em-si-para-si" -- declina-se numa relação exis-
l "Não há juízos sintéticosa priori porque não há necessidadedeles,visto tencial sempre atual entre um mundo e uma consciência cuja inten-
que não há permanência ontológica do conhecimento. Há liberdade como funda- cionalidade perceptiva, emotiva, imaginária, cognitiva preserva a trans-
mento de sínteses reais a fazer. Pelo homem a síntese entra no universo. E ele a
cendência do ser do percebido, do emocionado, do imaginado, do co-
desvela ao opera-la. O pâr-em-relação vem do fato de o homem ser relação a si
através do Ser. E o põr-em-relaçãoé sempreoperatório. Ele se inscreve no Ser". nhecido. Daí o esquema de uma verdade processual que antecipa, se-
Sartre, Vérifé ef existe/zce,Paria, Gallimard, 1989, p. 40. gundo uma finalidade colocada pelo para-si, o que diz respeito ao em-

280 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 281


si })crcebido, e submetida ao teste de verificação que comprova retros- mundo proíbe a confusão bergsoniana entre noema e noese, que, muito
pectivamente o preenchimento positivo ou a miragem da projeção distante de uma consciência definida como consciência de alguma coisa,
antecipante. fazia desta uma coisa, ou melhor, de toda coisa uma consciência la-
tente,virtual, de direito, imersa em toda a matéria.
Conhecer é apesar de tudo conferir uma dimensão de
ser ao Ser: a luminosidade. A verdade é portanto uma cer- "Bergson não pensa que a consciência tenha obriga-
ta dimensão que vem ao Ser pe]a consciência. [...] Mas a toriamente necessidadede um correlativo, ou, para falar
verdade é o Ser tal como ele é enquanto Ihe confiro uma nova como Husserl, que uma consciência seja sempre consciên-
dimensão de ser [...] eu antecipo sobre o Em-si que me in- cia de alguma coisa. A consciência aparece, para ele, como
veste, ultrapasso-o em direção a um fim que é mez{ J:im. Mas uma qualidade, um caráter dado, quase uma espéciede for-
esse fim está no mundo e comanda antecipações sobre o Em- ma substancialda realidade; ela não pode nascer onde ela
si que têm uma realidade objetiva, isto é, que são antecipa- não é, nem começar, nem findar de ser. Em troca, ela pode
ções sobre a maneira de ser do Em-si[...] Eu crio o que é existir sem se acompanhar de ato algum ou mesmo de al-
[...] assim sou ao mesmotempo criador e passivo. Eis aí guma manifestação de sua presença, no estado puramente
precisamente o aparecimento da verdade ou o Ser quc apa- virtual; e Bergson definirá essa realidade dotada de uma
rece no ato. Do ponto de vista subjetivo, o conhecimento qualidade secreta como o inconsciente. Mas o inconsciente
não difere da criação e, reciprocamente, a criação é um co- que aparece aqui é precisamente da mesma natureza que a
nhecimento; tem-se um momento de conhecimento. Mas, consciência: não há não-consciente para Bergson; há somen-
ao mesmo tempo, o aparecimento imobilizado do Ser é au- te consciência que se ignora. Não há opacidade que se opo-
tónomo, independente;é uma resposta. Se, ao contrário, o nha à luz e a receba, constituindo assim um objeto ilumi-
Ser é uma recusa compacta de ser 'visto como uma árvore', nado: há luz pura, fosforescente,sem matéria iluminada; só
a antecipação se aniqui]a [...]. Num certo sentido, portan- que essa luz pura, difundida em toda parte, só se torna atual
to, não há erro: a antecipação é um não-ser que obtém seu ao se refletir sobre certas superfícies que servem ao mesmo
ser do em-si antecipado, ela existe para ser verificada, ela tempo de anteparo em relação às outras fontes luminosas.
se aniquila se não permite uma construção correta."z Há uma espécie de inversão da comparação clássica: em vez
de a consciência ser uma luz que vai do sujeito à coisa, é uma
A consciência trespassa o mundo de sentido, baliza o em-si em luminosidade que vai da coisa ao sujeito."4
nome de uma doação significante. Centro organizador quc se profeta
no vazio do futuro, plataforma giratória pela qual se visa a transcen-
dência real de um fenómeno atingido diretamente "e não por inter homúnculo arrastado pela consciência jamais foi consclêlzcfa. Era um objeto do
médio de um simulacro que estaria nela"3, a consciência aberta ao mundo material perdido entre os seres psíquicos. Ao rejeita-lo fora da consciên-
cia, ao afirmar que há somente um único e mesmo Pedro, objeto das percepções e
das imagens, Husserl livrou o mundo psíquico de uma carga pesadae suprimiu
2 Idem, pp. 48-51. quase todas as dificuldades que obscureciam o problema clássico da imagem com
o pensamento
3.J..P. Sartre, L'imagfmafiolz,Paria, PUF, Quadrige, 1981, p. 148: 'tAssim,
no ato de imaginação, a consciência se relaciona diretamente a Pedro, e não por 4Idem, p. 44-5: "Não temos necessidadede deduzir a consciência,diz Berg-
intermédio de um simulacro,que estaria nela. De um só golpe vão desaparecer, com son, uma vez que, ao afirmar o mundo material, damo-nos um conjunto de ima-
a metafísica imanentista da imagem, todas as dificuldades que evocávamos no ca- gens. Não há que engendrar a consciência a partir da coisa, se, em sua existência
pítulo precedente a propósito da relação desse simulacro com seu objeto real e do mesma, a coisa já é consciência. Mas [-.] resta compreender como se passa da
pensamentopuro com esse simulacro. Esse 'Pedro em formato reduzido', esse imagem não-consciente à imagem consciente, como o virtual pode se atualizar [-.]

282 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 283


GÉNESE PERCEPTIVA E PROJEÇÃO ALUCINATÓRIA te caos de corpúsculos em pulverulência incessante -- caos, ovo cós-
Em Deleuze, a percepção ocorre juntamente com as coisas, na mico sempre peneirado, filtrado por um plano de imanência que tor-
indistinção das clivagens (mantidas por Sartre) entre imagem e per- na consistente o infinito do caos. O tempo, o devir, precede o ser no
cepção, imaginário e real, dentro e fora, pensamento e mundo, e isso sentido em que o todo virtual infinito precede suas dessemelhantes
a partir da mesma rejeição do idealismo transcendental (síntese sub- atualizações, no mesmo ponto em que Sartre, inversamente, faz o ser
jetiva ativa desdobrando o ser do reall e de um materialismo vulgar preceder o nada. Atualizações contingentesdo virtual próximas do es-
(causalidade física produtora do pensado). Remontando ao campo quema de um vazio quântico que gera uma curvatura do espaço-tem-
transcendental, às condições da experiência real, onde Sartre havia re- po irradiante da matéria-energiae atualiza as partículas virtuais, tal
cusado todo questionamento de direito, toda questão gula jÍuris em como desenvolvem 1. Prigogine e 1. Stengers em Entre o tempo e a efer-
proveito do q Id Áacff, Deleuze empreende a descrição de uma gêne- lzídadeS. Toda consciência, todo objeto são transcendentes fora do
se inconscientedo pensamento,sob a marca do primado das sínteses plano de imanência, fora do campo transcendentalvirtual que então
passivas. A partir de intensidades diferenciais, do seio mesmo do flu- se atualiza nesses últimos: a consciência de direito, difusa, em veloci-
xo de real que compõe as antecipações da percepção (desligadas do dade infinita, não revelada, torna-se consciência de fato, reflexiva, se
controle categorial), o pensamento se arranca de seu fundo escuro de e somente se ela se reflete, se refuta sobre um sujeito correlacionado
acefalidade" e traça a linha de determinaçãoque o separa unilate- a objetos.6 0 olho interior às coisas é tão-somente essa luz, essa cons-
ralmente do indeterminado que não se distingue dele. Um campo ciência virtual, imanente a toda matéria tematizada por Bergson (cf.
molecular vibrátil povoado de singularidades impessoais, percorrido À4aférlzz e memória), consciênciadifusa portadora de uma percepção
de ondulações ínfimas, não cessa de ser atravessado por linhas de cris- objetiva, completa, total, onde a percepção consciente de fato, subje-
ta em força vulcânica de cristalização, através da gênese dinâmica de tiva, seleciona, empobrece, subtrai do real o que não interessa a suas
um sentido dos acontecimentos: à mercê dos impasses encontrados, necessidades.7É por uma passagemao limite, por transposição de li-
o SPafíwmintensivo que dramatiza as idéias virtuais se enruga frac- miares ao longo de uma gênesemaquínica, automática, que uma cons-
talmente e dá consistência a compleições anuais de parte, de espécie, ciência de direito, virtual, se atualiza numa consciência de fato cor-
a contrações molares (pessoa, indivíduo, significação, designação, ma- relata à produção criativa do objétil, do espaço e do tempo extensi-
nifestação, em suma, a ordem terciária de Lógica do senado, engen- vos, uma vez destituídos os pólos de objeto e de sujeito a priori,
drada ao cabo de uma gêneseestática). Muito distanteda absolu- fermfn s ad que a montante de toda experiência, representaçõesen-
tidade em ato de uma consciência pré-reflexiva prévia, toda concreção ganadoras que não captam as nebulosidadesdo campo transcenden-
molar -- consciência significante, macropercepção estável, objeto tal. Puras funções, variáveis sem modelo, sistemas acentrados, simu-
transcendente -- se arranca através do "escuro precursor" intensivo
Idesequilíbrio de potencial, instabilidade dissipativa, "desaparecimen-
to") do fundo escuro de uma matéria não formada, de um cambian-
5 1. Prigogine e 1. Stengers, Entre /e fe ZPSef /'éferpzífé,Paras, Fayard, 1988.
6 G. Deleuze, "L'immanence, une vie-.", Pbi/osopbfe, n' 47, set. 1995, pp.
3-4. Notemos que nesse texto, contrariamente a l,ógfcíz do se?zfido, a consciência
Bergson considera negligenciávelessa característica essencial do fato de consciên-
pré-reflexiva, não tética (de} si que compõe o campo transcendental em Á fralzsce/z-
cia que é mostrar-se precisamente como consciente; e, por ter confundido o mun-
dê/zelado ego, de Sartre, não é submetida a nenhuma reserva, e, longe de traduzir
do com a consciência, tomada como uma qualidade quase substancial, ele reduz
uma síntese de unificação indevidamente projetada no porão transcendental, se vê
também a consciência psicológica a ser apenas uma espécie de epifenâmeno, do
curiosamente associada à consciência virtual, de direito, inaparente de Bergson, e
qual se pode descrever a aparição, mas que não se explica. Em particular, de que
valorizada por isso mesmo. Associação insustentável,ato de violência implosivo,
maneira essa consciência inconsciente e impessoal se torna consciência consciente
tanto no nível da letra como no do espírito, por razões que invocaremos a seguir.
de um sujeito individual?". Consultar também Gilles Deleuze, Cifzéma í : l,'lmzzge-
mouz/eme/zf,
Paria, Minuit, 1983, pp. 83-4; 89-90; 93-4. 7 G. Deleuze, L'image-mouz/e»ie/zl, pp. 93-4.

284 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 285


lacres onde coexistem séries divergentes, o superlato jtermo retoma- CIRCULARIDADE FENOMENOLÓGICA
E CÍRCULO DO VIRTUAL E DO ANUAL
do de Whitehead) e o objétil, produzidos pelo co zti/z m de uma fle-
xibilidade de caso que se declina e pela concreção aleatória de um À circularidade fenomenológica da auto-afecção, pela qual o
ponto de vista subjetivo que ordena a leitura do mundo perspectivista, homem se dá o que Ihe sucede e faz com que haja ser e nada (círculo
se oferecem como derivados diferenciais de um devir do ser caótico hermenêutico que atesta a finitude de nossa condição, a precedência
que se auto-afeta através de um materialismo cerebral que se auto- infinita da relação entre sujeito e mundo), se substitui o círculo de uma
forma como sujeito8. O cérebro se torna sujeito, forma, quando o causalidade psíquica deduzida, extraída do efeito que a ela se confor-
sujeito se torna contemplação passiva criadora do percebido ou salta ma: circuito retroativo de um pensamento que modeliza o objeto ma-
a uma consciência de fato. Definido de acordo com um ponto de vis- terial da percepçãoalinhando-sesobre a autoridade de uma percep-
ta descentrado obtido do alto do desvio de um pensamento-nature- ção psíquica, ela própria semelhantea seu semelhado, ou, mais glo-
za, no quadro de um materialismodo cérebroque desdobrauma balmente, circularidade de um naturalismo espiritualista, de um "ma-
ontogênesedo pensamento e do ser, o superlato arrancado ao que ele terialismo metafísico"1 0 baseado num plano cerebral que se auto-afeta
contempla, efeito residual, forro das dobras do fora, é o ponto de vista como sujeito, sem semelhança alguma da atualização com o que dor-
que decifra parcialmente o mundo em função das zonas claras que ele mita de virtual, bifurcando, em função das fendas e crises encontra-
ocupa, atualizando séries, partes limitadas do mundo virtual que ele das, rumo a uma tradução conceitual dos impassesdo sensível,exa-
contém. Retirado daquilo que ele contempla, derivado da quase-cau- tamente onde as flutuações materiais que induzem uma macroper-
sa dos acontecimentos, o superjato ordena hermeneuticamenteas va- cepção consciente se conformam ao modelo do percebido que dela
riações diferenciaisde um mundo que requer um observador inseri- deriva. Essa circularidade recolhida aqui, no nível da percepção, não
do, incorporado em seu bojo, e se torna aquilo que ele percebe, se- é senão um caso particular inscrito no quadro da tese da dupla ante-
gundo a heterogênesede uma dupla captura, enquanto o para'si ja- cedência, a saber: primado do mundo, do campo ontológico, do todo
mais se perde no em-si, sempre se recupera em suas exteriorizações e de suas séries de acontecimentos na ordem do virtual, e primado da
passtvaçóes.' manada, da alma, das flexões expressivas na esfera do atual.Íi Se, por
um lado, no nível inconsciente, as miríades de pequenas percepções
remetem ao mecanismo metafísico e cosmológico segundo o qual o
mundo não existe fora das manadas que o exprimem e cujas percep-
ções inconscientessão as dobras que representam o mundo (não o
8 Em uma apropriação criadora dos conceitos de R. Ruyer e de G. Simondon. objeto), e se, por outro lado, no nível das macropercepções, o cálculo
Consultar sobre esse ponto Éric Alliez, La sig/zafare d mo/zde on qu'esf-ce que /a diferencial que põe em relação os elementos genéticos de pequenas
pbllosopbie de De/eKze ef Guaftarl?, Paras, Cera, 1993. percepções remete a um mecanismo psíquico sem realidade física, a
9 Impossibilidade de uma absorção do para-si no objeto, explicitada por percepção não pode mais se orgulhar de ser um mecanismo físico que
ocasião de uma passagemdedicada a Rousseau, às pp. 217-8 de L'gire e /e Néa/zf, reverbera objetivamente um referente exterior. Se toda percepção é
Paris, Gallimard, Tel, 1943. A essa reviravolta de uma consciência que reemerge
do entorpecimentono qual se obstruiu, se opõe o duplo e irrecíproco devir de-
leuziano,Achab tornando-seMoby Deckquando a baleia se torna intensidade
branca, tal como o segue Pessoa: "para que ea me torne esse barco que parte, era io Segundo a expressão de Éric Alliez, extraída de La slgnaf re d monde
preciso que ele se transformasse em intensidade que atravessa a superfície do cor- oa Çãa'est-ceqae !a pbiiosopbie de Deleaze et Gaattari?, p. 82.
po (que é o mar), que não mais se situasse à distância de mim, separado de minha
sensação[-.] tudo está no exterior porque o exterior resulta de minha reversão, 11A circularidade fenomenológica da auto-afecçãoseenraiza em Sartre numa
de meu interior no fora [...] Tendo o eu desaparecido,a sensaçãose torna um flu- duplaantecedência;não mais a de um debateentrevirtual e atual, mas em sua
xo". J. Gil, Femapzdo Pessoa on Lz méfapbyslqKe des smsízfíons, Paria, La Différence, distribuição entre um primado metafísico, lógico-ontológico atribuído ao ser em-
1988,P. 73. si, e uma precedência significante dada ao para-si.

286 A percepção em Sartre e Deleuze 287


Véronique Bergen
llucinatória no sentido de não ter objeto físico externo gerador de arrancamentoao sem-fundoobscuro, ao qual a virtualidade do todo
mecanismos físicos de excitação, a necessidadei2 de atribuir um cor- impede qualquer acesso direto. "Mas precisamente as Idéias proble-
po à manada, de admitir uma matéria primeira intensiva exterior às máticas são ao mesmo tempo os elementos últimos da natureza e o ob-
dobras da alma implicará a ação de um Deus, de um lançador ideal )eto subliminar das pequenas percepções. De modo que 'aprender' passa
dos dados que cria uma matéria vibratória em conformidade à per- sempre pelo inconsciente, ocorre sempre no inconsciente, estabelecendo
cepção que se assemelha a ele. Na ausência de um Deus barroco que entre a natureza e o espírito o laço de uma cumplicidade profunda."13
compossibilite as séries convergentes e mantenha o princípio do fecha- Um fenomenismo herdado de David Hume impede toda vocação a um
mento das manadas, a divergência das séries e o impulso de captura conhecimento ântico objetivo, assim como todo credenciamento e elu-
que anima as manadas requerem essa mesma condição material em cidação da correlação fenomenológica entre noese e noema. Essa es-
que se dispõem de modo contingente os órgãos receptores estimula- capada das não-relações entre expressões finitas denunciados/visibili-
dos. Essa matéria em movimento, longe do modelo cartesiano de uma dades, série das palavras/sériedas coisas) correlaciona-seao simples
substância extensa objetivamente garantida, tornar-se-á uma rede in- realismo do plano transcendental do Ser, à simples objetividade das
tensiva de forças, dobrada segundo os ângulos perceptivos atualiza- idéias que o povoam: na identidade entre ser e pensar, a perda das bases
dos por cada uma das manadas, modulada segundo a interiorização fenomenaise das relaçõesentre formas finitas secompensa por uma
que dela produz cada alma. adequação ao todo do Ser virtual14
O pensamento se profeta sobre a matéria cujos movimentos mo-
leculares o agitam e induzem a tradução inteligível do choque ensur-
decido do sensível. Ele se projeta sobre a textura de um mundo me DE UMA CONSTRUÇÃO DO PERCEBIDO A OUTRA:
tamórfico, mutante, que se alinha, no que dá a sentir, sobre a repre- DIVERGÊNCIA DOS PLANOSDE IMANÊNCIA
sentação que o percebido dela extrai. O semelhado (físico) se confor- De uma construção do percebido a outra, oscila-sede uma pro-
ma ao modelo do semelhante(percepção psíquica). A invenção de uma ximidade máxima, no início, a uma divergência final inassimilável. O
percepção sem similitude real, em cima de uma gênese forçada que faz pareamento no maneirismo inaugural reside no fato de que só há per-
bifurcar as faculdades, repercute em uma criação inédita, um real ex cebido através de sua construção, fora de toda mimese fiel a um mo-
posto às turbulências intensivas, tão logo o exercício transcendente de delo dado: recorte, inflexão modulante do ser por negações, sínteses
pensamentoo eleva à ordem de uma criação sem modelo a copiar, ativas proletadas por um para-si orientado pelo emprego de uma fi-
excedendo toda recognição que identifica um em-si sempre já dado em nalidade, em Sartre, criação do percebido através de um mecanismo
sua estabilidade. A percepção como simulacro, ora idéias distintas- psíquico inconsciente regido por sínteses passivas, disfunções inclusi-
obscuras, ora intensidadesclaras-confusas do pensador, gera uma com- vas, orientado pelas crises e instabilidades intensivas, em Deleuze. Mais
posição de séries diferenciais, uma determinação do objeto e das con próxima de uma indistinta contiguidade quanto às iluminações e mo-
dições do espaço-tempo. Ela é não apenas adequada ao fundo caóti- dulações do todo do ser geradas pela percepção, a dança a dois cinde-
co que ela não quadricula categorialmentenum cosmos regulado, mas se em dois galés estranhos quanto aos planos de imanência traçados.
também é idêntica a ele em razão da identidade entre matéria do ser e
Com efeito, à ligação diabética que trama em-si e para-si, e estabeleci-
imagem do pensamento. A percepção alucinatória não é senão o fun-
do último da natureza, já que o único acesso ao ser se insinua no es-
quema ideal de um ser passado na peneira, filtrado em nome de seu 13G. Deleuze, DÍ/Xérepzce
ef répéfllfon,Paris, PUF, 1968, p. 244.
i4 Do conceito criado, será dito: "o mais subjetivo será o mais objetivo",
em Deleuzee Guattari, Qn'esr-ce que /a póí/osopbie?, Paria, Minuit, 1991, p. 16.
12ConsultarDeleuze,Le P/í. Le b/zizel /eBaroqiíe,Paras,Minuit, 1988,p. Sobre a objetividade ideal dos problemas, consultar Logfque du selase DI/fure/zce
127 et réPétition.

288 Véronique Bergen 289


A percepção em Sartre e Deleuze
dn n partir do nada de relação trazido pela consciência, opõe-se um operações de nadificações -- negação interna e negação de negação
trabalho de toupeira do pensamento, bifurcando ao ritmo de flutuações -- agendadas por um para-si preocupado em dispor dos meios reque-
intensivas, reverberando as bodas antinaturais do Ser consigo mesmo ridos em vista de um fim (espera convertida em alvo), nadificações que
em sua declinação em praias de energia resfriada, segmentaridades são apenas jogos de dissolução provisória do fundo e de seleção das
duras, ou em jorros e involuções de intensidade, fendas de linhas de esferas válidas do "isso", e que se adiantam como os vetores de uma
fuga desestratificadas, saliências de cristas vulcânicas... De um sujei- totalização do ser, sempre em fuga, desfalcada, perfurada por uma
to a outro -- sujeito no mundo, sedede toda intencionalidade;su destotalização que remaneja o complexo fundo-formas.i/
perjato para um mundo que está no sujeito --, a ação do centro sig-
nificante que torna a agarrar ativamente o que o pega por trás se dis- "0 ideal da Verdade é somente que todo o Ser seja
sipa num cromatismo nâmade, exposto a uma variação contínua, agi- iluminado e assim permaneça. Compreendemos bem, por
tando um campo transcendental sem consciência sintética, fazendo outro lado, que a z,e Jade é uma espéciede recuperaçãodo
naufragar toda constante, toda forma centrada estável. De um centro Em-si por ele mesmo. Pois o Ser se desvelo sempre a um
sempre excedido, movência vagabunda sempre ultrapassada por seus ponto de vista [...] A subjetividade é somente a i/nm//cação.
proletos, deportada por um fim em remanejamento constante -- o De fato, o ponto de vista se define ob/efiz,ame/zfeem termos
para-si sendo o que não é e não sendo o que é --, emana uma lumino- mundanos [...] já que o ponto de vista é totalmentedefinível
sidade que desvela o em-si em suas modalidades, longe da cambiante em termos de em-si[...] E, fora disso, /fada senão a ilumi-
vida interior de um impressionismoque se difrata em simulacros in- nação de todo o sistema. É portanto o Ser que aparece ao
consistentes e objetos epifenomenais. De um plano de imanência ris- Ser. SÓque o aParecfmenfo é não-ser e subjetividade; há um
cado pela localização de uma intencionalidade desdobrada pelo efei- circuito que não se pode fechar [...] as condições de apare-
to perverso caído do em-si, avançamos, com Deleuze, para um plano cimento do Em-si são definidas pelo Em-si. A percepção é
de consistência percorrido de velocidades infinitas e de abetos impes- portanto interiorização do mundo e, num certo sentido,
soais, sem centro unificador nem movimento de totalização, conec- presençado mundo a si mesmo. Quando toco o veludo, o
tando traços de expressão e de conteúdo no âmago de um incessante que faço existir não é nem um veludo absoluto e em si, nem
devir que precipita sujeito substancial e função formal em indecidíveis um veludo relativo a uma indefinível estrutura de sobrevoo
agenciamentos, exprimindo equivocamente a intensidade diferencial de uma consciênciatransmundana. Faço existir o veludo
de uma vida não-orgânica unívoca. A proximidade no gesto comum para a carne."''
de um esquema produtor, de uma construção do percebido, cuja gê-
nese inédita -- motivada diferencialmente pela finalidade subjetiva do O ser ou o nada transcendente do fenómeno percebido -- con-
para-si ou pelos problemas objetivos encontradosiS -- impede de parte forme a resposta à conduta interrogativa se realize ou se frustre só
a parte o esquema de uma recognição subjugada a um modelo ózpriori,
desfaz-se a partir de então em dois dispositivos de pensamento hete- Com isso, afastamos uma concepção reco/isfzz
das relações do fenómeno com a
rogêneos. Rejeitando a concepção realista de um ser do fenómeno que consciência. Mas mostramos também, pelo exame da espontaneidade do cogito
age sobre a consciência, bem como a solução idealista de um cogito não reflexivo, que a consciência não podia sair de sua subjetividade, se esta Ihe
que constitui o ser transcendente dos fenómenos,16 Sartre recorre às fosse dada de início, e que ela não podia agir sobre o ser transcendente nem com-
portar sem contradição os elementos de passividade necessários para poder cons-
tituir a partir deles um ser transcendente: afastamos assim a solução ideallsfa do
proa/ema". Sartre, L'Efta ef /eNéanf, p. 31.
i5 G. Deleuze, DI/férefzce ef répéfífíolz, pp. 89, 252-3.
í7 Idem?,pp. 215, 217, 222-6.
ió "Nós estabelecemos,com efeito, peloexame da consciência não posicional
(de) si, que o ser do fenómeno não podia em caso algum agir sobre a consciência. is Idem, Vérifé ef exisrence,pp. 25-7.

290 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 291


advém pelo pâr-se à disposição do para-si, cuja espera portadora da produz na matéria."20 As percepções raramente representam um ob-
emergência desse ser ou desse nada não pode fazer, apesar de sua de- jeto exterior, mas se proJetam "sobre o plano vibratório da matéria"
pendência ao para-si no que respeita a seu aparecimento significante, e se assemelhamàs agitações moleculares que elas produzem nessa
que o teor desse ser transfenomenal deixe de ser objetivo, irredutível matéria. Fenómeno de ressonância adquirido nos circuitos retroativos,
à consciência. Esta não pode resgatara contingênciaque atingiu seu a percepção não pressupõe nem um objeto externo, estável, dado, ca-
ser em cima de sua emergência indesejável, derivada dos vãos esfor paz de nos afetar, nem a atividade espontaneamente prospectiva de um
ços empreendidos pelo em-si a fim de se fundar reflexivamente. Aper- sujeito que visa uma boa forma, uma Gestalt a selecionar21. A abor-
tada na contingência de um ser que ela não escolheu, situada no seio dagem comum de uma percepção-construção partilhada por Sartre e
de determinações finitas, sujeita a uma facticidade cuja ausência de ra- Deleuzefutura-se a partir de então, como vimos, sobre a divergência
zão motiva a escolha de uma liberdade que dê sentido ao que é des- de planos de imanência traçados; o funcionamento da percepção, já
provido dele, a consciência, excessiva, infundada quanto ao ser que a acionado por operações e motivações diferentes, fornece duas imagens
persegue sob o ângulo do Valor, já que ela é não sendo, lançada num do pensamento sem conformidade de traços diagramáticos: harmonia
mundo que ela só pode nadificar, assumir (assunção pelo para-si de centrada de uma intencionalidade alojada na consciência versus ma-
suas circunstâncias, de seu nascimento, de sua morte, de seu corpo, téria informe, acentrada, vibrionante, de séries intermináveis de fogos-
de seu passado), essa consciência pode fundar seu nada de ser, suas fátuos intensivos... O uma vez por todas de uma expulsão sem retor-
maneiras de ser, sem redenção cifrada nem exorcismo possível da fac- no, de um desprendimento definitivo que separa a esfera do para-si
ticidade de seu ser. Relativamente aos fenómenos cujo ser ele é inca- da massividade intemporal de um em-si que engendrou o avesso de seu
paz de criar ou de aniquilar, o cogito desdobra uma atividade sig- desejo, que secretou o outro de seu fundamento em seu ser, implicava
nificante, secreta um nada que modifica a relação com o ser, seu sen- a explosão, a conflagração irreversível do um em dois, num desvio inútil
tido, suas modalidades, não o ser ele próprio.i' inventado pelo em-si que se verá surpreendido por uma contra-cria-
ção perversa cujo tempo da gêneseculminará numa volta do criado
contra o criador: autonomia do para-si como ser dos possíveis,tem-
INTENCIONALIDADE DA CONSCIÊNCIA poralidade extática rompendo com aquilo mesmo que a produziu. Rup-
E FOGOS-FÁTUOS INTENSIVOS tura filial resultantede um salto do criado para fora do domínio do
Através da composição de séries diferenciais que autorizam a ex- genitor, devir pai do filho num crepúsculo do primeiro até um mais
crescência de uma macropercepção consciente, Deleuze rejeita simi- além de toda paternidade,os feixesesparsosde um para-si que faz
larmente, de um lado, o materialismo prosaico de um real em-si quc frente às pretensõesdo em-si reorquestram-senuma dinâmica autó-
age sobre o pensamento, de outro, o idealismo transcendental de um noma apta a se voltar contra o princípio de sua produção, em vista de
sujeito que constitui o ser do dado. "Que percebemos sempre nas do bodas guerreiras que reordenam a relação entre contingência e neces-
bus significa que apreendemos figuras sem objeto, mas através da sidade. Mais Antígona do que Édipo, fosse ele o peregrino conduzido
poeira sem objeto que elas próprias levantam no fundo, e que torna a pelo instinto de suas filhas... Ou ainda, do lado de Orestes...
cair para deixa-]asver por um momento [-.] aquilo a que elas (as quali- Ao uma vez por todas de Sartre, Deleuze opõe o devir incessan-
dades sensíveis) se assemelham não é a extensão nem mesmo o movi- te -- altas intensivas que vêm, quedas que vão -- dc um c07POseno
mento, mas a matéria na extensão, as vibrações, elasticidades, 'tendên
das ou esforços'no movimento.A dor não seassemelhaao alfinete zo G. Deleuze, l,e p/i: l,eibnfz ef /e Baroque, pp. 125 e 128. Sobre a percep-
na extensão, mas se assemelhaaos movimentos molecularesque ela ção molecular, consultar também Mf//e plafeanx, escrito com F. Guattari, Minuit,
1980,P. 345.
2i Teoria da Gestalt recusada por Deleuze (l,e p/f, p. 125) e explicitamente
ip J.-P. Sartre, L'Érre ef le Néanf, p. 59 reivindicadapor Sartre em l.'Êzre ef le Néanf, p- 223.

292 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 293


órgãos exposto a turbulências que se agitam do l ao 0, propelindo TRÍPLICE LINHA DE FRATURA
concreções molares, ecceidades, linhas abstratas segundo o ritmo cós- 'L'. Posiçõesrespectivasdo " sujeito" e do " objeto
mico de uma univocidade do ser, outro nome da forma imóvel e va- Advindo acidentalmente ao ser pelo em-si que visa a se recupe-
zia do tempo, aios, conjunto de todos os acontecimentos, pura reser rar, o nada da consciência -- estrutura de reflexo-refletora, negação
va. extra-ser: ritornelo de "todas as vezes em uma" e não do "uma vez interna, radical, do todo do em-si que ele se faz não ser, através das
por todas", sem independência do produzido, sempre ameaçado de negaçõesexternas dos "isso" -- faz que haja um ser do conhecido,
mergulhar de novo no sem-fundo caótico do ser.22A prova ontológica sendo o ser absoluto da relação pela qual os valores surgem no mun-
que valida o em-si a partir do para-si, a identidadenegada, a hetero- do. Na paixão de uma nadificação com o perfume de uma impossível
geneidade exclusiva como relação diabéticaantagonista entre as duas fusão com o em-si. a consciência "tira o Ser da noite" e manifesta o
esferas do ser, o acesso ao ser através de uma consciência sem a qual raiar do mundo em nome do descobrimento de certas praias lumino-
não haveria aparecimento do em-si, a espera perceptiva imantada pela sas24.Dissipando o engodo das formas a priori do sujeito e do objeto
instalação da "boa forma", enfim, e sobretudo, a pré-judicialidade decalques friorentos das operações de unificação da experiência no
inabordável de uma consciência anual,ainda que pré-reflexiva, balizam nível empírico indevidamente proletados no plano transcendental --,
uma imagem do pensamento sujeitado, aos olhos de Deleuze, ao quá a auto-afecção de uma superfície cerebral meta-estávelmaquinada por
druplo pelourinho da representação lidentidade no conceito, oposição Deleuze se desdobra em torções do Ser sobre si mesmo, através da
no predicado, analogia no julgamento, semelhançana percepçãol cujo ;dupla tela", da conversão da superfície física em superfície metafísi-
eixo mais geral se declina sob a forma do "Eu penso"23. Os eus dis ca, saltando ao sentido dos acontecimentos,ao verbo a partir do ruí-
persos em cada corpúsculo, dissolvidos, disseminados em cada mús- do dos corpos informes, ao pensamentocomo Ser a partir das ondas
culo, em cada influxo nervoso, vêem-sedevorados num organismo de choque e forças do sensível.n
"que se faz inerte para agir sobre o inerte", centro sempre em deban-
dada, arrancado a si, num corpo-a-corpo constantecom uma inércia 'A forma primeira da consciência, antes de dez/ircons-
a desativar, uma facticidade a se opor, no ponto em que a "assunção' ciência-de, é a forma, isto é, foda formação [.-] Reservar a
deleuzeana do eterno retorno seletivo do diferente se redobra na afir- sensação ao vivente organizado seria esquecer que o devir
mação de uma contingência .cujo novo lance de dados pela eclosão de não é devir do ser individualizado, mas dez,Ir de i/zdiz,Iduzzção
um pensamento exposto à impotência, conforme ao regime de sua do ser (Simondon); seria confundir sujeitoempírico e sujeito
passivização, se revela sempre ganhadora pelo fato de sua adequação transcendental físico, resultado de uma preensão que ele
ao acaso ontológico que ela difrata no inédito. Retomando a partir da
percepção as linhas de futura que separam as ontologias de Sartre e
de Deleuze, podemos agora verifica-las rapidamente em três pontos: 24J.-P. Sartre, Cabíers polir une mor.z/e,Paris, Gallimard, Bibliothêquede
1) no nível das relações entre "sujeito" e "objeto", 2) na oposição entre Philosophie, 1983, p. 510.
fundo/forma, todo/coleção e regular/singular, inconsciente/conscien- 25A gênesedinâmica do sentido, do acontecimento,partindo das posições
te (confronto baseado no exemplo da fome, da sedes, 3) quanto às kleinianas, esquizóide e depressivo, passando à superfície física da sexualidade e
qualificações inconciliáveis ligadas ao ser. simbolizando-se por ocasião de uma escalada ao pensamento, é desenvolvida nas
séries27 a 32 de Lógfc.zdo sentido. A extração do pensamentoa partir dos cor-
pos, do verbo a partir do sexo, do acontecimentoa partir do estado de coisas, se
fará a seguir(cf. A/zff-Édito, Mi/ P/afãs) no quadro de uma morfogênesecontí-
nua, recusando o dispositivo psicanalítico que articula sublimação, linha de cas-
22G. Deleuze, Loglqz/e dz{ sons, Paria, Minuit, 1969, p. 248; DI/lêrence ef tração, dessexualização da energia, recalque, conversão num instinto de morte es-
répéfitíon, pp. 122 e 381. peculativo, quadro esseque estava integrado e avalizado em Lógica do se/zlfdoe
23Idenz,p. 180. Diferença e ret)edição.

294 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 295


incorpora e à qual não preexistia a título individuado (Whi- toda coisa, integrando à camada de fundo inconsciente uma consciência
tehead); seria enfim compreender a sensação como um ele- inexpressa que habita virtualmente o todo da matéria. O antagonis-
mento tomado na cadeia derivada ação-reação, quando 'a mo conceitual, em seu traçado concluído, cartografa-seentão assim:
contração não é uma ação, mas uma paixão pura'."" totalidade prévia de uma consciência em ato versus consciência como
limiar, grau, emergência contínua que tendem a se atualizar em cima
A reserva feita em relação a Sartre, em l,(igica do se/zfido27,quan- dos obstáculos intensivos encontrados.
to a sua posição de uma consciência no bojo do campo transcenden- Para Leibniz, a harmonia preestabelecidaque rege a compos'
tal impessoal, incidia sobre a exportação indevida de uma síntese de sibilidade das séries convergentesimplicava a inversão das relações
unificação da consciência que, embora separada da forma do Eu e do entre a manada de todas as manadas, a infinidade divina (infinito/l ),
ponto de vista do Ego que ela produzia, determinava a base transcen- e a manada subjetiva que ilumina uma parte das séries totais do mun-
dental como consciência intencional, consciência de alguma coisa, do ([/w). "E]a [a mânada] é a imagem invertida de Deus, o número
vetou de unificação. Ê precisamente esse bemol aposto à teoria sar- inverso do infinito, ]/w em vez de w/l [...] cada manada exprime o
treana da consciência pré-reflexiva, na medida em que ela recobre um mundo(l/ml, mas só exprime claramenteuma zona particular do mun-
centro unificador fixo e único como consciência de alguma coisa, que do (l/n, lz tendo em cada caso um valor preciso)."30 A base do sujeito
irá desaparecer em O que é a Éí/oso#a?28e no texto "A imanência: uma monádico numa unidade dividida por um infinito do qual ela refuta
vida...". Neste, a impessoalidade de uma consciência não reflexiva se certas zonas, introduzia a necessidadede sua inversão, no que respei-
vê positivamente qualificada ao vislumbre da consciência virtual, ras- ta à relação efetuada por Deus, no princípio de uma harmonia prees'
tejante, neutralizada, de direito, enquistada nela mesma, desenvolvi- tabelecida distribuída entre as manadas expressivas e um mundo ex-
da por Bergson, uma consciência subtraída a toda revelação, conden- presso submetido à convergência das séries. Se um lance de dados
sada, enrolada sobre si, que só se torna um fato expressivo tangível se mallarmeano destrona o princípio de um jogo do pleno regido pela lei
sujeito e objeto são produzidos fora de campo, como transcendentes da compossibilidade dos mundos, o caosmos que afirma o acaso, sub-
pelos quais ela se consagra consciência reflexiva. A supressão da linha metido à bifurcação de caminhos discordantes, não é senão essa su-
de demarcação traçada em relação a Sartre, no ponto mesmo em que
perfície intensiva que libera uma vice-dicção obtida da incompossi-
este último havia defendido a pertinência de uma radical divergência bilidade, percorrida por manadas emancipadasde sua dívida para com
entre as concepções bergsonianas e as suas,z!' permite polir, recobrir um Deus do qual elas eram apenas a imagem invertida, espelho ex-
imaginariamente, em nome de conexões heterogêneasque passam de pressivo do mundo e número inverso do infinito. Para além do jogo
uma para outra e sobem ao plano de imanência definido como "uma' estabelecido de ecos entre o modelo e sua cópia, entre o ápice do cone
vida, um irredutível antagonismo conceitual entre, de um lado, a apre e suas dobras atuais, desdobra-se um neo-barroco ao qual Deleuze,
então sartreana de uma consciência que desvela o mundo, sempre de incluindo-se nele, associa, entre outros, Whitehead, Borges, Joyce,
fato, presençaa si, correlacionadaa um pólo noemático, montantede Gombrowicz, Boulez...: espumosa escala cromática onde se agitam
todo desvelado,e, de outro lado, a teoria bergsoniana,deleuzeana,de dissonâncias e instabilidades sem a visada resolutória de uma vertical
uma consciência imanente, embrionada, aquém de sua auto-revelação harmónica, o plano de imanência é percorrido por traços diagramáticos
e de um advir em fato que atualiza a toupeira luminosa escondida em em velocidade infinita e difratado por sujeitos nâmades que ultrapas-
sam a simples relação l/m.3t Dobra do fora, derivada caída dos agen-
zóE. Alliez, l.a slg/zízfHre
d n o/zde,pp. 82 e 84.
27G. Deleuze, l.ogfqae d selas,pp. 139-40 e 132. se G. Deleuze, Le P/í, pp. 177-8.

28 G. Deleuze e Guattari, <)u'esf-ce q e /a pbi/osopble?, p. 49. 3i Deste modo, a crítica dirigida por Badiou a Deleuze sobre um sujeito que
se veria retomado, pego por trás pelas dimensões do Uno e do infinito, conserva
29J.-P. Sartre, L'imagifzízflofz, especialmente às pp. 44-5.
ria sua validade apenas no quadro de um barroco leibniziano, não do neo-barro-

296 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 297


ciamentos de conteúdo e de expressão que estriam um plano de con- alienante que o visco no em-si veiculava através da busca ontológica
sistência acentrado e infinito, o sujeito emerge por ocasião da integra- ou da reflexão impura em Sartre. A instabilidade de um eu-arlequim
ção de movimentos virtuais sobre uma superfície transcendente, numa derivando de seus agenciamentos-ramificações no fora deixa aberto
co-constituição do objeto e do Eu em nome de uma gênese temporal o maneirismo infinito de uma composição de si, sempre no entremeio
passiva. Resíduo das síntesesdo presentee da memória, chamado a de uma compacidade sobrecodificante, de uma petrificação dos flu-
se dissolver na forma estática e vazia do tempo do aloH, o sujeito como xos ou de uma cambalhota no buraco negro de uma desterritorialização
limiar, passagem, segmento cristalizado, em seu choque com a forma mortífera.
imóvel do tempo do acontecimento, explodirá em Eu fendido e Ego Frente a essesprismas flutuantes, fogos-fátuos em eclipse, face-
dissolvido. O eterno retorno do diferente, abrindo a terceira síntese tas irisadas subjetivas que concretizam efemeramente o plano da na-
do tempo (a da forma vazia e imutável de um Kant revisitado por tureza, delineiam-se a unidade na díade de um para-si intencional (O
Hõlderlin) sobre o futuro, expulsará, através da falha de Tânatos, o Ser e o Nada) e a do organismo que trabalha na reprodução de si(Cr&
sujeito individuado, unificado, socializado. Permanecem então as mul- fica da rczzãodfóz/ética),ambas fontes finitas do sentido, expostasà con-
tiplicidades intensivas como ecceidades, singularizações (em longitu- tigência do em-si, às contra-finalidades e à raridade material. Não eus
de e latitude, velocidade/lentidão e afetosl, sem forma funcional nem entorpecidosem toda textura inorgânica, arrancados à natureza por
substância subjetiva. A heterogeneidadedos planos lplano de consis- contrição-contemplação passiva e difratando o infinito do campo
tência, imanente, das ecceidades, ou plano de organização, transcen- transcendental, mas um centro intencional correlacionado ao em-si que
dente, dos sujeitos), dos tempos Itempo vibrado, fora dos eixos, do aios, ele revela, um pólo significante finito sem relação interna com um
do acontecimento, e tempo estriado da medida, de Cronos), das lin- infinito que só pode opacificá-lo em nome da tentação que ele induz
guagens(semiótica dos nomes próprios, dos artigos indefinidos, dos quanto a uma substituição da facticidade do para-si pelo absoluto de
verbos infinitivos, e material expressivo dos pronomes pessoais, no- sua má infinidade. A invaginação de um infinito auto-consistentedo
mes e adjetivos), encerrada em seu componente temporal, culmina Fora em um infinito atual de velocidade relativa, sem falta nem nega-
etologicamcnte na terceira sínteseestática do tempo do aio/zque libe- tividade, dá lugar a uma relação dialética entre um centro finito signi-
ra um "labirinto em linha rega" que afirma o futuro, abolindo o id e ficante, dividido pela falta, e um infinito ilusoriamente visado como
o ego, as repetições do presente e do passado, engolindo as trans- Valor, impossível objeto de um desejo ontológico que fantasia sua
cendências subjetivas e objetivas. Num insaciável movimento de fuga saciedade no Em-si-para-si. Dois dispositivos de pensamento se deli-
-- viravoltagem em estilhaços cujas petrificações se dispõem da duc- neiam: uma lógica da dispersão convulsiva obtida das faíscas do dfs-
tilidade de uma segmentaridade flexível arrastada por "quamfzzde des- pars, alojada numa física do discurso, em Deleuze, e uma dialética que
territorialização" a linhas de corte molar, sobrecodificantes --, os flu- dispõe através do para-si a totalização práxica do dado, relançando a
xos intensivos que animam o ser se concretizam em linhas de vida que incondicionalidade de uma liberdade situada, aliada a uma fenome-
podem ser esposadas, numa inclinação esquizóide, pela viagem imó- nologia existencial do vivido, em Sartre. Esses diagramas não atestam
vel de um devir imperceptível, ou mineralizadas, paranoicamente, na senão a composição, sempre singular, de dois "caóides" que determi-
compacidade de uma inércia, como a inércia portadora da segurança nam o que significa "orientar-se no pensamento", selecionando os rit-
mos de seu criativo lance de dados. De um nado de costas, levado alea-
toriamente pelas ondas, extraindo as Idéias de um pensamento arran-
cado do fundo escuro, elegendoa passivização como modo de exis-
co deleuzeano.O sujeito, arrancado ao infinito dobramento do Fora que ele do- tência adequado ao fundo ontológico da natureza, bifurca-se para um
bra, corresponde assim a uma singularização intensiva semUno, formalizável sob nado que profeta ativamente o remanejamento de sua adversidade
a forma da relação n-l/m. Consultar A. Badiou, "G. Deleuze,Le pli: Leibniz et le materia! em nome do emprego de projetos que se opõem à contingên-
Baroque", Ann gire Pbi/osopb]q e ]988-1989, Seuil, 1989, mais precisamenteà cia do em-si.
P 183

298 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 299


ZU. Recorte peTceptiuoe limiar diferencial de consciência, parti- optar pela inclinação da necessidade num desejo controlado pelo Ou-
cularimdos em percepção de uma necessidade ou de um problema tro, relacionando-se imediatamente, alucinatoriamente com o mundo,
Vimos como a percepção, enquanto exemplificação particular da sagrando-se imitador de uma cena enfeitiçada que absorve sua falta
conduta de totalização por negações,correspondia em Sartre ao es- nos limbos do imaginário. Sejaqual for o traço que subjaz às catego-
quema de uma ação recíproca entre fundo e forma, entre todo e par- rias existenciais de necessidade e de desejo, a fome se apreende como
tes, agendado pelo para-si em função de suas finalidades. Em O Ser e consciência de fome, percepção de uma falta a preencher, extraída de
o Nada, a percepção de um fenómeno objetivo como a sede, a fome, um esvaziamentodo fundo, por uma localização seletivasobre o "isso"
confronta a consciênciaà ação de uma falta ântica que deriva da fa- de um organismo esfomeadoque se mobiliza ora na via ativista de uma
lha ontológica de um ser sem coincidência consigo. A configuração do liberdade reagindo ao insuportável que a submerge, ora numa tradu-
problema assinala, por sua posição, por sua simples expressão, o oti- ção estética que responde à inviabilidade do real por uma escalada ao
fantasma.
mismo de seu resultado segundo uma réplica finalizada, imantada pela
obtenção de uma nova configuração entre em-si e para-si, numa reso- O modelo deleuzeano da percepção, que integra o das relações
lução inteiramenteprovisória do desequilíbrioocorrido. Em 1943, o diferenciais estabelecido por Leibniz, deve antes de tudo explicar o
deter-se num problema fundamentava aquilo que virá, na Crüfca da 'como" da passagem entre percepções liliputianas, inconscientes, "que
razão dla/ética e no Id/ofézda Áam/7ia,da necessidadeno campo de um pulverizam o mundo", e macropercepçõesconscientes "que espiri-
desejo estranho a si, exposto a uma alienação ontológica que visa, a tualizam a poeira". As obscuras percepções, almas inquietas à esprei-
partir da falta sentida, o absoluto do que falta, a síntese em miragem ta que desequilibram a antiga macropercepção que elas compõem, in-
da sedeeterna -- "vazio preenchido" -- e do para-si na figura do Em- duzem a escalada a uma nova apercepção consciente, não por um pro'
si-para-si32.Os Ceder/zospara ama mora/ irão corroborar essa ane- cesso de totalização de partes homogêneas que fazem emergir o que
xação da sede, da fome, à ordem de uma conduta mágica, transida pelo só pode ser sentido, o se/zfie/zdum(o todo podendo ser tão insensível,
Outro, em busca de uma satisfação do desejo barrada pelo impossí- inconsciente, quanto as partes), mas por uma gênesediferencial na qual
vel, em razão de sua subtração em relação à linguagem, de sua visada duas séries heterogêneas ordinárias se integram de modo a formar uma
e modalidade fantasmáticacontornando a eficácia de uma praxis en- singularidade consciente. "Como uma fome sucederia à fartura, se mil
ganadano real. (Transposto no registro lacaniano, poder-se-iadizer que pequenas fomes elementares (de sais, de açúcar, de gordura etc.) não
a impossibilidade do desejo sartreano se torna menos a de um desejo se desencadeassem em ritmos diversos despercebidos? [-.] é preciso que
separado de si mesmo pelo anteparo do significante, estruturalmente a falta de açúcar, a falta de gordura etc. entremem relações diferen-
insatisfeito, deportado metonimicamente na ignorância de seu obje- ciais que determinem a fome como algo de importante ou de notá-
to, que a do real do gozo, do objeto a.) A partir de ] 960, essasper- vel."33 Em suma, um critério do importante, do singular nascido atra-
cepções de uma falta que reclama sua satisfação, ao deparar-se com vés da filtragem do claro a partir do obscuro, ao qual se subordinam
um limiar de intolerável, serão circunscritas nos termos de necessida a verdade e a clareza e distinção cartesianas, é um salto ao conscien-
des, de condutas prospectivas com eficácia real que mobilizam, num te, no eixo de uma continuidade, em cima de um impasse ontológico,
sobressalto vital, a ativação de seus recursos a fim de garantir a per- de um imperativo dos acontecimentos llançar dos dadosJ traduzido em
petuação do organismo em seu ser. Frente à adversidade material, aos questão (dados) e não na ilusão do negativo e da necessidade.34Re-
desregramentos orgânicos sucedidos, a incondicionalidade de uma li- jeitando o agendamento sartreano fundo/boa forma, todo/partes, cons-
berdade que visa a reprodução de si pode se lançar preferencialmente ciência da falta e negatividade da necessidade,Deleuze desdobra a
no caminho de uma síntese ativa do dado através da necessidade, ou
s3 G. Deleuze, Le P/í, pp. 115 e 117.
Segundo Bergson, a categoria do proa/enza tem uma importância bíoló
3z Consultar L'Erre ef le Néanf, pp. 140-1 Bica muito maior que a, negativa, da necessidade". Id., Le bergsonfsme, Paria, PUF:

300 301
Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze
tríplice configuração de imperativos dos acontecimentos (lançar dos dades diferenciais, modulando-se como praia de devires definidos pela
dados) apresentados como questões (dados) que nos assaltam, e cujas forma a prforí do aios, cujo sentido de acontecimento incorporal
Idéias problemáticas (resultantes do lance de dados), "paradoxando", efeito da ordem dos corpos e quase-causa das concreções molares --
medusando as faculdades, modalizam seletivamenteuma resposta, uma garante a ligação entre as séries heterogêneas do ver e do falar nas quais
escalada a um exercício transcendente e superior de pensamento sus- ele se atualiza mantendo sua parte de sombra, seus anos de açor, sua
citado pela impotência, pelo inconscientedos imperativos oncológicos contra-efetuação no entretempo.
que nos estremecem. Plenitude de toda configuração perceptiva, qual- À margem das figuras kantianas de uma doação de um diverso
quer que seja o grau de clareza que possua, bifurcação automática e sensível ao qual se aplicam esquematização temporalizante e apare-
inconsciente capaz de deportar a efervescência molecular a um limiar lhagem categorial, ou hegeliana de um ser sempre já pensado como
consciente, a micro ou macropercepção é o outro nome de uma vida conceito, o dispositivo deleuzeanopõe em cena uma percepçãopro-
nas dobras que incorpora a noite do Fora, de uma "interioridade de jetiva, narcísica, que traça as coordenadas de seu campo de exercício,
espera ou de exceção" (Blanchot) que redobra o Outro, fora de toda e da qual o espelho material não é senão o reflexo de um simulacro
identidade. "0 dentro como operação do fora: em toda a sua obra, percipiente, sombra de uma sombra, onde o semelhado (físico) se en-
Foucault parece perseguido por esse tema de um dentro que seria ape- trega ao modelo (psíquico) do percebido, onde percipiente e percebi-
nas a dobra do fora, como se o navio fosse um dobramento do mar. do se confundem nas metamorfoses arlequinais de um eterno disfar-
A propósito do louco lançado em sua nau, no Renascimento, Foucault ce. Nesse traçado se cruza o relato plotiniano, tal como aparece nas
dizia: 'e]e é co]ocado /zo inferior do ex]erfor, e inversamente, [.-] pri- Enxadas: "Pois é preciso que o olho se torne parecido e semelhante
sioneiro em meio ao mais livre, ao mais aberto dos caminhos, solida- ao objeto visto para se aplicar a contempla-lo. Jamais um olho veria
mente encadeado à infinita encruzilhada, ele é o Passageiro por exce- o sol sem ter se tornado semelhante ao sol". Rizoma plotino-bergso-
lência, isto é, o prisioneiro da passagem'. O pensamento não tem ou- niano enrolado em volta de uma procissão luminosa cuja imanência
tro ser que esselouco mesmo."Jj do efeito que dela emana não resulta, porém, de uma causa que se vê
remanejada em suas conseqiiências, tornando-se efeito do efeito; rizoma
3' . Canografias antológicas acentrado, cristalino, que Deleuze ramifica, junta ao expressionismo
Enfim, as cartografias ontológicas traçadas por Sartre e Deleuze de um Leibniz que desenrola inversamente as dobras solares a partir
podem ser esboçadas em suas diferenciais, muito lapidarmente, como de uma caverna sensorial mergulhada na sombra. Assim se revela, aqui,
segue: à massividade intemporal de um ser em-si, incriado, pleno, sem o quanto essa construção ideal de um diverso intensivo, privado de
distância nem cisão a si, "marulho inferior qualquer" sempre seme- acesso imediato em sua totalidade virtual, choca-se com vigor contra
lhante a si, desprendendo-se acidentalmente num para-si nadificante a figura de pensamento anti-sofística estabelecida por Aristóteles, a
pelo qual o sentido advém ao mundo, opõe-seum ser unívoco, con- saber: a marcha de pensamento pela qual o Estagirita impede que o
junto de todos os acontecimentos ideais, corpo glorioso, que se decli- discurso demonstre o ser como simulacro e destileum impressionismo
na como pura reserva, extra-ser, sem-fundo efervescente de singulari- ontológico: somente a essência de coisas apreendidas em seu ser em-
si, independentementede toda noese,será proposta como padrão de
verdade. O credo aristotélico de um desejável que move o desejante
1966, p. 5. Cf. também Df/X2renceef répéffllon, pp 105-6: "A própria necessida-
jque Sarte retomará por sua conta), de um perceptível em si anterior
de é portanto muito imperfeitamente compreendida a partir de estruturas negati-
vas que a relacionam já à atividade (-.) Também aí, nesseterreno (contemplativo), a todo percipiente,sela a primazia da referênciaextra-lingüísticaso-
somos levados a ver no negativo (a necessidade como falta) a sombra de uma ins- bre uma relação lógica, judicativa, que deixa intocado o ser das coi-
tância mais alta. A necessidadeexprime o boquiabrir de uma questão, antes de sas que ela desvela. E precisamente essa preocupação aristotélica de
exprimir o não-ser ou a ausência de uma resposta. Contemplar é questionar' preservar o ser da visada intencional, de impedir sua redução a um
3s G. Deleuze, Fo caK/f, Minuit, 1986, p. 104. epifenâmeno da consciência, que guiará a fenomenologia husserliana

302 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 303


e sartreana36, preocupação quanto à exigência de um realismo epis- divergente, heterogêneo só aparece em sua construção por um laborató-
temológico,de um objetivismodo ponto de vista, com que Deleuze rio de pensamento, por uma gênesepsíquica que o modela em perfis-
pouco se importará. Para Sartre, tudo é rigorosamente objetivo: a vi- simulacros, em flexões instáveis ameaçadas de recair no estado inicial
são parcial do cspetáculoque se oferece, o ponto de vista situado a de um torpor molecular, de uma escura agitação, magma em ebulição
partir do qual a percepção se mantém, a imprecisão perturbadora dos banhado de virtuais em potência. Ao rochedo luminoso de um cogito
contornos percebidos de permeio... Desse objetivismo sartreano se cartesiano consagrado com o peso da evidência, dispensador de clareza,
desvia a palavra de ordem deleuzeana de um "tudo é regular, tudo é substitui-se a aliança -- por definição antinatural de um expressio-
singular", cujos ecos desconjuntados esposam o bamboleio de facul- nismo cinematográfico à Leibniz, maneirismo barroco em que tudo se
dades que povoam um reino de sombras, filhas estilhaçadas de um extrai de uma obscura mistura por diferenciações contínuas de graus,
Ulisses compondo o galé caósmico dos simulacros. Caosmos cujos e de uma abstração lírica encarnada por Bergson em que tudo se eleva,
problemas de acontecimentos insistemcomo objetividades ideais, num não de um noturno abismo, mas de uma luminosidade interior às coi-
objetivismo último alojado no simples plano virtual ontológico, e não sas, de uma consciência virtual, hialina, opalescente, escondida em toda
no dispositivo do ponto de vista, do jogo fundo/forma e da correla- matéria-imagem. Figura de Camilla em Le cara'ossod'or de Renoir37,
ção fenomenológica entre entes atuais. de um lado, os folguedos de Lulu e do Afzjfoazu/, de outro... Do ser
múltiplo como caos gerador de forças ativas ou reativas, nobres ou vis,
DE RENO1RA LULU E O ANJO AZUL pode-se declinar o nome próprio, o do signo único intensivo: signo úni-
Em Sartre, o ser, jamais apropriado, ultrapassando sempre suas co como puro simulacro do sofista, repetição inédita sem modelo, sub-
aparições fenomenais, relançando o desafio de sua alteridade inacessí- metido ao eterno retorno. Signo único de Roberte que se resumirá nes-
vel à razão, excedendo toda intencionalidade, só se oferece ao para-si, tas linhas de Pierre Klossowski: "somente a coerção fantasmática dc
lateralmente, através dos fenómenos de ser e suas Sfimmu?zgen (náusea, alguma coisa é real, não a realidade da coisa: e o simulacro só é real
angústia, fadiga, tédio...), num maremoto que deporta o cogito para fora se responde a essa coerção. Toda eficácia decorre apenas desta regra
de todo controle, no seio de ondas oceânicas que sepultam toda referência do jogo: o resultado jamais se obtém senão em virtude de uma realidade
significante, rasurando as antecipações da percepção. Do seio de um inventada de antemão [...] Jn fnilio arar sim /acrum -- tal é o princípio
conhecimento que é apenas "solidão do conhecido", o para-si "conhe- do programa deleuzeano: o pargos simulador enquanto único produtor
ce o ser tal como ele é", no sentido em que ele nada acrescenta ao ob- da significação, ou seja, o simulacro do que seria ou jamais seria um
jeto transcendente irredutível a um epifenâmeno da consciência, a não fato. O subalterno mesmo, jamais um fato consumado, jamais senão
ser a contribuição de uma modulação significante quanto a esteou àquele o produto reversível de uma simulação anterior à sua formação"jõ
verde, apreendidocomo rugoso, macio e dúctil, de tom escuro...
Para Deleuze, o ser se unifica pelo auto-sobrevoo em velocidade
Tradução de Paulo Nunes
infinita de um pensamento que retorna como ser, e não pela unificação
gerada pelo para-si. Longe de um criado lsubjétil, objétill que se au-
tonomiza, se volta contra sua gênese-- enquanto advém ao cabo de Quando Sartre censurava a Welles (e a Cffize/z gane) ter reconstituído o
tempo com base no passado, em vez de compreendê-lo em função de uma dimen-
uma síntese ideal e sensível, num caso não-sartreano de figura --, longe
são de futuro, ele talvez não tivesse consciênciade que o cineastamais próximo
de um fenómeno que resiste a toda fagocitagem pela consciência, assen- de seus desejos era Renoir. É Renoir que tinha uma viva consciência da identida
tado na transcendência objetiva de seu ser, o ser contingente, caótico, de da liberdade com um futuro, coletivo ou individual, com um impulso em dire
ção ao futuro, uma abertura de futuro". G. Deleuze, C/fzém.z2: L'fm.zge-femps,
Paris, Minuit, 1985,p. 117.
só Consultar a esse respeito Sartre, "Une idée fondamentale de la phénome-
nologie de Husserl; I'intentionnalité", Crffíques /i#éraíres, Sfr aflons /, Gallimard, 38P. Klossowski, "Digression à partir d'un portraitapocryphe", l,'Arc, n' 49,
1947
4 p. 13 (dedicado a Deleuze).

304 Véronique Bergen A percepção em Sartre e Deleuze 305


A IDEIA DE "PLANO DE IMANÊNCIA"
Bento Prado Jr.

A filosofia é um construtivismo. e o construtivismo


tem dois aspectoscomplementares,que diferem em na-
tureza: criar conceitos e traçar um plano. Os conceitos são
como vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam,
mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e
desenrola. O plano envolve movimentos infinitos que o
percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades
infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez
somente seus próprios movimentos"'

l
O que pretendo fazer, nesta circunstância, é tentar esclarecer o
texto em epígrafe, que não deixa de ser enigmático, pelo menos à pri-
meira vista. Como podem idéias como "movimento infinito" e "velo-
cidades infinitas de movimentos finitos", de significação originalmente
/laica, qualificar noções como as de "plano de imanência" e de "con-
ceito", que são claramente nela/bicas? Se conseguirmos fazê-lo, mesmo
precariamente, talvez alguma luz seja lançada sobre a concepção de-
leuzeana da filosofia nas suas relações com a história da filosofia, com
a pré-filosofia, e sobretudo, o que talvez importe mais, com a /zão-/;-
/osoPa. Para poder fazê-lo no tempo disponível, vou limitar-me à aná-
lise de um texto curto (o capítulo 111de O que é a /}/osoêa?) e proce-
der em duas etapas. Em primeiro lugar, uma descrição do modo como
Deleuze define a idéia de "plano de imanência"; em segundo, um ba-
lanço dos efeitos mais significativos dessa concepção da instauração
filosófica. Mas, para tanto, será necessárioassumir uma perspectiva
diferencial e comparativa. Um ponto de vista exfer/zo à obra de De-
leuze, que a situe dentro de um triângulo definido por três iniciativas
desigualmentepróximas da sua: a fenomenologia (pensada grosso mo-
do, sem cuidar das mil versõesque recebeul, a Arqueologia de Fou-
cault e a análise gramatical do segundo Wittgenstein. Se os dois pri-

l G. De]euze,O qKe é a /í/oso/]ai, São Pau]o, Editora 34, ]992, p. 51

A idéia de "plano de imanência 307


moiros paralelos parecem obrigatórios e são freqüentemente feitos (res- filosofia de Deleuze uma "filosofia de campo" num sentido pare-
pectivamente nas formas da contraposição e da aproximação), o ter- cido àquele em que se fala das "psicologias de campo" Mas um cam-
ceiro pode parecer arbitrário e desconcertante. Mas é justamente dele po infinito (ou um horizonte infinito) e virtual.
que esperamoso maior rendimento nesta empresa comparativa, e toda Mas esse campo -- que é o lugar onde se constroem e circulam
a segunda parte desta exposição ser-lhe-á consagrada. os conceitos -- não é pensável por si mesmo. Sua definição e seu ma-
E adiantemosque as metáforasdo "movimentoinfinito" e da peamento só são possíveis pela definição correlata dos conceitos que
velocidade infinita de movimentos finitos" lou a metáfora oceânica o povoam. Se os conceitos precisam de um campo virtual prévio, o
que faz destes "vagas múltiplas que se erguem c se abaixam", que se plano não subsiste sem os conceitos que o povoam e nele circulam como
movem naquele, isto é, no plano de imanência, essa "vaga única que as tribos nâmades no deserto, ou como as ilhas que fazem arquipéla-
os enrola e desenrola") só entregarão seu sentido ao termo da acumu- go no oceano. Mas que a metáfora não nos engane: pode haver deser-
lação de vários traços diferenciais. to habitado e o oceano nem sempre tem sua superfície interrompida
Mas mergulhemos diretamente em nosso assunto. O melhor fio ou salpicada por arquipélagos. Assim, mais uma vez, se não há con-
condutor será, talvez, o que é fornecido pela afirmação de que a filoso- ceito sem plano, não há plano sem conceitos que inscrevam, nesse
fia tem um estilo essencialmenteco/zslr fiulsla. Creio que Deleuze "elemento" fluido e virtual, superfícies e volumes, que o marquem
privilegia, nessa noção, entre os múltiplos sentidos de que está impreg- como acontecimentos, que o recubram como ladrilhos inumeráveis e
nada, aquele que recebeu na filosofia da matemática -- em cumpli- distendam, assim, esse meio impartilhável.
cidade com o intuicionismo, em sua batalha contra o logicismo e o pla- Até aqui não abandonamos completamenteo campo das metá-
tonismo jpensemos um pouco na tradição francesa, desde Poincaré). l:oras. Talvez seja possível lançar alguma luz conceitual sobre tal idéia,
Não há co/zce/foem sl, ele é o resultadode um fraga/bosopre uma através de duas referênciasexternas,a Kant e a Foucault, que corres-
matéria. Ou, na fórmula de Difere/zça e repeffção2: "A verdade, sob ponderiam, talvez, a duas dimensões essenciaisda idéia de plano de ima-
todos os aspectos, tem a ver com a produção, não com a adequação' nência. Tudo se passa, com efeito, como se houvesse algum paralelismo
Ip. 200). É claro que a idéia de construção (se é verdade que tem algo entre a "instauração filosófica" segundo Deleuze e a instauração da
de comum com o uso que dela fazem os filósofos da matemática) rece- Ciência na Cr#lca da rízzãopura. O plano de imanência é, entre outras
be um considerável alargamento e retorna de alguma maneira a sua coisas, uma espéciede solo intuitivo, cujos "movimentos infinitos" são
base intuitiva comum (da relação entre a planta -- o diagrama -- de fixados pelas "coordenadas" construídas pelo movimento finito do
uma casa e os tijolos que Ihe darão corpo). Mas é claro, também, que conceito. O plano de iminência, despovoado de conceito, é cego (no
tal idéia reata alguns laços com a idéia, propriamente filosófica, de limite é o caos); o conceito, extraído de seu "e]emento" intuitivo (no
"constituição", sem esquecer os múltiplos sentidos da palavra trabalho. sentido de atmosfera), é vazio. Acrescentaria, ainda, que assim como
Todas essas instâncias devem ser guardadas, sobretudo porque, Kant atribui à imaginação transcendental a função de mediação, que
ainda que chegue a definir o plano como diagrama, Deleuze o defini- permite a subsunção da intuição ao conceito, Deleuze introduz a ins-
ra, previamente, ao mesmo tempo como borizonfe e como se/o. Isto tância intermédia dos "personagens conceituais", na passagem dos "tra-
é, o plano de imanência é essencialmente um cízmPOonde se produ- ços diagramáticos" do plano às "coordenadas intensivas" do conceito.
zem. circulam e se entrechocam os conceitos. Ele é sucessivamente Mas essa aproximação pode levar a equívoco. Se num caso pro-
definido como uma atmosfera (quase como o englobantede Jaspers, cura-se fundar o conhecimento científico -- matemática e física -- na
que mais tarde Deleuze vai recusar), como informe e fractal, como ho- determinação conceitual da matéria da intuição no campo da expe-
rizonte e reservatório, como um meio indivisível ou impartilhável. riência possível, no outro o que se busca é descrever a instauração da
Todos essestraços do plano de imanência, somados, parecem fazer da filosofia (ou das filosofiasl no campo da experiência real: o fato das
filosofias, Platão, Descartes, Kant... E, sobretudo, não é de Conheci-
2 G. Deleuze, Di/Xérefzceel répéfffion, Paris, PUF, 1968. mento que se trata, mas do Pensamento -- a pergunta "0 que é a Fi-

308 Bento Prado Jr. A idéia de "plano de iminência 309


losofia?" é idênticaàs perguntas"0 que significa pensar?" e "0 que nicação ou da intersubjetividade. No coração mesmo do plano de ima-
é orientar-se no pensamento?: nência, o Universal da Comunicação abre uma brecha por onde a ima-
O fato é que a exploração da idéia de plano de iminência não nência se esvai numa hemorragia incontrolável, vertendo no transcen-
nos leva para o campo da Epistemologia ou da Teoria do Conhecimen- dente, do qual o plano se torna mero predicado -- reiterando o pro-
to, mas para aquele das relaçõesda Filosofia com sua história, com a cesso de confisco ou seqiiestro operado no passado pelos Universais
pré-filosofiae com a não-filosofia-- relaçõesque, como veremos, se da Contemplação (Platão) e da Reflexão (Kant).
entrelaçamnum único nó ou feixe. Aqui torna-se necessáriocorrigir Diferente é o caso do paralelo com o Foucault de l,es moZs ef /es
nossa perspectiva, por uma dupla referência à tradição da fenomeno- cboses. Ali a episfeme é também uma espécie de chão pré-teórico e pré-
logia e à Arqueologia de Foucault. filosófico, que subjaz ao saber e o prefigura (nos seus "diagramas
A fenomenologia não cuidou sempre do "solo" do pensamento? implícitos"), um saber que só pode ser compreendidoa partir desse
Esse solo não acaba sendo definido como a esfera do pré-predicativo campo prévio. Mais do que isso, a arqueologia não tem vocação epis-
a que devem ser remetidos, em última instância, todos os constructos temológica -- mesmo porque a suspensão do valor de verdade do dis-
conceituais? Essa esfera não é a "Terra que não se move" (lembremos curso é parte integrante de seu método. Mais ainda, como não se con-
que a Terra é figura fundamental no pensamento de Deleuze), isto é, funde com a Urdoxa de Husserl, esse soc/e tampouco pode confun-
à Terra como elementoda imanência do bebe/zsme/l,Urdoxa. Assim dir-se com forma alguma de coxa, nem para Foucault, nem para De-
como a determinação da essência remete ao campo do pré-predicativo, leuze, que se demarcam igualmente do estilo tradicional da história das
a construção do conceito remete ao campo pré-filosófico do plano de idéias. Essa espécie de Impensado de base não é o "fato" de uma "ideo-
imanência. Mas essa aproximação de superfície esconde uma mais logia", de uma /arma menfls ou de uma mentalidade -- mesmo se
funda divergência.Embora vislumbrando o plano de imanência,a estamos mergulhados na facticidade da história (do pensamento dado),
fenomenologia perdeu-o de vista desde o início, fazendo dele um campo a investigação é sempre guiada pela questão gula jf ris. Na forma de
ego-centrado3e nele introduzindo o transcendente na forma da comu- uma nova pergunta: por que já não posso mais pensar assim? Que
posso pensar, agora, à luz do futuro? Como se destaca, bo/e, o pensável,
no seu limite com o impensável?
3 Em outro lugar, eu escrevia: "A crítica deleuzeana à subjetividade como Seria, assim, o plano de imanência um novo avatar da epfsfeme
fundamento é menos uma originalidade de sua filosofia do que um ponto pacífica
de toda reflexão contemporânea de vocação antifenomenológica, da filosofia analíti-
foucaultiana? Vários textos parecem levar a essa direção, sobretudo
ca aos famosos 'desconstrucionismos', passando por todos os neopragmatismos
lo naturalista, norte-americano, e o transcendental, alemão) e por todos os estru-
ruralismos. O que a distingue, talvez, é ver no sujeito fundante (cartesiano, kantiano, deira ou um pedregulho), de William James(o do stream o/'fboagbr dos Prflzcip/es,
husserliano e mesmo hegeliano -- cf. Gérard Lebrun, O at/essa da dla/élfca, São que lamentava não poder dizer, como seria necessário, em inglês, /t fbin&s, como
Paulo, Companhia das Letras, 1 988, pp. 254-7) um sujeito essencialmenterepresen' se diz if rafms, já que a gramática do enunciado l lbính cria a ilusão da substancia
nativo e submetido ao regime da identidade, arqlfé unificadora e síntese prévia da cidadedo cogfro). Não era já Nietzsche que via na identidade do cogffo ou do su-
experiência, capaz de exorcizar toda forma de diferença rebelde. Trata-se de inverter jeito fundador um efeito, apenas, de uma ilusão gramatical?". Antecipando um
a linha do pensamento, para leva-la para algo como um campo prévio, pré-subjetivo pouco o paralelo que prometemosentre Deleuzee Wittgenstein, lembremosque
e pré-objetivo,donde constituir tanto sujeitocomo objeto. Contra a filosofia da esteúltimo, leitor de William James e de Nietzsche, voltou à origem dessefilosofema
sujeito, retomar o movimento da reflexão de Hume e de Bergson (a imaginação no século XVlll alemão, para retoma-lo nos seuspróprios termos. Assim, nas notas
de Hume, entendida como coleção anónima -- não como sistema -- de dados ou dos alunos que ouviram suas aulas no início da década de 30, podemos encontrar
idéias, como conjunto sem estrutura ou centro, 'coleção sem álbum, peça sem teatro, o seguinteregistro: "]-.] Ele dizia que 'assim como nenhum olho (físico) está im-
ou fluxo de percepções' ou o campo das imagens do primeiro capítulo de À4affêre plicado no fato de ver, nenhum Ego está implicado no fato de pensar ou de ter dor
ef mémoire, de Bergson, neutro episremologicamente,onde ainda não sesepararam de dente; e ele citava, parece que com aprovação, a frase de Lichtenberg, segundo
o para-si e o em-si), de Sartre (o Sartre de La frascendance de /'ego, que profeta o a qual 'em lugar de Eu penso, devemos dizer Ele pensa' (texto citado e comentado
ego para fora da consciência, definindo-o como tão transcendente quanto uma ca- por J. Bouveresse, Le myfbe de /'inférforflé, Paria, Minuit, 1976, cap. l).

310 Bento Prado Jr. A idéia de "plano de iminência 311


quando se aponta para o fato de que "várias filosofias podem parti- De um lado, a Arqueologia de Foucault tem uma natureza pro-
lhar o mesmo plano de imanência". Mas tais convergênciasnão de- pedêutica (corresponde a uma espécie de "Pro/egõmenos a lodo pen-
vem nos cegar para diferenças importantes: em momento algum da samento futuro que não queira assumir o estilo anta-teo-antropoló-
descrição deleuzeana da Imsla adio Pb//osopbicíz há suspensão do valor gico" l e, suspendendo o valor de verdade do discurso, limita-se a abrir
de verdade, e o estilo de sua história "filosofante" da filosofia jamais o espaçopara um pensamento"outro" ou futuro; de outro lado, a
atinge a perspectiva quase "etnográfica" da Arqueologia. Mais pró- análise deleuzeana da instauração filosófica já se entende como pen-
ximo talvezda história heideggerianada metafísicado que Foucault samento em ato e a pergunta pela essência da filosofia já é sua pró
em cuja obra também encontramos ecos heideggerianos --, Deleu- pria resposta (bússola e pólo, simultaneamente). Noutras palavras, a
ze, sem insistir no fofos do esquecimentodo Ser, não deixa de falar um estilo crítico e reflexivo, opõe-se um estilo que se quer imediata-
mente metafísico e dogmático (sem atribuir, é claro, nenhum sentido
em desvio ou em deformação do plano de imanência. A confusão en-
tre o Ser e o ente não tem ela algo de semelhante à confusão entre o pejorativo a esses termos).
plano de imanência e os universais que o reconduzem à Transcendên- É essa impaciência nietzscheana e vertiginosa do pensamento que
cia? A filosofia da Diferença não estaria fundada nessa diferença, pa- faz talvez o traço mais central do pensamento de Deleuze, essa vonta-
rente próxima da diferença ontológica de Heidegger? É, pelo menos, de de mergulhar, através das mil folhas dos planos de imanência (essa
minha impressão, que talvez possa ser verificada na comparação dos dimensão pré-filosófica que no entanto só vem ao ser com a instaura-
usos diferentes que os três filósofos fazem da obra de Nietzsche. ção da filosofia), em direção ao caos que recortam e filtram, para aí
É aliás essa diferença em relação a Foucault que levanta, para mesmo encontrar o pensamento e seu limite ou seu "fora absoluto"
Deleuze, uma dificuldade que o primeiro não só ignora, como parece Um percurso, para abreviar, que leva a filosofia do "impensado" ao
não dever nem precisar enfrentar. Cito Deleuze: "Mas, se é verdade ;impensável". Ou, nas palavras de Deleuze: "0 plano de imanência é
que o plano de imanência é sempre único, sendo ele mesmo variação ao mesmo tempo o que deve ser pensado, e o que não pode ser pensa-
pura, tanto mais necessário será explicar por que há planos de imanên- do. Ele seria o não-pensado no pensamento. Ê a base de todos os pla-
cia variados, distintos, que se sucedem ou rivalizam na história, precisa- nos, imanente a cada plano pensável que não chega a pensa-lo. É o
mentesegundo os movimentos infinitos retidos, selecionados. O plano mais íntimo do pensamentoe todavia o fora absoluto" 10 qweé a /:-
não é, certamente, o mesmo nos gregos, no século XVll, hoje (e ainda /osoPa?, P. 78).

essestermos são vagos e gerais): não é nem a mesma imagemdo pen- Com essas observações, demos o primeiro passo da tarefa a que
samento, nem a mesma matéria do Ser. O plano é pois o objeto de uma nos propusemos, e que está longe de dar conta do sentido ou do uso
especificação infinita, que faz com que ele não pareça ser o Uno-Todo da idéia de plano de imanência no pensamento de Deleuze. Outro passo
senão em cada caso especificado pela seleção do movimento. Essa di- é necessário, para que haja algum progresso, e concerne às relações
ficuldade concernente à natureza última do plano de imanência só pode entre as idéias de plano de imanência e de caos.
ser resolvida progressivamente" 10 qz/eé a Áz/oso/!a?,p. 55).
11
Note-se que a semelhançadas iniciativas (e mesmo a cumplici-
dade entre os autoresl não pode esconder aqui uma discrepância ra- Comecemos por um texto crucial onde podemos ler: "0 plano
dical. O que faz problema para Deleuze é ponto pacífico para Fou- de imanência é como um corte no caos e age como um crivo. O que
cault, ou o ponto de partida de sea traí z/bo (sempre nos limitando, caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações
aqui, a As Pa/az/rase as coisas). Talvez esse nó -- se ele não fot ima- que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não
ginário -- possa ser desatado se atentarmos para a diferença na ma- é o movimento de uma a outra mas, ao contrário, a impossibilidade
neira como cada um tenta responder à questão -- o qae é pensar?, de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem
embora ambos articulem tal questão à reflexão sobre o que é "radi- que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece como evanescente
ca!mente impensável quando a outra desaparececomo esboço. O caos não é um estadoinerte

312 A idéia de "plano de imanência 313


Bento Prado Jr.
ou estacionário.não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza e desfaz "corte" no caos, o plano é também um "crivo" -- cortar é selecionar
no infinito toda consistência. O problema da filosofia é de adquirir uma e fixar --, numa palavra, determinar, conter o rio de Heráclito ou o
consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha' Oceanomundo.
10 que é a filosofias, y. S9). Aqui já topamos com um problema. Ao descrever assim o plano
Em nosso exame anterior da idéia de plano de imanência, visa- de imanência, não estaríamos projetando, para fora do plano de ima-
do em sua correlação com a idéia de conceito, já havíamos esbarrado nência, um universal transcendente, que não é certamente o Uno de
na idéia de caos. Vimos como conceito e plano são, por assim dizer, Platão, o Deus dos cristãos, o Sujeito da reflexão ou da comunicação,
contemporâneos", já que um não pode se instaurar sem o outro. mas que se assemelha perigosamente à clássica Omnifzzdo Rea/ffaffs?
Enfim, que a definição do plano como reservatório ou continente não Mundo Real ou Natureza, que são mais velhos que o pensamento,
deve nos levar a representa-lo como "anterior" aos conceitos que o candidatos privilegiados para preencher o cargo de Transcendente por
percorrem ou como uma panela onde não se derramou ainda a sopa excelência, deixado vazio com as mortes sucessivas de Deus e da Alma
ou, ainda, como o espaço lógico do Tracfafus, que pode ser pensado lou do Sujeito)?
sem os estados de coisa que o preenchem (cf. 7'raczafus,2.013: "Cada Deixemos para mais tarde a questão e detenhamo-nosmais um
coisa está, por assim dizer, num espaço de estados de coisas possíveis. pouco na relação esquematicamente esboçada. Ao fazê-lo, talvez pos-
Posso pensar esse espaçocomo vazio, mas não posso pensar a coisa samos preparar uma resposta possível ao problema levantado. Para
sem o espaço"; é aliás aqui que se situa o ponto de oposição entre a encaminhar a questão, Deleuze recorre à distinção entre filosofia e
idéia deleuzeanade "virtual" e a idéia clássica de "possível", tão bem ciência -- dois comportamentos diferentesem relação ao caos. Se o
descrita pela metáfora bergsoniana como aquele canez/asdn riempré- plano de imanência corta o caos ou se a filosofia nele mergulha, ela o
vio sobre o qual viria a ser bordado posferlormenfe o próprio Ser). Sem faz, como sabemos, dando-lhe consistência, sem todavia "nada per-
os conceitos que nele inscrevem ossatura e coluna, ele se dissolveria der do infinito" (O q e é a /ileso/i(z?, p. 59). Proeza da filosofia que é
em puro fluxo sem consistência -- no limite se dissolveria em puro caos. ressaltada no seu contraste com a ciência ou com sua maneira peculiar
O que cabe fazer, agora, é situar a conexão entre o plano de de mergulhar (ela também o faz) no caos. Que faz a ciência? Ela "dá
imanência e o caos. Sabemos que há vários planos de imanência, que referência" ao caos, "sob a condição de renunciar aos movimentose
eles se superpõem estratigraficamente e eventualmentepodem cruzar- velocidades infinitos, e de operar, desde o início, uma limitação de
se e comunicar-se. Em todo caso, fala-se no plural -- embora Deleuze velocidade: o que é primeiro na ciência é a luz ou o horizonte relati-
fale também numa espécie de plano último, de que os demais seriam vo" (O g e é a #/oso#ai, p. 59). impossível não reconhecer aí uma
variações ou especificações e, até mesmo, de um plano de imanência reminiscência bergsoniana: se a filosofia dá consistência ao caos sem
melhor" (o mais livrede toda e qualquerremissãoà transcendência), nada perder do infinito ou "do Devir", a ciência sacrifica o Devir (ou
encarnado na história pela filosofia de Bento Espinosa, o príncipe dos a Duração) para dar lugar à referência, ou seja, à fixação de estados
filósofos. de coisa. Há reminiscência bergsoniana, mas devidamente atualizada:
De qualquer maneira, reportado ao caos, o plano de imanência no lugar da antiga oposição entre intuição e inteligência, ou entre
é sempre dito no plural. Pouco importa, por enquanto, o que enten- duração e espaço, instala-se a oposição entre uso não referencial e uso
demos por caos. Basta que retenhamos, já que todas essas metáforas referencial da linguagem, entre a autoposição do conceito e a função
são espaciais, que o plano de imanência não pode cobrir ou superpor- proposicional ligada essencialmente a seus valores de verdade; e, no
se ao caos (mesmo se se afirma que seu horizonte é infinito). Deleuze nível do objeto, a oposição entre "acontecimentos", de um lado, e fatos
diz que o plano de imanência é um "corte" no caos (como um plano ou estados de coisa, de outro. (Notemos que, aqui, éz/êneme#zf
não tra-
que corta um cone). "Cortar" só pode significar captar (definir) uma duz bem a expressão Tafsacbe; se esta é espontaneamenteligada à
fatia", por assim dizer, de um caos que permanece livre (e infinita- expressão Sacbeue ba/r e, indiretamente, a Sache, para Deleuze éz/êne-
mente livre) em todas as outras direções ou dimensões. Mas, além de menf tem pouco a ver com coisas ou estados de coisas. Talvez mais a

314 Bento Prado Jr. A idéia de "plano de imanência 315


vcr com História, pelo menos como a pensava Péguy, o autor de C/io, Não sublinho tais textos por entusiasmo por algum pafbos ro-
que também teve seu entusiasmo por Bergson.) mântico ou para-romântico. O que me interessa é saber se a idéia
E é aqui que podemos trazer à baila o anunciado contraponto wittgensteiniana de regra ou de sistema de regras pode ou não, por
com Wittgenstein. Que não é tão surpreendentecomo pode parecer alguma forma de isomorfismo, lançar luz sobre a relação que Deleu-
je como talvez parecesseao próprio Deleuze). Com efeito, já em 1969, ze estabelece entre as idéias de caos e de plano de imanência.
J. C. Pariente fazia um contraponto iluminador entre Bergson e Witt- A idéia de regra só pode ser compreendida sobre o fundo das
genstein -- insistindo, é claro, nas diferenças existentes entre as duas idéias de "jogo de linguagem" e de "forma de vida". A idéia de "jogo
concepções da linguagem e do espaço --, mas apontando para algo de linguagem" tem todas as características dos famosos "mistos em-
como um "dispositivo lógico" comum às duas filosofias, e que con- pírico-transcendentais" de l,es mofa ef /es cboses. AÍ se juntam "fatos
sistiria numa mesma "frlParlifion des é/zoncés en mo/z-sons, é/zo/zcés muito gerais da natureza" e condições lógicas ou gramaticais de sig-
sfgniÕa/zlset énoncés z/idesde sons"4. Ora, é um pouco essa aproxi- nificação ou de uso da linguagem:aí se cruzam, portanto, vida, lin-
mação que pode ser prolongada, via bergsonismo, visando agora Witt- guagem, ação ou trabalho. Junção, é preciso acrescentar, na qual a ine-
gensteine Deleuze, a propósito do "dispositivo metafísico" que, em gável "facticidade", explicitamenteafirmada, não implica forma al-
ambos, parece ligar "filosofia" e "caos" jque nos remete, desde já, ao guma de empirismo, mas algo como um "empirismo transcendental"
dispositivo histórico-metafísico Schopenhauer/Nietzsche, ao qual vol- Como bem observa Bouveresse: "[...] alguns fatos poderiam tornar
taremos mais tarde). nossos jogos de linguagem impossíveis ou sem interesse, mas nenhum
É para melhor compreender o cruzamento deleuzeano entre pla- dos fatos que podemos constatar e mencionar tornou-os necessários
no de imanência e caos que começamos por lembrar uma frase de IJ. Bouveresse,Le myfbede /'infériorifé,Minuit, p. 593). Cada um dos
Wittgenstein (datada de 1948) que podemos ler nas Vermlscble Bemer- jogos de linguagem (aqui também devemosfalar no plural, como no
Éwngen: "Através da filosofia devemos mergulhar no caos arcaico e caso dos planos de imanêncial é um conjunto (melhor seria dizer um
lá sentirmo-nos bem". A metáfora é a mesma, mas não se trata, creio ;aglomerado" ) simbólico-prático, que, na sua dimensão simbólica, se
eu, apenas de uma metáfora (ou como dizia J. C. Pariente, aproximando distribui entre proposições e pseudoproposições, entre proposições
as metáforas de Bergson e de Wittgenstein: "Responderão que se tra- bipolares e polares. Estas últimas, que não são nem verdadeiras nem
ta apenas de uma metáfora; mas então por que 'esta' metáfora?"). Que falsas, servem de base ou abrem o espaço que será povoado por tri-
pode significar a expressão caos na linguagem de Wittgenstein? Nada bos de proposições propriamente ditas e proibirão a entrada de ou-
mais do que a experiência não amparada por um sistema de regras Ino tras tantas tribos. Numa palavra, as pseudoproposições de base listo
limite, mergulhar na loucura, definida na sua oposição tanto ao erro é, aquele alicerce incapaz de verdade ou de falsidades estão para as
como à ilusão, como na "cegueira para as regras"). Aqui também proposições autênticas como cada plano de imanência está para os
cumplicidade entre pensamento e loucura? De um lado, Deleuze diz, conceitos que nele circulam. E podemos acrescentar que cada jogo de
definindo os meios do pensamento: "Uma espéciede experimentação linguagem, na medida em que cria o espaço onde as proposições po-
tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco ra- dem se tornar significativas, corta segundo seu próprio plano o caos
cionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos pa- Ineste caso, história natural ou o Sublime?, ou ambas as coisas?) e
tológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso" funciona como um crivo, transformando eventos em estadosde coi-
10 que é a P/osoÉíai', p 58). Ao que parece ecoar outra frase de Witt- sa. Mais uma vez, as pseudoproposições de base armam uma rede que,
genstein: "Assim como na vida estamos cercados de morte por todos lançada ao caos, pode dar-lhe consistência.
os lados, talvez nosso sadio entendimentoestejacercado pela loucura' Mas, para que o paralelo entre as pseudoproposições de base e
o plano de imanência possa mostrar todo seu alcance, é preciso subli-
4 Cf. J. C. Pariente, "Bergson et Wittgenstein", Wiffge sfefn ef le proa/ême nhar como Wittgenstein as articula ao "fazer" da filosofia. Porque é
d'urze pbí/osopbfe de /a scfence. CNRS, 1971 bem em relação a elas que Wittgenstein situa a filosofia -- também

316 Bento Prado Jr. A idéia de "plano de imanência 317


na tensão que a opõe tanto ao senso comum como à ciência e a arte. We/fbi/de/z e a descrição deleuzeana da instauração filosófica sobre o
Para bem compreendê-lo, é preciso distinguir entre \Ve/fbi/d e \Ve/f.zns- fundo do plano de imanência. Num caso como no outro, o que se
cba z/ng, que, longe de funcionar como sinónimos, designam instân- denuncia é algo como um pecado mortal conatural à tradição da filo-
cias completamente diferentes. sofia, e o que se aponta é uma via que permita elimina-lo. Fazendo
Que é um We/fb//d? Nós já o sabemos: ele é aquele amálgama cruzar os dois diagnósticos, e recorrendo às linguagensdiferentes dos
de pseudoproposições cristalizado na base de um jogo de linguagem dois filósofos apor detrás das mesmas metáforas, um mesmo diagnós-
que, ao mesmo tempo, precede a alternativa entre o verdadeiro e o falso tico?), podemos dizer que o pecado da filosofia (que a transforma em
e abre espaço para seu advento: numa palavra, o plano em que cir- We/lanscbaz/u/zg)é o de se compreender como Teoria ou Representa-
culam e se entrechocamos conceitos. O senso comum nele se apóia, ção e de entender o We/lbf/d, ou o plano de imanência, como um con-
ele o faz tomando-o como verdade jconfundindo We/fb//d e conheci- junto de proposições que se referem a objetos ou estados de coisa trans-
mento dado) e não está completamente enganado, já que tal i/usão é cendentes, no regime da t7bereínsffmmzzngou da .zdaeq adio, e não
necessária para o curso da vida cotidiana; a "filosofia do senso comum" como um "fazer", ou como uma prática construtiva, que introduz um
não pode contar com esse álibi e se prolonga em empresas infelizes, mínimo de consistência no caos e que exprime a forma imanente de
como a de Moore, que transforma o We/fbl/d em uma We/lanscbízuung ;uma vida". Não estou inventando nada aqui, nem produzindo um
ou que Ina linguagem de Deleuze) confunde plano de imanência e con- amálgama arbitrário. É o que se pode ver no belo parágrafo 559 de
ceito. De resto, todos os filósofos (Platão, Kant, Husserll transformam Sobre a certeza, em que Wittgenstein diz literalmente: "Você precisa
o Welfól/d jque é uma base sem fundamento, grz{/zd/óslgeGru/zd que ter em mente que o jogo de linguagemé, por assim dizer, imprevisí-
não passa de uma parada provisória e arbitrária do fluxo infinito do vel. Quero dizer: não está fundado. Não é nem razoável, nem não
caos) na mais sólida Arquê e o metamorfoseiam assim numa Wblf.zns- razoável. -- Está aí, como nossa vida". O que, lembrando alias o título,
cbauufzg,isto é, numa teoria universalistacapaz de dominar cogni- e mais que o título, do último escrito de Deleuze (l,'ímmíznence: ne
tivamente a Om?zffado Rea/iZalls.No fundo, a filosofia e o senso co- u/e... ), não é pouco dizer. Com efeito, é só no interior do jogo de lingua-
mum partilham a mesma ilusão, mas só a ilusão filosófica tem efeitos gem que os conceitos em geral e a idéia de racionalidade em particular
desastrosospara o pensamentoe, sobretudo, para a própria vida. assumem sentido. Ora, com a Grund/óslgeêell do jogo de linguagem
Um Welfbfld, repitamos, é uma rede lançada no caos, que detém dotada da mesma facticidadeque afeta nossa vida comum e anó-
seu fluxo infinito, escolhendoe fixando alguns pontos que definem um nima -- é a própria idéia de racionalidade que se encontra subordi-
plano ou ainda um esfílo de ufda. Mas há tantos We/[bi/defzquantos nada a uma espéciede "princípio de razão contingente", como já se
jogos de linguagens ou formas de vida; portanto, mil maneiras de cortar falou a propósito da filosofia de Deleuze. Mais do que isso, o jogo de
o caos ou de "desacelerar" os movimentos que o atravessam. Haverá linguagem não é apenas contingente "como uma vida", ele é a expres-
um We/fbi/d melhor do que outros?, poderíamos perguntar a Wittgen- são ou o desdobramento dessa vida ou dessa forma de vida. Podería-
stein, como Deleuze pergunta a si mesmo, a propósito dos planos de mos dizer que na sua dimensão, ao mesmo tempo simbólica e prática,
imanência. Mas sua resposta seria negativa, levando muitos de seus o jogo de linguagem é a própria vida que se dobra sobre si mesma.
comentadores a atribuir-lhe, equivocadamente, alguma forma de rela- Mas ainda resta a questão da multiplicidade dos jogos de lingua-
tivismo, isto é, levando-o na direção que Deleuze quer evitar. Inter- gem. Há em Wittgenstein, é claro, uma idéia que quase se aproxima
pretações relativistas da pluralidade dos We/fbi/den que provocaram, daquela de um solo único, subjacente aos múltiplos jogos, como o plano
como reação inversa, uma interpretação " universalista" (por parte de último de imanência que varia e se especifica em mil folhas -- no caso
autores como Apel/Habermas na Alemanha e Giannotti no Brasil), que de Wittgenstein algo como uma b manifas mf/z/ma, explorada aliás
parece também equivocada, como tentei mostrar em outro lugar. por Giannotti em seu livro Apresenfúzçãodo ma?zdo,na interface en-
Por enquanto, limitemo-nos à comparação entre a descrição witt- tre o homem e o animal (como Deleuze, Wittgenstein está pouco preo-
gensteinianada proliferação das \»'ellanscb.zuufzgen
sobre o fundo dos cupado com os predicados "puramente" antropológicos e, embora

318 Bento Prado Jr. A idéia de "plano de imanência 319


guardando o estilo transcendental que marcara o 7'racfafms, não teme gem, mergulhando no caos arcaico, para de lá trazer algumas conchas,
a pecha do "naturalismo"l. alguns sinais, na impossibilidade absoluta, isto é, lógico-gramatical,
Mas o que importa é a avaliação comparativa dos diferenteslo- de trazer "proposições". Operação que é a da filosofia, quando renun-
gos de linguagem ou formas de vida. Reiteremos a questão de Deleu- cia à condição de Teoria ou de Representaçãoe se torna visão de seu
ze: há um plano de imanência melhor? Quem é o Espinosa do filóso- próprio limite e do limite do Mundo -- a famosa t7be sicól/icbheif,
fo austríaco? Talvez Kierkegaard... que também está presenteno ál- ao mesmo tempo visão muda, perspícua e sinóptica -- ou quando ela
bum de família de Deleuze? Mas essa pequena provocação não nos se aproxima, por assim dizer, da Música ou da Poesia. Schopenhauer?
conduz na boa direção. O que importa é fixar alguns pontos: o cons- Ninguém ignora o lugar e a importância da obra do primeiro mestre
trutivismo da concepção wittgensteinianada linguageme do conhe- de Nietzsche na gênese do pensamento de Wittgenstein, dos primei-
cimento, a idéia do caos lou de um mundo sem regras que vem ocupar ros aos últimos escritos. O dispositivo Schopenhauer/Nietzsche talvez
o lugar antes reservado à esfera do "Místico") e o "perspectivismo' sirva de amparo para as aproximações pouco habituais que tentamos
filosófico que se esboça no entrecruzamento dessas duas idéias. Diga- fazer entre as obras de Deleuze e Wittgenstein.
mos: "perspectivismo sem relativismo", na fórmula lapidar de Luiz
Henrique Lopes dos Santos, que não canso de repetir. Que pode ser 111

um perspectivismo sem relativismo? Ele não nos remete imediatamente Para encerrar, apenas algumas observações complementares a
a Nietzsche? Em todo caso, tal idéia parece transparecer na definição respeito da relação entre filosofia e vida. Talvez os cruzamentos aci-
deleuzeanado plano de imanência como um horizonte muito peculiar, ma sugeridos recebam maior verossimilhança se pensarmos nos efei-
isto é, "[...] não [como] o horizonte relativo que funciona como um tos "práticos" de idéias como as de plano de imanência e de jogo de
limite, muda com o observador e engloba estados de coisas observáveis, linguagem. Pois, como para Kant, não parece discutível que a ativi-
mas [como] o horizonte absoluto, independente de todo observador' dade filosófica tenha, tanto para Deleuze como para Wittgenstein, sua
10 que é a fitosofiae, p. S2). justificação plena apenas nos seus efeitos ético-políticos. Mais ainda,
No caso de Wittgenstein, o caráter não relativista de seu pers- pareceque a "ilusão filosófica" só merececrítica, para um como para
pectivismo jao lado do reconhecimento da multiplicidade das formas outro, por causa dos seus efeitos, considerados devastadores, na vida
de vidas é motivado, entre outras coisas, pela proibição de qualquer imediata, individual ou coletiva. No que concerne às relações entre
forma de juízo de valor -- o que não deixa de ser um paradoxo: como filosofia e vida em Wittgenstein, convém registrar as seguintes obser-
descrever a forma de vida contemporânea ou a civilização tecno-cien- vações de Von Wright: "Em razão do entrelaçamento entre a língua
tífico-industrial como "decadente", já que impregnada por essa "la- gem e as maneiras de viver, uma desordem na primeira reflete uma
vagem imunda" que é a ciência, como ele faz, e dizer que não está fa- desordem nas últimas. Se os problemas filosóficos são o sintoma do
zendo nenhum juízo de valor? Talvez não fosse insensato resolvera fato de que a linguagem produz excrescências malignas que obscure-
questão, recorrendo ao que diz Wittgenstein da relação entre o "gê- cem nosso pensamento, então deve haver um câncer no Lebensmefse,
nio" e o simples "homem honesto" (antecipando a comparação entre no próprio modo de vida." (G. H. von Wright, Wlffgenszei/z,T.E.R.,
formas de vida de igual valor), nas Vermlscb e Bemerkungen.Lá po- PP. 22a-91. Diagnóstico catastrofista do presentee concepção "sin-
demos ler: "0 gênio se distingue do homem reco não porque tem mais tomal" da filosofia, que se exprime igualmente nos escritos de Deleu-
pensamento, mas porque dirige todo o pensamentopara uma único ze a partir do Ánfí-Edfpo: lá também não se entrelaçavam a crítica do
ponto, que faz brilhar" l Vermiscbfe Bemer&unge/z, T.E.R., p. 95). E modo de vida instaurado pelo capital e a das "teorias", como a psica-
o que vale para os indivíduos vale para as formas de vida: sem hierar- nálise jnuma crítica diferente daquela que Wittgenstein endereçará,
quizar explicitamenteas formas de vida, Wittgenstein as compara e também com respeito, a Freud), que o exprimem? Na verdade, temos
diferencia, apontando para a que Ihe é mais congenial, aquela que não diante de nós duas filosofias de inspiração essencialmente "anarcân-
proíbe que nos lancemos insensatamente contra os limites da lingua- tica". Em primeiro lugar porque combatem todas as formas de fun-

320 Bento Prado Jr. A idéia de "plano de imanência 321


nacionalismo na filosofia, toda tentativa de encontrar uma Árqué trans- ENTRE DELEUZE E WHITEHEAD
cendente, para além da imanência da vida: -- não transcendamos o lsabelleStengers
plano de imanência!, não esqueçamos os limites de nosso jogo, de nossa
vida! Em segundo lugar, porque esse combate é também um combate
contra as formas de sociabilidade que estão na base desses funda-
cionalismos, ou que estesexprimem de maneira sublimeou sublimada.
Mas é claro, também, que essa similitude de estilo vai apenas até
certo ponto, para logo dar lugar a uma dramática bifurcação, que leva 'Nenhuma regra e, sobretudo, nenhuma discussão di-
um para uma ética individualista, impregnada pelo espírito da fé, e, rão de antemão se este é o bom plano, aquele o bom perso-
outro, para uma ética que vê na política a possibilidade de transfor- nagem, ou aquele o bom conceito, pois é cada um deles que
mar a própria natureza do indivíduo. De um lado um narodfzik soli- decide se os dois outros são bem-sucedidos ou não; no en-
tário, impregnado pela leitura de Tolstói, olhando para o passado apara tanto, cada um deve ser construído por sua própria conta,
a cultura que desapareceu), preocupado com sua salvação no instan- um criado, o outro inventado, o outro traçado. Constroem-
te presente graças ao milagre da fé (a "imantação pelo alto" de que se problemas e soluções sobre os quais se pode dizer 'Mal-
fala Wittgenstein, mesmo se não crê em Deus algum), completamente sucedido. . . Bem-sucedido.. .', mas apenas conforme e à me-
separado de toda preocupação com o futuro. De outro, um narodn/h dida de suas coadaptações. O construtivismo desqualifica
solidário (sempre, em todo caso, como Sartre, um traidor da burgue- toda solução que retarde as construções necessárias, assim
sia), que sevolta contra a barbárie do presentecom seusolhos volta- como denuncia todos os universais, a contemplação, a re-
dos para o futuro: aquele mesmo que, depois de fazer o diagnóstico flexão, a comunicação, como fontes do que se chama de
da "sociedade de controle", se entendi bem, aposta ainda na emergência 'falsos problemas' que emanam das ilusões que cercam o
de "forças futuras", nova forma de sociabilidade,retorno de uma plano. É tudo o que de antemão se pode dizer."t
cultura viva: tudo se passa como se Deleuze, depois do sinistro diag-
nóstico, se reportasse,com algum otimismo, às "novas forças que se E o que se pode dizer depois? Quando a criação do filósofo é
anunciam" -- um novo avatar dos filosófos do futuro a que se refe- entregue ao trabalho dos comentadores, quando todos se podem en-
riam Nietzschee, com outro espírito, o próprio Marx (aquele mesmo tregar às delícias acadêmicas do estabelecimento de comparações?
que prognosticavao fim da "/:losoPa separada" ou aspirava à reab- Determinar "o mesmo", os pontos de acordo, avaliar as diferenças,
sorção da especulação pura pela vida social dos homens)? servir-se de um para situar os limites do outro, sente-sebem que há aí
Ao contrário de Wittgenstein, que, separado do passado, não uma falta de gosto, uma espécie de baixeza. Pois a comparação, cer-
hesitava em matar, na raiz, qualquer espírito utópico, dizendo, nas tamente, requer a imobilidade, a imobilização num estado-de-pensa-
Vermlscbíe Bemer&z4zzgen: "Quando pensamos no futuro do mundo, mento que efetua, e que faz surgir, inevitavelmente, uma terceira po-
visamos sempre o ponto onde ele estará, se continuar a seguir o curso sição, transcendente. Pobre transcendenciazinhaprevisível: pão co-
que vemos seguir hoje: não prestamos atenção ao fato de que ele não tidiano do exercício universitário.
segue em linha reta, mas segueuma curva, e que sua direção muda Todavia, há realmente algo a fazer "entre" dois filósofos, desde
constantemente" ( Vermfscbfe Bemer& ngen, T.E.R., p. 12). o momento cm que vibra um contraste, uma questão cujo interesse é
Desencantamento e esperança combinam-se de modos diferen-
tes em um e outro autor, mas ambos são pouco conformistas e usam
a filosofia (ou instrumentos como as idéias de plano de imanência, jogos
de linguagem etc.) para criticar o mundo em que vivemos.
l G. Deleuze e F. Guattari, Qzf'esf-ce qne /a pbl/osopbie?, Paras,Minuit, 1991
P. 79

322 Bento Prado Jr. Entre Deleuze e Whitehead 323


precisamente o de se contrapor à tentação da comparação. Pois existe seja melhor partir de uma diferença, de uma diferençazinha insignifi-
a possibilidade de põr em crise o que se oferecia enquanto semelhança, cante, grão de areia que trava as engrenagens da comparação. Que faça
de fazer divergirem os paralelos, de fazer existir, mal ou bem-sucedido, divergir desde o início, para evitar -- para criar a possibilidade de evitar
algo de Interessante, de Notável, de Importantes (o que não é Jamais -- o juízo que transforma os riscos em esperados. Essa diferença está
uma semelhançaou um paralelos. Empreender o movimento de apren- ligada às maneiras respectivas como, para encurtar, Deleuze e White-
der, precisamente onde pode surgir, qualquer que seja o terreno, uma head definem a filosofia. Deleuze refere-seà criação, Whitehead, por
nova geração de boas vontades aderindo aos resultados. Experimen- sua vez, às ciências experimentais: "Toda ciência deve forjar seus pró-
tar um filósofo como Fora, em função do qual encontrar o outro. prios instrumentos. A ferramenta requerida pela filosofia é a lingua-
Deleuze e Whitehead? As boas vontades, aqui, estão como gos gem. Assim, a filosofia transforma a linguagemda mesma maneira que
tam. Propaganda e garantia: a fulgurante apresentaçãode Process czfzd uma ciência física transforma os aparelhos preexistentes".+ Contras-
rea/if)i em Difere/zça e repeffção, o capítulo consagrado a Whitehead te, portanto, entre criação de conceitos e experimentação com a lin-
em A dobra. Convergências evidentes: a especulação como construti- guagem. Dois estilos distintos, duas maneiras de traçar o plano, de
vista, deliberadamente acopernicana, a oposição igualmente deliberada selecionaro que cabe ao pensamento. E duas maneiras de fazer seu
às determinações lógicas ou a toda nostalgia quanto ao ideal de "sa- plano redistribuindo aqueles que fazem coexistir a história e a filosofia.
ber o que se diz", o espaço produzido por ligações, o questionamento Talvez se pudesse dizer que a criação é perigosa, perigosa para o
de toda continuidade, de todo direito a se prolongar, mesmo que pouco pensador, perigosa também, eventualmente, para outros, não antes de
a pouco. Passemos adiante, a lista é longa demais. Mas igualmente tudo para aqueles que o odeiam ou que o temem, mas sobretudo para
previsível é, com base em acordos, a avaliação dos desacordos. Evi- aquelesque dele se valem. A experimentação, por sua vez, é arriscada,
dentes até não poderem mais. Que deleuzeano leria sem estremecer: mas o "sábio louco", o teórico ou o experimentadorque cai naquilo
A natureza conseqilente de Deus é seu Juízo sobre o mundo. Ele sal- que, para qualquer outro, não é mais que delírio, faz parte do mau
va o mundo à medida que este passa para a imediatez de sua própria folcloredas ciências.Por certo, há Cantor: felizmentepara todos os
vida. É o juízo de uma ternura que nada perde do que pode ser salvo. que aderem, por procuração, a uma imagem do pensamento que, se é
É também o juízo de uma sabedoria que utiliza o que, no mundo tem digna desse nome, deve poder avizinhar-se da loucura. Mas é antes o
poral, não é mais do que restos e destroços"3. Whitehead ensaia uma cansaço que a loucura que ameaça o experimentador, pois a Idéia, que
cosmologia cujos valores ostentados são a coerência e a adequação. 'faz de nós larvas que puseram abaixo a identidade do Eu Ue], assim
Nenhuma linha de fuga, então, que escapeà sabedoria terna de seu como a semelhança do eu [moil", está aqui sempre enganadanum
Deus que julga, salva, utiliza e pode ser alvo da suspeita de beneficiar, problema referenciado. Nem Eu no posto de comando, é certo, nem
de homogeneizar em seu proveito, de "sobrecodificar". Com tudo o eu igualando-se a suas propriedades, mas tampouco um "se" [om] ]e-
que se segue, pouco a pouco e muito naturalmente: sistema de White- vando à potência do drama a destituição do Eu e a fissura do eu. Uma
head contra intempestivo deleuzeano. O comentador, em nome das espéciede "nós" móbil, reproduzindo-seem toda parte a que o pro-
linhas de fuga e do intempestivo, estatuiu e julgou. Ele quase chegaria blema leva o pensador, sendo este a um só tempo o herdeiro e a cabe-
a se perguntar por que Deleuze não fez o mesmo: por que, então, "caiu ça investigadora. A experimentação arrisca-se diante desse "nós", as
de amores" por Whitehead? desterritorializações que ela opera são relativas a esse risco, às exigên-
Para fazer existir o contrasteentre Deleuzee Whitehead, talvez cias relativas à recriação de um novo "nós" num novo habitat, com
novos hábitos.
A filosofia, no sentido de Whitehead, certamente opera por cer-
2 idem, p. 80. to uma passagem no limite da experimentação. O "nós" é fabricado
3 A. N. Whitehead, Pragas ef récz/ffé.assai de cosmo/oglelPRI, Paras, Galli
mard, 1995, p. 532. 4 PR, p. 57

324 lsabelle Stengers Entre Deleuze e Whitehead 325


no mesmo tempo em que o problema que põe o pensador em risco. sabe. A exigência de convergência não se impõe aos seres, é o próprio
Mas o "nós" fabrica também o pensador, ao mesmo tempo em que matemáticoque ela põe em risco. E quando Deleuze afirma a diver-
este o fabrica: ainda que Whitehead não se dirija a nenhumcoletivo gência das séries, ele não vai "mais longe" do que o matemático, ele
de experimentadores, ele não "mergulha no caos" a não ser sob o modo parte para outro lugar.
de novos hábitos a adorar. Por mais radical que seja a experiência, ela Ca/ca/ecus. Por mais vertiginosas que sejam as transformações
é habitável, "nós" podemos habita-la. impostas à formulação das evidências de senso comum pela criação
O "nós" que Whitehead fabrica para si é moderno, no sentido desse "nós racional", a imposição aceita por Leibniz e Whitehead
de que ele põe o problema daquilo que a modernidade celebrou como implica que jamais se tratará de fazer calar, tampouco de se conside-
progresso: nós fizemos bifurcar a natureza (Co/zcePf o/' n zf I'e). Ele rar desobrigado. Não se deixar tentar pela possibilidade que sempre
reivindica o senso comum: mesmo quando nossas bifurcações o ne- se oferece de desqualificar o que se formula em nome desse "senso
gam, nós temos a convicção, a fé instintiva, de que existe uma ordem comum", mas fazer existir toda a distância possível entre essas formu-
da natureza (Science and lbe modem mor/dl. E está enganadona aven lações e aquilo que persiste surdamente através delas, aquilo que é
tura do racionalismo: esperamos construir uma linguagem que exiba calado, mutilado ou, ao contrário, transformado em princípio polê-
essa ordem de maneira adequada, que se recuse, então, a fazer de mico quando uma formulação particular, qualquer que ela seja, pode
qualquer incoerência uma virtude (Process a/zd realffy). E esse "nós", pretendero poder de julgar. E portanto acolher, mas acrescentando
enfim, não se opõe a ninguém, não corresponde a nenhum "eles", não dimensões suficientes para que as formulações opostas, ao perderem
entra em luta com nenhuma opinião. E, mais precisamente, atribui- qualquer semelhançacom os juízos, exibam a possibilidade de ser afir-
secomo tarefa transformar o enunciado de toda opinião, de tal modo madas ao mesmo tempo. O que, em relação às linhas de fuga, aos
que esse enunciado venha a exibir a maneira como ela pode ser "sal- incompossíveis, à afirmação da diferença pura, pode parecer um ver-
va". Não exP/ain amai: resistir deliberadamente, pela fabricação de dadeiro aprisionamento. Nenhuma brecha que não seja integrada,
uma linguagem tão artificial quanto possível, à oferta de qualquer lin- ratificada, celebrada. E retraduzida de tal maneira que, muito curio-
guagem particular que seleciona e elimina; afirmar ao mesmo tempo samente,o que se apresentava como uma contestaçãoradical -- na-
o que nossas linguagens opõem. Não conheço adeus tão determina- da a ver, nada em comum -- se torne contraste interessante, notável,
do à nostalgia de uma verdade-raiz, aquém da tela de nossas inter- importante.
pretações: "Se desejamos obter o registro de uma experiência não in- Eis algo que certamante pode inspirar as maiores suspeitas. A
terpretada, é melhor pedir a uma pedra para registrar sua própria menos que, desde o momento em que são enunciadas, essas suspeitas
autobiogra fia "Õ . traduzam a lealdade de uma adesão. Linhas de fuga, incompossíveis,
O estilo filosófico de Whitehead, como o de Leibniz, é o de um diferença ou contestação foram novamente transformados em armas
matemático. Irenismo. Fazer convergir. O estabelecimentode conver- de juízo que permitem a quem quer que seja estatuir méritos compa'
gência, para um matemático, não tem estritamente nada a ver com uma rativos de proposições que Ihe sejam oferecidas. Transformação ins-
recusa das divergências. E sobretudo com qualquer opinião que "faça tantânea de um pensamento em palavra de ordem. Quando Whitehead
calar" as divergências para ater-se ao acordo. E um trabalho de inven- inscreve a filosofia na aventura do racionalismo, ele certamente pare-
ção que exige, se for o caso, todas as audácias. Ê o construtivismo ce pedir ao filósofo que renuncie a escrever "para" os analfabetos e
próprio às matemáticas que obriga o matemático a criar seus próprios joões-ninguém. Mas talvez exija igualmente do filósofo que não se
seres, a transgredir as regras do bom senso, como também as formu- "aproveite" nem do analfabeto nem do joão-ninguém.
lações que dão ao senso comum a sensação de que ele sabe aquilo que A mesma hesitação intervém a propósito do uso whiteheadiano
do termo "salvar". Salvar ao mesmo tempo todas as experiências é o
traço comum entre o desafio a que se submete o esquema categórico,
5 PR, p. 63. sistemasde "idéias gerais" a partir das quais toda experiência, a do

326 Entre Deleuze e Whitehead 327


lsabelle Stengers
ulétronou a do pensador, deveria vir a exibir a mesma "textura", e a Entre Deleuze e Whitehead, o que vibra, o que hesita, o que obriga
maneira como Whitehead descreve a atividade divina. Suspeita ime- a pensar não diz respeito, ou só muito indiretamente, ao analfabeto
diata: Deus, que salva tudo o que é realizado, acabado no duplo sen- ou ao joão-ninguém: o filósofo que, segundo Deleuze, pensa ou escreve
tido de plenamenteatualizado e terminado, é salvador do mundo? O "para" eles evidentementenão espera deles que se constituam em me-
filósofo se arroga o papel de salvador? Ou será que é preciso tomar dida, que tenham o poder de fazer a diferença entre estilos filosóficos,
salvar" no sentido de uma outra tradição, a dos astrónomos pré- de designar seu "justiceiro" . Em compensação, a diferença entre o risco
copernicanos que a si atribuíam o objetivo de "salvar" os fenómenos? da experimentação whiteheadiana e o perigo da criação deleuzeana tem
Nesse caso, de novo, a situação se inverte. A exigência dirige-se ao efeitos sobre o filósofo. A criação de conceitos, sempre a serem refeitos
filósofo, ela o impede de esquecer o problema em nome da beleza -- mal ou bem-sucedidos--, obriga o pensador deleuzeano, mas o
persuasiva da solução. E o que ressurge então é a acusação de covar- expõe. E o expõe antes de tudo ao risco de trair, de comentar, de ex-
dia de que foram vítimas, na época de Copérnico, os astrónomos "ra- plicar o que Deleuze "pensava". E o expõe também à tentação de vi-
cionalistas", aqueles que não aderem à nova pretensãoassociada ao ver o perigo por procuração ou ainda na culpabilidade hipocondría-
heliocentrismo: poder afirmar que o sol está uerdadelramenfe no cen- ca de ainda não ter chegadolá, de não ser digno. Não há nada do
tro, isto é, exigir que a essa verdade seja reconhecido o poder de se gênero em Whitehead, para quem, convenientemente descrito, tudo é
impor a quem quer que seja. criação lpzofbifzg
is b f anyfbi#zg);para quem a criatividade é o plano
Salvar os fenómenos, traduzi-los numa linguagem que lhes per- que o filósofo habita e afirma, quer sua criação o obrigue, quer ele a
mita exibir uma razão comum sem por isso pretenderque essa razão traia. Mas não se trata de quietismo, pois o pensador whiteheadiano
é a sua. Fazer com que se separem ativamente razão e poder, verdade está exposto a um outro problema. Os conceitos whiteheadianos, ob-
e capacidade polêmica de denunciar a ilusão: covardia de diplomata jeto eterno, proposição, meta subjetiva, entidade atual, contrastes etc.,
diante do conflito ou saber de matemático quanto ao caráter insignifi- assim como seus "princípios", e antes de tudo o princípio ontológico
cante das justificações que intervêm nos conflitos entre poderes rivais? -- sem entidade anualnão há razão -- formam efetivamente um siste-
Quanto à atividade divina salvadora, elase separa de toda proble- ma. Nenhum pode ser objeto de comentário sem que os outros povoem
mática de salvação, no sentido de que estaimplicaria uma forma de juízo. a cena. Nenhum pode ser objeto de uma adesão identificatória. Eles
O Deus que "salva" está, ele mesmo, situado, ativamente separado do constituem juntos uma máquina abstrata que não pode ser descrita en-
poder de julgar. Pois ele vem "depois", como o astrónomo vem depois quanto tal, apenas posta em funcionamento. Que esse pâr em funcio-
do Céu e da Terra. E ele depende daquilo que foi realizado, assim como namento -- o que Whitehead chamava de "aplicações" -- crie efeti-
o astrónomo depende daquilo que observa. Se dele se pode dizer que vamentepara aquele que a ele se arrisca uma metamorfosedo dado,
salva", é porque ele repete de outro modo, como o astrónomo, mas dê a toda descrição a violência de um encontro, obrigue o pensamen-
também porque sua repetição afirma a um só e ao mesmo tempo o que to ao movimento de aprender, é a única chance do sistema, sem o que
foi realizado e o preço da realização, o que não foi levado em conta: o elenão pode suscitar da parte do filósofo senão incredulidade perple-
campo e o extra-campo- Ele "compreende", por certo, mas não no sen- xa ou, pior, comentário erudito. Os conceitos whiteheadianos,como
tido de que Ele poderia julgar razões. As razões que ela para si apresentou mostra a desenvolturacom que o próprio Whitehead os fez, desfeze
dizem respeito à entidade que se atualizou. Ele compreende no sentido modificou, ao longo das páginas de Process and rea/IO, exigem o "salto
de que essas razões Lhe aparecem em sua novidade seletiva e afirmati- imaginativo" sem o qual eles não passam de "ossadas ressecadas"6
va. Incomparáveis, já que nenhum saber divino, e mesmo nenhuma Ostentando seu caráter fabricado, eles são perfeitamente incapazes de
estimativa, preexistia quanto àquilo que elas poderiam ser. O Deus de inspirar a "sensação imediata" de sua verdade, a adesão que transforma
Whitehead é uma criatura, e Ele afirma com todas as criaturas o caráter a linha de fuga em palavra de ordem.
último de uma categoria à qual todas são, na cosmologia whiteheadiana,
relativas, e que não é, ela mesma, relativa a nada: a criatividade. 6 PR, p. 163

328 lsabelle Stengers Entre Deleuze e Whitehead 329


Sempre há uma maneira pela qual a desterritorialização abso-
luta no plano de imanência substitui uma desterritorialização relativa
num campo dado."7 Falando de pensador "deleuzeano" ou "white-
headiano", deliberadamentedesignei, "entre Deleuze e Whitehead",
a questão da desterritorialização relativa que eles suscitam. Não se trata
de desterritorialização absoluta, evidentemente,já que minha questão
está situada no campo dado dos textos que eles nos deixam e dos con-
ceitos por eles criados. Que os conceitos whiteheadianos não permi- Terceira Parte
tam ao filósofo por eles vetorizado confundir o ziguezague de sua
"vassoura de feiticeira" com uma desterritorializaçãoabsoluta, eis POLÍTICA E CLÍNICA
talvez a razão pela qual Whitehead permaneceu um "Fora" para a
filosofia universitária. Terão os conceitos deleuzeanos essa resistência?
Quando um certo pudor ou um certo terror não mais os defenderem,
poderão elesevitar funcionar como palavras mágicas que efetuam, sob
o regime do mais pobre dos universais, o universal acadêmico, a re-
territorialização sem problema de toda criação? E a questão que nos
deixou Deleuze, a de nossa capacidade de dele não nos servirmos para
nos beneficiarmos de desterritorializações absolutas por procuração.
Entre Deleuze e Whitehead, a questão não é, não pode ser, a dc
escolher, como que entre duas ofertas expostas na vitrine do campo,
dado, da filosofia. Mas talvez ela nos force a encontrar o problema
daquilo que vem "depois" de um filósofo, das condições de uma subs-
tituição: a questão de uma pedagogia do conceito.

Tradução de Heloisa B. S. Rocha

7 G. Deleuze e F. Guattari, Qzí'esr-ce q e /a pbi/osopble?, p. 85

330 lsabelle Stengers


DELEUZE E O POSSÍVEL
(SOBREO INVOLUNTARISMO NA POLÍTICA)
François Zourabichvili

Gostaríamos de abordar, aqui, os aspectos políticos do pensa-


mento de Deleuze, de maneira a um tempo provisória e restrita. Nem
sempre se percebe com clareza que esquerdismo era aquele de Deleuze.
A esquerda, não importa de que natureza seja, define-segeralmente
pelo seu voluntarismo. Ora, Deleuze desenvolveua filosofia menos
voluntarista possível: ele reivindicava a "má vontade" do idiota à
moda russa, o "nada de vontade" do original à americanas. Ele in-
sistia sempre no caráter profundamente involuntário de todo verda-
deiro pensamento,de todo devir. Nada Ihe era, portanto, mais estra-
nho do que o prometode transformar o mundo segundo um plano ou
em função de uma meta. Ele não cessava, porém, de celebrar, de es-
preitar, ou, na ocasião oportuna, de acompanhar o que chamava de
deveres-revolucionários
O dualismo conservar/transformar ocupa todo o espaço da per-
cepção política comum; dificilmente se concebe uma atitude política
que não vise nem a conservar nem a transformar, tampouco -- como
no caso do reformismo -- a transformar o que se conserva ou a con-
servar o que se transforma, quer dizer, a adaptar. Não se pode alimentar
dzíuidas a propósito das organizações políticas e de suas intenções, sem
que se pergunte o que "se propõe". Deleuze sempre evitou propor o
quer que fosse, embora essa abstenção tranqiiila não exprimisse, a seus
olhos, nenhum vazio, nenhuma carência. Em política, como em arte
ou em filosofia, ele via em uma certa "decepção" a condição subjeti-
va propícia para algo de efetivo jum "devir", um "processo"j2.
Ê claro que a esquerda não acredita mais em projetos. Tendo, no
entanto, se identificadocom a realização de projetos, ela não tem, ao

l Cf., respectivamente, DÍ/7êrence ef répéfif/on, Paria, PUF, 1968, p. 171, e


Crifiq e ef c/í?ligue, Paras, Minuit, 1993, p. 92.

2 Proas el /es slgnes, Paris, PUF, 1964, p. 45; Di/7érepzceef répétiffon, p.


258

Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política) 333


tluc parece, outra escolha senão renunciar a si mesma ou tentar ainda do, mas, em seguida, é o enunciado "esgotar o possível" que se divide,
acreditar naquilo em que não mais acredita: renegarou negar. De forma entendendo-seo possívelou como uma alternativa ou como uma poten-
que o voluntarismo não concernemais, aqui, à ação, e sim à crença cialidade. Multiplicar os duplos: talvez o perverso seja isso, levando-
na ação. E sente-seum vago ressentimentoem relação aos filósofos se em conta os efeitos humorísticos que disso resultam (surpresa ou
de esquerda por eles não produzirem nenhum ideal em que se possa decepção). A esquerda só pode recusar o enunciado; mas a direita, por
de novo acreditar, como se eles não sondassem suficientemente o pos- sua vez, só pode retoma-lo sob a condição de não compreendê-lo (ou
sível, por fraqueza ou sofisticação. de compreendê-lo à sua maneira: o possível, de qualquer modo, nun-
O último grande texto de Deleuze, publicado em 1992, intitula- ca existiu). Deleuze suscita geralmente irritação nas pessoas de esquer-
se l,'épz/lsé [0 esgotados. Não se trata de um ensaio po]ítico, pois é da, pois critica o possível,a discussão livre, os direitos do homem...
dedicado a Beckett. Mas é publicado menos de três anos após a que- Mas ele alimenta, nas pessoas de direita, uma suspeita de perversida-
da do muro de Berlim, quando proliferam os discursos satisfeitos so- de: pelo menos esses últimos percebem algo, mesmo que negativamente.
bre a morte das utopias, sobre a ilusão de qualquer alternativa para a Dois discursos aparentementeopostos coexistem em Deleuze:
economia de mercado, e seu tema é o esgotamento do possível. esgotar o possível/criar o possível. Por demais aparentes para serem
"Não há mais possível: um espinosismo obstinado."3 Há pouca reais, as contradições dos grandes filósofos são geralmente muito in-
chance de que, em Deleuze, a invocação de Espinosa seja um sinal de teressantes: elas indicam um momento de tensão extrema no pensa-
aflição; ela não exclui, no entanto, o sarcasmo. Começamos, então, a mento, mais uma afirmação difícil do que uma dificuldade de afirmar.
nos tranqijilizar dizendo que isso não tem qualquer relação com a
política. No entanto, Deleuze atribui ao personagem de l,'éPulsé a 1. CRIAÇÃO DO POSSÍVELE POSSIBILIDADEDE VIDA
famosa fórmula de Bartleby, de Herman Melville, ao qual tinha dedi- Deleuze inverte a relação habitual entre o possível e o aconteci-
cado, pouco antes, um texto de conteúdo manifestamente políticos. E mento. O possível é o que pode acontecer, efetiva ou logicamente.
mais: não nos regozijamos com a extinção do possível sem um pouco Solicita-sea não-resignação porque a situação é cheia de possibilida-
de perversidade. des e porque ainda não se tentou tudo: aposta-se,então, em uma al-
Procuremos escutar os acordes políticos de L'épzí&é, embora o ternativa atual. Na esteira de Bergson, Deleuze diz o contrário: quan-
tcxto tenha,abrangência bem diferente. À esquerda, que perde a espe- to ao possível, você não o tem previamente, você não o tem antes de
rança do possível, Deleuze parece dizer: muito bem que haja o esgota- tê-lo criado6. O que é possível é criar o possível. Passa-se, aqui, a um
mento do possível; e principalmentenão creiam que o esgotamento outro regime de possibilidade,que nada mais tem a ver com a dispo-
esteja apenas cansado, e que o possível persista, sob a impotência pre- nibilidade atual de um prometopor realizar, ou com a acepção vulgar
sente em realiza-lo. "0 esgotado é muito mais do que o cansado."5 da palavra "utopia" (a imagem de uma nova situação pela qual se pre-
Mas, para a direita, de que parece estar então excessivamente próximo. tende, brutalmente, substituir a atual, esperando alcançar o real a partir
Já que, por natureza, ela se regozija com a ausência de possível, ele do imaginário: operação, sobre o real, e não do próprio real). O pos-
precisa: ter esgotado o possível não é de forma alguma o que vocês sível chega pelo acontecimento, e não o inverso; o acontecimento po-
pensam. O texto se abre com o desdobramento do esgotado e do cansa- lítico por excelência -- a revolução -- não é a realização de um pos-
sível, mas uma ater ra do posshe/:

3 l,'#palsé, que se segue a Qual ef cafres pfêces tour /a fé/éufsíolz, de Samuel "Em fenómeno histórico, como a Revolução de 1789,
Beckett;Paras,Minuit, 1992,p. 57.
a Comuna, a Revolução de 1917, há sempre uma parte de
4 Idem, p. 60: "1 woK/d prever nof fo, segundo a fórmula beckettiana de
Bartleby
5 idem, primeira frase. 6 Bergson, La pensée et /e moaz/ant, Paris, PUF, pp. 14 e 113

334 François Zourabichvili 335


Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política)
aconfecimenfo, irredutível aos determinismos sociais, às força a reescrever a história rente ao real, e produz esse mo-
séries causais. Os historiadores não gostam desse aspecto: mento estranhamente polívoco em que tudo é possível..."9
eles restauram causalidades a posleríorf. Mas o próprio a-
contecimento está separado ou em ruptura com as causali- O que é um "novo campo de possíveis"? O horizonte de tudo o
dades: é uma bifurcação, um desvio em relação às leis, um que pode ser imaginado, concebido, proJetado, esperado em uma dada
estadoinstável que abre um novo campo de possíveis."7 época? Segundo esse ponto de vista,.uma revolução já tem o caráter
de subjetiva, e torna, por ela mesma, caducos os projetos que a sus-
Uma revolução, naquilo que ela tem de efetivo, não é nem a tentavam, já que eles ainda pertenciam ao antigo campo de possíveis.
conseqüência causal ou mecânica de uma situação dada, nem a reali- Ou será que se trata de uma redistribuição de papéis e funções, de uma
zação de um prometoou de um plano (mesmo se a referência a um pla- subversão do conjunto das posições sociais possíveis? Tratar-se-ia de
no é um dado da ação). Por abertura de um novo campo de possíveis uma mutação de uma outra ordem, afetando o próprio capitalismo.
deve-seentender que aquilo que não era realizável se torna realizá- Deleuze descreve, por exemplo, a passagem de uma "sociedade disci-
vel? Que tudo se revela possível ou realizávelem um clima insur- plinar" para uma "sociedade de controle": assistimosà instalação dc
recional? E que os limites usuais do possível derivam, no final das um novo regime de dominação, não à abertura de um novo campo de
contas, de uma inibição, de uma submissão, e não de pressõesreais? possíveis. Tal subversão afeta, antes, as condições históricas em fun-
A idéia voluntarista segundo a qual o segredo do poder está no que- ção das quais um acontecimentopolítico pode ocorrer.
rer não pode ser atribuída a Deleuze, mesmo se duas passagensden- Por "novo campo de possíveis" é necessário entender então uma
sas do Anff-Édlpo, que serão a seguir esclarecidas, pareçam, de iní- outra coisa: a palavra possível deixou de designar a série de alternati-
cio, ir nesse sentido, afastando-se nitidamente do possível como ins- vas reais e imaginárias (ou... ou...l, o conjunto das disfunções exclusi-
tância de realização: vas características de uma época e de uma sociedade dadas. Ela con-
cerne, agora, à emergência dinâmica de /zoz/o.Eis a inspiração berg-
"0 real não é impossível;no real, ao contrário, tudo soniana do pensamento político de Deleuze. Realizar um prometonão
é possível, tudo se torna possível. Não é o desejo que ex- produz nada de novo no mundo, uma vez que não há diferençacon-
prime uma falta molar no sujeito; é a organização molar que ceitual entre o possível como prometoe sua realização: apenas o salto
destitui o desejo de seu ser objetivo. Os revolucionários, os para a existência. E aqueles que pretendem transformar o real à ima-
artistas e os visionários se contentam em ser objetivos: eles gem do que antes conceberam não levam em conta a própria trans-
sabem que o desejo enlaça a vida com uma potência pro- formação. Há uma diferença de estatuto entre o possível que se reali-
dutora, e a reproduz de modo tanto mais intendo quanto za e o possível que se cria. O acontecimento não abre um novo cam-
mais ele necessitará. po do realizável, e o "campo dos possíveis" não se confunde com a
A atualização de uma potencialidade revolucionária se delimitação do realizável em uma dada sociedade jmesmo se ele indi-
explica menos pelo estado de causalidade pré-consciente no ca ou incita seu redimensionamento).
qual é no entanto compreendida, do que pela efetividade de A abertura de possível é então uma meta, sendo o problema me-
um corte libidinal em um momento preciso, fenda cuja única nos construir o futuro do que alimentar perspectivas em relação a ele?
causa é o desejo, quer dizer, a ruptura de causalidade que Somos convidados a viver de esperança? "0 possível, senão sufoco!",
resume Deleuze à propósito de maio de 68, retomando o grito de de-
sesperadode Kierkegaard. A esperança pertenceainda a uma lógica
7 "Mai 68 n'a pas eu lieu", escrito com Félix Guattari; l,es Noaz/e//es, 3-9
de maio de 1984.

8 l,'anui-(Ed/pe, Paria, Minuit, 1973, p. 35. 9 L'anff-(Edípe, pp. 453-4

336 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o !nvoluntarismo na política) 337


de realização, e Deleuze não parece ter jamais apostado em uma es- tade de potência" concebida por Nietzsche como um pafbos, o instru-
perança qualquer10.Ele via no maio de 68 a irrupção do real, e não mento de uma tipologia dos modos de existência imanentes, das ma-
do sonho: um momento de emergência do possível, mas certamente neiras concretas de viver e de pensar. Em ambos os casos, o possível
não como imagem daquilo que poderia ser. remete à potência. Pode parecer paradoxal invocar Espinosa a propó-
O que é então o possível, ou o "possível como tal" ? Deleuze afir- sito do possível; além disso, o parentesco etimológico não basta para
ma, de bom grado, que o que se trata de criar são novas possibi/ida- identificar potência e possível, não mais, aliás, do que o caráter plu-
des de z,iddll. Uma possibilidade de vida não é um conjunto de aros a ral, diferenciável, do conceito de potência... Mas contentemo-nos, por
realizar ou a escolha de tal profissão, de tal lazer, nem mesmo de tal ora, em definir o conceito de possibilidade de vida: uma distribuição
gosto ou preferência particulares. "A ignomínia das possibilidades de diferencial dos abetos (atraente/repulsivo etc).
vida que nos são oferecidas" remete às alternativas que definem uma Essas mutações afetivaslevam a uma nova distribuição entre o
sociedade ou ao conjunto de modos de existência concretos possíveis bom e o mau, o deleitávele o insuportável,ora em uma "mesma"
a uma dada sociedade12. Mas, de maneira mais profunda, uma possi- pessoa (que, a partir de então, mal pode identificar o passado que vi-
bilidade de vida exprime um modo de existência: é o "expresso" de veu como sea passado), ora em uma coletividade. O capítulo "Políti-
um agendamento concreto de vida. O expresso, em Deleuze, nunca é cas", dos Dlá/ocos, começa com a evocação desse tipo de mutação,
da ordem de uma significação ou de um conjunto de significações. Ele segundo um célebre conto de Fitzgerald. Para além dos "cortes" (tor-
consiste em uma aua/cação: não somente a avaliação das possibilida nar-se célebre, arruinar-se, ficar velho etc.), existem mutações de um
des de vida, quando se chega a apreendê-las como tais; mas a própria outro tipo -- "fissuras
possibilidade de vida como avaliação, maneira singular de avaliar ou
de separar o bom e o mau, distribuição dos abetos. Uma possibilidade 'A fissura se faz nessa nova linha, secreta, impercep-
de vida é sempre uma diferençaiJ. tível, marcando um limiar de diminuição de resistência, ou
A invenção de novas possibilidades de vidassupõe, portanto, uma a elevação de um nível de exigência; já não se suporta o que
nova maneira de ser afetado. Deleuze insistia no conceito de "aptidão se suportava antes, ontem, ainda; a distribuição dos dese-
para afetar e ser afetado", em Espinosa: nele via, assim como na "von- jos mudou e nós, nossas relações de velocidade e de lenti-
dão se modificaram, um novo tipo de angústia nos atinge,
mas, igualmente, uma nova serenidade..."14
io Ta[vez coubesse distinguir esperança [espoir] e expectativa [espérance].
Jacques Ranciêre evoca, nestemesmocolóquio, o messianismodesesperadoque Um acontecimento político é do mesmo tipo: uma nova distri-
habita as últimas páginas do texto sobre Bartleby. De um modo mais geral, a filo- buição dos abetos, uma nova circunscrição do indo/afaz/e/.Tal tipo de
sofia da iminência implica uma expectativa [espéralzce],em sua própria c]áusu]a:
mutação subjetiva não se decreta, e a questão não é, de início, desejá-
Não se pode saber previamente" (cf., por exemplo, DI/Xerence ef répétílfon, p-
187, À'li/leplafeaul, Paras,Minuit, 1980, pp. 306-7; Pérlc/êsef Vendi,pp. 14-SI. la ou não: o pró ou o contra só intervêm no estágio da resposta ou da
reação, conforme se escolha assumir as consequênciasou fingir que
ii Cf., por exemplo, Níefzscbe ef la pbl/osopble, Paras, PUF, 1 962, p. 1 15;
Critique ef c/lfziqne, p. 15.
nada aconteceu.Tal era, para Deleuze, o fundo vivo da clivagem es-
querda/direita, que não se encarna de maneira alguma nas organiza-
iz Qu'esr-ce que /a pbl/osopbiei, Paria, Minuit, 1991, pp. 72 e 103. ções existentes.
13Notar-se-á, a essepropósito, que "possibilidade de vida" e "mundo pos-
sível;' são conceitos quase sinónimos em Deleuze: ambos são da ordem do ex-
presso, ambos são definidos como diferença apor exemplo, em Proasf ef les sig-
nos, Combray como diferença, ou o lado de Méseglise ou o de Guermantes co-
mo exprimindo possibilidades de vida heterogêneas,distribuições afetivas he-
terogêneas). i4 Dfalogues, Paris, Flammarion, 1977, pp. 153-4

338 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política) 339


2. ENCONTRO E POTENCIALIDADES O visionário apreende, na situação, sua parte inatualizável, o
A política é, então, antes de mais nada uma questão de percepção: elemento que ultrapassa a atualidade da situação: o "possível como
"Maio de 68 é, antes, da ordem de um acontecimen- tal". O vidente vê o possível e, com isso ascende a uma nova possibi-
to puro, livre de toda causalidade normal ou normativa... lidade de vida que pede para se realizar. Mas ver o possível não con-
Houve muita agitação, gesticulações,palavras, bobagens, siste em elaborar um plano: apreende-sea situação anualem sua po-
fencialfdade, como "campo de possíveis". Apreendem-se, na situação
ilusões, em 68, mas não é isso que importa. O que importa
é que foi um fenómeno de vidência, como se uma socieda- atual, as potencialidades que ela atualiza, mas que poderiam se atya-
lizar de outro modo, já que elas diferem, por natureza, de sua atuali-
de visse, de repente, o que continha de intolerável, e visse
também a possibilidade de outra coisa. É um fenómeno co-
zação: uma segunda vez, após Bergson, e sob sua inspiração, o dua-
letivo sob a forma: 'o possível, se não o sufoco...'".iS lismo do livre-arbítrio e do determinismo se dissolve em proveito de
seu terceiro excluído, o novo. O virtual efetivo (real) substitui o pos-
O vidente ou o visionário, segundo Deleuze, não é aquele que sível (imaginário) a ser realizado.
antevêo futuro; ao contrário, ele não vê ou não prevê, para si, nenhum As potencialidades são puras potências, puros dinamismos, cap-
futuro. O vidente apreendeo intolerável em uma situação; ele tem tados independentementede todas as coordenadas espácio-temporais
visões, entendamos, aí, percepções em devir ou perceptos, que colo- jassim a linguagem as recolhe na forma verbal do infinitivo: são sin-
cam em xeque as condições usuais da percepção, e que envolvem uma gularidades de sentido e de acontecimento)17. No caso, trata-se das
mutação afetiva. A abertura de um novo campo de possíveis está li- diferentes forças ou aptidões presentes em uma situação, chamadas,
gada a estas novas condições de percepção: o exprimível de uma si- aliás, a evoluir: aptidões dos homens,do meio, aptidõestecnológicas
tuação irrompe, bruscamente. etc. Sob os modos de existência concretos, percebemos as possibilida-
Qual é a condição de uma tal mutação subjetiva? Se o percepto des de vida que nos são oferecidas também como possibilidades afeti-
se distingue de uma simples percepção é porque ele envolve um enco/z- vas: essas próprias possibilidades de vida são as maneiras pelas quais
ero, uma relação com o fora. Há acontecimento ou vidência quando as potencialidades são distribuídas e condensadas, em uma época, em
alguém encontra suas próprias condições de existência, ou as dos ou- um campo social dado. Uma situaçãoexprime,então, um conjunto
tros; aquilo que se chama "lutas", pelo menos em sua fase ascenden- aberto de potencialidades que nelas são dispostas, distribuídas, com-
te, e viva, exprime então, nesse sentido, menos uma tomada de cons- binadas, condensadas (conjunto remanejável das possibilidades de
ciência do que a eclosãode uma nova sensibilidade.Em 68, a muta- vida). Quando apreendemos a situação como puro possível ou em sua
ção perceptiva e afetiva consiste em "novas relações com o corpo, o potencialidade, avaliamos essas possibilidades de vida (ou essescon-
tempo, a sexua]idade, o meio, a cultura, o trabalho [...]". Admitamos densados), que, assim, se redistribuem de maneira diversa. Cabe a nós.
que a subjetividade de cada um de nós seja constituída por uma sínte= a seguir, inventar a combinação concreta ou o agendamento material,
se de tais relações: eis que essas relações mudam, ou que se estabele- espácio-temporal, que atualizará as novas possibilidades de vida, ao
cem, com os mesmos temas, com os mesmos campos, novas relações. invés de deixa-las sufocar no antigo agendamento.
Uma vez que uma relação é sempre exterior, em Deleuze, essas novas Ver de repente essas potencialidades como tais e não atualizadas
relações são também encontros. Encontramos brutalmente o que tí- de uma maneiradeterminada:eis o acontecimentoque arrasta seu
nhamos cotidianamente diante dos olhos16 sujeito mutante para um devir-revolucionário. A visão é forçosamen-
te fugaz, uma vez que a manifestação de um potencial se confunde com
i5 "Mai 68 n'a pas eu lieu' sua dissipação. O que, paradoxalmente, o vidente-revolucionário vê
ló Cf. Ci/zéma 2: L'lmage-femPS, p 8. Em um certo registro Deleuze e Guattari
podem dizer que mesmo as mulheres devem devir-mulher, é que a feminidade não i7 Os termos "potencialidade" {ou "potencial") e "singularidade" são, aqui
é um dado de essênciamas um acontecimento, ou objeto de um encontro. equivalentes.

340 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política) 341


é a intensidade, em uma imagem intensiva que se esfuma ao se expandir; imagem, ele Áaz a imagem, mais ou menos como o personagem de
pois a intensidade se dissipa, tornando-se imagem. Nascimento e morte Beckett exclamando: "Está feito, eu fiz a imagem"22. Pode se ver uma
coincidem nessaimagem que só se pode repetiria. SÓexperimentamos, revolta? Ou será ela que vê, e se vê? A imagem é fragmentária e se
portanto, o possível como tal, ou o possível como pofêncfa, em sua dissipa aqui e ali, adequada ao possível como tal (ao invés do possí-
queda ou seu esgotamento: trata-se assim, de "esgotar o possível" 'v vel, imagemdo real)ZJ
Essa percepção do puro possível espaço-tempo especial, despro- 'Tudo é possível", ou "tudo se torna possível", na medida em
vido de coordenadas, puro potencial expondo potências, singularida- que as partes da situação, tais como o visionário as apreende, não são
de, independentemente de qualquer atualização em estados de coisas previamente combinadas: são como acontecimentos puros compon-
ou em meios: o "puro lugar do possível"20. Percebe-se,agora, em que do problematicamente um único acontecimento (a situação), e é pró-
sentido "tudo se torna possível": as condiçõespara um novo traçado prio aos acontecimentos ressoarem uns com os outros, uns nos outros,
estão dadas, sem que nenhum percurso seja imposto previamente. A caoticamente24. Tudo é possível, mas nada ainda está dado, segundo
criação opera em um espaço de redistribuição geral da singularidade, a nova definição do possível, Já que ele precisa ser criado: o possível é
tentando novos agenciamentosconcretos, a partir da injunção de uma o que devém, e a potência ou potencialidade merece o nome de possí-
nova sensibilidade:o próprio espaço do desejo, povoado não por for- vel na medida em que abre o campo de criação (a partir daí tudo está
mas e indivíduos, mas por acontecimentose abetos.A criação, guiada por se fazer). O possível é o z/irfua/:é ele que a direita nega e que a
pela exploração afetiva, traça um novo agendamento espácio-temporal, esquerda deforma, representando-o como prometo.
agendamento de espaço e de tempo, e não apenas no esPízço e zzotem-
po; a questão, de fato, não é mais a de saber como preenchero espa' 3. EFETUAR OU FECHAR O POSSfVn.: A A'rUAUZAÇÃO
ço-tempo comum, mas a de recompor esse espaço'tempo que nos des- Por possível como tal não se entenderá, portanto, apenas uma
dobra. assim como nele nos desdobramos. O agendamento é um novo possibilidade de vida, no sentido de que seria possível avaliar ou ser
recorte, um novo estriamento, uma nova distribuição que implicam afetado de modo diverso (diferenciação do conceito de potência ou de
operar em um espaço e em um tempo especiais, intensivos, nao previa' vida, possívelcomo alternativa): as condiçõesestão dadas para que a
mentedados. Assim Deleuze invoca "eixos" para definir um novo cam- existência mude, para uma mutação do próprio real. A mutação sub-
po de possíveis aberto por maio de 68: o pacifismo, seguindo o eixo jetiva é certamentereal, mas pede sua efetuação, só pode se efetuar
Leste-Oeste, um novo gênero de internacionalismo, seguindo o eixo atualizando-se.
Norte-Sul2t. Vetorial, direcional, problemático, o campo de possíveis
tem a consistência do movimento, da organização política enquanto "0 possível não preexiste, ele é criado pelo aconteci-
movimento. Um movimento revolucionário, a rigor, não realiza uma mento. E uma questão de vida. O acontecimento cria uma
nova existência, produz uma nova subjetividade (novas re-
i8 As revoluçõessão, consequentemente,todas elas natimortas, mas não no lações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cul-
sentido em que geralmente se diz: a viabilidade precária do que se dissipa está em tura, o trabalho...). Quando uma mutação social aparece,
sua incessante retomada, e as revoluções morrem por não saberem repetir, ou pela não basta tirar-lhe as consequênciasou os efeitos, seguin-
sufocação da repetição (por conta das forças de sujeição que aí denunciam, uma
"traição"). Não é por acaso que o tema do traidor {em oposição ao do trapacei-
ro) aparece em Deleuze a propósito do devir e da linha de fuga: todo traçado cria- 22L'épufsé, P. 71.
dor é, necessariamente,traidor. Cf. in/ra.
ip Daí a ambiguidade: vontade que engloba sua própria abolição. 23Sobre a imagem dissipadora da revolta, sua percepção do intolerável e sua
resposta, e sobre o deserto como um espaço qualquer, cf. Crffiq e ef c/í fqae, ca-
zo Cinema ] : L'image-moaueme/zl, p. 155. pítulo XIV {sobre Lawrence da Arábia), principalmente as pp. 144-5.
zl "Mai 68 n'a pas eu lieu' 24Tema constante de Loglca do senfldo.

342 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política) 343


do linhas de causalidade económicas e políticas. É necessá- E necessário responder ao acontecimento: "a única chance dos
rio que a sociedade seja capaz de formar agenciamentos homens está no devir-revolucionário, o único a poder conjurar a ver-
coletivos correspondentes à nova subjetividade, de tal ma- gonha ou responder ao intolerável"27. Um imperativo como esse nada
neira que ela queira a mutação. É isso uma verdadeira 're- tem de voluntarista: não se trata mais de atingir o ser a partir do de-
conversão . ' '' '' ver-ser, de submeter o real a um julgamento extrínseco, transcenden-
te, portanto arbitrário e impotente; a vontade não mais precedeo acon-
Nesse estágio, a idéia de uma criação de possível se desdobra em tecimento, a dissensãoopera no mundo, não entre o mundo e um outro
dois aspectos complementares. Por um lado, o acontecimento faz emer- mundo (a iminência sempre invocada por Deleuze significa que a ex-
gir um novo sentidodo intolerável(mutação virtual); por outro lado, terioridade deixou de estar além do mundo; a infinidade dos mundos
esse novo sentido do intolerável pede um ato de criação que responda possíveis se decifra, a partir de então, diretamenteno mundo, como
à mutação, que seja o traçado de uma nova imagem e crie literalmen- sinais de sua heterogeneidade).SÓpodemos responder ao acontecimen-
te o possível Imutação atualizante). Criar o possível é criar um age/z to, porque não podemos viver em um mundo que não mais suporta-
cfamenfo espácio-fempora/coletivo inédito, que responda à nova pos- mos, na medida em que não mais o suportamos28.Há, aí, uma res-
sibilidade de vida, ela própria criada pelo acontecimento, ou que seja ponsabilidade especial, diversa daquela dos governos e dos sujeitos
sua expressão. Uma modificação efetiva da situação não opera no modo principais, responsabilidadepropriamente revolucionária. Não se é,
da realização de um prometo,pois se trata de inventar as formas sociais aqui, responsável por nada, nem por ninguém; não se representa nem
concretas que correspondam à nova sensibilidade,e a inspiração só um prometonem os interessesde uma coletividade (já que tais interes-
pode vir dessa última. A nova sensibilidade não dispõe de nenhuma ses estão precisamente mudando, e que não se sabe ainda bem em que
imagem concreta que Ihe seja adequada: segundo esse ponto de vista, sentido). Se é responsável dlanle do acontecimento.
só existe ação criadora, guiada não por uma imagem ou prometopré- Duas palavras substituem, desde então, a realização: afz/a/azare
formador do futuro, mas por sinais afetivos que, segundo uma fórmula eÁeraar.Atualizar o virtual, ou efetuar o possível. O ,4nfí-Édlpo ter-
leífmoflz/,"não se assemelham" ao que os atualiza. Ir do virtual ao mina com estas palavras: "Efetuar o processo, não detê-lo, não deixá-
atual, seguindo um processo imediatamente real; e não do imaginário lo esvaziar-se, não Ihe dar uma meta", sabendo-se que o processo "já
ao real, seguidouma trajetória imediatamenteatualzõ. sc encontra efetuado enquanto procede"29. l,'épufsé diz: "Não se rea-
liza mais, embora se efetue". E mais adiante: "Os personagens se can-
sam segundo o número de realizações. Mas o possível está efetuado,
25"Mai 68 n'a pas eu lieu

zó Parece que esseesquema de atualização já é o do marxismo, em oposição par no presente). Daí por que o operador revolucionário por excelência é a toma
ao socialismo utópico. Seguindo uma passagem célebre de A Ideo/ogfaa/emã: "0 da de consciência, que pressupõe seu próprio conteúdo e dá, paradoxalmente, ao
comunismo não é [...] nem um estado que deve ser criado, nem um laca/ a partir futuro a forma lógica do passado: não a emergência de uma nova sensibilidade. A
do qual a realidade deverá se regular. Chamamos comunismo o movimento real concepção historicamente oposta, o espontaneísmo, tampouco se liberta da ante-
que abole o estado anual. As condições desse movimento resultam da pressupo' cipação, uma vez que a espontaneidade nada mais é do que uma percepção incons-
lição que existeanualmente".(Pauis,Sociales, 1976, p. 33; os grifos são de Marx ciente da meta. A alternativa permanece prisioneira do esquema de realização, como
e Engels.) O comunismo não está,propriamente falando, por vir; eleestá, desde testemunha o ensaio de Lênin, Q e Áazeri; a atualização do virtual nunca tem o
já, presentecomo uma fendêlzcfa,inscrita nas contradições do sistema atual. O que caráter de criação.
permitefalar do futuro, sem descambarem princípio para o sonho ou para o ar-
bitrário, é a possibilidadede decifra-lo no próprio presenteem devir. Mas, desse 27Poulpczr/ers,Paris, Minuit, 1990, p. 23 1
modo, a estrutura de realização aparece combatida de modo insuficiente: tem-se 28L'alar/-(Edlpe, p. 408, coloca, a esse respeito, a alternativa entre o des-
sempre previamente o futuro em imagem, graças ao instrumento dialético; o rea- moronamento psicótico e o devir-revolucionário.
lizávelé apenas elevado a necessário, enquanto o virtual conserva a forma an-
tecipatória de uma mera (essa é a maneira pela qual o futuro continua a se anteci- 29O tema aparecia desde o início do livro, p. ll

344 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na políticas 345


independentemente desse número, pelos personagens esgotados e que Obtemos uma dupla distinção:
o esgotam". O possível enquanto novidade, à diferença das alternati- a) Realização/ama/lzação, o que há de real ou de efetivo nas lu-
vas atuais ou dos projetos de futuro, é objeto de efetuação, não de tas sendo sempre da ordem de uma criação que opera em função de
realização. A efetuação concerne a um ato de criação, inseparável, desde um campo de possível (no sentido acima definido).
então, de uma atualizaçãolu. b) .4fua/lzação/p.zrlefnaf zllzáz,e/,esta última designando o ex-
Efetuar o possívelcomo tal é afirmar a nova sensibilidade,per- presso das lutas ou do processo de atualização, ou aquilo mesmo que
mitir-lhe que se afirme. Eis por que uma sociedade exposta ao acon- se efetua: a "parte de acontecimento", "o acontecimento como possí-
tecimento deve ser capaz de criar os agenciamentos correspondentes, vel que nem tem mais de se realizar"33
de tal maneira que ela queira a mutação". Sempre é possível, de fato,
negar e combater o que se afirma em nós. Reencontramos ainda aí a 4. OS CLICHÊS, OU A POLÍTICA APENASPOSSÍVEL
fonte viva da clivagem esquerda-direita: seremos capazes de afirmar A política começa ou recomeça, portanto, cada vez que uma co-
o que de todo modo nos tornarmos, o que de todo modo se afirma letividade encontra suas próprias condições de existência (ela já está
em nós? Não se pode negar o devir e, ao mesmo tempo, querer que as em jogo quando um indivíduo, por sua própria conta, encontra as suas
pessoas "devenham": a direita francesa se empenhou em "fechar o ou as dos outros). Tal requisito só se revela, segundo Deleuze, graças
possível"; em seguida, ela começou a deplorar que as pessoas se cris- a circunstâncias modernas: era necessário que deixássemos de acredi-
passem em posições arcaicas e se identificassem com o atual31. Notar- tar no possível como instância de realização; era necessário que as
se-á que a direita adota exatamente a atitude que ela censura, com alternativas, presentes ou por vir, nos aparecessem como c/icbês. É a
razão, à esquerda: ela gostaria de poder escolher o futuro, ela gosta- 'ruptura dos esquemas sensório-motores", cujos germes românticos
ria de que as pessoas mudassem tudo, obstruindo todas as saídas reais ou pós-românticos desabrochamno pós-guerra (e não após a queda
pelas quais elas efetivamente mudam; como a esquerda, ela fica presa do muro de Berlim). Trata-se então de acabar com os clichês.
à idéia de que a mudança diz respeito a uma tomada de consciên- O enunciado "esgotar o possível" tem, assim, dois sentidos, con-
cia32. Fechar o possível não equivale, de forma alguma, a esgota-lo; é forme os dois regimes do possível: ascender ao puro possível que a
apoiar violentamenteo devir no nada. Dois efeitos podem derivar daí: imagem esgota (2) supõe acabar com os clichês (1). Daí o tema de um
que as pessoas tenham medo do devir porque ele só deixa vislumbrar 'nada de vontade", e de sua força desintegradora34. Bartleby é, a esse
o nada, a si mesmo como nada (dobra arcaizante), ou que nada mais respeito, o personagem emblemático da política deleuzeana: o resis-
tenham para querer senão o nada (dos vândalos aos terroristas) A tente por excelência, ou mesmo o sobrevivente (em que coincidem o
violência torna-se, então, primeira, fim em si, a vontade nada mais mínimo e o máximo de vida: sobre-vida, como Nietzsche fala de um
tendo para querer senão o que Ihe é proposto, ou seja, nada: uo/zfade super-homem). Bartleby "prefere não": ele abdica de qualquer prefe-
de nada. rência em uma dada situação, e recusa, assim, o regime das alternati-
vas ou das disfunções exclusivas que asseguram o fechamento da si-
tuação. A interioridade de Bartleby pode parecer um mistério (e tal-
30Isso não é mais verdade, a rigor, em t'éP fsé: justamente porque é o que vez ela seja vazia, estúpida): é apenas o sinal de que os abetos e os efeitos
aproxima e, ao mesmo tempo, separa a política da arte. são de uma outra ordem -- uma incrível perturbação do entorno, por
3i "Mai 68 n'a pas eu lieu". As pessoas de Longwy se agarram a seu aço
etc.

3z E como os bolcheviques depois de 1917, os liberais hoje se lamentam 33Cf., respectivamente, "Mai 68 n'a pas eu lieu" e l,'éplrfsé, p. 93.
diante da mentalidade arcaica dos russos jcontudo, não se opta mais pela reedu- 34 Especialmente em Francês Bago?z. Logfq e de /a sensafíon, Pauis, La Diffé
cação forçada, mas pela forma mais civilizada de uma miséria orquestrada pelo rence, 1981, p. 60, após ter precisamenteperguntado como se libertar dos clichês
FMI) como formar uma figura que não seja um clichê.

346 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na políticas 347


contágio. A novela de Melville não diz mais nada sobre isso, e Deleuze tolera-la."36 Nossas relações habituais com o mundo se revelam con-
só a pro]onga para descrever e ce]ebrar a grande expectativa [espérance] vençõesarbitrárias, que nos protegemdo mundo e o tornam tolerá-
americana, que não acaba de modo algum melhor do que Bartleby. vel para nós: e aí está o compromisso intolerávelpara com a miséria
Mas o essencial é que essa expectativa adquiriu, localmente, consis- de toda natureza e os poderes que a alimentam e a propagam. Nossos
tência, não como esperança [esPoir], mas como realidade, no devir ao interessesse inclinam, é claro, sempre para o lado da obediência37.Os
qual, por um momento, o procurador consente, e que Ihe arranca o esquemas sensório-motores, respostas totalmente prontas a situações
grito final: "Oh, Bartleby! Oh, humanidade!". Deleuze reivindica uma de sofrimento sempre singulares e evolutivas, são testemunhas de uma
leitura literal: isso vale tanto para o comentário como para o texto. interiorização da repressão (e não é à toa que se diz que a esquerda,
Assim, a atitude de Bartleby não é o símbolo ou a alegoria de um mi- com seus clichês de palavras e ações -- litanias de indignação e de
litarismo por vir, vislumbrado por entre as brumas: a novela descre- reivindicação, formas estereotipadasde militarismo --, é o auxiliar
ve, sem mistérios, um processo menos de transformação que de defor- indispensável da direita). Os clichês da luta ou da compaixão parecem
mação social (pouco importa, a esse respeito, que seu herói seja um chegar, hoje, a seu paroxismo, ainda mais vergonhoso pelo fato de
indivíduo, e não uma massa,já que a rebelião vale mais por seusefei- manifestarem uma fantástica capacidade de adaptação ao odioso e a
tos do que por suas razões, efetuando, por assim dizer, a própria ques- suas causas (vergonha também de nós mesmos, já que esse mundo é o
tão da comunidade). A novela não é simbólica; ela é exemplar: De nosso). Idiota é então aqueleque não reage, não por insensibilidade,
leuze dela extrai um conjunto de categorias políticas. mas porque "não chega a saber o que todo mundo sabe", ou "nega
Favorecer, em si mesmo e no meio, o crescimentode um nada modestamente o que se presume que todo mundo reconhece"38
de vontade é resgatar o potencial, a situação como potência de encon- A época moderna se caracteriza, indubitavelmente, por um défi-
tro. Não se trata de uma última receita voluntarista: ao invés de um cit de vontade, por uma certa "má vontade", embora o mal de que sofra
procedimento que propicie a visão (o encontro), ver-se-á, aí, seu cor- seja de uma outra natureza. Não acreditando mais no possível, per-
relato. O nada de vontade é um fato moderno. Nietzsche já o diag- demos o gosto e a vontade de realiza-lo: eis nosso cansaço e nosso tédio.
nosticava, nele designando o ponto sem retorno do niilismo e a opor- Mas se perdemos a fé, é porque nossos esquemas sensório-motores nos
tunidade de uma reviravolta. Dostoiévski e Melville, no mesmo mo- aparecem, agora, como são -- como clichês. Tudo o que vemos, dize-
mento, produzem, cada um por sua própria conta, o personagem cor- mos, vivemos, e até mesmo imaginamos e sentimos já está, definitiva-
respondente: o idiota, que não mais pode responder às urgências de mente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da recognição,
uma situação por ser solicitado por uma questão mais urgente ainda; a forma do já visto e do já ouvido. Uma distância irónica nos separa
o original IBartleby), que preferiria não ter de se pronunciar sobre a de nós mesmos, e não mais acreditamos no que nos acontece, porque
situação35.Ambos os personagenstêm em comum o fato de teremvisto nada parece poder acontecer: tudo tem, de saída, a forma do que já
algo que excedia os dados da situação, e que tornava qualquer reação estava presente, do que já está totalmente feito, do preexistente.
não apenas derrisória e inadequada, mas também intolerável. E que o real à imagem do possível permanece também confina-
O nada de vontade, a desafeição em relação às questões reconhe- do em uma irredutível possibilidade, jamais atingindo o efetivo ou o
cidas, é o resultado de um encontro com o mundo. "Viu-se" não ape-
nas a situação, mas também todos os esquemassensórios-motores que 3óFlaubert, BoKuard et Pécacbef, citado em Di/7érenceef réPéfflfolz,p.1 98.
nos ligavam habitualmente ao mundo -- viu-se que eles não viam esse 37Sobre as relações entre o esquema sensório-motor, o clichê, o interessee
mundo, e que não passavam de clichês. "Então uma faculdade lamen- a obediência,cf. L'image-mouz/emenf,p. 282, e L'image-fe#zps,pp. 31-2.
tável se desenvolveu em seu espírito, a de ver a tolice e de não mais
3sDz/Xyre/zce ef répéfilfon, p 171. O idiota, cujos traços Deleuzedelineia,
parece um misto: sem dúvida nele se reconheceo príncipe Mishkin, mas, princi-
35Assim como os clichês, o tema do idiota, enunciado no final de L'imczge- palmente,o homem do subsolo e o homem ridículo (em duas novelas célebres).
moifz/enzePzf,
pp. 257-61, é retomado em L'fn7age-felnps, pp 220 e 229-30. As primeiras linhas do texto sobre Bartleby invocam as novelas de Dostoiévski.

348 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na políticas 349


necessário. O clichê tem exatamente a forma do possível, no sentido experiênciareal implica, ao contrário, a afirmação de uma relação
que Bergson critica: damo-nos um real totalmente acabado, "pré-exis- radical com o que ainda não pensamos jsegundo a expressão herdada
tente a si mesmo"39. "Já nos demos fujo, todo o real em imagem, já de Heidegger). O mesmo ocorre na política, em que o povo se encon-
na pseudo-atualidade do possível."40 0 real é, assim, precedido por tra na situação de nunca existir ainda: em ambos os casos, trata-se de
sua própria imagem enquanto possível, e, assemelhando-seao possí- afirmar uma relação de exterioridade ou de encontro entre o pensa-
vel, acaba confundindo-secom ele. Chega um momento em que não mento e o que ele pensa, entre o povo e ele mesmo4z
mais percebemos o real senão como já visto, objeto de recognição; não O que se passa, então, na ação política? Efetividade e necessida-
mais o distinguindo do possível, somos invadidos pelos clichês, como de: eis o que falta à realização. Não apenas o Estado, mas também as
por simples possibilidades. O mundo perdeu toda realidade. Uma vez estruturas militantes lidam com a "má vontade" popular, que -- re-
que a revolução pensou-sea si mesma e pensou o povo sob o modo tomando a definição clínica da perversão -- se desvia incessantemen-
do já presenteou da preexistênciaa si, foi fatal que os revolucioná- te da meta, e não cessa de não acreditar no que Ihe propõem. No en-
rios se nos tivessem finalmenteaparecido como "revolucionários de tanto, a imagem além dos clichês aparece cortada de qualquer prolon-
papel", e os povos como "povos de papel". Aquilo que nos ligava ao gamento motor: a visão pode bem ser momentânea sem com isso dei-
mundo nada mais era senão clichês, simples possibilidades. Dávamo- xar de ser, de direito, interminável,pois só os imperativosda ação,
nos o mundo previamente, tanto o povo como nós mesmos. Tudo é através da atribuição de um interesse,podiam circunscrever a imagem
possível agora, ou seja, confinado na simples possibilidade. Mas, igual- e dobra-la às condições de uma experiência possível (o interesse remete
mente, nada é possível: o futuro está pré-formado, inteiramente reba- a um sujeito estável, e não mutante). A política nasce, enfim, mas dir-
tido sob a forma do já presente. A necessidadedesertou desse mundo, se-ia o nascimento de um paralítico, deixando apenas a escolha entre
e persistimos em nos mover, sem acreditarmos muito, no horizonte da um fantasma de ação e uma fascinação petrificada. Em quê o encon-
preferência. tro é a chancede um devir-revolucionário?De que naturezaé o es-
querdismo deleuzeano?
Deleuze sempre fez uma outra análise do possível, paralelamen-
te à crítica de inspiração bergsoniana: não nos fundámos em imagem Ele consiste, inicialmente, como já dissemos, na recusa de todo
pré-concebidado pensamento, sem, ao mesmo tempo, privar o pen' voluntarismo. Mas isso não seria nada, ou não seria um esquerdismo,
samento de sua necessidade, condenando-o a se mover, indefinidamen- se a defesado involuntário concluíssepela futilidade de toda ação. É
te, em uma insuperável possibilidade41. Pré-formar o transcendental, verdade que é uma tendênciado esquerdismo, aquela que Lênin ex-
rebatê-losob uma forma originária, equivale a estabeleceras condi- plicava pela recusa de qualquer compromisso. Mas o problema esta-
ções de uma experiência possível, e não real. Decalcar o transcenden- ria bem colocado? Para Deleuze, os compromissos são ao mesmo tempo
tal sobre o empírico, concebê-lo à imagem do atual ou da representa- vergonhosos e sempre previamente estabelecidos: são os esquemas, que
ção evacua do campo do pensamento, de saída, o novo ou o aconteci- nos fazem aceitar aquilo mesmo que nos indigna. Além disso, a teoria
mento: sabe-se,antecipadamente, que nada acontecerá ao pensamen- do bom compromisso se reserva, por natureza, o direito de denunciar
to, a não ser uma pseudo-experiência cuja forma possuíamos previa- o mau compromisso, de preferênciaem outros: uma aliança impura,
mente, e que não coloca em questão a imagem que o pensamento fa- uma traição. De forma que a militância "adulta", não menos que o
zia de si mesmo. Tudo o que pensamos confirma que temos a possibi- esquerdismo, tem horror a apreender o acontecimento, necessariamente
lidade de pensar, sem com isso atestar um ato efetivo de pensar. Uma complicado. Certamente, os temas da linha de fuga, do nada de von-
tade, da desafeição ("não se sentir concernido") testemunham uma

39Le bergso?zisme,Paria, PUF, 1966, p. 100.


40roem,p. ]01. 42Cf. os capítulos V]] e Vlll de Cfném.z 2: L'lmage-íemps, mais especialmente
4i Prol/sf ef /es genes, pp. 41 e 116; Di/7érena ef r($éfíflon, pp. 93-5 e 173-92. P. 282.

350 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política) 351


recusa do compromisso, mas o problema não é mais, de maneira al- A ruptura dos esquemas, ou a fuga para fora dos clichês, não
guma, o dos meios, uma vez colocado o fim. Deleuze responde ao tri- conduz, certamente, a um estado de resignação ou de revolta mera-
bunal do bom e do mau compromisso pela distinção entre o traidor e mente interior: 7'eslsfirse distingue de reagir. Resistir é o próprio de
o trapaceiro. Esteesconde, temporariamente, sua verdadeira identidade uma vontade derivada do acontecimento, se alimenta do intolerável.
sob uma identidade emprestada: é ele que se pode desencovar, pois ele O acontecimento é o próprio "potencial revolucionário", que se es-
só de fato escapa à identificação, impondo-lhe um malogro (durante gota quando rebatida sobre as imagens já feitas (clichês da miséria e
vários anos se disse "Bom dia, Teodoro" àqueles que se chamavam da reivindicação).
Teeteto: Kautsky, Plekhanov...). Mas o traidor não dissimula nenhu- Chance de uma nova saúde, e não sintoma mórbido, o nada de
ma identidade: em devir ele escapa de direito a todas as identificações vontade procede à destituição de um falso problema: o sistema das
possíveis43.O próprio procedimento se tornou inadequado, elese con- alternativas. Seu reverso, ou a consistência positiva da política, é a
fronta com o impossível (o bolchevismo responde por meio de uma elaboração experimental de novos agenciamentos concretos, e a luta
cólera judiciária ímpar na história). Lênin só via bons e maus trapa- pela afirmação dos direitos correspondentes. A "criatividade", é bem
ceiros, ele justificava suas próprias trapaças; ele não tinha o sentido verdade, tornou-se um clichê, mas por força de um contra-senso: quan-
da traição, ou o do devir-revolucionário. O intolerável é precisamen- do nada mais se retém senão uma palavra de ordem voluntarista (cada
te a emergênciado "impossível", a realidade não mais respondendo um se esforçando, então, para produzir seuspróprios clichês, para viver
aos clichês, aos encadeamentos sensório-motores. sua própria existência como clichê: realização de fantasmas etc.). O
traidor cria forçado, sob o império de um amor ou de um encontro,
"[...] já não se acreditava tanto na possibilidade de agir mas o trapaceiro só pode se esforçar para criar. A experimentação,
sobre as situações,ou de reagir às situaçõese, no entanto, segundoDeleuzee Guattari, nada tem a ver com essesjogos de exis-
não se está de modo algum passivo, capta-se ou revela-se algo tência em que a parte do acaso é bastante exígua. Tateante, discreta,
intolerável, insuportável, mesmo na vida mais cotidiana."44 em parte inconsciente, duplicada pelas lutas coletivas por direitos inédi-
Nenhuma reação possível, será que isso quer dizer tos que permitam sua efetuação, ela se confunde com a própria existên-
que tudo vai ser neutro? Não, de modo algum. Haverá situa- cia, quando esta lida com uma remanejamento profundo de suas con-
ções ópticas, sonoras, puras, que engendrarão modos de com- dições de percepção, e com os imperativos afetivos que dele resultam.
preensão e de resistência de um tipo inteiramente novo."45 Se não mais se pode falar de ação no sentido tradicional do ter-
«É verdade que, no cinema, os personagens de bala mo, é porque a situação se tornou literalmenteimpossível. Dizê-la
da são pouco concernidos, mesmo pelo que lhes sucede... incontrolável é, por vezes, um álibi infame. Incontrolável foi o que ela
Mas justamente a fraqueza dos encadeamentos motores, as não se tornou, qualquer que seja a complexidade moderna dos meca-
ligações fracas são aptas a liberar grandes forças de desin- nismos sócio-económicos; ela o é por direito, na medida em que o devir
tegração."" não obedece a nenhum clichê. Quando nossos liames sensório-moto-
res com o mundo se revelam clichês, a situação perde seu caráter glo-
bal ou totalizável, e explode em processos singulares. Ela não é mais
atravessada por uma contradição maior, última figura da unidade para
43 "É que traidor, é difícil, é criar. É preciso perder aí sua identidade, seu além da divergênciae do conflito, mas por linhas de fuga locais, em
rosto. É preciso desaparecer,tornar-sedesconhecido" (Día/ogues, p. 56): todos os níveis, que apenas comunicam, eventualmente,de singular
44Poz/@ízr/ers,p. 74.
para singular,de minoria para minoria (crianças, operários, mulhe-
res, negros,camponeses,prisioneiros...).
45 PoarPar/ers, P. 168. A única utopia a que Deleuze se entregou, baseada em solidarieda-
46L'lmczge-femps,p. 30. des passageiras nas décadas de 60 e 70, concerne à emergência de uma

352 François Zourabichvili Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na políticas 353


consciência universal minoritária". O que a justificava é que o devir era senão a sombra negativa de uma coerência paradoxal (porque ela
de uma minoria interessa,por direito, todo mundo, "concerne ao ho- inclui o tempo).
mem por inteiro", sendo sempre uma maneira singular de problemati-
zar a existências'. As pessoas em devir não são concernidas pelas alter- ;[...] Acreditar, não em um outro mundo, mas no lia
nativas em curso: só lhes importa aquilo que encontram por sua própria me entre o homem e o mundo, no amor ou na vida, acredi
conta, e aquilo que os outros também encontram, mesmo em contextos tar nisso como no impossível, no impensável, que, no en
afastados dos deles, "estranhamente indiferentes e, no entanto, mui- tanto, só pode ser pensado: 'o possível, senão sufoco'."51
to bem informados"48. Não é uma expectativa [espérance] seme]han-
te que ressoa no final do comentário de Bartleby, a de uma "comuni- Alcançar o devir para além do possível, tal era a direção de De-
dade de celibatários" comparável a um "muro de pedras livres"49? leuze. Chegar à identidadedo possívele do necessáriono lugar onde
De qualquer modo, só retomamos a efetividade da política des- a vontade nada mais é senão um falso problema, ou nasce do próprio
fazendo-nos da miragem representada pela tomada do poder e pela acontecimento, como sua auto-afirmação; enquanto o possível mudou
transformação extrínseca, demiúrgica, da sociedade. Ser de esquerda, de estatuto e recuperou sua figura autêntica, a figura positiva e virtual
a partir de então, significa acompanhar as linhas de fuga em todos os do ainda não, ao invés da projeção irreal, no futuro, do já presente.
lugares em que elas são pressentidas; tentar, custe o que custar, conectá- Uma percepção estranha do mundo, dizia Deleuze, em verdade, total-
las àquelas que nos abalam; favorecer assim a efetuaçãodo possível mente espinosana, quando se consegue respirar sem oxigênio, tendo
em todos os lugares em que emerge. O intelectual perde seu papel de compreendido, em última análise, que era com ele que nos sufocáva-
indicador ou de consciência: ele não propõe nada, não está à frente mos. "Não há mais possível: um espinosismo obstinado". Ou ainda:
de ninguém. Sua demanda e sua atenção referem-se ao involuntário, "0 ser vivo vendo é Espinosa sob as vestesdo revolucionário napo-
ou à emergência de novos campos de possíveis. litano"52. Então pode-se realmente dizer que Deleuze é um perverso,
A doença do clichê nos deixa em um meio termo angustiante: não e seu esquerdismo, uma admirável perversão. Afinal:
mais acreditamos em um outro mundo, mas ainda não acreditamos
neste mundo, nas chances de encontro com ele, na chance que repre- :[...] O mundo perverso é um mundo em que a cate-
senta um encontro com elevo. Estamos em vias de acabar com o pos- goria do necessáriosubstituiu completamentea do possível:
sível, sem percebermos que é a condição de um possível efetivo, por estranho espinosismo em que o oxigênio falta, em proveito
não termos perdido o hábito de associar o possível à imagem pré-con- de uma energia mais elementar e de uma ar rarefeito (o céu-
cebida de um mundo melhor a ser realizado. É esgotando o possível necessidade) . "s j
que o criamos: a contradição aparente, como se percebe agora, não

Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz


47Mf//ep/areaux, pp. 133-4 e 586-91 , devir-minoritário e potência de pro-
blematização.
Mai, 68 n'a pas eu lieu

49 Crfriqae ef c/InÍqUa, pp. 108-14. Essa exigência de um coniunro de liga-


ções laterais, federativas, e não hierárquicas e representativas, constitutivas de um
movimento revolucionário "de múltiplos focos", anima o conjunto das observa-
ções de Deleuze no diálogo com Foucault, L'.4rc, n' 49 (sobre os intelectuais e o 5i Idem, p. 221.
poder). 52l,'azzfí-(Edlpe, p. 35, logo após a passagem sobre o possível citada acima
se Cinéma 2: L'image-temos, pp. 220-S. 53Logiqzze d sons, p. 372.

354 François Zourabichvili 355


Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política)
A SOCIEDADE MUNDIAL DE CONTROLE
Michael Hardt

..
Deleuzenos diz que a sociedadeem que vivemos hoje é a socie-
dade de controle, termo que toma emprestado do mundo paranóico
de um William Burroughs. Ao propor esta visão, ele afirma seguir
Michel Foucault, mas devo reconhecerque é difícil encontrar, onde
quer que seja na obra de Foucault -- em livros, artigos ou entrevis-
tas --, uma formulação clara da passagem da sociedade disciplinar à
sociedade de controle. De fato, ao anunciar tal passagem, Deleuze for-
mula, após a morte de Foucault, uma idéia que não encontrou expres-
samente formulada na obra de Foucault.
A formulação dessa idéia por Deleuze, no entanto, é bastante
exígua: o artigo mal passa de cinco páginas. Ele nos diz muito poucas
coisas concretas sobre a sociedade de controle. Ele constata que as
instituições que constituíam a sociedade disciplinar -- escola, família,
hospital, prisão, fábrica, etc -- estão, todas elas e em todos os luga-
res, em crise. Os muros das instituições estão desmoronando de tal
maneira que suas lógicas disciplinares não se tornam ineficazes mas
seencontram, antes, generalizadascomo formas fluidas através de todo
o campo social. O "espaço estriado" das instituições da sociedade
disciplinar dá lugar ao "espaço liso" da sociedade de controle. Ou, para
retomar a bela imagem de Deleuze, os túneis estruturais da toupeira
estão sendo substituídos pelas ondulações infinitas da serpente. En-
quanto a sociedade disciplinar forjava moldagens fixas, distintas, a
sociedade de controle funciona por redes flexíveis moduláveis, "como
uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada
instante, ou como um peneira cujas malhas mudassem de um ponto a
OUtl'0 " -l

O que Deleuze nos propõe é, de fato, uma simples imagem des-


sa passagem, uma imagem sem dúvida bela e poética, mas não suficien-
temente articulada para nos permitir compreender essa nova forma de

l PourPar/ers, Paria, Minuit, 1990, p. 242

A sociedade mundial de controle 357


sociedade. Para fazer isso, pretendo relaciona-la a uma série de outras exteriores da natureza. De modo análogo, os teóricos da psicologia mo-
passagens que foram propostas para caracterizar a sociedade contem- derna compreenderam as pulsões, as paixões, os instintos e o incons-
porânea. Pretendo, portanto, tentar desenvolver a natureza dessa pas- ciente metaforicamente, em termos espaciais, como um fora no âmbi-
sagem, estabelecendosua relação com a passagem da sociedade mo- to do espírito humano, como um prolongamento da natureza bem no
derna à sociedadepós-moderna, tal como expressa na obra de auto- fundo de nós. A soberania do indivíduo repousa, aqui, em uma rela-
res como Fredric Jameson, mas também com o "fim da história" des- ção dialética entre a ordem natural das pulmõese a ordem civil da ra-
crito por Francis Fukuyama e com as novas formas de racismo em zão ou da consciência. Por fim, os diversos discursos da antroposofia
nossas sociedades, segundo Étienne Balibar e outros autores. Mas, moderna sobre as sociedades primitivas funcionam, freqüentemente,
sobretudo, pretendo situar a formação de que fala Deleuze em termos como o fora que define as fronteiras do mundo civil. O processo de
de dois processos que Tom Negri e eu tentamos elaborar ao longo dos modernização repousa nesses diferentes contextos, na interiorização
últimos anos: qualificamos o primeiro desses processos de enfraque- do fora da civilização da natureza.
cimento da sociedade civil, o que, assim como a passagem à socieda- No mundo pós-moderno, entretanto, essa dialética entre dentro
de de controle, remete ao declínio das funções medidoras das institui- e fora, entre ordem civil e ordem natural chegou ao fim. Como diz
ções sociais; com o segundo, ocorre a passagem do imperialismo, pro- Fredric Jameson: "0 pós-modernismo é o que se obtém quando o
duzido, inicialmente pelos Estados-nação europeus, ao império, à nova processo de modernização e a natureza desapareceram para sempre"z
ordem mundial, que se entendehoje em torno dos Estados Unidos, com É claro que ainda temos florestas, gafanhotos e tempestades em nos-
as instituições transnacionais e o mercado mundial. Dito de outro so mundo, e ainda temos a idéia de que nosso psiquismo se submete à
modo, quando falo de império entendouma forma jurídica e uma ação de instintos e paixões, mas não temos natureza no sentido que
forma de poder bastante diferente dos velhos imperialismos europeus essasforças e essesfenómenosnão são mais entendidoscomo fora,
Por um lado, segundo a tradição antiga, o império é o poder univer- tampouco percebidos como originais e independentes do artifício da
sal, a ordem mundial, que talvez se realize hoje pela primeira vez. Por ordem civil. Em um mundo pós-moderno, todos os fenómenos e for-
outro, o império é a forma de poder que tem por objetivo a natureza ças são artificiais, ou, como dizem alguns, fazem parte da história. A
humana, portanto o bio-poder. O que gostaria de sugerir é que a for- dialética moderna do fora e do dentro foi substituída por um jogo de
ma social tomada por essenovo Império é a sociedadede controle graus e intensidades, de hibridismo, e artificialidade.
mundial. Em segundo lugar, o fora também entrou em declínio do ponto
de vista de uma dialética moderna bastante diferente, que definia a
NÃO HÁ MAIS FORA relação entre o público e o privado na teoria política liberal. Os espa-
A passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle se ços públicos da sociedademoderna, que constituem o lugar da vida
caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que defi- política liberal, tendem a desaparecer no mundo pós-moderno. Segundo
niam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre a tradição liberal, o indivíduo moderno que está em casa, em seuses-
o dentro e o fora. Trata-se, efetivamente, de um elemento de mudan- paços privados, considera o público como o seu fora. O fora é o lugar
ça geral na maneira pela qual o poder marca o espaço, na passagem próprio da política, em que a ação do indivíduo fica exposta ao olhar
da modernidade à pós-modernidade. A soberania moderna sempre foi dos outros e em que ela procura ser reconhecida. Ora, no processo da
concebida em termos de território -- real ou imaginário -- e da rela- pós-modernização, essesespaços públicos se vêem cada vez mais pri-
ção desse território com seu fora. É assim que os primeiros teóricos vatizados. A paisagem urbana não é mais a do espaço público, do
modernos da sociedade, de Hobbes a Rousseau, compreendiam a or-
dem civil como um espaço limitado e interior que se opõe à ordem
exterior da natureza, ou que dela se destingue. O espaço circunscrito 2 F. ]ameson, Postmodernism, or tbe cultural togic oflate capitalism, Duke
da ordem civil, seu lugar, se define por sua separação dos espaços Duke University Press, 1991, p. IX.

358 Michael Hardt A sociedade mundial de controle 359


encontro casual e do agrupamento de todos, mas dos espaços fecha- separação das tarefas entre os aparelhos exterior e interior do poder
dos das galerias comerciais, das auto-estudas e dos condomínios com centreexército e polícia, entre CIA e FBI) torna-se cada vez mais vaga
entrada privativa. A arquitetura e o urbanismo de certas megalópolis, e mal determinada.
como Los Angeles e São Paulo, tenderam a limitar o acesso público e Em nossas próprias palavras, o fim da história de que fala Fukuyama
a interação, criando, antes, uma série de espaços interiores protegidos marca o fim da crise que está no centro da modernidade, com a idéia
e isolados. Poderíamos igualmente observar que o subúrbio parisiense do conflito coerente -- tendo função de definição -- que foi o funda-
se tornou uma série de espaços amorfos e não-definidos que favore- mento e a razão de ser da soberania moderna. A história terminou pre-
cem o isolamento, em detrimento de qualquer interação ou comuni- cisamente e, apenas, na medida em que é concebida em termos he-
cação. O espaçopúblico foi a tal ponto privatizado que já não é mais gelianos -- como o movimento de uma dialética de contradições com
possível compreender a organização social em termos da dialética es- o jogo de negações e de superações absolutas. Os pares que definiam
paços privados/espaços públicos, ou dentro/fora. O lugar da ativida- o conflito moderno se embaralharam. 0 Outro que podia limitar um
de política liberal moderna desapareceu, e, assim, a partir dessa pers- Eu soberano se estilhaçou, tornou-se indistinto, de modo que não há
pectiva, nossa sociedade imperial pós-moderna se caracteriza por um mais um fora para circunscrever o lugar da soberania. Ao passo que,
déficit do político. De fato, o lugar da política foi desrealizado. durante a Guerra Fria, numa versão exagerada da crise da moderni-
Sob esse aspecto, a análise da sociedade do espetáculo, efetuada dade, todo inimigo imaginável dos clubes de jardinagem para senho-
por Guy Debord há trinta anos, parece mais apropriada e mais pre- ras e dos filmes hollywoodianos até os movimentos de liberação nacio-
mente do que nunca. Na sociedade pós-moderna, o espetáculo é um nal podia ser identificado como comunista, ou seja, como expressão
lugar virtual ou, mais exatamente,um não-lugar da política. O espe- do inimigo unificado. O fora era o que dava coerência à crise do mundo
táculo é simultaneamente,unificado e difuso, de tal modo que é im- moderno e imperialista. Atualmente, é cada vez mais difícil para os
possível distinguir um dentro de um fora -- o natural do social. o ideólogosdos Estados Unidos nomear o inimigo, ou melhor: parece
privado do público. A noção liberal do público como o lugar do fora, que há, em todos os lugares, inimigos menores e imperceptíveis. O fim
onde agimos sob o olhar dos outros, tornou-se ao mesmo tempo uni- da crise da modernidade engendrou uma proliferação de crises meno-
versalizada (pois somos hoje permanentemente colocados sob olhar res e mal definidas na sociedadeimperial de controle, ou, como pre'
dos outros, sob a observação das câmeras de vigilância) e sublimada, ferimos dizer, gerou uma oni-crise.
ou desrealizada, nos espaços virtuais do espetáculo. O fim do fora é, Convém lembrar, aqui, que o mercado capitalista é uma máqui-
assim, o fim da política liberal. na que sempre foi de encontro a qualquer divisão entre o dentro e o
Enfim, na perspectiva do império, ou da ordem mundial atual, é fora. O mercado capitalista é contrariado pelas exclusões e prospera
ainda em um terceiro sentido que não há mais um fora, em um senti- incluindo, em sua esfera, efetivos sempre crescentes. O lucro só pode
do propriamente militar. Quando FrancêsFukuyama afirma que a ser gerado pelo contato, pelo compromisso, pela troca e pelo comér-
passagem histórica que estamos vivendo se define pelo fim da histó- cio. A realização do mercado mundial constituiria o ponto de chega-
ria, ele quer dizer que a era dos conflitos principais terminou; dito de da dessa tendência. Em sua forma ideal, não há um fora do mercado
outro modo, a potência soberananão mais afrontara seu Outro, não mundial: o planeta inteiro é seu domínio. Poderíamos utilizar a for-
mais será confrontada com seu fora, mas, antes, estenderá progress.i- ma do mercado mundial como modelo para compreender a forma da
vamente suas fronteiras até enlaçar todo o planeta com seu domínio soberania imperial em sua totalidade. Da mesma maneira, talvez, com
próprio. A história das guerras imperialistas, inter-imperialistas e anti- que Foucault reconheceu no panóptico o diagrama do poder moder-
imperialistas se fechou. O fim dessa história introduziu o reino da paz. no e da sociedade disciplinar, o mercado mundial poderia fornecer uma
SÓ que na realidade, entramos na era dos conflitos menores e interio- arquitetura de diagrama (mesmo não sendo arquitetura) para o po'
res. Cada guerra imperial é uma guerra civil, uma ação de polícia, de der imperial e a sociedade de controle.
Los Angeles e a ilha de Granada até Mogadício e Sarajevo. De fato, a O espaço estriado da modernidade constrói um lugar perpetua-

360 Michael Hardt A sociedade mundial de controle 361


ittcntcfundado em um jogo dialéticocom o fora e a elesubmetido. O Concebem-se assim, pelo menos implicitamente, os povos dominados
espaço da soberania imperial, ao contrário, é liso. Poderia parecer isen- como diferentes dos humanos, como pertencentesa uma ordem de
to das divisões binárias das fronteiras modernas, ou de qualquer es- seres diferente, de outra natureza. De fato, vêm-nos à lembrança vá-
tria, mas na realidade é atravessado, em todas os sentidos, por tantas rios exemplos de discurso colonialista que descrevem os índios utili-
linhas de fissura que apenas aparentemente constitui um espaço uni- zando-se de qualificativos animais, como não sendo completamente
forme. Neste sentido, à crise claramente definida da modernidade se humanos. Tais teorias racistas modernas, fundadas na biologia, su-
substitui uma oni-crise na estrutura imperial. Nesse espaço liso do bentendem uma diferença ontológica, tendem para tal diferença
império, não há o lugar do poder: ele está em todos os lugares e em entendida como uma ruptura necessária, eterna e imutável na ordem
nenhum deles. O império é uma a-foPla, ou, antes, um não-lugar. dos seres. Em reação a essa posição teórica, o anta-racismo moderno
toma posição contra a noção do essencialismobiológico, afirmando
0 RACISMO IMPERIAL enfaticamente que as diferenças entre as raças são, antes, constituí-
O fim do fora, que caracteriza a passagem da sociedade discipli- das pelas forças sociais e culturais. Esses teóricos anui-racistas moder-
nar à sociedadede controle, revela certamenteuma de suas faces nas nos operam a partir da crença de que o construtivismo social deve nos
configurações que combinam racismo e alteridade em nossas socieda- liberar da camisa-de-forçado determinismo biológico: se nossas di-
des. De início, devemos salientar que se tornou cada vez mais difícil ferenças são determinadas social e culturalmente, então todos os se-
identificar os procedimentos gerais do racismo. Com efeito, ouvimos res humanos são, em princípio, iguais e pertencemà mesma ordem
incessantemente os políticos, a média e até mesmo os historiadores ontológica, à mesma natureza.
afirmarem que o racismo recuou progressivamentenas sociedadesmo- No entanto, a passagem ao império, à sociedade de controle, à
dernas, desde o fim da escravidão até os conflitos de descolonização e pós-modernidade, acarretou um deslizamento na direção dominante
os movimentos pelos direitos civis. Certas práticas tradicionais e es- da teoria racista, de maneira que as diferenças biológicas, como repre'
pecíficas do racismo entraram, sem dúvida alguma, em declínio e se- sentação-chave do ódio e do medo raciais, foram submetidas por sig-
ríamos tentados a identificar no fim das leis do apartheid na África nificantes sociológicos e cu)turais. Desse modo, a teoria racista impe-
do Sul a clausura simbólica de toda uma época de segregação racial. rial surpreende, pela retaguarda, o anti-racismo moderno, e de fato
No entanto, em nossa perspectiva,é evidenteque o racismo não re- coopta e alista seus argumentos. A teoria racista imperial concorda em
cuou, mas, ao contrário, de fato aumentou no mundo contemporâneo, dizer que as raças não constituem unidades biológicas isoláveis e que
tanto em extensão como em intensidade. Ele só pareceter declinado não se poderia dividir a natureza em raças humanas diferentes. Ela
por ter mudado de forma e de estratégias. Se tomamos como para- reconhece igualmente que o comportamento dos indivíduos, suas ca-
digmas dos racismos modernos as divisões maniqueístas entre dentro pacidades e aptidões não são nem o produto de seu sangue nem mes-
e fora e as práticas de exclusão (na África do Sul, na cidade colonial, mo de seus genes, mas se devem ao fato de pertencerem a diferentes
no Sul dos Estados Unidos ou na Palestina), devemosagora colocar a culturas historicamente determinadas3. Assim, as diferenças não se-
seguinte questão: qual é a forma e quais são as estratégias do racismo
riam fixadas nem imutáveis, mas efeitoscontingentesda história so-
na sociedade imperial de controle de hoje? cial. A teoria racista pós-moderna e a teoria anta-racistamoderna di-
Vários analistas descrevem essa passagem como um deslizamen- zem, com efeito, em grande parte a mesma coisa, e é difícil diferenciá-
to, na forma dominantede teoria do racismo,de uma teoria racista las nesse aspecto. Na verdade, é precisamente porque se supõe que essa
fundada na biologia para uma teoria racista baseada na cultura. A argumentação relativista e culturalista seja necessariamente anta-racista
teoria racista dominante na modernidade e as práticas de segregação que a ideologia dominante de toda nossa sociedade parece hoje hostil
que a acompanham concentram-se em diferenças biológicas essenciais
entre as raças. O sangue e os genesconstituiriam, por detrás das di-
ferenças de cor da pele, a verdadeira substância da diferença racial. 3 Cf. E. Balibar e 1.Wallerstein, Rara, nafíon, c/asse, Paris, Découverte, 1988

A sociedade mundial de controle 363


362 Michael Hardt
io ntcismo e que a teoria racista pós-moderna aparentementenão é diferentes. Ela considera isso pura contingência, uma questão práti-
racista de forma alguma. ca. Em outras palavras, a hierarquia entre as raças não é entendida
Deveríamos entretanto examinar mais de perto o modo de fun- como causa, mas como efeito das circunstâncias sociais. Por exemplo,
cionamento da teoria racista imperial. Étienne Balibar caracteriza esse os alunos abro-americanos de determinada região têm, nos testes de
novo racismo como diferencialista, racismo sem raça, ou, mais preci- aptidão escolar, resultados em geral mais fracos do que os alunos de
samente, racismo que não mais se apóia em um conceito biológico de origem asiática. A teoria imperial não enxerga, aí, o resultado de uma
raça. Se a biologia, como fundamento e sustentação do racismo, foi inferioridade racial necessária, mas de diferenças culturais: a cultura
abandonada, a cultura é levada a preencher o papel que a biologia dos americanos de origem asiática atribui à educação uma importân-
ocupava. Estamos habituados a pensar que a natureza e a biologia são cia maior, encoraja os alunos a estudar em grupo, e assim por diante.
fixas e imutáveis, enquanto a cultura é maleávele fluida: as culturas A hierarquia entre diferentesraças só é determinada a posteriori, como
podem mudar na história e se misturar, gerando híbridos infinitamente. efeito de suas culturas, ou seja, a partir de sua performance. Segundo
Há, no entanto, um limite para a flexibilidade das culturas na teoria a teoria imperial, a hegemonia e a submissão das raças não é uma
racista pós-moderna. Em última análise, as diferençasentre as cultu- questão teórica, mas advêm de uma livre competição, de uma espécie
ras e as tradições são insuperáveis.Segundo a teoria racista pós-mo- de lei do mercado da meritocracia cultural.
derna, seria vão, e até mesmo perigoso, permitir ou impor uma mis- A prática racista, sem dúvida alguma, não corresponde necessa-
tura de culturas: servos e croatas, hutus e tutsis, abro-americanose riamente à teoria racista. A partir do que acabamos de ver, no entan-
coreano-americanos devem permanecer separados. A posição cultu- to, é claro que a prática racista, na sociedade de controle, viu-se pri-
ral não é menos "essencialista", enquanto teoria da diferença social, vada de um suporte central: ela não mais dispõe de uma teoria da
do que uma posição biológica, ou, pelo menos, ela estabeleceuma base superioridade racial, entendida como fundadora das práticas moder-
teórica igualmente forte para a separação e a segregação sociais. Tra- nas de exclusão racial. Ora, segundoGilles Deleuzee FénixGuattari:
ta-se de uma posição teórica de um pluralismo indiscutível: todas as
identidades são, em princípio, iguais. Esse pluralismo aceita todas as "0 racismo europeu [...] nunca procedeu por exclu-
diferenças em nossas identidades, sob a condição de concordarmos em são, nem por atribuição de alguém designado como Outro.
agir tendo por base essasdiferenças de identidade, preservando-as, [...] O racismo procede por determinação das distâncias de
assim, como indicadores talvez contingentes, mas totalmente sólidos. desvio, em função do rosto homem branco, que pretende
de separação social. A substituição teórica da raça ou da biologia pela integrar, em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas,
cultura encontra-se, assim, paradoxalmente metamorfoseada em teo- os traços que não ]he são conformes. [...] Do ponto de vis-
ria da preservação da raça. Esse deslizamento para a teoria racista ta do racismo, não há exterior, não há pessoasdo fora".4
mostra-nos como a teoria imperial e pós-moderna da sociedade de
controle pode adorar aquilo que geralmente se concebe como uma De fato, Deleuze e Guattari nos levam, portanto, a conceber a
posição anta-racista-- ou seja, como uma posição pluralista contra prática racista não em termos de exclusão, mas enquanto estratégia
todos os indicadores necessários da exclusão racial --, conservando de inclusão diferencial. Nenhuma identidade é designada como Ou-
ao mesmo tempo um sólido princípio de separação social. tro, ninguém é excluído do campo, não há fora. Se não estamos intei-
Nesse estágio, devemos observar cuidadosamente que a teoria ramente convencidos de que, como pretendem Deleuze e Guattari, esse
racista imperial da sociedade de controle é uma teoria da segregação, foi sempre o caso, essa é, certamente, uma excelentedescrição da con-
e não da hierarquia. Enquanto a teoria racista moderna estabelece. dição da sociedade de controle. Pois assim como a teoria racista pós-
como condição fundamental que torna necessária a segregação, uma
hierarquia entre as raças, a teoria imperial não opina a respeito da
superioridade ou da inferioridade inerentes a raças ou grupos étnicos 4 À4i//ep/afeaax, Paria, Minuit, 1980, p. 218

364 Michael Hardt A sociedade mundial de controle 365


moderna não pode colocar, como ponto de partida, diferenças essen- multiplicidade fluida e amorfa, atravessada, sem dúvida alguma, por
ciais entre as raças humanas, a prática racista imperial não pode co- linhas de conflito e de antagonismo, sem que nenhuma delas apareça
meçar por uma exclusão do Outro racial. O próprio da dominação como fronteira fixa e eterna. A superfícieda sociedadeimperial des-
branca é de enganarinicialmenteo contato com a alteridade para, em loca-se continuamente, de tal forma que ela desestabilizaqualquer
seguida, submeter as diferenças, segundo os graus de afastamento do noção de lugar. O momento central do racismo moderno se produz
elementobranco. Isso nada tem a ver com a xenofobia, que é o ódio e em sua fronteira, na antíteseglobal entre dentro e fora. Como afirmou
o medo face ao bárbaro desconhecido. É um ódio nascido da proxi- W. E. B. Du Bois, há quase cem anos, o problema do século XX é o
midade, e que se desenvolvea partir dos graus de diferençaem rela- problema da barreira da cor. Mas o racismo imperial, pensando tal-
ção ao vizinho. vez antecipadamente no próximo século, repousa, antes, no jogo das
Isso não significa que nossas sociedades estejam completamente diferenças e na gestão de microconflitualidades em uma zona de con-
isentas de exclusão racial; elas são seguramente percorridas por nu tinua expansão.
merosas linhas constituindo obstáculos raciais, em todas as paisagens É claro que há muitas pessoas em todo o mundo para as quais o
urbanas, no mundo inteiro. O que é importa é, portanto, que a exclu- relativismo racial do império e seu movimento primeiro de inclusão
são racial geralmente aparece como resultado da inclusão diferencial. universal são, por si só, ameaçadores. Estar fora oferece certa prote-
Hoje seria um erro colocar, como paradigma da hierarquia racial, as ção, certa autonomia. Nesse sentido, pode-sever na emergência de
leis do aparfbeid sul-africano ou o código segregacionistaque existia diversos discursos da diferença, racial ou étnica, essencial ou original,
no Sul dos Estados Unidos. A diferença não está inscrita no texto das uma reação de defesa contra a inclusão imperial. Tanto o confucio-
leis, e a imposição da alteridade não chega ao ponto de designar al- nismo em expansão na China como os fundamentalismosreligiosos
guém como Outro. O império não pensa as diferenças em termos ab- nos Estados Unidos e no mundo árabe fundam, a seu modo, a identi-
solutos: ele jamais coloca as diferenças raciais como diferença de na- dade do grupo em origens antigas e, em última instância, como inco-
tureza, mas sempre como diferença de grau; ele jamais as coloca como mensurável em relação ao mundo exterior. Ê assim que se habituou a
necessárias, mas sempre como acidentais. A submissão é efetuada nos compreender os conflitos étnicos em Ruanda, nos Bálcãs e mesmo no
regimes de práticas cotidianas mais móveis e flexíveis, mas que criam Oriente Médio como o ressurgimento de alteridades antigas, irrefreáveis
hierarquias racionais não menos estáveis e brutais. e irreconciliáveis. Mas, em nosso ponto de vista, tais diferenças e con-
A forma e as estratégias adotadas pelo racismo pós-moderno flitos não poderiam ser compreendidos no contexto de origens perdi-
contribuem para evidenciar, de maneira mais geral, o contraste entre das na noite dos tempos; é preciso, ao contrário, recoloca-los na con-
soberania moderna e soberania imperial. O racismo colonial, o racis figuração imperial de hoje. O império sempre aceita as diferenças ra-
mo da soberania moderna, começa por empurrar a diferença até o ciais e étnicas que encontra, e sabe utiliza-las; mantém-se à distância,
extremo; a seguir, em um segundo momento, ele recupera o Outro observa essesconflitos e intervém quando um ajuste se faz necessário.
como fundamento negativo do Eu. A construção moderna de um povo Toda tentativade permaneceroutro, com relaçãoao império, é vã. O
se encontra estreitamenteimplicada nessaoperação. Um povo não se império se nutre de alteridade, relativizando e gerindo-a.
define somente em termos de passado comum e desejos ou potencial
comuns, e sim, antes de mais nada, em uma relação diabéticacom seu DA GERAÇÃO E CORRUPÇÃODA SUBJE'nV]DAOE
Outro, seu fora. Um povo -- quer seja diaspórico ou não -- se define O fim do fora, ou a ausência gradual de distinção entre dentro e
sempre em termos de um lugar, seja ele virtual ou real. Já a ordem fora, na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de con-
imperial nada tem a ver com essa diabética.Na sociedade de controle. trole, [em importantes implicaçõespara a forma da produção social
o racismo imperial ou diferencial integra os outros em sua ordem e, da subjetividade. Uma das teses centrais mais comuns nas análises
em seguida, orquestra tais diferenças em um sistema de controle. As institucionaisde Deleuze e Guattari, Foucault, Althusser e outros, é
noções fixas e biológicas dos povos tendem, pois, a se dissolver em uma que a subjetividade não é originária, dada a Pr/ori, mas se forma pelo

366 Michael Hardt A sociedade mundial de controle 367


nIcHos até um certo ponto, no campo das forças sociais. As subjetivi- te do que nunca. Poderíamos dizer que o pós-modernismo é o que
tladesque interagem no plano social são substancialmentecriadas pela obtemosquando a teoria moderna do construtivismo social é levada
sociedade. Nesse sentido, tais análises institucionais gradativamente ao extremo e toda subjetividade é reconhecida como artificial. A pas-
esvaziaram de seu conteúdo qualquer noção de subjetividade pré-so- sagem não é, portanto, de oposição mas de intensificação. Como dis-
cial para enraizar firmemente a produção da subjetividade no funcio- semos acima, a crise contemporânea das instituições significa que os
namentodas principais instituiçõessociais, tais como a prisão, a fa- espaços fechados que definiam o espaço limitado das instituições dei-
mília, a fábrica e a escola. Deve-se enfocar dois aspectos desse processo xaram de existir, de maneira que a lógica que funcionava outrora prin-
de produção. De início, não se considera a subjetividadecomo algo cipalmente no interior dos muros institucionais se estende,hoje, a todo
fixo ou dado. ,Ê um processo de constanteengendramento,.Quando campo social. Caberia, no entanto, observar que esta oni-crise das
você é cumprimentado pelo seu chefe na oficina, ou é chamado no instituiçõesvaria muito de acordo com o caso. Por exemplo, nos Es-
corredor pelo diretor do colégio, uma subjetividade se forma, As prá- tados Unidos, a proporção da população implicada em uma família
ticas materiais oferecidas ao sujeito no contexto da instituição -- quer de tipo nuclear decresce constantemente, enquanto a proporção da
se trate de ajoelhar-se para rezar ou de trocar centenas de fraldas população carcerária cresce de maneira constante. Mas pode-se tam-
formam o processo de produção de sua própria subjetividade. De ma- bém dizer dessas duas instituições, família nuclear e prisão, que am-
neira reflexiva, o sujeito é, portanto, submetido à ação, engendrado bas estão igualmente em crise em todos os lugares, no sentido de que
através de seus próprios atos. Em seguida, as instituições fornecem o lugar de sua efetividade é cada vez mais indefinido. Os muros das
sobretudo um /ngar discreto (o lar, a capela, a sala de aula, a oficina) instituições desabam; de modo que se torna impossível distinguir fora
onde se opera a produção da subjetividade. As diversas instituições da e dentro. Não se deveria pensar que a crise da família nuclear tenha
sociedade moderna deveriam ser consideradas como um arquipélago acarretado um declíniodas forças patriarcais; pelo contrário, os dis-
de fábricas de subjetividade. No decurso de uma vida, um indivíduo cursos e as práticas que invocam os "valores da família" parecem in-
entra nessas diversas instituições (da escola à caserna e à fábrica) e delas vestir todo o campo social. A crise da prisão significa igualmente que
saem de maneira linear, por elas formado.ICada instituição tem suas as lógicas e técnicas carcerárias se estenderam, progressivamente,a
regras e lógicas de subjetivação: "A escola nos diz: 'Você não está mais outros campos da sociedade.A produção da subjetividade na socie-
na sua família'; e o exército diz: 'Você não está mais na escola'5. Em dade imperial de controle tende a não se limitar a lugares específicos.
contrapartida, no lado de dentro dos muros de cada instituição, o in- Continuamos ainda em Áam17ia,na escola, na prisão, e assim por diante.
divíduo está pelo menos parcialmente protegido das forças das outras Portanto, no colapso generalizado, o funcionamento das instituições
instituições -- no conventos em princípio se está em segurança em é, ao mesmo tempo, mais intensivo e mais disseminado. Assim como
relação ao aparelho da famílias em casa, em princípio se está fora do o capitalismo, quanto mais elas se desregram melhor elas funcionam.
alcance da disciplina da fábrica/ A relação entre dentro e fora é cen- De fato, começa-sea saber que a máquina capitalista só funciona se
tral para o funcionamentodas instituiçõesmodernas;com efeito,o esfacelando. Suas lógicas percorrem superfícies sociais ondulantes, em
lugar claramente delimitado das instituições se reflete na forma regu- ondas de intensidade. A não-definição do /usar da produção corres-
lar e fixada das subjetividades produzidasi ponde à indeterminação da /erma das subjetividades produzidas. As
Na passagem para a sociedade de controle, o primeiro aspecto instituições sociais de controle no império poderiam, portanto, ser
da condição disciplinar moderna ainda é válido, certamente, quer di- percebidas em um processo fluido de engendramento e de corrupção
zer, as subjetividades continuam a ser produzidas na fábrica social. De da subjetividade.
fato, as instituições sociais produzem subjetividade mais intensamen- O controle é, assim, uma intensificação e uma generalização da
disciplina, em que as fronteiras das instituições foram ultrapassadas,
tornadas permeáveis, de forma que não há mais distinção entre fora e
s Idem p. 254. dentro. Dever-se-ia reconhecer que os aparelhos ideológicos de Esta-

368 Michael Hardt A sociedade mundial de controle 369


tlo também operam na sociedadede controle, e talvez com mais in- certa efetividade. Mas pouco importa: a pós-modernização imperial
tcltsidadee flexibilidadedo que Althusser jamais imaginou. faz disso tudo, irrevogavelmente, algo do passado. Tendencialmente,
Tal passagem não se restringe apenas aos países economicamente a sociedade de controle está, em todos os lugares, na ordem do dia.
mais avançados e poderosos, mas tende a se generalizar no mundo
inteiro, em diferentes graus. A apologia da administração colonial CONCLUSÕES
visava à criação de instituições sociais e políticas nas colónias. As for- Gostaria de propor três hipótesesem relação à sociedadesde
mas não-coloniais de dominação contemporânea implicam igualmente controle -- três hipóteses embrionárias, mas que talvez possam con-
a exportação de instituições. O prometode modernização política nos tribuir para o debate. Prime/ra blpófese. A sociedade de controle jim-
países subdesenvolvidos ou dependentestem como finalidade princi- perial ou pós-moderna) se caracteriza pela corrupção. Já a sociedade
pal estabelecer um conjunto estável de instituições que estão consti- moderna, como se sabe, se caracterizava pela crise, ou seja, por uma
tuindo a espinha dorsal de uma nova sociedade civil. É necessáriolem- contradição bipolar e uma divisão maniqueísta. Pensem, se quiserem,
brar que os regimes disciplinares necessários para estabelecero siste- na Guerra fria ou no modelo moderno do racismo. A sociedade de con-
ma taylorista mundial de produção exigiram a existência de toda uma trole, ao contrário, não se organiza em torno de um conflito central,
gama de instituições sociais e políticas. Não é difícil apontar exemplos mas em uma rede flexível de microconflitualidades. As contradições,
dessa exportação, direta, individualizada, de instituições (que apenas na sociedadeimperial, são múltiplas, e proliferam em todos os luga-
indicam um processo mais geral e difuso), em que instituições-mães res. Os espaços dessa sociedade são impuros, híbridos. O conceito que
dos Estados Unidos e da Europa adotam e protegem instituições ain- a caracteriza, portanto, não é o de crise, mas o de oni-crise ou, como
da balbuciantes: sindicatos oficiais, como a AFL formam e estimulam prefiro dizer, de corrupção.
sucursais estrangeiras; economistas do mundo desenvolvido contribuem Não se deve dar aqui um sentido nem oral nem apocalítico ao
para a criação de instituiçõesfinanceiras e ensinama responsabilida- conceito de corrupção. É preciso concebê-lo à maneira de Aristóteles,
de fiscal; e até mesmo parlamentos e o Congresso dos Estado Unidos como o processo inverso ao da geração, como um devir dos corpos,
ensinam as formas e os procedimentos de governo. Em suma, enquanto um momento no vaivém da formação e deformação das subjetivida-
no processo de modernização os países mais poderosos exportavam, des. É necessário pensa-lo, portanto, segundo sua etimologia latina:
para os países dependentes, formas institucionais, no atual processo com-rumPere, esfacelar-se. Se a máquina capitalista só funciona se esfa-
de pós-modernização o que se exporta é a crise geral das instituições. relando, como bem dizem Deleuze e Guattari, a sociedade de contro-
A estrutura institucional do império é como um programa de compu- le também se esfacela e só funciona se esfacelando. Eis sua corrupção.
tador que conteria um vírus, de forma que ele modulada e corrompe- Sega/zdablpótese. A sociedade de controle representa uma eta-
ria continuamente as formas institucionais que o cercam. Devemos pa posterior em direção a uma sociedade propriamente capitalista, no
esquecer qualquer noção de sequência linear de formas pelas quais cada sentido de que ela propõe uma forma de soberania ou uma forma de
sociedade deveria passar -- do suposto "estágio primitivo" até a "ci- governo que tende para o campo de imanência. Ora, parece-me que,
vilização" --, como se, atualmente,as sociedadesda América Latina na época moderna, sempre houve um conflito entre a transcendência
ou da África pudessem tomar a forma que a sociedade européia tinha da soberania e a iminência do capitalismo. O conceito de soberania
há cem anos. Cada formação social contemporânea está ligada a to- moderna sempre marcou uma transcendência, ou seja, uma superio-
das as outras, como parte do projeto imperial. Aqueles que hoje exi- ridade e uma distância entre o poder Ido Estado por exemplo) e as
gem com veemênciauma nova constituição da sociedadecivil, como potências da sociedade. Até mesmo a noção de instituição na socie-
meio de transição para se sair dos Estados socialistas ou de regimes dade disciplinar, com sua territorialização e estriamento do espaço so-
de ditadura, são simplesmente nostálgicos de um estádio anterior da cial, indicava uma certa distância, uma certa transcendência em rela-
sociedade capitalista e estão presos ao sonho de uma modernização ção às forças sociais imanentes. Já o capitalismo não é uma forma trans-
política que de fato não era assim tão cor-de-rosa quando ainda tinha cendente. Segunde Deleuze e Guattari: "o capitalismo define um campo

370 Michael Hardt A sociedade mundial de controle 371


de imanência e não pára de preencher esse campo. Mas esse campo OS DUALISMOS HOJE EM DIAS
desterritoria[izado se encontra determinado por uma axiomática [...]"6' Fredric Jameson
O desmoronamento dos muros das instituições que caracteriza a pas-
sagem para a sociedade de controle constitui uma passagem para o cam-
po de imanência, para uma nova axiomática social, talvez mais ade-
quada a uma soberania propriamente capitalista. Mais uma vez, como
o próprio capitalismo, a sociedadede controle só funciona se esface-
lando. Com a sociedadede controle, chegamos, enfim, a uma forma Tendo decidido começar por uma crítica, se não do próprio De-
de sociedadepropriamente capitalista, que a terminologia de Marx leuze ou de sua obra, ao menos de suas relações com a instituição fi-
denomina a sociedade da subsunção real. losófica, faço questão de preceder esta crítica pela expressão da ad-
Terceira e ú/tema blpófese. Não se pode pensar a sociedade de miração sem limites que em mim provocam essestextos extraordiná-
controle sem se pensar o mercado mundial. O mercado mundial, segun- rios, que, hoje em dia, nada perderam de sua virulência, de sua ener-
do Marx, é o ponto de partida e o ponto de chegada do capitalismo. gia provocadora -- ainda que a situação anual, muito diferente daquela
Com â sociedade de controle, chegamos finalmente a esse ponto, o do final dos anos 60, dos quais CaPifzz/limoe esquizofreniacontinua
ponto de chegadado capitalismo. Como o mercado mundial, ela é uma sendoum sintoma e uma expressãode raro valor, obrigue-nosa lê-
forma que não tem fora, fronteiras, ou então possui limites fluidos e los de outro modo. E por isso que, embora outrora tenha havido uma
móveis. Para retomar o título de minha exposição, a sociedade de con- política deleuzeana, uma política guattariana, uma esquizopolítica, e
trole já é, de modo imediato, uma sociedade m laia/ de controle. até mesmo uma esquizoanálise da política, renunciarei ao fantasma
desse passado remoto; não falarei mais de uma política deleuzeana
possível, mas das conseqüências anuais de uma leitura de Deleuze para
Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz uma política a ser reinventada.
Primeiramente, vou me ater a um outro tipo de texto, por demais
impressionante face ao c07Pns doravante associado a seu nome (e ao
de Guattari). Pois embora sempre tenha havido críticas e conseqiiên-
cias metodológicas em toda sua obra, a idéia de método está, em ge-
ral, sempre ligada às análises concretas que o justificam apor exem-
plo, na distinção entre ciências reais e ciências menores, decorrente da
grande dualidade Estado-nomadismo).
Por isso é desencorajante encontrar, ao cabo do mais ambicioso
prometode Deleuze (trata-se de seu penúltimo livro antes da colabora-
ção com Guattari), estaafirmaçãorelativaao papelda filosofia:

"Os conflitos, as oposições, as contradições nos pare-


ceram efeitos de superfície, epifenâmenos da consciência, ao
passo que o inconsciente vive problemas e diferenças. A His-

l Por questões de tempo, tive de renunciar a rever essetexto, publicado aqui


6 l,'a/zfi-(Edfpe, Paras,Minuit, 1973, p. 298. na forma em que foi proferido.

372 Michael Hardt Os dualismos hoje em dia 373


tória não passa pela negação, e pela negação da negação, concreto, é estar ligado à totalidade do ser; a contingência do proble-
mas pela decisão dos problemas e pela afirmação das dife- ma individual, que marca o formalismo da metodologia,se transfor-
renças [...] É um erro ver nos problemas um estado provi- mará assim em uma necessidadeinterior profunda, dotada de um con-
sório e subjetivo, pelo qual nosso conhecimento deveria teúdo, ou antes, do conteúdo que traz em si sua justificação, o único
passar em razão de suas limitações de fato... "(DI/Hérence que permite escapar ao formalismo filosófico.
ef répéffflon, pp. 344 e 359.) Parecerá, sem dúvida, grotesco ou inusitado evocar Hegel para
comentar essa obra que, tantas vezes, proclamou-se antidialética: mas
Existe em Deleuze, ou ao menos nesse Deleuze, uma teoria bas- creio que a passagem à totalidade que acabo de evocar opera em De-
tante complexa do problema e da problemática. Nada impede que essa leuze quando, para além de seus próprios livros sistemáticos, no auge
distribuição, atribuindo ao filósofo e à filosofia a capacidade de re- dos anos 60 (isto é, no início dos anos 70), a colaboração com Guat-
solver todos os problemas possíveis pelo arbitramento de seu saber, tari Ihe oferecerá, justamente, o meio de apresentar o problema do
seja não somenteantiga e tradicional, mas formalista e formalizante problema como problema da totalidade, de conceber a D.zrsfe//u/zg,
tarro quanto possível. A concepção do "problema" não tem conteú- ou apresentação/representaçãodesta, de outro modo e de maneira ra-
do, pela simples razão de que o futuro ainda não adveio, e ninguém dicalmente nova, de reinventar um conteúdo para a própria filosofia.
sabe ainda a quais problemas estará submetido. Esse limite -- presente Quem diz "conteúdo", também diz, inevitavelmente, "política";
em Kant e em Aristóteles, e até mesmo em Hegel -- condena a filoso- não saberíamos reapresentar o problema da totalidade sem passar pela
fia enquanto tal, induzindo a passagem àquelas ciências ou àquelas política, mas também pela estética, matemática, semiótica, história,
pretensas ciências mais fortemente marcadas por um conteúdo con- geografia, história das ciências e assim por diante, em um movimento
creto e específico,como a sociologia. A filosofia como simples pro- de superposição ad in/i /fzzm,que a teoria do "platâ" virá justificar
pedêutica ao método, com filósofos que pensarão por vocês e a quem posteriormente. Penso, entretanto, que é preciso ser prudente ao se
podemos levar enigmas, paradoxos, contradições conceituais de todo extrair posições políticas atuantes nessa vasta síntese, ou antes, nessa
tipo, fora do alcancedessesseres práticos e cotidianos, não-filósofos, espéciede pós-sínteseintitulada Capízalismo e esq lzoÁre/zla.Tal como
que somos a todo instante -- eis o sintoma da crise da filosofia e de na mais antiga filosofia clássica, poderemos perceber duas espéciesde
sua legitimação no mundo moderno. doutrinas, duas ordens de consequências, de modo que uma doutrina
Não é nada comum ver em Deleuze um formalista, e temos o política esotérica confrontar-se-á com uma doutrina política exotérica
direito de nos surpreender por essa passagem no limite, por essa con- ou pública, popular, vulgar ou vernacular, como veremos. É nesse
fissão de "metodologismo" em um pensador cujo pensamento oferece, segundo sentido que, frequentemente,se considerou os dois tomos
aliás, uma grande riqueza de referências e conteúdos concretos. Ora, dessaobra extraordinária como a mais brilhanteexpressãoe formali-
o que me interessa hoje é a maneira brilhante e exemplar pela qual zação de uma ideologia que subentende a atividade política dos anos
Deleuze consegue escapar ao formalismo, e também o preço concep- 60 em geral-- a saber, a micropolítica de um lado, com a política dos
tual que Ihe será imposto por essa "linha de fuga" e, se ouso dizer, por "grupos-sujeitos" e, até mesmo, dos grupúsculos, e, de outro, a hosti-
essa desterritorialização do campo da própria filosofia. lidade implacável contra o poder, contra o Estado, contra tudo aqui-
Espero não chocar ninguém lembrando que foi Hegel (tão pisa- lo que se relaciona com o autoritarismo, para não dizer com o fascis-
do e maltratado por Deleuze e outros pensadores ditos pós-estrutura- mo, o stalinismo, o estatismoou com a nostalgia do Estado forte etc.
listasl que nos teria explicado a solução do formalismo do problema A seguir, tentaremos propor outro sistema de implicações e de
e da problemática. Para que uma metodologia encontre um conteúdo consequências políticas mais "esotéricas", menos imediatamente ideo-
verdadeiro, elenos diz, em suma, que é preciso que o problema espe- lógicas e práticas, menos ligadas à política dos anos 60, a fim de re-
cífico que ela se atribui esteja ligado à totalidade dos problemas que escrever Deleuze e Guattari para servir a nossos dias, em um contex-
constituem o próprio mundo. Ter um conteúdo, ser de algum modo to de capitalismo tardio e do sistema da globalização, nesta situação

374 Fredric Jameson Os dualismos hoje em dia 375


onde a opinião corrente, se não universal, espera que a antiga políti, nesse mesmo terceiro estágio, não há análise política possível, nem
ca de classes, e em particular a idéia de revolução, tenha se tornado programa ou previsão dignas de confiança. Daí o precioso caráter das
impossível. indicações de Deleuze e Guattari em 1980, quando eles tentaram teo-
Esta leitura esotérica de Deleuze e Guattari passará, inevitavel- rizar a possibilidade de um novo momento do sistema; o que fizeram
mente, por aquilo que eles mesmoschamaram de noo/orla, ou seja, principalmente em relação à tecnologia cibernética. Mas o resultado
"o estudo das imagens do pensamento e de sua historicidade" (À4f//e não é concludente. Ainda mais porque nossos autores em geral não
p/afeaux, 446). Voltaremos a ela, assim que dissermos por que a ideo- evocam essas mutações relacionando-as à periodização, mas antes, a
logia política exotérica ou popular dos anos 60 não nos parece mais sua coexistência ou sincronia múltipla e estrutural. Penso que seria no
adequada aos novos e inéditos problemas da época contemporânea ou, segundo tomo do livro sobre o cinema que deveríamos procurar uma
se preferirem, pós-contemporânea. O que fez a força dos anos 60, com meditação deleuzeana sobre as formas e as possibilidades inéditas da
efeito, foi a possibilidade de uma espécie de frente popular contra o época atual. Ê uma análiseindispensávelque não teremos a satisfa-
Estado, este "atuante" complexo, no qual a psicologia autoritária e ção de empreender aqui.
patriarcal se mistura com o capital e o fascismo latente ao colonialis- Voltemos, portanto, a Àli/ P/afãs. Nos quinze anos que se pas
mo e ao imperialismo. Essa frente popular englobará estudantes e ope' saram desde a publicação dêsse livro imenso, muitas coisas mudaram
rários, misturando os minoritários de todas as espéciese de todos os na produção teórica, e é nesseespírito que gostaria de interroga-lo.
sexos aos colonizados e aos dominados. Esse modelo ideológico pos- Aquilo que chamamos teoria, ou discurso teórico, representa uma
sui, além do mais, a vantagem de poder ser transposto para o Leste, espécie de suplemento ao discurso filosófico, suplemento que tende,
onde, então, os soviéticos serão identificados com o Estado e os dissi- em parte, a negar sua origem e se distanciar da filosofia enquanto tal,
dentesde todos os tipos com os nâmades. Pois são os nâmades que da qual ele representa tanto a crítica e a negação como a continuação
formarão o outro termo desseconflito grandioso e mítico, e que se- em outras formas. Há, portanto, uma certa tomada de posição em todo
rão tema de algumas das mais sutis passagensde MI/ P/afãs. Todos os discurso teórico, que diz respeito, essencialmente,ao estatuto da abs-
recursos da dialética de Deleuze e Guattari serão utilizados para de- tração nessesdiscursos. Lembro, antecipadamente,o enorme papel
monstrar que a máquina de guerra nomádica não tem a guerra como desempenhado pelo problema da abstração em À,í//P/afãs, um livro
objetivo, e que os trabalhadores infeudados à máquina capitalista pos' que termina com a discussão da teoria da arte abstrata em Wõrringer
suem alguns dos indícios e traços do nomadismo enquanto tal. é o ponto de partida de uma análiseda arte nõmade--, mas se
A fraqueza dos grandes movimentosdos anos 60 no mundo foi desenvolve, inicialmente, a partir da noção de desterritorialisação, já
também esta: ter reduzido a economia política à política, ter privile- desenvolvida no Azzfl-Édlpo. Ora, a noção de desterritorialização de-
giado as instâncias do poder e da dominação, a ponto de abandonar sempenha aí, exatamente, o papel da abstração, substituindo-se a sua
as análises econâmii:as; em suma, ter substituído o Estado, como alvo, função, a saber, o ato de extrair um fenómeno, um abeto,um traba-
pelo próprio capitalismo. Mas é verdade que foi apenas nos anos se- lho ou um procedimento, um conceito ou um termo, de seu contexto
guintes, nesseperíodo de transição que vai do fim dos anos 60 até o territorial, para desenvolvê-lo alhures em uma certa independência ou
limiar das orgias dos anos 80, financeiras entre outras, que o capital autonomia flutuante. O processo de abstração é, portanto, central para
mundial dispensou sua máscara política e se revelou em sua identida- À4f/P/afãs, assim como para toda filosofia que procura extrair con-
de de globalização, de transnacionalidade económica, de especulação ceitos gerais do fluxo da empina.
financeira etc., isto é, com a face que dele conhecemos hoje em dia. Prender-me-ei-- quinze anos após a publicação do livro -- à
Esta transformação estrutural do capitalismo, ou se preferirem, essa maneira pela qual essa obra antecipa certos desenvolvimentos teóri-
passagem do capitalismo a seu terceiro estágio, o atual, é, a meu ver, cos nos Estados Unidos, que acontecerão durante o período posterior,
o dado mais importante para a situação política presente: sem análise o qual, geralmenteé caracterizado por um recuo da teoria, até mes-
dessas transformações, com a persistência das estruturas do capital mo por uma condenação de seus procedimentos e pretensões. Limito-

376 Fredric Jameson Os dualismos hoje em dia 377


mc aos Estados Unidos, esperando, entretanto, que esta referência tenha Poderíamos citar as cartas de Benjamim como uma refutação da idéia
ao menos algumvalor informativopara o Brasil e a França. Creio que, segundo a qual o recuo da forma teórica seria o signo da retirada face
com efeito, a reação intelectual foi um fenómeno mundial, e que vo- ao engajamento político. Mas a situação histórica é inteiramente ou-
cês encontrarão numerosas analogias com os sintomas e indícios que tra, e mantenho meu diagnóstico, cujo objetivo era o de nos recondu-
me encarregarei de apresentar brevemente. Aquilo que chamamos de zir às práticas discursivas de Mf/ P/afãs.
o "neo-historicismo americano" parece-me oferecer os traços mais sig- Pois nada é mais surpreendente, ao voltarmos a ele, depois de uma
nificativos a esse respeito, tanto mais que, do ponto de vista político, estada junto aos neo-historicistasamericanos, do que essa estrutura
não se pode dizer que essa escola ou movimento seja "reacionária". de colagem ou de montagem em Deleuze e Guattari: imensos blocos
Ao contrário, de proveniência vagamente marxista, de inspiração fou- de materiais de toda espécie aí estão lado a lado, das teorias matemá-
caultiana, com sua pretensão antiformalista fazendo contrapeso ao ticas aos construtores de catedrais, da química aos índios guaranis, dos
pretenso formalismo extremo da desconstrução derridadiana -- hou- livros sobre estratégia militar às citações dos poetas americanos leal;
ve uma época em que os intelectuaisamericanos estavam mais ou me- a seguir, a linguística, a religião, a numismática, a arqueologia, a mú-
nos divididos entre essas duas escolas --, o neo-historicismo oferece sica, a pintura, a história das ciências... tudo isso misturado confusa-
um exemplo interessantee significativo de um movimento que se afirma mentecom uma prática jocosa e onívora da leitura, e com uma pai-
progressista, mas cuja prática recuaria diante das interpretações abs- xão quase faustiana de apropriação das ciências que termina por ins-
tratas, quando estas vendessema se transformar em s/ogans. É uma pirar ao leitor uma dilatação do espírito e dos pulmões, produzindo
reticência talvez comparável àquela das críticas literárias que, sendo uma espécie de ação física e jubilatória do apossamento mental do
de esquerda, são avessas a procurar um conteúdo político em uma obra próprio mundo. Mas essa paixão é propriamente teórica, pois, dife-
de arte. Assim, tudo aquilo que diz respeito a arcabouços teóricos é, rentementedo neo-historicismo, encontraremos aqui uma vontade
de algum modo, banido da corrente neo-historicista, e seus animado- desmedida de tudo teorizar, de fazer tudo passar pela máquina teóri-
res desenvolveram pouco a pouco um curioso tipo de estética. E uma ca, pelo aparelho interpretativo; um desejo de tudo transformar em
estética da colagem, se não da montagem: justapõem-se textos de uma discurso teórico e em filosofema, se não em filosofia enquanto tal. Essa
grande variedade de fontes -- tanto arquivísticas como documentos paixão também, pode scr caracterizada como uma verdadeira paixão
literários; narrativas de viagens ladeiam manuais de medicina, gramá- pela totalização, no sentido que Sartre dava a esse termo doravante
ticas de línguas estrangeirasjustapõem-se a textos jurídicos --, um suspeito, e que seria, certamente, recusado pelos autores de Mi/ P/afãs.
pouco à maneira de Foucault em algumas de suas "histórias", mas sem Quem não vê, com efeito, em nossos dias, que todas essas paixões são
querer afirmar uma teseespecífica. A tesefoucaultiana é transforma- profundamente suspeitas, da interpretação à totalização, da própria
da em temática geral do poder, veiculada por fragmentos escolhidos teoria a esse apetite sem limites por todos os conhecimentos científi-
de arquivos e destinada a ser complementada por uma espécie de re- cos do mundo atual? Foi a essas paixões que nossos neo-historicistas
presentação,onde a intervençãode uma interpretaçãoforte ou abs- e aqueles que entre nós delas se valem -- tanto etnólogos como críti-
trata não é desejável por razões, se ouso dizer, estéticas ou formais. O cos literários, cu/rural sfndfes ou história social --, sabiamente, renun-
método de colagem/montagem remonta às origens da arte moderna, ciaram. Poderíamos ver nesse desenvolvimento uma mudança cíclica
e podemos citar, no século XX, Ezra Pound ou Sergei Eisenstein como do gosto, tal como encontramos em todas as épocas? Poderíamos, além
precursores que foram, também, os principais teóricos das práticas es- do mais, identificar em Deleuze e Guattari uma espécie de contradi-
téticasque ilustraram. Decerto, existeigualmenteno domínio daqui- ção interior entre o instinto de teorização e essa desconfiança quase
lo que se chamará mais tarde "teoria" um exemplo ilustre de aplica- positivista diante das grandes teorias e face à abstração que acabou
ção dessas práticas de colagem e de montagem à análise filosófica de por estender sua hegemonia sobre o mundo atual? Nesse caso, Mi/
uma época cultural -- falo da obra de Walter Benjamin e de seu últi- /p/afãsseria como o último p;oduto de um dilaceramento interior,
mo prometo,imenso e fragmentário, sobre as passagense as arcadas. conferindo-lhe sua grandeza única, ao mesmo tempo que Ihe impedi-

378 Fredric Jameson Os dualismos hoje em dia 379


ria outra realizaçõesdessegênero, permitindo, em compensação,ou- tal ou tal passagem: essas tiradas contra Freud devem ser de Guattari;
tro tipo de colagemmais inofensiva e como que arquivística... essa outra observação mais "filosófica", no sentido cotidiano da pa-
É preciso, agora, falar do dualismo. Pois, desde o início, é o dua- lavra, só pode ser de Deleuze; ou, quem sabe, eles fiquem excitados,
lismo que urde e organiza esse material imenso e variado, a ponto de como nos diálogos de Diderot, exaltam-see se deixam levar, provo-
estarmos tentados a sugerir que, ao menos aqui, a paixão teórica, o cam-se para enunciar as mais ultrajantes enormidades...? Mas creio
desejo nomeado teoria, é também a paixão do dualismo e das dua- que aqui lidamos antes com o silêncio do autor, com a mútua anula-
lidades, paixão quase metafísica que marca todas as páginas do em- ção dessas duas vozes, em prol de um discurso anónimo que não é mais,
preendimento, da dualidade revolução/fascismo, esquerda e direita, até precisamente, uma voz, nem no sentido humanista, nem no sentido --
a grande dualidade da esquizofrenia e da paranóia no primeiro tomo, à Bakhtin -- do charivari de vozes de uma coletividade selvagem.
resgatadae transformada" (auÉgebobefzlem Mi/ P/ates, segundo a Seja como for, as dualidades, os dualismos em sua inaudita pro-
dimensão coletiva do entrecruzamento imemorial dos nâmades e do liferação, devem ser examinadas não somente por seu conteúdo local,
Estado. mas também como e enquanto processo de proliferação e de auto-
Tratando-se das fontes desses dualismos, que irão, por sua vez, multiplicação; e segundo o programa dito noológico, como forma
sedualizar e se multiplicar, como logo veremostenho a idéia inusita- diagramáticaentrando em contradição com outras formas. Evidente-
da de que eles são, igualmente, como que o eco e o rastro dessa pro' mente, não teremos a possibilidade de examinar isso de modo satis-
dução em colaboração. Com efeito, foi dito e mostrado com frequên- fatório, nem mesmo de citar as passagens mais interessantes para nosso
cia quc todo texto dito moderno -- texto, portanto, por princípio des- propósito.
territorializado, arrancado às convenções e ao estatuto social da lite- Mesmo assim, daremos algumas indicações. Em À4i/ P/dós, a
ratura oficial -- traz, talvez por isso mesmo, a mensagem suplemen- teoria semiótica mobilizada, como uma espéciede método, mas sobre-
tar de sua própria produção e veicula, no plano da conotação, qual- tudo como um desafio e todo um programa em si -- é a pretensa glos-
quer coisa como o decalque desse processo de produção inédito. Não semântica de Hjelmslev --, longe de enfraquecer ou anular o dualismo
que haja um sentidoprofundoda obra, ou da expressãode seusdi- implícito no ponto de partida saussuriano (significante-significado),
versos conteúdos, mas há uma harmonia, entre outras, tênue e distante, excedee profeta esse dualismo para além de sua inércia inicial. É uma
dimensão excessiva e supérflua, complementar e contraditória ao mes- estratégia bastante singular, comparável às críticas e desconstruções
mo tempo, a qual, muitas vezes, entre as mensagens e significações com- de Hjelmslev e da linguística em geral, que encontramos em outros
plexas, deixa-se captar em demasia, excesso de texto que não visa, cer- autores contemporâneos: pois Deleuze e Guattari, ao mesmo tempo
tamente, "designar-se", como sugeriram algumas vezes os mais com- que exacerbam, ad i/z/i/zifum,a multiplicação dos dualismos, visam
placentesteóricosdesse fenómenomisteriosoque, vez por outra, é reter o conteúdo dos signos. Portanto, no final das contas, será Hjelms-
chamado de auto-referencialidade. lev(518) quem autorizará as distinções a serem estabelecidas -- e tam-
Mas há poucas produções mais enigmáticas do que a colabora- bém as relações a serem retidas e teorizadas, entre planos de realida-
ção, e o leitor freqüentemente fica tentado -- inutilmente -- a des- de, tais como entre a produção metalúrgica e a máquina de guerra
membrar as contribuições e assinalar o que pertencea cada um dos nâmade, e entre esses planos e a dialética do espaço (liso/estriado), ela
autores, cuja identidade múltipla, ou antes, dual, permanece inconce- própria estreitamente ligada à visão extraordinária da história da tec-
bível. Heteroglossia? De modo algum, ainda que frequentemente este- nologia como história da matéria, proposta em Mf/Plafõs. O dualismo
jamos prontos a identificar e nomear essas vozes diferentes, e, com elas, lingiiístico garante, portanto, a ligação profunda entre esses diferen-
a desenvolver um diálogo ou um monólogo interior, apaziguando, ao tes planos ou "níveis", sem reduzi-los a causalidades mecânicas ou a
fazer isso, a angústia sentida quando os direitos do sujeito individual homologias essencialmente idealistas.
são de algum modo lesados. Quem fala aqui? Quem fala agora? Creio Pois a homologia constitui o problema filosófico mais grave que
que é um equívoco procurar as origens -- digamos, biológicas -- de Mi/ P/afãs levanta, a saber, o do estatuto da grande dualidade metafí-

380 Fredric Jameson Os dualismos hoje em dia 381


fica do nâmade e do Estado. Ela molda, com efeito, todas as tensões ii)titido atual, e cuja existência marcaria a possibilidade de transfor-
e linhas de fuga dessa imensa panorâmica epistemológica e histórica iii;tçãopor vir, e daí a possibilidadede um futuro enquanto tal --
que se dedica a isolar uma ciência real de uma ciência nâmade ou l)ossibilidade recusada, entre todas, pelas ideologias contemporâneas.
menor; do mesmo modo que na literatura, terminaremos por consta- tlin dos riscos assumidos pela profecia, é, porém, justamente, o de
tar uma diferença profunda entre uma literatura nacional e uma lite- tlcsfazer-sede qualquer justificação metafísica e de se expor à recusa
ratura menor, não sem antes passar pela gramática, pela estratégia tios contemporâneos: a grande profecia de nossos dias, quando apa-
militar, pelo desenho, pela economia política, pela arquitetura e pelo icce, arrisca-se a passar por algo não só anacrónico, mas também
urbanismo etc. Mas, afinal, de que se trata aqui? Da participação on- Lxcêntrico e menor, ou "nomádico", exatamente no sentido que nos-
tológica de todos esses domínios em um imenso dualismo do próprio sos autores atribuem a essestermos.
ser? Ou antes, de uma série de isomorfismos entre fenómenos inteira Retomemos, pela última vez, aquilo que faz de Mlí/P/afãs mais
mente diversos, cuja presença proporcionaria o indício de outra cau- -- e outra coisa -- do que uma simples construção ideológica. A dua-
salidade a ser decifrada? (A reflexividade dessetexto é tanta que, em lidade aqui, qualquer que seja, aliás, seu estatuto ideológico, é tam-
dado momento, os autores exibem uma nova teoria do isomorfismo, l)ém uma maneira de organizar as matérias e as análises. Ê uma apos-
própria a tornar mais complexo esse gênerode questão ingênua...). ta por parte daquelesque renunciaram à velha ambição da filosofia
De fato, resumindo, penso que esses dualismos, e a grande dua- -- quer se trate de criar sistemas, ou até mesmo das esperanças de
lidade da qual eles provêem, exprimem a forma primordial da própria introduzir todo conhecimento no quadro de uma hierarquia ontológica
ideologia: toda uma literatura recenteo testemunha,sobretudo naquilo do próprio mundo, para poder fornecer uma outra estrutura da Dar-
que concerne à forma vazia do ideológico, e não em seus conteúdos sfe//u/zg,da apresentação do trabalho teórico e analítico. É o imenso
que podem ser de grande diversidade, inclusive no valor político dualismo dessetexto que permitiu, ao menos provisoriamente -- e são
direita, esquerda ou outra coisa -- que se propõem a encarnar. Vimos os próprios autores que, em uma entrevista, insistiram, não sem para-
quais foram as intenções políticas de nossos autores: em A/zfi-Edlpo, doxo, na qualidade eminentemente provisória desse esquema --, reu-
tratava-se de encontrar um método para distinguir a esquerda da di- nir os pedaços desconexos, o corpo espedaçado das ciências atuais, em
reita e fundamentar essa distinção, se não no ser, ao menos nas estru uma atividade teórica coerente, mas propriamente interminável.
furas. Mas é uma intenção que corre o risco de levar diretamenteà Essa concepção da dualidade como esquema organizador conhe-
construção de novas ideologias: não poderíamos ver aqui um esforço ce, portanto, a pressão, surda mas ininterrupta, de forças antidualistas
imenso para produzir nova ideologia, novo mito, capaz de tudo repen- que vêm, a um só tempo, enriquecer o texto e Interromper seu movi-
sar e organizar todo o leque das disciplinas e especialidadesatuais, mento em direção a uma produção ideológica ou mítica simplista. Em-
tendo em vista uma praxis por vir? Sem dúvida, mas quando a pro- pregando a temáticanumerológica tão cara a Deleuze e Guattari, se-
dução ideológica é consciente dela mesma a esse ponto, quando ela é ria qualquer coisa como a resistênciado três ao dois, ou como a ten-
desejada e caracteriza-se assim como totalizante... não deveríamos são entre a unidade do dual e o múltiplo ou a multiplicidade: trata-se
distingui-la dessa outra produção ideológica, mascarada e onipresen de uma verdadeira luta categorial entre as forças de dispersão e aque-
te, que induz o inconsciente a ignorar a operação ideológica propria- la, paradoxalmente unificada, da dualidade que busca reassimilá-las
mente dita, a fim de se apresentar como um conhecimento e um saber a seu poderoso sistema. Não são, aliás, simplesmente problemas de
justificados pela epistemologia e pelo estatuto das ciências? Penso que ordem lógica ou numerológica: o esquema tripartite ou trinitário de
tocamos aqui nessa fronteira, fugidia mas nítida, entre a ideologia e a Ánti-Édlpo (tomado emprestado a Morgan) é muito significativo por-
profecia: entre uma operação subterrânea, jogando com os imbensa- que os modos de produção de inspiração marxista, se/z/agens,bárba-
dos e os esquemasocultos, e a grande voz profética, que assume to- ros e c/z/í/içados,
na terminologiade Morgan, codlPczzção,sobreco-
dos os riscos de uma nova visão do mundo propriamente política e até dlÉícaçãoe axfom(ízlcopara Deleuze e Guattari, serão confrontados
mesmo quase metafísica ou religiosa, cuja carência constatamos no com os grandes dualismos desses dois livros: esquizofrenia e paranóia,

382 Fredric Jameson Os dualismos hoje em dia 383


ltEVISITANDO "OS INTELECTUAIS E O PODER"
nomadismo e Estado. É uma confronto tão frutífero quanto comple-
Remato Janine Ribeiro
xo, e é a própria fonte das reflexões apresentadas pelas duas obras sobre
as questões políticas atuais.
IQuisera também propor a defesa de uma certa leitura filosófica
desses textos, que poderia, à primeira vista, parecer anacrónica. Pen-
so, com efeito, que é possível remeter todas essas novas terminologias
a problemas filosóficostradicionais, não para acomoda-las, tranqui-
lamente, neste ou naquele momento da história da filosofia desde Pla- Nosso propósito é revisitar, aqui, o célebre diálogo de 1972 en-
tão, onde tomariam assento -- um lugar, talvez, não tão excêntrico tre Foucault e Deleuze, sobre "Os intelectuais e o poder", publicado
quanto poderíamos supor --, mas a fim de medir melhor toda contri- entre nós no volume A micro/hlca do poderá, com a intençãode dis-
buição e novidade das proposições deleuzo-guattarianas. Podemos, cutir o que é atual e o que deixou de sê-lo em suas idéias. Sua atuali-
por exemplo, assimilar a dualidade nâmades-Estado ao velho proble- dade, aliás, coloca menos problemas: trata-se de um trabalho inaugu-
ma do Um e do Múltiplo, com a condição de vermos como esse pro- ral, na medida em que exclui o papel do intelectual "universal" para
blema consagrado é logo corroído por outros movimentos e outras in- sugerir, em seu lugar, o do intelectual "específico" (os dois conceitos
tenções: o Múltiplo é, com efeito, prontamente substituído pelas mul- são de Foucault). Deveríamos, sem dúvida, acrescentar outras ques-
tiplicidades, idéia nova que subentende a construção de uma ideolo tões formuladas pelos dois filósofos, mas passemos ao que nos parece
problemático -- ao que nos parece não ser mais anual -- nesse texto
gia verdadeiramente múltipla na nomadologia.)
quando hoje o relemos: em primeiro /ugízr, o fato de que Foucault
Posso resumir essas teses apressadamente redigidas da seguinte parece continuar ligado a uma ideia de parado e de massas revolucio-
maneira: nárias, e isso no momento mesmo em que procede à crítica, que pre-
1) É necessário examinar a estrutura de À4f/P/afãs como discur- tende ser radical, ao papel tradicional do intelectual"de esquerda";
so teórico e como forma de Darsle//u/zg, a fim de poder emitir um juízo em sega/zdo /zlgczr,a hipótese, levantada sobretudo por Deleuze, se-
sobre o valor de atualidade dessa obra. gundo a qual todo desafio, ainda que local, dirigido ao poder vigente
21 Esse julgamento deve ser posto em função da resposta que seria o põe em xeque, de modo que ele deve retrucar mediante uma políti-
dada a uma questão precisa, a saber: Será que Deleuze e Guattari fo- ca de repressão global2. Essa última hipótese, se dava conta muito bem
da política mundial como era percebida no começo dos anos 70, com
ram capazes de antecipar em seus livros, tão proféticos, a situação
presente do capitalismo globalizante e cibernético e o terceiro estágio
do capitalismo? Será que assinalaram, de antemão, o lugar da muta- 1 0 diálogo entre Deleuze e Foucault data de 4 de março de 1972. Foi pu-
ção do sistema mundial que está em curso? Os fluxos decodificados blicado inicialmenteno número 49 da revista 1,',4rc, dedicado a Gilles Deleuze
do capitalismo clássico serviam de estrutura de possibilidades para as jsegundo trimestre de 1972). Citamo-lo com base no segundo tomo de Foucault,
linhas de fuga de um nomadismo que coexistia com ele e dele saía Dias el écrffs, Gallimard, 1994, o mesmo utilizado para as referências de "Sobre a
justiçapopular". A //micro/Rica
do poder foi editado,entre nós, pela Graal, e se
reforçado; mas, hoje em dia, os nâmades continuam a existir? Perma- não usamos essa edição é simplesmenteporque o presente artigo foi inicialmente
necemessas fórmulas operatórias para nós? Decorrem do fim dos anos redigido em francês:
60 ou, ao contrário, são suscetíveis de nos projetar no futuro que de- 2 "Na verdade, esse sistema em que vivemos não pode supor/ar /fada:daí,
fine doravante nosso presente...? sua fragilidade radical e ao mesmo tempo sua força de repressão global" ip. 309).
Deleuze elencará adiante(p. 312} as repressões locais: "a limitação da imigração"
jque se agravou mais tarde), "a repressão nas fábricas", "a luta contra os jovens e
Tradução de EloisaAraújo Ribeiro e Jogo Luiz Ribeiro a repressão no ensino". Dessas últimas, seria difícil dizer que se mantenham hoje
nos níveis atingidos no começo dos anos 70.

384 Revisitando "Os intelectuais e o poder: 385


Fredric Jameson
Nixon, Pompidou e, aqui, Média, foi superada pelos acontecimentos; conversa "em andamento": todo "ruído" foi limpado, as intervenções
o capitalismo mostrou-secapaz de adquirir uma vida nova e, acima sc tornaram discursos curtos porém bem-dispostos, de modo que trata-
de tudo, soube conceder um lugar nada desprezível a reivindicações mos com um gênero intermediário entre a conversa, com suas imper-
que pareciam contesta-lo de forma radical, em particular às lutas que feições,e o artigo, com seu acabamento. A construção dessediálogo
se referiam ao direito que cada qual, e antes de mais nada os jovens e talvez seja, sugiro, musical: uma ideia é proposta, como um motivo, e
as mulheres,deve ter a gozar do próprio corpo. A hipótesedo xeque se desenvolve; cada intervenção é como um movimento de uma peça
mate local a um poder global conserva, porém, alguma importância de música e, se há diálogo, é no sentido, sem dúvida excepcional em
na medida em que põe em cena as relações entre o particular e o univer- filosofia, mas frequente em música, que sc dá entre motivos distintos.
sal na política, para mostrar os limites da crítica tradicional ao es- Ora, sucede que, ao mesmo tempo que Foucault e Deleuze pro
fab/fsbmenf: essa contestação somente se concebia com base num par- põem aqui novidades radicais em seu modo de ver a política, eles con-
tido de dimensões significativas, cuja universalidade seria capaz de tinuam (ou será o caso especialmentede Foucault, que acabava de
vencer a do sfafus que; e na medida, igualmente, em que ressaltava o manter uma longa conversa com "Virar", isto é, Benny Lévy3) a con-
caráter estratégico da ação pontual de desobediência jtão logo o ca siderar como interlocutor por excelênciaum gawcbismede filiação
pitalismo se mostrou capaz de proceder à recuperação de seus con- partidária: lembremos, foi a evocação de "um maoísta" que fez des-
testadores, a ação pontual perdeu boa parte de sua riquezas. Voltare lanchar a conversa. A discussão nasce pois das relações bastante pró-
mos a esseponto. Mas tratemos, por ora, da posiçãoque Foucault ximas que filósofos "de esquerda" manteriam com esses avatares do
assumia em face da esquerda das massas e das organizações. PC que são as organizações que continuaram a ser revolucionárias
depois de maio de 68; e se encerra nas esperanças que se depositam
nas "massas" IFoucault, p. 308), no "povo"(p. 311) ou no "proleta-
A importância desse diálogo é decisiva. A pergunta inicial for- riado" (p. 315). Deleuze, para dizer a verdade, só fala uma única vez
mulada por Foucault ("Um maoísta me dizia..."I sugere um novo sen- das "massas"(p. 314), e o faz para retomar a questão de Reich("As
tido, um novo alcance da relação política entre os intelectuais e as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo em determi-
massas: eles não serão mais a voz daquelas que não têm voz. A pró- nado momento!"); o sujeito que ele decididamente prefere utilizar, no
pria questãoda militância ("um maoísta...") assim entra em cena. Mas lugar em que seu interlocutor emprega palavras que remetemao dis-
a novidade radical dessas palavras, a idéia de que o sentido político curso marxista ou, antes, maoísta (as "massas" de preferência a "clas-
da filosofia deleuzeana lida por Foucault pode se situar em outro /#- ses"l, é o vago e anódino "as pessoas" l"les gens"; p. ex., à p. 311);
gar que não aqueleno qual se fala dos temasobviamentepolíticos-- finalmente, se Deleuze encerra o diálogo afirmando que "toda defesa
o poder, a classe operária, quem sabe o enclausuramento --, são te- ou todo ataque revolucionário parcial se une, dessa forma, à luta ope-
mas que já tiveram a merecida discussão. Pretendo, portanto, insistir rária" (p. 315), eleevita identificar essa luta a qualquer suporte que
naquilo que /zão é mais czfad/nesses dizeres, naquilo que causará es- ocupe o papel de sujeito, vale dizer, nessecaso, à classe operária. Essa
tranheza à leitura de hoje. Nesse trajeto, será preciso suscitar em cer- diferença entre nossos autores é decisiva e parece indicar, aqui, uma
ta medida a questão de como se dividem as responsabilidades por esse nítida divisão de opiniões. Por ora, assinalemos que o papel que eles
texto assinado por dois nomes; seria preciso, aliás, levar mais longe .se atribuem (ou será o caso, repito, especialmentede Foucault) recor-
essa questão, não por uma preocupação capitalista com a proprieda- da curiosamente a figura do "companheiro de viagem", ou seja, o papel
de das idéias, nem por um reflexo de historiador da filosofia, obceca- que por muito tempo Sartre ocupou em relação ao Partido Comunis-
do pelo que é próprio a cada sistema; mas, simplesmente,para levar
adiante a pergunta inaugural de Foucault, o?zdeesfíí o PO/üfco namzz 3 Referimo-nos à discussão "Sobre a justiça popular. Debate com os maoís-
#/osoPa como a sua, como a de Deleuze. Lidamos, por sinal, com um tas", publicada em Les Temos À4oder]zesde junho de 1972. Teve lugar em 5 de
estranho diálogo, no qual nada resta daquelessignos que atestam uma fevereiro de 1972, quatro semanas exatas antes do diálogo com Deleuze.

386 RematoJanine Ribeiro Revisitando "Os intelectuais e o poder' 387


ta Francês: fazer política revolucionária se confunde, já nas primeiras tt)iisciência educada no saber; mas, se a classe operária e o proletariado
frases de Foucault, com "estar conosco", sendo que esse "nós" é enun continuam sendo os referentesque legitimam a luta política de esquer-
dado por "um maoísta". E não é por acaso que Foucault, de quem tla, uma pergunta inquietante deve nascer, a qual discretamente rasga
sabemos que tensõeso opuseram a Sartre nos anos anteriores, começa o diálogo: como se definem esse povo, esse proletariado? constituem
sua intervenção referindo-se ao filósofo do engajamento: em primei- t-lesainda um sujeito? Por um lado, toda espéciede paternalismo por
ro lugar, porque o cita enquanto modelo (mesmo que tal modelo vá parte dos intelectuaiscontra esse "povo" é exposta e condenada com
ser criticado imediatamente), em segundo lugar, porque a remissão extrema finura; essa troca de idéias entre Foucault e Deleuze é certa-
inicial ao "maoísta" faz com que essa conversa dê prosseguimento a itlenteinaugural, no sentido de romper com a velha idéia do sábio que
outra, igualmente célebre, de que falaremos adiante, e que reunia Fou conhecemelhor que o povo o que convém a este último. Essa velha
cault e alguns "maoístas", dos quais pelo menos um é conhecido por idéia está presente no marxismo sob a forma de uma ciência das rela-
sua proximidade a Sartre. ções sociais que domina os diferentes vividos, incapazes de exceder a
No início, pois, um "nós" que remete a um partido e que só per dimensão ideológica, mas que no fundo apenas retoma aquele pa-
mite ao intelectual o papel de acréscimo, de suplemento. No final, igual- ternalismo que é um dos mais antigos foPo{ do pensamento políticos,
mente, um "povo" que constitui uma espécie de sujeito não residual, e que, por exemplo (para só falarmos na história mais recenteda filo-
porém fundador -- um dia por vir -- de uma nova política: um sujei- sofia), atravessa a Idade Média, a Renascença, a época clássico-bar-
to cuja palavra ainda não se difundiu, mas que se aguarda, sabendo- roca. Por outro lado, porém, o "povo" continua vivo, pelo menos para
se, ademais, que sua fala será bem mais rica que a dos intelectuais (ia Foucault: no fundo, o sujeito só é criticado enquanto sujeito que fala
dizer qzzea nossa, mas o intelectualnão está autorizado a enunciar um em nome de outrem, enquanto sujeito rePresenlanfe: ou seja, o que se
fzós: esse pronome não pertence a seu grupo, sua socialidade não pode critica é mais a representaçãoque o sujeito. Mas esse "povo" é um
ser, legitimamente, coletiva). Entre o "nós" das organizações e o "po- sujeito cujas condições de fala ainda não estão dadas -- pelo menos
vo" a que elas remetem -- esse coletivo que nunca sai da terceira pes- por enquanto. E Foucault insiste: o que mais importa é suprimir os
soa do discurso, e cujos interesses (ou "os desejos", dirá Deleuze) as entraves a essa palavra popular, que -- ele parece supor -- se produ-
organizações afirmam defender sem que por sinal nossos filósofos as zirá com plena riqueza tão logo se ergam os obstáculos a sua difusão.
contestem --, eis o espaço, bastante estreito, que cabe aos intelectuais. Em outras palavras, um discurso popular existe, mas quase clandesti-
Temos aqui, então, o que podemos chamar a contradição essen- no, controlado, mais reprimido que recalcado; está óbvio que por aí
cial do texto, ainda que seja injusto esquecerseu caráter datado e de Foucault contesta a galáxia da Ideo/ogia, que ele recusa a própria idéia
combate. Por um lado, toda a velha estrutura das relações dos inte- de que o povo seja enganado, tenha falsa consciência; o povo tem ra-
lectuaiscom a política se vê questionada. Há que pâr fim à univer- zão bem mais do que se pensa; é preciso evitar toda relação pedízgógl-
salização, à totalização, quem sabe à representação, em suma, a todo c.z dos intelectuaiscom um povo tido por ignorante das coisas essen-
esse jogo pelo qual o intelectual se erige como consciência do proleta- ciais do poder. Uma espécie de espontaneísmo assim se delineia -- mas
riado. O universal, aliás, como a totalidade e a representação,parece o que impressiona, vinte anos depois, é antes de mais nada a posi-
compor o cerne da contribuição do intelectual à política, o meio pelo tividade (a do "povo"), que aqui funciona como um referente a legiti-
qual ele cofzPsca a autonomia das lutas populares. Pelo mesmo viés é mar a atividade intelectual. Um sujeito, acrescentamos, que tem a de-
igualmente criticada a idéia de sujeito. terminação suplementarde nunca falar por si mesmo; seu discurso
Mas, se a crítica da representação enquanto correia de transmis- existe no horizonte do possível; suas palavras, suas idéias proliferam,
são do universal está bem realizada, o mesmo não se pode dizer da mas no futuro; já no presente, só existe o lzósdas organizações. Se os
crítica ao sz#jfeilo.
No horizonte desse diálogo perdura um sujeito, cuja
importância se vê até mesmo reforçada. Evidentemente, o que permi- 4 Trabalhei esta questão em A zi/rima razão dos reis (Companhia das Letras
te que se generalize a luta não é mais a totalização efetuada por uma 1993), no ensaio "0 novo e o p.zfbos {Sobre o Dezoito Brumárío)"

388 Renato Janine Ribeiro Revisitando " Os intelectuais e o poder 389


intelectuais foram privados, especialmente por Foucault, de sua legi- .]40) --, mas também em alguma medida as trotskistas, se considera
timidade, se o ?zósque enunciavam devia suscitar uma forte suspeita, ns organizações autênticas, ou mesmo a única autêntica, no singular,
por outro lado o que conta na relação com o "povo" é o sensível des- .tcluelaque porta a legitimidade da luta operária após a recuperação,
compasso instaurado entre o que ele hoje é (uma terceira pessoa) e o l)clo sistema, dos grandes partidos comunistas. Aliás, é esse o roteiro
que em breve será, a primeira pessoa do plural. Enquanto isso não bluese reproduz tal e qual em todo o mundo, sendo denunciados os
ocorrer, sua palavra será anunciada pelas organizações. l)Cs ao mesmo tempo que novos, micro-PCs "em reconstrução", vêm
à luz. Ora, toda a problemática que inspira estesúltimos é absolutamen-
11 rc diferente da filosofia quer de Foucault, quer de Deleuze. Esses micro-
Devemos acrescentar, a esse anseio de legitimidade que lemos no l)artidos se propõem a totalizar as lutas; apresentam-se como os ver-
diálogo dos dois grandes filósofos de nosso tempo, ou pelo menos na dadeiros porta-vozes do universal. O pensador dos "mil poderezinhos"
fala de Foucault, o seu silêncio sobre a organização por excelência das e aqueleque denuncia o caráter gregário das territorializações factícias
relações intelectuais/povo, isto é, o partido. Também aqui Deleuze dis- não teriam o que lhes dizer. Devem, por isso, desejar com toda a in-
cretamentecritica os partidos e as organizações,como, por exemplo, tensidade que na expressão "pequena organização" o adjetivo peqneníz
quando eleobserva que "partidos ou sindicatos, que teriam ou deve- vença o substantivo organização. Mas isso precisa, aqui, ser omitido.
riam ter investimentos revolucionários em nome dos interesses de classe, É paradoxal que, quando se insurge contra o segredo, quando afirma
podem ter investimentos reformistas ou perfeitamentereacionários no que o verdadeiro problema na política consiste em pâr fim ao segre-
plano do desejo" (p. 314). Mas, de toda forma, o silênciosobre os do, Foucault esteja mantendo um segredo essencial sobre suas próprias
partidos é digno de nota. O partido tradicional, o PCF, era bastante condições de fala, esteja poupando um referente que ele deveria, logi-
criticado desde os acordos de Grenelle, que haviam contido as aspira camente, atacar. É certo que Deleuze retoma o termo "gruPúsca/os
ções revolucionárias de maio de 68. Contudo, desde que se começa por Ip. 308), geralmentepejorativo, para com ele conceituar o que somos,
colocar " um maoísta" como interlocutor legítimo -- ou, pelo menos, o que cada um de nós é: é como dizer que a verdade "objetiva" dessas
que se aceita sua provocação a fim de corrigi-la, c que se considera organizações é superior a seu ideal, que o que elas são e fazem interessa
decisivo estabelecer as credenciais para que um pensamento radical, mais do que aquilo que acreditam fazer. Mas, afinal de contas, o pro'
novo, sem precedentes, como o do autor do Alztí-Édlpo, possa ter um blema está em que Deleuze e sobretudo Foucault aceitam essesparti-
lugar no interior da luta de esquerda--, a crítica só pode incidir so- dos não somentecomo interlocutores, não apenascomo os dispositivos
bre o partido tradicional, e deve pois distingui-lo com enorme sutile- que acionam o diálogo de ambos, mas como referentes e mesmo como
za dos partidos e organizações menores, aos quais ela deve, já vimos, signos legitimadores. É junto a eles que se trabalhará a legitimidade
atribuir um papel importante. Ora, tais organizações e partidos são de sua inclusão no combate dc esquerda. Convém observar, uma vez
governadospor duas tendênciascontraditórias. Por um lado, são me- mais, que Foucault reconhece bem mais que Deleuze o papel dirigen-
nores -- no sentido de pequenos -- e não deixarão de sê-lo. Ê nessa te do partido (aqui, o partido substituto, os maoístas), enquanto em
característica que apostam, sem nenhuma dúvida mas com a maior momento algum o autor do Ánfl-Éd/po endossa as palavras de ordem
discrição possível, Deleuzee Foucault. Todo o elogio da "reação lo- maoístas que seu interlocutor retoma, com inegável mal-estar, é cer-
cal", toda a crítica à totalização requer que a luta seja, como se dirá to, mas de todo modo inscrevendo-as em seu horizonte dialógico.
cada vez mais, PO/zfuíz/,que deixe de efetuar totalizações, ou pelo menos
de começar por estas.Ê preciso, pois, que essasorganizações gazzcbisfes 5 Para o mal-estar, ver esta passagem da discussão "Sobre a justiça popular
nunca se tornem grandes partidos, nunca se tornem o grande partido. Foucault -- Eu Ihe pergunto o que você entende por ideologia do proleta
Fiado?
Mas, por outro lado, a maior parte dessasorganizações, em especial Vítor jpseudânimo de Benny Lévy) Entendo: o pensamento de Mao Tsé
as maoístas-- as que Foucault evoca o mais das vezes, aqui e num tung
debate realizado quatro semanas antes, "Sobre a justiça popular" ip. Foucault -- Bom (sfc). Mais você me concederá que.-" (p. 360).

390 Renato Janine Ribeiro Revisitando "Os intelectuais e o poder: 391


111
tido do verbo que me atreveria a dizer quase inefável-- o sentido e
Na verdade uma idéia bastante forte, embora apenas pressupos- realidade da vida operária, e que por isso uma autocrítica lhes convinha
ta, de /egifimidadegoverna esse diálogo. Está em discussãoqual é a de tempos em tempos, em suma, que um limite bem forte, embora
relação legítima do intelectual com as lutas populares. O próprio título nunca nítido ou claro, se impunha a seus eventuaisdesejos de falar aos
da conversa não é muito feliz, pois não se trata da relaçãodo intelec- operários. Por um lado, assim, a insuficiênciados desejos operários,
tual com o poder (que poderia ser uma relação "orgânica" ou "tradi- que necessitavam da palavra científica, por outro, a insuficiência dos
cional", nos termos de Gramsci, conforme a sua integração num siste- intelectuaisenquanto suportes dessa fala de ciência. Defrontamo-nos,
ma opressivo ou explorador), mas, antes, de sua integraçãonas lutas pois, com uma limitação dupla e simétrica. O primeiro limite constitui
populares. O que se discute é como se integrao intelectualnas lutas uma barreira evidentemas apenas "de fato" (devida às dificuldades
populares contra o poder. Ora, já de início Deleuze define um duplo de acesso do operário à educação tradicionall, e que por isso pode ser
modelo tradicional quc se deve abolir, o da teoria que inspira a prática superada, em princípio, por um esforço concentrado; mas tal esforço
e o da prática que inspira a teoria. A crítica afetará, porém, o segundo teria por efeito que o operário deixasse de sê-lo, para se tornar intelec-
termo dessa díade e nunca o primeiro. Se o papel dirigente do intelec- tual, e que, privado do que sugiro chamar sua Erlebnls legitimadora,
tual, ou de sua teoria, será exaustivamentequestionado, a idéia de uma se veja portanto submetido às limitações de segunda ordem. E esse se-
primazia da prática não se vê excluída por completo. Com certeza o gundo limite, imposto aos intelectuais, privados de toda "experiência
próprio verbo i SP/ra está fora de questão -- poder-se-iadizer que do mundo" operário (a esse respeito, a personagem sartreana Hugo tem
se descarnam essas velhas metáforas respiratórias, espirituais, teológi- uma fala reveladora, em As mãos su/as), institui inversamente um inter-
cas --, mas Deleuze procede ao elogio da prática como o lugar no qual dito de contornos muito fluidos mas absolutamentedecisivo, um in-
encontram solução os impassesda teoria. (Isso não é, porém, uma terdito "de direito": por mais que eles se esforcem, nunca poderão ultra-
contradição. O que repugna aos dois pensadores é a idéia romântica passa-lo. É esse limite que garante, ou melhor, que garantia a domina-
do povo encerradoem sua prática, a qual passa a ser ao mesmo tem- ção do aparelho partidário sobre as basesoperárias e as intelectuais.
po seu galardão e sua cadeia; se Foucault insiste na tese de que o povo Se as primeiras eram objeto dc uma pedagogia intensiva, as segundas
co/zbeceo que é a opressão e sabe o que deve fazer para aboli-la, isso serviam de alvo a um controle mais obscuro nos métodos e critérios.
significa que o povo tem sua teoria, e que a divisão mesma entre teoria Penso que esse jogo de limitações era essencial para a vida dos
e prática, entre duas espéciesde bioi ou z/ifae,é formalmentenegada.) partidos comunistas. Explica por que o partido podia exercer um pa-
O que aqui pretendo ressaltar é que uma certa idéia de culpabili- pel de Ázzft/.irei, na medida em que proporcionava novos conhecimen-
dade intelectual está pressuposta ao longo desse discurso; se o intelec- tos a seus militantes operários: que eu saiba, nenhum outro partido
tual à Victor Hugo constitui o seu alvo, por outro lado é notável que na história editou tantos textos de qualidade quanto os PCs. Pode-se
se omita o modo como se efetuava o engate de sua atividade. Parece- imaginar um partido de centro ou direita que mandasse imprimir tantos
me inadequado afirmar, como fazem nossos autores, que tradicional- livros de história, sociologia e mesmo literatura? Mas isso explica tam-
mente o intelectual de esquerda se somava às lutas populares assumindo bém o lado bastante obscuro dessa empresa, à primeira vista ilumi-
o papel de consciência delas. Na verdade, o engate do intelectual e da nista, o controle que nunca foi muito bem explicado sobre os seus
classe operária era efetuado, na época do comunismo, pelo partido. intelectuais, massacrados de tempos em tempos, fisicamente no Leste
Este sabia dizer, aos operários, que o limite de uma luta sindical entre- europeu, moralmente no Ocidente. E explica talvez essa ambigiiida-
gue a si mesma seria o frade-u/sionismo que Lênin denunciara em inícios de, que podia se tornar dilaceradora, dos intelectuaisfiliados ao par-
do século, e que por isso os operários necessitavam da contribuição tido. Num momentoeram elesquem anunciavamum porvir maravi-
da teoria marxista, que só podia vir-lhes dos intelectuais. Mas, ao lhoso; mas noutro instante, e sem nunca se saber bem por que muda-
mesmo tempo, esse mesmo partido sabia dizer, aos intelectuais, que vam os papéis, eram traidores ou, no melhor dos casos, pequeno-bur-
sua origem pequeno-burguesa os impedia de conhecer bem -- num sen- gueses sem consciência operária. E aí tocamos o ponto em que Fou-

392 RematoJanine Ribeiro 393


Revisitando "Os intelectuais e o poder:
cault me parece ter errado de alvo apara Deleuze, as coisas são mais clccisiva para romper com esse ideal de militância totalizadora e para
matizadas: minha hipótese é justamente que ele terá cuidadosamente pâr, em seu lugar, uma militância pontual. A supressão do macro-
evitado as ciladas nas quais Foucault caiul. Hregário, do "povo" mais ou menos identificado com a "classe ope'
A verdadeira consciência que dominava a dos operários não era riria", suscita maiores problemas, mas não passaria da conclusão de
a dos intelectuais,ainda que filiados ao partido, mas a do aparelho um processo a que assistimos, por vezes com enorme melancolia, es-
partidário enquanto instância autónoma, cuja própria autonomia talvez ses últimos vinte anos. Essa supressão, por sinal, se casaria bem com
se devesse mais que tudo a esse jogo de oposições que ele sabia man- os modelos conceptuais do Anff-Édfpo, da História dzz/oucura e de
ter entre seus operários e seus intelectuais. Por isso a crítica deveria várias outras obras. O papel do intelectual diante de tudo isso talvez
dirigir-se não apenas ao intelectual e seu papel tradicional IVictor seja, então, o que convenha debater: por que ele precisaria se prote-
Hugo6), mas especialmente ao Ersízfz de intelectual que era o orga- ger por trás dessesdois sujeitos, a fim de legitimar seus discurso? Não
nizador da luta popular no sentido do partido. E também a redução, se poderá pensar seu papel sem essessustentáculos que o legitimam?
por sinal bastante maoísta, das pretensões do intelectual a dizer seu E, finalmente, após a contestação explícita do universal e do global,
discurso deveria ter sido trabalhada de outro modo. Foucault e talvez após a contestaçãopossípe/, na trilha deleuzeanae foucaultiana, do
Deleuze prestaram, nessa conversa, atenção excessiva ao que lhes dizia su/e/fo -- massa ou organização --, não poderíamos propor a contes-
esse"maoísta", e portanto ao que se dizia na França sobre a Revolu- tação dessepressuposto da /egiffmidade, e sugerir que discursos e prá-
ção cultural chinesa. Ê esta uma das vertentes desse diálogo que se pode ticas possam produzir-se sem passar por essa peneira, por essecrivo
dizer datadas: a culpabilidade do intelectualque se supõe que deseje da legitimação? A /egifimízç'2oparece ter sido, pelo menos na era mo-
dar ordens aos operários; a culpabilidade do trabalhador não manual derna, o que efetuou a conexão das consciências com o poder, do in-
em face dos trabalhadores manuais. E, se Foucault e talvez Deleuze divíduo com as totalidades com pretensão jurídica. Talvez, se desejar-
erram aqui de alvo, é em primeiro lugar porque continuam acreditando mos contestar o que são o sujeito e sua representação, se desejarmos
que a relação com os trabalhadores jleia-se: com aqueles que tocam a que a palavra seja tomada pelas próprias "pessoas" (/es bens) em vez
pbysls, a matéria-prima no sentido físico e tangível do termos passa de ser monopolizada por seus representantes autodesignados, preci-
ainda por formas de organização que já estavam se revelando cadu- semos suprimir o próprio dispositivo que estabeleceou corta os efei-
cas, em segundo lugar porque essa relação conserva, dos velhos PCs, tos de legitimidade das falas. Assim não se poderá mais substituir o
a idéia de que trabalhar a idéia é coisa perigosa, enquanto trabalhar a mau partido pelo partido genuíno das massas, a má legitimidade dos
coisa tangível é fonte de retidão (velha oposição que Jacques Ranciàre intelectuaisligados ao poder vigente por uma legitimidade nova e boa,
iria denunciar daí a alguns anos em seu Á no/fedos prolefáriosl. a da ligação com "as massas". O problema não está naqueles que
E por isso que subsiste, nesse diálogo, alguma coisa do gregário ocupam tal ou qual lugar -- reside antes na própria configuração de
no sentido nietzscheano e crítico do termo, e que constitui, num texto um espaço no qual, se alguns têm direito à palavra, é por causa do lugar
absolutamente luminoso, um certo favor de incomodo para os leito- que ocupam em relação a um centro doador de várias espécies de le
res de hoje. Se levássemos as coisas um pouco adiante, mas trilhando gitimidade. Se assim desejarmos ser radicais, deveremos pâr em xeque
a mesma via que Deleuze e Foucault desbravaram, seria preciso abo- o próprio esquema dessa distribuição espacial, esse dispositivo no qual
lir essesdois referentesentre os quais transcorre o diálogo. Talvez não um centro outorga os direitos, determina as práticas, faz circularem
houvesse maiores problemas intelectuais em suprimir a referência ao os discursos. Esse esquema é o da legitimação. Precisamos portanto
nós" das organizações menores, já que foi exatamente o Grupo In- pensar práticas que não necessitemmais requerer sua legitimidade
formação Prisões lançado por Foucault que concorreu de maneira àquilo que está plenamente fora delas, mas que estabeleçam, entre elas
e aquilo que elas mesmas apresentam como sendo seu "outro", como
6 Em nossa literatura, o equivalente é o poeta condoreiro Castro Alves, can- seu "fora", uma certa relação de imanência.
tando os sofrimentos dos escravos. São estas as questões que desejava lhes propor.

394 Renamo Janine Ribeiro Revisitando "Os intelectuais e o poder' 395


EXISTE UMA INTELIGÊNCIA DO VIRTUAL?
John Rajchman

1. 0 VIRTUAL...
O virtual é um conceito bem antigo. A palavra, que vem de uirfus
ja força) é ligada a acfualfs lo ato que a torna efetivaj; esse par cor-
responde à dy/zamls-e/zergela, que alguns consideram ser o próprio
cerne da filosofia de Aristóteles. No entanto, mais perto de nós, foi
Gilles Deleuze que o retomou, como essencial à filosofia; o virtual, de
acordo com ele, seria a "realidade" do conceitos
Deleuze propõe extrair o virtual da metafísica categorial de Aris-
tótelespara fazê-loentrar em sua "lógica das multiplicidades": a dy-
lzamis sai do quadro hilomórfico e passa, entre gêneros e espécies, em
devires estranhos, em que suas atualizações escapam a qualquer fina-
lidade; antes mesmo de agir ou de se efetuar, ele se mostra pelos sig-
nos de uma expressão obscura e de uma construção complexa, inaca-
bada. Assim, eleexige uma outra "imagem do pensamento" em que
o "potencial" conceitual não está mais fechado no bom senso das
possibilidadeslógicas dadas, mas se move por paradoxos, questões,
temas complexos, anteriores às proposições e aos julgamentos, que
traduzem os acontecimentosque nos forçam a pensar. Em suma, o
virtual, em Deleuze, se torna inseparável de um novo estilo de infe//
gência que se anuncia por uma "virtualização" da grande tradição
filosófica, descobrindo linhagens subterrâneas, pares estranhos. A in-
teligência deleuzeana é, antes de mais nada, uma arte do virtual.
Nessa arte, "o único perigo", nos diz ele, "é o de confundir o
virtual com a realização de um possível2. O perigo é, portanto, lógi-
co, e Deleuze tenta mostrar que a confusão entre a multiplicidade e a
diversidade enumerável, entre o todo aberto e a totalidade fechada,
entre a individuação e a especificação, a diferenciação e a oposição ou

l G. Deleuze e F. Guattari, QK'esf-ce que/a pbí/osop#iei Paras, Minuit, 1991,


P. 198.
2 G. Deleuze, Di/Xérelzceef réPéfifion, Paras, PUF, 1968, pp. 272 ss.

Existe uma inteligência do virtual 397


a distinção. Assim, o virtual supõe uma outra lógica da modalidade, libera do E identitário ou atributivo, "deslizando por toda parte, pe-
uma outra experiênciado que é possível,que escapa à circunscrição netrando e corrompendo tudo"Ó
do Sina fregeano, para atingir o sentido múltiplo, divergente, anterior O perigo representado pela confusão entre o virtual e o possível
ao princípio de contradição que regula o possível3. Deleuze considera é, portanto, para Deleuze, um perigo que ronda o pensamento em sua
que toda lógica de atribuição, inclusive à das "funções de verdade' própria "imagem". Pois é por uma inteligênciaque o virtual se dá ou
fregeanas, reduz necessariamenteo virtual4. Pois o virtual, ao contrá- se efetua, e por um abalo do virtual que o pensamento se libera da coxa
rio, se dá por um sentido de acontecimento estranho a qualquer me- e se torna inteligente. Pensar, tentar, "experimentar" o virtual, é por-
tafísica da forma e do atributo. tanto sempre "pensar de outro modo", segundo a expressão de Fou-
Assim, pode-sedizer acerca do virtual, com Proust, que eleé "real cault; e é por esse tipo de experiência que a filosofia se torna não um
sem ser anual,ideal sem ser abstrato", e, com Bergson, que sua atuali zação saber ou uma racionalidade, mas justamente uma espéciede inteligên-
difere de uma realização do possível, já que implica o é/a/zde uma di- cias. Eis o grande tema de Deleuze em Difere/zça e repeffção: aquilo a
ferenciação "criadora"; mesmo em Freud, pode-se dizer que os desti- que a filosofia se opõe não é de fato o erro, mas a to/ice, e ao invés de
nos dos objetos de nosso desejo não são separáveis dos mundos "vir- procurar "condições de possibilidade" de juízo verídico, ela deve ten-
tuais" expressivosque elescriam em nós e entre nósj. O virtual se torna, tar dizer as condições reais da tolice de que incessantemente foge para
portanto, essa potência estranha do singular e da série, que "subsis- engendrar o novo a ser pensado no pensamento'
te" e "insiste" em nossasvidas e nossas maneiras de ser, sem se efe- Mas somos ainda capazes desse tipo de inteligência, dessa expe'
tuar definitivamente em nenhum lugar. Ele exige então uma inteligência riência do virtual? Podemos hoje recorrer a cla para formular as ques-
e uma lógica nas quais as "implicações" se tornem potências compli- tões de nosso mundo atual e, principalmente, desse "mundo" que pa-
cadas, as "disfunções" se tornem inconclusas, e as "conjunções" pas- rece chegar até nós, com as cibertecnologiase a civilização "globa
sem por outro lugar que não nas identidades. Assim, um grande E se lizante" que as acompanha? Em outras palavras: podemos z/írfz/a/azar
essemundo no mesmo momentoem que elese dá como necessidade,
e até como condicionamento futurista ou desrealização generalizada?
Deleuze, aqui, com sua preocupação com as novas imagenstelevisivas
3 G. Deleuze, Logiqiíe dH sons, Paris, Minuit, 1969, pp. 47-9. Rejeitando o e numéricas, se aproxima de Serge Daney, acerca do qual ele se per'
postulado de "compossibilidade" leibniziano, Deleuze concebe um universo em que
subsistem, sempre, outros "mundos possíveis" em nosso mundo, outras histórias
gunta, em uma carta, se o pessimismo poderia ser mitigado por via-
na história, o melhor mundo sendo aquele com o maior número de virtualdades. gens "para ver em que momento da história das mídias a cidade, a tal
Mas a modalidade também é importante na "clínica literária" de Deleuze. Assim, cidade pertence", a exemplo do que Daney fez com relação a São Paulo,
em Kafka, é a impossibildade de não escrever, de escrever em alemão, e de escre- 'cidade-cérebro autodevorante"9. Trata-se de uma arte de descrição
\ er de outra maneira, que exprime a necessidade paradoxal das virtualidades des- cujo princípio seria o que Proust enuncia quando diz: "o verdadeiro
se povo por vir como potência de sua minoria. E é ao fazer a fisionomia do "esgo-
tamento" dos possíveis que Beckett se torna, para Deleuze, não apenas lógico mas
diagnosticador das "doenças do virtual". A paranóia pode ser concebida, nesse
sentido, como doença de um mundo em que as potências do falso Ida indistinção
verdadeiro-falso) estão "forcluídas"; assim, na paranóia do "controle" em Bur- 6 G. Deleuze, Polrrpar/ers 11972-1990),Paria, Minuit, 1990, pp. 64-5. Cf
G. Deleuze e C. Parnet, Dfa/ogaes, Paris, Flammarion, 1977, pp. 70-2.
roughs, pode-se ver uma perversão masculina, da pbi/fa ou da fraternidade ameri-
cana desprovida de seu tempo por vir. 7 M. Foucault, L'wsage des P/ízisirs, Paria, Gallimard, 1984, pp. 14 ss. As
sim, a experiência ou o "ensaio" do virtual implica um "desprendimentode si
4 G. Deleuzé, 11)lí'est-ceqne /a pb//osopble?, pp. 128 ss.
pelo qual o pensamento se separa do saber e se torna "curioso
5 Cf. G. Deleuze, "Michel Tournier et le monde safesautrui", Logig e dlr
8G. Deleuze,Di/Hérenceé?frépéfifio/z,pp. 192-8.
seus, pp. 350-72. O problema de outrem como "a existência do possível envolvi-
do" (p. 357) é retomado em Àfi/ P/afãs com a rostidade. 9 G. Deleuze, Pourpar/ers, p 110.

398 John Rajchman Existe uma inteligência do virtual? 399


sonhador é aquele que vai verificar algo"10. E talvez efetivamente a sempre em sua especificidade, com as partilhas, os antagonismos, os
cidade, bem como o cérebro, continuem sendo questõesque podem abetos que engendram. Pode-se, assim, desde já discernir novas geo-
nos fazer pensar e sonhar. grafias e línguas da informação, talvez também uma "poluição" es-
Partindo dessa idéia do virtual, gostaria portanto de propor um pecífica "cinza"12. Uma espécie de "geopolítica" estaria se desenhan-
esboço, uma tentativa de desembaraçar algumas linhas, alguns "sig do, agindo, ao mesmo tempo, no interior e no exterior dos países avan-
nos" desse mundo de que tanto falamos ultimamente. Logo de saída, çados, com zonas excluídas, desesperadas -- como na África --, zo-
surge um problema. Dir-se-ia que esse mundo gostaria de nos fazer nas de expansão rápida em grande escala -- como na Ásia --, e zonas
acreditar que, ao invés de inteligentes,somos apenas "cognitivos", mais antigas, mais Inquietas: as nossas.
adeptos da comunicação. O próprio sentido de nossas palavras teria Pensar não é, portanto, simplesmente "comunicar", e pressupõe,
mudado: certamente, fala-se de "virtual" e de "inteligência", mas em em relação à "informação", um outro tipo de inteligência que consis-
um sentido bem diferente. te, para Deleuze, em distinguir os verdadeiros dos falsos problemas ou,
conforme uma expressão de Foucault, em diagnosticar os "verdadei-
2. ... E SEU RIVAL ros perigos". É o que Ihe dá sua necessidade, sua estranheza em rela-
O mundo da "comunicação" e da informação secreta uma nova ção à coxa ou ao consenso, sua relação com o segredo13. E portanto
espécie de I'íua/ do pensamento. Eis um grande tema de O qz/e é cz/;- nesse tempo estranho do surgimento do virtual que devemos experi-
loso#a?. Temos de enfrontar, nos dizem Deleuze e Guattari, "rivais mentar, a fim de exercer a função do pensamento que ele admirava
cada vez mais insolentes, cada vez mais calamitosos, que o próprio em Foucault: a de prejudicar a tolice.
Platão não teria imaginado em seus momentos mais cómicos"ll. Pois O "mundo da informação" nos levaria a crer, portanto, que o
o pensamento se concebe, então, como acumulação, troca, manipula- que importa são nossos poderes "cognitivos", nossa smarfness, che-
ção da informação -- em suma, como "comunicação". Ora, pensar gando mesmo a nos definir. Mas o que seria dessa smzízrtness se ela
não é "comunicar", e sua liberdade não se reduz à única questão do comportasse uma tolice, particularmente a que consiste em dizer que
acesso ou não a um data-bízseuniversal -- que é, de fato, apenas uma o cérebro é um computador de que o espírito seria o programa? E
bomba de palavras e de imagens caóticas e redundantes, de que so- certamente necessário reconhecer aqui o teorema da "inteligência ar-
mos convidados a nos tornar consumidoresávidos e felizes. tificial" (IAI, pelo menos em sua versão dita "forte"
O que conta para o pensamento seriam, antes, os tipos de cir-
cuitos e de agcnciamentos nos quais as unidades informáticas se inse- 3. 0 CÉREBRO
rem, com suas pressões, seusmodos de subjetivação, seus "campos de "A cada tipo de sociedade", nos diz Deleuze, "pode-se fazer cor-
possível". E por conta de tais agenciamentosque a informação setor- responder um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para
na mais do que um simples bem a que se tem acesso, ou que se mani- as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disci-
pula com maior ou menor competência. Ela se torna um tipo de po- plina, as cibernéticase os computadores para as sociedadesde con-
der, uma forma de criar a riqueza, a miséria ou o desemprego.Ela se trole".14 Estamos, portanto, na era das máquinas smarf e não mecâ-
torna a marca de uma elite global, um objeto de fantasia e de contes- nicas ou energéticas.Trata-se de uma nova raça que estabelececonosco
tação "neolúdica", que necessita de novas regulamentações estatais,
novas classes de especialistas. Esses processos devem ser analisados
12 Paul Virilio, "L'écologie gripe", l,a t'fiasse de /íóérafío/z, Paras, Galilée
1995, PP. 75-88.
io Idem, ibid. Sobre a arte de descrição, ver G. Deleuze, CÍ/zénía 2: 1,'1mczge- i3 Assim, em um contexto"po]itica]]y correct", De]euzedeclara: " [.-] acre
íemps, Paria, Minuit, 1985, pp. 165 ss. dito no segredo, quer dizer, na potênciado falso". Poz/rp.zr/ers,p. 21.
ii G. Deleuze e F. Guattari, Qií'esf-ce q e /a pbl/osopbie?, p. 15. i4 Pourpzzr/ers, p. 237.

400 Joltn Rajchman Existe uma inteligência do virtual? 401


llovas relações. Assim, dizem-nos que somos, nós mesmos, apenas pense dessa ou daquela maneira"19. Pois o cérebro não é somente
máquinas smarf agindo em um suporte natural, carbónico -- nossos objeto de ciência, mas condição de pensamento, e, portanto, do "vir-
cérebros. Mas o suporte é completamente indiferente à smízrfness, e tual" que constitui sua "realidade
poderia também ser artificial, não-orgânico, de silicone, por exemplo. Se Deleuze pode nos dizer que "o cérebro é o próprio espú'ifo"20,
O relógio ainda pertenceà antiga raça de mecanismoque servepara é porque concebe o espírito como "força", ou como "complicação
espacializar, para determinar ou "esfriar" o tempo, como na auto- envolvida" -- alma ou força, como dizia Leibniz. O cérebro não se
matização do trabalho industrial. Ê um instrumento de cbronos, en- reduz, portanto, à sede de uma inteligência logiciária que prolongaria
quanto permanecemos criaturas de czion, capazes de outros movimen- "os mesmos postulados que a lógica mais obstinada", mas deve, an
tos, de outros ritmos, de outros espaços15. Segundo Deleuze, é o que tes, ser concebido como um "plano"je não como uma "meta ou um
nos mostrou um instrumento "psicomecânico", nascido da indústria programa"] sobre o qual se pode perguntar se "as conexõessão [...]
que criou novos "circuitos" cerebrais de ritmos "virtual" e não me- preestabelecidas,guiadas por trilhos, ou fazem-see desfazem-seem
cânico -- o cinema. Mas com a smézrf/zessa situação não é mais essa. campos de força?"Zt. A limitação da Gesta/ffbeoríe seria, então, a de
Indiferente à distinção artifício/natureza, ela concerne menos ao "me- restringir as conexões cérebro-mundo às integraçõesde formas; as
cânico" que ao "cognitivo", e se insere de modo diverso no trabalho relações forma-fundo que correspondem à "visão frontal" constituem
e na economia: a indústria importa-lhe menos. um tipo de integração que, para Deleuze, é questionada precisamente
Assim o problema se altera: não se trata mais de liderar "o espí- pelo espaço-tempo das novas imagens numéricas22. Objetou-se fre-
rito" do mecânico, mas de liberar o cérebro da smarfness, para Ihe qiientemente à IA versão forte que traz consigo uma espécie de denega
restituir um campo vital e prático, anterior à oposição artifício/natu- ção da ancoragem fenomenológica no mundo23. Deleuze apresenta
reza. Tratar-se-ia de um novo tipo de vitalismo "no momento em que uma outra concepção. As relações cérebro-mundo devem ser concebi-
se esfuma toda diferença entre a natureza e o artifício" iÓ. Ao cérebro- das, antes, segundo o "paralelismo" espinosano24, em que o espírito
computadorcaro à neurociênciacognitiva, Deleuzeirá opor, então, não mais está acima do corpo, nem mesmono corpo, mas com ele,
um cérebro vital, "pragmatista" à maneira de James e de Whitehead, acompanhando-o segundo as vias expressivas de seus modos de existên
ou sela, imerso em um universo pluralista, imprevisível. cia. Devemos conceber o cérebro e o mundo da seguintemaneira: o
Para Espinosa, o artifício pertencia totalmente à natureza, já que cérebro não é esse centro que controla o mundo, mas essa potência múl-
cada coisa "se define pelos agenciamentos de movimentos e de abetos tipla de conexões, sendo o virtual o plano que o faz passar por provas
nos quais elesse inserem, sendo essesagenciamentosnaturais ou de bifurcações inesperadas, de junções livres, de acasos incalculáveis.
não"17. Entre natureza e cérebro, trata-se de uma questão de "filoso- Ê o cérebro "intenso", múltiplo e flexível da inteligência vital.
fia prática". Assim, para Deleuze, a ciência cerebral sempre está re-
lacionada ao "cérebro vivido"; os "autómatos espirituais", aos "auto-
matismos psicológicos" -- Espinosa, a Janet18. Disso decorre que a i9 Poarpar/ers, p. 239.
microcirurgia cerebral não pode explicar as novas trilhas cerebrais, as
zo Qll'est-ce que [a pbiEosopbie?, p. 196.
novas maneiras de pensar, mas, "ao contrário, é a ciência que se deve
zl Idem, ibid.
esforçar para descobrir o que pode ter havido no cérebro para que se
22 Cf. Poarpczr/ers, pp. 76-7.

i5 Sobre Aion e Cronos, cf. Logígue dz/sefzs,pp. 1 90-8. 23Searlee Pugnam,por exemplo,tendema ir nessesentido,cadaum a seu
modo. Com a problemáticados "qualia" da consciência,a questãode um "in-
ió PoHrpar/ers, p. 112.
consciente" do "cérebro vivido" e do que elesupõe de possibilidadede nossa "mun-
17Spinozíz: pbi/osopbfe prízffque, Paras, Minuit, 1981, p 124 daneidade" permanece esquivada.

i8 Címéma 2: 1,'fmage femPs, pp. 342 ss. 24Cf. G. Deleuze e C. Parnet, Dra/ogues, pp. 74-7.

402 John Rajchman Existe uma inteligência do virtual 403


Compreende-se, então, por que não pode haver puro "autómato Turing (que apresentou uma teoria do que se pode "computar" em um
espiritual", ou pensamento puramente "autónomo". E que o pensamen- número finito de etapas, por qualquer método que seja) e John Van
to precisa de um fora para abala-lo e tornar vitais as potências do que, Neumann jcuja equipe concebeu o primeiro computador numérico).
nele, é para ser pensado. E nesse sentido em que o pensamento precisa E o casamento do logicismo filosófico com uma concepção da máquina
sempre do cérebro: não para tornar necessária a lógica de seu encadea- como "computador"; o próprio sentido de "artifício" na "inteligên-
mento, mas para apreender esse virtual que perturba o pensamento e o cia artificial" vem daí, bem como do conceito de "simulação" de Tu-
coloca em novos caminhos. A questão do cérebro torna-se, então, prá- ring. Foi assim que o cérebro pede se tornar esse objeto de psicologia,
tica: é a questão do que ainda podemos fazer com e/e. O verdadeiro neurologia, filosofia e de tecnologia que eleé hoje. As máquinas inte-
problema não é mais uma indistinção entre nossos cérebros e nossos ligentespassaram a nos parecer mais importantes do que as línguas
computadores, mas, antes, que "não sabemosainda o que pode um que falamos e os complexos de que sofremos.
cérebro" , mesmo quando ele se acopla a um máquina smazf em um dado Podemos desde já discernir algumas "regularidades" caracterís-
agendamento. Em lugar de dizer que "somos apenas máquinas smarf ticas dessenovo "arquivo"? Na prática, a smarfnessse define por
dentro de um carbono pesado", seria melhor que nos perguntássemos: competências ou habilidades que se podem testar para apreender seu
"como nos tornamos outros em um mundo que inclui não apenas es- acbfez,eme/zf.
A smczrfnesspertenceria, assim, ao cérebro mais "per-
sas máquinas, mas também esse tipo de dlscz/rso?". Chegamos, então, formante", o que, aliás, convém perfeitamente a nossas economias ditas
à questão foucaultiana por excelência: quando, como e com que con- de "competência", e não de "produção". Assim como behaviorismo
seqüências tal espécie de coisa se tornou "coisa dita"n? era um saber e uma filosofia que correspondiam à uma sociedade pro-
dutivista, à disciplina taylorista, o cognitivismo se associa a esse novo
4. 0 DISCURSO tipo de sociedade tecnicista. Assim, as novas relações máquinas-socie-
Na época em que Foucault escrevia sua "arqueologia" das ciên- dade se exprimiam por uma espécie de darwinismo do cognitivo, fas-
cias humanas, o centro das atençõesera, principalmente, Freud e Saus- cinado pelos programas-realização de nossos cérebros performances,
sure. Mas hoje a linguística declina, e o freudismo (pelo menos nos em uma concorrência quantificável e evolucionista.
Estados Unidos) é assoladopor toda uma nova "política da memó- Foucault analisará a normalidade como grande metacategoria do
ria"26. É como se o cérebro tivessevencido nossas "personalidades" século XIX; ele se interessava pelo processo através do qual a sexua-
mais ou menos freudianas, e as aptidões "cognitivas", nossas práti- lidade, e a homossexualidade,estavam em vias de se desprender, de
cas de linguagem. No lugar de Freud e de Saussure, temos então Alan forma que não éramos nem mais "freudianos", cristãos ou gregos, mas
que nos tornávamos outros, sem sabermos, ainda, o quê. Ora, hoje,
25A questão do virtual e do possível "deleuzeanos" se encontra na arqueo- com as garantias do cérebro "gay", a homossexualidadenão é mais
logia de Foucault. Pois o que Foucault chamava um arquivo das coisas ditas é di- um desvio nem uma anormalidade, mas uma "orientação" semelhan-
ferente de um dará-b.zse. E uma doação que delimita campos de possíveis do te, por exemplo, à do canhoto. SÓ se trata então de fazer com que se
que é possível dizer, ver, fazer, do que pode ser verdadeiro, ou falso. Assim, dizer reconheça isso e se asseguremseus direitos. E esse novo discurso se
ou ver o arquivo é ultrapassar a linha desse possível, ou devir outro. Se "o atual"
encontra em todos os lugares, nessa civilização do cérebro que nave-
é o tempo dessedevir, o "virtual" é o que nele se efetua-- a potênciado que não
pode ser verdadeiro, ou falso, do que está "por vir", o que resta a se "experimen ga na Internet. Vê-se, assim, que as tecnologias estão longe de serem
tar" no pensamento. E assim como para Foucault as coisas ditas não se reduzem simples próteses, contribuindo, antes, para determinar os campos do
jamais às possibilidades de proposições, frases ou speecb-acfs, já que permanecem possível nos quais nos tornamos o que somos.
sempre "acontecimentos", elas tampouco se limitam às "informações" e à sua
neurociencia cogmtlva 5. 0 REAL
2ólan Hacking propõe um "arquivo" foucaultiano dessa política em Remrif- Tomemos o caso da "realidade virtual" no sentidoestrito: uma
ing tbe soft: multipte personatity and tbe sciences ofmem07y, Princeton, 199S. tecnologia iniciante e incerta, em si pouco ameaçadora. Ora, ela se

404 John Rajchman Existe uma inteligência do virtual? 405


encontra na interseção entre duas grandes operações que escondem a permaneciam exteriores. Mas, agora, dizem-nos que essa idéia, por sua
história da fecho-smczrf,as quais caracterizam o tipo de formação em vez, se espetacularizou, e que não se pode mais se livrar dela: tal seria
que ela está inserida -- a simulação e a interatividade. Por um lado, nossa "condição virtual"zU
há a instituição militar jcom Turing, em Blelchley Park, a Internet como Esse discurso de verdade ou realidade perdidas repousa, entre-
sp/n-oáfda dissuasão nuclear) -- os próprios conceitos de "cibernéti- tanto, em uma estranha nostalgia ou melancolia, como se, outrora, as
ca" e de "auto-organização" se inscrevem nesse contextos/. Por ou- oposições real/irreal, imagem/modelo, verdadeiro/falso nem sempre
tro lado, há a grande industria do e?zferczínmenfjcom a numerização tivessem comportado zonas de indistinção criadoras. E justamente em
da montagem, e a importância da animação e dos efeitos especiaisl. vista dessas zonas que Deleuze tinha suas dúvidas sobre o conceito do
Assim, poder-se-ia falar de um verdadeiro mi/IZary-enter ai/zmezztcom- imaginário: no cinema das imagens-tempo,ele analisou um "falso mo-
p/ex: ele se apodera, hoje, das grandes sociedades de telecomunicação. vimento" que brinca com essas indistinções para atualizar o "virtual"
Esse "complexo" se apropria do pensamentocomo futurologia Assim, essecinema que ele chama de "cristalino" nos faz ver essemun-
publicitária. Todo um marÉefizzgdo "homem numérico" retoma o que do e nos faz acreditar em suas "potências do falso" que são as pofên-
já era um falso problema ou um problema mal colocado: o espectro cfas do ui7'fua/29.O verdadeiro problema seria, então, o seguinte:quais
de um irrealismo eletrânico generalizado. Assim, o que Turmg apre- são os destinos dessas "potências" em nosso mundo de telas e de ima-
sentou como hipótese em suas experiências de simulação se tornou, gens numéricas?
para nós, um clichê "pós-moderno" mesmo a vida teria setornado
artificial", indiferenciável das informações que deslizam em nossas 6. 0 ESPAÇO
telas. Assim, explicam-nos que, ao utilizarmos nossas máquinas, en- Michel Serres levanta a questão da geografia e da topologia: ele
tramos em um espaço ou em uma realidade que rivaliza com a nossa. nos propõe um "aulas" de nosso universo contemporâneo de "tempo
Tudo desapareceou "involui": os livros, o Estado, a cidade se tornam real" ou de transmissãosimultâneaou urra-rápida, a partir de um
caducos. e devemos nos contentar em nos comunicarmos uns com os esquema espacial que ele compartilha com Deleuze. A problemática
outros em um mundo convival de ilimitado info-consumo. Tudo se bergsoniana do "virtual" não deve se limitar à questão da duração ou
tornaria imagem quando nos encontramos diante de nossas telas.Tudo de espaçamento:uma "topologia" poderia, em sua opinião, respon-
o que acontece, aconteceriaàs imagens, não mais a nós mesmos, de der ao antimetrismo heidcggeriano ou bergsoniano30. Tratar-se-ia de
maneira que perdemos nosso "peso" e não mais podemos nos distin- uma topologia mais leibniziana do que cartesiana, na qual o movimento
guir delas. E como as próprias imagensperderam qualquer "âncora cria o espaço, por seus traJetos e percursos, e não se inscreveem um
gem" e são inteiramentemanipuláveis,nada mais nos resta a não ser espaço de coordenadas prévias ou abstratas um espaço de coorde-
nos tornarmos, alternadamente, cínicos, irónicos ou paranóicos, com nadas prévias ou abstratas -- um espaço "intensivo", e não "extensi-
relação a elas e a seu "controle". A idéia da "sociedade do espetáculo" vo", no qual é sempre o ponto que se encontra na interseção entre
era uma idéia crítica que supunha uma verdade ou um real que Ihe múltiplas linhas, e não a linha que vai de um dado ponto a um outro.
Nesse tipo de espaço, as linhas se tornam "dobráveis", sinuosas e
tranversais", e nos fazem ver forças imperceptíveis,não apenas for
27 Na teoria da "emergência auto-organizadora", provenientes dessas fon- mas visíveis. E a partir dessa topologia que Serres nos propõe a cano
tesmilitares fecho-smarfs, viram-se, frequentemente, convergências com Deleuze,
assimcomo com Bergson. Entretanto, é preciso ser prudente. Pois as "máquinas
desejantes",ou "máquinas abstratas" de Deleuzee Guattari não são, de fato, zs Cf., por exemplo, Jean Baudrillard, "Disneyworld Company", Liüératfon
máquinas Turning; elas supõem, antes, uma "anorganização" produtora como 04/03/1996
.
potência dos seres "quaisquer", e não "racionalmente calculadores". Cf. Gilles
29G. Deleuze, Poarpar/ers, pp. 93-5; Cizzéma2: L'fnzage-femps, pp 92 ss.
Châtelet, "Du chãos et de I'auto-organisation comme néo-conservatisme festim":
Les 7'empaModernos, n' 581, mar.-abr. de 1995. 30Michel Serres,Af/as, Julliard, 1994, pp. 70-1.

406 .john Rajchman Existe uma inteligência do virtual? 407


grafia de um mapa-múndi em que o próximo e o longínquo, o global jar em liso ou em estriado35. Poder-se-ia mesmo dizer que oÉ dois são
c o local tendem a se tornar superponíveis, em uma espéciede "desa- inseparáveis na geofilosofia deleuzeana, pois a cidade é ao mesmo tem-
bamento" do espaço da perspectiva clássica3i po condição e objeto dessas viagens filosóficas; e até mesmo o antiur-
Ele chega, assim, ao que, para Deleuze, constituiria o traço dis- banismo de Heidegger não é senão um sintoma disso36. Poder-se-ia,
tintivo das imagens numéricas ou televisuais na condição de objetos portanto, se perguntar que mutaçõessão introduzidas por nossas ci-
possíveisde um Kunsfmo/Zen ou "devir-artista", a perda da orienta- dades-mundos modernas, de que se diz tenderem a substituir a nação
ção vértico-horizontalda imagem: "a tela não é mais uma porta-ja- como unidade geofilosófica, para nos propor não um cosmopolitismo,
nela (atrás da qual), nem um quadro-plano (no qual), mas uma super- mas um "onipolitismo"generalizado37
fície de informação sobre a qual deslizam as imagens como 'dados'32.
Assim, a fotografia perde sua famosa indcxicalidade, enquanto, em ar-
7. A CIDADE
quitetura, o muro-tela tende a triunfar sobre o espaço "tectónico' Com a questão da cidade, é portanto o próprio estatuto do filo-
Perda, portanto, mais também liberação, pois, explica Deleuze, não sófico, ou de sua compreensão, que está em questão. Pois suas "con-
há problema mais falso do que o da perspectiva33,e mesmo nas for- dições empíricas" -- coxa, pbf/za, imanência -- tendem a se reunir nas
mas clássicassubsisteum outro espaço, o da força "barroca", por cidades, ou em relaçãoa elas. E é a partir da cidade, imperial ou co-
exemplo. A perda da perspectiva e da integração forma-fundo deixa mercial, que se pode constatar, segundo Deleuze, que o Estado nunca
portanto emergirem as possibilidades de uma outra topologia, chegan- é apenas territorial, mas igualmente desterritorializante, implicando
do a uma certa "leveza"34. Tal seria igualmenteo caso do "liso" de 'fluxos" de bens e de pessoas, c espaços mais ou menos livres de seus
Pierre Boulez, em que o som ultrapassa as linhas horizontais da melo- agrupamentos. A cidade deve ser, portanto, concebida segundo as
dia e verticais da harmonia, para encontrar uma zona musical amorfa "infra-estruturas" que facilitam ou determinam essesmovimentos, esses
ou informe. Para Deleuze, isso equivale a mudar o sentido da "arqui- encontros. Assim, os amigos gregos, esses rivais livres da verdade,
tetura" de toda obra de arte, qualquer que seja seu material ou suporte: deveriam encontrar na agora p#/losopboi fugindo da colonização, para
em cada caso, trata-se de incluir aí essa zona amorfa ou lisa na qual que a filosofia pudesse nascer38.Era aí, nesse espaço à margem da
as "máquinas abstratas" ainda podem funcionar. colonização, que se podiam praticar essesexercícios de "dizer-a-ver-
Vê-se, portanto, por que e como o imaginário do fecho-smart não dade" nos quais Foucault ressaltava as relaçõesartifício-temporais que
é mecânico ou retilinear, mas liso, flexível, e até mesmo fluido. Ele se encontram em Baudelaire em Paria, com a idéia do moderno39
supõe um outro regime, um outro "devir-artista", diferente do da trans-
parência ou do "muro branco" modernos, c que se faz através dos
"materiais de expressão", e não por uma "imaterialidade" ascetizante. 35À4í/leP/afeaKir, pp. 601, 604-5
Mas, para Deleuze, o liso e o estriado caracterizam não somente a 3óEm sua concepção do "morar", Heidgger "se enganou de povo, de terra,
cidade, mas também o pensamento: em ambos os casos, pode-se via- de sangue", G. Deleuzee F. Guattari, Qu'esf-ce que /a pbilosopóie?,p. 104; cf.,
igualmente, pp. 90-1 . Na "geofilosofia"deleuzeana, a terra é leve, o povo, por vir;
o sangue, misturado ou bastardo
3i Ele se aproxima, assim, do que Paul Virilio descreve como "a perspectiva 37 Cf. Paul Virilio, La pirasse de /ibérfaffon, p. 105.
do tempo real", La uffessede /íbérafion, pp. 35 ss.
sa Çlu'est-ceqiie la Pbilosopbie?, pp. 82 ss.
3zG. Deleuze, PourParlers, pp 107-8; Ci/zémcz2: L'image-remos, pp. 346-50.
39Sobre a cidade baudelairiana, cf. Claude Imbert, "La ville en négatif", Les
33MiEle Plateaux, p. 366. Temos Àfoder/zes,n' 581. No que concerneà questão de Wittgenstein, pode-sedizer
34Com Greg Lynn, tentamos elaborar esseconceito de /fgbf/zessem ANY, que ele passa de uma austeridadeloosiana, na qual a lógica se cala, a uma ima-
5, 1994. Cf. também Christine Buci-Glucksmann, L'oeí/ czz7'fograpbiqae
de /'arf, gem do pensamento como cidade em que se supõem múltiplas "formas de vida
Paria, Galilée, 1996, pp. 160 ss. nas quais a lógica se "dissolve

408 Existe uma inteligência do virtual? 409


John Rajchman
Assim, a pbi/fa se liga à cidade e suas zonas livres; suas viagens e os de movimento, em tempos virtuais e espaços lisos. É com relação a esse
personagens de seu drama delas dependem. gênero de espaço-tempo que Deleuze formula o problema do moder-
Mas o que acontece a essas zonas quando nossas cidades são no: como inventar ou reinventar as potências do singular em toda vida,
reconfiguradas por fluxos de informações c pelos novos espaços de para além de suas qualidades particulares, sem as fundir em uma massa
agrupamento que a torna m possíveis? Alguns diagnosticam, aqui, uma indiferenciada? Como acreditar no mundo também como fonte des-
artificialização da vida e uma museologização da cultura, sintomas de ses movimentos inéditos que atravessam as cidades e nossos modos de
um niilismo que ameaça apagar a grande condição geofilosófica do habita-las? Eis o problema da minoria como potência do povo por vir,
pensamento -- a "cidade qüe pensa" ou a "metafísica da cidade"40. em Kafka; cis, igualmente, a questão melvilleana de um espaço dinâ-
Em nossas "conurbações" globalizadas, não mais haveria zonas livres mico onde as singularidadespodem se compor como em um "muro
para nos tornarmos novamente modernos, não haveria mais tempo nem de pedras livres, não cimentadas, em que cada elemento vale por si
espaçopara as viagensdo pensamento. mesmo e, entretanto, em relação aos outros: grupos isolados e relações
Pode-se ler, nesse sentido, a terrível serenidade que sente Rem flutuantes, ilhas e entre-ilhas, pontos móveis e linhas sinuosas.-"42
Koolhaas nessas"cidades genéricas" ao mesmo tempo hiperlocais, tais E esse direito ao movimento que Deleuze procura introduzir no pró-
como os aeroportos, que vemos serem tão rapidamente construídos prio conceito do político e da "dignidade democrática"43. A questão
na Ária, por exemplo.Essas cidadesnão necessitammais do antigo se torna, então: como esse movimento se traduz na cidade "onipolita",
tipo de identidade urbana, centrada e histórica, e preferemviver em onde o flanar e a deriva não mais existem?
uma impermanência constante, sem espaço público clássico, e com um Ê claro que as relações entre a cidade e o pensamento mudaram
passado cada vez mais turístico, "fantasma" . Elas existem em uma es- muito desde Platão e a agora ateniense. Foi possível imaginar cidades
pécie de contemporaneidade que tende a banalizar a própria diversi- transcendentes como lugares ou modelos da cidade filosófica que fo-
dade41.No entanto, essa não é a análisede Koolhaas, pois, para esse mos convidados a imitar em nossas almas, esperando que elas se con-
autor, ainda vale a pena viajar no "genérico", assim como o velho cretizassem de fato. Mas também existiu uma outra tradição da "ima-
sonhador de Proust, para verificar os devires ou as singularizações que nência" em que o que importava era, antes, a questão dos "mtmdos
estão por fazer ou por viver. Assim, ele nos convida a um novo tipo virtuais nas cidades, como, por exemplo, no caso dos "signos mun-
de urbanismo à procura de um "plano de consistência" anterior a tudo danos" de outrem, em Proust, ou em Foucault, para quem o papel do
o que se pode programar ou planejar, capaz de nos fazer viver uma cinismo como prática na cidade antiga visava não um outro mundo,
inteligência "alegre" ou "leve". mas outras possibilidades de vida neste mundo.
Mas o que dizer, hoje, dessetipo de inteligência na cidade? Curio-
samente, na filosofia política atual, deseja-se voltar às concepções clás-
sicas de espaço público ou de sociedade civil, como lugares-caução da 4z G. Deleuze, Crilfqire ef c/fniqife, Paras, Minuit, 1993, p. 1 10. No pragma-
verdade republicana ou do consenso democrático, enquanto eles ten- tismo que Deleuze descreve aqui(em especial em James), vê-se igualmente um pro
dem, de fato, a desaparecerou a fugir em todos os sentidos. Aquilo longamentoda crítica do arco-reflexo e a concepção bergsoniana do cérebro como
de que realmente precisaríamos seria de novos lugares de encontro e :afastamento" entFea excitação e a resposta, utilizada por Deleuze em Cínéma 2:
L'lmzzge-femPs,
pp. 274 ss.
43 G. Deleuze, Crfflqlfe ef c/llzlqne, p 44. Assim Deleuze prefere o espaço
40Jean-François Lyotard, "Zune", in Mora/ffés posrlnoder?les,Pauis,Galilée. dos "devires democrático" às cauções do Recbfssfaar; e é talvez através de sua leitura
1993, PP. 25-36.
de Espinosa que podemos encontrar elementos de uma concepção "imanentista
4i Rem Koolhaas, "The genericcity", S, À{, L, XI., Monacelli. 1996. Nesse da democracia que tem por objeto as pofefzffae e suas relações com a palavra li-
gênero de cidade, como na Atlanta "pós-moderna ", não há mais espaço de perspec- vre, e não o contrato e uma verdade de Estado jcomo Hobbesl -- e, assim, de uma
tiva clássica, o que permite, em contrapartida, para Koolhaas, "surpresas" de um política do "virtual", e não apenasdo possívelque abriria o próprio sentido do
tipo diferente. político a uma experimentação irredutível.

410 John Rajchman Existe uma inteligência do virtual? 411


Assim, na cidade barroca, Deleuzeviu todo um mundo "leib geografias -- por exemplo, as relações respectivas entre Arenas e Je-
niziano", todo um teatro de máscarase de artifícios. Ele enfatizao rusalém que Proust teria procurado em Paras, em sua busca de uma
desmoronamento do cosmos heliocêntrico(no qual se pode sempre "se nova imagem da inteligência. O virtual passa, assim, de uma região a
encontrar"), e a emergência de um mu/zd#s perspectivista (que cada outra, sem jamais se esgotar, criando, em cada lugar, não apenas no-
manada exprime de seu ponto de vista). Leibniz, advogado de Deus, vidades de contexto, mas também novidades eternas que se repetem
se torna o filósofo de uma jurisprudência do singular. A separação em ou variam segundo suas sobrevivências em outros contextos e com
dois reinos, empírico e transcendental, encontra-se substituída por um outros personagens conceituais, como é, por exemplo, o caso do des-
único edifício de dois andares, que se exprimem mutuamentc. Mas nós, tino do cogito cartesiano. Assim, nossas "cidades-cérebros" só se tor-
modernos, embora permaneçamos sempre "barrocos" ou "complica- narão novos meios de filosofia se elas Ihe derem não apenas uma vida
dos", não mais ocupamos essegênero de habitação ainda "compos- ou vitalidade, mas também uma sobrevida, ou "sobrevitalidade". O
sível" e "harmónica" . Encontramo-nos, antes, no universo dissonante virtual da inteligência deleuzeana sempre precisou de tempo e de amigos
e pluralista descrito por Whitehead, em que tudo é "janela", tendo os por vir. E é, então, talvez com uma preocupação pela sobrevida tanto
disparatesencontrado um "plano" para comunicar ou se compor. É quanto pela vida que Deleuze colocou, com Félix Guattari, a questão
o mundo do perspectivismonietzscheano,em que não se trata mais o que é a filosofia?", para nos alertar do seguinte: "Não nos falta
de múltiplos pontos de vista sobre a mesma cidade, mas de múltiplas comunicação; ao contrário, temos comunicação demais; falta-nos cria-
cidades em cada ponto de vista, unidas pela sua distância e ressoando ção. Fa/fa-mosresisrê?zelaao presente. A criação de conceitos solicita,
por suas divergências44. por si mesma, uma forma futura, invoca uma nova terra e um povo
Em lugar de sermos "cosmopolitas", cidadãos do mundo, eis que, que ainda não existe..."qo
com Deleuze, tornamo-nos habitantes perplexos dessas cidades múl-
tiplas, tanto interiores como exteriores, que nos fazem sair do "possí-
vel" para enfrentar outros mundos, outras histórias, outros agrupa- Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz
mentos virtuais. O mesmo se daria, então, nos casos da cidade e do
cérebro: aqui como lá sempre se trata de fazer existirem planos dc
imanência, e não somente de organização, de fazer surgirem zonas "li-
sas" de composição e de interseção heterogêneas. De maneira que a
cidade se torna suposição do "cérebro vivido", ao mesmo tempo que
o cérebro se torna fonte de novos percursos "multimundanos"

8. A SOBREVIDA
Na filosofia, trata-se sempre de vida e de sobrevida; é o que faz
com que ela trace um percurso diferente daquele, por exemplo, das
ciências: um "tempo estratigráfico" de superposições4S. É assim que
a cidade é condição empírica e contingente não apenas da vida da fi-
losofia, mas também de sua sobrevida em novos meios e com novas

44G. Deleuze, Loglqz/e d sons, p. 203, elaborado em l.e P/f: Lefb/zfz ef /e


B.27'0que, Paras, Minuit, 198 8.

45G. Deleuze e F. Guattari, Qlr'esr-ce q e /a pbi/osopbie?, p. 1 18. 4óG. Deleuze e F. Guattari, 11?u'esf-ceque /a pbl/osopble?, P. 104

412 John Rajchman Existe uma inteligência do virtual? 413


CÓDIGO PRIMITIVO CÓDIGO GENÉTICO
A CONSISTÊNCIA DE UMA VIZINHANÇA
Laymert Garcia dos Santos

Uma intuição sugeriu-meque deveria aproveitar a oportunida-


de para tentar encontrar em Deleuze a formulação de um agendamento
que vem se efetivando entre o primitivo e o contemporâneo e que tem
transformado de maneira surpreendenteo sentido da presença dos
povos indígenas em nossa sociedade. Pressentia que nessa dinâmica se
explícitava algo que o filósofo talvez qualificasse como o advento de
um acontecimento. Como todos sabem, o advento de um acontecimen-
to era uma questão central em Deleuze e Guattari -- basta lembrar
que os capítulos de À4i/P/afãs foram todos escritos em torno de uma
data-chave.
Seguindoportanto minha intuição, fui reler o capítulo "Selvagens,
bárbaros, civilizados" no Ánti-Edfpo e o "Tratado de nomadologia
em À4//P/afãs, pois ali estavam tematizados os primitivos e os contem-
porâneos, agenciados pelo fio da desterritorialização. Em tempos de
capitalismo globalizado e de desregulação generalizada, esseconceito
tem sido muito evocado, freqüentemente com um sentido bem mais
acanhado do que aquele por eles empregado -- a ponto de quase ba-
naliza-lo. No entanto, o leitor pode ser tomado pelo alcancevertigi-
noso do processo de desterritorialização quando a louca lucidez de
Deleuze e Guattari capta, por exemplo, num lance trans-histórico, o
ponto de articulação entre o código primitivo, o código genético e suas
correspondentes descodificações.
SÓum pensamento-limite poderia formular tal articulação e for-
necer, em 1972, os parâmetros para o entendimento de uma realida-
de que o desenvolvimento da genética e a fusão da informática com a
biologia na biotecnologia,por um lado, e a erosão da cidadania e a
reestruturação do Direito a partir da noção de informação, por ou-
tro, começama concretizar. Assim como Marx antecipava os efeitos
da automação a partir da primeira Revolução Industrial, Deleuze e
Guattari, seguindoa linha do devir, anteciparam o que será a tercei-
ra, e forneceram a sua cifra.

Código primitivo -- código genético: a consistência de uma vizinhança 415


Vejamos o que se passa. Respondendo à pergunta: por que não Deleuze e Guattari: "Observar-se-á que essestraços gerais quc carac-
dizer que o capitalismo substitui um código por outro, que faz um novo
terizam um código se encontram, precisamente, naquilo a que hoje em
tipo de codificação?, eles observam que o caráter inconfessáveldo dia se chama código genético; não porque dependa de um efeito de
capitalismo é intrinsecamente avesso à codificação; e para demonstrá-
significantemas porque, pelo contrário, a cadeia que eleconstitui só
lo desfiam as características de um código. Em primeiro lugar, um é significante secundariamente, na medida em que põe em jogo liga-
código determina a qualidade respectiva dos fluxos que atravessam o
ções entre fluxos qualificados, interações exclusivamente indiretas,
socius (por exemplo, fluxos de bens de consumo, de bens de prestí- compostos qualitativos essencialmentelimitados, órgãos de percepção
gio, e fluxos de mulheres e crianças); em segundo, o código visa esta-
e favores exfraq z'miras que selecionam e se apropriam das conexões
belecer relações necessariamente indiretas entre fluxos qualificados e, celulares"z
como tais, incomensuráveis; evidentementetais relações implicam ex- Assim, os traços característicos do código primitivo e do código
traçõesquantitativasde fluxos vários, mas tais quantidadesnão se genético se correspondem. Evidentemente,é preciso assinalar uma
enquadram em equivalências que suporiam "algo" ilimitado; as quan- diferença: no primeiro as conexões entre fluxos são operadas por fa-
tidades formam compostos qualitativos limitados e o que compensa tores extra-económicos, enquanto no código genético as conexões
o desequilíbrio é a diferença dos elementos. Deleuze e Guattari con-
celulares são operadas por fatores extraquímicos. Mas não há como
cluem: "Todas estas características da relação de código -- indireta, negar: em seu entendimento, um código sempre tem uma dinâmica
qualitativa e limitada chegam para mostrar que um código nunca pnmiüva.
é económico, nem o pode ser: exprime, pelo contrário, o movimento Embora tão sumária, e feita assim de passagem, a correspondência
objetivo aparente por meio do qual as forças económicas ou as cone-
estabelecida por Deleuze e Guattari entre código primitivo e código
xões produtivas são atribuídas a uma instância extra-económica que
genético é muito importante, porque nos permite descobrir algo que
serve de suporte e de agente de inscrição, como se dela emanassem"l.
estava aí, sob nossos olhos, e que não conseguíamos perceber. Isto é:
Em suma, só há código onde essa instância extra-económica, instân
que a vida, no que ela tem de propriamente molecular, se caracteriza-
cia de antiprodução, se rebate sobre a economia e dela se apropria, va até muito recentementepor uma dinâmica primitiva, que a vida dos
caracterizando o que os autores denominam "mais-valia dc código'
homens, dos animais, das plantas e dos microorganismos era regida
A relação de código não é portanto apenas indireta, qualitativa, limi-
pelo código genético -- até que a sua decodificação pela ciência de
tada, mas também e por isso mesmo extra-económica, operando liga- Schrõdinger e de tantos outros permitisse a mais extrema das des-
ções entre fluxos qualificados. Por isso mesmo, a relação de código territorializações.
implica a existência de um sistema de apreciação coletiva, de um con- A descoberta de que a dimensão molecular da vida pede ser pri-
junto de órgãos de percepção ou crença como condição de existência
mitiva até há pouco assusta. Não só porque nos faz ver na vigência
e de sobrevivência da sociedade primitiva. dessa dinâmica ancestral como ainda somos primitivos, mas também,
Assim Deleuze e Guattari caracterizam o código, e o fazem ten-
e principalmente, porque só nos damos conta disso quando a vida passa
do sempre em mente a sociedade selvagem. Por isso mesmo, torna-se a ser desvinculada da terra como sociws, passa a ser desterritorializada
interessante observar o movimento de seu pensamento, ao aproxima- pela ciência e pela tecnologia e axiomatizada pelo capital.
rem código primitivo e código genético; como se as características A decifração do código genéticonão se dá como uma ação de-
imanentes de um e de outro fossem as mesmas. Com efeito, escrevem
sinteressada, e sim visa à manipulação. Ora, a manipulação efetuada
pela engenharia genética consiste na desarticulação e rearticulação de
processos inframoleculares, no rompimento das barreiras entre as es-
l Cf. G. Deleuze, e F. Guattari, l.'A/ztf-(Edfpe, Paras, Minuit, 1973 (nova ed.
aumentadas,p. 294. Na tradução portuguesa de Joana Morais Varela e Manuel
Mana Carrilho, editada em Lisboa por Assírio & Alvim, s/d, p. 198.
2 Idem, p. 295 (Minuit) e pp. 198-9 (Assírio & Alvim)

416 Laymert Garcia dos Santos Código primitivo -- código genético: a consistência de uma vizinhança 417
péciese dentro de cada espécie,na alteração, embaralhamentoe ar- formando a informação enquanto diferençaqualitativa numa diferença
tificialização das sequências genéticas, na produção de seres inéditos, quantitativae abstrata; "colocando preço no valor", para usar a ex-
monstruosos, como a mulher-farmácia, animais transgênicos, bacté- pressão de uma camponesa colombiana a respeito do que se pretende
rias que comem petróleo, tomates que resistemao tempo e não apo- fazer agora com a vida vegetal, animal e humana. Como se a exten-
drecem. Decifração e manipulação do código genético são complemen- são do sistema de patentes que protegia a invenção mecânica indus-
tares e configuram uma intervenção cujas conseqüências são impre- trial para o campo da própria vida consumassea ruptura definitiva
visíveis, para muitos ambientalistas e cientistas, inclusive biólogos com a unidade primitiva, selvagem,do desejoe da produção, que é a
moleculares. Os especialistas em biosegurança chegam até a conside- terra. "Porque a terra", escrevemDeleuzee Guattari, "[...] é entidade
rar a produção de organismos pela engenharia genética mais perigosa única e indivisível, o corpo pleno que se rebate sobre as forças produ-
do que a fabricação da bomba atómica, porque não se sabe como es- tivas e delas se apropria como se fosse o seu pressupostonatural ou
ses organismos interagem com outros e com os ecossistemas,e nao divino. O solo pode ser o elemento produtivo e o resultado da apro-
existe a possibilidade de se controlar a sua proliferação e o seu impacto priação, mas a Terra é a grande estale inengendrada, o elementosu-
em caso de acidente. perior à produção que condiciona a apropriação e a utilização comuns
Não há como dissociar a decifração do código genéticode sua do solo".3
ruptura. Isso fica bastante evidenciado quando à decodificação, à des- Da mais-valia de código à mais-Dália do alto capitalismo. Se con-
territorialização promovida pela biotecnologia, se soma a axioma- cordamos com Deleuze e Guattari em quc "a propriedade é precisa-
tização efetuada pelo capitalismo através da introdução do regime de mente a relação desterritorializada do homem com a terra", podemos
propriedade intelectual. A fusão dos fluxos tecnológicosda Revolu- perceber a que nível de intensidade chegou essa relação com a instau-
ção Eletrânica com os fluxos desterritorializados da emergente Revo- ração de um regime de propriedade intelectualque permite a apropria-
lução Biológica começou a ganhar consistênciae expressãoquando ção e até mesmo a monopolização da informação genética. E é com-
ficou claro que os fluxos de ambas processavama informação como preensível que tal processo seja percebido por muitos como uma des-
a diferença que faz a diferença, para usar as palavras de Gregory Ba- sacralização da vida e a sua redução à condição de mercadoria no
teson. Tal compreensão provocou um ímpeto extraordinário na pes- biomercado. Isso fica evidenciado, por exemplo, na reação dos Guaymi
quisa biotecnológica c abriu um campo novo para a exploração capi- do Panamá à tentativa do secretário do Comércio dos Estados Uni-
talista, na medida em que possibilitava a apropriação da própria vida dos de patentear linhagens de células extraídas de uma das integran-
no seu nível mais ínfimo, que é o da informação genética. Não é à toa tes desse povo, por conterem material genético interessante para a
que geneticistas americanos, europeus e japoneses começaram a fazer indústria farmacêutica. Os índios consideraram o fato uma profana-
/oflzfz,ezzfures
com o capital de risco, criando uma figura nova, a do ção incompatível com o seu código de valores, atitude que contrasta-
cientista-empresário; também não é à toa que as ações das empresas va fortemente com a conduta de John Moore, cidadão americano que
de biotecnologiaforam as que mais se valorizaram em Wall Streete também teve células suas apropriadas e patenteadas, mas moveu sem
na City nos últimos anos; finalmente, cabe ressaltar a disputa entre os sucesso uma ação judicial para reivindicar a posse de seus próprios
próprios laboratórios de biotecnologiapelo que o jornal Fi/zancla/ fragmentos genéticos!...
Tomes considera "a derradeira privatização", aquela em que se con- É interessante notar como o capital industrial e financeiro inter-
frontam os que defendem o patenteamento da informação genética fouf nacional investena instauração do regimede propriedade intelectual
court e os que pretendem patenteá-la embutida num processo ou pro- em escala planetária, para garantir a apropriação de fragmentosde
duto industrial específico. informação de todo e qualquer ser vivo, agora reduzido à condição
Decifrado e rompido, numa palavra, decodificado, o código ge-
nético foi envolvido numa operação de axiomatização que visa re-
territorializá-lo e inscrevê-lo no regime da propriedade privada, trans- 3 Idem, p. 164 (Minuit) e p. 112 (Assírio &: Alvim)

418 Laymert Garcia dos Santos Código primitivo -- código genético: a consistência de uma vizinhança 419
de "recurso genéticovirtual". Como se o advento da globalização OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E
económica precisasse se concretizar na exploração mais minimamen- O PERSPECTIVISMOAMERÍNDIO
te localizada; como se agora fosse imprescindível para o capital ope- Eduardo Viveiros de Castro
rar nas duas pontas, ou nos dois níveis, o molar-global e o molecular-
genético, para garantir a sua reprodução e deslocar os seus limites.
O fato de o capitalismo procurar abarcar a questão vital nesses
dois extremos ou níveis torna a situação anual ainda mais desesperadora
do que e]a parecia a De]euze e Guattari no limiar da década de 80, EI ser humano se ve a sí mismo como tal. La Luna.
quando escreveram o "Traité de nomadologie"; naquela época, a bio- la serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin
tecnologia e o sistema de propriedade intelectual ainda não faziam parte embargo,como un taparo un pecarí, que ellos matan.
da "máquina de guerra mundial". Entretanto,por maior que seja o IBaer, 1994,p. 2241
alcance da dinâmica do capitalismo, está ficando explícito que ela
própria produz exclusão, em escalacada vez mais ampliada. Le point de vue est dans le corps, dit Leibniz.
Entre os excluídos se encontram, é claro, os povos indígenas que IDeleuze, 1988, p. 161
ainda vivem no mundo. Desprezados como arcaicos e obsoletosnas
eras moderna e contemporânea, tais povos estão despertando o inte-
resse do capital porque permitem um acesso mais rápido aos recursos INTKODUÇÃO
genéticosda biodiversidade, quando não se tornam eles próprios o O tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento ameríndia
recurso genéticocobiçado! Mas não é só por isso que eles parecem que manifesta sua "qualidade perspectiva" (Àrhem, 1993): trata-se da
ganhar atualidade; é que muitas vezes sua relação com o território con- concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o
serva ainda, poderosos e intensos, os traços atribuídos por Deleuze e mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, hu-
Guattari à relação do nâmade com o espaço. Há muito o que apren- manas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista dis-
der com os povos indígenas sobre os fluxos que percorrem e consti- tintosi. Os pressupostos e consequências dessa idéia são irredutíveis
tuem o espaço nâmade, conectando a terra como grande estase inen- jcomo mostrou Lima, 1995, pp. 425-38) ao nosso conceito corrente
gendrada à "nova terra" que Deleuze e Guattari desejavam prenun- de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se dispõem,
ciar. Nesse sentido, as páginas de À4í/P/afãs sobre o "absoluto local" a bem dizer, de modo perfeitamente ortogonal à oposição entre rela-
e o "global relativo" são não só decisivas, como de uma atualidade tivismo e universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio
Impressionante. aos termos de nossos debates epistemológicos põe sob suspeita a ro-
bustez e a conseqüente transportabilidade das partições cosmológicas
que os alimentam. Em particular, como muitos antropólogos já con-

l Este trabalho foi publicado originalmentena revista À4ana ]2 [2], 1996),


do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Socialdo Museu Nacional. Ele
resulta de um diálogo com Tânia StolzeLima, que escreveuparalela e sincro
nicamente um artigo sobre o perspectivismo na cosmologia juruna clima, 19961.
Por esse motivo, não incluí no que se segue exemplosou consideraçõestomados
de sua rica etnografia (Lama, 1995). Esperamos poder em breve combinar nossos
respectivos estudos sobre o perspectivismo em uma publicação de maior fôlego.

420 Laymert Garcia dos Santos Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 421
cluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre natu- pectivizar nossos contrastes contrastando-os com as distinções efeti
reza e cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou vamente operantes nas cosmologias ameríndias.
domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por
uma crítica etnológica rigorosa. PERSPE(:rIV]SMO
Tal crítica, no caso presente, impõe a dissociação e redistribuição O estímulo inicial para esta reflexãosão as numerosas referên-
dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradi- cias, na etnografia amazónica, a uma teoria indígenasegundo a qual
cionalmente se opõem sob os rótulos de "natureza" e "cultura«: uni- o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividadesque
versal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado povoam o universo -- deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros
e instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendên- níveis cósmicos, fenómenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo
cia, corpo e espírito, animalidadee humanidade, e outros tantos. Esse objetos e artefatos -- é profundamente diferente do modo como esses
reembaralhamento etnograficamente motivado das cartas conceituais seres os veem e se veem.
leva-me a sugerir a expressão ma/final ra/esmo para designar um dos Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os hu-
traços contrastantes do pensamento ameríndio em relação às cosmo- manos como humanos, os animais como animais e os espíritos (se os
logias "multiculturalistas" modernas: enquanto estas se apóiam na im- vêeml como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem
plicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das cul- os humanos como animais Ide presas, ao passo que os animais lde
turas -- a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predado-
e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos res). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos: apreen-
espíritos e dos significados --, a concepção ameríndia suporia, ao dem-secomo (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas pró-
contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A prias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e carac-
cultura" ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a "nature- terísticas sob a espécieda cultura -- vêem seu alimento como alimen-
za" ou o objeto, a forma do particular. to humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem
Essa inversão, talvez demasiado simétrica para ser mais que es- os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes da carne podre como
peculativa, deve se desdobrar em uma interpretação fenomenológica peixe assado etc.), seus atributos corporais jpelagem, plumas, garras,
plausível das categorias cosmológicas ameríndias, que determine as bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema so-
condições de constituição dos contextos relacionais designáveiscomo cial como organizado do mesmo modo que as instituições humanas
natureza" e "cultura". Recombinar, portanto, mas para em seguida jcom chefes, xamãs, festas, ritos etc.). Esse "ver como" refere-selite-
dessubstancializar, pois as categorias de natureza e cultura, no pensa- ralmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em
mento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do
não possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais -- elas não fenómeno; de todo modo, os xamãs, mestres do esquematismo cós-
designam províncias ontológicas, mas apontam para contextos re- mico (Taussig, 1987, pp. 462-3) que se dedicam a comunicar e admi-
lacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista. nistrar essas perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensí-
Como está claro, penso que a distinção natureza/cultura deve ser veis os conceitos ou tornar inteligíveis as intuições.
criticada, mas não para concluir que tal coisa não existe jjá há coisas Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal con-
demais que não existem). O "valor sobretudo metodológico" que Lévi- cepção está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta
StraussIhe atribuiu j1962b, p. 327) é aqui entendidocomo valor se de cada espécie é um mero envelope (uma "roupa") a esconder uma
bretudo comparativo. A florescente indústria da crítica ao caráter oci- forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria
dentalizantede todo dualismo tem advogado o abandono de nossa espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma
herança conceitual dicotâmica, mas as alternativas até agora se resu- interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade
mem a desideratos pós-binários um tanto vagos; prefiro, assim, pers- formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos

422 Eduardo Viveiros de Castro Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndia 423


assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. Algumas observações gerais são necessárias. O perspectivismo não
Teríamos então, à primeira vista, uma distinção entre uma essência engloba, via de regra, todos os animais (além de englobar outros seres);
antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seresanimados, e uma apa- a ênfase parece cair naquelas espécies que desempenham um papel
rência corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria simbólico e prático de destaque, como os grandes predadores, rivais
um atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável.A noção dc dos humanos, e as presas principais dos humanos -- uma das dimen-
" roupa "2 é uma das expressões privilegiadas da metamorfose -- espíri- sões centrais, talvez mesmo a dimensão fundamental, das inversões
tos, mortos e xamãs que assumemformas animais, bichos que viram perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e relacionais de preda-
outros bichos, humanos que são inadvertidamente transformados em dor e presa (Vilaça, 1992, pp. 49-51; Ârhem, 1993, pp. 11-2). De ou-
animais --, um processo onipresente no "mundo altamente transfor- tro lado, nem sempre é claro que se atribuam almas ou subjetividades
macional" (Riviêre, 1995, p. 201 ) proposto pelas ontologias amazõnicas. a cada indivíduo animal, e há exemplos de cosmologias que negam aos
Esse perspectivismo e transformismo cosmológico pode ser divi- animais pós-míticos a capacidade de consciência (Overing, 1985, p.
sado em várias etnografias sul-americanas, mas em geral é objeto de 249 ss; 1986, pp. 245-6), ou algumaoutra distinção espiritual(Vivei-
comentários concisos,J e parece ser muito desigualmente elaborado. ros de Castro, 1992a,pp. 73-4;Baer, 1994, p. 99). Entretanto,a no-
Ele se acha também, e ali com um valor talvezainda mais pregnante, ção de espíritos "senhores" dos animais ("mães da caça", "mestres dos
nas culturas das regiões boreais da América do Norte e da Ásia, e entre q enxadas" etc.) é, como se sabe, de enorme difusão no continente.
caçadores-coletores tropicais de outros continentes.4 Na América do Esses espíritos-mestres, claramente dotados de uma intencionalidade
Sul, as cosmologias do noroeste amazânico mostram os desenvolvimen- análoga à humana, funcionam como hipóstascs das espécies animais
tos mais completos (ver Ârhem, 1993 e no prelo, em quem a descrição a que estão associados, criando um campo intersubjetivo humano-
que precedefoi largamenteinspirada; Reichel-Dolmatoff, 1985; Hugh- animal mesmo ali onde os animais empíricos não são espiritualizados.
Jones, 1996). Mas são as etnografiasde Vilaça l 1992), sobre o caniba- Recordemos sobretudo que, se há uma noção virtualmente univer-
lismo wari', e de Lima j1995), sobre a epistemologia juruna, que trazem sal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado original de indi-
as contribuições diretamenteafins ao presentetrabalho, por ligarem ferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia.6
a questão dos pontos de vista não-humanos e da natureza posicional Os mitos são povoados de seres cuja forma, nome e comportamento
das categoriascosmológicas ao con)unto mais amplo de manifestações misturam inextricavelmente atributos humanos e animais, em um con-
de uma economia simbólica da alteridade (Viveiros de Castro, 1993)S. texto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo
intra-humano anual. A diferenciação entre "cultura" e "natureza", que
Lévi-Strauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é
2 Atestada entre os Makuna IÀrhem, 1993), os Yagua(Chaumeil, 1983, pp. um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como
125-7), os Pira (Gow inf. pess.), os Trio (Riviêre, 1995) ou os Alto-Xinguanos
IGregor, 1977, p. 322; Viveiros de Castro, 1977, p. 182). Essa noção é provavel-
em nossa cosmologia evolucionista.A condição origina/ comi/m aos
mentepanamericana, tendo um grande rendimento simbólico, por exemplo, na cos-
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. À. gtan-
mologia kwakiutl IGoldman, 1975, pp. 62-3, 124-5, 182-6, 227-8).
textos que escrevi anteriormente, mas seu foco de aplicação era ali, principalmen-
3 Ver, para alguns exemplos entre muitos: Weiss, 1969, p. 158 acampa); Baer, te, a dinâmica entra-humana e seu significado quase sempre analítico e abstrato
1994, pp. 102, 119, 224 (Matsiguenga); Grenand, 1980, p. 42 (Wayãpi); Vivei- (Viveiros de Castra, 1992a, pp. 248-51, 256-9; 1996a). Os estudos de Vilaça e,
ros de Castra, 1992a, p. 68 (Araweté); Osborn, 1990, p. 151 (U'wa). sobretudo, o de Lima mostraram-me que era possível generalizar essas noções em
4 Ver, por exemplo, Sa]adin d'Ang]ure, 1990 {]nuit); McDonne]1, ]984, extensão e compreensão.
Nelson, 1983 (Koyukon, Kaska); Tanger, 1979, Scott, 1989 (Cree); Goldman, 1975 [-- O que é um mito?] -- Se você perguntasse a um índio americano, é
IKwakiutll; Howel1, 1984, e Karim, 1981 para os Chewong e Ma'Betisék da Ma- muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e
lária; para a Sibéria, Hamayon, 1990. os animais ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda
5 As noções de "perspectiva" e "ponto de vista" têm um papel central em (Lévi-Strauss & Eribon, 1988, p. 193; eu traduzo).

424 Eduardo Viveiros de Castro Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 425


cle divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza pp 23] -2; Crocker, 1985, pp. 17-25). Sublinho que se trata de impor-
que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os ani- tância simbólica, não de dependência ecológica: horticultores aplica-
mais perderam os atributos herdados dos humanos ou por eles man- dos como os Tukano ou os Juruna jque além disso praticam mais a
tidos. Os humanos são aquelesque continuaram iguais a si mesmos: pesca que a caça) não diferem muito dos caçadores do Canadá e do
os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais.7 Em suma, Alasca, no que diz respeito ao peso cosmológico conferido à predação
o referencialcomum a todos os seres da natureza não é o homem cinegética,à subjetivaçãoespiritual dos animais, e à teoria de que o
enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição" IDescola, universo é povoado de intencionalidades extra-humanas dotadas de
1986, P. 120). perspectivas próprias.9 Nesse sentido, a espiritualização das plantas,
Esta é uma distinção -- entre a espécie humana e a condição meteoros ou artefatos me parece secundária ou derivada diante da
humana -- que se deve guardar. Ela tem uma conexão evidente com espiritualização dos animais: o animal é o protótipo extra-humano do
a idéia das roupas animais a esconder uma "essência" espiritual co- Outro, mantendo uma relação privilegiada com outras figuras pro-
mum, e com o problema do sentido geral do perspectivismo. Por ora, totípicas da alteridade, como os afins (Erikson, 1984, pp. 1 10-2; Des-
registremos apenas uma de suas incidências etnográficas mais impor- cola, 1986, pp. 317-30; Àrhem, no prelos.io Ideologia de caçadores,
tantes: a humanidade passada dos animais se soma à sua espiritualida- esta é também e sobretudo uma ideologia de xamãs, na medida em que
de atual, oculta pela forma visível para produzir um difundido com- são os xamãs que administram as relações dos humanos com o com-
plexo de restrições ou precauções alimentares, que ora declara não co- ponente espiritual dos extra-humanos, capazes como são de assumir
mestíveis certos animais miticamente consubstanciais aos humanos. ora o ponto de vista desses seres e, principalmente, de voltar para contar
exige a dessubjetivação xamanística do animal antes que se o consu- a história. Se o multiculturalismo ocidental é o relativismo como po-
ma jneutralizando seu espírito, transubstanciando sua carne em vegetal, lítica pública, o xamanismo perspectivista ameríndio é o multinatu-
reduzindo-o semanticamentea outros animais menos próximos do hu- ralismo como política cósmica.
manoj8, sob pena de retaliação em forma de doença, concebida como
contrapredação canibal levada a efeito pelo espírito da presa tornada ANIMISMO
predador, em uma inversão mortal de perspectivas que transforma o O leitor terá advertido que meu "perspectivismo" evoca a noção
humano em animal. de "animismo", recentementerecuperada por Descola (1992, no pre-
Convém destacar que o perspectivismo ameríndio tem uma re- lo) para designar um modo de articulação das séries natural e social
lação essencialcom o xamanismo, de que é ao mesmo tempo o funda- que seria o simétrico e inverso do totemismo. Afirmando que toda
mento teórico e o campo de operações, e com a valorização simbólica conceitualização dos não-humanos é sempre referida ao domínio so-
da caça. A associação entre o xamanismo e o que poderíamos chamar cial, o autor distingue três modos de objetivação da natureza: o to-
de "ideologia venatória" é uma questão clássicajver Chaumeil, 1983, temismo, em que as diferenças entre as espéciesnaturais são utiliza-
das para organizar logicamentea ordem interna à sociedade,isto é,
em que a relação entre natureza e cultura é de tipo metafórico e mar-
7 A noção de que o "eu" los homens, os índios, minha tribo) que distingue
é o termo historicamente estável da distinção entre o "eu" e o "outro" (os animais,
os brancos, os outros índiosl aparece tanto no caso da diferenciação interespecífica 9A importância da relação venatório-xamanística com o mundo animal, em
como no da separação intra-específica,como se pode ver nos diferentes mitos sociedadescuja economia é baseada na horticultura (e na pesca mais que na caça),
ameríndios de origem dos brancos. Os outros foram o que somos, e não, como suscita problemas interessantes para a história cultural da Amazõnia (Viveiros de
entre nós, são o que fomos. E assim se percebe quão pertinente pode ser a noção Castro, 1996b).
de "sociedades frias": a história existe sim, mas é algo que só acontece aos outros.
io Registre-se, entretanto, que nas culturas da Amazõnia ocidental, e parti-
8Ver Viveiros de Castro, 1978; Crocker, 1985; Overing, 1985, 1986; Vila- cularmente naquelas que fazem largo uso de alucinógenos, a personificação das
ça, 1992;Àrhem, 1993; Hugh-Jones, 1996, entre muitos outros. plantas parece ser pelo menos tão importante quanto a dos animais.

426 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 427


cana pela descontinuidade (intra e interséries); o animismo, em que as temismo parece-me um fenómeno heterogêneo, antes classificatório que
"categoriaselementaresda vida social" organizamas relaçõesentre cosmológico: ele não é um sistema de re/anõesentre natureza e cultu-
os humanos e as espéciesnaturais, definindo assim uma continuidade ra, como os outros dois modos, mas de corre/anões puramente lógi-
de tipo sociomórfico entre natureza e cultura, fundada na atribuição cas e diferenciais.)
de "disposições humanas e características sociais aos seres naturais" O animismo pode ser definido como uma oncologia que postula
IDescola, no prelo, p. 99); e o naturalismo, típico das cosmologias oci- o caráter social das relações entre as séries humana e não humana: o
dentais, que supõe uma dualidade ontológica entre natureza, domínio intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social. O naturalis-
da necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade, regiões sepa- mo está fundado no axioma inverso: as relações entre sociedade e
radas por uma descontinuidade metonímica. O "modo anímico" se- natureza são elas mesmas naturais. Com efeito, se no modo anímico
ria característico das sociedades nas quais o animal é "foco estratégi- a distinção "natureza/cultura" é interna ao mundo social, humanos e
co de objetivação da natureza e de sua socialização" (Descola, 1992, animais estando imersos no mesmo meio sociocósmico (e nessesenti-
p. 1 15), como na América indígena, reinando soberano naquelas mor- do a "natureza" é parte de uma socialidade englobante), na ontologia
fologias sociais desprovidas de segmentação interna elaborada. Mas naturalista a distinção "natureza/cultura" é interna à natureza (e nes-
ele pode se apresentar em coexistência ou combinação com o tote- se sentido a sociedade humana é um fenómeno natural entre outros).
mismo, ali onde tais segmenraçõesexistem, como no caso dos Bororo O animismo tem a "sociedade" como pólo não marcado, o naturalis-
e seu dualismo aros/tope IDescola, no prelo, p. 99)it mo, a "natureza": essespólos funcionam respectivamentee de modo
Essas idéias se inseremem um modelo de "ecologia simbólica" contrastante como a dimensão do universal de cada modo. Animismo
ainda em elaboração, que não posso aqui discutir como ele merece- e naturalismo são, portanto, estruturas hierárquicas e metonímicas (o
ria.12 Comentarei apenas, mas tomando-o em um sentido algo dife- que os distingue do totemismo, estrutura metafórica e equipolente).
rente do original, o contraste entre animismo e naturalismo. (O to- Em nossa ontologia naturalista, a interface sociedade/natureza
é natural: os humanos são aqui organismos como os outros, corpos-
objetos em interação "ecológica" com outros corpos e forças, todos
ii Ou, acrescentaríamos, dos Ojibwa, onde a coexistência dos sistemas rolem
e ma7zfdo(Lévi-Strauss, 1962a, pp. 25-33), que serviu de matriz para a oposição regulados pelas leis necessáriasda biologia e da física; as "forças pro-
geral entre totemismo e sacrifício {Lévi-Strauss, 1962b, pp. 295-302), deixa-se in dutivas" aplicam as forças naturais. Relações sociais, isto é, relações
terpretar diretamente no quadro da distinção totemismo/animismo. Para uma dis- contratuais ou instituídas entre sujeitos, só podem existir no interior
cussãoconjunta dos pares totemismo/sacrifícioe aros/tope, ver Viveiros de Cas da sociedade humana. Mas quão "não naturais" -- este seria o pro-
tro, 1991, pp. 88 e 91, nota ll. blema do naturalismo -- são essas relações? Dada a universalidade da
iz A proposta de Descola vem somar-se a várias manifestações de insatisfa- natureza, o estatuto do mundo humano e social é instável, e, como
ção com a ênfaseunilateralna metáforae na lógica totêmico-classificatória
que mostra a história do pensamento ocidental, perpetuamente oscilante
marca a concepção lévi-straussianado pensamento selvagem. Para ficarmos no entre o monismo naturalista (de que a "sociobiologia': é um dos ava-
âmbito americanista, evoquem, por exemplo: a recusa do privilégio da metáfora
por Overing j1985), em favor de um liberalismorelativista que parece se apoiar
tares atuaisl e o dualismo ontológico natureza/cultura (de que o "cul-
na noção de crença; a teoria da sinédoque dialética como anterior e superior à turalismo" é a expressão contemporânea). A afirmação desse último
analogia metafórica, proposta por Turner (1991), autor que, como outros especia- dualismo e seuscorrelatos (corpo/mente, razão pura/razão prática etc.),
listas(Seeger, 1981; Crocker, 1985), tem procurado contestar as interpretações do porém, só faz reforçar o caráter de referencial último da noção de
dualismo natureza/cultura jê-bororo em termos de uma oposição estática, privati- natureza, ao se revelar descendenteem linha direta da oposição entre
va e discreta; ou a retomada, por Viveiros de Castro (1992a), do contrasteentre natureza e sobrenatureza. A cultura é o nome moderno do Espírito --
totemismo e sacrifício à luz do conceito deleuzeano de devir, que procura dar conta
da centralidade dos processos de predação ontológica nas cosmologias tupi, bem recorde-se a distinção entre as Na r issenscba/!e e as Geisfmfs-
como do caráter diretamentesocial (e não especularmenteclassificatório) da in- senscbzz/ten--, ou pelo menos o nome do compromisso, ele próprio
teração das ordens humana e extra-humana. instável, entre a natureza e a Graça. Do lado do animismo, seríamos

428 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndia 429


tentadosa dizer que a instabilidadeestá no pólo oposto: o problema O animismo, interpretado como projeção da socialidade humana sobre
ali é administrar a mistura de humanidade e animalidade dos animais, o mundo não humano, não passaria da metáfora de uma metonímia,
e não, como entre nós, a combinação de cultura e natureza que carac- permanecendo cativo de úma leitura "totêmica" ou classificatória.
teriza os humanos; a questão é diferenciar uma "natureza" a partir do Entre as questões que restam a resolver, portanto, está a de sa-
sociomorfismo universal. ber se o animismo pode ser descrito como um uso figurado de catego-
Mas é de fato possível definir o animismo como uma projeção rias do domínio humano-social para conceitualizar o domínio dos não-
de diferenças e qualidades internas ao mundo humano sobre o mun- humanos e suas relações com o primeiro. Isso redunda em indagar até
do não humano, como um modelo "sociocêntrico" em que categorias que ponto o "perspectivismo", que é como um corolário etno-episte-
e relações sociais são usadas para mapear o universo (Descola, no prelo, mológico do "animismo", exprime realmente um antropomorfismo
p. 97)? Essa interpretação analógica é explícita em algumas glosas da analógico, isto é, um antropocentrismo. O que significa dizer que os
teoria: "lf totemicsystemsmodel societyafter nature, then animic animais são pessoas?
systems model nature after society" [Se os sistemas totêmicos mode- Outra questão: se o animismo depende da atribuição aos animais
lam a sociedade a partir da natureza, os sistemas anímicos modelam das mesmas faculdades sensíveis dos homens, e de uma mesma forma
a naturza a partir da sociedade.] IÂrhem, no prelo, p. 21 1). O proble- de subjetividade, isto é, se os animais são "essencialmente" humanos,
ma aqui, obviamente, é o de evitar uma indesejável proximidade com qual afinal a diferença entre os humanos e os animais? Se os animais
a acepção tradicional de "animismo", ou com a redução das "classi- são gente,por que não nos vêemcomo gente?Por quê, justamente,o
ficações primitivas" a emanaçõesda morfologia social (Descola, 1996, perspectivismo? Cabe também perguntar se a noção de formas corpo-
p. 97); mas é também o dc ir além de outras caracterizações clássicas rais contingentes(as "roupas") pode scr de fato descrita em termos
da relação sociedade/natureza, como a de Radcliffe-Brownt3 de uma oposição entre aparência e essência (Descola, 1986, p. 120;
Ingold (1991, 1992, no prelo) mostrou como os esquemas de Àrhem, 1993, p. 122; Riviêre, 1995; Hugh-Jones, 1996).
projeção analógica ou de modelização social da natureza escapam do Por fim, se o animismoé um modo de objetivaçãoda natureza
reducionismo naturalista apenas para caírem em um dualismo natureza/ em que o dualismo natureza/culturanão vigora, o que fazer com as
cultura que, ao distinguir entre uma natureza "realmente natural" e abundantes indicações a respeito da centralidade dessa oposição nas
uma natureza "culturalmente construída", revela-secomo uma típica cosmologias sul-americanas? Tratar-se-ia apenas de mais uma "ilusão
antinomia cosmológica viciada pela regressão ao infinito. A noção dc totêmica", se não de uma projeção ingênua de nosso dualismo ociden-
modelo ou metáfora supõe a distinção prévia entre um domínio em tal? É possível fazer um uso mais que sinóptico dos conceitos de na-
que as relações sociais são constitutivas e literais e outro em que elas tureza e cultura, ou eles seriam apenas "rótulos genéricos" (Descola,
são representativas e metafóricas. Em outras palavras, a idéia de que no prelo, p. 95) a que Lévi-Strauss recorreu para organizar os múlti-
humanos e animais estão ligados por uma socialidade comum depen- plos contrastes semânticos das mitologias americanas, contrastes es-
de contraditoriamente de uma descontinuidade ontológica primeira. tes irredutíveis a uma dicotomia única e massiva?

ETNOCENTRISMO
i3 Ver Radcliffe-Brown (1952 [1929], pp. 130-1), que, entre outros argu-
mentos interessantes, distingue os processos de personiPcação das espéciese fe- Em um texto muito conhecido, Lévi-Strauss observava que, para
nómenos naturais (o que "permite conceber a natureza como se fosse uma socie- os selvagens, a humanidade cessa nas fronteiras do grupo, concepção
dade depessoas, fazendo dela uma ordem social ou moral"), como os que se acham que se exprimiria exemplarmentena grande difusão de auto-etnâni-
entre os Esquimós ou Andamaneses, dos slsfemas de c/asslPcaçãodas espécies
mos cujo significado é "os humanos verdadeiros", e que implicam,
naturais, como os que se acham na Austrália, e que configuram um "sistema de
solidariedades sociais" entre homem e natureza -- isto evoca. obviamente, a dis assim, uma definição dos estrangeiros como pertencentesao domínio
unção animismo/totemismo de Descola, bem como o contraste manfdo/rolem ex- do extra-humano. O etnocentrismo não seria privilégio dos ociden-
plorado por Lévi-Strauss. tais, portanto, mas uma atitude ideológica natural, inerente aos cole-

430 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndia 431


uivoshumanos. O autor ilustra a reciprocidadeuniversalde tal atitu- Agora, tudo mudou. Os selvagens não são mais etnocêntricos,
de com uma anedota: mas cosmocêntricos; em lugar de precisarmos provar que eles são hu-
manos porque se distinguem do animal, trata-se agora de mostrar quão
Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta
pouco humanos somos /zós,que opomos humanos e animais de um
da América, enquanto os espanhóis enviavam comissõesde
modo que elesnunca fizeram: para eles, natureza e cultura são parte
inquérito para investigar se os indígenas tinham ou não uma
de um mesmocampo sociocósmico. Os ameríndios não somentepassa-
alma, estesse dedicavam a afogar os brancos que aprisio-
riam ao largo do Grande Divisor cartesiano que separou a humanidade
navam, a fim de verificar, por uma demorada observação,
da animalidade, como sua concepção social do cosmos (e cósmica da
se seus cadáveres eram ou não sujeitos à putrefação. [Lévi-
sociedades antecipa as lições fundamentais da ecologia, que apenas
Strauss, 1973a, p. 384; eu traduzol
agora estamos em condições de assimilar (Reichel-Dolmatoff, 1976).
Lévi-Strauss extrai dessa parábola a célebre moral: "0 bárbaro Antes se observava a recusa, por parte dos índios, de conceder os pre-
é, antes de mais nada, o homem que crê na existênciada barbárie". dicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles
Alguns anos depois, ele iria recontar o caso das Antilhas, mas dessa estendemtais predicados muito além das fronteiras da espécie,em uma
vez sublinhando a assimetria das perspectivas: em suas investigações demonstração de sabedoria "ecosófica" (Ârhem, 1993) que devemos
sobre a humanidade do Outro, os brancos apelavam para as ciências emular, tanto quanto permitam os limites de nosso objetivismo.14
sociais, os índios, para as ciências naturais; e, se os primeiros concluíam Antes, era preciso contestar a assimilação do pensamento selvagem ao
que os índios eram animais, os segundos sc contentavam cm descon- animismo narcísico, estágio infantil do naturalismo, mostrando que
fiar que os brancos fossem divindades (Lévi-Strauss, 1955, pp. 82-3). o totemismo afirmava a distinção cognitiva entre o homem e a natureza;
:À ignorante égale"adiante de igual ignorância], diz o autor, a última agora, o neo-animismo se revela como reconhecimento da mestiçagem
atitude era mais digna de seres humanos. universal entre sujeitos e objetos, humanos e não-humanos. Contra a
A anedota revela algo mais, como veremos. Por ora, observe-se &yórls moderna, os "híbridos" primitivos e amodernos (Latour, 1991 ).
que nada permite concluir que os índios estivessem imputando uma Duas antinomias, portanto, que são de fato uma só: ou os ame-
potencialdivindade aos brancos: podiam apenas estar querendo sa- ríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de hu-
ber se eram espíritos malignos, não deuses. De qualquer modo, o ponto manidade, e opõem "totemicamente" natureza e cultura; ou elessão
geral é simples: os índios, como os invasores europeus, consideram que cosmocêntricose anímicos, e não professamtal distinção, sendo mo-
apenas o grupo a que pertencem encarna a humanidade; os estrangei- delos de tolerância relativista, ao postular a multiplicação de pontos
ros estão do outro lado da fronteira que separa os humanos dos ani-
mais e espíritos, a cultura da natureza e da sobrenatureza. Matriz e
condição de possibilidade do etnocentrismo, a oposição natureza/cul- i4 O próprio Lévi-Strauss ilustra essa última atitude, em um esplêndido pa-
rágrafo de sua homenagem a Rousseau: "Começou-se por separar o homem da
tura aparececomo um universalda apercepçãosocial.
natureza, e por constituí-lo em reino soberano; acreditou-se assim apagar sua ca
No tempo em que Lévi-Strauss escrevia essas linhas, a estratégia racterística mais inquestionável, a saber, que ele é antes de mais nada um ser vivo.
para se vindicar a plena humanidade dos selvagensera a de mostrar A cegueira diante dessa propriedade comum abriu caminho para todos os abusos.
que eles faziam as mesmas distinções que nós: a prova de que eles eram Nunca como agora, ao cabo dos quatro últimos séculos de sua história, pôde o
verdadeiros humanos é que consideravam que somente eles eram huma- homem ocidental se dar conta de como, ao se arrogar o direito de separar radical-
nos verdadeiros. Como nós, eles distinguiam a cultura da natureza, e mente a humanidade da animalidade, concedendo à primeira tudo aquilo que ne-
gava à segunda, eleabria um ciclo maldito, e que a mesma fronteira, constante-
também achavam que Nafuruó/&er são os outros. A universalidade da mente recuada, servia-lhe para afastar homens de outros homens e para reivindi-
distinção cultural entre natureza e cultura atestava a universalidade car, em benefício de minorias cada vez mais restritas, o privilégio de um humanismo
da cultura como natureza do humano. Em suma, a resposta à ques- que já nasceu corrompido, por ter ido buscar no amor-próprio seu princípio e seu
tão dos investigadores quinhentistas era positiva: os selvagenstêm alma. conceito" (1973 [1962], p. 53; eu traduzo).

432 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 433


de vista sobre o mundo. Em suma: ou fechamento sobre si, ou "aber- Isso é consistente, aliás, com uma difundida evitação da auto-referên-
tura ao outro" (Lévi-Strauss, 1991, p. 16). cia no plano da onomástica pessoal: os nomes não são pronunciados
Penso que a solução para essas antinomias não está em escolher por seus portadores, ou em sua presença;nomear é externalizar, se-
um lado, sustentando, por exemplo, que a versão mais recente é a parar (d)o sujeito.
correta e relegando a outra às trevas pré-pós-modernas. Trata-sc mais Assim, auto-referênciasde como "gente" significam"pessoa",
de mostrar que tanto a "tese" como a "antítese" são verdadeiras (am- não "membro da espécie humana"; e elas são pronomes pessoais, re-
bas correspondem a intuições etnográficas sólidas), mas que elas apre- gistrando o ponto de vista do sujeito que está falando, e não nomes
endem os mesmos fenómenossob aspectos distintos; e também de próprios. Dizer então que os animais e espíritos são gente é dizer que
mostrar que ambas são falsas, por se referirem a uma concepção subs- são pessoas; é atribuir aos não-humanos as capacidades de intencio-
tantivista das categorias de natureza e cultura (seja para afirma-las ou nalidade consciente e de "agência" que definem a posição de sujeito.
para nega-las) inaplicável às cosmologias ameríndias. Tais capacidades são reificadas na "alma" ou "espírito" de que esses
A primeira coisa a considerar é que as palavras ameríndias que não-humanos são dotados. Ê sujeito quem tem alma, e tem alma quem
se costuma traduzir por "ser humano", e que entram na composição é capaz de um ponto de vista. As "almas" ameríndias, humanas ou
das tais autodesignações etnocêntricas, não denotam a humanidade animais, são assim categorias perspectivas, deíticos cosmológicos cuja
como espécienatural, mas a condição social de pessoa, e, sobretudo análise pede menos uma psicologia animista ou uma oncologia subs-
quando modificadas por intensificadores do tipo "de verdade", "real- tancialista que uma teoria do signo ou uma pragmática epistemológi-
mente", funcionam (pragmática quando não sintaticamente) menos ca (Viveiros de Castro, 1992b; Taylor, 1993a, 1993b)iÓ
como substantivos que como pronomes. Elas indicam a posição de Todo ser a que se atribui um ponto de vista será assim sujeito,
sujeito; são um marcador enunciativo, não um nome. Longe de manifes- espírito; ou melhor, ali onde estiver o ponto de vista, também estará
tarem um afunilamento semânticodo nome comum ao próprio(toman- a posição de sujeito. Enquanto nossa cosmologia construcionista pode
do "gente" para nome da tribos, essaspalavras mostram o oposto, indo ser resumida na fórmula saussuriana: o ponto de ulsfa cria o objfefo
do substantivo ao perspectivo (usando "gente" como o pronome cole- -- o sujeito sendo a condição originária fixa de onde emana o ponto
tivo "a gente"). Por isso mesmo, as categorias indígenas de identida- de vista --, o perspectivismo ameríndio procede segundo o princípio
de coletiva têm aquela enorme variabilidade contextual de escapo ca- de que o ponto de ulsfa cria o sajÍeílo; será sujeito quem se encontrar
racterística dos pronomes, marcando por contraste desdea parentela ativado ou "agendado" pelo ponto de vistai7. É por isso que termos
imediata de um Ego até todos os humanos, ou mesmo todos os seres
dotados de consciência; sua coagulação como "etnânimo" parece ser, igualmenterelacional, onde "eu" só pode significar "o outro do outro": ver o acenar
em larga medida, um artefato produzido no contexto da interação com dos Achuar, ou o Mamados Pano (Taylor, 1985, p. 168; Erikson, 1990, pp. 80-4).
o etnógrafo. Não é tampouco por acaso que a maioria dos etnânimos A lógica da auto-"etnonímia" ameríndia exigiria um estudo específico.Para ou-
ameríndiosque passaram à literatura não são autodesignações,mas tros casosilustrativos, ver: Vilaça (1992, pp. 49-51 ); Prime(1987); Viveiros de Castro
l 1992a, pp. 64-5). Para uma análiseiluminadora de um caso norte-americanose
nomes (freqilentementepejorativos) conferidos por outros povos: a melhanteaos amazõnicoé,ver McDonnel1, 1984, pp. 41-43.
objetivação etnonímica incide primordialmente sobre os outros, não
iõ Ver o que diz Taylor j1993b, p. 660; eu traduzo) sobre o conceito jívaro
sobre quem está em posição de sujeito. Os etnânimos são nomes de
de mczhan, "alma": "Essencia]mente, waÉzzn é autoconsciência [-.] uma represem-
terceiros, pertencem à categoria do "eles", não à categoria do "nós".15 fação da reflexividade [-.] Wah.zn é portanto comum a muitas entidades, e de for-
ma nenhuma um atributo exclusivamente humano: há tantos wcz&dnquanto coi-
i5 Uma transformação da recusa de auto-objetivação onomástica se acha
sas a que se possam, contextualmente, atribuir reflexividade
naquelescasos ou momentos em que, quando o coletivo-sujeitose toma como parte
de uma pluralidade de coletivos análogos a si, o termo auto-referencial significa n "Tal é o fundamento do perspectivismo. Ele não exprime uma dependên-
os outros", sendo usado primordialmente para identificar os coletivos de que o cia perante um sujeito definido previamente; ao contrário, será sujeito aquele que
sujeito se exclui. A alternativa à subjetivação pronominal é uma auto-objetivação aceder ao ponto de vista..." (Deleuze, 1988, p. 27; eu traduzo).

434 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 435


como war], (Vi]aça, ] 992), acne IMcDonnel1, 1984) ou mesa (Ârhem, logra dos múltiplos pontos de vista não implicaria que "cada perspec-
1993) significam "gente", mas podem ser ditos por -- e portanto di- tiva é igualmenteválida e verdadeira", e que "não existe uma repre-
tos de -- classes muito diferentes de seres; ditos pelos humanos, de- sentação do mundo correta e verdadeira" (Àrhem, 1993, p. 124)?
notam os seres humanos, mas ditos pelos queixadas, gz{zribas ou can- Mas esta é justamente a questão: a teoria perspectivista ameríndia
tores, eles se auto-referem aos qz/Ciladas, guaríbízs ou castores. está de fato afirmando uma multiplicidade dc representações sobre o
Sucede que esses não-humanos colocados em perspectiva de su- mesmo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para
jeito não se "dizem" apenas gente;eles se z/êemmorfológica e cultu- perceber que é o inverso que se passa: todos os seres vêem ("represen-
ralmentecomo humanos, conforme explicam os xamãs. A espiritua- tam") o mundo da mesma maneira -- o que muda é o mundo que eles
lização simbólica dos animais implicaria sua hominização e cultu- vêem. Os animais impõem as mesmas categorias e valores que os hu-
ralização imaginárias; o carárer antropocêntrico do pensamento indí- manos sobre o real: seus mundos, como o nosso, giram em torno da
gena, assim, pareceria inquestionável. Mas creio que se trata de algo caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, das primas
completamente diferente. Todo ser que ocupa vicariamente o ponto cruzadas e da guerra, dos ritos de iniciação, dos xamãs, chefes, espíri-
de vista de referência, estando em posição de sujeito, apreende-sesob tos. .. Se a lua, as cobras e as onças vêem os humanos como tapires ou
a espécie da humanidade. A forma corporal humana e a cultura -- os pecaris, é porque, como nós, elas comem tapires e pecaris, comida
esquemas de percepção e ação "encorporados"18 em disposições es- própria de gente. SÓ poderia ser assim, pois, sendo gente em seu pró-
pecíficas-- são atributos pronominais do mesmo tipo que as auto- prio departamento, os não-humanos vêem as coisas como "a gente"
designações acima discutidas. Esquematismos reflexivos ou apercep- vê. Mas as coisas que e/esvêem são outras: o que para nós é sangue,
tivos, tais atributos são o modo mediante o qual todo sujeito se apre- para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver
ende, e não predicados literais e constitutivos da espéciehumana pro- podre, para nós é mandioca pubando; o que vemos como um barreiro
jetados metaforicamente sobre os não-humanos. Esses atributos são lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial..
imanentes ao ponto de vista, e se deslocam com ele. O ser humano -- O relativismo Imulti)cultural supõe uma diversidade de represen-
naturalmente -- goza da mesma prerrogativa, e portanto, como diz a tações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una
enganadora tautologia em epígrafe, "vê-se a si mesmo como tal". Isso e total, indiferente à representação; os ameríndios propõem o oposto:
significa dizer que a cu/furzz é a /zaf reza do Su/eífo; ela é a forma pela uma unidade representativa ou fenomenológica puramente pronomi-
qual todo sujeito experimenta sua própria natureza. O animismo não nal, aplicada indiferentementesobre uma radical diversidade objetiva.
é uma proJeção figurada do humano sobre o animal, mas equivalên- Uma só "cultura", múltiplas "naturezas" -- o perspectivismo é um
cia real entre as relações que humanos e animais mantêm consigo mes- multinaturalismo, pois ma perspecffz/a não é ma represemfação.
mos. Se, como observamos, a condição comum aos humanos e ani- Uma perspectiva não é uma representaçãoporque as represen-
mais é a humanidade, não a animalidade, é porque "humanidade" é tações são propriedades do espírito, mas o ponto de uis a está no coI-
o nome da forma geral do Sujeito. rO. Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência
da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou
MULTINATURALISMO são) um espírito; mas a diferença entre os pontos de vista je um pon-
Com isso podemos ter descartado o antropomorfismo analógico, to de vista não é senão diferença) não está na alma, pois esta, formal-
mas parece que apenas para assumir o relativismo. Pois essa cosmo- mente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda
parte -- a diferença é dada pela especificidadedos corpos. Isso per-
i8 Traduzo a forma inglesa fo embody e seus derivados, que hoje gozam de
mite responder às perguntas: se os não-humanos são pessoas e têm
uma fenomenalpopularidade no jargão antropológico jver Turner, 19941,pelo almas, em que se distinguem dos humanos? E por quê, sendo gente,
neologismo "encorporar") visto que nem "encarnar" nem "incorporar" são real- não nos vêem como gente?
mente adequados. Os animais vêem da mesmíz maneira que nós coisas diuersízsdo

436 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndia 437


clubvemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou mas" era capaz das mesmas afecções que os seus -- se era um corpo
me referindo a diferenças de fisiologia -- quanto a isso, os ameríndios humano ou um corpo de espírito, imputrescível e proteiforme. Em
reconhecemuma uniformidade básica dos corpos --, mas aos afetos, suma: o etnocentrismo europeu consiste em negar que outros corpos
afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que tenham a mesma alma; o ameríndio, em duvidar que outras almas
elecome, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário tenham o mesmo corpo.
oü solitário... A morfologia, a forma visível dos corpos, é um signo O estatuto do humano no pensamento ocidental é, como subli-
poderoso dessas diferenças de afecção, embora possa ser enganado- nhou Ingold (1994a, 1994b, pp. 3-SI, essencialmenteambíguo: de um
ra, pois uma aparência de humano, por exemplo, pode estar ocultan- lado, a humanidade (bumanéf/zd)é uma espécieanimal entre outras,
do uma afecção-jaguar.O que estou chamando de "corpo", portan- e a animalidade é um domínio que inclui os humanos; de outro, a hu-
to, não é sinónimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa; é um manidade lbamani@) é uma condição moral que exclui os animais. Es-
conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um babif s. Entre
ses dois estatutos coabitam no conceito problemático e disjuntivo de
a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos
"natureza humana". Dito de outro modo, nossa cosmologia postula
organismos, há um plano intermediário que é o corpo como feixe de uma continuidade física e uma descontinuidademetafísica lou seja,
afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas. sobrenatural, passando do grego ao latim) entre os humanos e os ani-
A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de um pon- mais, a primeira fazendo do homem objeto das ciências da natureza,
to de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada a segunda, das ciências da cultura. O espírito é o grande diferenciador
tipo de ser tem a mesmaforma (a forma genéricado humano):os ocidental: é o que nos sobrepõe aos animais e à matéria em geral, o
corpos são o modo como a alteridade é apreendida como tal. Não que nos singulariza diante de nossos semelhantes, o que distingue as
vemos, em condições normais, os animais como gente, e reciprocamen- culturas. O corpo, ao contrário, é o grande integrador: elenos conecta
te, porque nossos corpos respectivos (e perspectivoslsão diferentes. ao resto dos viventes, unidos todos por um substrato universal (o DNA,
Assim, se a "cultura" é a perspectiva reflexiva do sujeito objetivada a química do carbono etc.) que, por sua vez, remete à natureza última
no conceito de alma, pode-se dizer que a "natureza" é o ponto de vis- de todos os corpos materiais.o Em contrapartida, os ameríndios pos-
ta do sujeito sobre os outros corpos-afecções; se a cultura é a nature- tulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física en-
za do Sujeito, a natureza é a /orça do Oafro e zqzlanfo corPO, isto é, tre os seres do cosmos, a primeira resultandono animismo, a segun-
como objeto para um sujeito. A cultura tem a forma auto-referencial da, no perspectivismo: o espírito jque não é aqui substância imaterial,
do pronome-sujeito eu; a natureza é a forma por excelência da "não- mas forma reflexivas é o que integra; o corpo (que não é substância
pessoa" ou do objeto, indicada pelo pronome impessoal e/e IBenve- material, mas afecção atival, o que diferencia.
niste, 1966a, p. 256).
Se o corpo é o que faz a diferença aos olhos ameríndios, então OS MUITOS CORPOS DO ESPÍRITO
se compreende por que os métodos espanhóis e antilhanos de averi- A idéia de que o corpo aparece como o grande diferenciador nas
guação da humanidade do outro, na anedota narrada por Lévi-Strauss, cosmologiasamazânicas -- isto é, como aquilo que só une seresdo
mostravam aquela assimetria. Para os europeus, tratava-se de decidir mesmo tipo, na medida em que os distingue de outros -- permite re-
se os outros tinham uma alma; para os índios, de saber que tipo de tomar sob nova luz algumas questões clássicas da etnologia regional.
corpo tinham os outros. O grande diacrítico, o marcador da diferen- Assim, o tema já antigo da importância da corporalidade nas
ça de perspectiva para os europeus é a alma los índios são homens ou
animais?); para os índios, é o corpo los europeus são homens ou espí-
ritos?). Os europeus não duvidavam de que os índios fossem corpos; ] 9 A prova a confrarlo da singularidade do espírito em nossa cosmologia está
em que, quando se quer universalizá-lo, não há outro recurso -- a sobrenatureza
os índios, que os europeus tivessem almas janimais e espíritos também
estando hoje fora do jogo senão identifica-lo à estrutura e funcionamento do
as têm). O que os índios queriam saber era se o corpo daquelas "al- cérebro. O espírito só pode ser universal (natural) se for corpo.

438 Eduardo Viveiros de Castão


Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndia 439
sociedades amazânicas (Seeger, ef a/., 19791 ganha um fundamento Ele é o instrumento fundamental de expressão do sujeito e ao mesmo
cosmológico. É possível, por exemplo, entender melhor por que as tempoo objeto por excelência,aquilo que se dá a ver a outrem. Não
categorias de identidade -- individuais, coletivas, étnicas ou cosmoló- por acaso, então, a objetivação social máxima dos corpos, sua máxi-
gicas -- exprimem-se tão freqüentemente por meio de " idiomas" cor- ma particularização expressa na decoração e exibição ritual, é ao mes-
porais, em particular pela alimentaçãoe pela decoração corporal. A mo tempo sua máxima animalização (Goldman, 1975, p. 178; Turner,
pregnância simbólica universal dos regimes alimentares e culinários 1991, 1995), quando eles são recobertos por plumas, cores, grafismos,
do "cru e o cozido" mitológico e lévi-straussiano à idéia dos Pêro máscaras e outras próteses animais. O homem ritualmente vestido de
de que sua "comida legítima" é o que os faz, literalmente, diferentes animal é a contrapartida do animal sobrenaturalmente nu: o primei-
dos brancos (Gow, 1991); das abstinênciasalimentaresdefinidoras dos ro, transformado em animal, revela para si mesmo o que distingue o
grupos de substância" do Brasil central ISeeger, 1980) à classifica- "natural" do seu corpo; o segundo, despido de sua forma exterior e
ção básica dos seres em termos de seu regime alimentar (Baer, 1994, se revelando como humano, mostra a semelhança "sobrenatural" dos
p 88); da produtividade ontológica da comensalidade, semelhança de espíritos. O modelo do espírito é o espírito humano, mas o modelo
dieta e condição relativa de presa-objeto e predador-sujeito (Vilaça, do corpo é o corpo animal; e se, do ponto de vista do sujeito a cultura
1992) à onipresença do canibalismo como horizonte "predicativo" de é a forma genérica do "eu" e a natureza a do "ele", a objetivação do
toda relação com o outro, seja ela matrimonial, manducatória ou guer- sujeito para si mesmo exige a singularização dos corpos -- o que na-
reira (Viveiros de Castro, 1993) --, essa universalidade manifesta jus- turaliza a cultura, isto é, a incorpora --, enquanto a subjetivaçãodo
tamente a idéia de que o conjunto de hábitos e processos que consti- objeto implica a comunicação dos espíritos -- o que culturaliza a na-
tui os corpos é o lugar de emergência da identidade e da diferença. tureza, isto é, a sobrenaturaliza. A problemática ameríndia da distin-
O mesmo se diga do intenso uso semiótico do corpo na defini- ção natureza/cultura, nesses termos, antes de ser dissolvida em nome
ção da identidade pessoal e na circulação dos valores sociais (Turner, de uma socialidade anímica comum, humano-animal, deve ser renda
1995). A conexão entre tal sobre-exploração do corpo (particularmente à luz do perspectivismo somático.
de sua superfície visível) e o recurso restrito, no soclus amazõnico, a É importante observar que essescorpos ameríndios não são pen-
objetos capazes de servir como suporte de relações -- isto é, uma si- sados sob o modo do Adro, mas do Áeffo.Por isso a ênfasenos méto-
tuação em que a troca social não é mediada por objetivações mate- dos de fabricação contínua do corpo (Viveiros de Castro, 1979), a
riais como as que caracterizam as economias do dom ou da mercado- concepção do parentescocomo processo de assemelhaçãoativa dos in-
ria -- foi sagazmente destacada por Turner, que mostrou como o corpo divíduos IGow, 1989, 1991 ) pela partilha de fluidos corporais, sexuais
humano deve então aparecer como o protótipo do objeto social. Mas e alimentares-- e não como herança passiva de uma essênciasubs-
a ênfase ameríndia na construção social do corpo não pode ser toma- tancial --, a teoria da memória que inscreve esta na "carne" (Vivei-
da como culturalização de um substrato natural, e sim como produ- ros de Castra, 1992a, pp. 201-7), e mais geralmenteuma teoria do co-
ção de um corpo distintivamente humano, entenda-se, naturalmente nhecimento que o situa no corpo (McCallum, 1996). A BI/du?zgame-
humano. Tal processo parece exprimir menos a vontade de "desa- ríndia incide sobre o corpo antes que sobre o espírito: não há mudan-
nimalizar" o corpo por sua marcação cultural que a de Pízrric Zarlzar ça "espiritual" que não passe por uma transformação do corpo, por
um corpo al/zdademasiado gelzérlco,diferenciando-odos corpos de uma redefinição de suas afecçõese capacidades. Por isso ainda, se a
outros coletivos humanos tanto quanto dos de outras espécies. O corpo, distinção entre corpo e alma tem uma evidente pertinência nessas cos-
sendo o lugar da perspectiva diferenciante, deve ser maximamente di- mologias, ela não pode ser interpretada como uma descontinuidade
ferenciado para exprimi-la completamente. ontológica. Enquanto feixes de afecções e sítios de perspectivas mais
O corpo humano pode ser visto como lugar de confrontação entre que organismos materiais, os corpos têm alma, como as almas e espí-
humanidade e animalidade, mas não porque carregue uma natureza ritos, aliás, têm corpo A concepção dual (ou plural) da alma huma-
animal que deve ser velada e controlada pela cultura (Riviêre, 199SI. na, muito difundida na Amazânia indígena, distingue entre uma alma

440 Eduardo Viveiros de Castro Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndia 441


(ou almas>do corpo, registro reificado da história do indivíduo, pre- de da metamorfose exprime o temor oposto, o de não se poder mais
cipitado da memória e do abeto,e uma "alma verdadeira", pura sin- diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor de ver o hu-
gularidade subjetiva formal, marca abstrata da pessoa (por exemplo, mano que insistesob o corpo animal que se come. Donde a importância
Viveiros de Castro, 1992a, pp. 201-14; McCallum, 1996). De outro do complexo de proibições ou precauções alimentares associadasà
lado, as almas dos mortos e os espíritos que habitam o universo não potência espiritual dos animais, a que fiz menção páginas atrás. O
são entidades imateriais, mas outros tantos tipos de corpo dotados de fantasma do canibalismo é o equivalente ameríndio do problema do
propriedades -- afecções -- swl generls. A distinção ameríndia entre solipsismo: se este deriva da incerteza de que a semelhança natural dos
alma e corpo não é uma distinção substantiva, mas algo que parece corpos garanta a comunidade real dos espíritos, aquele suspeita que a
remeter a uma "epistemologia ontologizada" (Taylor, 1993a, pp. 444- semelhança dos espíritos possa prevalecer sobre a diferença real dos
5). Com efeito, corpo e alma, assim como natureza e cultura, não cor- corpos, e que todo animal que se come permaneça, apesar dos esfor-
respondem a substantivos, entidades auto-subsistentes ou províncias ços xamanísticos para sua dessubjetivação, humano. O que não im-
ontológicas, mas a pronomes ou perspectivas fenomenológicas. pede, naturalmente, que tenhamos entre nós solipsistas mais ou me-
O caráter performado mais que dado do corpo, concepção que nos radicais, como os relativistas, nem que várias sociedades ameríndias
exige que se o diferencie "culturalmente" para que ele possa diferen- sejam deliberada e mais ou menos literalmente canibais.
ciar "naturalmente", tem uma evidenteconexão com a metamorfose A noção de metamorfose está diretamente ligada à doutrina das
interespecífica, possibilidade afirmada pelas cosmologias ameríndias. ;roupas" animais, a que já me referi. Como conciliar essa idéia de que
Não devemosnos surpreender com um pensamentoque põe os cor- o corpo é o sítio da perspectiva diferenciante com o tema da aparên-
pos como grandes diferenciadores e afirma ao mesmo tempo sua trans- cia e da essência, sempre evocado para interpretar o animismo e o
formabilidade. Nossa cosmologia supõe a distintividade singular dos perspectivismo? Aqui me parece haver um equívoco importante, que
espíritos, mas nem por isso declara impossível a comunicação (embora é o de tomar a "aparência" corporal como inertee falsa, a "essência"
o solipsismo seja um problema constantes ou desacredita da transfor- espiritual como ativa e verdadeira (ver as observações decisivas de
mação espiritual induzida por processos como a educação e a conver- Go[dman [1975, pp. 63, 124-5, 200]). Nada mais distante, penso, do
são religiosa; na verdade, é precisamente porque os espíritos são dife- que aquilo que os índios têm em mente ao falar dos corpos como "rou-
rentesque a conversão se faz necessária(os europeus queriam saber pas" . Trata-se menos de o corPO ser uma roupa que de uma poupa ser
se os índios tinham alma para poder modifica-la). A metamorfose um corPO. Estamos diante de sociedades que inscrevem na pele signi-
corporal é a contrapartida ameríndia do tema europeuda conversão ficados eficazes, e que utilizam máscaras animais lou pelo menos co-
espiritual.20 Do mesmo modo, se o solipsismo é o fantasma que ameaça nhecem seu princípio) dotadas do poder de transformar metafisica-
perenemente nossa cosmologia -- traduzindo o medo de não nos re- mente a identidade de seus portadores, quando usadas no contexto ri-
conhecermos em nossos "semelhantes", por eles não o serem, dada a tual apropriado. Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma es-
singularidade potencialmente absoluta dos espíritos --, a possibilida- sência humana sob uma aparência animal que ativar os poderes de um
corpo outro21. As roupas animais que os xamãs utilizam para se des-
zo A raridade de exemplos inequívocos do tema da possessão espiritual no locar pelo cosmos não são fantasias, mas instrumentos: elas se apa-
complexo xamanístico ameríndia parece derivar da prevalência do tema comple- rentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, não às
mentar, a metamorfose corporal. Os clássicos problemas da catequese e conver- máscaras de Carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é
são dos ameríndios também poderiam receber alguma luz a partir daí; as concep'
ções indígenas de "aculturação" parecem focalizar mais a incorporação e encor-
poração das práticas corporais ocidentais (alimentação e vestimenta, acima de tudo) 2i Peter Gow {inf. pesa.) afirma que os Pêro concebem o ato de vestir uma
que a assimilação espiritual jlingüística, religiosa etc.). Virar branco é assumir um roupa como um animar a roupa. A ênfase seria menos, como entre nós, no fato de
corpo de branco; a mente não interessa muito, pois não difere senão no manifestar cobrir o corpo que no gestode encher a roupa, ativá-la. Em outras palavras, ves-
afecções corporais distintivas. Mais uma vez, recordemos a anedota de Lévi-Strauss. tir uma roupa modifica a roupa mais que o corpo de quem a veste.

442 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 443


poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se es- é se transformar em animal (Pollock, 1985, p. 95; Vilaça, 1992, pp.
conder sob uma forma estranha. Do mesmo modo, as "roupas" que, 247-55; Turner, ] 995, p. 152), como é se transformar em outras fi-
nos animais, recobrem uma "essência" interna de tipo humano não guras da alteridade corporal, os afins e os inimigos. Dessa forma, se o
são meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afec- animismo afirma uma continuidade subjetiva e social entre humanos
ções e capacidades que definem cada animal. E verdade que aparên- e animais, seu complemento somático, o perspectivismo, estabeleceuma
cias enganam IRiviêre, 1995) -- mas, no caso, raramente. Minha im- descontinuidade objetiva, igualmente social, entre humanos vivos e hu-
pressão é que as narrativas ameríndias que tematizam as "roupas" ani- manos mortos. IAs religiões fundadas no culto de ancestrais parecem
mais mostram mais interesseno que essas roupas fazem do que no que fazer a postulação inversa: a identidade espiritual atravessa a barrei-
escondem.zz Além disso, entre um ser e sua aparência está o seu cor- ra corporal da morte, os vivos e os mortos são semelhantes na medi-
po, que ê mais que esta -- e as mesmas narrativas mostram como as da em que manifestam o mesmo espírito -- ancestralidade sobre-hu-
aparências são sempre "desmascaradas" por um comportamento cor- mana e possessão espiritual, de um lado, animalização dos mortos e
poral inconsistente com elas. Em suma: não há dúvida de que os cor- metamorfosecorporal, do outro...)
pos são descartáveis e trocáveis, e que "atrás" deles estão subjetivida- Após ter examinado o componente que diferencia o perspecti-
des formalmente idênticas à humana. Mas essa idéia não é semelhan- vismo ameríndio, resta-me atribuir uma "função" cosmológica à uni-
te à nossa oposição entre aparência e essência; ela manifesta apenas dade transespecífica do espírito. É aqui, penso, que se pode propor uma
que a permutabilidade objetiva dos corpos está fundada na equivalência definição relacional de uma categoria, a de "sobrenatureza", hoje em
subjetiva dos espíritos. descrédito, mas cuja pertinência me parece inquestionável.23 À parte
Um outro tema clássico da etnologia sul-americana que poderia seu uso muito cómodo para rotular domínios cosmográficos de tipo
ser interpretado nesse quadro é o da descontinuidade sociológica en- óyPer-oaranfos, ou para definir uma terceira categoria de entidades
tre os vivos e os mortos ICarneiro da Cunha, 1978). A distinção fun- intencionais -- pois decididamente há vários seres nas cosmologias
damental entre os vivos e os mortos passa pelo corpo e não, precisa- indígenas que não são nem humanos nem animais (refiro-me aos "es-
mente, pelo espírito; a morte é uma catástrofe corporal que prevalece píritos") --, essa noção pode servir para designar um contexto rela-
como diferenciador sobre a "animação" comum dos vivos e dos mor- cional específico e uma qualidade fenomenológica própria, distinta
tos. As cosmologias ameríndias dedicam igual ou maior interesse à ca- tanto da intersubjetividade característica do mundo social como das
racterização do modo como os mortos vêem o mundo que à visão dos relações "interobjetivas" com os corpos animais.
animais, e, como no caso destes, comprazem-se em sublinhar as dife- Seguindo a analogia com a série pronominal IBenveniste, 1966a,
renças radicais em relação ao mundo dos vivos. Os mortos, a rigor, 1966b), vê-seque, entre o "eu" reflexivo da cultura (gerador do con-
não são humanos, estando definitivamente separados de seus corpos ceito de alma ou espírito) e o "ele" impessoal da natureza (marcador
Espírito definido por sua disfunção com um corpo humano, um mor- da relação com a alteridade somáticas, há uma posição faltante, a do
to é então atraído logicamente pelos corpos animais; por isso, morrer "tu", a segundapessoa, ou o outro tomado como outro sujeito, cujo

2z Riviêre ( 1995, p. 194) apresenta um mito interessante, no qual fica claro 23Ver Taylor (1993a, p. 445) e Descola {no prelo). As críticas destesauto-
que a roupa é menos forma que função. Um sogro-jaguar oferece a seu genro hu- res à noção de "sobrenatureza" são legítimas, mas sob a condição de se aplicarem
mano roupas de onça. Diz o mito: "0 jaguar dispunha de tamanhos diferentes de igualmente às noções de "natureza" e "cultura", tão ocidentalistas e reificadoras
roupas. Roupa para pegar a/zfa, roupa para pegar gueixadcz[-.] roupa para pegar quanto aquela; se é possível dar a estas últimas um significado puramente sinóptico,
CKffa. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras' como quer e faz Descola, não vejo por que não se pode fazer o mesmo com a pri-
Ora, os jaguares não mudam de tamanho para caçar presas de tamanhos diferen meira. Além disso, a releitura pragmático-comunicativa do mundo dos espíritos,
tes, eles apenas modulam seu comportamento. Essas roupas do mito estão adap- proposta por Taylor j1993a) para os Achuar, equivale a uma definição de "sobre-
tadas às suas funções específicas, e da forma-jaguar só permanecem, pois só im- natureza" do mesmotipo que as que proponho aqui para "cultura", "natureza
portam, as garras, instrumento de sua função. e agora para "sobrenatureza

444 Eduardo Viveiros de Castra Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio 445


ponto de vista serve de eco latente ao do "eu". Penso que esse concei- (como humana), e entretanto age como se já manifestando sua natu-
to pode auxiliar na determinação do contexto sobrenatural. Contex- reza distintiva e definitiva (de animal, planta ou espírito). De certa
to anormal no qual o sujeito é capturado por um outro ponto de vista forma, todos os personagensque povoam a mitologia são xamãs, o
cosmológico dominante, no qual ele é o "tu" de uma perspectiva não que, aliás, é explicitamenteafirmado por algumasculturas amazâni-
humana, a sobrenczfurew é .zÁorm.zdo Oafro como Szl/eito, implicando cas. Ponto de fuga universal do perspectivismo cosmológico, o mito
a objetivação do eu humano como um "tu" para esse Outro. O con- fala de um estado do ser em que os corpos e os nomes, as almas e as
texto "sobrenatural" típico no mundo ameríndio é o encontro, na flo- afecções, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mes-
resta, entre um homem -- sempre sozinho -- e um ser que, z/istoprimei- mo meio pré-subjetivo e pré-objetivo -- meio cujo fim, justamente, a
ramente como um mero animal ou uma pessoa, revela-se como um espí- mitologia se propõe a contar.
rito ou um morto, e Áa/acom o homem (a dinâmica dessacomunica-
ção é muito bem ana]isada por Tay]or [1993a]). Esses encontros podem
ser letais para o interlocutor, que, subjugado pela subjetividadenão REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
humana, passa para o lado dela, transformando-se em um ser da mesma
espécieque o "locutor": morto, espírito ou animal. Quem responde a ÀxnEM, Kal (1993). "Ecosofia makuna", in F. Correa (org.), l.a se/ua b mapzzm(&z: eco
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consiste, assim, em intuir subitamente que o outro é "humano", enten- Po/ogfca/pmspecllz/es.Londres: Routledge, pp. 211-33 jpaginação provisória)
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tividades extra-humanas sem perder sua própria condição de sujeito.24 fiqz/egéméra/e.Paris: Gallimard. pp. 258-66.
A guisa de conclusão, observo que o perspectivismo ameríndio CARNEIROOACUNHA,Mana Manuela j1978). Os modos e os ozlüos. São Paulo: Hucitec
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conhece um lugar, geométrico por assim dizer, em que a diferença entre
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socíezy.Londres: Routledge, pp. 107-26.
serem consumidos sem dano; em contrapartida, o que define os espíritos é preci- Ino prelo). "Constructing natures: symbolic ecology and social practi-
samenteo fato de serem ifzcomesfí'fieis;
isto os transforma em comedorespor ex- ce". in P. Descola &:G. Pálsson(orgs.), NafKre and socfezy. Anfb7'0po/ogfc.z/
celência, isto é, em antropófagos. Dessa forma, é comum que os grandes predado
perspectiz/es.Londres: Routledge, pp. 93-116 jpaginação provisória).
res sejam a forma predileta de manifestação dos espíritos, e é compreensível que,
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para os animais de presa, os humanos sejam vistos como espíritos, que os espíri
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tos e os animais predadores nos vejam como animais de presa, e que os animais
tidos por incomestíveis sejam assimilados a espíritos (Viveiros de Castra, t9781. res, 9, PP. 105-40.
As escalas de comestibilidade da Amazânia indígena (Hugh-Jones, 1996) deveriam, j1990). "Les Maus d'Amazonie: parure du coros, identité ethnique et
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450 Eduardo Viveiros de Castra Esquizoanálise e antropofagia 451


&
funciona neste âmbito como uma espéciede chamado à dimensão crí- las do universo desseoutro se misturem às que já povoam a subjetivi-
tica da clínicas. dade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produ-
Terá o quadro esboçado por Regnau]t mudado tanto de ] 988 za uma verdadeira transmutação. Constituídos por esse princípio, os
para cá? Parece-meque não. Então, o que faz do Brasil essa exceção brasileiros seriam, em última instância, aquilo que os separa incessan-
no solitário destino da esquizoanálise? O tradicional fascínio do bra- tementede si mesmos. Em suma, a antropogafia é todo o contrário
sileiro pela cultura francesa -- que, evidentemente, incluiria os psica- de uma imagem identitária.
nalistas? Se assim fosse, essa influência poderia limitar-se a uma bi- A ressonância com as idéias de Deleuze e Guattari é notória: a
bliografia estritamente psicanalítica, já que a produção francesa nes- subjetividade, segundo os dois autores, não é dada; ela é objeto de uma
te campo é farta e conta com ampla divulgação no mercado editorial incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados.
brasileiro. São então outros, certamente, os motivos dessa peculiar O que temos são processos de individuação ou de subjetivação, que
situação da esquizoanálise no Brasil. se fazem nas conexões entre fluxos heterogêneos, dos quais o indiví-
Arriscarei uma hipótese: a concepção de subjetividade de Deleuze duo e seu contorno seriam apenas uma resultante.Assim, as figuras
e Guattari, implicada em sua teoria da clínica (a qual, por vezes,eles da subjetividadesão por princípio efêmeras, e sua formação pressu-
chamaram de "esquizoanálise"l, faria eco a um dos princípios consti- põe necessariamenteagenciamentos coletivos e impessoais.
tutivos das subjetividades no Brasil. Chamarei esse princípio de "an- Tanto em Oswald quanto em Deleuzee Guattari, temosuma
tropofágico", trazendo para a esfera da subjetividade,e reinterpre- crítica contundente aos modos de subjetivação subordinados ao regi-
tando, aquilo que o movimento antropofágico apontou no domínio me identitário e ao modelo da representação. Mas a dupla febril cer-
da estética e da cultura brasileiras. tamente vai mais longe nesseempreendimento, ao criar uma comple-
xa construção conceptualpara traçar efetivamenteuma outra carto-
SÓa antropofagia nos une. Socialmente.Economicamente. Fi- grafia. Para isso, uma de suas principais iniciativas, senão a principal,
losoficamente."3 É com essas palavras que Oswald de Andrade inicia será circunscrever o plano onde se opera esse processo de produção:
seu ManlÁeslo. Numa leitura desatenta, a antropofagia pode ser en- inspirando-se em Artaud, eles Ihe darão o nome de corPO sem (órgãos.
tendida como uma imagem que representaria "o brasileiro", e que, além E nessecorpo que os encontros com o outro, não só humano, geram
de delinear o contorno de uma suposta identidadecultural, teria a intensidades que os autores definirão como "singularidades pré-indi-
ambição de englobar o conjunto tão diversificado de tipos que forma viduais" ou "proto-subjetivas". Os agenciamentosde tais singulari-
a população deste país. No entanto, o interessante na déma7cbe os- dades são exatamente aquilo que irá vazar dos contornos dos indiví-
waldiana é justamente um movimento que se desloca dessa busca de duos, e que acaba levando à sua reconfiguração.
uma representação da cultura brasileira, e tenta alcançar o princípio Se o esforço de Oswald de Andrade foi movido pela necessidade
predominante de sua variada produção. Estendido para o domínio da de pensar o peculiar modo de produção da cultura no Brasil, o esfor-
subjetividade, o princípio antropofágico poderia ser assim descrito: ço de Deleuze e Guattari, naquilo que nos interessa,visou pensar o
engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que partícu- peculiar modo de produção da subjetividadedominantena era do
capitalismo globalizado, num momentoem que, aliás, esteainda não
semostrava em todo o seu alcance, como ocorre nos dias de hoje. Nesse
2 Cf. Paulo C. Lopes, Pragmáffca do dose/o. Aproximações a wma feorla da
c/z'nicíz
em Fé/lx Gna fczríe Gi//es De/auge, dissertação de mestrado, PUC-SP, São sentido, sua obra constitui uma poderosa cartografia para nos loco-
Paulo, 1996. movermos nos meandros dos processos de subjetivação contemporâ-
3 Oswald de Andrade, "Manifesto antropófago", Reuisfade AnfroPoÁagza, neos, uma cartografia que ainda está por ser descoberta e explorada.
ano 1, n' 1, São Paulo, maio de 1928. Reeditado em A utopia a/zfropoÁãgím. Obras
como/elas de Osga/d de Andrízde, São Paulo, Editora Globo e Secretaria de Esta- Esboçar um percurso como esse, indagando de que maneira in-
do da Cultura de São Paulo, 1990. cide o processo de globalização nesse âmbito, nos aproximará das

452 Suely Rolnik 453


Esquizoanálise e antropofagia
possíveis ressonâncias das idéias de Deleuze e Guattari neste modo de grafia da subjetividade, indica uma pista: é o próprio tabuleiro do
subjetivação bastante comum no Brasil, que a obra de Oswald de An- regime identitário o que está para ser posto em questão. Não em nome
drade nos permiteentrever. Pois bem, o que se observa hoje, já num do fascínio niilista do caos, mas para viabilizar a produção de uma
primeiro olhar, é uma multiplicaçãoao infinito das mestiçagensque subjetividade heterogenética. No lugar de imagens a prIorI em torno
se operam na subjetividade, com elementos vindos de toda parte do das quais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas, o que
planeta, não importando o lugar onde se esteja. Com isso, pulverizam- se pode vislumbrar são modos de existência singulares e heterogêneos.
se muito rapidamente as identidades, o que pode levar a supor que o Tais modos se criam em função do mapa de intensidadesque vai se
modelo identitário na construção da subjetividadeestaria sofrendo traçando nessedenso processo de hibridações que assistimos em nossos
pulverização semelhante. Mas não é bem assim: ao mesmo tempo em dias. Isso requer, no entanto, que se escute o corPO sem órgãos, o que
que se dissolvem as identidades, produzem-se figuras-padrão, de acordo implica desenvolver um ouvido atento à emergência das formas de
com cada órbita do mercado. As subjetividadessão levadas a se re- expressão, um ouvido que consiga não ficar sintonizado exclusivamente
configurar em torno de tais figuras delineadas a Pr/orf, independente- seja com os significados, seja com os significantes, seja com ambos.
mente de contexto -- geográfico, nacional, cultural, etc --, submeten- Estariam DelQuzee Guattari, com essa sua noção de corpo sem
do-se a um movimento de homogeneização generalizada. Identidades órgãos, introduzindo uma outra concepção de inconsciente? Sem dú
locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas fle- vida: esses autores conservam a idéia de um inconsciente, mas propõem
xíveis. Estas acompanham o ritmo alucinado de mudanças do merca um inconsciente maquínico, ao invés de representacional ou estrutu-
do, mas nem por isso deixam de funcionar sob o regime identitário. É ral, "razão pela qual eles puderam se dizer freudianos contra Freud",
a desestabilização exacerbada de um lado e, de outro, a persistência como bem lembra Regnault no mesmo artigos. A noção de "maquí-
desse regime acenando com o perigo de se virar um nada, caso nã(i se nico", que causou tanta controvérsia, define a operação por excelên-
consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma das ór- cia do desejo: agenciar elementos de uma infinita variedade de universos
bitas do mercado, que se formam e se dissolvem com a mesma veloci- e, a partir do que seengendra nesseagendamento, produzir as múlti-
dade. Tal perigo traz conseqüências concretas, pois corre-se o risco de plas figuras da realidade -- e não só da realidade subjetiva.
cair na vala dos desempregados, que já somam hoje ] bilhão, espécie Ora, isso não evoca diretamente a operação antropofágica? Se a
de buraco negro do qual é cada vez mais difícil sair. interpretamos a partir desta perspectiva, o "antropo" deglutido e trans-
Dilaceradas entre esses dois vetores, as subjetividades estão em mutado nessa operação não corresponderia ao homem concreto, mas
crise. Na tentativa de reagir, elas tendem a ficar se debatendo em tor- ao humano propriamente dito -- as figuras vigentes da subjetividade,
no de falsos dilemas: é a defesa da identidade em geral contra a pul- com seus contornos, suas estruturas, sua psicologia. O resultado des-
verização, ou vice-versa; ou, então, a defesa de identidades locais contra sa operação é um desfilar de figuras que se sucedem, geradas nas mis-
identidades globais, como se vê nos explosivos movimentos de reivin- cigenações promovidas pelo nomadismo do desejo. Juntando, então,
dicação religiosa, étnica, racial etc. Varia a disposição das peças do esquizoanálise e antropofagia, diríamos que a lei que rege esse no-
tabuleiro, mas estenão varia: é sempre o mesmo tabuleiro de uma sub madismo é a de um inconsciente maquínico-antropofágico, humano
jetividade que funciona sob o regime identitário e figurativo, que as corPO sem órgãos que devora incansavelmente as figuras do humano.
novas tecnologias da imagem e da comunicação tendem a fortalecer e Essa idéia ressoa em certas afirmações intrigantes tanto de Oswald
a sofisticar cada vez mais. Evidentemente, tais tecnologias não trazem de Andrade como de um outro Oswaldo do movimento antropofágico,
esse sentido embutido em sua fabricação, ele é apenas o resultado de o da Costa: é quando o primeiro escreve que a antropofagia é gover-
seu uso dominante. nada pela lei de um "deus de caravana metamorfoseado em deus de

A esquizoanálisepode nos ajudar a sair dessecírculo vicioso. A


incorporação do plano intensivo que é o c07po sem órgãos, na carto- 4 Cf. nota 1; ide#z,p- 54

454 Suely Rolnik Esquizoanálise e antropofagia 455


caravela", e que esta seria "a única lei do mundo"5; e o segundo com- sileiros? Vista por esse prisma, a esquizoanálise constituiria um ins-
pleta, dizendo que esta é "a menos transcendental das leis"Ó. Se reto- trumento adequado para escutar e com isso, ativar -- o inconsciente
marmos tais afirmações do ponto de vista que estamos adorando aqui, maquínico-antropofágico do brasileiro. Da mesma forma, o ouvido do
teríamos que a lei maquínico-antropofágica do deus de caravana é ima psicanalistabrasileiro estaria particularmenteafinado para esse tipo
nente ao nomadismo do desejo; enquanto que a lei do deus da caravela, de escuta que se trata igualmente de avivar. A cartografia concebida
lei das potências católicas que colonizaram o país, é transcendente a por Deleuze e Guattari tenderia a fortalecer o psicanalista nessa em-
esse nomadismo. A diferença está na estratégia a que obedece a confi- preitada, fornecendo-lhe operadores para circunscrever o modo de
guração das formas da realidade: quando esse processo é comandado subjetivação que sua escuta apreende, e atribuir-lhe sentido e valor.
por uma lei que Ihe é imanente, ele irá orientar-se pelas intensidades
produzidas no c07POsem órgãos; já quando é regido por uma lei trans- Isso provavelmentejá não acontece-- em todo caso não com o
cendente, esta impõe ao desejo imagens a priori, extrínsecas a seu mesmo rigor --, quando a escuta na clínica tem, como única referên-
movimento. A primeira estratégia definirá um modo antropofágico de cia, uma cartografia psicanalítica tradicional. Sob o crivo exclusivo de
subjetivação, ao passo que a segunda, um modo do tipo identitário- uma cartografia dessetipo, o desejo conduzido pela lei da antropofa-
figurativo. gia tenderá a ser ignorado na positividade de sua lógica; ele será in-
Se concordamos com os dois Oswaldos, diremos que parece não terpretado como carecendo de uma associação à lei abstrata do Ideal
ser evidente a hegemonia de um modo identitário em terras brasilei- transcendente e à lei negativa da falta, submetido exclusivamente à re-
ras. Podemos inclusive supor que tanto faz se a representaçãoa ser gra do prazer que o pontua de fora. Tal funcionamento será diagnos-
investida como identidade é imposta por um deus de caravela, ou se ticado como um traço transgressivo, próprio de uma posição arcaica
ele foi substituído por um deus moderno, padroeiro da nação brasi- na suposta escala do desenvolvimento psíquico e/ou cultural. Ê quan-
leira, ou por um mais moderno ainda, talvez até pós-moderno, deus do seescrevecoisas do gênero "falta ao brasileiro a Lei", "falta-lhe o
do "capitalismo mundial integrado", como o chamava Guattari, com Ideal", "o brasileiro precisa atravessar seu Édipo" etc.7
suas imagensglobalizadas, flexíveis e efêmeras.É que, sob qualquer Deleuze e Guattari examinam essa concepção de desejo, que o
uma dessas máscaras com pretensão transcendente, tenderia a afirmar- associa à falta e ao Ideal transcendente, em muitas passagens de sua
se uma outra -- a qual, aliás, não é uma, mas várias e imprevisíveis, obra. Destaca-se o platâ consagrado justamentente ao corPO sem ór-
pois ela se metamorfoseia acompanhando o nomadismo do desejo. As gãos, em seu livro Mll P/afõs8, onde, com seu humor, eles afirmam que
subjetividades no Brasil teriam, assim, uma certa maleabidade para essetipo de associaçãoé coisa de "padre". Seriam como maldições
deixar-se habitar por uma constante variação de universos, bem como lançadas contra o desejo, por meio das quais ele é traído, arrancado
uma certa liberdade de criação de novas máscaras, territórios de exis- de seu campo de imanência lo corPO sem órgãosl, onde precisamente
tência marcados pela hibridação de tais universos. Em suma, o incons- ele se define como processo de produção.
ciente maquínico-antropofágico se encontraria especialmente ativo Examinemos a associação do desejo à falta. É por intermédio
neste país. desta associação que se obtém o sacrifício da castração. Para obtê-lo,
Seria, essa situação, a responsável pelo fato de a esquizoanálise, é preciso passar primeiramente por uma operação que consiste em
cartografia para uma clínica da subjetividade no final do milênio, ter
encontrado precocemente um solo fecundo entre os psicanalistas bra-
7 Encontramos essetipo de visão, no Brasil, em ensaios deatgttíiçpsiaanãdis-
tas, especialmenteno livro /{e//o Brasa/,de Contardo Calligaris. São Paulo, Escuta.
5 Idem, ibid.
8G. Deleuze e F. Guattari, À/fi/P/afãs. Cáfila/esmo e esqufzoÁre/zia,
vo1. 3,
6 Acquilles Vivacqua, "A propósito do homem antropófago", Rez/fofa de Platâ 6, "28 de novembro de 1947 Como criar para si um corpo sem órgãos",
Antropofagia, Diário de São Tanto, O'LIQS129. São Paulo, Editora 34, 1996.

456 Suely Rolnik Esquizoanálise e antropofagia 457


pensar o tempo como realização do possível. Por meio dessa opera- contra o desejo, pois o momento da obtenção do prazer é uma forma
ção, instaura-se um falso problema: contentar-se ou não com o possí- de trégua durante a qual o desejo se desatava. Como eles escrevem, com
vel. Com base nisso, o fato de o desejo não estar associado ao Ideal esse mesmo humor, obter o prazer "já é uma maneira de descarregar
transcendente e a seu corolário, a lei da falta, será interpretado como o desejo, no próprio instante, e de desencarregar-se dele"9. O oposto
recusa a contentar-se com o possível. E o resto já se sabe: tal recusa da ética proposta pela dupla, que consiste em encarregar-se do dese-
será vista como produto de uma vontade de impossível, vontade deli- jo, recarregar constantementesua processualidade, afirmar sua potên-
rante; ou no mínimo, imatura e infantil. cia de conexão e criação. No lugar do par prazer/desprazer,o que se
Ora, o que Deleuze e Guattari afirmam não é que não se deva terá neste caso é a alegria da atividade do desejo e a tristeza de suas
contentar-se com o possível, mas sim que o problema está mal colo- desativações. Não é a essa alegria que Oswald estaria se referindo ao
cado. SÓse pode pensarem termos do par possível/impossívelno pla- escreverno À4an/Áesfo:"a alegria é a prova dos nove"?
no da representação, porque tal par supõe uma imagem a ser realiza-
Se concordamos com tais considerações, somos levados a pen-
da, Ideal transcendente,inacessívelpor natureza, em direção à qual, sar que quando se trabalha clinicamentetendo como guia exclusivo
atormentado pela falta, se moveria o desejo. Mas se escutarmos o corPO uma cartografia estritamente psicanalítica, no sentido mais tradicio-
sem órgãos, descobriremos que o tempo como realização do possível nal, corre-seo risco de fazer vingar no desejo as duas maldições con-
é apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo é também tra as quais eletenta, bem ou mal, resistir. Ou, no mínimo, corre-seo
invenção. A partir daí, a questão do desejo não mais se coloca em ter- risco de fixar o desejo sob o feitiço da terceira maldição, a que o sub-
mos de uma escolha entre o possível e o impossível, e sim de uma mete à regra exterior do prazer, atrelando a subjetividade a uma ima-
viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual das inten- gem fundamentalmente hedonista. Sob esse olhar, o desejo tende a
sidades e o plano anual das formas. Trata-se de estar atento às racha- penetrar-se de angústia, culpa e vergonha. A antropofagia, confundi-
duras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinho das da com um hedonismo, tem grandes chances de minguar.
singularidadespré-individuais ou provo-subjetivasque se agitam no vir- A imagem de uma subjetividade brasileira marcada pelo prazer
tual co/PO sem órgãos; trata-se igualmente de farejar a pista de agen não é nova. Ela ecoa numa das visões mais tradicionais que se tem do
ciamentos que favoreçam a atualização de tais singularidadescomo Brasil: o país seria uma espéciede "reserva tropical de hedonismo" à
matérias de expressão. E, assim, infinitamente. disposição do planeta, para quem queira fazer aí suas catarsese saciar-
Para Deleuze e Guattari, o desejo não carecede nada, não por- se. Essa visão, que mobiliza um misto de sedução e condenação, tem
que possa atingir a plenitudede uma satisfação, mas porque a falta início na própria fundação do país, com a vontade de catequesedos
só pode ser pensada do ponto de vista de um sujeito, que se orienta portugueses, mesclada à volúpia com que se relacionavam com os
pela cartografia de um Ideal transcendente. Ê esse sujeito que, ao ver nativos e, depois, com os negros. Ela vai ganhando outras roupagens
sua figura desestabilizar-sepelos movimentos do desejo, o interpreta- ao longo dos séculos e, evidentemente, não é apenas em sua versão
rá como sinal de uma carência de completude. No entanto, se tiramos psicanalítica que se apresenta na atualidade; o tão falado turismo sexual
de cena o Ideal transcendente e examinámos essesmesmos movimen- é, provavelmente, a mais óbvia de suas manifestaçõescontemporâneas.
tos com a escuta sintonizada no corPO sem órgãos, aquilo que para o Em outro panorama, quando a antropofagia encontra um alia
sujeito é falta revela-secomo excesso de singularidades que transbor- do, como parece ser o caso com a esquizoanálise, o que se descortina
dam e desmancham sua figura, levando-a a tornar-se outra, se o pro- é a imagem de uma "reserva tropical de hcterogênese", fruto de uma
cesso seguir seu curso. rica biodiversidade de que o Brasil disporia não só no reino vegetale
Dizer que Deleuze e Guattari não consideram que o desejo care- animal, mas também no humano, principalmente no campo da subje-
ça de alguma coisa não significa, portanto, que eles estariam pleite-
ando uma associaçãodo desejo ao prazer. Pelo contrário: para os
autores, esse tipo de associação consiste na terceira maldição lançada 9 /de z, p. 15 [no original, p. 191]

458 Esquizoanálise e antropofagia 459


Suely Rolnik
rividade. O que haveria de vital nessa reserva não é uma imagem a mais sempre dá para se reassegurar, dizendo que a História não
da subjetividade, nem uma variedade de imagens, para alimentar o é linear e que se pode esperar rupturas brutais. Estou con-
mundo em sua ânsia de consumo de figuras que possam servir de iden- vencido disso. Sobretudo se vocês continuarem nesse ritmo
tidade. Pelo contrário, essa reserva conteria a fórmula de uma vacina em que estão, enganados nesta espécie de transformação do
contra a tendência dominante à homogeneização, tanto em sua neces- Brasil, talvez vocês acabem nos enviando o elevador das
sidade de identidades globais como em seus efeitos colaterais de rei- revoluções moleculares."iJ
vindicação de identidades locais ou de dissolução no caos: a vacina de
heterogênese provocaria nas subjetividades um desinvestimento do Esses são apenas alguns exemplos da insistência de Guattari nessa
modo identitário. Doses dessa vacina estariam assim à disposição para idéia, ao longo de suas sete viagens ao Brasil. Quanto a Deleuze, não
serem injetadas na complexa química da subjetividade que se produz terá sido algo assim o que ele quis dizer com a intrigante frase de seu
nessa difícil, mas não menos fascinante, passagem de milênio. livro Nfefzscbe e a /i/oso#a: "Os lugares do pensamento são as zonas
Nossa indagação acerca do "por que a esquizoanálise vinga pre- tropicais, freqiientadas pelo homem tropical"14?
cisamente nas práticas clínicas brasileiras" acabou desembocando nu-
ma questão ético-política de alcance mais amplo. Mas também aqui É óbvio que não se trata, aqui, de estabelecer um quadro classi-
se encontram Oswald, Deleuze e Guattari. Oswald chegou a defender ficatório de cartografias do desejo por regiõesgeográficas, nem de
a tese de que a antropofagia constituiria uma "terapêutica social para enaltecer os trópicos. As subjetividades no Brasil, como em qualquer
o mundo contemporâneo"10. Guattari via no modo de subjetivação outro lugar, se constituem na tensão entre modos de vários tipos. A
brasileiro uma saída interessantepara as questõesque se colocam neste propósito, quando aqui prevaleceo modo identitário, tanto sob a forma
âmbito, na atualidade.Este era, aliás, um dos aspectosque mais o de identidades locais fixas como de identidades globalizadas flexíveis,
atraíam nestepaís, segundo suas próprias palavras: este tende a apresentar-se particularmente tosco e exacerbado. No pri-
meiro caso, vemos, por exemplo, subjetividades aderirem sem a me-
"Parece-me que estão reunidas aqui as condições para nor crítica à representaçãode um suposto "ser brasileiro", investin-
que se desenvolva uma espécie de máquina imensa, uma do-a com impressionante fervor ufanista. Uma imagem marcante nesse
espéciede imenso ciclotron de produção de subjetividades sentido circula por ocasião de disputas esportivas internacionais: a
mutantes . " ' -l
bandeira envolvendo por inteiro os corpos de atletas e torcedores que,
São pessoas que fizeram essa mutação capitalística e por um momento, transformam-seem puros emblemasde uma pre-
que nem por isso estão inteiramente engolfadas num proces- tensa identidade nacional. No segundo caso, quando o modo identitário
so de buraco negroem grande escala,como a União So- assume a forma de identidades globalizadas flexíveis, é surpreenden-
viética. '' ' '=
te a facilidade com que se mitifica qualquer figura que se apresenta
"Em matéria de índios, metropolitanos ou tupiniquins, de modo minimamente sedutor; facilidade igualmente para reconfi-
os países europeus são muito subdesenvolvidos. É claro que gurar-se através desta identificação, na esperança de conquistar um re-
conhecimento social imediato. Um bom exemplo disso é o fenómeno
das telenovelas, especialmente a novela das oito na Rede Globo. Sua
linguagem incorpora as mais avançadas tecnologias, e sua temática,
ioOswald de Andrade, "A marcha das utopias" [1 953], A afopia a#fropo-
@gfca (cf. nota 3).

11Félix Guattari e Suely Rolnik, À4fcroPo/#fca.Carrogra#as do dose/o,Pe- i3 Idem, p. 304.


trópolis, Vozes, 4' ed., 1996 [1986]; pp. 310-1 ]trecho de debate ocorrido em 19821.
14G. Deleuze, N/etzscbe e a P/osoÓa, Rio de Janeiro, Semeion, 1976, p. 91
i2 idem, p. 310. [1962,P. 126].

460 Suely Rolnik 461


Esquizoanálise e antropofagia
IS clucstões políticas, económicas, sociais, comportamentais etc. que oS SIGNOS E SEUS EXCESSOS
.agitam a vida nacional a cada momento. O tratamento dado a essas A CLiNiCA EM DELEUZE
questões é sempre o mesmo: seu poder disruptivo, envolto pelo g/aznoi/r .joel Birman
dos personagens, se esfumaça. Tais personagens se oferecem como
atraentes figuras-padrão para todos os gostos, participando da vida
cotidiana de uma média de 50 milhões de brasileiros -- a audiência
chega a atingir 70 milhões,perto da metadeda população do país --
que os consomem como sua ração diária de identidade. Eles formam :[...] a psicologia é certamentea última forma do ra-
uma espéciede família-prótese cujo equilíbrio e mesmice nada tem o cionalismo: o leitor ocidental espera a palavra final. Desse
poder de abalar. Verdadeiro laboratório blgb fecb de imagens prol-.à- ponto de vista, a psicanálise relançou as pretensões da ra-
porfer, idealizadas de acordo com cada nova situação do mercado, as zão. Mas, se ela quase não poupou as grandes obras roma-
telenovelas brasileiras são exportadas com expressivo sucesso para mais nescas, nenhum grande romancista de seu tempo chegou a
de cem países. se interessar muito pela psicanálise."i
Com efeito, o inconsciente maquínico-antropofágico não é prer-
rogativa dos trópicos, e muito menos dos brasileiros: sendo um prin- Trata-se de empreender aqui uma leitura da problemática da clí
nuca em Deleuze.
cípio imanenteà produção dc subjetividade, eleé próprio da espécie
humana como um todo. No entanto, ele pode estar mais ou menos ativo
Com efeito, além de seu interesse por certos autores cruciais da
modernidade -- como Kant, H ume, Espinosa, Leibniz, Nietzsche, Fou-
nas subjetividades, e isso em muito depende dos contextos sociocul-
turais, do quanto tendem a favorecer ou inibir sua atividade. cault e Bergson, por exemplo --, sabe-se que Deleuze foi buscar na
Hoje, na era da globalização, tal inconsciente parece encontrar- literatura, no cinema, nas artes plásticas, na psiquiatria e na psicaná-
lise certas condições necessárias ao exercício da filosofia. Por isso ele
se especialmente em baixa. E diante dessa situação que ativá-lo tor-
na-se uma prioridade da clínica, não só no Brasil. Prioridade que, aliás, não se contentou em produzir a exegesesevera e inventiva de nume-
rosos autoresclássicos da história da filosofia; foi defender sua práti-
extrapola a esfera da clínica propriamente dita: avivar o insconsciente
maquínico-antropofágico se constitui como força de resistência polí- ca filosófica no campo de outras práticas discursivas, entre as quais a
tica à regra geral da homogeneização, engrenagem imprescindível do psiquiatria e a psicanálise.
sistema em que vivemos. O significante "clínica" terá portanto, aqui, um sentido muito
preciso, com fronteiras bem delimitadas. A clínica não remeteabso-
lutamente às práticas médica e neurológica; remete às clínicas psiquiá-
trica e psicanalítica, pois são essasas referênciasclínicas que encon-
tramos na obra de Deleuze.No campo da filosofiacontemporânea,
parece-me que apenas Foucault se interessou intensamente por psiquia-
tria e psicanálise, tendo realizado uma das obras maiores sobre a ar-
queologia da clínica médicas

l G. Deleuze, "Bartleby, ou la formule", Crifiq e ef c/znfque, Paras, Minuit,


1993,PP. 104-5.
2 Ver M. Foucault, À4a/adiewc/zfcz/cef psycbologie, Paris, PUF, 1954; Nazi
sandede !a clinique; ane arcbéologie di{ regard médica!, Paria, PUF, 1963; Histoire
de /a /o/fe à /'áge c/assiqlíe, Paria, Gallimard, 1972, 2' ed.; l.a z/o/opzfé de saz/olr,
Paria, Gallimard, 1976.

462 Suely Rolnik Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 463


(;ontudo, é preciso lembrar que Deleuze não realizou sozinho esse Além disso, a leitura de Sacher-Masoch, empreendida por Deleuze
sinuoso trajeto clínico. Seu antigo interesse pela psiquiatria e a psicaná- no final dos anos 60P, revela uma leitura particularmenteacurada e
lise viu-se reforçado pela profunda relação de amizade e colaboração original dos grandes temas do masoquismo. Essa leitura é reveladora
que o ligava a F. Guattari, com quem escreveu suas obras mais signifi- de um imenso saber clínico; ela indica de maneira irrefutável, a nosso
cativas no que concerne a essesdois campos. Como sabemos, Guattari ver, a irredutibilidade do conceito de pulsão de morte a qualquer ten-
sempre privilegiou a clínica, que ele praticava com verdadeira paixão. tativa que pretenda recupera-lo no registro simbólico.
Por isso, A/zfl-Edipo3 e MI//P/afós4, escritos em parceria com Nos comentários a seguir, pretendemos apresentar um primeiro
Guattari, condensam talvez o essencial da contribuição deleuzeana à esboçoda c/ílzicízde/euzeana.Iremos nos apoiar nas duas obras --
questão da clínica. Entretanto, é preciso não esquecer os textos escri- sobretudo Anui-Édfpo -- escritas a quatro mãos com Guattari, mas
tos apenas por Deleuze, nos quais a problemática da clínica ocupa um também nos livros dedicados a Proust e Sacher-Masoch e, enfim, nos
lugar crucial e estratégico. ensaios reunidos sob o título de Crúica e c/hiccz.
Os ensaios reunidos em 1993 sob o título de Crítíczz e c/z'nícá5
constituem uma contribuição importante de Deleuze sobre essas ques- 1. AS SOMBRASDA HISTÓRIA
tões. Entre essesensaios, alguns são inéditos, outros haviam sido pu- Se esse conjunto de textos constitui o campo discursivo do comen-
blicados anteriormenteem revistas. Se alguns revelam evidentesin- tário que vamos empreender, é preciso considerar igualmente o contex-
fluênciasprovenientesdas duas grandes obras escritascom Guattari, to no qual Deleuze passou a se interessar por psiquiatria e psicanálise.
outros contêm reflexões incontestavelmente originais de Deleuze acerca Acrescentarei que, não podendo realizar uma leitura pormeno-
da clínica. rizada de cada um dessestextos, vou dedicar-me antes de tudo à orien-
Da mesma forma. o ensaio de Deieuze sobre Proust. intitulado tação c/z'Hlccz
da /eífuríz de Deleuze. É nessa perspectiva que empreen-
Proust e os slgfzos6,revela uma reflexão profunda a respeito da clíni- derei uma leitura fra7zsz,erszz/
dessestextos de Deleuze.
ca, sobretudo na elaboração da idéia proustiana de memória invo A devida consideração da conjuntura histórica na qual Deleuze
luntária, em que Deleuze trabalhou a oposição essencial entre di/crença passou a se interessar por psiquiatria e psicanálise pode tornar mais
e repetição para enfatizar a distinção -- retomada posteriormente evidente sua preocupação com a questão da clínica. Com isso, pode-
entre a repeflção do mesmo e a repefíção difere/zela/7.Os conceitos de remos perceber melhor a inflexão particular dada à experiência clz'Mica.
cópia e de simulacro, igualmentedesenvolvidosem Lógica do se/zli- O interesse de Deleuze por psiquiatria e psicanálise manifestou-
do', são o objeto de uma nova elaboração, inscrita no registro sensí- se durante os anos 60. A primeira de suas obras que dá um grande
vel da escrita literária. destaqueà teoria da clínica, o Á?zfl-Édlpo, foi publicada no início dos
anos 70. Estamos então, na França, no auge do pensamento lacaniano
-- a psicanálise funcionando ai/zda, no domínio da filosofia e das ciên-
cias humanas, como um importante saber de referência. Ê o momen-
3 G. Deleuze e F. Guattari, L'anui-(Edrpe, Paria, Minuit, 1973 (nova edição to de apoteose do pensamento estruturalista francês, no qual a psica-
aumentadas. nálise, em sua versão lacaniana, ocupa o lugar que todos conhecemos.
4 G. Deleuze e F. Guatari, MI//e P/afeaux. CáFIla/isme ef scblzopbrázie, Paria, Mas é preciso igualmente evocar que estamos então em pleno
Minuit, 1980. desenvolvimento do movimento francês de reforma institucional psi-
5 G. Deleuze,Criflqae ef c/ífziqzze,
Paris, Minuit, 1993. quiátrica, o qual pretendiatransformar as estruturasasilaresdos hos-
pitais e promover a prática da psiquiatria de setor para modernizar o
6 G. Deleuze, Proust ef /essígnes, Paria, PUF, 1964. sistema de assistência.
7 G. Deleuze, Df/Hére/zceet réPéfílfofz, Paras, PUF, 1 968.
8 G. Deleuze, Loglqlíe d# se/zs, Paras, Minuit, 1969. 9 G. Deleuze, Présenfaflon de Sacber-À4asocb, Paris, Minuit, 1967

464 Joel Birman Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 465


Ora, entre os defensoresda modernização psiquiátrica, uma opo- tos de maio de 1968; segundo alguns observadores, ela teria sido mes
sição importante se fazia presenteno campo social. Havia os repre- mo lamentável. Assim, se o discurso de Lacan fora uma das principais
sentantes da "psiquiatria social-democrata", segundo a expressão de alavancasdo movimento institucional psiquiátrico francês, em suas
Guattari, que propunham uma reforma da assistência pública que origens, a situação havia mudado radicalmenteno fim dos anos 60:
implicava a introdução da psicanálise na prática clínica dos hospitais ele se tornara um obstáculo.
psiquiátricos e nos centros médico-pedagógicos(a psicanálise era a A consideração dessecontexto histórico é, portanto, fundamen-
aliada incondicional dos novos instrumentos terapêuticos possibilita- tal para poder compreender a produção teórica de Deleuze sobre a
dos pela psicofarmacologia). Mas existia também uma outra linha de clínica, pois é esse mesmo contexto que explica sua crítica à posição
trabalho institucional cuja orientação era bastantediversa da anterior, estratégica até então ocupada pela psicanálise nos campos da filoso-
na medida em que a crítica da estrutura asilar do dispositivo psiquiá- fia e das ciências humanas na França. Convém ainda lembrar que as
trico se associavaa um prometopolítico. Esse novo prometoera porta- questões filosóficas subjacentes a essa problemática foram renovadas
dor de uma ambição revolucionária, pois não podemosesquecerquc de tal forma por Deleuze, que a crítica sistemáticaao estruturalismo
estamos na época do desdobramento do movimento de maio de 1968. proposta em Á/zfi-Édlpo poderá figurar como uma das origens do
A primeira corrente institucionalista estava inscrita no que havia pensamento pós-estruturalista.
de mais tradicional no campo da psicanálise francesa. Mas a segunda Unl recomeço filosófico se anuncia aqui, com o que hil de mais
corrente encontrou no pensamento inaugural de Lacan um de seus fun- sombrio nos destinos clínicos da loucura.
damentos. De fato, apesar de ter se originado, com Tosquelles, na Es-
panha anarquista e republicana do período da guerra civil espanhola, 2. O ÉDITO, AS N4ÁQUINASDESEJANTES E O CORPO SEM ÓRGÃOS
o institucionalismo de esquerda, ao migrar para a França, encontrou Nessa perspectiva, o eixo argumentativo de Ánfi-Edipo se cons-
no pensamento de Lacan uma de suas referências teóricas fundamen titui a partir da oposição entre a categoria de n(equina dose/a/zfee a
tais. O que estava em jogo, no registro específico do pensamento e da figura do Édlpo, seja esteconsiderado como complexo(Freudl ou como
prática institucional psiquiátricos, era, enfim, a oposição entre reforma estrutura ILacan). A "transferência" do Édipo de sua posição de com-
social e revolução, entre a ideologia do reformismo e a busca de uma p/exo para a de esfrufara ocasionou sua radicalização teórica, pois
ruptura social radical. implicou sua centralidade para a constituição do sujeito, a ponto de
A junção do pensamento psicanalítica e dos ideais revolucioná- alça-lo a uma dimensão quase transcendental. Essa mudança da ênfa-
rios dos anos 60 teve como consequências maiores duas proposições se e do lugar do Edipo na construção do sujeito encontra-sena base
fundamentais, que acabaram por determinar os destinos da esquerda da leitura estruturalista da psicanálise e do famoso "retorno a Freud"
institucional" nos anos 70: realizado por Lacanlo
1) A crítica sistemática a um modelo de clínica restrita à relação Entre os conceitos de máquina desejante e de Édipo, Deleuze e
médico-paciente, ou analista-analisante. Nesse contexto, a clínica de- Guattari colocam a categoria de corPO sem órgãos (Artaud) como uma
via ultrapassar esse espaço acanhado e limitado, e inscrever-se decidi- maneira precisa de desalojar o Édipo de sua posição estratégicade
damente no campo social. Essa clínica pretendia, portanto, enraizar- centralidade para o sujeito, e um modo de enunciar uma outra inter-
se no campo social, perpassando o conjunto de suas práticas, e não pretação possível do conceito de recalque originários l formulado por
mais se restringindo unicamenteao diálogo personalizado e singular Freud12. O conceito de Édipo enquanto estrutura é relegado a uma
entre o analista e seu analisante.
2) A crítica ao pensamentoteórico de Lacan passou a ser feita 10J. Lacar, "Fonction et chaínp de la parole et du langage en psychanalyse
j1953], Ecrífs, Paras, Seuil, 1966.
de maneira sistemática, por ser ele o sustentáculo da concepção limi-
tada da clínica mencionada acima. Além disso, não se pode esquecer 1] G. Deleuzee F. Guatrari, L'anui-(Ed;pe,cap. l.
a posição abertamente conservadora de Lacan diante dos acontecimen- iz S. Freud, "Le refoulement", Mêrapsycbo/ogfe, Paras, Gallimard, 1968.

466 Joel Barman Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 467


posição secundária na construção do sujeito, ao mesmo tempo que a te, em que as máquinas desejantese o co/7)osem órgãos vêm ocupar
concepção do corpo, como conjunto de máquinas desejantes acopladas as posições fundamentais, de modo que as noções de i densidade e de
de maneira anárquica, vem ocupar a posição fundamental. excesso passam a definir o ser do inconsciente.
Foi através do desenvolvimento do conceito de máquina desejante Para realizar essa operação, Deleuzee Guattari apoiaram-seex-
que Deleuze e Guattari procuraram realizar a desconsfr ção do mo- plicitamente na teoria das pulsões de Freud. Criticando o modelo la-
delo edipiano na psicanálise, e formular uma outra leitura possível do caniano do inconsciente, eles pretenderam conduzir Freud na direção
conceito de inconsciente. Ao virarem desse modo o discurso freudia- de uma "psiquiatria materialista". É como se fosse preciso apoiar-se
no -- mas também, e principalmente, o lacaniano, como mostrarei um necessariamenteem Freud para criticar Lacan e devolver à psicanáli-
pouco mais adiante --, Deleuze e Guattari propunham-se lançar as se o que Lacan, na leitura que ele havia feito dela, havia posto entre
bases do que eles chamaram "uma psiquiatria materialista", em que parênteses. Mas era preciso, ao mesmo tempo, radicalizar os enuncia-
o materialismo remeteria às idéias de materialidade desejante e de his- dos freudianos indo muito mais longe que Freud. Daí a formulação
tória13. Era preciso empreender, com Freud e Lacan, aquilo que Marx aparentemente paradoxal de Deleuze e Guattari: ser Éreud/amoconfrcz
havia realizado com o naturalismo de Feuerbach. isto é. inscrever a Freme, pois seria necessário tirar as consequências teóricas e políticas
materialidade desejante no registro da história e arranca-la definitiva- que este ignorou para a psicanálise.
mente do registro da natureza.
Desse ponto de vista, poderíamos afirmar que os discursos de 3. 0 EXCESSO PULSIONAL E A IMPESSOALIDADE SINGULAR
Freud e de Lacan são ambos criticados por suas dimensões individual Nessa perspectiva, a idéia de economia é fundamental. A econo-
e familiarista, pois não consideram em absoluto o campo social. O mia remete tanto à economia política como à economia desejante e a
conceito de Áa pasma co/eüz.'o,oriundo da psicoterapia institucional sua articulação no registro das máquinas desejantes. Essas duas mo-
e enunciado por Oury, é um momento essencial dessa construção, dalidades do registro económico são, além de indissociáveis, reenviadas
contra uma leitura individualista e imaginária do fantasma]4. A relei- ao campo social. Assim o inconsciente, fundado nas idéias de excesso
tura dos escritos de Freud sobre o fantasma -- em particular o comen- e de intensidade, pu/sionado pelas máquinas desejantes, é permeado
tário de "Bate-se numa criança" -- revela a argúcia crítica de nossos pela economia.
autores. E necessário aqui sublinhar que a questão das pulsões e o regis-
Mas é sobretudo o modelo estruturalista de Lacan e sua concep- tro económico da metapsicologia freudiana sempre foram o maior
ção do inconscienteestruturado como uma linguageml) que são vi- ponto de oposição do discurso de Lacan ao pensamento de Freud. Essa
sados por essa análise. Isso não quer dizer, é claro, que Freud também exclusão da economia da metapsicologia psicanalítica é facilmente
não seja atingido pela leitura de Deleuze -- o complexo de Édipo é identificável no discurso de Lacan, desde o início de seu percurso e ao
um conceito freudiano, e muitas páginasdo Anff-Édfpo estão centra- longo de quase toda a sua obra teórica. Essa recusa sistemática do ponto
das numa crítica sistemática a Freud --, mas a crítica se dirige clara- de vista económico, na leitura lacaniana de Freud, definia para a psi-
menteao pensamentode Lacan. Foi contra uma certa apropriação canálise uma perspectiva cientificista.
lacaniana de Freud, então hegemónica na França, que o Ánfi-Edfpo Com efeito, desde o início de seu percurso teórico -- evoquemos
foi escrito. Com isso se elaborou uma nova concepção do inconscien- aqui os ensaios "Para além do princípio de realidade"lÓ, "0 estágio
do espelho como formador da função do Eu"17, "A agressividade em

13G. Deleuzee F. Guattari,L'a/zfi-(Edipe,


cap. l.
i4 Idem, cap. 2. íó J. Lacan, "Au-delà du príncipe de réalité" [1936], Ecrffs.
]5J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langageen psychanalyse", i7 J. Lacan, "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je
Ecrits. lt949}, Ecrjls.

468 .joel Barman Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 469


l)sicanálise"lS --, no período em que seu pensamento estava centra- ma referênciaao excessopulsional e à intensidade.Em suma, a lógica
do na tópica do imaginário, Lacan excluiu, de maneira concisa e deli- do significante seria exclusivamente responsável pela estrutura do su-
berada, o conceito de pulsão e a problemática económica da metapsi- jeito do inconsciente.
cologia freudiana. Entre os anos 30 e 40, momento de elaboração desses Opondo-se a essa visão, Deleuze e Guattari propuseram em A/zff-
textos, essas questões foram discutidas pela psicanálise anglo-saxânica Édlpo que o inconsciente é perpassado de fio a pavio pela pulsão, ou,
em dois registros diferentesmas complementares:elas foram pensa- em outras palavras, que não poderia haver inconscientesem intensi-
das segundo um modelo eminentementebiológico e representadas co- dades. Vale dizer que, face à formulação lacaniana do inconsciente
mo sendo a base de uma teoria da afetividade. É o que Lacan queria, como Áa/fa, Deleuze e Guattari defendem a tese segundo a qual o in-
justamente, excluir da metapsicologia freudiana para fundamentar consciente é excesso. Essa oposição entre o excesso e a falta é funda-
teoricamente a especificidade epistemológica da psicanálise. mental para a construção de um argumento sólido que permita, numa
Por ocasião do segtmdo período de seu percurso teórico, inicia- direção completamente diferente da estabelecida por Lacan, fundar
do em 1953, quando a tópica do simbólico predominou, a exclusão uma nova leitura do sujeito do inconsciente.
do registro económico e do conceito de pulsão da metapsicologia freu- Desde 1967, em sua obra dedicada a Sacher-Masoch, Deleuze já
diana foi ainda mais radicalizada por Lacan. Seu fascínio pelo mode- insistia nessa diferença crucial com Lacan sobre o estatuto teórico do
lo linguístico de Saussure o conduziu, pelas sendas abertas por Lévi- inconsciente que, para ele, era atravessado pela questão da pulsão. De
Strauss e Jakobson, à formulação do conceito de inconsciente estru maneira aparentemente paradoxal no contexto de uma tradição psi-
turado como uma linguagem,toda alusão às intensidadespulsionais canalítica em que a idéia de instinto havia sido definitivamente elimi-
sendo absolutamenteeliminada da psicanálise. O conceito de abeto nada20 pelo ensino de Lacan, Deleuze distingue então, novamente, a
devia desaparecerda psicanálise,pois só poderia haver recalque do ;pulsão de morte" do "instinto de morte
representante-representaçãoda pulsão, e não do representante afetivo ip. Evidentemente, isso não quer dizer de modo algum que Deleuze
Concluiremos desseselementos que a problemática da intensidade quisesse recolocar a biologia no campo da psicanálise introduzindo
e o registro económico da metapsicologia freudiana colocavam pro nela, de forma surpreendente, o significante "instinto". Ao contrário,
blemas insolúveis para o racionalismo de Lacan, fundado na tradição pela inscrição renovada dessa noção, Deleuze pretende recolocar a
filosófica de Hegel e transmitido pelo ensinamentode Kojêve. Sabe- dimensão pulsional no inconsciente,desarticulando dessemodo a leitu-
se, com efeito, que a tese do inconscienteestruturado como uma lin ra lacaniana da pulsão de morte que a inscrevia no registro simbólico.
guagem e seu ordenamento lógico representado como uma cadeia de Essa tese foi retomada em Á/zf/-Édito, já em suas primeiras pá-
significantes permitiam associar as exigências teóricas advindas do ginas, com o enunciado das máquinas desejantesque, na verdade, não
racionalismo e do hegelianismo a uma leitura linguística do sujeito do é senão a radicalização ostensiva dos conceitos de pulsão enquanto
mconsciente. forças21e de pulsão de morte22em Freud. Nesse contexto, a pulsão
De onde uma concepção não pulsional do inconsciente, represen enuncia-se como desconecfiz.,a,dlslíanfzucz e descons r fora dc unida-
cada pela lógica da estrutura edipiana associada a uma superposição des. A idéia de pulsão remete, portanto, à mobilidade e à ruptura das
do modelo lingiiístico do inconsciente ao do Edipo como estrutura unidades, desfazendo com isso a noção de sujeito como unidade.
o que haveria de eliminar definitivamente a problemática da intensi-
dade. Para tanto, foi enunciado um conceito inédito de pulsão de morte,
inscrito no registro simbólico, de modo que não mais haverá nenhu- zo L. Laplanche e J.-B. Pontalis, Vocal /abrede /a psycbana/yse, Paras, PUF,
4' ed., 1973.
i8 J. Lacan, "L'agressivité en psychana]yse" ]1948], Écrfts. 2i S. Freud, "Pu]sions et destina des pulsions" [1915], À4éfapsycbo/ogfe.
i9 J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanal} se' zz S. Freud, "Au-de]à du príncipe du plaisir" [1920], Estais de psycbanalyse,
Ecrits. Paris, Payot, 1981.

47o Joel Birman Os signose seusexcessos.A clínicaem Deleuze 471


Assim, se não há nenhuma dúvida quanto à realidade da crítica mo da personalização na tradição da filosofia do sujeito, tende agora
ao discurso freudiano, esta se apresenta, em primeiro lugar, como que à impessoalização.Seria portanto para o silêncio da pessoae do Eu
filtrada pela leitura dc Lacan isto é, pela lógica da estrutura edipiana, que tenderia a singularidade, já que ela está centrada no excesso pul-
e não pela ordem da economia das pulsões. Esta última é então reto- sional e na economia das intensidades.
mada positivamente por Deleuze, que a radicaliza de maneira inteira- Eis a razão pela qual a esquizofrenia interessa tanto a Deleuze e
mente específicaquando afirma que as máquinas desejantesnão po- Guattari. Com efeito, ela não apenas manifesta sua irredutibilidade ao
deriam restringir-seao registro do indivíduo e que elas seencontram Êdipo estrutural e a qualquer forma de ser transgeracional, como tam-
no campo social. É por essa razão que Deleuze e Guattari valorizam bém mostra os impasses do sujeito que quer se tornar singular na im-
as categorias da economia pulsional de Freud, pois elas lhes permitem pessoalidade. Desse modo, a esquizofrenia, enquanto figura típica da
voltar-se efetivamente para o campo da economia política: trabalho, modernidade psiquiátrica, constitui o ponto de apoio estratégico para
investimento, força e intensidadezJ. se pensar um sujeito não inscrito na estrutura do Êdipo: ela revela esta
No que se refere à concepção do sujeito e à realidade da expe- forma fundamental de existência do sujeito que é a impessoalidade
riência clínica, chega-se assim a uma distinção forte entre uma clínica singular.
centrada na pessoa/idadee uma outra fundada na siaga/arldade. Com Contra a concepção lacaniana do sujeito, que se baseou sempre
efeito, mesmo tendo Lacan fundado, como sabemos, todo o seu per no modelo da paranóia26, o su)eitocomo impessoalidade singular está
curso teórico posterior a 1953 na crítica sistemática à psicologia nor- centrado, para Deleuze e Guattari, na figura paradigmática da esqui-
te-americana do Eu, Deleuze e Guattari mostram com precisão que o zofrenia. Essa oposição entre as categoriasclínicas da paranóia e da
Édipo estrutural acaba reconduzindo Lacan a uma leitura do sujeito esquizofrenia mostra bem o que está efetivamente em questão nas di-
centrada no Eu e na pessoa, e não a uma concepção da subjetividade ferentes leituras da subjetividade.
centrada na idéia de singularidadeZ4.Esta, ao contrário, estaria fun- A paranóia como modelo teórico do sujeito implica a glorificação
dada, de forma paradoxal, no atributo da ímpessoa/idade.Com efei- do Eu e da pessoalidade,enquanto a esquizofrenia, pela fragmentação
to, se a singularidade não fosse eminentementeimpessoal, o sujeito ja- e pela dispersão, revela a problemática da impessoalidadesingular.
mais poderia ser marcado pelo que é singular. Além disso, se o modelo da paranóia e a concepção de sujeito que dela
Nessa perspectiva,a singularidadeimplicaria necessariamentea provém levaram diretamente Lacan à categoria de alienação de He-
ruptura dos limitese das fronteiras do Eu, com o rompimentodo ter- gel, a singular impessoalidadedo sujeito não mais poderá deixar de
ritório restrito da individualidade e a inserção do sujeito em outras ser pensada no registro da alienação. Deleuze e Guattari estão bem mais
territorialidades. O sujeito se inscreveria assim enquanto si/zga/árida próximos de Marx, jamais de Hegel, como podemos observar ao longo
de fmPessoa/ por sua inevitável dispersão nas máquinas desejantes do de todo Ánfí-Édlpo. Com Marx seria possível pensar uma psiquiatria
tecido socialn materialista, centrada no inconsciente atravessado por pulsões e intensi-
Parece-me que essa é uma idéia cardinal da clínica para Deleu- dades, ao passo que, seguindo o racionalismo hegeliano, a materiali-
ze, pois, enquanto impessoal, a singularidadenão se identifica mais dade económica dessa psiquiatria seria da ordem do impossível -- como
com a idéia de unidade, visto que o um do traço unitário se apagaria aconteceem Lacan. A letra do inconsciente adquire então uma ma-
para sempre diante das idéias do mú/[lP/o e da d]spe7'são.Eis por que terialidade fosca e evanescente, remetendo a uma idealidade platónica.
topamos com este aparente paradoxo: o singular, que seria o máxi- Portanto, será sempre em relação a Lacan e à concepção linguís-
tica do sujeito que Deleuze quer tomar distância, a fim de explorar uma
23 G. Deleuze e F. Guattari, L'úzzfi-(Edipe, cap. 2.
concepção pulsional do inconsciente como uma nova base para uma
24 Idem, ibid.
zóJ. Lacan, "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je
zs Idem, ibid. Ecrits.

472 Joel Barman Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 473


l)siquiatria materialista. No registro estrito da experiência clínica, a rá uma configuração ainda mais nítida e contrastada. A oposição en
figura central que então se delineia é a da impessoalidade singular. Pois, tre literatura e ciência lingiiística é aí desenvolvida de maneira a mos-
no registro da materialidade pulsional, das disfunções e das desconexões trar que esta última é incapaz de dar conta da literatura, que, por sua
do sujeito, a desbotada idéia hegeliana de alienação não tem mais vez, só tem valor na medida em que entra em contradição com a ciên-
nenhuma razão de ser. cia lingüísticazV
Essa obra renova a concepção deleuzeana da clínica pelas novas
4. OS SIGNOS, OS TRAJETOS E AS CARTOGRAFIAS possibilidadesque a literatura oferecepara pensar a forma do sujeito
Essa leitura nos leva inevitavelmente a retomar a distinção entre como singularidade impessoal. Através da multiplicidade das escritas
repetição do mesmo e repetição diferencial que Deleuze havia estabe que nela se manifesta, a literatura constitui o campo privilegiado des-
lecido em 1964, em sua obra dedicada a Proust27. A repetição dife- sa exploração inédita e contínua; ela é o laboratório privilegiado para
rencial implica o excesso pulsional que funda a possibilidade da dize experimentar, sempre de novo, a questão do sujeito e da clínica. Se,
rença subjetiva e da singularidade. Por isso é impossível pensar a exis- na prática da escrita, a literatura se materializa enquanto ficção, é entre
tência da impessoalidade singular sem a regulação operatória da re- escriba e /acção que se deverá tentar pensar o sujeito da diferença, os
petição diferencial. Sabemos que Lacan retomou posteriormente essa simulacros e a singularidade impessoal. Ê nessecampo multifacetado,
distinção feita por Deleuze para pensar a compulsão de repetição em portanto, que se decidirá a concepção que Deleuze faz da clínica e da
psicanálise, sublinhando suas dimensões positiva e negativa. Além materialidade da psiquiatria.
disso, Lacan utilizou essas noções para pensar a experiência da trans- Deleuze irá assim retomar a temática da singularidade impessoal
ferência na clínica psicanalítica. dedicando-sea explorar certos impassesda criação literária. A pro-
Da mesma forma, as noções dc slm&l/actoe de cópia podem ser dução delirante revela-serica de ensinamentos ao indicar alguns obs-
elevadas à condição de verdadeiros dispositivos que contribuem à re- táculos presentes na criação, mas também os processos de continui-
presentação do sujeito enquanto impessoalidade singularzu. Sem o dade da vida. Seriam estes responsáveis pela literatura e pela ficção,
auxílio dessas categorias, seria de fato quase impossível desenvolver transformando-as em "empreendimentos de saúde"? Ora, quando os
tal concepção do sujeito, pois o simulacro e a cópia remetem à oposi- processos de vida são paralisados, como acontece na neurose e na psi-
ção entre a repetição diferencial e a repetição do mesmo. A singulari- cose, sabe-se que a criação é interrompida e impedida. Nesse sentido,
dade impessoal -- por permitir ao sujeito o acesso a sua condição de 'a enfermidade não é processo, mas parada do processo". Por conse-
diferença irredutível face a qualquer outro sujeito -- passaria assim, guinte, "o escritor enquanto tal não é doente, mas antes médico, mé-
obrigatoriamente, pela cadeia dos simulacros. dico de si mesmo e do mundo". Assim, "o mundo é o conjunto de sin-
Os comentários que precedem desembocam inevitavelmente nos tomas cuja doença se confunde com o homem"30.
ensaios reunidos por Deleuze sob o título de Crãlcíz e c/z'Mica.Em sua C) sentimento de estranheza provocado pelas obras de L. Wolfson,
diversidade temática e temporal, essa obra propõe uma elaboração R. Roussel e J.-L. Brisset dá sentido à proposição de Proust enuncia-
renovada da questão da clínica e faz Deleuze ir além das teses conti- da em "Contra Sainte-Beuve",segundoa qual "os beloslivros são
das em Á/zfl-Édito. Nesse contexto, as formulações feitascom Guat- escritos numa espécie dc língua estrangeira"
tari conduzem Deleuze a abrir novos caminhos para a clínica e a psi- Na verdade. os ensaios de Deleuze reunidos em Crâica e c/z'nicíz
quiatria materialista, lançando-se nos registros da escrita e da litera- são um comentário sistemáticodessefragmento de Proust colocado
tura. É nesse campo que a leitura pós-estruturalista de Deleuze toma- como epígrafe do livro. A escrita supõe, assim, a possibilidade, para

27 G. Deleuze, Prol/sf ef /es slgmes. 29G. Deleuze, "La littérature et la vie", Crifiqi/e ef c/inlqKe, p. 13
28 G. Deleuze, Loglqae da sons. se Idem, pp. 13-4.

474 Joel Barman Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 475


o sujeito, de construir uma nova língua e uma outra linguagem na lín- do da ruptura pós-estruturalista: "A literatura parece aqui contradi-
gua instituída do código vigente e normativo. Para tanto, é preciso zer a concepção linguística, que encontra nos embreantes,e sobretu-
poder escrever numa "espécie de língua estrangeira", desterritoria- do nas duas primeiras pessoas, a condição da enunciação"n
lizando a língua instituída, de modo a transforma-la em não-familiar, É, portanto, uma leitura atenta da literatura, compreendida como
em estranha, porque estrangeira... fabulação capaz de afirmar a emergência do sujeito enquanto impes-
Nessa perspectiva, a literatura como ficção supõe a fabulação, soalidade singular, que funda, agora, sua concepção da clínica. Daí re-
na medida em que esta não implica nem imaginar nem tampouco pro- sulta que a literatura enquanto ficção e fabulação desmente o prometo
letar um Eu31. A fabulação seria, pois, a própria potência em ato, que supostamente científico da linguística: a literatura é habitada por flu-
traduziria a língua instituída como estrangeira. Assim, a escrita supõe xos, intensidades e afecções que transformam a língua familiar em lín-
não apenas a decomposição da /ügaa mczferzza,mas também "a in- gua estrangeira. Assim, o sujeito só se deixará apreender como tal des-
venção de uma nova língua dentro da língua, pela emoção da sinta- prendido e liberado do registro da pessoalidadcdo Eu.
xe"32. Estaria Deleuze nos indicando, com isso, que a ficção literária E Deleuze criticara mais uma vez a concepção lacaniana -- do
e a escrita seriam o próprio exercício da paper/cidade,e do que pro-
inconscienteestruturado como uma linguagem-- que se apoia no
duz ruptura com a língua materna?Elas estariam como que implica- estruturalismo lingilístico. Ele reencontra assim sua concepção pulsio-
das na transformação radical do familiar no que é eminentementees- nal do inconsciente, que se opõe à lógica do significante e celebra a
trangeiro. condição fundadora do slg/zona economia do sujeito. Será, portanto,
É ainda Proust que nos revela mais claramente o "ataque" da pelo caminho do signo, e não do significante, que as afecções e as in-
paternidade sobre a língua materna: "A única maneira de defender a tensidades serão reintroduzidas no sujeito, tornando possível uma lei-
língua é ataca-la"33. Aqui é que se produziria a inversão do lugar do tura pulsional do inconsciente.
sujeito em proveito da posição de estrangeiro no interior de sua pró- É preciso então sublinhar a importância, na escrita, do arflgo
pria língua, pois a passagem crucial do registro da pessoalidade do Eu inda/;nido36. Com efeito, é pela mediação do artigo indefinido que o
para o da impessoalsingularidade pode, agora, enunciar-se literalmen- Eu é desapropriado para que o sujeito possa se reapropriar como sin-
te. Essa diferença se realiza no registro concreto da escrita. gularidade impessoal. Na escrita, o artigo indefinido tem a ver com a
Por isso, Deleuze evoca aqui o Blanchot de A cona/ergalzz/imitae lógica do signo e não do significante, pois ela nos remete, enquanto
de Á parte do fogo, quando este afirma que "alguma coisa acontece leitores, a algo que se situa no limite e fora da linguagem, isto é, às
caos personagens], da qual eles não são capazes de se reapropriar a visões e audições não-linguageiras.Assim, a problemática da escrita
menos que se desapropriem de seu poder de dizer Eu"34. Com efeito, remete tanto à questão do ver e do ouvir como aos efeitos "de cores e
o sujeito só pode se reassumir como singularidade quando perde pro- de sonoridades que se elevam acima das palavras". Haveria, portan
visoriamente seu poder de dizer "eu". to, como uma "Pinfz/ra e uma mzíslcczpróprias à escrita"'', que re-
Ê por ocasião dessecomentárioque Deleuze irá marcar o senti- meteriam à lógica do signo.
É nessa perspectiva da singularidade impessoal que Deleuze foi
levado a incluir a categoria de espaço na lógica do signo. A experiên-
cia do temposerá relançadaa partir dessaancoragem espacial (e car-
l G. Deleuze, "La littérature et la vie", Crffiqae ef c/iníqua, p. 13. tográfica) do signo.
3z /denz, p. 16.

s3M. Proust, "Correspondance avec Madame Strauss", in G. Deleuze, Crf- 35 G. Deleuze, Crifzqae ef c/imiqz/e, p. 13.
fiqz e ef c/iníqua, p. 16.
só Idem, ibid.
34Cf. M. Blanchot, l.czPczrtdu áeue l.'enfrefien in/ini, in G. Deleuze, Crili-
g eefc/iníqua,
p 13. 37G. Deleuze, "Avant-propôs") Crífiqae ef c/Iniqz/e,p. 9. Grifos nossos

476 Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze 477


Joel Barman
l)elos fluxos e afecções, isto é, pelas pulsõcs e máquinas desejan- HETEROGENEIDADE DELEUZE-LACAN
tes, Deleuze recupera uma nova potência do dizer e do escrever,em Eduardo A. Vidal
bluesão enfatizadas as idéias de Ira/efo e de carfogra/}a. Num artigo
intitulado "0 que as crianças dizem", Deleuze nos mostra a impor-
tância dos trajetos espaciais no percurso do pequeno Hans de Freud e
nos relatos clínicos de M. Klein acerca do jovem Richard (trajetos
espaciais que não foram valorizados nem por Freud nem por M. Klein:
eles estavam preocupados apenas com as representações presentes nos Heterogeneidade é uma palavra que convém a um trabalho inces-
discursos dos meninos). Esses trajetos revelam a circulação dos fluxos sante, arriscado, aberto, a uma aposta na diferença e na multiplicida-
e das afecçõesnum espaço bem mais amplo que aqueledefinido pelo de como sinal de alerta contra a totalidade e o totalitarismo. Deleuze
triângulo IFreud) ou o quadrilátero (Lacan) cdipiano, pois transporta é um escrito que se propaga, se difunde, se bifurca, se pluraliza na
o sujeito do registro do espaço ao da temporalidade. indeterminação do um que não faz todo. Porém, não se quer anárqui-
co e postula a exigência de constituir um sistema que prove que o filó-
Seria preciso dizer aqui uma palavra acerca do fascínio que De sofo não se lança a uma aventura irresponsavelmente e se comprome-
leuze sentia pela literatura norte-americana, especialmente por Whit- te com o conceito, com a crítica do conceito. Pois o conceito é o sin
man38 e Melville39. O que o seduz neste último é redescobrir a figura guiar, em oposição ao universal vazio, é a invenção contra a monotonia
da singularidade impessoal em cada um dos personagens de seus li- do mesmo. O conceito não recria, ele faz -- é da ordem do aconteci-
vros e nos menores detalhesde seusromances, nos quais a lógica do mento. As máquinas, sejam desejantes ou de guerra, são linhas múlti-
signo é desdobrada em seus cortejos musicais, sonoros e pictóricos. O plas que se bifurcam e se multiplicam com seus pontos de fuga ao in-
impacto das intensidades se avalia pela Arar?ne/zfaçãoimanente à nar- finito. Assim o sistema é concebido, feito das linhas constitutivas dos
rativa romanesca, marca indelévelda cultura norte-americana. acontecimentos. Uma cartografia desenha caminhos e trajetos, devires
Com efeito, contrariamente à tradição européia, marcada pela que conduzem a um ou vários lugares, sem prejulgar sobre condições
universalidade e pela exigência premente de fofa/ilação, a tradição e caracteres. Toda antecipação é ilusória e falseia o acontecimento: há
norte-americana seria permeada pela fragmentação e pela d/spersão. lugar de produção, através de marcas, do acidente,do acaso.
A oposição entre a totalização européia e a dispersão norte-america- Proponho aqui que discutamos a possibilidade de produção, a
na estaria igualmente presente, no plano político, no registro das idéias ser verificada, de uma heterogênearelação Deleuze-Lacan. Disse o
de Estado e de nação que passam diretamentepara a escrita40. pintor Francis Bacon: "talvez se manipulecada vez melhoras marcas
Poderia-se concluir disso que a importância da recepção do pen- que foram feitas ao acaso, isto é, as marcas que foram feitas inteira-
samento de Deleuze nos Estados Unidos e no Brasil se deve às dimen- mente de modo irracional. Com o tempo e, trabalhando segundo o que
sões fragmentárias e dispersivas de suas respectivas culturas? Uma advém, se condiciona, se reagecom mais vivacidade ao que o acidente
relação de homologia se constituiria aqui entre a filosofia deleuzeana propôs. E, quanto a mim, sinto que tudo o que cheguei a amar era o
e as formas culturais do Novo Mundo. resultado de um acidente sobre o qual tinha sido capaz de trabalhar" ]

Salientarei, primeiro, três questões em Deleuze: a da linguagem,


a da superfície, a do acontecimento, embora as três se atravessem e se
imbriquem entre si.
3uG. Deleuze, "Whitman", Crfrfq e ef c/fníqire.
39 G. Deleuze, "Bartleby, ou la formule", Cr/fiqz/e ef c/l?zfql/e.
l Francês Bacon, L'art de !'impossible; Entretiens auec David Silvester, Ge
40G. Deleuze, "Whitman", oP. cft., pp. 75-6. negra, Albert Skira, 1995, p. l ll.

478 Joel Barman Heterogeneidade Deleuze-Lacan 479


A experiência de Deleuze na linguagem é radical. A invenção -- se realiza como topologia da dobradura (doub/wre)e da dobra (P/l).
tluc se figura na literatura mas que se estendea todo ato criador O espaço da subjetivação se constitui pela prega (p/issemezzf)do fora.
transforma a língua, revelando que ela não é unitária e abriga outrajs) É do fora (deóors), como limite, que o ser se prega, sendo a relação a
língua(s). A experiência da invenção leva a linguagem até o limite em si homólogaà relaçãocom o fora, onde, à maneira do traço barroco,
que algo responde como não-linguagem, audições e visões que perten 'a dobra infinita" separa, passa entre o exterior e o interior. "A to-
cem ao campo do delírio, sem ser doença. Deleuze traça o prometode pologia geral do pensamento", que começava já "na vizinhança" das
uma nova clínica, uma clínica da linguagem que liberte dos estados singularidades, termina agora na prega IP/lssemenf)do fora para o
clínicos da classificação patológica e permita interrogar, interpelar a dentro: "no interior do exterior e inversamente", dizia a História da
própria linguagem. Escrever, o ato de escrever, é fazer vir à tona, à /oucura."[...] todo o espaço do dentro está topo]ogicamente em con-
superfície, esses elementos heterogêneos, que, numa sorte de paradoxo, tato com o espaço do fora, independente dab distâncias e sobre os li-
a linguagem não contém, mas que não poderiam ter sido produzidos mites de um 'vivente' e esta topologia carnal ou vital, longe de expli-
sem ela. Em Espinosa, Deleuze aprende a essência do signo, não apenas car-se pelo espaço, libera um tempo que condensa o passado no den-
como causa do sentido, mas como causador de efeito. Um efeitosupõe tro, faz advir o futuro no fora, e os confronta ao limite do presente
corpos que se afetam uns aos outros. Assim, os signos, numa plurali vivente."3 A topologia, pensar de outro modo, um Outro pensar, que
dade categorial, são abetos de passagens, de mudanças de estados re- inclua a multiplicidade e não se queira fechado sobre si mesmo nem
gistrados por diferenças e variações, deveres. Os signos estão sujeitos aberto a uma infinitude ilimitada. O signo transborda o pensar: é for-
à associabilidade e à equivocidade, e não se deixam reduzir à extensão ça que impele e compete; é o impensado que exige pensar. A dobra
convencional de seu uso, pois eles não têm o objeto como referente. É presentifica a diversidade da intrusão do fora e seu desdobramento em
do acaso próprio ao encontro entre os corpos que emerge o signo, com múltiplas linhas de pensamento. Signo e pensamento não fazem rela-
a alegria e a potência necessárias para a produção de um conceito. O ção nem acordo: encontro heterogêneoe discordante, determinante da
artigo indefinido um é aquele que convém para escrever uma relação produção de novos enunciados em resposta ao hiato e à diferença.
não-totalizante ao saber. Deleuze renuncia ao todo, ao Um, até mesmo Com Deleuze, a filosofia é acontecimento. Em ato, o que está em
à questão do sujeito, como elediz, sem drama. Muito antescom poe questão são os corpos sem que linguagem e pensamento deles consi-
sia e humor. gam fazer representação, significação ou significado. Um acontecimen-
Sermos afetados implica assumir esse caráter de superfície do to não é a história. Ele é histórico em um certo trajeto do devir, mas
corpo em relação aos outros. A superfície aspira, na filosofia moderna, logo excede, explode qualquer significação histórica para afirmar-se
à forma clara e distinta cujo paradigma é o triângulo como fundamento singular. "E filósofo aquele que se torna, quer dizer, aquele que se
matemático do sujeito do conhecimento. Essa superfície, que escreve interessa por essas criações muito especiais,na ordem dos conceitos."4
o ideal do espaço euclidiano, rejeita as complexidades dos corpos não "Nunca passei pela estrutura, nem pela linguística ou a psicaná-
homogêneos, dos planos superpostos, lisos e estriados, feitos de sulcos lise, pela ciência ou mesmo pela história, porque creio que a filosofia
e de dobras, relançando-se uns nos outros. É disso que se trata nos cor- [em seu material bruto, que Ihe permite entrar em relações exteriores,
pos libidinais e erógenos. Com Fouczzu/f,Deleuze recorre à topologia dessemodo muito mais necessárias,com essasoutras disciplinas."ÕO
para pensar o outro como exterioridade: "a vida, o trabalho, a língua trabalho de Deleuze operaria como um PO/ztocora-/ínba necessário,
gem surgem no início como forças finitas exteriores ao homem e que precisamente pela crítica que faz ao discurso analítico, sem incluir-se
Ihe impõem uma história que não é a sua. É num segundo momento nele. Há uma heterogeneidadeentre a filosofia e o discurso analítico,
que o homem se apropria desta história, e faz de sua própria finitude
3 idem, p.126.
um fundamento"2. Esse segundo tempo, o da apropriação do Outro,
4 G. Deleuze, PozzlPar/ers, Paria, Minuit, 1990, p. 41
2 G. Deleuze, Fozrcau/f, Paria, Minuit, 1986, p. 94, nota. 5 /dem, p. 122.

480 Eduardo A. Vidal Heterogeneidade Deleuze-Lacan 481


heterogeneidadeque não significou para Deleuze uma recusada psi- tura, de simbólico ou de significante, que são completamente inexa-
canálise. Deleuze não ficou alheio à comoção que a invenção freudia- tas, e que Lacan, ao contrário, sempre soubevirar para mostrar-lhes
na do inconsciente provocou nos saberes de nosso século. O inconsci- o avesso" '
ente deveria, na sua crítica, ser pensado como máquinas desejantes, O desejo, Freud o extraiu do discurso da histérica. O desejo na
percursos e redes que, longe de aprisionar o sujeito na sua alienação histeria é recalcado, fazendo retorno nas formações de sintoma. O
familiar, o coloquem na mais radical exterioridade a si mesmo. sintoma, pela prática que Freud nomeou psicanálise, é retirado do olhar
"A descoberta da psicanálise é mesmo o desejo, as maquinarias médico e constituído na dimensão do discurso. Freud inventou um
do desejo. Isso não pára de vibrar, de ranger, de produzir numa aná- dispositivo de palavra em que o sintoma se abre à realidade do incons-
lise. E os psicanalistas não cessam de armar máquinas, ou de rearmá- ciente, que é sexual. O desejo inconsciente é fixado, no procedimento
las, sobre fundo esquizofrênico. Mas talvez eles façam ou desencadeiem próprio da neurose, às constelações edipianas, numa espécie de quis
coisas das quais não têm clara consciência. Talvez sua prática implique c/os incestuoso. A revelação do sentido do sintoma provocou uma
operações esboçadas que não aparecem claramente na teoria. Não há profunda comoção nos pacientes de Freud, no saber médico e na cul-
dúvida de que a psicanálise colocou a perturbação no conjunto da tura vitoriana. Com o passar do século, a surpresa dessenovo saber
medicina mental; ela desempenhou o papel da máquina infernal. Pouco foi mitigada pela repetição burocrática de interpretações "psicanalí-
importa se desde o início houve acomodações; isso produzia a pertur- ticas", e a virulência da prática instituída por Freud foi atenuada pe-
bação, impunha novas articulações, revelava o desejo."Ó los projetos de psicologias de cunho adaptativo.
Que Freud localizasseessas máquinas desejantesna cena edipiana O desejo resta atrelado, na neurose, ao domínio de pai e mãe.
foi, sem dúvida, o ponto de partida de uma série de equívocos que a No entanto, essa não é a experiência da psicose, onde o delírio é o mun-
interpretação analítica não cessa de propagar. Surge, em 1972, o Ánff- do, nem a da estéticada perversão, onde a máquina desejantequer
Édlpo, que, ao resgatar o desejo, fazia uma importante delimitação: extrair do Outro o âmago de seu gozo. O desejo provém do fora, dos
o complexode Edipo é coerentecom a concepçãode mundo que o pontos de encontro com signos que transformam o sujeito. O desejo
neurótico tem de suas relações familiares, e reduzir a psicanálise a sua não é falta, mas máquina produtiva. Uma clínica do desejo segueseus
função só consolida a alienação própria da neurose. É da psicose, en- 'agenciamentos" e escreve sua cartografia. "Uma concepção carto-
quanto corPO sem órgão que a psicanálise teria muito a esperar, loca- gráfica é muito distinta da concepção arqueológica da psicanálise."8
lizando com precisão o conceito de pulsão: corpos crógenos, mal com- Deleuze critica a prática analítica, mostrando que "o que as crian-
postos na imagem que suporta as forças libidinais dos orifícios cor- ças dizem" -- título de seu artigo é diferentedo que Freud e Melanie
porais. A crítica se estendia ao que seria, na concepção de Deleuze e Klein interpretam. A psicanálise insiste em um único ponto de vista.
Guattari, homólogo ao Édipo freudiano: a noção de estrutura de lin- Para Freud, Hans desejadeitar com a sua mãe. Richard é analisado
guagem e de significante proposta por Lacan. Cabe aqui citar Deleuze: por Klein a partir da perspectivado inconscientecomo substânciae
Com seu inconsciente-máquina IGuattari) falava ainda em termos de qualidade. Porém, Hans e Richard falam outras coisas: mapas e perso-
estrutura, de significante, de falo etc. Era forçosamente assim, já que nagens que excedem o âmbito familiar. Deleuze sustenta que o incons-
ele devia tantas coisas a Lacan (eu também). Mas eu me dizia que isso ciente não é apenas um investimento libidinal dos pais. Em todo caso,
andaria melhor se encontrássemos os conceitos adequados, em lugar os pais são um meio, entre outros, que a criança aprende a percorrer.
de utilizarmos noções que não são as do Lacan criador, mas aquelas 'A líbido não tem metamorfoses, mas trajetórias histórico-mundiais."9
da ortodoxia que se fez em torno dele. Ê Lacan quem diz: não me aju-
dem. lam ajuda-lo esquizofrenicamente.E nós devemos muito a Lacan,
7 /dem, p. 24.
certamente,tanto mais que renunciamos a noções como as de estru-
8 G. Deluze, C itiq e ef c/ílziqae,Paria, Minuit, 1993, p. 83
6 Idenr, p. 27. 9 Idem, ibid.

482 EduardoA. Vidas Heterogeneidade Deleuze-Lacan 483


Quando a interpretaçãofreudiana assimila, no caso Hans, a identifi- Fregedesembocano paradoxo de Russell. Gõdel colocará em evidên-
cação do cavalo com o pai, desconhecea força animal que impulsio- cia que a consistência da aritmética implica um limite, a incompletu-
na o desejo. O investimento libidinal recai sobre algo que se apresen- de, e, ainda, que no interior desse sistema a consistência não pode ser
ta com o artigo indefinido: zlm cavalo, um animal. Trajetos e percur- demonstrada.
sos desenham um mapa intensivo que não resulta de uma extensão da 0 Outro, diferentemente de Hegel, é o lugar onde o saber falha.
imagem corporal, mas que constitui essa imagem como permanente Não há saber da morte e do sexo no inconsciente. A linguagem tenta
mutação. O inconscientee o corpo não são um interior que se projeta suprir a ausência de relação no inconsciente e, como enuncia Lacan,
e se estende. Ê do fora que os desejosinconscientes se produzem como 'é pensávelque toda a linguagemnão sela feita, se não para não po-
um devir. der pensar a morte que, com efeito, é a coisa menos pensável que pos-
Para Deleuze, imaginário e real se superpõem de modo que a sa existir"10. 0 Outro é suposto desejar, e o sujeito deseja enquanto
imagem virtual recubra o objeto real e, inversamente, o real produza Outro. O desejo é alteridade e exterioridade, intrusão e estranheza. A
sua própria imagem virtual. Uma análise mais precisa da função de incidência como um raio do desejo do Outro Freud denominou acon-
recobrimento da imagem em relação ao real permitiria situar a angústia tecimento traumático. Dessa irrupção desejantedo "fora", o sujeito é
no caso Hans, no momento em que emerge, através da imagem espe- efeito evanescentee fugaz. É como enigma, esfinge e vertigem, que o
cular, o objeto a não-especularizável. A crítica de Deleuze à interpre- desejo interpela cada um, constituindo-se o sujeito como resposta.
tação psicanalítica desconsidera a função da angústia nos dois casos. Que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem é a tese
Se o desejo na neurose é algo mais do que um fluxo inibido, devemos com que Lacan define a posição do inconsciente no seu ensinamento.
escutar na angústia o momento de sinalização da causa do desejo. Deleuze ataca a concepção lacaniana de significante inconsciente a
partir da perspectivado totalitarismo, que suporia reduzir o sistema
Lacan é freudiano no sentido radical do termo: o inconsciente é plural de signos ao significante. Com a noção de significante, Lacan
um saber não sabido que se determina em ato, sempre falho, como depurou o excesso de saber que o inconscientesupõe para o analisante
divisão do sujeito. O inconsciente é um corte entre sujeito e Outro, e o analista. O significante não quer dizer nada, não comunica nada,
borda de pulsação entre abertura e fechamento que supõe a necessi- não mantém relação nenhuma com o significado. É diferente de ou-
dade lógica do recalque originário (Uruerdrã/zgw/zg)no ato de sua tros significantes e de si mesmo. A cadeia significante, o sujeito a pa-
emergência. A invenção freudiana do inconsciente encontra em La- dece. Padecer do significante é ser afetado por ele. Espécie de "signo
can sua formalização e sua escritura. O conceito de inconsciente é ra- passional", o corpo se emociona, adoece, sintomatiza, angustia. O
dicalmente exterioridade, que se distingue das noções de interior, den- corpo é tomado na linguagem de tal modo que, para o ser falante, o
tro e conteúdo, tão de acordo com o fascínio que a esfera exerceso- significante se faz carne. O significante sem sentido mas com efeito de
bre o pensamento. Lacan faz a torção necessária que escreve o Incons- gozo no corpo remete à inscrição do traço no inconsciente freudiano,
ciente como corte e borda, esvaziado de substância e de representa- desprovida de significação e suporte da diferença.
ção. Uma topologia torna-se necessária, a do plano projetivo, que O ensinamento de Lacan problematizou o campo e a função do
possa figurar a premissa do inconsciente freudiano de não incluir-se Outro. 0 Outro não é completo. 0 Outro não responde unicamente
no espaço-tempo kantiano. A banda de Moebius, resultante de um como significante.Uma crítica tem como alvo a incompletudee a in-
corte do plano projetivo, dá suporte, no espaço de três dimensões, ao consistência do Outro, por considera-las posições do discurso religio-
sujeito de única borda que não possui nem "dentro" nem "fora": o so. Uma crença, no entanto, é abalada pela incidência de uma falta que
inconsciente como pulsação temporal. A invenção do inconsciente tem
lugar num momento preciso da interrogação do campo do Outro,
io JacquesLacan, "lmprovisation-- Désir de mort, rêve et téveil", trans-
operada pela lógica matemática e cuja conseqüência é o esvaziamen- crição de notas de C. M illot, L'Âne, Le À4agazlfzeFreudiepz,n' 3, Seuil, Paris, 1981,
to dessecampo. A formalização da lógica aristotélica empreendida por P. 3

484 Eduardo A. Vidal Heterogeneidade Deleuze-Lacan 485


ntroduz um buraco irredutível no sentido. E a religião é o domínio tradução, pois o ponto de partida foi abolido. Deleuze dirá que "é,
do sentido. Esse buraco produz um a-mais de satisfação. Lacan tematiza talvez, o alvo secreto da lingiiística, segundo uma intuição de Wolfson:
a relaçãode impossibilidadeentre dizer e gozo: a palavra para nome- matar a língua materna"12. Ao atacar a língua, ele pretende erradicar
ar o gozo falta. a voz da mãe: "Não é minha língua que é materna; é a mãe que é uma
Freud, no seu E/z m ride 1895, introduzia o termo das Di#g, a língua"13. O que se chama "mãe" são as palavras que Ihe colocaram
coisa, no cerne de seu aparelho neurânico. A coisa, excluída do juízo no ouvido e os átomos que introduziram no seu corpo. Ao escrever
e da representação, resta inassimilável. É à distância da coisa que as Le scbizo ef /es /angues, Wolfson atinge os limites da linguagem mes-
cadeias inconscientesse articulam. Para o sujeito, a proximidade da ma. "Esta história é antes o que há de 'impossível' na linguagem, e Ihe
coisa é causa de estranheza e de horror. Ela presentifica o Outro na pertence ainda mais intimamente: seu cora.»14 Escrever é um devir. A
sua face de gozo enquanto impossível. psicose de Wolfson é uma interrupção de um fluxo vital. Contudo,
A crítica de Deleuzeao conceito de inconscienteformulado por Wolfson consegue fazer explorações inusitadas na linguagem. Se toda
Lacan recai sobre uma suposta hegemonia do significante. Essa críti- literatura é produzir uma língua estrangeira na própria língua, o pro-
ca não leva em consideração que não há universo do significante, cujo cedimento de Wólfson é radicalmente destruir com outra(s) língua(s)
correlato é a introdução da dimensão de gozo nos aparelhosde lin- o que ainda resiste à catástrofe na língua materna.
guagem. A experiência analítica em Lacan implica o enodamento de Transcrever-seé a "operação Wolfson". Da aboliçãoda língua
três registros heterogêneos: real, simbólico, imaginário, sem que se deva materna à produção de escrita em língua estrangeira, Wolfson, ele
privilegiar um em detrimento de outro. Enfatizar a primazia do sim- próprio, se trens-escreve. Ingerimos da ferocidade do procedimento a
bólico em sua obra perpetua um desconhecimento. O discurso analí- gravidade daquilo que se deve excluir. Wolfson procura desesperada-
tico, que Lacan formaliza, escreve o real da satisfação pulsional esta- mente separar as palavras da "coisa ouvida", descontaminá-las do
belecidapor Freud no seu caráter problemático e paradoxal. O gozo gozo. Com a destruição da língua materna busca aniquilar a existên-
do sintoma subverte a noção de sujeito concebida pela filosofia. A cia de voz. A experiência da psicose revela o estatuto da voz como
psicanálise, no anual estado de coisas, é o discurso que tem o dever ético condensador de gozo. No entanto, o procedimento não se reduz a sua
de pontuar a função do gozo, que faz obstáculo ao significantee ao fase de aniquilamento; ele comporta uma outra de reparação e recons-
sentido, e se encontra, em princípio, excluído da filosofia. trução pela via de uma escrita, inédita e inaudita, com função de cir-
cunscrever, de produzir uma borda ao gozo intrusivo do Outro. En-
Ah, a misériado imaginárioe do simbólico,o real tre o corpo e o gozo do Outro se interpõe o texto como superfície
sendo sempre adiado para amanhã."lt separadora em que se localiza, através da letra, o efeito do real des-
pedaçante. Wolfson se vale, para constituir seu procedimento, da não-
Escrever é, para alguns, uma resposta sem necessidade da per correspondência entre as línguas, que torna toda tradução, no limite,
gunta. Escreve-sepor imposição do real. Não se tem outra escolha. impossível.
Escrever é levar uma língua até o limite, onde se revelam seus elemen Samuel Beckett problematiza o processo de tradução quando
tos heterogéneos.Escrever se aproxima do delírio. Wolfson, "o estu- decide escrever em inglês algumas de suas obras escritas originalmen-
dante esquizofrênico das línguas", inventa um procedimento de escrita te em francês. Ele, estritamente, não traduz; escreve de novo. Paul
inseparável do processo de sua psicose. Ele procede à destruição da Auster, no ensaio "From cakes to stones", analisa o trabalho de self-
língua materna -- o inglês --, que se tornou impossível de ouvir e de
falar. Ele passa a inventar uma outra língua que não resultade uma
12 G. Deleuze, Criliqae ef c/inlgzze, p. 21
i3 Idem, p. 30.
ii G. Deleuzee C. Parnet, Dla/olhes, Paria, Flammarion, 1977 [nova edi-
ção aumentada, 1996], p. 63. 14Idem, p. 32.

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frzz/zs/at/o/z
feito por Samuel Beckett. Mercfer and Camlez' espera bas- uma perda decantada como escritura: o prefixo lzieder,abaixo, assi-
tante tempo até receber do autor uma versão em inglês, segundo Auster, nala o caráter de precipitar, assentar, próprio do ato de escrever. Há
mais satisfatória que o original, lembrando que "English is nevertheless a ilusão de que algo cesse 'de não se escrever, que finalmente se escre-
Beckett's home"15. A nova obra ganha em economia e concisão de va. O inconsciente freudiano escreve em torno de uma opacidade ra-
palavras, confirmando que na arte de Beckett "less is more". Escreve dical que não encontra sentido, algo ausente ao sentido (ab-sefzs),fora
Auster sobre essa tradução: "is not se muco a litteral translation of sentido lbors-sons), indessenso Iffzde-se/zs).O inconsciente faz disso (das
the original as a re-criation, a 'repatriation' of the book indoEnglish" 16. Es, na tópica freudiana), equívoco, mal-entendido, chiste. O ganho de
Com essa repatriação fica patente que não há um original a ser tradu- prazer (Luslgemifzfz)é o excedente pelo fato de sermos falantes, um
zido, mas um texto a ser reinventado. Uma língua, sabe Beckett, re- mais-de-gozar nos aparelhos de linguagem que habitamos.
siste; há um real em jogo que não se translada. Beckett recria sua obra A questão do sujeito, em psicanálise, é correlativa a uma série de
com a especificidade da língua materna, fazendo vir à tona os pontos escritas heterogêneas e heterotópicas. O inconsciente é o conceito de-
de suspensão em que a palavra se interrompe, se equívoca, se entende corrente da instauração de um traço que se repete como diferença. Algo
mal. Escrever é, na citação que Deleuze faz de Beckett, "furar bura- escreve no sujeito sem que se transcreva inteiramente na palavra nem
cos" na linguagem. seja integralmente lido. Há hiato entre as diferentes escrituras. Uma
Freud apresentara as primeiras formulações de seu aparelho psí- escrita é sempre parcial, em relação a uma linguagem e a outras escri-
quico cm termos de operações de transcrição e escrita. Em carta à Fliess tas: ela encontra a dimensão do real. O impossível está no cerne da
de 6 de dezembro de 1896, analisava as sucessivas extratificações dos escrita. Escreve-se do impossível, não apenas como limite mas como
traços de memória, sendo essesreordenados periodicamente. E do fora causa. Hereros designa o Outro como diferença absoluta, como real.
como percepção que o aparelho é afetado, produzindo-se o primeiro O "procedimento Wolfson" desmistifica a noção romântica da escri-
registro, indicado com as letras Wz, que correspondem à primeira ta como escolha do sujeito. Escreve-sepor imposição do real. Escre-
escrituração (die ersfe N/ederscbrlÁi) dos signos de percepção ( Wabr- ver é exigência de linguagem, do real de uma língua. Um sujeito im-
?zebra ngzelcben). Estes signos são sempre pontuados enigmaticamente, plica sempre uma escrita: ele é o que de uma língua, inscrevendo-se,
de acordo com o como se é afetado pelo desejo do Outro. As notícias se particulariza. O tempo é inerente à escrita. Freud traz com o con-
do próprio corpo também fazem parte desseexterior. Os corpos se ceito de inconsciente uma nova temporalidade dos processos psíqui-
afetam à maneira de uma língua; elessão corpos falantes. SÓhá en- cos. Comandada pela exigênciade um real traumático, tem lugar a
contro com abetose sintomas sob o regime da contingência;disso se reordenação periódica dos signos, a poslerlorf lnacbfràg/lcb), em res-
escreve um traçado, se marca uma inscrição, rastro e vestígio de "coi- posta a isso que não cessa de se escrever. A posição do inconsciente
sas vistas e ouvidas", mas não compreendidadas nem reconhecidas. difere daquilo que o substancializa ao concebê-lo concluído na infân-
O seguinte registro, cuja notação é Ub ( U/zbemussf), o inconsciente, cia. Uma psicanálise opera, precisamente, produzindo o inconsciente
consiste numa segunda escritura Id/e zmeíle NfederscbrlÁi) dos signos em ato pela função "desejo do analista
de acordo com relações causais de outra ordem. As letras Vb (Vor- O inconsciente é feito do que Lacan nomeou a/z'água.A propo-
bewzlssfldesignam o pré-consciente como terceira transcrição (die drive sição d'alíngua decorre do inconscienteestruturado como uma lingua-
UmscbrlP), articulada a representaçõesde palavras. O aparelho psí- gem. "Como umd" se opõe a que a linguagem seja o que o discurso
quico registra rastros da palavra gozante. O inconsciente é o traço de da ciência define. Não há a linguagem mas o efeito de ama, do qual
se determina a incidência do real. O discurso analítico cinge um real
específico do falante, aquele que se transmite na sentença: "não há
i5 Paul Auster. "From cakes to stones: a note on Beckett's French", Tüe arf relação sexual". Disso resulta que o gozo do Outro, de seu corpo, é
o/bu/zger,USA, PenguinBooks, 1992,p. 88.
sempre inadequado, já seja perverso, ao ser reduzido a objeto a, já seja
ió Idem, ibid. louco e enigmático, pela ausência radical de significante para nomeá-

488 Eduardo A. Vidal Heterogeneidade Deleuze-Lacan 489


lo. O real introduz ao artigo indefinido am, a nm corpo que se frag- tecimento implica postular a indefinição do artigo zlm. A topologia da
menta em órgãos no encontro com o gozo. Alíngua é o precipitado vizinhança possibilita delimitar zonas de indiferenciação e de indi-
dessereal no curso do tempo. "Uma língua entre outras não é nada cernibilidade que a escrita pode aproximar sem compromisso com a
mais do que a integral dos equívocos que sua história deixou persistir coerência ou a síntese. E de "entre" outros que um homem ou z/m
nela."17 Alíngua que o inconsciente habita e que se revela em lapsos, animal se exprime na linguagem. Uma escrita é devir, o inacabado
chistes, equívocos, que não servem nem à comunicação nem ao diálo- fazendo-se, tornando-se. Escrever é inventar algo que falta, "um povo
go; não estabelecerelação com o objeto referente. Os efeitos de uma que falta". Escrever é levar a língua até o limite, onde ela é transtor-
língua escapam à ciência e ao próprio sujeito, produzindo uma série nada e não se reconhece mais, deparando-se com seu fora, seu aves-
de abetosenigmáticos. Estes resultam d'alíngua enquanto o inconsciente so, feito de visões e audições. Esse fora é radicalmente exterior, radi-
é um saber que, ao articular-se, goza com isso. "[...] o inconsciente é calmente fora, já que as visões e audições não pertencem a língua ne-
um saber, um saz,oír-pairecom alíngua. E, o que se sabe fazer com nhuma. "Qua/zdo a /üg a está lão tensa que ela se põe a gaguejar,
alíngua, ultrapassa de longe aquilo do que se pode dar conta à título ou a murmurar, balbuciar[...], foda a /inguagematinge o /Imite que
de linguagem."Í 8 Michel Leiris testemunha o instante preciso em que desenhaseu fora e se confronta ao silêncio."20
desperta ao sentido real de uma palavra d'alíngua: "...reusement". Fora A partir de outro discurso, o analítico, Lacan indaga o intervalo
de qualquer intenção de comunicação, essa expressão reservada à in- de onde responde um pedaço de real. O silêncio não está no limite da
timidade de seus jogos infantis, repetida no jogo de guerra dos solda- linguagem; ele atravessa o dizer. A palavra falta para dizer-se toda, para
dos de chumbo, faz parte do tesouro de um saber da infância e, na enunciar uma verdade que só se pode meio dizer. Trata-se de dar o
maturidade, o força a escrever as belas páginas de seu texto. Essa pa- estatutoao intervalo quando algo já não responde como palavra. O
lavra é um abetode comoção, um acontecimentodo encontro com o próprio de uma linguagemconsiste em encobrir o hiato, mascarar a
Outro. "Pois essa palavra mal pronunciada, e sobre a qual acabo de separação, fazendo supor que há relação entre os significantes que co-
descobrir que não é na realidade o que acreditei até então, me colo- pulam no inconsciente.Se a cadeia significantefaz uma série em que
cou num estado de sentir obscuramente -- graças à espécie de desvio, o zlm se repete produzindo a ilusão de completude, aqui nos depara-
de intervalo que foi, por esse fato, imprimido a meu pensamento-- mos com o "entre", o buraco, a hiância onde a questão do desejodo
no qual a linguagem articulada, tecido aracnídeo de minhas relações Outro secoloca para o sujeito. O silêncioproduz a voz na sua função
com os outros, me ultrapassabrotando por todos os lados suas ante- de causa do desejo. "A linguagem pode ser concebida como o que
nas misteriosas." 'z prolifera no nível da não-relação, sem que se possa dizer que essa re-
lação existe fora da linguagem"zi
A filosofia é o trabalho do conceito. Deleuze concebe a filosofia Deleuze e Lacan conduzem, respectivamente, a experiência da
como acontecimento. A heterogeneidade concerne os signos que a partir filosofia e da psicanálise ao encontro com a ruptura, a diferença, a falha.
de um exterior nos afetam. O encontro com os signos não tem rela- Não há conciliação possível. É necessário produzir a heterogeneidade
ção ou correspondência com o pensamento. Não se trata de reconhe- em que os conceitos se inscrevam nas suas diferenças.
cer algo que o pensamento sabe. A ilusão da linguagem é pretender-
se completa e buscar enunciar o todo. Manter-se na dimensão do acon-

i7 Jacques Lacan, "L'étourdit", Scl/fcef,n' 4, Paras,Seuil, 1973, p. 47.


zo G. Deleuze, Crírfq e ef c/iníqua, p. 142.
i8Jacques Lacan, Le séminaíre,/jureXX, elzcore,Paria, Seuil, 1975, p. 127.
21Jacques Lacan, "lmprovisation -- Désir de mort, rêve et réveil", oP. cit.
19Michel Leiras, Bf/7Kres. La rêg/e d /e J, Paris, Gallímard, 1994, p. 12. p3

490 Eduardo A. Vidas Heterogeneidade Deleuze-Lacan 491


Quarta Parte
VARIEDADES ESTÉTICAS
A PROPÓSITODE UM CURSO DO DIA 20 DE MARÇO DE 1984
O RITORNELO E O GALOPE
PascaleCriton

Naquela manhã, um dia de março de 1984, o curso era sobre a


diabéticada profundidade nos neoplatânicos e o esboço de um estatu-
to da imagem cristali. Ruptura. Por um salto expresso como um pa-
rêntese urgente, Deleuze lança uma pista de trabalho por vir, sobre a
música, sobre a qual ele pede à sala para refletir. À medida que faz
essedesvio, apresentadocomo antecipado e anacrónico, Deleuze in-
siste sobre a importância, para ele, dessa questão e, defendendo-se,
começa claramente, murmurando, tateando, uma improvisação em voz
alta, de um pensamento cujo tema pouco a pouco se formava:

"0 que é quc se vê no cristal? O que se vê no cristal é


o tempo não-cronológico.
[...] O cristal ou a imagem cristal não é apenas ópti-
ca... O cristal tem também propriedades acústicas, a ima-
gem cristal é também sonora.
[...] Todo cristal revela o tempo... A noção de cristal
me parecetao rica...

l Os cursos aconteciam em St. Denis, nos pequenos prédios pré-fabricados


que beijavam a rua. Deleuze não queria um grande anfiteatro, não queria falar em
um microfone. Na sala retangular, as janelas de vidro davam para uma vegetação
selvagemdo terreno baldio ao redor. No quadro negro, Deleuze havia desenhado,
com giz, um esquema que ilustrava a dialética da profundidade neoplatânica, e escrito:
A profundidade não pode emanar senão de um sem fundo: o Um imparticipável"
Rodeado de cadeiras muito próximas umas das outras, ele esperava algum tempo
antes de começar, fazendo, como de costume, algumas brincadeiras em voz baixa.
Apresentoaqui um curto trecho do curso do dia 20 de março de 1984, so-
bre O crlsfa/ sonoro, o riforne/o e o ga/ope. Nessa época, as noções de imagem
tempo e imagemcristal tinham sido abordadas do ponto de vista do cinema, e a
do ritornelo já havia sido exposta no capítulo "Do ritornelo", em Mlí/lep/afeanx,
Paris, Minuit, 1980, pp. 381-433. Como também antes, por FénixGuattari, em
L'fpzco/zscfenfmacbf iqae, Paras, Recherches-Encres,1979, pp. 244-314. As no
ções de rffor/ze/oe de crêsa/ sonoro de tempo surgiram do trabalho comum de
Deleuze e Guattari.

A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984 495


Félix Guattari desenvolveu,em l.'incozzscfe f macAi- ainda especificamentefilosófica ou musical e de conservar uma dimen-
rzíqz/e,a noção de cristal de tempo, considerando o cristal são pré-material: elas são pré-filosóficas e pré-musicais. Sendo assim,
de um ponto de vista sonoro. Ele liga o cristal sonoro de pode-sepensar uma relação direta material-força? De que agencia-
tempo ao que ele chama o ritornelo, que ele analisa em mentos espácio-temporais somos capazes? De que matrizes ou máqui-
Proust, na pequena frase de Vinteuil: o ritornelo seria, segun- nas de produção nós dispomos? E como a música permeia tais ques-
do ele, um cristal de tempo por excelência.' tões? Tem ela algo a nos ensinar? Nesse procedimento, a arte de orien-
tar o pensamento e de colocar as questões é decisiva.
Eu me distancio de Félix, pois é assim que trabalha- Deleuze não faz um discurso sobre a música e tampouco propõe
mos: as coisas remontam, descem. Proponho hoje trabalhar um tipo de análise ou um modelo de interpretação. Ele determina ân-
com vocês e transmitirem,por minha vez, as coisas a Félix. gulos de encontro, coletânea das potencialidades, das idéias musicais
Vamos refletir juntos: o trabalho coletivoé isso. que se desenvolvemcom obras e autores, cruzando-se em diferentes
Digo para mim mesmo, o ritornelo é perfeito, mas isso estratos ou formações musicais, abordando, ao mesmo tempo, as coi-
não me basta... É apenas um aspecto. Precisaria de alguma sas de um ponto de vista que Ihe é próprio: o ponto de vista de um
coisa a mais, algo que faça o cristal se mover, que tome outra pby/zzmmaq z'Mica,de um maquinismo sonoro e musical. O disposi-
posição no cristal... tivo conceptual é, ele próprio, uma pequena máq í/za que se constitui
O ritornelo... está ligado à ronda, ao canto dos pás- simultaneamentecom o lugar no qual os termos e os operadores se
saros. E, na música da Idade Média, o canto dos pássaros organizam: trata-se de uma matriz, de uma máquina de apreender, de
está ligado à polifonia." fazer ver, de produzir signos e inteligíveis.
Essa mzíqaifzapossui, essencialmente, dois pólos funcionais:
"[...] O que é que se distingue,que só se opõe se dis- 1) Um pólo de territorialização, com uma função territorializante
tinguindo. ..? que se exprime com a emergência de matérias de expressão. O que faz
[...] Ê o galope. O galope... é um vetor linear com pre- a marca? O que faz o território? O que é territorializado na música?
cipitação... velocidade aumentada. O galope... é isso. 21Um pólo de escapamentodo território, com uma função ca-
Os dois grandes momentos da música seriam o ritor- ralizadora ou vetor de desterritorialização. O que se autonomiza? O
nelo e o galope, dois pólos não-simétricos: o cavalo e o que se destaca? Que forças se lideram na música?
pássaro."' De um pólo a outro, uma flutuação produz uma experiência, uma
linha de variação.
Deleuze prosseguia, discernindo pouco a pouco como a não-si- Para Deleuze, a música é o lugar privilegiado de um processo
metria desses dois termos, enquanto manifestações puras, na música transversal de variação. Lugar de trocas entre as forças territorializantes
de cinema em particular, iria produzir uma variação. do ritornelo e a composição de uma linha de variação propriamente
É elaborando um dispositivo conceitual, orientado conforme uma musical.
objetividade especificamente filosófica, que Deleuze encontra a músi- Do que trata a música, qual é o conteúdo itüissociáuet da expres-
ca, como também encontra, além disso, a pintura, o cinema, a litera- são sonora? O ritornelo é ponto de preensão, território, dobra secu-
tura. A elaboração de um problema se constitui e se precisa no pró- ritária, com o risco de um retorno melancólico ao natal, mas é tam-
prio encontro com a música, com questões que vêm sondar a ária bém uma linha potencial cujos pontos podem se redistribuir, se pâr
musical. Entretanto, a particularidade dessas questões é a de não ser em movimento: distribuição polifónica, variações melódicas, variações
de timbres, de velocidades, de dinâmicas, de densidade de orques-
2 Sobre isso, Deleuze diz. rindo: "Pois então... vou dar a Félix essa triste tração... "A música é a operação ativa, criadora, que consiste em dester-
notícia... que há também o cavalo" ritorializar o ritornelo."

496 I'ascale Criton A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984 497


Mas qual é, portanto, esse rigor/ze/o, qual é essa dimensão nova a música faz passar forças "não-sonoras": forças do cosmos, forças
que se insinua imperceptivelmenteem uma palavra tão familiar que da terra, forças do tempo, abetose potências, em devires-guerreiro
tranqüilizaria, de imediato, tanto músicos como não-músicos, ao mes- animal, mulher, criança, máquina... O que está em jogo na música seria
mo tempo que os leva para o desconhecido? O ritornelo seria o co/z- essa potência de devir, ligada ao trabalho do ritornelo: "continua ele
feúdo da música, e tal conteúdo ainda não seria musical: o ritornelo territorial e territorializante, ou é levado para um bloco móvel que traça
capta forças e abetos,lugares e momentos, intensidadesde infância: uma transversal através de todas as coordenadas? A música é precisa-
"os sinos do vilarejo", "os pequenos caminhos gramados", "um pás- mente a aventura de um ritornelo: a maneira pela qual ela cai em...
saro", "o trem" vão setornar motivos musicaise retomarão. São tam- um pobre refrão, um indicativo, uma cantiga... ou então a maneira pela
bém estados de velocidade ligados a abetos: acelerações, suspensões, qual ela se apodera do ritornelo, torna-o cada vez mais sóbrio, algu-
desacelerações,paradas; ou ainda expressõesrítmicas, a chuva, o re- mas notas, para leva-lo para uma linha criadora cada vez mais rica...
lógio, ou formas sonoras expressivas, a caminhada, a perseguição, as Como o riforne/o faz território, como passa do não-musical para
rondas, as cavalgadas. uma variação m usical desterritorializada? Três operações caracterizam
Desse plano de intensidadespercorrido por abetosnão subje- esse dispositivo, o r/forme/o, que desde então já não pertence nem à mú-
tivados, em velocidades e lentidões, Deleuze faz o plano pré-material sica, nem à filosofia, mas se constitui entre-dois, dispositivo transversal
essencial da música, indissociável de um plano de vida ou de um pla- que faz o espaço se manter -- espaço não-sonoro, dez/fr-música --, por
no de Natureza. O plano dos abetos, tacitamente admitido em música, sua relação com forças do caos, com forças terrestres e com o cosmos...
embora na maior parte do tempo minimizado, torna-se uma proposi- 1. Criar um meio. Ligada à residência, ao solo, ao reconhecimen-
ção essencial da abordagem musical de Deleuze. Com efeito, os abe- to, a primeira operação do ritornelo é criar um meio, limiar de agen-
tos apresentam-se, na acepção musical corrente, como representações damentoque conjura as forças aniquiladoras do caos. Trata-se de fi-
ou imagens que viriam duplicar a música, assim como recorremos à xar um ponto frágil que é centro. É o medo da criança no escuro, que
anedota ou à metáfora, reduzidas a um efeito de sentido secundário3 canta baixinho para se acalmar, o círculo a ser traçado para uma ta-
Ora, Deleuze inverte essa relação, colocando o acontecimento, o que refa a ser cumprida, uma obra a ser feita. O ritornelo se bate direta-
se está experimentando,a hora, a luz, o lugar, como imediaticidade mente com o plano de Natureza, inseparável do que produz, plano de
que o ritornelo capta em um composto percepção-ação. O ritornelo comslsfêzzciapercorrido por velocidades e abetos não subjetivados so-
torna-sea marca, um composto abeto-perceptoindicial. São fatos im- bre o qual hecceidades se formam segundo composições de potências,
pessoaisque se individualizam com os abetose, de certo modo, é essa intensidades e direções. Sobre esse plano virtual e, contudo, insepará-
ressonânciaimpessoal, "uma criança que grita", "os pássaros rodo- vel do que ele produz, trata-se de estabelecer diferenças e discerni-
piando no céu", "ouve-se o ruído de botas", "nuvens negras", "a luz mentos, passagemà existência de um infra-agendamento ainda fluente
de seu riso"... que o ritornelo capta e conserva em um motivo, uma com a emergência de meios e de ritmos, velocidades, componentes
matéria harmónica, uma sequênciarítmica. A literatura, a pintura, o periódicos, energia e movimentos direcionais pré-territoriais.
cinema também produzem matérias de expressões, mas de maneira 2. Produzir ferrifórlo. Como vimos, o ritornelo não se relaciona
diferente. Se o ritornelo apreende e territorializa, a música leva as botas, com o território a título de evocação ou de uma representação deste,
o riso, os pássaros, a ronda e a hora, e os desterritorializa de maneira mas produz uma dimensão expressiva dele, diretamente constitutiva.
bem particular: fazendo blocos dissimétricos se moverem, compondo Em sua função territorializante, o ritornelo opera uma seleção,uma
e recompondo no tempo das relações cujos signos são variáveis, de- diferenciação serial: é a distribuição espacial de um agendamento, a
uíres... É nessa relação passo a passo do conteúdo e da expressão que passagem à territorialidade com a geração de matérias expressivas. Para
o músico, é a escolha sequencial de gamas, de escalas, tais como a se-
3A não ser durante o período do primeiro Barroco, que experimentaa ex- leção de modos, em Messiaen, a escolha de crivos, em Xénakis, de um
pressividade dos a/Xeffi. meio harmónico, em Scriabine ou Debussy, a partir dos quais se ela-

498 Pascale Criton A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984 499


l)eram os motivos e seqüênciasde ritmos e de melodias, a fibragem Ao propor o prisma cristalino como operador "espaço-tempo",
harmónica. O favor territorializante é o devir expressivo do ritmo e Deleuze chama a atenção para a importância da questão da relação
da melodia, que se tornam personagens e paisagens sonoros+ "A arte direta material-força, que sempre animou Varêse tanto no nível de uma
é o nome dessa emergência", é a expressividade que faz território: o concepção molecular das qualidades sonoras como no de sua produ-
plano de composição musical, ou plano de organização, desenvolve ção segundo o princípio que anima a composição do "som organiza-
as forças terrestres do intra-agendamento, liberando tanto matérias do": "Quero estar no interior do material sonoro, ser uma parte da
de expressão quanto marcas territoriais. vibração acústica, por assim dizer... me aproximar tanto quanto pos-
3. O moz,imenso de destef7fforla/lzação. A terceira função que sível de uma espécie de vida interior, microscópica, como a que en-
se exercesobre o território é uma operação de transversalidade. "A contramos em certas soluções químicas, ou através de uma luz filtra-
transversal é um componente que toma para si o vedor especializado da". Quanto ao nível da forma, ele diz: "Concebendo a forma musi-
de desterritorialização". Trata-se de "introduzir uma escapada", no cal como uma resultante, o resultado de um processo, senti nele uma
território, de um vetor que age sobre as velocidades e as relações e/ztre estreita analogia com o fenómeno de cristalização"; ainda no nível da
agenciamentos territorializados, estratificações, matérias de expressão: relação material-forma-forças: "há, antes de tudo, a idéia; é a origem
são componentes de passagem que estabelecem relações não pré-loca- da 'estrutura interna'; esta cresce, se fende segundo várias formas ou
lizadas, não enquadradas, empregando níveis moleculares inseparáveis grupos sonoros que se metamorfoseiam incessantemente,mudando de
de todos os componentes materiais das matérias de expressãoj. Nesse direção e de velocidade, atraída ou repelida por forças diversas. A forma
nível da atividade inter-agendamento, tratar-se-á, do ponto de vista da obra é o produto dessa interação. As formas musicais possíveis são
da composição musical, do tipo de orquestração, da produção de rela- tão inumeráveisquanto as formas exterioresdos cristais". O cristal
ções de relações (escritura) e do acesso aos níveis moleculares do mate- sonoro é um operador germe-estruturação,mas tambémum princí-
rial: "A relação essencial apresenta-se aqui como uma relação direta pio revelador de transmutações e de variação infinitas
material-força. O material é uma matéria molecularizada, que deve A proposição de um espaço espácio-temporal mostra-se como o
nessaqualidade 'captar' suas forças"6. O ritornelo desterritorializado-
desterritorializante capta e integra componentes energéticos, molecu-
lares, revelando potencialidades, inter-relações, desdobrando novas plano de elaboração lógica, ou plano de orgapzfzação,por outro. Os dois planos
matérias e novas transições, "é um prisma, um cristal de espaço-tempo. são indissociáveis,ligadosem um movimento de produção recíproca, eles não param
Ele age sobre o que está a seu redor, som ou luz, para tirar vibrações de fazer trocas. Cf. "Lembranças de um planejador", Mi//e p/afeaux, pp. 325-33
e pp. 363-7ss.
variadas, decomposições, projeçõese transformações..."7. Nesse movi-
mento transversal, surgem novas populações e percepções, cristais sono- 9 "É surpreendentever a que ponto o som puro, sem harmónicas, dá outra
ros de tempo ligando o plano de consfsfê/zelae o plano de organfzaçião8. dimensão à qualidade das notas musicais que o rodeiam. Realmente, o emprego
dos sons puros em música age sobre as harmónicas como o prisma de cristal se
4 Ou inversamente: "0 ritmo e a melodia são fatores territorializantes quando bre a luz pura. Tal utilização os irradia em mil vibrações variadas e inesperadas
se tornam expressivos... O ritornelo é o ritmo e a melodia territorializada", MfJ/e Edgard Varêse, Écrífs, Paria, Bourgois, 1983, pp. 44 e 158-9. E ainda: "Em mi-
P/afeaux, p. 391. nha obra, encontramos, no lugar do antigo contraponto linear, fixo, o movimen-
to de planos e de massas sonoras, variando em intensidade e densidade. Quando
5 Sobre o nível molecular das matérias de expressão e as transversais de essessons entram em colisão, resultam os fenómenosde penetração ou de repulsão.
destratificação, cf. À4///eP/alegar, pp. 412-6. Certas transmutações ganham lugar em um plano. Projetando-as sobre outros
6 À4i//eP/czfe'zzzx,
p 422. planos, se criaria uma impressão auditiva de deformação prismática. Aqui se tem
também, como ponto de partida, os mesmos procedimentos encontrados no con-
7 À í//e p/afe'zux, p. 430.
traponto clássico, com a diferença de que agora, em vez de notas, massas organi-
8A criação de uma linha transversalrepousa sobre o duplo movimento de zadas de sons se movem uma contra a outra", cf. Georges Charbonnier, Enfrefie/z
um plano abstrato pré-material, ou plano de colzsisfêncla, por um lado, e de um auecEdgczrdVarêse, Paris, Belfond, 1970.

500 Pascale Criton A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984 501


1)1anode composição e de estruturação do som próprio à escritura [...] Há autores para quem a vida está do ]ado do ga-
musical da segunda metade do século XX. Das abordagens eletroa- lope.
cústiCas e eletrânicas às concepções ultracrornatistas, da síntese sono- [-.] A vida é uma cavalgada dos presentes que passam,
ra e instrumental às últimas gerações da informática musical, o livre para um cineastacomo Renoir, por exemplo...
plano de composição das relaçõessonoras, anunciado por Varêse desde [...] E a morte é a ronda que nunca termina dos pas-
os anos 20, gerou incessantementeuma abordagem molecular do ma- sados que se conservam e que fazem pressão sobre nós.
terial sonoro, confiando aos "construtores do som" a criação de sua [...] Melancolia de 'se você também me abandonar'
própria relação com o espaço e o tempoiu. A pequena canção que nos mergulha no passado, que
Como o cristal sonoro revela o tempo? Deleuze distingue o ri- nos leva ao passado, que nos arranca lágrimas sobre nós
tornelo e o galope como duas figuras do tempo jmanifestaçõespuras), mesmos...
exemplares na música de cinema, e elabora uma matriz, cujos elementos O pequeno ritornelo... é a morte."
assimétricosproduzem uma variação transversal. O vetor de dester-
ritorialização é atribuído ao galope: com efeito, o vedor de aceleração "Outra possibilidade... A cavalgada dos presentesque
é uma variável do ritornelo que pode tornar-se autónoma, mantendo passam anda rápido.
uma relação dissimétrica com o outro componente variável, de terri- Ela nos faz correr,... mas para onde corremos?
torialização: "A desterritorialização implica a coexistência de uma De modo algum para a vida: corremos para o túmulo.
variável maior e de uma variável menor que formam-se ao mesmo tem- [...] Para onde correm?... E]es correm para o túmu]o.
po: a desterritorialização é sempre dupla... os dois termos não se tro- E ao contrário... o pequeno ritornelo... é a verdadeira
cam, não se identificam, mas são levados para um bloco assimétrico, vida... é o que nos salva da corrida para o túmulo... é a prova
onde um muda tanto quanto o outro"ll. Deleuze propõe dissociar as do eterno... E o que vai se assentar sobre nós como uma
duas variáveis, chamando uma de rlfor/ze/oe a outra de ga/OPe: auréola sonora e nos subtrair, mesmo que apenas por um
instante, à corrida ao túmulo."
[...] Se o que se ouve no cristal é o próprio tempo, a
própria fundação do tempo, se é o ruído do tempo o que se "[...] Lá, os signos se invertem, é o ritorne]o que con-
ouve no cristal, é preciso, portanto, que o ruído do tempo tém a vida e o galope que nos leva à morte.
seja duplo. Perdidos... salvos... perdidos... salvos...
Com efeito, o galope é cavalgada dos presentes que [...] Fellini põe em cena os dois-. Mas não está nem
passam(velocidade acelerada). em um nem no outro... Em Ensaio de Orquestra, tem-se o
[...] E o ritornelo é a ronda dos passados que se con- ensaio da orquestra, que tem por sentido constituir os dois
servam . elementos... Constituí-los, antes de tudo, de maneira autó-
Duas figuras do tempo... Não sei qual é o signo de cada noma, depois mistura-los cada vez mais, para mostrar que
um; o signo é variável... nunca se sabe de antemão o que será perdido ou ganho.
[...] Introduzamos uma nova dupla: vida-morte... [-.] No esplêndido galope des]izante de violinos, no
fim, se forma um pequeno ritornelo..., uma pequena frase...
io Pasca[e Criton, "Continuum, u]trachromatisme et mu]tip]icités", La ]goz/- A pequena frase pára, o galope retoma, e a pequena frase
pe//eRez/weMasfcíz/eSnfsse,Dissolzíznz-Disso/zafzce,
n' 42, Zurique, 1994. E "Es- também...
paces sensibles", Colóquio l,'Espace: Musique ef Pb//osopble, Paras, Sorbonne, 1997
[...] AÍ se dá uma compenetração dos e]ementos, na
latas a serem publicadaspela editora L' Harmattan). forma:
ii ÀÍI//e p/afeaux, p. 377. Salvos?... Perdidos?... Salvos?... Perdidos?..."

502 Pascale Criton A propósito de um curso do dia 20 de março de 1984 503


Nesse esboço de dupla desterritorialização, Deleuze mostra como,
EXISTE UMA ESTÉTICA DELEUZEANA?
na música de cinema, um agendamento maquínico se desenvolve com Jacques Ranciêre
a manutenção de uma ária de intensidade estendida entre dois pólos,
o tempo sustentado por uma flutuação, cuja queda é conjurada. Pau
sa que permiteo tempo de um descolamento,em prol de um trans-
porte, uma declinação de figuras largadas no cosmos. A música é pre
cisamente a aventura de uma linha de fuga, a um só tempo impessoal
e coletiva, capaz de fascinar ou de mobilizar um povo- Meu objetivo não será situar uma estética deleuzeana em um qua-
Deleuze pensava na pequena frase do Bairro, uma simples fra- dro geral que seria o pensamento de Deleuze. A razão disso é simples:
se, dizia Ravel, mas de tal insistência...t2 não sei muito bem o que é o pensamento de Deleuze, ainda estou in-
vestigando. E, para mim, os textos de Deleuze considerados estéticos
"Uma pequena frase, que basta ouvir uma vez para são um meio de me aproximar dele. Aproximar, aliás, é um termo
jamais esquecê-la' impróprio. Compreender um pensador não é chegar a coincidir com
o seu centro. É, ao contrário, deportá-lo, conduzi-lo a uma trajetória
Uma pequena frase, é só, que não muda nem de ritmo, nem de em que suas articulaçõesse afrouxam e permitem um jogo. Ê então
melodia. Apenas mudanças de intensidade e de orquestração introdu- possível des-figurar esse pensamento para refigurá-lo de outro modo,
zem incessantementeuma variável e modificam as relações em um sair da restrição de suas palavras para enuncia-lo nessa língua estran-
longo crescendo sabiamente dosado, de modo que... geira que, para Deleuze, depois de Proust, constitui a tarefa do escri-
tor. A estética seria aqui o meio de desatar esse novelo deleuzeano que
[...] a retomada da pequena frase se dá segundo um deixa tão pouco lugar à irrupção de uma outra língua, para deslocá-
galope... que chega a um esplêndido fim, à quebra do ri- lo na trajetória de uma questão.
tornelo, De fato, não se tratará de situar o discurso deleuzeanosobre a
[...] como um prato que se quebra: os pedaços se esti- arte no âmbito da estética,concebida como uma disciplina que tem
lhaçam. seus objetos, seus métodos e suas escolas. Para mim, a palavra "esté-
Na extrema velocidade do galope... Vejam... tica" não designa uma disciplina. Não designa uma divisão da filoso-
fia, mas uma idéia do pensamento. A estética não é um saber sobre as
[.-] Eis como se pode construir uma matriz simples, obras, mas um modo de pensamento que se desdobra acerca delas e
com os dois elementos,o Ritornelo e o Galope." que as toma como testemunhos de uma questão: uma questão que se
refere ao sensível e à potência de pensamento que o habita antes do
pensamento, sem o conhecimento do pensamento. Tentarei então mos-
Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro trar como os objetos e os modos de descrição e de conceptualização
de Deleuze nos levam ao centro do que há a ser pensado sob essa pa-
lavra, já bicentenáriae ainda tão obscura, "estética"
Partirei de duas formulações deleuzeanas, cuja distância me pa-
12Clément Rosset desenvolve o papel do rlforne/o da frase do Bo/ero, de rece fixar de modo exemplar os pólos, aparentemente antagonistas,
seu caráter particularmente insistente e repetitivo em "Archives", l,a Nouue//e entre os quais se inscreve o pensamento deleuzeano acerca da obra. A
Recue Fralzçaise,n' 372, Paria, fevereiro de 1984. Vale salientar que o ritornelo primeira se encontra em O que é a /i/osoÓa?: "A obra de arte é um
do Bo/ero de Ravel se substituiu a qualquer informação e retiniu, sem interrup
ser de sensação e nada mais: ela existe em si[...] O artista cria blocos
ção, nas ondas, no dia 3 de setembro de 1939, dia da declaração da guerra e da
partida dos contingentesmobilizados. de perceptos e de abetos, mas a única lei da criação é que o composto

504 Pascale Criton Existe uma estética deleuzeana? 505


tlcve se manter por si só"l. A segunda figura em l,ógfca da sensação: uma outra linha, pertecente à lógica de uma outra forma: a linha gó
Com a pintura, a histeria se torna arte. Ou melhor: com o pintor, a rica setentrional de Wõrringer, essa linha que se encurva, se quebra,
histeria se torna pintura"z. se embaralha, muda de direção. Essa linha inorgânica desorganizaa
À primeira vista, a primeira fórmula enuncia o que parece ser o função do contorno essencializante. Ela o prolonga no mundo do aci-
requisito de qualquer estética entendida como discurso sobre a arte: dental para fazer dele um lugar de tensão, de confronto, de deforma-
há um modo de ser específico: o da obra de arte. A obra de arte assim ção dos outros elementos. A superfície baconiana será definida, então,
o é na medida em que se mantém por si só. Ela é o objeto que estádiante como uma combinação específica de formas: o espaço háptico "egíp-
de nós, que não tem necessidade de nós mas persiste, em virtude de cio" de Riegl desorganizado pela identificação de seu contorno com a
sua própria lei de unidade de uma forma e de uma matéria, de partes linha setentrional de Wõrringer.
e de sua junção. Pode ser a tragédia, como Aristóteles a define; a cal- Pode-se assim definir uma fórmula de quadro em uma gramáti-
ma idealidadeda estátua grega, em Hegel; o romance sobre nada de ca geral das formas. Mas como compreender, então, que esse agenda-
Flaubert, que se mantém apenas pela força do estilo; a superfície de mento de planos e de linhas, definido por critérios estilísticos, tenha o
manchas coloridas por meio da qual Maurice Denis define a pintura nome de uma doença mental, a histeria? Eu digo "doença mental". Mas
etc. É precisamente desse modo que Deleuzc parece nos colocar dian- há toda uma tradição de pensamento para a qual a histeria não é uma
te da obra sob a forma de um: "eis o que há". Assim começaexem- doençaqualquer. Ela é, especificamente,a doença que seopõe ao tra-
plarmente, em Lógica da sensação, a descrição daquilo que um qua- balho da obra, que a impedede existir como coisa autónoma, reten-
dro de Bacon nos apresenta: "Uma circunferência delimita frequente- do prisioneiras no corpo do artista as potências que deveriam objetivar
mente o lugar em que está sentada a personagem, isto é, a Figura"J. e autonomizar a obra. Penso aqui no que Flaubert diz de seu Sainf
Uma circunferência, uma oval, círculos, procedimentos plásticos, um A/ztol/ze:a potência que devia criar a consistência do bloco de már-
espaço bem delimitado e caracterizado, assim Deleuze nos descreve "o more da obra inverteu sua direção. Ela foi para o interior, ao invés de
que há" diante de nós, na superfície plana e autónoma da obra. E "o ir para o exterior. E, indo para o interior, ela se liquefez. Ela escorreu
que há" pode ser descrito nos termos de uma espéciede gramática das em Flaubert como doença nervosa. Assim a histeria é propriamente a
formas. Assim, pode-sedescrevera superfície do quadro de Bacon como antiobra. Ela é a paixão ou a efusão nervosa que se opõe à potência
a estrita combinação de duas formas identificadas pelos historiadores atléticae esculturaldos músculos.
e teóricosda arte. De início, a coexistência, no quadro da figura, da Como compreender, então, que o "manter-se por si só" da obra
camada de tinta que cria o fundo e da circunferência que ao mesmo possa se identificar com a histeria?Retomemos, para isso, às primei-
tempo as une e separa é a restituição de um espaço háptico: um espa- ras linhas de l,ógica da sensação. A circunferência, a oval, o paralele-
ço de conexão do ver e do tocar em um mesmo plano. Segundo Riegl, pípedo formais têm, de fato, uma função muito precisa: isolar a figu-
é esse espaço que caracteriza o baixo-relevo egípcio. SÓ que nesse es- ra. Isola-la não para essencializá-la,como o contorno egípcio, não para
paço o contorno tem por função essencializar a figura que ele circuns- espiritualizá-la, como a ma/odor/a bizantina, mas para impedi-la de
creve. O problema é, então, definir um espaço que tenha a "planeidade' entrar em contado com outras figuras, de se tornar elemento de uma
háptica, mas que seja liberado dessa função essencializante. história. E há duas maneiras de se tornar elementode uma história:
Tal problema é resolvido formalmente por uma operação que há a relação externa de semelhança, a relação do personagem figura-
incide sobre o contorno. Sua linha vem se identificar, em Bacon, com do com aquilo que ele representa. E há as relações que, na própria
superfície da obra, uma figura mantém com outras figuras.
Essas duas maneiras definem, de fato, as duas faces de um mes-
1 G. Deleuze e F. Guattari, Qa'esf-ce qzze/a pbf/osop&íe?, Minuit, p. 155.
mo modelo: o modelo representativoaristotélico, tal como fixado pela
2 G. Deleuze, Loglqzze de la se/zsaüofz, La Différence, t. 1, p. 37. Poética. Representar, com efeito, significa duas coisas. Primeiramen-
3Idem, p. 9. te, a obra é imitação de uma ação. Por meio de sua semelhança, ela

506 Jacques Ranciàre Existe uma estética deleuzeana? 507


faz reconhecer algo que existe fora dela. Em segundo lugar, a obra é a a própria figura busca escapar, desorganizar-se, esvaziar-se pela ca-
ação de representar. Ela é encadeamento ou sistema de ações, agenda- beça para se tornar copo sem órgãos e ir juntar-se a essa vida não-
mento de partes que se ordenam segundo um modelo bem definido: o orgânica. Assim o "manter-se por si só" apolíneo da obra é, antes, uma
agendamento funcional das partes de um organismo. A obra é viva histeria dionisíaca: não o escorrer das potências da obra no corpo do
por ser um organismo.Isso quer dizer que a fecb/zeda obra existeà artista, mas o escorrer na obra dos dados figurativos que a obra tem
imagem da natureza, da potência que encontra no organismo vivo em por tarefa desfazer.
geral, e no organismo humano em particular, sua efetuação. Deleuze dá um outro nome a esse trabalho de deserção. Ele o
O modelo clássico da autonomia da obra consiste em dissociar denomina justiça. E à própria justiça ele atribui um novo nome: ele a
o modelo aristotélico, em contrapor a consistência orgânica da obra denomina deserto. É assim que o capítulo 5 de Lógica da sensação
à sua dependência mimética, a natureza potência da obra à natureza descreveo término do movimento por meio do qual a figura escapa
modelode figuração.Uma verdadeiralibertaçãoda obra supõe, en em direção à estrutura molecular da matéria: "Será necessárioir até
tão, a destruição dessa organicidade que é o segundo recurso da re- esse ponto a fim de que reine uma justiça que não será mais do que
presentação. Histerizar a obra, fazer da histeria obra, significará des- Cor ou Luz, um espaço que não será mais do que Saara"4. A obra faz
fazer essa organicidade latente na própria definição da "autonomia' justiça, e a justiça se origina em um certo lugar. Ainda que a associa-
da obra. Isso significará tornar doente essa natureza que tem a auto- ção da justiça e do desertoevoque, em primeiro lugar, a Antígona de
nomia orgânica como fe/os. A obra pictural deverá, então, ser pensa- Hõlderlin, parece-me impossível não ouvir aqui o eco de um outro dis-
da como uma doença da natureza orgânica e da figuração que imita curso sobre a justiça e seu lugar. Refiro-me certamentea Platão, no
sua potência. O que os elementosda gramática formal evocada cons- livro Vll da Repzíb/ica.Tanto em Deleuze como em Platão, a que se
tituem é, de fato, uma instauração de crise, a doença de uma nature- trata de fazer justiça? Pode-se responder: ao sensível como tal. Trata-
za. Eles delineiam a cena de um combate ou de uma crise. O contor- se de dizer qual é sua verdadeira medida. Em Platão, a medida verda-
no baconiano é assim uma pista, um ringue, um tapete de ginástica. É deira chama-seidéia e a idéia tem um inimigo: as doxaf. A doxczé a
o lugar de um combate: o combate da pintura contra a figuração. Da justiça que o sensível faz a si mesmo na ordem corrente das coisas. E
mesma forma, também os elementosdo "código formal" foram cuida- preciso, então, sair da caverna, da coxa, do sensível, para alcançar o
dosamentetorcidos por Deleuze para organizar esseringue. Prova disso lugar a partir do qual o sensível recebe sua medida, com o risco de que
é a maneira pela qual ele muda a significação das análises de Wõrringer. ele aí desapareça. Ora, em Deleuze, a justiça tem o mesmo inimigo: a
Neste autor, a linha era idealidade, potência de ordem. Mesmo a li- coxa, a opinião, a figuração. Do mesmo modo que o espírito em Pla-
nha gótica tinha uma dupla função. Ela traduzia angústia e desordem. tão, a tela do pintor não é branca, à espera do que deve preenchê-la.
mas também as corrigia, manifestando uma potência vital ideal. Em A tela é superpovoada, recoberta pelos dados figurativos, isto é, não
Deleuze, inversamente, a linha torna-se a potência do caos que arras- apenas os códigos figurativos picturais, mas os clichês, a coxa, o mundo
ta toda forma, a potênciado devir-animal que desfaz a figura huma- das sombras sobre o muro. O que é isso: os "dados figurativos" ou a
na, a instauração de catástrofe no espaço figurativo. O contorno de coxa? É o recorte sensório-motor e significante do mundo perceptivo
senha, então, um campo fechado no centro de um duplo impulso: em tal como o organiza o animal humano quando se faz centro do mun-
torno dele, a camada de tinta do fundo faz subir em direção à figura do; quando transforma sua posição de imagem entre as imagensem
as potências do caos, as forças não-humanas, não-orgânicas, a vida cogffo, em centro a partir do qual ele recorta as imagens do mundo.
não-orgânica das coisas, que vêm esbofetear a caras . Em seu interior, Os "dados figurativos" são também o recorte do visível, do significante,
do credível tal como organizados pelos impérios, enquanto atualiza-

+ No original francês, pode tratar-sede um jogo com o duplo sentido da


palavra /zgzfre,simultaneamente "figura" e "cara". IN. da T.} * Idem, p. 23

508 Jacques Ranciàre Existe uma estética deleuzeana? 509


ções coletivas desse imperialismo do sujeito. O trabalho da arte é o pcz5] , que se torna "louca" aos olhos do mundo do qual ela deserta
de desfazer esse mundo da figuração ou da doía, de despovoar esse em favor das operárias e das prostitutas, se retiram do universo da coxa
mundo, de apagar o que está previamente sobre qualquer tela, de fen- e da justiça. Elas vão em direção a uma outra justiça: a do deserto, de
der a cabeça dessasimagenspara aí colocar um Saara. Antígona, da petrificação e do confinamento. SÓ que Hitchcock, o
Ir em direção à justiça é ir em direção àquilo que dá a verdadei- aristotélico, se furta a essa passagem para o outro lado que engole o
ra medida do sensível: o mundo da "ldéia". E, certamente, em Deleu- belo edifício da imagem-movimento e do enredo bem construído. Já
ze, a verdade não é a idéia por detrás ou sobre o sensível. A verdade é Rosselini dá tal passo, faz o cinema que esse rosto pede.
o sensível puro, o sensível incondicionado que se opõe às "idéias" da E Deleuze, como marca a passagem? Fazendo de Irene uma efígie
coxa. O sensívelincondicionado é o que se denomina justiça ou de- alegórica. Toda a potência da efígie se prende às palavras que Irene
serto. A obra é caminhar no deserto. SÓ que o deserto justiceiro alcan- pronuncia, voltando da fábrica: "Creio ter visto condenados". Com
çado, o término da obra, é a ausênciade obra, a loucura. "Será neces- isso ela se torna a alegoria do artista: aqueleque foi ao deserto, que
sário ir até esseponto", diz Deleuze,mas a obra só irá a esseponto viu a visão excessivamente forte, insustentável, e que, a partir de en-
com a condição de anular-se. O teatro da obra é então o de um movi- tão, nunca mais se conciliará com o mundo da representação. Deleu-
mento no mesmo lugar, de uma tensão e de uma estação -- no senti- ze não nos mostra a imagem-tempo,ele nos designa um rosto que
do também em que se fala das estações de um caminho da cruz. A obra alegoriza o que ela significa: o não-ajustamento, o desacordo dos da-
é o caminho da cruz da figuração que a cara esbofeteada, como um dos sensíveis. Tudo acontece como se, quanto mais a arte se aproxi-
Cristo ultrajado, manifesta. Mas, precisamente, ela retém no mesmo masse de sua verdade, mais se tornasse alegoria de si mesma e mais a
lugar a cara esbofeteadaque quer fugir. A obra é uma estaçãono ca- leitura se tornasse alegórica. Tudo acontece como se o próprio da arte
minho de uma conversão. Sua histeria é esquizofrenia mantida nos li- fosse alegorizar a travessia 'em direção ao verdadeiro do sensível, em
mites em que ela faz ainda obra e alegoria do trabalho da obra. direção ao espiritual puro: a paisagem que vê, a paisagem antes do
Em um sentido, o livro sobre Bacon é apenas isso: uma vasta ale- homem, aquilo que precisamente o homem não pode descrever.
goria do trabalho da obra. O privilégio de Bacon, o privilégio do ex- A partir daí, é possível situar o pensamento de Deleuze no desti-
pressionismo, no sentido amplo, na estética pictural deleuzeana, é o no da estética como figura do pensamento. É possível relacionar sua
de mostrar e alegorizar o momento da metamorfose, de mostrar a arte crítica da figuração e da organicidade ao que a estética quer dizer em
se fazendo -- histericamente-- em seu combate com os dados figu- si. O que significa "estética", no surgimento dessa noção, tal como se
rativos. Em Deleuze, a obra é, antes de tudo, a alegoria da obra. Ela efetua entre o fim do século XVlll e o início do XIX? Antes de tudo,
mostra seu le/os, seu movimento e sua retenção. A figura, para ele, é significa, negativamente, a ruína da poética. A poética era o modo de
ao mesmo tempo a /órm /a de uma transformação e sua alegoria. E verdade que regia as obras no universo da representação. O universo
seu julgamento sobre a figura está ligado a sua capacidade de se tornar da representação era governado pelo duplo mecanismo do princípio
fórmula e efígie que opera e alegoriza ao mesmo tempo o movimento mimético que mencionamos: a obra produz uma semelhança. Mas
da fuga retida. também a própria obra é uma semelhança, na medida em que consti-
Pode-se pensar aqui na maneira pela qual, no livro sobre o cine- tui um organismo, um logos, um "belo vivo". A recbne da obra pro-
ma, o limiteda imagem-movimentoe a gêneseda imagem-tempose longa a natureza, a pbysfs, o movimento que realiza a vida em orga-
emblematizam em duas efígies, dois rostos de mulheres, de "loucas": nismo. Ela é uma produção normatizada por essa outra produção que
o rosto da mulher do Tbe Wro/zgÀ4an, de Hitchcock, interpretada por é a pb)réis, potência comum de vida, de organismo e de obra. inversa-
Verá Mi[es, e o de ]rene em Earopa S] , de Rosse]ini, interpretada por mente, a estética centra sua atenção não mais na obra, mas no afslbefo/z,
Ingrid Bergman. Ambos os rostos testemunham essa passagem: tanto no que se sente. Daí o paradoxo que parece marcar originariamente a
a mulher do Áa/se clf/Fado, que mergulha na esquizofrenia após a in- estética. Ao passo que o desabamento das normas da representação
justa incriminação de seu marido, como a grande burguesa de Ezíro- abre por direito a realezada obra e da potênciada obra, a estética,

510 Jacques Ranciêre Existe uma estética deleuzeana? 511


por conta de seu próprio nome, afunda a obra em um pensamento do mento que submete a consideração das obras à idéia dessa potência
sensível, privilegia o abeto, e um afeto que é o do receptor ou do es- heterogênea,potência do espírito como chama que igualmente ilumina
pectador. Sabe-secomo Hegel resolve essa questão no início das l,i- ou queima.
ções sobre a esférica. Ele declara que a palavra é evidentementeim- A partir daí, essa potência, no sensível,do pensamentoque não
própria, trazendo a marca de uma época que terminou: o tempo de pensa pode ser concebida segundo dois esquemas que se alternam. O
Burke e de Hume, em que as obras eram explicadas a partir de uma primeiro enfatiza a imanência do /egos no pafbos, do pensamento
psicologia empírica da sensação. Mas tendo a palavra "estética" en- naquilo que não pensa. O pensamento se encarna, se deixa ler no sen-
trado em uso, pouco importa sua origem, e ela pode então ser empre- sível. É o modelo romântico do pensamento que vai da pedra e do
gada sem problemas para designar a teoria da bela arte. deserto ao espírito, do pensamento já presente na própria textura das
Mas não se trata disso. Tal palavra não é um anacronismo ou coisas, inscrito nas estrias do rochedo ou do marisco e que se eleva em
uma impropriedade. Estética designa uma mudança de perspectiva: direção a formas cada vez mais explícitas de manifestação. O segun-
quando o pensamento da obra não remetemais a uma idéia das regras do, inversamente, apreende o espírito nesse ponto de parada em que
de sua produção, ela é subsumida sob outra coisa: a idéiade um sensível a imagem se petrifica e remete o espírito a seu deserto. Ele enfatiza a
particular, a presença no sensível de uma potência que excede seu regi- imanência do palcos ao /ocos, a imanência no pensamento daquilo que
me normal, que é e não é do pensamento, que é do pensamentoque não pensa: a "coisa em si" schopenhaueriana, o sem-fundo, o indi-
se tornou diferente de si mesmo: um produto que se iguala a um não- ferenciado ou o obscuro da vida pré-individual.
produto, um consciente que se iguala ao inconsciente. A estética faz Por mais que a estética hegeliana marque sua distância em rela-
da obra a manifestação pontual de uma potência de espírito contradi- ção à geologiaromântica do espírito, ela não deixa de ilustrar exem-
tória. A teoria kantiana do gênio a define como uma potência que não plarmente o primeiro movimento: nela a obra é a estação do espírito
pode dar conta daquilo que faz. O Sísfema do idem/esmo fz'a/zsce/zden- fora de si -- o espírito que falta a si mesmo na exterioridade e que, ao
fa/, de Schelling, fixa o paradigma do produto que torna equivalentes se faltar, cria o êxito da obra, desdea pirâmide que em vão busca contê-
o consciente e o inconsciente. Hegel faz da obra a estação do espírito lo até o poema que o leva ao limite de toda apresentação sensível, pas-
fora de si: nela o espírito está presente como animação da tela ou sorriso sando pela ache da arte grega, em que ele cria sua figura sensível ade-
do deus de pedra. A obra é um sensível separado das conexões habituais quada. A estéticaé a história das formas da coincidência entre o espaço
do sensível,que vale daí em diante como manifestaçãodo espírito, mas da representação artística e o espaço de uma apresentação do espírito
do espírito na medida em que ele não conhece a si mesmo. A estética a si mesmo no sensível. A morte da arte marca o momento em que o
nasce como modo de pensamento quando a obra é subsumida sob a espírito não tem mais necessidade de apresentar a si mesmo formas
categoria de um sensível heterogêneo, a idéia de que há uma zona do exteriores da representação. Isso significa dizer que o espaço da repre-
sensívelque se separa das leis comuns do universo sensívele testemunha sentação não é mais um espaço de apresentação. O que ele se torna,
a presença de uma outra potência. É a essa outra potência -- a potência então? Torna-se imagem de mundo, coxa platónica ou to/lce flauber-
daquilo que, diretamentesobre o sensível,sabe sem saber -- que se tiana. A questão da modernidade estética, a de uma arte que vem após
pode dar o nome de espírito ou, como Deleuze, de "espiritual". Não a morte da arte, se formula, então, nos seguintestermos: afirmar a
há determinação mais precisa que Ihe possa ser dada do que a seguinte: potência da apresentação artística contra a doxczrepresentativa, a po-
a idéia de uma zona do sensível qualificada pela ação de uma potência tência do espírito que se iguala a seu outro -- a natureza, o incons-
heterogêneaque modifica o regimede tal zona, que faz com que o ciente, o mutismo -- nas condições de uma corrida com essas máqui-
sensível seja mais do que o sensível, que é do pensamento, mas do nas de dota, essas máquinas de imagens de mundo que fazem de Apoio,
pensamento em um regime singular: do pensamento diferente de si já no tempo de Hõlderlin, o deus dos jornalistas; essas máquinas que
mesmo, do palcos que é/ocos, da consciência que se iguala ao incons- se denominam jornal ou televisão. O programa estético da arte signi-
ciente, do produto que se iguala ao não-produto. A estética é o pensa- ficará, então: inverter a direção de espírito que vai da arte à dox.z, fa-

512 Jacques Ranciêre Existe uma estética deleuzeana? 513


zer da obra a reconquista do espiritual perdido nesse movimento, fa- dade -- da verdade pensada segundo o modelo moderno da verdade,
zer do "espiritual" o inverso da potência clássica de encarnação e de fixada de uma vez por todas por Hõlderlin, a verdade como erro que
individualização. O destino da obra se acha, então, vinculado à outra se tornou um erro. A obra moderna toma a figura de um objeto pa-
figura do "espiritual": a imanência no pensamentodaquilo que não radoxal. Ela é a inclusão de uma verdade estética. de uma verdade do
pensa, o scm-fundo da vida in-diferenciada, não-individual, a poeira sensível puro, do sensível heterogêneo em uma poética aristotélica: a
dos átomos ou dos grãos de areia; o pático* sob o lógico; o pático em intriga de saber e de fortuna que passa pela peripécia e pelo reconhe-
seu ponto de repouso, de a-patia. cimento. O livro de Proust apresenta essa figura exemplar da inclu-
E, portanto, sob forma de tarefa ou de combate que se apresenta são de um tema schopenhaueriano -- o esfacelamento do mundo da
o prometode igualar a potência da obra à de um sensível puro, de um representação -- em uma intriga aristotélico-hegeliana da verdade
sensível a-significante. O processo de des-figuração analisado por De- como devir do erro.
leuze na pintura de Bacon é idêntico, por exemplo, à limpeza operada A análise de Deleuze inscreve-se, portanto, no destino da estética
por Flaubert, desfazendo, linha após linha, as conjunções gramaticais como modo de pensamento, no destino da obra moderna ligada a esse
e as inferênciassemânticasque criam a consistênciahabitual de uma sensível puro, em excesso em relação aos esquemas da doxcz represen-
história, de um pensamento, de um sentimento. Essa limpeza tem uma tativa. Ela se estabelecenessas mesmas zonas que a piedade isto é,
finalidade precisa: igualar a potência da frase à de uma sensibilidade a simpatia pela vida in-individual, vizinha da loucura, da perda de
que não é mais a do homem da representação, que é a do contemplador todo mundo. Deleuzetrata da obra moderna como obra contraditó-
que se tornou o objeto de sua contemplação: espuma, seixo ou grão ria em que o elementopático, o pensamento-árvoreou o pensamen-
de areia. Essa limpeza substitui uma tolice (a sobre-significação de cará- to-seixo, vem desfazer a ordem da doía, mas em que esse elemento
ter nulo da dota) por uma outra tolice: a a-significância do vazio, do pático é ele mesmo incluído, resgatado em uma organicidade e um
infinito, a grande vaga indiferente que rola e agita os átomos. Do mes- logos de tipo novo. Ele denuncia esse compromisso -- ele tenta anulá-
mo modo, Proust relaciona a potência da obra à experiência de um lo -- de reconstruir a obra moderna dc forma a que ela siga uma única
sensível subtraído a suas condições, a esse momento de esfacelamen- lógica ou antilógica. Nesse aspecto, é exemplar seu corpo-a-corpo com
to de todas as marcas em que dois mundos vêm acoplar-se. Mundo a obra proustiana que Ihe faz dar a seu livro uma continuação e uma
do sensível puro, do sensível sentido pelas pedras, pelas árvores, pela continuação da continuação. Como se fosse preciso, incessantemen-
paisagem ou pelo momento do dia. Conhece-se o ideal do livro sonhado te, remeter Proust à pureza de um modelo antiorgânico. Ele nos diz:
pelo jovem Proust: o livro feito da substância de alguns instantes arran- :Em Proust. seriam buscadas em vão as banalidades sobre a obra de
cados ao tempo, o livro feito de "gotas de luz", da substância de nossos arte como totalidade orgânica"5. Talvez elas fossem buscadas em vão,
mais belos minutos. mas certamente seriam encontradas. Mas Deleuze não se interessa
O problema é que, com tal substância pática, não se escreve um pela insistenteorganicidade do esquema proustiano. Não se interes-
livro. E o livro deve ser feito por construção de uma fábula analógica, sa pelo devir do erro, da reunião final dos lados e do equilíbrio dos
de uma fábula construída para fazer sentir novamenteo mesmo abe- arcos. Ele retorna a Proust uma segunda vez, como para destruir o
to que o dessepuro sensível que talvez pense, mas que certamente não que deixara subsistir, para construir o modelo do anui/ocos prous-
escreve. O livro flaubertiano é a construção intencional de uma natu- tiano: a obra feita de pedaços reunidos, de caixas e de lados não-
reza idêntica à natureza incriada que não provém de nenhuma inten- comunicantes. Em suma, trata-se, para ele, de tornar a obra de Proust
ção. O livro proustiano é a construção de uma intriga orgânica que coerente,de tornar a obra moderna, a obra do tempo da estética,coe-
englobaos momentosepifânicos:uma fábula da descobertada ver- rente com ela mesma. Daí esse combate com a obra, que se emble-

* Em francês, palbigue, de pafbos. (N. da T.) 5 G. Deleuze, Prol/sf ef /es sfglzes,Paras, PUF, p. 138

514 Jacques Ranciêre Existe uma estética deleuzeana? 515


matiza na representação da obra como combate. Deleuze perfaz, em M.ICHAUX, DELEUZE%
suma, o destino da estética. Ele consuma a coerência dela. Permane-
Raymond Bellour
ce a questão: consumar o destino da estética, tornar coerente a obra
moderna incoerente, não é destruir sua consistência, não é fazer dela
uma simples estação no caminho de uma conversão, uma simples ale-
goria do destino da estética? E não seria esse o paradoxo de tal pen-
samento militante da imanência: o de reconduzir, incessantemente, a
consistência dos blocos de perceptos e de abetosà tarefa interminável A mais inquietante sugestão nasce do lugar singular ocupado por
de configurar a imagem do pensamento? Michaux na filosofia de Deleuze, ou de Deleuze-Guattari. Isso irrompe,
de início, no livro consagrado por Deleuzea Foucault, no terceiro ca-
pítulo da parte "Topologia: pensarde outro modo": "As dobras ou o
Tradução de Ana Lúcia Oliveira
dentro do pensamento jsubjetivação)". O fato marcante é que, para
qualificar em Foucault e através dele os conceitos de pensamento e de
impensado, de dentro, de fora e de dobra, Deleuze utiliza, inicialmente
de modo implícito, um título de Michaux para sustentar sua proposi-
ção principal: "um espaço do de?zero,que será inteiramente co-presente
ao espaço do fora sobre a linha da dobra"l. Mas ele chega, sobretu-
do, a agenciar, em um único fluxo, três títulos de Michaux ("espaço
do dentro", "longínquo interior", "vida nas dobras"), quando, no fi-
nal de seu percurso, procurando "contar a grande ficção de Foucault",
cujos termos distribuíra até então, repentinamenteele se concentra, de
modo estranho e absoluto, em Michaux. Misturando referências a
AÍ/leais e a Grandes érre z/es de /'esPrff, destaca "a linha de Michaux
singularidade selvagem exprimindo, para além das relações de formas
e de forças ligadas ao saber e ao poder, o fervilhar do fora como "zona
de subjetivação", bem acima da fissura que separa o visível do enun-
ciável, luz de linguagem. Por que esse livro de filosofia, sobre um filó-
sofo que deve tanto aos pintores e aos escritores que modelaram seu
pensamento(assim como Raymond Rousselabrindo, em Foucault, o

* © Copytfgbf Edições Gallimard, 1998. Estas páginas foram extraídas da


introdução às obras completas de Henri Michaux, publicadas na Bíb/fofbêq e de
!a P/éladena primavera de 1998. Agradecemos às Edições Gallimard por terem
autorizado sua reprodução. Elas constituemo cerne da seção "Philosophie?", na
qual se interroga acerca do estatuto, ou da imagem,de um Michaux "filósofo",
em uma perspectivaque visa a aprofundar a relação, já postuladapor Raymond
Bellour e Claude Lefort, entre Michaux e Merleau-Ponty. (N. do E.)
l Foz/czzzl/f,
Paris,Minuit, 1986,p. 126.

516 Jacques Ranciêre Michaux, Deleuze 517


Tema alucinatório dos duplos"2), por que esselivro termina, assim, "Esses pensadores são filósofos 'pela metade', mas são
com um escritor-pintor, com a imagem de uma câmara central onde também bem mais que filósofos, embora não sejam sábios.
"nos tornamos senhores de nossa velocidade, relativamente senhores Que força nessasobras com pés desequilibrados,Hõlderlin,
de nossas moléculas e de nossas singularidades"3? Após uma passa- Kleist, Rimbaud, Mallarmé, Kafka, Michaux, Pessoa,Ar-
gem por Leibniz em que Michaux se torna um dos heróis modernos taud, muitos romancistas inglesese americanos, de Melville
da dobra e do Barroco4, uma resposta enigmática surge em O que éa a Lawrence ou Miller, nos quais o leitor descobre com ad-
filosofia {s . miração que escreveram o romance do espinosismo... Cer-
Os autores resumem assim a matéria de um livro que tem por tamente. elesnão fazem uma síntesedc arte e de filosofia.
objeto qualificar, em suas respectivas diferenças, a filosofia, a ciência Eles bifurcam e não param de bifurcar. São gênios híbridos,
e a arte, sendo cada campo enfim concebido sem qualquer privilégio que não apagam a diferença de natureza, nem a ultrapas-
em relaçãoa outro, como exercício e produção do pensamento:"pla- sam, mas, ao contrário, empenham todos os recursos de seu
no de imanência da filosofia, plano de composição da arte, plano de 'atletismo' para instalar-se nessa própria diferença, acroba-
referência ou coordenação da ciência; forma do conceito, força da tas esquartejados num malabarismo perpétuo."/
sensação, função do conhecimento; conceitos e personagens concei-
tuais, sensaçõese figuras estéticas, funções e observações parciais". Ora, No entanto, Michaux, e apenas ele, é citado outras quatro vezes
ocorre que Michaux é citado cinco vezes nesselivro: uma vez de modo junto com filósofos. Inicialmente, já na primeira qualificação do pla-
esperado; quatro outras bem menos. Ele aparece logicamente quan- no de imanência: "de Epicuro a Espinosa (o prodigioso livro V...), de
do, abordando as relações entre personagens conceituais e figuras es- Espinosa a Michaux, o problema do pensamento é a velocidade infi-
téticas, Deleuze e Guattari ressaltam de que forma "o plano de com- nita". Em seguida: corre-se em direção ao horizonte, sobre o plano de
posição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um imanência; dele se retorna com os olhos vermelhos, mesmo sendo os
no outro, a ponto de certas extensões de um serem ocupadas por en- olhos do espírito. Mesmo Descartes tem seu sonho. Pensar é seguir
tidades do outro"6. Daí a situação particular de certos escritores, eri- sempre uma linha de feiticeira. Por exemplo, o plano de imanência de
gindo assim novas imagensdo pensamento: Michaux, com seusmovimentose suasvelocidadesinfinitas, furiosos.
Michaux é, em seguida, associado a Blanchot e a Foucault em
uma nota que precisa a caracterização do plano, "a intimidade como
2 /dem, p. 120. fora" ou "longínquo interior". Referência relevante: uma sugestão
[-.] um espaço do fora, mas coexistindo a toda tinha do fora. O mais como essa, incessante, do plano de imanência poderia ser "o gesto
longínquo se torna interior, por uma conversão ao mais próximo: ízz/idíz/zasdo- supremo da filosofia"; o que faz de Espinosa "o Cristo dos filósofos"8
brízs. É a câmara central...". /dem, p. 130. Tomada inicialmente a Melville, a ima- Encontra-se de novo Michaux, por fim, quando se trata de mostrar
gem da câmara central também pertence a Michaux(l.a z/fedons /esp/is: "é.o sangue
-- a ciência, a arte e a filosofia relacionadas conjuntamente em jogo,
das lembranças, da abertura da alma, da frágil câmara central, lutando na estopa, "do caos ao cérebro" -- que, no que concernea essaúltima, a "varia-
é a água avermelhada da veia memória", p. 1241. Ver também a passagem de
Poz#par/ersem que Deleuze atribui a Foucault uma proximidade e uma preocupa-
ção em relação a Michaux, totalmente fictícias, devido à projeção de um sobre o
outro que eleopera para seuspróprios fins (pp. 151-3). lgffur é precisamente um desses casos, personagem conceitual transpor
to em um plano de composição, figura estéticatransportada em um plano de ima
4 Le PZl: l.efbnlz ef /e Bízroqile, Paria, Minuit, 1998, pp. 47 e 124. Essa pas-
nência: seu nome próprio é um conjunção." Idem, p. 65.
sagem em que Deleuze observa em Michaux numerosas "reminiscências leibni-
zianas" é um momento-chave do capítulo "La perception dana les plis", abrindo 7 Idem, ibid.
lpp. 131-2) o "conjunto da teoria da dobra:
8 Essas três menções (pp. 38, 44 e 59) figuram na seção "Philosophie", do
5 G. Deleuzee F. Guattari, Qu'esf-ce que /a pbl/osopble?, Paris, Minuit, 1991. capítulo sobre o plano de iminência.

518 RaJ'mond Bellour Michaux, Deleuze 519


ção conceitual" é a forma particular de luta contra a variabilidade po, voz e horizonte a essa sombra, projetando e reprojetandoo que
caótica, permitindo tocar "o mais rapfdamenfepossüe/ em objetos foi a "filosofia" de P/ume até o "espaço das sombras"ll. Eis aquilo
mentais determináveis como seres reais". Para acentuar o que mostra- em que Michaux, nessemais fictício lugar de transição, tocou com uma
vam Espinosa ou Fichte, por que recorrer então à oposição apontada fórmula insubstituível:"Saber, outro saber aqui, não saber por infor-
por Michaux entre "idéias correntes" e "idéias vitais"9? Sem dúvida mações. Saber para se tornar musicista da Verdade"12
para mostrar, nessa abertura final das mais delicadas, o quanto Mi- Como compreender essa posição única e quase inexprimível de
chaux se encontra em posição de encarar o problema, de fazê-lo vibrar. Michaux no interior de uma filosofia em busca de uma transforma-
De que se trata de fato? De reafirmar e de relativizar, com tan- ção cuja via estaria, desse modo, sugerida? Há, assim, na obra de De-
ta precisão quanto possível, as relações entre ciência, arte e filosofia. leuze, dois momentos essenciaisem que a filosofia, embora sempre
Haverá assim três tipos supostos de interferência entre as disciplinas, reafirmada a partir de sua realidadeprópria, encontra-seremetidaa
"entre planos que se juntam no cérebro". As primeiras são ditas ex- uma comparável oscilação entre interferências intrínsecas e ilocali-
trínsecas, quando cada disciplina, inspirando-se nas dimensões inter- záveis. O primeiro momento é o prefácio de Diferença e repetição,
nas de uma das outras, permanece em seu próprio plano e utiliza seus em que o uso dos conceitos é, de saída, relacionado a "dramas", bem
elementos próprios. Mqs um segundo tipo de interferência é intrínse- como a um exercício de "crueldade"; em que a relação entre saber e
co, quando conceitos e personagens conceituais parecem sair de um ignorância,cada qual passandoe repassandoao extremodo outro (em
plano de imanência que a eles corresponderia para escorregar sobre termos muito próximos aos do posfácio de P/ume13),funda a possi-
um outro plano, entre as funções e os observadores parciais; e o mes- bilidade da escrita, de modo mais íntimo do que sua suposta relação
mo vale para os outros casos.Tais deslizamentos,como o de Zara- com o silêncio e a morte; em que, enfim, uma referência aos novos
tustra na filosofiade Nietzscheou de lgitur na poesiade Mallarmé, meios de expressão filosóficos inaugurados por Nietzsche anuncia um
são tão sutis que nos encontramos em planos complexos difíceis de 'tempo em que não será de forma alguma possívelescrever um livro
se qualificar. de filosofia como se faz há tanto tempo"14. O segundo momento é o
Tal é o nível delicado em que Michaux se encontra com outros último livro de Deleuze, Cr#lca e c/í'Mica,em que, como que indife-
escritores e pensadores, meio filósofos e bem mais que filósofos. Por rentemente, filósofos e escritores são apanhados em um único magma,
fim, existem as interferências ilocalizáveis, que delineiam o obscuro tornando-se criadores de línguas dentro da língua, todas elas porta-
ponto de desfecho desse livro. Pois acontece que cada disciplina en-
tra, à sua maneira, em uma relação essencialcom um Não, no ponto
em que seu próprio plano afronta o caos e onde os diversos planos,
por isso, "não mais se distinguemem relaçãoao caos no qual o cére- is "L'espace aux ombres", in l;ace aax z/erroas,Paria, Gallimard, 1954. Um
movimento como esse, de interferência entre arte e filosofia, também diz respeito,
bro mergulha". Deleuze e Guattari escrevem então que a filosofia, a evidentemente, à ciência. Daí o interessedespertado em homens de ciência, como
arte e a ciência poderiam partilhar "a mesmasombra, que seestende por exemplo StéphaneLupasco lcf. Robert Bréchon, Mícbaax, Paria, Gallimard,
através de sua natureza.diferente e não cessa de acompanha-las" lO. O 1959, pp. 217-20), pela obra de Michaux. Uma teserecentee notável,abrindo e
destinoparticular e bastanteenigmáticoreservadoa Michaux ao lon- recobrindo todo essecampo, foi defendidapor Anne-ElisabethHalpern: l,e /abo-
go de todo o livro dever-se-iaao fato de que, de maneira mais mani- rafoire da poêfe: Henri Jb icbaax ef /es sauoirs safe/zll#qzzes( 1996, publicada em
1999, por Éd. Sanofi-Synthelabo,Col. Les Empêcheurs de Penderen Rond).
festa que outros -- e talvez apenas Michaux a tal ponto --, ele dá cor-
iz Face a x uerroas, p. ] 91.

i3 "Todo progresso, toda observação nova, todo pensamento, toda criação


9 Idenz, p. 195. parece criar (com uma luzl uma zona de sombra./ Toda ciência cria uma nova ig-
io Trata-se da última frase do livro, p. 206. Para as demais referências, ver norância." ip. 2201.
PP. 204-6. i4 DI/7érenceef r( élflíon, Pauis, PUF, 1968, pp. 3-4.

520 Raymond Bellour Michaux, Deleuze 521


doras de visões e de audições não-lingüísticas, o que faz deles, atra- que impele Deleuze, por exemplo, a encontrar eM Proust as forças
vés de suas palavras, coloristas e músicos. Esse movimento culmina pelas quais este se opõe à filosofia, para extrair daí a inspiração para
em um derradeiro texto em que Deleuze, voltando pela última vez a uma nova maneira de tratar a própria filosofiat7. Eis o sentido de umR
Espinosa, subverte as distinções anteriormente estabelecidas entre arte certa identidade, postulada aqui, entre Michaux e Deleuze (Deleuze
e filosofia, a ponto de fazer com que vibre, em uma "terceira Ética", e Guattari). Não se trata, como se faz tão frequentemente, de preten-
através do "prodigioso livro V", uma reviravolta análoga àquela que der fundar a realidade de uma obra literária em conceitos filosóficos
tornava necessárioaproximar Michaux de Espinosa, para qualificar que permitiriam, em uma relação de exterioridade, designar-lhe uma
melhor o plano de imanência e a velocidade do conceito próprios à verdade mais objetiva e que ela seria impotente para dizer. Trata-se
pilosofia D menos ainda faltando para isso tanto a realidadecomo o desejo
Seria falso objetar que deslizamentos como esses concernem mais metafísico -- de uma dessas altivas conjunções pelas quais se cele-
a Deleuze do que a Michaux, e às incertezas da filosofia mais do que bram, através de encontro mítico entre Char e Heidegger, as núpcias
às transformações da literatura e da poesia, um movimento único, o da filosofia com a poesia, cada qual comungando com a outra as al-
mesmo que já percorre o século XIX -- dos românticos de lena, de turas de seu mistério18. De modo mais simples (a influência, se é que
Schlegele Novalis a Kierkegaard e depois a Nietzsche--, torna-se a existe,indo do escritor ao filósofo), reconhece-seatravés da proximi-
questão do século, que se segue na França, por exemplo, através de dade dos termos afluxo e multiplicidade, por exemplo19, mas também
Breton, Artaud ou Bataille.Um movimentocomo essevincula-seà ne- dobra ou passagem,sombra ou velocidadeou linha), e mais ainda do
cessidade de uma confrontação direta e integral com o pensamento pensamento, uma preocupação comum à poesia-literatura e à filoso-
como estiloe como arte, violênciae buscado desconhecido.Confron- fia: entrar em uma cumplicidade, em uma confusão de bordas ainda
tação que se tornou -- na França, pelo menos, em algumasgrandes desconhecidas-- até talvez se contaminar, a ponto de encontrar, nesse
obras, em Merlau-Ponty, Foucault, Deleuze, ainda que ao sabor de
necessidadesclássicas de especificidade -- própria à filosofia, mesmo
que pela força de uma relação obrigatória, e cada vez mais estreita,
estabelecidacom as artes e a literatura; a tal ponto que a filosofia i7 Eis a estreita correlação que liga Pro sf ef /esslgnes (a primeira edição,
induz à imagem ativa de seu próprio deslocamento16.É a obsessão pela PUF, data de 19641 e "A imagem do pensamento", capítulo central de Dize
renda e rePefíção. Sobre a relação entre Proust e Michaux -- que foi para esse úl-
timo uma referência importante --, cf. Luc Fraisse, "Proust et Michaux: assonances
profondes", Rez/aed'Hísfoire Lftfércz/rede /a Fra/zce,n.' 2, 1995.
Spinoza et les trois éthiques", CriffqKe ef c/ínfque, Paris, Minuit, 1993, i8 Assim como no famoso "Entretien sous le marronier", sob cujos galhos
especialmente pp. 183-7. Deleuze distingue, assim, nas três Éfícízs, os signos ou Jean Beaufret percebe "dois Diferentes de mesma raça, ambos marcados por uma
abetos, as noções ou conceitos e as essências ou perceptos. Somente esses últimos fulgurantesolidão" j"René Char", L'arc, n' 22, verão de 1963, p. 7). Essa entre-
são dotados de velocidade absoluta atribuída ao conceito em Qu'esí-ce q e Za vista foi retomada no título dos estudos críticos das (EHZ/resde Char na edição da
pbí/osopbíe?, enquanto o conceito se torna afetado, nesse texto de Critique ef PJéfade, cuidadosamente organizada pelo próprio poeta. Ver também, no dossiê
c/í?z/que,por uma velocidade relativa. Percepto é, por outro lado, um dos dois ter- René Char de À4czgazíne
l,Ifférafre(n' 340, de fevereirode 1996), Patrick Née, "Le
mos que servem (juntamente com abeto)para circunscrever, por oposição ao con- dialogueChar/Heidegger", e Jean Beaufret, "A lalisiêredeslavandes", apresenta-
ceito, o plano de composição da arte no livro anterior. do por Frédéric de Towarnicki.
ió Mesmo que em termos que ainda supõem repartições estritas entre cam- i9 Esses dois termos centrais do Afztf-Édlpo e de MÍ/ P/afãs aparecem juntos
pos, essa relação foi ressaltada por André Pierre Colombat: "Le philosophie criti- no posfácio de P/ume: "0 verdadeiro e profundo fluxo pensante se faz, sem dúvi-
que et ponte: Deleuze, Foucault et I'ouvre de Michaux", Frenc# Foram, XVI, 1991. da, sem pensamento co zsclezfe"; "Falsa simplicidade das verdades primeiras jem
A "velocidade-Michaux" também foi colocada como o modo mais seguro da lei- metafísica) seguidas por uma extrema multiplicidade, que se tratava de veicular"(pp.
tura de Deleuze, por Pratice Loraux, em sua intervenção no colóquio consagrado 218 e 220). Ou a "expartição" de Michaux setornandoa "desterritorialização"
a Deleuze, "lmmanence et vie", ocorrido em Paria de 25 a 27 de janeiro de 1997. de Deleuze-Guattari.

522 Raymond Bellour Michaux. Deleuze 523


movimento, não uma resposta ou uma centelha obscura, mas ao me- BARROCOLÜDIO DELEUZEANO
nos uma maneira de melhor se afinar com a univocidade do ser20,cujo Haroldo de Campos
alegre tormento lhes é comum.

Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz

Em meu breveartigode ] 955, "A obra de arte aberta"Í, formu-


lei uma previsão programática em favor do que chamei, lá àquela
altura, "neobarroco" ou "barroco moderno". Transcrevoo trecho
pertinente:

"Pierre Boulez, em conversa com Décio Pignatari, ma-


nifestou o seu desinteresse pela obra de arte 'perfeita', 'clás-
sica', do 'tipo diamante', e enunciou a sua concepção da obra
de ízrte ízberla, como um 'barroco moderno'
Talvez esse neobarroco, que poderá corresponder in-
trinsecamente às necessidades morfológico-culturais da ex-
pressão artística contemporânea, atemorize, por sua simples
evocação, os espíritos remansosos, que amam a fixidez das
soluções convencionadas.
Mas esta não é uma razão 'cultural' para que nos re-
cusemos à tripulação de Argos. Ê, antes, um estímulo no
sentido oposto."z

A invocação a Pierre Boulez, ao jovem Boulez -- "Boulez, le vio-


lent" --, então o líder polêmico da vanguarda musical francesa e da
nova música, em termos mundiais (com o alemão K. Stockhausen, os
italianos Bário e Nono e, numa outra extremidade do leque, o ameri-
cano John Cage), tinha como pressuposto o interesseque os poetas
concretos brasileiros,Augusto de Campos, Décio Pignatari e eu, nu-
tríamos pelos rumos experimentais da música pós-serialista de linha
weberniana, por um lado; por outro, nossa admiração comum pelo
poema'constelar de Mallarmé, U/z coz/P de dés jpoema que acabei por
"trans-criar" em português). Quando, em 1954, o jovem Boulez este-

io Ver Di#érence ef réPéfiríon, pp 387-9. Essa univocidadeque se concilia


com a "diferença individuante" ("Uma única e mesma voz para todo o múltiplo 1 Diário de São Pazí/o,03/07/55; Correio da À4anbã, Rio de Janeiro, 28/04/56
com suas mil vias, um só e mesmo oceano para todas as gotas, um só clamor do
Ser para todos os entes.") é evidenteem Michaux. 2 Teoria da poesia co/zcre]a,São Pau]o, ]nvenção, ] 965, p. 31.

524 Barrocolúdio deleuzeano 525


Raymond Bellour
ve no Bntsil, como diretor musical da Companhia Teatral Jean-Louis que se debruçou sobre Mallarmé, Ponge, Joyce e Jabés; do próprio
Barrnult/MadeleineRenaud, com ele tivemos um encontro no ateliê Sartre, que, antes deles, se deteve, com agudíssimosenso crítico, so-
do pintor Waldemar Cordeiro (líder do Grupo Ruptura, 1952, um dos bre Mallarmé, Ponge,Nathalie Sarraute, entre outros, Gilles Deleuze
pintoresconstrutivistas de São Paulo), durante o qual Augusto mos- se dedicou, constantemente, à abordagem de questões de arte: cite-se,
trou-lhe os originais, datilografados, em cores(cada cor definindo um no campo da poesia, já em Lógica do senffdo (1969), a fundamental
timbre fonte-semântico), dos poemas da série poef.zme/zos (1 953), ins- leitura de Lewis Carrol, com estágios em Mallarmé e Antonin Artaud;
pirados no princípio da K/angÁarbe/zme/adie,de Webern; eu, de mi- mencione-se o livro de 1964, Prousf e os slgzzos;o estudo sobre Ka/&a:
nha parte, Ihc perguntei: "Há algum músico francês contemporâneo por z/m.zJiferat ra menor (com Guattari, 1975);as instigantesrefle-
empenhado em fazer uma composição sobre o Coam de dés?" (ao que xões sobre cinema -- Cinema ] =A imagem-mouimenlo (1983j; Ci/le-
Boulez me respondeu prontamente: "Moi!"); Décio, embarcando para ma 2: A imagem-temPO11985), reflexõesque, entre nós, despertaram
uma permanência de dois anos na Europa, pouco tempo depois desse a atenção apaixonada de Julio Bressane, o mais culto e sofisticado de
encontro paulistano, teve a oportunidade de conviver em Paris com o nossos diretores de vanguarda, autor desseesplêndido "concerto bar-
autor de l,e À4arfe síznsMaífre (1 952-54)*, vendo-ocom freqüência roco" para o olho e luz que é Os Sermões do Padre Á/zfõ/zioV/eiríz
e participando das atividades e das polêmicas públicas do grupo que jum filme-invenção no qual, segundo o cineasta carioca: "tudo se tra-
promovia os concertosdo "Domaine Musical". Quanto aos desenvol- duz, tudo se dobra e desdobra, chega à borda e desborda"3).
vimentos dos temas abordados naquele primeiro encontro (que cau- Pois bem, em P/l, Gilles Dcleuze retoma, sob a égide de Leibniz,
sou surpresa não pequena a Boulez, cujo primacial interesseestava, a dobra mallarméana -- e, não por acaso, foi o desdobrar dessado-
justamente,na conjunção radical Webern-Mallarmé), considere-se,por bra, na recepção da modernidade, que propiciou a reconsideração de
um lado, a Trolsiême Sonora (1957), para piano, com seus percursos Gângora (o rejeitado "Príncipe das Trevas" dos manuais conservadores
aleatórios delineados em cores diversas; por outro, tenha-se em conta de literatura espanhola), segundo afirma Hans Robert Jauss, o pro-
o fato de que, se Boulez não veio a escrever uma composição musical pugnador da "Estética da recepção", em Lfferafzírgescblcbfe a/s Pro-
baseada na partitura verbo-ideográfica do CouP de dés, a verdade é uokation+ :
que introjetou estruturas sintáticas mallarméanas na sua técnica de
compor ("forma aberta" e "acaso controlado"), seja na própria so- "So hat erst die dunke lyrik Mallarmés und seiner
nata acima referida, seja no ciclo de cinco peças para instrumentos e Schule den Boden für die Rückwendung zu der seit langem
voz soprano, denominado P/{ se/on P/i (compreendendo "Don", "Tom- nicht mehr geachteten und darum vergessenen Barochdich-
beau" e "Três improvisações sobre Mallarmé"). tung und im besonderenfür die philogischeNeuinterpre-
E aqui chego ao momento de articular esta introdução aparen- tation und 'Wiedcrgeburt' Gongoras bereit." *
tementediversiva com o tema destesimpósio. P/i se/onP/i do so-
neto "Remémoration d'amis belges", a dobra mallarméana que obra Observe-se que Deleuze retoma o p/f mallarméano em paralelo
e se desdobra da dobra -- é o emblema sob o qual Gilles Deleuze es- à "monade aux multiples feuillets" de Leibniz, à manada concebida à
creveuum de seuslivros mais belos c mais provocativos -- .4 dobra:
Lelbnlz e o Barroco. Integrado na tradição fortemente atenta às ino- 3 Folha de S. Pavio, 07{02J93.
vações literárias da filosofia francesa contemporânea -- à semelhan- 4 Frankfurt am Main, Surkhamp, ]970, p. 193; 1' ed., Universitãtsverlag
ça de Foucault, que se ocupou de Roussel e de Mallarmé; de Derrida, Konstanz, 1967.
* "Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que
preparou o terreno para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia
* Cantata de câmera do compositor Pierre Boulez a partir de poemas de René barroca e, em particular, para a reinterpretação filológica e o 'renascimento' de Gõn-
Char. {N. do E.) gora." Tradução brasileirade Sérvio Tellaroli, São Paulo, Ática, 1994. IN. do E.l

526 Barrocolúdio deleuzeano 527


Haroldo de Campos
maneirade uma "capela barroca", cujo mármore interior se deixa É mais do que uma simplescoincidênciao fato de que, nessa
percorrer de venaturas dedálicas. constelaçãoargumentativa deleuzeana,que passa pela praga dà pli-
E essa retomada "barrocolúdica" não se dá de maneira neutra e catura mallarméana e se deixa reinvestir na "condição barroca" leib-
ornamental, como exercício virtuoso de erudição filosófico-literária, niziana (para Deleuze, "le pli est sans doute la notion la plus impor-
datado no tempo, mas como intervençãoatualíssimaque, revendo o tante de Mallarmé, non seulementla notion, mais plutât I'opération,
passado com os olhos sincrónicos do presente, segundo a perspectiva I'acte opératoire, qui en faia un grand ponte baroque" * ); que transita
da "história descontínua", objeto de "construção", proposta por Wal- ainda pelo "caosmos" joyceano; é mais do que uma mera coincidên-
ter Benjamin ("Ê irrecuperável, arrisca-se a desaparecer, toda imagem cia o fato de que, nesse enredo constelar, se engaste como fecho o nome
do passado que não se deixe reconhecer como significativa pelo pre- de Pierre Boulez, o músico que teorizou produtivamente a integração
sente a que visa."I, ilumina o recorrido diacrónico com o fulmíneo do aleatório no processo compositivoo. Um músico que, não por aca-
instantâneo da "agoridade" Uezzfzeif), toma partido ( "crítica parcial", so, mas por afinidade "caósmica", avalizava com sua concepção da
diria Baudelaire, a única que Ihe interessava; "quem não é capaz de obra aberta, acessívela múltiplos percursos, "antidiamantina", minha
tomar partido deve calar-se", completaria W. Benjamin, "A técnica proposta de 1965 no sentido de um "neobarroco" como prospecto de
do crítico em treze teses"). Traslada-se assim, empenhadamente,do poesia, proposta apresentada num breve artigo que, precedendo de
Barroco como modo operatório histórico, para o Neobarroco, enquan- cerca de seis anos a Obra aberta de Umberto Eco, foi objeto do se-
to prática semiótica contemporânea que "cita" o passado, retradu- guinte comentário, da parte do notável semioticista italiano: "E pois
zindo-o -- trans-configurando-o -- no contexto do presente, não por curioso que alguns anos antes de eu ter escrito Obra aberta, Haroldo
assimilação pura e simples de dois distintos entornos históricos, mas de Campos, num pequenoartigo, tivesseantecipadoos temasdesse
por metonímia, pelo reconhecimento de traços, de linhas de força con- livro de maneira assombrosa, como se ele houvesse escrito uma rese-
tíguas e não-contíguas, por rastros dispersos, mas afins, que se defi- nha do volume que eu não havia escrito ainda e que escreveria sem
nam reger pela infinitude da dobra dobrante, pelo P/l /lz#/zl: ter lido o seu artigo. Mas isto significa que certos problemas apare-
cem de modo imperioso em um dado momento histórico, deduzindo-
"Viendra le Néo-baroque, avec son déferlement de se quase que automaticamente do estado das pesquisas em curso."'
séries divergentes dana le même monde, son irruption d'in- A contribuição filosófica de Deleuzeao debate do Barroco e do
compossibilités sur la même scêne, là ou Sextas viole ef ne Neobarroco foi enfocadaagudamentepor Walter Moser, destacado
viole pas Lucrêce, oü Cegar franchit et ne franchit pas le
Rubicon, oü Fang tue, est tué et ne tue pas ni n'est tué. L'har-
em que Fang mata, é morto, e não mata nem é morto. A harmonia, por sua vez,
monie traverse une crise à son tour, au profit d'un chro- atravessa uma crise, em proveito do cromatismo ampliado, da emancipaçãoda
matisme élargi, d'une émancipation de la dissonance ou dissonância ou de acordes irresolutos, não alçados à tonalidade. O modelo musi-
d'accords non résolus, non rapportés à une tonalité. Le mo- cal é o mais apto para fazer com que se compreendam os montantes da harmonia
dêle musical est le plus apte à faire comprendre la montée no Neobarroco: do fechamento harmónico à abertura da politonalidade ou, como
de I'harmonie dans le Néo-Baroque: de la clâture harmo- diz Bou[ez, uma 'po]ifonia de polifonia'." (N. do E.)]
nique à I'ouverture sur une polytonalité, ou, comme dit Bou- * "A dobra é provavelmente a noção mais importante de Mallarmé; não só
lez, une 'polyphonie de polyphonies'."5 a noção mas, antes, a operação, o ato operatório, que faz dele um grande poeta
barroco." (N. do E.)

6Ver meu ensaio de 1963, "A arte no horizonte do provável", no livro de


5 G. Deleuze, Le P/í: l.efb?zlzef /e Baroque, Minuit, 1988, p. 112. ["Virá o
mesmo título, São Paulo, Perspectiva, 1969.
Neobarroco com suas velas desfraldadas de séries divergentes no mesmo mundo,
com sua irrupção de incompossibilidadessobre a mesma cena, no ponto em que 7 Cf. Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, prefácio do autor à edição brasi-
Sexto viola e não viola Lucrécio, em que Casar atravessa e não atravessa o Rubicão, leira, 1968.

528 Haroldo de Campos Barrocolúdio deleuzeano 529


teórico da literatura e comparatista de origem suíça, radicado no Ca- elaboração. Mas algo precisa ser dito, desde logo. Parece-me necessá-
nadá, professor da Universidade de Montreal8. Avaliando em parale- rio assinalar a importância da intervenção deleuzeana no vivo do de-
lo os contributos de Christine Buci-Glucksmann, de amar Calabrese bate estético e crítico da arte e da literatura contemporânea. Na cena
e de Guy Scarpetta,9 Moser sublinha nesse confronto, sobretudo em cultural brasileira, especialmente, onde o Barroco foi alvo de um "se-
relação aos dois últimos teóricos mencionados, a radicalidade da pro- questro" historiográfico ("seqüestro" no sentido conferido ao termo
posta deleuzeana. Esta consistiria, para Moser, no gesto de "inventar por Mário de Andrade, que Ihe deu equivalência às noções freudianas
o Barroco", ou mais exatamente, de inventar um "conceito operató- de reÓozílemenl, Verdrãnguzzg, "repressão", " recalque"; Sub/ímfer /zg,
rio" capaz de estender o raio de incidência multidisciplinar e o âmbi- 'sublimação"), as idéias provocativas de Gilles Deleuze são um estí-
to historizável do Barroco, sem perda de sua especificidade. O con- mulo à reflexão e ao debate. Sobretudo quando está sendo repristinada
ceito em questão seria justamente o de P/i, tal como está anunciado já entre nós, a propósito da questão do Barroco, a concepção de um sócio-
nos primeiros parágrafos do livro de Deleuze: filólogo ultraconservador, o copioso Guido Morpugo-Tagliabue, au-
tor, há mais de quarenta anos, de um longo ensaio sobre a retórica
Le Baroque ne renvoie pas à une essence,mais plutât aristotélica e sua pro)eção no século barroco, ensaio que se caracteri-
à une fonction opératoire, à un trait. ll ne cesse de paire des za pela recarga erudita de citações greco-latinas e pela singular in-
plis. ll n'invente pas la chose: il y a tous les plis venu d'O- compreensãodo fenómeno estéticodo Barroco; ensaio que situa seu
rient, les plis grecs, romains, romans, gothiques, classiques... autor no pólo oposto de um estudioso notável como Luciano Anceschi
Mais il courbe et recourbe les pais, les pousse à I'infini, pli e de um alto poeta como Ungaretti, dois dos mais eminentes respon-
sur pli, pli selon pli. Le trait du Baroque, c'est le pli qui va sáveis pela revalorização da poesia barroca na Itália.il Ao reeditar em
à I'infini." * 1987 o seu prolixo ensaio sobre o Barroco, por ele caracterizado como
a "neurose social do Seiscentos", Tagliabue acrescentou-lheum ou-
Nesta breve comunicação, não me é dado alongar-mesobre o tro trabalho, cbmpendiando uma crítica igualmenteincompreensiva
assunto10.Reservo-me para um trabalho mais demorado, em curso de ao "Neobarroco", cuja mera possibilidadede emergêncianegacom a
mesma obstinação de quem se opusesse a refutar, por critérios de teo-
8 Refiro-me ao ensaio "Baroque and Neo-Baroque: the emergenceof a post- ria aeronáutica, o vâo do besouro no momento mesmo em que este
modern canon", versão inédita, apresentada de forma abreviada em colóquio pro- Ihe circungira a testacontumaz. O "neoclássico" êmulo italiano do Es-
movido pela Universidadede Brasília e publicado sob o título "Versões do Barro- tagirita tem inspirado em nosso meio um crítico de empostação reto-
co: moderno e pós-moderno", na revista Sociedadee Estado do departamentode ricista, cujas concepções se distinguem pela estrita circunscrição do
sociologia da referida universidade, vol. Vlll, n' 1/2, jan.-dez. 1993.
Barroco ao seu contexto da época (o contexto correspondente ao "pú-
9 Respectivamente,La rafson baroq e; de fraude/abreà Ben/amfn, Paris, blico do tempo", privilegiado, por exemplo, na sociologia da litera-
Galilée {Débats), 1984;L'efà pzeob.zrroca,Bati, Laterza, 1987; L'fmp ralé, Pauis, tura "reducionista" de Robert Escarpit), sem nenhuma abertura à pos-
B. Grasset, 1985.
sibilidade de novas leituras, de novos "cortes sincrónicos" ("concre-
* "0 Barroco não remete a uma essência, mas antes a uma função operató- tizações", na terminologia do tcheco Vodiéka) operados sobre a suces-
ria, a um traço. Ele não pára de fazer dobras. Ele não inventa a coisa: há as do
sividade diacrónica, ao longo da "recepção estética" IJauss). Infiltrado
bus vindas do Oriente, as dobras grego-romanas, românicas, góticas, clássicas...
Mas ele dobra e redobra as pregas, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra de Po/IticaJ correcfness retrospectiva (ou seja, regida por critérios ideo-
após dobra. O traço do Barroco é que a dobra vai ao infinito." (N. do E:)
io Gostaria de travar, por exemplo, uma cordial discussão com certas pas- lí As limitações da visão do Barroco pela óptica mopurgo-tagliabuesca já
sagensdo último livro de Luiz Costa Lama,Vida e mfmesls,Rio de Janeiro, Edito- foram apontadas, entre outros, pelo próprio Anceschi, pelos estudiosos Giuseppe
ra 34, 1995, que tive a satisfação de prefaciar, sem deter-me neste ponto, lateral Conte, preste Macro, A. G. Berrio e mesmo por J. A. Maravall, em mais de um
ao que então pretendia expor. passo de sua análise de cultura do período.

530 Haroldo deCampos Barrocolúdio deleuzeano 531


1(3gicose culturais de hoje e, pois, "anacrónicos" na sua aplicação do que evocar, no paralelo falsamenteaproximativo, o conceito de
retrocessiva), esse crítico -- ou essa intervenção crítica -- se volta, no "neoliberalismo", que não se remete pelo prefixo ao século do Barro-
mesmo compasso de Tagliabue, contra o "Neobarroco" (manifesta- co, mas, sim, ao Oitocentos, século do capitalismo montante, do libe-
ção literária que, em Nossa América, tem sido particularmente notá- ralismo vitoriano e do Romantismo, como também das histórias lite-
vel em Cuja, com Alejo Carpentier, Lezama Limo e Severo Sarduy -- rárias positivistas, de orientação teleológica, linear-evolutiva. O di-
o segundo dos quais definiu apropriadamenteo Barroco em sua di- versionismo argumentativo se explica não só pela animadversão a uma
mensão ibero-americana como "arte da contraconquista", num ensaio tendência estética, reconfigurada contemporaneamente em novos mol-
que fez época, Líz expresfózzamericana12). O criticismo acadêmico a des e com novas motivações, mas no fato curial de que, no recessodos
que me refiro assume empostação sócio-retoricista c professa ambição arraiais acadêmicos, é sempre mais cómodo dirigir os petardos dispo-
estreitamente historizante (serão "considerações exteriores", segundo níveis contra os "deletérios" escritores e artistas renovadores (que soem
juízo emprestado de Tagliabue, todas aquelas que não respondem a perturbar a paz sepulcraldos seminárioscurriculares), do que tomar
um conceito linear de história, de marcos temporais "objetivamente' posição diante do real, da praxis efetiva,ou seja, no caso, diante dos
definidos de uma vez por todas, embora o próprio discípulo brasilei- neoliberais" de carne e osso, beatificados pela "boa-consciência" de
ro do neopreceptista italiano se apresse em declarar contraditoriamente gaacbe, vale dizer, daqueles políticos que hoje regem os destinos de
que sua análise, por delimitada historicamente que o seja, não é "mais nosso país no plano administrativo e económico, imprimindo-lhe rumos
z/erdadelrzzpor isso, nem sequer z/erdadefra, mas outra"; o que não o que nada têm a ver com uma subversiva "arte da contraconquista",
impede, no entanto, de tachar de "a-históricos" e incapazesda "mí- mas, sim, e antes,com a obsequiosaanuência(dada por "conjuntural",
nima pretensão analítica" os discursos críticos que não correspondam no nível do discurso suasório) ao chamado "consenso de Washington
ao seu ideal historicista de "linearidade" e clausura temporal, discur- Sobre essa prática retórica (e factual), o epígono brasileiro de Morpur-
sos que descarta como meras "considerações exteriores"...). go-Tagliabue nada tem a dizer, bastando-lhe a satisfação íntima (e os
Quanto ao "Neobarroco", no afã de impugnar as manifestações eventuais louros acadêmicosl de ter "desmascarado" o ROVO...i'
estéticasque explodem perturbadoramente diante de seu podlum pro-
fessoral (na literatura, nas artes plásticas, no teatro, no cinema, no
vídeo), parte, primeiro, para negar qualquer originalidadeao Barro-
co histórico ("Ao poeta barroco nada repugna mais que a inovação...";
origina/idade nos dois significados principais do termo, 'autoria' e
novidade', é critério duplamente exterior à poesia barroca"); vai en-
tão ao extremo de recorrer maliciosamentea paralelos arbitrários,
totalmente destituídos de critério de pertinência, para desqualificar
ideologicamente as manifestações "neobarrocas". Assim, o neo-re-
toricista brasíiico justapõe a esseconceito (do qual se reclamam tan-
tos autores de nossa América, e não apenas de Cuja) o de "neoli-
beralismo". A manobra argumentativaconsiste em apoiar no prefixo
fzeo, industriosamente enfatizado, o símile pejorativo "neobarroco"/
"neoliberalismo". Ora, para um crítico de profissão de fé historicista
e que se alardeia adversário do "anacronismo", nada mais fora de lugar
i3Ver Jogo Adolfo Hansen, A safira e o e?zgelzbo:
Gregário de JUdIase a
DÚbIado sécu/oXVll, São Paulo, Companhia das Letras, 1989; "Pós-moderno e
Barroco", São Paulo, Cadernos do Mlesfrado, do Departamento de Letras da UERJ,
12Havana, Instituto Nacional de Cultura. 1957. 1992)

532 533
Haroldo de Campos Barrocolúdio deleuzeano
O CINEMA DO PENSAMENTO
PAISAGEM, CIDADE E CYBERCIDADE
André Parente

para Raymond e Christa

Deleuze costuma agenciar múltiplas linhas, saltando entre elas,


fazendo-as bifurcar ou convergir, mas semprese perguntando onde
fazer passar a linha, pois toda a determinação de um problema depende
disso. Em "Carta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem"l,
ele sobrepõe três linhas distintas para pensar a situação da arte na
sociedade de controle: os conceitos imagem-moz/Imensoe imagem-tem-
PO, os três períodos do cinema descritos por Daney e as finalidades
da arte segundo Alols Riegl: embelezar a natureza, espiritualizar a
natureza e rivalizar com a naturezas

Na primeira linha, o cinema surge como enciclopédia do mundo:


o que bá para z/erpor trás da imagem? O que há para ver é o mundo
como janela aberta pelo cinema, que embeleza a natureza, mesmo se
o "borrar" Áaz parte da imagem. A montagem é a arte do cinema e
faz variar o esquema sensório-motor, integrando os centros de indeter-
minação e as linhas do universo numa totalidade orgânica, anima
mundo. Mas esse desejo de embelezar o mundo foi capturado pelo tota-
litarismo de Hitler e de Hollywood, que transformaram a alma do
mundo num cortejo de autómatos desalmados. A arte das massas logo
se revelou como programação das massas, reprodução da vida e da

l "Carta a SergeDaney: Otimismo, pessimismoe viagem" foi escrita como


prefácio para o segundolivro de SergeDaney, Cine-/Durma/(Cabiersda Cinema,
1986). Daney foi um dos principais críticos do Cabfers d Cfmémaao longo dos
anos 70 e 80. Durante seus cursos sobre cinema, entre 1982 e 1985, Deleuze não
parava de chamar a atenção para a força de Z.a rampa (1983), que segundo ele es-
tava, juntamente com l.'bomme ordlnafre d ci éma(1980), deJean-Louis Scheffer,
entre os mais interessantes livros de cinema.

2 AloÍs Riegl é, juntamente com Fiedler, Wõlfflin e Hidelbrand, um dos au-


tores da Escola de Viena. Riegl criou um método muito original para fazerda his-
tória da arte uma história da cultura. Os conceitos de Kunsfwo//elz(vontade de
arte) e de Vo/ksgelst(espírito de um povo) são exemplosdisso. Cf. Grammafre
üfsforiq e des arfa p/asffqaes. Paria, Klincksieck, 1 978.

O cinema do pensamento. Paisagem, cidade e cybercidade 535


cultura, como espetáculo total que culminaria na guerra como a maior mentam, formando uma grande cartografia da subjetividade e de seus
encenação, onde a cidade-cinema hollywoodiana vence a cidade-teatro múltiplos universos: cognitivos, afetivos, sensíveis, discursivosJ
hitleriana.
PRIMEIRO PONTO: DA PAISAGEM
Com a crise desta primeira linha, o cinema se torna pedagogia do Num texto de indizível beleza, intitulado "Da paisagem"4, Rilke
mundos será que podemos sustentar com o olhar o qae de todo modo distingue três tipos de paisagem que são verdadeiras formas de subje-
z/amos?E um cinema de videntes. Os personagens do cinema -- a mon- tividade que poderiam se integrar perfeitamente a essa cartografia ci-
tagem, a narração, os componentes da imagem -- vão se metamorfosear tada: na Antiguidade a paisagem-corpo tem como função embelezar
e desencadear um processo de espiritualização do mundo no mais alto a natureza; na Renascençaa paisagem-pafbosespiritualiza a nature-
grau de intensidade. É todo um cinema da imagem-tempo que vai se za; na Modernidadea paisagem-spafiumaparececomo pura plasti-
desenvolver. Mas a enciclopédia do mundo e a pedagogia da imagem cidade indiferente à natureza.
logo desmoronam em prol de uma profissionalização do olho: é a tele- Na Antiguidade, a paisagemera uma cena vazia que não exis-
visão, como técnicaimediatamentesocial, como consenso social-téc- tia, que não tinha sentido algum enquanto o homem não aparecesse,
nico, que emerge como o fim da arte das imagens-tempo. animando-a com a ação serena ou trágica do seu corpo. A paisagem
Uma terceira linha se delineia, a nova questão agora não é mais era vista pelo olhar previnido do homem que relaciona tudo com ele
a de uma porta-janela apor trás da qual...), nem tampouco a de um mesmo: "desconhecida era a paisagem que não fosse relacionada à ação
quadro-plano jno qual...) mas a de uma mesa de informação sobre a do homem sobre ela; desconhecida a montanha em que nenhum deus
gwa/as imagens deslizam indiferenciadas. Como se inserir nas imagens, com rosto de homem morasse; desconhecido o promontório onde não
uma vez que o fundo das imagens (b07s-cbamp) já é uma outra ima- se erguesse nenhuma estátua visível à distância. O homem era ainda
gem? Como passar entre as imagens, se o interstício das imagens se novo demais, estava por demais encantado consigo mesmo para diri-
cristalizou numa imagem clichê que nos impede de ver as que vêm de gir o seu olhar para outro lugar longe de seu corpo
fora Ideborsj? Como construir um plano de imanência, traçar uma Na Renascença louvava-se, com a terra, o céu, mas isso era feito
linha de fuga, se o mundo passou a fazer cinema, nos impedindo de com tanta dedicação que a pintura se torna um hino à natureza, "pois
pensar um fora que não seja, desde sempre, capturado pelo clichê?
Na "Carta a Serge Daney", Deleuze faz uma espécie de recapi-
tulação da sua classificação das imagens e signos cinematográficos e 3 Citamos apenas duas das várias periodizações realizadas por Deleuze e
lança alguns temas que já anunciam a idéia de uma sociedade de con- Guattari. Deleuzedistinguiu, a partir da obra de Foucault, três regimessociais--
sociedades de soberania, sociedades disciplinares e sociedadesde controle --, cada
trole (termo inclusive utilizado pela primeira vez nesse momento). um dessesregimes apresenta uma formação subjetiva. Guattari fez uma classifica-
Gostaríamos de retomar a linha traçada por Deleuze e fazê-la birfurcar ção das diversas eras dos equipamentos coletivos de subjetivação: era da cristan-
em direção a três pontos de singularidade que podem nos possibilitar dade europeia, era da desterritorialização capitalista dos saberes e das técnicas e
pensar uma redistribuição das séries. era da informatização planetária. Cf. G. Deleuze, Foacan/f, Paris, Minuit, 1986;
A sociedadede controle", in Conversações,Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992; F.
Antes de mais nada, é preciso dizer que Deleuze tinha o gosto pela Guattari, "A produção de subjetividade", in André Parente (org.), Imagem-À4á-
guina, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993.
história universal. E a retomada da periodização de Riegl -- para quem
a história da arte se confunde com a história do pensamento -- é, para 4 Cf. Rainer Mana Rilke, "Von der Landschaft", in Samflicbe W'erre, Funfter
Band, Frankfurt am Main, Insel-Verlag, 1965, pp. 516-22. Trata-se de um texto
Deleuze, nessemomento, uma forma de enunciar o que estava apenas
póstumo. Provavelmente é uma das versões do prefácio do ensaio escrito por Rilke
implícito em Cinemízí e 2, a saber, que este livro se apresentacomo em 1902 sobre os pintores de Worpswede -- Fritz Mackensen, Otto Modersohn,
uma história do pensamento através do cinema. A partir de Ànfi-Édl- Fritz Overbeck, Hans Am Ende e Heinrich Vogeler --, onde eleviveu entre 1900
PO, Deleuze e Guattari criam diversas periodizações que se comple- e 1902, tendo se ligado profundamente à escultora Clara Whesthoff.

536 André Parente O cinema do pensamento. Paisagem, cidade e cybercidade 537


a piedade profunda é como a chuva: sempreretorna à terra, da qual que se confunde com as funções geométricas da linearidade, da circu-
proveio, como bênção que faz florir os campos". Pouco a pouco, a laridade e a linha partida e redobrada ao infinito da banda de Moebius.
paisagem se torna arte "como pretexto para a expressão de um senti- O filme comporta três movimentos de comera. Os longos frcz-
mento humano, parábola de uma alegria, de uma piedade e de uma ue//i/zgs,as panorâmicas circulares e os movimentosbrownianos. Os
profundidade humana quase indizível". primeiros são funcionais e motivados pelo espaço, enquanto os segun-
Mais tarde, e de forma imperceptível,o pafbos se dissipa e se dos são puramente formais. Existe ainda um terceiro tipo, em que tanto
retira, e a paisagem vai ganhando autonomia. O homem começa a a câmera como os personagens fazem percursos aleatórios e indepen-
sentir a paisagem como uma coisa distante, diferente dele, como uma dentesuns dos outros, sobretudo no final do filme, quando a cidade
realidade de que não toma parte e que está aí, radicalmente fora, uma se desgovernae produz uma verdadeira coreografia browniana.
realidade que não tem sentidos para nos perceber, realidade indiferente. As vozes do filme formam uma relação triádica complexa: a de
SÓentão o homem pede compreendê-la. "E mais tarde, quando o ho- Lemmy Caution preencheo papelde narrador clássico, idênticaà sé-
mem entrou nesse ambiente como pastor, camponês, ou simplesmen- rie televisiva à qual o filme pertence, e constitui uma narrativa linear.
te figura no fundo do quadro, ele havia perdido toda presunção e via- A voz feminina de Natacha, assume o papel de narrador na seqijência
je que ele não queria ser nada além de uma coisa, colocado entre as em que ela recita os versos de Paul Éluard5, interrompendo a seqüen-
coisas como uma coisa. cialidade narrativa, e criando uma circularidade literal entre o que é
A belezado texto de Rilke provém do fato de que eletem êxito dito e o que é mostrado.
em descrever a história da paisagem como uma profunda cartografia A voz de Alpha 60 é múltipla. Como Proteu, Alpha é puro simu-
da subjetividade, seguindo o mesmo movimento utilizado por Deleu- lacro: elese mostra se escondendo,e se escondese mostrando. Cada
ze em Ci/gema ] e 2. É assim que o interesse da paisagem se desloca aparição sua é uma possibilidade de resposta local e uma impossibili-
progressivamente. De acessório, mais ou menos comandado pela ação, dade de resposta global. Linha partida, fractal, da narrativa de Alpha.
ela se torna jardim das delícias, portadora de um sentimento indizí- Proteu é água, pantera, fogo. Mas quem é Proteu, quando ele não é
vel. Pouco a pouco a paisagemse torna o prazer de olhos distraídos, mais rio, e ainda não é tigre ou fogo? No final de A/pbaul/Je, o im-
em seguida a impressão e a sensação a carregam: de uma ímagem- piedosocomputador Alpha 60 cita, com sua voz rouca, uma frase de
percePção, passamos a uma imagem-aÁefoe daí a um puro percepfo. Borges, que poderia ser um começo de resposta: "o tempo é a subs-
Para Rilke, a paisagempura é a única coisa capaz de revelar a nature- tância mesma da qual sou feito. O tempo é o rio que me carrega, mas
za humana na qual o homem se instala: trata-se de percePfos puros, eu sou o rio: é o tigre que me rasga, mas eu sou o tigre: é o fogo que
ou de paisagens não-humanas da natureza. me consome, mas eu sou o fogo"ó

SEGUNOO PONTO: AI,PH,4V/LLE, A CAPITAL, OA DOR


A/praz,í/le é o primeiro filme de Godard a combater o mundo da 5 Sobre o sistema de citação de Alpbat/f//e,e em particular as citações da
informação. Trata-se de um filme serial, virtual, que se atualiza sob três poesia de Paul Éluard, ver a belíssima tese de Mariana Otero, "Valeurs de la poésie
formas distintas e nos permite recolocar a tríade deleuzeanacitada so- dana A/praz/i//e" de Jean-Luc Godard, dissertação de maífrise orientada por Marie-
Claire Ropars Wuileumier, Universidade de Paris-Vl11,1985.
bre uma Guita forma: cidade/corpo, cidade/natureza, cidade/cérebro.
A cada série ou linha do filmecorresponde uma figura geométrica 6 Jorge Luis Borges, "Nueva refutaüión del tiempo", Obras como/elas (1923-

emblemática: a linha, o círculo e a banda de Moebius. Essas figuras 72), Buenos Aires, Emecé, 1974. Lembramos que em A/pbapiZle, Godard faz uma
série de citações tiradas deste texto de Borges, entre elas a famosa frase de Scho-
se repetem ao longo do filme sob a forma de sinais e grafismos da cida-
penhauer, que afirma que só o presente existe: Nadie ba Fluido en e/pesado, nadfe
de: flechas, círculos, semi-círculos, a letra alpha, o símbolo do infini- viverá en e! futuro: el presente es la forma de toda vida... Sobre o tempo como
to e o número oito. É todo o filme, em sua montagem, em sua narra- multiplicidade de aparência e o mito de Proteu, ver Michel Serras, Genàse, Paria,
tiva, em seus movimentos de câmera, em suas vozes, em seus gêneros, Grasset, 1982, pp. 33-6.

538 André Parente O cinema do pensamento. Paisagem, cidade e cybercidade 539


A voz de Alpha é pura virtualidade e não se confunde com suas praz,llle são autómatos cujos gestos e pensamentos são controlados à
múltiplas atualizações: voz de motorista de táxi, voz de conferencis- distância pelo cérebro eletrânico, Alpha 60.
ta, voz de recepcionista, voz de máquina. Quando fala, ele não é nem
um, nem outro; voz que está dentro somenteporque está fora, à dis- TERCEIRO PONTO: BERLIN CYBER CITA
tância sem distância, porque não pode se encarnar: não pode se fixar Os sistemas de realidade virtual são dispositivos de visualização
num substantivo de majestade. Ela pode tomar emprestado a voz de de imagens de síntese que traduzem tudo o que o espectador faz, sen-
um personagemqualquer, ou mesmo criar a função híbrida do me- te e pensa em motricidade. São ambientes construtivos de ação, que
diador -- como quando ela interroga Lemmy Caution --, ela que ar- nasceram visando o aprimoramento do desempenho da ação militar.
ruína toda mediação, ela que é sempre a diferença-indiferençaque A teleologia da investigação dos sistemas de interface interativas visa
destrói o caráter pessoal de toda voz: puro interstício que impede que complexificar e agilizar os esquemas sensório-motores e aumentar o
o filme se constitua enquanto totalidade7 grau de ilusão de realidade das interfaces. Para o usuário da realidade
O próprio título do filme é tríptico. O primeiro é .4/pbat/f//e.O virtual, perceber é agir virtualmente sobre algo.
segundo, seu subtítulo: Uma at'enfada de l,emmy Caafíon. Enfim, o O programa de realidade virtual de Monika Fleischmann, Ber/in
terceiro remetea Alphaville como nome de cidade: CáFIla/ da dor, livro caber cify9, desloca o uso dominante dos sistemas de realidade virtual
de Eluard tantas vezes citado, e que também aparece no filme. e potencializa a imagem-cérebro-cidade. Trata-se de usar a realidade
.4/praz/i//eé um policial de série B -- mais uma aventura de Lem- virtual para interferir no processo de representação do espaço urbano.
my Caution, série de televisão interpretada por Eddie Constantine Ela parte da constatação que o muro de Berlim caiu, mas ainda persis-
cujos ingredientes ele parodia: perseguições, universo noturno, peso te como imagem virtual mental petrificada. Berlln caber cfO faz coexistir
da fatalidade, amor à primeira vista entre o detetive-espiãoe a mu- duas imagensde Berlim: a atual, presente, sem muro, e a Berlim virtual,
lher que poderia ser seu pior inimigo. petrificada na memória. A idéia é a de que a realidade virtual se dê como
41pbaul//eé um filme mítico, que espiritualiza o mundo e a arte. abertura nas imagens petrificadas, que impedem as pessoas de verem
Se por um lado ele remetea um tempo histórico, em que o fascismo as que provêm de fora. Tudo se passa como uma paramnésia invertida:
disciplinar hitleriano se mistura aos modernos sistemasde controle da o virtual como /amais z/a.Na paramnésia, o a4a z/nnão é um passado
cidade-cérebro, por outro lado ele remetea um tempo imemorial, nesse real que retorna; o passado é um puro virtual que a memória introduz
sentido cm que os fragmentosdo livro de Éluard, Á capa/a/dzzdor, em tempo real e que se torna indiscernível do presente atual da percepção.
emergem aqui e ali como de um tempo que nunca foi presente. O que o espectador sente ao se liberar de uma imagem real petrifi-
No momento mesmo em que o amor é desnudado, cm que as pa- cada o faz viver um evento em imagem: "Um evento em imagem", diz
lavras se lideram da imagem e a memória do passado, o filme nos pro- Blanchot, "não é ter desse evento uma imagem, nem tampouco atri-
feta num tempomítico, porque fonte do mito, da poesia e do olhar: é buir-lhe a gratuidade do imaginário. O evento, neste caso, tem verda-
como Orfeu que Lemmy Caution rapta Natacha da noite de A/pbaui//e8. deiramentelugar, e no entanto, terá lugar verdadeiramente? O que
Á/pbau/l/e é também uma ficção científica na qual o homem e a acontece apodera-se de nós, como nos empolgaria a imagem, ou seja,
sociedadesão rivalizados pela alta tecnologia: os habitantes de A/- nos despoja, dele e de nós, mantém-nos Fora, faz desse exterior uma
presençaem que o 'Eu' não 'se' reconhece."iu
9 Em um texto inédito intitulado "Cibercidade" analisamos algumas insta-
7 Trata-se aqui de uma paráfrase do texto em que Blanchot define oque ele lações e projetos multimídia L'aulobus, Legib/e cily, Cizy pro/ecl, BrasÀ41ffe e
chama o "il y a" da narrativa neutra. Maurice Blanchot, "La voix narrative lle 'il', Visoranza, entre outros -- que produzem imagens da cidade com a utilização das
le neutrej", l,'enfrelfen in#/zl,Paris, Gallimard, 1969, pp. 564-6. novas mídia.
8Cf. Made-Claire Ropars-Wuilleumier, "La forme et le fond ou lesavatars io Maurice Blanchot, "As duas versões do imaginário", O espaço Jilerárlo,
du récit", ÉfKdes CI/zémarograpblqaes,n' 50/51, 1967. Rio de Janeiro, Rocco, 1987.

540 André Parente O cinema do pensamento. Paisagem, cidade e cybercidade 541


O VIRTUAL COMO LAMA/S VU É preciso lembrar que o virtual é uma categoria estética que se
A paramnésia é um sintoma interessante que nos ajuda a enten- apresenta sempre como recriação de um real recalcado, de um real
der essa situação, na medida em que nos permite compreender o vir- confundido com suas representaçõesdominantes, independenteda
tual como categoria estética e técnica ao mesmo tempo. Por exemplo, técnica ou da tecnologia. Os grandes teóricos do cinema contempo-
em Virilio e Baudrillard, as tecnologias do virtual se impõem como o râneo e das novas tecnologias,ao mesmo tempo precursorese discí-
último rival da natureza: estética da desaparição que substitui o real; pulos de Deleuze, trazem à tona as disfunções das imagens emergen-
estética do hiper-real que despotencializa o real; buraco negro que tes: SergeDaney, com a idéia de maneirismoscínemalográ/!cos,con-
aniquila o referente... A velocidade da eletro-ótica,sua instantaneidade vulsões provocadas pelo encontro cinema/imagem eletrânica; Raymond
e ubiqiiidade, introduz um desdobramento do real que equivale a um Bellour, com à idéia de entre-imagens, hibridização das técnicas rom-
estado de paramnésia: ao real anual se acrescenta um real virtual. um pendo as fronteiras do analogizável; Pascal Bonitzer, com os desefzqz4a-
real em espelho que vem substituí-lo em tempo real. Aqui a paramnésia dramefzfos, disfunções que fazem o cinema encontrar a pintura perdi-
é como um protótipo de visão artificial em tempo real, caverna de da; PhilippeDubois, com a /macemtremida, movimento de hibri-
Platão eletrificadall. É como se a experiência do real fosse capaz de dização entre fotografia e cinema. Cada um a seu modo descobre, por
ameaçar a experiência do possível, é como se o mundo pudesse ser trás das alianças, que o cinema estabelececom as novas imagensum
anestesiado pelo efeito de sua reprodutibilidade técnica. novo elemento que emerge das disfunções do cérebro: um o/bo infer-
Por outro lado, é como se a paramnésia, como deficiência psico- mináz,e/(Jacques Aumont), uma c/ar.zbóla do inPfzffo rNoêl Burchl que
cerebral, disfunção das coordenadas do cérebro, fizesse intervir uma podem liberar o pensamento, com o risco de o sistema de controle fazer
indiscernibilidade no circuito de linearidade Ideslize metonímico) e de dessenovo elementoa sua clínica sócio-técnicaij
circularidade (deslize metafórico), criando circuitos rizomáticos que Deleuzenão pára de recriar uma estéticado cérebro recorrendo
vão alterar a linguagem e o pensamento, o corpo e a tecnologia, e ao que em Kierkgaard e Nietzscheabala a moralidade da linguagem,
positivar as novas funções emergentes.Os agramaticalismos (entre eles em Leibniz e Bergson supera a generalidade do conceito, em Foucault
o discurso indireto livrej12 vão produzir uma gagueira no pensamen- e Blanchot dissolve o sujeito do pensamento. Nessa estética, o virtual
to, que se torna ilógico, alucinatório, porque se faz pensamento de um não se confunde com o que, no pensamento, funda a linguagem e suas
outro; o corpo perde a ancoragem do sensório-motore cria posturas cadeias significantes, o conceito e suas regras de significação, o sujei-
e atitudes que vão exprimir um novo teatro do pensamento; a tecno- to e seus jogos de poder, a imagem e seus circuitos cerebrais dominan-
logia é deslocada de suas coordenadas de controle, a partir de certas tes. Para nós, tratava-se de mostrar, através de um texto de Rilke so-
disfunções, e vai interagir com novos circuitos noéticos e estéticos. bre a história da paisagem, um filme serial de Godard sobre a cidade
Enfim, é aí que a arte moderna encontra uma certa idiotia do real: como da informação, e um programa de realidade virtual sobre Berlim, que
extrair das deficiências do cérebro, da linguagem, do corpo e da tec- o importante é detectar forças de resistênciaque infletem o poder. Para
nologia a possibilidade de traçar novos circuitos de pensamento? nós o virtual é uma abertura que nos permite exprimir esse combate,
essa luta do pensamento e da linguagem contra o que, no pensamen-
to e na linguagem, é ao mesmo tempo poder e servidão.
ii Sobre a idéia do virtual como uma caverna eletrificada,ver "A imagem
virtual, auto-referente", Image/zs,n' 3, Campinas, Unicamp, 1994. Nesse texto.
tentamosfazer uma espéciede genealogiado virtual e mostrar que existem pelo
menos três diferentes concepções do virtual.

lz Em Crlflq e ef c/llzfque,Deleuze leva até as últimas consequências a ideia í3 Serge Daney, Dez/anf /a reco descende des saca à mala, Paria, Aléas, 1991
de que todo grande artista e toda grande obra são feitos em uma espécie de língua Raymond Bellour, Entre-fmages, Paris, La Différence, 1990; Pascal Bonitzer, Déca-
estrangeira, uma nova língua, cheia de agramaticalidades, gagueiras e disfunções, drages, Paras, Éditions de L'Étoile, 1987; Jacques Aumont, L'oe// fnfe mflzab/e, Paria
capazes de criar novas conexões cerebrais e novos agenciamentos coletivos Librairie Séguier, 1989; Noêl Burch, l.a / carne de /'iK/inf, Paria, Nathan, 1991

542 André Parente 543


O cinema do pensamento. Paisagem, cidade e cybercidade
CINEMA DELEUZE
Julgo Bressane

As conchas são os ossos do oceano, disperso esqueleto, des-


vago", escreveGuimarães Rosa em "Aquário",
estamos em maio de 1954.
é minha travessia na água-viva,
sorvo e inflamo Deleuzecomo flor colhida num sonho,
Jerõnimo lutador no deserto,
argonauta do [rans e observador do des
lo temívelprefixo que transtorna o radical!),
passageiro clandestino do fora-do-lugar.
Espinosao Barroco NietzscheCarroll Proust Kafka Bergson
Artaud Godard:
busca da inspiração como outros se obstinam em receber o raio.
Tudo o que pode ser entendido é plebeu",
arriscou um letrado com escárnio...
Além do escárnio, há a idéia de que o que se propõe ao entendi-
mento é dominado pelo sinal-signo, gema
no sentido da sepultura, do finito, do passado, perdido, esgotado
de um corpo que cai, Verffgo...
Compreender com Gilles Deleuze significa desentender-se.
Pelo corpo que ele traça,
o desenho de seu pensamento escapa à vala comum dos sistemas,
transpassa com sua visão de inseto sensível
todas as ficções, todas as facções,
simultaneamente.
Vasta rede no interior da qual circula a eletricidade dos sentidos.
Homem-mosca ou aranha sagrada,
semelhante sem semelhante.
A cena barroquizante de sua escrita contrátil, tátil transmuta
todos os ares
para vir devorar o sonho da crisálida
e ser assim por rapto o olho-idéia móbile que se movimenta em
contraponto

Cinema Deleuze 545


em diferentes linhas de fuga e de ataque, O célebre cinza luminoso da escola francesa.
instantaneamente. Duas luzes qt4ese alternam: a solar e a lunar.
Deleuze,
filósofo-criador,
criador e filósofo. Cinema-Deleuze.
fez do cinema um meio de investir o sentido da superfície Pois Deleuze fez filmes.
contrariando a profundidade clássica da filosofia. Um delescontém todos os filmes de Losey, sem se superpor a
Cineasta radical, ele é o homem dos olhos de raio X nenhum deles.
do cinema dos circuitos conexões disfunções agenciamentos São vários foPof de Losey, reinventados, remontados em outro
em curto-circuitos cerebrais. circuito.
Cinema-crise, de epilepsia rigorosamente controlada. Uma mulher nua desce uma escada...
Sangue de um poeta, de Michaux ou de Ghérasim Luca... Pântano de pulsões e de fragmentos convergentes, eis a imagem
de uma alta falésia plana, pot;Dada de grandes pássaros, de helicópte-
ros, de esculturas inquietantes, enquanto em baixo jaz uma pequena
Um pensamento, uma mirada que atualiza o cinema, localiza sua cidade uitoTiana.
complexidade em seus murmúrios metafísicos. Anatomia de um crime, plano a plano:
Como liberar a imagem de todos os seus clichês? a) através de uma alta falésia plana: imagem recorrente, riocor-
Q«e o cinemaent« em relação«inda com out«s fo.ças. Que ele rente, em muitos filmes de Losey, como zoom/, Modesly B/alga;
se abra para as revelaçõespoderosas e diretas da Imagem-tempo (cro- bl povoada de grandes pássaros: é o caso de Doam!, Cerfmõnia
no-signos), da Imagem !egíuel (tecto-signos) e da Imagem-pensamen- secretas
to (noo-signos}. cl de helicópteros: Figures in czl,andscape (os helicópteros são
Deleuze sente que o cinema é um organismo intelectual quase grandes pássaros e esculturas inquietantes); Tbe Damzzed (a escultura
demasiadamentesensívelque faz fronteira com todas as artes, todas inquietante e o helicóptero surgem no mesmo enquadramento);
as ciencias, d) de esculturas inquietantes:é lugar comum em Tbe Damned,
e com a própria vida. Eua, Blind Date, Trotsky;
Nõmade, tudo o transpassa. el enquanto em baixo jaz uma pequena cidade vitoriana: certa-
Corpo-máquina, conecta-secom todo o universo. menteTbe Go-Befwee , e ainda 7'üeGipsy and lbe Ge/zf/íman.
Cinemancia, expõe-se,imprime-sediretamenteno devir. Mas o "jaz uma pequenacidade" é quase todo o cinemade Joseph
Luz-Enquadramento: um arrasta o outro num fluxo circular que Losey: The Boy with Green Hair, TuleLawless, The Big Nigbt, The
deixa no fotograma granulado um sinal, uma nódoa: mancha-pensa- S/eepi/zgTlger, Tbe Criminíz/: mundo das origens, fim do mundo, usura,
mento de um cinema que se insurge e surge degradação, besta humana.
como um cometa em coma. E nessedomínio em que a Imagem-abetoe a Imagem-açãonão
O que diz Deleuze da luz (sim, porque o que há antes de tudo é podem representar
a luz -- herança de outra fronteira: a pintura. A luz, sua compreen- surge a Imagem-pulsão,
são e sua apreensão. Sua primazia.): ela rasga, desarticula o próprio tempo...
tudo existepara o movimento, até a luz. É uma desmontagem-remontagem da mancha Losey.
Há no cinema um luminismo onde a luz vale por si própria. Mas Por escolha e mistura de verdadeiros foPol visuais,
)ustamente o que ela é para si própria é movimento, puro movimento expressãode um movimentodo espírito transformado em
de extensão que se realiza no cinza. imagem.

546 Julio Bressane Cinema Deleuze 547


É um cinema inatual, novo. SOBRE OS AUTORES
Iene pertenceà tradição do novo, que elecontra-efetua.)
Cinema do cinema.
Ele fez outros filmes: com Dreyer, Bresson, Hitchcock ( "a câmera
desvelada": o enquadramento, o movimento de câmera que manifes-
tam relações mentais. Não é câmera-olho, mas olho-espírito, cinema-
vidência onde a descrição substitui o obtetol, com Orson Welles, so-
bretudo. RENA SCHÉRER
Ele foi o primeiro cineasta filósofo. Filósofo, professor emérito da Universidade de Paris VIII. Autor
L a primeira vez. de obras sobre comunicação, fenomenologia, infância e sobre Charles
Porque os filósofos não se ocuparam do cinema, mesmo quan- Fourier. Ultimas publicações: Pari snr /'impossib/e, Paria, PUF, 1989;
do o freqiientavam, Zeus bospifa/le7-,
Paras,Armand Colin, 1993; Uropiesnomades,Pa-
por um temor de precedência: ris, Séguier, 1998; Regatas sur De/auge, Paris Kimé, 1998.
pois a filosofia estava por si só ocupada numa tarefa análoga à
do cinema.
Pâr movimento no pensamento, como o cinema o põe na imagem. ARNAUD VILLANI
Se há toxicófago e taxicófago em Gilles Deleuze, ele o deve ao Professor de filosofia no Liceu Massena de Nice. Publicou diversos
cinema. artigos de filosofia em revistas, além de poemas e traduções de poe-
Durante mais de quarenta anos, ele viu nos filmes, filmes que sia. Autor de Ka/&a: l,'ouz/e7'furede /'exista/zt,Paris, Belin, 1984; e de
ninguem viu. um ensaio sobre Gilles Deleuze: La guêpe ef /'orcbfdée, Paris, Belin,
Pensou cinema quando este foi desprezado por intelectuais e 1999. Colaborou em: Nozzz/e//es /ecfz/resde Nielzscbe, Lausanne, L'Age
acadêmicos. d'Homme, 1985; Le Cemeau, Grenoble, Jérâme Millon, 1989; HÓ/der-
Com ele, o signo cinematográfico contaminou a filosofia. If#, Paris, Cahier de I'Herne, 1989; Procês ef réa/ifé, de A. N. White-
SÓ wma Honrada de a fe pode nos sd/ucz7
-- escreve, sentencioso, head, tradução, Paris, Gallimard, 1995.
o filósofo da imanência.
Clhamado selvagem a duas ou três coisas de um deserto vermelho.
LUIZ B. L. ORLANDI
Filósofo e professor da Universidade de Campinas. É autor de:
A uoz do intervala\ e de Falares de malquerença= O fio da metamor-
fose (no prelo), uma coletânea de ensaios escritos ao longo de quinze
anos sobre a obra de Gilles Deleuze. Traduziu para o português Á
dobra: l,eib/zlze o Barroco, Campinas, Papirus, 1991, e, com Roberto
Machado, Dfáe7'onçae rePeffção, Rio de Janeiro, Graal, 1988.

JosÉ Gil
Professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa e corres
pondente do Colégio Internacional de Filosofia. Publicou, entre ou
arostítulos: Á froPO/orla de//eÓorze,Milão, Einaudi, 1983; Mélam07.

548 Julio Bressane Gilles Deleuze:Uma Vida Filosófica 549


pbosesd# coros, Paris, La Différence, 1985; Ferzza/zdoPessoa, ozzLa Supérieure (ENS-Ulm). Publicou, entre outros títulos: l,'érre ef /'éz/éne-
méfbapbysfq e des sensafio/zs, Paris, La Différence, 1988; Mofzsf2'0s, memf,Paria, $euil, 1988; Condífions, Paris, Seuil, 1992; 1,'étbfque, Pa-
Lisboa, Quatzal, 1994; Á imagem/zuae as peq e/zaspercepções,Lis- ris, Hatier, 1993; De/ewze:La c/ameur de /'êfre, Paris, Hachette, 1997;
boa, Relógio d'Água, 1996. SaflztPau/: l,a Áo/zdaflonde J'wfziz/esa/isme. Paras, PUF, 1997; Cozzrf
f aifé d'onlo/ogle Iransifofre, Paris, Seuil, 1998; Pefif ma/zue/d'lneslbé-
fique, Paris, Seuil, 1998; Ábrégé de mélapo/Ifique,Paria, Seuil, 1998.
PETER PÃL PELBART No Brasil, publicou Para uma Mofa teoria do swjfeifo,trad. Emerson
Professor de filosofia na PUC de São Paulo; trabalha como te- Xavier da Silva e Gilda Sodré, Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1994.
rapeuta Junto a psicóticos em um hospital-dia. Publicou: Da c/auswra
do cora ao cora da c/ausurcz,São Paulo, Brasiliense, 1989; e Á naw do
fem/70-rei,Rio de Janeiro, ]mago, ] 994. É autor da tese O temPOnão- GIORGIO AGAMBEN
reconciliado: Imagens de temPO em Deleuze. Professor da Universidade de Verona. Autor, entre outros títu-
los, de EnÁance ef blsfoíre, Paria, Payot, 1989; Lczcoram naafé q f
z/le/zf,Pauis, Seuil, 1990; Le /angage ef /a mora, Bourgeois, 1991;
JEAN-CLET MARTIN Moyens san /;n, Paris, Rivages, 1995; Bartleóy oa /a Créaffon, Circé,
Doutor em filosofia e autor de: Varfaffons: l.a pbi/osopbfe de 1995; 1Íommo sacar, Paria, Seuil, 1997.
G///es De/ez/ze,Paras, Payot, 1993; Oss abres: Ánafomie d# moyen-
'2ge7'0main,Paris, Payot, 1995; L'lmage z.'frrue//e,Kimé, 1996. Van
Gogb: L'oei/ des cbose, Paria, Synthelabo, coleção Les Empêcheurs de DÉBORAH DANOWSKI
Penser en Rond, 1998. Professora de filosofia na PUC do Rio de Janeiro. Autora da tese
de doutrorado Nafwreza/acaso: a cofzti/agênciana/i/osoÓa de Daz/fd
Numa, defendida na mesma universidade em 1991.
JEAN-LUC NANCY
Professor de filosofia na Universidade de Strasburgo. Últimas
publicações: Tbe birra fo presa/zce,Stanford, Stanford University Press, GÉRARD LEBRUN
1992; Le sonsd# monde, Paris, Galilée, 1994; Les m ses, Paria, Galilée, Antigo professor da Universidade de São Paulo e da Universida-
] 996; fíege/: l,'i/zqulél de d n({gcztlÉParis, Hachette, 1997; La naissance de de Aix-en-Provence. Publicou, entre outros títulos: Kanf ef /a Pfz
des sons, Collection 222, 1997. de /a méfapbysique, Paris, Armand Colin, 1970; La paffencedu con-
cePf, Paris, Gallimard, 1972; O avesso da dia/érfca, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 1988. É autor de numerosos artigos, entre os quais:
FRANÇOIS WAHL 'Notes sur la phénoménologie dans Les mofa ef /es cboses", in À4ícbe/
Ex-coordenador da coleção L'Ordre Philosophique, Seuil. Publi- Foucaz{/fpbi/osopbe, Paris, Seuil, 1989; "Devenir de la philosophie",
cou: /nlrodwcffo a dlscours da lab/eau, Paris, Senil, 1996. Está pre- in Noflo/zs de pbf/osop#fe /IJ (Denis Kambouchner, org.l, Paras, Galli-
parando um estudo sobre a fenomenologia sob a crítica do discurso. mard, 1995. Gérard Lebrun faleceu em dezembro de 1999.

ALAIN BADIOU SCARLETT MARTON


Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Pa Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São
ris Vlll durante vários anos, atualmente é professor da École Normale Paulo. Publicou, entre outros títulos: Niefzscbe: Uma /;/oso/la a mízr-

550 Éric Alliez jorg.l Gilles Deleuze:Uma Vida Filosófica 551


fe/abas, São Paulo, Brasiliense, 1982; Nierzscbe; Das /alças cósmi- VÉRONIQUE BERGEN
cas aos ua/aresó manos, São Pauta, Brasiliense, 1990; Niefzsc#e: A Está escrevendouma tesede doutorado sobre a ontologiade-
fra/zsmufação dos z,a/odes,São Paulo, Moderna, 1993. É autora de di- leuzeana, a ser defendida na Universidade Livre de Bruxelas; é cola-
versos artigos publicados em revistas especializadas, entre os quais: boradora regular de diversas revistas de filosofia e literatura. Autora
"L'éternel retour du même: thêsecosmologiqueou impératif éthique?", de/ean Genes: Entre myfbe ef éa/Ifé, Boerk Université; e de três an-
Niefzscbe Sr die/z,n' 25, 1996. tologias de poemas: Entres, B7'ú/e7Je pêra qzízznd/'enáazzfdorl, am-
bos por La Lettre Volée, e de l,'obsidia zerêde/'obscKr, no prelo.

ÉRIC ALLIEZ
Professor convidado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro BENTO PRADO JR.
de 1988 a 1996, fundador do Colégio Internacional de Estudos Filo- Professor da Universidade de São Paulo (1960-69); affacbé de
sóficos Transdisciplinares e coordenador da coleção Trans, da Editora recbercbe no CNRS (1969-74); professor da PUC de São Paulo (1975-
34. Entre 1992 e 1998, foidire mr (ü propamme no Collêge International 77); e professor da Universidade Federal de São Carlos desde 1977.
de Philosophie, em Paris. Atualmente, é professor no Institut für Publicou, entre outros títulos: Presença e camPO franscedenra/: Cons-
Kulturphilosophie da Akademie der Bildenden Künste, em Viena. cfêncfa e negaízufdade na P/oso/i(z de Bergs07z,São Paulo, Edusp, 1989;
Livros traduzidos no Brasil: Tempos caP/tais,t. 1: Re/arosda Alguns ensaios: Filosofia, literatura, psicanálise, São Pau\o, M.ax
conqalsfa do temPO,pref. de Gilles Deleuze e trad. de Mana Helena Limonad, 1985; Erro, ilusão, /owcura, no prelo.
Rouanet, São Paulo, Siciliano, 1991; A assinar ra do mundo: O qz/e
é a /i/oso/za de Deleaze e Gzlaffarl, trad. de Mana Helena Rouanet e
Bruma Velar, São Paulo, Editora 34, 1995; Da impossfbi/idade da Áe- ISABELLE STtNGERS
,'omenologia: Sobre a filosofia francesa contemporânea, ttad. de Ra- Filósofa, professora da Universidade Livre de Bruxelas. ultimas
quel de Almeida Prado e Bento Prado Jr., São Paulo, Editora 34, 1996; publicações: CosmoPO/fliques, 7 volumes, Paris, La Découverte, co-
Deleuze: Filosofia virtual {em A.nexos=G. Delenze, o aludi e o uirtual}, leção Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1997-98; Sele/icesef pouuofr,
trad. de Helosia B. S. Rocha, São Paulo, Editora 34, 1996. Paras, La Découverte, 1998.
últimas publicações: Les [emPS caP]faux, t. ]], vol. ]: ],'éfaf des
cboses, Pauis, Cera, 1999; (com G. Schõder, org.) À4ezamorpbosezzder
Zeil, Munique, Wilhelm Fink Verlag, 1999; (com E. von Samsonow, FRANÇOIS ZOURABICHVILI
org.) Te/e/zela:Krlllh de7'ulrt e/JenBi/der, Viena, Verlag Tuna + Kant, Doutor em filosofia, diretor de programa no Colégio Internado
1999 nal de Filosofia. Agr(igé de filosofia e responsável por cursos na Uni-
É editor responsável pelas Oeuz/res de Gózbfle/ Tarde, Paris, Sa- versidade de Paris VIII. Publicou: De/e ze: U e pbf/osopbie de /'éué
nofi-Synthelabo, coleção Les Empêcheurs de Penser en Rond. zzemenf,Paris, PUF, 1994.

DAVID LAPOUJADE MICHAEL HARDT


Agrégé e doutor em filosofia, ensina na Universidade de Paris X- Professor assistente na Universidade Duke (EUA). Autor de: Gi//es
Nanterre. Publicou: "Le flux intensivede la consciencechez William De/euze: A/z apprezzficesblp i/zpbl/osopóy, Minneapolis, University of
games", Pbilosophie, n' 46; William Jades: Empirismo et pragmatismo, Minnesota Press, 1993; e, com Antonio Negri, l,ab07'o/Dlonys s: A
Paris, PUF, 1997. criffc o/' tbe Sf.zfe-/orm, Minneapolis, University of Minnesota Press,
l qqd

552 Éric Alliez {org.l Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica 553
FREDRIC JAMESON EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Professor de literatura comparada e diretor do Programa de Lite- Antropólogo, professorde antropologiasocial no Museu Na-
ratura da Universidade Duke IEUA). Últimas publicações: Posfmoder- cional desde 1978; professor visitante da Universidade de Chicago
pzlsm, or lbe c /lzlla/ /ogic o//afe mPIZa/fsm, Duke, Duke University Press, j1991l; professor honorário da Universidade de Manchester (1994);
1993; S(gnalures o/fbe z/lsió/e,Londres e Nova York, Routledge, 1992; pesquisador visitante na École des Hautes Études en SciencesSociales
Tbe secas o/[fme, Columbia, Co]umbia University Press, ] 995. e no Laboratório de Etnologia e Sociologia Comparativa da Universi-
dade de Paria X(1986, 1987, 1989, 1995). Publicou, entre outros Ei-
to\os: From tbe enemy's point oft/iew: Hamanity and diuittity in Âma-
RENATO JANINE RIBEIRO go/ziazzsoclefy, Chicago, Chicago University Press, 1992; nestaobra,
Professor de ética e filosofia política no Departamento de Filo- discorre sobre suas pesquisas etnológicas na Amazânia indígena des-
sofia da Universidade de São Paulo. Publicou dois livros sobre Thomas de 1975
Hobbes (A marca do Lez,fala e Ao leitor sem medo, um livro de en-
saios filosóficos (A zí/famarazão dos 7'efs)e vários artigos, dos quais,
em francês: "Thomas Hobbes: Philosophie premiêre, théorie de~+a SUELY ROLNIK
science ct politique", Paras, PUF, 1989; "Rétif et Michelet", l,es É/udc'9 Psicanalista c professora da PUC de São Paulo, onde coordena o
Rélíz/íennes,n' 11, 1989; e "Révolution, souveraineté, histoire: La Centro de Estudos Pós-Gradilados sobre Subjetividade em Psicologia
complicité de trois concepts", em Vovelle (org.), L'fmage de /a Réz/o- Clínica. É autora de: Carlograáía se/ztime?zfa/:
Transformações confem-
/ flozzFrançafse, 1989. Organizou o colóquio Recorc&zrFoucau/f, cujas por.incas do dose/o,São Paulo, Estação Liberdade, 1989; e, com F.
ates foram publicadas em 1985. Guattari, Mlcropo/alga: CarfogrízPas do desejío,Petrópolis, Vozes,
1985. Coordenou, com P. P. Pelbart, o número especial De/euze dos
Cadernos de S b/efípfdade,São Paulo, PUC, 1996. Tradutora de À41/
JOHN RAJCHMAN P/afãs, vo1. 3, Rio de Janeiro, Editora 34, 1996.
Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), mem-
bro do conselho editorial de diversas revistasde arte e arquitetura (Arl-
Óorzlm,'4fzy, entre outras). Algumas de suas publicações traduzidas para JOEL BIRMAN
o francês: &í]cbel rouca Zr:],a/ibe é de sauofr, Paras, PUF,] 987; 1,'é70rf- Psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Uni-
que de !a uérité: Fotlcault, Lacar et la qaestion de I'étbique, Par\s, PUF, versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professor associado
1994. Organizou, com C. West, l,a pe/zséeamé lcaine co/zfemPorai?ze, da Universidadedo Estado do Rio deJaneiro. últimos livros publica-
Paras, PUF. É autor de diversos livros em vias de publicação, em inglês: dos: Por ma esf{/Êficada exlsfê/zela,São Paulo, Editora 34, 1996;
Gi/ZesDeleKze: Tbe pb//osopby, Cambridge, Cambridge University Press; Estilo e modernidade em psíca á/ise, São Paulo, Editora 34, 1997 e
Braizz-cify: Dlag7am íznd dias/zosls, Nova York, Monacelli; e, com E. Carfogr.z#as do Áen/Hino,São Paulo, Editora 34, 1999.
Balizar, Frencbpbf/osopbysíncefbe Wa7',Nova York, The New Press.

EDUARDOA. VIDAL
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS Psicanalista, membro da escola Letra Freudiana, no Rio de Ja
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Uni- negro.
versidade de Campinas e membro diretivo do Conselho da Comissão
Pró-Yanomani ICCPY). É autor de vários ensaiose livros, entre os
quais: 7'empade e/zsaio,São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

554 Éric Alliez jorg.) Gilles Deleuze:Uma Vida Filosófica 555


PASCALE CRITON HAROLDO DE CAMPOS
Compositor e musicólogo, cbargé de recue cães no IRCAM Poeta, tradutor, ensaístae crítico literário, foi, nos anos 50, um
j1989-911e no Laboratório Ondas e Acústica do ESPCI (IP93-971. dos fundadores do movimento internacional de poesia concreta. Pro-
Membro do conselhoeditorialda revista Cbfmê7'es.última publica- fessor visitante nas Universidades de Austin e Yale, professor emérito
ção: Introdução a La /oi de /a Pa/zsonorifé, de lvan Wyschnegradsky, da PUC de São Paulo, autor de mais de trinta obras, entre as quais:
Genebra, Contrechamps, 1996. 7'Corja da poesia cofzcrefíz,São Paulo, Duas Cidades, 1975 inova edi-
çãol; À'tela/Inguagem, São Paulo, Cultrix, 1976 [nova edição]; Ga/(í-
xlas, São Paulo, Ex-Libris, 1984; A educação dos cí/zcose/zffdos,São
JACQUES RANCIÊRE Paulo, Brasiliense, 1985; Os me/bofespoemas de litro/do de Cam-
Professor de estética no Departamento de Filosofia da Universi- pos, São Paulo, Global, 1992.
dade de Paria VIII. últimas publicações: Les /zoms de /'blsfo/re: Essas
de poéflqae dzzsaz/olr, Paria, Seuil, 1992; La mése fende: Po// íq e ef
Pbitosopbie, Paria, Ga\i\ée, 1995 ; Mallarmé: La polittque de la sirene, ANDRÉ PARENTE
Paris, Hachette, 1996; La }zulfdes pro/éfafres, Paris, Sayard, Arc#ll,es Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coor-
du rêz,eouz/fiar,Poche Pluriel, 1997 [reedição], (Á noite dos proZefá- dena o Programa de Ensino e Pesquisa sobre Comunicação e Tecno-
rios, São Paulo, Companhia das Letras, 1988); e, com J. L. Comolli, logia da Imagem. Em 1987, defendeu sua tese de doutorado, Narrar/z//zé
.4rrêf szlrbfsfolre, Paria, Centre Georges Pompidou, 1997; Áz/x borda ef non-narra lz/ifé#!mlques, no Departamento de Cinema da Univer-
dz/ PO/f iq e, Paris, La Fabrique, 1998; 1,a paro/e m erre, Paras, Ha- sidade de Paris Vlll, sob a orientação de Gilles Deleuze. Organizou duas
chete, 1998; 1,a cbair des mofa, Paria, Galilée, 1998; Po/bicas da es- obras coletivas: Yasu/fro Ozu: O exfra07'di/báriocfneasla do cofidia-
crita, São Paulo, Editora 34, 1995. no, 199Q e Imagem máquina: A era das tecnologias do virtual.

RAYMOND BELA.OUR JULIO BRESSANE


Pesquisador, escritor. Coordenador de pesquisas do CNRS, em Cineasta e escritor, nascido no Rio de Janeiro, em 1946, dirigiu
Paris. Interessa-sepor literatura romântica (irmãs Brontê, Écrils de mais de quarenta filmes, entre os quais: À4úzfoz/
a Família e Foi ao Ci-
/eunesse, Pauvert, 1972 [Laffont, 1992j; A]exandres Dumas, À4ade- nema; O Anjo Nasceu ; Memórias de um Estrangulados de Loiras; Ago
molse//egai//of/ne,Paris, La Différence, 1990) e contemporânea (He#ri nia; O Monstro Caramba;O Rei do Barulho; Gigante da América; Tabu;
Micbazfx, Paris, Gallimard, 1965 [coleçãoFolio, 1986], preparação da irás Cubas; Sermões; O Mízndarim. Atualmenteestá preparando um
edição da Plélade). Interessa-setambém por cinema ILe mesfer/z,Alba- filme sobre São .jerânimo.
tros, 1979 [Calmann-Lévy, 1996]) e, principa]mente, pe]os pontos de
contato, passagens e regimes mistos de imagens -- pintura, fotogra-
fia, cinema, vídeo, imagensvirtuais --, assim como pelas relaçõesentre
a palavra e a imagem (exposição Pczssagesde /'fmage, 1989; Entre
imagens, Campinas, Papirus, 1 997; /ean-l,nc Godard; Sonlmage, Nova
York, MoMA, 1992). Participou em 1991, com Serge Daney, da cria-
ção da revista de cinema Tra/ic.

556 Éric Alliez jorg.)


Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica 557
COLEÇAO TRANS Jacques Ranciàre
direção de Eric Altiez Políticas da escrita do saber, opondo a toda imagem dogmática
do pensamento a urgência insistente de um
Jean-Pierre Faye
Para além do mal-entendido de um pretenso "fim da filosofia" intervindo A razão /zarraffz/íz
pensamento dissidente -- para resistir ao pre'
no contexto do que se admite chamar, até em sua alteridade "tecno-científi- sente e inventar novas possibilidades de vida.
Monique David-Ménard Dentro da extraordinária diversidade de
ca", a crise da razão; contra um certo destino da tarefa crítica que nos incita-
A !sacara na razão pura itinerários de abordagem e de meios de inves
ria a escolherentre ecletismoe academismo; no ponto de estranhezaonde a
experiênciatornada ipzff'fgadá acessoa novas figuras do ser e da verdade... Jacques Ranciêre tigação propostos, este livro se apresenta co-
TRANS quer dizer transversalidade das ciências exatas e anexatas, humanas O desentendimento mo uma primeira homenagem coletiva ofere-
e não humanas,transdisciplinaridadedos problemas. Em suma, transforma' cida a um pensamento que não cessou de co-
Éric Alliez
ção numa prática cujo primeiro conteúdo é que há linguagem e que a lingua- locar em jogo sua própria atualidade a partir
Da impossibilidade (ü da necessidade de "pensar de outro modo
gem nos conduz a dimensões heterogêneasque não têm nada em comum com
fenomenologia Participam destevolume: Giorgio Agam-
o processo da metáfora.
Michael Hardt ben, Éric Alliez, Alain Badiou, Raymond Bel-
A um só tempo arqueológica e construtivista, em todo caso experimen-
tal, essa afirmação das indagações voltadas para uma exploração polifónica Gilies Deleaze lour, Véronique Bergen,Joel Birman, Julio
do real leva a liberar a exigência do conceito da hierarquia das questões ad- Éric Alliez Bressane, Haroldo de Campos, Pascale Cri-
mitidas, aguçando o trabalho do pensamento sobre as práticas que articulam ton, Déborah Danowski, Laymert Garcia dos
Deleuze filosofia viTtuat
os campos do saber e do poder. Santos, José Gil, Michael Hardt, Fredric Ja
Pierre Lévy meson, David Lapoujade, Gérard Lebrun,
Sob a responsabilidadecientífica do Colégio Internacional de Estudos
O que é o virtua!! Jean-Clet Martin, Scarlett Marton, Jean-Luc
Filosóficos Transdisciplinares, TRANS vem propor ao público brasileiro nu-
merosastraduções, incluindo textosinéditos. Não por um fascínio peloOu- François Jullien Nancy, Luiz B. L. Orlandi, André Parente,Pe
Figuras da itnanência [er Pál Pelbart, Bento Prado Jr., John Rajch-
tro, mas por uma preocupação que não hesitaríamos em qualificar de políti-
ca, seporventura se verificasseque só se forjam instrumentospara uma outra man, Jacques Ranciêre, Renamo Janine Ri-
Gilles Deleuze
realidade, para uma nova experiênciada história e do tempo, ao arriscar-se beiro, Suely Rolnik, René Schérer, lsabelle
C ética e clínica
Stengers, Eduardo A. Vidas, Arnaud Villani,
no horizonte múltiplo das novas formas de racionalidade.
Eduardo Viveiros de Castra, François Wahl,
François Zourabichvili.
Gilles Deleuzee Félix Guattari André Parente (org.)
O que é a filosofias Imagem-máquina
Fénix Guattari Bruno Latour
Caos?nome Jamais fama; m.dera.s
Gilles Deleuze Nicole Loraux
Cona/ersações rlzuenção de Afe/zas
Bárbara Cassin, Nicole Loraux: Éric Alliez
Catherine Peschanski A assinatura do mundo
Gregos, bárbaros, estrangeiros Maurice de Gandillac
Pierre Lévy Gêneses da modernidade
As tecnologias {ía inteligência Gilles Deleuze e Fénix Guattari
Paul Virilio Mi! platâs
O espaço crítico rVo/s. í, 2, 3, 4 e 5;
Antonio Negri Pierre Clastres
A anomalia seu;agem Cfânica do índios Guayaki

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