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A herança kantiana
Após a solução kantiana para o problema da metafísica, esta não mais retornou à antiga
concepção de conhecimento da realidade em si, mas caminhou no sentido inaugurado
por Kant, conhecido como idealismo.
Vimos que a Filosofia (na Antiguidade, na Idade Média e na Modernidade) era realista,
isto é, partia da afirmação de que a realidade ou o Ser existem em si mesmos e que,
enquanto tais, podem ser conhecidos pela razão humana. Vimos também que o realismo
clássico ou moderno introduzira uma mudança no realismo antigo e medieval, pois
exigira que, antes de iniciar uma investigação metafísica da realidade, fosse respondida
a questão: “Podemos conhecer a realidade?”.
No final do século XIX e no início do século XX, muitos pensadores julgaram que a
psicologia tomaria o lugar da teoria do conhecimento e da lógica e, portanto, da
Filosofia. Na opinião deles, a ciência positiva do psiquismo seria suficiente para
explicar as causas das formas de conhecimento e das demonstrações, sem necessidade
de investigações filosóficas.
A psicologia, diz ele, como toda e qualquer ciência, estuda e explica fatos observáveis,
mas não pode oferecer os fundamentos de tais estudos e explicações, pois esses cabem à
Filosofia.
Tomemos um exemplo.
Quando um psicólogo estuda a percepção, procura distinguir dois tipos de fatos: os fatos
externos observáveis, a que dá o nome de estímulos (luz, calor, cor, forma dos objetos,
distância, etc.), e os fatos internos indiretamente observáveis, a que dá o nome de
respostas. Divide o fato perceptivo em estímulos externos e internos (o que acontece no
sistema nervoso e no cérebro) e em respostas internas e externas (as operações do
sistema nervoso e o ato sensorial de sentir ou perceber alguma coisa).
A psicologia nos diz que há percepção e nos oferece uma explicação causal para ela,
mas não pode nos dizer o que é a percepção, pois para isso precisaria conhecer a
essência da própria consciência.
A consciência não é uma coisa entre as coisas, não é um fato observável, nem é, como
imaginava a metafísica, uma substância pensante ou uma alma, entidade espiritual. A
consciência é uma pura atividade, o ato de constituir essências ou significações, dando
sentido ao mundo das coisas. Estas – ou o mundo como significação – são o correlato da
consciência, aquilo que é visado por ela e dela recebe sentido. Não sendo uma coisa
nem uma substância, mas puro ato, a consciência é uma forma: é sempre consciência
de. O ser ou essência da consciência é o de ser sempre consciência de, a que Husserl dá
o nome de intencionalidade.
Husserl mantém o conceito kantiano e hegeliano, mas amplia ainda mais a noção de
fenômeno. Para compreendermos essa ampliação precisamos considerar a crítica que
endereça a Kant e a Hegel.
Contra Kant, Husserl afirma que não há nôumeno, não há a “coisa em si” incognoscível.
Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos. Fenômeno é a presença real de
coisas reais diante da consciência; é aquilo que se apresenta diretamente, “em pessoa”,
“em carne e osso”, à consciência.
Contra Hegel, Husserl afirma que a consciência possui uma essência diferente das
essências dos fenômenos, pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptoras
de sentido. A consciência não se encarna nas coisas, não se torna as próprias coisas, mas
dá significação a elas, permanecendo diferente delas.
Os fenômenos ou essências
Com essa proposta, Husserl fazia com que a metafísica do “Ser enquanto Ser” e a
metafísica das substâncias (Deus, alma, mundo; infinito, pensante, extensa) cedessem
lugar ao estudo do ser diferenciado em entes dotados de essências próprias e irredutíveis
uns aos outros. Esse estudo seria a ontologia sob a forma de ontologias regionais.
Ôntico e ontológico
Vimos que a palavra ontologia deriva do particípio presente do verbo einai (ser), isto é,
de on (ente) e onta (entes), dos quais vêm o substantivo to on: o Ser.
1. os entes materiais naturais que chamamos de coisas reais (frutas, árvores, pedras,
rios, estrelas, areia, o Sol, a Lua, metais, etc.);
2. os entes materiais artificiais a que também chamamos de coisas reais (nossa casa,
mesas, cadeiras, automóveis, telefone, computador, lâmpadas, chuveiro, roupas,
calçados, pratos, talheres, etc.);
3. os entes ideais, isto é, aqueles que não são coisas materiais, mas idéias gerais,
concebidas pelo pensamento lógico, matemático, científico, filosófico e aos quais
damos o nome de idealidades (igualdade, diferença, número, raiz quadrada, círculo,
conjunto, classe, função, variável, freqüência, animal, vegetal, mineral, físico, psíquico,
matéria, energia, etc.);
4. os entes que podem ser valorizados positiva ou negativamente e aos quais damos o
nome de valores (beleza, feiúra, vício, virtude, raro, comum, bom, mau, justo, injusto,
difícil, fácil, possível, impossível, verdadeiro, falso, desejável, indesejável, etc.);
5. os entes que pertencem a uma realidade diferente daquela a que pertencem as coisas,
as idealidades e os valores e aos quais damos o nome de metafísicos (a divindade ou o
i[i] Kant, como já vimos, emprega a palavra crítica no sentido de condição de
possibilidade. A crítica da razão é o estudo das condições de possibilidade do
conhecimento e da ação moral.
PARTE HISTÓRICA
Nas lições anteriores tentamos realizar algumas excursões pelo campo da filosofia, mas
limitando-nos a visões panorâmicas, por assim dizer, de caráter geral.
Agora vamos tentar uma série de excursões por territórios mais intrincados, mais
difíceis. Vamos tratar de limpar um pouco o campo da ontologia e da gnosiologia. As
duas grandes divisões que podemos fazer na filosofia são a Ontologia e a Gnosiologia, a
teoria do ser e a teoria do saber, do conhecer. A primeira nos servirá de introdução à
filosofia da Antigüidade e da Idade Média; a segunda, à da Idade Moderna.
A ontologia, em termos gerais, se ocupa do ser, ou seja, não deste ou daquele ser
concreto e determinado, mas do ser em geral, do ser na acepção mais vasta e ampla
desta palavra.
A primeira coisa que açode a qualquer um a quem lhe digam que uma disciplina vai
ocupar-se de um objeto, é que essa disciplina tem que dizer-lhe o que este objeto é. Por
conseguinte, o problema compreendido primariamente na teoria do ser deveria ser este:
que é o ser?
Ora: formulada desta primeira maneira, a pergunta implica que aquilo que se pede, que
aquilo que se quer e se exige é uma definição do ser, que se nos diga que coisa é o ser.
Porém não somente se pode perguntar: que é o ser?; não somente pode pedir-se a
definição do ser, como também poderia perguntar-se: quem é o ser? Neste caso, já não
se pediria definição do ser; aquilo que se pediria seria indicação do ser; que se nos
mostrasse onde está o ser, quem é.
É por isso que, desde já, para maior clareza em nosso desenvolvimento, vamos
concretizar nessas duas perguntas o problema prévio da ontologia: de uma parte, a
pergunta; que é o ser?; de outra parte, a pergunta: quem é o ser?
Analisemos a primeira pergunta: que é o ser? Digo, antes de tudo, que esta pergunta
é.irrespondível. A pergunta exige de nós que demos uma definição do ser. Ora: dar uma
definição de algo supõe reduzir este algo a elementos de caráter mais geral, incluir esse
algo num conceito mais geral ainda que ele. Existe conceito mais geral que o conceito
do ser? Pode encontrar-se por acaso alguma noção na qual caiba o ser, e que, por
conseguinte, deva ser mais extensa que o ser mesmo? Não existe.
Se examinarmos as noções, os conceitos de que nos valemos nas ciências e até mesmo
na vida, veremos que estes conceitos possuem todos eles uma determinada extensão,
quer dizer, que cobrem uma parte da realidade, que se aplicam a um grupo de objetos, a
uns quantos seres. Mas estes conceitos são uns mais extensos que outros; quer dizer, que
alguns se aplicam a menos seres que outros; como quando comparamos o conceito de
"europeu" com o conceito de "homem", encontramos, naturalmente, que há menos
europeus do que homens. Por conseguinte, o conceito de "homem" se aplica a mais
quantidade de seres que o conceito "europeu". Os conceitos são, pois, uns mais extensos
que outros.
Ora: definir um conceito consiste em incluir este conceito em outro que seja mais
extenso, e em outros vários que sejam mais extensos e que se encontrem, se toquem
precisamente no ponto do conceito que queremos definir. Se nos propormos definir o
conceito de "ser", teremos que dispor de conceitos que abranjam maior quantidade de
seres que o conceito de ser; pois bem: o conceito de ser em geral é aquele que abrange
maior quantidade de seres. Por conseguinte, não há outro mais extenso por meio do qual
possa ser definido.
Podemos, então, perguntar: O que é isso que chamamos de coisa real (coisas naturais e
coisas artificiais ou culturais)? Diremos que uma coisa é chamada real porque pertence
a um conjunto de entes que possuem em comum a mesma estrutura ontológica: são
entes que existem fora de nós, estão no mundo diante de nós, isto é, são um ser; são
entes que existem quer nós os percebamos ou não, quer nós os usemos ou não; estão
presentes no mundo, mesmo que não estejam presentes para nós, pois podem estar
presentes para todos ou ficar presentes para nós em algum momento, isto é, são uma
realidade; são entes que começam a existir e podem desaparecer, mesmo que seu
desaparecimento seja muito mais lento do que o nosso, são entes que duram e possuem
duração, isto é, são temporais; são entes que se transformam no tempo, são produzidos
pela ação de outros e produzem outros, obedecendo a certos princípios, isto é, são
Mas por outra parte podemos chegar também à mesma conclusão. Definir um conceito é
enumerar uma após outra as múltiplas e variadas notas características desse conceito.
Um conceito é tanto mais abundante em notas características quanto é menos extenso,
pois um conceito reduzido necessita mais notas definidoras que um conceito muito
amplo. E o conceito mais vasto de todos, o conceito do ser. não tem, na realidade, notas
que o definam.
Por isso, para definir o ser, encontrar-nos-íamos com a dificuldade de não ter nada que
dizer dele. Hegel, que fez essa mesma observação, acaba por identificar o conceito de
"ser" com o conceito de "nada"; porque do ser não podemos predicar nada, do mesmo
modo que do nada não podemos predicar nada. E, de outra parte, do ser podemos
predicar tudo, o que equivale exatamente a não poder predicar nada.
Por conseguinte, o conceito de "ser" não é um conceito que seja definível. À pergunta:
que é o ser? não podemos dar nenhuma resposta. Na realidade, o ser não pode definir-
se; a única coisa que se pode fazer com ele é assinalá-lo, que não é o mesmo que defini-
lo. Defini-lo é fazê-lo entrar em outro conceito mais amplo; assinalá-lo é simplesmente
convidar o interlocutor para que dirija sua intuição a um determinado sítio, onde está o
conceito de ser. Assinalar o conceito de ser, isso sim é possível.
Ê justamente a isso que nos convida nossa segunda pergunta, que já não é: que é o ser?
mas: quem é o ser? Esta variação "quem" em vez de "que" nos faz ver que esta segunda
pergunta tende não a definir, mas a assinalar o ser para podê-lo intuir diretamente e sem
definição nenhuma.
Se refletirmos agora também sobre esta pergunta: "quem é o ser?" verificaremos que
esta pergunta implica algo estranho e curioso. Perguntar "quem é o ser" parece querer
dizer que não sabemos quem é o ser, que não conhecemos o ser, e, ademais, que há
diferentes pretensões, mais ou menos legítimas, a ser o ser, que diferentes coisas
pretendem ser o ser e que nós nos vemos obrigados a examinar qual dessas coisas pode
ostentar legitimamente o apelativo de "ser".
Nossa pergunta: quem é o ser? supõe, pois, a distinção entre o ser que o é de verdade e o
ser que não o é de verdade; supõe uma distinção entre o ser autêntico e o inautêntico ou
falso. Ou, como diziam os gregos, como dizia Platão, entre o ser que é e o ser que não é.
causas e efeitos, são causalidades. Ser, realidade, temporalidade e causalidade são
conceitos ontológicos, que descrevem a essência dos entes chamados “coisas”.
No caso dos entes ideais, os conceitos ontológicos são bastante diferentes. Em primeiro
lugar, tais entes não são coisas reais – este cavalo é uma coisa real, mas a idéia do
cavalo não é uma coisa, é um conceito e existe apenas como conceito. Em segundo
lugar, não causam uns aos outros, mas são entes que possuem uma definição própria,
podendo relacionar-se com outros – a idéia de homem não causa a de cavalo, mas
podem relacionar-se quando o historiador, por exemplo, mostra a diferença entre
sociedades cujo exército só possui a infantaria e aquelas que inventaram a cavalaria; um
Esta distinção é, com efeito, algo que está contido na pergunta: quem é o ser? E como
poderemos, então, descobrir quem é o ser, se são vários os pretendentes a essa
dignidade? Pois poderemos descobri-lo quando aplicarmos a cada um desses
pretendentes o critério das duas perguntas.
Quando se nos apresentar algo com a pretensão de ser o. "ser", antes de decidir sobre
isto, deveremos, pois, perguntar: que és? Se pudermos, então, dissolver esse pretendente
a ser, em outra coisa distinta dele, é porque ele está composto de outros seres que não
são ele e é redutível a eles e, por conseguinte, quer dizer que este ser não é um ser
autêntico, mas é um ser composto ou consistente em outros seres. E se, pelo contrário,
por muito que façamos, não pudermos defini-lo, não pudermos dissolvê-lo, reduzi-lo a
outros seres, então esse ser poderá, com efeito, ostentar com legitimidade a pretensão de
ser o ser.
O ser em outro é um ser inautêntico, é um ser falso, visto que logo que o examino
encontro-me com sua definição, quer dizer, que esse ser em outro é isto, isso, aquilo;
quer dizer, que ele não é senão um conjunto desses outros seres; que ele consiste em
outra coisa, e o ser que consiste em outro não pode ser, então, um ser em si, pois
consiste em outro.
Este é tipicamente o ser em outro; mas, como aquilo que andamos procurando é o ser
em si, poderemos rejeitar, entre os múltiplos pretendentes ao ser em si, todos aqueles
que consistem em outra coisa que eles mesmos.
Isto nos leva a equacionar de novo nossos problemas iniciais, mas agora numa forma
completamente distinta. Acabamos de perceber — e agora vamos expô-lo com clareza
— que a palavra "ser" tem dois significados. Depois encontraremos, no decurso dessas
aulas, outros muitos; mas "agora acabamos de viver com uma vivência imediata, dois
significados da palavra "ser": um, o ser em si; outro, o ser em outro.
No caso dos entes que são valores, os conceitos ontológicos principais que os
descrevem essencialmente são a qualidade (um valor pode ser negativo ou afirmativo)
e a polaridade ou oposição (os valores sempre se apresentam como pares de opostos:
bom-mau, belo-feio, justo-injusto, verdadeiro-falso, etc.).
ou não existe a água ou a luz. Queremos dizer: qual é a sua essência? em que consiste o
homem? em que consiste a água? em que consiste a luz? Quando a Bíblia diz que Deus
pronunciou estas palavras: Fiat lux, que a luz seja, a palavra "ser" está empregada, não
no sentido de "consistir", mas no sentido de "existir". Quando Deus disse: Fiat lux, que
a luz seja, quis dizer que a luz, que não existia, passasse a existir. Mas quando nós
dizemos: que é a luz? não queremos dizer que existência tem a luz, não; queremos dizer:
qual é a sua essência? qual é a sua consistência?
Assim, estas duas significações da palavra "ser" vão servir-nos para esclarecer nossos
problemas iniciais. Vamos muito simplesmente aplicar a essas duas significações da
palavra "ser" as duas perguntas com que iniciamos estes raciocínios: a pergunta: que é?
e a pergunta: quem é? E aplicadas essas duas perguntas aos dois sentidos do verbo "ser"
substantivado, temos: primeira pergunta: que é existir? Segunda pergunta: quem existe?
Terceira pergunta: que é consistir? Quarta pergunta: quem consiste?
Examinemos estas quatro perguntas. Vamos examiná-las, não para respondê-las, mas
para ver se têm ou não resposta possível.
À pergunta: que é existir? resulta evidente que não há resposta possível. Não se pode
dizer que é a existência. Existir é algo que intuímos diretamente. O existir não pode ser
objeto de definição. Por quê? Porque definir é dizer em que consiste algo; mas
acabamos de ver que o conceito de "consistir" não coincide com o de "existir"; é algo
muito distinto, que não se pode confundir, que não se deve confundir.
Se, pois, eu perguntar: que é existir? terei que responder a essa pergunta indicando a
consistência do existir, visto que todo definir consiste em explicitar uma consistência; e
a definição consiste na indicação do em que consiste a coisa. Ora: é claro e evidente que
o existir não consiste em nada. Por isso muitos filósofos — na realidade, todos os
filósofos — se detêm ante a impossibilidade de definir a existência. A existência não
pode ser definida, e precisamente haverá um momento na história da filosofia em que
um filósofo, Kant, fará uso desta distinção para fazer ver que certos argumentos
metafísicos consistiram em considerar a existência como um conceito, e manejá-lo,
baralhá-lo com outros conceitos, em vez de considerá-la como uma intuição que não
pode ser embaralhada ou pensada do mesmo modo que os conceitos.
Por conseguinte, a pergunta: que é existir? não tem resposta e vamos eliminá-la da
ontologia. A ontologia não poderá dizer-nos o que é existir. Ninguém pode nos dizer o
que é existir; cada um o sabe por íntima e fatal experiência própria.
Observemos que o sentido das coisas naturais muda com a mudança dos conhecimentos
científicos, assim como muda o sentido dos entes ideais (o que os gregos entendiam por
número não é o que a matemática moderna entende por número, por exemplo). No caso
dos entes reais artificiais, isto é, das coisas produzidas pelo homem com as técnicas e as
artes, a mudança não é apenas de sentido, mas das próprias coisas – entes técnicos ficam
obsoletos e caem em desuso quando outros, mais sofisticados, são produzidos. O
sentido dos valores também muda nas diferentes sociedades e épocas: o que era
inaceitável numa sociedade ou numa época pode tornar-se aceitável e desejável noutra
ou vice-versa.
Passemos à segunda pergunta, que é: quem existe? Esta segunda pergunta, sim, pode ter
resposta. A esta segunda pergunta cabe responder: eu existo, o mundo existe, Deus
existe, as coisas existem. E estas respostas comportam combinações; cabe dizer: as
coisas existem e eu como uma de tantas coisas. Cabe dizer também: eu existo; porém
não as coisas; as coisas não são mais que minhas representações; as coisas não são mais
do que fenômenos para mim, aparências que eu percebo, mas não verdadeiras em
realidade. Não "são" em si mesmas, mas em mim. i
Cabe ainda responder: nem as coisas, nem eu existimos, na verdade, mas somente Deus
existe, e as coisas e eu existimos em Deus; as coisas e eu temos um ser que não é um ser
em mim, mas um ser em outro ser, em Deus. Também cabe responder isto. De modo
que à pergunta: quem existe? podem dar-se várias respostas.
Vamos ver a terceira pergunta; que é consistir? Esta pergunta tom resposta. Pode dizer-
se em que consiste o consistir? Pode dizer-se em que consiste a consistência; porque,
com efeito, embora eu advirta que umas coisas consistem em outras, nem todas
consistem da mesma forma. Existem maneiras, modos, formas variadas do consistir. A
enumeração, o estudo de todas essas formas variadas do consistir, é algo que se deve
fazer, que se pode fazer, que se faz, que se fez. E algo que constitui um capítulo
importantíssimo da Ontologia. Agora veremos qual.
E, por último, a quarta pergunta: quem consiste? não tem resposta. Passa-se com esta
pergunta o mesmo que com a primeira: que é existir? que não tem resposta. Também,
quem consiste? não pode ter resposta, porque caberia dizer somente que não sabemos
quem consiste. Até que não saibamos quem existe, não podemos saber quem consiste,
porque somente quando saibamos quem existe, com existência real em si, poderemos
dizer que tudo o mais existe nesse ser primeiro e, portanto, tudo o mais consiste. De
sorte que a pergunta não tem resposta direta
Se — como dizem, por exemplo, alguns filósofos como Espinosa — nada existe, nem as
coisas, nem eu, mas as coisas e eu estamos em Deus, então à pergunta: quem consiste?
responderemos que todos consistimos, salvo Deus, que não consiste, visto que não é
redutível a outra coisa e, pelo contrário, nós e as coisas somos todos redutíveis a Deus.
Por conseguinte, esta quarta pergunta não tem nem pode ter resposta direta, é
simplesmente o reverso da medalha da segunda pergunta, porque logo que soubermos
quem existe, saberemos quem é o ser em si e então tudo aquilo que não for esse ser em
si será ser nesse ser, isto é, tudo o mais consistirá nesse ser.
submetidos ao tempo, à mudança, pois seu sentido – sua essência – muda com a
Cultura. No entanto, podemos observar também que as categorias ontológicas (ser,
realidade, causalidade, temporalidade, idealidade, intemporalidade, relação, diferença,
qualidade, quantidade, polaridade, oposição, etc.) permanecem, ainda que mudem seus
objetos. Assim, por exemplo, a ciência física pode oferecer uma explicação inteiramente
nova para o fenômeno da percepção das cores. Contudo, a existência da luz, da cor, da
percepção das coisas coloridas permanece e é a essa permanência que se refere a
ontologia. Uma sociedade pode considerar o homossexualismo masculino um valor
positivo (como foi o caso da sociedade grega antiga) ou um valor negativo (como na
Fica, pois, reduzido nosso problema da ontologia a estas duas perguntas: quem existe?
e: que é consistir?
Para a segunda pergunta: que é consistir? existem também múltiplas respostas possíveis.
Essas múltiplas respostas possíveis são outras tantas maneiras de consistir. Os objetos
consistem nisso ou naquilo, e cada um consiste segundo a estrutura de sua objetividade.
A segunda pergunta: que é consistir? dá, pois, lugar a uma teoria geral dos objetos, de
qualquer objeto, da objetividade em geral. A segunda pergunta constitui a teoria do
objeto, a teoria da objetividade, ou — se for permitida uma inovação talvez não
demasiadamente impertinente na terminologia — poderíamos dizer: a teoria da
consistência dos objetos em geral.
Assim, pois, a ontologia, de que vamos falar durante umas quantas lições, divide-se em:
primeiro, metafísica e. segundo, teoria do objeto eu teoria da consistência em geral.
Nesse território da ontologia, abrem-se diante de nós duas grandes avenidas: a avenida
metafísica e a avenida da teoria do objeto. Vamos seguir essas duas avenidas uma após
outra.
Filósofos que vieram após Husserl e adotaram suas idéias desenvolveram a nova
ontologia. Entre esses filósofos, dois merecem especial destaque: Martin Heidegger e o
francês Maurice Merleau-Ponty. Ambos modificaram várias das idéias de Husserl e
esforçaram-se para liberar a ontologia do velho problema deixado pela metafísica, qual
seja, o dilema do realismo e do idealismo, dilema que Husserl resolvera em favor do
idealismo pelo papel preponderante que dera à consciência ou ao sujeito do
conhecimento.
Heidegger e Merleau-Ponty afirmam que as duas posições estão equivocadas e que são
“erros gêmeos”, cabendo à nova ontologia superá-los, isto é, resolver o problema
Heráclito-Parmênides, Platão-Aristóteles, medievais e modernos, Kant e Husserl. Como
resolver um problema milenar como esse e que é, afinal, a própria história da metafísica
e da ontologia?
Dizem os dois filósofos: se eliminarmos a consciência, não sobra nada, pois as coisas
existem para nós, isto é, para uma consciência que as percebe, imagina, que delas se
lembra, nelas pensa, que as transforma pelo trabalho, etc. Se eliminarmos as coisas,
também não resta nada, pois não podemos viver sem o mundo nem fora dele; não somos
os criadores do mundo e sim seus habitantes.
simultaneamente. Porém, se, desde já, tivermos bem presente esta diferença essencial de
orientação nos dois temas, não haverá perigo em tratá-los às vezes, simultaneamente,
feitas previamente as necessárias distinções entra aquilo que vale para um e aquilo que
vale para outro.
mas, simultaneamente, de que somos capazes de dar sentido ao mundo, conhecê-lo e
transformá-lo.
Não somos uma consciência reflexiva pura, mas uma consciência encarnada num corpo.
Nosso corpo não é apenas uma coisa natural, tal como a física, a biologia e a psicologia
o estudam, mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência.
Não somos pensamento puro, pois somos um corpo. Não somos uma coisa natural, pois
somos uma consciência.
O mundo não é um conjunto de coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações
de causa e efeito e leis naturais. Além do mundo como conjunto racional de fatos
científicos, há o mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados pelas
coisas, um mundo qualitativo de cores, sons, odores, figuras, fisionomias, obstáculos,
um mundo afetivo de pessoas, lugares, lembranças, promessas, esperanças, conflitos,
lutas.
O que estuda a ontologia? Os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências,
e depois que se tornaram enigmáticos para nossa vida cotidiana. Em outras palavras, os
entes ou os seres antes de serem transformados em conceitos das ciências e depois que
nossa experiência cotidiana sofreu o espanto, a admiração e o estranhamento de que eles
sejam como nos parecem ser, ou não sejam o que nos parecem ser.
A ontologia estuda as essências antes que sejam fatos da ciência explicativa e depois
que se tornaram estranhas para nós.
Digo, por exemplo, “Vejo esta casa vermelha, próxima da azul”. A ontologia indaga: O
que é ver, qual a essência da visão? O que é uma casa ou qual a essência da habitação?
Que é vermelho ou azul ou qual é a essência da cor? Que é ver cores? O que é a cor?
Pergunto, por exemplo, “Que horas são?”. A ontologia indaga: O que é o tempo? Qual a
essência da temporalidade?
Pedro fala: “A cidade já está perto”. A ontologia indaga: O que é o espaço? Qual é a
essência da espacialidade? Que é perto e longe? Que é distância?
Antônio diz a Paulo: “Aquelas duas árvores são idênticas, mas a terceira é diferente”. A
ontologia indaga: O que é identidade? E a diferença? O que é “duas” e “terceira”? Ou
seja, o que é o número?
Ana me diz: “Ouvi uma música belíssima, não essa coisa feia que você está escutando”.
A ontologia indaga: O que é a beleza e a feiúra? Existem o belo em si e o feio em si, ou
beleza e feiúra são avaliações e valores que atribuímos às coisas? O que é um valor?
Cecília conta a Joana: “Pedro realizou um ato generoso, protegendo a criança, mas
Eugênia foi egoísta ao não ajudá-lo”. A ontologia indaga: O que é a generosidade ou o
egoísmo? Existem em si e por si mesmos ou são avaliações que fazemos das ações
humanas? O que é uma virtude? O que é um vício? O que é um valor?
Recupera-se, assim, a velha questão filosófica: “O que é isto que é?”, mas acrescida de
nova questão: “Para quem é isto que é?”. Volta-se, pois, a buscar o to on, o Ser ou a
essência das coisas, dos atos, dos valores humanos, da vida e da morte, do infinito e do
finito. A pergunta “O que é isto que é?” refere-se ao modo de ser dos entes naturais,
artificiais, ideais e humanos; a pergunta “Para quem é isto que é?” refere-se ao sentido
ou à significação desses entes.
O que é o tempo?
Estamos acostumados a considerar o tempo como uma linha reta, feita da sucessão de
instantes, ou como uma sucessão de “agoras” – um “agora” que já foi é o passado, o
“agora” que está sendo é o presente, um “agora” que virá é o futuro.
Um novo engano acaba de ser cometido. Se o tempo for uma forma ou um conceito
produzido pela consciência reflexiva ou pelo sujeito para organizar a sucessão, não
haverá sucessão a organizar, pois a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento
opera sempre e exclusivamente com o que é atual, com o que está dado presentemente
ao pensamento. Para a reflexão só existe a simultaneidade e a sucessão se reduz a uma
experiência psicológica ou empírica, ao sentimento de que há um “antes” e um
“depois”, tais palavras indicando o modo como nos referimos à lembranças e
expectativas pessoais.
Quando vivencio o meu presente, ele se apresenta como uma situação na qual sinto,
faço, digo, penso coisas, atuo de várias maneiras e tenho experiência de uma situação
aberta, isto é, na qual muitas coisas são possíveis para mim, muitas coisas podem
acontecer. Quando rememoro meu passado, percebo que entre ele e o meu presente há
uma diferença: quando ele era o meu presente, também estava aberto a muitas
possibilidades, mas somente algumas se realizaram. Por isso, o passado lembrado não é
uma situação aberta como o presente, mas fechada, terminada. Assim, meu passado não
é simplesmente o que veio antes do meu presente, mas algo qualitativamente diferente
do presente: este é aberto, aquele, fechado.
Quando imagino meu futuro, antevejo, a partir das possibilidades abertas em meu
presente, como seria se certas possibilidades se concretizassem e se outras não se
realizassem. Meu futuro não é simplesmente o que vem depois do meu presente, mas
algo qualitativamente diferente do presente: é o que poderá ser, se as aberturas do meu
presente se concretizarem e, portanto, se o que, hoje, está aberto ou em suspenso,
estiver, amanhã, fechado e realizado.
Meu passado e meu futuro nunca são os mesmos. Cada vez que me lembro do meu
passado, eu o faço a partir do meu presente e, cada vez, este é diferente, fazendo-me
recordar de maneiras diversas o que passou. Cada vez que imagino meu futuro, eu o
faço a partir de meu presente, que, sendo sempre diferente, imagina diferentemente o
futuro. Não revivo o passado, mas o rememoro tal como sou hoje em meu presente. Não
vivo o meu futuro, mas o imagino tal como sou hoje em meu presente. O presente é uma
contração temporal que arranca o passado do esquecimento e abre o futuro para o
possível. O passado e o futuro são dilatações temporais, distorções do presente.
Que é lembrar? É captar no contínuo temporal uma diferença real entre o que estou
vivendo no presente e o que estou vivenciando do passado. Que é esquecer? É perder a
fisionomia ou o relevo de um momento do passado. Que é esperar? É buscar no
contínuo temporal uma diferença possível entre o que estou vivendo e o que estou
vivenciando do futuro.
O que é o tempo?
Em primeiro lugar, é um escoamento interno e externo, um fluir contínuo, que vai
produzindo diferenças dentro de si mesmo. Em segundo lugar, é uma contração e uma
dilatação de si mesmo, um juntar-se a si mesmo e consigo mesmo (na lembrança) e um
expandir-se a si mesmo e consigo mesmo (na esperança). O tempo é a produção da
identidade e da diferença consigo mesmo e, nesse sentido, é uma dimensão do meu ser
(não estou no tempo, mas sou temporal) e uma dimensão de todos os entes (não estão
no tempo, mas são temporais).
A física dirá que é um agregado de átomos, uma certa massa e energia, que funciona de
acordo com as leis gerais da Natureza. A química dirá que é feito de moléculas de água,
oxigênio, carbono, de enzimas e proteínas, funcionando como qualquer outro corpo
químico. A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo membro de uma
espécie (animal, mamífero, vertebrado, bípede), capaz de adaptar-se ao meio ambiente
por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário, que se
reproduz sexualmente. A psicologia dirá que é um feixe de carne, músculos, ossos, que
formam aparelhos receptores de estímulos externos e internos e aparelhos emissores de
respostas internas e externas a tais estímulos, capaz de ter comportamentos observáveis.
Todas essas respostas dizem que nosso corpo é uma coisa entre as coisas, uma máquina
receptiva e ativa que pode ser explicada por relações de causa e efeito, suas operações
são observáveis direta ou indiretamente – podendo ser examinado em seus mínimos
detalhes nos laboratórios, classificado e conhecido. Nosso corpo, como qualquer coisa,
é um objeto de conhecimento.
Meu corpo é um ser visível no meio dos outros seres visíveis, mas que tem a
peculiaridade de ser um visível vidente: vejo, além de ser vista. Não só isso. Posso me
ver, sou visível para mim mesma. E posso me ver vendo.
Meu corpo é um ser táctil como os outros corpos, podendo ser tocado. Mas também tem
o poder de tocar, é tocante; e é capaz de tocar-se, como quando minha mão direita toca a
esquerda e já não sabemos quem toca e quem é tocado.
Meu corpo é sonoro como outros corpos, como os cristais e os metais; pode ser ouvido.
Mas tem o poder de ouvir. Mais do que isso, pode fazer-se ouvir e pode ouvir-se quando
emite sons. Do fundo da garganta, passando pela língua e pelos dentes, com os
movimentos de meus lábios transformo a sonoridade em sentido, dizendo palavras.
Ouço-me falando e ouço quem me fala. Sou sonora para mim mesma.
Meu corpo estende a mão e toca outra mão em outro corpo, vê um olhar, percebe uma
fisionomia, escuta uma outra voz: sei que diante de mim está um corpo que é meu outro,
um outro humano habitado por consciência e eu o sei porque me fala e, como eu, seu
corpo produz palavras, sentido.
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