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As vivências intencionais segundo Edmund Husserl


Intentional experiences according Edmund Husserl

Matheus Felipe de Oliveira Nunes48

Resumo
A noção de intencionalidade tem origem mais conhecida nos escolásticos da Idade Média,
especialmente em Tomás de Aquino, mas passou completamente despercebida durante toda a filosofia
moderna, devido à forte ênfase dada à subjetividade pelos autores do período. O conceito de intentio
só foi redescoberto pelo filósofo e psicólogo alemão Franz Clemens Brentano (1838-1917) e terá
influência profunda na fenomenologia de Edmund Husserl e nos fenomenológos posteriores, como
Merleau Ponty. Pretendemos, neste artigo, expor o conceito de vivência intencional na fenomenologia
de Husserl. Para que possamos fazer isso, é necessário primeiramente que entendamos o conceito de
“vivências psíquicas” ou real psíquico, para que depois passemos à explicação do que é a
intencionalidade e como ela é essencial à toda vivência psíquica. Assim entenderemos que a
fenomenologia faz uso da noção de intencionalidade para explicar como toda vivência psíquica tem a
propriedade da intentio, e tendo essa propriedade, tem uma característica importante: a de se dirigir a
um objeto.

Palavras-chave: Intencionalidade. Vivência. Fenomenologia. Objeto. Filosofia Contemporânea.

Abstract
The notion of intentionality is best known in the Middle Ages scholastics, especially in Thomas
Aquinas, but it went completely unnoticed throughout modern philosophy, due to the Strong emphasis
placed on subjectivity by the authors of th period. The concept of intentio was only rediscovered by
the german philosophy and psychologist Franz Clemens Brentano (1838-1917) and will have a
profound influence on the phenomenology of Edmund Husserl ando n later phenomenologists such as
Merleau Ponty. In this article, we intend to expose the concept of intentional experience in Husserl´s
phenomenology. In order for us to do this, it is first necessary that we understand the concept of
“physic experiences” or physic reality, so that we can then move on to explaining what intentionality
is and how it is essential to every physic experience. Thus, we will understand that phenomenology
uses the notion of intentionality to explain how every physic experience has the property of intentio,
and having this property, it has an importante characteristic: the direction to the object.

Keywords: Intentionality. Experience. Phenomenology. Object. Contemporany Philosophy.

1. Introdução

A noção de intencionalidade é uma das mais importantes da filosofia medieval. Não


que não apareça de algum modo na Antiguidade49. Mas é na filosofia escolástica que este
conceito aparece de forma mais clara. A noção de intentio não é importante apenas porque
está presente em várias discussões de metafísica e teoria do conhecimento, mas também

48
Mestrando pela UNESP. E-mail: matheus.felipe.nunes@usp.br.
49
Há uma discussão sobre a verdadeira origem da noção de intencionalidade, ou seja, se já há essa noção na
filosofia aristotélica, ainda que de modo obscuro, ou se sua origem é de fato medieval.

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porque exprime um modo de pensamento, que será praticamente abandonado na


modernidade. Sem esse conceito tornar-se-iam impossíveis as correntes fenomenológicas do
século XX.
Na quinta investigação de Husserl, uma das mais importantes, por exemplo, vemos em
um dos parágrafos o título “Sobre as vivências intencionais e seus conteúdos”. Pelo fato da
palavra conteúdo ter várias acepções na filosofia e no senso comum, vamos explicar o que
Husserl quer dizer. Um dos sentidos, por exemplo é o espacial 50. Assim, quando dizemos que
o conteúdo de um shampoo é de 200 ml, o conteúdo aqui é aquilo que está espacialmente
dentro de outro. Há também o sentido mereológico51: neste sentido, conteúdo é entendido
como parte de um todo, então, os conteúdos de uma mochila seriam o zíper, a alça, etc. Mas o
sentido usado por Husserl é outro que não os dois citados anteriormente: é sentido objetivo da
palavra conteúdo. E quando o filósofo fala dos “conteúdos das vivências intencionais”,
devemos entender que isto se refere ao fato de que as vivências intencionais sempre têm uma
direção: um objeto. Esse é o tema de nosso artigo.
Os passos que iremos seguir em nosso texto serão os seguintes: Primeiramente,
explicaremos o que é uma vivência psíquica, fundamental na fenomenologia. Posteriormente,
explicaremos o conceito de intentio e mostraremos que a vivência intencional é a vivência
que tem a propriedade da intentio. Por fim, veremos como a noção de intentio ficou esquecida
durante a filosofia moderna.
Comecemos pelo conceito de vivência, também chamada de vivência psíquica ou de
reell.

2. As vivências psíquicas

As vivências psíquicas, são também chamadas por Husserl, simplesmente de


vivências, ou de reell. A palavra “reell” se difere da palavra “real” na língua alemã. Real
(vem do latim “res”, que significa “coisa”) é o real metafísico, ou seja, qualquer objeto que
não dependa de um ato mental para existir (o homem, o cavalo, a pedra são reais neste
sentido, mas, a sereia, a quimera e a fênix não: são entes de razão ou entes forjados pelo
pensamento). Ou seja, é um ente cujo ser independe de qualquer operação do pensamento.

50
Esta é a acepção mais popular da palavra conteúdo.
51
Em grego ‘mereos’ significa parte. A Mereologia é uma área da Metafísica que discute a relação entre todos e
partes.

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Já o reell é um tipo de real: o real psíquico (ou seja, não está incluso o real físico),
também chamado de vivência psíquica. Como no português não há um correspondente da
palavra reell (psíquico), que a diferencie do real metafísico, usarei a palavra reell
simplesmente para me referir ao real psíquico.
O reel (ou vivência psíquica) é o real psíquico enquanto pode ser vivenciado. Por
exemplo: Quando vejo o vermelho da parede, o vermelho da parede é real (res, coisa), e como
todo real, pode ser captado (mas não produzido) pelos sentidos ou pelo pensamento, assim
como toda cor, todo som, todo sabor, etc. Ora, já que o vermelho da parede é o real, o que é
então o reell ou a vivência psíquica? O meu ato de ver. Assim como meu ato de ouvir,
cheirar, imaginar, amar, odiar etc: todos esses atos são vivências psíquicas. Husserl define a
vivência do seguinte modo
[...] são vivências ou conteúdos de consciência as percepções, as representações da
fantasia e as representações de imagem, os atos do pensamento conceitual, as
suposições e dúvidas, as alegrias e as dores, as esperanças e os temores, os desejos e
as volições, e coisas semelhantes, tal como têm lugar na nossa consciência. E, com
essas vivências na sua totalidade e plenitude concreta, as partes e momentos
abstratos que as compõem são também vividos, as partes e os momentos abstratos
são conteúdos de consciência reais. Naturalmente, de pouco importa se as partes em
questão são, por si mesmas, articuladas de algum modo, se elas são delimitadas por
atos que lhes estejam referidos, e, especialmente, se elas são, por si mesmas, objetos
de percepções “internas”, que as captem na sua existência de consciência, e se, de
um modo geral, elas o podem ser ou não (HUSSERL, 2012, p. 379).

O que é vivenciado, no sentido fenomenológico, é o ato de ver, ou de ouvir, ou de


imaginar, ou de cheirar, de querer, de não querer, etc e não o objeto visto, ouvido, imaginado,
etc. Quando imagino uma sereia, a sereia imaginada é o conteúdo objetivo da minha vivência,
e não o conteúdo mereológico. Se fosse o conteúdo mereológico, ao imaginar uma sereia, eu
me tornaria uma, o que seria absurdo e inimaginável. Esta é uma tese fundamental pois se
disséssemos que o vivenciado é o objeto, estaríamos aderindo à tese psicologista52.
O psicologismo defende a tese de que o vivenciado não é o meu ato de audição do
som da bomba (por exemplo), mas sim, o próprio som da bomba. Se aceitarmos esta tese,
estaríamos aceitando a seguinte premissa: que o objeto é parte integrante do sujeito, já que o
objeto seria aquilo que é vivenciado pelo sujeito.
Em sentido oposto, para a fenomenologia, o vivenciado é o ato de ver, enquanto o
vermelho da caneta é o objeto. Assim como quando imagino uma sereia, o vivenciado é o ato

52
O psicologismo é um tipo de reducionismo: reduz todos os fatores não psíquicos (biológicos, lógicos,
linguísticos, etc.) a fatores psíquicos.

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de imaginação, e a sereia é o objeto (ainda que não seja um objeto sereia não seja real, o ato
de imaginar é real).
As vivências psíquicas são distintas porque as realidades psíquicas dos indivíduos
psíquicos são diferentes, e não porque os objetos são diferentes. O psicologismo erra ao
afirmar que, quando eu vejo o vermelho da parede, eu vejo o “meu” vermelho da parede, e
quando outro sujeito vê este mesmo vermelho da parede, ele vê o vermelho da parede “dele”:
é uma confusão entre a vivência e o conteúdo sensível, pois diz que o vivenciado é o
vermelho (que é um conteúdo sensível), e não o ato de ver, imaginar, ouvir, amar, odiar etc.
Se cada um vê o seu vermelho da parede, e assim com todos os conteúdos sensíveis de nossas
vivências, como seria possível falarmos do mesmo objeto? O psicologismo diz que o objeto é
parte integrante do sujeito, e mais: confunde a sensação (ex: o ato de ver) com o conteúdo de
sensação (ex: o vermelho da parede enquanto percebida).
Essas e outras confusões também foram feitas por outros filósofos não-psicologistas,
como Locke (distinção de qualidades primárias e qualidades secundárias). Outros, como Paul
Natorp, herdeiro do idealismo alemão, confundiram sujeito e objeto da sensação. Para Natorp,
não há cisão entre sujeito e objeto, mas apenas uma identidade entre os dois, ou uma sujeito-
objetividade. No idealismo alemão, a cisão entre sujeito e objeto é apenas ilusória, pois são
apenas modos de considerar a mesma coisa, isto é, o Absoluto.
Em Locke, as cores, os odores, os sabores, os sons, são qualidades secundárias, ou
seja, não existem no objeto, mas sim, no sujeito: todas as qualidades sensíveis se tornam algo
do plano meramente subjetivo, ou seja, são disposições subjetivas, não propriedades das
coisas e cada um tem sua sensação de cor.
[...] enquanto ideias de qualidades primárias de corpos são semelhantes a eles, e
seus parâmetros realmente existem nos corpos mesmos, ideias produzidas em nós
por qualidades secundárias não têm nenhuma semelhança com eles. Não existe nada
como nossas ideias nos corpos mesmos. Há nos corpos, e denominamo-los a partir
deles, o poder de produzir sensações em nós. Aquilo que é doce, quente ou azul, em
ideia, é apenas, nos corpos mesmos, volume, figura e movimento de partes
imperceptíveis. (LOCKE, 2012, p. 134).

A respeito da distinção de qualidades primárias e secundárias, Brum nos diz o


seguinte:
Seja como for, Locke afirma que as qualidades primárias são inseparáveis dos
corpos, e que as qualidades secundárias são meros poderes que os objetos possuem
de produzir ideias na mente. De acordo com ele, a operação de partículas
imperceptíveis em nossos sentidos produz ideias na mente. Nossos nervos, uma vez
afetados por objetos externos, transmitem um movimento ao cérebro que resulta na
percepção de ideias pela mente (...)Locke volta a falar sobre a semelhança entre as

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qualidades intrínsecas dos corpos (suas qualidades primárias) e a percepção que


temos das mesmas em nossas mentes através de ideias. Para ele, apenas ideias de
qualidades primárias são semelhantes aos corpos (BRUM, 2017, p. 49)

Estas concepções da filosofia lockeana decorrem da confusão entre objeto percebido


e a vivência. Ora, a minha sensação de azul não é o objeto azul. Na visão fenomenológica, a
cor, o odor, etc. são do objeto e não do sujeito. A cor percebida é objetiva.
É possível percebermos que a palavra “vivência” na fenomenologia difere do modo
com essa palavra é usada no senso comum. Por isso, Husserl distinguiu o sentido popular do
sentido fenomenológico de vivência:
Se alguém diz: “vivenciei as guerras de 1866 e 1870” aquilo a que nesse sentido, se
chama “vivenciado” é uma complexão de acontecimentos externos, e o vivenciar
consiste, aqui, em percepções, ajuizamentos e outros atos, nos quais estes
acontecimentos se tornam uma aparição objetiva e, frequentemente, objetos de um
certo ato de posição referido ao eu empírico. A consciência que os vivencia, no
sentido fenomenológico para nós determinante, não tem naturalmente em si estes
acontecimentos, tal como as coisas que deles fazem parte, enquanto suas “vivências
psíquicas”, enquanto seus elementos reais integrantes ou conteúdos, O que ela
encontra em si, o que nela está realmente disponível, são os atos correspondentes do
perceber, do julgar etc., juntamente com o seu material de sensação sempre mutante,
o seu teor de apreensão, os seus caracteres posicionais etc. E, assim, também o
vivenciar significa, aqui, qualquer coisa completamente diferente do que significava
no caso precedente. Vivenciar os acontecimentos externos significa: ter certos atos
de percepção, de cognição (seja como for que se determinem), e outros semelhantes,
dirigidos para estes acontecimentos. Esse “ter” oferece-nos desde o início um
exemplo para o tipo totalmente diferente de vivenciar que está em questão no
sentido fenomenológico (HUSSERL, 2012, p. 299-300)

Em outras palavras, no sentido popular, digo que vivenciei as guerras de 1866 e 1870.
Ou seja, no senso comum, dizemos que o vivenciado é o objeto.
No sentido fenomenológico, ao contrário, não digo que vivenciei a guerra, já que a
guerra é o objeto. E, como já dissemos, o objeto não pode ser vivenciado. Portanto,
fenomenologicamente, é correto dizer que vivenciei a audição do tiro, a audição da bomba, o
medo da guerra, o ódio da guerra etc. Vivenciamos nossas percepções, nosso sentimento,
nossas paixões, mas não o fato: o fato é percebido, não vivenciado. Se a guerra fosse
vivenciada, o objeto seria dissolvido na vivência, e cada um teria a sua guerra, e, novamente,
cairíamos no psicologismo, que confunde o objeto com o sujeito e suas partes integrantes.
O “fenômeno” que é o objeto da fenomenologia não é aquilo que aparece, como é
usado no sentido kantiano por exemplo, mas sim, aquilo que faz aparecer. Em outras
palavras, o fenômeno não é o objeto da vivência - o bege da parede por exemplo - mas o ato
de percepção visual que faz com que o objeto da vivência (neste caso, o bege da parede)
apareça.

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3. A intencionalidade como essencial às vivências. Toda vivência é uma vivência


intencional.

É essencial para esta parte do artigo, entendermos a importância do conceito de


intentio. A origem deste conceito é aristotélica, e tinha ficado esquecido em grande parte pela
filosofia moderna, até que em 1874, o brilhante filósofo Franz Brentano, que foi professor de
Edmund Husserl e Sigmund Freud, escreveu a sua mais famosa e importante obra “Psicologia
do ponto de vista empírico”. Nesta obra, Brentano redescobre o conceito de intencionalidade,
muito usado na filosofia medieval. Uma famosa passagem de Brentano diz que:
Todo fenômeno mental é caracterizado por aquilo que os escolásticos da Idade
Média chamaram a inexistência intencional (ou mental) de um objeto, e aquilo que
podemos chamar, ainda que de forma não completamente não-ambígua, referência a
um conteúdo de direção, no sentido de para um objeto (que não deve aqui ser
entendido como querendo dizer uma coisa), ou objetividade imanente. Todo o
fenómeno mental inclui algo em si como objeto, embora nem todos o façam da
mesma maneira. Na representação algo é representado, no juízo algo é afirmado ou
negado, no amor amado, no ódio odiado, no desejo desejado, e assim por diante.
Esta "in-existência" é uma característica exclusiva dos fenômenos mentais. Nenhum
fenômeno físico exibe nada parecido. Poderíamos, portanto, definir os fenômenos
mentais, dizendo que eles são aqueles fenômenos que contêm um objeto
intencionalmente dentro de si. (BRENTANO, 1995, p. 88-89)

A palavra latina “intentio” pode ser traduzida para o português como intenção. Na
filosofia, essa palavra é uma homonímia, pois há duas acepções importantes que têm
significados totalmente diferentes, e é apenas um desses significados que nos interessa aqui:
1-) Intenção pode significar um propósito. Este é o sentido usado no senso comum. É
um ato da vontade ou;
2-) Intenção pode significar relação ao objeto, e é este significado que nos interessa, já
que é o significado usado pela fenomenologia. Mas qual o significado disso?
Intenção é a propriedade que uma vivência psíquica tem de ter nela algo como objeto.
A intenção é o que torna a vivência psíquica uma vivência intencional, e ter a propriedade da
intentio ou ser uma vivência intencional significa: ter a propriedade da relação ao objeto.
Aliás, intentio significa literalmente “tender para”. Segundo Dario Teixeira Filho: A
intencionalidade de uma vivência consiste em sua propriedade de referir-se a um objeto ou,
melhor, a uma objetualidade. Nas suas Investigações Lógicas, Husserl se propõe a usar o
termo ‘objetualidade’ para designar aquilo a que um ato mental refere-se intencionalmente
(TEIXEIRA FILHO, 2001, p. 36)

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Quando vejo o bege da parede, o ato de ver se dirige ao bege. Essa relação ao objeto
(no caso a parede percebida), também chamada de relação intencional, é uma propriedade da
vivência psíquica (não do objeto). No exemplo dado acima, a parede enquanto percebida é o
objeto intencional. A relação intencional ou intencionalidade é o que aponta para este objeto.
A relação intencional é a “flecha”, no sentido de que aponta para um objeto. Nessa
analogia, o objeto é o alvo a ser atingido e a flecha é a intencionalidade.
Ora, se todas as vivências possuem esta propriedade, é possível falar de uma vivência
psíquica não intencional? Sim, mas apenas fazendo uma abstração: toda vivência psíquica não
intencional só existe se considerada como uma parte abstrata de uma vivência intencional, já
que não há vivência sem que essa vivência se dirija a um objeto. Concretamente, toda
vivência é intencional, isto é, se dirige a um objeto: quando amo, amo algo, quando odeio,
odeio algo, quando percebo, percebo algo etc. Este “algo” que percebo, amo, odeio, julgo,
represento etc. é o objeto, ao qual toda vivência se dirige. Sobre a intencionalidade
Quando imagino uma sereia, o meu ato de imaginação (aquilo que vivencio no sentido
fenomenológico) se dirige ao objeto sereia. O objeto sereia não é real, mas sim um ente de
razão, mas a direção ao objeto não precisa ser a um objeto real, mas a qualquer objeto53.
Além disso, há vários modos ao qual posso me dirigir a um objeto. Posso me referir a
Napoleão como “vencedor da batalha de Jena” ou “perdedor da batalha de Waterloo” (este
exemplo é dado por Husserl e Frege). O objeto é o mesmo: Napoleão. Mas o modo de
referência muda. Ora, mas quantos modos de referência há para cada objeto? São infinitos.
Posso me referir a um mesmo objeto com infinitas referências dos mais variados tipos.
Esses modos de se dirigir a um objeto podem variar tanto na matéria intencional, (por
exemplo, perdedor da batalha de Waterloo e vencedor da batalha de Jena) como na qualidade
intencional (por exemplo, se o objeto é representado, imaginado, julgado, querido, não
querido, etc.). Quando a variação se dá na matéria intencional e na qualidade intencional, se
altera também a essência intencional (qualidade + matéria)
Em outras palavras, o modo tal como intenciono o objeto (ex: perdedor da batalha de
Waterloo), não é a única coisa que muda na referência ao objeto: o que também muda é que
posso representar, julgar, amar, odiar etc. Ou seja, posso me referir a um objeto dos seguintes
modos: “Perdedor da batalha de Waterloo” ou que “o vencedor da batalha de Jena é branco”.

53
Para algo ser objeto de uma vivência, não é necessário que seja real. Há objetos de nossa imaginação e de
nosso pensamento que não são reais, como a sereia, a quimera, as trevas, etc.

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Nesses casos, o objeto é o mesmo (Napoleão), a matéria intencional muda (o primeiro se


refere a Napoleão como perdedor da batalha de Waterloo e o segundo como vencedor da
batalha de Jena) e a qualidade intencional muda (o primeiro é uma representação, o segundo é
um juízo), e, como há alteração na matéria intencional e na qualidade intencional, também há
mudança na essência intencional (qualidade intencional + matéria intencional).
Conclui-se, assim, que há na relação de conhecimento três esferas:
1-) A esfera da vivência intencional, isto é, dos conteúdos psíquicos do sujeito que
Husserl chama de “eu empírico”;
2-) A esfera da intencionalidade, ou seja, da relação ao objeto, que é propriedade de
toda vivência;
3-) Por último, a esfera do objeto, que é aquilo ao qual a intentio se dirige. Seja esse
objeto imaginado, visto, ouvido, pensado, querido, não querido etc.
Sobre a intencionalidade, diz Mário Porta:
Todavia, a afirmação de um reino de “objetividades nos deixará sempre com a
metade da temática fenomenológica. A pergunta pelo sujeito não é uma pergunta
husserliana entre outras, senão momento imprescindível do sentido originário da
interrogação fenomenológica. Tarefa básica dela é dar conta da “passagem do
subjetivo ao objetivo” ou da apreensão do “objetivo” a partir do “subjetivo”, sendo
seu conceito neural, a intencionalidade, momento chave da resposta (PORTA, 2002,
p. 171)

4. O esquecimento moderno da noção de intentio

Durante a filosofia moderna, houve um esquecimento da noção de intencionalidade,


devido principalmente à grande influência da filosofia cartesiana. Na filosofia de Descartes,
há uma consciência separada do mundo que é uma intuição intelectual54, isto é, o cogito.
O afastamento do racionalismo à concepção realista medieval se deve ao fato do ponto
de partida das correntes subjetivistas ser as representações do sujeito, não o mundo real,
externo ao sujeito cognoscente. No caso do racionalismo especificamente há uma recusa ao
chamado “senso comum” e ao conhecimento dado pelos sentidos, portanto, a consciência
cartesiana não precisa de um objeto ao qual se dirija, já que há uma consciência pura separada
do mundo, como vemos na seguinte passagem:
Mas como é que sei se não há alguma outra coisa diferente daquelas que acabo de
julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não há algum Deus, ou
alguma outra potência, que me ponha no espírito esses pensamentos? Isso não é
necessário; pois talvez eu seja capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo
menos, não sou algo? Mas já neguei que tivesse algum sentido ou algum corpo.

54
No cartesianismo, o “Cogito ergo sum” é um conhecimento imediato, isto é, uma intuição.

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Hesito, não obstante, pois o que resulta disso? Sou de tal forma dependente do corpo
e dos sentidos que não posso existir sem eles? Mas, persuadi-me de que não havia
absolutamente nada no mundo, de que não havia nenhum céu, nenhuma terra,
nenhum espírito, nenhum corpo; então não me persuadi também de que eu não
existia? Decerto não, eu existia sem dúvida, se me persuadi ou se somente pensei
algo. Mas há um não sei qual enganador muito potente e muito astuto, que emprega
toda sua indústria em enganar-me sempre. Não há dúvida, então, de que eu sou, se
ele me engana e que me engane o quanto quiser, jamais poderá fazer com que eu
não seja nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado
bem nisso e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, é preciso enfim concluir
e ter por constante que essa proposição, Eu sou, eu sou existo é necessariamente
verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito
(DESCARTES, 2016, p. 24-25)

Isso explica o título da Segunda Meditação “Da natureza do espírito humano e de que
ele é mais fácil de conhecer do que o corpo”. Ou seja, é possível conhecer as coisas pelas
ideias, sem que se tenha um conhecimento sensível prévio.
O empirismo, corrente oposta ao racionalismo, também se afasta da tese medieval
pelo fato de considerar a existência de um objeto em si, sem que esteja em relação com um
sujeito, o que explica a distinção lockeana de qualidades primárias e qualidades secundárias.
Vale lembrar que assim como o racionalismo, o empirismo tem como ponto de partida
as ideias ou representações, isto é, os conteúdos mentais do sujeito, apesar de discordar da
origem dessas representações e do fundamento do conhecimento55.

5. Conclusão

Não é possível falar de fenomenologia sem falar de vivência e de intencionalidade, e


isto foi o que mais impulsionou a escolha do tema deste artigo. Brentano foi quem
redescobriu a intentio, mas Husserl foi o grande filósofo que mais contribuiu nessa discussão,
e Merleau Ponty o maior fenomenólogo francês, também não teria conseguido construir seu
pensamento sem a contribuição dos anteriores e sem a noção de intencionalidade, que é
importantíssima até mesmo para a sua noção de corpo, de motricidade, entre outras.
A fenomenologia é a principal corrente da filosofia contemporânea. Não é possível
falar de filosofia contemporânea sem falar de Husserl, Merleau Ponty, Max Scheler, Martin
Heidegger, Edith Stein, entre outros. Isto se deve ao fato de que todas as correntes
contemporâneas, nas suas mais variadas vertentes, fazem referência à fenomenologia, seja
para concordar ou discordar de algumas de suas teses ou de todas.

55
Para o racionalismo, as representações do sujeito têm todas uma origem a priori. Enquanto no empirismo,
todas as representações, e consequentemente todo o conhecimento humano se funda na experiência.

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Quando falamos de intencionalidade, referimo-nos também à relação sujeito objeto. E,


do ponto de vista gnosiológico, essa é a relação que mostra as principais diferenças entre as
correntes realista e idealista do conhecimento. Podemos notar que a intentio é própria das
correntes, que de um modo ou de outro, com suas diferenças ou semelhanças, exprimem uma
visão realista.

Referências
BRENTANO, F. Psychology from an Empirical Standpoint, edited by Linda L. McAlister.
Editora Routledge: Londres, 1995.
BRUM, F. A. A realidade externa no ensaio de Locke. Tese de Doutorado UFPR. Curitiba,
2017.
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado
Galvão. Introdução, notas e tradução dos textos introdutórios de Homero Santiago. Editora
Martins Fontes: São Paulo, 2016.
HUSSERL, E. Investigações Lógicas – Investigações para a Fenomenologia e Teoria do
Conhecimento. Tradução de Pedro Alves. Editora Forense Universitária: Lisboa, 2012.
LOCKE, J. Ensaio sobre o entendimento humano. Tradução de Pedro Paulo Pimenta. Martins
Fontes: São Paulo, 2012
PORTA, M. A. G. A filosofia a partir de seus problemas. Loyola: São Paulo, 2002.
TEIXEIRA FILHO, D. A.– Análise e identificação de proposições segundo o realismo lógico
de E. Husserl. Tese (doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais/UFRJ: São Paulo, 2001.

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