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AS PASSARELAS DE WALTER BENJAMIN

POR RODRIGO ARAÚJO

Resumo:

Este artigo constitui-se como um estudo preliminar sobre a Moda na obra do filósofo alemão Walter
Benjamin [1892-1940], especificamente em seu projeto Passagens. O presente trabalho está dividido em
cinco seções. Na primeira justificam-se as motivações para se tratar o tema da moda em um trabalho de
pretensões filosóficas; na segunda notamos como Benjamin se insere neste debate sobre a moda; a
terceira e quarta partes são sobre o seu olhar sobre Paris e Baudelaire como dois de seus grandes
fascínios que o orientaram na elaboração teórica sobre este tema. Por fim, na quinta e última parte,
observa-se a sua visão sobre a moda a partir do seu conceito de fantasmagoria, correlato ao de fetiche, e
a sua implicação no âmbito da cultura.
Palavras-chave: Cultura, Moda, Paris, Baudelaire, Fantasmagoria e Fetiche.

1. Moda em filosofia?

Antes de tudo é preciso anotar algumas palavras sobre a utilização de um tema como a moda em filosofia.
Acidental, fluida, transitória, fugaz, perecível, essas seriam apenas algumas das ressalvas que um autor
clássico levantaria de imediato em relação ao fato de se dar abrigo ao tema da moda em um estudo de
pretensões filosóficas. Adjetivações desse tipo colocam o filósofo distante de temas como o da moda pelo
menos desde que Platão redigiu a República por volta do século IV a.C. Para o filósofo grego os grandes
temas que pertenceriam ao terreno da filosofia seriam aqueles de caráter eterno, imutável, imperecível,
tais como a ética, a linguagem, a política e a cosmologia, todos tratados sob a égide da metafísica.
Curiosamente, numa das raras vezes que Platão se referiu ao uso das roupas foi para acentuar o seu
caráter aparente e superficial, para chamar a atenção ao seu apelo a uma beleza de tipo fraudulento, para
lá de distante da “beleza em si”.
Ao estabelecer a área de atuação do filósofo, Platão gerou um posicionamento de repulsa em relação aos
temas, digamos, prosaicos da cultura, os temas “menores”, os temas fadados à mudança, à
acidentalidade, à transitoriedade e dados a abordagens em geral muito mais particulares do que
universais, muito mais aparentes do que ideais. Na modernidade observamos uma forte reação ao
posicionamento platônico que explicita a separação do que é e do que não é objeto
de tratamento filosófico. Um autor como Montaigne, por exemplo, que hoje goza de grande reputação na
história da filosofia moderna, amargou por muito tempo, e em certos círculos ainda amarga, a alcunha de
não ter sido filósofo justamente por escrever sobre temas “acidentais” ― e isso ainda na Renascença!
Para Foucault foi necessário esperar que um filósofo da envergadura de Kant escrevesse um pequeno
texto intitulado O que é o Iluminismo para que uma tradição inteira sofresse algum tipo de abalo e os temas
ditos perecíveis tomassem fôlego na nova geração de filósofos que despontava na modernidade.
Segundo Foucault, a partir do texto de Kant, evidenciaram-se duas grandes tendências na filosofia
moderna. De um lado aquilo que ele chamou de uma analítica da verdade e de outro o que ele conceituou
como uma ontologia do presente, linhagem a que diz se filiar e que admite pensar a filosofia a partir das
tais “acidentalidades” da cultura.
Na tradição marxista, por exemplo, há uma tendência crítica em relação ao platonismo reinante na
tradição clássica e vários temas antes abordados sob o viés metafísico passam a ganhar um tratamento
histórico, como é o caso da ética, da linguagem, da arte e, sobretudo, da política e da economia. No
entanto, a moda, quando é considerada tematicamente por esses autores, ocupa o lugar onde se
manifesta a reificação, a alienação, e é abordada por um viés que tende a colocá-la como um fenômeno
que pasteuriza e hegemoniza cada vez mais a já padronizada cultura de massa.
Contemporâneos de Walter Benjamin do Instituto Social de Pesquisa, conhecido como a Escola de
Frankfurt – um anexo da Universidade de Frankfurt -, também notabilizados pela filiação marxista que
lhes rendeu o rótulo de neo-marxistas, Adorno, Horkheimer e Marcuse não se furtaram de trazer a moda
aos seus debates filosóficos. O caso de Adorno, em particular, é exemplar. Diversas vezes a moda surge
em seus escritos, mas a abordagem tende a reproduzir a desconfiança de Simmel e de outros autores
munidos de leituras marxistas cuja tendência em colocar a moda como sintoma de reificação se evidencia
em seus textos.

1. Benjamin: o filósofo da cultura

Walter Benjamin é um autor que historicamente vem sendo colocado ao lado dos membros da Escola de
Frankfurt, ainda que suas orientações e interesses teóricos se desvirtuem e até mesmo se choquem, em
grande parte, com os programas apresentados pelos diretores daquele núcleo, como Horkheimer e
Adorno. Benjamin foi uma espécie de “agregado” do Instituto Social de Pesquisa que recebia pela
produção por cada texto enviado, além de ter trabalhado como tradutor, resenhista e locutor de rádio. Em
1925, ele enfrentou a recusa de Horkheimer, então membro de sua banca avaliadora, quando apresentou
sua tese de livre-docência (A origem do drama barroco alemão) para ingressar na Universidade de Frankfurt.
Muitos de seus textos foram recusados sob a alegação de irem de encontro aos “interesses do Instituto”,
o que fez com que Benjamin os reformulasse em muitas circunstâncias exclusivamente por razões
financeiras, daí entendermos a razão de podermos encontrar mais de uma versão de alguns de seus
importantes textos, como o famoso A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica.
Mas Benjamin foi também um intelectual protegido por Adorno, que viu em seu trabalho a promessa de
um messianismo laico de teor marxista, e em tempos de guerra conseguiu dar vazão aos seus escritos
sobre os mais variados temas, quase sempre enviesados pela crítica ao capitalismo, estando dentre eles
alguns fragmentos sobre a moda. Como colaborador da Escola de Frankfurt, resta saber de que maneira
Benjamin se posiciona diante do tema da moda, entendida aqui exclusivamente sob o ponto de vista da
vestimenta.

Se para Kant a condição da sensibilidade é imutável, a priori, independente da experiência, Benjamin a


reconhece somente como resultado das relações históricas, cujos efeitos podem ser notados na própria
cultura, o que alinha seu pensamento estético tanto a Nietzsche como aos autores da fenomenologia. Tal
entendimento leva Benjamin a pensar a filosofia como uma atividade que se debruça sobre o seu próprio
tempo e é dentro dessa perspectiva que podemos entender a filosofia de Benjamin como uma filosofia da
cultura. Entre os seus escritos encontramos agudas reflexões sobre a linguagem, sobre a ética e sobre a
política, mas é já sem assombro, quando familiarizados com a sua leitura, que podemos encontrar
páginas e mais páginas sobre o cotidiano, o consumo, as vitrines ou mesmo sobre as tatuagens. Mas
foram particularmente dois fascínios que marcaram a maneira como Benjamin “leu” a modernidade: Paris
e Baudelaire.

1. Paris: o cenário
Atraído pela poesia e pela prosa baudelairiana, Benjamin viu, incrustada nesta obra, a vida parisiense, os
seus rumos e as suas contradições, em pleno auge do capitalismo do século XIX. A Paris que se vê na
lírica do poeta é a Paris oitocentista dos anos 50 e 60; a época é a do II Império; o seu comandante é
Napoleão III; o prefeito é o Barão de Haussman; os ventos são do progresso de uma modernidade
industrial; a ordem é o embelezamento estratégico da cidade.

Uma das principais intenções de Napoleão III, quando assumiu o comando francês, foi evitar os
constantes levantes das barricadas e as ameaças ao seu poderio, como as enfrentadas nas últimas
décadas. Impulsionado pelas ondas do progresso e pelo surgimento de novos materiais de construção,
como o ferro e o vidro, usados na arquitetura, pouco a pouco fez com que Paris deixasse de ser uma
sombria cidade medieval para dar lugar a cidade luz, símbolo de uma era Iluminista. Ao invés dos
lampiões, a eletricidade passou acender a cidade “de um só golpe”; em lugar das vielas estreitas,
escuras, sujas, abrigo dos párias e revolucionários, surgem as longas avenidas, ponteadas pelos grandes
monumentos. Uma grande assepsia, uma grande depuração do espaço público é realizada em Paris a
favor de um controle político e de um crescimento econômico, além de certo embelezamento. O sistema
bancário é desenvolvido com grande êxito e os créditos são oferecidos em grandes quantidades. Várias
cidades vizinhas são anexadas alargando os bairros periféricos, abrigos dos operários, sintoma maior das
desigualdades sociais parisienses. A cidade se torna cada vez mais veloz, não só os veículos circulam
com mais fluidez, como as mercadorias e a informação também.

É verdade que Haussman opera uma “estética da desaparição” e muitas das construções da velha Paris
são postas abaixo sem grandes critérios históricos, mas é verdade também que ele realiza uma série de
construções que faz daquele lugar uma espécie de paraíso do olhar. Longas avenidas cortando a cidade
desenvolveram uma grande perspectiva; as construções dos bulevares com suas calçadas espaçosas,
dotados de uma iluminação padronizada aliada a uma preocupação paisagística, abriram condições
adequadas para a flânerie; a indústria têxtil se desenvolve mais do que nunca e os cafés com suas mesas
dispostas pelas calçadas passam a acomodar os passantes cansados, mas também os curiosos pela
multidão, tal como o passante de Alan Poe emO homem da multidão. Isso sem contar o surgimento das
passagens (que não por acaso dá nome ao principal trabalho de Benjamin), as galerias que serviram
como templos do consumo e da moda, abrigo das grandes editoras, livrarias e mercadorias de luxo,
salvaguardadas das intempéries do clima e do tempo nas vitrines de luxo cuidadosamente ornadas. O
magnetismo que ainda hoje Paris exerce sobre os seus habitantes e sobre os turistas que por lá abundam
é exatamente o de ser dona de um cenário assim, propenso à urbanidade.
As ruas, assim como as galerias, onde “em 1839, era elegante levar consigo uma tartaruga ao passear”
(Benjamin, 1989, 193), se tornam então o palco de espetáculos para o citadino, lugar de exposição,
ambiente propício para pavonear-se, onde se olha o outro e se mostra, mas também onde se vê nos
reflexos das vitrines. Neste cenário, foi natural que a moda ganhasse novos contornos e invadisse os
meios publicitários, renovando a expressão pública nos modos de vestir-se e expressar-se. Emancipada
por Charles Frederick Worth, a costura alcançou o estatuto de arte, deixando de ser simples ofício, e ao
abrir a sua maison fez dela não um lugar destinado a satisfazer os desejos do cliente, mas antes um lugar
que incluía rigorosamente toda uma subjetividade na confecção das roupas. Surgia então aquilo que se
convencionou chamar de alta-costura e Paris afirmou-se como a sua capital. A “capital do capital” era
também a capital da moda e do luxo e isso Baudelaire soube ler como poucos.

1. Baudelaire: a personagem

Ainda nos anos vinte, Benjamin decidiu preparar um material crítico sobre a obra de Charles Baudelaire.
O fascínio do autor por este poeta lhe rendeu alguns ensaios e notas esparsas no conjunto de sua obra,
particularmente no seu projeto inacabado publicado no Brasil sob o título de Passagens, onde podemos ler
o seguinte trecho sobre o gosto da modernidade no poeta:
[…] vai tão longe que Baudelaire, como Balzac, o estende aos mais fúteis detalhes da moda e do
vestuário. Ambos os estudam em si mesmos e elaboram com eles questões morais e filosóficas, porque
eles representam a realidade imediata no seu aspecto mais agudo, mais agressivo, mais irritante, talvez,
mas também mais geralmente vivido (Benjamin, 2006, 116).
Há uma concepção estética em Baudelaire, recorrente no século XIX, de que existe uma dualidade nas
coisas, inclusive no que tange a natureza da beleza. Para ele o belo contém sempre uma dupla
composição, e uma verdadeira teoria estética, uma teoria racional e histórica, deveria se opor
radicalmente à teoria do belo único e absoluto. O belo, admite Baudelaire, é feito de um elemento eterno
e imutável, mas também de um elemento relativo, circunstancial e efêmero que poderá ser a época, a
paixão, a moral ou mesmo a moda. É desse entendimento de que o belo pode ser colhido no provisório,
no acidental, no cotidiano, que Baudelaire, em seu ensaio O pintor da vida moderna, destaca a obra de
Constantin Guys como possuidora, dentre outras qualidades, dessa “beleza de circunstância”. Ao
observar as gravuras deste pintor, ele indica aquilo que seria o seu objetivo fundamental: “extrair da moda
o que ela pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório”, em última instância, isso
equivaleria a dizer o mesmo que, em termos baudelairianos, apreender a modernidade, que não é outra
coisa senão “o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o
imutável” (Baudelaire, 1993, 227).
Essa referência a tudo que é passageiro na obra de Constantin Guys remete-nos a uma série de tipos
existentes na poética de Baudelaire, tal como a passante, o trapeiro, o apache e o dândi, este blasé rico,
bem vestido e entediado que “não tem outra ocupação senão a de correr atrás da felicidade”(Baudelaire,
1993, 239). O efêmero que ele viu nas artes ele viu na moda e, ao analisar a figura do dândi, tantas vezes
reproduzido por Constantin Guys, ele acreditou poder extrair dali considerações sobre a moral e a
modernidade. Se há alguma especialidade no seu tratamento ao tema da moda, é porque ele lhe confere
uma função simbólica que consiste em impulsionar o moderno e produzir objetos capazes de enfeitiçar as
massas, e é nesse aspecto que Benjamin se aproxima dele.

1. As ferramentas: Moda, Mercadoria e Fantasmagoria

Pode-se dizer que pelo menos os últimos dez anos vividos por Benjamin transcorreram sob o seu desejo
de dar forma ao projeto Passagens. Iniciado como um fichário organizado de uma maneira muito particular,
aos poucos foi se tornando uma obra em progresso que pretendia ser a história social do século XIX e
que, ainda mais, poderia lhe render algum dinheiro. Problemas particulares, aliados à onda do nazismo
que varria a Europa de sua época, e mesmo a grandiosidade teórica que o projeto almejava fizeram com
que aquele trabalho existisse apenas como uma obra inacabada em que não se pode dizer, com
segurança, as suas reais intenções em determinados momentos. Para se ter uma ideia da magnitude do
trabalho realizado pelo autor, a valise que carregava consigo em sua longa e dolorosa fuga do nazismo
pela cidade de Port Bou guardava pelo menos um calhamaço de mais de mil fragmentadas páginas,
segundo a edição de Rolf Tiedemann.
Entre anotações próprias, citações e notas sobre citações dos mais variados temas e autores da cultura
do século XIX, encontramos uma sessão dedicada ao tema da moda. Tal como Baudelaire, Benjamin
encara a moda de uma forma simbólica, mas no caso do filósofo já não se pode dizer que a moda se
constitua apenas como um detalhe cultural extraído pela paleta de um pintor menor como Constantin
Guys. Motivado pelas suas inquietações teóricas, políticas e sociais, Benjamin enxergou na moda uma
engrenagem que impulsiona o mercado e que produz desejo nos citadinos, tornando seus produtos
objetos de fetiche e, desse modo, entendeu que a moda pode favorecer uma reflexão acurada sobre o
progresso, a mercadoria, as relações humanas e a ética, ou melhor, ele concebeu a moda como
um médium de reflexão, um meio, uma passagem para se compreender a cultura, tal como interpretou a
arquitetura.
Walter Benjamin reconhece, nos monumentos da burguesia, ruínas antes e independentemente de seu
desmoronamento, pela maldição da modernidade, maldição que consiste na incapacidade paradoxal de
criar o novo. Sua necessidade compulsiva de produzir novidades – o que caracteriza o modo de produção
capitalista – é bem o contrário da verdadeira inovação, como o atestam as modas, sempre recorrentes,
pois o novo não passa de uma série de variantes de aquisições antigas. (Matos, 2006, 1124).
A formulação de Benjamin é a de que “é o novo sempre velho e o velho sempre novo” (Benjamin, 2006,
408) e a moda é a encarnação radical da repetição na modernidade, a angústia mítica do inferno do
mesmo, do eterno retorno. Desse modo, faz absoluto sentido a afirmação de Svendsen de que na “moda
existe uma interação entre lembrança e esquecimento, em que ela continua lembrando seu passado ao
reciclá-lo, mas ao mesmo tempo esquece que ele é exatamente aquilo” (Svendsen, 2010, 33).

É importante que se perceba que a moda envolve toda uma indústria de objetos que é impulsionada por
um caráter espiritual ou subjetivo cuja magia que envolve a sua produção vai muito além da utilidade que
eles possam vir a ter. Tais objetos se encontram entre a fronteira do orgânico e do inorgânico, dotados
do sex appealque exala da mercadoria. Para entender o fetiche causado pela mercadoria, Benjamin se
aproxima da semântica de Marx e Freud. Da análise de Marx ele depreende o sentido místico assumido
pela mercadoria, sua característica imaterial e abstrata, aquilo que a afasta de sua natureza (da natureza
enquanto natureza e da própria natureza humana, da essência humana, rompendo-se a ligação homem,
mundo, natureza, homem de onde emerge o estranhamento) a partir das relações de trabalho no
capitalismo; de Freud ele se apropria da explicação arquetípica do desejo edipiano, onde o fetiche é um
substituto do falo que faltou à mãe e que se afirma como presença na ausência como configuração de um
desejo que nunca se consuma.
O conceito de fantasmagoria se torna então fulcral para a operacionalidade de sua interpretação dos
fenômenos culturais do século XIX. A fantasmagoria, que em grego significa phantasma, diz respeito à
atividade psíquica não racional, em afinidade com os conteúdos inconscientes e é correlata ao conceito
freudiano de fetiche. Ela é a expressão imagética que cada época faz de si mesma e da história por meio
de seus bens culturais tais como a moda e a arquitetura. Aquilo que é sentido, mas não é capaz de ser
distinto, a moda expressa como um sonho, como realização de um desejo, mas ao mesmo tempo a moda
nos envia a percepção que é negada. A moda expressa os sonhos irrealizáveis, tais como fantasmas que
nos assombram à porta dos templos de consumo, tal como sente o perverso diante de seu objeto de
desejo que nunca pode se realizar. Daí a macabra formulação de Benjamin de que “a moda nunca foi
outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo
sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas” (Benjamin, 2006, 102). O vai e vem
das tendências, ditadas a cada estação pela indústria da moda, traria aquilo que Benjamin classificou
como uma “sátira amarga do amor”, pois, para o filósofo, cada moda contém todas as perversidades
sexuais da maneira mais impiedosa possível, cada uma comporta em si resistências secretas contra o
amor (Benjamin, 2006, 103).
A moda enquanto fenômeno social contemporâneo pode nos conduzir a uma compreensão do presente,
na medida em que revela, sensivelmente, o que há de mais interno na cultura, o que está aparentemente
ausente. Segundo a perspectiva de Benjamin, ela realiza uma atualização do passado que tem por
finalidade levar o coletivo a certo comportamento, negando o presente sublimado, para usar ainda a
terminologia freudiana.

O norueguês Lars Svendsen escreveu um instigante livro sobre a moda em que faz uma provocação
sobre pensá-la como uma filosofia. Não estou certo de que em Benjamin possamos encontrar algo
próximo a isto. Inclusive, as citações que recolhe de outros escritores para compor o mosaico sobre a
moda para o seu projetoPassagens são de autores, em grande parte, de orientação marxista que, não raro,
compartilham significativa desconfiança sobre a moda, o que é comum em seu tempo. Dentre outros, é de
um autor como Brecht que ele coleta uma citação que lhe “permite reconhecer qual o significado da moda
como disfarce de determinados desejos da classe dominante” (Benjamin, 2006, 109). Ou ainda, antecipa
a teoria do gotejamento por meio de uma citação de Simmel – aliás, por demais presente ao longo de sua
obra – quando afirma “que as modas são sempre modas de classe, que as modas da classe superior
distinguem-se daquelas da classe inferior e são abandonadas no momento em que esta última começa a
se apropriar delas” (Benjamin, 2006, 115), algo absolutamente discutível nos dias de hoje. Nesse caso,
penso que não seja exagero afirmar que podemos colocar Benjamin ao lado de seus contemporâneos
que veem a moda como manifestação reificada da cultura. Mas no caso de Benjamin pode-se sempre
perguntar se não há temas de salvação na moda, e dessa questão o filósofo pareceu não se esquivar ao
pensar a moda como uma ilusão, como uma fábrica de ficção perpetrada pelo capitalismo, mas uma
ficção que pode nos conduzir a verdades, mesmo que não sejam as mais agradáveis.
BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas: filosofia da imaginação criadora. Tradução de Edison Darci


Heldt. Petrópolis, R.J., Vozes, 1993.

BENJAMIN, Passagens. BOLLE, Willi (Org.). MATOS, Olgária Chain Féres (Col.). Tradução de Irene
Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2006.

_____. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas, v. 3.


Tradução de José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MATOS, Olgária Chain Féres. Aufklärung na metrópole: Paris e a via


láctea in BENJAMIN, Passagens. Op cit.
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP/Annablume,
1999.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010.

Rodrigo Araújo é Mestre em Filosofia pela UFBA e Professor de Filosofia do IFBA.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010,

especialmente o capítulo introdutório.

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