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O Aleph

 
«God, 1 could be bounded in a nutshell and count myself a King of infinite space.»
Hamlet, II, 2.
 
«But they will teach us that Eternity is the Standing still of the Present Time, a Nuncstans (as the Schools call it); which
neither they, nor any else understand, no more than they would a Hic-stans for an Infinite greatnesse of Place.»
Leviatã, IV, 46
 
NA ARDENTE MANHÃ DE FEVEREIRO EM QUE BEATRIZ VITERBO MORREU , depois de uma imperiosa agonia que não
cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Praça da
Constituição tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o facto doeu-me, pois compreendi
que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série
infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, algumas vezes, a
minha vã devoção a exasperara; morta, podia consagrarme à sua memória, sem esperança, mas
também sem humilhação. Lembrei-me de que a 30 de Abril era o seu aniversário; visitar, nesse dia, a
casa da Rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo direito, era um acto cortês,
irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo
estudaria as circunstâncias dos seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, a cores; Beatriz, com
máscara, no Carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia do seu casamento com
Roberto Alessandri; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em
Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês oferecido por Villegas
Haedo; Beatriz, de frente e a três quartos, sorrindo, com a mão no queixo... Não seria obrigado, como
outras vezes, a justificar a minha presença com módicas ofertas de livros — livros cujas páginas,
finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que se mantinham intactos.
Beatriz Viterbo morreu em 1929; desde então não deixei passar um 30 de Abril sem voltar a sua
casa. Eu costumava chegar às sete e um quarto e ficar uns vinte e cinco minutos; cada ano
aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial favoreceu-
me: tiveram que me convidar para jantar. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente;
em 1934, apareci, já passando das oito, com um alfajor santafecino [1]; com toda a naturalidade,
fiquei para jantar. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais
confidências de Carlos Argentino Daneri.
Beatriz era alta, frágil, ligeiramente curvada; havia no seu andar (se for tolerável o oximoro) uma
graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, grande, encanecido, de
traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca sem leitores dos arrabaldes do
Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas
para não sair de casa. A duas gerações de distância, o esse italiano e a copiosa gesticulação
italiana sobrevivem nele. A sua actividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamen-
te insignificante. É abundante em inúteis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz)
grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses sofreu a obsessão de Paul Fort, menos
pela suas baladas que pela ideia de uma glória irrepreensível. «É o príncipe dos poetas da
França», repetia com fatuidade. «É inútil tentares atacá-lo; nunca o atingirás, nem com a mais
venenosa das tuas setas.»
No dia 30 de Abril de 1941, permiti-me juntar ao alfajor uma garrafa de conhaque nacional. Carlos
Argentino provou-o, julgou-o interessante e pôs-se, depois de alguns copos, a fazer uma defesa
do homem moderno.
— Evoco-o — disse com uma animação um tanto inexplicável — no seu gabinete de estudo, como
se disséssemos na torre albarrã de uma cidade, provido de telefones, de telégrafo, de fonógrafos,
de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de
horários, de prontuários, de boletins...
Observou que, para um homem assim dotado, o acto de viajar era
inútil; o nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora,
convergiam sobre o moderno Maomé.
Tão ineptas me pareceram essas ideias, tão pomposa e tão extensa a sua exposição, que as relacionei
logo com a literatura; perguntei-lhe porque não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o
fizera: esses conceitos, e outros não menos novos, figuravam no Canto Augural, Canto Prologal ou
simplesmente Canto Prólogo de um poema em que trabalhava há muitos anos, sem propaganda,
sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e
solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema intitulava-
se A Terra; tratava-se de uma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca
digressão e a galharda apóstrofe.
Pedi que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha,
tirou um maço volumoso de folhas de bloco com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu
com sonora satisfação:
 
Vi, como o grego, as cidades dos homens,
Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;
Não corrijo os factos, não falseio os nomes,
Mas o voyage que narro, é... autour de ma chambre.
 
— Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante — opinou. — O primeiro verso granjeia o aplauso do
catedrático, do académico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, sector considerável da
opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do
flamante edifício, ao pai da poesia didáctica), não sem renovar um processo cujo antepassado está
na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro — barroquismo, decadentismo,
culto depurado e fanático da forma — consta de dois hemistíquios gémeos; o quarto, francamente
bilingue, assegura-me o apoio incondicional de todos os espíritos sensíveis aos desenfadados
convites da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo,
acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a
primeira à Odisseia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos
proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo uma vez mais que a arte moderna
exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!
Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram a sua aprovação e seu profuso comentário.
Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Na sua
redacção tinham colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes
atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na
invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse trabalho posterior
modificava a obra para ele, mas não para os outros. A dicção de Daneri era extravagante; a sua
lentidão métrica, salvo raras vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema [2].
Uma só vez na vida tive a ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do Polyolbion, essa
epopeia topográfica na qual Michael Drayton registou a fauna, a flora, a hidrografia, a orografia, a
história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável, mas
limitado, é menos entediante que a vasta empresa congénere de Carlos Argentino. Este propunha-
se versificar toda a redondez do planeta; em 1941 já tinha consumido alguns hectares do estado
de Queensland, mais de um quilómetro do curso do Obi, um gasómetro a norte de Vera-cruz, as
principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a quinta de Mariana Cambaceres de
Alvear na Rua Onze de Setembro, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe
do acreditado aquário de Brighton. Leu-me certas passagens laboriosas da zona australiana do seu
poema; esses longos e informes alexandrinos careciam da relativa agitação do prefácio. Copio uma
estrofe:
 
Sepan. A manderecha del poste rutinario
(Viniendo, claro está, desde el Nornoroeste)
Se aburre una osamenta — ¿Color? Blanquiceleste —
Que da al corral de ovejas catadura de osario.[3]
 
— Duas audácias — gritou, exultante — libertadas, ouço-te resmungar, para o sucesso! Admito,
admito. Uma, o epíteto «rutinario», que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio
inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as Geórgicas nem o nosso já laureado Don
Segundo se atreveram jamais a denunciar assim, ao vivo. Outra, o enérgico prosaísmo «se aburre
una osamenta», que o melindroso quererá excomungar com horror, mas que o crítico de gosto viril
apreciará mais que a própria vida. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo
hemistíquio trava animadíssima conversação com o leitor; antecipa-se à sua viva curiosidade, põe-
lhe uma pergunta na boca e satisfá-la... logo a seguir. E que me dizes desse achado,
«blanquiceleste»? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é elemento importantíssimo da
paisagem australiana. Sem essa evocação ficariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o
leitor ver-se-ia compelido a fechar o volume, com a alma profundamente ferida de incurável e
negra melancolia.
Por volta da meia-noite despedi-me.
Dois domingos depois, Daneri chamou-me pelo telefone, penso que pela primeira vez na vida.
Propôs que nos reuníssemos às quatro, «para tomar leite juntos, no salão-bar próximo que o
progressismo de Zunino e de Zungri — os proprietários da minha casa, estarás lembrado — inau-
gura na esquina; confeitaria que te importará conhecer». Aceitei, mais com resignação que com
entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o «salão-bar», inexoravelmente moderno, era apenas
um pouco menos atroz que as minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público
mencionava as quantias gastas sem regatear por Zunino e por Zungri. Carlos Argentino fingiu
assombrar-se com não sei que primores da instalação da luz (que já conhecia, sem dúvida) e
disse-me com certa severidade:
— Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local se compara aos mais sofisticados de
Flores.
Releu, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado
princípio de ostentação verbal; onde antes escrevera «azulado», agora abundava em «azulino»,
«azulenco» e até mesmo «azulillo». A palavra «lechoso» não era bastante feia para ele; na
impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia «lactario», «lacticinoso», «lactescente»,
«lechal»... Insultou os críticos com amargura; depois, mais benigno, comparou-os a essas pessoas
«que não dispõem de metais preciosos nem tão-pouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos
sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um
tesouro». Acto contínuo, censurou a prologomanía, «da qual já se fez mofa no donairoso prefácio
do Quixote, o Príncipe dos Engenhos». Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha
o prólogo vistoso, a ajuda firmada pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava
publicar os cantos iniciais do seu poema. Compreendi então o singular convite telefónico: o
homem ia pedir-me que prefaciasse o seu aranzel. O meu temor era infundado: Carlos Argentino
observou, com admiração rancorosa, que não julgava errar de epíteto ao qualificar de sólido o
prestígio logrado em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras que, se eu me
empenhasse, iria prefaciar com beleza o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu
tinha de me fazer porta-voz de dois méritos incontestáveis: a perfeição formal e o rigor científico,
«porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias, não tolera um só detalhe que
não confirme a severa verdade». Acrescentou que Beatriz sempre se tinha divertido com Álvaro.
Assenti, assenti profusamente. Esclareci, para maior verosimilhança, que não falaria com Álvaro
na segunda-feira, mas na quinta: na pequena ceia que costuma coroar todas as reuniões do Clube
de Escritores. (Não existem tais ceias, mas é irrefutável que as reuniões são às quintas-feiras,
facto que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dava à frase certa realidade.)
Disse, entre adivinhatório e sagaz, que, antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso
plano da obra. Despedimo-nos; ao passar pela Rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda a
imparcialidade o futuro que me restava: a) falar com Álvaro e dizer-lhe que o primo direito de
Beatriz (esse eufemismo explicativo permitir-meia mencioná-la) elaborara um poema que parecia
estender até o infinito as possibilidades da cacofonia e do caos; b) não falar com Álvaro. Previ,
com lucidez, que acabaria por optar por b.
A partir da primeira hora de sexta-feira começou a importunar-me pelo telefone. Indignava-me
que este instrumento, que noutros dias reproduzira a voz irrecuperável de Beatriz, pudesse
rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse enganado Carlos Argentino
Daneri. Felizmente, nada aconteceu — salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem
que me tinha imposto uma delicada missão e depois me esquecia.
O telefone perdeu os seus terrores, mas, em fins de Outubro, Carlos Argentino falou comigo.
Estava agitadíssimo; não identifiquei a sua voz, a princípio. Com tristeza e com raiva, murmurou
que aqueles já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampilar a sua desmedida confeitaria, iam
demolir a casa.
— A casa dos meus pais, a minha casa, a velha casa enraizada da Rua Garay! — repetiu, talvez
esquecendo o pesar na melodia.
Não me foi muito difícil compartilhar da aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um
símbolo detestável da passagem
do tempo; além disso, tratava-se de uma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis
esclarecer esse delicadíssimo aspecto; o meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e
Zungri persistissem naquele propósito absurdo, o Dr. Zunni, seu advogado, os processaria ipso
facto por perdas e danos e obrigá-los-ia ao pagamento de cem mil nacionales.
O nome de Zunni impressionou-me; o seu escritório, em Caseros y Tacuarí, é de uma seriedade
proverbial. Perguntei se ele já se tinha encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe
naquela mesma tarde. Vacilou e, com essa voz calma, impessoal, à qual costumamos recorrer para
confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema a casa lhe era indispensável, pois num
ângulo da cave havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contêm
todos os pontos.
- Está na cave debaixo da sala de jantar — explicou, com a voz aligeirada pela angústia. — É meu,
é meu; descobri-o na infância, antes da idade escolar. A escada da cave é inclinada, os meus tios
tinham-me proibido de descer, mas alguém me disse que havia um mundo na cave. Referia-se,
soube-o depois, a um baú, mas eu pensei que havia um mundo. Desci secretamente, tropecei na
escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
- O Aleph? — perguntei.
- Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os
ângulos. A ninguém revelei a minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que
lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me
despojarão, não, mil vezes não. De código em punho, o doutor Zunni provará que é inalienável o
meu Aleph.
Procurei raciocinar.
- Mas não é muito escura a cave?
- A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da Terra estão no Aleph,
ali estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.
- Irei vê-lo imediatamente.
Desliguei, antes que ele pudesse proibir-me. Basta o conhecimento de um facto para se perceber
no acto uma série de traços confirmativos, antes insuspeitados; espantou-me não ter
compreendido até esse momento que Carlos Argentino era um louco. De resto, todos esses Viter-
bo... Beatriz (eu mesmo costumo repeti-lo) era uma mulher, uma menina de uma clarividência
quase implacável, mas havia nela negligências, distracções, desdéns, verdadeiras crueldades, que
talvez exigissem uma explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna
felicidade; no fundo, sempre nos havíamos detestado.
Na Rua Garay, a criada disse-me que tivesse a bondade de esperar. O menino estava na cave,
revelando fotografias. Junto ao jarrão sem flores, no piano inútil, sorria (mais intemporal que
anacrónico) o grande retrato de Beatriz, em cores pesadas. Ninguém nos podia ver; num deses-
pero de ternura, aproximei-me do retrato e disse:
- Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou
Borges.
Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não podia pensar em mais nada
senão na perda do Aleph.
- Um copinho do falso conhaque — ordenou — e mergulharás na cave. Já sabes, é indispensável o
decúbito dorsal. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu encostas-
te no chão de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da tal escada. Saio, baixo o alçapão e
ficas sozinho. Se algum rato te meter medo, não tem importância! Em poucos minutos vês o
Aleph. O microcosmos dos alquimistas e cabalistas, o nosso concreto amigo proverbial, o multum
in parvo!
Já na sala de jantar, acrescentou:
- É claro que, se não o vires, a tua incapacidade não invalida o meu testemunho... Desce; muito
em breve poderás estabelecer um diálogo com todas as imagens de Beatriz.
Desci com rapidez, farto das suas palavras sem substância. A cave, pouco mais larga que a
escada, tinha muito de poço. Com uma olhadela, procurei o baú de que me falara Carlos
Argentino. Alguns caixotes com garrafas e alguns sacos de lona escureciam um canto. Carlos
pegou num saco, dobrou-o e ajeitou-o num lugar preciso.
— A almofada é humilde — explicou —, mas se a levanto um só centímetro, não verás nada e ficas
confundido e envergonhado. Refastela esse corpanzil no chão e conta dezanove degraus.
Cumpri as suas ridículas exigências; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; embora
houvesse uma fresta que depois distingui, a escuridão pareceu-me total. Subitamente, compreendi
o meu perigo: deixara-me enterrar por um louco, depois de tomar veneno. As bravatas de Carlos
evidenciavam o seu íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender o seu
delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um vago mal-estar, que tratei
de atribuir à rigidez, e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.
Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a
linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores
compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal
abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: para significar a divindade, um
persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alano de Insulis fala de uma
esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um
anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul.
(Não é em vão que rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação elas têm com o
Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas
esta informação ficaria contaminada de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central
é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi
milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos
ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi
simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cores, de brilho quase intolerável.
Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida
pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros,
mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho,
digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso
mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de
uma negra pirâmide, vi um quebrado labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos
perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi
num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Fray
Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais
e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta
cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes
existira uma árvore, vi numa quinta de Adrogué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de
Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava
maravilhar-me com o facto das letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer
da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de
uma rosa em Bengala, vi o meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre
entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia
do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha
enviando bilhetes-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de
alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as
formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra fez-me
tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado
monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação
do meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os
pontos, vi no Alpeh a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas
vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto
secreto e conjecturai cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível
universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima.
- Ficarás tonto por bisbilhotar assim onde não és chamado — disse uma voz enfadonha e alegre. —
Mesmo que queimes o juízo, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório
formidável, hem, Borges!
Os pés de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-
me e balbuciar:
- Formidável. Sim, formidável.
A indiferença da minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:
-  Viste tudo bem, a cores?
Nesse instante, concebi a minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo,
agradeci a Carlos Argentino Daneri a hospitalidade da sua cave e instei com ele para aproveitar a
demolição da casa e afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém — creia-me, a ninguém! —
perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti
que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.
Na rua, nas escadarias da Praça da Constituição, no metro, pareceram-me familiares todas as faces.
Tive medo de que não restasse uma só coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que jamais
me abandonasse a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insónia, agiu
outra vez sobre mim o esquecimento.
Post-sriptum do primeiro de Março de 1943. Seis meses após a demolição do prédio da Rua Garay,
a Editorial Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do descomunal poema e lançou no
mercado uma selecção de «trechos argentinos». Vale a pena repetir o ocorrido; Carlos Argentino
Daneri recebeu o Segundo Prémio Nacional de Literatura [4]. O primeiro foi dado ao Dr. Aita; o
terceiro, ao Dr. Mario Bonfanti; incrivelmente, a minha obra Los naipes del tahúr não conseguiu
um único voto. Mais uma vez, triunfaram a incompreensão e a inveja! Há já muito tempo que não
consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. A sua pena afortunada
(não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do Dr. Acevedo Díaz.
Quero acrescentar duas observações: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre o seu nome.
Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. A sua aplicação ao círculo
da minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e
pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra,
para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o
símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu
queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou leu-o, aplicado a outro ponto para onde
convergem todos os pontos, em algum dos inúmeros textos que lhe revelou o Aleph da sua casa?
Por incrível que pareça, acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, acredito que o
Aleph da Rua Garay era um falso Aleph.
Dou as minhas razões. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no
Brasil; em Julho de 1942, Pedro Henríquez Ureña descobriu numa biblioteca de Santos um
manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou
Alexandre Bicorne da Macedónia. No seu cristal reflectia-se o universo inteiro. Burton menciona
outros artifícios semelhantes — o sétuplo cálice de Kai Josrú, o espelho que Tárique Ibne Ziade
encontrou numa torre (As Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samósata pode examinar
na Lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satíricon de Capela atribui
a Júpiter, o espelho universal de Merlim «redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro» (The
Faerie Queene, III, 2, 19) — e acrescenta estas curiosas palavras: «Mas os anteriores (além do defeito
de não existirem) são meros instrumentos de óptica. Os fiéis que acorrem à mesquita de Amr, no Cairo,
sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio
central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram ouvir,
ao fim de pouco tempo, o seu atarefado rumor... A mesquita data do século vil; as colunas procedem de
outros templos de religiões pré-islâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: «Nas repúblicas fundadas por
nómadas, é indispensável o concurso de forasteiros para tudo o que seja alvenaria.»
Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Tê-lo-ei visto quando vi todas as coisas e esqueci-o? A
nossa mente é porosa para o esquecimento; eu próprio começo a falsear, sob a trágica erosão dos
anos, os traços de Beatriz.
 
Para Estela Canto.
 

[1]
Espécie de bolo de mel procedente de Santa Fé. (N. do T.)
[2]
Lembro-me, no entanto, destas linhas de uma sátira em que fustigou com rigor os maus poetas:
Este dá ao poema belicosa armadura
de erudição; estoutro lhe dá pompas e galas.
 Ambos batem em vão as ridículas asas...
Esqueceram, coitados, o factor FORMOSURA!
Só o medo de atrair um exército de inimigos implacáveis e poderosos o dissuadiu (segundo me disse) de publicar o
poema sem receio.
[3]
Saibam. À mão do poste rotineiro / (Vindo, claro está, do nor-noroeste) / Se aborrece um esqueleto — Cor? Branco-
celeste — / Que dá ao curral de ovelhas um aspecto de ossário. (N. do T.)
[4]
Recebi tua aflita congratulação», escreveu-me. «Suspiras de inveja, meu lamentável amigo, mas confessarás —
mesmo que isso te sufoque! — que desta vez pude coroar o meu barrete com a mais vermelha das plumas, o meu
turbante com o mais califa dos rubis.»
Borges e eu
AO OUTRO, A B ORGES , É QUE ACONTECEM AS COISAS . Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já
mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo
correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agra dam-me os relógios
de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson;
o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atribu tos de um
actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges
possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas
páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém,
nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me
definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo
tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas
as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-
de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do
que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das
mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e
terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento
ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

O fazedor
NUNCA SE TINHA DEMORADO NOS PRAZERES DA MEMÓRIA. As impressões
resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um
oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a
lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas
gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar
com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra
negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do
mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava
podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror,
mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a
escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a
do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou,
numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus
palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de
cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado
complicadas histórias que recebeu como recebia a realidade, sem
indagar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa
neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de
estrelas, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e
confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor
estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre.
«Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico,
nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram
sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou
(já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e
inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma
voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com
temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então
desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu
tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma
moeda sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo,
quem sabe, num sonho.
A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter
com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como
se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um
punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha
furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da
posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém
saiba que és um homem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava
os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força
mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à
beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e
batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor
daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio,
o torpe combate, o regresso com a lâmina ensanguentada.
Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência
de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe
enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e
ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por
declives que se afundavam na sombra. Porque lhe chegavam essas
memórias e porque lhe chegariam elas sem amargura, como uma
mera prefiguração do presente?
Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mor-
tais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco.
Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de
glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um
templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram
no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu
destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória
humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à
última sombra.

25 de Agosto, 1983
VI NO RELÓGIO DA PEQUENA ESTAÇÃO QUE JÁ PASSAVA DAS ONZE HORAS DA NOITE . Fui andando até ao hotel.
Senti, como noutras alturas, a resignação e o alívio que nos infundem os lugares familiares. O amplo
portão estava aberto; a quinta, às escuras. Entrei no vestíbulo, cujos espelhos pálidos reflectiam as
plantas do salão. Curiosamente, o dono não me reconheceu e estendeu-me o registo. Peguei na caneta
que estava presa ao balcão, molhei-a no tinteiro de bronze e, ao inclinar-me sobre o livro aberto,
ocorreu a primeira surpresa das muitas que se me deparariam nessa noite. O meu nome, Jorge Luis
Borges, já estava escrito, e a tinta, ainda fresca.
O dono disse-me: — Julguei que o senhor já tivesse subido. Após o que me olhou atentamente e
corrigiu:
— Desculpe, senhor. O outro é tão parecido, mas o senhor é mais jovem.
Perguntei-lhe: - Com que quarto é que ele ficou? - Pediu o quarto dezanove — foi a resposta. Era
o que eu temera.
Larguei a caneta, e subi a correr as escadas. O quarto 19 ficava no segundo piso e dava para um triste
pátio descurado, no qual havia uma grade e, recordo-o, um banco de jardim. Era o quarto mais alto do
hotel. Abri a porta, que cedeu. Não tinham apagado o pequeno lustre. Debaixo da desapiedada luz,
reconheci-me. De costas, na estreita cama de ferro, mais velho, enfraquecido e muito pálido, estava eu,
os olhos perdidos nos altos ornamentos de gesso. Chegou-me a voz. Não era exactamente a minha; era
a que costumo ouvir nas minhas gravações, ingrata e sem matizes.
- Que estranho — dizia —, somos dois, e somos o mesmo. Mas nada é estranho nos sonhos.
Perguntei assustado: - Então, tudo isto é um sonho? - É, estou convicto, o meu último sonho.
Com a mão, indicou o frasco vazio sobre o mármore da mesa-decabeceira.
— Tu ainda terás muito que sonhar, antes de chegares a esta noite. Em que datas estás?
- Não sei muito bem — disse-lhe aturdido. — Mas ontem fiz sessenta e um anos.
- Quando a tua vigília chegar a esta noite, terás feito, ontem, oitenta e quatro. Hoje, estamos a vinte e
cinco de Agosto de mil novecentos e oitenta e três.
- Tantos anos haverá que esperar — murmurei.
- A mim já nada me sobra — disse com brusquidão. — Posso morrer a qualquer momento, posso perder-
me no que não sei, e continuo a sonhar com o duplo. O tema gasto que me deram os espelhos e
Stevenson.
Senti que a evocação de Stevenson era uma despedida e não um rasgo pedante. Eu era ele, e
compreendia. Não bastam os momentos mais dramáticos para se ser Shakespeare e encontrar frases
memoráveis. Para o distrair, disse-lhe:
- Sabia que isto te ia acontecer. Aqui mesmo, há anos, num dos quartos de baixo, iniciámos o rascunho
da história deste suicídio.
— Sim — respondeu-me lentamente, como se juntasse recordações. — Mas não vejo a relação. Nesse
rascunho, eu tinha comprado uma passagem de ida para Adrogué e, já no Hotel Las Delicias, tinha
subido ao quarto dezanove, o mais afastado de todos. Aí, suicidara-me. — Por isso, estou aqui — disse-
lhe.
- Aqui? Estamos sempre aqui. Aqui estou eu, a sonhar-te na casa da Rua Maipú. Aqui estou a passar-
me, no quarto que foi da mãe.
- Que foi da mãe — repeti, sem querer entender. — Eu sonho-te no quarto dezanove, no pátio de cima.
- Quem sonha quem? Eu sei que te sonho, mas não sei se me estás
a sonhar. O hotel de Adrogué foi demolido há já tantos anos, vinte, talvez trinta, quem sabe.
- O sonhador sou eu — repliquei, com certo desafio.
- Não te dás conta de que o fundamental é averiguar se há um só homem a sonhar ou dois que se
sonham.
- Eu sou Borges, que viu o teu nome no registo e subiu.
— Borges sou eu, que estou a morrer na Rua Maipú. Houve um silêncio, o outro disse-me:
— Vamos tirar a prova. Qual foi o momento mais terrível da nossa vida?
Inclinei-me sobre ele e falámos os dois ao mesmo tempo. Sei que os dois mentimos.
Um ténue sorriso iluminou-lhe o rosto envelhecido. Senti que esse sorriso reflectia, de algum modo, o
meu.
— Mentimo-nos — disse-me —, porque nos sentimos dois e não um. A verdade é que somos dois e não
um.
Essa conversa irritou-me. De modo que lho disse. E acrescentei:
— E tu, em mil novecentos e oitenta e três, não vais revela-me nada sobre os anos que me faltam?
— Que posso dizer-te, pobre Borges? Repetir-se-ão as desditas a que já estás habituado. Ficarás sozinho
nesta casa. Passarás as mãos pelos livros sem letras e pelo medalhão de Swedenborg e pela bandeja de
madeira com a cruz federal. A cegueira não é a treva; é uma forma de solidão. Voltarás à Islândia.
— Islândia! Islândia dos mares!
— Em Roma, repetirás os versos de Keats, cujo nome, como o de todos, foi escrito na água.
— Nunca estive em Roma.
— Também há outras coisas. Escreverás o nosso melhor poema, que será urna elegia.
— À morte de... — disse eu. Não me atrevi a dizer o nome. — Não. Ela viverá mais que tu.
Ficámos silenciosos. Prosseguiu:
- Escreverás o livro com o qual temos sonhado tanto tempo. Por volta de mil novecentos e setenta e
nove, compreenderás que a tua suposta obra mais não é do que uma série de borrões, uma miscelânea,
e cederás a vã e supersticiosa tentação de escreveres o teu grande livro. A superstição que nos infligiu o
Fausto de Goethe, a Salambo, o Ulisses. Enchi, por mais incrível que pareça, muitas páginas.
— E, por fim, compreendeste que tinhas fracassado.
- Pior. Compreendi que era uma obra-prima, no sentido mais opressor da palavra. As minhas boas
intenções não tinham passado das primeiras páginas; nas outras estavam os labirintos, remendos, o
homem que cria para si uma imagem, o reflexo que se crê verdadeiro, o tigre das noites, as batalhas
que acabam em sangue, Juan Muraña cego e fatal, a voz do Macedonio, a nave feita com as unhas dos
mortos, o inglês antigo repetido nas tardes.
— Esse museu é-me familiar — observei com ironia.
— E ainda, as falsas recordações, o jogo duplo dos símbolos, as longas enumerações, o bom
manuseamento do prosaísmo, as simetrias imperfeitas, que os críticos descobrem com alvoroço, as
citações nem sempre apócrifas.
- Publicaste esse livro?
- Joguei, sem convicção, com o propósito melodramático de o destruir, eventualmente pelo fogo. Acabei
por publicá-lo em Madrid, sob pseudónimo. Falou-se de um torpe imitador de Borges, que tinha o defeito
de não ser Borges e de ter repetido o exterior do modelo.
- Não me surpreende — disse eu. — Todo o escritor acaba por ser o seu discípulo menos inteligente.
- Esse livro foi um dos caminhos que me trouxeram a esta noite. Quanto aos outros... A humilhação da
velhice, a convicção de já ter vivido cada dia...
- Não escreverei tal livro — disse.
- Escrevê-lo-ás. As minhas palavras, que são agora o presente, serão apenas a memória de um sonho.
Incomodou-me o seu tom dogmático, sem dúvida o que uso nas minhas aulas. Incomodou-me que nos
parecêssemos tanto e que ele aproveitasse a impunidade que lhe dava a proximidade da morte. Para me
libertar, disse-lhe:
- Tens mesmo a certeza de que vais morrer?
— Sim — replicou-me. — Sinto uma espécie de doçura e de alívio, que nunca senti. Não posso
comunicá-lo. Todas as palavras requerem uma experiência partilhada. Porque é que aquilo que te digo
parece incomodar-te tanto?
- Porque nos parecemos demasiado. Tenho aversão à tua cara, que é a minha caricatura, tenho aversão
à tua voz, que é o meu arremedo, tenho aversão à tua sintaxe patética, que é a minha.
- Eu também — disse o outro. — Por isso resolvi suicidar-me. Um pássaro cantou na quinta.
— E o último — disse o duplo.
Com um gesto, chamou-me para o seu lado. A sua mão procurou a minha. Retrocedi; temi que ambas
se confundissem.
Disse-me:
- Os estóicos ensinam que não nos devemos queixar da vida; a porta da prisão está aberta. Sempre
assim o entendi, mas o tédio e a cobardia demoraram-se. Aí há uns doze dias, dava eu uma conferência
em La Plata sobre o livro quarto da Eneida. De repente, ao escandir um hexâmetro, soube qual era o
meu caminho. A partir desse momento, senti-me invulnerável. A minha sorte será a tua, receberás a
brusca revelação, no meio do latim e de Virgílio e já terás completamente esquecido este curioso diálogo
profético, que decorre em dois tempos e em dois lugares. Quando voltares a sonhá-lo serás o que sou e
tu serás o meu sonho.
— Não o esquecerei, e vou escrevê-lo amanhã.
— Ficará no mais profundo da tua memória, debaixo da maré dos sonhos. Quando o escreveres, julgarás
estar a urdir um conto fantástico. Não será amanhã, ainda te faltam muitos anos.
Deixou de falar, compreendi que tinha morrido. De certo modo eu morria com ele; inclinei-me aflito
sobre a almofada e já não havia ninguém.
Fugi do quarto. Lá fora não estava o pátio, nem as escadas de mármore, nem a grande casa silenciosa,
nem os eucaliptos, nem as estátuas, nem o caramanchão, nem as fontes, nem o portão da grade da
quinta na povoação de Adrogué.
Lá fora, esperavam-me outros sonhos.

Biblioteca de Babel
«By this art you may contemplate
the variation of the 23 letters...»
The Anatomy of Melancholy, part 2, sect. II, mem. IV
 
O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de
galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De
qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das
galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos
dois; a sua altura, que é a dos pisos, mal excede a de uni bibliotecário normal. Uma das faces livres dá
para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e
à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer s
necessidades fecais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e e eleva a perder de vista. No
saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho
que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu
prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas
frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que
emitem é insuficiente, incessante.
Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se
calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo,
preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas
que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á
longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a
Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária
do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma
sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com
um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu tes temunho é
suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico e Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença:
«A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.»
A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e
dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas;
cada linha, de umas oitenta letras de cor negra. Também há letras na lombada de cada livro; estas letras não
indicam nem representam o que dirão as páginas. Sei que esta incongruência já chegou a parecer misteriosa.
Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar das suas trágicas projecções, é talvez o facto capital da
história) vou rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Desta verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do
mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso
ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dotação de estantes, de tomos enigmáticos, de
infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus.
Para perceber a distância que existe entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trémulos
que a minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas,
negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: «O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco». Foi esta observação que permitiu, há
trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma
conjectura tinha ainda decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que o meu pai viu
num hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava apenas das letras M C V perversamente repetidas
da primeira linha até à última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a
penúltima página diz «Oh tempo as tuas pirâmides.» Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia
correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e de incoerências. (Sei de uma bárbara
região cujos bibliotecários repudiam o vão e supersticioso costume de procurar sentido nos livros e o equiparam
ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os
vinte e cinco
símbolos naturais, mas afirmam que essa aplicação é casual e que os livros em si nada significam. Esta opinião,
como veremos, não é totalmente falaciosa.)
Durante muito tempo julgou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas.
É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bastante diferente
da que falamos agora; é verdade que poucas milhas à direita a língua é dialectal e que noventa pisos mais
acima é incompreensível. Tudo isto, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V
não podem corresponder a nenhum idioma, por mais dialectal ou rudimentar que seja. Houve quem insinuasse
que cada letra podia ter influência sobre a seguinte e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não
era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas esta vaga tese não prosperou. Outros
pensaram em criptografias; universalmente, aceitou-se esta conjectura, embora não no sentido em que a
formularam os seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior[1] deu com um livro tão confuso como os outros, mas
que tinha quase duas folhas de linhas homogéneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe
disse que estavam redigidas em português; outros disseram-lhe que era iídiche. Em menos de um século
conseguiu-se estabelecer o idioma: um dialecto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico.
Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com
repetição ilimitada. Estes exemplos permitiram que um bibliotecário de génio descobrisse a lei fundamental da
Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por muito diferentes que sejam, constam de elementos
iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também acrescentou um facto que
todos os viajantes têm confirmado: «Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos.» Destas premissas
incontroversas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam todas as possíveis combinações
dos vinte e tal símbolos ortográficos (número, embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado
exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo
fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a
demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse
evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro
em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Beda pode ter escrito (e
não escreveu) sobre a mitologia dos Saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante
felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal
ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo
bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Reabilitações:
livros de apologia e de profecia, que para sempre reabilitavam os actos de todos os homens do universo e
guardavam arcanos prodigiosos para o seu porvir. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e
lançaram-se pelas escadas acima, impelidos pelo vão propósito de encontrar a sua Reabilitação. Estes
peregrinos brigavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas
divinas, atiravam os livros enganadores para o fundo dos túneis, morriam defenestrados pelos homens de
regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Reabilitações existem (eu vi duas que se referem a pessoas do
futuro, a pessoas porventura não imaginárias), mas os pesquisadores não se lembravam que a possibilidade de
um homem achar a sua, ou alguma pérfida variação da sua, se pode computar à volta do zero.
Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do
tempo. É verosímil que estes graves mistérios possam explicar-se por palavras: se não bastar a linguagem dos
filósofos, a multiforme Biblioteca deve ter produzido o idioma inaudito que se requer, bem como os
vocabulários e gramáticas desse idioma. Há já quatro séculos que os homens não dão descanso aos hexá-
gonos... Há pesquisadores oficiais, inquiridores. Vi-os no desempenho da sua função: chegam sempre
esgotados; falam de um escadote sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o
bibliotecário; algumas vezes, pegam no livro mais próximo e folheiam-no, em busca de palavras infames.
Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desaforada esperança, como é natural, sucedeu-se uma depressão excessiva. A certeza de que alguma
prateleira nalgum hexágono continha livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis,
pareceu quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens
misturassem letras e símbolos, até construírem, por meio de um improvável dom do acaso, esses livros
canónicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha
infância vi homens velhos que longamente se ocultavam nas latrinas, com uns discos de metal num covilhete
proibido, e fracamente imitavam a divina desordem.
Outros, pelo contrário, acreditaram que a prioridade era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos,
exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com tédio um volume e condenavam estantes inteiras: ao
seu furor higiénico e ascético deve-se a insensata perda de milhões de livros. O seu nome é execrado, mas
quem deplora os «tesouros» que o seu frenesi destruiu descura dois factos notórios. Um: a Biblioteca é de tal
forma enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima. Outro: cada exemplar é único,
insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles im-
perfeitos: de obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor
que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas pelo terror que esses
fanáticos provocaram. Impelia-os o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato
menor que os naturais; omnipotentes, ilustrados e mágicos.
Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum
hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os ou-
tros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona
hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura
d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono
secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente
um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por
diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho
inverosímil que nalguma estante do universo haja um livro total[2]; rogo aos deuses ignorados que um homem
— um só que seja, há milhares de anos! — o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a
sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que
eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e até a humilde e pura coerência) é
uma quase milagrosa excepção. Falam (eu sei-o) da «Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o
incessante risco de se transformarem noutros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade
que delira». Estas palavras que não só denunciam a desordem, mas também a exemplificam, provam de
maneira notória o seu péssimo gosto e a sua desesperada ignorância. Com efeito, a Biblioteca inclui todas as
estruturas verbais, todas as variações que permitem os vinte e cinco sinais ortográficos, mas não um único
disparate absoluto. Não vale a pena observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se
intitula Trono penteado, e outro A cãibra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas propostas, à primeira vista
incoerentes, sem dúvida são susceptíveis de uma justificação criptográfica ou alegórica; essa justificação é
verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar uns caracteres
 
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que a divina Biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível
sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja
nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e
palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos — e também
a sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas, o símbolo biblioteca
admite a correcta definição ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou
pirâmide ou outra coisa qualquer, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Tu que me lês, tens a
certeza de que compreendes a minha linguagem?)
A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos
ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam barbaramente
as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações,
que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter mencionado os
suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a
suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará:
iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não intercalei este adjectivo por um hábito retórico; digo que não é ilógico pensar
que o mundo é infinito. Quem o julga limitado, postula que em lugares longínquos os corredores e escadas e
hexágonos podem inconcebivelmente cessar — o que é absurdo. Quem o imagina sem limites, esquece que os
tem o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A biblioteca é ilimitada
e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direcção, verificaria ao cabo dos séculos que os
mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). A minha
solidão alegra-se com esta elegante esperança[3].
 
Mar da Prata, 1941.
 

[1]
Dantes, para cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as doenças pulmonares
destruíram esta proporção. Memória de indescritível melancolia: já cheguei a viajar muitas noites por
corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.
[2]
Repito: basta que um livro seja possível para existir. Só está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum
livro é também uma escada, embora sem dúvida haja livros que discutem e negam e demonstram essa
possibilidade, e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.
[3]
Letizia Álvarez de Toledo observou que esta vasta Biblioteca é inútil: rigorosamente, bastaria um único
volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, que constasse de um número infinito
de folhas infinitamente finas. (Cavalieri nos princípios do século XVII disse que todo o corpo sólido é a
sobreposição de um número infinito de planos.) O manejo desse vade-mécum sedoso não seria cómodo: cada
folha aparente desdobrar-se-ia noutras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.

História da Eternidade
 
I
 
Na passagem das Enéadas que pretende interrogar e definir a natureza do tempo, afirma-se que é
indispensável conhecer previamente a eternidade, que — conforme todos sabem — é o modelo e
arquétipo daquele. Esta advertência preliminar, tanto mais grave se a julgarmos sincera, parece
aniquilar toda a esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um
problema para nós, um tremendo e exigente problema, porventura o mais vital da metafísica; a
eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança. Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma
imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um registo que a ninguém distrai da convicção de
que a eternidade é uma imagem feita com substância de tempo. É esta imagem, esta tosca
palavra enriquecida pelos desacordos humanos, que me proponho historiar.
Invertendo o método de Plotino (única maneira de aproveitá-lo) começarei por recordar as
obscuridades inerentes ao tempo: mistério metafísico, natural, que tem de anteceder a eternidade,
que é filha dos homens. Uma destas obscuridades, não a mais árdua, mas também não a menos
bela, é a que nos impede de precisar a direcção do tempo. Que ..ui do passado para o porvir é a
crença comum, mas de modo nenhum é mais ilógica a sua contrária, a que foi fixada em verso
espanhol por Miguel de Unamuno:
 
Nocturno el rio de ias horas fluye
desde su manantial que es el mañana eterno... [1]
 
Ambas são igualmente verosímeis — e igualmente inverificáveis. Bradley nega as duas e avança
uma hipótese pessoal: excluir o futuro, que é uma simples constrição da nossa esperança, e
reduzir o «actual» à agonia o momento presente desintegrando-se no passado. Esta regressão
temporal costuma corresponder aos estados decrescentes ou insípidos, enquanto qualquer
intensidade nos parece marchar sobre o porvir... Bradley nega o futuro; uma das escolas
filosóficas da Índia nega o presente, por considerá-lo incaptável. «A laranja está para cair do
ramo, ou já está no chão», afirmam esses estranhos simplificadores. «Ninguém a vê cair.»
Outras dificuldades propõe o tempo. Uma, porventura a maior, a de sincronizar o tempo individual
de cada pessoa com o tempo geral das matemáticas, tem sido largamente apregoada pelo recente
alarme relativista, e todos se lembram dela — ou lembram-se de a ter lembrado até há
pouquíssimo tempo. (Eu recupero-a assim, deformando-a: Se o tempo é um processo mental,
como podem compartilhá-lo milhares de homens ou mesmo dois homens diferentes?) Outra é a
dedicada pelos Eleatas a refutar o movimento. Pode caber nestas palavras: «É impossível que em
oitocentos anos de tempo decorra um prazo de catorze minutos, porque antes é obrigatório que
tenham passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três e meio, um minuto e
três quartos, e assim infinitamente, de maneira que os catorze minutos nunca se cumprem.»
Russell rebate este argumento, afirmando a realidade e até vulgaridade de números infinitos, mas
que se dão de uma vez, por definição, e não como termo «final» de um processo de enumeração
sem fim. Estes cálculos anormais de Russell são uma boa antecipação da eternidade, que também
não se deixa definir pela enumeração das suas partes.
Nenhuma das várias eternidades que planearam os homens — a do nominalismo, a de Ireneu, a de
Platão — é uma agregação mecânica do passado, do presente e do futuro. É uma coisa mais
simples e mais mágica: é a simultaneidade desses tempos. O idioma comum e o dicioná rio
espantoso «dont chague édition fait regretter la précédente» parecem ignorá-lo, mas assim
pensaram os metafísicos. «Os objectos da alma são sucessivos, agora Sócrates e depois um
cavalo», leio no quinto livro das Enéadas, «sempre uma coisa isolada que se concebe e milhares
que se perdem; mas a Inteligência Divina abarca juntamente todas as coisas. O passado está no
seu presente, assim como também o futuro. Nada decorre neste mundo, em que persistem todas
as coisas, quietas na felicidade da sua condição.»
Passo a considerar esta eternidade de que derivaram as subsequentes. É verdade que Platão não a
inaugura — num livro especial, fala dos «antigos e sagrados filósofos» que o antecederam —, mas
amplia e resume com brilho o que imaginaram os anteriores. Deussen compara-o ao crepúsculo:
luz apaixonada e final. Convergem nos seus livros todas as concepções gregas de eternidade quer
rejeitadas, quer adornadas tragicamente.
Por isso o faço anteceder Ireneu, que ordena a segunda eternidade: a coroada pelas três
diferentes, mas inextricáveis pessoas.
Diz Plotino com notório fervor: «Toda a coisa no céu inteligível também é céu, e aí a terra é céu,
como também o são os animais, as plantas, os homens e o mar. Cada um revê-se nos outros. Não
há nada nesse reino que não seja diáfano. Nada é impenetrável, nada é opaco e a luz encontra a
luz. Todos estão em toda a parte, e tudo é tudo. Cada coisa é todas as coisas. O Sol é todas as
estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o Sol. Ninguém anda ali como em terra estrangeira.»
Este universo unânime, esta apoteose da assimilação e do intercâmbio, contudo, não é ainda a
eternidade; é um céu limítrofe, não emancipado completamente do número e do espaço. À
contemplação da eternidade, ao mundo das formas universais pretende exortar esta passagem do
quinto livro: «Que os homens a quem maravilha este mundo — a sua capacidade, a sua beleza, a
ordem do seu movimento contínuo, os deuses manifestos ou invisíveis que o percorrem, os
demónios, árvores e animais — elevem o pensamento a esta Realidade de que tudo é a cópia.
Verão aí as formas inteligíveis, não com emprestada eternidade mas sim eternas, e verão também
o seu capitão, a Inteligência pura, e a Sabedoria inalcançável, e a idade genuína de Cronos, cujo
nome é a Plenitude. É nele que estão todas as coisas imortais. Todos os intelectos, todos os
deuses e todas as almas. Todos os lugares lhe são presentes, para onde irá? Está na ventura, para
quê experimentar a mudança e a vicissitude? Não careceu ao princípio desse estado ganhando-o
depois. Numa só eternidade as coisas não são suas: a eternidade que o tempo imita ao girar em
torno da alma, sempre desertor de um passado, sempre cobiçoso de um porvir.»
As repetidas afirmações de pluralidade que fornecem os parágrafos anteriores, podem induzir-nos
em erro. O universo ideal para que nos convida Plotino é menos propenso à variedade do que à
plenitude; é um repertório selecto, que não tolera a repetição e o pleonasmo. É o imóvel e terrível
museu dos arquétipos platónicos. Não sei se o viram olhos mortais (fora da intuição visionária ou
do pesadelo) ou se o grego remoto que o ideou o representou alguma vez, mas algo de museu
pressinto nele: quieto, monstruoso e classificado... Trata-se de uma imaginação pessoal de que
pode prescindir o leitor; do que não convém que prescinda é de uma notícia geral desses
arquétipos platónicos, ou causas primordiais ou ideias, que povoam e compõem a eternidade.
É impossível aqui uma discussão prolixa do sistema platónico, mas não certas advertências de
intenção propedêutica. Para nós, a última e
firme realidade das coisas é a matéria — os electrões giratórios que percorrem distâncias estelares na
solidão dos átomos; para os capazes de platonizar, é a espécie, a forma. No terceiro livro das Enéadas,
lemos que a matéria é irreal: é uma simples e vazia passividade que recebe as formas universais como
as receberá um espelho; estas agitam-na e povoam-na sem a alterar. A sua plenitude é precisamente a
de um espelho, que simula estar cheio e está vazio; é um fantasma que nem sequer desaparece, porque
não tem nem a capacidade de cessar. O fundamental são as formas. Delas, repetindo Plotino, disse
Pedro Malón de Chaide muito depois: «Faz Deus como se tivéssemos um selo oitavo de ouro que numa
das partes tivesse um leão esculpido; noutra, um cavalo; noutra, uma águia, e assim por diante; e num
bocado de cera imprimíssemos o leão; noutro, a águia; noutro, o cavalo; é certo que tudo o que está na
cera está no ouro, e não podemos imprimir senão o que lá tivermos esculpido. Mas há uma diferença,
que é que a cera afinal é cera, e vale pouco; mas o ouro é ouro, e vale muito. Nas criaturas estão estas
perfeições finitas e de pouco valor: em Deus são de ouro, são o próprio Deus.» Daqui podemos inferir
que a matéria não é nada.
Damos por errado este critério e até inconcebível, e apesar disso aplicamo-lo continuamente. Um
capítulo de Schopenhauer não é o papel nas oficinas de Leipzig nem a impressão, nem as delicadezas e
perfis da escrita gótica, nem a enumeração dos sons que o compõem, nem sequer a opinião que temos
dele; Miriam Hopkins é feita de Miriam Hopkins, não dos princípios nitrogenados ou minerais, hidratos de
carbono, alcalóides e gorduras neutras, que formam a substância transitória desse fino espectro de
prata ou essência inteligível de Hollywood. Estas ilustrações ou sofismas de bom grado podem exortar-
nos a tolerar a tese platónica. Vamos formulá-la assim: «Os indivíduos e as coisas existem enquanto
participam da espécie que os inclui, que é a sua realidade permanente.» Vou buscar o exemplo mais
favorável: o de um pássaro. O hábito dos bandos, a pequenez, a identidade de características, a antiga
conexão com os dois crepúsculos, o do princípio dos dias e o do seu termo, a circunstância de serem
mais frequentes ao ouvido do que à vista — tudo isto nos move a admitir o primado da espécie e a
quase perfeita nulidade dos indivíduos[2]. Keats, alheio ao erro, pode pensar que o rouxinol que o
encanta é o mesmo que ouviu Ruth nos trigais de Belém de Judá; Stevenson eleva um só pássaro que
consome os séculos: «o rouxinol devorador do tempo». Schopenhauer, o apaixonado e lúcido
Schopenhauer, dá uma razão: a pura actualidade corporal em que vivem os animais, o seu
desconhecimento da morte e das memórias. E acrescenta logo, não sem um sorriso: «Quem me ouvir
assegurar que o gato cinzento que está a brincar no pátio é o mesmo que brincava e fazia travessuras
há quinhentos anos, pensará de mim o que quiser, mas loucura` mais estranha é imaginar que
fundamentalmente é outro.» E a seguir: «Destino e vida de leões requer a leonidade que, considerada
no tempo, é um leão imortal que se mantém por meio da infinita reposição dos indivíduos, cuja geração
e cuja morte formam o pulso desta imperecível figura.» E antes: «Uma infinita duração precedeu o meu
nascimento; o que fui eu entretanto? Metafisicamente, poderia talvez responder-me: "Eu fui sempre eu;
quer dizer, os outros que disseram eu durante esse tempo todo, não eram senão eu”»
Presumo que a eterna Leonidade pode ser aprovada pelo meu leitor, que sentirá um alívio majestoso
perante esse único Leão, multiplicado nos espelhos do tempo. Do conceito de eterna Humanidade não
espero o mesmo: sei que o nosso eu o rejeita, e que prefere derramá-lo sem medo no eu dos outros.
Mau sinal; formas universais muito mais árduas nos propõe Platão. Por exemplo, a Mesidade, ou Mesa
Inteligível que está nos céus: arquétipo quadrúpede que perseguem, condenados ao devaneio e à
frustração, todos os marceneiros do mundo. (Não posso negá-la completamente: sem uma mesa ideal,
nunca poderíamos ter chegado a mesas concretas.) Por exemplo, a Triangularidade: eminente polígono
de de três lados que não está no espaço e que não quer rebaixar-se à condição de equilátero, escaleno
ou isósceles. (Também não o repudio; é o dos manuais de geometria.) Por exemplo: a Necessidade, a
Razão, a Preterição, a Relação, a Consideração, o Tamanho, a Ordem, a Lentidão, a Posição, a
Declaração, a Desordem. Destas comodidades do pensamento elevadas a formas já não sei o que julgar;
penso que nenhum homem as poderá intuir sem o auxílio da morte, da febre, ou da loucura. Já me
esquecia de outro arquétipo que os compreende a todos e os exalta: a Eternidade, cuja fragmentada
cópia é o tempo.
Ignoro se o meu leitor precisa de argumentos para descrer da doutrina platónica. Posso fornecer-lhe
muitos: um, a incompatível agregação de termos genéricos e de termos abstractos que coabitam sans
gêne na dotação do mundo arquétipo; outro, a reserva do seu inventor sobre o procedimento que usam
as coisas para participar nas formas universais; outro, a conjectura de que esses mesmos arquétipos
assépticos padecem de mistura e de variedade. Não são irresolúveis: são tão confusos como as
criaturas do tempo. Fabricados à imagem das criaturas, repetem essas próprias anomalias que
pretendem resolver. A Leonidade, digamos, como prescindiria da Soberba e da Rubidez, da
Jubidade e da Garridade? Para esta pergunta não há resposta nem pode haver: não esperemos do
termo leonidade uma virtude muito superior à que tem esta palavra sem o sufixo [3].
Volto à eternidade de Plotino. O quinto livro das Enéadas inclui um inventário muito geral das
peças que a compõem. A Justiça lá está, assim como os Números (até qual?) e as Virtudes e os
Actos e o Movimento, mas não os erros e os estragos, que são doenças de uma matéria em que se
modelou uma Forma. Não é enquanto melodia, mas sim enquanto é Harmonia e é Ritmo que lá
está a Música. Da patologia e da agricultura não há arquétipos, porque não são precisos. Ficam
excluídas igualmente a fazenda, a estratégia, a retórica e a arte de governar — embora, no tempo,
derivem um pouco da Beleza e do Número. Não há indivíduos, não há uma forma primordial de
Sócrates nem sequer de Homem Alto ou de Imperador; há, geralmente, o Homem. Em
contrapartida, estão lá todas as figuras geométricas. Das cores só estão as primárias: não há
Cinzento nem Púrpura, nem Verde nesta eternidade. Por ordem ascendente, os seus mais antigos
arquétipos são estes: a Diferença, a Igualdade, a Moção, a Quietude e o Ser.
Examinámos uma eternidade que é mais pobre que o mundo. Resta ver como a adoptou a nossa
Igreja e lhe confiou um caudal que é superior ao que os anos transportam.
 
 
II
 
O melhor documento da primeira eternidade é o quinto livro das Enéadas; o da segunda ou cristã,
o décimo primeiro livro das Confissões de Santo Agostinho. A primeira não se pode conceber fora
da tese platónica; a segunda, sem o mistério profissional da Trindade e sem as discussões
levantadas pela predestinação e pela reprovação. Quinhentas páginas in-fólio não esgotariam o
tema: espero que estas duas ou três em oitavo não pareçam excessivas.
Pode afirmar-se, com suficiente margem de erro, que a «nossa» eternidade foi decretada poucos
anos após a doença crónica intestinal que matou Marco Aurélio, e que o lugar desse vertiginoso
mandado foi o desfiladeiro de Fourvière, que antes se chamou Forum vetus, e célebre agora pelo
elevador e pela basílica. Apesar da autoridade de quem a ordenou — o bispo Ireneu —, esta
eternidade coerciva foi muito mais que um vão parâmetro sacerdotal ou um luxo eclesiástico: foi
uma resolução e foi uma arma. O Verbo é engendrado pelo Pai, o Espírito Santo é produzido pelo
Pai e pelo Verbo, os gnósticos costumavam inferir destas duas inegáveis operações que o Pai era
anterior ao Verbo, e os dois ao Espírito. Esta inferência dissolvia a Trindade. Ireneu esclareceu que
o duplo processo — geração do Filho pelo Pai, emissão do Espírito pelos dois — não aconteceu no
tempo, mas sim esgota de uma vez o passado, o presente e o porvir. O esclarecimento prevaleceu
e agora é dogma. Assim foi promulgada a eternidade, antes apenas consentida na sombra de
algum desautorizado texto platónico. A boa conexão e distinção das três hipóstases do Senhor,
agora é um problema inverosímil, e esta futilidade parece contaminar a resposta; mas não há
dúvidas da grandeza do resultado, pelo menos para alimentar a esperança: «Aeternitas est merum
hodie, est immediata et lucida friutio rerum infinitarum.» Nem da importância emocional e
polémica da Trindade.
Agora, os católicos laicos consideram-na um corpo colegiado infinitamente correcto, mas também
infinitamente aborrecido; os liberais um vão cão Cérbero teológico, uma superstição que os muitos
avanços da República já se encarregaram de abolir. A Trindade, é claro, excede estas fórmulas.
Imaginada toda de uma vez, a sua concepção de um pai, um filho e um espectro, articulados num único
organismo, parece um caso de teratologia intelectual, uma deformação que só o horror de um pesadelo
conseguiu parir. O inferno é uma mera violência física, mas as três inextricáveis Pessoas implicam um
horror intelectual, uma infinidade asfixia-
da, enganadora, como de contrários espelhos. Dante pretendeu denotá-las com o signo de uma
sobreposição de círculos diáfanos, de diferente cor; Donne, pelo de complicadas serpentes, graciosas e
indissolúveis. «Toto coruscat trinitas mysterio», escreveu São Paulino; «Brilha no pleno mistério da
Trindade».
Desligada do conceito de redenção, a distinção das três pessoas numa tem de parecer arbitrária.
Considerada como uma necessidade da fé, o seu mistério fundamental não se atenua, mas sobressaem
a sua intenção e o seu emprego. Entendemos que renunciar à Trindade — à Dualidade, pelo menos, é
fazer de Jesus um delegado ocasional do Senhor, um acidente da história, e não o auditor imorredouro,
contínuo, da nossa devoção. Se o filho não for também a redenção não é obra directa divina; se não for
eterno, também não o será o sacrifício de se ter rebaixado à condição de homem e ter morrido na Cruz.
«Nada menos que uma infinita excelência pôde satisfazer por uma alma perdida para infinitas idades»,
insistiu Jeremias Taylor. Assim se pode explicar o dogma, embora os conceitos da geração de um Filho
pelo Pai e do seguimento do Espírito pelos dois continuem a insinuar uma prioridade, sem contar com a
sua culpada condição de simples metáforas. A teologia, empenhada em diferenciá-las, resolve que não
há motivo para confusões, visto que o resultado de uma é o Filho e da outra o Espírito. Geração eterna
do Filho, procissão eterna do Espírito, é a soberba decisão de Ireneu: invenção de um acto sem tempo,
de um mutilado zeitloses Zeitwort, que podemos desdenhar ou venerar, mas não discutir. Assim se
propôs Ireneu salvar o monstro e conseguiu-o. Sabemos que era inimigo dos filósofos; apoderar-se de
uma das suas armas e voltá-la contra eles, deve ter-lhe causado um belicoso prazer.
Para o cristão, o primeiro segundo do tempo coincide com o primeiro segundo da Criação — facto que
nos poupa o espectáculo (reconstruído recentemente por Valéry) de um Deus ocioso que vai dobando
séculos errantes na eternidade «anterior». Emanuel Swedenborg (Vera Christiana Religio, 1771) viu num
confim do mundo espiritual uma estátua alucinatória pela qual se imaginam devorados todos os «que
deliberam insensata e esterilmente sobre a condição do Senhor antes de fazer o Mundo».
Desde que Ireneu a inaugurou, a eternidade cristã começou a diferir da alexandrina. Sendo ao princípio
um mundo à parte, acomodou-se a ser um dos dezanove atributos da mente de Deus. Entregues à
veneração popular, os arquétipos ofereciam o perigo de se transformarem em divindades ou em anjos;
por conseguinte, não negou a sua realidade — sempre maior que a das simples criaturas —, mas foram
reduzidos a ideias eternas no Verbo fazedor. A este conceito dos universalia ante res veio parar Alberto
Magno: considera-os eternos e anteriores às coisas da Criação, mas só à maneira de inspirações e
formas. Trata muito bem de separá-lo s dos universalia in rebus, que são as mesmas concepções divinas
já concretizadas variamente no tempo, e — sobretudo — dos universalia postres, que são as concepções
redescobertas pelo pensamento indutivo. As temporais distinguem-se das divinas pelo facto de
carecerem da eficácia criadora, mas não noutra coisa: a suspeita de que as categorias de Deus podem
não ser precisamente as do latim não cabe na escolástica... Mas advirto que me adianto.
Os manuais de teologia não se detêm com dedicação especial na eternidade. Reduzem-se a prevenir que
é a intuição contemporânea e total de todas as fracções do tempo, e a fatigar as Escrituras hebraicas
depois de fraudulentas confirmações, onde parece que o Espírito Santo diz muito mal o que diz bem o
comentador. Costumam agitar com esse propósito esta declaração de ilustre desdém ou de mera
longevidade: «Um dia perante o Senhor é como mil anos, e mil anos são como um dia», ou as grandes
palavras que ouviu Moisés e que são o nome de Deus: «Sou Aquele que Sou», ou as que ouviu São
João, o Teólogo, em Patmos, antes e depois do mar de cristal e da besta de cor escarlate e das aves que
comem carne de capitães: «Eu sou o A e o Z, o princípio e o fim [4].» Costumam copiar também esta
definição de Boécio (concebida no cárcere, porventura em vésperas de morrer pela espada): «Aeternitas
est interminabilis vitae tota et perfecta possessio», e que me agrada mais na quase voluptuosa repetição
de Hans Lassen Martensen: «Aeternitas est merum hodie, est immediata et lucida fruitio rerum
infinitarum.» Em contrapartida, parecem desprezar o obscuro juramento do anjo que estava de pé sobre
o mar e sobre a terra (Revelação, X, 6): «e jurou por Aquele que viverá para sempre, que criou o céu e
as coisas que nele estão, e a terra e as coisas que nela estão, e o mar e as coisas que nele estão, que o
tempo deixará de ser». É verdade que o tempo neste versículo deve equivaler a «demora».
A eternidade ficou como atributo da ilimitada mente de Deus, e sabe-se muito bem que gerações
de teólogos têm vindo a trabalhar essa mente, à sua imagem e semelhança. Não há nenhum
estímulo tão vivo como o debate da predestinação ab aeterno. Quatrocentos anos depois da Cruz,
o frade inglês Pelágio incorreu no escândalo de pensar que os inocentes que morrem sem o
baptismo alcançam a glória [5]. Agostinho, bispo de Hipona, refutou-o com uma indignação que os
seus editores aclamam. Anotou as heresias nesta doutrina, aborrecida dos justos e dos mártires: a
sua negação de que no homem Adão já pecámos e perecemos todos os homens, o seu
esquecimento abominável de que esta morte se transmite de pai para filho pela geração carnal, o
seu desprezo do sangrento suor, da agonia sobrenatural e do grito de Quem morreu na Cruz, a
sua repulsa dos secretos favores do Espírito Santo, a sua restrição da liberdade do Senhor. O
britânico temera a ousadia de invocar a justiça; o Santo — sempre sensacional e forense —
concede que, de acordo com a justiça, todos os homens merecemos o fogo sem perdão, mas que
Deus determinou salvar alguns, «segundo o seu arbítrio», ou como diria Calvino, muito depois, e
não sem uma certa brutalidade: «porque sim» («guia voluit»). Eles são os predestinados. A
hipocrisia ou o pudor dos teólogos reservou o uso desta palavra para os predestinados ao céu.
Predestinados ao tormento não pode haver: é verdade que os não favorecidos passam ao fogo
eterno, mas trata-se de uma preterição do Senhor, não de um acto especial... Este recurso
renovou a concepção da eternidade.
Gerações de homens idolátricos haviam habitado a Terra, sem ocasião de rejeitar ou abraçar a palavra
de Deus; era tão insolente imaginar que pudessem salvar-se sem esse meio como negar que alguns dos
seus varões, de famosa virtude, seriam excluídos da glória. (Zuínglio, 1523, declarou a sua esperança
pessoal de compartilhar o céu com Hércules, com Teseu, com Sócrates, com Aristides, com Aristóteles e
com Séneca.) Uma amplificação do nono atributo do Senhor (que é o de omnisciência) bastou para
esconjurar a dificuldade. Promulgou-se que esta implicava o conhecimento de todas as coisas: quer
dizer, não só das reais, mas das possíveis também. Procurou-se um lugar nas Escrituras que permitisse
este complemento infinito, e encontraram-se dois: um, o do Primeiro Livro dos Reis em que o Senhor diz
a David que os homens de Kenlah irão entregá-lo se ele não se for embora da cidade, e ele vai; o outro,
o do Evangelho segundo São Mateus, que impreca duas cidades: «Ai de ti, Karazin! Ai de ti, Betsaida!
porque se em Tiro e em Sídon se houvessem feito as maravilhas que em vós se fizeram, há muito tempo
que se teriam transformado em mar e em cinza.» Com este repentino apoio, puderam ingressar na
eternidade os modos potenciais do verbo: Hércules convive no céu com Ulrich Zuínglio porque Deus sabe
que teria observado o ano eclesiástico, a Hidra de Lema fica relegada para as trevas externas porque lhe
consta que rejeitaria o baptismo. Nós percebemos os factos reais e imaginamos os possíveis (e os
futuros); no Senhor não tem lugar esta distinção, que pertence ao desconhecimento e ao tempo. A sua
eternidade regista de uma vez (uno intelligendi actu) não só todos os instantes deste repleto mundo
como também os que teriam lugar se o mais evanescente deles se alterasse — e os impossíveis,
também. A sua eternidade combinatória e pontual é muito mais copiosa que o universo.
Ao contrário das eternidades platónicas, cujo aspecto principal é a insipidez, esta corre o risco de
se assemelhar às últimas páginas do Ulisses, e até ao capítulo anterior, o do enorme
interrogatório. Um majestoso escrúpulo de Agostinho moderou essa prolixidade. A sua doutrina,
até mesmo verbalmente, rejeita a condenação; o Senhor fixa-se nos eleitos e passa por alto os
réprobos. Sabe tudo, mas prefere demorar a sua atenção nas vidas virtuosas. João Escoto Erígeno,
mestre palatino de Carlos, o Calvo, deformou gloriosamente esta ideia. Predicou um Deus indeter-
minável; ensinou um ror de arquétipos platónicos; ensinou um Deus que não percebe o pecado
nem as formas do mal; ensinou a deificação, a reconversão final das criaturas (inclusivamente o
tempo e o demónio) à unidade primeira de Deus. «Divina bonitas consummabit malitiam, aeterna
vita absorbebit mortem, beatitudo miseriam.» Esta mesclada eternidade (que ao contrário das
eternidades platónicas inclui os destinos individuais; que ao contrário da instituição ortodoxa
rejeita toda a imperfeição e miséria) foi condenada pelo sínodo de Valência e pelo de Langres. De
divisione naturae, libri V, a controversa obra que a pregava, ardeu na fogueira pública. Acertada
medida que despertou o favor dos bibliófilos, e permitiu que o livro do Erígeno chegasse aos
nossos tempos.
O universo requer a eternidade. Os teólogos não ignoram que se a atenção do Senhor se desviasse um
só segundo da minha mão direita que escreve, esta recairia no nada, como se a fulminasse um fogo sem
lua. Por isso afirmam que a conservação deste mundo é uma perpétua criação e que os verbos
conservar e criar, tão inimizados aqui, são sinónimos no Céu.
 
 
III
 
Temos até aqui, na sua ordem cronológica, a história geral da eternidade. Das eternidades, melhor
dizendo, visto que o desejo humano sonhou dois sonhos sucessivos e hostis com esse nome: um, o
realista, que anseia com estranho amor os quietos arquétipos das criaturas; outro, o nominalista, que
nega a verdade dos arquétipos e pretende congregar num segundo os pormenores do universo. Aquele
baseia-se no realismo, doutrina tão afastada do nosso ser que descreio de todas as interpretações,
inclusivamente da minha; este no que determina o seu conteúdo, o nominalismo, que afirma a verdade
dos indivíduos e o convencional dos géneros. Agora, semelhantes ao espontâneo e palerma prosista da
comédia, todos fazemos nominalismo sans le savoir: é como uma premissa geral do nosso pensamento,
um axioma adquirido. Daí a inutilidade de comentá-lo.
Temos até aqui, na sua ordem cronológica, o desenvolvimento debatido e curial da eternidade.
Conceberam-na homens remotos, homens barbudos e mitrados, publicamente para confundir heresias e
para reabilitar a distinção das três pessoas numa, secretamente para deter de qualquer modo o decorrer
das horas. «Viver é perder tempo: nada podemos recuperar nem conservar senão sob a forma de
eternidade», leio no espanhol emersonizado Jorge Santayana. Ao qual basta justapor aquela terrível
passagem de Lucrécio, sobre a falácia do coito: «Como o sequioso que no sonho queria beber, e esgota
formas de água que não se sacia e morre abrasado pela sede no meio de um rio: assim Vénus engana
os amantes com simulacros, e a visão de um corpo não lhes dá fartura, e nada podem soltar ou guardar,
embora as mãos indecisas e mútuas percorram todo o corpo. Por fim, quando nos corpos há presságio
de venturas e Vénus está a ponto de semear os campos da mulher, os amantes apertam-se com
ansiedade, dente amoroso contra dente; absolutamente em vão, dado que não chegam a perder-se no
outro nem a ser um mesmo ser.» Os arquétipos e a eternidade — duas palavras — prometem posses-
sões mais firmes. A verdade é que a sucessão é uma intolerável miséria e que os apetites magnânimos
cobiçam todos os minutos do tempo e toda a variedade do espaço.
Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia.
Pode-se pensar o mesmo do universo. Sem uma eternidade, sem um espelho delicado e secreto do que
passou pelas almas, a história universal é tempo perdido, e nela a nossa história pessoal — que nos
envaidece incomodamente. Não basta o disco gramo-fónico de Berliner ou o perspícuo cinematógrafo,
meras imagens de imagens, ídolos de outros ídolos. A eternidade é uma invenção mais copiosa. É
verdade que não é concebível, mas o humilde tempo sucessivo também não o é. Negar a eternidade,
supor a vasta aniquilação dos anos carregados de cidades, de rios e de júbilos, não é menos incrível do
que imaginar o seu total salvamento.
Como foi incoada a eternidade? Santo Agostinho ignora o problema, mas assinala um facto que parece
permitir uma solução: os elementos de passado e de futuro que há em todo o presente. Alega um caso
determinado: a rememoração de um poema. «Antes de começar, o poema está na minha antecipação;
assim que o acabei, na minha memória; mas enquanto o digo, está a estender-se na memória, pelo que
tenho dito; na antecipação, pelo que me falta dizer. O que sucede com a totalidade do poema, sucede
com cada verso e com cada sílaba. Digo o mesmo da acção mais longa de que faz parte o poema, e do
destino individual, que se compõe de uma série de acções, e da humanidade, que é uma série de
destinos individuais.» Esta verificação da íntima ligação dos diversos tempos do tempo, no entanto,
inclui a sucessão, facto que não condiz com um modelo de unânime eternidade.
Penso que esse modelo foi a nostalgia. O homem enternecido e desterrado que rememora possibilidades
felizes, vê-as sub specie aeternitatis, com o esquecimento total de que a execução de uma delas exclui
ou adia as outras. Na paixão, a recordação inclina-se para o intemporal. Reunimos as venturas de um
passado numa única imagem; os poentes diferentemente vermelhos que vejo em cada tarde serão na
lembrança um único poente. Com a previsão passa-se a mesma coisa: podem conviver sem obstáculos
as mais incompatíveis esperanças. Por outras palavras: o estilo do desejo é a eternidade (É verosímil
que esteja na insinuação do eterno — da immediata et lucida fruitio rerum infinitarum — a causa do
agrado especial que as enumerações provocam.)
 
 
IV
 
Só me resta referir ao leitor a minha teoria pessoal da eternidade.  uma pobre eternidade já
  sem Deus, e ainda sem outro possuidor e sem arquétipos. Formulei-a no livro Idioma dos
Argentinos, em 1928. Passo a transcrever o que então publiquei; a página intitulava-se «Sentir-se
na morte».
«Desejo registar aqui uma experiência que tive há umas noites: ninharia demasiado evanescente e
estática para lhe chamar aventura; demasiado irrazoável e sentimental para pensamento. Trata-se
de uma cena e da sua palavra: palavra já antes dita por mim, mas não vivida até então com total
dedicação do meu eu. Passo a historiá-la, com os acidentes de tempo e de lugar que a declararam.
Rememoro-a assim. Na tarde que antecedeu essa noite, estive em Barracas: localidade que não
visito por hábito e cuja distância das que depois percorri já deu um estranho sabor a esse dia.
Nessa noite não tinha destino algum; como estava bom tempo saí para caminhar e recordar,
depois de jantar. Não quis determinar rumo a essa caminhada; procurei uma máxima latitude de
probabilidades para não cansar a expectativa com a obrigatória antevisão de uma única delas.
Realizei apenas na medida do possível isso a que chamam caminhar ao acaso; aceitei, sem outro
consciente preconceito para além do de olhar de soslaio as avenidas ou ruas largas, os mais
obscuros convites da casualidade. Contudo, uma espécie de gravitação familiar afastou-me para
uns bairros, de cujo nome quero sempre lembrar-me e que exigem reverência ao meu peito. Não
quero com isto significar o meu bairro, o preciso âmbito da infância, mas sim no entanto as suas
misteriosas imediações; confim que possuí inteiro em palavras e pouco na realidade, vizinho e
mitológico ao mesmo tempo. O reverso do conhecido, as suas costas são para mim essas ruas
penúltimas, quase tão efectivamente ignoradas como os soterrados alicerces da nossa casa ou o
nosso invísivel esqueleto. A marcha deixou-me numa esquina. Aspirei a noite, em sereníssimo ócio
de pensar. A visão, nada complicada certamente, parecia simplificada pelo meu cansaço.
Irrealizava-a a sua própria tipicidade. A rua era de casas baixas, e embora o seu primeiro
significado fosse de pobreza, o segundo era certamente de ventura. Era do mais pobre e dos mais
belo que havia. Nenhuma casa estava animada na rua; a figueira escurecia sobre um quintal; as
cancelas — mais altas que as linhas estiradas das paredes — pareciam feitas da mesma substância
que a noite. A vereda era escarpada sobre a rua; a rua era de barro elementar, barro da América
ainda não conquistado. Ao fundo, a rua grande, já descampada, desmoronava-se para o Maldo-
nado. Sobre a terra turva e caótica, uma cerca rosada parecia não hospedar a luz do luar, mas sim
derramar uma luz íntima. Não haverá melhor maneira de definir a ternura que este tom rosado.
Fiquei a observar esta simplicidade. Pensei, com segurança, em voz alta: Isto é o mesmo de há
trinta anos... Conjecturei esta data: época recente noutros países, mas já remota neste
inconstante lado do mundo. Talvez cantasse um pássaro e senti por ele um carinho infantil, e de
tamanho de pássaro; mas o mais seguro é que neste já vertiginoso silêncio não houve outro ruído
para além do também intemporal dos grilos. O fácil pensamento: «Estou em mil oitocentos e
tantos» deixou de ser umas quantas aproximativas palavras e aprofundou-se até à realidade.
Senti-me morto, senti-me percebedor abstracto do mundo: indefinido temor imbuído de ciência
que é a melhor clareza da metafísica. Não acreditei, não, ter remontado as presumíveis águas do
Tempo; antes me suspeitei possuidor do sentido reticente ou ausente da inconcebível pala vra
eternidade. Só depois consegui definir esta imaginação.
Escrevo-a, agora, assim: Esta pura representação de factos homogéneos — noite em serenidade,
ar límpido, cheiro provinciano da madressilva, barro fundamental — não simplesmente idêntica à
que houve nessa mesma esquina há tantos anos; sem parecenças nem repetições, é a mesma. O
tempo, se pudermos intuir esta identidade é uma desilusão: bastam para o desintegrar a
indiferença e inseparabilidade de um momento do seu aparente ontem e de outro momento do seu
aparente hoje.
É evidente que o número destes momentos humanos não é infinito. Os elementares — os de
sofrimento físico e de gozo físico, os de aproximação do sonho, os da audição de uma música, os
de muita intensidade ou grande apatia — são mais impessoais ainda. Faço derivar de antemão
esta conclusão: a vida é demasiado pobre para não ser também imortal. Mas nem sequer temos a
segurança da nossa pobreza, visto que o tempo, facilmente refutável no sensitivo, não o é
também no intelectual, de cuja essência parece inseparável o conceito de sucessão. Fique portanto
em anedota emocional a vislumbrada ideia e na confessada irresolução desta folha de papel o
momento verdadeiro de êxtase e a insinuação possível de eternidade de que essa noite não me foi
avara.»
O propósito de dar interesse dramático a esta biografia da eternidade obrigou-me a certas deformações:
por exemplo, a resumir em cinco ou seis nomes uma gestação secular.
Trabalhei ao acaso da minha biblioteca. Entre outras obras que mais úteis me foram, tenho de
mencionar as seguintes:
 
Der Philosophie der Griechen, von Dr. Paul Deussen, Leipzig, 1919. Works of Plotinus. Translated by
Thomas Taylor, London, 1817.
Passages Illustrating Neoplatonism. Translated with an introduction by E. R.
Dodds, London, 1932.
La philosophie de Platon, par Alfred Fouillé, Paris, 1869.
Die Welt ais Wille und Vorstellung, von Arthur Schopenhauer. Herausgegeben von Eduard Grisebach,
Leipzig, 1892.
Die Philosophie des Mittelalters, von Dr. Paul Deussen, Leipzig, 1920.
Las confesiones de San Agustín. Versión literal por el P. Ángel C. Vega, Madrid, 1932.
A Monument to Saint Augustine, London, 1930.
Dogmatik, von Dr. R. Rothe, Heidelberg, 1870.
Ensayos de crítica filosófica, de Menéndez y Pelayo, Madrid, 1892.
 
[1]
«Nocturno o rio das horas flui / da sua nascente que é o amanhã / eterno...» Tem afinidade com esta
ideia o conceito escolástico do tempo como a fluência do potencial no actual. Cf. os objectos eternos de
Whitehead, que constituem «o reino da possibilidade» e entram no tempo.
[2]
Vivo, Filho de Despertado, o improvável Robinson metafísico do romance de Abubeker Abentofail,
resigna-se a comer as frutas e os peixes que abundam na sua ilha, sempre cuidando que nenhuma
espécie se perca e que o universo não fique empobrecido por culpa dele.
[3]
Não quero despedir-me do platonismo (que parece glacial) sem comunicar esta observação, com a
esperança de que a prossigam e justifiquem: «O genérico pode ser mais intenso que o concreto.» Casos
ilustrativos não faltam. Em criança, veraneando no Norte da província, interessaram-me a planície
redonda e os homens que bebiam na cozinha, mas a minha felicidade foi terrível quando soube que esse
redondel era «pampa» e esses homens «gaúchos». Do mesmo modo o imaginativo que se apaixona. O
genérico (o repetido nome, o tipo, a pátria, o destino admirável que lhe atribui) tem prioridade sobre os
aspectos individuais, «que se toleram graças ao anterior».
O exemplo extremo, o de quem se apaixona pelo que ouve dizer, é muito comum nas literaturas persa e
arábica. Ouvir a descrição de uma rainha — os cabelos semelhantes às noites da separação e da
emigração, mas o rosto como o dia da delícia, os peitos como esferas de marfim que dão luz às luas, o
andar que envergonha os antílopes e provoca o desespero dos salgueiros, as avultadas ancas que a
impedem de se manter em pé, os pés estreitos como a ponta de uma, lança — e apaixonar-se por ela
até à palidez e à morte é um dos temas tradicionais em As Mil e Uma Noites. Leia-se a história de
Badrbasim, filho de Shahriman, ou a de Ibraim e Jamila.
[4]
A noção de que o tempo dos homens não é comensurável com o de Deus sobressai numa das
tradições islâmicas do ciclo da miragem. Sabe-se que o Profeta foi arrebatado até ao sétimo céu pela
resplandecente égua Alburak e que conversou com cada um dos patriarcas e anjos que o habitam e que
atravessou a Unidade e sentiu um frio que lhe gelou o coração quando a mão do Senhor lhe deu uma
palmada no ombro. O casco de Alburak, ao deixar a terra, derrubou um jarro cheio de água; no seu
regresso, o Profeta levantou-o e não se tinha entornado nem urna só gota.
[5]
Jesus Cristo disse: «Deixai virem a mim as crianças»; Pelágio foi acusado, naturalmente, de se
interpor entre as crianças e Jesus Cristo, entregando-as assim ao Inferno. Tal como o de Atanásio
(Satanás), o seu nome permitia o trocadilho; todos disseram que Pelágio (Pelagius) tinha de ser um
pélago (pelagus) de maldade.

Pierre Menard,
autor do Quixote
A Silvina Ocampo
 
A obra visível que deixou este romancista é de fácil e breve enumeração. São, portanto,
imperdoáveis as omissões e acréscimos perpetrados por Madame Henri Bachelier num
catálogo falacioso que certo diário cuja tendência protestante não é segredo teve a
desconsideração de infligir aos seus deploráveis leitores — embora estes sejam poucos e
calvinistas, quando não mações e circuncisados. Os amigos autênticos de Menard viram
com alarme esse catálogo e também com certa tristeza. Dir-se-ia que ainda ontem nos
reunimos diante do mármore final e no meio dos ciprestes infaustos e já o Erro tenta
deslustrar a sua Memória... Decididamente, é inevitável uma breve rectificação.
Consta-me que é facílimo recusar a minha pobre autoridade. Espero, no entanto, que
não me proíbam de mencionar dois elevados testemunhos. A baronesa de Bacourt (em
cujos vendredis inesquecíveis tive a honra de conhecer o chorado poeta) julgou por bem
aprovar as linhas que se seguem. A condessa de Bagnoregio, um dos espíritos mais
finos do principado do Mónaco (e agora de Pittsburgh, Pensilvânia, após o seu recente
casamento com o filantropo internacional Simon Kautzsch, tão caluniado, ai!, pelas
vítimas das suas desinteressadas manobras) sacrificou «à veracidade e à morte» (tais são
as suas palavras) a senhoril reserva que a distingue e numa carta aberta publicada na
revista Luxe concede-me igualmente o seu beneplácito. Estas nobres acções, creio eu,
não são insuficientes.
Disse que a obra visível de Menard é facilmente enumerável. Examinado com o maior
cuidado o seu arquivo particular, verifiquei que consta das peças seguintes:
a) Um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com variantes) na revista La conque
(números de Março e Outubro de 1899).
b) Uma monografia sobre a possibilidade de construir um vocabulário poético de
conceitos que não sejam sinónimos ou perífrases de que se forma a linguagem comum,
«mas objectos ideais criados por uma ,convenção e essencialmente destinados às
necessidades poéticas» (Nîmes, 1901).
c) Uma monografia sobre «certas conexões ou afinidades» do pensamento de Descartes,
de Leibniz e de John Wilkins (Nîmes, 1903).
d) Uma monografia sobre a Characteristica universalis de Leibniz (Mines, 1904).
e) Um artigo técnico sobre a possibilidade de enriquecer o xadrez eliminando um dos
peões de torre. Menard propõe, recomenda, discute e acaba por rejeitar esta inovação.
f) Uma monografia sobre a Ars magna generalis de Ramon Lull (Nîmes, 1906).
g) Uma tradução com prólogo e notas do Livro da Invenção Liberal e Arte do Jogo de
Xadrez de Ruy López de Segura (Paris, 1907).
h) Os rascunhos de uma monografia sobre a lógica simbólica de George Boole.
i) Uma análise das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrada com exemplos de
Saint-Simon (Revue des langues romanes, Montpellier, Outubro de 1909).
j) Uma réplica a Luc Durtain (que negara a existência de tais leis) ilustrada com
exemplos de Luc Durtain (Revue des langues romanes, Montpellier, Dezembro de
1909).
k) Uma tradução manuscrita da Aguja de navegar cultos de Quevedo, intitulada La
boussole des précieux.
l) Um prefácio ao catálogo da exposição de litografias de Carolus Hourcade (Nîmes,
1914).
m) A obra Les problèmes d'un problème (Paris, 1917) que discute por ordem
cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e da tartaruga. Surgiram até
agora duas edições deste livro; a segunda traz como epígrafe o conselho de Leibniz «Ne
craignez point, monsieur, la tortue», e remodela os capítulos dedicados a Russell e a
Descartes.
n) Uma obstinada análise dos «costumes sintácticos» de Toulet (N. R. F., Março de
1921). Menard — recordo — declarou que censurar e louvar são operações sentimentais
que nada têm a ver com a crítica.
o) Uma transposição em alexandrinos do Cimetière marin de Paul Valéry (N. R. F.,
Janeiro de 1928).
p) Uma invectiva contra Paul Valéry, nas Folhas para a Supressão da Realidade de
Jacques Reboul. (Esta invectiva, diga-se entre parênteses, é o reverso exacto da sua
verdadeira opinião sobre Valéry. Este assim o entendeu e a amizade antiga entre os dois
não correu perigo).
q) Uma «definição» da condessa de Bagnoregio, no «vitorioso volume» — a locução é
de outro colaborador, Gabriele d'Annunzio — que anualmente publica esta dama para
rectificar os inevitáveis falseamentos do jornalismo e apresentar «ao mundo e à Itália»
uma autêntica imagem da sua pessoa, tão exposta (pela própria razão da sua beleza e da
sua actuação) a interpretações erróneas ou apressadas.
r) Um ciclo de admiráveis sonetos para a baronesa de Bacourt (1934).
s) Uma lista manuscrita de versos que devem a sua eficácia à pontuação .
[1]

Até aqui (sem outra omissão além de uns vagos sonetos de circunstância para o
hospitaleiro, ou ávido, álbum de Madame Henri Bachelier) a obra visível de Menard, na
sua ordem cronológica. Passo agora à outra: a subterrânea, a interminavelmente heróica,
a ímpar. E também — ai das possibilidades do homem! — a inacabada. Esta obra,
talvez a mais significativa do nosso tempo, consta dos capítulos nono e trigésimo oitavo
da primeira parte do Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois. Sei que
esta afirmação parece um dislate; justificar este «dislate» é o objectivo primordial desta
nota .
[2]

Dois textos de valor desigual inspiraram a empresa. Um é aquele fragmento filológico


de Novalis — o que tem o número 2005 na edição de Dresden — que esboça o tema da
total identificação com um autor determinado. Outro é um desses livros parasitários que
situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebière ou Dom Quixote na Wall Street.
Como todo o homem de bom gosto, Menard abominava estes carnavais inúteis, só aptos
— dizia — para ocasionar o plebeu prazer do anacronismo ou (o que é ainda pior) para
nos encantar com a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são
diferentes. Mais interessante, embora de execução contraditória e superficial, achava ele
o famoso propósito de Daudet: conjugar numa figura, que é o Tartarín, o Engenhoso
Fidalgo e o seu escudeiro... Quem insinuar que Menard dedicou a sua vida a escrever
um Quixote contemporâneo, calunia a sua brilhante memória.
Não queria compor outro Quixote — o que é fácil —, mas «o» Quixote. Não vale a pena
acrescentar que nunca encarou a possibilidade de uma transcrição mecânica do original;
não se propunha copiá-lo. A sua admirável ambição era produzir umas páginas que
coincidissem — palavra por palavra e linha por linha — com as de Miguel de
Cervantes.
«O meu propósito é simplesmente espantoso», escreveu-me a 30 de Setembro de 1934 de Bayonne. «O termo
final de uma demonstração teológica ou metafísica — o mundo exterior, Deus, a casualidade, as formas
universais — não é menos anterior e comum que o meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos
publicam em agradáveis volumes as fases intermédias do seu labor e eu resolvi que se perdessem.» Com
efeito, não resta um só rascunho que testemunhe este trabalho de anos.
O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica,
guerrear contra os Mouros ou contra o Turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e de 1918,
ser Miguel de Cervantes. Pierre Menard estudou esse procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel
do espanhol do século XVII), mas rejeitou-o por fácil. Ou antes, por impossível!, dirá o leitor. De acordo, mas a
empresa era de antemão impossível, e de todos os meios impossíveis para a levar a cabo este era o menos
interessante. Ser no século xx um romancista popular do século XVII pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de
algum modo, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo — por conseguinte, menos interessante
— do que continuar a ser Pierre Menard e chegar ao Quixote, através das experiências de Pierre Menard. (Esta
convicção, diga-se de passagem, fê-lo excluir o prólogo autobiográfico da segunda parte do Dom Quixote.
Incluir este prólogo seria criar outra personagem — Cervantes —, mas também significaria apresentar o
Quixote em função dessa personagem e não de Menard. Este, naturalmente, recusou-se a essa facilidade.) «A
minha empresa não é difícil, no essencial», leio noutro local da carta. «Bastar-me-ia ser imortal para a levar a
cabo.» Confessarei que costumo imaginar que ele a terminou e leio o Quixote — todo o Quixote — como se o ti-
vesse pensado Menard? Uma noite destas, ao folhear o capítulo XXVI — nunca tentado por ele —, reconheci o
estilo do nosso amigo e como que a sua voz nesta frase excepcional: las ninfas de los rios, la dolorosa y
húmida Eco. Esta conjunção eficaz de um adjectivo moral e outro físico trouxe-me à memória um verso de
Shakespeare, que discutimos uma tarde:
 
Where a malignant and a turbaned Turk...
 
Porquê precisamente o Quixote?, dirá o nosso leitor. Esta preferência, num espanhol, não teria sido
inexplicável; mas é-o sem dúvida num simbolista de Nîmes, devoto essencialmente de Poe, que gerou
Baudelaire, que gerou Mallarmé, que gerou Valéry, que gerou Edmond Teste. A carta já citada ilumina
este ponto. «O Quixote», esclarece Menard, «interessa-me profundamente, mas não me parece, como
direi?, inevitável. Não posso imaginar o universo sem a interjeição de Poe:
 
Ah, bear in mind this garden was enchanted!
 
ou sem o Bateau ivre ou o Ancient Mariner, mas sei-me capaz de imaginá-lo sem o Quixote. (Falo
naturalmente da minha capacidade pessoal, não da ressonância histórica das obras.) O Quixote é um
livro contingente, o Quixote é desnecessário. Posso premeditar a sua escrita, posso escrevê-lo, sem
incorrer numa tautologia. Aos doze ou treze anos li-o, talvez integralmente. Depois reli com atenção
alguns capítulos, os que não irei tentar por agora. Estudei igualmente os entremezes, as comédias, A
Galateia, as Novelas Exemplares, os trabalhos sem dúvida laboriosos de Persiles e Segismunda e a
Viagem do Parnaso... A minha lembrança geral do Quixote, simplificada pelo esquecimento e pela
indiferença, pode muito bem equivaler à imprecisa imagem anterior de um livro não escrito. Postulada
esta imagem (que ninguém em boa-fé me pode negar) é indiscutível que o meu problema é muito mais
difícil que o de Cervantes. O meu complacente precursor não recusou a colaboração do acaso: ia
compondo a obra imortal um pouco à la diable, levado por inércias da linguagem e da invenção. Eu
contraí o misterioso dever de reconstruir literalmente a sua obra espontânea. O meu solitário jogo é
governado por duas leis polares. A primeira permite-me experimentar variantes de tipo formal ou
psicológico; a segunda obriga-me a sacrificá-las ao texto "original" e a raciocinar de um modo irrefutável
essa anulação... A estes entraves artificiais tem de se juntar outro, congénito. Compor o Quixote nos
princípios do século XVII era uma empresa razoável, necessária, porventura até fatal; nos princípios do
xx, é quase impossível. Não foi em vão que transcorreram trezentos anos, carregados de complexíssimos
factos. Entre os quais, para mencionar um único: o próprio Quixote.»
Apesar destes três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais subtil que o de Cervantes. Este,
de um modo grosseiro, opõe às ficções cavaleirescas a pobre realidade provinciana do seu país; Menard
escolhe como «realidade» a terra de Carmen durante o século de Lepanto e de Lope. Que espanholadas
não teria aconselhado essa opção a Maurice Barrès ou do doutor Rodríguez Larreta! Menard, com toda a
naturalidade, evita-as. Na sua obra não há nem ciganadas, nem conquistadores, nem místicos, nem Filipe
II, nem autos-de-fé. Desatende ou proscreve a cor local. Este desdém indica um sentido novo do romance
histórico. Este desdém condena Salambo, inapelavelmente.
Não menos assombroso é considerar capítulos isolados. Por exemplo, consideremos o XXXVIII da primeira
parte, «que trata do curioso discurso que fez Dom Quixote das armas e das letras». É sabido que Dom Quixote
(tal como Quevedo na passagem análoga, e posterior, de La hora de todos) falha o pleito contra as letras e a
favor das armas. Cervantes era um velho militar: a sua falha explica-se. Mas que o Dom Quixote de Pierre
Menard — homem contemporâneo de La trahison des clercs e de Bertrand Russell — reincida nesses nebulosos
sofismas! Madame Bachelier viu nelas uma admirável e típica subordinação do autor à psicologia do herói;
outros (nada perspicazmente) uma transcrição do Quixote; a baronesa de Bacourt, a influência de Nietzsche. A
esta terceira interpretação (que julgo irrefutável) não sei se me atreverei a acrescentar uma quarta, que condiz
muito bem com a quase divina modéstia de Pierre Menard: o seu hábito resignado ou heróico de propagar
ideias que eram o rigoroso reverso das preferidas por ele. (Relembremos outra vez a sua diatribe contra Paul
Valéry na efémera folhinha super-realista de Jacques Reboul.) O texto de Cervantes e o de Menard são
verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão os seus
detractores; mas a ambiguidade é uma riqueza.)
É uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom
Quixote, primeira parte, nono capítulo):
 
«... la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado,
ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir[3].»
 
Redigida no século XVII, redigida pelo «engenho leigo» Cervantes, esta enumeração é um simples elogio
retórico da História. Menard, em contrapartida, escreve:
 
«... la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado,
ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.»
A história, mãe da verdade: a ideia é espantosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a
história como uma investigação da realidade, mas sim como a sua origem. A verdade histórica, para ele, não é
o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As cláusulas finais — «exemplo e aviso do presente,
advertência do porvir» — são desafrontadamente pragmáticas.
Também é vivo o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard — estrangeiro mesmo — sofre de uma
certa afectação. Não sucede o mesmo com o do precursor, que maneja com desenvoltura o espanhol corrente
da sua época.
Não há exercício intelectual que por fim não seja inútil. Uma doutrina filosófica ao princípio é uma descrição
verosímil do universo; passam os anos e é um simples capítulo — quando não um parágrafo ou um nome — da
história da filosofia. Na literatura, esta capacidade final é ainda mais notória. O Quixote — disse-me Menard —
foi acima de tudo um livro agradável; agora é uma ocasião de brindes patrióticos, de soberba gramatical, de
obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão, e quiçá a pior.
Nada têm de novo estas comprovações niilistas; o singular é a decisão que delas fez derivar Pierre Menard.
Resolveu adiantar-se à vacuidade que aguarda todas as fadigas do homem; lançou-se numa empresa
complexíssima e de antemão fútil. Dedicou os seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma alheio um livro
preexistente. Multiplicou os rascunhos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas[4]. Não
permitiu que fossem analisadas por ninguém e cuidou para que não lhe sobrevivessem. Em vão procurei
reconstituí-las.
Reflecti que é lícito ver no Quixote «final» uma espécie de palimpsesto, em que deverão transparecer os
vestígios — ténues, mas não indecifráveis — da «prévia» escrita do nosso amigo. Infelizmente, só um segundo
Pierre Menard, invertendo o trabalho do anterior, poderia vir a exumar e ressuscitar essas Tróias...
«Pensar, analisar, inventar (escreveu-me também) não são actos
anómalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o
ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios
pensamentos, recordar com ingénua estupefacção o que o doctor
universalis pensou, é confessar a nossa fraqueza de espírito ou a
nossa barbárie. Todo o homem tem de ser capaz de todas as ideias e
entendo que no porvir o será.»
Menard (porventura sem querer) enriqueceu por meio de uma técnica
nova a arte estagnada e rudimentar da leitura: a técnica do
anacronismo deliberado e das atribuições erróneas. Esta técnica de
aplicação infinita insta-nos a percorrer a Odisseia como se fosse
posterior à Eneida e o livro Le jardin du Centaure de Madame Henri
Bachelier como se fosse de Madame Henri Bachelier. Esta técnica
povoa de aventura os livros mais calmosos. Atribuir a Louis Ferdinand
Céline ou a James Joyce A Imitação de Cristo, não é uma suficiente
renovação desses ténues avisos espirituais?
Nîmes, 1939.
 

[1]
Madame Henri Bachelier enumera igualmente uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da Introduction à la vie dévote de São Francisco de Sales. Na
biblioteca de Pierre Menard não há vestígios de tal obra. Deve tratar-se de uma piada do nosso amigo, mal ouvida.
[2]
Tive também o propósito secundário de esboçar o retrato de Pierre Menard. Porém, como posso ousar competir com as páginas áureas que me dizem que prepara a
baronesa de Bacoun ou com o lápis delicado e pontual de Carolus Hourcade?
[3]
«…a verdade, cuja mãe é a história, émula do tempo, depósito das acções, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do porvir».
[4]
Lembro-me dos seus cadernos quadriculados, das sua negras rasuras, dos seus peculiares símbolos tipográficos e da sua letra de insecto. Ao pôr do Sol gostava de
sair a passear pelos redores de Nîmes; costumava levar consigo um caderno e fazer uma alegre fogueira.

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