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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Intuição categorial e evidência, verdade e ser


Categorical intuition and evidence, truth and being

Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes


Universidade de Brasília – UNB 19

RESUMO
Este artigo se propõe a pensar a fenomenologia dos fenômenos: intuição categorial, evidência,
verdade e ser, através da interpretação de textos de Husserl e Heidegger. Num primeiro
momento mostra a intuição em sua maior pregnância, a percepção, como experiência da
evidência da presença do ente mesmo como autodatidade originária. Num segundo momento,
partindo da regionalidade e da universalidade da evidência na vida intencional da consciência,
trata-se da razão, de seu ordenamento para a evidência e de sua correlação com a verdade e o
ser. Num terceiro momento se realiza uma interpretação fenomenológica da doutrina
tradicional da verdade como adequação e se intenta mostrar que esta concepção de verdade é
derivada e se deixa reconduzir à verdade como manifestação do ser do ente. Num quarto
momento discorre-se a respeito de dois significados de ser: ser no significado de ser-
verdadeiro e ser na função da cópula. Por último, tenta-se acenar para a evidência do ser e
para o relacionamento humano em face dela.

PALAVRAS CHAVE
Intuição categorial; Evidência; Verdade; Ser.

ABSTRACT
This article proposes to think the phenomenology of the phenomena: categorial intuition,
evidence, truth and being, through the interpretation of texts of Husserl and Heidegger. In a
first moment shows intuition at his highest pregnance, the perception, as an experience of the
evidence of the presence of the being itself as original self-giveness. In a second moment,
starting of the regionality and universality of the evidence on the intentional life of the
consciousness, one talks about the reason, of its be ordered to evidence and of its correlation
with the truth and with the being. In a third moment is made an phenomenological
interpretation of the doctrine about truth as adequacy and attempts to show that this
conception of truth is derived and leaves be led to the truth as manifestation of the being. In a
fourth moment there is discussion about two meanings of being: being in the meaning of be

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true and being in the function of copula. At last, seek to wave to the evidence of being and to
the human relationship with her.

KEYWORDS
Categorial intuition; Evidence; Truth; Being.

INTRODUÇÃO proposta deste artigo não consiste em


O escopo da consideração aqui realizar uma reconstrução
intentada a respeito da intuição historiográfica deste encaminhamento
categorial é mostrar sua conexão com de pensamento. O que se propõe é,
o sentido do ser como verdade. Trata- antes, re-pensar o pensado deste
se de um passo incipiente, porém, pensamento, em busca de um
necessário, para se divisar melhor o tratamento da coisa mesma em
horizonte da questão da verdade do questão.
ser e do ser (essência) da verdade.
Esta consideração, assim, tem como
proposta deixar-se encaminhar na via 1. INTUIÇÃO, PERCEPÇÃO E
de pensamento aberta por Heidegger, EVIDÊNCIA DA PRESENÇA
a partir da leitura de Brentano e de
Aristóteles 20 . Não obstante, a
DO ENTE MESMO
A verdade está numa íntima
conexão com a evidência e esta, por
20 Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur
Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 92-
93 – A caminho da linguagem. (Tò ón légetai pollachōs) – o ente vem à
Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / fala de múltiplos modos (Cf. Metafísica,
EDUSF, 2003, p. 76. Heidegger declara 1). Brentano toma como ponto de
que o livro de Franz Brentano, partida que o ser é um homônimo e
resultante de sua dissertação, “Sobre os que a multiplicidade dos seus
múltiplos significados do ente segundo significados se ordena na quadrúplice
Aristóteles” (Von der Manigfachen distinção do ser por acidente, do ser
Bedeutung des Seienden nach como verdadeiro, do ser das categorias
Aristoteles), publicado em 1862, foi sua e do ser em potência e ato. O ser como
guia através da filosofia grega nos anos verdadeiro tem como falso o não-ser
de ginásio. Este livro, evoca de novo a como falso. Cf. Aristóteles, Metafísica, E
pergunta: o que é o ente? 2, 1026 a 34 (Livro V, c. 7). Cf.
tí tò ón?). Assim fazendo, Brentano, Franz. Sui molteplici
recorda o que repetidas vezes diz o significati dell’essere secondo Aristotele.
Estagirita:  Milano: Vita e Pensiero, 1995, p. 13-15.
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sua vez, com a intuição. A intuição se A percepção está, pois,


realiza de modo mais perfeito como enraizada na experiência e
percepção. Esta é a intuição mais compreensão do ser como vigência
pregnante. Embora na recordação, na (Anwesenheit), mais precisamente,
imaginação, na mediação de uma como presença (Präsenz) 23 . A
imagem, também se dê intuição, percepção é um comportamento
nestes atos, esta não alcança a intencional. Este é um relacionamento
pregnância que alcança na percepção. significativo e interpretativo com o
A percepção doa o ente em sua que nos vem ao encontro no mundo.
presença viva e imediata. O que na Na percepção, o que nos vem ao
percepção acontece não é um encontro no mundo recebe o caráter
presentificar [Vergegenwärtigen], mas de ser presencial24. Percepção é, pois,
é, mais do que isto, um atualizar, um um relacionamento de ser com o ser
tornar presente [Gegenwärtigen], ou enquanto presença. Ela inclui não só a
seja, um presentar [Präsentieren] a apreensão do ente enquanto esta ou
coisa mesma, tal como ela se dá em aquela coisa – por exemplo, na
carne e osso, em pessoa, em sua percepção natural, isto é, cotidiana,
realidade viva, doando-se como esta ou aquela coisa de uso (um
imediatamente [leibhaftig] 21 . A giz, um quadro, etc.). Ela inclui
percepção, respectivamente, aquilo também uma apreensão do ser do
que ela doa, mostra a coisa mesma ente enquanto presença. Na
como ela mesma. Esta mostração da percepção, o ente se doa em seu ser e
coisa mesma, nela mesma e como ela este ser tem o caráter presencial. Uma
mesma (Ausweisung), é o acontecer do coisa, porém, é o ente presente; outra
fenômeno (o mostrar-se a si mesmo a coisa, a presença do ente, que é o
partir de si mesmo) em sua doação caráter em que o ser se doa, na
originária22. percepção. O comportamento
perceptivo, em sua intencionalidade,
transcende, assim, a apreensão do
21 Husserl, E. Logische Untersuchungen ente, na direção do ser. Ele tem um
II/2: Elemente einer
phänomenologischen Aufklärung der Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes /
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. EDUSF, 2012, p. 67.
116. 23 Cf. Husserl, Edmund. Formale und
22 Cf. a definição formal de fenômeno Transzendentale Logik. Halle: Max
no § 7 de Ser e Tempo. Heidegger, Niemeyer, 1929, p. 191.
Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). 24 Idem, p. 192.

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caráter presencial, isto é, ele é um respectivamente, em sua atualidade.


relacionamento de nosso ser com o Isso mostra o caráter temporal deste
ser enquanto presença. O caráter relacionamento de ser com o ser27. Ser
presencial do comportamento e tempo guardam, aqui, uma íntima
perceptivo se mostra à medida que o pertencência. A esta íntima
comportamento do perceber com o pertencência se junta também a
perceptivo tem o sentido de um verdade, se considerarmos que o
presentar (Präsentieren)25. O presentar, deixar vir ao encontro tem o caráter
por sua vez, aparece como um de um desvelar, ou seja, de um
atualizar, no sentido de um tornar descobrir ou de um abrir. Assim, ser e
presente (Gegenwärtigen). O atualizar tempo e verdade estão em íntima
deixa o vigente (Anwesendes) vir ao pertencência28.
encontro. Ao presentar enquanto A percepção, assim como o que
atualizar corresponde, ela dá, se mostra (weist aus). Ela, em
correlativamente, a vigência sua pregnância intuitiva, dá o ente, a
(Anwesenheit) no sentido da presença coisa mesma em seu ser. Husserl
(Präsenz) de um ente que nos vem ao caracterizou o modo de ser da
encontro no mundo. Este deixar vir evidência. Evidência é autodoação
ao encontro tem o caráter de um (Selbstgebung) 29 . Evidência é, na
descobrir (entdecken) ou abrir verdade, o desempenho intencional
(erschliessen), enfim, de um desvelar da autodoação (intentionale Leistung
(enthüllen). Este simples atualizar der Selbstgebung). Ela é a figura
(schlichtes Gegenwärtigen) de alguma privilegiada da intencionalidade, quer
coisa na sua presença imediata é o dizer, da consciência de alguma coisa,
suporte de todos os nossos uma vez que aquilo que vem ao
relacionamentos com o ente e, encontro e se torna objeto desta
respectivamente, com o seu ser. Ele é consciência, se oferece como o que o
tão fundamental e simples que nem apreendido nele mesmo e como ele
sequer o tematizamos. Nós vivemos mesmo (Selbsterfassten), como o visto
constantemente neste atualizar, que é, nele mesmo e como ele mesmo
ao mesmo tempo, um contínuo (Selbstgesehenen). Evidência é um
atualizar do próprio atualizar 26 . caráter da consciência em seu ser-
Atualizar quer dizer: vigendo em
uma atualidade deixar vir ao
encontro o ente em sua presença, 27 Idem, p. 193.
28 Aqui, porém, não podemos entrar na
questão de como se dá esta íntima
25 Idem, ibidem. pertencência.
26 Ibidem. 29 Idem, p. 140.

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junto (Sein-bei) daquilo de que ela é No entanto, outra coisa é,


consciência. Ela é consciência tematicamente, realizar um explicitar
originária (urtümliche Bewusstsein): vidente (sehendes Explizieren) da
“eu apreendo ele mesmo, essência própria de tal ver (des
originalmente, em contraste, por Eigenwesens solchen Sehens)33. É o que
exemplo, com o apreender numa buscamos, ao nos ocuparmos com
imagem, ou com toda outra intenção uma fenomenologia da evidência.
prévia, intuitiva ou vazia” 30 .
Evidência tem diversos modos de
originalidade. O modo originário de 2. RAZÃO E EVIDÊNCIA: A
autodoação, porém, é a percepção. “O
ser-junto-disso (Dabei-sein) é para
CORRELAÇÃO DA RAZÃO
mim como percipiente, em termos de COM A VERDADE E O SER
consciência, meu agora-ser-junto A evidência tem uma função
(Jetzt-dabei-sein): eu mesmo junto do universal na vida intencional da
percebido mesmo”31. Outro modo de consciência. Seu desempenho se
originalidade é o do claro refere a tudo quanto vem ao encontro
relembramento (klare da consciência no modo da
Wiedererinnerung), que é uma autodoação. Os conceitos de
consciência reprodutiva, consciência intencionalidade como tal e de
do objeto mesmo, só que este se doa evidência, estão, pois, essencialmente
como o que foi percebido no passado. conectados 34 . Intencionalidade, em
A evidência é, pois, uma vidência termos de consciência, aparece, com
original da coisa mesma. Ela é uma efeito, basicamente, como a vivência
vidência clara e penetrante (Einsicht) de um ter a sabença de alguma coisa.
do que se autodoa. No entanto, a O saber dessa sabença da consciência,
evidência não precisa se tornar porém, varia de acordo como o modo
temática. De início e na maior parte do relacionamento da consciência
das vezes nós simplesmente vivemos com aquilo de que ela tem
nela e, nela vivendo, apreendemos a consciência. Uma certa consciência de
autodoação das coisas mesmas. evidência, pois, se insere sempre na
“Somente vendo, eu posso sacar o intencionalidade. “Assim a evidência
que neste ver pré-jaz propriamente”32. é um modo universal da
intencionalidade, que se refere ao
30 Idem, p 141.
31 Ibidem. 33 Ibidem.
32 Idem, p. 142. 34 Idem, p. 143.
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todo da vida da consciência” 35 . A perceber e todo imaginado o é de um


análise fenomenológica da vida da imaginar. Além disso, cada tipo de
consciência em seu caráter de referimento constitui, igualmente, um
intencionalidade, com efeito, traz à tipo de ter-em-mira alguma coisa.
evidência a universalidade da Correspondentemente, cada vez
evidência. Heidegger aponta para segundo o tipo do ter-em-mira, se dá
essa universalidade: “Evidência é um tipo de evidência diverso. A
uma função universal, a princípio, evidência da percepção sensorial é
dos atos que doam objetos, mais diversa, com efeito, da evidência dos
amplamente, de todos os atos sentimentos, por exemplo, do amor,
(evidência do querer, do desejo, do ódio, que, por sua vez, é diversa
evidência do amar e esperar). Ela não da evidência dos atos volitivos
é restrita a enunciados, predicações, (querer, desejar), que é ainda diversa
juízos”36. dos atos racionais (como, por
O referimento intencional exemplo, julgar, concluir, demonstrar,
apresenta-se como estrutura essencial teorizar, conhecer cientificamente
pré-formada do ato. Cada estrutura alguma coisa). Não há, pois, apenas
de referimento intencional em sua evidências racionais, mas também
tipicidade tem como correlato um evidências afetivas, volitivas, etc.
tipo de objetualidade que se perfila de Assim, “categorias da
modo cada vez diverso. Este objetualidade e categorias da
referimento é o que faz a vivência ser evidência são correlatas. A cada
vivência desta objetualidade e não de modo fundamental de objetualidades
uma outra, ou ainda, é o que faz esta (...) pertence um modo fundamental
objetualidade ser objetualidade desta de ‘experiência’ da evidência”37. Cada
vivência e não de uma outra. Assim, região coisal tem o seu modo próprio
toda percepção é o perceber de um de dar-se à evidência, o seu modo de
percebido, como toda imaginação é o tornar-se acessível, e seu modo de
imaginar de um imaginado e assim deixar-se tematizar.
por diante...; e, vice-versa, todo Correspondentemente, cada
percebido é o percebido de um mostração teorética (theoretische
Ausweisung) terá o seu próprio rigor,
de acordo com o tipo de evidência
35 Ibidem. que aquela região coisal oferece e o
36 Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Geschichte des Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt 37 Husserl, Edmund. Formale und
am Main: Vittorio Klostermann, 1994 Transzendentale Logik. Halle: Max
(3ª ed.), p. 68. Niemeyer, 1929, p. 144.
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tipo de acesso que ela requer. Assim, axiológica, quer da prática 39 . Com
o acesso aos fenômenos naturais, efeito, o que está em questão em todo
praticado pelas ciências da natureza, o comportamento intencional racional
é diverso do acesso dos fenômenos é a possibilidade de captação, de
humanos enquanto tais, praticado apreensão, do ser, quer no sentido do
pelas ciências humanas (ciências do ser real, quer no sentido do ser
espírito ou histórico-sociais). Assim verdadeiro. É com base nesta doação,
também, nas ciências positivas, o em que o doado se dá em sua
rigor da mostração teorética não será autodatidade, ou melhor, com base na
o mesmo, por exemplo, na física, na sua recepção e percepção, que o
antropologia, teologia; e, do mesmo comportamento intencional racional
modo, o rigor da filosofia, ciência pode fundamentar e demonstrar, por
ontológica, não será o mesmo que o meio de um mostrar, que se dá no
rigor das ciências ôntico-positivas, modo do atestar e documentar, aquilo
objetivas. Assim, há diversas regiões e que fora presumido. Sem o
categorias de objetos. “Pois, se nós, preenchimento de um sentido,
com a característica da evidência possibilitado por atos perceptivos, de
como autodoação (ou, falando-se do visão, o pensar permanece não só
lado do sujeito, de autoposse) de um vazio, mas também cego, sem visão,
objeto, designamos uma sem evidência.
universalidade referida a todas A evidência é ato, a saber, ato de
objetualidades em igual modo, então, identificação. Melhor ainda: ela é o
com isso, não se intenciona que a preenchimento identificador, em que
estrutura da evidência por toda a vêm à coincidência, o presumido e o
parte seja igual” 38 . Temos, assim, a intuído. Há a evidência negativa e há
regionalidade da evidência, junto com a evidência positiva. A evidência
sua universalidade. negativa é a evidência de uma ilusão.
A intuição e a evidência são as “A possibilidade da ilusão
condições fundamentais do que
chamamos de razão. Intuir é, 39Cf. Husserl, Edmund. Ideen zu einer
simplesmente, ver. Este ver doador reinen Phänomenologie und
originário, diz Husserl em Ideias I (§§ phänomenologischen Philosophie.
136-145), é base da Vernunft (Razão), Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª
quer da razão teórica, quer da Ed.), p. 282-285 (Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias &
38 Ibidem. Letras, 2006, p. 303-306).
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(Täuschung) pertence à evidência da clara e penetrante, isto é, a intelecção


experiência e não suspende o seu de que o presumir é fundado na coisa
caráter fundamental e seu préstimo, mesma em questão42.
embora o evidente dar-se conta da Há diversos tipos de evidência.
ilusão suspenda a experiência em Há evidência sensível, do individual.
questão ou a referida evidência Há evidência de objetos irreais, ideais,
mesma” 40 . Assim, a suspensão ou a em sentido amplo 43 . Podemos falar,
dissolução de uma ilusão, que vem à com efeito, de evidência de realidades
expressão na forma de um “agora eu e de evidência de idealidades. Há, por
vejo que isso é uma ilusão”, é ela exemplo, a idealidade do específico,
mesma uma espécie de evidência, em há idealidade de um juízo, a
que vem à luz a nulidade do idealidade de uma sinfonia, etc.44 Há
experimentado e a supressão de sua atos categoriais. Tais atos se
evidência empírica 41 . A evidência caracterizam por serem fundados em
negativa, portanto, realiza a negação atos de percepção sensorial, por
de uma nulidade. Numa evidência serem intuitivos, isto é, doadores de
não negativa, isto é, positiva, o objetualidades, enfim, por, neles, a
intuído se mostra como o mesmo que objetualidade dos atos simples serem
o presumido. É justamente este doadas concomitantemente 45 . A
idêntico que é apreendido na percepção sensorial, assim, serve de
evidência. Na evidência da intuição base para a percepção categorial.
mais pregnante, que é a percepção, Estende-se, assim, a amplitude do
dá-se a realização ou o cumprimento conceito de percepção e de intuição,
de uma presunção, ou, dito de outro uma vez que há, também no nível do
modo, o preenchimento ou
plenificação de um intencionar vazio. 42 Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Aquilo que era apenas presumido ou Geschichte des Zeitsbegriffs
intencionado de modo vazio ganha, (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
então, plenitude pela intuição. am Main: Vittorio Klostermann, 1994
Alcança-se, assim, o conhecimento de (3ª ed.), p. 67.
que aquilo que era presumido tinha 43 Husserl, Edmund. Formale und
um fundamento concreto, seguro, Transzendentale Logik. Halle: Max
confiável. Tem-se, assim, a vidência Niemeyer, 1929, p. 139.
44 Idem, p. 147.
45 Heidegger, Martin. Prolegomena zur
40 Husserl, Edmund. Formale und Geschichte des Zeitsbegriffs
Transzendentale Logik. Halle: Max (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
Niemeyer, 1929, p. 139. am Main: Vittorio Klostermann, 1994
41 Idem, p. 140. (3ª ed.), p. 85.
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categorial, uma doação de individual, mas, em cada repetição, é


objetualidade nela mesma. “A o mesmo sentido que é trazido à
identidade de um ideal e, com isso, de expressão. Cada expressão linguística
sua objetualidade, é algo para se ‘ver’ é individual, mas o significado é o
diretamente, em igual originariedade mesmo 48 . Em repetidas experiências
(e caso se queira apreender a palavra se realiza a consciência do mesmo
com um sentido ampliado (Bewustsein vom Demselben),
correspondente: para se experimentar respectivamente, dá-se, a cada vez,
diretamente) como a identidade de uma experiência (em sentido amplo)
um costumeiro objeto de experiência, de uma mesmidade (Selbigkeit). A
por exemplo, de um objeto da identificabilidade (Identifizierbarkeit)
experiência natural ou de um tal da caraterística de todo objeto da
experiência imanente de quaisquer experiência pode ser constatada
dados psíquicos” 46 . Assim, pode-se também nestes casos. Assim como há
ampliar o âmbito da experiência, da a evidente autoapreensão e autoposse
percepção, da intuição, do sensível do individual, na experiência tomada
para o categorial. Há uma percepção, em seu sentido estrito, usual e
por exemplo, de uma melodia. A pregnante, há também uma
mesma melodia é repetidamente autoapreensão e uma autoposse do
realizada em várias execuções e objeto irreal49.
apresentações. Igualmente, um Cada tipo de ato visa um tipo de
mesmo romance é lido repetidamente objetualidade, ou melhor, tem em
em várias leituras. A realização da mira o ente num determinado como
leitura de um romance ou da (Wie) de sua datidade (Gegebenheit).
execução de uma melodia é cada vez Os atos categoriais, fundados, dão
única, individual, e se dá, a cada vez, acesso a um novo tipo de
hic et nunc (aqui e agora)47. Mas cada objetualidade que não é acessível aos
realização é uma realização do atos simples, fundantes. “Este novo
mesmo: leitura do mesmo romance, acessibilizar do objeto simplesmente
execução da mesma melodia. O doado designa-se de modo
mesmo acontece com um juízo. Cada
pronunciamento do juízo é

46 Husserl, Edmund. Formale und


Transzendentale Logik. Halle: Max
Niemeyer, 1929, p. 139. 48 Idem, p. 20.
47 Idem p. 18. 49 Idem, p. 139.
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correlativo aos atos como expressar” claro, com um olhar inteligente, com
(Ausdrücken)50. A expressão é o modo uma visão intelectiva (Einsicht) 51 . É
de acessibilizar novas objetualidades, graças ao ato de ideação que nós
que vêm à luz e se constituem, por podemos ver não somente os
meio dos atos categoriais. Há dois vermelhos individuais, mas também
tipos de atos de intuição categorial: o vermelho como espécie:
atos de síntese e atos de ideação. Os
Na medida em que nós
atos de síntese produzem o “estado
intencionamos (meinen) o vermelho
de coisas” (Sachverhalt), que é de
in specie, se nos manifesta um
natureza ideal. Os atos de ideação objeto vermelho, e neste sentido
produzem a intuição do universal. nós dirigimos o olhar para ele (que
Com outras palavras, atos de síntese nós, todavia, não intencionamos).
tornam objetivos os estados de coisa Ao mesmo tempo neste objeto se
que são enunciados na enunciação. apresenta o momento “vermelho” e
Os atos de ideação doam um objeto do mesmo modo também aqui nós
universal, a saber, a espécie. A podemos de novo dizer que
ideação é a intuição do universal dirigimos o olhar para ele. Mas
(Anschauung des Allgemeinen). Ela é também este momento, este traço
particular individualmente
doadora de uma nova objetualidade:
determinado, nós não o
a ideia (A palavra latina intencionamos… Enquanto se
“species” é tradução de , o manifesta o objeto vermelho e, nele,
aspecto de alguma coisa, como o momento “vermelho” salientado,
alguma coisa se deixa e se faz ver, nós intencionamos muito mais o
naquilo que ela, a priori, é. O ato da único e idêntico vermelho, e nós o
intuição universal doa aquilo que por intencionamos em um modo de
primeiro e de modo simples se deixa consciência de novo gênero, através
ver nas coisas. As objetualidades que do qual justamente se nos torna
são doadas na intuição do universal objetual a espécie em vez do
são doadas atualmente e, nesta individual 52 . Há diversos graus
doação, acontece realmente um ver: o
universal é doado mesmo e nós o
captamos, nós o visamos e o vemos, 51 Husserl, E. Logische Untersuchungen
II/2: Elemente einer
phänomenologischen Aufklärung der
50 Heidegger, Martin. Prolegomena zur Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p.
Geschichte des Zeitsbegriffs 162.
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt 52 Husserl, Edmund. Logische
am Main: Vittorio Klostermann, 1994 Untersuchungen II/1: Untersuchungen
(3ª ed.), p. 84. zur Phänomenologie und Theorie der
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de evidência, isto é, de certeza e diversamente). Trata-se de um


de segurança contra a ilusão. Há ato da “razão”54. Como exemplo
a ideia da evidência apodítica, da evidência assertórica
evidência pura e absoluta, como podemos apresentar a que se dá
vidência penetrante e clara de num juízo de fato como quando
uma conjuntura essencial eu digo: “em Brasília há muitos
(Wesenverhalte). Há, em segundo Ipês floridos no inverno”. Este é
lugar, a ideia da evidência um exemplo tirado da esfera da
assertórica, que é a evidência de experiência. Dá-se expressão a
coisas, fatos, estados de coisa um juízo verdadeiro de fato, não
“individuais”. Podemos tomar necessário. Enquanto no
como exemplo de evidência exemplo da evidência apodítica
apodítica a que se dá num juízo trata-se de um dado eidético,
necessário (de razão) do tipo adequado, de um estado-de-
aritmético: “2 + 1 = 1 + 2”. essência, tornado acessível pela
Temos, aqui, um ato de síntese, razão, no exemplo da evidência
uma síntese judicativa, que dá assertórica trata-se de uma
acesso a um estado de coisas que “individualidade” (o
é apreendido de modo apercebimento de um estado de
originário 53 . Realiza-se, aqui, coisas individual), tornada
uma consciência dóxica acessível através da
posicional que doa experiência .
55

adequadamente o seu objeto (o Assim, a evidência apodítica se


estado de coisas), que exclui o refere, pois, a verdades de razão
“ser de outro modo” (o que ela (verités de raison), para usar uma
dá acesso não pode ser expressão de Leibniz, enquanto a
evidência assertórica se refere a
Erkenntnis. Tübingen : Max Niemeyer, verdades de fato (verités de fait). A
1993, p. 106-107. vidência penetrante e clara,
53 Husserl, Edmund. Ideen zu einer
intelectiva (Einsicht), se dá no caso da
reinen Phänomenologie und evidência apodítica, não no caso da
phänomenologischen Philosophie. evidência assertórica. Num caso,
Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª temos a apreensão de objetualidades
Ed.), p. 282 (Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & 54 Idem, p. 285 (Idem, p. 306).
Letras, 2006, p. 304). 55 Ibidem.
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ideais; noutro, de objetualidades essenciais subjacentes ao “individual


reais. Isso remete também à diferença posto”59.
entre evidência adequada e evidência A evidência é o ato de
inadequada. A manifestação identificação do presumido com o
(Erscheinung) viva, em carne e osso, intuído. Nela, vem à luz que o
de uma coisa (Ding), é sempre presumido e o intuído são o mesmo.
unilateral, dada em sombreamentos e Na evidência enquanto ato de
nuances (Abschattungen). Ela é identificação atos signitivos
também sempre incompleta, pois coincidem com atos em que se doam
sempre deixa facetas indeterminadas. objetualidades, sejam estas factuais,
É neste sentido que a evidência das reais, individuais, sejam essenciais,
coisas reais, que se tornam acessíveis ideais, específicas.
na experiência, é inadequada. Daí O fenômeno da evidência nos
segue que “nenhuma posição racional conduz ao fenômeno da verdade. Há
assentada sobre uma tal aparição uma conexão entre razão, evidência e
doadora inadequada pode ser verdade60. A fenomenologia da razão
‘definitiva’, ‘insuperável’” 56 . As
posições podem ser, sempre de novo,
“riscadas”. Novas percepções podem 59 Heidegger, Martin. Prolegomena zur
sugerir motivos racionais mais fortes Geschichte des Zeitsbegriffs
para novas posições, que tenham (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
maior peso, propiciando, assim, um am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 68. Husserl fala, no § 137 de
aumento fenomenológico positivo em
Ideias I, do “conhecimento da
sua força motivadora57. Já evidências
necessidade do ser assim de uma
adequadas não podem ser
individualidade posta”: Husserl,
corroboradas ou enfraquecidas e nem Edmund. Ideen zu einer reinen
apresentam gradação de peso58. Phänomenologie und
Há, em terceiro lugar, a phänomenologischen Philosophie.
evidência que compõe as duas Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª
evidências anteriores, ou seja, a Ed.), p. 285 (Ideias para uma
intelecção da necessidade do ser- fenomenologia pura e para uma filosofia
assim (Sosein) de um estado de coisas fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias &
individual a partir de fundamentos Letras, 2006, p. 306) (grifo de Husserl).
60 O segundo capítulo da quarta secção

de Ideias I e a terceira das Meditações


Cartesianas oferecem bastante
56 Idem, p. 286-287 (Idem, p. 307-308). elementos para pensar esta conexão.
57 Idem, p. 288 (Idem, p. 308). Aqui devemos nos contentar com
58 Ibidem (Idem, p. 309). apenas umas indicações incipientes,
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 123
Aoristo)))))
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tem como ponto de partida o seu consciência racional é uma


caráter intencional, isto é, o caráter de consciência que vê, uma consciência
correlação entre razão (como polo que vive em atos perceptivos, em atos
noético) e “ser verdadeiro” ou “ser de visão; é uma consciência intuitiva,
efetivo” (como polo noemático). isto é, receptiva de uma doação
Temos, assim, uma correlação entre originária, onde o que se doa se
“ser racionalmente atestável” oferece em si mesmo em sua
(vernünftig ausweisbar sein) e ser presença, no modo do ser efetivo62. É,
verdadeiro (wahrhaft sein) ou ser neste sentido, uma consciência tética,
efetivo (wirklich sein). Como já foi posicional: ela vive numa posição de
aludido, a evidência é condição ser.
fundamental do que chamamos de À consciência racional pertence,
razão. O que está em questão na razão, a cada vez, uma modalidade dóxica
como modo de consciência (de crença) que é correlata a
(consciência racional), é um ver determinada modalidade de ser 63 .
originariamente doador. Um Assim, enquanto perceptiva, a
enunciado é racional quando o que consciência racional apreende de
nele é dito se deixa fundar modo certo um ser efetivo. Temos,
(begründen), mostrar e atestar assim, a razão originária (Urvernunft)
(ausweisen), ou seja, quando se deixa que, na modalidade dóxica da crença
ver (sehen) diretamente ou evidenciar originária (Urglauben), se relaciona
(einsehen) mediatamente 61 . O que se como a “verdade” (Wahrheit)64. Mas o
dá como correlato a esta percepção modo da crença originária pode se
evidente é o ser, no sentido de ser modificar em um modo de crença
verdadeiro ou ser efetivo. A derivada e ter como correlato outros
modos de ser, a saber, o ser possível,
o ser verossímil, o ser problemático, o
deixando para outro momento um
desenvolvimento mais aprofundado ser duvidoso 65 . Temos, assim, a
desta questão. consciência da possibilidade na
61 Cf. Husserl, Edmund. Ideen zu einer suposição, da verossimilhança na
reinen Phänomenologie und
phänomenologischen Philosophie. 62 Cf. Idem, p. 282-285 (Idem, p. 303-
Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª 306).
Ed.), p. 282 (Ideias para uma 63 Cf. Idem, p. 214-215 (Idem, p. 235-

fenomenologia pura e para uma filosofia 236).


fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & 64 Cf. Idem, p. 290 (Idem, p. 310).

Letras, 2006, p. 303). 65 Cf. Idem, p. 214 (Idem, p. 235).

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conjectura, do problemático na assinalar etc. Se nos falta a


problematização, do duvidoso na evidência da doxa originária, da
dúvida 66 . As modificações das certeza da crença, então uma
modalidades de ser são, pois, modalidade dóxica pode ser
evidente, digamos, para o conteúdo
correlatas às modificações das
de sentido “S é p”, por exemplo a
modalidades dóxicas (de crença). As
conjectura “S poderia ser p”. Essa
modalidades de ser são noemáticas, evidência modal é manifestamente
enquanto as modalidades dóxicas são equivalente e está necessariamente
noéticas. A modalidade dóxica ligada a uma evidência dóxica
originária – o ser certo – tem como originária de sentido modificado,
correlato o ser efetivo 67 . A razão isto é, à evidência ou verdade: “É
originária, com sua crença originária, conjecturável (verossímil) que S é
se realiza, vive, pois, numa evidência p”; mas, por outro lado, também
originária. A razão originária tem, está ligada à verdade: “Algo fala a
então, como correlato, numa favor de que S é p”; e ainda: “Algo
fala a favor de que S p é
possibilidade ideal, a “verdade”.
verdadeiro” etc. Em tudo isso se
Verdade é manifestamente o mostram nexos eidéticos que
correlato racional perfeito da doxa precisam ser investigados
originária, da certeza da crença. As fenomenologicamente em sua
expressões “Uma proposição de origem .68

doxa originária, por exemplo, uma


Deste modo, dá-se a correlação
proposição de enunciado, é
verdadeira” e “O caráter racional
intencional (noético-noemática) de
perfeito convém à crença, ao juízo razão e verdade. Na terceira das
correspondente” – são correlatos Meditações Cartesianas, Husserl
equivalentes. Naturalmente, não se investiga a correlação intencional, em
está falando aqui de fato de um sua problemática constitutiva, entre
vivido ou daquele que julga, razão e verdade, respectivamente, ser
embora seja eideticamente efetivo, efetividade (Wirklichkeit), bem
incontestável que a verdade só como entre desrazão (Unvernunft) e
possa ser dada atualmente, numa não-verdade (falsidade) e não-ser
consciência de evidência atual, o (efetivo). A razão aparece,
mesmo também ocorrendo com a
eideticamente, como forma estrutural,
verdade dessa incontestabilidade,
com a equivalência que se acaba de
essencial e universal, da

68Ideias para uma fenomenologia pura


66 Cf. Idem, p. 217-218 (Idem, p. 238- e para uma filosofia fenomenológica.
239). Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p.
67 Cf. Idem, p. 216 (Idem, p. 237). 310-311.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 125
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“subjetividade transcendental em transcendental isso significa: “Cada


geral” que remete para possibilidades consciência em geral ou tem já o
de confirmação (Bewährung), as quais caráter da evidência (ou seja, é
remetem, por seu turno, em última autodoadora a respeito do seu objeto
instância, para o tornar evidente intencional) ou está, por essência,
(Evident-machen) e para o ter-na- ordenada à passagem para a
evidência (Evident-haben)69. Evidência, autodoação, por conseguinte, à
como já se indicou, quer dizer passagem para sínteses de
autoaparição, ou seja, o apresentar-se- confirmação, que pertencem, por
a-si-próprio, o dar-se-a-si-próprio de essência, ao domínio do eu posso”73.
uma coisa, de um estado-de-coisas, de Quando a consciência-de-algo
uma generalidade, de um valor, etc. tem o seu visado se autodoando
Evidência é, portanto, um modo de direta e imediatamente, então ela está
autoaparição, autoapresentação, na experiência da evidência. Mas a
autodoação, no modo definitivo da consciência pode visar algo de modo
coisa mesma aí (Selbst da), do intuível vazio, apenas a modo de uma
imediatamente (unmittelbar anschaulich), presunção (ato de presumir). Então
do originalmente dado (originaliter ela precisa de uma confirmação
gegeben)70. Ela é, também como já se (Bewährung): se aquilo que ela
indicou, um “fenômeno originário presume é e é tal como ela presume
universal da vida intencional” (ein ou não. No entanto, no processo da
allgemeines Urphänomen des confirmação, a resposta pode ser
intentionalen Lebens) 71 ; é um “traço afirmativa ou negativa. Isto é, pode
fundamental da vida intencional dar-se a evidência de que a coisa
qualquer que seja ela” (Grundzug des mesma (ou o estado-de-coisas, etc.),
intentionalen Lebens überhaupt) 72 . Na não simplesmente não é, ou não é tal
perspectiva da fenomenologia como se presumia. No dizer de
Husserl: “no processo de
69 Cf. Husserl, Edmund. Cartesianische confirmação, a confirmação pode
Meditationen und Pariser Vortäge. reverter-se no seu negativo, pode
Haag: Martinus Nijhoff, 1950, p. 92 surgir, em vez do próprio visado, um
(Meditações Cartesianas e Conferências outro, e seguramente no modo do ele
de Paris. Rio de Janeiro: Forense, 2013, próprio, com o que a posição do objeto
p. 94). visado fracassa e este assume, pelo
70 Idem, p. 92-93 (Idem, p. 94-95).
71 Idem, p. 92 (Idem, p. 94).
72 Idem, p. 93 (Idem, p. 95). 73 Ibidem (Ibidem).
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seu lado, o caráter de nulidade” 74 . tipo de verdade. Isso vale, portanto,


Assim, como do mesmo modo já se não só para a razão teórica, dóxica,
aludiu, pode-se ter uma evidência que se realiza na esfera da crença,
positiva (de que algo é e é assim como mas também para a razão doxológica,
se presumia) ou uma evidência que se realiza na esfera da
negativa (de que algo não é e não é afetividade, ou, ainda, para a razão
assim como se presumia). Com outras prática, que se realiza na esfera da
palavras “não-ser (Nicht-sein) é vontade. “A verdade ou evidência
apenas uma modalidade do ser puro ‘teórica’ ou ‘doxológica’ tem seus
e simples (Modalität des Seins paralelos na ‘verdade ou evidência
schlechthin), da certeza de ser axiológica e prática’, pelo que as
(Seinsgewissheit)” 75 . A evidência tem ‘verdades’ destas últimas chegam à
como correlatos o ser e não-ser e suas expressão e ao conhecimento nas
modificações modais: ser-possível, verdades axiológicas, vale dizer, nas
ser-provável, ser-duvidoso, etc. verdades especificamente lógicas
A já indicada universalidade da (apofânticas)”76.
evidência requer que se entenda a Voltando às Meditações
razão não só em sentido teórico, mas Cartesianas, podemos dizer que, entre
também em sentido axiológico e em as modalidades de ser, aquela do ser-
sentido prático. Também os atos efetivo, ou seja, do ser como
afetivos (do sentir) e volitivos (do efetividade (Wirklichkeit), é correlata
querer) têm a sua própria experiência de uma modalidade de crença
de evidência. Os atos do sentir têm originária, privilegiada, a saber, a do
como correlatos os valores; os atos do ser certo, que permeia a evidência
querer têm como correlato o bem. originária. Assim, a efetividade
Assim, o sentir pode ter ou não ter a aparece como o correlato da
evidência do ser-valioso em confirmação evidente. Na crença, nós
referência àquilo que se sente, o tomamos objetos como válidos para
querer pode ter ou não ter a evidência nós (objeto, aqui, tomado em sentido
do ser-bom em referência àquilo que bem amplo: coisas, vivências,
se quer. Pode-se dizer – fazendo um
retorno às Ideias I – que todas as 76 Ideias para uma fenomenologia pura
“esferas téticas” têm seu próprio tipo e para uma filosofia fenomenológica.
de evidência e, por conseguinte, Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p.
intencional e correlativamente, seu 311 (grifo de Husserl). Husserl, aqui, se
declara devedor de Brentano, que abriu
caminho nesta direção no escrito
74 Ibidem (Ibidem). intitulado “Da origem do conhecimento
75 Ibidem (Ibidem). ético”, de 1889.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 127
Aoristo)))))
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números, estados-de-coisa, leis, confirmação, é o seu “fundamento


teorias, etc.). A crença é um modo transcendental último”79.
posicional da consciência (ela põe
algo como válido-para-mim). A
segurança, porém, sobre o ser efetivo 3. DA VERDADE COMO
de alguma coisa só se alcança
mediante a “síntese da confirmação
ADEQUAÇÃO À VERDADE
evidente, a qual é autodoadora da COMO REVELAÇÃO
reta ou verdadeira efetividade”77. Só a A verdade aparece como
evidência “faz com que tenha sentido identificação mostradora (ausweisende
para nós o ser efetivo, verdadeiro, a Identifizierung), realizada na
reta validade de um objeto, seja qual plenificação de um intencionar vazio,
for a sua forma ou tipo, com todas as na realização ou confirmação de uma
determinações que, para nós, lhe presunção. Preenchimento definitivo
pertencem sob o título de ser-assim e inteiro quer dizer: adequação
verdadeiro”78. A verdade é entendida, (adaequatio) do presumido (intellectus)
aqui, como adequação entre o que se à coisa intuída mesma (res). Temos,
presume e o que se mostra na assim, a intepretação fenomenológica
experiência da evidência, ou seja, da antiga definição escolástica de
como “síntese de confirmação”, que é verdade: veritas est adaequatio rei et
operada pela razão, entendida, a intellectus. A adequação acontece no
modo de forma estrutural, essencial e modo do trazer à coincidência o
universal, da subjetividade presumido e o intuído. É, pois,
transcendental em geral. Esta, a identificação. E é identificação
subjetividade transcendental, é o mostradora à medida que, nesta
sustentáculo, a condição de adequação, acontece a mostração ou
possibilidade, da síntese da atestação (Ausweisung) do presumido
no intuído. Uma análise da estrutura
intencional do ato da identificação
mostradora ou atestadora ressalta a
intentio e o intentum como dois
77 Husserl, Edmund. Cartesianische
Meditationen und Pariser Vortäge. momentos correlativos do mesmo
Haag: Martinus Nijhoff, 1950, p. 95 fenômeno. A intentio é o ato mesmo
(Meditações Cartesianas e Conferências de trazer à coincidência, o identificar.
de Paris. Rio de Janeiro: Forense, 2013, O intentum deste ato, isto é, o seu
p. 97).
78 Ibidem (Ibidem). 79 Ibidem (Ibidem).
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correlato, é o identificado. Surge a coisa mesma; outra coisa é tematizar a


pergunta: o que é o identificado deste identidade como tal. Uma coisa é a
ato de identificar? Resposta: o ser- apreensão vivente, implícita, do ser-
idêntico do presumido e do intuído. idêntico na sua evidência. Outra coisa
Assim, a verdade enquanto ato de é a apreensão temática, explícita, da
identificação mostradora ou identidade. Em todo o caso, verdade
atestadora se realiza como o quer dizer, aqui, uma mútua relação,
identificar de um ser-idêntico que se o relacionamento (Verhalt) entre
dá entre o presumido e o intuído. presumido e intuído, precisamente,
A verdade, pois, em seu caráter um relacionamento que acontece no
intencional, é a identificação do ser- sentido da identidade. Pode-se falar,
idêntico. A partir disso pode-se relevar assim, de um relacionamento
três momentos constitutivos da veritativo (Wahrverhalt). Nele, jaz o
verdade enquanto adequação: o ser-verdadeiro80.
adequar, o adequado e a condição de Em segundo lugar, ressalta-se a
possibilidade da adequação mesma. intentio do intentum, isto é, não o
Primeiramente, ressalta-se o conteúdo do ato, mas o ato ele mesmo,
intentum da intentio, isto é, o adequado seu modo de realização (Vollzug). O
da adequação: o ser-idêntico de que está em questão, agora, é a
presumido e intuído. Verdade quer estrutura de ato da evidência mesma,
dizer, aqui, o ser-verdadeiro no modo enquanto identificação que traz à
do ser-idêntico de presumido e coincidência o presumido e o intuído.
intuído. Verdade é, assim, o constar Trata-se, pois, da estrutura do adequar,
desta identidade. O ser-verdadeiro no sentido de trazer à coincidência o
consiste na existência, resistência e presumido e intuído. Verdade é,
consistência dessa identidade. Na agora, tomada como caráter do
medida que o presumido vem à conhecimento. A evidência é o
coincidência com o intuído, eu sou conhecimento no sentido pregnante
dirigido para a coisa mesma, sou do termo; ela é a tomada de
posto ao seu alcance, isto é, ela se me conhecimento, a intelecção de que o
torna acessível e eu vivo junto dela. E, presumir está fundado na coisa
neste apreender da coisa mesma mesma. É na evidência que se realiza
intuída, no viver junto dela, acontece
a experiência da evidência, ou seja, a
evidência é experimentada – a 80Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
evidência do ser-idêntico. Uma coisa, zur Geschichte des Zeitsbegriffs
porém, é experimentar o ser-idêntico (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
em sua evidência, sendo junto da am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 70.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 129
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

a verdade, enquanto concordância princípio da coisa, ou seja, se se trata


(Übereinstimmung) entre intentio e de uma adaequatio intellectus ad rem,
intentum, a “adaequatio intellectus et temos o realismo. Se a adequação
rei” (Tomás de Aquino: De veritate qu. recebe o seu princípio do intellectus
I, art. 1) 81 . Verdade pressupõe (no sentido do intelligere), ou seja, se
evidência. Evidência é preenchimento se trata de uma adaequatio rei ad
identificador (identifizierende intellectus, temos o idealismo. Ora
Erfüllung). E-vidência é, pois, um ver, verdade é concebida a partir do ser-
em que acontece um sacar, um trazer verdadeiro no sentido da conjuntura
para fora e para junto de si, a partir da verdade, do relacionamento
da coisa originariamente vista, um veritativo (Wahrverhalt); ora é
estado-de-coisas, uma conjuntura concebida a partir do ser-verdadeiro
(identifizierendes Heraussehen eines no sentido da conexão de atos, do
Sachverhaltes aus der originar caráter de tomada de conhecimento,
angeschauten Sache). Nesta da intelecção. As duas concepções,
identificação, o presumido ele mesmo porém, de verdade são imperfeitas
resplandece na coisa originariamente (unvollkommen). Em nenhuma das
vista 82 . Verdade é identificação duas concepções se alcança o sentido
mostradora (ausweisende originário de verdade84.
Identifizierung). Identificar é, aqui, Este sentido, talvez, se nos doe
neste sentido, adequar o presumido à se nos detemos junto da condição de
coisa mesma83. possibilidade da adequação em seu
Na história da filosofia a disputa todo. De novo, temos em mira o ente
sobre a verdade oscila pendularmente enquanto intuído, que dá atestação,
entre ambos os polos, isto é, entre que dá ao conhecimento um chão e
intentio e intentum, entre o conteúdo um direito, isto é, um fundamento e
do ato e o ato mesmo, entre res e uma legitimidade. Trata-se, aqui, do
intellectus. Se a adequação recebe o ente no sentido do ser-verdadeiro.
seu princípio da res (coisa, estado de Verdade é, aqui, o que faz verdadeiro o
coisa, fato), temos o realismo. Isso conhecimento. Verdade diz, neste
quer dizer: se a adequação recebe seu sentido, tanto quanto ser, no ser
sentido de ser-efetivo (Wirklich-Sein).
81 Cf. Tomás de Aquino. Verdade e Verdade é, agora, aquilo pelo que o
Conhecimento. São Paulo: Martins verdadeiro é verdadeiro; é, como
Fontes, 1999, p. 148.
82 Cf. Idem, p. 67-68.
83 Cf. Idem, p. 69. 84 Cf. Idem, p. 71.
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

diziam os medievais, o “esse intelecto)86. Aqui o ser-verdadeiro do


manifestativum”, o ser manifestador, do ente não é o resultado do
ente. Esse ser manifestador dá ao ente conhecimento; é, antes, sua condição
uma inteligibilidade prévia, uma de possibilidade transcendental.
perceptividade (Wahrgenommenheit) que Trata-se, portanto, de uma
é condição de possibilidade do determinação do ser como um
conhecimento, isto é, tanto do “transcendens”, isto é, como o que
conhecer quanto do conhecido, tanto sobrepuja toda a determinação
do adequar, quanto do adequado. A quididativa, em termos de gênero e
perceptividade do ente espécie. O intelecto é caracterizado,
(Wahrgenommenheit des Seienden) é transcendentalmente, pela abertura
condição de possibilidade do ao ente no seu ser-verdadeiro. Ele é
perceber (wahrnehmen) e do percebido receptivo a todo o ente, à medida que
(das Wahrgenommene) em sua unidade todo o ente, enquanto ente, é
noético-noemática. Perceptividade inteligível, cognoscível. Esta abertura
diz o mesmo que o caráter de da receptividade ao ser do ente e à
presença viva, atual, “em carne e sua verdade, isto é, ao seu ser
osso”, em pessoa (Leibhaft-da, manifestador, a qual é constitutiva do
Leibhaftigkeit) .
85 ser humano, enquanto o aí (da) em
Aliás, o percebido por excelência que se dá a compreensão do ser
e em sentido primordial é esta (Seinsverständnis), melhor, a
perceptividade do ente enquanto ser- autodoação do ser, sua manifestação,
manifesto e ser-manifestador, é o que se chama, em Ser e Tempo,
enquanto ser-aberto, des-velado, em “Dasein” (no sentido de ser a abertura
sua presença viva. Como dizia em que se dá o aí do ser, o seu
Avicena, recordado por Tomás de advento).
Aquino no prólogo do seu “De ente et A propósito disso pode-se
essentia”: “ens autem et essentia sunt evocar a sentença de Aristóteles que
quae primo intellectu concipiuntur” (o diz:
ente e a essência são o que por (he
primeiro são concebidos pelo psychè tà onta pōs estin) - a alma – quer
dizer, a alma intelectiva do homem,
melhor ainda, o Dasein, é, de certo

85 Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena


zur Geschichte des Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt 86 Tommaso. Ente ed essenza. Testo
am Main: Vittorio Klostermann, 1994 latino a fronte. Milano: Rusconi, 1995,
(3ª ed.), p. 53. p. 76.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 131
Aoristo)))))
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modo, todo o ente 87 . É recobre toda a envergadura do ser,


constitutivo do ser do homem toda a envergadura do sentido. Isto
descobrir todo o ente, pela possibilita a Tomás de Aquino
(aísthesis), a percepção, e encarar a alma intelectiva como um
pela (nóesis), a intelecção. ente privilegiado, a saber, como o
Entretanto, convém notar que a “ens quod natum est convenire cum omni
percepção humana, enquanto humana, ente”, o ente ao qual é nato o convir,
é já sempre dirigida pela intelecção isto é, o convergir com todo o ente
do que percebe. A intuição categorial (De veritate, qu. 1, art. 1 c)89. É antes de
atesta que nós já sempre vemos o tudo neste sentido que o homem é,
visível no invisível, isto é, o sensível como dizia os medievais, um “minor
sob a forma do inteligível. Assim, mundus”, um “microcosmo”.
todo o ente, à medida que pode ser Em Ser e Tempo, Heidegger usará
inteligido, conhecido o nome “Dasein”, ser-o-aí-do-ser, para
intelectivamente, pode se tornar um nomear esta abertura transcendental
conteúdo da intelecção, da “nóesis”, do pensamento ou do conhecimento
ou seja, pode se tornar um “nóema”. que potencialmente recobre todo o
Esta tese remonta, de certa ente, isto é, não só todo o modo
maneira, à tese ontológica de específico de um ente, mas também
Parmênides, que diz: toda a envergadura do sentido de ser
(tò do que quer que seja. Afirmar, porém,
gar autò noein te ka einai) - pois o este privilégio do pensamento de
mesmo é pensar e ser88. Pode-se dizer: coincidir com tudo o que, de alguma
o verdadeiro é a identidade de pensar maneira está sendo, com toda a
e ser. Identidade significa, aqui, envergadura do sentido de ser, não
coincidência. O pensar coincide com o quer dizer proceder a uma má
ser. Em sua abertura potencial, a alma subjetivação da totalidade do ente90.
intelectiva, isto é, o Dasein no homem, A verdade é o fundamento do
verdadeiro, tanto do verdadeiro do
87 Aristóteles: De anima, 8, 431 b ente em seu caráter de ser
21. Apud Heidegger, Martin. Ser e
Tempo (7ª Edição). Petrópolis / 89 Cf. Tomás de Aquino. Verdade e
Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, Conhecimento. São Paulo: Martins
2012, p. 50. Fontes, 1999, p. 146.
88 Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 90 Cf. Heidegger, Martin. Ser e Tempo

Os pensadores originários. Petrópolis: (7ª Edição). Petrópolis / Bragança


Vozes, 1991, p. 44-45. Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 50.
132

Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes


Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 132
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manifestador, referido ao conhecimento com o real, remete à


conhecimento, isto é, em seu ser noção de homōíosis) de
encontrável e descobrível, assimilável Aristoteles, presente no De
ao conhecimento, quanto do interpretatione I (16a 6s) 92 . As coisas
verdadeiro do conhecimento, em seu escritas - (tà
caráter de ser apreensivo e receptivo, graphómena) – mostram as vozes
em seu poder encontrar o que se doa articuladas na verbalização –
na intuição, tanto sensível quanto (tà en te phoné).
categorial, tanto individual como Estas, por sua vez, mostram as
específica, e em seu poder dar uma afecções da alma –
formação intencional a isso que ele (pathémata
encontra, descobre, abre ou desvela, tes psychés). Estas afecções (Erleidnisse)
no enunciado. Pode-se falar, assim, da alma, em termos de fenomenologia
com os medievais, de uma “veritas in da consciência, poder ser ditas como
re” e de uma “veritas in intellectus”. O as “vivências” (Erlebnisse), sendo que
verdadeiro no intelecto, porém, se dá estas são tomadas em sentido
em dois outros níveis, no nível da intencional, isto é, como estruturas
“simplex apprehensio”, simples noético-noemáticas.
apreensão, o ver simples, e no nível (tà pathémata), neste
da “propositio”, a verdade do caso, coincide com
enunciado, obra do “intellectus (noémata): o múltiplo
componente et dividente”. Temos, pensado do pensar. Destas afecções
assim, uma verdade pré-predicativa e na alma se diz que são
uma verdade predicativa. (homoiómata) –
A definição tradicional de semelhanças das coisas -
verdade, formulada na idade média, (prágmata). São, em certo
por sua vez, remete, por rodeios, à sentido, apresentações adequadoras
sua origem na grecidade 91 . De (angleichende Darstellungen) das
imediato a noção de “adaequatio”, coisas . Os pensamentos (no sentido
93
também entendida como
“correspondentia” ou “convenientia”, a
saber, de intelecto e coisa, do 92 Cf. Aristóteles. Da Interpretação
(Edição Bilingue). São Paulo: Unesp,
2013, p.
91 Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena 93 Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur

zur Geschichte des Zeitsbegriffs Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 244


(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt ( A caminho da linguagem. Petrópolis /
am Main: Vittorio Klostermann, 1994 Bragança Paulista: Vozes / EDUSF,
(3ª ed.), p. 73. 2003, p. 194).
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 133
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do pensado) são medida que acontecem no evento do


(homoiómata) das conhecimento. Eles são ditos
coisas, apresentações adequadoras, (homoiómata) à medida
no sentido de dar a conhecer, isto é, que têm adequação com as coisas.
mostrar as coisas tal como elas são. (tà homoiómata) diz,
Entre os pensamentos e as coisas não pois, o que é adequado, o que tem
há uma igualdade em espécie. No adequação - (homōíos
entanto, os pensamentos são échei) – com as coisas95. Mas, em que
apresentações adequadoras das sentido entender a adequação aqui
coisas, à medida que eles as dão a como na dinâmica do mostrar?
conhecer assim como elas são. Resposta: no sentido de um “assim-
“Qualquer conhecimento deve ‘dar’ a como”. Quer dizer: o pensar deixa
coisa assim como ela é” 94 . A encontrar o ente que vem ao encontro
homōíosis), adequação assim como ele é. Isso, por sua vez,
ou concordância, quer dizer este diz: o perceber (intelectivo) deixa
“assim como” que se estabelece entre encontrar o percebido, o ente mesmo,
os pensamentos (o pensado) e as tal como este é. Não se trata, aqui, de
coisas, entre intellectus e res. uma adequação do psíquico com o
Assim, o que se dá no físico, nem se trata de imagens.
comportamento ou relacionamento O que está em questão aqui é a
intencional da consciência, no experiência do conhecimento no
perceber ou cogitar, as cogitationes no sentido da mostração ou atestação
sentido (noemático) do cogitatum, dito (Ausweisgung) e da confirmação
ainda de outro modo, os (Bewährung). Vamos supor que eu
pensamentos – (tà diga a um amigo meu que mora no
pathémata) – enquanto exterior: “em Brasília há muitos Ipês
(noémata), são floridos no inverno”. Ele vem me
(homoiómata) das visitar num inverno e verifica, pela
coisas, isto é, apresentações que percepção in loco, que este enunciado
mostram as coisas tal como elas são, é verdadeiro. Dá-se-lhe a
naturalmente, à medida que eles dão confirmação: verdadeiramente, isto é,
a conhecer as coisas, quer dizer, à
95 Cf. Heidegger, Martin. Logik: die
Frage nach der Wahrheit
94Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª (Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: am Main: Vittorio Klostermann, 1995,
Vozes / EDUSF, 2012, p. 286. p. 167.
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de fato, “em Brasília há muitos Ipês mesmo e não a conteúdos de


floridos no inverno”. O que se visava consciência. O conhecimento é, pois,
no enunciado – este estado de coisas – um relacionamento de ser para com o
é o mesmo que se dá a perceber ser do ente. “Enquanto enunciado e
naquela percepção. “O enunciado é confirmação, o conhecimento é,
um ser para a própria coisa que é” segundo seu sentido ontológico, um
(Das Aussagen ist ein Sein zum seienden ser que, descobrindo, realiza seu ser
Ding selbst) 96 . Neste caso, na para o próprio ente real” 100 . O
confirmação, mostra-se, atesta-se, o conhecer se realiza, assim, como um
ser-descobridor do enunciado. ser-descobridor que visa o ser do ente
Importante, aqui, é a realização da real. O ser-descobridor (entdeckend-
mostração ou atestação sein) constitui o ser-verdadeiro (a
(Ausweisungsvollzug). Nela, “o próprio verdade) do enunciado. “O
ente visado mostra-se assim como ele é enunciado é verdadeiro significa: ele
em si mesmo, ou seja, que, em si descobre o em ente em si mesmo”101.
mesmo, ele é assim como se mostra e O ser do enunciado consiste
descobre sendo no enunciado” 97 . Na poder mostrar o ser do ente em si
confirmação (Bewährung) o que se mesmo. O relacionamento intencional
visa é o ente em si mesmo, não uma entre (tà pathémata),
representação do ente. “Confirmação respectivamente, (tà
significa: que o ente se mostra a si noémata), e (tà
mesmo” 98 . No conhecimento, o prágmata) se resume neste ser-
enunciado alcança confirmação. O descobridor. No enunciado, este
conhecimento é um comportamento relacionamento há de ser
intencional, isto é, um dirigir-se para, compreendido a partir da dinâmica
um orientar-se para algo, que se tem do falar como dizer, no sentido de
em mira. O conhecimento, como mostrar, do (légein) como
comportamento intencional, se dirige (hermeneúein),
ao ente mesmo e não a uma interpretar, no sentido trazer e expor
representação sua 99 . Ele visa o ente

96 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª


Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Vozes / EDUSF, 2012, p. 288. am Main: Vittorio Klostermann, 1995,
97 Ibidem (grifos de Heidegger). p. 100.
98 Idem, p. 289. 100 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
99 Cf. Heidegger, Martin. Logik: die Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Frage nach der Wahrheit Vozes / EDUSF, 2012, p. 289.
(Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt 101 Ibidem (grifo de Heidegger).

Intuição categorial e evidência, verdade e ser 135


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a mensagem, abrir e dar anúncio, dar apophaínesthai) e


a conhecer 102 . Daí segue que um deixar e fazer ver o ente como algo
estudo a respeito de e na esfera do desvelado (alethés), em
enunciado – do (lógos) – suma, des-cobrir”103.
deva se chamar
Enquanto
(De interpretatione).
apophaínesthai) o
O (lógos), o enunciado, tem a
(lógos) expõe o expõe o
função precípua de um
(phainómenon): o vir à
apophaínesthai):
luz do que irrompe, emerge, aparece.
deixar e fazer ver aquilo mesmo sobre
(phainómenon) remete a
o que discorre, a partir daquilo
 (phaínesthai) – o vir à luz,
mesmo sobre o que discorre. O
desde si mesmo, em si mesmo, por si
enunciar é compreendido, aqui, a
mesmo; o que remete a (phós),
partir do dizer e o dizer a partir do
luz, tanto no sentido de claridade,
mostrar, como um tornar acessível
quanto no sentido de fonte de
aquilo sobre o que discorre. Discorrer
claridade104. A claridade é o elemento
é discorrer sobre alguma coisa. Esta é
no qual tudo aparece. Aparecer
sua estrutura intencional. O 
significa tanto brilhar, resplandecer,
(lógos)
quanto manifestar-se. Isso nos remete
enquanto(apóphansis),
de volta à questão da evidência
isto é, enquanto mostração, revelação,
enquanto manifestação, aparecimento
é expor alguma coisa de alguma
fenomenal, o qual tem o seu próprio
coisa. Nele se cumpre um
lógos, isto é, sua própria articulação
(aletheúein), um ser-
de sentido, um modo de reunir-se e
revelador, um ser-desvelante. “O ‘ser
de expor-se, enfim, a sua própria
verdadeiro do  (lógos) fenomeno-logia.
enquanto (aletheúein)
diz: retirar de seu velamento o ente
sobre que se fala no (légein)
como
4. SER COMO VERDADE E
SER COMO CÓPULA
102Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur
Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 121- 103 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
122 – A caminho da linguagem. Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / Vozes / EDUSF, 2012, p. 72.
EDUSF, 2003, p. 96. 104 Cf. Idem, p. 67.

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Já se indicou que a razão, a Verdade vige, assim, como um sentido


evidência e a verdade, não se dão de ser: ser no sentido do ser-verdadeiro
apenas na esfera doxológica, teórica, (diferente, por exemplo, de ser no
mas também se dão na esfera sentido das categorias). Tomemos o
axiológica (afetiva) e na esfera prática enunciado: “a flor deste ipê é
(volitiva). Tradicionalmente, porém, a amarela”. O conteúdo enunciado
verdade é atribuída ao ato do deste enunciado é o ser-amarelo da
enunciar, isto é, os atos predicativos, flor deste ipê – é o estado de coisas
relacionantes, que se realizam na julgado. Nele pode-se distinguir algo
esfera doxológica, teórica. Mas uma dúplice: ser-amarelo. Esta ênfase no
análise intencional da verdade nos ser tem em mente: a flor deste ipê é
remete de volta à evidência pré- realmente amarela, ela é de verdade
predicativa. A fenomenologia se amarela. Ser vige, aqui, como ser real,
volta, sem consciência explícita, para ser efetivo, ser de verdade. O que está
a amplitude do conceito de verdade, em questão, aqui é: existe a
nos gregos (mais precisamente, conjuntura veritativa, o
Aristóteles), em que também a relacionamento de verdade, ou seja,
percepção como tal e o simples subsiste a identidade de presumido e
perceber de algo podem ser intuído, entre o enunciado e o
chamados de verdadeiros. A análise percebido em que se cumpre a
fenomenológica da evidência confirmação. Ser no sentido do ser-
evidencia, pois, que também atos não verdadeiro quer dizer, aqui: o constar
relacionantes, monoradiantes, da verdade, da conjuntura
monotéticos, tem igualmente a (relacionamento) veritativa (o), o
possibilidade de mostração e constar da identidade. O enunciado
atestação. A fenomenologia rompe, quer expressar o ser verdadeiro do
assim, com a restrição do conceito de estado de coisas julgado105.
verdade a atos relacionantes, juízos. A Um outro sentido de ser que
verdade dos atos relacionantes é aparece no enunciado é o do ser como
apenas uma determinada espécie de cópula. Toma-se em consideração, de
ser-verdadeiro dos atos objetivantes novo, este algo dúplice: ser-amarelo.
do conhecimento como tal. Tudo isso Só que a ênfase, agora, se dá do lado
abre novas possibilidades para se
pensar a conexão de verdade e ser.
Um primeiro conceito de 105Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
verdade a toma como o constar da zur Geschichte des Zeitsbegriffs
identidade do presumido e do intuído (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
– verdade como ser-verdadeiro. am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 71-72.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 137
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contrário: ser-amarelo. A ênfase em mesmo. A conjuntura de verdade


“amarelo” evoca a fórmula: S é P. subsiste, portanto, ela é verdadeira106.
Ressalta-se, agora, o ser-P de S. Neste
caso, o enunciado “a flor deste ipê é
amarela” quer expressar o ser-p de S: o 5. A EVIDÊNCIA DO SER
convir do predicado com o sujeito. Aqui é A fenomenologia amplia o
intencionado o ser da cópula: “a flor conceito de verdade, bem como o
deste ipê é amarela”. O que se conceito de ser. O Conceito de
intenciona não é o subsistir da verdade não concerne somente ao
conjuntura, do relacionamento da intellectus, mas também à res. O
verdade (Bestand des Sachverhaltes), conceito de ser não concerne somente
mas um momento estrutural do à res, mas concerne também ao
estado de coisas (Sachverhalt) mesmo. intellectus, isto é, ao pensar, ao
O estado de coisas consiste, aqui, na conhecer. Enfim, uma interpretação
conjuntura, no relacionamento fenomenológica de ser e verdade faz
(Verhalt), cuja estrutura formal se aparecer ser como verdade e verdade
deixa enunciar como S = P. O sentido como ser.
de ser, aqui, aparece como fator de A intuição categorial abre uma
relacionamento do estado de coisas possibilidade para isso. Há um
como tal. Este sentido de ser se perceber sensitivo, há também um
distingue, pois, do sentido de ser perceber intelectivo. Assim como há
como conjuntura de verdade. Aquele uma intuição sensível, há também
dirige o olhar para a existência e uma intuição categorial. Assim como
subsistência do estado de coisas na há uma apreensão ôntica (do ente), há
conjuntura da verdade (Bestand und também uma apreensão ontológica
Stehen des Sachverhaltes im (do ser e de suas determinações). Os
Wahrverhalt). Trata-se de ser no gregos tinham a palavra
sentido da verdade interpretado aísthesis), que quer dizer a
como existência da identidade de percepção sensitiva com sua intuição
presumido e intuído. Isso significa: o e evidência, e tinham o verbo
estado de coisas como meramente (noein) que significava o
presumido é verdadeiro enquanto perceber intelectivo com sua intuição
demonstrado no estado de coisas e evidência. A (aísthesis) é a
simples percepção sensitiva de

106 Cf. Idem, p. 72-73.


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alguma coisa. Ela é uma forma de relacionamento de ser com o ser, a


descobrimento. A visão, por exemplo, saber, um relacionamento que
descobre cores; a audição, descobre acontece no modo do ser-desvelante-
sons; o paladar, sabores, etc. Na do-ser. É, assim, o acontecer do
percepção e para ela algo se torna desvelar do ser, que está sempre
acessível. Cada forma perceptiva vigente no encontro com o ente, quer
sensorial (sentido) tem a sua no descobrir do ser do ente que não
evidência. A evidência visual é somos e que nos vem ao encontro
diversa da evidência auditiva, da dentro do mundo, quer no abrir-se do
evidência tátil, etc. Do mesmo modo, ente que somos. Em todo o caso, este
cada um dos sentidos tem sua desvelamento do ser se dá de modo
verdade. Esta verdade consiste no seu estruturalmente prévio, como
ser-descobridor. Deste modo, quando constitutivo, como condição de
a visão descobre cores acontece uma possibilidade, de todo o
verdade perceptiva visual. Na descobrimento do ente que não
medida em que, pelo modo próprio somos, bem como de toda abertura do
de descobrir que cada percepção ente que somos.
sensitiva realiza, tornar-se acessível o A apreensão do ente enquanto
ente que lhe corresponde nela e para ente, ou seja, a apreensão do ser e de
ela, pode-se falar de uma verdade da suas determinações simples e
percepção sensitiva. Por sua vez, originárias, está na base de todo e
verdadeiro é (noein), o perceber qualquer apreensão. A compreensão
intelectivo, à medida que desvela, do ser é estruturalmente prévia a e a
numa simples apreensão, o ser do base de toda compreensão108. Por ser
ente em sua simplicidade, bem como o mais simples e o mais comum, o ser,
as suas determinações simples 107 . em sua doação, não chama a atenção.
O(noein) é um perceber Vivemos sempre na apreensão e
(vernehmen) que se realiza no modo compreensão do ser, embora só muito
de um receber (annehmen) o dar-se do raramente é que o tornamos tema de
ser mesmo em sua simplicidade e em nosso estudo, de nossa meditação. O
suas determinações simples, ele ser é o que há de mais claro. E, no
realiza uma intuição, que tem a sua entanto, tematicamente, nós nos
própria evidência, aquela ontológica. relacionamos com sua evidência
O (noein) é, pois, um como o morcego com a luz, segundo
uma famosa passagem de Aristóteles
que diz:
107Cf. Heidegger, Martin. Ser e Tempo
(7ª Edição). Petrópolis / Bragança
Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 64. 108 Cf. Idem, p. 28.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 139
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 mas como que às apalpadelas. O não


 verdadeiro, aqui, não consiste
 propriamente no falso, mas no
 ignorar - (agnoeín = não
(hósper gàr perceber). É quando o (noein)
tà tōn nykterídōn ómmata pròs tò não é “suficiente para um acesso
phéggos tò meth’ heméran, hoútō kaì tes adequado, puro e simples”111.
hemetéras psychés ho nous pròs tà te O ser é o que nos é mais
physei phanerótata pántōn) – assim pois próximo. O que se dá ao
como os olhos do morcego se (noein) é “a proximidade mais
comportam em face da luz do dia, própria, dentro da qual não há
assim também o intelecto que está em nenhuma distância” 112 . Nós somos
nossa alma se comporta em face sempre em face desta proximidade
daquelas coisas que por natureza são mais próxima do ser (Dasein).
as mais manifestas109. Fazendo eco a Estamos no ser. O mistério de ser nos
Aristóteles, no século XIII, e falando compreende e nos perpassa. O
da luz do ser, Boaventura de desvelamento do ser está sempre
Bagnoregio disse: “Mira igitur est acontecendo em nós e para nós. E, no
caecitas intellectus, qui non considerat entanto, tematicamente, o ser nos é o
illud quod prius videt et sine quo nihil mais distante. Em sendo, quer dizer,
potest cognoscere” (Admirável, pois, é em vivendo na abertura da
a cegueira do intelecto, que não compreensão e intepretação, bem
considera aquilo que por primeiro vê como na abertura da linguagem e do
e sem o que não pode conhecer) 110 . discurso, apreendemos e
Assim, quando se trata da evidência compreendemos ser, vivemos, pois,
do ser, vemos, mas não vemos que na sua proximidade mais próxima.
vemos. Admirável é esta cegueira, Mas, tematicamente, ignoramos o ser.
pois não vê que vê o que há de mais
evidente. Conhecemos, aqui, o ser, 111 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
109 Cf. Aristóteles, Metafísica II) Vozes / EDUSF, 2012, p. 73. Cf.
993b 9-11. Aristóteles, Metafísica (IX) 1051 b
110 Boaventura de Bagnoregio. 25 e 1052 a 2.
Itinerarium Mentis in Deum, V, n. 4. Cf. 112 Heidegger, Martin. Logik: die Frage

Boaventura de Bagnoregio. Escritos nach der Wahrheit (Gesammtausgabe


filosófico-teológicos. Porto Alegre: Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio
EDIPUCRS / USF, 1999, p. 334. Klostermann, 1995, p. 180.
140

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Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 140
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Vivemos, assim, no esquecimento do saber, o acontecer ôntico-ontológico


ser. Vemos, mas não vemos que fundamental do humano enquanto
vemos aquilo que de modo simples abertura do relacionamento de ser
(schlicht) se nos dá: o ser. Este ver com o ser do ente, com o todo. É “a
acontece como um “ver simples” própria presença, a própria abertura,
(schlichtes Sehen), como um simples a clareira que é o próprio
apreender (schlichtes Erfassen) da experienciar, o próprio vivenciar, o
perceptividade (Wahrgenommenheit) manifesto, a ‘aparescência’, o
do que se apresenta, e presente, se phainómenon: o Da-sein ou o ser-no-
doa no modo de uma datidade viva mundo” 116 . Evidência, é, pois,
(leibhaftig), no modo da presença em originariamente, o saltar para fora (ex)
carne e osso, em pessoa 113 . da vidência, que é experiência e que
Simplicidade (Schlichtheit) quer dizer, nos constitui como abertura de
aqui, unigradualidade mundo 117 . Esta evidência originária
(Einstufigkeit)114. nós não a temos. Nós a somos. Ela é
Há, pois, diversos tipos de constitutiva de nosso ser-no-mundo.
experiência de evidência e de Coincide com a abertura de mundo
evidência da experiência. A que somos nós, com a transcendência
experiência se dá, aqui, como uma de nossa existência. Neste sentido,
simples apreensão: “significa,
portanto, perceber, captar algo, de
imediato e corpo a corpo, de cabo a
116 Idem, p. 132.
117 A palavra “evidência” vem do latim
rabo, de tal forma que esse algo,
evidentia: primordialmente, a
aquilo que se capta, torne-se trans-
visibilidade, a possibilidade de ver; por
(per) – parente (aparecente). Trata-se,
conseguinte, a clareza. Por sua vez,
pois, da percepção simples, imediata, evidentia remete ao verbo evideri (ex =
da coisa ela mesma: evidência” 115 . dinâmica de exteriorização; videri =
Este ver simples é um acontecer, a medial ou passivo de video, portanto,
deixar-se e fazer-se ver, mostrar-se,
113 Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena aparecer, parecer, ser visto). Sendo
zur Geschichte des Zeitsbegriffs medial, o verbo evideri expressa a
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt dinâmica de um movimento todo
am Main: Vittorio Klostermann, 1994 próprio, a saber, o movimento da e-
(3ª ed.), p. 64; 101. videnciação, ou seja, o movimento que,
114 Cf. Idem, p. 82. a partir de si e em si, na sua autonomia,
115 Harada, Hermógenes. Fragmentos se dá como mostrar-se, deixar-se e
de pensamento humano-franciscano. fazer-se ver, vir à luz, surgir, e, assim,
Org.: Ênio Paulo Giachini. Curitiba: Ed. como tomar corpo, apresentar-se, ao
Bom Jesus, 2016, p. 127. mesmo tempo, incandescer, brilhar.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser 141
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não somos nós que a temos, é ela que auto-mostração (-äugnis) do mistério
nos tem. de ser. O mistério se esconde não por
A evidentia seria, portanto, a falta de clareza, mas por excesso. É o
clareira, o olho da luz, que impregna, “manifestíssimo por natureza”. O que
em diferentes modos de presença, o tudo desvela, o desvelamento
que se apresenta, em suma, a originário, acaba por permanecer
condição da possibilidade do velado para nós. A visibilidade que
manifestar-se de todo o fenômeno. tudo torna visível, a perceptividade
Sendo a condição de possibilidade de que possibilita todo o perceber e todo
toda a visão, isto é, de todo o ver e de o percebido em suas correlações, fica
todo o visto, a vidência da evidência invisível, permanece imperceptível
não pode ser vista como isto ou para nós, de início e na maior parte
aquilo, mas ela é a experiência medial das vezes, à medida que dela nos
do ver, isto é, de um ver que cresce a esquecemos, que a ignoramos.
partir de si, em si, por si e para si Parusia (Ereignis) vige, pois, como a
mesmo. É a abertura na qual irrompe mira originária (Ur-äugnis), que deixa
uma iluminação, que faz e deixa e faz aparecer, na coincidência de ser
surgir o mundo como mundo. A e pensar, a aberta (Lichtung) da
vidência da evidência é, pois, um ser presença (Da-sein), e que, assim, deixa
no qual o mundo se torna mundo. e faz o homem morar na verdade de
Esta é, pois, no fundo, a vidência do ser.
ser-no-mundo, a vidência da
intencionalidade, e, por conseguinte,
a vidência da consciência. Graças a REFERÊNCIAS
esta vidência, o homem é o que ele é: ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO.
a abertura da revelação do ser. O Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes,
acontecer da revelação do ser é a 1991.
evidência que nos constitui como esta ARISTOTELE. Metafisica. Milano: Rusconi,
abertura, que é sempre temporal- 1994.
histórica. A revelação do ser é, ARISTOTELE. Anima (testo greco a fronte).
Milano: Rusconi, 1998.
originariamente, o acontecer
BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Escritos
fundamental e único que diz: há ente. Filosófico-Teológicos. Porto Alegre:
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Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes


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