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CAPÍTULO 3: OS PRIMÓRDIOS DA

PSICOLOGIA NA GRÉCIA

OS GREGOS ARCAICOS

Conhecemos o desenvolvimento da Filosofia grega principalmente a partir


dos autores mais tardios – Platão e Aristóteles. Mas, como com qualquer
ideia, para compreendermos a dinâmica de pensamento que desemboca em
Platão e que, a seguir, vai ser modificada por Aristóteles, temos de compre-
ender o fundo da cultura grega.
Numa obra muito conhecida, Mimesis, Auerbach (REFF) apresenta a visão
poética da Grécia arcaica como absolutamente exterior e não psicológica: o
contado é aquilo que é visto, e não se presume para além do que se vê. As
personagens são, pois, psicologicamente opacas, corpos que se movem de
acordo com as suas paixões ou os desígnios dos deuses. As suas vontades e
emoções são as que se traduzem pela acção. Tudo o que é relatado é o visível.
O psicológico é estranho à poesia homérica. Partamos deste traço de preocu-
pação com o visível. É o que domina grande parte do pensamento anterior a
Sócrates.
Na Grécia arcaica mesmo as paixões que moviam os homens eram conside-
radas produtos directos das entranhas e a morte era a morte do corpo – a
alma, o que restava da vida, era algo de espectral que não se assemelhava ao
homem vivo. Os deuses eram verdadeiramente imortais porque lhe corria no
sangue uma substância que os mortais não tinham: ichor. Na Grécia arcaica
havia vários termos para aquilo que mais tarde se considerou a mente. Psyche,
o u psüche, era o hálito, o princípio de animação do corpo, que o abandonava
com o «último suspiro». Thymus, ou thümus, era a motivação e a emoção (as
duas palavras, «emotião» e «motivação» têm como raiz «motilidade»), ou seja, as
paixões. Nous era responsável pela percepção da verdade. As diferenças entre
os vários conceitos nem sempre são muito claras – por exemplo, entre psyche e
thymus a diferença não é muito grande. Como vimos no capítulo anterior, na
mente primitiva a alma tende a ser sincrética, a aglutinar várias funções e são
os académicos posteriores que procuram estabelecer diferenças analíticas.1
Tal como a imortalidade dos deuses era uma consequência de um processo
meramente material e concreto, também eram concebidos de forma con-
creta e à imitação dos homens. Contrariamente à maior parte das culturas,
1
Sobre a alma grega ver, principalmente, Bruno Snell, A descobert do espírito, mas
também Onians, REFF, REFF. REFF aos pré-socráticos.
Zeus, o deus supremo, não era omnisciente: era apenas um homem imortal,
com muito poder, mas que não podia dominar os mistérios do passado e do
futuro.
Disse-se que os deuses gregos são pouco divinos e muito humanos, com os
defeitos e virtudes dos homens. E, nesse sentido, a religião grega que nos é
transmitida pela poesia épica é apenas um conjunto de histórias e intrigas
entre vontades e maquinações de deuses e de homens. Havia, é certo, uma
tradição mais mística, como é atestada pela teogonia hesiódica.2 Mas, para
compreender o desenvolvimento intelectual da Grécia, é necessário ter bem
presente este extremo concretismo e visualismo, esta preocupação com o
que se vê e se pode descrever.
Todos já lemos que a ciência nasceu na Grécia. Esta afirmação, evidente-
mente contestável na medida em que os conhecimentos que consideramos
científicos aparecem muito antes da civilização grega, é contudo verdadeira
em determinado aspecto. De facto, a tentativa de compreender o Mundo e os
fenómenos exteriores exclusivamente em termos de causas materiais é uma
especificidade grega que só se pode compreender numa cultura tão pouco
interessada pela introspecção e pelo invisível: explicava-se o visível não com
o místico – com o medo, como ocorre na maior parte das culturas – mas com
o visível e o plausivelmente inferível do visível. E tampouco se pretendia
explicar a relação do homem com o divino, como na maior parte das outras
culturas: procurava-se explicar o mundo, e não o homem. Mesmo a natureza
do mundo se concebia em termos estritamente concretos: em vez de forças
místicas, de sopros divinos que criam a vida, os gregos defenderam que tudo
era feito de matéria. De água, de fogo, de átomos, mas, sempre, de matéria
concreta. Esta posição não foi a única na Grécia (houve sempre correntes
mais místicas como o pitagorismo) mas teve uma influência determinante na
filosofia ocidental.3

A ESPECULAÇÃO CÓSMICA E A
DESCOBERTA DO PENSAMENTO

Falo aqui de descoberta do pensamento com o significado seguinte. Como


vimos quando considerámos o homem arcaico, há um dualismo concretista:

2
Apud V. Pirenne-Delforge La religion grecque, in Religions de l’Antiquité. Cood. Yves
Lehman. PUF, Paris, 1999.
3
Sobre o irracionalismo grego ver Dodds, Os gregos e o irracional. REFF.

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inferimos sempre uma mente de uma acção e consideramos que uma mente
(um desejo, uma vontade) tem sempre de ter uma acção que lhe corresponda.
É com os gregos que acção e pensamento se separam, e o pensamento é anali-
sado pela primeira vez no Ocidente. Veremos que a distinção se faz com custo
e que o pensamento sobre as coisas se emancipa antes do pensamento sobre a
mente.
O primeiro movimento de que temos conhecimento vem de Mileto, na Jónia
(a Ásia Grega, isto é, a costa ocidental da Ásia menor). Por isso se chamam os
Milésios («os de Mileto»). O mais famoso foi Tales, conhecido precisamente por
Tales de Mileto, um pensador de quem se diz ter previsto um eclipse em 585,
que conseguia medir as pirâmides através da sua sombra e que identificara a
duração do ano em 365 dias. Defendia que tudo era feito de água, não se sabe
bem porquê. Contudo, quando se referia à mente, não diferia dos arcaicos. Por
exemplo, dizia que os ímanes tinham alma (isto é, que tinham agência/mente).
Compreende-se, com base no que dissemos no capítulo anterior, o que isto sig-
nifica. Recorde-se, leitor, de que todo o movimento não causado pela gravidade
ou pela transmissão de movimento que ocorre a partir de outros sólidos (uma
bola que é posta em movimento por outra bola em movimento) tende a ser
compreendido por nós como «mentalmente causado»; assim, um íman, que
atrai os outros metais, «parece vivo», isto é, parece «ter vontade/mente», ter
uma «energia» que o relaciona intencionalmente com o ambiente («escolhe» e
«chama» os metais). Não se sabe muito mais sobre a visão de Tales sobre a
mente, mas acreditava na imortalidade da alma mas não na doutrina da
metempsicose (a transmigração das almas).
Vai havendo variações no pensamento sobre o mundo: Anaximandro
(c. 560) postulou que tudo era feito de apeiron, isto é, de infinito ou de inde-
terminado (posição algo mistérica que não quer realmente dizer nada); Ana-
ximenes (c. 546) defendia que o mundo era feito de ar.
A este grupo de pensadores tem-se chamado os físicos, isto é, os pensadores
que se interessaram pela natureza (físis, em grego, raíz da palavra «física»).
Emanciparam o pensamento na medida em que conseguiram aplicá-lo à
natureza, sem participação do elemento místico (as agências de espíritos e de
deuses) e, talvez sobretudo, desenvolveram formas de pensar nas coisas em
termos de geometria. Inventaram, assim, uma linguagem nova para se refe-
rir ao que é externo a nós, ao mundo físico que nos rodeia. É esta a origem
da Física.4 Mas em termos do pensamento sobre a mente não se mostram
fundamentalmente diferentes dos arcaicos: «tudo está cheio de deuses», dizia
4
Normalmente faz-se coincidir o nascimento da Física moderna com Galileu. O que
quero aqui marcar é apenas que com os gregos nasce a análise do mundo físico em
termos das propriedades desse próprio mundo físico e não de agências que o deter-
minam.

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Tales, exactamente como os Esquimós quando afirmam haver várias almas
no corpo de uma pessoa, cada uma relacionada com uma capacidade de
movimento.
Pitágoras (activo em 530 a.C.) está, pelo pouco que sabemos dos autores
pré-socráticos, em contra-corrente com o pensamento físico da maior parte
dos outros autores gregos. Dele se sabe pouco embora haja muitas lendas.
Diz-se (pode não ser verdade) que foi ele o primeiro a analisar as formas geo-
métricas em termos matemáticos (todos recordamos que «o quadrado da
hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos»). Atribui-se-lhe tam-
bém uma análise dos harmónicos dos sons que geram uma escala (a escala
pitagórica).5 Contudo, Pitágoras era muito pouco moderno na maneira como
compreendia a mente. Pensava ele que a mente era independente do corpo e
que migrava de corpo para corpo com a morte – necessitava sempre de um
suporte, de um corpo que fosse por ela animado, tal como nos povos ar-
caicos.
Apesar do primitivismo da concepção da mente, a corrente de pensa-
mento dos físicos abre um caminho importante: as coisas, como as vemos,
têm uma realidade diferente; a sua geometria, aquilo de que são feitas não é
traduzido pela percepção que dessas coisas temos. Há assim um mundo
escondido que se pode procurar pela razão e pela especulação. O pensa-
mento emancipa-se assim, da percepção. Esta tendência irá aumentar nos
pré-socráticos e abrirá caminho à descoberta da mente.
Xenófanes de Cólofon, contemporâneo de Pitágoras, explicita pela primeira
vez um tema importante para toda a filosofia posterior: o de que as coisas não
são como nós as imaginamos, mas são o que são independentemente da
maneira como as vemos. O seu argumento aplicava-se à imagem e aos compor-
tamentos dos deuses. Dizia Xefófanes que os deuses não eram como nós os
imaginávamos, nem em comportamento, nem em aparência: de facto, se os
cavalos pudessem desenhar e tivessem deuses, imaginá-los-iam como cavalos
tal como nós os imaginamos como semelhantes a nós. Deus seria uma coisa
que nos é impossível imaginar, não causado, sem começo nem fim, sem

5
Não é importante compreender do que se trata, mas explico-o rapidamente. Se se
fizer vibrar uma corda que dê uma nota definida –o dó, por exemplo–, ela emitirá, além
da fundamental (o dó), um dó à oitava superior; além disso, uma décima segunda (um
sol acima desse dó) uma décima quinta (o dó duas oitavas acima do primeiro dó), uma
décima sétima (mi), uma décima nona (sol), depois um si bemol, novo dó e assim sucessi-
vamente até todos os intervalos da escala cromática (notas naturais, bemóis e suste-
nidos). Embora não seja certo que esta descoberta seja de Pitágoras ainda hoje se chama
escala pitagórica à sucessão de notas assim geradas.

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espaço nem tempo e governaria tudo o que existe «só com a sua mente». Nota-
-se, pois, em Xenófanes, a compreensão da eficácia do pensamento puro como
independente do comportamento.
O pensamento de Heraclito de Éfeso (c. 500), parece sugerir que tudo quanto
pensamos e sentimos é uma ilusão. Tudo é fluxo em permanente mudança, e o
que acabámos de ver imediatamente antes já é diferente agora, ainda que os
nossos sentidos no-lo neguem – a famosa expressão de que não é possível
banharmo-nos duas vezes no mesmo rio significa isso mesmo: o passado pas-
sou, é incapturável e as semelhanças que tem com o presente são meramente
ilusórias.
Parménides de Eléia (c. 475) defende, ao contrário de Heraclito, que a verdade
física das coisas é eterna e imutável, mas que são os sentidos que nos enga-
nam. A mensagem foi influente em Platão. A tendência é a mesma em todos
estes autores: a realidade não é alcançada pelos sentidos mas encontra-se num
plano só acessível pelo pensamento.
Uma outra corrente seria classificada modernamente como materialismo.
Empédocles de Acragas (c. 450) afirmava que os objectos emitem eflúvios que
são cópias de si próprios. Capturaríamos esses eflúvios com cada modalidade
sensorial e eles misturar-se-iam no sangue. Com o bater do coração transfor-
mar-se-iam em consciência. O aspecto mais relevante desta teoria algo bizarra
é que é formulada em termos puramente materialistas. Não acentuemos a
modernidade de Empédocles: esta teoria materialista convive com a ideia de
transmigração das almas, que expiariam os pecados das vidas passadas. Mas
Empédocles leva a dúvida sobre a identidade da percepção e das coisas (o que
eu vejo não é o que realmente é) à sua conclusão lógica: se há diferença entre
percepção e realidade é necessário saber como se faz a tradução de uma na
outra. É, pois, explicitamente, um começo de epistemologia psicológica: estu-
dar o processo de conhecimento com base nos mecanismos perceptivos.
A parte mais moderna deste movimento é acentuada por Leucipo de Mileto
(c. 430) que defendia que tudo é determinado e pelo seu discípulo Demócrito de
Abdera (c. 420), famoso por ter defendido a indivisibilidade infinita da matéria
– haveria átomos, de diferentes tipos, que se misturariam entre si fazendo
substâncias. Esses átomos seriam percepcionados (o nome deles é eidola, pala-
vra que está na raiz do nosso «ídolo» e que significa «imagem») e seriam junta-
dos e separados mas nunca modificados – é uma visão que antecipa o associa-
cionismo britânico de 2000 anos depois. Demócrito defendia que as qualidades
sensoriais eram meras aparências, não porque houvesse características men-
tais que determinavam a experiência mas porque as coisas não eram o que
pareciam. Assim, os sabores acres ocorreriam porque os átomos de que são
compostas as coisas que nos sabem acres são pequenos, finos, angulosos; e

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uma coisa parecer-nos-ia doce por ser composta por átomos maiores e arredon-
dados. Mais uma vez é importante não mitificar o pensamento grego: os áto-
mos de Demócrito não são nada semelhantes aos do presente.
A centração no visível permitiu, paradoxalmente, a compreensão da falibili-
dade do dado sensorial: ele nada significa, é apenas engano, como pretendia
Protágoras de Abdera (490-420 a.C.), um dos sofistas: cada um constrói a sua
verdade a partir dos sentidos, e essas realidades são diferentes umas das outras
– de onde a famosa afirmação de cada homem ser a medida de todas as coisas,
posição de relativismo integral, em que cada pessoa constrói a sua verdade.
Assim, paradoxalmente, nos gregos, a centração nas coisas e não na mente
levou à compreensão de que as próprias coisas são ilusões. Este ponto é impor-
tante: normalmente opõe-se ao «realismo ingénuo» (a crença de que as coisas
são como as percepcionamos) a verificação de que as coisas só existem porque
são representadas na mente e de que a mente, sendo subjectiva, interpreta
essas coisas, de modo que não as podemos conhecer como são. Mas nos gregos
o caminho não foi esse: permaneceram centrados nas coisas, não no sujeito de
representação (a pessoa que vê essas coisas) e ao verificarem que as aparências
podem enganar localizaram esse engano na natureza escondida das coisas e
não nos processos da subjectividade. Só no final deste processo aparece a veri-
ficação da subjectividade.
Concluamos, pois, esta secção sobre os gregos pré-socráticos.
Há uma tendência para a explicação do Cosmos e não de Anthropos, do Mundo
e não do Homem e de Physis e não de Psyche, das coisas e não da mente. Esta
questionação do mundo concreto levou progressivamente ao cepticismo por-
que os pré-socráticos compreenderam que o que se observa não corresponde
ao que é. Mas enquanto Pitágoras pensava que a capacidade de ir para lá das
aparências pertencia à alma – a capacidade de apreensão do universal – o
movimento dos pensadores gregos posteriores deslocou-se mais para as coisas
do que para a alma. A própria ideia da existência estável de fosse o que fosse
é contestada, como vimos em Heraclito: tudo seria apenas fluxo e perpétua
alteração. A alma, quando referida, é apenas parcialmente independente do
corpo – como nos arcaicos. Ainda Empédocles defendia a metempsicose, em
que expiaríamos, a cada reencarnação, os nossos pecados até atingirmos a
pureza suficiente para, finalmente, descansar junto aos deuses.
Este cepticismo veio a gerar aquilo a que se chamava o sofismo. Os sofistas
eram pessoas que ensinavam a pensar, a defender e atacar tudo e o seu con-
trário independentemente da verdade. Eram puros mestres da discussão
intelectual. Actualmente, quando se chama «sofista» a alguém, há alguma

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crítica implícita à pessoa: diz-se dos sofistas que não acreditam em nada e
que usam a inteligência para defender o que lhes pagam. Que defendiam
fosse o que fosse é verdade; mas não é verdade que não acreditassem em
nada – acreditavam no poder do pensamento. Quando a esse poder do pensa-
mento se junta a crença, mais antiga, de que há uma verdade no mundo que
é preciso descobrir cria-se a civilização ocidental.

A REVOLUÇÃO SOCRÁTICO-PLATÓNICA

Resumamos o que dissemos até aqui sobre os gregos. Na sequência de


Tales, compreenderam que o mundo físico não é animado, não é uma alma
que deve ser estudada em termos de intenções. Isso levou os gregos a investi-
gar o mundo físico enquanto matéria, a pensar e especular sobre ele. Mas
essa especulação levou à conclusão de que os sentidos nos enganam. Não
haveria verdades, tudo seria subjectivo e o pensamento serviria para defen-
der o que se quiser. Trata-se de uma crise filosófica de dimensões catastrófi-
cas: não há verdade possível, deixa de se acreditar na religião, na ética, nos valo-
res.
Esta crise filosófica correspondeu a uma crise social: Atenas estava em
crise económica e política depois da derrota face a Esparta, na guerra do
Peloponeso. Tudo se discutia e dominavam os sofistas que defendiam, a
pedido, qualquer posição. É neste clima de agitação e angústia intelectuais e
morais que surge Sócrates.

SÓCRATES
Quase tudo o que dele sabemos vem-nos de Platão, discípulo criativo e que
parece ter expandido – e provavelmente traído – o pensamento socrático.
Falar de Sócrates e falar de Platão é, em muitos casos, equivalente, embora
haja a ideia de que Sócrates, ao afirmar que nada sabia, contrasta com as afir-
mações complexas de Platão. Por isso a maior parte dos autores considera
que os dois autores podem ser distinguidos: Sócrates caracterizar-se-ia princi-
palmente por um método de interrogar sobre o que era socialmente estabe-
lecido como verdade ética, e assim chegar à «verdadeira verdade» sobre os
motivos do nosso comportamento e, provavelmente, pela crença da imortali-
dade da alma. Platão tem uma teoria das ideias muito desenvolvida, que
pode ter estado em embrião em Sócrates mas que nos é apresentada na sua
complexidade por Platão e que, provavelmente, é maioritariamente da auto-
ria dele, Platão.
Contrariamente aos sofistas, Sócrates acreditava que o conhecimento era

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possível. Na realidade, não era só possível, era necessário, dado que estava
em cada um de nós. Chegava-se-lhe por meio de uma disciplina retórica e
filosófica adequada: ir argumentando e contra-argumentando, até que a ver-
dade surgisse.
De acordo com os pensadores anteriores, Sócrates declarava que a verdade
não se atingia através dos sentidos, enganadores: uma criança ou um animal
também os possuem e são, contudo incapazes de chegar à verdade; e mesmo
depois de desaparecida uma sensação, o seu conhecimento perdura, o que
mostra que a verdade não está nos sentidos (que já não têm a sensação que o
sujeito de conhecimento sabe ter sido real). Essa compreensão das verdades
era possibilitada pela alma que, tal como em Pitágoras, conhecia directa-
mente as essências e não as aparências, únicas representações dos sentidos.
Essas verdades têm de ser procuradas no próprio sujeito: é nesse sentido
que se deve entender o conhece-te a ti próprio, que Sócrates citava do Templo de
Delfos. A famosa alegoria da caverna (vemos das coisas apenas a sua realidade
deformada, ideia atribuível a Platão) significa o mesmo: os homens passam
pelo mundo sem saber o que é a verdade, e apenas os mais sábios, os que prati-
cam a contemplação na mente, conseguem compreender as essências puras.

PLATÃO (DATAS)

Súmula das ideias de Platão


Os sofistas tinham concluído que a única verdade reside na subjectividade
já que o mundo das aparências é enganador. É daí que parte Platão. A apa-
rência engana, tudo parece subjectivo. É à subjectividade que Platão vai bus-
car a pedra em que vai erigir um edifício de certezas. Apesar de toda a confu-
são dos sentidos, permanece o facto de que há ideias claras, inequívocas,
como o bem, o justo, o belo, as demonstrações geométricas que não se apli-
cam a um figura geométrica específica mas a todas as figuras de dado tipo
(um triângulo, por exemplo). Mesmo quando analisamos o mundo sensível
fazêmo-lo a partir de conceitos que não se encontram no mundo sensível:
diferença, semelhança, identidade, unidade, multiplicidade são detectadas
pela mente e não inferidas dos sentidos. Essas ideias claras ocorrem apesar da
confusão dos sentidos. De modo que não podem provir deles, mas ter outra
origem (exactamente o mesmo argumento se encontrará em Descartes): essa
origem deve ser a própria mente. Mas as ideias claras só com dificuldade e
graças a uma disciplina mental austera se conseguem atingir; somos perpe-
tuamente perturbados pelos desejos do corpo – o poder, o prazer corporal. É

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como se dessas ideias puras apenas tivéssemos uma recordação ténue, defor-
mada.
Essas ideias puras, ou formas existe como objecto de conhecimento, não
apenas como categoria que a mente detecta nas coisas: a alma racional (cf.
infra) pode vê-las se for desenvolvido o que chamaríamos agora pensamento
abstracto e se conseguir submeter as paixões do corpo a uma disciplina rigo-
rosa. As formas puras estão na mente como recordações (de quando a alma
racional não estava ligada ao corpo, antes do nascimento); é então necessário
que a alma racional domine o corpo. Veremos como na parte sobre a psicolo-
gia de Platão.
A esta posição que afirma que há, na mente, ideias inatas (conceitos ina-
tos) que têm origem num mundo imaterial chama-se idealismo, precisamente
da palavra ideia. Marcou a Filosofia Europeia até hoje.
Este é o âmago da filosofia de Platão. É justificado o seu idealismo? Creio
que tem de se compreender no contexto em que apareceu. Os gregos tinham
primeiro isolado o mundo físico como diferente do sujeito. Mas concentra-
ram-se apenas no mundo físico. Platão muda o referencial completamente:
temos de nos ancorar no sujeito, não no mundo físico, para compreender a
verdade. Mas esse sujeito parece subjectivo, mutável, sem ordem, com sub-
jectividades diferentes em momentos diferentes, e cai-se no relativismo se se
afirmar que é apenas ele a realidade das coisas. Perante essa dificuldade Pla-
tão erige uma verdade que o sujeito pode estudar: o mundo das ideias puras.
Para compreender a noção é necessário ter presente que Platão, como Pitágo-
ras e vários pensadores anteriores, acreditava na reencarnação e na vida da
alma racional independentemente do corpo e que só quando a alma vivia
nesse estado incorpóreo teria acesso à verdade pura. O que seria essa ver-
dade? Seriam as verdades abstractas e os conceitos correspondentes às cate-
gorias das coisas que conhecemos. A esses conceitos chamou-se, depois, «uni-
versais». Darei um exemplo para que se compreenda. Se eu falar de «cão» des-
pertarei em todos os leitores, uma imagem mental e várias ideias associadas:
a forma geral de um cão, o facto de ser boa companhia e de ser um mamí-
fero, entre outras possíveis. Além dessas representações gerais o leitor
poderá lembrar-se de um cão específico: se eu levantar os olhos verei uma
cadela tigrada, grande, sentada no tapete à minha frente. Essa cadela tem
características específicas que a distinguem dos outros cães, mas participa no
conceito geral de cão. O que é comum a todos os cães, o que representa a
categoria de cão seria a ideia pura de cão, mais tarde conhecido por «univer-
sal» porque corresponde às características universais a todos os seres da
classe «cão» ou, em Aristóteles, por «essência» (as características que diferen-
ciam a cadela de todos os outros cães seriam chamadas, mais tarde, «aciden-

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tes»). Esses conceitos gerais que representam as categorias seriam, segundo
Platão, dificilmente entrevistos pelas pessoas. A dificuldade existiria porque
o estado corporal interfere com a visão das ideias puras que permanecem
apenas como recordações longínquas e meio apagadas. Para que o sujeito
chegue a essas ideias puras é necessária uma disciplina de vida e sobretudo
mental muito exigente.

Ideias puras como realidades não psicológicas


As «ideias puras» de Platão não são conceitos psicológicos; corresponde-
riam a realidades no mundo ideal. Contudo pode-se afirmar que os conceitos
de «cão», «triângulo», «justiça» são apenas elaborações psicológicas, e provavel-
mente não correspondem a mais nada além de resultados necessários do fun-
cionamento da nossa mente em interacção com o real: o facto de todos os
povos terem uma ideia de justiça, de bem e de mal (mas com conteúdos dife-
rentes) e dos objectos com que interagem parece-me significar que essas
categorias são produtos necessários da mente, e não que existe, fora da mente
e independentemente do mundo percepcionado, uma realidade de que essas catego-
rias são reflexo – ou seja, não haveria qualquer mundo ideal. Mas esta com-
preensão apenas ocorreria muitos anos depois, com Guilherme de Occam,
no Séc. xiv. Parece-me que as ideias puras platónicas são uma reificação (o
que significa: coisa-ificação), isto é, correspondem a uma transformação
daquilo que é puramente psicológico em coisa real. A nossa espécie reifica
quase tudo: assim que se pensa numa força inventa-se um agente que é reifi-
cado em espírito, reificamos a identidade do grupo em totens (o grupo que se
identifica como «o do Canguru Walpiri» pensa que descende originalmente
desse canguru), e modernamente em bandeiras, em hinos, reificamos a nossa
identidade em objectos materiais (uma pedra, uma máscara dentro das quais
a identidade reside).6 No caso de Platão trata-se de uma reificação de um con-
teúdo mental num conceito abstracto («puro e ideal») e não num conceito
grosseiramente material, mas nem por isso deixa de ser uma reificação.
Actualmente diríamos que as ideias puras são puros conceitos abstracciona-
dos pela mente segundo regras mentais universais. Mas Platão afirma a exis-
tência de categorias mentais abstractas e daí infere a existência dessas cate-
gorias abstracras como coisa real (mas não material). A afirmação da reali-
6
Pode-se encontrar informação sobre estes casos em Eliade, Les Religions Australiennes,
em Lévi-Bruhl, L’âme Primitive, em Hallpike, Foundations of Primitive Thought. Todos os tra-
balhos etnográficos que procuraram capturar a vida mental de povos primitivos revelam
a existência de reificação sistemática. O totemismo foi particularmente bem estudado
por Durkheim (REFF).

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dade puramente conceptual, dependente de regras da mente, das «ideias
puras» apareceria muito mais tarde. Antes dos gregos, recordemo-lo, a reali-
dade era tida pelo que os sentidos nos revelavam e nada mais, isto é, a reali-
dade era o mundo concreto. Os gregos antes de Platão afirmavam o erro sis-
temático da experiência sensível. Platão afirma a realidade (nós diríamos psi-
cológica, ele disse ser ideal) de puros conceitos. Há um progresso real.
Esta posição é um degrau necessário para a formação de uma psicologia:
só compreendendo o sujeito como contemplador de um mundo mental é
possível descrever esse sujeito mental: apenas posso compreender-me como
mente se for espectador de conceitos que criei para descrever essa mente
(tenho determinadas maneiras de pensar, de reagir, gosto de tais categorias
de coisas, de certo tipo de experiências perceptivas).

Análise das ideias de Platão quanto à mente


Platão inventou a ideia ocidental de mente e conotou-a com a parte mais
nobre da nossa vida. Esta influência foi duradoura e ainda determina a
maneira como pensamos. Na verdade, mais do que qualquer outro filósofo,
Platão marcou-nos a todos. Foi ele a descobrir a mente; a fundar a psicologia;
a definir um modelo de aperfeiçoamento moral baseado no controlo da
nossa vida interior. É, portanto, o filósofo mais importante da nossa cultura.
Diz-se por vezes que toda a cultura ocidental são notas de rodapé à obra de
Aristóteles; mas isso é esquecer que a maneira de pensar, os próprios refe-
renciais de que Aristóteles e nós nos servimos, são platónicos.
Até ao tempo de Platão, em Atenas, psyche queria dizer «coragem» e «ani-
mação do corpo» (aquilo que distingue um corpo morto de um corpo vivo).
Este ponto é importante. O que significa é que a noção de psique era inferida
da animação dos corpos, da mesma maneira que nós sabemos se o João ou a
Lúcia estão zangados ou contentes a partir do comportamento que eles exi-
bem; era, pois, uma psique formulada em termos comportamentais e não de
subjectividade. Platão altera essa situação. Psique em Platão quer dizer
mente, a nossa vida interior (a vida interior de que cada um tem consciência)
e o objectivo da Filosofia é encontrar uma forma de atingir formas harmoni-
osas de existir individual e socialmente e transcender a mera luta pelo pra-
zer e pelo poder. Trata-se de uma busca da felicidade na mente, não no pra-
zer físico. Esta posição é um dos estruturantes das mentes ocidentais.
Como vimos atrás, os gregos concentraram-se sobretudo no visível; isso
levou-os a compreender que o concreto engana. Platão é um produto dessa
verificação. Diz-nos Aristóteles que Platão foi influenciado pelos heraclitea-
nos: se tudo é fluxo tem de se tentar ir para lá dos sentidos e chegar a formu-
lações estáveis e puras no domínio das ideias. Esta procura do conceito puro

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no invisível, isto é, na mente e não na matéria, é, por seu turno, influenciada
pela ideia pitagórica de que o mais real nas coisas é a forma/estrutura e não
aquilo de que as coisas são feitas. Ou seja, trata-se de uma ontologia das for-
mas no plano mental, psicológico, que se opõe a uma ontologia externa, da
matéria das coisas. As coisas deixam de ser apenas exteriores para serem
apreendidas pela mente e essa apreensão é possível porque a mente lhes cap-
tura uma coisa, a forma, que existe já nela, mente. Trata-se da mensagem da
alegoria da caverna: temos arquétipos das coisas que possibilitam o entendi-
mento, mas para chegar à verdade temos de contemplar as ideias puras, não
contaminadas pela experiência. É esse o termo da viagem filosófica preconi-
zada pelo idealismo desde Platão.
Já referi o que são, formalmente, as ideias puras: diz Platão que ao afirmar
que Ana é uma mulher reconheço a forma pura «mulher».7 Com excepção
parcial do belo, chegar-se-ia às formas puras por formulação verbal: usando o
método socrático, faz-se uma definição da forma pura e procuram-se falhas
nessa definição; quando se encontrar uma definição que não tenha falhas,
que não seja contra-argumentável, teremos chegado a uma formulação apro-
ximada da forma pura.
Chegar às formas puras –isto é, viver no mundo das ideias– seria a
maneira de nos elevarmos a um grau de felicidade mais seguro e menos con-
tingente do que simplesmente procurarmos prazer. O argumento é o
seguinte. A alma não é apenas racional mas principalmente movida pelo
desejo; é, pois, uma alma motivada, como diríamos actualmente. Esse
desejo, essa luta constante consigo e com os outros, é a própria vida. Numa
alma não cultivada os desejos são todos materiais: sexo, alimento, poder, pra-
zer físico. O desejo da alma é a posse: posse do amado, da fama, da fortuna,

7
Repetição, creio: Assim, teríamos reminiscência da forma pura, ainda que precisás-
semos de nos lembrar dela por contacto com exemplos. Detalhemos agora um pouco a
particularidade do pensamento platónico. Há formas puras mais abstractas: o justo, o
verdadeiro e o belo são, precisamente, as formas mais elevadas (e de que, como vimos, a
disciplina espiritual nos permite aproximar-nos). Trata-se de formas invisíveis excepto
no caso do belo (porque há coisas materiais que são completamente belas). Faço notar
que a definição da justiça, da verdade e da beleza como formas puras se volta a encon-
trar em Kant, que define os juízos sobre a verdade, a justiça e a beleza como as opera-
ções da mente racional. Significa isto que as funções mentais mais importantes foram
definidas por Platão. Há também ideias puras de movimento, de ser, de não ser. As ideias
de Platão (o termo «ideia» é do próprio Platão) são, no fundo, os conceitos abstractos, os
resultados da abstracção pelo pensamento. As ideias seriam mais verdadeiras do que os
exemplos que lhes correspondem porque o mundo dos sentidos, como vimos, não é de
confiar.

12 Outubro 2013
do poder. Numa alma harmoniosa esses objectivos são substituídos pelo
desejo da posse das ideias puras: o bom (justo/injusto), o verdadeiro e o belo.
Quer-se possuí-los mas para isso tem de se fazer um longo caminho de aper-
feiçoamento espiritual que nos permita anular os desejos que nos afastam do
mundo das ideias e cultivar o pensamento abstracto.
Platão explica a alma em termos do funcionamento de várias tendências.
Procura explicar como atingir a justiça e a felicidade e no processo fornece
uma teoria motivacional. Para se compreender o funcionamento dessas
várias tendências convém recordar que Platão queria chegar a uma formula-
ção justa, ética, não só da pessoa mas da sociedade. Diz ele que como a socie-
dade é composta de pessoas tem de ter as mesmas características das pessoas
(este argumento é criticável: modernamente compreendeu-se que não é
assim, mas vamos seguir Platão). A sociedade platónica é comunista, mas
não no sentido que actualmente damos ao termo. Haveria três grupos de pes-
soas: filósofos, guardas e produtores. Os filósofos dirigiriam a sociedade; não
teriam propriedade. Os guardas assegurariam o cumprimento das decisões
dos filósofos; estes guardas são uma espécie de versão guerreira dos filósofos:
dedicam-se não a fazer leis mas a impô-las; também não teriam propriedade
e, como os filósofos, dedicar-se-iam integralmente ao bem público. Final-
mente haveria as classes produtivas que teriam propriedade (os artífices, os
camponeses e os comerciantes); são vistos como uma espécie de produtores
de riqueza, mas sem qualquer poder político.
No nível psicológico as coisas passar-se-iam da mesma maneira. A psique
teria três funções, ou três níveis, se preferirmos. O primeiro, correspondente
aos filósofos, é a razão («o racional», logistikon); o segundo é a paixão (thumos),
que luta contra os desejos mais básicos provenientes dos apetites (epithumeti-
kon) corporais. Platão que, no Phaedo, apresenta uma alma mais ou menos
una, defende na República, que não pode usar um conceito unitário quando
há conflitos internos: havendo luta interior tem de ser entre mais do que
uma coisa; a alma não pode, portanto, ser una. REFF Há muita discussão
sobre se a alma em Platão é una ou fragmentada. Há três decisores ou um
decisor influenciado por três grupos de motivos? Creio que é a segunda hipó-
tese que deve ser retida: há impulsos de três tipos –pela verdade, pela honra
e pela carne– mas a pessoa justa deve impor o controlo dos motivos pela ver-
dade. Ou seja, posso ser professor universitário por procurar a verdade
(estudo e penso o mais que posso); por querer prestígio (publico o mais que
posso); ou porque sendo professor tinha certas regalias que me permitiam
uma vida material relativamente fácil (tinha – as coisas mudaram
entretanto). Segundo Platão é a primeira via a mais nobre (e, no exemplo,
Platão consideraria a primeira a única motivação legítima para um sábio).

Outubro 2013 13
Consoante os impulsos que me dominam sejam pela verdade, pela honra, ou
pelo conforto material deverei ter uma profissão diferente: sábio, guerreiro
ou burguês. Mesmo que escolha a profissão de sábio serei sempre afectado
pelas outras duas fontes de impulsos. Como resolver esse problema? A razão,
por influência das ideias puras, procura o justo, o verdadeiro e o belo; mas os
apetites querem apenas o prazer. A paixão indigna-se então com os nossos
actos, guiados pelos apetites, que vão contra a razão. A vida mental é, pois,
um campo de luta constante e o objectivo do homem justo é conseguir asse-
gurar o domínio do justo, do verdadeiro e do belo. Segue-se então que o
mesmo teria de ocorrer na sociedade. Há, pois, três tipos de forças a agir na
nossa alma; qualquer delas pode tomar precedência e dominar a consciência
(o Eu); mas uma delas, a razão, permite-nos escolher o nosso rumo.
Freud, na sua tópica Ego, Superego, Id, retoma, respectivamente, os temas
da razão, da paixão e dos apetites. É extraordinário como o autor que deu
início ao estudo da mente lhe marcou o programa a ponto de permanecer
actual dois mil anos mais tarde.
Apesar de antecipar em 2000 anos as posições da psicanálise, a filosofia de
Platão não é uma psicologia, embora a pressuponha: se fosse apenas uma
psicologia, poder-se-ia manter a posição sofista, de que, ainda que a alma
possa ser estudada, tudo é relativo. A posição psicológica de Platão existe
como fundamento de uma afirmação de valores: é uma ética, um programa
de conduta para melhorar o homem e a sociedade. Para se demarcar dos
sofistas Platão afirma uma verdade ideal que quer o indivíduo quer a socie-
dade devem perseguir.
Chega-se ao mundo ideal pela mente, pela razão. O sujeito «contempla»,
«vê», com o olhar da mente, as ideias puras. É ainda apenas um observador
da realidade, não ainda uma máquina psicológica que a interpreta; ou seja, a
ênfase ainda é colocada no objecto de conhecimento e não no sujeito conhe-
cedor. Mas a realidade a conhecer não é já física, nem uma abstracção da
física, mas uma representação da mente. Essa mente é definida como con-
flito entre tendências e como conceitos abstractos: Platão desenvolveu a
ideia do conflito psicológico e da sua importância na busca da vida ética e a
do pensamento abstracto, mas não detalhou a «máquina» da alma em termos
de componentes que permitem o conhecimento. Seria, a seguir, Aristóteles,
que desenvolveria a Psicologia independentemente da Ética e das ideias
puras.

14 Outubro 2013
Influência de Platão
Como se terá compreendido, a influência de Platão é enorme. Não só fun-
dou a filosofia, a psicologia e a ideia de mente, mas marcou-as poderosamente:
Plotino, Agostinho, Descartes, Espinosa, Kant, Schopenhauer e Freud retoma-
ram, cada um, temas platónicos e quase todos se lhe referiram, directa ou indi-
rectamente. Dá quase a impressão de que Platão pensou, no essencial, tudo
quanto havia a pensar sobre a mente e que depois dele apenas se pode repetir
as mesmas ideias formuladas de maneira diferente (e por vezes pouco dife-
rente). Além disso foi Platão que marcou a superioridade da mente sobre o
resto da nossa vida. Toda a ideia da importância da razão, do pensamento, têm
nele fundação. No actual mundo materialista e obcecado com o consumo a
mensagem platónica tem menos força do que teve, embora a sua pertinência
seja máxima (não se procura o domínio da razão mas dos apetites). Mas inde-
pendentemente de termos consciência disso, o facto é que as nossas categorias
mentais foram, no essencial, formuladas por ele.

ARISTÓTELES (384-322)
A influência platónica directa é nula na ciência contemporânea, que pro-
cura anular o sujeito e a subjectividade (sobre este tema, ver o Livro III do
presente volume). O mesmo não se pode dizer da influência de Aristóteles,
muitas vezes dito precursor do empirismo. A influência de Aristóteles é
vasta, dado que escreveu sobre quase tudo. Interessa-nos compreender a sua
posição, que foi alterada nas repercussões modernas que teve.
Aristóteles não era um anti-platónico; pelo contrário, grande parte da sua
filosofia se baseia em reinterpretações dos conceitos platónicos. Mas não acei-
tava a teoria das formas: considerava que o espírito humano não possuía,
como reminiscências, as ideias – as essências – do belo, do justo, do puro. Mas,
contrariamente ao que posteriormente se defendeu, nunca afirmou que a
mente era um espelho dos sentidos como, mais tarde, os empiristas britânicos
e os sensacionistas franceses vieram a fazer. De facto, se é verdade que Aristó-
teles chamava a atenção para a natureza corporal e material das funções da
vida – possibilitada pela alma –, reservava uma posição mais idealista e mais
próxima do platonismo quando se referia às capacidades epistémicas (de resto,
epistemonikon traduz-se por «aquilo que procura as essências» e o conceito de
essência –o belo, o justo, o verdadeiro, é platónico). Essas essências, ou «uni-
versais» (termo que reencontraremos nos próximos capítulos), não poderiam
ser alcançados pelos sentidos: têm de ser identificados por categorias do pen-
samento. Essas categorias são dez: Substância (uma coisa é determinada coisa:
Sócrates é um homem); Qualidade (tal coisa é branca, preta, de ferro, de
pedra); Quantidade (uma coisa tem dada dimensão); Relação (uma coisa é

Outubro 2013 15
maior, menor, do que outra); Espaço (o sítio onde uma coisa está); Tempo (a
localização no tempo de uma coisa: nasceu ontem); Posição (está deitado);
Estado (uma coisa está molhada); Acção (A age sobre B); Afecção (B é afectado –
é agido– por A)
Assim, poder-se-ia dizer que o bicho que está aqui comigo é uma cadela
(Substância); que é branca e preta e tem pelos compridos (Qualidade); que é de
porte médio (Quantidade) mas que é maior do que o cão que está na sala ao
lado (Relação); que está agora junto da minha secretária (Espaço); que não sei
quando nasceu mas apenas quando chegou a minha casa (Tempo); que está
deitada à minha direita (Posição); e que está seca (Estado) embora chova lá
fora; que me pede companhia (Acção); e que me comove (Afecção, sendo eu o
afectado).
Estas categorias não são propriamente psicológicas –são categorias dos con-
ceitos usados para pensar as coisas– mas são necessárias ao entendimento;
estão presentes nas coisas, existem independentemente da mente mas têm de
estar na mente para que o pensamento seja possível. Assim, se é verdade que
as ideias (no sentido platónico do termo, de ideias puras) não se encontram na
mente, esta não é virgem: não faz sentido pensar que os estados de conheci-
mento são inatos, mas «Se os adquiríssemos e não os possuíssemos previa-
mente como poderíamos apreender e aprender sem conhecimento pré-exis-
tente?». (Analítica Posterior 99b). Veremos, quando considerarmos a mente
activa e passiva, como Aristóteles resolve esta questão de forma particular-
mente obscura.
Quer isto dizer, como Platão e Sócrates, que é preciso que uma estrutura
possa receber outra para que essa outra se combine com a primeira. Para
perceber que o cão é mais baixo do que a cadela, tenho de ter as noções de
quantidade e de relação, ou não codificaria a diferença de alturas.
As ideias não estariam, então, presentes, mas sim a capacidade para as apreen-
der a partir dos sentidos e de as formular. Essa capacidade seria mental e anterior
à experiência, exactamente como o inatismo do nosso tempo defende. Aristó-
teles pensava que a partir dos sentidos apenas se atinge o acidental: é a razão,
ou a mente, que deve encontrar as essências e os universais. A diferença entre
«acidental» e «essencial» ou «universal» compreender-se-á talvez melhor com
um exemplo: se considerarmos todas as mulheres do mundo, verificaremos
que partilham todas alguma coisa – seria a essência da mulher; mas há more-
nas, loiras, altas, baixas, bonitas, feias, simpáticas, antipáticas, cozinheiras,
advogadas: tudo isso são acidentes.
Assim, quando Aristóteles se refere à mente como uma folha em branco –

16 Outubro 2013
uma tábua rasa – quer dizer apenas que a experiência e os sentidos têm de lhe
fornecer a matéria prima para ela funcionar. Mas a experiência só é possível se
houver, na razão, qualquer coisa de prévio e que possibilite que a experiência
seja recebida, avaliada e generalizada. Como Kant diria, muito mais tarde, tem
de haver a priori que estruturam a experiência de forma a permitir à mente
reconstituir os universais. Nesta perspectiva, a mente detecta os universais
através da generalização, mas não os cria: eles existem, não como coisa física
mas como realidade do pensamento. A herança platónica é particularmente
evidente nesta ideia.
Um outro aspecto importante em Aristóteles é a distinção entre potência e
realização, ou realidade. Uma bolota tem o carvalho em potência, mas tem de
crescer para que o carvalho seja realizado. Esta potência significa que Aristóte-
les acreditava que o mundo tinha um sentido, uma direcção, que a natureza
estava organizada teleologicamente. Acreditava, pois, que todas as coisas se
encontravam associadas num plano divino, em que cada coisa desempenharia
a sua função. Explicar a natureza e o Homem seria, então, uma tentativa de
desvendar o plano da natureza.8
Outra característica do pensamento de Aristóteles é a afirmação de que
todas as coisas são compostas de forma e de matéria. A forma determina a
essência de uma coisa, e a matéria pode ser transformada de maneira a tomar
outra forma. Quando uma larva dentro de um casulo se transforma em borbo-
leta muda de forma dá-se uma mudança substancial (muda a substância); o que
continua a ser o mesmo é a matéria, já que a lagarta e a borboleta não sofre-
ram acrescentos nem perderam quantidade. Claro que a própria matéria se
alterou, mas Aristóteles diz que foi a alteração da forma que alterou o aspecto,
a natureza, da matéria-prima, mudando-lhe assim a substância. Chamou-se a
esta teoria da forma+matéria hilemorfismo. A distinção forma-matéria é impor-
tante para nós porque dado que a forma determinaria a essência de uma coisa,
e que a alma é definida como forma (a alma é a forma do corpo), a psicologia
de Aristóteles só se compreende a partir dessa distinção.
Há ainda a referir a teoria das causas, mas tratá-la-ei na secção seguinte.
Com tudo isto em mente analisemos a principal contribuição de Aristóteles
para a Psicologia.

O de Anima e seu significado


O texto mais importante sobre a psicologia que Aristóteles propõe é habi-
tualmente referido pelo seu título em latim –De anima– embora, evidente-

8
Esta ideia das ciências naturais morreu com Darwin. Que eu saiba, a sua última
manifestação científica ocorreu na Alemanha do pós-guerra (anos 20 do Séc.XX). Falarei
dela quando me referir a Uexküll e ao Gestaltismo no Livro III.

Outubro 2013 17
mente, tenha sido escrito em grego. Vou aqui apresentar e analisar esse
texto, e as conclusões que apresentar evitam qualquer recurso a fontes
secundárias: o texto é muitíssimo pouco claro e permite várias interpreta-
ções, de modo que me pareceu que a única maneira de ter uma opinião é lê-
-lo e comentá-lo directamente. Apresentarei as ideias comentadas.
Já referi que a base do pensamento de Aristóteles é o hilemorfismo (de hyle,
matéria, e morphe, forma): todas as coisas têm matéria e forma e matéria e
forma são independentes mas criam um ser uno: por exemplo, o molde que
faz que a cera ganhe certa forma é diferente da cera; mas o produto da mol-
dagem implica, indissociavelmente, os dois aspectos, molde e cera, isto é,
forma e matéria. «Forma» pode querer dizer «molde» como no exemplo ante-
rior; mas quando Aristóteles fala de alma «forma» ganha um significado
muito menos preciso.
Como veremos, a palavra «alma», em Aristóteles tem vários significados,
alguns claramente relacionados entre si, outros não. Contudo, dá uma defini-
ção geral do termos «alma». Diz que a alma é a forma do corpo, mas por
forma, no caso da alma, parece querer dizer a finalidade. Assim, a alma seria
responsável pelas funções (função=finalidade) que o corpo desempenha.9
Equacionar forma e finalidade cria muita confusão no seio da teoria aristoté-
lica.
Para se compreender o porquê da confusão, há que ter em conta que «fun-
ção» e «forma» têm significados diferentes em Aristóteles. Na sua teoria a
explicação de um fenómeno implicaria que se explicasse quatro aspectos, as
famosas causas de Aristóteles: a matéria de que é feita uma coisa; a forma que
foi imposta à matéria; a causa eficiente (o que ou quem fez que a coisa exista);
a finalidade (para que serve, ou que funções cumpre, essa coisa).
Ora Aristóteles afirma que, ao estudar os organismos, é necessário com-
preender primeiro a finalidade para depois se poder compreender a organi-
zação material. Mas se a forma do corpo é a alma e essa forma é inferida com
base na finalidade, finalidade e forma são, então, sinónimos no caso con-
creto da alma embora sejam causas diferentes no resto do pensamento de

9
A função de uma coisa é interpretada em termos de intenção ou finalidade de quem
fez essa coisa. Se aceitarmos que houve um agente que fez o mundo, as funções foram
pensadas por ele em termos da finalidade que as várias coisas desse mundo devem cum-
prir. A ideia de finalidade apenas foi completamente abandonada com o darwinismo. Na
Biologia moderna distingue-se finalidade (teleologia) de função (teleonomia). OS dois
termos correspondem ao mesmo e a diferença entre eles é que a finalidade implica um
deus criador e a teleonomia não. Toda a Biologia moderna mostra que não há necessi-
dade de recorrer à ideia de criação, de modo que a finalidade foi abandonada.

18 Outubro 2013
Aristóteles? Não é claro. A confusão é, parece-me, irresolúvel.
Apesar disto, pode-se reformular a questão em termos mais modernos e
imediatamente compreensíveis: para estudar os seres vivos deve-se primeiro
identificar a função e depois compreender a organização. Há posições moder-
nas que defendem precisamente o mesmo: a estrutura de uma mão só se
compreende se tomarmos em conta a sua função, aquilo que ela é capaz de
fazer, e o valor de sobrevivência que tem essa capacidade. Que é isto que
Aristóteles pretende, mostra-o um exemplo do próprio Aristóteles: o olho
não se consegue compreender sem referência à função que desempenha da
mesma maneira que não se consegue compreender um machado descre-
vendo-o apenas fisicamente; para compreender qualquer fenómeno há que
compreender a estrutura a partir da função. Aristóteles chama-lhe forma e
assimila a forma à alma (nos seres vivos), mas isso não nos deve afastar do
ponto central: estrutura e função são duas realidades que devem ser estuda-
das juntas.
Há três almas diferentes: a vegetativa, ou alimentar/reprodutiva, a percep-
tiva/locomotora e a racional. A alma humana contém a alma racional, a per-
ceptiva-locomotora e a alimentar-reprodutiva. Aristóteles não defende que a
alma seja apenas uma entidade e trata as diferentes «partes» da alma como
estando relacionadas mas sendo independentes. Seria apenas mais tarde,
com S. Tomás, que esta diversidade de almas é afirmada (incompreensivel-
mente) como una.
Inferindo a alma das finalidades/funções dos diferentes organismos vivos,
Aristóteles descreve vários tipos de alma consoante o tipo de organismo. Em
primeiro lugar haveria a alma das plantas, que assegura a vida e se baseia na
alimentação e reprodução (por isso chamou-se-lhe alma «vegetativa»).
Em segundo lugar aparecem percepção e movimento, que caracterizam os
animais (cada nível pressupõe a existência do anterior; de modo que os ani-
mais, além de percepção e movimento teriam também alimentação e repro-
dução). A percepção é profusamente analisada no De Anima, mas a discussão
anda em torno de questões específicas da filosofia grega que não nos interes-
sam aqui; basta dizer que os vários sentidos se fundem na experiência de
uma imagem (os sentidos são os que ficaram os «cinco sentidos» clássicos:
visão, audição, tacto, paladar e olfacto). À fusão entre os sentidos atribui
Aristóteles uma instância específica, um sentido que funciona como integra-
dor de todos os outros. Trata-se do senso comum, termo que passou, com um
significado bastante diferente, para o uso de todos os dias.10 A percepção
10
Há vários conceitos de uso vulgar que têm origem nos autores atenientes; já referi
os cinco sentidos, refiro agora o senso comum, e mais serão referidos imediatamente
adiante no corpo do texto. Também por este facto se pode avaliar o impacto desses
autores na nossa vida: ainda pensamos com os conceitos que eles nos legaram.

Outubro 2013 19
seria a sintonização do conhecedor e da coisa: tem de haver no conhecedor
maneira de dar realidade mental a essa coisa; não é um processo puramente
passivo em que a coisa se impõe ao organismo, mas um processo que implica
activamente o organismo que captura da coisa uma parte. O conhecimento
dos sentidos não é, pois, apenas uma imposição do exterior em nós (como
em Demócrito, por exemplo) mas sim uma actividade propriamente psicoló-
gica, activa, que implica, ao mesmo tempo, sujeito e objecto.
Percepcionar implica que haja prazer e dor e, em consequência, desejo, que
determina o comportamento intencional porque se baseia em imagens men-
tais dos objectos de desejo (imaginação, que não tem exactamente o mesmo
sentido que agora damos ao termo: imaginar significa originalmente refazer
uma imagem perceptiva na mente). As imagens podem ser recuperadas na
memória.
No Homem, aparece mais uma nova característica da alma: a mente (ou
razão, ou inteligência: nous em grego). Há dois tipos de mente, prática (plane-
amento, estratégia) e teórica (a razão concentra-se em ideias e funde-se com
elas). Tal como a percepção a mente prática é concebida como a captura,
pelo organismo, da forma de uma coisa exterior; a inteligência teórica seria a
captura das formas das próprias ideias (a ideia de triângulo, por exemplo).
Assim, a mente pode ter consciência de si própria (a mente como ideia) e
tentar analisar-se, embora se funda com os problemas em que se concentra:
a mente concentrada sobre um assunto é totalmente preenchida por esse
assunto e passa a «ser» esse assunto.
A mente é, pois, um espaço de virtualidade, em que as formas podem pas-
sar a ter existência e a ser relacionadas umas com as outras. Esta conclusão
permite afirmar que é esta inteligência teórica o centro da actividade mental
humana: seria o «eu» dos verbos, que tem consciência de existir. Veremos
que as coisas se tornam confusas mais adiante.
O pensamento implicaria sempre imagens mentais, provenientes dos sen-
tidos. Mas a mente não é uma cópia desses sentidos: tem de haver, na mente,
antes de qualquer cópia, formas prévias que identifiquem as ideias. A mente
é, assim, uma espécie de armazém de formas que possam reconhecer o que
os sentidos lhe fornecem. Por esta ideia se vê (já o tinha referido) quão ina-
tista é a ideia de mente em Aristóteles e até que ponto é próxima da de Pla-
tão (as formas inatas equivalem às ideias puras de Platão). Contudo, a ênfase
é diferente: enquanto Platão fala de reminiscências das verdades, isto é de
conteúdos, Aristóteles fala da capacidade de transformar o que existe apenas
em potência em realidades de pensamento: a alma não teria ideias puras

20 Outubro 2013
mas apenas processos de chegar a formulações abstractas que são universal-
mente verdadeiras.
A mente tem, pois, possibilidade de derivar conceitos, de reconstruir os
universais e de pensar formas sem matéria – trata-se da actividade do pensa-
mento abstracto – e essa possibilidade vem de duas fontes: das imagens men-
tais e de uma espécie de reserva de formas que possibilita, que provoca, a
actividade mental. Aristóteles separa o «motor» da mente, a que chama mente
activa; e o «espaço» em que as ideias se relacionam por influência desse
motor; a este espaço chama Aristóteles a mente passiva. Este «motor da
mente» não é descrito em termos de processo, mas o facto de ser referido sig-
nifica um avanço grande na direcção da construção de uma psicologia: em
vez de ideias puras inatas (como em Platão) há mecanismos inatos que nos
permitem chegar às ideias puras (os conceitos).
As almas (das plantas, dos animais e do homem) são mortais porque fazem
parte do corpo: diz Aristóteles que ainda que seja possível pensar uma forma
sem matéria (que é precisamente o que faz a mente teórica), uma forma
deixa realmente de existir quando a matéria é destruída; de modo que a
alma (forma) perece com o corpo (matéria).
Há uma excepção: a mente activa é imortal. O texto relativo a este aspecto
(Livro III, parte 5) é tão pouco claro que quase se pode lá ver o que se quiser
(essa parte já foi descrita como um teste projectivo dos filósofos, que reve-
lam as suas preferências teóricas identificando-as no texto que, de tão ambí-
guo, permite quase todas as interpretações).11 Esta mente activa é como a luz
que transforma a potencialidade das cores em realidades. Seria imortal por-
que não tem um órgão físico que lhe corresponda (de resto, em outros sítios
d o De Anima Aristóteles generaliza a afirmação a toda a mente – tem de se
compreender que a relação do pensamento com o cérebro apenas foi estabe-
lecida mais tarde).
Esta mente activa difere da mente passiva (onde se faz a identificação das
formas e se relacionam formas umas com as outras e, na mente prática, se
relacionam desejos com objectivos). Como a recordação parece ocorrer na
mente passiva, que é mortal, a mente activa, que sobrevive, não tem recorda-
ção de estados anteriores.
Noutros locais, Aristóteles diz que essa mente (presume-se que seja essa,
mas o autor não o diz) é «impassível», quer dizer, nunca envelhece. Mesmo
nos homens muito velhos, já senis, essa mente permanece intacta e são
outras funções da alma (não nos diz quais) que enfraquecem. Esta afirmação
11
A distinção entre mente activa/passiva e teórica e prática não é particularmente
clara. A impressão que tenho é de que a ideia da mente activa/passiva surgiu depois do
conjunto do texto e que foi interpolada. Por isso é tão confusa e difícil de integrar no
resto do De Anima. Na verdade, pode até ser uma interpolação posterior a Aristóteles.

Outubro 2013 21
é compatível com a ideia de um centro consciente que nunca morre, mas,
como já disse, a formulação é tão vaga que é compatível com qualquer outra
interpretação.
Também é possível pretender que a mente passiva são os conteúdos men-
tais e que a mente activa é exterior ao homem (de resto, Aristóteles di-lo
explicitamente: a mente activa é exterior). Poder-se-ia então interpretar a dis-
tinção como significando que a mente individual, a consciência, os conteú-
dos da memória, o conhecimento individual, são mortais e que a mente
activa, causa exterior das operações e conteúdos mentais, é imortal porque
independente do corpo. Assim, aquilo a que chamamos normalmente «alma»
(o «eu») seria mortal; apenas permaneceria o princípio da mente activa, que
não é pessoal. Que é como dizer que o eu morre mas que a inteligência que o
tornou possível existe independentemente de mim.
Parenteticamente, refiro que a mente activa de Aristóteles é a resposta às
ideias puras de Platão. Para Platão todo o conhecimento seria um esforço
para chegar às ideias puras de que temos uma ténue recordação. A posição
de Aristóteles parece muito diferente porque as essências, os universais,
numa palavra, as ideias puras estão em nós em potência (mas o mesmo ocorre
em Platão) e são atingidas através do motor que é a mente activa. Mas essa
mente activa, tal como as ideias puras, é exterior à mente. Como já disse, só
muito mais tarde, com Guilherme de Occam, se defendeu que os universais
são categorias puramente psicológicas. A mente activa é, pois, tal como o
mundo das ideias puras de Platão, uma reificação da actividade psicológica: é
o motor que vem de Deus, ou, em qualquer caso, de uma entidade agente
invisível. Esta posição apenas foi considerada primitiva já no Séc. xvııı com
David Hume.
A distinção entre mente activa e passiva tomaria enorme importância nos
comentadores subsequentes. A formulação da «mente activa» é um progresso
importante relativamente a Platão. Em Platão a mente recorda-se da verdade
que contemplou quando fora do corpo. Trata-se, pois, de uma mente formu-
lada à imagem da percepção: a «mente viu» as ideias puras. Em Aristóteles a
mente adquire capacidades de organização e transformação das experiências
sensoriais que permitem o pensamento abstracto e chegar à verdade: tem,
em si, as regras necessárias para chegar à verdade. É, pois, uma mente mais
autónoma, e a formulação abre caminho para quem quiser descrever e infe-
rir essas regras. A lógica (fundada por Aristóteles), maneira de chegar à ver-
dade, pode ser considerada uma descrição dessas regras.
A falta de clareza de Aristóteles desempenhou um papel importante na

22 Outubro 2013
sua divulgação. Como veremos no capítulo sobre a teoria Gestalt, tendemos a
não esquecer facilmente um problema por resolver. Como os textos de Aris-
tóteles são pouco claros mas se entrevê que têm um significado importante,
as ideias ficam-nos na memória e a tentação de as tentar reescrever, preen-
chendo os saltos de raciocínio, é muito grande. É, em parte, isso que explica
os numerosos comentadores de Aristóteles: Avicena, Averróis, S. Tomás de
Aquino são alguns deles. No que diz respeito à alma o aristotelismo é, em
parte, uma interpretação de textos profundamente obscuros mas suficiente-
mente claros e penetrantes para nos dar a sensação de que há um fundo de
verdade no que o autor diz.

A alma em Aristóteles
É difícil tirar uma conclusão clara. Mas o mais importante talvez seja a
ideia de que a alma é, na maior parte, indissociável do corpo. A posição não é
materialista e Aristóteles, no início do texto, demarca-se explicitamente do
materialismo. Seria, talvez, possível, dizer que a posição é funcionalista:
identificam-se função e estrutura ao mesmo tempo. Mas mesmo a ideia de
que a alma é indissociável do corpo, que Aristótles afirma no início do De
Anima, é refutada no final do texto, como vimos, porque a mente não tem
uma contrapartida material e pelo menos uma parte sobrevive à morte do
corpo.
Apesar de todas as faltas de clareza e as aparentes contradições, o texto é
uma tentativa de compreender percepção, acção e processos internos, numa
perspectiva comparada. Nesse aspecto Aristóteles é muitíssimo moderno.
Quando trata da mente (nous) tenta uma caracterização do funcionamento
conjunto do pensamento e da percepção. Em ambos os casos haveria uma
captura da forma pelo sujeito de conhecimento; a mente faria uma espécie
de abstracção das formas e relacioná-las-ia. Aristóteles apresenta, assim, a
primeira teoria psicológica autónoma; é verdade que Platão chamava a atenção
para a psicologia, mas não a tratava como um campo de estudo autónomo. É
Aristóteles o verdadeiro fundador da Psicologia como campo de estudo bem
identificado.
A mente de Aristóteles implica três coisas diferentes mas relacionadas: a)
o mecanismo invisível que anima, que dá vida aos organismos b) o princípio
agente que é responsável, nos animais, pelo comportamento intencional e c)
a capacidade de planeamento e de pensamento abstracto. Além disso, se con-
siderarmos o fragmento misterioso sobre a mente activa imortal, implicaria
uma quarta coisa, d) um princípio espiritual que há em todos os homens e
que lhes permite o entendimento. O conceito de «alma» é, pois, muito
diverso e pouco unificado. Mas nem por isso se pode dizer que há confusão e

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que Aristóteles confunda conceitos de tipos diferentes sob o mesmo termo:
ele está consciente da heterogeneidade do conceito de almas que apresenta.
É interessante, do nosso ponto de vista, que a noção de alma signifique
vida+agência+pensamento: afinal é precisamente esse o campo do espaço do
invisível considerado no Cap. 2. Pode-se dizer, talvez, que Aristóteles tentou
integrar os vários significados que a palavra «alma» tinha no seu tempo: res-
ponsável pelo movimento e pela agência (Tales achava que os ímanes tinham
alma precisamente porque provocavam movimento) e pela vida (noção de
sopro vital, ou psyche) e pelo desejo, thymus; capaz de fazer juízos éticos e
racionais (nous), e de contemplar o absoluto (Platão e Pitágoras); finalmente,
é apenas material (vários pré-socraticos). As ideias não se integram talvez
perfeitamente mas capturam descritivamente o que se entendia por alma.
A definir a alma de maneira tão extensa, Aristóteles poderia ter dado ori-
gem a uma ciência geral das funções de relação com o ambiente através dos
sentidos, do comportamento, e das motivações (não foi o caso). Nesse
aspecto o seu trabalho é fascinante de tão moderno e mesmo conceptual-
mente mais avançado do que a maior parte dos movimentos intelectuais da
biologia e da psicologia actuais. Como veremos em capítulos ulteriores veio a
defender-se precisamente uma posição parecida na etologia, no gestaltismo e
no funcionalismo: o objectivo da biologia e da psicologia seria compreender
a função de ligação entre um organismo e o seu ambiente. O facto de a
mente racional, além das mentes animais, entrar neste sistema explica-se
facilmente: embora não sintamos necessariamente o pensamento como uma
relação com o ambiente é essa a sua função: pensamos sobre coisas e agen-
tes, sobre o que fazemos sobre essas coisas e esses agentes – como que ensai-
amos o nosso comportamento num espaço virtual. Sendo assim, a definição
funcional da mente parece ser uma das maneiras mais profícuas de a estu-
dar.
A mente de Aristóteles é insuficientemente descrita mas sempre assim
ocorreu: a mente é intrinsecamente difícil de estudar (de resto, os pensado-
res árabes e europeus medievais completaram-no). Aparece como uma espé-
cie de espaço de virtualidade que permite o planeamento e também é a sede
das formas puras. O elemento platónico, idealista e inatista está, pois, pre-
sente na formulação aristotélica. Convém explicar que a ideia de «formas
puras» não é nem mística nem ingénua. De facto, só conhecemos aquilo que
temos estruturas para percepcionar e para entender. Ninguém consegue
compreender afirmações como «o todo é mais pequeno do que uma parte
desse todo», ou «5<2» ou «um triângulo não tem ângulos»; e, afastando-nos

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mais do tipo de argumentação filosófica, ninguém consegue visualizar um
espaço com 5 dimensões (consegue-se modelizar matematicamente, mas não
se consegue imaginar como uma realidade que possa existir perceptiva-
mente). Ou seja, para haver qualquer entendimento é necessário que haja
estruturas internas prévias e que dêem forma a esse entendimento. É esse,
em parte, o papel dos arquétipos de Platão e das ideias puras e da mente
activa de Aristóteles. São, pois, menos arcaicos do que aparentam e talvez
sejam os pensadores empiristas modernos a dever explicar como é que pode
haver conhecimento sem estruturas prévias.
Aristóteles teorizou sobre mais assuntos da alma. Por exemplo, sobre a
memória, dizia que os materiais mais organizados eram mais fáceis de recor-
dar (o que foi redescoberto por volta de 1900 e é estudado pelos actuais alu-
nos de Psicologia); ampliou as leis da associação, já descritas por Platão, e
referiu a semelhança, a contiguidade e o contraste (o frio lembra o quente)
como relações que permitiam a consolidação na memória. Finalmente, foi
autor da primeira lógica, instruções para a maneira de pensar correcta-
mente.
Num parágrafo só: Aristóteles é fascinante, um dos pensadores mais fulgu-
rantes de toda a história da humanidade, mas precisamente por ter lançado as
bases de quase tudo o que se pensa ainda hoje, foi necessariamente breve.
Contrariamente a Platão, que nos legou escritos bem acabados, Aristóteles
parece ter-nos legado principalmente apontamentos de aulas. São, pois, textos
telegráficos que é preciso interpretar com cuidado, relacionar com outras afir-
mações feitas noutros apontamentos e que, por vezes, parecem contraditórias.
Quem o lê tem uma vontade irreprimível de tentar completar as ligações que
não foram feitas. Assim se explica uma parte da retumbância que teve: como
já disse, serviu de base a vários filósofos posteriores.
Finalmente, quero formalmente comentar um erro que ouvi e li, na pena
de historiadores da ciência, demasiadas vezes. Tem-se afirmado que Aristóte-
les era um pensador empirista, moderno, mas não é verdade. Se é certo que
era muito mais empírico do que Platão e que tentava descrever e compreen-
der o que via (contrariamente a Platão, que achava que o que se via era sem-
pre enganador) Aristóteles preludia mais o pensamento de um Kant do que
de um Locke: vemos, mas o que pensamos sobre o que vemos não pode ser
inteiramente proveniente dos sentidos; tem de haver alguma coisa, antes
disso, que nos permita poder pensar sobre o que vemos.

SEQUÊNCIA DAS IDEIAS NOS PENSADORES GREGOS


Como vimos no primeiro capítulo, o homem primitivo vive num estado de
sincretismo relativo com o mundo: ele, homem, tem intenções, mas essas

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intenções são materiais ainda que possam ser invisíveis. O mundo é, assim,
animado, é pensado como resultado de agentes invisíveis.
São os gregos que, pela primeira vez, conseguem isolar sujeito animado e
natureza inanimada. Com Tales começa a aventura do pensamento não
antropotélico sobre as coisas («antropotélico» = atribuição de intenções
humanas às coisas que não são humanas). Essa separação entre mundo objec-
tivo e subjectivo não é muito clara mas é real: os ímanes teriam alma por-
que, ao contrário do resto da matéria, parecem animados; o resto da matéria
deve ser pensada em termos não de intenções mas de relações descritivas.
Essas relações são, geralmente, ontológicas –de que é que o mundo é feito–
mas é uma ontologia que compreende que o mundo não tem intenções.
A centração na matéria, nas coisas do mundo físico acaba por revelar aos
gregos que os sentidos não são de total confiança. Há mudanças que são ilu-
sões, e a verdade física, escondida, é fixa e imutável. Quando se compreende
que não é assim, que as coisas se alteram de facto, chega a acreditar-se que a
verdade não existe e que «cada homem é a medida de todas as coisas», isto é,
que não há nem valores nem verdade além da subjectividade. Esta verifica-
ção permite o aparecimento dos sofistas, que dominam o pensamento sobre
as coisas a ponto de estarem prontos a defender seja o que for. É contra este
relativismo que Sócrates se eleva: há uma verdade se se procurar bem no
sujeito. Onde se encontra essa verdade senão no sujeito, como nos sofistas?
Platão responde resolutamente à questão: no plano das ideias puras, a que
todos temos acesso deformado e que são uma reminiscência do estado incor-
póreo da alma. Sim, diz Platão, os sentidos enganam, o homem, na sua pro-
cura de prazer parece ser a medida de todas as coisas, mas parece assim por-
que estamos iludidos: há uma verdade que apenas entrevemos mas a que
conseguimos chegar pela disciplina mental e pelo controlo da alma pela
razão. Aristóteles elabora estas afirmações: há almas de vários tipos e a ver-
dade, as ideias puras (a que ele chama «universais» ou formas puras) atinge-se
pela razão, enquanto que os sentidos lidam com as relações com o ambiente.
O ponto de discórdia relativamente a Platão é principalmente que as ideias
puras, formas ou universais, presentes a priori na mente activa, possibilitam
a própria experiência, que não se deve opor à razão. A possibilidade de expe-
riência é teorizada por Aristóteles, formando assim a primeira teoria psicoló-
gica autónoma. Assim, Platão afirmou a alma racional e o conflito interno
entre diferentes «partes» da alma na procura de uma vida eticamente satisfa-
tória. Aristóteles elabora mais detalhadamente o conceito de alma em ter-
mos da análise das várias funções de cada uma das partes. Ao fazê-lo inicia

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uma arquitectura da mente que pode ser representada quase em fluxograma.

É maravilhosa a progressão da indiferenciação primitiva entre sujeito e


objecto à identificação do objecto como diferente do sujeito e, por fim, à
verificação de que a mente pode, ela própria, ser objecto de estudo e de que
é o sujeito que dá significado, segundo regras universais, à experiência. Os
gregos fizeram, em três séculos, a progressão do primitivismo mental para o
maior refinamento mental do Ocidente.
Faltou apenas um passo: a compreensão de que as regras do entendi-
mento, a verdade escondida, não existe fora do sujeito num mundo ideal
mas na própria actividade mental do sujeito que é igual em todas as pessoas
e, por isso, não é relativa como o pretendiam os sofistas. Esse passo seria
dado dois mil anos mais tarde por Hume, embora numa psicologia simplifi-
cada, e por Kant com a noção de Eu transcendental e as categorias.

O legado de Platão e Aristóteles


Em menor grau Sócrates, com toda a evidência Platão e Aristóteles trouxe-
ram a ideia de que a mente se relaciona com a as coisas de maneira activa e,
principalmente, de que a razão, o raciocínio, é uma entidade que pode ser
analisada. Contrariamente às posições realistas ou cépticas dos pré-socráticos
os pensadores socráticos compreenderam que a mente tem regras que per-
mitem a compreensão das coisas e que as coisas que conhecemos resultam
da actividade dessas regras. Quando se compreende isto, descobre-se a mente
como objecto de estudo. Sócrates abriu caminho ao criticar a lógica interna

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dos valores; Platão afirmou a imaterialidade das ideias e a total autonomia
do espírito, da mente; e Aristóteles corrigiu Platão dizendo que as ideias são
imateriais mas que precisam da interacção entre a mente e a percepção e
estabeleceu a Psicologia como disciplina filosófica.
Com os socráticos deixamos, assim, para trás as posições primitivas da
concepção da mente. A primeira é o «dualismo concreto» dos arcaicos que
equaciona mente, intenção e acção voluntária como a mesma coisa. A
segunda posição primitiva que os pensadores gregos dos Sécs. V e IV ultra-
passaram é o concretismo, que nega a existência de uma mente invisível
para se concentrar só nas coisas que se vêem, sem compreender que a nossa
representação das coisas não é igual a essas coisas. Com os socráticos apa-
rece, pois, a mente.

INFLUÊNCIA DA «ESCOLA DE ATENAS»

Pelo menos nos 600 anos seguintes a Platão e Aristóteles todo o conheci-
mento filosófico (e, por conseguinte, sobre a alma), foi dominado por eles.
Houve muitos mais autores, mas todos eles se alinharam por uma das duas
posições. Todos os autores subsequentes se lhes referiram e todo o seu traba-
lho mental foi ou a ampliação ou, ainda mais simplesmente, a interpretação
dos trabalhos de Platão e Aristóteles.
No processo houve inúmeras modificações da mensagem dos autores inici-
ais, mas Platão foi sempre a referência para os idealistas que identificam a
existência de um mundo de formas puras e Aristóteles foi-a para as tarefas
mais analíticas e classificatórias. Deste modo, Platão e Aristóteles têm, na
nossa cultura, um papel mais ou menos equivalente ao da mensagem de
Jesus: são influência poderosas, fortíssimas, omnipresentes, no desenvolvi-
mento mental e moral da Europa. Talvez este facto se explique por terem
Platão e Aristóteles inventado o pensamento sobre o ser.
Foi apenas muito depois, e lentamente, que, entre os Sécs. xvıı a xıx, os
pensadores se emanciparam completamente dos filósofos de Atenas.
As duas formulações da mente, a de Platão e a de Aristóteles, são interes-
santes por captarem, ambas, os vários aspectos que encontrámos na «alma
primitiva»: a vida, a agência, e a capacidade de representação. Assim, a vida
são os apetites de Platão e a alma vegetativa de Aristóteles; as intenções são
tanto a vontade/cólera (thymus) de Platão quanto a alma perceptiva e locomo-
tra de Aristóteles; e as funções de memória, de imagens mentais, correspon-

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dem às faculdades que assistem a razão. A razão, o culminar, segundo os gre-
gos, da alma humana, não poderia ter sido descrita sem a existência de pen-
sadores profissionais. Veremos que essa função, o pensamento racional, por
ser o mais importante para descobrir a verdade, será a parte a que os filóso-
fos, com alguma excepções importantes, deram mais atenção. Compreende-
se então que o conceito ocidental de mente se desenvolveu directamente do
pré-conceito, espontâneo na nossa espécie, de alma. A alma primitiva é cons-
ciência, vontade, desejo, intenção, movimento e vida, tudo misturado. Os
gregos fizeram uma sistematização desses vários aspectos. A sistematização é
particularmente complexa em Aristóteles, que descreve três tipos de alma. É
psicologicamente mais dramática em Platão, em que há conflito entre três
«partes» da alma. Em ambos os casos há uma abstracção do mental a partir
do conceito espontâneo de alma. É interessante verificar, parece-me, que as
psicologias actuais mais influentes tratam apenas uma pequena parte do
campo definido pela alma primitiva: as funções mais epistémicas, mais pró-
ximas da razão (o próprio termo «cognição», sinónimo quase de Psicologia,
actualmente, chama a atenção para essa restrição). A psicologia grega é mais
completa: aborda todos os aspectos contidos na noção original de alma e fá-
los interagir. Talvez seja essa uma das mensagens mais importantes dos filó-
sofos gregos.
A outra mensagem importante é a descoberta da mente como objecto de
estudo: em vez de falarem vagamente da alma (misturando consciência de
existir, emoções e intenções, e representação e cognição) os gregos delimita-
ram funções diferentes e começaram a descrever as suas interacções. Assim
deitaram as fundações de todo o pensamento posterior sobre a mente.
—·—
Sócrates, Platão e Aristóteles são posteriores ao auge de Atenas, mas é, em
parte por causa da revolução espiritual que ocorreu no século de Péricles – o
Séc V a.C. e que possibilitou a filosofia socrática – que se lhe chama a idade
do ouro. O brilho da Grécia dos Sécs. v e ıv constitui, talvez, o zénite não só
da Grécia mas de toda a cultura europeia; o «milagre grego» é real, é impres-
sionante, e manifestou-se na filosofia, na política, na literatura, na escultura
e na arquitectura. Se o leitor quiser compreender ainda melhor porquê, leia
algumas tragédias e observe os bronzes desta época. É uma aventura fasci-
nante, mas não podemos agora ocupar-nos dela. Iremos para outra luz,
menos clara, mas não menos ardente: para os claustros sombrios e silencio-
sos da Idade Média, onde a luz era só uma e vinha de Deus.

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